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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BIBLIOTECA MÁGICA / Jostein Gaarder
A BIBLIOTECA MÁGICA / Jostein Gaarder

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

PARTE 1
O LIVRO DE CARTAS

Querida Berit,

que bom ter visto você nesse verão. Foi realmente muito legal. Amanhã recomeçam as aulas, e não estou exatamente entusiasmado. Só de pensar naquele monte de pirralhos... Mas tudo bem, este ano Nils Bøyum Torgersen termina a sexta série e então: escola nova, vida nova...
Mas vamos ao que interessa. Pensei muito sobre aquela ideia do livro de cartas, e tenho que admitir que não acho essa ideia tão má. Escrever cartas num caderno e enviá-lo de Oslo para Fjærland e vice-versa vai ser, para mim, como se a gente enchesse um álbum com palavras em vez de fotos (he, he). Isso se tivermos alguma coisa para escrever, é claro. Essa é a questão. Estou começando a desconfiar que este outono não vai ser a época mais emocionante do ano, e imagino que em Fjærland as coisas também não estejam lá muito agitadas. Ou será que descobriram aí na geleira de vocês algum misterioso homem das neves?
Mas preciso parar agora. Minha mãe manda lembranças. Ela espera que a tia Grete esteja gostando do novo emprego no hotel e “is looking forward to seeing you again”, como eles dizem no avião. Meu pai com certeza também mandaria lembranças, mas ele está dirigindo o táxi e não sabe que estou escrevendo para você.
Lembranças de seu mui estimado primo Nils

 


 


PS. Quase ia esquecendo de contar uma coisa estranha que aconteceu quando comprei este livro. Não foi em Oslo, mas em Sogndal, quando estava voltando de Fjærland. Você se lembra daquela mulher esquisita? Aquela de olhos arregalados que andava com um livro todo amassado na bolsa? Que estava lendo o livro de hóspedes lá em cima na Cabana Flatbre e depois ficou espiando por cima dos nossos ombros quando escrevemos o nosso poema no livro? Você ainda se lembra do poema inteiro? Eu lembro:


Aqui em cima nada nos amola,

Juntos tomamos uma coca-cola,

Nils e Berit, assim nos chamamos,

Férias fantásticas aqui passamos.

Nos divertimos muito no verão,

E não queremos ir embora não!


Um poema muito bom, na minha opinião.

Mas não era sobre o poema que eu queria falar. Era sobre a mulher. Quando entrei na livraria em Sogndal, ela estava lá. Ficava passando na frente das estantes e olhando os livros. E ela babava, Berit! Pois é, não sei outro jeito de dizer isso, a mulher andava pela livraria e babava. Como se os livros fossem de chocolate, marzipã ou coisa parecida. Mas o mais estranho aconteceu quando fui pagar o livro. Ela chegou perto de mim e perguntou se não podia dar uma pequena contribuição. Eu não sabia o que responder, mas ela ficou me olhando com um olhar tão esquisito que eu simplesmente não consegui dizer não. Não sei como descrever a expressão dos seus olhos, mas tive a sensação de que ela estava me lendo por dentro como um livro aberto. A única coisa que consegui fazer foi aceitar a moeda de dez coroas e dizer: “Muito obrigado”. E sabe o que ela respondeu? “Eu é que agradeço!” Então ela pegou um lenço, enxugou a boca e desapareceu.

De qualquer forma, aqui está o livro. Estou mandando também uma das duas chaves. Você tem que mantê-lo trancado sempre que não estiver escrevendo. Não se esqueça de que o conteúdo é “for your eyes only” (apenas para os seus olhos). Você vai ter que se conformar com a foto da capa. As únicas opções eram o fiorde Sogne e um pôr do sol com um coração vermelho no lugar do sol. Qual dos dois você escolheria? Fim da carta.

Querido primo,

obrigada pelo livro de cartas, que encontrei há poucos minutos na caixa do correio e abri no mesmo instante. Por enquanto não vou conseguir contar como vão as coisas por aqui, pois o que aconteceu comigo hoje à tarde não me deixa pensar em mais nada. Preciso escrever imediatamente, mesmo com a mão tremendo deste jeito. Tomara que você consiga ler mesmo assim.

É sobre aquela mulher misteriosa. Aquela que você encontrou em Sogndal, a própria. Ai, meu Deus, por onde começar?

Bem, eu estava no cais quando chegou a barca das duas horas. As nossas aulas só começam na segunda-feira e por aqui não há muito que fazer. E então ela chegou, entende? Foi a primeira a sair da barca. Quando passou na minha frente, ela olhou para mim com um olhar de quem diz: “Eu sei muito bem quem você é”. Eu ainda não tinha lido a sua carta, mas me lembrei do nosso encontro na cabana Flatbre e decidi segui-la. A uma distância segura. Não sei como me atrevi a fazer isso, mas tenho quase a sensação de que ela me hipnotizou. (Agora com certeza dá para ver como a minha mão está tremendo!) Quando passou em frente à igreja, ela olhou para trás. Tive que me jogar na sarjeta e, quando passamos por Mundal, ela ainda se virou mais algumas vezes, mas acho que não me viu.

Lembra onde tem um muro e um portão? Ali ela virou à direita, em direção àquela casa amarela que fica isolada na beira da floresta. Eu me escondi atrás do muro e agora vou chegar ao que interessa: quando ela abriu a porta da casa, alguma coisa saiu voando da bolsa dela. E em seguida ela desapareceu.

Eu estava tão agitada que simplesmente não conseguia mais pensar. Deve ser a mesma sensação que tem uma pessoa quando comete um crime pela primeira vez. Um segundo depois eu estava na frente da casa, me sentindo como um assaltante de banco mascarado que de repente pula na frente do caixa e grita: “Isto é um assalto”. Talvez não tenha sido exatamente um assalto, e eu não berrei nada nem estava mascarada, mas me apoderei de um pequeno envelope que estava no chão e corri de novo para trás do muro. Dentro do envelope, havia uma carta. Estava escrito:


Querida Bibbi,

andei a manhã inteira pela cidade, mas simplesmente não consigo reencontrar aquele estranho sebo. Será que ele fechou de uma noite para a outra? Só sei que ele ficava numa daquelas estreitas ruelas ao redor da piazza Navona. Mas eu também andei por ali...

Eu estava procurando uma edição italiana do Peer Gynt, mas quando o dono da loja viu que eu era norueguesa, ele me levou até um velho armário e apontou para um livro que era bem diferente de todos os outros que havia ali, pois era um livro novinho em folha.

— Não tenho apenas livros que já foram escritos — ele sussurrou e olhou para mim com um olhar muito expressivo.

Naturalmente não entendi o que ele estava querendo dizer, mas então ele tirou o livro do armário, fitou-me com um olhar penetrante e explicou:

“Também coleciono livros que ainda não foram escritos. É claro que existe uma infinidade desses livros, mas ao mesmo tempo é muito raro ter um deles na mão”.

Então ele pôs o livro nas minhas mãos. Na capa havia uma foto de umas montanhas muito altas e o título tinha alguma coisa a ver com uma “biblioteca mágica”. Mas o que importa aqui não é o título nem a capa. o importante é a data em que o livro foi publicado em oslo.

Em algum momento do ano que vem, Bibbi! O velho homem também sublinhou que se tratava de um livro muito especial.

Fiquei tão assustada que larguei o livro imediatamente. Foi como se alguma coisa tivesse me queimado. Nem pude reparar quem era o autor. Você pode me ajudar, Bibbi? Se em toda a Noruega existisse apenas uma bibliógrafa, teria que ser você. A questão não é, portanto, quem escreveu um livro sobre uma biblioteca mágica, mas sim quem está escrevendo.

Eu simplesmente saí apressada do sebo, dizendo que não podia perder meu trem. Mas ao abrir a porta, ainda me virei e perguntei ao homem qual era o preço daquele raro exemplar. Ele ficou tão furioso, você precisava ter visto. Ergueu as sobrancelhas e disse, aos brados:

— Como se atreve? Ninguém vende seus filhos queridos. Esse volume é mais valioso do que o mais caro dos incunábulos...

Eu me perguntei se acaso ele não seria surdo. Seu italiano soava pouco claro e tive a impressão de que ele lia os meus lábios quando eu falava.

Você precisa me desculpar por ter telefonado tão tarde ontem, mas eu estava simplesmente fora de mim. Se pelo menos eu pudesse encontrar de novo o sebo. Mas é como se a terra o tivesse engolido!

Muitas lembranças de Siri, Campo dei Fiori, 8 de agosto de 1998

 

Essa é a carta, Nils. O que você me diz? De repente, eu tinha nas mãos uma carta misteriosa que tinha roubado e lido às escondidas. E agora como iria devolvê-la?

Você vive tirando sarro de mim porque sempre ando com um bloquinho de anotações no bolso. Gosto de anotar ideias inteligentes para não me esquecer delas, e dessa vez fiquei realmente feliz por ter o bloco. Copiei a carta bem depressa, andei pé ante pé até a casa amarela e a deixei onde a tinha encontrado.

Faz meia hora que voltei para casa e a sua carta não me tranquilizou muito, pois a ideia de que essa mulher patrocinou o nosso livro com dez coroas não me agrada nem um pouco. Para mim é quase como se, com isso, ela tivesse comprado também os nossos pensamentos.

E agora, o que devo fazer? Acho que fisgamos um peixe grande. Pelo menos, agora sabemos que ela se chama Bibbi. E, se podemos acreditar na carta, sabemos também que ela é uma “bibliógrafa”. Mas que espécie de pessoa é uma bibliógrafa? E o que é um incunábulo?

Acho que vou começar a chorar e é melhor parar de escrever. Não creio que a tinta da caneta seja à prova d’água.

Vou levar o livro agora mesmo para o correio. E você tem que responder imediatamente!!!

Lembranças da sua assustadíssima prima Berit Bøyum


Berit, Berit!

Muito engraçado. Um livro que foi publicado no ano que vem. Você acha que eu sou tão burro assim? A gente resolveu escrever um livro de cartas, até aí tudo bem, mas não é por isso que precisamos ir inventando histórias logo de cara. Se você acha que pode me fazer de trouxa, está redondamente enganada. Mesmo sendo um ano mais novo e dez centímetros mais baixo que você, não sou nenhum bebezinho que acredita em tudo o que os outros contam. Já entendi tudo. Se você quer mesmo que eu acredite na história da carta, vai ter que me mandar o original. Uma transcrição das “histórias fantásticas do bloco de anotações de Berit Bøyum” simplesmente não basta.

Mas o.k., pesquisei o que significa “bibliógrafa” e o que é um “incunábulo”. Biblion é grego e significa “livro”. Por isso aposto que uma bibliógrafa é uma pessoa que tem atração por livros, e pessoalmente isso me soa como uma coisa perversa. “Incunábulo” vem da palavra latina incunabula e significa “berço”.

Essa Bibbi, portanto, é uma mulher doida por livros e a outra, que escreveu a carta, descobriu um livro que ainda não foi escrito e que é mais valioso do que um berço. Eu acredito em você. Acredito mesmo.

Se você acha que isso foi uma ironia, então entendeu certo. Hoje não estou para brincadeiras. Nosso professor de educação física é o “Iron Man”, e ele é completamente maluco.

E agora pode acreditar: estou ansioso para ver a autêntica carta de Siri Campo dei Fiori.

Bye-bye,

Nils


Querido (?) Nils,

que triste decepção — é o que eu tenho a dizer!

Depois que digeri as suas infâmias, fiquei simplesmente uma hora parada olhando a chuva pela janela. Você não acredita em mim!!! Por sua causa, coloco minha vida em jogo e vou buscar essa supercarta dentro da toca da leoa, e como você me agradece? “Bye-bye” e “histórias fantásticas do bloco de anotações de Berit Bøyum”.

Talvez esta seja a minha última carta, pois se você não acredita em mim não faz muito sentido continuar escrevendo. Nesse caso, pode ficar com o livro de cartas para você. Você está tão cheio de frases podres que dá para encher o livro mais de cem vezes. E depois você terá alguma coisa para cheirar quando estiver velhinho de cabelos brancos (“he, he”). Ou será que você esqueceu que acabei de me mudar de Bergen, onde tenho uns quinze ou vinte amigos para os quais prometi escrever? Além disso, sempre me ocorre alguma coisa para escrever no meu bloco de anotações estritamente confidencial. Portanto, não veja este livro de cartas como um anúncio do tipo: “Garota sozinha e abandonada entre as montanhas do fiorde Sogne deseja se corresponder...”.

Aliás, não acredito que você não acredite pelo menos em alguma coisa do que escrevi. Você está simplesmente com medo de cair no ridículo. Isso é muito comum em garotos da sua idade. Mas tem um ditado que diz: “Quem não arrisca não petisca”. Se você não tivesse acreditado no lance da carta misteriosa, não teria procurado aquelas palavras estranhas no dicionário. Eu também pesquisei. Achei o seguinte: “Bibliógrafo: quem se ocupa com bibliografia, conhecedor de livros”. Você deve ter confundido com “bibliófilo”, que é “quem tem amor aos livros, alguém que coleciona livros raros e bonitos”. “Incunábulo” significava originalmente “berço”, você tem razão, mas hoje a palavra é usada apenas para os livros que foram impressos antes de 1500. Também achei: “Incunábulo: livro que foi impresso nos primeiros tempos após a invenção da tipografia”.

Percebe o que tem a ver? O homem no sebo disse que o livro sobre a biblioteca mágica era mais raro do que esses livros antiquíssimos, que foram impressos há mais de quinhentos anos. Muitos deles foram queimados pela igreja católica por serem considerados hereges ou se extraviaram por outros motivos. Mas deve ser ainda mais raro segurar nas mãos um livro que ainda não foi publicado, não é? E ainda por cima muito misterioso, Nils. É claro que também acho a carta que encontrei absolutamente inacreditável. Mas isso não significa que você não deva acreditar em mim!

Você acha mesmo que é mais fácil acreditar que uma mulher adulta ande por uma livraria lambendo os lábios, porque acha que os livros são feitos de chocolate ou de marzipã? Ou que ela tire uma moeda de dez coroas do bolso e dê a um garoto, só porque ele quer comprar um álbum de poesia? (Só estou perguntando.)

Você me lembra um pouco o apóstolo que só acreditou em Jesus depois de colocar a mão nas suas feridas. Infelizmente não tenho outra ferida para mostrar a não ser esta muito grande que você causou hoje na minha alma, mas nela não é tão fácil enfiar a mão. E também não é uma ferida fácil de sarar. Mas eu averiguei mais algumas coisas e, se você não quiser acreditar de novo, isso pelo menos eu posso provar.

Como você sabe, minha mãe agora trabalha no hotel, e por isso tenho algumas regalias lá dentro. Pouco a pouco, você vai ficar sabendo mais sobre o que se passa detrás daquela fachada antiga. Agora vou contar apenas o que ouvi sobre a mulher da casa amarela.

Ela se chama Bibbi Bokken, e só o nome já é um capítulo à parte. Mas ninguém aqui sabe se esse é o seu nome verdadeiro, porque ela não conversa com ninguém. Ela se mudou há pouco tempo como eu. Se bem que eu nasci aqui, e Bibbi Bokken conhece Fjærland somente há alguns anos.

Ela comprou uma casa com uma bela vista para o fiorde de Fjærland. “E por que não”, talvez você esteja pensando, “e daí?” É que nas primeiras semanas depois que ela se mudou, as pessoas do lugar ouviram uns ruídos estranhos vindos da casa. Talvez ela estivesse apenas fazendo uma reforma, mudando paredes de lugar e instalando prateleiras. Pode ser, mas esses ruídos inexplicáveis ocorriam principalmente à noite. De vez em quando havia uns estrondos bem fortes...

Quem me contou foi a vigia noturna do hotel. Ela se chama Hilde Mauritzen e é muito legal. Além disso, ela é filha de um membro do Parlamento (e portanto bastante confiável, não é?). Ela me contou mais coisas. Dizem que Bibbi Bokken foi uma espécie de bibliotecária de uma grande biblioteca em Oslo e que, de repente, ela fez as malas e apareceu aqui em Fjærland.

Será que você pode tentar saber alguma coisa aí na capital? Pelo menos tente procurar “Bokken” na lista telefônica (mesmo que ela não more mais aí).

Talvez pela última vez,

lembranças da Berit

 

PS. A mulher que escreveu a carta misteriosa não se chama Siri Campo dei Fiori. Tenho certeza de que copiei direito a carta, e nela estava escrito: “Lembranças de Siri, Campo dei Fiori, 8 de agosto de 1998”. Isso significa que Siri escreveu a carta em algum lugar chamado Campo dei Fiori. Seja lá onde fique este lugar, quando você lê alguma coisa, é importante prestar atenção nos sinais de pontuação, tanto quanto nas letras. Se eu escrevo “lembranças da Berit, boa noite” não é por isso que me chamo Berit Boa Noite.


PPS. Você pode acreditar em mim, por favor, Nils? Please! Gostaria de combinar duas regras para o nosso livro de cartas, pois isso tornaria tudo muito mais fácil.

1a regra: é proibido mentir no livro de cartas.

2a regra: é proibido achar que o outro está mentindo.

Se você não quiser respeitar essas duas regras, já pode ficar com o livro a partir de agora. Estou mandando a chave junto por precaução. Você pode dá-la para a tia Ingrid, afinal de contas alguém tem que ler o que você escreve, certo? (Sarcástica? Eu?)


PPPS. E pense ainda num outro ditado: “Quem ri por último ri melhor”.

Lembranças da Berit. Boa noite!


Querida Berit,

sinto muito realmente. Eu não queria magoá-la, só queria tirar uma com a sua cara. Você sabe como eu sou. Carcaça dura, coração mole. (Hum.) Mas quando você diz que causei uma “profunda ferida na sua alma” sinto um nó na garganta. Eu não queria fazer isso, e não sabia que você era tão sensível. Mas você é, e agora acredito em você. Pois se você não tivesse dito a verdade, não teria uma ferida na alma e não teria escrito o que escreveu. Portanto, eu acredito em você. Peço perdão e mando a chave de volta. Por favor, fique com ela. Prometo que a partir de agora vou respeitar a segunda regra do nosso livro. E também vou tentar não mentir, embora isso possa ser bem difícil.

Para provar que estou falando a sério, comecei a fazer umas investigações. Primeiro me informei onde fica Campo dei Fiori. Eu perguntei para minha mãe. Você sabe que ela escreve histórias para uma dessas revistas, para “melhorar o orçamento doméstico e dar um toque de fantasia ao cinzento cotidiano”, como ela diz.

Agora ela está trabalhando numa história para um concurso qualquer, e quando lhe perguntei se já tinha ouvido falar do Campo dei Fiori ou da piazza Navona, ela ficou me olhando como se estivesse recebendo uma luz.

— Mas é claro — ela disse. — Foi em Roma que tudo aconteceu!

— Você sabe de tudo? — perguntei, já pensando que talvez ela tivesse lido o livro de cartas escondido.

— Sei, sim — ela disse. — Na piazza Navona, em Roma. Foi lá que nos conhecemos.

Então ela se debruçou sobre a máquina de escrever e começou a martelar o seu texto. Ela não estava falando do nosso livro, mas sim da historinha água com açúcar que ela estava escrevendo.

— Você me deu uma inspiração, Nils — ela murmurou.

Não sei bem o que quer dizer inspiração, mas acho que é um tipo de ideia que as pessoas que escrevem têm e daí então começam. Mas não importa o que lhe demos, seja lá o que for, a Piazza Navona fica em Roma!

Essa foi uma das investigações. A outra me levou até uma pista que mudou completamente o rumo das coisas. Se estiver certa, você está correndo perigo, Berit, e no momento o único conselho que posso lhe dar é: mantenha distância de Bibbi Bokken e esconda todos os seus livros. É que eu tenho uma teoria. Bem, uma ideia, para ser mais exato. Uma ideia a respeito de quem pode ser Bibbi Bokken e o que ela faz. Mas não fique muito assustada, Berit. Sei que você é muito sensível, mas agora realmente precisa manter a cabeça fria. Bem, escute.

Fui procurar na lista telefônica, como você me disse. Encontrei uma “Bokken SA”. Liguei e um homem atendeu. Ele nunca tinha ouvido falar de Bibbi Bokken. Perguntei que firma era aquela e ele disse que eles atuavam no setor alimentício. Não sou tão bom quanto você com palavras difíceis (bibliófilo/bibliógrafo, entende?), então perguntei o que isso significava e ele disse que tinham um escritório na Cidade da Carne em Furuset, e importavam aparelhos para vendê-los aos matadouros.

Na Cidade da Carne, Berit!

Eu comecei a tremer da cabeça aos pés e não pude deixar de pensar na minha teoria, e quando terminei de pensar anotei tudo na forma de uma redação. Amanhã temos que entregar uma mesmo e, como eu só conseguia pensar em Bibbi Bokken e na Cidade da Carne, escrevi exatamente sobre isso. Com nomes e tudo. Espero que não tenha problema. Aqui ninguém deve conhecer Bibbi Bokken e, se a minha teoria estiver certa, esse nem é o nome verdadeiro dela.

Como você está vendo, copiei a redação e colei no livro. Estou ansioso para ver o que você vai dizer. Mas não entre em pânico em hipótese alguma, Berit. Se você precisar de ajuda, vou pessoalmente para Fjærland, mesmo que precise pedir carona e matar aula. E, como eu já disse, peço desculpas e espero que a sua ferida tenha sarado um pouquinho.

Seu arrependido primo Nils

 

PS. Muito importante: jamais podemos deixar Bibbi Bokken pegar o livro de cartas nas mãos, pois isso provavelmente nos colocaria em grande perigo.

 

A assassina da Cidade da Carne

Birte Bakken lambeu os lábios. Ela estava muito satisfeita consigo mesma. Fora uma longa viagem até Fjærland desde a Cidade da Carne, o bairro dos matadouros de Oslo. Mas ela havia conseguido. Todas as pistas tinham sido apagadas e a polícia não sabia por onde começar. Transformar Birte Bakken em Bibbi Bokken fora simplesmente genial. Ela havia tido a ideia quando descobriu no livro de contabilidade do matadouro o nome dos fornecedores alimentícios Bokken, e essa descoberta acontecera no momento certo. Fazia muito tempo que ela se perguntava como agiria no dia em que fosse desmascarada. Não havia sido fácil mudar o nome Bakken para Bokken em seu passaporte, mas ela conseguira, e o lema de Birte sempre fora: “Quem não arrisca não belisca”. Não, nada a faria desanimar agora.

Bakken, a alpinista, paraquedista, piloto de bombardeiro. Não era pouco o que ela já tinha feito. O problema era que ela logo ficava entediada com tudo isso. Birte era uma pessoa incrivelmente passional, mas sua paixão sempre se apagava rapidamente como fogo de palha. A não ser por uma delas: ela amava os livros.

E era um amor insaciável. Birte se apresentava como bibliógrafa, mas na verdade ela era bibliófila, o que é uma coisa totalmente diferente. Ela amava os livros. Quer dizer, não exatamente. Ela adorava roubar livros, mas não lia os livros. Às vezes ela ajudava pessoas que não tinham condições de comprar livros apenas pelo prazer de depois roubar os livros delas. Depois que havia roubado um livro, ela não se interessava mais por ele e tinha que roubar mais um. Imediatamente.

A tragédia começou quando Birte Bakken começou a trabalhar numa grande biblioteca de Oslo. No final do expediente, ela sempre ia para a seção dos livros antigos. Sim, havia ali até mesmo incunábulos. Ali ela se servia com voracidade, e de fato achava aquilo maravilhoso. Mas um dia ela foi surpreendida por um homem da empresa de vigilância justamente no momento em que colocava na bolsa um incunábulo valiosíssimo. Não seria nenhum exagero afirmar que Birte Bakken ficou perplexa e acuada. Mas com sua presença de espírito única, ela pegou o corta-papel que sempre trazia consigo e cravou-o no peito do homem da empresa de vigilância. Ele se chamava Roger Larsen.

MAS AGORA O QUE ELA FARIA COM O CADÁVER? Birte lembrou-se da Cidade da Carne, no bairro de Furuset. Se ela conseguisse levar o cadáver de Roger Larsen para lá e escondê-lo entre as outras carnes, então estaria tudo mais do que resolvido. E dito e feito.

Como Birte conseguiu levar Roger Larsen para o bairro dos matadouros e misturá-lo com o resto da carne é uma outra história, mas o certo é que isso aconteceu. E depois disso ela descobriu que havia adquirido uma nova paixão: assassinato. Livros e assassinato passaram a ser a vida de Birte. E tudo teria ido muito bem se o veterinário de Ås não estivesse inspecionando as reses justamente no momento em que Birte ia pendurar Fredrik Wilhelmsen, de Stavern, num gancho do matadouro.

— Que espécie de animal é este? — perguntou o veterinário, e Birte compreendeu que o jogo havia acabado. Ela não sabia o que fazer. Todos sabiam que tinha sido a ajudante de açougueiro Birte Bakken que abatera aquele animal. Poucos, porém, sabiam que não era um animal, e sim o livreiro Wilhelmsen da Wilhelmsens Libris. Mas a verdade veio à tona, e Birte precisava fugir.

Agora ela estava estabelecida em Fjærland com uma nova identidade. Birte contemplou o fiorde. Ela estava em segurança e deveria estar de fato satisfeita. Mas não estava. Ela estava entediada e não tinha nenhuma ideia de como passar o tempo. Olhou para a rua que serpenteava em volta do cemitério. Uma menina se aproximava. Ela tinha uns treze ou catorze anos e segurava um livro na mão.

Birte levantou-se de um salto e lambeu os lábios. Ela sentiu um frio na barriga...


Querido e “carnal” primo!

Você está perdoado, mas ficou doido varrido! Primeiro você se recusa a acreditar que encontrei uma carta na frente da casa de Bibbi Bokken e chama tudo de “histórias fantásticas do bloco de anotações”. Depois me vem com uma história totalmente escabrosa sobre “A assassina da Cidade da Carne”!!! Acho que você anda vendo vídeos demais, meu caro.

Por acaso você escreveu a história da carniceira assassina Birte Bakken para, digamos, celebrar que aqui tudo é permitido desde que seja suficientemente mirabolante? Só que nem tudo é permitido. Acho inclusive que você deveria diminuir um pouco o ritmo das investigações.

Não sei muito bem se posso acusá-lo de ter quebrado a primeira regra do livro de cartas, mas com certeza não faltou muito. Você apenas se salva porque confessou que a história toda é pura fantasia. Ou, mais precisamente, uma “teoria”, o que soa um pouco mais elegante. Mas não importa, estou tremendamente curiosa para saber o que o seu professor vai dizer sobre essa redação. Acho que você deveria ficar contente pelo fato de só receber nota a partir da sétima série.

Acho bom você pensar sobre isso, Nils. Isto é, se fantasia é realmente a mesma coisa que mentira. Algumas vezes é, sem dúvida. Por exemplo: se você chega atrasado na escola e inventa que precisou ajudar uma velhinha que escorregou no gelo e quebrou a perna, isso é uma mentira deslavada, porque você está contando uma história como se fosse verdade, embora seja tudo invenção. Mas nem sempre é assim.

Se fantasia e mentira são a mesma coisa, os escritores são mentirosos de carteirinha. Quero dizer, eles vivem disso e as pessoas compram suas histórias mentirosas de livre e espontânea vontade. Elas até entram em clubes de livros para receber as mentiras pelo correio.

Acho que algumas pessoas gostam de mentir, enquanto outras gostam de que mintam para elas. Em cada município constroem-se grandes casas em que as mentiras são reunidas e expostas, as chamadas bibliotecas. Poderíamos chamá-las também de “laboratórios de mentiras” ou coisa parecida. Mas o melhor de tudo talvez fosse chamar as bibliotecas de “depósitos de fatos e lorotas”. É, pois nem tudo o que se diz nos livros é mentira. Podemos até mesmo encontrar no mesmo livro, lado a lado, a verdade e a pura fantasia, e às vezes é difícil distinguir o que é uma coisa e o que é outra. E também muitas coisas que são a mais pura verdade são tão inacreditáveis que parecem mentiras ou invenções malucas. Você já leu O diário de Anne Frank, por exemplo? Bem, é uma história inacreditável. Mas é a pura verdade!!! (Believe me!) E também acontece exatamente o contrário: algumas histórias inventadas são tão corriqueiras e entediantes que só por isso já parecem verdade. Mas elas podem ser tão inventadas como essas histórias malucas de ficção científica. Sei como é, pois temos um livro de inglês que é de morrer de tédio: Mary is often on vacation in Norway etc., mas na verdade ela nunca passou férias aqui, ela nem sequer existe!

Não sei se você já ouviu falar de Peer Gynt. Bem, de qualquer forma, ele tinha uma imaginação muito fértil. O que não deixava sua mãe nem um pouco satisfeita. “Peer, você está mentindo”, ela diz, e então começa a peça. Ela vive xingando seu filho de mentiroso e de coisas ainda piores, apenas porque ele tem muita imaginação. E você sabe o que o Peer faz? Ele joga a própria mãe em cima do telhado do moinho. Ela fica ali se lamentando e gritando por socorro, enquanto Peer vai a uma festa de casamento onde fica bêbado e acaba raptando a noiva!!! (Depois disso a história continua, mas até agora só lemos o primeiro ato.)

Mas de volta a Bibbi Bokken. Também no caso dela, precisamos diferenciar entre fatos e lorotas. Vou tentar fazer isso.

 

LOROTAS: Bibbi Bokken “na verdade” se chama Birte Bakken e cometeu pelo menos dois assassinatos. Sem considerar que é alpinista, paraquedista e piloto de bombardeiro, ela se interessa sobretudo por roubar livros. Ela muda de nome e vai morar em Fjærland para ocultar outros crimes bárbaros. De resto, a polícia da Noruega é tão pateta que nem ao menos é capaz de desenhar um retrato falado dela. Mas tudo bem, o que é que tem um pequeno homicídio de vez em quando? (Mas o veterinário de Ås tinha descoberto que era ela a assassina!)

 

FATOS: Há relativamente pouco tempo, mudou-se para Fjærland uma estranha senhora que diz se chamar Bibbi Bokken. Ela anda pelas livrarias lambendo os lábios porque os livros lhe lembram marzipã e chocolate. (Fonte: Nils Bøyum Torgersen.) Além disso, contribui com dez coroas para a compra de um álbum de poesia com a foto do fiorde Sogne na capa. (Fonte: Nils Bøyum Torgersen.) Ela recebe uma carta incrivelmente misteriosa de uma certa Siri. Nessa carta, há alguma coisa sobre um livro que só será publicado no ano que vem, mas que já se encontra numa livraria em Roma. O livro trata supostamente de uma “biblioteca mágica”. (Fonte: Berit Bøyum.) Nas primeiras semanas após a chegada de Bibbi Bokken a Fjærland, ouviram-se no meio na noite ruídos misteriosos vindos da casa dela. (Fonte: Hilde Mauritzen, filha de Sverre Mauritzen, deputado no Parlamento, da ala conservadora.) De resto, ela gosta de andar com um livro velho na bolsa e acha incrivelmente interessante o que dois adolescentes escrevem num livro de visitas de uma hospedaria mil metros acima do nível do mar.

Está acompanhando, Nils? É claro que algumas das coisas que estão no item “lorotas” podem ser fatos. MAS ISSO NÓS NÃO SABEMOS! E se quisermos agir como detetives de verdade, temos que nos basear em coisas que sabemos. É claro que podemos usar a nossa imaginação e elaborar diversas teorias. Mas também temos que verificar a veracidade dessas teorias. (Quero dizer que devemos seguir pistas verdadeiras, e não as pistas da nossa imaginação. Senão, no final, vamos parar na Terra da Fantasia e não em Fjærland.)

Proponho uma terceira regra para o livro de cartas:

3a regra: devemos checar todas as informações sobre Bibbi Bokken antes de elaborar novas teorias a partir delas.

Você está de acordo com isso, Nils? R.S.V.P. (Répondez s’il vous plaît — Favor responder!)

 

PS. Ainda preciso escrever umas palavras sobre as alegrias e os dissabores da vida privada. Aqui as aulas também já começaram, e está assim de pirralhos!!! Dá vontade de chorar, mas aqui simplesmente não existe uma escola para a minha faixa etária. Isso não é terrível? Eu estava tão contente de ter crescido e poder mudar de escola. Meu único consolo é que estou na mesma sala que o pessoal da oitava e da nona. Eles chamam isso “classes unitárias”! O jeito é tentar fazer amizade com os maiores. (Muitas vezes eu passo por uma aluna da nona série, verdade! Yes, sir!)

E agora vou contar qual foi talvez a única alegria que tive desde que cheguei aqui: a professora de norueguês é a diretora da escola! E eu chamo isso de alegria? Agora é você quem deve estar achando que fiquei louca. Mas ela é simplesmente demais! Ela se chama Asbjørg, usa longas tranças negras e parece uma índia. Sabe o que fizemos na primeira aula de norueguês? Acertou! Lemos a peça sobre o mentiroso que jogou sua mãe em cima do telhado!

Escreva imediatamente. Até mais e boa sorte com a sua redação.

Lembranças da sua elegante prima Berita Bø Yum.

Querida Bø Yum!

Uau! O que você vai ser quando crescer? Detetive ou filósofa? Essa carta foi simplesmente a coisa mais forte que já li na minha vida, e depois fiquei me sentindo meio burro. Mas só no primeiro momento. Depois eu comecei a refletir. O que é a minha especialidade. Também sei franzir a testa e mexer as orelhas ao mesmo tempo. Talvez você tenha alguma coisa a aprender comigo, Berit. Mas, como estava dizendo, refleti bem sobre tudo e cheguei à conclusão de que alguma coisa não se encaixa na sua teoria. Aperte o cinto, Bøyum! Aí vão algumas ideias de N. B. Torgersen!

 

FATOS: procurei na lista telefônica e liguei para Bokken SA. Ali me disseram que não conhecem nenhuma Bibbi Bokken. (Fonte: Bokken SA.) Depois elaborei algumas teorias “infantis” e escrevi uma redação sobre as minhas suspeitas. (Fonte: Imaginação de Nils Bøyum Torgersen.)

A redação foi entregue ao professor Bruun. (Fonte: Nils Bøyum Torgersen. Pode ser confirmado pelo professor Bruun.)

 

LOROTAS (MENTIRAS):

Nils Bøyum Torgersen anda vendo vídeos demais. (Fonte: Berit Bøyum, que não tem a menor ideia do que está falando.) Mas Nils Bøyum Torgersen não possui aparelho de vídeo. (Fonte: Trygve Torgersen, motorista de táxi, e Ingrid Bøyum, autora de romances água com açúcar.)

Bibbi Bokken anda por uma livraria em Sogndal lambendo os lábios. (Fonte: Berit Bøyum, e não Nils Bøyum Torgersen.)

Eu a vi na livraria e escrevi que ela babava, o que é totalmente diferente de lamber os lábios. Não sei por que, mas é muito mais esquisito.

Portanto, não se esqueça da regra número 2: é proibido achar que o outro está mentindo.

A regra 3 me parece razoável, mas também deve ser permitido usar um pouco de imaginação. Se tivermos que checar todas as possibilidades primeiro, não daremos um passo adiante.

Um autor chamado Tor Åge Bringsværd escreveu um poema curtinho que é muito bom:


Quem mantém os dois pés no chão

não sai do lugar


Acho que isso diz muito sobre escrever e também sobre ler. Quando leio um livro de que gosto, parece que o que estou lendo faz meus pensamentos saírem voando do livro. De certa forma, o livro não é feito apenas pelas palavras ou pelas figuras que estão no papel, mas também por tudo o que invento quando leio.

Atualmente, estou lendo O ursinho Pooh em inglês para aumentar meus conhecimentos da língua. Tem uma cena em que o Guru e o Tigrão trepam numa árvore e depois não sabem mais como descer. O Tigrão vive dizendo que é bom em tudo, inclusive em trepar em árvores. Mas ele esqueceu que só sabe subir, e não sabe descer. Para ajudá-los a descer da árvore, o ursinho Pooh organiza uma operação de salvamento com os outros animais.

Cristóvão tira seu casaco para que o Guru e o Tigrão possam usá-lo como rede salva-vidas. Nesse momento o autor, A. A. Milne, escreve sobre Leitão e os suspensórios de Cristóvão.

Leitão só viu os suspensórios de Cristóvão uma vez na vida e eles eram de um azul tão vivo que ele nunca mais esqueceu. Ele fica emocionado com a ideia de revê-los. Ao mesmo tempo, ele está muito nervoso. E se os suspensórios não forem mais de um azul tão vivo? E se forem de um azul qualquer, absolutamente normal, como Leitão já viu milhares de vezes? Cristóvão tira seu casaco e Leitão fica com as pernas bambas de tanta felicidade, pois os suspensórios são tão azuis como na sua memória e ele fica achando aquele dia maravilhoso.

Embora seja uma história sobre um par de suspensórios, ela trata também de outras coisas. Quando li, me lembrei de um quadro de um veleiro que ficava pendurado na parede de uma casa de campo onde passamos as férias uma vez. Devia ser um barquinho absolutamente normal, mas para mim era o barco mais bonito do mundo. Todas as noites, minha mãe me contava histórias em que eu estava dentro desse barco navegando ao redor do mundo e viajando por terras desconhecidas.

Depois pensei também numa coisa que tem a ver com você, Berit.

Lembra quando dividimos uma barra de chocolate lá na Cabana Flatbre? Era um dia de sol radiante, lembra? E nós estávamos moídos de cansaço. Então enchemos a boca de chocolate e você sorriu para mim.

Parecia haver alguma coisa no ar, no seu sorriso, no gosto do chocolate e no fato de que finalmente tínhamos chegado lá em cima, e tudo isso tornou o momento simplesmente fantástico. E eu tive a mesma sensação quando li sobre os suspensórios de Cristóvão.

Por isso eu gosto tanto de ler. Quando leio, de alguma maneira me transformo em autor.

Bem, acho que divaguei um pouco, mas tenho a sensação de que essa história da Bibbi Bokken deu asas à minha imaginação, e é uma sensação realmente muito legal.

Na próxima carta, vou me limitar ao caso Bokken, prometo. No momento, minha mão está tão cansada que não posso mais escrever. Amanhã o professor vai devolver as redações. Temo pelo pior.

Muitas lembranças do professor de literatura Nils B. Torgersen.


PS. Que pena que você está rodeada de tampinhas. Mas seja legal com os anões da 6a. Apesar de tudo, eles também são gente.

Mais lembranças do Pequeno Nils, 6a B

PS. 2: Quem é Anne Frank?

Querido professorzinho meditativo, 6a B,

obrigada pela sua carta. Tenho que confessar que nunca nem cheguei perto de uma edição inglesa do Ursinho Pooh. E que o garotinho da 6a série realmente me impressionou. Mas você tem razão, quando a gente lê acontecem muitas coisas na nossa cabeça, tanto que agora também tenho a sensação de ter visto os suspensórios azuis do Cristóvão. Talvez em algum lugar do nosso cérebro estejam armazenadas todas as cores do arco-íris. E isso também deve valer para todos os cheiros e sabores. (PERAS SUCULENTAS, Nils. Ou GROSELHAS AZEDINHAS. Só de pensar me dá água na boca! Portanto, deve existir alguma ligação entre as letras do alfabeto e os nossos nervos gustativos!)

Também concordo totalmente com a frase: “Quem mantém os dois pés no chão não sai do lugar”. Isso sem considerar que a Terra já gira por si mesma. (Alguém disse que o mundo é um palco. Por mim tudo bem, mas tem que ser um palco giratório!)

Como você me mandou esse minipoema de Tor Åge Bringsværd, fui procurar nos livros de poesia da minha mãe algo “curto e bom” para você. Quando me viu, ela ficou tão contente que me deu um curso completo de introdução à obra de um poeta chamado Jan Erik Vold. (É o seu poeta favorito, sabe? Desde que eu me conheço por gente.) Talvez você já o tenha visto alguma vez na televisão. Ele é totalmente maluco e os poemas dele também. Ele é capaz de escrever poemas longos e complicados sobre coisas corriqueiras como fatias de pão ou trilhos de bondes. Mas ele também tem poemas minúsculos que, à sua maneira, falam do mundo todo. Leia:


olha

a gota

que estava ali


O que você me diz, Nils? Por via das dúvidas, segue uma interpretação totalmente pessoal. Você já deve ter visto uma gota caindo de uma calha ou algo assim. E ela está ali, não é? Mas antes que você possa terminar de dizer que ela está ali, ela já não está mais. É assim com tudo, na minha opinião e na de Jan Erik Vold, pois tudo se transforma o tempo inteiro. Acho que esse poema fala sobre o mundo todo. E ele tem apenas seis palavras!

Agora vem o mais importante: há algumas horas, eu estava com os dois pés na barca que vinha de Balestrand. (E não estava parada no mesmo lugar!) Mas vou contar a história toda, pois talvez ela seja SUPERIMPORTANTE!

Acho que infelizmente vou ter que usar aparelho. Não precisa me dar os pêsames! Só estou contando isso porque, quando estava voltando do dentista, aconteceu uma coisa totalmente absurda. Adivinhe com quem eu topei na lanchonete da barca! ACERTOU! Ali estava a sra. Bibbi Bokken, curvada sobre um livro azul bem grosso, fumando um cachimbo. Eu disse que ELA ESTAVA FUMANDO UM CACHIMBO, mas isso não é nem um pouco importante. O importante é que de repente ela começou a falar sozinha. Eu estava a uma boa distância dela e acho que ela não me viu. De repente, ela disse:

— Maravilhoso! Oh, como eu aaaaaaamo Díui!

Fiquei de queixo caído, pois normalmente as pessoas não falam sozinhas, pelo menos não aqui no fiorde Sogne. E também ninguém fica dizendo assim sem mais nem menos o nome de quem ama em voz alta.

E como se isso não bastasse, depois aconteceu uma coisa pior ainda. Ela disse:

— Dinossauro... 567.9. Na mosca! Rubéola... 618.92. Na mosca outra vez!

De repente, ela se virou para mim como se tivesse olhos na nuca e soubesse que eu estava atrás dela. Ela apontou para o livro grosso, que era no mínimo tão azul como os suspensórios de Cristóvão, e disse:

— Díui deu um lugar certo para cada guloseima na bib-bib-biblioteca.

(Tenho certeza de que ela gaguejou ao dizer a palavra “biblioteca”.)

Não vou dizer que gostei da situação. Achei simplesmente horrível estar na mesma barca que essa sra. Livros. Talvez eu tenha me lembrado um pouco da sua redação maluca. Em todo caso, tratei de dar o fora dali e corri para o convés. Quando passava por ela, ainda consegui ler duas palavras misteriosas na capa do livro azul: “Classificação Decimal”.

Mas que raios será uma “classificação decimal”? E quem é “Díui”? Este é um desafio para você, Nils. Agora você mora mais perto da civilização do que eu. Por aqui, Bibbi Bokken com toda a certeza é a única pessoa que se interessa tanto por “classificação decimal”, o que quer que isso seja. (Talvez eu tenha topado com a pista certa, talvez não.)

 

PS. Anne Frank era uma garota de uma família de judeus alemães. Em 1933, eles fugiram da Alemanha e se estabeleceram em Amsterdã. Quando os alemães ocuparam a Holanda, os judeus de lá também foram levados para os campos de concentração. (Os alemães queriam matar todos os judeus da Europa. Eles conseguiram matar seis milhões!) Para salvar sua vida, a família de Anne Frank se escondeu num pequeno apartamento nos fundos do escritório em que o pai dela trabalhava. Ali eles viveram escondidos durante dois anos, e Anne passava o tempo escrevendo um diário, entre outras coisas. Seu sonho era ser escritora, e ela esperava que o seu diário fosse publicado depois que a guerra acabasse. Mas então aconteceu a catástrofe: em agosto de 1944, os nazistas invadiram o esconderijo e toda a família de Anne foi levada para um terrível campo de concentração na Alemanha, onde Anne morreu apenas dois meses antes do fim da guerra. (Quando li o livro, em alguns trechos eu fiquei apenas indignada. Em outros, derramei rios de lágrimas. Agora estou chorando...)

Felizmente, o diário de Anne foi encontrado por pessoas de bem, que o guardaram direitinho. Depois da guerra ele foi traduzido para quase todas as línguas do mundo. Dessa forma, Anne Frank acabou se tornando escritora apesar de tudo. Ela escreveu um dos livros mais famosos do mundo. Mas ela mesma não pôde viver essa fama. Eu poderia contar muito mais, mas se você se interessar por esse assunto pode pegar o livro na biblioteca. Mesmo assim, vai aí uma amostra. O diário de Anne vai de 14 de junho de 1942 até o dia 1º de agosto de 1944 (três dias antes de os nazistas invadirem o esconderijo). Em 20 de junho de 1942 (quando tinha exatamente a minha idade), ela escreveu:

 

Escrever um diário é uma experiência realmente estranha para alguém como eu. Não somente porque nunca escrevi antes, mas também porque acho que mais tarde ninguém se interessará, nem mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de treze anos. Bom, não importa. Tenho vontade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisa de dentro do meu peito.

“O papel tem mais paciência do que as pessoas.”

 

O que você me diz, Nils? Depois ela escreve que não tem nenhuma amiga com a qual poderia estar. E por isso o diário será a sua amiga.

 

Foi por isso que comecei o diário. Para melhorar a imagem do amigo, há muito tempo esperado em minha imaginação, não quero jogar os fatos neste diário do jeito que a maioria das pessoas faria; quero que o diário seja como uma amiga, e vou chamar essa amiga de Kitty.

PPS. O ursinho meio desentendido também se chama Pooh em inglês? E como se chama o Leitão?


Lembranças,


Berit

que escrevia

aqui


Querida Díui!


Eu

escrevo

agora

estou sentado na cama escrevendo


Hoje recebemos as redações de volta e, como você adivinhou, meu professor não ficou exatamente entusiasmado. Ele escreveu no final da página, com caneta vermelha: “Você precisa refrear sua imaginação, Nils”. Quando me devolveu o caderno, ele disse que queria falar comigo por um momento no final da aula, e nesse momento eu descobri que estava numa pista certa. Galinha cega, de vez em quando, acha um grão! Mesmo que não tenha verificado antes de que grão se trata (hum, hum).

E para garantir que agora só estou escrevendo FATOS, tentei transcrever o encontro entre Bruun e Bøyum Torgersen exatamente como ele se passou. Talvez eu tenha esquecido algumas palavras e não tenha escrito literalmente todas as frases, mas se a atmosfera e as informações mais importantes estão corretas, não deixam de ser FATOS. Não é? Não? Não sabe?


Diálogo entre o professor Bruun e

o aluno Bøyum Torgersen


Passos. O último aluno sai da sala. A porta se fecha. Bøyum Torgersen (a partir de agora denominado “aluno”) olha fixamente para o tampo da mesa. O professor Bruun (a partir de agora denominado “professor”) anda lentamente em direção ao aluno. Pausa.


PROFESSOR: Hmmm.


(Pausa)


PROFESSOR (sério): Então, Nils? O que você me diz sobre isso?

ALUNO (nervoso): Não sei, professor Bruun.

PROFESSOR: Você assiste a muitos vídeos?

(Mais uma pausa.)

ALUNO: Posso ir agora, professor?

(O aluno faz menção de se levantar.)

PROFESSOR: Um momento, Nils.

(O aluno volta a se sentar.)

ALUNO: Está bem.

PROFESSOR: Você alguma vez já pensou que é perigoso mencionar nomes quando se escrevem histórias sanguinolentas como a sua, Nils?

(O aluno fica vermelho.)

ALUNO: Que nomes?

PROFESSOR: Se eu escrever uma história sobre um assassino em série e ele se chamar Nils Bøyum Torgersen, acho que você não vai achar isso muito engraçado, vai?

ALUNO (em voz baixa): Vou.

PROFESSOR: O que você disse?

ALUNO: Nada.

PROFESSOR: Você sabia que existe uma Bibbi Bokken de verdade?

(O aluno tenta esconder seu nervosismo e falar no tom mais natural possível.)

ALUNO: É mesmo? Eu... não tinha a menor ideia.

PROFESSOR: Ela é uma amiga... uma conhecida da minha mulher.

ALUNO (engasgando): É mesmo?

PROFESSOR: Sim, elas estudaram biblioteconomia juntas.

ALUNO (agitado): Bib... bib... bib...

PROFESSOR: Sim.

ALUNO: Junto com Díui?

PROFESSOR: Quê?

ALUNO: Díui não estudou junto com elas?

PROFESSOR (soletra Dewey bem devagar): Você quer dizer D E W E Y ?

ALUNO: É, acho que é esse o nome.

PROFESSOR: Dewey não estudou junto com elas. Ele desenvolveu um sistema de catalogação para bibliotecas.

ALUNO (confuso): É, isso mesmo.

PROFESSOR (irritado): O que Dewey tem a ver com isso?

ALUNO (em voz baixa): Era justamente isso que eu gostaria de saber.

PROFESSOR: O que você disse?

ALUNO (depressa): Nada.

PROFESSOR: Vamos voltar à redação.

ALUNO: Sim.

PROFESSOR: Você tem certeza de que não conhece nenhuma Bibbi Bokken?

ALUNO (devagar): Tenho... eu não a conheço.

PROFESSOR: Está bem, está bem, Nils. Eu o chamei para lhe explicar que é preciso ter cautela ao mencionar nomes. Nunca se sabe onde isso vai parar, não é?

ALUNO: Isso o quê?

PROFESSOR: Eu apenas quis dizer que temos que tomar cuidado para não ferir ninguém. Não concorda comigo?

ALUNO: Sim, professor.

PROFESSOR: Da próxima vez, talvez você deva procurar um tema menos sanguinolento.

ALUNO (finge concordar): Sim, senhor.

PROFESSOR (sorri): E, Nils...

ALUNO: Sim?

PROFESSOR: Não é “quem não arrisca não belisca”.

ALUNO (perplexo): Não?

PROFESSOR: É “quem não arrisca não petisca”.

ALUNO: Não vou me esquecer, professor.

(O professor dá um tapinha no ombro do aluno. Saem pela direita. O professor não nota que o aluno está trêmulo.)


FIM


São esses os fatos, Berit! O que você me diz? Pouco a pouco, as peças vão se encaixando, não é mesmo? Bibbi Bokken fez um curso de biblioteconomia. Ainda não sabemos exatamente como é esse curso, mas podemos e vamos descobrir. Uma coisa é certa: ela tem uma relação muito especial com bibliotecas e com um sistema inventado por um sujeito chamado Dewey. Se você se informar sobre isso, vou investigar o passado de Bokken aqui em Oslo.

Diga-me se eu estiver enganado, mas me parece que agora temos duas tarefas pela frente:

1) Tentar descobrir a verdade sobre a misteriosa Bibbi Bokken.

2) Tentar encontrar um livro que só vai ser publicado no ano que vem.

Quanto à tarefa 1, já avançamos um bom pedaço. Na tarefa 2, em compensação, estamos boiando completamente.

Mas minha imaginação doentia está me dizendo que, se conseguirmos realizar essas duas tarefas, estaremos ao mesmo tempo dando conta de uma terceira, a verdadeira tarefa, sobre a qual até agora não sabemos absolutamente nada.

Sei que isso soa meio bizarro, mas se ideias bizarras já nos mostraram o caminho certo uma vez, quem sabe isso não acontece de novo?

Saudações do Nils


PS. O ursinho Pooh se chama Winnie the Pooh em inglês. O Leitão se chama Piglet. É um bom livro, realmente digno de algumas horas da sua tenra vida.


Ilustríssimo Nils Bøyum Torgersen,

estou impressionada. Você se deu conta de que escreveu uma peça de teatro inteira? Estou me referindo, é claro, ao “Diálogo entre o professor Bruun e o aluno Bøyum Torgersen”. Aliás, bom título! É meio curta para uma peça de teatro, mas não deixa de ser um esquete. Você é bom nisso, Nils. Quem sabe quando crescer você não vai ser um dramaturgo, como Henrik Ibsen? De qualquer forma, acho que a sua peça lembra um pouco Peer Gynt (Nils, você mente na peça!), embora você não tenha jogado seu professor em cima da mesa quando ele disse que você deveria refrear a sua imaginação. De qualquer forma, é uma peça cheia de suspense. Fiquei com medo de que no final ele fosse bater em você.

Também estou impressionada porque a sua redação, apesar de tudo, acabou dando em alguma coisa. Porém eu acho que você não tirou do seu professor todas as informações que podia. Afinal de contas a mulher dele conhece Bibbi Bokken!!! Entendo seu medo de acabar confessando que sabe coisas sobre ela, mas agora você não pode se dar por satisfeito. Sugestão: da próxima vez que você falar com o professor Bruun em particular, simplesmente confirme que você não conhece Bibbi Bokken... mas depois diga que gostaria de conhecê-la. Não, não vai colar... Diga que você a encontrou uma vez por acaso e ela pareceu tão excêntrica que você gostaria de saber mais sobre ela. Isso! Se ele fizer perguntas, você vai ter que tirar alguma coisa da manga na hora. Mas se você tem uma pista baseada em FATOS de verdade, simplesmente tem que segui-la até “the bitter end”.

No mais, estive há pouco na biblioteca. (Fjærland finalmente ganhou uma pequena biblioteca no andar térreo do Centro da Terceira Idade.) Bem, eu entrei e dei uma olhada nas estantes. Primeiro tive uma sensação horrível ao ver que há tantos livros que ainda não li. Mas então passou o pânico inicial e fiquei com uma sensação boa de pensar que existem muitos livros emocionantes esperando que eu os leia.

Acho que a bibliotecária ficou impressionada por eu ter ficado tanto tempo folheando os livros da seção de poesia. Mas ela não sabia que eu estava olhando só os livros de Jan Erik Vold. Aí vai uma pequena amostra (afinal de contas eu sempre ando com meu bloco de anotações). Aperte o cinto!!!


Sobre a eralidade


— A eralidade,

você diz, a eralidade

é muito mais eral

que a realidade, você


não acha? Certamente, deve ser isso

mesmo, respondo, mas

a realidade

apesar disso é mais real,


não há dúvida. Você diz: o que

isso pode

afetar a eralidade, tão

eral que ela é!


O que você me diz, Nilsinho? Sem dúvida, parece uma conversa de surdos. Mas se a realidade e a eralidade têm pontos de contato talvez isso não possa ser evitado, não é???

E se Bibbi Bokken for apenas uma espiã da eralidade? E, sobretudo, se a eralidade começar a se infiltrar na realidade, teremos realmente (!) um problema.

Mas voltando à biblioteca. Depois de um tempo, a bibliotecária veio me perguntar se eu estava procurando alguma coisa especial.

— Na verdade, não — eu disse.

Mas depois acrescentei:

— Vocês têm alguma coisa de Díui?

Ela deu um sorriso muito expressivo. Então me levou até uma mesa e tirou um grande livro azul de uma gaveta. E ERA EXATAMENTE O MESMO LIVRO QUE BIBBI BOKKEN TINHA NA BARCA. E o título era A classificação decimal de Dewey.


RESUMO DAS TABELAS PRINCIPAIS

000

Generalidades.

010

Bibliografia.

020

Bibliotecologia. Ciências da informação.

030

Enciclopédias gerais.

040

(fora de uso)

050

Periódicos de conteúdo geral ou misto.

060

Organizações gerais e museologia.

070

Informação. Jornalismo. Edição de livros. Editoriais. Empresas editoras.

080

Coleções gerais.

100

Ciências filosóficas. Filosofia.

110

Metafísica.

120

Teoria do conhecimento. Causa. Fim. O homem.

130

Astrologia. Ocultismo. Quirologia.

140

Sistemas filosóficos em geral.

150

Psicologia.

160

Lógica.

170

Ética. Filosofia moral.

180

Filosofia antiga. Filosofia medieval. Filosofia oriental.

190

Filosofia moderna ocidental.

200

Religião.

210

Religião natural.

220

A Bíblia.

230

O dogma cristão.


Teologia doutrinal cristã.

240

Teologia moral cristã.


Teologia prática cristã.

250

Teologia pastoral cristã.


Predicação. Sermonários.

260

A Igreja, as ordens religiosas, suas instituições e seu trabalho.

270

História da Igreja.

280

Igreja Cristã, credos e seitas da.

290

Outras religiões, história das religiões, teologia comparada.

300

Ciências sociais.

310

Estatística.

320

Ciência política.

330

Economia.

340

Direito.

350

Administração pública.

360

Patologia social. Serviço social.

370

Educação.

380

Comércio, comercialização.

390

Folclore. Costumes.

400

Línguas.

410

Linguística.

420

Inglês — Anglo-saxão.

430

Alemão — Línguas germânicas Línguas teutônicas.

440

Francês. Línguas românicas.

450

Italiano. Romeno. Rético.

460

Castelhano. Espanhol. Português.

470

Latim. Línguas itálicas.

480

Grego clássico. Línguas helênicas.

490

Outras línguas.

500

Ciências puras.

510

Matemática.

520

Astronomia.

530

Física.

540

Química. Ciências químicas.

550

Geociências. Ciências da terra.

560

Paleontologia. Paleozoologia.

570

Ciências biológicas.

580

Ciências botânicas.

590

Ciências zoológicas.

600

Tecnologia.

610

Ciências médicas. Medicina.

620

Engenharia.

630

Agricultura. Pecuária. Pesca. Aquicultura.

640

Artes e ciências domésticas. Economia doméstica.

650

Serviços administrativos na empresa. Administração empresarial. Direção empresarial.

660

Química industrial.

670

Manufaturas. Desenhos de produtos. Produtos manufaturados.

680

Diversas manufaturas.

690

Construções.

700

Artes. Recreação.

710

Urbanismo. Paisagismo.

720

Arquitetura.

730

Escultura.

740

Desenho. Artes decorativas.

750

Pintura. Pinturas. Obras pictóricas.

760

Gravura. Arte de gravar gravuras.

770

Fotografia. Arte fotográfica.

780

Música.

790

Divertimentos Espetáculos.

800

Literatura.

810

Literatura norte-americana (em inglês).

820

Literatura em língua inglesa.

830

Literaturas em línguas germânicas.

840

Literatura francesa. literatura provençal. Literatura catalã.

850

Literatura italiana. literatura romena. Literatura reto-romana.

860

Literaturas hispânicas. literaturas ibéricas. Literaturas hispano-americanas. Literaturas ibero-americanas.

870

Literatura latina e em outras línguas itálicas.

880

Literatura grega clássica e em várias línguas helênicas.

890

Literatura em outras línguas.

900

Ciências auxiliares da história.

910

Geografia — viagens.

920

Biografia e genealogia.

930

História do mundo antigo (até 499).

940

História da Europa.

950

História da Ásia.

960

História da África.

970

História da América do Norte e Central.

980

História da América do Sul.

990

História das outras partes do mundo. Oceania, história de. História dos mundos extraterrestres.


Nils, Dewey foi um cara que não sei quando inventou um sistema terrivelmente complicado para organizar os livros por assunto numa biblioteca. Nesse sistema, cada livro sobre um determinado assunto recebe um número entre 0 e 999. Existem grupos principais e subgrupos, de acordo com os quais cada livro possui um lugar bem determinado. A bibliotecária me deu essa lista que colei aí em cima. É uma lista só dos grupos principais do sistema de Dewey, entre esses números existe uma infinidade de subdivisões com pontos e números decimais, e detalhes ainda piores. (Esse Mister Dewey com certeza era um fanático por matemática.)

Portanto, o que você está vendo aqui é só um resumo. O sistema enche todo o grosso livro azul, que de qualquer forma não cabe na minha estante. Mas dá uma olhada no último dos grupos principais: 990 — História das outras partes do mundo. Oceania, história de. História dos mundos extraterrestres. Gostaria muito de ver um livro desses. Quem sabe eles não tratam da eralidade?


PS. Se você continuar a fuçar no passado de Bibbi Bokken, talvez você descubra onde o esqueleto está escondido. E cuidado para ele não fugir do armário. Não vou dizer mais nada.

Lembranças, Berit Bib Lioteca


Nils chamando Berit:

A rede está se fechando. Existe uma biblioteca mágica. E ela pertence a Bibbi Bokken! Eu sei. Telefonei para o professor Bruun para falar em particular com ele como você sugeriu, mas não foi ele quem atendeu, e sim uma mulher.

— É da casa do professor Bruun? — perguntei.

— Sim — disse a mulher.

— Posso falar com ele?

— Ele não está — disse a mulher. — Quer deixar um recado?

— Com quem estou falando? — perguntei.

— Aslaug Bruun. Sou a mulher do Reinert.

Por um momento eu não soube o que dizer, mas então me dei conta de que estava com a fonte na linha. Comecei a tremer, mas tentei falar o mais calmamente possível.

— Nós dois temos muito que conversar, senhora Bruun — eu disse friamente.

— Temos?

— Sim — eu disse. — Bibbi Bokken, por exemplo.

— O quê?

— Café Skalken, hoje, às seis da tarde. Estarei com uma flor na lapela do casaco para que a senhora possa me reconhecer.

Desliguei. Senti que estava ficando vermelho. Como você sabe, sou bastante tímido e às vezes procuro esconder isso atrás de um “Torgersen durão”. Naquele momento eu me senti bastante idiota, mas um pouco detetive ao mesmo tempo. Eu tinha uma pista. Será que o peixe morderia a isca? Eu tinha minhas dúvidas, mas peguei uma rosa murcha do vaso da mesa da sala e fui para o Café Skalken.

Você já foi ao Skalken, Berit? Melhor não ir. Deve ser um dos bares mais decadentes de toda a Europa. Eu me arrependi da escolha assim que abri a porta.

Estava quase totalmente escuro lá dentro. Com certeza em consideração aos clientes. Acho que poucos ali poderiam suportar a luz do dia. No Skalken há apenas três ou quatro mesas e todas estavam livres quando cheguei, menos uma. Nela estava sentado um jornal. Pelo menos é o que parecia, porque só dava para ver o jornal e não a pessoa que estava atrás dele. Só fui ver essa pessoa mais tarde. Vou falar disso depois.

Na hora eu não me senti exatamente um detetive, mas sim um garoto imbecil com uma flor ridícula na lapela do casaco. Tentei parecer bem despreocupado e pedi uma soda limonada, mas não tinha soda e tive que me contentar com uma cerveja sem álcool, que eu detesto.

Eu tinha acabado de me conformar com a ideia de que a sra. Bruun não viria, quando ela apareceu na porta.

— Foi você quem ligou? — ela perguntou.

Eu tirei a flor da lapela e dei para ela.

— Para que isso?

Ela olhou para mim um pouco surpresa, mas ao mesmo tempo parecia estranhamente alegre.

— Um presente — murmurei. — Para agradecer pelo seu esforço.

Aí ela riu de verdade. O jornal na mesa ao lado fez um barulho.

— Não foi nenhum esforço. Sobre o que você quer conversar, amigão? Aconteceu alguma coisa com Bibbi?

Ela piscou para mim.

Aquilo foi a gota d’água. Se tem uma coisa da qual já estou cheio é de adultos que me chamam de “amigão” e piscam para mim como se eu fosse um bebê.

— Não — eu disse, frio como uma geladeira. — Eu gostaria de falar sobre ela.

Tomei um gole da cerveja morna.

— É sobre a biblioteca mágica.

O espanto da mulher foi tanto que era como se eu tivesse afirmado saber, de fontes seguras, que Bibbi Bokken estava planejando assaltar o Banco da Noruega.

— A biblioteca...

— ... mágica — eu disse tranquilamente, e notei que atrás do jornal na mesa ao lado despontava uma cabeça calva.

— Você ouviu falar dela? — ela perguntou.

— Sim — eu disse. — E temos motivos para crer que o livro sobre a biblioteca será publicado no ano que vem.

— Temos?

É claro que aqui eu deveria ter dito que estava me referindo à Agência de Detetives Bøyum & Bøyum. Mas eu apenas fiz que sim com a cabeça.

— Então ela conseguiu — disse a sra. Bruun. — Durante a faculdade, ela sempre reclamava que faltava uma seção na nossa biblioteca. E ela a chamava de...

— ... a biblioteca mágica de Bibbi Bokken — eu sussurrei.

A sra. Bruun confirmou com a cabeça.

 

Não consegui tirar mais nada dela. Ela contou que nunca mais vira Bibbi Bokken desde que haviam terminado a faculdade, e que na época todo mundo a achava um pouco estranha. Quando alguém perguntava que biblioteca mágica era aquela da qual ela falava, ela apenas sacudia a cabeça e dizia que todos saberiam quando chegasse o momento, que tinha um grande plano e queria mantê-lo em segredo até que pudesse colocá-lo em prática.

Então Aslaug Bruun pagou minha cerveja e disse que entregaria a rosa a Reinert com os cumprimentos de um garoto muito simpático.

Ela foi embora e eu fiquei sentado com meu copo ainda pela metade.

Eu havia levado o livro de cartas. Quando o peguei para anotar a minha conversa com a sra. Bruun enquanto ainda estivesse fresca na memória, aconteceu uma coisa estranha e bastante assustadora. O homem na mesa ao lado largou o seu jornal e veio até mim.

Senti meu corpo endurecer. O garçom tinha ido até a cozinha, e eu estava sozinho com o careca. Ele se curvou sobre mim e sorriu, Berit. Mas não era um sorriso agradável, era mais como se ele tivesse puxado os cantos da boca para cima para mostrar os dentes. De repente ele me estendeu um vídeo — na capa tinha o desenho de um livro sangrando com uma faca atravessada nele — e disse com uma voz suave que tentava parecer amável, mas não conseguia:

— Você não gostaria de trocar seu livro por este vídeo?

— Vídeo... — sussurrei.

— Sim, um vídeo. The phantom of the library. Tenho certeza de que você vai gostar.

Para mim foi a gota-d’água, Berit.

Saí dali em disparada e pernas para que te quero. Corri pela frente do parque Frogner, atravessei o cruzamento da rua Majorstu, corri pela rua Bogstad, depois pela Vibes e só parei quando entrei em casa.

Não sei se o careca sorridente me seguiu, mas de qualquer forma ele ouviu tudo o que Aslaug Bruun e eu conversamos, e por algum motivo queria ler nosso livro de cartas de qualquer jeito.

É um mistério, e dos bem cabeludos (apesar do careca). Vou respirar aliviado quando puser o livro no correio amanhã.

Mas agora sabemos que Bibbi Bokken já sonhava com uma biblioteca mágica no seu tempo de faculdade.

Temos boas razões para supor que ela realmente construiu uma, e acho que uma coisa é certa, Berit: se encontrarmos essa biblioteca, poderemos esclarecer a história do livro que ainda não foi publicado.

Mas onde procurar? Deixo esse problema para você. Agora preciso dormir. Vou sonhar com uma careca reluzente e um sorriso maléfico.

Muitas lembranças,

comissário-chefe Torgersen


Comissário-chefe Torgersen,

Investigações livrescas Bøyum & Bøyum!

Estou chocada! Uma tal de “Siri” encontra em Roma um livro cujo título tem algo a ver com uma “biblioteca mágica”. O único problema é que no livro consta que ele só será publicado no ano que vem. Então o comissário-chefe já vai logo supondo que essa “biblioteca mágica” — sobre a qual alguém vai escrever um livro — pertence a Bibbi Bokken. Ele entrega uma redação péssima, que o leva até uma certa Aslaug Bruun — e ela confirma que Bibbi Bokken cultiva um “grande plano”, que consiste justamente em construir uma biblioteca mágica.

Na mosca!

Só que alguma coisa não se encaixa nessa história. Por que Siri não pensou que a biblioteca mágica poderia ter alguma coisa a ver com Bibbi Bokken? E se o livro que ela segurou nas mãos realmente se chamava A biblioteca mágica de Bibbi Bokken, por que ela não conseguiu gravar esse título? Não pode ser, Nils. Talvez Aslaug Bruun só tenha falado o que você queria ouvir. Talvez ela tenha achado que você é louco. De qualquer forma, ela deve ter lido a sua redação estapafúrdia, senão ela nunca teria ido se encontrar com você no Café Skalken.

Quanto ao desagradável “Smiley”, acho que você não precisa se preocupar. (Todo mundo sabe que você costuma ver fantasmas em plena luz do dia.) Mas confesso que foi estranho ele querer trocar o livro de cartas por um vídeo. O que será que ele queria com o nosso livro? Fico muito feliz que você tenha recusado.

E agora as notícias daqui da sucursal. Bem... quase não tenho coragem de admitir, mas agora estou usando batom. Somente para que você veja qual é a cor que estou usando, vou dar um beijo no livro de cartas:


O que você acha?

Se você pensa que o batom não tem nada a ver com Bøyum & Bøyum, está muito enganado. É que eu agora tenho uma espécie de amiga aqui. Ela se chama Randi Mundal e está na minha classe. Acho que sem batom eu não teria conseguido me aproximar dela. Randi mora na parte de cima de Mundal e é a vizinha mais próxima de Bibbi Bokken. Isso não quer dizer que ela more encostada, pois aqui tem bastante espaço para todo mundo. (Além disso, Bibbi Bokken teve o cuidado de escolher como moradia um lugar “com bastante privacidade”, como se diz por aí.) Mesmo assim Randi já viu o suficiente para saber que ela é louca de pedra. E agora, comissário-chefe Torgersen, preste atenção no seguinte, antes de sair por aí atrás de dente de coelho. Diversas vezes, Bibbi Bokken chegou aqui com a última barca e saiu arrastando uma pesada mala para a sua casa amarela. O problema é que não dá para ver o que tem dentro de uma mala. Mas algumas vezes ela trouxe só uma sacola de rede, dessas de carregar compras, e Randi Mundal viu que essa sacola estava cheia de... exatamente! De livros! Talvez ela seja um rato de biblioteca que um dia ganhou um milhão de coroas e resolveu gastar tudo com coisas para ler. Mas ela não carrega apenas livros novos, sabe? Alguns deles são muito antigos. (Vai ver ela tem até autênticos incunábulos!) De qualquer forma, parece que ela está montando uma boa biblioteca.

Ontem fui à casa de Randi pela primeira vez. No caminho de volta, como era de se esperar, encontrei Bibbi Bokken saindo da barca. De fato, ela estava carregando uma sacola cheia. Mas na sacola havia apenas uns cadernos grossos daqueles que usamos na escola!!! (Livros ainda não publicados? Só estou perguntando!)

Sabe o que ela me disse quando nos cruzamos?

— E então? — ela disse, me olhando com um olhar penetrante. — Tudo bem com vocês?

“Vocês”? Quem exatamente? E por que ela queria saber se estava tudo bem conosco? Ela se referia a Randi e a mim? Ou estava pensando em Bøyum & Bøyum?

Talvez ela estivesse pensando no livro de cartas, Nils! Talvez ela saiba que você o comprou para nos correspondermos. Mas como ela poderia saber disso? Ela não é vidente, é?

— Ah, tudo bem... — eu disse, e a conversa acabou aí.

Mas isso ainda não é tudo. O melhor eu deixei para o final: ELA POSSUI CONTATOS INTERNACIONAIS! É isso! Mas, já que estamos fazendo “pesquisas na fonte”, vou contar a história toda.

Uma das donas do hotel se chama Billie e é, na verdade, uma inglesa. (Foi ela quem sugeriu que a gente se correspondesse usando um livro de cartas, lembra?) Não sei qual é o sobrenome dela, por isso eu a chamo simplesmente de Billie Holiday. (Da primeira vez ela riu, mas acho que agora já se acostumou.) Ela é simpática, gosta de conversar com quem aparece por aqui, principalmente quando a minha mãe está na cozinha tendo que cozinhar menus de quatro pratos seis dias por semana. E então eu perguntei discretamente (?) se ela sabia qual era a profissão da mulher da casa amarela lá de cima. E sabe o que ela respondeu? Não tenho uma peça inteira para apresentar, mas posso oferecer um pequeno monólogo:

 

BILLIE HOLIDAY (desenfreadamente, com um sorriso amável): Eu também gostaria de saber. De qualquer forma, ela recebe uma quantidade enorme de coisas pelo correio. Pacotes e envelopes de todos os cantos do mundo. Acho que são livros, Berit. Eu já andei dando uma olhadinha de leve na correspondência dela, sabe? Ontem ela recebeu um pacote da Itália, ela recebe muitas coisas de lá. O remetente se chama Bresani...

 

O que você acha, Nils? Como responsável pelo hotel, é claro que Billie Holiday lida bastante com o correio, e o correio é a janela de Bibbi Bokken para o mundo. Eu acho que ela fica lá em Mundal escrevendo cartas para sebos misteriosos do mundo inteiro.

E por isso repito a minha pergunta: o que faz essa mulher num canal estreito de um fiorde no oeste da Noruega? Talvez seja a região mais isolada de toda a Galáxia... Talvez justamente por isso...

Quando li a sua última carta, fiquei achando tudo ainda mais misterioso. Se tivesse tido coragem, eu teria dado uma olhada mais de perto na casa dela. Mas até prova em contrário, podemos dar como certo que a casa está repleta de livros.

PS. No fim de semana vou visitar meu pai em Bergen. (Sozinha, é claro. Acho que minha mãe e ele não querem se ver nem pintados, ultimamente.) Então eu tive uma ideia que talvez não seja totalmente má. Bem, não importa. Acabou de me ocorrer. (Quando escrevo, sempre tenho boas ideias.)

Meu pai se mudou para a rua Poms e está todo prosa porque agora é vizinho de Gunnar Staalesen, o famoso escritor de romances policiais. E nós não estamos tentando esclarecer uma espécie de história policial, e não somos também uma espécie de detetives? Mas não é bem sobre isso que eu quero falar com esse escritor. Eu apenas pensei que, se no ano que vem realmente vai ser publicado um livro sobre uma “biblioteca mágica”, neste exato momento alguém deve estar escrevendo esse livro. AFINAL UM LIVRO NÃO SE ESCREVE SOZINHO!!! É claro que não estou pensando que Gunnar Staalesen é quem está escrevendo, mas não é perfeitamente plausível que os escritores conversem uns com os outros sobre os livros que estão escrevendo? Existem até mesmo associações de escritores e coisas assim...

Agora me diga sua opinião abertamente, Nils! Se você responder logo, talvez eu receba o livro antes de embarcar para Bergen.

 

pps: Por falar em Gunnar Staalesen, você já leu seus dois livros sobre o tesouro dos vikings? (O mistério do tesouro viking e A maldição do tesouro viking.) Eu só li o primeiro. É uma autêntica história de bandoleiros, no melhor estilo Indiana Jones. Em outras palavras, perfeito para você — que se sentiu ameaçado por um careca bebedor de cerveja no Café Skalken.

Lembranças da metade de Bøyum & Bøyum.


Querida Berit Labium Rubrus!

Segure-se firme, priminha: viajo na sexta-feira!

Pergunta: “Para onde?”. Resposta: “Para Roma”. Pergunta: “Você vai para Roma?”. Resposta: “Vou”. Pergunta: “Por quê?”.

Resposta: PORQUE A MINHA MÃE GANHOU UM CONCURSO DE CONTOS SOBRE O TEMA “A CIDADE DO MEU PRIMEIRO AMOR!”.

Lembra que dei uma inspiração para minha mãe quando lhe perguntei sobre a piazza Navona? (Cf. livro de cartas, p. 23.)

Ela usou essa inspiração numa história e enviou para o concurso.

O primeiro prêmio era uma viagem à cidade em que a ganhadora viveu o seu primeiro amor, e minha mãe escreveu sobre como ela conheceu meu pai... adivinha onde... na PIAZZA NAVONA!

Caiu a ficha, Berit? BB recebe misteriosos pacotes de livros (?) da Itália. O sebo misterioso sobre o qual Siri escreve fica em Roma.

Será que existe uma relação entre esses fatos? Talvez esse enigma possa ser solucionado daqui a cinco dias, quando o detetive N. B. Torgersen, acompanhado de sua mãe e de seu pai, chegar a Roma.

Prometo a você que vou achar esse sebo, mesmo que tenha que esquadrinhar todas as ruas e becos ao redor da piazza Navona. Confie em mim!

Mas voltando à história da minha mãe, que, além de horrivelmente romântica, é uma mentira deslavada: meu pai e minha mãe nunca estiveram em Roma. Eles se conheceram no táxi nº AB 604 da rua Grünerløkka para a Majorstu. A história é uma mentira, quer dizer, uma mentira mesmo, pois ela a enviou para a revista como se fosse verdade e ainda por cima faturou um prêmio, porque as pessoas do concurso acreditam que seja verdadeira. Mas talvez nem elas acreditem, e tenham dado o prêmio para a minha mãe apenas porque acham que as pessoas que lerão a história depois acreditarão que ela é verdadeira. E se for isso, não é só a minha mãe que está mentindo, mas também as pessoas que vão publicar a história. E se aqueles que leem acreditam que é verdade, eles estão sendo enganados, mas se para eles tanto faz se é verdade ou não, o que acontece com eles? Você pode me explicar? Eu não sei.

Mas agora não é o momento para ficar filosofando sobre literatura. Concentre-se no caso Bokken, Torgersen.

 

Querida Berit de lábios vermelhos, tenho uma proposta:

Enquanto eu estiver em Roma procurando o livro sobre a biblioteca mágica, talvez você possa ir atrás da biblioteca da qual o livro trata. Mas temo que você não poderá mais evitar um “contato de terceiro grau” com a sra. Bokken. Senha: casa amarela. Você poderia por exemplo...

Não, esqueça. Seria muito perigoso. Esta não é uma tarefa para uma garota. Mesmo que a chave que abre a casa possa ser a chave de todo o mistério.

Não, mantenha-se em segurança até eu voltar, mas se encontrar Gunnar Staalesen em Bergen, mande lembranças minhas. Vou telefonar para Henrik Ibsen em Roma. Minha mãe me contou que ele esteve lá. Talvez ele ainda esteja. Quem sabe.

Il Nilso

 

PS. Se você, por algum motivo e apesar de eu tê-la advertido, mesmo assim acabar chegando perto de BB, preste atenção em estantes recém-instaladas. Entende?


PS. 2: Estou mandando junto uma cópia da história da minha mãe para que você veja como é fácil ganhar uma viagem para o exterior.


PS. 3: Estou também mandando uma foto que a revista fez de toda a família, aí você pode ver quanto já cresci desde o verão.


PS. 4: Mil vezes obrigado pelo magnífico beijo. Ele deu um toque todo especial ao nosso livro de cartas.


A CIDADE DO MEU PRIMEIRO AMOR


Você se lembra de Roma, meu amor? Da basílica de São Pedro, do Coliseu, do Panteão, da escadaria da piazza di Spagna, da piazza Navona? Ou você se esqueceu de tudo? Nosso amor está amarelecido como as fotos num velho álbum? Você já não vê as cores e a luz da nossa juventude, quando o amor parecia uma rosa vermelha em botão e a vida parecia não ter fim?

Olho para você, meu amor, sentado na cadeira de balanço, seu olhar se lança no vazio, você se balança devagar como um barco pelo rio da vida, a caminho do grande oceano. Vejo as veias azuis em suas mãos, os sulcos profundos em sua fronte e seus cabelos dourados que se transformaram em prata. Sim, Gabriel, nosso sol do meio-dia já ficou para trás. Você tem cinquenta e oito anos, e eu, trinta e oito. E contudo, quando o sol bate na janela como agora, e eu vejo o contorno de seu rosto contra a paisagem de uma macieira em flor sob o céu azul de anil, as suas rugas parecem se alisar e os seus cabelos adquirem a cor dos raios dourados do sol. Então vejo na cadeira de balanço o meu jovem amado novamente. Sinto-me tomada por sentimentos que vêm desse estranho espaço entre a dor e a alegria e, através do caleidoscópio das lágrimas, vejo imagens daquele dia, aquele dia, aquele dia...

— Droga — eu disse, olhando para a tira rasgada.

Justamente ali na piazza Navona, em Roma. Cercada por italianos, ingleses, dinamarqueses e sabe Deus mais quem. Ali estava eu, sem uma lira no bolso e com uma sandália arrebentada na mão. O gordo alemão tinha rasgado a tira quando pisou no meu pé.

— Entschuldigung — ele se desculpou em alemão. Para ele, era fácil falar. Afinal não era a sandália dele. E ele não era uma estudante de artes norueguesa de vinte e um anos que havia gastado todas as suas economias numa viagem a Roma para poder admirar os fantásticos afrescos de Michelangelo na capela Sistina.

— Droga — eu disse novamente, irritada. O dia estava estragado. Só me restava ir embora para o albergue barato onde me hospedava, e pelo qual havia pagado dois dias adiantado.

— Droga! Droga! Droga!

— Está com problemas?

A voz profunda, sensual e um pouco zombeteira fez com que me virasse.

E ali estava você. Naturalmente, naquele momento eu ainda não sabia que era você, embora meu coração talvez soubesse. Sim, pois o coração possui sua própria verdade e entende o que o cérebro não consegue apreender.

— Ah, não foi nada — eu disse, um pouco perturbada. Com certeza, minha voz ainda soava irritada. Pus a mão na testa, pois você estava de costas para o sol.

— Ofuscada pela minha beleza nórdica? — você perguntou.

Tive que rir.

— Mais pelo sol atrás de você — respondi.

— Não é o sol. É a minha aura.

Fiquei pensando numa resposta mordaz e engraçada. Mas você se antecipou.

— Está com problemas com a sua sandália, ao que me parece?

— É — eu disse. — A tira está rasgada.

E você se agachou. O vento brincava com seus cabelos, quando você se ajoelhou aos meus pés na piazza Navona.

Você se lembra, Gabriel... ou você se esqueceu? Uma garota de pés descalços no Café Greco e depois no corso Vittorio Emanuele, na ponte sobre o Tibre, na praça São Pedro. Você se lembra da loja de sapatos e do pequeno pé se enfiando numa sandália italiana novinha em folha, enquanto você recusava meus débeis protestos com um sorriso? Você se lembra do beijo? Do primeiro beijo? Da noite em que jogamos nossas moedas na fontana di Trevi, com o desejo de voltar ali? Você se lembra do anel que comprou na loja de penhores? Da longa caminhada até o Hotel Siena, onde nosso pequeno casanova foi concebido?

Olho para você, Gabriel. Seus olhos estão fechados. Você está respirando ritmadamente. Um leve sorriso se insinua nos seus lábios e, em meu coração, sei que você também está sonhando com Roma. Com a cidade do nosso amor.

 

Procure uma profissão fácil e bem paga. Seja escritora.

Lembranças do seu pequeno casanova


Querido Il Nilso Pava Rotti!

Seu traidor! Então eu escrevo com uma pontinha de orgulho que vou sozinha para Bergen visitar meu pai — e talvez até mesmo tenha uma conversa particular por cima da cerca do jardim com Gunnar Staalesen, o famoso escritor de romances policiais. Aí vem a tia Ingrid com uma baboseira romântica e ganha um fim de semana grátis em Roma! Acho que Alf Prøysen se enganou quando escreveu a canção sobre o primo mimado de Gjøvik. Acho que os primos de Oslo são muito mais mimados.

E, como consolo, sou praticamente forçada a arriscar minha vida nos altos de Mundal enquanto você saboreia um belo espaguete em algum ristorante. Se você ainda não entendeu, o que estou dizendo é: EU ESTIVE LÁ.

Calma, que eu vou contar tudo.

Antes de mais nada, decidi não receber ordens de um adolescente que sofreu um violento choque de puberdade só porque sua prima está usando batom (“Querida Berit Labium Rubrus”). Depois dei uma passada no Hotel Mundal para ver se arranjava uma almôndega na cozinha.

Foi então que aconteceu. Eu vi Bibbi Bokken acabando de sair de Mundal. O único pensamento claro que eu tinha na cabeça era que na manhã seguinte eu iria para Bergen, e que não seria nada divertido passar o fim de semana com um peso na consciência por não ter tido coragem de fazer uma visitinha para a sra. Livros. Acho que também pensei que não seria nada mau avançar um pouco nas investigações antes de ir para Bergen e me encontrar com o famoso autor de romances policiais...

Esqueci a almôndega e subi correndo para a casa amarela. Bibbi Bokken já tinha chegado lá embaixo na rua principal. A simples ideia de que o caminho estava livre me deixou maluca. Afinal ela mora sozinha, eu pensei...

Mais uma vez, me escondi atrás do muro (para que os anjos do céu não me vissem) e depois me aproximei furtivamente da casa. Com todo o cuidado, girei a maçaneta... e a porta estava aberta! Mas isso talvez não seja tão estranho, já que muita gente em Fjærland não tranca suas portas. Se bem que eles não têm muito a esconder...

Dei uma olhada em volta e entrei, Nils. E foi aí que eu perdi a cabeça: acho que imaginei que Bibbi Bokken pretendia deixar o país — assim como o sr. Nils — e que só voltaria em alguns dias. E lá fui eu!

Primeiro dei num vestíbulo, onde havia uma pilha de papéis velhos num canto. De lá eu vi a cozinha, cujo estado revelava claramente que Bibbi Bokken não tinha empregada. Abri uma porta que dava para uma saleta.

Você deve estar muito curioso, não é? Eu também estava...

Eu tinha imaginado uma sala tão atulhada de livros que eu nem conseguiria respirar lá dentro. Mas você sabe o que eu encontrei? Nem um único livro! Nem ao menos uma revista.

Fiquei tão decepcionada, e ao mesmo tempo tão irritada, que comecei a revistar a casa toda, como um investigador desleixado que não se deu ao trabalho de providenciar uma ordem de busca. Corri de um cômodo para o outro, depois subi para o andar de cima. Não vá pensar que não olhei direito. Vi uma cama desarrumada com lençóis cor-de-rosa (!), uma camisola de tecido bem fininho, um roupão azul-celeste e um rádio-relógio muito estranho. Era o quarto de Bibbi Bokken. No banheiro havia todo tipo de cremes e cosméticos que você pode imaginar, e a banheira estava cheia de água morna (!). E em quase todos os cômodos havia cinzeiros com cachimbos fedorentos.

MAS NÃO ENCONTREI NENHUM LIVRO! E naturalmente foi isso que mais me chamou a atenção. Ela nunca foi sócia de nenhum clube de livros. Também não possui nenhuma enciclopédia, bíblia nem songbook. No final eu estava tão decepcionada que comecei a fuçar dentro das gavetas e armários (Fuçar cautelosamente, Nils. Você sabe que sempre faço essas coisas com muito cuidado.) Mas não encontrei nem mesmo uma caderneta. Eu estava completamente tonta quando desci as escadas.

Só voltei a mim quando estava de novo na sala. Mas aí já era tarde. Pela janela, vi Bibbi Bokken voltando para casa. Numa das mãos ela carregava uma sacola de plástico com compras do mercado. Na outra, um pacote do correio.

Eu sabia que não havia nenhuma possibilidade de fugir e, nesses momentos, ou a gente começa a gritar ou a olhar ao redor à procura de um lugar adequado para se esconder. Fiquei com a segunda opção, pois não faria sentido começar a gritar. Eu me agachei atrás do encosto alto de um sofá antigo e me espremi contra a parede. ENTÃO BIBBI BOKKEN ENTROU NA SALA! No fundo, eu estava presa. Eu mesma havia me trancado — e agora tinha que respirar baixinho para não fazer barulho.

Bibbi Bokken entrou na sala e colocou o pacote em cima da mesa. É claro que não dava para ver nada, mas ouvi quando ela rasgou avidamente o papel.

— Magnífico — ela disse para si mesma. — Divino.

Pouco depois, ouvi que ela saía da sala, e então ficou tudo em silêncio. Depois de alguns minutos, ouvi passos no andar de cima.

Adivinha o que eu fiz? Certo! Eu me arrastei de trás do sofá e me levantei. Sobre a mesa de jantar havia alguns livros grossos, que ela havia acabado de desempacotar. Mas não me detive em examiná-los mais de perto, nem sequer parei para sacudir o pó da minha roupa. Pé ante pé, atravessei o vestíbulo até a porta. Girei a maçaneta e então lá estava eu do lado de fora, na entrada da casa...

Agora você está aliviado, não está? Eu também fiquei!

Mas eu ainda não estava em casa ao lado da minha mãe. Primeiro eu precisava me afastar da casa sem ser vista — e isso eu não arrisquei, Nils. Minhas pernas tremiam tanto que eu não conseguia me mexer, elas pareciam de gelatina. Além disso, eu precisava respirar fundo para me recompor.

Então ouvi passos atrás da porta. Você consegue imaginar o que eu fiz? EU TOQUEI A CAMPAINHA!

Acho que você nunca vai entender isso, talvez por ser um menino. Mas eu estava com tanto medo que não tive coragem de sair correndo. Simplesmente dar no pé seria como confessar que eu era uma invasora. Mas eu também não podia ficar ali parada. Então toquei a campainha.

Ela abriu imediatamente — e ficou parada na minha frente olhando para mim com um olhar indescritível. Então disse:

— Olha só quem está aqui!

Ela parecia incrivelmente surpresa, mas desconfiei que ela estava fingindo.

Eu não conseguia me mexer.

— Eu só queria...

— Sim, o que você queria, Berit?

Berit! Então ela tinha gravado nossos nomes quando assinamos o livro de hóspedes da Cabana Flatbre. Acho que de alguma maneira ela andou de olho na gente. “Mas quem está espionando quem?”, eu pensei. You see? Apesar de tudo, achei estranho ela me chamar pelo nome.

— Eu só queria perguntar se a senhora não gostaria de comprar uma rifa — eu disse.

Sua resposta foi bem curta:

— A rifa é em favor de quê?

Eu simplesmente precisei tirar uma resposta da cartola.

— Para a biblioteca da escola — murmurei.

Ela ficou radiante.

— Mas olha só. E quais são os prêmios?

— Bem, são livros, é claro!

(E que mais eu poderia ter dito?)

Ela estalou duas vezes a língua e lambeu os lábios uma ou duas vezes.

— Exceleeeeeente — ela disse.

Então deu um passo na minha direção e disse num tom um pouco ameaçador:

— Vou ficar com todos os números. Todos eles. Vou, sim.

Ela me estendeu a mão. Mas eu fiquei olhando para ela com cara de imbecil. Afinal eu não tinha nenhuma rifa.

EU NÃO TINHA NENHUMA RIFA! E sabe de uma coisa, Nils? Nesse momento, eu odiei você. Eu imaginava um pirralho se entupindo de espaguete em Roma com o papai e a mamãe, e acho que desejei que algum mafioso tivesse escondido uma bomba no prato de espaguete.

Primeiro apalpei os bolsos da calça. Depois estendi as duas mãos e disse:

— Ih... esqueci a rifa.

A sra. Livros deu um sorriso doce, como a rainha má de um conto de fadas. Ela disse:

— Ah, então foi isso. Pensou rápido e esqueceu rápido.

E então eu disse o seguinte, Nils:

— Pensei que estava no bolso... mas talvez Nils tenha levado com ele.

Ela me olhou nos olhos. Se tivesse continuado a me olhar por mais alguns segundos, teria cavado um buraco em mim.

— E então agora a rifa está a caminho de Roma? — ela perguntou. — Por que não? Sim, por que não, Berit Bøyum?

Portanto, ela sabia que você está em Roma. Repetindo: BIBBI BOKKEN SABE QUE VOCÊ ESTÁ EM ROMA! Tome cuidado, Nils! (O problema é que esse aviso não vai chegar a tempo...)

O resto aconteceu muito depressa. Bibbi Bokken veio andando com passos enérgicos até mim e ergueu a mão. Pensei seriamente que ela fosse me bater. Você deve estar arrepiado agora... Pois é, eu também fiquei!

Antes ela tivesse me batido de verdade! No fundo teria sido muito melhor. Mas Bibbi Bokken apenas passou a mão suavemente no meu pulôver e no meu jeans. Achei que ela estava completamente louca. O que ela estava querendo com aqueles afagos asquerosos?

Ela disse:

— Acho que você está meio empoeirada, amiguinha. E eu não gosto disso!

Ao que eu simplesmente dei no pé. Comecei a correr e não pude segurar o choro. Eu chorava e corria, fugindo de uma mulher histérica que ria sarcasticamente de mim:

— Ha, ha! Agora você me enganou! Ha, ha!

 

Isso aconteceu ontem à tarde e agora (felizmente) estou na barca. Quase não dormi à noite, por isso vou parar de escrever e pôr o livro no correio em Balestrand antes de tomar a outra barca. Simplesmente não tenho nenhuma vontade de levá-lo para Bergen. Agora quero ter um pouco de paz e me divertir com o meu pai — sem precisar pensar em Bibbi Bokken ou em Nilso Pava Rotti, que está em Roma numa espécie de lua de mel com papai e mamãe.

Mas se precisássemos fazer um resumo agora, seria mais ou menos assim:


1) Bibbi Bokken vive levando livros para casa.

2) Apesar disso, não tem nenhum livro em casa.


Conclusão: Bibbi Bokken faz alguma outra coisa com os livros em vez de colocá-los na estante e lê-los. Talvez os use para acender a lareira. E também não é totalmente absurdo supor que ela os coma. Talvez ela triture os livros e os misture junto com a comida, será? Eu não sei, mas quero uma resposta.

Lembranças de Berit Bøiando no caso Bibbi Bokken

 

PS. Agora sei como Bibbi Bokken sabe que você está em Roma. Mas espero que não seja você quem anda lhe enviando cartões-postais.


Querida Berit,

faz uma hora que cheguei em casa e o livro de cartas estava aqui. Li a sua carta imediatamente. A coisa está ficando cada vez mais curiosa. E misteriosa. Estou tentando estabelecer uma ligação entre os fatos e tenho uma espécie de teoria que explica por que você não encontrou nenhum livro na casa de BB. Mas receio que minha cabeça seja pequena demais.

Por sorte, existe um cérebro afiado em Fjærland pronto para entrar em ação (caso o cérebro já tenha voltado de Bergen).

Aí vai o relatório da “Estranha viagem de Nils Bøyum Torgersen”.

Chegamos a Roma na sexta-feira à tarde e fomos para o Hotel Mondiale. Enquanto a minha mãe apresentava os nossos passaportes, reparei num homem sentado numa poltrona da recepção. Ele era baixinho e careca, mas foi pelo sorriso que o reconheci. Era um sorriso meio ansioso, quase... macabro. Sim, Berit. Era ele. O Smiley do Café Skalken.

No ano passado, eu comecei a suar nas axilas. Estou me tornando um “homenzinho”, como diz meu pai. Naquela hora, comecei a suar como um porco (porcos suam?).

O que o Smiley estava procurando ali? Será que ele tinha me seguido? Para roubar o livro de cartas? Mas por quê? Eu não estava entendendo mais nada, a não ser que estava morrendo de medo e que as marteladas que estava ouvindo vinham do meu próprio coração.

Você escreveu na sua carta que Bibbi Bokken sabia da minha viagem para Roma. Será que foi ela que mandou esse homem para lá, por algum motivo que ainda não sabemos? Na hora eu não pensei nisso, mas agora, pensando em tudo que aconteceu, essa parece ser a única explicação.

Bem, lá estava eu, suando e com cheiro de “homenzinho”, enquanto o Smiley sorria e o sujeito atrás do balcão dava uma chave para a minha mãe e UMA CARTA PARA MIM!

Isso mesmo, havia uma carta para mim na recepção! Eu não estava entendendo mais nada, enfiei bem depressa a carta no bolso e corri atrás dos meus pais, que já estavam indo para o elevador. Eles estavam tão ocupados com a tal “cidade do amor” que nem repararam no envelope.

Quando chegamos ao quarto, corri para o banheiro e abri a carta. Vou colá-la no livro como prova:


Nesta cidade vive um velho homem,

ele é surdo, mas enxerga muito bem,

seu amor é jovem, fresco e reluzente,

milhares de livros vivem em sua mente.

Dante, Homero, Ovídio e Petrarca

são preciosos tesouros de sua arca.

Vá à piazza Navona, não saia muito cedo.

Sábado ao meio-dia. Não tenha medo.


A via dei Coronari você vai cruzar

e junto à ponte Umberto a livraria achar.

Dentro dela um velho homem está sentado,

dê-lhe isto e, se ele achar que não é sério,

diga-lhe ser você o menino enviado,

para buscar ali um tesouro e um mistério.


No começo não entendi patavina, mas então tive uma luz. O poema era uma espécie de código! Um código para me levar até o sebo na piazza Navona. Mas quem tinha escrito o poema? E por quê? Eu não estava entendendo nada, mas sabia que no dia seguinte tinha que ir de qualquer jeito à piazza Navona.

No sábado de manhã, íamos visitar a basílica de São Pedro. Fingi que estava com dor de cabeça e disse que preferia ficar no hotel dormindo. Por algum motivo, a desculpa colou. Ser um “homenzinho” tem suas vantagens.

Depois que meus pais saíram, esperei mais dez minutos e então saí do hotel em disparada. Encontrei a piazza Navona, atravessei a via dei Coronari e corri pela ponte Umberto até a outra margem do Tibre. Numa ruazinha lateral em frente à ponte, havia uma pequena livraria. As janelas estavam cobertas de poeira e atrás delas havia pilhas de livros antigos. Ao lado da porta havia uma plaqueta de latão na qual estava gravado M. Bresani. Sim, é isso mesmo que você leu. Era esse o nome que estava no pacote de Bibbi Bokken. Mas o meu nome agora era Assustado.

Abri a porta e entrei. De repente eu estava numa espécie de câmara do tesouro repleta de livros. Embora ali estivesse escuro e empoeirado, os livros pareciam brilhar. Não sei explicar de outro jeito.

O local estava cheio de livros com elegantes encadernações de couro, livros com inscrições douradas, livros com desenhos tão bonitos que não pareciam impressos mas sim pintados à mão sobre o papel, livros com minúsculas pérolas brilhantes incrustadas na capa, livros com tipos tão antigos de letras que eu nem conseguia identificar o alfabeto, e livros cujas folhas pareciam tapetes velhos, com letras que podiam se soltar a qualquer momento.

Eu me senti como se estivesse numa confeitaria de livros, entende o que eu quero dizer? E quase todos os livros eram antigos. Acho que não teria me surpreendido se visse uma bíblia impressa antes do nascimento de Cristo. Digo isso para que você possa sentir um pouco como era a atmosfera naquele sebo.

Evidentemente, eu estava no lugar certo. No sebo que a misteriosa Siri visitou antes de escrever a carta para Bibbi Bokken. E agora eu mesmo tinha ido parar lá. Por causa de uma outra carta misteriosa, ou melhor, um poema misterioso. Eu estava a um passo de desvendar o enigma. Se o livro que ia ser publicado só no ano que vem existia, ele devia estar, por assim dizer, bem debaixo do meu nariz.

A não ser por mim e pelos livros, a loja estava totalmente vazia. Nenhum(a) M. Bresani. Atrás de uma cortina, havia ainda uma saleta. Bem no fundo havia uma mesa atulhada de papéis, pincéis e frascos de tintas. A luz forte de uma lâmpada pendente iluminava a mesa, e havia um homem debruçado sobre ela, de costas para mim.

— M. Bresani? — sussurrei, mas ele não reagiu.

— M. Bresani? — eu disse mais uma vez. Ele continuou a desenhar tranquilamente.

— M. Bresani — gritei, mas ele não se mexeu. Andei até ele e toquei nas suas costas. Ele se virou e sorriu amavelmente para mim.

— M. Bresani? — perguntei pela quarta vez.

Ele não respondeu, e então me ocorreu que ele devia ser o surdo do poema. Eu peguei o poema e lhe entreguei, sem dizer nada. Prendi a respiração enquanto ele lia atentamente os versos. Então ele sorriu. Um sorriso sincero. Depois ele abriu uma gaveta e tirou de dentro um grosso envelope amarelo.

E então aconteceu algo mais estranho e assustador do que tudo o que já tinha acontecido.

No instante em que M. Bresani ia me dar o envelope, seu braço parou no meio do movimento e seu olhar se fixou em alguma coisa que estava atrás de mim.

Eu me virei, e adivinha quem estava atrás de mim? O Smiley em sua sinistra pessoa, é claro. Não deu para ver se ele estava sorrindo, porque o rosto dele estava escondido atrás de uma câmera de vídeo. Ele filmou a gente, Berit!

Então ele abaixou a câmera e... isso mesmo! Ele estava sorrindo como uma víbora. (Víboras sorriem?) Então ele sussurrou para mim com uma voz aveludada:

— Acho que esse envelope me pertence!

Ele parecia uma fera mostrando os dentes. Não sei como poderia descrevê-lo, mas sabe a história da Chapeuzinho Vermelho? Lembra de quando o lobo fica deitado na cama tentando se fazer passar pela vovozinha? Era isso que o Smiley parecia, o lobo na cama da vovozinha, quando a Chapeuzinho Vermelho chega trazendo bolo e vinho. Só de me lembrar sinto um calafrio na espinha. Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo ali, só sabia que tinha que dar o fora, e naquele instante.

Peguei o envelope amarelo, dei um empurrão tão forte no Smiley que fez a câmera de vídeo cair. Não sei, Berit, mas talvez isso tenha salvado a minha vida. Ele se abaixou para apanhar a câmera, e eu saí do sebo em disparada em direção à piazza Navona.

Só parei quando cheguei ao quarto do hotel. Tive que me sentar e respirar fundo por um tempo, enquanto examinava a elegante caligrafia no envelope. Estava escrito: Bibbi Bokken, caixa postal 85, 5855, Fjærland, Norvegia.

E no verso: M. Bresani, VIA DEI CORONARI 5, ROMA, ITALIA.

Sei que é proibido ler cartas alheias, mas em casos de força maior todos os meios são permitidos, e aquele era sem dúvida um caso de força maior.

Abri o envelope. Dentro havia cinco folhas. Em cada uma delas estava escrito, com tipos de letras diferentes: “A biblioteca mágica de Bibbi Bokken”.

Agora vou usar um outro meio que também é permitido em casos de força maior. Não vou enviar as folhas para Bibbi Bokken, mas sim para você. Você pode refletir sobre o que elas significam e o que devemos fazer com elas, pois eu estou entendendo cada vez menos.

Escondi o envelope na minha mala e fiquei deitado na cama até meus felizes e recém-apaixonados pais voltarem. Eles queriam ir a um restaurante. E eu tive que ir, embora agora estivesse com dor de cabeça de verdade e preferisse ficar no quarto do hotel até a hora de ir embora.

Felizmente o Smiley não deu mais as caras, e nosso avião partiu no domingo à tarde.

Agora é segunda-feira, onze e meia da noite. Estou morrendo de sono, mas tinha me esquecido de uma coisa. Minha teoria, isso mesmo. Talvez você ache um pouco fraca, mas é a única que eu tenho.

Bibbi Bokken é contrabandista de livros. Ela pertence a um bando internacional que rouba livros raros e os envia para Fjærland, de onde são vendidos para ricos colecionadores do mundo todo. O nome de código desse bando é A biblioteca mágica de Bibbi Bokken. Bresani e Smiley pertencem a esse bando e agora estão tentando nos envolver. Duas crianças inocentes! Sim, Berit. Soa terrível, mas nós vivemos numa época terrível. Alguns contrabandeiam drogas, outros contrabandeiam livros.

Se isso tudo estiver certo, então sabemos por que Bibbi Bokken não tem livros em casa. E aí você terá que procurar em outro lugar, Berit. Onde você acha que os colecionadores de livros se hospedam quando estão em Fjærland? Certo! No Hotel Mundal. Lembra aquela vez em que subimos no sótão onde antigamente as camareiras dormiam? Será que não é lá o depósito deles? Mas agora eu preciso dormir. Estou confuso, cansado e aflito de suor e de coceira.

Muitas lembranças do Nils


O jogo acabou, Nils.

Nós começamos um jogo bobo de espionar uma mulher porque ela se comportou de maneira um pouco estranha. Num outro verão, a gente brincou de detetive anotando placas de carros para o caso de acontecer um crime. Mas agora o jogo acabou!

Depois que li a sua carta, dei um longo passeio para pensar sobre tudo. Eu passei pelo Museu das Geleiras, atravessei o rio Bøya e fui até o Blåbærstøl. É tão bonito agora no outono, com as sorveiras carregadas de frutinhos vermelhos e tantos tons de amarelo nas copas das árvores...

Quem deixou o poema na recepção do hotel? Alguém que sabia da sua viagem a Roma. (Para quantas pessoas você contou?) As seguintes pessoas entram em questão: o Smiley (não acredito que ele tenha aparecido em Roma por mero acaso), Bresani (que pelo jeito esperava visita) e naturalmente Bibbi Bokken (que sabia que você ia para Roma).

Todas essas pessoas misteriosas sabiam que você estaria em Roma. MAS COMO ELAS SABIAM?

Acho que todas elas têm alguma participação nesse jogo. Mas que jogo?

Como Bibbi Bokken sabia que você ia para Roma, é bem provável que ela também soubesse em que hotel você se hospedaria. Não me surpreenderia se tivesse sido ela que escreveu o poema que levou você até Bresani. Afinal sabemos que ele é um dos contatos internacionais dela. (Você ficou no Hotel Mondiale, Nils. E aqui temos o Hotel Mundal. Só queria lembrar isso de passagem. Coincidência???)

Claro! Só pode ter sido a sra. Livros que levou você até Bresani. Até Bresani, mas não até Roma! Isso quem fez foi uma revista! Não, não estou entendendo.

Talvez você devesse tentar saber um pouco mais sobre esse concurso, o que você acha?

Não sei se devo agradecer por você ter mandado esses papéis estranhos para mim e não para Bibbi Bokken. Acabei colocando as folhas num novo envelope, escrevi “Bibbi Bokken” nele e pedi para Billie Holiday levar ao correio. Sem selo nem remetente, mas tive que arriscar. (Antes de despachar as folhas eu tirei fotocópias, que vou colar no livro agora.)

Acho que as folhas com o texto “A BIBLIOTECA MÁGICA DE BIBBI BOKKEN” em diferentes tipos de letras podem ser propostas para diferentes páginas de rosto de um livro que será publicado no ano que vem, justamente com o título “A BIBLIOTECA MÁGICA DE BIBBI BOKKEN”. (Mas não é um pouco estranho, uma vez que Siri já tinha segurado esse livro na mão?) Ou então podem ser esboços de um cartaz para ser pendurado numa misteriosa biblioteca com esse nome.

Mas existe ainda uma terceira possibilidade. Fui mais uma vez à biblioteca e encontrei lá o índice de uma coleção de livros bem diferentes, que em conjunto são chamados de Biblioteca Cultural de Thorvald Dahl. Será que a “biblioteca mágica de Bibbi Bokken” não pode ser algo parecido, ou seja, o nome de uma série de livros? Talvez Bibbi Bokken trabalhe com publicação de livros. Talvez ela tenha uma editora que se chama “Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken”, será que não é isso?

Não consigo acreditar muito que exista um bando de contrabandistas chamado “A biblioteca mágica de Bibbi Bokken”. Mas não podemos descartar nenhuma possibilidade, sr. Torgersen. Apenas não devemos tirar conclusões precipitadas.

Mas vamos ao sr. Smiley. (A história da câmera de vídeo foi realmente horripilante!) Tomara que você nunca mais encontre esse homem, mas não sei se vai conseguir escapar assim tão facilmente. Sem dúvida ele está querendo alguma coisa, e eu tenho duas hipóteses. Ou ele está interessado no misterioso livro sobre a biblioteca mágica, ou na própria biblioteca. EM OUTRAS PALAVRAS, ELE ESTÁ ATRÁS DA MESMA COISA QUE NÓS! Resta saber quem vai chegar primeiro ao Polo Sul.

Por enquanto, só consegui chegar até aqui. Mas ainda tenho uma ótima notícia. TIVE UMA CONVERSA MUITO INTERESSANTE COM GUNNAR STAALESEN NO FIM DE SEMANA! Sim, senhor, toquei a campainha e me apresentei como fã de seus livros. Achei que era um bom jeito de ser recebida. (Acho que os escritores são incrivelmente egocêntricos. Pelo menos, eles gostam de ser elogiados...)

Sobre o que falamos? Ah, sobre diversas coisas. Sobre tudo e sobre nada, não é assim que se diz?

Mas ele não sabia dizer se existe algum escritor que está trabalhando num livro sobre uma biblioteca mágica. E também não conhecia Bibbi Bokken. Mas ele me contou que no ano que vem haverá um jubileu, uma grande comemoração. E que comemoração vai ser essa? Você tem três chances de adivinhar. Ela vai se chamar ANO NORUEGUÊS DO LIVRO — e será patrocinada por sua majestade, a rainha Sônia. (Portanto, a Casa Real também está envolvida.) Há trezentos e cinquenta anos foi impresso o primeiro livro na Noruega. E isso é quase tão bom quanto um incunábulo. Coincidência, Nils? Muito me estranharia se Bibbi Bokken também não tivesse um dedo nisso...

De resto, o gentilíssimo escritor me contou sobre o livro que está escrevendo agora. Ele também vai ser publicado no ano que vem. Acho que pouco a pouco estou formando um panorama sobre as publicações do ano que vem. O livro de Staalesen trata de um detetive chamado Varg Veum. Esse detetive mora em Bergen, mas no Ano do Livro viaja para Oslo para farejar escândalos políticos e coisas parecidas. O título provisório do livro é Esqueletos não enterram joias.

Mas vamos ver onde o nosso esqueleto está escondido. Ou se tem alguma joia enterrada. You see? (Já não tínhamos falado uma vez do esqueleto escondido no armário?)

Ainda poderia escrever muito mais, pois falei com um monte de gente por aqui. Mas no momento está acontecendo tanta coisa ao mesmo tempo que é melhor eu mandar o livro de volta rapidinho. Mas tem um detalhe que ainda preciso mencionar: continuam chegando novos pacotes na caixa postal 85. A própria BB quase nunca envia um pacote. (Billie Holiday averiguou isso no correio.) Por isso não acredito que ela viva de vender livros. Talvez ela seja uma grande contrabandista de livros, mas os livros ficam aqui em Fjærland. Pelo menos aqui desaparecem as pistas...

So long, sr. contrabandista de cartas!

Lembranças de Berit Buu (você se assustou?) Yum

 

PS. O fim de semana com o meu pai foi superlegal. Sinto falta dele de verdade. Acho uma idiotice meus pais de repente terem posto na cabeça que não se amam mais. Mas eu amo os dois!

 

PPS. Você tem certeza de que não faz ideia de como BB podia saber da sua viagem a Roma?


PPPS. Estou começando a criar a terrível suspeita de que estamos sendo usados de alguma maneira. Quando li a sua última carta, eu me senti mais ou menos como um personagem num jogo de computador.


BERIT!

Você conhece o conto da pena que se transformou em cinco galinhas? Ele foi escrito por um escritor dinamarquês chamado H. C. (Hans Christian) Andersen. É sobre uma galinha que arranca uma de suas penas com o bico e começa a cacarejar.

— Lá se foi uma pena. Quanto mais me depeno, mais bonita vou ficando.

Uma outra galinha assiste à cena e cochicha para a galinha vizinha que a primeira arrancou todas as penas para impressionar o galo. Uma coruja, ouvindo essa conversa, voa até uma outra coruja e passa adiante a história, até que ela chega aos ouvidos de dois pombos e finalmente ao galo. Só que nesse meio-tempo a história se modificou muito. O galo espalha que três galinhas se depenaram inteiras de infelicidade pelo amor não correspondido de um galo, e então morreram de frio. Então a história vai circulando até que chega de novo à galinha que havia arrancado a pena, e agora ela é assim:

“Era uma vez cinco galinhas que arrancaram todas as suas penas para ver qual delas tinha ficado mais magra de paixão pelo galo. Depois elas lutaram violentamente até caírem mortas, para a vergonha de suas famílias e grande prejuízo do dono do galinheiro”.

A primeira galinha fica tão horrorizada que manda publicar toda a história no jornal como exemplo e advertência. Mas quando a história é publicada, todos acham que ela é verdadeira. Pois os jornais não mentem, não é?

É um belo conto de fadas e se parece com a história em que a gente se envolveu, só que AO CONTRÁRIO.

A coisa toda começou com uma peninha que você encontrou, não é? A carta de Siri. Pensamos que se tratava de uma única galinha, ou seja, Bibbi Bokken. Mas na verdade são pelo menos cinco — três galos e duas galinhas, para ser exato. Isto é, Bibbi Bokken, M. Bresani, o Smiley, Aslaug e Reinert Bruun. E estão todos querendo nos depenar, Berit!

Sim, é isso mesmo que você leu. Aslaug e Reinert Bruun também estão entre os que querem nos controlar. O que aconteceu esta tarde confirmou a terrível sensação que você teve: somos meros peões num jogo sobre o qual não temos influência.

Acabei de vir da casa de Aslaug e Reinert Bruun, que me convidaram para tomar limonada com bolinhos de passas.

Você pode imaginar como fiquei nervoso, pois pensei que tinha feito alguma coisa errada. Desde que voltei de Roma, Bruun está agindo de uma forma estranha. Ultimamente ele parece se interessar muito por mim. Foi falar comigo duas vezes no pátio da escola. Uma vez ele queria saber se eu gostaria de fazer uma apresentação sobre Roma para a classe. Eu disse que não tinha visto nada porque tinha ficado o tempo todo deitado no hotel com dor de cabeça. Ele olhou para mim como se não acreditasse no que eu tinha dito, ou soubesse de alguma coisa que ele sabe que eu não sei.

Na segunda vez, ele me perguntou se eu não poderia propor um tema para a próxima redação. Fiquei totalmente surpreso e balbuciei alguma coisa sobre estar justamente tentando refrear minha imaginação. Ele pareceu quase triste, passou a mão na minha cabeça e disse:

— Não faça isso, Nils. A fantasia é a sua principal ferramenta.

Quando ele me convidou para a limonada com bolinhos, eu não entendi patavina e pensei: “Isto vai ser um inferno”. Mas aceitei, é claro. Vieram os dois, Reinert e Aslaug, abrir a porta para mim. Entramos na sala e sobre a mesa havia — você tem três chances de adivinhar — uma pilha de livros.

Fiquei calado a tarde inteira, pois o professor e Aslaug gesticulavam como italianos e falavam pelos cotovelos. Eles falaram sobre livros. Sobre a diferença entre livros de aventuras e relatos de viagem. Sobre peças de teatro, poesia e prosa (romances, contos e coisas assim).

Eles disseram que há diferentes maneiras de escrever, que alguns escritores fazem primeiro um esboço e já sabem toda a história quando começam a escrever, enquanto outros talvez tenham na cabeça apenas uma frase, um começo ou um final. Eles disseram que o autor precisa ver diante de si os personagens sobre os quais escreve: sua roupa, sua cor de cabelo e todos os detalhes mais estranhos. Disseram que eu devia considerar que cada pessoa fala de um jeito diferente e que cada personagem num livro tem um jeito todo particular de se expressar. Eles disseram também que eu tinha que ser bem preciso ao escrever e ter cuidado com os adjetivos. Por exemplo: se eu escrever “a flor era simplesmente fantástica”, não estou dizendo absolutamente nada sobre a flor. Seria muito melhor se eu descrevesse a flor de forma que todos os que lessem pudessem ver por si mesmos o que há de fantástico nela.

E assim eles continuaram até que eu tivesse comido cinco bolinhos, tomado duas jarras de limonada, dito cinco vezes “sim” e sete vezes “exatamente”.

Quando eles terminaram, Aslaug piscou para mim e disse:

— Então, Nils, você aprendeu alguma coisa com tudo isso?

— Sim, claro — murmurei e pensei comigo mesmo: “Pelo menos entendi que os dois são loucos de pedra”.

Reinert olhou no relógio, e de repente me pareceu que ele precisava sair naquele exato momento. Ele me levou até a porta e quase me empurrou para fora.

Eu já estava indo embora, quando um táxi parou na porta da casa do casal Bruun. O homem que saiu não me viu, pois foi logo para a porta e tocou a campainha. Mas eu o vi. Sente-se para ouvir isto, Berit!

ERA O SMILEY.

O Smiley em pessoa estava indo à casa do meu professor. Não entendi muita coisa, mas pelo menos entendi que estamos sendo vítimas de alguma conspiração inexplicável, da qual Bibbi Bokken é uma espécie de centro misterioso.

Você tem razão, nós somos personagens. Embora eu esteja com muito medo, acho que temos que decidir o que vamos fazer.

Podemos terminar o livro de cartas por aqui e esquecer todo o assunto. Ou podemos tentar assumir o controle e jogar com os outros.

Proponho a segunda opção. Nós dissemos A. Agora temos que dizer todo o alfabeto.

Proponho que você volte ao ponto de partida: a Cabana Flatbre, onde vimos Bibbi Bokken pela primeira vez. Leia o livro de visitas. Procure os nomes de Bruun e Bresani. Talvez você encontre um código secreto ou uma mensagem que possa abrir uma brecha no nevoeiro, pois eu estou tateando no escuro. Por enquanto não tenho nenhuma teoria na gaveta, mas sei que estou ficando furioso e eu quero aproveitar essa raiva!

Nils

 

PS. Não entendi a história dos ossos enterrados, do livro do Gunnar Staalesen. O que tem a ver com Bibbi Bokken? Você acha que tem alguma coisa enterrada nessa história? Mas o quê? Os livros de Bibbi Bokken talvez? Mas por que, por tudo o que há neste mundo, ela juntaria um monte de livros valiosos para depois enterrá-los? Você está tirando uma com a minha cara?


Querido escritor,

não me leve a mal, mas tenho que admitir que não entendi essa de você de repente ser convidado pelos “confeiteiros” Bruun para assistir a um curso completo de preparação de escritores! Isso depois daquela redação!!!

No mais, acho que ninguém pode nos acusar de ter feito cinco galinhas com uma pena. Temos galos e galinhas suficientes para uma granja inteira, e pelo jeito essa granja é tão grande que vai até Roma. Logo teremos mais do que o suficiente para ir a todos os jornais com a história completa — como no conto de fadas. (E então vamos depenar um monte de galinhas!) Mas acho que ainda devemos esperar um pouco, pois a nossa história não para de crescer.

O livro de cartas chegou aqui ontem à tarde e isso foi bom, pois hoje é sábado e está fazendo um dia maravilhoso de outono. Bem, eu segui à risca a sua sugestão. Você não disse que talvez houvesse pistas importantes na Cabana Flatbre? Pois agora eu estou aqui. Arrumei minha mochila num instante e pus o pé na estrada. Minha mãe me levou de carro até øygarden.

É uma subida cansativa, Nils, mas o esforço é recompensado no momento em que se chega à geleira, e ainda por cima se tem aquela vista maravilhosa do fiorde de Fjærland. Fiquei me sentindo orgulhosa por ter nascido aqui, e pensei em coisas presunçosas do tipo “não existe lugar mais bonito no mundo todo”.

Agora estou aqui sozinha na Cabana Flatbre, e sinto nas pernas os efeitos de ter subido a mil metros acima do nível do mar. Folheei demoradamente o livro de visitas. Preste atenção:

Estivemos aqui na quarta-feira, dia 12 de julho, e Bibbi Bokken escreveu seu maldito nome bem embaixo das nossas assinaturas. Mas NOSSO POEMA DESAPARECEU, Nils! Alguém arrancou exatamente essa página do livro de visitas. Por quê? Não era bom o suficiente? Ou será que existe gente que se sente ameaçada pela imaginação das crianças???

Eu estava tão furiosa que declamei o poema bem alto. Sei todo ele de cor e ninguém vai conseguir arrancá-lo da minha memória:


Aqui em cima nada nos amola,

Juntos tomamos uma coca-cola,

Nils e Berit, assim nos chamamos,

Férias fantásticas aqui passamos.

Nos divertimos muito no verão,

E não queremos ir embora não!


Além disso, Bibbi Bokken esteve aqui mais uma vez alguns dias depois — e agora segure-se de novo: no sábado, dia 15 de julho, o nome dela aparece novamente ao lado de uma outra assinatura. A de Mario Bresani!

Gastei uma quantidade considerável de calorias para descobrir o primeiro nome desse livreiro surdo, mas infelizmente você vai ter que se conformar com o fato de aqui a família Bruun prima pela ausência. Eles simplesmente não deixaram nenhum rastro no livro de visitas da Cabana Flatbre, pelo menos não neste volume (a partir de 26 de maio de 1996).

E ainda falta o careca maluco que vive aparecendo no seu caminho. (Podemos dizer que você está sendo seguido?) No dia 3 de agosto, alguém desenhou um sol com um grande sorriso, mas não acho que tenha sido o Smiley (ou será...?).

Foi só isso que eu descobri, Nils. Se você estava esperando encontrar um grande depósito de livros por aqui, sinto muito, mas vou ter que decepcioná-lo. É claro que pode existir uma biblioteca secreta em Fjærland, mas não na Cabana Flatbre. Tirei pedras do lugar e procurei nos rochedos. (Você não está querendo que eu procure nas fendas da geleira, espero.)

Mas agora me lembrei de outra coisa. Acho que mais uma vez você foi a galinha cega que encontra um grão, e desta vez foi um grão de ouro. No seu ps., você escreveu: “Você acha que tem alguma coisa enterrada nessa história? Mas o quê? Os livros de Bibbi Bokken talvez?”.

Sim!!! Pelo menos, existe a possibilidade, uma vez que na casa dela não há um único livro. Acho que Bibbi Bokken enterra seus livros em algum lugar em Fjærland! Acho que ela está construindo uma biblioteca subterrânea. E EU ACHO QUE É UMA BIBLIOTECA MÁGICA!

Temos que achar essa biblioteca. E temos que chegar antes do Smiley. You see? Mas acho melhor trabalharmos junto com as toupeiras do que com alpinistas e excursionistas.

Continuo quando chegar lá embaixo.

Espera um pouco! Acabei de dar uma olhada no resumo da tabela principal de Dewey. Ela termina no número 990, com a “História dos mundos extraterrestres”. Não tem o número 1000, mas eu tenho uma teoria: Talvez esse grupo se chame “História dos mundos subterrâneos”. Para não dizer “História das bibliotecas subterrâneas”.

AGORA ESTOU VENDO MAIS UMA COISA: o primeiro grupo principal de Dewey se chama “010 Bibliografia”. E Bibbi Bokken é uma autêntica bibliógrafa. (Fonte: Siri. “Se em toda a Noruega existisse apenas uma bibliógrafa, teria que ser você.”) A Cabana Flatbre, onde encontramos diversas pistas, fica exatamente 1000 metros acima do nível do mar. E a casa de Bibbi Bokken fica exatamente dez metros acima do nível do mar. De 10 a 1000 — exatamente como no sistema de Dewey! Isso pode ser uma pista? Não sei, não sei!

 

Recepção do Hotel Mundal.

Estou tremendo. Acabo de saber que já cruzei com a sra. Livros uma vez, há não sei quantos anos. Eu tinha sete ou oito anos na época (Fonte: Billie Holiday). Mas vou deixar para falar disso na próxima carta, pois logo o correio vai ser recolhido e tenho que escrever pelo menos dois PS.

Sua até a morte, Berit

PS. Já não gosto tanto da foto da capa do livro. É o fiorde Sogne, não é? Quando eu estava descendo da Cabana Flatbre, de repente me lembrei de uma coisa que Siri escreveu naquela carta misteriosa de Roma. “Na capa, havia uma foto de umas montanhas muito altas” !!!???!!!

Talvez você devesse ter escolhido o livro com o pôr do sol e o coração vermelho. (Mas então será que Bibbi Bokken teria ajudado a pagar???)

 

PPS. Talvez Bibbi Bokken e Bresani, o Smiley e a família Bruun pertençam todos a uma seita que pretende dominar o mundo. Talvez seu objetivo seja controlar todas as crianças do planeta. Já ouvi falar dessas seitas malucas que tentam doutrinar crianças e adolescentes. (Doutrinar — procure essa palavra no dicionário!)


PPPS. Você escreveu: “Nós dissemos A. Agora precisamos dizer todo o alfabeto”. Só que a coisa ficou tão misteriosa que eu tenho as minhas dúvidas. Por isso aí vai um pequeno poema de Jan Erik Vold:


Quem diz A

disse A


Entende o que eu quero dizer? Se você disse A — então você disse A e tem que arcar com as consequências. Mas isso não significa que você tenha que dizer B.

Lembranças, B.


Querida Berit!

Acho que agora você está realmente na pista certa! Uma seita! Você praticamente tirou as palavras da minha boca. Isso se não for coisa ainda pior.

Você já leu As bruxas, de Roald Dahl? Não leia. O seu coração vai querer sair pela boca. De medo.

O livro trata de um bando de mulheres que agem como se gostassem muito de crianças, mas não gostam nem um pouco. Elas são bruxas que odeiam crianças, e querem exterminar todas as crianças do mundo transformando-as em ratos.

Agora imagine que todo o bando, na verdade, é formado por bruxas que, em vez de querer nos transformar em ratos, querem roubar nossos pensamentos e substituí-los pelos delas! E imagine que Bibbi Bokken construiu uma biblioteca mágica sob o gelo! Uma biblioteca que ela preenche com os nossos pensamentos! Isso explica por que é uma biblioteca mágica. Estou cada vez mais convencido de que estamos realmente lidando com magia.

Por que você acha que o professor Bruun e a mulher dele de repente me convidaram para tomar limonada com bolinhos de passas? Para serem simpáticos? Ha, ha! Não, nada disso, eles queriam controlar meus pensamentos. Por isso é que eles me contaram como os escritores trabalham, é óbvio. Mas o que eles disseram não tem nada a ver. Eu já li muito e sei que cada escritor escreve de um jeito diferente. Existem até mesmo livros em que escritores de verdade escrevem: “A flor é absolutamente fantástica”. Não existe nenhuma regra para escrever, nem para pensar. Mas Bibbi Bokken está tentando criar essas regras para que a gente vire decalques uns dos outros e para que nunca mais possamos surpreendê-los.

Eles colocam nossos pensamentos antigos numa biblioteca mágica embaixo da geleira de Jostedalsbreen. Esta é a verdade, Berit, e temos que enfrentá-la se não quisermos virar robôs nem mortos-vivos.

Essas são apenas algumas teorias sobre as quais andei pensando. O que me pôs nessa pista foi a sua carta, e a descoberta de que o professor Bruun tem o poder de ler pensamentos.

Percebi isso ontem na hora do recreio quando ia tomar meu lanche. O professor Bruun estava tomando conta do pátio na hora do recreio. Eu estava com a minha mochila, porque a aula seguinte era de educação física. E dentro da mochila estava o livro de cartas. Não me arrisco a deixá-lo sozinho nem por um segundo. Quando pus a mão dentro da mochila para pegar o lanche, quis conferir se o livro de cartas ainda estava lá. Estava, e eu respirei aliviado. Nesse momento, Bruun chegou perto de mim. Ele sorriu (atualmente parece que todo mundo sorri para mim) e disse:

— Então, Nils. Que mistérios estão escondidos na sua mochila?

Levei um susto que me fez dar um pulo de 114 metros de altura, e disse que o único mistério era o que a minha mãe tinha passado no pão.

— Ah — disse o professor Bruun. — Tem certeza de que é só isso?

Com as mãos tremendo, desembrulhei o meu lanche. Percebi que ele tinha lido meus pensamentos como um livro aberto, para não dizer livro de cartas.

— Não — sussurrei. — Não é só isso. Tem também queijo de cabra.

Eu sorri meio amarelo e dei uma mordida no meu pão, que formou uma bolota gigantesca dentro da minha boca. Eu não conseguia engolir, e fiquei ali ruminando como uma vaca.

— Essa foi boa — disse o professor. — Você deveria anotar. Tiradas como essas não crescem em árvores.

Então ele se foi. Cuspi o pão e conferi se o livro de cartas ainda estava na minha mochila.

Agora estou sentado aqui, tentando organizar meus pensamentos. O que nem sempre é fácil, principalmente quando tem alguém tentando roubá-los.

Talvez todas essas teorias sejam apenas fantasias da minha cabeça, mas devo confessar que estou feliz por ter pelo menos algumas fantasias.

Continue com as suas investigações, Berit. Ultimamente é você quem tem tido as ideias mais inteligentes. Eu sou apenas um confuso

Nils

 

PS. No mais, também tenho uma teoria sobre o sorriso desenhado no livro de visitas. Talvez eu acredite que o sorriso possa ser o símbolo secreto das bruxas.

Você está vendo como estou inseguro? Ou eu acredito, ou não acredito. Ninguém acredita talvez. A não ser alguém que está prestes a perder seus pensamentos.

SOCORRO!


Querido Nils,

fique tranquilo, companheiro. Você não pode simplesmente pegar o último livro que leu e achar que as coisas acontecem do mesmo jeito na realidade. Afinal de contas, literatura é literatura. E bruxas não crescem em árvores. Mas você também tem que ter cuidado. A partir de agora, você deve prestar bastante atenção no nosso livro e não pode mais andar com ele pela cidade mostrando-o para Deus e o mundo. Pois nós estamos sendo vigiados, querido primo... Se tem alguém lendo nossos pensamentos, disso já não tenho tanta certeza...

Tenho coisas importantes para contar, sobre as quais não pude escrever na minha última carta. Descobri que já me encontrei com Bibbi Bokken uma vez — há muito, muito tempo. Na época, eu era ainda muito pequena. Talvez isso possa ser uma pista importante. Quem me contou foi a mulher que dirige o hotel junto com Billie Holiday. Ela se chama Marit Orheim Mauritzen.

Trata-se de fatos históricos. Portanto, aperte os cintos!

Foi na época em que o ex-vice-presidente Walter Mondale esteve aqui para inaugurar o grande túnel de Fjærland. Essa inauguração aconteceu em 17 de maio de 1986, e Ludvig Eikaas, o artista mais importante da região, foi responsável por boa parte das festividades. Para fazer cumprir as palavras dos profetas, ele pintou uma grande imagem de Nossa Senhora na entrada do túnel. Ela foi chamada de “deusa do túnel”.

E a srta. Berit Bøyum também deixou a cidade de Bergen, onde residia, e dirigiu-se a Fjærland, pois pertencia à estirpe dos Bøyum e queria assinar o livro de hóspedes do Hotel Mundal junto com seus pais, que na época estavam noivos (!). Mas não havia mais lugar no albergue da cidade e eles foram alojados numa pequena cabana, na antiga propriedade rural do meu avô...

Está acompanhando, Nils? A cidade inteira estava em polvorosa. Havia moradores, policiais e jornalistas por toda parte. Afinal, quem inauguraria o túnel era o ex-vice-presidente dos EUA. MAS EU TAMBÉM ESTAVA LÁ! Não me lembro de muita coisa desse dia, mas agora estou com Ms. Manager Marit Orheim Mauritzen na recepção do hotel. Consultamos o livro de hóspedes do dia da inauguração, e eu achei o meu nome ao lado do das muitas (outras) celebridades. Pois é, faz anos que eu me gabo de ter me encontrado com Walter Mondale. (Sabia que os avós dele são de Mundal? Daí o nome...) MAS EU NÃO FAZIA A MENOR IDEIA DE QUE BIBBI BOKKEN TAMBÉM ESTAVA PRESENTE NAS FESTIVIDADES!

Isso é a mais pura verdade. Da próxima vez que vier aqui, você poderá comprovar com seus próprios olhos. E Marit se lembra bem dela. Na época, ninguém a conhecia, mas ela se apresentou como jornalista. E ELA CONHECIA WALTER MONDALE! Ela ficou ao lado dele, cochichando segredinhos no seu ouvido o tempo todo...

Estou falando sobre Fjærland, Nils. E como esse nome pouco a pouco está adquirindo uma certa fama, vão aí algumas informações. Se você procurar na enciclopédia, vai achar:

 

Fiorde de Fjærland: braço do fiorde Sogne com cerca de 25 quilômetros de extensão. A partir de Balestrand, o Fjærland serpenteia entre imponentes montanhas cobertas de geleiras, em direção à geleira de Jostedalsbreen. No fundo do fiorde, na margem esquerda, fica a igreja de Fjærland e o Hotel Mundal. Dali partem os caminhos para as geleiras de Bøyumsbreen e Suphellebreen, dois braços da geleira de Jostedalsbreen. Não se sabe ao certo qual é a origem do nome Fjærland.

 

Mas isso foi antes de Mr. Mondale & Co. Isto é, antes de aparecermos no mapa-múndi ou mesmo de aparecermos em qualquer mapa, pois foi só então que adquirimos uma ligação com o mundo por via terrestre. E agora vai aí mais um trecho (árido como o deserto) de literatura técnica para digerir. Foi tirada de um folheto do Departamento Nacional de Estradas:

 

Depois de anos de luta por um acesso por via terrestre até Fjærland, em 1975 o Parlamento finalmente aprovou a construção de uma autoestrada. O grupo de trabalho “estrada para Fjærland” desenvolveu três alternativas: via fiorde Vetle, via Skei e via Sogndal. O Departamento de Construção de Estradas era favorável ao caminho via Sogndal, porém o Parlamento era contrário a essa ideia e em 1976 foi aprovada a construção da estrada via Skei.

Os trabalhos de construção começaram em 1977. A estrada e o túnel para Fjærland foram entregues oficialmente ao tráfego em 31 de maio de 1986.

A estrada Fjærland—Skei parte do porto de Fjærland e atravessa a rua 14 em direção a Skei, em Jølster. Seu comprimento total é de 30 600 metros.

A estrada possui três túneis, com um comprimento total de 7355 metros. O mais longo deles é o túnel de Fjærland, com 6381 metros.

Em setembro de 1977 iniciou-se a primeira fase das obras, com a reforma da antiga estrada paralela ao fiorde Kjøsnes e a proteção desta contra avalanches. A construção do túnel de Fjærland foi iniciada em 1981, com trabalhos ininterruptos de dois e três turnos.

Em 8 de maio de 1985 começaram as explosões propriamente ditas. Foram dinamitados 4463 metros do lado de Fjærland e 1977 metros do lado de Skei.

O túnel foi projetado e construído sob a égide do Departamento Nacional de Estradas. Para a retirada da massa rochosa foram mobilizadas todas as empresas de transporte da região. O mesmo aconteceu em relação aos procedimentos de segurança do lado de Fjærland, as instalações elétricas e a pavimentação.

Foram dinamitados cerca de 336 mil metros quadrados de massa rochosa. Para isso, foram utilizadas 638 toneladas de explosivos com 609 quilômetros de perfurações. A massa rochosa retirada do túnel foi utilizada para a pavimentação de 8,4 quilômetros de estrada do lado de Fjærland, e 3,3 quilômetros do lado de Lunde. O restante foi armazenado em Bøyadalen e, em colaboração com o paisagista...

 

Você ainda está aí, Nils? Ou já perdeu o fio da meada? Ainda gostaria de acrescentar por minha conta que o túnel de Fjærland passa embaixo da geleira de Jostedalsbreen. NÃO PARECE A OPORTUNIDADE IDEAL PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA BIBLIOTECA SECRETA? Embaixo da geleira de Jostedalsbreen, a maior geleira da Europa. Estamos falando de uma área de mais de mil quilômetros quadrados. De repente vão construir um túnel de mais de seis quilômetros embaixo dessa geleira. Em outras palavras, uma obra gigantesca: “todas as empresas de transporte da região” foram mobilizadas para “a retirada da massa rochosa”, e essa massa foi armazenada em colaboração com um paisagista. E isso numa região quase desabitada!!!

UMA BIBLIOTECA DESSAS PODE SOBREVIVER ATÉ O DIA DO JUÍZO FINAL!

Quase não tenho mais dúvidas. Não é possível que não exista uma ligação entre essa obra colossal e a biblioteca secreta de Bibbi Bokken.

Você mesmo escreveu na sua última carta — e, como sempre, acertou o rabo no burro (Bibbi Bokken) de olhos vendados: “Imagine que Bibbi Bokken construiu uma biblioteca mágica sob o gelo!”. São as suas palavras. Mas desta vez sou eu que coloco suas palavras na minha boca.

E NÃO PARA POR AÍ!

Exatamente cinco anos após a inauguração do túnel de Fjærland, houve uma outra inauguração em Fjærland. Foi em 31/5/1991. Nesse dia, foi aberto ao público o Museu Norueguês das Geleiras, com a presença da rainha Sônia. A rainha Sônia, sim, senhor. Você já ouviu falar dela??? Ela também é a patrocinadora do ANO NORUEGUÊS DO LIVRO! E Bibbi Bokken também esteve aqui na inauguração desse museu. Foi a sua segunda visita a Fjærland. (Não precisa acreditar em mim, Nils. Você pode simplesmente ligar para o Hotel Mundal e confirmar tudo.) Alguns meses depois, a sra. Livros comprou a casa amarela em Mundal...

You see? Não tem importância, pois não vou dizer mais nada.

Até agora, estão implicadas no caso as seguintes instâncias:

— uma bibliógrafa de fama mundial (Bibbi Bokken)

— um ex-vice-presidente dos EUA (Walter Mondale)

— a Casa Real (rainha Sônia)

— o Parlamento (deputado Mauritzen)

— um misterioso livreiro italiano (Mario Bresani)

— um cabeça de ovo, que aparece em todos os lugares (Smiley)

— o Departamento Nacional de Estradas (seção do Ministério dos Transportes)

— o hotel mais aconchegante do mundo (inaugurado em 1891, exatamente cem anos antes do Museu Norueguês das Geleiras)

— o túnel de Fjærland (inaugurado em 31/5/1986)

— o Museu Norueguês das Geleiras (inaugurado em 31/5/1991, exatamente cinco anos depois do túnel de Fjærland)

— a geleira de Jostedalsbreen (fundada há muitos milênios)

Lembranças de (to be or not to be) Be Rit Bøyum

 

PS. Já que nesta carta falei tanto de geleiras e coisas assim, vai aí mais um poema de Jan Erik Vold. Mas, para entender, você precisa saber exatamente como é um esquimó com diploma de gelo: aquele que ergue a mão num legítimo cumprimento de esquimó. Três linhas, Nils, mas um poema inteiro:


No trenó

um esquimó com diploma de gelo

retribuí o aceno


Quando li o poema pela primeira vez, quase enlouqueci. Não durou muito, mas durante esse curto tempo eu fiquei totalmente fora do ar. Sabe o que eu fiz? Eu acenei. Como se estivesse totalmente sozinha sobre o gelo da Groenlândia e de repente encontrasse um esquimó tão sozinho quanto eu!

Com essas palavras, aceno para você também.

Você está acenando de volta?

PSSSSSIU! Agora está acontecendo uma coisa... lá vem Bibbi Bokken!!! Agora ela está na escada da entrada do hotel. Vou sair pelos fundos... mas você ainda vai ter notícias minhas. CUIDE BEM DO LIVRO DE CARTAS!


Querida Berit!

Estou tendo vertigens. Quer dizer então que a Casa Branca em Washington está envolvida no caso? E a rainha Sônia também??

Obrigado por me ter recolocado de novo sobre o chão firme, pelo menos com um pé. Também acho que a minha teoria sobre as bruxas não tinha muito a ver, mas estamos levantando todas as possibilidades.

E agora lá vai mais um enigma! E não é nenhuma teoria. Trata-se de fatos!

A coisa toda começou ontem à tarde. Eu estava andando pela avenida Karl Johan, você sabe, o famoso boulevard de Oslo. E quando eu passei em frente à livraria Tanum, quem é que eu vi lá dentro? Certo — o SMILEY.

Ele estava conversando com uma vendedora. Fiquei olhando pela vitrine, fingindo que estava admirando as obras completas de Ibsen.

Quando o Smiley saiu, eu me virei de costas para ele não me reconhecer. No que ele atravessou a Universitetsgate, fui atrás dele.

Ele passou em frente ao Teatro Nacional, depois foi pela Stortingsgate e entrou num restaurante chamado Café do Teatro. Continuei atrás dele. Quando o maître me perguntou se eu tinha reservado uma mesa, respondi que tinha marcado um encontro com o meu pai, que era armador de cenário. É claro que foi uma desculpa idiota, mas ele me deixou entrar.

E lá estava o Smiley sentado numa mesa ao lado da janela. E adivinhe junto com quem! Segure firme seu batom, Berit! Ele estava com Astrid Lindgren. A escritora que escreveu Píppi Meialonga, Píppi a Bordo e muitos outros livros legais.

Embora muita gente pense que são livros para criancinhas pequenas, eles são ainda mais legais quando crescemos. Eles nos fazem lembrar de coisas que já esquecemos. (Assim como a história dos suspensórios azuis no ursinho Pooh.) Além disso, eles nos dão uma certa sensação de segurança no meio da confusão do mundo. E se tem uma coisa da qual estou precisando, é segurança. Senão vou acabar em frangalhos.

Imagine só, Berit. Smiley e Astrid Lindgren! Eu me sentei numa mesa perto deles, me escondi atrás de um gibi e pedi uma Coca-Cola.

Eu estava tão perto deles que poderia cuspir na nuca dos dois. Tentei ouvir o que eles estavam dizendo, mas não consegui por causa do barulho nas outras mesas. De qualquer forma, eles não paravam de falar. Principalmente o Smiley. Mas ele não sorria. Quem sorria era Astrid Lindgren, e seu sorriso não tinha nada de sinistro. Era um sorriso amável e bondoso como o de uma vovó.

No final, ela sacudiu a cabeça e se levantou. Ficou tão perto de mim que eu poderia tocá-la. Eu poderia ter tocado Astrid Lindgren, Berit! Mas não fiz isso. Fiquei duro como uma pedra atrás da minha revistinha, e pelo menos agora deu para ouvir o que ela estava dizendo:

— Não, acho que não posso fazer isso. Receio que não seja a minha especialidade.

Então ela saiu.

O Smiley ficou sentado mais um segundo. Depois ele deu um salto, correu atrás dela e gritou:

— Espere, Astrid! Nós poderíamos pelo menos discutir!

E saiu do restaurante correndo atrás dela. Eu ia segui-lo, mas de repente vi um envelope em cima da mesa onde eles estavam. Sabe o que estava escrito nesse envelope? Não, é claro que você não sabe. No canto superior esquerdo tinha um carimbo com os dizeres “Children’s Amusement Consult”. Embaixo do carimbo estava escrito com caneta hidrográfica: “A biblioteca mágica de Bibbi Bokken”.

É isso. Eu via tudo girar, Berit. Não tinha nenhuma ideia do que devia fazer. A porta da chapelaria se abriu e vi o Smiley vindo na minha direção.

Peguei o envelope, escondi debaixo do meu pulôver e, não sei como, consegui passar pelo Smiley e sair a salvo do restaurante. Ultimamente, tenho me revelado um ladrão de cartas muito talentoso.

Corri para casa, rasguei o envelope e encontrei essas folhas que estou mandando agora para você. Talvez você entenda mais do que eu.


A biblioteca mágica de Bibbi Bokken


VÍDEO/FILME

2a versão, cena 3 de 5

1. EXTERNA. RUA EM FRENTE À IGREJA DE FJÆRLAND. NOITE. OUTONO. MÚSICA. SINFONIA DO DESTINO. Berit e Nils passam lentamente em frente à igreja a caminho de Mundal. O céu está escuro. Ouvem-se fortes trovoadas. De vez em quando, raios brancos cortam a paisagem, tornando a atmosfera fantasmagórica.


BERIT: Mais depressa, Nils.

NILS: Não sei se tenho coragem.

BERIT: Temos que ir!

NILS: Estou com medo, Berit.

BERIT (segura mão dele): Eu também, mas temos que achá-la, temos que achá-la... A bruxa dos livros!


Um raio corta o céu. Veem-se os rostos pálidos e aterrorizados de Berit e Nils. Depois vê-se a rua que dá na casa amarela, pela perspectiva das crianças. A música fica mais alta.


Corta.


2. CENA INTERNA NA CASA DA BRUXA DOS LIVROS. NA MESMA HORA. Vê-se a rua através da janela: perspectiva da bruxa dos livros. Dois vultos se aproximam da casa. A bruxa dos livros ri baixinho e apaga as luzes da sala. Depois fecha as cortinas.


Corta.


3. EXTERNA. EM FRENTE À CASA DA BRUXA DOS LIVROS. LOGO DEPOIS. Os dois jovens se esgueiram pelas paredes da casa. O vento uiva por entre as árvores. Chove copiosamente. Os dois estão encharcados. Acima deles, vê-se uma janela com cortinas fechadas. Dentro está escuro. Os dois cochicham:


NILS:: Tem certeza de que ela está dormindo?

BERIT: Claro, é uma e meia.

NILS:: Não podemos ir embora e tentar de novo amanhã?

BERIT: Por quê?

NILS:: Está um tempo horrível.

BERIT: Isso é uma piada?

NILS:: Não.

BERIT: Venha!


Eles chegam à porta. Berit segura a maçaneta. Ouve-se um rangido de dobradiças enferrujadas, a velha porta se abre.


Corta.


4. CENA INTERNA. NA CASA DA BRUXA DOS LIVROS. Berit e Nils andam pé ante pé por um corredor escuro. Chegam a uma outra porta e a abrem. A câmera acompanha os dois jovens até a sala. lá dentro está completamente escuro. Tateando no escuro, eles avançam. De repente acende-se a luz. Vemos rostos amedrontados e olhos que ainda não se acostumaram à luz. Então vemos, pela perspectiva das crianças, a bruxa dos livros de pé no meio da sala.


BRUXA DOS LIVROS (com voz sedosa): O que vocês estão querendo por aqui? Aonde pensam que vão?...

BERIT: Nós, nós...

Ela emudece no meio da frase. Eles ficam paralisados de medo, enquanto a bruxa se aproxima deles com passos lentos e pesados.

Era só isso, Berit. Tudo indica que se trata do começo de um vídeo sobre nós dois!

Mas por que o Smiley quer fazer um vídeo sobre a gente, e o que Astrid Lindgren tem a ver com isso?

Talvez o garçom tenha me visto pegar o envelope. Se o Smiley perguntar, o garçom poderá descrever bem o ladrãozinho magro com cabelos de palha e olhos azuis. E então... não, nem tenho coragem de pensar nisso. Socorro! S. O. S.! Perigo! O que eu faço? Lembranças carinhosas,

Nils, o ladrão


Querido Nils,

você precisa vir o mais rápido possível para Fjærland. Eu imploro, Nils. Você está correndo grande perigo. Além disso, eu preciso de você aqui. Vou logo ao assunto... eu tinha subido de bicicleta até Bøyadalen, pois estava com a estranha sensação de que precisava dar uma olhada de perto no túnel de Fjærland. A subida não me pareceu tão longa nem tão íngreme: eu estava me sentindo incrivelmente bem-disposta. Olhei para a geleira de Bøyabreen lá no alto, deixei a bicicleta na entrada do túnel e olhei para dentro da escuridão.

De repente, pensei ter ouvido algo lá dentro.

— Beeeriit — dizia uma voz.

Eu entrei. Estava com a sensação de que não tinha escolha. Eu sabia que era perigoso, mas ignorei a placa que proibia o acesso ao túnel para pedestres e ciclistas.

Dois automóveis passaram zunindo por mim, mas me comprimi contra a parede do túnel e acho que os motoristas não me viram. Eu estava com a minha capa de chuva, aquela preta.

Mais uma vez, pensei ter ouvido alguma coisa.

— Beeeerit....

No túnel, tudo soava oco e irreal.

Eu sentia que realmente não tinha escolha. Como se não tivesse mais poder sobre os meus atos. O ar dentro do túnel era pesado e frio, mas a minha vida dali em diante parecia depender de eu avançar mais e mais no interior do túnel.

Finalmente, avistei uma gigantesca porta corta-fogo do lado direito. Ela tinha um anel de ferro como puxador e estava trancada, é claro. “Droga”, eu pensei.

Eu tinha levado uma lanterna e, como naquele momento não passava nenhum carro no túnel, acendi a lanterna e foquei uma espécie de fechadura com código, um disco metálico com números, como num cofre ou coisa parecida.

E então aconteceu uma coisa inexplicável. De repente, parecia que eu conhecia o código! Sem pensar antes, girei o disco até os números 5-8-5-5-8-5 e, quando eu empurrei a argola gigantesca, a porta cedeu. Pela última vez eu acreditei ouvir a voz que me chamava:

— Beeriit... — agora a voz cavernosa vinha lá de dentro.

Atravessei a porta corta-fogo — que então bateu atrás de mim, trancando a fechadura. Estava escuro como o breu. Mas eu liguei a lanterna e vi que estava num corredor estreito. Iluminei à minha frente e fui andando. Logo eu estava diante de uma nova porta. Era de madeira, e também estava trancada.

“Agora eu estou presa dentro da montanha, embaixo da geleira”, eu disse a mim mesma. “E agora não posso mais ir em frente nem voltar atrás? Nem entrar nem sair?”

De repente, descobri uma latinha sobre uma saliência na rocha. Dentro dela tinha uma chave. Enfiei a chave na fechadura, girei, e a porta se abriu.

“Agora eu tenho que continuar”, pensei. Mas antes eu precisava memorizar seis números. Como eu sabia aqueles números? Não faço ideia, mas eu sabia. Acho que pensei que tinha me tornado vidente. Sim, vidente, Nils. Na hora eu já achei esquisito, mas agora me parece ainda mais...

Iluminei uma pequena sala onde havia centenas, talvez milhares de gavetinhas de madeira, do chão até o teto. Abri uma delas. Ela estava repleta de fichas de cartolina. Eu tirei uma e li: HJORTH, VIGDIS: Tilla ama Philip, Oslo, 1984.

Então me dei conta de que me encontrava diante de um imenso arquivo, e que a biblioteca à qual todas aquelas fichas se referiam devia ser gigantesca. Eu pelo menos nunca tinha visto um arquivo tão grande (se bem que eu também nunca estive numa biblioteca de universidade).

Como não podia deixar de ser, pensei em Bibbi Bokken e compreendi que tinha encontrado a tal biblioteca secreta, pois havia mais uma porta, e esta não estava trancada.

Fui até a porta e iluminei uma pequena placa na qual estava escrito:


NÃO É PARA TODO MUNDO

Você pertence aos poucos eleitos que têm acesso a este salão sagrado. Aqui você encontrará todos os livros que já foram escritos em toda a história da humanidade. Atualmente estamos enchendo as estantes com livros que ainda estão sendo escritos. TENHA CUIDADO!


Eu não sabia quem tinha posto todos aqueles livros ali, Nils, mas sabia que uma certa pessoa estava envolvida. Obviamente, um monte de gente devia ter trabalhado junto. Ela sozinha não conseguiria escavar na rocha nem uma única das salas nas quais estive.

Então me lembrei da construção do túnel de Fjærland. E pensei que durante aqueles anos todos, além do túnel, talvez tivessem construído secretamente uma biblioteca dentro da montanha. Uma biblioteca onde havia todos os livros do mundo. E agora... agora eu estava lá!

É chato ter que admitir, mas não pensei em você. Aquele era o maior segredo da minha vida, e naquele momento ele pertencia somente a mim.

Abri a porta e vi uma sala do tamanho de uma sala de aula. Havia uma lâmpada fraca pendurada no teto. Todas as paredes estavam cobertas de livros, e no chão havia algo escrito com letras vermelhas: EGITO.

Não me atrevi a pegar nenhum livro. Mas na lombada de muitos deles eu distingui uns desenhinhos. Pareciam desenhos de crianças representando coisas da natureza: pássaros, chifres de touros e figuras humanas. Esses sinais não se chamam hieróglifos?

Não havia outras portas. Mas nessa sala havia aberturas que davam para outras salas. Você deve se lembrar de quando eu estava na sua casa no ano passado e o meu pai levou a gente para visitar o Museu de História Natural. Ali também havia salões com essas aberturas. Eu entrei. Acho que não estava com medo, Nils. Pelo contrário, de repente me senti tão leve e tão livre como não me sentia mais desde a minha infância.

Na próxima sala também havia algo escrito no chão, acho que era MESOPOTÂMIA. Mas eu passei rápido. Não me lembro mais da sequência das salas. Em todas elas era fraca a iluminação das lâmpadas penduradas no teto, mas a minha lanterna era forte e, quanto mais escuro é o lugar, mais luz ela parece fazer. Só sei que ainda li: CHINA, ÍNDIA, GRÉCIA, ROMA...

Eu parei algumas vezes e iluminei as lombadas de alguns livros. Mas também não me atrevi a tocá-los, mesmo não havendo mais ninguém ali. Mas o mais estranho de tudo é o que vou contar agora:

Sempre que eu iluminava alguma lombada, via uma coisa que eu já conhecia. Quando eu entrei na sala de ISRAEL, vi um livrinho que se chamava Gênesis. E eu sabia que o primeiro livro de Moisés se chama assim, nós aprendemos isso na escola. Na sala da Grécia eu li o nome “Homero”, e dele eu também já tinha ouvido falar. Na sala de Roma, li “César”, e um outro livro se chamava Homo sapiens. Por acaso eu sei que isso significa homem. E assim por diante!

Você não pode imaginar que sensação estranha, Nils! Eu estava cercada por milhares, talvez milhões de livros. Mas toda vez que eu iluminava um livro, era um título ou um autor do qual eu já tinha ouvido falar. E eu nem conheço tantos livros ou escritores antigos assim...

Depois disso, comecei a andar cada vez mais depressa, de uma sala a outra, de corredor a corredor, de um saguão para outro. Acho que não consigo mais me lembrar de todos os livros que vi, mas todos os livros que eu vi eram conhecidos. MAS POR QUE EU SEMPRE ILUMINAVA LIVROS DOS QUAIS POR ACASO JÁ TINHA OUVIDO FALAR?

Vou dar apenas alguns exemplos, dos quais me lembro bem. Na sala da ALEMANHA, eu iluminei “Grimm” e “Goethe”. Na sala inglesa, foram “Shakespeare”, “C. S. Lewis: Nárnia” e “A. A. Milne”. Na sala sueca encontrei Astrid Lindgren. Mas nenhum desses nomes era novo para mim. Eu tinha a sensação de saber tudo o que toda a humanidade sabia.

E agora uma coisa mais estranha ainda. Estou me dando conta de que li “Astrid Lindgren”, porque sei o nome e o sobrenome dela. Mas eu li apenas “A. A. Milne”. É o autor dos livros sobre o ursinho Pooh, mas não tenho a menor ideia do que essas iniciais significam. Por isso é que no livro só tinha as iniciais.

Não fiquei com medo, Nils. Eu estava simplesmente alegre, aliviada. Nós sabemos apenas o que sabemos. Seria terrível se de repente soubéssemos mais. Pois então de onde viria esse conhecimento?

Fiquei andando de uma sala para outra. Mas eu não ia sempre na mesma direção, cada sala tinha diversas saídas, como num imenso labirinto. Talvez houvesse até mesmo diversos andares, pois eu tive que subir e descer algumas escadas.

Finalmente cheguei à sala onde estava escrito NORUEGA. Só então me atrevi a tirar um livro da estante, pois estava fazendo uma espécie de jogo comigo mesma. Tentei pegar alguns livros sem ler a lombada antes. Eu não queria pegar um livro que já conhecesse. Só nessa sala havia milhares e milhares de livros.

Peguei um livro e abri numa página qualquer. Eu li:

 

A FORMIGA

 

Pequena?

Eu?

Nada disso.

Sou de bom tamanho.

Cuido de mim mesma,

ando para todos os lados,

até de cima para baixo.

Por acaso você

É maior do que você mesmo?


Coloquei depressa o livro de volta na estante. Foi como se eu tivesse me queimado! É que eu já conhecia esse poema. Foi escrito por Inger Hagerup, e eu o declamei na festa de fim de ano da escola no ano passado!!!! É o único poema que eu conheço de cor (a não ser os de Jan Erik Vold, é claro).

Fiz mais uma tentativa e abri um livro no começo. Eu li: “ÅSE: Peer, você está mentindo”; “PEER: Não, não estou”; “ÅSE: Então jure que é verdade”. Também devolvi esse livro bem depressa, pois era a peça de Henrik Ibsen que estávamos lendo na escola.

Continuei a correr e pensei ouvir mais uma vez a voz chamar:

— Beeriit...

E foi então que aconteceu: eu corri para uma sala que era quase tão grande quanto um campo de futebol. Mas ali quase não tinha livros. As paredes estavam cobertas com estantes, mas havia apenas dois livros. No chão estava escrito: LIVROS A SEREM PUBLICADOS.

Corri até os dois livros e iluminei suas lombadas. Num deles estava escrito: Gunnar Staalesen: Esqueletos não enterram ossos. No outro livro, Nils — agora você tem que se segurar — no outro livro estava escrito: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

Por pouco não soltei um grito, mas consegui me conter. Fechei o livro e o coloquei de volta na estante.

Então ouvi passos numa sala distante. Saí correndo para fugir deles mas, embora eu corresse desesperadamente, a cada vez que eu parava para escutar eles soavam cada vez mais próximos.

Logo eu estava de novo na sala dos livros a serem publicados, e então ouvi passos na sala ao lado.

Então ela chegou, Nils. Bibbi Bokken entrou na sala e deu seu sorriso de sabichona.

— Ah, é você — ela me disse com sua voz melosa de marzipã, como se achasse absolutamente normal que eu estivesse ali.

Ela se aproximou de mim com passos longos e enérgicos, ergueu uma mão e disse:

— Você me enganou de novo, Berit. E eu não estou gostando nada disso!

Então acordei, Nils. Foi tudo um sonho. Eu me sentei na cama e comecei a chorar. E logo minha mãe estava ao meu lado. Você deve saber como é. Eu a abracei e comecei a chorar.

— Com o que você sonhou? — ela perguntou.

Só consegui responder depois de um tempo. Finalmente balbuciei:

— A bruxa dos livros, mãe. Eu sonhei com a bruxa má dos livros...

Então ela me acariciou e me consolou. Teve até um chá quente de amoras, embora já fosse de madrugada. Mas achei que tinha merecido tudo aquilo. Afinal de contas, mesmo que fosse em sonho eu tinha mostrado coragem e tinha tido um dia perigoso.

No dia seguinte, depois da escola, senti necessidade de ir realmente a Bøyadalen. Deixei a bicicleta na entrada do túnel, e agora estou aqui sentada com o livro de cartas na mão.

Estou pensando no que pode haver dentro da montanha, pois aquele sonho não me sai da cabeça. Sinto como se tivesse visitado uma outra realidade. Minha alma parece ter estado num tipo de mundo da fantasia que fica em algum lugar paralelo ao mundo em que o meu corpo mora.

Estou tendo um monte de pensamentos estranhos, mas agora acho que você precisa receber o livro o mais depressa possível, por isso vou indo embora. (Vou mandar registrado embora seja muito mais caro.) E além disso tenho uma quantidade imensa de lição para amanhã.

Talvez a sua carta tenha me levado à montanha de Jostedalsbreen. Mas agora é sério, Nils. VOCÊ PRECISA VIR PARA CÁ O MAIS DEPRESSA POSSÍVEL!

A partir de segunda-feira, temos uma semana de férias de outono. E vocês? Simplesmente cabule na sexta-feira.

Sua para sempre jurada Berit, a destemida de Bøyadalen

 

PS. Não consigo imaginar que Astrid Lindgren esteja envolvida em negócios escusos. Talvez o Smiley queira aliciá-la, já que ela está tão ligada às crianças. Mas ela recusou: “Receio que essa não seja a minha especialidade”.


PPS. Talvez Bibbi Bokken tenha escrito o roteiro do filme. De qualquer forma, quem escreveu esse roteiro conhece Fjærland.


Querida Berit,

quando você ler esta carta, já estarei em Fjærland. Mesmo assim vou escrever, pois tenho a sensação de pensar melhor quando escrevo do que quando falo. Sua última carta foi simplesmente fantástica. Exatamente como um conto de fadas. Você deveria mandá-la para uma revista. Se a minha mãe ganhou uma viagem para Roma com a tal “Cidade do meu primeiro amor”, você deveria ganhar pelo menos uma viagem ao redor do mundo. Você escreveu de um jeito que me fez pensar que era uma maravilha real, mas depois era um sonho maravilhoso. Mesmo assim, Berit. Eu acho que era verdade mesmo assim. Pois tudo o que você sonhou veio da realidade: os escritores, Bibbi Bokken, o túnel. Você já sabia de tudo, mas antes de dormir não conseguia descobrir nenhuma relação entre essas coisas. Depois tudo se juntou como as peças de um quebra-cabeça. E você teve a biblioteca mágica de Bibbi Bokken na sua frente. Mas o livro mais importante dela você não pôde ler nem em sonhos, pois ainda não completamos o quebra-cabeça que abre esse livro.

Mas voltando à realidade, Berit. Agora estou sentado no cais de Flåm, escrevendo enquanto espero a barca. A viagem de trem foi inacreditável.

Eu entrei no trem, vesti meu pijama e me deitei para dormir.

Minha mãe me comprou um pijama novo em Roma. Vermelho, com botões e bolinhas brancas. Muito chique, mas isso já é outra história.

Pois bem. Eu estava podre de cansado e precisava urgentemente de uma boa noite de sono.

Mas você acha que eu consegui dormir? Claro que não. Nils Bøyum Torgersen nunca dorme! Principalmente se na cama em cima dele tem um gordão roncando como uma serra elétrica.

Fiquei rolando de um lado para outro por um bom tempo. Então desisti, me vesti de novo e fui para o corredor. Eu tinha levado um livro, Os irmãos Coração de Leão, de Astrid Lindgren. Deve ter sido a criança dentro de mim que escolheu esse livro. Além disso, eu me sinto como uma espécie de irmão. Bem, não tenho exatamente um irmão maior, como Jonas Coração de Leão, mas pelo menos tenho uma grande prima, Berit (hi, hi).

Comecei a andar pelo corredor, procurando um lugar para sentar em alguma cabine. No vagão seguinte tinha uma cabine de fumantes. Olhei pela porta de vidro e pulei para trás com tanta força que quase quebrei a janela do corredor.

Não foram as duas mulheres jogando cartas que me assustaram. Nem o velho fumando cachimbo, que não tinha tirado o chapéu.

Não, o que quase me lançou pelos ares foi o careca baixinho fumando seu cigarro perto da janela. Era o SMILEY.

Agora um bom conselho seria bem-vindo, além de urgentemente necessário. O que ele estava fazendo naquele trem? Podia ser uma coincidência? Não, com certeza não. Eu passara por tantas “coincidências” nos últimos tempos que não sabia mais reconhecer uma verdadeira. E aquela coincidência era tão falsa quanto a amabilidade de Reinert Bruun.

O Smiley estava viajando naquele trem porque eu também estava. Ele tinha uma missão. Uma missão de espionagem. Só que agora os papéis estavam invertidos. Agora Nils B. T. estava no controle. Olhei cuidadosamente para dentro da cabine mais uma vez. O Smiley tirou seu maço de cigarros do bolso. O maço estava vazio. Ele se levantou.

Com toda a minha presença de espírito, eu me escondi no banheiro. Deixei a porta encostada. O Smiley veio. Por um momento terrivelmente sinistro e macabro, pensei que ele precisava ir ao banheiro. Mas felizmente ele seguiu em frente. Respirei aliviado em silêncio, abri a porta com cuidado e fui andando furtivamente atrás dele. Foi muito perigoso, mas eu arrisquei, e ele não se virou.

Ele entrou no vagão-dormitório, cabine dos leitos nos 61, 62, 63. Eu parei no fim do corredor e fiquei esperando. Como uma pantera à espreita. Será que a minha teoria estava certa? Eu segurei firme o livro.

Não demorou muito, ele saiu. Minhas suspeitas estavam corretas. Ele tinha ido buscar mais cigarros.

Vipt! Vapt! Logo a seguir, Nils Bøyum Torgersen estava de novo no banheiro. Pálido, mas recomposto. Ouvi os passos repugnantes do Smiley se aproximarem e se distanciarem.

Esperei cinco segundos. Talvez dez. Então eu saí e fui andando pé ante pé pelo corredor até a cabine dos nos 61, 62 e 63.

Eu já tinha um plano. Se tivesse alguém lá dentro eu diria que tinha errado de porta, e caso encerrado. Mas a cabine estava vazia.

Olhei rapidamente ao redor. A maleta dele estava no chão. Reconheci imediatamente a fechadura com combinação. Quanto a isso, não havia o que fazer. A cama inferior estava desarrumada. Então eu não era o único que não conseguira dormir naquela noite. Nos lençóis desarrumados, havia um bilhete. Coloquei o livro em cima do travesseiro, peguei o bilhete e li:


Marcus! Tire seus dedos de Fjærland. Tenha um pouco de paciência e deixe as coisas por minha conta. Bibbi.


De repente, percebi que as minhas (nossas) teorias estavam certas. Bibbi Bokken e o Smiley (que pelo visto se chama Marcus) trabalham juntos e têm algum plano para nós.

Eles sabem que em breve estaremos os dois em Fjærland, mas ele tem menos paciência do que ela. Ele pretende fazer alguma coisa conosco, mas ela quer resolver a coisa sozinha.

Tenho a sensação de que estamos nos aproximando do último capítulo deste mistério, e não sei muito bem se vamos achar esse capítulo muito divertido.

Depois de ler a carta, voltei para minha cabine. Deitei na cama e, como por milagre, adormeci.

Quando fui acordado pelo cobrador e comecei a arrumar a minha mala, fiz uma descoberta que terminou definitivamente de me acordar. Eu tinha esquecido o livro de Astrid Lindgren na cabine do Smiley.

Pegá-lo de volta era totalmente impossível. Ele teria que ficar onde estava. Um pouco de boa literatura não ia fazer mal ao Smiley.

Agora estou sentado aqui em Flåm e a paisagem está coberta por uma névoa.

Embora eu esteja com medo, estou feliz com a ideia de que logo estaremos juntos. No momento, estou até bem tranquilo. Aqui é tão silencioso. Como se nada perigoso pudesse acontecer. Mas agora estou ouvindo passos. Parece que tem alguém se aproximando. É o Smiley. Ele...

 

OS BOBÕES CAÍRAM COMO DOIS PATINHOS. ESTÁ CHEGANDO O MOMENTO DA VERDADE! COMPOR EM SABON 12/14 PTS. (NILS) E BERKELEY OLD STYLE 12/14 PTS. (BERIT). MBH


PARTE 2
A BIBLIOTECA


Caímos como dois patinhos e devíamos ter previsto que isso ia acontecer. Mas até a galinha cega às vezes vai parar na gaiola.

Ele tinha escrito no livro de cartas que seríamos compostos em 12/14 pts. Passaram-se mais alguns dias e agora estamos aqui.

Estou olhando para Nils, que está sentado na minha frente do outro lado desta mesa enorme. Ele não para de se mexer na cadeira e já comeu quase todo o lápis. Eu comecei a roer as unhas.

O telefone toca sem parar na outra sala, e ouvimos passos apressados lá fora no corredor. Apenas aqui dentro está tudo em silêncio.

De vez em quando, um rosto sorridente vem nos perguntar se está tudo bem. Há meia hora, a mulher nos trouxe alguns pães. É melhor pôr mãos à obra. Nils vai começar.

 

Eu estava sentado num banco na estação de Flåm, quando de repente ouvi passos. Olhei para a frente e dei de cara com o rosto transtornado do Smiley. Não sei se estava realmente transtornado, mas me pareceu que sim. Ele estava plantado na minha frente como uma sombra tenebrosa, e disse com voz baixa e macia:

— Tenho algo que lhe pertence, meu jovem, e o contrário também se aplica.

O roteiro do filme, eu pensei. Ele quer o roteiro de volta.

— Sem problemas — sussurrei. — Podemos trocar.

Ele sorriu e avançou um passo.

E eu desatei a correr, deixando para trás Smiley, pôr do sol, livro de cartas, tudo. A barca tinha acabado de atracar. Embarquei correndo, desviando dos automóveis que começavam a desembarcar, e me tranquei num banheiro. Eu sabia que o Smiley estava atrás de mim, e por isso fiquei ali até a hora de ter que passar para a outra barca e para outro banheiro. Felizmente deu tudo certo.

Ao chegar a Fjærland, só saí quando tive certeza de que não havia nenhum passageiro a bordo além de mim.

O porto estava vazio. Berit já devia ter desistido de esperar. Subi lentamente até o hotel.

Como a casa da minha tia é muito pequena, ela tinha arranjado um quarto no hotel para mim. O que viria bem a calhar. Para a Agência de Detetives Bøyum & Bøyum, isso significava um autêntico escritório. Embora naquele momento eu não me sentisse exatamente um detetive, mas um garotinho de doze anos: burro, envergonhado e totalmente apavorado. Burro, porque eu tinha roubado o roteiro. Envergonhado, porque tinha perdido o livro de cartas — não, pior ainda, eu o deixara cair nas mãos sujas do inimigo. Apavorado, porque era evidente que ele estava em Fjærland e a qualquer momento poderia vir para cima de mim com dentes e unhas, ou seja lá como se diz.

Quando finalmente cheguei à recepção do hotel, meu queixo já estava na altura dos joelhos. Balbuciei o meu nome e recebi uma chave. Ia começar a me arrastar escada acima quando alguma coisa me espetou pelas costas. Ouvi uma voz irreconhecível, que ordenou:

— Mãos ao alto!

Sei que a minha fantasia às vezes segue seus próprios rumos, e então sou capaz de imaginar coisas que estão a centenas de quilômetros de distância da realidade. Mas dessa vez eu tinha bons motivos para reagir daquela maneira. Eu já estava com um medo terrível, só esperava o momento em que o Smiley sairia de trás de um vaso ou de uma porta para se vingar do roubo do roteiro. Portanto, agi instintivamente, como o Fantasma ou o Batman quando são atacados por trás. Eu me virei rapidamente, abaixei a cabeça e me atirei contra a barriga da pessoa que estava atrás de mim.

— Auuuuuu! Aaaaiiiiii! Você está louco? Oooooooh!

Não era o Smiley. Era Berit. Ela apertou a barriga com as mãos e olhou para mim, com um olhar que era metade raiva e metade surpresa.

E eu fiquei ali no chão, deitado de barriga para baixo, olhando para ela como um idiota.

— Desculpa. Não sabia que era você.

— Lógico que não! Mas agora você sai enfiando a cabeça na barriga de todo mundo que encontra no caminho?

— Você me assustou!

— Certo, nunca mais vou fazer isso.

De repente, ela sorriu. Ela havia passado batom e rímel, e estava realmente bonita para uma prima. Por alguma razão, eu me senti como se tivesse dez anos.

— Você está com o livro de cartas?

Engoli a saliva, e notei que fiquei vermelho.

— É justamente sobre isso... — balbuciei, mas Berit me interrompeu.

— Ouça, Nils, tem uma pessoa querendo falar com a gente no salão.

Salvo pelo gongo, pensei, e acompanhei Berit até a sala da lareira. Ela foi falando o tempo inteiro.

— Ele diz que tem um contrato para nós, que conhece você e...

Agarrei o braço dela e apertei com força. O homem estava sentado no salão, olhando pela janela. Embora estivesse de costas para nós, era como se eu pudesse ver aquele sorriso asqueroso através de sua cabeça lisa e brilhante. Berit gemeu.

— Ai, o que...

Tapei sua boca com a mão e arrastei-a até a recepção. Modéstia à parte, foi uma atuação bastante profissional para um detetive jovem como eu.

— O Smiley — sussurrei. — É o Smiley.

Berit olhava para mim com os olhos arregalados.

— Se eu te largar, você vai gritar? — perguntei. Uma pergunta que milhões de detetives já fizeram antes de mim. Ela sacudiu a cabeça.

— Para a sua casa ou para o meu quarto? — perguntei bem baixinho.

— Para o quarto, seu cretino — ela sussurrou e subiu a escada correndo. Eu corri atrás dela. Meia hora depois, eu tinha contado toda a história. Eu não era tão durão quanto queria parecer, e agora estava sentado numa cadeira azul, tremendo e sentindo que as lágrimas iam começar a escorrer.

— O que vamos fazer? — perguntei.

 

“O que vamos fazer?” Para mim, foi muito fácil responder a essa pergunta.

Assim que chegara a Fjærland, Nils tinha me atacado de cabeça na barriga e eu quase parara de respirar. Logo depois, ele tapou minha boca com a mão e quase me estrangulou.

O pior de tudo, é claro, foi ele ter perdido o livro de cartas. Ele o deixou num banco em Flåm, e com isso praticamente o entregou de mão beijada para o Smiley. Eu estava a ponto de explodir de tanta raiva. Agora ele que desse um jeito de pegar o livro de volta.

O Smiley também estava hospedado no hotel, e a suíte dele ficava no mesmo corredor que o quartinho de Nils. Eu já tinha falado com ele, mas não me passara pela cabeça, nem por um segundo, que aquele homem pudesse ser o Smiley. É verdade que ele tinha um sorriso presunçoso grudado no rosto o tempo inteiro, mas tem muita gente que é assim.

Já antes de ele chegar, eu tinha ouvido falar que fazia questão de ser acomodado na única suíte do hotel — que possui um terraço enorme e uma vista maravilhosa para o fiorde e a geleira. Será que se tratava de um rico executivo?

A primeira vez que o vi foi no salão de bilhar, que funciona ao mesmo tempo como biblioteca do hotel. Eu estava lá, totalmente despreocupada, brincando com as bolas de bilhar, enquanto esperava Nils. Até que não sou ruim em geometria e, de certa forma, o bilhar é a mesma coisa. No fundo, é uma questão de calcular ângulos.

E então ele apareceu, o novo hóspede do hotel — sobre o qual já circulavam boatos, pois queria ficar no quarto mais caro do hotel a qualquer preço. Só podia ser ele, pois naquela tarde estavam sendo esperados apenas dois novos hóspedes. (À noite, ainda chegariam uns professores.) O outro era um italiano, que tinha chegado com a barca anterior e não entendia uma só palavra em outra língua que não fosse a sua. Isso já causara alguns problemas, pois italiano é praticamente a única língua que ninguém domina muito bem no Hotel Mundal. Mas logo todo mundo percebeu que se tratava de um excêntrico. Por exemplo, ele queria visitar imediatamente o Museu das Geleiras e por isso dispensou o jantar.

O homem com o sorriso presunçoso ficou tirando livros das estantes, e lembro que nessa hora eu pensei que acharia melhor se ele me convidasse para uma partida de bilhar.

Ele colocou um luxuoso volume sobre a geleira de Jostedalsbreen de volta na estante, virou-se para mim e disse:

— Bela biblioteca...

Em algum lugar deve ter tocado um sininho na minha cabeça, mas um daqueles que ficam lá longe, tão longe que só ouvi quando ele acrescentou:

— O hotel tem muitos livros interessantes. Pena que estejam todos misturados, sem nenhum sistema de organização.

Fiquei tão perplexa que disse:

— O senhor deveria dar uma olhada na biblioteca municipal. Lá eles usam Dewey.

Ele sorria o tempo todo, e então ergueu a sobrancelha. Fiquei pensando um tempo e depois me arrisquei a dizer:

— Se o senhor se interessa por montanhas, vales e coisas assim, encontrará esse assunto entre os números 550 e 559.

A situação toda me lembrou aqueles programas de perguntas e respostas que passam na televisão. Só alguns dias depois é que me dei conta de que ele tinha começado aquela conversa para arrancar o meu nome. Ele disse:

— Estou impressionado com você, minha filha. Diga-me... você já ouviu falar que aqui existe uma outra biblioteca?

Não gostei de ele me chamar de “minha filha”. Também não gostei de ele mencionar “outra” biblioteca. Desviei o olhar para a mesa de bilhar e fiz a bola preta de mármore rolar pelo feltro. Ela bateu nas duas brancas.

É claro que pensei em Bibbi Bokken. Mas como poderia imaginar que era o Smiley quem estava ali na minha frente? Eu não fazia a menor ideia de que ele viria a Fjærland. Além disso, eu tinha imaginado uma pessoa ainda mais asquerosa.

Mas percebi na hora que estava falando com alguém que devia ter ouvido alguma coisa sobre Bibbi Bokken.

— Temos uma pequena biblioteca na escola — eu disse.

Algo passou como um raio pelo rosto dele. Ou ele estava desapontado ou, ao contrário, alguma coisa havia despertado o seu interesse. Seu olhos pareciam dizer: “Não se faça de besta!”. Mas sua boca disse:

— Ah, mas essa não conta!

Então ficamos um tempo em silêncio. Achei esse silêncio tão terrível que disse:

— Só que ela está fechada agora. Estamos tendo uma semana de férias de outono.

Ele grunhiu:

— Vou ficar aqui só até amanhã. Se você puder me ajudar um pouco... será muito bem recompensada...

Tive vontade de sair correndo dali, pois além de tudo eu também não estava gostando que um estranho me fizesse propostas daquele tipo. O fato de que talvez ele fosse um rico executivo não me importava nem um pouco. Mas eu tinha uma ideia do que se tratava. Eu pensei nos livros de Bibbi Bokken...

— Tenho um contrato — ele disse. — Um para você e um para Nils. E não precisamos incluir mais ninguém além de nós três... Você está me entendendo?

Era isso que deveria estar acontecendo, só que eu não estava entendendo patavina. De onde ele conhecia Nils? E que contrato era aquele? Para quê?

Fui salva por Billie Holiday, que entrou na sala e disse que queria falar comigo no escritório. Quando estávamos saindo, o rico executivo ainda me disse:

— Vamos continuar a nos falar.

Quando passávamos pelo saguão, Billie me perguntou se eu conhecia aquele homem. Eu neguei com a cabeça. Então ela me perguntou se eu gostaria de ajudar a servir as mesas no restaurante.

Embora Nils estivesse para chegar, resolvi aceitar. Era a segunda vez naquela tarde que me ofereciam uma oportunidade de ganhar dinheiro. Tive a sensação de ter escolhido a melhor oferta.

Então Nils chegou, no maior pique e com toda a fúria. Depois que ele me contou o que tinha acontecido em Flåm, eu sabia exatamente o que responder quando ele me perguntou o que iríamos fazer.

— Você perdeu o livro — eu disse. — Agora faça o favor de pegá-lo de volta.

E ainda acrescentei:

— Não posso suportar a ideia de que o Smiley vai ler tudo que escrevemos.

Mas é claro que ele já tinha lido tudo. Por isso ele havia falado de uma “outra” biblioteca. Ele sabia de tudo pelo nosso livro de cartas.

Verificamos na recepção que ele havia se registrado como Marcus Buur Hansen e que estava hospedado no quarto 115. Combinamos então que Nils entraria escondido no quarto durante o jantar. Eu iria arranjar uma chave com uma camareira.

Como eu mesma serviria o jantar, pelo menos poderia tentar dar um jeito para que o Smiley não saísse da mesa de repente...

 

Minha querida prima tinha razão, é claro. Eu tinha o maldito dever moral de recuperar o livro. Subi as escadas como um ladrão e me esgueirei pelas paredes do corredor até o quarto do Smiley. A chave que Berit tinha arranjado estava na minha mão, ensopada de suor. Embora eu soubesse que o sr. Smiley Marcus Buur Hansen estava lá embaixo se empanturrando de cordeiro assado com mirtilos, minhas pernas pareciam de gelatina e minha mão tremia como vara verde a cada vez que eu tentava enfiar a chave no buraco da fechadura. Na terceira vez, deu certo. Abri a porta lentamente. Na verdade nem acho que ela tenha rangido tão alto, mas na hora me pareceu que estava acontecendo uma briga de gatos na soleira da porta. Deixei a porta encostada e entrei.

O quarto 115 é o quarto mais bonito do hotel, e Berit tinha me contado sobre todas as celebridades que já haviam passado por ali. Mas se fosse uma cela de prisão ou uma cabana na floresta, para mim teria dado na mesma. Olhei ao meu redor e... a sorte sorriu para mim.... Lá estava ele! Em cima do criado-mudo do Smiley! Dei um suspiro de alívio. Que soou como um estrondo. Cerrei os lábios e peguei o livro de cartas. Estava aberto na última página, e eu li o que estava escrito com a minha letra:

“Aqui é tão silencioso. Como se nada perigoso pudesse acontecer. Mas agora estou ouvindo passos. Parece que tem alguém se aproximando. É o Smiley. Ele...”.

Parecia estar tudo em ordem. Então virei a página e senti o sangue escoar da minha cabeça. No alto da página havia algo escrito, com uma letra que não era a minha nem a de Berit.


Os bobões caíram como dois patinhos. Está chegando o momento da verdade! Compor em Sabon 12/14 pts. (Nils) e Berkeley Old Style 12/14 pts. (Berit). MBH


Tive que me sentar na cama para recuperar o fôlego, meu coração parecia que ia pular para fora. Tentei decifrar o que diziam aqueles garranchos. Mas não consegui. Que momento da verdade era esse? Onde deveríamos ser compostos? Quem ou o que eram Sabon e Berkeley Old Style? Eu não estava entendendo mais nada, mas sabia que estávamos correndo perigo. A antiga teoria das bruxas passou como um raio pela minha cabeça. Se o Smiley e Bibbi Bokken realmente...

Tudo girava na minha frente. Eu me vi sentado diante de um terrível Sabon de dentes amarelos e olhos faiscantes.

— Pois bem, Nils — grunhiu Sabon. — Chegou o momento da verdade!

Eu queria gritar, e talvez tivesse feito isso se a realidade não tivesse me arrancado daquelas tenebrosas fantasias. Mas a realidade infelizmente não era brincadeira. Ela consistia de passos apressados lá fora, no corredor. Cada vez mais próximos.

Confesso que não tenho a menor ideia de como fui parar lá, mas no mesmo instante eu estava no grande terraço em frente ao quarto 115, ouvindo o Smiley falar sozinho. A porta estava aberta, mas pelo menos eu tinha fechado a cortina.

— Estranho — ele murmurou. — Tenho certeza de que tranquei a porta quando...

De repente ficou tudo em silêncio, e em seguida o Smiley berrou uma coisa que prefiro não ver impressa. Mas posso dizer que ele estava muito nervoso. Só então me dei conta de que eu estava com o livro de cartas na mão. Eu levara o livro sem perceber. Mas que idiota eu era! Um detetive amador a quem não se pode confiar nem mesmo uma lupa! É claro que eu deveria ter deixado o livro onde estava. O Smiley voltara certamente porque havia esquecido alguma coisa. Se eu não tivesse pegado o livro, ele teria descido e o resto teria sido sopa. Mas agora não. Agora ele iria começar a procurar, mais cedo ou mais tarde iria entrar no terraço e então...

Olhei para baixo, já pensando em pular, quando ouvi a voz do Smiley. Ele estava falando ao telefone, e o que ele disse me deixou de orelhas em pé.

— Bibbi. Aqui é Marcus. Agora basta. (PAUSA) Sim, basta, acho que já é mais do que suficiente. Não dá pra fazer uma limonada só com dois limões. (PAUSA) Não tente fazer isso, Bibbi. Não posso ficar esperando eternamente. (PAUSA) Então terei que tomar a coisa nas minhas próprias mãos.

Ele desligou e saiu do quarto. Eu suspirei novamente. Não, eu gemi, e dessa vez não foi de alívio, mas de medo. Pelo jeito, o Smiley tinha pensado que Bibbi Bokken estava com o nosso livro de cartas. E pelo jeito era por isso que estava furioso. Mas por quê? Que interesse os dois podiam ter nas nossas cartas particulares? Ele ficou tão perturbado como se a vida dele estivesse em jogo. E agora ele queria tomar a coisa em suas próprias mãos.

Mas que coisa? Berit e eu éramos essa coisa? E como ele imaginava nos pegar “em suas próprias mãos”? Com luvas de seda é que não era. Disso eu tinha certeza.

Algo terrível estava para acontecer, e eu não tinha dúvidas de que Marcus Buur Hansen estava a caminho da casa de Bibbi Bokken para tomar a coisa em suas patas repugnantes.

De repente, notei que estava gelado como um pinguim. Ou, em outras palavras: eu estava furioso. O que é que eles estavam pensando? Que espécie de jogo era aquele que estavam jogando com Berit e comigo? Não tínhamos feito nada para eles! Era o nosso livro de cartas. Eu queria pegá-lo de volta. Já estava simplesmente farto de pistas misteriosas, bibliotecas secretas e ladrões de livros carecas e sorridentes. Eu queria ter de volta o meu livro de cartas e aproveitar as minhas férias de outono!

Voltei para o quarto 115, desviei de uma cadeira onde o casaco do Smiley estava pendurado e saí em disparada. Corri pelo corredor e desci a escada em caracol que levava até a cozinha. Entrei na sala de refeições e fui até Berit, que naquele momento estava servindo um pudim de passas para um casal de americanos. Joguei o livro de cartas em cima da mesa com tanta força que a água transbordou para fora da jarra.

— Agora basta — exclamei. — Chegou o momento da verdade!

— Young man, I must say... — começou o americano, mas eu não estava nem aí para ele. Nem sequer me dignei a lhe dirigir o olhar, se soar melhor assim.

— Aqui está o livro de cartas — eu disse.

— !!!!!????????

Berit estava com cara de cinco pontos de exclamação e oito de interrogação.

Eu agarrei a mão dela.

— Agora vamos procurar Bibbi Bokken — eu disse, arrastando-a para fora da sala de refeições antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

Ainda ouvi a voz do americano:

— Can anybody tell me what’s happening here?

Contei a Berit toda a história, o telefonema, as ameaças e tudo o mais. Ela me ouvi sem dizer uma palavra. Quando terminei, ela estava séria como nunca.

— Sim — disse ela. — Chegou o momento da verdade.

 

Só que, quando eu disse isso, estava pensando também em outras coisas. Algumas horas antes, de filha da cozinheira eu tinha sido promovida a garçonete. Não só era o meu primeiro trabalho remunerado como também a primeira vez que eu serviria uma refeição completa. E enquanto servia essa refeição, compreendi que também seria a última, pelo menos no Hotel Mundal.

No começo, tudo correu muito bem. Pelo menos, não houve nenhum incidente do tipo “sopa no colo” ou “cordeiro assado no cabelo”. O único problema era que eu também deveria servir o Smiley. Resolvi agir como se nunca o tivesse visto antes.

Quando ele terminou a sopa de couve-flor e eu ia justamente levar uma garrafa de água mineral para a sua mesa, de repente ele ficou duro como uma estátua. Parecia que tinha engolido uma moeda de cinco coroas. Isso me lembrou da nossa viagem para Tenerife, quando minha mãe de repente se deu conta de que tinha esquecido um biquíni pendurado no aquecedor. O problema foi que, quando ela se lembrou, estávamos a mais de dez mil metros de altitude, sobrevoando Gibraltar.

— Temos que voltar — ela exclamou. Minha mãe nunca esteve tão perto de entrar no ramo de sequestro de aviões.

Agora o Smiley estava com aquela mesma cara, mas isso não durou muito. Ele logo se levantou e saiu apressado do restaurante.

Eu pensei rápido: claro, ele estava indo para o quarto dele, mas se ele tivesse esquecido um biquíni no aquecedor, Nils agora estava lá em cima e faria alguma coisa se sentisse cheiro de queimado.

Corri atrás do Smiley e o alcancei quando estava saindo do restaurante.

— O senhor... ainda não comeu o seu assado — eu disse, segurando-o pela manga do casaco. — O senhor achou que ele ficou muito passado?

Eu disse isso tão alto que a metade do restaurante deve ter ouvido. Mas o Smiley simplesmente se desvencilhou de mim e continuou a correr.

Corri para a sala de música, pois sabia que ela ficava bem embaixo da suíte do Smiley. Peguei uns CDs com os Romanzen de Grieg e atirei-os contra o teto. Era o mínimo que eu podia fazer por Nils. E não havia mais nada a fazer.

Eu me recompus e voltei para o restaurante. Todos os hóspedes olharam para mim com olhos arregalados, e Billie Holiday estava atrás do bufê. Ela podia ter me matado com o olhar.

A coisa ficou ainda pior quando, depois de alguns minutos, o Smiley voltou. Ele estava fervendo de raiva. Seu rosto lembrava um tomate assado, pois não só estava vermelho-vivo como também fumegava.

— Berit — ele disse, como se eu fosse filha dele ou coisa ainda pior. — Meu jantar!

Os outros hóspedes estavam ocupados com o pudim de passas, e mais uma vez ergueram os olhos para ver o que estava acontecendo durante o que deveria ser uma refeição tranquila no hotel mais aconchegante do mundo. Fui buscar a travessa com o cordeiro assado e a coloquei na mesa dele. Ele jogou algumas fatias no prato e as engoliu em mais ou menos um minuto. Então saiu apressado novamente. Sem comer o pudim de passas e sem beber o vinho tinto que Billie lhe trouxera (pois tenho menos de dezoito anos e não posso servir bebidas alcoólicas).

Eu não tinha muita certeza se ele já havia matado Nils, mas estava firmemente convencida de que o trancafiara lá em cima. Por isso, fiquei pasma quando vi Nils sair da cozinha do hotel e entrar correndo no restaurante. Ele parecia um tigre domesticado que acabara de decidir voltar a ser selvagem.

O engenheiro petrolífero de Seattle era um sujeito que com certeza encararia com muita tranquilidade de espírito uma erupção descontrolada de petróleo. Mas o homem ficou bastante perturbado quando Nils jogou o livro de cartas em cima da mesa, fazendo respingar água da geleira no peito da sra. Engenheira.

— Young man — ele disse. — I must say you are a little out of control.

Quando eu disse “chegou o momento da verdade”, não pensei apenas em Bibbi Bokken. Também pensei no meu próprio futuro aqui em Fjærland. E na minha mãe, que estava o tempo todo na cozinha trabalhando.

— Can anybody tell me what’s happening here?

 

Lá fora estava tão claro ou tão escuro como costuma estar uns quinze minutos antes do cair da noite. Quando chegamos à igreja, ainda por cima começou a chover.

— Capa de chuva? — perguntei.

Mas Nils apenas sacudiu a cabeça.

— É agora ou nunca — ele disse. — Pois agora Torgersen está furioso e temos que tirar proveito disso.

Logo depois ouvimos ao longe o estrondo de um trovão. Soou como um eco da fúria de Nils. Lembro que gostei daquela demonstração de temperamento.

— O que aconteceu afinal? — perguntei.

— Nada de especial. Acho que ele quer matar Bibbi Bokken.

Continuamos a andar em direção a Mundalsdalen.

— Só que eu não quero servir de isca para uma mulher bibliófila — Nils prosseguiu — nem para um ladrão de livros sorridente que quer comprar a ajuda da minha prima.

Concordei com a cabeça, mas não creio que Nils tenha visto. Então eu disse:

— De qualquer forma, viemos parar bem no meio do fogo cruzado entre dois loucos. Você acha que podemos simplesmente ir tocando a campainha e... dizer “olá, como vai” ou coisa parecida?

Ouvimos mais um trovão, e dessa vez o estrondo fez Nils se deter, embora continuasse a chover a cântaros e provavelmente o rímel já tivesse borrado e se espalhado pela metade do meu rosto.

— Isto já aconteceu comigo antes — ele disse.

— Isto o quê?

— Isto aqui! Nós dois andando aqui à noite... a chuva... Tenho certeza.

— Ai, você está me assustando.

— Talvez, mas também não seria a primeira vez.

— Vamos voltar? — perguntei.

— Nada disso — ele disse, e se pôs a andar novamente. — Depressa, Berit.

Apesar de tudo, eu tinha estado mais perto de Bibbi Bokken do que ele, e por isso disse:

— Não sei se tenho coragem.

— Não temos outra escolha — disse Nils.

— Mas estou com medo de verdade.

— Eu também.

 

Quando chegamos ao muro com o portão, vimos luzes acesas na casa amarela de Bibbi Bokken. Estávamos ensopados até a alma. Mas Nils Torgersen não se deixaria deter facilmente. Talvez a coisa toda fosse mais importante para ele do que para mim, pois ele encontrara o Smiley mais vezes. Além disso, ele só estava passando férias em Fjærland. Eu moro aqui.

Quando dei por mim, já tínhamos tocado a campainha. Desde o dia em que havia entrado na casa e inventado aquela história da rifa para a biblioteca da escola, eu nunca mais tinha estado ali.

O que aconteceu a seguir chama-se anticlímax, se eu não me engano. Tínhamos imaginado que o Smiley ou Bibbi Bokken abririam a porta e se lançariam sobre nós. Também pensei que o Smiley poderia ter tomado Bibbi Bokken como refém. Achei que ele apareceria arrastando-a, tapando sua boca com uma mão e apontando a pistola para mim com a outra. Mas o que aconteceu foi que simplesmente ninguém veio atender. Tocamos mais algumas vezes, mas tudo continuou em silêncio dentro da casa.

Experimentei cuidadosamente a maçaneta — como na primeira vez — e também agora a porta estava destrancada.

Entramos furtivamente na casa. Por alguns minutos, ficamos ali quietinhos escutando com atenção. Mas não ouvimos absolutamente nada.

— Talvez ela esteja dormindo — sussurrei.

Nils sacudiu os ombros.

— Ou talvez ela...

Ele não terminou a frase, mas acho que entendi o que ele estava querendo dizer.

E então fizemos uma coisa totalmente insana: tiramos os sapatos. Ou para fazer o mínimo barulho possível, ou simplesmente porque nossos tênis estavam encharcados. Não sei. De qualquer forma, entramos na sala só de meias.

— Já entrei uma vez em cada um dos quartos — sussurrei.

Mas Nils não tinha entrado. Ele olhou ao seu redor e ficou visivelmente espantado por não ver ali uma única estante de livros.

— Você acha que existe um andar subterrâneo? — ele perguntou.

— Aaaacho — sussurrei. — Ela mandou escavar mais uma sala lá embaixo.

Foi só então que compreendi que ruídos estranhos eram aqueles que Hilde Mauritzen ouvira quando Bibbi Bokken tinha se mudado para aquela casa. E agora eu também sabia onde estavam todos os livros de Bibbi Bokken.

Começamos uma busca pela casa, limitando-nos quase exclusivamente ao chão. Não demorou para que descobríssemos um alçapão com uma argola de metal. Ele ficava embaixo da mesa da sala onde Bibbi Bokken abrira o pacote com livros novos enquanto eu me escondia atrás do sofá, deitada no chão empoeirado.

Pensei ter ouvido uns estalos no andar de cima, pus o indicador sobre os lábios e fiquei imóvel.

Nils sacudiu a cabeça.

— É só o vento — ele sussurrou. — Eles devem estar no bar do hotel. Se é que não estão a caminho da Cabana Flatbre.

Segurei a argola com dois dedos e abri o alçapão. Lá embaixo estava mais escuro do que a noite lá fora. Mas acho que Nils tinha lido mais romances policiais do que eu, pois sacou uma lanterna do bolso e iluminou os primeiros degraus de uma escada muito inclinada.

É claro que foi ele que desceu primeiro. Logo depois ele estava no chão do porão, passando o foco da lanterna pelas paredes. Antes que os meus pés tocassem o chão firme, ouvi-o dizer:

— A bib... bib... biblioteca, Berit.

 

— É só o vento — sussurrei, tentando esconder que estava apavorado. Só que eu estava. Eu estava exausto, mas me esforcei para que minha voz parecesse o mais natural possível.

— Eles devem estar no bar do hotel — eu disse.

Soou meio idiota, mas eu ainda acrescentei bravamente:

— Se é que não estão a caminho da Cabana Flatbre.

Mordi a língua e olhei para Berit. Ela segurou a argola de latão e ergueu a tampa. Prendi a respiração. Tive vontade de sair correndo, mas meus pés pareciam estar colados no chão. Ali embaixo, na nossa frente, havia um buraco completamente escuro.

Enfiei a mão no bolso do meu casaco e peguei uma lanterna que eu tinha comprado em Oslo antes de viajar. Tive o pressentimento de que poderia precisar dela, e estava certo. Havia chegado o momento. Eu estava encharcado, sem saber o que era água da chuva e o que era suor. Liguei a lanterna e iluminei o buraco escuro. Uma velha escada de madeira em caracol levava para baixo. Berit estava bem atrás de mim.

Eu sabia que alguém tinha que descer primeiro e também sabia que não podia ser ela. Teria preferido voltar, mas agora era tarde demais. Fui atraído para baixo por uma força invisível. Assim como me sinto atraído para o parapeito das pontes e para a beira dos abismos, justamente porque sofro de vertigem.

Ouvi os passos de Berit atrás de mim. Acho que não levei mais de dois segundos para descer a escada, mas me pareceu uma eternidade. Fui dar numa grande sala, que tinha um ar curiosamente seco embora fosse um porão. Fiz o foco da lanterna correr pelas paredes. E então senti o sangue sumir da minha cabeça e ouvi a minha própria voz:

— A bib... bib... biblioteca, Berit.

Tínhamos encontrado! A biblioteca mágica de Bibbi Bokken! Eu sentia, não, eu sabia! Não só com a cabeça, mas com o corpo inteiro. Eu tremia de emoção, mas ao mesmo tempo me sentia estranhamente tranquilo, como se tivesse voltado para casa depois de uma longa viagem.

Estávamos numa espécie de câmara do tesouro repleta de livros. Embora estivesse escuro no porão, os livros pareciam brilhar, e eu tive a sensação — perturbadora, mas feliz — de já ter estado ali antes.

Nesse momento ouvi um suave clique. Uma luz tênue encheu a sala e milhões de minúsculas partículas de pó cintilavam como estrelas ao nosso redor.

Agora sou uma parte do universo, pensei.

Não sei por que mas, embora estivéssemos no pequeno porão de uma pequena casa numa pequena cidade de um pequeno país, aquela sala me pareceu tão grande quanto o mundo inteiro lá fora.

As paredes estavam cobertas com estantes e armários cheios de livros. “Deve haver milhões deles aqui”, eu pensei. Imaginei que, se os abrisse, veria livros com inscrições douradas, livros tão bonitos que não pareciam impressos mas sim pintados à mão, livros com minúsculas pérolas incrustadas na capa, livros com letras tão antigas que eu não conseguia ler e livros cujas folhas pareciam tapetes velhos, com letras a ponto de se soltarem.

A sensação de já ter vivido tudo aquilo ficou cada vez mais forte e, por mais estranho que pareça, quando vi o homem sentado numa mesa no fundo da sala, de costas para nós, não me surpreendi nem um pouco.

Berit já havia descoberto esse homem. Ela estava atrás dele.

— Olá — ela disse.

Ele não reagiu.

— Com licença — disse ela.

Ele continuou sem reagir. Parecia estar escrevendo.

— Estamos procurando Bibbi Bokken — ela disse mais alto.

Ele continuou a escrever.

Aproximei-me de Berit, coloquei a mão no braço dela e sussurrei:


“Nesta cidade vive um velho homem,

ele é surdo, mas enxerga muito bem,

seu amor é jovem, fresco e reluzente,

milhares de livros vivem em sua mente”.


Berit olhou para mim, perplexa, e então teve um estalo.

— Mario Bresani!

Fiz que sim com a cabeça.

— Ele é surdo.

Fiz que sim novamente.

— Ele ajudou Bibbi Bokken a construir a biblioteca mágica. Ele...

Berit completou a frase.

— ... também tem uma.

E eu só balançando a cabeça.

— “Dante, Homero, Ovídio e Petrarca são preciosos tesouros de sua arca” — disse Berit.

De repente, ela sorriu. Ainda não disse isso para ela, mas ela tem um sorriso realmente fantástico.

Soltei o braço dela e toquei levemente no ombro de Bresani. Ele não se assustou, apenas se endireitou na cadeira, virou-se e retribuiu o sorriso de Berit. Parecia que ele estava nos esperando.

Em Roma tudo tinha acontecido tão depressa que eu não conseguira ver seu rosto direito. Mas agora sim. O curioso é que era um rosto sem idade.

Mario Bresani podia ter cinquenta ou oitenta anos. Era impossível saber. Seus cabelos eram brancos, mas cheios como os de um homem jovem. Milhares de pequenas rugas na testa e em volta dos olhos falavam de um homem que tinha vivido uma longa vida. Seu olhar era franco e curioso como o de uma criança. Seus dentes eram brancos como giz, e seu sorriso era alegre e um pouco maroto como o de um adolescente. E agora ele estava sorrindo para Berit.

— Buon giorno, signorina Berit — ele disse, e ficou olhando para a boca de Berit enquanto ela respondia lenta e claramente:

— Buon giorno, signore Bresani.


— Buon giorno — respondi. Não foi difícil entender que aquilo queria dizer “bom dia”.

Na mesma hora, me dei conta de que Mario Bresani devia ser o italiano do qual se falava no hotel. Aquele que não quis esperar pelo jantar... como é que eu não tinha pensado nisso antes?

Fiquei olhando para aquele rosto inteligente, bonito e afetuoso.

Quem era aquele homem? Por que ele estava ali — e por que era tão bonito? Acho que pensei que talvez fosse a surdez que deixasse o rosto bonito — ou que fosse consequência de tanto ler livros. Seu olhos castanhos vibravam suavemente e ele não baixou o olhar. Ele parecia ler todo o meu rosto, não apenas os meus lábios. Só quando olhei para o lado ele se levantou. Então deu uma batidinha nos nossos ombros e disse:

— Benvenuti alla biblioteca!

Ele não era muito mais alto do que Nils, e meia cabeça mais baixo do que eu. Agora ele olhava atentamente para mim, para ver se eu entendera ou para ler minha resposta.

— Bem-vindos à biblioteca — adivinhei.

Ele inclinou a cabeça.

— Sì, sì!

— À biblioteca mágica de Bibbi Bokken — disse Nils.

Bresani virou-se para ele e abriu os braços num gesto resignado. Ele não tinha visto o que Nils dissera.

— Acho que esta é uma biblioteca mágica — Nils continuou. Dessa vez falou bem mais alto, como se isso fizesse alguma diferença.

O pequeno italiano riu.

— Naturalmente, signore... una biblioteca magica... e molto segreta!

Ele pôs um dedo sobre os lábios, como que para dizer que prometera guardar um segredo.

Tive uma sensação um pouco semelhante à do meu sonho com a grande biblioteca sob a geleira de Jostedalsbreen. No sonho, era como se eu conhecesse todos os livros e todos os escritores do mundo inteiro. Agora, de repente eu entendia italiano!

— Naturalmente, senhor — Bresani tinha dito. — Uma biblioteca mágica... e muito secreta.

Ele abriu os braços como que para apontar para a biblioteca inteira, e lançou um olhar sobre o livro de cartas que Nils segurava na mão. Depois continuou a falar — sempre bem devagarzinho.

— Signore e signorina! Questo è il centro... del loro labirinto grande... è molto misterioso...

Agora Nils se aventurou como tradutor:

— Acho que ele disse que nos encontramos num misterioso labirinto.

Bresani mostrou seus dentes brancos e bateu palmas.

— Bravo!

Só então comecei a olhar ao meu redor. A sala era do tamanho de uma sala de estar espaçosa, mas as paredes eram bem mais baixas. No centro, havia uma mesa com quatro cadeiras. As quatro paredes estavam cobertas de livros. Não havia apenas estantes para guardá-los, mas também caixas das mais diversas cores. Além disso, entre as estantes havia magníficos armários com portas de vidro.

Não vi uma única brochura ou livro de bolso. Havia muitos livros antigos, mas também não eram poucos os livros novos. E todos eram incrivelmente bonitos.

Aquela visão me fez lembrar dos vitrais das grandes catedrais — dos mosaicos que não representam nada em especial, mas que formam um desenho bonito porque as cores combinam muito bem. Foi mais ou menos essa a impressão que tive ao ver todas aquelas lombadas marrons, pretas, vermelhas e brancas dos livros da biblioteca de Bibbi Bokken. Havia sobretudo muitos tons de couro marrom e, por serem muitos os livros encadernados em couro, dava quase a impressão de que eles estavam vivos.

Toda a atmosfera na biblioteca subterrânea e o encontro com o velho homem foram tão solenes e pacíficos, tão distantes da barulheira do hotel, que eu já tinha esquecido todo o medo que havíamos sentido ao entrar na casa. Se havia alguma coisa que eu sabia com toda a certeza, era que aquele velho homem nunca faria algo contra nós em toda a sua vida.

Mas e Nils? Ele ainda tinha medo de que acontecesse alguma coisa ruim? No seu último encontro com Bresani, o Smiley aparecera de repente e estragara tudo. E isso num lugar parecido com aquele ali....

Como é que eu sabia? Eu nunca estivera em Roma. Mas eu sabia por que Nils havia escrito sobre isso. E, por isso, de certa forma, eu também estive no sebo de Bresani. Apenas de certa forma, mas mesmo assim...

De repente, ouvimos passos no andar de cima. Quem podia ser? O Smiley? Ou era Bibbi Bokken?

Então ela desceu solenemente a escada para a sua biblioteca subterrânea. Primeiro vi seus sapatos de salto alto, depois o longo vestido vermelho apareceu no final da escada — quase como um paraquedas que vai lentamente tocando o chão.

Era Bibbi Bokken. Ela não era magra, mas também não era gorda. Era exatamente o que se chama de uma pessoa “distinta”. Até então, eu pensara nela como a “bruxa dos livros”. Mas se aquela mulher de vestido vermelho era uma bruxa, ela tinha mais parentesco com a Madame Min ou com a Maga Patalógica.

“Por que senti tanto medo dela?”, perguntei a mim mesma. Será que eu logo saberia? Mas no momento em que ela atravessou a biblioteca e chegou perto de mim, soube que eu e Nils tínhamos nos enganado. Ela era de fato uma pessoa estranha — isso era evidente — mas não tinha um lado mau.

— Nils e Berit — ela disse com um sorriso amável, depois olhando para o livro que Nils segurava na mão. — Vocês não sabem como estou feliz em vê-los!

Tive a impressão de que ela se interessava sinceramente por nós — quase como se tivéssemos passado um tempão perdidos na montanha e finalmente sido resgatados, depois de muito vagar às cegas pelo nevoeiro e tempestade. De alguma forma isso era verdade, havíamos tateado no escuro, não tínhamos uma visão clara dos acontecimentos.

Então Bibbi Bokken fez um gesto orgulhoso com a mão.

— O que vocês acharam da minha biblioteca? — ela perguntou.

— Superlegal — disse Nils.

— Maravilhosa — eu disse.

— Sì, sì — disse Mario Bresani. — Bellissima!

Ele sorriu e fez uma reverência. Então voltou à sua escrivaninha, tão silenciosamente como se levantara. A escrivaninha estava repleta de tinteiros vermelhos e pretos, penas, pincéis e papel.

Bibbi Bokken olhou para ele e inclinou a cabeça.

— E vocês já se apresentaram? — ela perguntou.

— Oh, sim — eu disse. — Já conversamos bastante.

 

Bibbi Bokken andou até uma parede e apertou um interruptor. Imediatamente acenderam-se inúmeras luzinhas sobre os armários e as estantes de livros.

— Ooooh — exclamei, pois agora a biblioteca estava ainda mais bonita. As cores dos livros se destacavam melhor, e as luzes lembravam uma quermesse.

— É fantástico, Berit — disse Nils. Depois ele se virou para Bibbi Bokken.

— O que é que leva alguém a... colecionar livros dessa maneira? — ele balbuciou.

Ela riu.

— E o que leva uma pessoa a construir uma piscina no subsolo? Minha pequena biblioteca não custou mais do que isso, Nils. Faz muitos anos que coleciono livros. E sempre cuidei muito bem deles. Agora tive o cuidado de colocar cada um deles em seu lugar no grande contexto.

— Segundo Dewey? — perguntei.

— Sim, aqui todos os livros estão ordenados segundo o sistema de Dewey. Eu simplesmente aaaaaamo Dewey. E não sou a única. Já se passaram mais de cem anos desde que ele desenvolveu a classificação decimal. E ela continua gozando de muito boa saúde.

Ela apontou para as quatro paredes e explicou que duas delas continham livros especializados sobre todos os assuntos possíveis. E que todos estavam ordenados de 100 a 990 segundo a tabela de Dewey.

Nils apontou para as outras paredes.

— E que livros são estes? — ele perguntou.

— Literatura — explicou Bibbi. — Mas, como vocês estão vendo, ela está dividida em três grupos. Primeiro vem a seção de prosa...

— Romances, novelas etc. — disse Nils, como se estivesse na aula de norueguês.

Bibbi Bokken confirmou balançando a cabeça.

— Lá em cima, na quarta parede, vocês estão vendo um belíssimo V, de “verso”, que Mario pintou para mim. Embaixo dele estão os meus livros de poesia.

Apontei novamente para o alto das prateleiras.

— E ali tem um T muito bonito também — eu disse.

— Ali estão as peças de teatro, ou seja, a dramaturgia.

— Peer Gynt — eu disse.

Bibbi Bokken ficou radiante.

— Sim, Peer Gynt, por exemplo. Tenho a primeira edição dessa obra, de 1876. Um bem muito estimado, Berit.

Nils apontou para um pequeno armário cheio de gavetinhas.

— O arquivo?

— Ou os arquivos — corrigiu Bibbi Bokken. — Cada livro da biblioteca possui pelo menos três fichas diferentes. E por isso existem três arquivos diferentes. Num deles, as fichas estão em ordem alfabética segundo o nome dos autores. No segundo arquivo, de acordo com o título do livro. E a terceira ficha contém palavras-chave que indicam os temas tratados pelo livro. Se, por exemplo, eu quiser saber mais sobre astronomia, vou até esse arquivo e vejo quais são os livros que tenho sobre o espaço. E ali encontro não só livros técnicos, mas também livros de literatura sobre esse tema.

— Que sofisticado — disse Nils. — Deve ser fundamental manter a ordem do sistema. Hum...

Bibbi Bokken suspirou:

— Ora, não se pode enfiar os livros nas estantes ao sabor do acaso. Um filatelista não guardaria seus selos todos misturados numa grande gaveta! Como ele faria para encontrar um determinado selo cor-de-rosa de dois xelins e meio de 1882? E eu, como vou achar a primeira edição de Peer Gynt? Posso saber?

Nils não quis discutir.

— Foi você quem inventou todo esse sistema sofisticado? — ele perguntou.

Bibbi Bokken deu uma risada rouca.

— Não, esse sistema é usado em bibliotecas do mundo inteiro. Bem... existem algumas variações. E a maioria das bibliotecas atualmente já passou a utilizar o registro por computador...

— Que original — eu disse.

Não sei por que eu disse isso, simplesmente escapou.

 

Nils descobrira alguma coisa num grande armário. Ele andou até lá e apontou para três livros que estavam deitados, um em cima do outro. Cada um deles tinha mais ou menos o tamanho de duas listas telefônicas colocadas lado a lado. Os três livros pareciam muito antigos.

— O que... o que é isto? — perguntou Nils.

— Psssiu! — sussurrou Bibbi Bokken, como se fossem três bebezinhos que não podiam ser acordados. Seu rosto adquiriu uma expressão solene, como um sacerdote que vai executar uma importante cerimônia.

— Meu amigo, você está diante de três vivíssimos incunábulos!

— Livros que foram impressos na infância da arte tipográfica — eu disse. — Antes do ano 1500...

Bibbi Bokken bateu palmas.

— Mas não é que aprenderam tudo!?

Poucos segundos depois, um amontoado de pensamentos confusos rodava na minha cabeça. E acho que na cabeça de Nils devia estar acontecendo algo parecido. “Mas não é que aprenderam tudo!?”

Pensei na carta de Siri, no livro de cartas — que Nils não tinha largado nem por um segundo — na biblioteca mágica de Bibbi Bokken, no Smiley, no que ele havia dito no salão de bilhar sobre eu ser “muito bem recompensada”, no poema que Nils e eu tínhamos escrito no livro de visitas do albergue e em muitas outras coisas. A sensação que eu tinha era de que precisaria de uma longa tarde e duas grandes gavetas de arquivo para organizar todas as nossas experiências das últimas semanas.

Eu ia justamente perguntar a Bibbi Bokken sobre a carta de Siri — agora não achava mais tão terrível ter que confessar que eu a lera escondido —, mas nesse momento Bibbi Bokken tirou um dos pesados incunábulos de dentro do armário e o colocou sobre a mesa que ficava no meio da sala. Ela parecia uma rainha erguendo uma coroa de ouro coberta de diamantes e pedras preciosas.

— Sentem-se — ela disse, mais ou menos como uma professora ao entrar na sala de aula.

Então nos sentamos os três. Quando Bresani viu que Bibbi Bokken estava com o velho livro nas mãos, disse:

— Prudente, Bibbi! Prudente!

Ela riu:

— Ele está dizendo para tomarmos cuidado.

O grande livro era encadernado em sólidas tábuas de madeira. Sobre três plaquetas, também de madeira, havia fechos dourados em forma de ganchos. Bibbi Bokken soltou os fechos, abriu o velho livro com muito cuidado e disse:

— Assim é que se abre um livro de verdade. Houve um tempo em que este era um ato extremamente solene...

As folhas amareladas do gigantesco livro pareciam de papelão.

— Que papel grosso — eu disse.

Bibbi Bokken deu um sorriso muito expressivo.

— Este papel se chama “papel de trapos”, e é feito de algodão e linho triturados e depois cozidos com pele de porco. Mas a velha papa aguentou bem, não acham? Este livro foi impresso em Milão há mais de quinhentos anos. Não são muitos os livros de hoje que terão uma vida tão longa.

— Como ele é grande — disse Nils.

— Este é o chamado formato in-fólio. São as obras completas do poeta italiano Petrarca. Foi um presente de Mario. Quantos milhões de liras pagou por ele é um pequeno segredo que Mario não revela a ninguém.

Começamos então a observar as páginas do livro. A primeira letra em cada página era enorme, pintada em azul e vermelho.

— Isso foi pintado à mão? — Nils perguntou.

Bibbi Bokken fez que sim.

— Na infância da arte tipográfica, a confecção de livros ainda era um ofício envolto em mistério. Naquela época, as pessoas ainda tinham tempo. Mas agora Mario está tentando reavivar essa velha arte. Ele é considerado um dos mais importantes calígrafos do mundo inteiro.

Nils sacudiu a cabeça.

— Calígrafo?

— Sim, caligrafia é a arte de escrever à mão — explicou Bibbi Bokken. — Acho que tenho que agradecer as belas folhas que alguém me trouxe de Roma...

Nils ficou vermelho como um tomate.

— Foi você que escreveu o poema?

Ela deu um sorriso misterioso, mas não respondeu à pergunta.

— Uma coisa de cada vez, Nils. Todas as perguntas de vocês serão respondidas, mas temos que tratar de uma coisa por vez... e talvez seja melhor começar logo pelo começo.

Bibbi Bokken fechou o livro novamente, e os fechos dourados se engancharam com um clique. Depois ela se inclinou sobre a mesa, ficou olhando alternadamente para Nils e para mim, e então perguntou:

— Alguma vez vocês já pensaram que nós, os homens, somos os únicos seres vivos neste planeta — e talvez em todo o Universo — capazes de trocar pensamentos, sentimentos e experiências uns com os outros?

Acho que Nils e eu apenas sacudimos a cabeça.

— Podemos fazer isso há muitas centenas de milhares de anos. Mas só depois de muito tempo, há uns cinco ou seis mil anos, aprendemos a escrever. E isso deu à linguagem possibilidades completamente novas, pois a partir de então pudemos trocar nossas experiências com pessoas que viviam a centenas de quilômetros de distância, ou mesmo com pessoas que só viveriam centenas ou milhares de anos depois de nós. As primeiras línguas escritas utilizavam imagens, ou ideogramas. A escrita naquela época era um pouco parecida com as histórias em quadrinhos de hoje em dia. Mas pouco a pouco foi se desenvolvendo um sistema de escrita que permitia reproduzir todas as palavras de uma língua apenas com algumas letras...

Nils estava sentado na beirada da cadeira. Ele parecia um aluno bagunceiro que de repente resolve se tornar o primeiro da classe, só porque a professora tocou num assunto interessante. Ele disse:

— Embora existam apenas vinte e seis letras diferentes, elas podem encher bibliotecas inteiras...

Bibbi Bokken confirmou com a cabeça.

— Aqui, apesar de tudo, disponho de pouco espaço. Tive que dinamitar a rocha para obter um novo porão.

— A vigia noturna do hotel pensou que fosse um terremoto — eu disse. — Ela quase chamou a polícia!

Bibbi Bokken deu um largo sorriso.

— Bem, estávamos falando do alfabeto. O alfabeto foi a primeira grande revolução da história da escrita. Durante vários milênios, as pessoas escreveram em pedras e papiros, tábuas de madeira e cascos de tartarugas, em tabuletas de barro e cacos de cerâmica, na pele de animais e em pranchas enceradas, ou seja, em qualquer material onde fosse possível gravar símbolos. A escrita foi como uma febre que de repente se alastrou pelo globo. Com o passar do tempo, começaram a ser feitos livros inteiros em pergaminho e papel. Mas cada exemplar tinha que ser escrito à mão e por isso os livros eram caros, inacessíveis para a maioria das pessoas. Assim, em diversos lugares do mundo, fizeram-se experiências com a gravação de letras em placas de madeiras, que serviam de matriz para que a mesma página pudesse ser impressa diversas vezes. Dessa forma, foi criada a nobre arte da reprodução. Mas essa “impressão em bloco” era um processo muito lento e trabalhoso.

— Então veio Gutenberg — eu disse.

Bibbi Bokken confirmou com a cabeça.

— Sim, por volta de 1450. Só a partir daí é que se pode falar em arte tipográfica. E essa foi a segunda grande revolução da escrita. Gutenberg utilizava tipos móveis fundidos em chumbo. Originalmente, ele era ourives. Mas, assim como fundia joias em ouro e prata, ele também fundia as letras do alfabeto, com as quais era possível compor páginas inteiras, e depois as reutilizava. Essas letras ou tipos móveis formavam os átomos e moléculas do mundo dos livros.

Nils pigarreou e depois disse:

— Assim como os átomos e moléculas podem formar um urso, as letras do alfabeto podem formar uma história sobre o ursinho Pooh.

Bibbi deu uma piscada travessa para ele.

— Sim, uma história sobre o ursinho Pooh, por exemplo. Esses tipos móveis de impressão já eram utilizados na China há novecentos anos. Só que lá não havia alfabeto. E não adianta muito confeccionar tipos móveis se o sistema de escrita é constituído por milhares de símbolos diferentes. Portanto, o desenvolvimento da escrita na Europa foi marcado tanto pelo alfabeto simples quanto pelos tipos móveis de Gutenberg.

— E que tipo de livros Gutenberg imprimiu? — perguntei.

Bibbi Bokken tinha a resposta na ponta da língua. Acho que poderíamos fazer qualquer pergunta que envolvesse livros, e ela responderia imediatamente.

— O primeiro livro que Gutenberg imprimiu foi a Bíblia, como não podia deixar de ser. Alguns exemplares dessa Bíblia se conservaram até hoje. De vez em quando uma edição completa é posta à venda, mas obviamente custa muitos milhões de coroas.

— Então preciso economizar mais um pouquinho se quiser comprar uma — disse Nils.

Bibbi Bokken ergueu o livro com a obra de Petrarca e o colocou de volta no armário. Quando ela voltou para a mesa, Mario Bresani se virou.

— Bravo — ele disse.

 

A mulher de vestido vermelho sentou-se novamente e olhou para o livro que estava no colo de Nils. Acho que ela queria dar uma olhada nele. Será que ela imaginava que Nils e eu tínhamos usado aquele livro para nos correspondermos um com o outro? Bem, pelo menos ela não tinha como saber que nossas cartas falavam dela...

Minha cabeça fervia com tantas perguntas sem resposta.

— Você não é de Fjærland — eu disse. — Como é que veio para cá e acabou construindo sua biblioteca justamente aqui?

Ela deu novamente o seu sorriso enigmático. Como ela ainda não tinha respondido, fiz mais uma pergunta:

— Por acaso isso tem alguma coisa a ver com Walter Mondale?

Essa pergunta realmente a pegou de surpresa. Até então, ela mantivera o controle sobre toda a conversa. Mas quando fiz essa pergunta ela quase caiu da cadeira.

Ela olhou outra vez para o livro de cartas, mas não se atreveu a fazer nenhum comentário. Pelos menos não por enquanto. Ela perguntou:

— Mas, Berit, como é que você sabe disso?

Eu sacudi os ombros.

— Ora, eu também estava aqui. Todo mundo estava aqui quando Mondale inaugurou o túnel de Fjærland.

Bibbi Bokken sacudiu a cabeça, resignada. De repente, a situação tinha virado de pernas para o ar. Acho que ela não gostou nem um pouco de eu saber mais do que ela sabia que eu sabia.

Depois de alguns instantes, ela continuou:

— De fato, a primeira vez que estive em Fjærland foi em 1986, quando Walter Mondale inaugurou o túnel. Eu queria cumprimentar o ex-vice-presidente, que era um velho conhecido meu da época em que estudei biblioteconomia nos Estados Unidos...

Nils arregalou os olhos.

— Na mosca, Berit! — ele disse.

Ele fez um sinal para Bibbi continuar.

— Naquela época, eu estava trabalhando num projeto para a construção de um grande depósito para a Biblioteca Nacional. A ideia era construir um depósito onde coubessem todos os livros e revistas da Noruega. E, para garantir que tudo se conservasse para a posteridade, ele deveria ser construído dentro de uma grande montanha.

— Na mosca de novo — disse Nils, parecendo bastante impressionado com o meu desempenho detetivesco em Fjærland.

— Houve um grande debate na Noruega sobre qual iria ser a montanha onde esse depósito seria instalado — contou a sra. Livros. — Quando vim para Fjærland, ocorreu-me que seria uma ideia magnífica construir esse depósito sob a geleira de Jostedalsbreen, já que de qualquer forma haviam escavado lá um grande túnel.

— Os... os... os sonhos de Berit tornam-se reais — balbuciou o meu pobre primo, e nessa hora eu também comecei a suar frio. Quando notou nossa agitação, Bibbi Bokken acrescentou bem depressa:

— Mas não foi o que aconteceu. Em 1989, o Parlamento decidiu que o depósito seria construído em Mo i Rana. Ali, no interior da montanha, foram dinamitadas duas grandes cavidades. Numa delas foi construído um edifício de quatro andares, que foi inaugurado há apenas poucos meses. É nele que fica o chamado “depósito compacto”, onde estão guardados exemplares de todos os livros, revistas, imagens, filmes e vídeos já produzidos na Noruega. Além disso, ali estão também todos os programas de rádio e de televisão da Estação Norueguesa.

Nils respirou fundo.

— Então existe mesmo essa instalação gigantesca?

— E na outra cavidade o que há? — eu perguntei.

— Ela será preenchida com os livros do futuro. Assim, a cultura escrita do nosso tempo será guardada e conservada, para que os seres humanos do futuro também possam conhecer o que escrevemos. Talvez esse depósito perdure por muitos e muitos milênios.

— Então existe mesmo uma biblioteca subterrânea — disse Nils.

Bibbi fez que sim.

— Ela foi aberta ao público recentemente. Esse depósito possui proteção contra incêndios e bombas atômicas, e também contra qualquer tipo imaginável de catástrofe natural.

Novamente me lembrei do meu estranho sonho.

— Por favor, conte mais sobre como é lá dentro — pedi.

— Chegando lá, a primeira coisa que se vê é um portão com grades e uma cortina de aço. Atrás dessa cortina começa um túnel de sessenta metros, que conduz ao interior da montanha. Ele é alto e largo o suficiente para permitir a passagem de vagões de carga, e no final do túnel fica o edifício de quatro andares. O edifício propriamente dito tem quase cem metros de comprimento, e contém no total mais de quarenta quilômetros de estantes com livros. Ele possui temperatura e umidade constantes, para que os livros se conservem da melhor maneira possível... embora nem todos os livros impressos hoje em dia sejam tão resistentes quanto os antigos incunábulos.

Refleti um pouco e depois perguntei:

— E como a sua ideia de fazer o depósito aqui em Fjærland não deu certo, você resolveu comprar uma casa por aqui e construir a sua própria biblioteca subterrânea?

Bibbi Bokken abriu um sorriso largo.

— Pode-se dizer que sim. Depois de 1986, quando estive aqui pela primeira vez, voltei diversas outras vezes a Fjærland. Gostei muito daqui e por isso um dia comprei esta casa. Meus livros são valiosos demais e eu não posso morar numa casa de madeira, que pode ser consumida pelo fogo a qualquer momento. E como achei que nunca sentiria necessidade de ter uma piscina no porão, encontrei aqui uma boa oportunidade. Às vezes me sento aqui embaixo para ler e trabalhar. Outras vezes levo um livro para a sala lá em cima. E também acontece de eu ficar simplesmente andando pela biblioteca e lendo as lombadas dos livros...

Bibbi Bokken levantou-se e fez exatamente o que acabara de dizer. Ela se pôs a andar ao longo das paredes e então tirou um livrinho de uma prateleira. O autor era um tal de Simen Skjønsberg, e o título era O prazer assombroso — textos sobre os segredos da leitura. Ela pediu que Nils lesse em voz alta o texto da orelha do livro. Ele pigarreou duas vezes e finalmente leu:


Passeio pelas estantes da biblioteca. Os livros me dão as costas. Não para me rejeitar, como as pessoas: são convidativos, querendo apresentar-se a mim. Metros e mais metros de livros que nunca poderei ler. E sei: o que aqui se oferece é a vida, são complementos à minha própria vida que esperam ser postos em uso. Mas os dias passam rápido e deixam para trás as possibilidades. Um único desses livros talvez bastasse para mudar completamente a minha vida. Quem sou eu agora? Quem eu seria então?

— Entendo muito bem o seu amor pelos livros — eu disse. — Mas você não tem uma profissão... ou um marido?

Bibbi inclinou a cabeça para trás e riu. Mario Bresani devia ter se virado, pois também olhou para nós e riu.

Ela disse:

— Foram duas perguntas de uma vez só. Eu sou bibliógrafa. Isso quer dizer que sou mais ou menos uma especialista em livros e bibliotecas. E é disso que eu vivo. Presto serviços aqui na Noruega e em muitos outros países, portanto viajo muito. Justamente por isso, a minha biblioteca precisa estar muito bem protegida. Às vezes vou para Roma... e outras vezes é Mario quem vem para a Noruega. Mas eu também me sinto muito bem na minha própria companhia — e na de todos os meus livros. Alguém disse uma vez: “Um bom livro é o melhor amigo”. Outra pessoa expressou isso de forma semelhante: “Quem escolhe bem os seus livros estará sempre na melhor das companhias. Neles nos encontramos com os caracteres mais ricos de espírito, mais sábios e mais nobres, que constituem o orgulho e a glória da humanidade”.

Enquanto dizia isso ela se levantou, foi até Mario Bresani e pôs a mão no seu ombro.

Nils e eu a seguimos e, espiando por cima dos ombros de Mario, vimos que ele havia pintado, com nanquim preto e vermelho, uma série de belas letras ornamentais. Mais uma vez lemos o que já tínhamos lido antes: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

Pensei de novo na carta de Siri, mas não quis admitir que sabia dela. Por isso, disse:

— Existe um livro que... que se chama A biblioteca mágica de Bibbi Bokken?

Mario olhava para mim enquanto eu falava.

— Sì, sì — ele exclamou. — La biblioteca magica de Bibbi Bokken!

— E esse livro... por acaso... será publicado no ano que vem?

No mesmo instante eu me arrependi de ter dito isso. Acho que mordi o lábio. Será que Bibbi iria dar-se conta de que eu tinha lido a carta de Siri?

Mais uma vez um sorriso enigmático passou pelo seu rosto. Como ela não respondeu, Nils tomou a palavra. Ele perguntou sem rodeios:

— Você tem esse livro misterioso aqui?

Ainda me lembro que, ao ouvir essa pergunta, Bibbi Bokken soltou uma gargalhada quase histérica. Quando se recompôs, ela disse:

— Não, não mesmo! Acho que agora vocês estão indo longe demais!

Apenas dessa vez, me perguntei se acaso não teríamos motivos para ter medo de Bibbi Bokken. Talvez fôssemos como prisioneiros naquele porão...

Mas então ela disse:

— Na escola deveriam ensinar as crianças a não serem tão impacientes. Vocês não podem querer saber tudo de uma vez. Não é difícil descobrir uma mentira, meus amigos. Nunca perder a verdade de vista é que não é tão fácil, pois a verdade muitas vezes tem diversos lados. Por isso ela não pode ser dita em palavras num simples piscar de olhos. E além disso...

Nós dois olhamos para ela.

— ... vocês ainda não viram a biblioteca mágica.

 

No porão, junto com Berit, Bibbi Bokken e Mario Bresani, eu vivi um milagre. Pela primeira vez na minha vida, entendi o que é um livro. Um livro é um mundo mágico cheio de pequenos símbolos que podem ressuscitar os mortos e dar vida eterna aos vivos. É incrível, fantástico e “mágico” que as vinte e seis letras do alfabeto possam ser combinadas de tantas maneiras, que elas possam encher com livros estantes gigantescas, levando-nos para um mundo que nunca tem fim e nunca cessará de crescer e se expandir, enquanto na Terra existirem humanos.

Olhei para as paredes e, por um instante, tive a sensação de que todos os livros olhavam para mim. Sim, como se estivessem vivos, e eles exclamavam:

— Venha até nós! Não tenha medo! Venha!

De repente senti muita fome. Não de comida, mas de todas as palavras escondidas naquelas estantes. Mas eu sabia que, por mais que eu lesse durante toda a minha vida, nunca conseguiria ler um milésimo de todas as frases que já foram escritas. Sim, pois há tantas frases no mundo quanto há estrelas no céu. E elas se multiplicam e se expandem continuamente, como o espaço infinito.

Mas ao mesmo tempo eu sabia que, a cada vez que eu abrisse um livro, eu veria um pedacinho desse céu. Sempre que lesse uma frase, saberia um pouco mais do que antes. E tudo o que leio faz o mundo ficar maior, ficando maior eu também. Por um momento, eu contemplei o fantástico, o mágico mundo dos livros.

Por isso eu estava tão assombrado quando Bibbi Bokken disse:

— Vocês ainda não viram a biblioteca mágica!

— Vimos, sim — exclamei. — Acabamos de ver. Mil vezes obrigado.

Ela sorriu para mim.

— Esta é apenas a sala externa, meu amigo. A sala para aquilo que já foi criado.

— Existem outras salas? — Berit e eu perguntamos, a uma só voz.

— Sim — disse Bibbi Bokken, olhando para nós com um olhar curioso e, ao mesmo tempo, triste. Como se quisesse ler os nossos pensamentos e estivesse triste por não conseguir.

— Há uma sala interna. Uma sala para o que ainda vai ser criado. A sala das possibilidades.

Berit dava a impressão de estar entendendo.

— Quer dizer que...

Bibbi Bokken fez que sim. Depois fez um sinal para Mario Bresani. Ele se levantou e andou em direção ao enorme armário que havia atrás da escrivaninha. As portas desse armário não eram de vidro como as dos outros. Mario pegou uma chave e abriu. E o que ele abriu não era um armário, mas sim uma passagem. Uma passagem para a sala interna.

— Venham — disse Bibbi Bokken. — Vamos entrar.

Mario Bresani havia voltado à escrivaninha. Ele acenou com a cabeça para nós e continuou a desenhar, enquanto entrávamos na biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

No começo, fiquei um pouco decepcionado. A luz forte e clara que quase nos ofuscou era tudo menos mágica, e a sala interna era muito menor do que a fantástica biblioteca da qual acabáramos de sair. Ali não havia livros bonitos. Nada de incunábulos, inscrições douradas, letras ornamentais, nada. Era simplesmente a mais pura confusão.

As paredes estavam cobertas por estantes normais — do tipo que você compra e monta você mesmo — atulhadas de caixas de papelão, pastas de plástico e cadernos escolares. Numa enorme mesa no meio da sala havia pilhas de papéis, revistas e desenhos que não pareciam exatamente obras de Edvard Munch.

— Então, o que vocês acham?

— Superlegal — eu disse, tentando parecer sincero.

Olhei de relance para Berit e ela não parecia nem um pouco decepcionada. Ela sorriu para Bibbi Bokken, que retribuiu o sorriso. As duas pareciam ter um segredo em comum. Eu me senti totalmente excluído.

— Sim, é mesmo uma sala impressionante — eu disse, dessa vez sem tentar esconder minha decepção.

Bibbi Bokken riu. Achei aquela risada repulsiva. O fato de Berit também rir não ajudou muito.

— Você não está entendendo o que é isto tudo, Nilsinho? — ela perguntou.

— Pois é, que coisa, não estou entendendo nada — murmurei — Já você parece que está entendendo tudo, não é?

— Tudo isto aqui são livros que ainda não foram escritos — disse Berit. — Não é, Bibbi?

Agora era “Bibbi” pra cá, “Bibbi” pra lá. E “Nilsinho” para escanteio! “Bibbi” fez que sim.

— Claro que sim — ela disse. — Shakespeare escreveu que a criança é o pai do homem.

— Ou a mãe — disse Berit.

— Ou a mãe — repetiu Bibbi Bokken. — E a cada segundo que passa, aumenta o saber acumulado na face da Terra. Não param de surgir novos pensamentos, novas palavras e frases feitas por novas pessoas. No mundo inteiro, neste exato momento, milhões de crianças estão criando a língua de amanhã. Algumas guardam tudo para si, enquanto outras escrevem. Poemas inacabados, histórias começadas, frases que nunca foram escritas antes. As crianças estão cheias de um saber que nem ao menos sabem que têm. Elas... vocês trouxeram uma herança do passado e, ao mesmo tempo, têm dentro de vocês as possibilidades do futuro.

— Esta é, portanto, a “sala das possibilidades” — eu disse.

Eu parei de me sentir excluído.

Bibbi Bokken inclinou a cabeça confirmando.

— Não é na primavera que as árvores são mais bonitas?

Ela novamente parecia um pouco triste.

— A biblioteca mágica está cheia de possibilidades, das quais em algum momento surgirão livros. Em alguns séculos, das fantasias reunidas nesta sala poderão surgir preciosos incunábulos. As palavras certamente se combinarão de outras maneiras. As frases não serão as mesmas. Mas aqui está o berço do que será a língua do futuro. Assim é a literatura quando recém-nascida. E a verdadeira magia da nossa vida é o nascimento.

Ela pegou uma folha de papel e leu em voz alta:


As trepadeiras crescem e crescem

para fora da sala. E vão até a Lua

buscar a Apollo 13 de volta para a Terra.

Então vem uma tempestade terrível

e a comprida trepadeira se encolhe,

e se recolhe de novo pela janela e dorme.


Senti um calafrio na espinha. Não porque o poema fosse tão fantástico assim, mas porque eu sabia que podia escrever poemas como aquele e Bibbi Bokken não, embora ela fosse mil vezes mais inteligente do que eu. Peguei um caderno e li:

 

Há muitos e muitos anos vivia uma mulher que era tremendamente preguiçosa. Ela era feia, gorda e rica. Um dia, ela resolveu ir fazer compras. Quando chegou à frente da loja, não conseguiu passar pela porta. Então ela pensou que estava precisando emagrecer e que não fazia sentido comprar doces nem comida. Ela não tinha marido e vivia sozinha. Um dia ela foi à cidade para ver se já tinha emagrecido. Na cidade, ela viu um homem que lhe agradou muito.

— O senhor sabe onde fica a joalheria? — ela perguntou.

— Sim — disse o homem. E explicou o caminho para ela.

— Muito obrigada pela ajuda — ela disse, e foi andando toda satisfeita pelo caminho.

E assim ela chegou à joalheria e comprou uma joia. Depois ela continuou a viver feliz sozinha. Ela ainda era tão gorda, tão rica, tão feia e tão preguiçosa quanto antes. E a casa dela era suja. Essa história entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser que conte outra.


— Sim — disse Bibbi Bokken. — Isso acontece.

Berit estava na frente de uma estante e riu. Fantasma na escola de Kuventræ, ela disse, e leu em voz alta:


Eu e Thomas entramos na sala de aula. Não havia ninguém, mas ouvimos o barulho de uma cadeira sendo arrastada. Ouvimos passos, mas Thomas deu uma pisada e sentiu que bateu em alguma coisa e uma janela quebrou. Achamos que fosse uma cadeira invisível, mas era uma armadilha que Grete tinha preparado para nós.


Bibbi Bokken balançou a cabeça com um ar meditativo.

— Grete deve ser uma menina com muita imaginação — ela disse.

Não dissemos nada. Então Berit leu uma história sobre um menino chamado Arne que fez uma competição de leitura com um dragão.

Peguei uma folha. Parecia ter sido arrancada de um livro. E na folha estava escrito:


Aqui em cima nada nos amola,

Juntos tomamos uma coca-cola,

Nils e Berit, assim nos chamamos,

Férias fantásticas aqui passamos.

Nos divertimos muito no verão

E não queremos ir embora não!


— Foi você quem arrancou esta página do livro de visitas? — perguntei.

Bibbi Bokken ficou vermelha, mas não muito.

— Um delito relativamente pequeno — ela disse.

Berit havia colocado Arne e o dragão novamente na pasta. Ela veio até nós.

— Talvez ainda não esteja totalmente pronto — ela disse.

— Não — disse Bibbi Bokken. — Esta é apenas a introdução. Foi quando vocês foram embora que tudo realmente começou, não é?

De repente, tive a sensação de estar prestes a compreender algo que estava bastante confuso até então. Eu disse a primeira coisa que me veio à cabeça. E isso muitas vezes é a melhor coisa a dizer.

— Já vimos a biblioteca mágica de Bibbi Bokken. Agora quero ver o livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

— Então venham comigo — disse Bibbi Bokken.

 

Eu me inclinei para ver o poema que Nils e eu havíamos escrito no livro de visitas da cabana. Por que Bibbi Bokken o arrancara de lá? Por que ela se interessava pelas coisas escritas por crianças? Ou ela tinha um outro objetivo? Senti um pouco de vaidade ao achar que ela havia analisado detalhadamente o nosso poema. Por isso, eu disse:

— Talvez ainda não esteja totalmente pronto...

Ela parou e olhou para mim. Ela parecia pensar: “Vamos lá, Berit”. Então disse:

— Não. Esta é apenas a introdução. Foi quando vocês foram embora que tudo realmente começou, não é?

De certa forma, isso também era verdade. Depois Nils foi para casa e Billie Holiday sugeriu que nos correspondêssemos usando um livro de cartas.

Seguimos Bibbi Bokken e saímos da biblioteca mágica, que estava repleta de histórias e poemas inacabados escritos por crianças.

Quando atravessamos o armário e voltamos para a outra sala, Mario Bresani olhava animado para nós. Ele lançou um olhar para o livro que Nils segurava na mão e disse:

— Il momento di verità!

E subiu atrás de nós a escada em caracol que conduzia à sala de estar.

— O que ele disse?

— Ele disse que está chegando o momento da verdade — disse Bibbi Bokken sorrindo.

O momento da verdade, pensei. Eu não tinha dito algo parecido?

Bibbi Bokken havia posto a mesa com pratos, xícaras e coca-cola. No centro da mesa havia meia rosca de amêndoas e uma grande travessa com bolinhos de passas caseiros.

Pelo jeito Nils estava com fome, pois foi logo se sentando. Por via das dúvidas, colocou o livro de cartas debaixo do seu pires. Ele ainda estava com medo de que alguém pudesse roubá-lo? Ou o medo era de que Bibbi Bokken de repente exigisse suas dez coroas de volta?

— Bem, vamos nos sentar — disse Bibbi Bokken. — Por favor, sirvam-se.

Logo a seguir, algo sobre a mesa pareceu chamar a atenção dela, mas não era o livro de cartas sob o pires de Nils.

— Estranho — disse ela. — Eu podia jurar que tinha mais bolinhos de passas...

Eu não me senti atingida, pois quando Bibbi Bokken havia posto a mesa Nils e eu já estávamos na biblioteca.

Ela foi até a cozinha e voltou com um bule de café. Quando ela se sentou, Nils deu uma mordida num bolinho e disse:

— Os bolinhos estão deliciosos, Bibbi! Mas, se este é o “momento da verdade”, talvez seja o caso de darmos uma olhada no belo livro que vai ser publicado no ano que vem.

Bibbi Bokken riu e Mario Bresani riu também. Eu não ri, pois agora estava entendendo. Eu só não podia compreender como ela havia conseguido...

Ela olhou para Mario Bresani e estalou os dedos. O silencioso italiano enfiou lentamente uma mão no bolso do casaco. A seguir, colocou um livrinho minúsculo entre mim e Nils. Não era muito maior do que uma caixa de fósforos, tinha a figura de um leão vermelho na frente e parecia muito antigo. Na capa, havia algo impresso em letras quase ilegíveis:

— Almanaque — eu li.

Bibbi Bokken inclinou a cabeça afirmativamente.

Os olhos de Nils pareciam querer saltar para fora.

— Este é o livro sobre a biblioteca mágica? — ele perguntou.

Bibbi estava se divertindo.

— Este almanaque foi publicado muito antes de existir uma Bibbi Bokken. É um calendário do século XVII. No ano que vem, vai fazer exatamente trezentos e cinquenta anos que ele foi impresso...

— O Ano do Livro! — exclamei. — Patrocinado pela rainha Sônia. O Almanaque foi o primeiro livro impresso na Noruega.

Bibbi estava radiante:

— Você sabia disso também, Berit?

Eu sacudi os ombros.

— Conheço um escritor — eu disse. — Ele sabe onde está escondido o esqueleto.

Nils tinha pegado o livrinho e começado a folhear. Então ele disse, com a boca cheia de bolinho de passas:

— É um livro de bruxaria, Berit. Com certeza! Tem aqueles sinais misteriosos... os símbolos antigos das estrelas e dos planetas...

Ele se debruçou sobre o livro e tentou ler as letras antigas.

— “Quen sonha ou pressente que vae perder un dente, na verdade perde un bon amigo...”

Ele olhou para mim e balançou a cabeça energicamente:

— Um livro de bruxaria, sim, senhora.

Parecia que a qualquer momento ele ia se levantar e sair correndo. Mas Bibbi disse:

— Ou, mais precisamente, um velho almanaque. Mas você não deixa de ter razão, pois se trata de uma miscelânea de ciência e antigas superstições. Mas não se esqueça de que ele tem trezentos e cinquenta anos.

Nils não se deu por satisfeito. A cor de seu rosto lembrava os tomates que tinham sido servidos naquela noite no restaurante do hotel.

— Então talvez você possa nos contar o que este livro tem a ver com Berit e comigo — ele disse. — Ou com a biblioteca mágica.

Mario Bresani lançou um olhar severo para Bibbi Bokken.

— Vuota il sacco! — ele disse.

Olhei para ela.

— Ele disse para eu contar tudo de uma vez — ela explicou.

— Isso mesmo — exclamou Nils.

Agora ele já não era mais o comissário-chefe Torgersen da Agência de Detetives Bøyum & Bøyum. Era apenas Nils.

— Exijo uma resposta agora mesmo — ele disse. — Senão vou para o hotel falar com o Smiley. Existe um livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken ou não?

Eu ri. E Bibbi Bokken riu também.

— Ele está debaixo do seu pires, Nils — ela disse.

A cara de Nils era um longo espetáculo de mímica.

Eu fazia ideia dos pensamentos e perguntas que estavam passando pela cabeça dele. No final, ele disse:

— Acho que estou um pouco lento...

— Posso dar uma olhada no livro? — perguntou Bibbi Bokken. — Acho que vocês entendem que eu esteja muito curiosa.

Nils olhou para mim. Eu assenti com a cabeça.

Então ele levantou seu pires e empurrou o livro para Bibbi Bokken. Ela deu um sorriso largo e começou a folheá-lo no mesmo instante. Nils pegou mais um bolinho de passas, embora ainda houvesse um pela metade no seu prato. Eu comecei a trocar olhares com Mario Bresani. Ele inclinou a cabeça apontando para Nils e sussurrou:

— Molto temperamento!

Tive que concordar com ele.

Só depois de um bom tempo Nils voltou a falar. Pelo jeito, ele refletira profundamente.

— E o livro de cartas... quer dizer que ele será publicado no ano que vem?

Bibbi confirmou com a cabeça, e agora o meu pobre primo parecia realmente ter perdido o pé. Ele disse, ofegante:

— Nós... nós escrevemos um livro juntos, Berit! Nós criamos uma história inteira.

— Sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken — eu disse. — É assim que ele vai se chamar.

Mas Nils já estava pensando em outra coisa:

— Mas o que o nosso livro de cartas tem a ver com este velho almanaque?

Bibbi Bokken levantou-se e tirou um cachimbo muito fino de dentro de uma cômoda. Encheu o cachimbo de tabaco e o acendeu com um fósforo. Enquanto ainda estava no meio da sala, soprando espessas nuvens de fumaça, ela disse:

— Esta é um longa história... que, como eu disse, começou há trezentos e cinquenta anos, quando este almanaque foi impresso em Christiania. Foi o primeiro livro editado na Noruega. Vocês não acham que é motivo para comemorar?

— Por mim, tudo bem — disse Nils. — Só que ainda não estou entendendo o que isso tem a ver com Berit e comigo.

Bibbi Bokken continuou a contar:

— Faz alguns meses, fui consultada pelo comitê de organização do Ano Norueguês do Livro. Eles queriam um livro para ser distribuído gratuitamente em todas as sextas séries da Noruega, e me perguntaram se eu não queria escrever esse livro.

Nils apenas deu de ombros, e a mulher de vestido vermelho continuou a falar, fumando seu cachimbo e dando voltas pela sala.

— Eu aceitei — ela disse. — Mas achei que seria uma ideia melhor se esse livro fosse escrito por crianças. Quando li o poema no livro de visitas da Cabana Flatbre, decidi fazer uma tentativa com vocês. Eu realmente gostei muito do poema.

Mario Bresani fez um gesto de aprovação, mesmo sem ter ouvido nem visto o que Bibbi tinha dito.

— Fazer uma tentativa? — repeti. — Mas como? Simplesmente não entendo como você nos levou a fazer isso.

Bibbi Bokken andou até a mesa e ergueu o livro com a foto do fiorde Sogne na capa. Então ela disse:

— Aqui estão todas as explicações. Se entendi bem, vocês mesmos esclareceram toda a história.

Depois ela começou a folhear o livro e a ler trechos escolhidos ao acaso.

— “... que bom ter visto você nesse verão. Foi realmente muito legal... Você se lembra daquela mulher esquisita? Aquela de olhos arregalados que andava com um livro todo amassado na bolsa? ... tive a sensação de que ela estava me lendo por dentro como um livro aberto.”

Ela olhou para Nils e disse:

— Muito bom, Nils. Essa foi uma grande entrada. E depois entrou Berit...

Ela se inclinou novamente sobre o livro de cartas e leu algumas frases.

— “... quando ela abriu a porta da casa, alguma coisa saiu voando da bolsa dela... mas me apoderei de um pequeno envelope que estava no chão e corri de novo para trás do muro.”

Bibbi ergueu o olhar mais uma vez, e depois continuou a ler:

— E agora vem a carta de Siri: “Querida Bibbi, andei a manhã inteira pela cidade, mas simplesmente não consigo reencontrar aquele estranho sebo. ... Na capa havia uma foto de umas montanhas muito altas... O importante é a data em que o livro foi publicado em Oslo. Em algum momento do ano que vem... Esse volume é mais valioso do que o mais caro dos incunábulos...”.

Eu me endireitei na cadeira.

— Então Bresani também participou? Ele tentou convencer Siri de que tinha um livro que só seria publicado no ano que vem?

Bibbi Bokken parou e me olhou nos olhos. Então disse apenas:

— Siri?

Eu não sabia o que responder, pois pouco a pouco estava me dando conta de uma coisa.

E se não existisse nenhuma Siri? E se aquela carta fosse falsa? Então nós tínhamos realmente caído como dois patinhos.

— Você está dizendo que não existe nenhuma Siri? — perguntei. — Que não foi ela que escreveu a carta que caiu da sua bolsa?

Ela continuava olhando para mim.

— Caiu?

Eu não precisaria ter dito mais nada, até Nils soltou um gemido. Mesmo assim, eu disse:

— Acho que você tem olhos na nuca.

Ela deu um sorriso muito expressivo.

— Quem lê muitos livros acaba criando olhos em lugares estranhos.

Nils colocou sua coca-cola na mesa com um pouco mais de força do que o necessário. Ele sacudiu a cabeça e disse:

— Isso não faz nenhum sentido!

Bibbi virou-se para Nils e ele disse:

— Você viu a gente escrever o poema no livro de visitas. Mas isso a gente sabia o tempo todo. Nesse ponto, não houve nenhum truque. Depois eu comprei um álbum de poesias em Sogndal e não esqueci de modo algum que lhe devo dez coroas. Mas não foi ideia sua que Berit e eu usássemos o livro para trocar cartas.

Bibbi Bokken soprou um anel de fumaça sobre a mesa.

— De quem foi a ideia então?

Respirei fundo e tapei a boca com a mão.

— Billie Holiday — cochichei.

Bibbi estalou a língua, satisfeita.

— Uma senhora muito inventiva.

— Foi você que...

— ... dei a ideia a ela? Sim. Eu plantei a semente dessa ideia na cabeça dela. Às vezes essas ideias florescem, às vezes não.

— Caramba! — exclamei.

Bibbi continuou a contar.

— De vez em quando, Billie e eu nos encontramos no correio. Às vezes conversamos um pouquinho. Acho que ela fica espantada com o número de pacotes que recebo da Itália.

Nils pigarreou. Acho que a palavra-chave foi Itália.

— Obviamente foi você quem mandou o poema para o hotel em Roma... para me atrair para o sebo. Mas como soube que eu iria a Roma?

— Tenho olhos na nuca, Nils. Tenho olhos por quase todo o corpo. Ler livros deixa a gente esperta.

— Certo, certo — disse Nils. — Caso não queiramos falar de espionagem agora. Afinal não foi você quem me mandou para Roma.

— Oh, fui, sim!

Nils pulou da cadeira.

— Mentira! — ele disse. — Fomos para Roma porque a minha mãe ganhou uma viagem num concurso idiota de contos. Talvez você não saiba que ela é escritora e...

Bibbi Bokken parou, seu olhar parecia distante. Então ela disse:

— “Você se lembra de Roma, meu amor? Da basílica de São Pedro, do Coliseu, do Panteão, da escadaria da piazza di Spagna, da piazza Navona? Ou você se esqueceu de tudo? Nosso amor está amarelecido....”.

— Já chega — bufou Nils. — Berit que continue se quiser, eu desisto. Essa história ainda nem foi publicada.

Eu olhei para ela.

— Você não trabalha nessa revista. Ou trabalha? — perguntei.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, mas fiz parte do júri desse concurso. É importante que as pessoas escrevam, Berit! A história da senhora Bøyum não era pior do que as outras... e por isso ela ganhou. Eu achei ótimo e, quando soube que a família viajaria para Roma, fui logo me informando sobre o hotel. Nils recebeu o meu poema e encontrou o caminho até Mario, que lhe entregou as folhas que deveria trazer para a Noruega. Na verdade, Mario deveria mostrar-lhe seu belo sebo... para lhe dar assunto sobre o que escrever. Mas eu já soube que isso não deu certo...

Nils olhou para ela e disse:

— Por causa de um certo Marcus Buur Hansen...

Primeiro ela fez que sim. Depois sacudiu vigorosamente a cabeça e concluiu a frase de Nils:

— ... que, ao que tudo indica, possui planos bem diferentes dos nossos para o Ano do Livro.

Ela já havia olhado diversas vezes para o relógio. Agora olhou novamente. Inclinou-se para o italiano surdo e disse:

— Tazze e piattini, per favore.

Ele se levantou e foi até a cozinha. Bibbi foi até a cômoda e bateu as cinzas de seu cachimbo. Depois tentou fazer um resumo:

— Fiquei impressionada com duas crianças que escreveram um poema divertido na Cabana Flatbre. Depois disso, dei a Billie a ideia de sugerir a vocês que se correspondessem usando um livro de cartas. Quando encontrei Nils na livraria, achei que seria justo que eu participasse dos custos. Ah, sim, eu também fiquei me fazendo de misteriosa para que vocês tivessem algo sobre o que escrever. Na barca, por exemplo, quando fiquei falando sozinha sobre a classificação decimal de Dewey. Afinal, vocês deveriam ter algumas pistas. Escrevi a carta de Siri numa outra viagem de barca, e no caminho de volta para casa tive a sensação de que alguém me espreitava o tempo inteiro. De resto, não é difícil deixar algo cair da bolsa quando se pega a chave de casa. E outras vezes deixa-se a porta aberta — para que visitas não convidadas não precisem arrombá-la. Quando não há nada para encontrar, é claro. Bem, sei que deveria ter limpado melhor atrás do sofá, mas fazer o quê? E é isso. O livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken foi escrito por vocês. Eu apenas acendi algumas lâmpadas à noite, e as duas mariposas foram atraídas pela luz. E...

Eu a interrompi.

— Isso foi muito atrevimento. Você nos enganou o tempo todo.

Ou ela se ofendeu ou apenas fez de conta que havia se ofendido. No caso de Bibbi Bokken, essas coisas não eram muito fáceis de saber.

Ela disse:

— Também não é um pouco atrevido espionar uma velha bibliotecária que... é um pouco diferente? Ou escrever certas histórias de crime e assassinato?

Mario saiu da cozinha e pôs duas xícaras e dois pires sobre a mesa. Logo depois alguém tocou a campainha.

Nils teve um sobressalto.

— O Smiley! — ele disse.

Bibbi Bokken correu para a entrada e abriu a porta. Eu vi duas pessoas de meia-idade que nunca tinha visto antes.

Eu me virei para Nils — e nesse momento seu rosto ficou branco como giz e ele escorregou para a ponta da cadeira. Seus olhos estavam brilhantes e arregalados como duas moedas de cinco coroas.

— Sente direito — eu disse com austeridade. Como se eu fosse mãe dele.

Depois sussurrei:

— Você sabe quem são?

Ele confirmou com a cabeça, perturbado. Então me dei conta de que era a segunda vez naquele dia que ele reconhecia pessoas que eu nunca tinha visto em toda a minha vida.

— Aslaug e Reinert Bruun — ele suspirou.

Nesse momento, lembrei-me do casal de professores que chegaria ao hotel com a última barca.

E então eu também suspirei.

 

Logo a seguir os dois estavam na sala.

— Que bom vê-lo, Nils! Aproveitando as férias de outono, pelo que vejo...

— E você deve ser Berit. Muito prazer em conhecê-la.

— O prazer é meu — eu disse.

Por um momento, me perguntei se Nils não tinha razão com sua teoria estapafúrdia de que todos eles tinham se conhecido em alguma seita religiosa que manipulava a fantasia das crianças e a utilizava para fins doentios.

Agora éramos seis sentados em volta da mesa. Bibbi fizera mais um bule de café e trouxera a segunda metade da trança de amêndoas, Mario Bresani trouxe mais coca-cola.

— Tenho certeza de que assei mais bolinhos — disse Bibbi Bokken para si mesma.

Acho que ninguém ouviu além de mim. Será que ela estava querendo dizer que visitas indesejadas haviam entrado na casa? Claro, era isso. Talvez o Smiley tivesse bisbilhotado a casa à procura do livro de cartas, enquanto estávamos lá embaixo na biblioteca mágica. Mas o que ele queria com isso? E por que Bibbi Bokken achava que o Smiley tinha planos diferentes dos dela para o Ano do Livro?

Depois que terminamos de trocar frases de cortesia, Nils perguntou, sem rodeios:

— Isto aqui é uma conspiração?

Todos, menos Nils e eu, riram com a pergunta. A risada mais animada foi a do homem surdo, que não tinha entendido a pergunta de Nils. Mas é perfeitamente possível rir de um rosto desconcertado mesmo quando não se pôde ouvir as palavras desconcertadas que saíram de sua boca.

— Podem rir — disse Nils. — Mas se for uma conspiração, vou contar tudo para o diretor da escola.

Os outros riram novamente.

— Se fosse uma conspiração, seria uma conspiração de bolinhos de passas — disse Aslaug. — Não faz muito tempo que comemos bolinhos juntos. Muito mais agradável do que no Café Skalken...

Nils não estava achando nada engraçado. Fiquei com um pouco de pena dele, por isso tentei ajudá-lo fazendo uma pergunta a Bibbi Bokken:

— O professor de Nils também tem alguma participação no Ano do Livro?

— Na verdade, não — ela disse. — Mas Nils escreveu uma redação muito divertida e então...

“Mas os professores não têm o dever de manter sigilo?”, perguntei a mim mesma. Acho que eles não podem ir mostrando as redações dos alunos para Deus e o mundo.

Reinert Bruun pigarreou.

— Nils é um garoto com muita imaginação. No outono ele entregou uma... bem... uma redação muito imaginativa, que falava de uma certa Bibbi Bokken. Eu sabia que Bibbi Bokken havia estudado com Aslaug na universidade. Aslaug mencionara esse nome algumas vezes. Mostrei a redação para minha mulher... e foi só isso.

— Mas fazia muito tempo que eu não via Bibbi Bokken — acrescentou Aslaug. — A redação de Nils me levou a telefonar para ela. Eu queria perguntar se ela tinha alguma ideia de como um aluno de Reinert podia conhecer o nome dela e até mesmo escrever uma redação contando que ela tinha... bem... que ela tinha se mudado para Fjærland.

— Eu dei boas risadas — confessou Bibbi Bokken. — Acho que acabei contando um pouco sobre o projeto do livro e sugeri que vocês convidassem Nils para ir à sua casa... e conversassem um pouco com ele sobre como escrever.

Aslaug olhou para Nils e disse:

— E quando você me telefonou e disse que queria se encontrar comigo no Café, resolvi ir por causa de Bibbi Bokken. Ela estava morrendo de curiosidade para saber o que vocês estavam fazendo.

Nils estava estupefato.

— Então foi pelo menos uma miniconspiração — ele disse.

Seu humor parecia estar melhorando. Talvez porque de repente tivesse a sensação de compreender o que estava acontecendo na sua vida. Mas isso não durou muito, pois ele pensou em mais uma coisa.

— Mas há mais uma pessoa — ele disse.

Acho que Bibbi Bokken foi a única que entendeu em que ele estava pensando. Nils disse:

— É aquele sujeito asqueroso que nos últimos tempos tem aparecido em todo lugar aonde eu vou. Ele também foi à casa de Aslaug e Reinert. Ele se chama Marcus “Smiley” Buur Hansen. Ele também está participando do Ano do Livro? Porque, se estiver, estou fora.

Todos na mesa ficaram em silêncio.

— Répondez s’il vous plaît — disse Nils.

Pela primeira vez naquela noite, Bibbi Bokken parecia preocupada.

— Infelizmente — ela disse. — Infelizmente, esse homem foi designado como uma espécie de diretor de divulgação do Ano do Livro. Não entendo por quê...

A conversa não foi muito além disso. Falamos um pouco mais sobre o livro de cartas. Bibbi, Aslaug e Reinert fizeram fila para lê-lo. E não faltaram elogios.

Bibbi disse que na manhã seguinte deveríamos viajar para Oslo com o livro. A editora já tinha pagado a viagem. E nós receberíamos um montão de dinheiro pelo livro, afinal nós é que tínhamos escrito — embora Bibbi Bokken tivesse nos fornecido o argumento.

— Mas o livro ainda não está totalmente pronto — ela disse ao final. — Em Oslo vocês precisam escrever a solução do enigma. Senão os leitores ficarão decepcionados. Somente quando lerem a solução, terão chegado ao objetivo. E o objetivo deste livro é a história do caminho até o objetivo.

Mal ela acabou de dizer isso, ouvimos um barulho no andar de cima. Todos, menos Mario Bresani, tiveram um sobressalto. Bibbi Bokken virou-se para mim e disse:

— Era exatamente isso que eu temia. Afinal de contas, sempre conto quantos bolinhos eu assei.

Balancei a cabeça.

— É, afinal de contas ele não teve tempo de comer direito no hotel.

Bibbi Bokken disparou para a escada. Nils olhou para mim e sussurrou:

— O Smiley?

Ouvimos vozes alteradas no primeiro andar:

— Agora você realmente foi longe demais, Marcus! Vou ter que denunciá-lo por invasão de domicílio.

— Faça isso. Mas eu quero este livro. E quero agora!

— Você está louco!

— Você não acreditou numa única palavra do que eles escreveram, não é? Eles me retrataram como um patife!...

— Pois é, eles têm um excelente senso de observação.

Era tanto barulho que parecia que eles estavam rolando escada abaixo. Quando chegaram à entrada, o Smiley olhou rapidamente para a sala. Dessa vez, não estava sorrindo. Quando viu o livro de cartas sobre a mesa, disse:

— Achei!

Reinert cobriu o livro com a mão e Aslaug se virou. Obviamente éramos seis contra um. Talvez por isso Nils tenha se atrevido a se levantar e dizer:

— E não foi Bibbi quem pegou o livro do seu quarto, Smiley. Fui eu. Eu estava no terraço quando você ligou para ela. Eu... eu quase morri de rir.

O Smiley lançou um olhar acusador para Bibbi Bokken. Parecia que lhe tinham roubado todo um sistema solar.

Ela balançou a cabeça confirmando.

— Afinal de contas, o livro era dele. Agora você poderia fazer a gentileza de sair desta casa?

Ele girou sobre os calcanhares e saiu desabalado. Mas antes ainda disse bem depressa:

— Você vai se arrepender, Bibbi.

Depois que ele bateu a porta e Bibbi Bokken voltou à sala, ela tinha um sorriso que ia de orelha a orelha.

— Esse homem trabalhou desde o começo contra o livro do jubileu — ela disse.

Pouco depois, todos os hóspedes do hotel andavam por Mundalsdalen. E éramos todos hóspedes, menos Bibbi Bokken. Quando nos despedimos, ela disse um montão de coisas em italiano para Mario Bresani. Mas, assim como o encantamento da Cinderela se desfez após a meia-noite, de repente eu tinha perdido a capacidade de entender essa língua.

A tempestade passara. As estrelas brilhavam entre as altas montanhas e podíamos olhar para longe no espaço.

Certo dia no passado, nesse planeta foi impresso um almanaque.

Não invejei Berit por ser ela quem escreveria a solução do mistério. Não tínhamos nenhuma fita gravada ou coisa parecida, e não eram poucos os fios que Bibbi Bokken tinha atado naquela conversa. Mas nós dois achamos que era Berit quem deveria fazer isso. Ela tem mais controle sobre os seus pensamentos do que eu, por assim dizer. Além disso, Bibbi Bokken é uma excelente preparadora de texto. Na edição de um livro, o preparador tem a função de criticar, fazer sugestões e colocar questões complicadas para os autores. Agora sabemos disso, pois estamos trabalhando no ramo editorial.

Mas um fio importante ficou para mim. Esse fio se chama Marcus “Smiley” Buur Hansen e dele não podemos esperar nenhuma ajuda. Ele é o vilão desse livro e vilões são a minha especialidade. Sigam-me!

 

Eu estava com bastante medo quando voltamos para o hotel. O livro de cartas estava comigo, e eu tinha certeza de que o Smiley já descobrira qual era o meu quarto e estava apenas esperando o momento em que eu estivesse sozinho para vir para cima de mim e roubar o livro mais uma vez. Cheguei a pensar em dá-lo a Berit, mas isso eu não ia fazer. Não sou do tipo que transfere seus problemas para mulheres (garotas) indefesas.

Disfarcei o medo e me senti valente como o Leitão, quando a casa do Corujão é derrubada pela tempestade e o porquinho amedrontado vai se equilibrando por uma cordinha até a caixa do correio para ir buscar ajuda.

Quando estávamos na recepção, depois que Reinert e Aslaug Bruun nos deram boa-noite, reparei que a vigia noturna olhava para Berit como se ela fosse uma terrorista que poderia jogar uma bomba no hotel a qualquer momento. Mas ela não disse nada. Pedi a minha chave e pensei num final bem legal para o livro:

“O jovem herói, Nils Bøyum Torgersen, morre numa heroica luta para salvar o livro que escrevera como coautor. Sem pensar em sua própria segurança, ele se sacrifica pela liberdade de opinião”.

Dei uma olhada para Berit e Bresani, e vi que Bresani gesticulava exaltado e apontava para mim. Por um instante desesperado, me perguntei se aquilo também não tinha sido planejado. Talvez Bresani estivesse tentando explicar a Berit que seria um formidável final para o livro se um dos protagonistas morresse lutando contra o vilão. Então me dei conta de que não haveria livro nenhum se ele caísse nas mãos do Smiley. Pelo menos não um livro com o Smiley no papel de vilão.

Tentei sorrir, e já ia pegar a chave para subir a escada e me entregar ao meu tenebroso destino quando Berit disse:

— Você não pode ir com o livro para o seu quarto. O Smiley pode aparecer mais tarde. Com certeza, ele sabe onde você vai dormir.

— Já lutei com fantasmas piores — eu disse, e notei que estava tremendo.

Berit riu.

— Mas por dentro você não é tão durão quanto por fora, não é, Nilsinho?

Ela tinha percebido tudo, como se eu fosse transparente. As garotas sempre fazem isso.

— O que devo fazer então? — perguntei um pouco irritado.

— Trocar de quarto com Mario.

Ela ainda nem tinha acabado de falar e eu já tinha percebido que se tratava de um plano simples e genial. Quando o Smiley entrasse sorrateiramente no quarto para roubar o livro de cartas, não encontraria na cama um garotinho norueguês, e sim um homenzinho italiano. Mas se ele encontrasse o homenzinho italiano na cama do garotinho norueguês, então o homenzinho...

— Mas e o Mario? — perguntei.

Ele estava olhando para a minha boca. Embora Mario Bresani não falasse norueguês, ele sabia “ler” diversas línguas além do italiano. De repente ele estendeu a mão para mim, e no instante seguinte parecia que eu estava voando. Dei um gracioso salto mortal, controlado pelo braço peludo de Mario Bresani.

Estava convencido de que ia me esborrachar com o nariz no chão, mas Mario me segurou elegantemente em seus braços, como se eu fosse um bebezinho. Foi um pouco constrangedor.

Ele me colocou de novo no chão e sorriu com seus dentes brancos como o giz.

— Judò — ele disse.

Eu estava perturbado e aliviado ao mesmo tempo. Trocamos de chave e mudamos as bagagens de quarto. Dei boa-noite a Berit, fui para o quarto e adormeci quase instantaneamente.

Sonhei que lutava contra o Smiley na final do campeonato mundial de judô. Foi uma luta dura, e o Smiley gritava e rugia a cada vez que eu o derrubava. Fui acordado por alguma coisa que pensei ser o apito do juiz, mas era Berit ao telefone dizendo que eu precisava me levantar imediatamente, se quisesse tomar café da manhã. A barca partiria dali a uma hora.

Quando passei pelo quarto 151, ouvi fortes pancadas do lado de dentro.

— Bresani! — gritei. Eu ainda não tinha acordado direito, e tinha me esquecido de que ele era surdo. Mas o homem atrás da porta não era Bresani. As batidas pararam e ouvi aquela inconfundível voz melosa tentando soar amável.

— Ah, é você, Nils? — disse a voz. — Por favor, abra a porta. Eu gostaria de lhe fazer uma oferta.

— Uma oferta muito compensadora, não é? — gritei.

— Isso mesmo — respondeu o Smiley com voz de manteiga derretida. (Não gosto de manteiga.)

— Sinto muito — eu disse. — Agora estou a caminho da editora com o livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

Eu devia ter mordido a língua. Não poderia ter dito coisa mais idiota. Agora ele sabia para onde estávamos indo. Pelo menos, eu não havia revelado o endereço da editora.

Saí correndo pelo corredor e ainda ouvi os estrondos e palavrões do Smiley, que se arremessava contra a porta trancada.

Berit e Bresani estavam sentados no restaurante. Eu não estava com muito apetite.

— Smiley — eu disse, apontando para o teto.

Bresani pegou um ovo e o jogou para cima. Então o pegou no ar e bateu com ele em cima da mesa, fazendo a casca arrebentar. Pareceu um pouco macabro, mas eu sabia que ele não tinha esmagado o crânio do Smiley.

— Judô? — eu perguntei.

Bresani fez que sim, pegou uma chave do bolso e a balançou na nossa frente. Não era preciso dizer nada. Ele olhou para o relógio e se levantou.

— E adesso, avanti, amici miei! — ele disse.

Entendemos que estava na hora de abandonar o local do crime.

Bresani nos acompanhou até a barca. Quando íamos embarcar, o Smiley chegou correndo. Pelo jeito, ele tinha conseguido arrombar a porta. Mas não parecia estar muito bem. Seus cabelos estavam desgrenhados, e um braço pendia frouxo e imóvel ao longo do corpo.

— Avanti — exclamou Bresani mais uma vez. — Forza!

Corremos para a barca.

Quando olhamos para trás, Bresani tinha se virado. Ele estava de braços abertos como se fosse abraçar calorosamente o homem que vinha correndo. O Smiley parou a dez metros do calígrafo e faixa preta italiano. Berit acenou para ele.

— Levantar âncora — ela gritou.

— Você está maluca? — sussurrei, mas ela apenas riu.

— Ele não virá — ela disse.

E tinha razão. Como sempre. O Smiley parecia petrificado olhando para Bresani. Embora ele estivesse muito longe para podermos ouvi-lo, tenho certeza de que estava praguejando. Bresani deu um passo na direção dele.

O Smiley deu um salto, fez meia-volta e voltou galopando para o hotel.

Bresani virou-se e acenou para nós. Nós acenamos para ele também, enquanto a barca deixava o cais de Fjærland rumo ao derradeiro capítulo.

 

Quando o trem chegou a Oslo, era muito tarde para ir à editora. Para grande alegria dos meus pais, Berit passou a noite conosco, e na manhã seguinte tomamos um táxi.

Eu nunca tinha estado numa editora antes, mas imaginava uma espécie de casa encantada com salas escuras e longos corredores, pelos quais perambulavam homens com calças de veludo e óculos de tartaruga, mulheres com boinas e capas esvoaçantes, todos lendo grossos livros e murmurando coisas consigo mesmos. A realidade era um pouco diferente.

Encontramos o endereço que Bibbi Bokken tinha nos dado, e descemos do táxi na frente de um edifício gigantesco em pleno centro da cidade. Se eu não soubesse, diria que era sede de uma companhia de seguros, e não uma editora. Mas em certo sentido era isso mesmo. Uma editora assegura nosso cérebro contra ressecamento.

Nosso primeiro problema foi encontrar a entrada. Demos duas voltas ao redor do edifício, mas só encontramos diversas entradas de serviço. Todas trancadas, é claro. No final, pedimos informação no ponto de táxi da esquina, e um motorista gordo e muito simpático, que estava no final da fila, levou-nos até a única porta que ainda não havíamos tentado abrir.

Entramos numa espécie de recepção, onde uma mulher olhava para nós de dentro de uma caixa de vidro. Parecia que estávamos na bilheteria do cinema.

— Duas crianças para a editora — eu disse.

— Não entendi muito bem.

— Nós escrevemos um livro — disse Berit.

— Um livro?

Berit fez que sim.

— Vocês têm certeza? — perguntou a mulher, que parecia estar segurando uma risada.

— Mais ou menos — murmurei.

— Sim — disse Berit corajosamente. — Certeza absoluta. Nós...

Felizmente fomos poupados de maiores explicações, pois nesse momento uma senhora baixinha e jovial saiu do elevador e veio até nós.

— Berit Bøyum e Nils Torgersen Bøyum? — ela perguntou.

Confirmamos com a cabeça, emudecidos.

A mulher estendeu a mão e sorriu satisfeita.

— Estávamos esperando por vocês — ela disse. — Eu me chamo Gerda Lothe e sou a responsável pela programação da editora.

Ela nos levou até o elevador, que então subiu até o sexto andar.

Havia uma cantina e alguns corredores que conduziam a um grande número de salas.

— A minha sala fica ali atrás — ela disse, apontando para um corredor. — Se precisarem de alguma coisa, falem comigo. Ele já está esperando por vocês. Segunda porta à esquerda. Podem entrar sem bater.

Ela apontou para um outro corredor.

— Vocês querem uma coca-cola?

Ele? Eu não estava entendendo mais nada.

— Sim, por favor — disse Berit.

Com nossas cocas na mão, fomos até a porta que a sra. Lothe apontara.

— Um, dois, três — disse Berit. — Lá vamos nós.

Ela abriu a porta. O homem atrás da escrivaninha levantou-se sorrindo. E em toda a minha a vida eu nunca estive tão perto de desmaiar de terror.

ERA O SMILEY!

Tentamos sair o mais depressa que pudemos, mas ele foi mais rápido que nós.

Com um pulo de tigre, ele alcançou a porta, apoiou-se contra ela e disse em voz baixa:

— Então nos encontramos novamente, meus queridos amigos.

Ele tirou uma chave do bolso e agitou-a com ar triunfante diante de nós. Achei que ele fosse engoli-la. Minhas calças tremiam tanto que eu devia estar parecendo um paraquedista. Já Berit parecia manter o sangue-frio.

— Como está o seu braço, Buur Hansen? — ela perguntou. — Andou exagerando um pouco nos treinos de judô ultimamente?

Fiquei tão impressionado que quase aplaudi, apesar de todo o medo. O Smiley apertou os olhos.

— Ah, não fale assim comigo — ele disse.

— Como não? — disse eu. — Falamos sim, nós dois...

— Feche o bico, garoto — vociferou o Smiley.

Eu fechei o bico. Às vezes, sou um garoto de poucas palavras.

Ele estendeu a mão.

— O livro — ele disse.

Sei que eu deveria ter dito “só por cima do meu cadáver”, mas continuei de bico fechado. Berit sacudiu a cabeça em sinal de recusa.

— Ele me pertence — disse o Smiley.

— Não — disse Berit. — Ele pertence a nós e à editora. Ele vai ser publicado no Ano do Livro e distribuído para as crianças da sexta série em todo o país.

— Então você poderá ter um exemplar — eu disse, um pouco idiota.

O Smiley riu. Foi a primeira vez que o ouvi rir, e não era uma risada agradável. Parecia um crocodilo resfriado.

— A senhora Bokken não contou a vocês que fui designado para ser o responsável pela divulgação do livro de vocês?

Ela tinha dito, e por isso a única coisa que pudemos fazer foi balançar a cabeça, emudecidos.

— Então, passe-o para cá!

A porta estava trancada, e ele era muito mais alto e mais forte do que Berit e eu juntos. Portanto, não tínhamos escolha.

Eu entreguei o livro. Ele se sentou atrás da escrivaninha e começou a ler. Isto é, fez de conta que estava lendo. Na verdade, ele já tinha lido tudo. Ele folheou o livro inteiro. Pulando umas dez páginas por vez. No mínimo.

— Infelizmente não é bom o bastante para publicar.

Ele pôs o futuro incunábulo em cima da mesa, colocou as duas mãos no peito e olhou para nós com um sorriso que pretendia ser triste.

— Sinto muito ter que dizer isto, mas o livro não é bom o bastante.

Essa afirmação era tão falsa quanto ele próprio, nós sabíamos disso. Mas o que podíamos fazer? Além de Berit e eu, apenas o Smiley e mais ninguém, nem mesmo Bibbi Bokken, tinha lido o livro inteiro. Ela estava convencida de que éramos capazes de escrever este livro, e tinha razão. Nós sabíamos disso, e o Smiley também sabia. Mas ele era um adulto e nós éramos crianças, e quem acredita no que as crianças dizem?

— O que pretende fazer com ele? — eu sussurrei, embora já soubesse a resposta.

— Vou guardá-lo para vocês — disse o Smiley, sorridente.

Eu estava com o coração na mão e acho que Berit também estava.

Ficamos olhando mudos para a mesa onde estava o livro, ao lado de um copo de café e um telefone. Nele havia diversas teclas numeradas, e ao lado de cada tecla tinha um nome escrito.

Então Berit fez uma coisa que na hora me pareceu uma grande burrice. Na verdade, foi a coisa mais inteligente que um nós já fez até agora, e se ela não tivesse tido essa ideia, este livro nunca teria sido publicado.

Ela se jogou sobre a mesa, pegou o livro e gritou:

— Este livro nos pertence! E você não vai ficar com ele, nem que a vaca tussa!

Então ela jogou o livro de cartas para mim.

— Corra, Nils — ela exclamou.

Aquilo me pareceu totalmente ridículo. Correr para onde? A porta estava trancada, e eu não estava com muita vontade de me jogar pela janela do sexto andar. Então fiquei parado no meio da sala, segurando o livro na mão. O Smiley veio para cima de mim imediatamente. Eu não sou nenhum faixa preta, e ele levou apenas um segundo e meio para tirar o livro de mim.

Berit não mexeu um dedo para me ajudar. Ao contrário. Ela parecia ter desistido do livro e continuava na frente da escrivaninha, de costas para mim.

Quando o Smiley voltou para a escrivaninha com o livro, ela se virou para mim e deu uma piscada. Respondi com um olhar mal-humorado.

— O jogo acabou — disse o Smiley.

— É o que parece — disse Berit lentamente. — Só tenho mais uma pergunta. Por que você odeia tanto o nosso livro? Você sabe que ele não é tão ruim quanto você diz.

Primeiro parecia que ele não ia responder, mas pelo jeito ele mudou rapidamente de ideia. Ele deu o sorrisinho de sempre e disse com sua voz de manteiga derretida:

— É verdade, minha filha. Ele não é ruim, eu digo, como produto de dois pirr... jovens como vocês.

Eu ia dizer algo de que talvez me arrependesse depois, mas Berit me deu um beliscão no braço.

— Justamente por isso — ela disse alto e bom som — queremos saber por que você não quer publicá-lo. Você foi contratado para divulgá-lo. É porque nós o retratamos como vilão?

O crocodilo tossiu novamente.

— Isso não tem nenhuma importância, minha filha — ele disse.

— Eu já tinha pensado nisso — disse Berit. — Pois se você tivesse roubado o livro do Nils porque realmente se interessa pelo nosso trabalho, não seria o vilão da história.

O Smiley parecia estar gostando daquela situação, e eu tinha a sensação de que era exatamente o que Berit pretendia.

— Pois bem — ele disse, e bebeu um gole de café. Uma gota marrom escorreu pelo seu queixo. — Posso abrir o jogo com vocês. É muito simples. Vocês já ouviram falar na Children’s Amusement Consult?

Eu fiz que sim.

— Mas não sabemos o que é — murmurei.

— É uma pequena empresa que produz vídeos de entretenimento para crianças. Sou o principal acionista.

— Conte mais — disse Berit.

Olhei para ela. Ela fez cara de quem estava impressionada. Eu não estava entendendo mais nada.

— Somos mais ou menos concorrentes do ramo editorial. — disse o Smiley. — Muitos ainda não entenderam isso, mas o tempo do livro já era. É por isso que desde o começo fui contra o projeto desse livro.

— Mas por que, por tudo o que há nesse mundo, a editora contratou você para trabalhar na divulgação do livro do jubileu? — perguntei.

— Sou um homem versátil — disse o Smiley. — Trabalhei muitos anos no ramo editorial. Coloquei meus conhecimentos à disposição deles, vamos dizer assim, e também apresentei propostas interessantes para o lançamento do livro. Até mesmo comecei a trabalhar num vídeo promocional para o livro, para o caso de não conseguir barrar esse projeto e substituí-lo pelo meu.

— Astrid Lindgren — exclamei. — Por isso você falou com Astrid Lindgren. Para que ela o ajudasse com o vídeo.

O Smiley fez que sim.

— Sim, mas ela disse que não era a especialidade dela. E ela tinha razão, é claro.

— O que você quer dizer com “seu projeto”? — Berit perguntou.

O Smiley esfregou as mãos.

— Meu projeto é substituir o livro do Ano do Livro por um filme comemorativo. Um filme divertido de animação, que mostrará a evolução da arte tipográfica até a moderna produção de vídeo. O título provisório é Da letra à fita. Já entrei em contato com um desenhista italiano de histórias em quadrinhos.

Eu tinha um estalo após a outro.

— Por isso você esteve na Itália!

— Sim, mas não foi por isso que eu estive lá na mesma época que você. Quando li a revista que falava da viagem de uma tal Ingrid Bøyum e sua família, pensei que poderia matar dois coelhos com uma cajadada só. Imaginei que você levaria o livro. Talvez eu conseguisse pegá-lo... e depois tivesse o azar de perdê-lo.

— Você me seguiu!

— Prefiro dizer que eu mantive você sob as minhas vistas.

— Que relação você tem com Bibbi Bokken? — perguntou Berit.

Parecia um interrogatório, mas o Smiley pelo jeito não estava percebendo.

— Bibbi Bokken — disse ele lentamente — é um fóssil. Eu a conheço desde o tempo da universidade. Ela cursava biblioteconomia e eu economia. Éramos amigos...

Ele parou no meio da frase.

— Mas agora acabou — disse Berit.

— Correto, nossas opiniões foram ficando cada vez mais divergentes. Ela foi totalmente contra o que propus para a divulgação deste livro, e eu não gostei nada de ser ela a responsável pelo texto.

— E quanto ao Café Skalken? — perguntei. — Como é que você sabia que estaríamos lá?

— Isso foi um problema. Naturalmente, eu tinha entrado em contato com o seu professor para me informar sobre os progressos do jovem autor. Aslaug Bruun me contou onde vocês iriam se encontrar. Fui até lá e me escondi...

— ... atrás de um jornal — eu disse.

— Exatamente.

— E por isso você também visitou o casal Bruun no dia em que eu estive lá?

— Você não é tão bobo quanto parece, meu jovem. Eu fingi estar muito preocupado com a qualidade do livro. Eu perguntei se você escrevia bem.

— E o que o professor Bruun respondeu? — eu perguntei.

— Ele disse que você não era nada mau, mas que ainda não sabia controlar a sua fantasia.

De repente, ele fez uma cara furiosa.

— Foi uma idiotice de vocês — disse o Smiley — não querer escutar a oferta que eu queria lhes fazer em Fjærland.

— Que oferta? — Berit olhou fixamente para ele.

— Eu ia propor que vocês cedessem todos os direitos autorais do livro em troca de uma porcentagem sobre a renda do vídeo. Mas agora infelizmente é tarde demais.

Ele se recostou confortavelmente na poltrona da sua escrivaninha e olhou para o teto.

— Já acabou? — perguntou Berit.

— Não — disse o Smiley. — O que acabou é a brincadeira de vocês.

— Eu não teria tanta certeza disso — disse Berit.

O Smiley ia dar uma resposta, mas nesse momento ouvimos passos apressados do lado de fora. A porta se abriu, e ali estava Gerda Lothe ao lado de um homem que parecia bastante furioso.

O Smiley tentou ficar com o livro, mas Gerda Lothe se antecipou rápida como um raio.

— Suponho que este seja o livro — ela disse e sorriu para nós. — Este é o nosso diretor. Ele quer conhecer vocês.

O diretor parecia ter se acalmado quando nos estendeu a mão.

— Foi realmente muito sagaz — ele disse. — Qual dos dois teve a ideia?

— Acho que fui eu — disse Berit, tentando parecer modesta.

Nos últimos segundos, o queixo do Smiley tinha caído até os joelhos. Ele olhou atônito para Berit.

— Que ideia?

Berit deu um sorriso doce.

— Quando você foi para cima de Nils para tirar o livro dele, eu apertei uma tecla no telefone. Ao lado dessa tecla, estava escrito “Gerda Lothe”. Isso não foi tão idiota assim, foi?

— Não — disse Gerda Lothe. — Foi uma conversa interessantíssima.

Berit piscou para mim. Eu quase dei um beijo nela.

 

E agora estamos aqui sentados na sala do Smiley. Não faço ideia de onde ele se enfiou. E na verdade nem quero saber. Talvez ele tenha ido para a Itália e esteja por lá tentando desbaratar a arte tipográfica. Nesse caso, encontrará em Mario Bresani um adversário digno.

 

Com a ajuda de Bibbi Bokken, vamos finalizando o nosso livro de cartas. Ela nos ajuda a formular as frases e nos diz como certas coisas se chamam. Ela também ajuda os autores com a ortografia. E isso muitas vezes é necessário. Sobretudo no caso deste autor aqui.

No que diz respeito à linguagem, Bibbi Bokken não deixa tudo nas nossas mãos. Considerando que somos crianças, ela diz que ainda temos muito a aprender, mas que ela também tem muito a aprender conosco. Assim é Bibbi Bokken. Uma verdadeira amante de livros.

E já não há mais o que dizer. Precisamos terminar. Já estamos no final de outubro e o livro será publicado em abril.

Ainda é preciso encontrar um ilustrador para fazer o desenho da capa. E o pessoal da produção vai definir o formato do livro e o tipo de letra (Sabon e Berkeley Old Style são inofensivos tipos de letra, e não os monstros que achei que eram. Na verdade, era apenas a proposta do Smiley para o caso de o livro ser publicado contra a sua vontade. E vai ser, mas ele deverá ser composto em Palatino 11/13 pts).

Nosso livro será finalmente entregue a um diagramador, que vai compor o texto no computador, no tipo e no tamanho certo de letra. Depois ele será impresso numa impressora a laser e enviado ao revisor, que corrigirá as falhas que surgiram na digitação. Também a autora e o autor lerão tudo mais uma vez. E por fim a editora enviará as páginas prontas para a gráfica.

E agora chegamos ao fim. Acho um pouco triste, mas só um pouco. Acho que Berit está maquinando alguma coisa... Ela está sempre fazendo anotações no seu bloco. Talvez um dia ela escreva um livro sobre como eu e ela escrevemos o livro sobre Bibbi Bokken ou desvende os novos crimes de Marcus Buur Hansen. Ou quem sabe ela descobrirá um tesouro misterioso sob a geleira de Jostedalsbreen, ou então desmascare a verdadeira assassina da Cidade da Carne. Não, isso não, afinal essa historia é minha. Se ela escrever isso, vou processá-la por me imitar. Isso se chama plágio, e é proibido.

De resto, não acredito que eu vá ser escritor quando crescer. Tenho mais vontade de ser um jogador de futebol, que aos trinta anos escreve sua própria biografia. Não! Eu não vou escrevê-la. Vou contar a minha vida para Berit e contratá-la para escrever. Acho que ela gostaria disso. Mas agora estou falando besteira. Não sei nada sobre o futuro e estou realmente feliz por isso. Só sei que a maioria dos livros ainda não foi escrita, e que em vinte e seis letras há mais coisas ocultas do que na cabeça de qualquer pessoa neste mundo. O que é uma ideia legal. E, quem sabe, talvez neste exato segundo esteja caindo uma carta da bolsa de uma misteriosa mulher vestida de vermelho. E talvez uma garota recolha a carta e sinta uma estranha sensação de tremor em todo o corpo.

E essa sensação eu conheço. Ela se chama INSPIRAÇÃO!

PARTE 1
O LIVRO DE CARTAS

Querida Berit,

que bom ter visto você nesse verão. Foi realmente muito legal. Amanhã recomeçam as aulas, e não estou exatamente entusiasmado. Só de pensar naquele monte de pirralhos... Mas tudo bem, este ano Nils Bøyum Torgersen termina a sexta série e então: escola nova, vida nova...
Mas vamos ao que interessa. Pensei muito sobre aquela ideia do livro de cartas, e tenho que admitir que não acho essa ideia tão má. Escrever cartas num caderno e enviá-lo de Oslo para Fjærland e vice-versa vai ser, para mim, como se a gente enchesse um álbum com palavras em vez de fotos (he, he). Isso se tivermos alguma coisa para escrever, é claro. Essa é a questão. Estou começando a desconfiar que este outono não vai ser a época mais emocionante do ano, e imagino que em Fjærland as coisas também não estejam lá muito agitadas. Ou será que descobriram aí na geleira de vocês algum misterioso homem das neves?
Mas preciso parar agora. Minha mãe manda lembranças. Ela espera que a tia Grete esteja gostando do novo emprego no hotel e “is looking forward to seeing you again”, como eles dizem no avião. Meu pai com certeza também mandaria lembranças, mas ele está dirigindo o táxi e não sabe que estou escrevendo para você.
Lembranças de seu mui estimado primo Nils

 


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PS. Quase ia esquecendo de contar uma coisa estranha que aconteceu quando comprei este livro. Não foi em Oslo, mas em Sogndal, quando estava voltando de Fjærland. Você se lembra daquela mulher esquisita? Aquela de olhos arregalados que andava com um livro todo amassado na bolsa? Que estava lendo o livro de hóspedes lá em cima na Cabana Flatbre e depois ficou espiando por cima dos nossos ombros quando escrevemos o nosso poema no livro? Você ainda se lembra do poema inteiro? Eu lembro:


Aqui em cima nada nos amola,

Juntos tomamos uma coca-cola,

Nils e Berit, assim nos chamamos,

Férias fantásticas aqui passamos.

Nos divertimos muito no verão,

E não queremos ir embora não!


Um poema muito bom, na minha opinião.

Mas não era sobre o poema que eu queria falar. Era sobre a mulher. Quando entrei na livraria em Sogndal, ela estava lá. Ficava passando na frente das estantes e olhando os livros. E ela babava, Berit! Pois é, não sei outro jeito de dizer isso, a mulher andava pela livraria e babava. Como se os livros fossem de chocolate, marzipã ou coisa parecida. Mas o mais estranho aconteceu quando fui pagar o livro. Ela chegou perto de mim e perguntou se não podia dar uma pequena contribuição. Eu não sabia o que responder, mas ela ficou me olhando com um olhar tão esquisito que eu simplesmente não consegui dizer não. Não sei como descrever a expressão dos seus olhos, mas tive a sensação de que ela estava me lendo por dentro como um livro aberto. A única coisa que consegui fazer foi aceitar a moeda de dez coroas e dizer: “Muito obrigado”. E sabe o que ela respondeu? “Eu é que agradeço!” Então ela pegou um lenço, enxugou a boca e desapareceu.

De qualquer forma, aqui está o livro. Estou mandando também uma das duas chaves. Você tem que mantê-lo trancado sempre que não estiver escrevendo. Não se esqueça de que o conteúdo é “for your eyes only” (apenas para os seus olhos). Você vai ter que se conformar com a foto da capa. As únicas opções eram o fiorde Sogne e um pôr do sol com um coração vermelho no lugar do sol. Qual dos dois você escolheria? Fim da carta.

Querido primo,

obrigada pelo livro de cartas, que encontrei há poucos minutos na caixa do correio e abri no mesmo instante. Por enquanto não vou conseguir contar como vão as coisas por aqui, pois o que aconteceu comigo hoje à tarde não me deixa pensar em mais nada. Preciso escrever imediatamente, mesmo com a mão tremendo deste jeito. Tomara que você consiga ler mesmo assim.

É sobre aquela mulher misteriosa. Aquela que você encontrou em Sogndal, a própria. Ai, meu Deus, por onde começar?

Bem, eu estava no cais quando chegou a barca das duas horas. As nossas aulas só começam na segunda-feira e por aqui não há muito que fazer. E então ela chegou, entende? Foi a primeira a sair da barca. Quando passou na minha frente, ela olhou para mim com um olhar de quem diz: “Eu sei muito bem quem você é”. Eu ainda não tinha lido a sua carta, mas me lembrei do nosso encontro na cabana Flatbre e decidi segui-la. A uma distância segura. Não sei como me atrevi a fazer isso, mas tenho quase a sensação de que ela me hipnotizou. (Agora com certeza dá para ver como a minha mão está tremendo!) Quando passou em frente à igreja, ela olhou para trás. Tive que me jogar na sarjeta e, quando passamos por Mundal, ela ainda se virou mais algumas vezes, mas acho que não me viu.

Lembra onde tem um muro e um portão? Ali ela virou à direita, em direção àquela casa amarela que fica isolada na beira da floresta. Eu me escondi atrás do muro e agora vou chegar ao que interessa: quando ela abriu a porta da casa, alguma coisa saiu voando da bolsa dela. E em seguida ela desapareceu.

Eu estava tão agitada que simplesmente não conseguia mais pensar. Deve ser a mesma sensação que tem uma pessoa quando comete um crime pela primeira vez. Um segundo depois eu estava na frente da casa, me sentindo como um assaltante de banco mascarado que de repente pula na frente do caixa e grita: “Isto é um assalto”. Talvez não tenha sido exatamente um assalto, e eu não berrei nada nem estava mascarada, mas me apoderei de um pequeno envelope que estava no chão e corri de novo para trás do muro. Dentro do envelope, havia uma carta. Estava escrito:


Querida Bibbi,

andei a manhã inteira pela cidade, mas simplesmente não consigo reencontrar aquele estranho sebo. Será que ele fechou de uma noite para a outra? Só sei que ele ficava numa daquelas estreitas ruelas ao redor da piazza Navona. Mas eu também andei por ali...

Eu estava procurando uma edição italiana do Peer Gynt, mas quando o dono da loja viu que eu era norueguesa, ele me levou até um velho armário e apontou para um livro que era bem diferente de todos os outros que havia ali, pois era um livro novinho em folha.

— Não tenho apenas livros que já foram escritos — ele sussurrou e olhou para mim com um olhar muito expressivo.

Naturalmente não entendi o que ele estava querendo dizer, mas então ele tirou o livro do armário, fitou-me com um olhar penetrante e explicou:

“Também coleciono livros que ainda não foram escritos. É claro que existe uma infinidade desses livros, mas ao mesmo tempo é muito raro ter um deles na mão”.

Então ele pôs o livro nas minhas mãos. Na capa havia uma foto de umas montanhas muito altas e o título tinha alguma coisa a ver com uma “biblioteca mágica”. Mas o que importa aqui não é o título nem a capa. o importante é a data em que o livro foi publicado em oslo.

Em algum momento do ano que vem, Bibbi! O velho homem também sublinhou que se tratava de um livro muito especial.

Fiquei tão assustada que larguei o livro imediatamente. Foi como se alguma coisa tivesse me queimado. Nem pude reparar quem era o autor. Você pode me ajudar, Bibbi? Se em toda a Noruega existisse apenas uma bibliógrafa, teria que ser você. A questão não é, portanto, quem escreveu um livro sobre uma biblioteca mágica, mas sim quem está escrevendo.

Eu simplesmente saí apressada do sebo, dizendo que não podia perder meu trem. Mas ao abrir a porta, ainda me virei e perguntei ao homem qual era o preço daquele raro exemplar. Ele ficou tão furioso, você precisava ter visto. Ergueu as sobrancelhas e disse, aos brados:

— Como se atreve? Ninguém vende seus filhos queridos. Esse volume é mais valioso do que o mais caro dos incunábulos...

Eu me perguntei se acaso ele não seria surdo. Seu italiano soava pouco claro e tive a impressão de que ele lia os meus lábios quando eu falava.

Você precisa me desculpar por ter telefonado tão tarde ontem, mas eu estava simplesmente fora de mim. Se pelo menos eu pudesse encontrar de novo o sebo. Mas é como se a terra o tivesse engolido!

Muitas lembranças de Siri, Campo dei Fiori, 8 de agosto de 1998

 

Essa é a carta, Nils. O que você me diz? De repente, eu tinha nas mãos uma carta misteriosa que tinha roubado e lido às escondidas. E agora como iria devolvê-la?

Você vive tirando sarro de mim porque sempre ando com um bloquinho de anotações no bolso. Gosto de anotar ideias inteligentes para não me esquecer delas, e dessa vez fiquei realmente feliz por ter o bloco. Copiei a carta bem depressa, andei pé ante pé até a casa amarela e a deixei onde a tinha encontrado.

Faz meia hora que voltei para casa e a sua carta não me tranquilizou muito, pois a ideia de que essa mulher patrocinou o nosso livro com dez coroas não me agrada nem um pouco. Para mim é quase como se, com isso, ela tivesse comprado também os nossos pensamentos.

E agora, o que devo fazer? Acho que fisgamos um peixe grande. Pelo menos, agora sabemos que ela se chama Bibbi. E, se podemos acreditar na carta, sabemos também que ela é uma “bibliógrafa”. Mas que espécie de pessoa é uma bibliógrafa? E o que é um incunábulo?

Acho que vou começar a chorar e é melhor parar de escrever. Não creio que a tinta da caneta seja à prova d’água.

Vou levar o livro agora mesmo para o correio. E você tem que responder imediatamente!!!

Lembranças da sua assustadíssima prima Berit Bøyum


Berit, Berit!

Muito engraçado. Um livro que foi publicado no ano que vem. Você acha que eu sou tão burro assim? A gente resolveu escrever um livro de cartas, até aí tudo bem, mas não é por isso que precisamos ir inventando histórias logo de cara. Se você acha que pode me fazer de trouxa, está redondamente enganada. Mesmo sendo um ano mais novo e dez centímetros mais baixo que você, não sou nenhum bebezinho que acredita em tudo o que os outros contam. Já entendi tudo. Se você quer mesmo que eu acredite na história da carta, vai ter que me mandar o original. Uma transcrição das “histórias fantásticas do bloco de anotações de Berit Bøyum” simplesmente não basta.

Mas o.k., pesquisei o que significa “bibliógrafa” e o que é um “incunábulo”. Biblion é grego e significa “livro”. Por isso aposto que uma bibliógrafa é uma pessoa que tem atração por livros, e pessoalmente isso me soa como uma coisa perversa. “Incunábulo” vem da palavra latina incunabula e significa “berço”.

Essa Bibbi, portanto, é uma mulher doida por livros e a outra, que escreveu a carta, descobriu um livro que ainda não foi escrito e que é mais valioso do que um berço. Eu acredito em você. Acredito mesmo.

Se você acha que isso foi uma ironia, então entendeu certo. Hoje não estou para brincadeiras. Nosso professor de educação física é o “Iron Man”, e ele é completamente maluco.

E agora pode acreditar: estou ansioso para ver a autêntica carta de Siri Campo dei Fiori.

Bye-bye,

Nils


Querido (?) Nils,

que triste decepção — é o que eu tenho a dizer!

Depois que digeri as suas infâmias, fiquei simplesmente uma hora parada olhando a chuva pela janela. Você não acredita em mim!!! Por sua causa, coloco minha vida em jogo e vou buscar essa supercarta dentro da toca da leoa, e como você me agradece? “Bye-bye” e “histórias fantásticas do bloco de anotações de Berit Bøyum”.

Talvez esta seja a minha última carta, pois se você não acredita em mim não faz muito sentido continuar escrevendo. Nesse caso, pode ficar com o livro de cartas para você. Você está tão cheio de frases podres que dá para encher o livro mais de cem vezes. E depois você terá alguma coisa para cheirar quando estiver velhinho de cabelos brancos (“he, he”). Ou será que você esqueceu que acabei de me mudar de Bergen, onde tenho uns quinze ou vinte amigos para os quais prometi escrever? Além disso, sempre me ocorre alguma coisa para escrever no meu bloco de anotações estritamente confidencial. Portanto, não veja este livro de cartas como um anúncio do tipo: “Garota sozinha e abandonada entre as montanhas do fiorde Sogne deseja se corresponder...”.

Aliás, não acredito que você não acredite pelo menos em alguma coisa do que escrevi. Você está simplesmente com medo de cair no ridículo. Isso é muito comum em garotos da sua idade. Mas tem um ditado que diz: “Quem não arrisca não petisca”. Se você não tivesse acreditado no lance da carta misteriosa, não teria procurado aquelas palavras estranhas no dicionário. Eu também pesquisei. Achei o seguinte: “Bibliógrafo: quem se ocupa com bibliografia, conhecedor de livros”. Você deve ter confundido com “bibliófilo”, que é “quem tem amor aos livros, alguém que coleciona livros raros e bonitos”. “Incunábulo” significava originalmente “berço”, você tem razão, mas hoje a palavra é usada apenas para os livros que foram impressos antes de 1500. Também achei: “Incunábulo: livro que foi impresso nos primeiros tempos após a invenção da tipografia”.

Percebe o que tem a ver? O homem no sebo disse que o livro sobre a biblioteca mágica era mais raro do que esses livros antiquíssimos, que foram impressos há mais de quinhentos anos. Muitos deles foram queimados pela igreja católica por serem considerados hereges ou se extraviaram por outros motivos. Mas deve ser ainda mais raro segurar nas mãos um livro que ainda não foi publicado, não é? E ainda por cima muito misterioso, Nils. É claro que também acho a carta que encontrei absolutamente inacreditável. Mas isso não significa que você não deva acreditar em mim!

Você acha mesmo que é mais fácil acreditar que uma mulher adulta ande por uma livraria lambendo os lábios, porque acha que os livros são feitos de chocolate ou de marzipã? Ou que ela tire uma moeda de dez coroas do bolso e dê a um garoto, só porque ele quer comprar um álbum de poesia? (Só estou perguntando.)

Você me lembra um pouco o apóstolo que só acreditou em Jesus depois de colocar a mão nas suas feridas. Infelizmente não tenho outra ferida para mostrar a não ser esta muito grande que você causou hoje na minha alma, mas nela não é tão fácil enfiar a mão. E também não é uma ferida fácil de sarar. Mas eu averiguei mais algumas coisas e, se você não quiser acreditar de novo, isso pelo menos eu posso provar.

Como você sabe, minha mãe agora trabalha no hotel, e por isso tenho algumas regalias lá dentro. Pouco a pouco, você vai ficar sabendo mais sobre o que se passa detrás daquela fachada antiga. Agora vou contar apenas o que ouvi sobre a mulher da casa amarela.

Ela se chama Bibbi Bokken, e só o nome já é um capítulo à parte. Mas ninguém aqui sabe se esse é o seu nome verdadeiro, porque ela não conversa com ninguém. Ela se mudou há pouco tempo como eu. Se bem que eu nasci aqui, e Bibbi Bokken conhece Fjærland somente há alguns anos.

Ela comprou uma casa com uma bela vista para o fiorde de Fjærland. “E por que não”, talvez você esteja pensando, “e daí?” É que nas primeiras semanas depois que ela se mudou, as pessoas do lugar ouviram uns ruídos estranhos vindos da casa. Talvez ela estivesse apenas fazendo uma reforma, mudando paredes de lugar e instalando prateleiras. Pode ser, mas esses ruídos inexplicáveis ocorriam principalmente à noite. De vez em quando havia uns estrondos bem fortes...

Quem me contou foi a vigia noturna do hotel. Ela se chama Hilde Mauritzen e é muito legal. Além disso, ela é filha de um membro do Parlamento (e portanto bastante confiável, não é?). Ela me contou mais coisas. Dizem que Bibbi Bokken foi uma espécie de bibliotecária de uma grande biblioteca em Oslo e que, de repente, ela fez as malas e apareceu aqui em Fjærland.

Será que você pode tentar saber alguma coisa aí na capital? Pelo menos tente procurar “Bokken” na lista telefônica (mesmo que ela não more mais aí).

Talvez pela última vez,

lembranças da Berit

 

PS. A mulher que escreveu a carta misteriosa não se chama Siri Campo dei Fiori. Tenho certeza de que copiei direito a carta, e nela estava escrito: “Lembranças de Siri, Campo dei Fiori, 8 de agosto de 1998”. Isso significa que Siri escreveu a carta em algum lugar chamado Campo dei Fiori. Seja lá onde fique este lugar, quando você lê alguma coisa, é importante prestar atenção nos sinais de pontuação, tanto quanto nas letras. Se eu escrevo “lembranças da Berit, boa noite” não é por isso que me chamo Berit Boa Noite.


PPS. Você pode acreditar em mim, por favor, Nils? Please! Gostaria de combinar duas regras para o nosso livro de cartas, pois isso tornaria tudo muito mais fácil.

1a regra: é proibido mentir no livro de cartas.

2a regra: é proibido achar que o outro está mentindo.

Se você não quiser respeitar essas duas regras, já pode ficar com o livro a partir de agora. Estou mandando a chave junto por precaução. Você pode dá-la para a tia Ingrid, afinal de contas alguém tem que ler o que você escreve, certo? (Sarcástica? Eu?)


PPPS. E pense ainda num outro ditado: “Quem ri por último ri melhor”.

Lembranças da Berit. Boa noite!


Querida Berit,

sinto muito realmente. Eu não queria magoá-la, só queria tirar uma com a sua cara. Você sabe como eu sou. Carcaça dura, coração mole. (Hum.) Mas quando você diz que causei uma “profunda ferida na sua alma” sinto um nó na garganta. Eu não queria fazer isso, e não sabia que você era tão sensível. Mas você é, e agora acredito em você. Pois se você não tivesse dito a verdade, não teria uma ferida na alma e não teria escrito o que escreveu. Portanto, eu acredito em você. Peço perdão e mando a chave de volta. Por favor, fique com ela. Prometo que a partir de agora vou respeitar a segunda regra do nosso livro. E também vou tentar não mentir, embora isso possa ser bem difícil.

Para provar que estou falando a sério, comecei a fazer umas investigações. Primeiro me informei onde fica Campo dei Fiori. Eu perguntei para minha mãe. Você sabe que ela escreve histórias para uma dessas revistas, para “melhorar o orçamento doméstico e dar um toque de fantasia ao cinzento cotidiano”, como ela diz.

Agora ela está trabalhando numa história para um concurso qualquer, e quando lhe perguntei se já tinha ouvido falar do Campo dei Fiori ou da piazza Navona, ela ficou me olhando como se estivesse recebendo uma luz.

— Mas é claro — ela disse. — Foi em Roma que tudo aconteceu!

— Você sabe de tudo? — perguntei, já pensando que talvez ela tivesse lido o livro de cartas escondido.

— Sei, sim — ela disse. — Na piazza Navona, em Roma. Foi lá que nos conhecemos.

Então ela se debruçou sobre a máquina de escrever e começou a martelar o seu texto. Ela não estava falando do nosso livro, mas sim da historinha água com açúcar que ela estava escrevendo.

— Você me deu uma inspiração, Nils — ela murmurou.

Não sei bem o que quer dizer inspiração, mas acho que é um tipo de ideia que as pessoas que escrevem têm e daí então começam. Mas não importa o que lhe demos, seja lá o que for, a Piazza Navona fica em Roma!

Essa foi uma das investigações. A outra me levou até uma pista que mudou completamente o rumo das coisas. Se estiver certa, você está correndo perigo, Berit, e no momento o único conselho que posso lhe dar é: mantenha distância de Bibbi Bokken e esconda todos os seus livros. É que eu tenho uma teoria. Bem, uma ideia, para ser mais exato. Uma ideia a respeito de quem pode ser Bibbi Bokken e o que ela faz. Mas não fique muito assustada, Berit. Sei que você é muito sensível, mas agora realmente precisa manter a cabeça fria. Bem, escute.

Fui procurar na lista telefônica, como você me disse. Encontrei uma “Bokken SA”. Liguei e um homem atendeu. Ele nunca tinha ouvido falar de Bibbi Bokken. Perguntei que firma era aquela e ele disse que eles atuavam no setor alimentício. Não sou tão bom quanto você com palavras difíceis (bibliófilo/bibliógrafo, entende?), então perguntei o que isso significava e ele disse que tinham um escritório na Cidade da Carne em Furuset, e importavam aparelhos para vendê-los aos matadouros.

Na Cidade da Carne, Berit!

Eu comecei a tremer da cabeça aos pés e não pude deixar de pensar na minha teoria, e quando terminei de pensar anotei tudo na forma de uma redação. Amanhã temos que entregar uma mesmo e, como eu só conseguia pensar em Bibbi Bokken e na Cidade da Carne, escrevi exatamente sobre isso. Com nomes e tudo. Espero que não tenha problema. Aqui ninguém deve conhecer Bibbi Bokken e, se a minha teoria estiver certa, esse nem é o nome verdadeiro dela.

Como você está vendo, copiei a redação e colei no livro. Estou ansioso para ver o que você vai dizer. Mas não entre em pânico em hipótese alguma, Berit. Se você precisar de ajuda, vou pessoalmente para Fjærland, mesmo que precise pedir carona e matar aula. E, como eu já disse, peço desculpas e espero que a sua ferida tenha sarado um pouquinho.

Seu arrependido primo Nils

 

PS. Muito importante: jamais podemos deixar Bibbi Bokken pegar o livro de cartas nas mãos, pois isso provavelmente nos colocaria em grande perigo.

 

A assassina da Cidade da Carne

Birte Bakken lambeu os lábios. Ela estava muito satisfeita consigo mesma. Fora uma longa viagem até Fjærland desde a Cidade da Carne, o bairro dos matadouros de Oslo. Mas ela havia conseguido. Todas as pistas tinham sido apagadas e a polícia não sabia por onde começar. Transformar Birte Bakken em Bibbi Bokken fora simplesmente genial. Ela havia tido a ideia quando descobriu no livro de contabilidade do matadouro o nome dos fornecedores alimentícios Bokken, e essa descoberta acontecera no momento certo. Fazia muito tempo que ela se perguntava como agiria no dia em que fosse desmascarada. Não havia sido fácil mudar o nome Bakken para Bokken em seu passaporte, mas ela conseguira, e o lema de Birte sempre fora: “Quem não arrisca não belisca”. Não, nada a faria desanimar agora.

Bakken, a alpinista, paraquedista, piloto de bombardeiro. Não era pouco o que ela já tinha feito. O problema era que ela logo ficava entediada com tudo isso. Birte era uma pessoa incrivelmente passional, mas sua paixão sempre se apagava rapidamente como fogo de palha. A não ser por uma delas: ela amava os livros.

E era um amor insaciável. Birte se apresentava como bibliógrafa, mas na verdade ela era bibliófila, o que é uma coisa totalmente diferente. Ela amava os livros. Quer dizer, não exatamente. Ela adorava roubar livros, mas não lia os livros. Às vezes ela ajudava pessoas que não tinham condições de comprar livros apenas pelo prazer de depois roubar os livros delas. Depois que havia roubado um livro, ela não se interessava mais por ele e tinha que roubar mais um. Imediatamente.

A tragédia começou quando Birte Bakken começou a trabalhar numa grande biblioteca de Oslo. No final do expediente, ela sempre ia para a seção dos livros antigos. Sim, havia ali até mesmo incunábulos. Ali ela se servia com voracidade, e de fato achava aquilo maravilhoso. Mas um dia ela foi surpreendida por um homem da empresa de vigilância justamente no momento em que colocava na bolsa um incunábulo valiosíssimo. Não seria nenhum exagero afirmar que Birte Bakken ficou perplexa e acuada. Mas com sua presença de espírito única, ela pegou o corta-papel que sempre trazia consigo e cravou-o no peito do homem da empresa de vigilância. Ele se chamava Roger Larsen.

MAS AGORA O QUE ELA FARIA COM O CADÁVER? Birte lembrou-se da Cidade da Carne, no bairro de Furuset. Se ela conseguisse levar o cadáver de Roger Larsen para lá e escondê-lo entre as outras carnes, então estaria tudo mais do que resolvido. E dito e feito.

Como Birte conseguiu levar Roger Larsen para o bairro dos matadouros e misturá-lo com o resto da carne é uma outra história, mas o certo é que isso aconteceu. E depois disso ela descobriu que havia adquirido uma nova paixão: assassinato. Livros e assassinato passaram a ser a vida de Birte. E tudo teria ido muito bem se o veterinário de Ås não estivesse inspecionando as reses justamente no momento em que Birte ia pendurar Fredrik Wilhelmsen, de Stavern, num gancho do matadouro.

— Que espécie de animal é este? — perguntou o veterinário, e Birte compreendeu que o jogo havia acabado. Ela não sabia o que fazer. Todos sabiam que tinha sido a ajudante de açougueiro Birte Bakken que abatera aquele animal. Poucos, porém, sabiam que não era um animal, e sim o livreiro Wilhelmsen da Wilhelmsens Libris. Mas a verdade veio à tona, e Birte precisava fugir.

Agora ela estava estabelecida em Fjærland com uma nova identidade. Birte contemplou o fiorde. Ela estava em segurança e deveria estar de fato satisfeita. Mas não estava. Ela estava entediada e não tinha nenhuma ideia de como passar o tempo. Olhou para a rua que serpenteava em volta do cemitério. Uma menina se aproximava. Ela tinha uns treze ou catorze anos e segurava um livro na mão.

Birte levantou-se de um salto e lambeu os lábios. Ela sentiu um frio na barriga...


Querido e “carnal” primo!

Você está perdoado, mas ficou doido varrido! Primeiro você se recusa a acreditar que encontrei uma carta na frente da casa de Bibbi Bokken e chama tudo de “histórias fantásticas do bloco de anotações”. Depois me vem com uma história totalmente escabrosa sobre “A assassina da Cidade da Carne”!!! Acho que você anda vendo vídeos demais, meu caro.

Por acaso você escreveu a história da carniceira assassina Birte Bakken para, digamos, celebrar que aqui tudo é permitido desde que seja suficientemente mirabolante? Só que nem tudo é permitido. Acho inclusive que você deveria diminuir um pouco o ritmo das investigações.

Não sei muito bem se posso acusá-lo de ter quebrado a primeira regra do livro de cartas, mas com certeza não faltou muito. Você apenas se salva porque confessou que a história toda é pura fantasia. Ou, mais precisamente, uma “teoria”, o que soa um pouco mais elegante. Mas não importa, estou tremendamente curiosa para saber o que o seu professor vai dizer sobre essa redação. Acho que você deveria ficar contente pelo fato de só receber nota a partir da sétima série.

Acho bom você pensar sobre isso, Nils. Isto é, se fantasia é realmente a mesma coisa que mentira. Algumas vezes é, sem dúvida. Por exemplo: se você chega atrasado na escola e inventa que precisou ajudar uma velhinha que escorregou no gelo e quebrou a perna, isso é uma mentira deslavada, porque você está contando uma história como se fosse verdade, embora seja tudo invenção. Mas nem sempre é assim.

Se fantasia e mentira são a mesma coisa, os escritores são mentirosos de carteirinha. Quero dizer, eles vivem disso e as pessoas compram suas histórias mentirosas de livre e espontânea vontade. Elas até entram em clubes de livros para receber as mentiras pelo correio.

Acho que algumas pessoas gostam de mentir, enquanto outras gostam de que mintam para elas. Em cada município constroem-se grandes casas em que as mentiras são reunidas e expostas, as chamadas bibliotecas. Poderíamos chamá-las também de “laboratórios de mentiras” ou coisa parecida. Mas o melhor de tudo talvez fosse chamar as bibliotecas de “depósitos de fatos e lorotas”. É, pois nem tudo o que se diz nos livros é mentira. Podemos até mesmo encontrar no mesmo livro, lado a lado, a verdade e a pura fantasia, e às vezes é difícil distinguir o que é uma coisa e o que é outra. E também muitas coisas que são a mais pura verdade são tão inacreditáveis que parecem mentiras ou invenções malucas. Você já leu O diário de Anne Frank, por exemplo? Bem, é uma história inacreditável. Mas é a pura verdade!!! (Believe me!) E também acontece exatamente o contrário: algumas histórias inventadas são tão corriqueiras e entediantes que só por isso já parecem verdade. Mas elas podem ser tão inventadas como essas histórias malucas de ficção científica. Sei como é, pois temos um livro de inglês que é de morrer de tédio: Mary is often on vacation in Norway etc., mas na verdade ela nunca passou férias aqui, ela nem sequer existe!

Não sei se você já ouviu falar de Peer Gynt. Bem, de qualquer forma, ele tinha uma imaginação muito fértil. O que não deixava sua mãe nem um pouco satisfeita. “Peer, você está mentindo”, ela diz, e então começa a peça. Ela vive xingando seu filho de mentiroso e de coisas ainda piores, apenas porque ele tem muita imaginação. E você sabe o que o Peer faz? Ele joga a própria mãe em cima do telhado do moinho. Ela fica ali se lamentando e gritando por socorro, enquanto Peer vai a uma festa de casamento onde fica bêbado e acaba raptando a noiva!!! (Depois disso a história continua, mas até agora só lemos o primeiro ato.)

Mas de volta a Bibbi Bokken. Também no caso dela, precisamos diferenciar entre fatos e lorotas. Vou tentar fazer isso.

 

LOROTAS: Bibbi Bokken “na verdade” se chama Birte Bakken e cometeu pelo menos dois assassinatos. Sem considerar que é alpinista, paraquedista e piloto de bombardeiro, ela se interessa sobretudo por roubar livros. Ela muda de nome e vai morar em Fjærland para ocultar outros crimes bárbaros. De resto, a polícia da Noruega é tão pateta que nem ao menos é capaz de desenhar um retrato falado dela. Mas tudo bem, o que é que tem um pequeno homicídio de vez em quando? (Mas o veterinário de Ås tinha descoberto que era ela a assassina!)

 

FATOS: Há relativamente pouco tempo, mudou-se para Fjærland uma estranha senhora que diz se chamar Bibbi Bokken. Ela anda pelas livrarias lambendo os lábios porque os livros lhe lembram marzipã e chocolate. (Fonte: Nils Bøyum Torgersen.) Além disso, contribui com dez coroas para a compra de um álbum de poesia com a foto do fiorde Sogne na capa. (Fonte: Nils Bøyum Torgersen.) Ela recebe uma carta incrivelmente misteriosa de uma certa Siri. Nessa carta, há alguma coisa sobre um livro que só será publicado no ano que vem, mas que já se encontra numa livraria em Roma. O livro trata supostamente de uma “biblioteca mágica”. (Fonte: Berit Bøyum.) Nas primeiras semanas após a chegada de Bibbi Bokken a Fjærland, ouviram-se no meio na noite ruídos misteriosos vindos da casa dela. (Fonte: Hilde Mauritzen, filha de Sverre Mauritzen, deputado no Parlamento, da ala conservadora.) De resto, ela gosta de andar com um livro velho na bolsa e acha incrivelmente interessante o que dois adolescentes escrevem num livro de visitas de uma hospedaria mil metros acima do nível do mar.

Está acompanhando, Nils? É claro que algumas das coisas que estão no item “lorotas” podem ser fatos. MAS ISSO NÓS NÃO SABEMOS! E se quisermos agir como detetives de verdade, temos que nos basear em coisas que sabemos. É claro que podemos usar a nossa imaginação e elaborar diversas teorias. Mas também temos que verificar a veracidade dessas teorias. (Quero dizer que devemos seguir pistas verdadeiras, e não as pistas da nossa imaginação. Senão, no final, vamos parar na Terra da Fantasia e não em Fjærland.)

Proponho uma terceira regra para o livro de cartas:

3a regra: devemos checar todas as informações sobre Bibbi Bokken antes de elaborar novas teorias a partir delas.

Você está de acordo com isso, Nils? R.S.V.P. (Répondez s’il vous plaît — Favor responder!)

 

PS. Ainda preciso escrever umas palavras sobre as alegrias e os dissabores da vida privada. Aqui as aulas também já começaram, e está assim de pirralhos!!! Dá vontade de chorar, mas aqui simplesmente não existe uma escola para a minha faixa etária. Isso não é terrível? Eu estava tão contente de ter crescido e poder mudar de escola. Meu único consolo é que estou na mesma sala que o pessoal da oitava e da nona. Eles chamam isso “classes unitárias”! O jeito é tentar fazer amizade com os maiores. (Muitas vezes eu passo por uma aluna da nona série, verdade! Yes, sir!)

E agora vou contar qual foi talvez a única alegria que tive desde que cheguei aqui: a professora de norueguês é a diretora da escola! E eu chamo isso de alegria? Agora é você quem deve estar achando que fiquei louca. Mas ela é simplesmente demais! Ela se chama Asbjørg, usa longas tranças negras e parece uma índia. Sabe o que fizemos na primeira aula de norueguês? Acertou! Lemos a peça sobre o mentiroso que jogou sua mãe em cima do telhado!

Escreva imediatamente. Até mais e boa sorte com a sua redação.

Lembranças da sua elegante prima Berita Bø Yum.

Querida Bø Yum!

Uau! O que você vai ser quando crescer? Detetive ou filósofa? Essa carta foi simplesmente a coisa mais forte que já li na minha vida, e depois fiquei me sentindo meio burro. Mas só no primeiro momento. Depois eu comecei a refletir. O que é a minha especialidade. Também sei franzir a testa e mexer as orelhas ao mesmo tempo. Talvez você tenha alguma coisa a aprender comigo, Berit. Mas, como estava dizendo, refleti bem sobre tudo e cheguei à conclusão de que alguma coisa não se encaixa na sua teoria. Aperte o cinto, Bøyum! Aí vão algumas ideias de N. B. Torgersen!

 

FATOS: procurei na lista telefônica e liguei para Bokken SA. Ali me disseram que não conhecem nenhuma Bibbi Bokken. (Fonte: Bokken SA.) Depois elaborei algumas teorias “infantis” e escrevi uma redação sobre as minhas suspeitas. (Fonte: Imaginação de Nils Bøyum Torgersen.)

A redação foi entregue ao professor Bruun. (Fonte: Nils Bøyum Torgersen. Pode ser confirmado pelo professor Bruun.)

 

LOROTAS (MENTIRAS):

Nils Bøyum Torgersen anda vendo vídeos demais. (Fonte: Berit Bøyum, que não tem a menor ideia do que está falando.) Mas Nils Bøyum Torgersen não possui aparelho de vídeo. (Fonte: Trygve Torgersen, motorista de táxi, e Ingrid Bøyum, autora de romances água com açúcar.)

Bibbi Bokken anda por uma livraria em Sogndal lambendo os lábios. (Fonte: Berit Bøyum, e não Nils Bøyum Torgersen.)

Eu a vi na livraria e escrevi que ela babava, o que é totalmente diferente de lamber os lábios. Não sei por que, mas é muito mais esquisito.

Portanto, não se esqueça da regra número 2: é proibido achar que o outro está mentindo.

A regra 3 me parece razoável, mas também deve ser permitido usar um pouco de imaginação. Se tivermos que checar todas as possibilidades primeiro, não daremos um passo adiante.

Um autor chamado Tor Åge Bringsværd escreveu um poema curtinho que é muito bom:


Quem mantém os dois pés no chão

não sai do lugar


Acho que isso diz muito sobre escrever e também sobre ler. Quando leio um livro de que gosto, parece que o que estou lendo faz meus pensamentos saírem voando do livro. De certa forma, o livro não é feito apenas pelas palavras ou pelas figuras que estão no papel, mas também por tudo o que invento quando leio.

Atualmente, estou lendo O ursinho Pooh em inglês para aumentar meus conhecimentos da língua. Tem uma cena em que o Guru e o Tigrão trepam numa árvore e depois não sabem mais como descer. O Tigrão vive dizendo que é bom em tudo, inclusive em trepar em árvores. Mas ele esqueceu que só sabe subir, e não sabe descer. Para ajudá-los a descer da árvore, o ursinho Pooh organiza uma operação de salvamento com os outros animais.

Cristóvão tira seu casaco para que o Guru e o Tigrão possam usá-lo como rede salva-vidas. Nesse momento o autor, A. A. Milne, escreve sobre Leitão e os suspensórios de Cristóvão.

Leitão só viu os suspensórios de Cristóvão uma vez na vida e eles eram de um azul tão vivo que ele nunca mais esqueceu. Ele fica emocionado com a ideia de revê-los. Ao mesmo tempo, ele está muito nervoso. E se os suspensórios não forem mais de um azul tão vivo? E se forem de um azul qualquer, absolutamente normal, como Leitão já viu milhares de vezes? Cristóvão tira seu casaco e Leitão fica com as pernas bambas de tanta felicidade, pois os suspensórios são tão azuis como na sua memória e ele fica achando aquele dia maravilhoso.

Embora seja uma história sobre um par de suspensórios, ela trata também de outras coisas. Quando li, me lembrei de um quadro de um veleiro que ficava pendurado na parede de uma casa de campo onde passamos as férias uma vez. Devia ser um barquinho absolutamente normal, mas para mim era o barco mais bonito do mundo. Todas as noites, minha mãe me contava histórias em que eu estava dentro desse barco navegando ao redor do mundo e viajando por terras desconhecidas.

Depois pensei também numa coisa que tem a ver com você, Berit.

Lembra quando dividimos uma barra de chocolate lá na Cabana Flatbre? Era um dia de sol radiante, lembra? E nós estávamos moídos de cansaço. Então enchemos a boca de chocolate e você sorriu para mim.

Parecia haver alguma coisa no ar, no seu sorriso, no gosto do chocolate e no fato de que finalmente tínhamos chegado lá em cima, e tudo isso tornou o momento simplesmente fantástico. E eu tive a mesma sensação quando li sobre os suspensórios de Cristóvão.

Por isso eu gosto tanto de ler. Quando leio, de alguma maneira me transformo em autor.

Bem, acho que divaguei um pouco, mas tenho a sensação de que essa história da Bibbi Bokken deu asas à minha imaginação, e é uma sensação realmente muito legal.

Na próxima carta, vou me limitar ao caso Bokken, prometo. No momento, minha mão está tão cansada que não posso mais escrever. Amanhã o professor vai devolver as redações. Temo pelo pior.

Muitas lembranças do professor de literatura Nils B. Torgersen.


PS. Que pena que você está rodeada de tampinhas. Mas seja legal com os anões da 6a. Apesar de tudo, eles também são gente.

Mais lembranças do Pequeno Nils, 6a B

PS. 2: Quem é Anne Frank?

Querido professorzinho meditativo, 6a B,

obrigada pela sua carta. Tenho que confessar que nunca nem cheguei perto de uma edição inglesa do Ursinho Pooh. E que o garotinho da 6a série realmente me impressionou. Mas você tem razão, quando a gente lê acontecem muitas coisas na nossa cabeça, tanto que agora também tenho a sensação de ter visto os suspensórios azuis do Cristóvão. Talvez em algum lugar do nosso cérebro estejam armazenadas todas as cores do arco-íris. E isso também deve valer para todos os cheiros e sabores. (PERAS SUCULENTAS, Nils. Ou GROSELHAS AZEDINHAS. Só de pensar me dá água na boca! Portanto, deve existir alguma ligação entre as letras do alfabeto e os nossos nervos gustativos!)

Também concordo totalmente com a frase: “Quem mantém os dois pés no chão não sai do lugar”. Isso sem considerar que a Terra já gira por si mesma. (Alguém disse que o mundo é um palco. Por mim tudo bem, mas tem que ser um palco giratório!)

Como você me mandou esse minipoema de Tor Åge Bringsværd, fui procurar nos livros de poesia da minha mãe algo “curto e bom” para você. Quando me viu, ela ficou tão contente que me deu um curso completo de introdução à obra de um poeta chamado Jan Erik Vold. (É o seu poeta favorito, sabe? Desde que eu me conheço por gente.) Talvez você já o tenha visto alguma vez na televisão. Ele é totalmente maluco e os poemas dele também. Ele é capaz de escrever poemas longos e complicados sobre coisas corriqueiras como fatias de pão ou trilhos de bondes. Mas ele também tem poemas minúsculos que, à sua maneira, falam do mundo todo. Leia:


olha

a gota

que estava ali


O que você me diz, Nils? Por via das dúvidas, segue uma interpretação totalmente pessoal. Você já deve ter visto uma gota caindo de uma calha ou algo assim. E ela está ali, não é? Mas antes que você possa terminar de dizer que ela está ali, ela já não está mais. É assim com tudo, na minha opinião e na de Jan Erik Vold, pois tudo se transforma o tempo inteiro. Acho que esse poema fala sobre o mundo todo. E ele tem apenas seis palavras!

Agora vem o mais importante: há algumas horas, eu estava com os dois pés na barca que vinha de Balestrand. (E não estava parada no mesmo lugar!) Mas vou contar a história toda, pois talvez ela seja SUPERIMPORTANTE!

Acho que infelizmente vou ter que usar aparelho. Não precisa me dar os pêsames! Só estou contando isso porque, quando estava voltando do dentista, aconteceu uma coisa totalmente absurda. Adivinhe com quem eu topei na lanchonete da barca! ACERTOU! Ali estava a sra. Bibbi Bokken, curvada sobre um livro azul bem grosso, fumando um cachimbo. Eu disse que ELA ESTAVA FUMANDO UM CACHIMBO, mas isso não é nem um pouco importante. O importante é que de repente ela começou a falar sozinha. Eu estava a uma boa distância dela e acho que ela não me viu. De repente, ela disse:

— Maravilhoso! Oh, como eu aaaaaaamo Díui!

Fiquei de queixo caído, pois normalmente as pessoas não falam sozinhas, pelo menos não aqui no fiorde Sogne. E também ninguém fica dizendo assim sem mais nem menos o nome de quem ama em voz alta.

E como se isso não bastasse, depois aconteceu uma coisa pior ainda. Ela disse:

— Dinossauro... 567.9. Na mosca! Rubéola... 618.92. Na mosca outra vez!

De repente, ela se virou para mim como se tivesse olhos na nuca e soubesse que eu estava atrás dela. Ela apontou para o livro grosso, que era no mínimo tão azul como os suspensórios de Cristóvão, e disse:

— Díui deu um lugar certo para cada guloseima na bib-bib-biblioteca.

(Tenho certeza de que ela gaguejou ao dizer a palavra “biblioteca”.)

Não vou dizer que gostei da situação. Achei simplesmente horrível estar na mesma barca que essa sra. Livros. Talvez eu tenha me lembrado um pouco da sua redação maluca. Em todo caso, tratei de dar o fora dali e corri para o convés. Quando passava por ela, ainda consegui ler duas palavras misteriosas na capa do livro azul: “Classificação Decimal”.

Mas que raios será uma “classificação decimal”? E quem é “Díui”? Este é um desafio para você, Nils. Agora você mora mais perto da civilização do que eu. Por aqui, Bibbi Bokken com toda a certeza é a única pessoa que se interessa tanto por “classificação decimal”, o que quer que isso seja. (Talvez eu tenha topado com a pista certa, talvez não.)

 

PS. Anne Frank era uma garota de uma família de judeus alemães. Em 1933, eles fugiram da Alemanha e se estabeleceram em Amsterdã. Quando os alemães ocuparam a Holanda, os judeus de lá também foram levados para os campos de concentração. (Os alemães queriam matar todos os judeus da Europa. Eles conseguiram matar seis milhões!) Para salvar sua vida, a família de Anne Frank se escondeu num pequeno apartamento nos fundos do escritório em que o pai dela trabalhava. Ali eles viveram escondidos durante dois anos, e Anne passava o tempo escrevendo um diário, entre outras coisas. Seu sonho era ser escritora, e ela esperava que o seu diário fosse publicado depois que a guerra acabasse. Mas então aconteceu a catástrofe: em agosto de 1944, os nazistas invadiram o esconderijo e toda a família de Anne foi levada para um terrível campo de concentração na Alemanha, onde Anne morreu apenas dois meses antes do fim da guerra. (Quando li o livro, em alguns trechos eu fiquei apenas indignada. Em outros, derramei rios de lágrimas. Agora estou chorando...)

Felizmente, o diário de Anne foi encontrado por pessoas de bem, que o guardaram direitinho. Depois da guerra ele foi traduzido para quase todas as línguas do mundo. Dessa forma, Anne Frank acabou se tornando escritora apesar de tudo. Ela escreveu um dos livros mais famosos do mundo. Mas ela mesma não pôde viver essa fama. Eu poderia contar muito mais, mas se você se interessar por esse assunto pode pegar o livro na biblioteca. Mesmo assim, vai aí uma amostra. O diário de Anne vai de 14 de junho de 1942 até o dia 1º de agosto de 1944 (três dias antes de os nazistas invadirem o esconderijo). Em 20 de junho de 1942 (quando tinha exatamente a minha idade), ela escreveu:

 

Escrever um diário é uma experiência realmente estranha para alguém como eu. Não somente porque nunca escrevi antes, mas também porque acho que mais tarde ninguém se interessará, nem mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de treze anos. Bom, não importa. Tenho vontade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisa de dentro do meu peito.

“O papel tem mais paciência do que as pessoas.”

 

O que você me diz, Nils? Depois ela escreve que não tem nenhuma amiga com a qual poderia estar. E por isso o diário será a sua amiga.

 

Foi por isso que comecei o diário. Para melhorar a imagem do amigo, há muito tempo esperado em minha imaginação, não quero jogar os fatos neste diário do jeito que a maioria das pessoas faria; quero que o diário seja como uma amiga, e vou chamar essa amiga de Kitty.

PPS. O ursinho meio desentendido também se chama Pooh em inglês? E como se chama o Leitão?


Lembranças,


Berit

que escrevia

aqui


Querida Díui!


Eu

escrevo

agora

estou sentado na cama escrevendo


Hoje recebemos as redações de volta e, como você adivinhou, meu professor não ficou exatamente entusiasmado. Ele escreveu no final da página, com caneta vermelha: “Você precisa refrear sua imaginação, Nils”. Quando me devolveu o caderno, ele disse que queria falar comigo por um momento no final da aula, e nesse momento eu descobri que estava numa pista certa. Galinha cega, de vez em quando, acha um grão! Mesmo que não tenha verificado antes de que grão se trata (hum, hum).

E para garantir que agora só estou escrevendo FATOS, tentei transcrever o encontro entre Bruun e Bøyum Torgersen exatamente como ele se passou. Talvez eu tenha esquecido algumas palavras e não tenha escrito literalmente todas as frases, mas se a atmosfera e as informações mais importantes estão corretas, não deixam de ser FATOS. Não é? Não? Não sabe?


Diálogo entre o professor Bruun e

o aluno Bøyum Torgersen


Passos. O último aluno sai da sala. A porta se fecha. Bøyum Torgersen (a partir de agora denominado “aluno”) olha fixamente para o tampo da mesa. O professor Bruun (a partir de agora denominado “professor”) anda lentamente em direção ao aluno. Pausa.


PROFESSOR: Hmmm.


(Pausa)


PROFESSOR (sério): Então, Nils? O que você me diz sobre isso?

ALUNO (nervoso): Não sei, professor Bruun.

PROFESSOR: Você assiste a muitos vídeos?

(Mais uma pausa.)

ALUNO: Posso ir agora, professor?

(O aluno faz menção de se levantar.)

PROFESSOR: Um momento, Nils.

(O aluno volta a se sentar.)

ALUNO: Está bem.

PROFESSOR: Você alguma vez já pensou que é perigoso mencionar nomes quando se escrevem histórias sanguinolentas como a sua, Nils?

(O aluno fica vermelho.)

ALUNO: Que nomes?

PROFESSOR: Se eu escrever uma história sobre um assassino em série e ele se chamar Nils Bøyum Torgersen, acho que você não vai achar isso muito engraçado, vai?

ALUNO (em voz baixa): Vou.

PROFESSOR: O que você disse?

ALUNO: Nada.

PROFESSOR: Você sabia que existe uma Bibbi Bokken de verdade?

(O aluno tenta esconder seu nervosismo e falar no tom mais natural possível.)

ALUNO: É mesmo? Eu... não tinha a menor ideia.

PROFESSOR: Ela é uma amiga... uma conhecida da minha mulher.

ALUNO (engasgando): É mesmo?

PROFESSOR: Sim, elas estudaram biblioteconomia juntas.

ALUNO (agitado): Bib... bib... bib...

PROFESSOR: Sim.

ALUNO: Junto com Díui?

PROFESSOR: Quê?

ALUNO: Díui não estudou junto com elas?

PROFESSOR (soletra Dewey bem devagar): Você quer dizer D E W E Y ?

ALUNO: É, acho que é esse o nome.

PROFESSOR: Dewey não estudou junto com elas. Ele desenvolveu um sistema de catalogação para bibliotecas.

ALUNO (confuso): É, isso mesmo.

PROFESSOR (irritado): O que Dewey tem a ver com isso?

ALUNO (em voz baixa): Era justamente isso que eu gostaria de saber.

PROFESSOR: O que você disse?

ALUNO (depressa): Nada.

PROFESSOR: Vamos voltar à redação.

ALUNO: Sim.

PROFESSOR: Você tem certeza de que não conhece nenhuma Bibbi Bokken?

ALUNO (devagar): Tenho... eu não a conheço.

PROFESSOR: Está bem, está bem, Nils. Eu o chamei para lhe explicar que é preciso ter cautela ao mencionar nomes. Nunca se sabe onde isso vai parar, não é?

ALUNO: Isso o quê?

PROFESSOR: Eu apenas quis dizer que temos que tomar cuidado para não ferir ninguém. Não concorda comigo?

ALUNO: Sim, professor.

PROFESSOR: Da próxima vez, talvez você deva procurar um tema menos sanguinolento.

ALUNO (finge concordar): Sim, senhor.

PROFESSOR (sorri): E, Nils...

ALUNO: Sim?

PROFESSOR: Não é “quem não arrisca não belisca”.

ALUNO (perplexo): Não?

PROFESSOR: É “quem não arrisca não petisca”.

ALUNO: Não vou me esquecer, professor.

(O professor dá um tapinha no ombro do aluno. Saem pela direita. O professor não nota que o aluno está trêmulo.)


FIM


São esses os fatos, Berit! O que você me diz? Pouco a pouco, as peças vão se encaixando, não é mesmo? Bibbi Bokken fez um curso de biblioteconomia. Ainda não sabemos exatamente como é esse curso, mas podemos e vamos descobrir. Uma coisa é certa: ela tem uma relação muito especial com bibliotecas e com um sistema inventado por um sujeito chamado Dewey. Se você se informar sobre isso, vou investigar o passado de Bokken aqui em Oslo.

Diga-me se eu estiver enganado, mas me parece que agora temos duas tarefas pela frente:

1) Tentar descobrir a verdade sobre a misteriosa Bibbi Bokken.

2) Tentar encontrar um livro que só vai ser publicado no ano que vem.

Quanto à tarefa 1, já avançamos um bom pedaço. Na tarefa 2, em compensação, estamos boiando completamente.

Mas minha imaginação doentia está me dizendo que, se conseguirmos realizar essas duas tarefas, estaremos ao mesmo tempo dando conta de uma terceira, a verdadeira tarefa, sobre a qual até agora não sabemos absolutamente nada.

Sei que isso soa meio bizarro, mas se ideias bizarras já nos mostraram o caminho certo uma vez, quem sabe isso não acontece de novo?

Saudações do Nils


PS. O ursinho Pooh se chama Winnie the Pooh em inglês. O Leitão se chama Piglet. É um bom livro, realmente digno de algumas horas da sua tenra vida.


Ilustríssimo Nils Bøyum Torgersen,

estou impressionada. Você se deu conta de que escreveu uma peça de teatro inteira? Estou me referindo, é claro, ao “Diálogo entre o professor Bruun e o aluno Bøyum Torgersen”. Aliás, bom título! É meio curta para uma peça de teatro, mas não deixa de ser um esquete. Você é bom nisso, Nils. Quem sabe quando crescer você não vai ser um dramaturgo, como Henrik Ibsen? De qualquer forma, acho que a sua peça lembra um pouco Peer Gynt (Nils, você mente na peça!), embora você não tenha jogado seu professor em cima da mesa quando ele disse que você deveria refrear a sua imaginação. De qualquer forma, é uma peça cheia de suspense. Fiquei com medo de que no final ele fosse bater em você.

Também estou impressionada porque a sua redação, apesar de tudo, acabou dando em alguma coisa. Porém eu acho que você não tirou do seu professor todas as informações que podia. Afinal de contas a mulher dele conhece Bibbi Bokken!!! Entendo seu medo de acabar confessando que sabe coisas sobre ela, mas agora você não pode se dar por satisfeito. Sugestão: da próxima vez que você falar com o professor Bruun em particular, simplesmente confirme que você não conhece Bibbi Bokken... mas depois diga que gostaria de conhecê-la. Não, não vai colar... Diga que você a encontrou uma vez por acaso e ela pareceu tão excêntrica que você gostaria de saber mais sobre ela. Isso! Se ele fizer perguntas, você vai ter que tirar alguma coisa da manga na hora. Mas se você tem uma pista baseada em FATOS de verdade, simplesmente tem que segui-la até “the bitter end”.

No mais, estive há pouco na biblioteca. (Fjærland finalmente ganhou uma pequena biblioteca no andar térreo do Centro da Terceira Idade.) Bem, eu entrei e dei uma olhada nas estantes. Primeiro tive uma sensação horrível ao ver que há tantos livros que ainda não li. Mas então passou o pânico inicial e fiquei com uma sensação boa de pensar que existem muitos livros emocionantes esperando que eu os leia.

Acho que a bibliotecária ficou impressionada por eu ter ficado tanto tempo folheando os livros da seção de poesia. Mas ela não sabia que eu estava olhando só os livros de Jan Erik Vold. Aí vai uma pequena amostra (afinal de contas eu sempre ando com meu bloco de anotações). Aperte o cinto!!!


Sobre a eralidade


— A eralidade,

você diz, a eralidade

é muito mais eral

que a realidade, você


não acha? Certamente, deve ser isso

mesmo, respondo, mas

a realidade

apesar disso é mais real,


não há dúvida. Você diz: o que

isso pode

afetar a eralidade, tão

eral que ela é!


O que você me diz, Nilsinho? Sem dúvida, parece uma conversa de surdos. Mas se a realidade e a eralidade têm pontos de contato talvez isso não possa ser evitado, não é???

E se Bibbi Bokken for apenas uma espiã da eralidade? E, sobretudo, se a eralidade começar a se infiltrar na realidade, teremos realmente (!) um problema.

Mas voltando à biblioteca. Depois de um tempo, a bibliotecária veio me perguntar se eu estava procurando alguma coisa especial.

— Na verdade, não — eu disse.

Mas depois acrescentei:

— Vocês têm alguma coisa de Díui?

Ela deu um sorriso muito expressivo. Então me levou até uma mesa e tirou um grande livro azul de uma gaveta. E ERA EXATAMENTE O MESMO LIVRO QUE BIBBI BOKKEN TINHA NA BARCA. E o título era A classificação decimal de Dewey.


RESUMO DAS TABELAS PRINCIPAIS

000

Generalidades.

010

Bibliografia.

020

Bibliotecologia. Ciências da informação.

030

Enciclopédias gerais.

040

(fora de uso)

050

Periódicos de conteúdo geral ou misto.

060

Organizações gerais e museologia.

070

Informação. Jornalismo. Edição de livros. Editoriais. Empresas editoras.

080

Coleções gerais.

100

Ciências filosóficas. Filosofia.

110

Metafísica.

120

Teoria do conhecimento. Causa. Fim. O homem.

130

Astrologia. Ocultismo. Quirologia.

140

Sistemas filosóficos em geral.

150

Psicologia.

160

Lógica.

170

Ética. Filosofia moral.

180

Filosofia antiga. Filosofia medieval. Filosofia oriental.

190

Filosofia moderna ocidental.

200

Religião.

210

Religião natural.

220

A Bíblia.

230

O dogma cristão.


Teologia doutrinal cristã.

240

Teologia moral cristã.


Teologia prática cristã.

250

Teologia pastoral cristã.


Predicação. Sermonários.

260

A Igreja, as ordens religiosas, suas instituições e seu trabalho.

270

História da Igreja.

280

Igreja Cristã, credos e seitas da.

290

Outras religiões, história das religiões, teologia comparada.

300

Ciências sociais.

310

Estatística.

320

Ciência política.

330

Economia.

340

Direito.

350

Administração pública.

360

Patologia social. Serviço social.

370

Educação.

380

Comércio, comercialização.

390

Folclore. Costumes.

400

Línguas.

410

Linguística.

420

Inglês — Anglo-saxão.

430

Alemão — Línguas germânicas Línguas teutônicas.

440

Francês. Línguas românicas.

450

Italiano. Romeno. Rético.

460

Castelhano. Espanhol. Português.

470

Latim. Línguas itálicas.

480

Grego clássico. Línguas helênicas.

490

Outras línguas.

500

Ciências puras.

510

Matemática.

520

Astronomia.

530

Física.

540

Química. Ciências químicas.

550

Geociências. Ciências da terra.

560

Paleontologia. Paleozoologia.

570

Ciências biológicas.

580

Ciências botânicas.

590

Ciências zoológicas.

600

Tecnologia.

610

Ciências médicas. Medicina.

620

Engenharia.

630

Agricultura. Pecuária. Pesca. Aquicultura.

640

Artes e ciências domésticas. Economia doméstica.

650

Serviços administrativos na empresa. Administração empresarial. Direção empresarial.

660

Química industrial.

670

Manufaturas. Desenhos de produtos. Produtos manufaturados.

680

Diversas manufaturas.

690

Construções.

700

Artes. Recreação.

710

Urbanismo. Paisagismo.

720

Arquitetura.

730

Escultura.

740

Desenho. Artes decorativas.

750

Pintura. Pinturas. Obras pictóricas.

760

Gravura. Arte de gravar gravuras.

770

Fotografia. Arte fotográfica.

780

Música.

790

Divertimentos Espetáculos.

800

Literatura.

810

Literatura norte-americana (em inglês).

820

Literatura em língua inglesa.

830

Literaturas em línguas germânicas.

840

Literatura francesa. literatura provençal. Literatura catalã.

850

Literatura italiana. literatura romena. Literatura reto-romana.

860

Literaturas hispânicas. literaturas ibéricas. Literaturas hispano-americanas. Literaturas ibero-americanas.

870

Literatura latina e em outras línguas itálicas.

880

Literatura grega clássica e em várias línguas helênicas.

890

Literatura em outras línguas.

900

Ciências auxiliares da história.

910

Geografia — viagens.

920

Biografia e genealogia.

930

História do mundo antigo (até 499).

940

História da Europa.

950

História da Ásia.

960

História da África.

970

História da América do Norte e Central.

980

História da América do Sul.

990

História das outras partes do mundo. Oceania, história de. História dos mundos extraterrestres.


Nils, Dewey foi um cara que não sei quando inventou um sistema terrivelmente complicado para organizar os livros por assunto numa biblioteca. Nesse sistema, cada livro sobre um determinado assunto recebe um número entre 0 e 999. Existem grupos principais e subgrupos, de acordo com os quais cada livro possui um lugar bem determinado. A bibliotecária me deu essa lista que colei aí em cima. É uma lista só dos grupos principais do sistema de Dewey, entre esses números existe uma infinidade de subdivisões com pontos e números decimais, e detalhes ainda piores. (Esse Mister Dewey com certeza era um fanático por matemática.)

Portanto, o que você está vendo aqui é só um resumo. O sistema enche todo o grosso livro azul, que de qualquer forma não cabe na minha estante. Mas dá uma olhada no último dos grupos principais: 990 — História das outras partes do mundo. Oceania, história de. História dos mundos extraterrestres. Gostaria muito de ver um livro desses. Quem sabe eles não tratam da eralidade?


PS. Se você continuar a fuçar no passado de Bibbi Bokken, talvez você descubra onde o esqueleto está escondido. E cuidado para ele não fugir do armário. Não vou dizer mais nada.

Lembranças, Berit Bib Lioteca


Nils chamando Berit:

A rede está se fechando. Existe uma biblioteca mágica. E ela pertence a Bibbi Bokken! Eu sei. Telefonei para o professor Bruun para falar em particular com ele como você sugeriu, mas não foi ele quem atendeu, e sim uma mulher.

— É da casa do professor Bruun? — perguntei.

— Sim — disse a mulher.

— Posso falar com ele?

— Ele não está — disse a mulher. — Quer deixar um recado?

— Com quem estou falando? — perguntei.

— Aslaug Bruun. Sou a mulher do Reinert.

Por um momento eu não soube o que dizer, mas então me dei conta de que estava com a fonte na linha. Comecei a tremer, mas tentei falar o mais calmamente possível.

— Nós dois temos muito que conversar, senhora Bruun — eu disse friamente.

— Temos?

— Sim — eu disse. — Bibbi Bokken, por exemplo.

— O quê?

— Café Skalken, hoje, às seis da tarde. Estarei com uma flor na lapela do casaco para que a senhora possa me reconhecer.

Desliguei. Senti que estava ficando vermelho. Como você sabe, sou bastante tímido e às vezes procuro esconder isso atrás de um “Torgersen durão”. Naquele momento eu me senti bastante idiota, mas um pouco detetive ao mesmo tempo. Eu tinha uma pista. Será que o peixe morderia a isca? Eu tinha minhas dúvidas, mas peguei uma rosa murcha do vaso da mesa da sala e fui para o Café Skalken.

Você já foi ao Skalken, Berit? Melhor não ir. Deve ser um dos bares mais decadentes de toda a Europa. Eu me arrependi da escolha assim que abri a porta.

Estava quase totalmente escuro lá dentro. Com certeza em consideração aos clientes. Acho que poucos ali poderiam suportar a luz do dia. No Skalken há apenas três ou quatro mesas e todas estavam livres quando cheguei, menos uma. Nela estava sentado um jornal. Pelo menos é o que parecia, porque só dava para ver o jornal e não a pessoa que estava atrás dele. Só fui ver essa pessoa mais tarde. Vou falar disso depois.

Na hora eu não me senti exatamente um detetive, mas sim um garoto imbecil com uma flor ridícula na lapela do casaco. Tentei parecer bem despreocupado e pedi uma soda limonada, mas não tinha soda e tive que me contentar com uma cerveja sem álcool, que eu detesto.

Eu tinha acabado de me conformar com a ideia de que a sra. Bruun não viria, quando ela apareceu na porta.

— Foi você quem ligou? — ela perguntou.

Eu tirei a flor da lapela e dei para ela.

— Para que isso?

Ela olhou para mim um pouco surpresa, mas ao mesmo tempo parecia estranhamente alegre.

— Um presente — murmurei. — Para agradecer pelo seu esforço.

Aí ela riu de verdade. O jornal na mesa ao lado fez um barulho.

— Não foi nenhum esforço. Sobre o que você quer conversar, amigão? Aconteceu alguma coisa com Bibbi?

Ela piscou para mim.

Aquilo foi a gota d’água. Se tem uma coisa da qual já estou cheio é de adultos que me chamam de “amigão” e piscam para mim como se eu fosse um bebê.

— Não — eu disse, frio como uma geladeira. — Eu gostaria de falar sobre ela.

Tomei um gole da cerveja morna.

— É sobre a biblioteca mágica.

O espanto da mulher foi tanto que era como se eu tivesse afirmado saber, de fontes seguras, que Bibbi Bokken estava planejando assaltar o Banco da Noruega.

— A biblioteca...

— ... mágica — eu disse tranquilamente, e notei que atrás do jornal na mesa ao lado despontava uma cabeça calva.

— Você ouviu falar dela? — ela perguntou.

— Sim — eu disse. — E temos motivos para crer que o livro sobre a biblioteca será publicado no ano que vem.

— Temos?

É claro que aqui eu deveria ter dito que estava me referindo à Agência de Detetives Bøyum & Bøyum. Mas eu apenas fiz que sim com a cabeça.

— Então ela conseguiu — disse a sra. Bruun. — Durante a faculdade, ela sempre reclamava que faltava uma seção na nossa biblioteca. E ela a chamava de...

— ... a biblioteca mágica de Bibbi Bokken — eu sussurrei.

A sra. Bruun confirmou com a cabeça.

 

Não consegui tirar mais nada dela. Ela contou que nunca mais vira Bibbi Bokken desde que haviam terminado a faculdade, e que na época todo mundo a achava um pouco estranha. Quando alguém perguntava que biblioteca mágica era aquela da qual ela falava, ela apenas sacudia a cabeça e dizia que todos saberiam quando chegasse o momento, que tinha um grande plano e queria mantê-lo em segredo até que pudesse colocá-lo em prática.

Então Aslaug Bruun pagou minha cerveja e disse que entregaria a rosa a Reinert com os cumprimentos de um garoto muito simpático.

Ela foi embora e eu fiquei sentado com meu copo ainda pela metade.

Eu havia levado o livro de cartas. Quando o peguei para anotar a minha conversa com a sra. Bruun enquanto ainda estivesse fresca na memória, aconteceu uma coisa estranha e bastante assustadora. O homem na mesa ao lado largou o seu jornal e veio até mim.

Senti meu corpo endurecer. O garçom tinha ido até a cozinha, e eu estava sozinho com o careca. Ele se curvou sobre mim e sorriu, Berit. Mas não era um sorriso agradável, era mais como se ele tivesse puxado os cantos da boca para cima para mostrar os dentes. De repente ele me estendeu um vídeo — na capa tinha o desenho de um livro sangrando com uma faca atravessada nele — e disse com uma voz suave que tentava parecer amável, mas não conseguia:

— Você não gostaria de trocar seu livro por este vídeo?

— Vídeo... — sussurrei.

— Sim, um vídeo. The phantom of the library. Tenho certeza de que você vai gostar.

Para mim foi a gota-d’água, Berit.

Saí dali em disparada e pernas para que te quero. Corri pela frente do parque Frogner, atravessei o cruzamento da rua Majorstu, corri pela rua Bogstad, depois pela Vibes e só parei quando entrei em casa.

Não sei se o careca sorridente me seguiu, mas de qualquer forma ele ouviu tudo o que Aslaug Bruun e eu conversamos, e por algum motivo queria ler nosso livro de cartas de qualquer jeito.

É um mistério, e dos bem cabeludos (apesar do careca). Vou respirar aliviado quando puser o livro no correio amanhã.

Mas agora sabemos que Bibbi Bokken já sonhava com uma biblioteca mágica no seu tempo de faculdade.

Temos boas razões para supor que ela realmente construiu uma, e acho que uma coisa é certa, Berit: se encontrarmos essa biblioteca, poderemos esclarecer a história do livro que ainda não foi publicado.

Mas onde procurar? Deixo esse problema para você. Agora preciso dormir. Vou sonhar com uma careca reluzente e um sorriso maléfico.

Muitas lembranças,

comissário-chefe Torgersen


Comissário-chefe Torgersen,

Investigações livrescas Bøyum & Bøyum!

Estou chocada! Uma tal de “Siri” encontra em Roma um livro cujo título tem algo a ver com uma “biblioteca mágica”. O único problema é que no livro consta que ele só será publicado no ano que vem. Então o comissário-chefe já vai logo supondo que essa “biblioteca mágica” — sobre a qual alguém vai escrever um livro — pertence a Bibbi Bokken. Ele entrega uma redação péssima, que o leva até uma certa Aslaug Bruun — e ela confirma que Bibbi Bokken cultiva um “grande plano”, que consiste justamente em construir uma biblioteca mágica.

Na mosca!

Só que alguma coisa não se encaixa nessa história. Por que Siri não pensou que a biblioteca mágica poderia ter alguma coisa a ver com Bibbi Bokken? E se o livro que ela segurou nas mãos realmente se chamava A biblioteca mágica de Bibbi Bokken, por que ela não conseguiu gravar esse título? Não pode ser, Nils. Talvez Aslaug Bruun só tenha falado o que você queria ouvir. Talvez ela tenha achado que você é louco. De qualquer forma, ela deve ter lido a sua redação estapafúrdia, senão ela nunca teria ido se encontrar com você no Café Skalken.

Quanto ao desagradável “Smiley”, acho que você não precisa se preocupar. (Todo mundo sabe que você costuma ver fantasmas em plena luz do dia.) Mas confesso que foi estranho ele querer trocar o livro de cartas por um vídeo. O que será que ele queria com o nosso livro? Fico muito feliz que você tenha recusado.

E agora as notícias daqui da sucursal. Bem... quase não tenho coragem de admitir, mas agora estou usando batom. Somente para que você veja qual é a cor que estou usando, vou dar um beijo no livro de cartas:


O que você acha?

Se você pensa que o batom não tem nada a ver com Bøyum & Bøyum, está muito enganado. É que eu agora tenho uma espécie de amiga aqui. Ela se chama Randi Mundal e está na minha classe. Acho que sem batom eu não teria conseguido me aproximar dela. Randi mora na parte de cima de Mundal e é a vizinha mais próxima de Bibbi Bokken. Isso não quer dizer que ela more encostada, pois aqui tem bastante espaço para todo mundo. (Além disso, Bibbi Bokken teve o cuidado de escolher como moradia um lugar “com bastante privacidade”, como se diz por aí.) Mesmo assim Randi já viu o suficiente para saber que ela é louca de pedra. E agora, comissário-chefe Torgersen, preste atenção no seguinte, antes de sair por aí atrás de dente de coelho. Diversas vezes, Bibbi Bokken chegou aqui com a última barca e saiu arrastando uma pesada mala para a sua casa amarela. O problema é que não dá para ver o que tem dentro de uma mala. Mas algumas vezes ela trouxe só uma sacola de rede, dessas de carregar compras, e Randi Mundal viu que essa sacola estava cheia de... exatamente! De livros! Talvez ela seja um rato de biblioteca que um dia ganhou um milhão de coroas e resolveu gastar tudo com coisas para ler. Mas ela não carrega apenas livros novos, sabe? Alguns deles são muito antigos. (Vai ver ela tem até autênticos incunábulos!) De qualquer forma, parece que ela está montando uma boa biblioteca.

Ontem fui à casa de Randi pela primeira vez. No caminho de volta, como era de se esperar, encontrei Bibbi Bokken saindo da barca. De fato, ela estava carregando uma sacola cheia. Mas na sacola havia apenas uns cadernos grossos daqueles que usamos na escola!!! (Livros ainda não publicados? Só estou perguntando!)

Sabe o que ela me disse quando nos cruzamos?

— E então? — ela disse, me olhando com um olhar penetrante. — Tudo bem com vocês?

“Vocês”? Quem exatamente? E por que ela queria saber se estava tudo bem conosco? Ela se referia a Randi e a mim? Ou estava pensando em Bøyum & Bøyum?

Talvez ela estivesse pensando no livro de cartas, Nils! Talvez ela saiba que você o comprou para nos correspondermos. Mas como ela poderia saber disso? Ela não é vidente, é?

— Ah, tudo bem... — eu disse, e a conversa acabou aí.

Mas isso ainda não é tudo. O melhor eu deixei para o final: ELA POSSUI CONTATOS INTERNACIONAIS! É isso! Mas, já que estamos fazendo “pesquisas na fonte”, vou contar a história toda.

Uma das donas do hotel se chama Billie e é, na verdade, uma inglesa. (Foi ela quem sugeriu que a gente se correspondesse usando um livro de cartas, lembra?) Não sei qual é o sobrenome dela, por isso eu a chamo simplesmente de Billie Holiday. (Da primeira vez ela riu, mas acho que agora já se acostumou.) Ela é simpática, gosta de conversar com quem aparece por aqui, principalmente quando a minha mãe está na cozinha tendo que cozinhar menus de quatro pratos seis dias por semana. E então eu perguntei discretamente (?) se ela sabia qual era a profissão da mulher da casa amarela lá de cima. E sabe o que ela respondeu? Não tenho uma peça inteira para apresentar, mas posso oferecer um pequeno monólogo:

 

BILLIE HOLIDAY (desenfreadamente, com um sorriso amável): Eu também gostaria de saber. De qualquer forma, ela recebe uma quantidade enorme de coisas pelo correio. Pacotes e envelopes de todos os cantos do mundo. Acho que são livros, Berit. Eu já andei dando uma olhadinha de leve na correspondência dela, sabe? Ontem ela recebeu um pacote da Itália, ela recebe muitas coisas de lá. O remetente se chama Bresani...

 

O que você acha, Nils? Como responsável pelo hotel, é claro que Billie Holiday lida bastante com o correio, e o correio é a janela de Bibbi Bokken para o mundo. Eu acho que ela fica lá em Mundal escrevendo cartas para sebos misteriosos do mundo inteiro.

E por isso repito a minha pergunta: o que faz essa mulher num canal estreito de um fiorde no oeste da Noruega? Talvez seja a região mais isolada de toda a Galáxia... Talvez justamente por isso...

Quando li a sua última carta, fiquei achando tudo ainda mais misterioso. Se tivesse tido coragem, eu teria dado uma olhada mais de perto na casa dela. Mas até prova em contrário, podemos dar como certo que a casa está repleta de livros.

PS. No fim de semana vou visitar meu pai em Bergen. (Sozinha, é claro. Acho que minha mãe e ele não querem se ver nem pintados, ultimamente.) Então eu tive uma ideia que talvez não seja totalmente má. Bem, não importa. Acabou de me ocorrer. (Quando escrevo, sempre tenho boas ideias.)

Meu pai se mudou para a rua Poms e está todo prosa porque agora é vizinho de Gunnar Staalesen, o famoso escritor de romances policiais. E nós não estamos tentando esclarecer uma espécie de história policial, e não somos também uma espécie de detetives? Mas não é bem sobre isso que eu quero falar com esse escritor. Eu apenas pensei que, se no ano que vem realmente vai ser publicado um livro sobre uma “biblioteca mágica”, neste exato momento alguém deve estar escrevendo esse livro. AFINAL UM LIVRO NÃO SE ESCREVE SOZINHO!!! É claro que não estou pensando que Gunnar Staalesen é quem está escrevendo, mas não é perfeitamente plausível que os escritores conversem uns com os outros sobre os livros que estão escrevendo? Existem até mesmo associações de escritores e coisas assim...

Agora me diga sua opinião abertamente, Nils! Se você responder logo, talvez eu receba o livro antes de embarcar para Bergen.

 

pps: Por falar em Gunnar Staalesen, você já leu seus dois livros sobre o tesouro dos vikings? (O mistério do tesouro viking e A maldição do tesouro viking.) Eu só li o primeiro. É uma autêntica história de bandoleiros, no melhor estilo Indiana Jones. Em outras palavras, perfeito para você — que se sentiu ameaçado por um careca bebedor de cerveja no Café Skalken.

Lembranças da metade de Bøyum & Bøyum.


Querida Berit Labium Rubrus!

Segure-se firme, priminha: viajo na sexta-feira!

Pergunta: “Para onde?”. Resposta: “Para Roma”. Pergunta: “Você vai para Roma?”. Resposta: “Vou”. Pergunta: “Por quê?”.

Resposta: PORQUE A MINHA MÃE GANHOU UM CONCURSO DE CONTOS SOBRE O TEMA “A CIDADE DO MEU PRIMEIRO AMOR!”.

Lembra que dei uma inspiração para minha mãe quando lhe perguntei sobre a piazza Navona? (Cf. livro de cartas, p. 23.)

Ela usou essa inspiração numa história e enviou para o concurso.

O primeiro prêmio era uma viagem à cidade em que a ganhadora viveu o seu primeiro amor, e minha mãe escreveu sobre como ela conheceu meu pai... adivinha onde... na PIAZZA NAVONA!

Caiu a ficha, Berit? BB recebe misteriosos pacotes de livros (?) da Itália. O sebo misterioso sobre o qual Siri escreve fica em Roma.

Será que existe uma relação entre esses fatos? Talvez esse enigma possa ser solucionado daqui a cinco dias, quando o detetive N. B. Torgersen, acompanhado de sua mãe e de seu pai, chegar a Roma.

Prometo a você que vou achar esse sebo, mesmo que tenha que esquadrinhar todas as ruas e becos ao redor da piazza Navona. Confie em mim!

Mas voltando à história da minha mãe, que, além de horrivelmente romântica, é uma mentira deslavada: meu pai e minha mãe nunca estiveram em Roma. Eles se conheceram no táxi nº AB 604 da rua Grünerløkka para a Majorstu. A história é uma mentira, quer dizer, uma mentira mesmo, pois ela a enviou para a revista como se fosse verdade e ainda por cima faturou um prêmio, porque as pessoas do concurso acreditam que seja verdadeira. Mas talvez nem elas acreditem, e tenham dado o prêmio para a minha mãe apenas porque acham que as pessoas que lerão a história depois acreditarão que ela é verdadeira. E se for isso, não é só a minha mãe que está mentindo, mas também as pessoas que vão publicar a história. E se aqueles que leem acreditam que é verdade, eles estão sendo enganados, mas se para eles tanto faz se é verdade ou não, o que acontece com eles? Você pode me explicar? Eu não sei.

Mas agora não é o momento para ficar filosofando sobre literatura. Concentre-se no caso Bokken, Torgersen.

 

Querida Berit de lábios vermelhos, tenho uma proposta:

Enquanto eu estiver em Roma procurando o livro sobre a biblioteca mágica, talvez você possa ir atrás da biblioteca da qual o livro trata. Mas temo que você não poderá mais evitar um “contato de terceiro grau” com a sra. Bokken. Senha: casa amarela. Você poderia por exemplo...

Não, esqueça. Seria muito perigoso. Esta não é uma tarefa para uma garota. Mesmo que a chave que abre a casa possa ser a chave de todo o mistério.

Não, mantenha-se em segurança até eu voltar, mas se encontrar Gunnar Staalesen em Bergen, mande lembranças minhas. Vou telefonar para Henrik Ibsen em Roma. Minha mãe me contou que ele esteve lá. Talvez ele ainda esteja. Quem sabe.

Il Nilso

 

PS. Se você, por algum motivo e apesar de eu tê-la advertido, mesmo assim acabar chegando perto de BB, preste atenção em estantes recém-instaladas. Entende?


PS. 2: Estou mandando junto uma cópia da história da minha mãe para que você veja como é fácil ganhar uma viagem para o exterior.


PS. 3: Estou também mandando uma foto que a revista fez de toda a família, aí você pode ver quanto já cresci desde o verão.


PS. 4: Mil vezes obrigado pelo magnífico beijo. Ele deu um toque todo especial ao nosso livro de cartas.


A CIDADE DO MEU PRIMEIRO AMOR


Você se lembra de Roma, meu amor? Da basílica de São Pedro, do Coliseu, do Panteão, da escadaria da piazza di Spagna, da piazza Navona? Ou você se esqueceu de tudo? Nosso amor está amarelecido como as fotos num velho álbum? Você já não vê as cores e a luz da nossa juventude, quando o amor parecia uma rosa vermelha em botão e a vida parecia não ter fim?

Olho para você, meu amor, sentado na cadeira de balanço, seu olhar se lança no vazio, você se balança devagar como um barco pelo rio da vida, a caminho do grande oceano. Vejo as veias azuis em suas mãos, os sulcos profundos em sua fronte e seus cabelos dourados que se transformaram em prata. Sim, Gabriel, nosso sol do meio-dia já ficou para trás. Você tem cinquenta e oito anos, e eu, trinta e oito. E contudo, quando o sol bate na janela como agora, e eu vejo o contorno de seu rosto contra a paisagem de uma macieira em flor sob o céu azul de anil, as suas rugas parecem se alisar e os seus cabelos adquirem a cor dos raios dourados do sol. Então vejo na cadeira de balanço o meu jovem amado novamente. Sinto-me tomada por sentimentos que vêm desse estranho espaço entre a dor e a alegria e, através do caleidoscópio das lágrimas, vejo imagens daquele dia, aquele dia, aquele dia...

— Droga — eu disse, olhando para a tira rasgada.

Justamente ali na piazza Navona, em Roma. Cercada por italianos, ingleses, dinamarqueses e sabe Deus mais quem. Ali estava eu, sem uma lira no bolso e com uma sandália arrebentada na mão. O gordo alemão tinha rasgado a tira quando pisou no meu pé.

— Entschuldigung — ele se desculpou em alemão. Para ele, era fácil falar. Afinal não era a sandália dele. E ele não era uma estudante de artes norueguesa de vinte e um anos que havia gastado todas as suas economias numa viagem a Roma para poder admirar os fantásticos afrescos de Michelangelo na capela Sistina.

— Droga — eu disse novamente, irritada. O dia estava estragado. Só me restava ir embora para o albergue barato onde me hospedava, e pelo qual havia pagado dois dias adiantado.

— Droga! Droga! Droga!

— Está com problemas?

A voz profunda, sensual e um pouco zombeteira fez com que me virasse.

E ali estava você. Naturalmente, naquele momento eu ainda não sabia que era você, embora meu coração talvez soubesse. Sim, pois o coração possui sua própria verdade e entende o que o cérebro não consegue apreender.

— Ah, não foi nada — eu disse, um pouco perturbada. Com certeza, minha voz ainda soava irritada. Pus a mão na testa, pois você estava de costas para o sol.

— Ofuscada pela minha beleza nórdica? — você perguntou.

Tive que rir.

— Mais pelo sol atrás de você — respondi.

— Não é o sol. É a minha aura.

Fiquei pensando numa resposta mordaz e engraçada. Mas você se antecipou.

— Está com problemas com a sua sandália, ao que me parece?

— É — eu disse. — A tira está rasgada.

E você se agachou. O vento brincava com seus cabelos, quando você se ajoelhou aos meus pés na piazza Navona.

Você se lembra, Gabriel... ou você se esqueceu? Uma garota de pés descalços no Café Greco e depois no corso Vittorio Emanuele, na ponte sobre o Tibre, na praça São Pedro. Você se lembra da loja de sapatos e do pequeno pé se enfiando numa sandália italiana novinha em folha, enquanto você recusava meus débeis protestos com um sorriso? Você se lembra do beijo? Do primeiro beijo? Da noite em que jogamos nossas moedas na fontana di Trevi, com o desejo de voltar ali? Você se lembra do anel que comprou na loja de penhores? Da longa caminhada até o Hotel Siena, onde nosso pequeno casanova foi concebido?

Olho para você, Gabriel. Seus olhos estão fechados. Você está respirando ritmadamente. Um leve sorriso se insinua nos seus lábios e, em meu coração, sei que você também está sonhando com Roma. Com a cidade do nosso amor.

 

Procure uma profissão fácil e bem paga. Seja escritora.

Lembranças do seu pequeno casanova


Querido Il Nilso Pava Rotti!

Seu traidor! Então eu escrevo com uma pontinha de orgulho que vou sozinha para Bergen visitar meu pai — e talvez até mesmo tenha uma conversa particular por cima da cerca do jardim com Gunnar Staalesen, o famoso escritor de romances policiais. Aí vem a tia Ingrid com uma baboseira romântica e ganha um fim de semana grátis em Roma! Acho que Alf Prøysen se enganou quando escreveu a canção sobre o primo mimado de Gjøvik. Acho que os primos de Oslo são muito mais mimados.

E, como consolo, sou praticamente forçada a arriscar minha vida nos altos de Mundal enquanto você saboreia um belo espaguete em algum ristorante. Se você ainda não entendeu, o que estou dizendo é: EU ESTIVE LÁ.

Calma, que eu vou contar tudo.

Antes de mais nada, decidi não receber ordens de um adolescente que sofreu um violento choque de puberdade só porque sua prima está usando batom (“Querida Berit Labium Rubrus”). Depois dei uma passada no Hotel Mundal para ver se arranjava uma almôndega na cozinha.

Foi então que aconteceu. Eu vi Bibbi Bokken acabando de sair de Mundal. O único pensamento claro que eu tinha na cabeça era que na manhã seguinte eu iria para Bergen, e que não seria nada divertido passar o fim de semana com um peso na consciência por não ter tido coragem de fazer uma visitinha para a sra. Livros. Acho que também pensei que não seria nada mau avançar um pouco nas investigações antes de ir para Bergen e me encontrar com o famoso autor de romances policiais...

Esqueci a almôndega e subi correndo para a casa amarela. Bibbi Bokken já tinha chegado lá embaixo na rua principal. A simples ideia de que o caminho estava livre me deixou maluca. Afinal ela mora sozinha, eu pensei...

Mais uma vez, me escondi atrás do muro (para que os anjos do céu não me vissem) e depois me aproximei furtivamente da casa. Com todo o cuidado, girei a maçaneta... e a porta estava aberta! Mas isso talvez não seja tão estranho, já que muita gente em Fjærland não tranca suas portas. Se bem que eles não têm muito a esconder...

Dei uma olhada em volta e entrei, Nils. E foi aí que eu perdi a cabeça: acho que imaginei que Bibbi Bokken pretendia deixar o país — assim como o sr. Nils — e que só voltaria em alguns dias. E lá fui eu!

Primeiro dei num vestíbulo, onde havia uma pilha de papéis velhos num canto. De lá eu vi a cozinha, cujo estado revelava claramente que Bibbi Bokken não tinha empregada. Abri uma porta que dava para uma saleta.

Você deve estar muito curioso, não é? Eu também estava...

Eu tinha imaginado uma sala tão atulhada de livros que eu nem conseguiria respirar lá dentro. Mas você sabe o que eu encontrei? Nem um único livro! Nem ao menos uma revista.

Fiquei tão decepcionada, e ao mesmo tempo tão irritada, que comecei a revistar a casa toda, como um investigador desleixado que não se deu ao trabalho de providenciar uma ordem de busca. Corri de um cômodo para o outro, depois subi para o andar de cima. Não vá pensar que não olhei direito. Vi uma cama desarrumada com lençóis cor-de-rosa (!), uma camisola de tecido bem fininho, um roupão azul-celeste e um rádio-relógio muito estranho. Era o quarto de Bibbi Bokken. No banheiro havia todo tipo de cremes e cosméticos que você pode imaginar, e a banheira estava cheia de água morna (!). E em quase todos os cômodos havia cinzeiros com cachimbos fedorentos.

MAS NÃO ENCONTREI NENHUM LIVRO! E naturalmente foi isso que mais me chamou a atenção. Ela nunca foi sócia de nenhum clube de livros. Também não possui nenhuma enciclopédia, bíblia nem songbook. No final eu estava tão decepcionada que comecei a fuçar dentro das gavetas e armários (Fuçar cautelosamente, Nils. Você sabe que sempre faço essas coisas com muito cuidado.) Mas não encontrei nem mesmo uma caderneta. Eu estava completamente tonta quando desci as escadas.

Só voltei a mim quando estava de novo na sala. Mas aí já era tarde. Pela janela, vi Bibbi Bokken voltando para casa. Numa das mãos ela carregava uma sacola de plástico com compras do mercado. Na outra, um pacote do correio.

Eu sabia que não havia nenhuma possibilidade de fugir e, nesses momentos, ou a gente começa a gritar ou a olhar ao redor à procura de um lugar adequado para se esconder. Fiquei com a segunda opção, pois não faria sentido começar a gritar. Eu me agachei atrás do encosto alto de um sofá antigo e me espremi contra a parede. ENTÃO BIBBI BOKKEN ENTROU NA SALA! No fundo, eu estava presa. Eu mesma havia me trancado — e agora tinha que respirar baixinho para não fazer barulho.

Bibbi Bokken entrou na sala e colocou o pacote em cima da mesa. É claro que não dava para ver nada, mas ouvi quando ela rasgou avidamente o papel.

— Magnífico — ela disse para si mesma. — Divino.

Pouco depois, ouvi que ela saía da sala, e então ficou tudo em silêncio. Depois de alguns minutos, ouvi passos no andar de cima.

Adivinha o que eu fiz? Certo! Eu me arrastei de trás do sofá e me levantei. Sobre a mesa de jantar havia alguns livros grossos, que ela havia acabado de desempacotar. Mas não me detive em examiná-los mais de perto, nem sequer parei para sacudir o pó da minha roupa. Pé ante pé, atravessei o vestíbulo até a porta. Girei a maçaneta e então lá estava eu do lado de fora, na entrada da casa...

Agora você está aliviado, não está? Eu também fiquei!

Mas eu ainda não estava em casa ao lado da minha mãe. Primeiro eu precisava me afastar da casa sem ser vista — e isso eu não arrisquei, Nils. Minhas pernas tremiam tanto que eu não conseguia me mexer, elas pareciam de gelatina. Além disso, eu precisava respirar fundo para me recompor.

Então ouvi passos atrás da porta. Você consegue imaginar o que eu fiz? EU TOQUEI A CAMPAINHA!

Acho que você nunca vai entender isso, talvez por ser um menino. Mas eu estava com tanto medo que não tive coragem de sair correndo. Simplesmente dar no pé seria como confessar que eu era uma invasora. Mas eu também não podia ficar ali parada. Então toquei a campainha.

Ela abriu imediatamente — e ficou parada na minha frente olhando para mim com um olhar indescritível. Então disse:

— Olha só quem está aqui!

Ela parecia incrivelmente surpresa, mas desconfiei que ela estava fingindo.

Eu não conseguia me mexer.

— Eu só queria...

— Sim, o que você queria, Berit?

Berit! Então ela tinha gravado nossos nomes quando assinamos o livro de hóspedes da Cabana Flatbre. Acho que de alguma maneira ela andou de olho na gente. “Mas quem está espionando quem?”, eu pensei. You see? Apesar de tudo, achei estranho ela me chamar pelo nome.

— Eu só queria perguntar se a senhora não gostaria de comprar uma rifa — eu disse.

Sua resposta foi bem curta:

— A rifa é em favor de quê?

Eu simplesmente precisei tirar uma resposta da cartola.

— Para a biblioteca da escola — murmurei.

Ela ficou radiante.

— Mas olha só. E quais são os prêmios?

— Bem, são livros, é claro!

(E que mais eu poderia ter dito?)

Ela estalou duas vezes a língua e lambeu os lábios uma ou duas vezes.

— Exceleeeeeente — ela disse.

Então deu um passo na minha direção e disse num tom um pouco ameaçador:

— Vou ficar com todos os números. Todos eles. Vou, sim.

Ela me estendeu a mão. Mas eu fiquei olhando para ela com cara de imbecil. Afinal eu não tinha nenhuma rifa.

EU NÃO TINHA NENHUMA RIFA! E sabe de uma coisa, Nils? Nesse momento, eu odiei você. Eu imaginava um pirralho se entupindo de espaguete em Roma com o papai e a mamãe, e acho que desejei que algum mafioso tivesse escondido uma bomba no prato de espaguete.

Primeiro apalpei os bolsos da calça. Depois estendi as duas mãos e disse:

— Ih... esqueci a rifa.

A sra. Livros deu um sorriso doce, como a rainha má de um conto de fadas. Ela disse:

— Ah, então foi isso. Pensou rápido e esqueceu rápido.

E então eu disse o seguinte, Nils:

— Pensei que estava no bolso... mas talvez Nils tenha levado com ele.

Ela me olhou nos olhos. Se tivesse continuado a me olhar por mais alguns segundos, teria cavado um buraco em mim.

— E então agora a rifa está a caminho de Roma? — ela perguntou. — Por que não? Sim, por que não, Berit Bøyum?

Portanto, ela sabia que você está em Roma. Repetindo: BIBBI BOKKEN SABE QUE VOCÊ ESTÁ EM ROMA! Tome cuidado, Nils! (O problema é que esse aviso não vai chegar a tempo...)

O resto aconteceu muito depressa. Bibbi Bokken veio andando com passos enérgicos até mim e ergueu a mão. Pensei seriamente que ela fosse me bater. Você deve estar arrepiado agora... Pois é, eu também fiquei!

Antes ela tivesse me batido de verdade! No fundo teria sido muito melhor. Mas Bibbi Bokken apenas passou a mão suavemente no meu pulôver e no meu jeans. Achei que ela estava completamente louca. O que ela estava querendo com aqueles afagos asquerosos?

Ela disse:

— Acho que você está meio empoeirada, amiguinha. E eu não gosto disso!

Ao que eu simplesmente dei no pé. Comecei a correr e não pude segurar o choro. Eu chorava e corria, fugindo de uma mulher histérica que ria sarcasticamente de mim:

— Ha, ha! Agora você me enganou! Ha, ha!

 

Isso aconteceu ontem à tarde e agora (felizmente) estou na barca. Quase não dormi à noite, por isso vou parar de escrever e pôr o livro no correio em Balestrand antes de tomar a outra barca. Simplesmente não tenho nenhuma vontade de levá-lo para Bergen. Agora quero ter um pouco de paz e me divertir com o meu pai — sem precisar pensar em Bibbi Bokken ou em Nilso Pava Rotti, que está em Roma numa espécie de lua de mel com papai e mamãe.

Mas se precisássemos fazer um resumo agora, seria mais ou menos assim:


1) Bibbi Bokken vive levando livros para casa.

2) Apesar disso, não tem nenhum livro em casa.


Conclusão: Bibbi Bokken faz alguma outra coisa com os livros em vez de colocá-los na estante e lê-los. Talvez os use para acender a lareira. E também não é totalmente absurdo supor que ela os coma. Talvez ela triture os livros e os misture junto com a comida, será? Eu não sei, mas quero uma resposta.

Lembranças de Berit Bøiando no caso Bibbi Bokken

 

PS. Agora sei como Bibbi Bokken sabe que você está em Roma. Mas espero que não seja você quem anda lhe enviando cartões-postais.


Querida Berit,

faz uma hora que cheguei em casa e o livro de cartas estava aqui. Li a sua carta imediatamente. A coisa está ficando cada vez mais curiosa. E misteriosa. Estou tentando estabelecer uma ligação entre os fatos e tenho uma espécie de teoria que explica por que você não encontrou nenhum livro na casa de BB. Mas receio que minha cabeça seja pequena demais.

Por sorte, existe um cérebro afiado em Fjærland pronto para entrar em ação (caso o cérebro já tenha voltado de Bergen).

Aí vai o relatório da “Estranha viagem de Nils Bøyum Torgersen”.

Chegamos a Roma na sexta-feira à tarde e fomos para o Hotel Mondiale. Enquanto a minha mãe apresentava os nossos passaportes, reparei num homem sentado numa poltrona da recepção. Ele era baixinho e careca, mas foi pelo sorriso que o reconheci. Era um sorriso meio ansioso, quase... macabro. Sim, Berit. Era ele. O Smiley do Café Skalken.

No ano passado, eu comecei a suar nas axilas. Estou me tornando um “homenzinho”, como diz meu pai. Naquela hora, comecei a suar como um porco (porcos suam?).

O que o Smiley estava procurando ali? Será que ele tinha me seguido? Para roubar o livro de cartas? Mas por quê? Eu não estava entendendo mais nada, a não ser que estava morrendo de medo e que as marteladas que estava ouvindo vinham do meu próprio coração.

Você escreveu na sua carta que Bibbi Bokken sabia da minha viagem para Roma. Será que foi ela que mandou esse homem para lá, por algum motivo que ainda não sabemos? Na hora eu não pensei nisso, mas agora, pensando em tudo que aconteceu, essa parece ser a única explicação.

Bem, lá estava eu, suando e com cheiro de “homenzinho”, enquanto o Smiley sorria e o sujeito atrás do balcão dava uma chave para a minha mãe e UMA CARTA PARA MIM!

Isso mesmo, havia uma carta para mim na recepção! Eu não estava entendendo mais nada, enfiei bem depressa a carta no bolso e corri atrás dos meus pais, que já estavam indo para o elevador. Eles estavam tão ocupados com a tal “cidade do amor” que nem repararam no envelope.

Quando chegamos ao quarto, corri para o banheiro e abri a carta. Vou colá-la no livro como prova:


Nesta cidade vive um velho homem,

ele é surdo, mas enxerga muito bem,

seu amor é jovem, fresco e reluzente,

milhares de livros vivem em sua mente.

Dante, Homero, Ovídio e Petrarca

são preciosos tesouros de sua arca.

Vá à piazza Navona, não saia muito cedo.

Sábado ao meio-dia. Não tenha medo.


A via dei Coronari você vai cruzar

e junto à ponte Umberto a livraria achar.

Dentro dela um velho homem está sentado,

dê-lhe isto e, se ele achar que não é sério,

diga-lhe ser você o menino enviado,

para buscar ali um tesouro e um mistério.


No começo não entendi patavina, mas então tive uma luz. O poema era uma espécie de código! Um código para me levar até o sebo na piazza Navona. Mas quem tinha escrito o poema? E por quê? Eu não estava entendendo nada, mas sabia que no dia seguinte tinha que ir de qualquer jeito à piazza Navona.

No sábado de manhã, íamos visitar a basílica de São Pedro. Fingi que estava com dor de cabeça e disse que preferia ficar no hotel dormindo. Por algum motivo, a desculpa colou. Ser um “homenzinho” tem suas vantagens.

Depois que meus pais saíram, esperei mais dez minutos e então saí do hotel em disparada. Encontrei a piazza Navona, atravessei a via dei Coronari e corri pela ponte Umberto até a outra margem do Tibre. Numa ruazinha lateral em frente à ponte, havia uma pequena livraria. As janelas estavam cobertas de poeira e atrás delas havia pilhas de livros antigos. Ao lado da porta havia uma plaqueta de latão na qual estava gravado M. Bresani. Sim, é isso mesmo que você leu. Era esse o nome que estava no pacote de Bibbi Bokken. Mas o meu nome agora era Assustado.

Abri a porta e entrei. De repente eu estava numa espécie de câmara do tesouro repleta de livros. Embora ali estivesse escuro e empoeirado, os livros pareciam brilhar. Não sei explicar de outro jeito.

O local estava cheio de livros com elegantes encadernações de couro, livros com inscrições douradas, livros com desenhos tão bonitos que não pareciam impressos mas sim pintados à mão sobre o papel, livros com minúsculas pérolas brilhantes incrustadas na capa, livros com tipos tão antigos de letras que eu nem conseguia identificar o alfabeto, e livros cujas folhas pareciam tapetes velhos, com letras que podiam se soltar a qualquer momento.

Eu me senti como se estivesse numa confeitaria de livros, entende o que eu quero dizer? E quase todos os livros eram antigos. Acho que não teria me surpreendido se visse uma bíblia impressa antes do nascimento de Cristo. Digo isso para que você possa sentir um pouco como era a atmosfera naquele sebo.

Evidentemente, eu estava no lugar certo. No sebo que a misteriosa Siri visitou antes de escrever a carta para Bibbi Bokken. E agora eu mesmo tinha ido parar lá. Por causa de uma outra carta misteriosa, ou melhor, um poema misterioso. Eu estava a um passo de desvendar o enigma. Se o livro que ia ser publicado só no ano que vem existia, ele devia estar, por assim dizer, bem debaixo do meu nariz.

A não ser por mim e pelos livros, a loja estava totalmente vazia. Nenhum(a) M. Bresani. Atrás de uma cortina, havia ainda uma saleta. Bem no fundo havia uma mesa atulhada de papéis, pincéis e frascos de tintas. A luz forte de uma lâmpada pendente iluminava a mesa, e havia um homem debruçado sobre ela, de costas para mim.

— M. Bresani? — sussurrei, mas ele não reagiu.

— M. Bresani? — eu disse mais uma vez. Ele continuou a desenhar tranquilamente.

— M. Bresani — gritei, mas ele não se mexeu. Andei até ele e toquei nas suas costas. Ele se virou e sorriu amavelmente para mim.

— M. Bresani? — perguntei pela quarta vez.

Ele não respondeu, e então me ocorreu que ele devia ser o surdo do poema. Eu peguei o poema e lhe entreguei, sem dizer nada. Prendi a respiração enquanto ele lia atentamente os versos. Então ele sorriu. Um sorriso sincero. Depois ele abriu uma gaveta e tirou de dentro um grosso envelope amarelo.

E então aconteceu algo mais estranho e assustador do que tudo o que já tinha acontecido.

No instante em que M. Bresani ia me dar o envelope, seu braço parou no meio do movimento e seu olhar se fixou em alguma coisa que estava atrás de mim.

Eu me virei, e adivinha quem estava atrás de mim? O Smiley em sua sinistra pessoa, é claro. Não deu para ver se ele estava sorrindo, porque o rosto dele estava escondido atrás de uma câmera de vídeo. Ele filmou a gente, Berit!

Então ele abaixou a câmera e... isso mesmo! Ele estava sorrindo como uma víbora. (Víboras sorriem?) Então ele sussurrou para mim com uma voz aveludada:

— Acho que esse envelope me pertence!

Ele parecia uma fera mostrando os dentes. Não sei como poderia descrevê-lo, mas sabe a história da Chapeuzinho Vermelho? Lembra de quando o lobo fica deitado na cama tentando se fazer passar pela vovozinha? Era isso que o Smiley parecia, o lobo na cama da vovozinha, quando a Chapeuzinho Vermelho chega trazendo bolo e vinho. Só de me lembrar sinto um calafrio na espinha. Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo ali, só sabia que tinha que dar o fora, e naquele instante.

Peguei o envelope amarelo, dei um empurrão tão forte no Smiley que fez a câmera de vídeo cair. Não sei, Berit, mas talvez isso tenha salvado a minha vida. Ele se abaixou para apanhar a câmera, e eu saí do sebo em disparada em direção à piazza Navona.

Só parei quando cheguei ao quarto do hotel. Tive que me sentar e respirar fundo por um tempo, enquanto examinava a elegante caligrafia no envelope. Estava escrito: Bibbi Bokken, caixa postal 85, 5855, Fjærland, Norvegia.

E no verso: M. Bresani, VIA DEI CORONARI 5, ROMA, ITALIA.

Sei que é proibido ler cartas alheias, mas em casos de força maior todos os meios são permitidos, e aquele era sem dúvida um caso de força maior.

Abri o envelope. Dentro havia cinco folhas. Em cada uma delas estava escrito, com tipos de letras diferentes: “A biblioteca mágica de Bibbi Bokken”.

Agora vou usar um outro meio que também é permitido em casos de força maior. Não vou enviar as folhas para Bibbi Bokken, mas sim para você. Você pode refletir sobre o que elas significam e o que devemos fazer com elas, pois eu estou entendendo cada vez menos.

Escondi o envelope na minha mala e fiquei deitado na cama até meus felizes e recém-apaixonados pais voltarem. Eles queriam ir a um restaurante. E eu tive que ir, embora agora estivesse com dor de cabeça de verdade e preferisse ficar no quarto do hotel até a hora de ir embora.

Felizmente o Smiley não deu mais as caras, e nosso avião partiu no domingo à tarde.

Agora é segunda-feira, onze e meia da noite. Estou morrendo de sono, mas tinha me esquecido de uma coisa. Minha teoria, isso mesmo. Talvez você ache um pouco fraca, mas é a única que eu tenho.

Bibbi Bokken é contrabandista de livros. Ela pertence a um bando internacional que rouba livros raros e os envia para Fjærland, de onde são vendidos para ricos colecionadores do mundo todo. O nome de código desse bando é A biblioteca mágica de Bibbi Bokken. Bresani e Smiley pertencem a esse bando e agora estão tentando nos envolver. Duas crianças inocentes! Sim, Berit. Soa terrível, mas nós vivemos numa época terrível. Alguns contrabandeiam drogas, outros contrabandeiam livros.

Se isso tudo estiver certo, então sabemos por que Bibbi Bokken não tem livros em casa. E aí você terá que procurar em outro lugar, Berit. Onde você acha que os colecionadores de livros se hospedam quando estão em Fjærland? Certo! No Hotel Mundal. Lembra aquela vez em que subimos no sótão onde antigamente as camareiras dormiam? Será que não é lá o depósito deles? Mas agora eu preciso dormir. Estou confuso, cansado e aflito de suor e de coceira.

Muitas lembranças do Nils


O jogo acabou, Nils.

Nós começamos um jogo bobo de espionar uma mulher porque ela se comportou de maneira um pouco estranha. Num outro verão, a gente brincou de detetive anotando placas de carros para o caso de acontecer um crime. Mas agora o jogo acabou!

Depois que li a sua carta, dei um longo passeio para pensar sobre tudo. Eu passei pelo Museu das Geleiras, atravessei o rio Bøya e fui até o Blåbærstøl. É tão bonito agora no outono, com as sorveiras carregadas de frutinhos vermelhos e tantos tons de amarelo nas copas das árvores...

Quem deixou o poema na recepção do hotel? Alguém que sabia da sua viagem a Roma. (Para quantas pessoas você contou?) As seguintes pessoas entram em questão: o Smiley (não acredito que ele tenha aparecido em Roma por mero acaso), Bresani (que pelo jeito esperava visita) e naturalmente Bibbi Bokken (que sabia que você ia para Roma).

Todas essas pessoas misteriosas sabiam que você estaria em Roma. MAS COMO ELAS SABIAM?

Acho que todas elas têm alguma participação nesse jogo. Mas que jogo?

Como Bibbi Bokken sabia que você ia para Roma, é bem provável que ela também soubesse em que hotel você se hospedaria. Não me surpreenderia se tivesse sido ela que escreveu o poema que levou você até Bresani. Afinal sabemos que ele é um dos contatos internacionais dela. (Você ficou no Hotel Mondiale, Nils. E aqui temos o Hotel Mundal. Só queria lembrar isso de passagem. Coincidência???)

Claro! Só pode ter sido a sra. Livros que levou você até Bresani. Até Bresani, mas não até Roma! Isso quem fez foi uma revista! Não, não estou entendendo.

Talvez você devesse tentar saber um pouco mais sobre esse concurso, o que você acha?

Não sei se devo agradecer por você ter mandado esses papéis estranhos para mim e não para Bibbi Bokken. Acabei colocando as folhas num novo envelope, escrevi “Bibbi Bokken” nele e pedi para Billie Holiday levar ao correio. Sem selo nem remetente, mas tive que arriscar. (Antes de despachar as folhas eu tirei fotocópias, que vou colar no livro agora.)

Acho que as folhas com o texto “A BIBLIOTECA MÁGICA DE BIBBI BOKKEN” em diferentes tipos de letras podem ser propostas para diferentes páginas de rosto de um livro que será publicado no ano que vem, justamente com o título “A BIBLIOTECA MÁGICA DE BIBBI BOKKEN”. (Mas não é um pouco estranho, uma vez que Siri já tinha segurado esse livro na mão?) Ou então podem ser esboços de um cartaz para ser pendurado numa misteriosa biblioteca com esse nome.

Mas existe ainda uma terceira possibilidade. Fui mais uma vez à biblioteca e encontrei lá o índice de uma coleção de livros bem diferentes, que em conjunto são chamados de Biblioteca Cultural de Thorvald Dahl. Será que a “biblioteca mágica de Bibbi Bokken” não pode ser algo parecido, ou seja, o nome de uma série de livros? Talvez Bibbi Bokken trabalhe com publicação de livros. Talvez ela tenha uma editora que se chama “Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken”, será que não é isso?

Não consigo acreditar muito que exista um bando de contrabandistas chamado “A biblioteca mágica de Bibbi Bokken”. Mas não podemos descartar nenhuma possibilidade, sr. Torgersen. Apenas não devemos tirar conclusões precipitadas.

Mas vamos ao sr. Smiley. (A história da câmera de vídeo foi realmente horripilante!) Tomara que você nunca mais encontre esse homem, mas não sei se vai conseguir escapar assim tão facilmente. Sem dúvida ele está querendo alguma coisa, e eu tenho duas hipóteses. Ou ele está interessado no misterioso livro sobre a biblioteca mágica, ou na própria biblioteca. EM OUTRAS PALAVRAS, ELE ESTÁ ATRÁS DA MESMA COISA QUE NÓS! Resta saber quem vai chegar primeiro ao Polo Sul.

Por enquanto, só consegui chegar até aqui. Mas ainda tenho uma ótima notícia. TIVE UMA CONVERSA MUITO INTERESSANTE COM GUNNAR STAALESEN NO FIM DE SEMANA! Sim, senhor, toquei a campainha e me apresentei como fã de seus livros. Achei que era um bom jeito de ser recebida. (Acho que os escritores são incrivelmente egocêntricos. Pelo menos, eles gostam de ser elogiados...)

Sobre o que falamos? Ah, sobre diversas coisas. Sobre tudo e sobre nada, não é assim que se diz?

Mas ele não sabia dizer se existe algum escritor que está trabalhando num livro sobre uma biblioteca mágica. E também não conhecia Bibbi Bokken. Mas ele me contou que no ano que vem haverá um jubileu, uma grande comemoração. E que comemoração vai ser essa? Você tem três chances de adivinhar. Ela vai se chamar ANO NORUEGUÊS DO LIVRO — e será patrocinada por sua majestade, a rainha Sônia. (Portanto, a Casa Real também está envolvida.) Há trezentos e cinquenta anos foi impresso o primeiro livro na Noruega. E isso é quase tão bom quanto um incunábulo. Coincidência, Nils? Muito me estranharia se Bibbi Bokken também não tivesse um dedo nisso...

De resto, o gentilíssimo escritor me contou sobre o livro que está escrevendo agora. Ele também vai ser publicado no ano que vem. Acho que pouco a pouco estou formando um panorama sobre as publicações do ano que vem. O livro de Staalesen trata de um detetive chamado Varg Veum. Esse detetive mora em Bergen, mas no Ano do Livro viaja para Oslo para farejar escândalos políticos e coisas parecidas. O título provisório do livro é Esqueletos não enterram joias.

Mas vamos ver onde o nosso esqueleto está escondido. Ou se tem alguma joia enterrada. You see? (Já não tínhamos falado uma vez do esqueleto escondido no armário?)

Ainda poderia escrever muito mais, pois falei com um monte de gente por aqui. Mas no momento está acontecendo tanta coisa ao mesmo tempo que é melhor eu mandar o livro de volta rapidinho. Mas tem um detalhe que ainda preciso mencionar: continuam chegando novos pacotes na caixa postal 85. A própria BB quase nunca envia um pacote. (Billie Holiday averiguou isso no correio.) Por isso não acredito que ela viva de vender livros. Talvez ela seja uma grande contrabandista de livros, mas os livros ficam aqui em Fjærland. Pelo menos aqui desaparecem as pistas...

So long, sr. contrabandista de cartas!

Lembranças de Berit Buu (você se assustou?) Yum

 

PS. O fim de semana com o meu pai foi superlegal. Sinto falta dele de verdade. Acho uma idiotice meus pais de repente terem posto na cabeça que não se amam mais. Mas eu amo os dois!

 

PPS. Você tem certeza de que não faz ideia de como BB podia saber da sua viagem a Roma?


PPPS. Estou começando a criar a terrível suspeita de que estamos sendo usados de alguma maneira. Quando li a sua última carta, eu me senti mais ou menos como um personagem num jogo de computador.


BERIT!

Você conhece o conto da pena que se transformou em cinco galinhas? Ele foi escrito por um escritor dinamarquês chamado H. C. (Hans Christian) Andersen. É sobre uma galinha que arranca uma de suas penas com o bico e começa a cacarejar.

— Lá se foi uma pena. Quanto mais me depeno, mais bonita vou ficando.

Uma outra galinha assiste à cena e cochicha para a galinha vizinha que a primeira arrancou todas as penas para impressionar o galo. Uma coruja, ouvindo essa conversa, voa até uma outra coruja e passa adiante a história, até que ela chega aos ouvidos de dois pombos e finalmente ao galo. Só que nesse meio-tempo a história se modificou muito. O galo espalha que três galinhas se depenaram inteiras de infelicidade pelo amor não correspondido de um galo, e então morreram de frio. Então a história vai circulando até que chega de novo à galinha que havia arrancado a pena, e agora ela é assim:

“Era uma vez cinco galinhas que arrancaram todas as suas penas para ver qual delas tinha ficado mais magra de paixão pelo galo. Depois elas lutaram violentamente até caírem mortas, para a vergonha de suas famílias e grande prejuízo do dono do galinheiro”.

A primeira galinha fica tão horrorizada que manda publicar toda a história no jornal como exemplo e advertência. Mas quando a história é publicada, todos acham que ela é verdadeira. Pois os jornais não mentem, não é?

É um belo conto de fadas e se parece com a história em que a gente se envolveu, só que AO CONTRÁRIO.

A coisa toda começou com uma peninha que você encontrou, não é? A carta de Siri. Pensamos que se tratava de uma única galinha, ou seja, Bibbi Bokken. Mas na verdade são pelo menos cinco — três galos e duas galinhas, para ser exato. Isto é, Bibbi Bokken, M. Bresani, o Smiley, Aslaug e Reinert Bruun. E estão todos querendo nos depenar, Berit!

Sim, é isso mesmo que você leu. Aslaug e Reinert Bruun também estão entre os que querem nos controlar. O que aconteceu esta tarde confirmou a terrível sensação que você teve: somos meros peões num jogo sobre o qual não temos influência.

Acabei de vir da casa de Aslaug e Reinert Bruun, que me convidaram para tomar limonada com bolinhos de passas.

Você pode imaginar como fiquei nervoso, pois pensei que tinha feito alguma coisa errada. Desde que voltei de Roma, Bruun está agindo de uma forma estranha. Ultimamente ele parece se interessar muito por mim. Foi falar comigo duas vezes no pátio da escola. Uma vez ele queria saber se eu gostaria de fazer uma apresentação sobre Roma para a classe. Eu disse que não tinha visto nada porque tinha ficado o tempo todo deitado no hotel com dor de cabeça. Ele olhou para mim como se não acreditasse no que eu tinha dito, ou soubesse de alguma coisa que ele sabe que eu não sei.

Na segunda vez, ele me perguntou se eu não poderia propor um tema para a próxima redação. Fiquei totalmente surpreso e balbuciei alguma coisa sobre estar justamente tentando refrear minha imaginação. Ele pareceu quase triste, passou a mão na minha cabeça e disse:

— Não faça isso, Nils. A fantasia é a sua principal ferramenta.

Quando ele me convidou para a limonada com bolinhos, eu não entendi patavina e pensei: “Isto vai ser um inferno”. Mas aceitei, é claro. Vieram os dois, Reinert e Aslaug, abrir a porta para mim. Entramos na sala e sobre a mesa havia — você tem três chances de adivinhar — uma pilha de livros.

Fiquei calado a tarde inteira, pois o professor e Aslaug gesticulavam como italianos e falavam pelos cotovelos. Eles falaram sobre livros. Sobre a diferença entre livros de aventuras e relatos de viagem. Sobre peças de teatro, poesia e prosa (romances, contos e coisas assim).

Eles disseram que há diferentes maneiras de escrever, que alguns escritores fazem primeiro um esboço e já sabem toda a história quando começam a escrever, enquanto outros talvez tenham na cabeça apenas uma frase, um começo ou um final. Eles disseram que o autor precisa ver diante de si os personagens sobre os quais escreve: sua roupa, sua cor de cabelo e todos os detalhes mais estranhos. Disseram que eu devia considerar que cada pessoa fala de um jeito diferente e que cada personagem num livro tem um jeito todo particular de se expressar. Eles disseram também que eu tinha que ser bem preciso ao escrever e ter cuidado com os adjetivos. Por exemplo: se eu escrever “a flor era simplesmente fantástica”, não estou dizendo absolutamente nada sobre a flor. Seria muito melhor se eu descrevesse a flor de forma que todos os que lessem pudessem ver por si mesmos o que há de fantástico nela.

E assim eles continuaram até que eu tivesse comido cinco bolinhos, tomado duas jarras de limonada, dito cinco vezes “sim” e sete vezes “exatamente”.

Quando eles terminaram, Aslaug piscou para mim e disse:

— Então, Nils, você aprendeu alguma coisa com tudo isso?

— Sim, claro — murmurei e pensei comigo mesmo: “Pelo menos entendi que os dois são loucos de pedra”.

Reinert olhou no relógio, e de repente me pareceu que ele precisava sair naquele exato momento. Ele me levou até a porta e quase me empurrou para fora.

Eu já estava indo embora, quando um táxi parou na porta da casa do casal Bruun. O homem que saiu não me viu, pois foi logo para a porta e tocou a campainha. Mas eu o vi. Sente-se para ouvir isto, Berit!

ERA O SMILEY.

O Smiley em pessoa estava indo à casa do meu professor. Não entendi muita coisa, mas pelo menos entendi que estamos sendo vítimas de alguma conspiração inexplicável, da qual Bibbi Bokken é uma espécie de centro misterioso.

Você tem razão, nós somos personagens. Embora eu esteja com muito medo, acho que temos que decidir o que vamos fazer.

Podemos terminar o livro de cartas por aqui e esquecer todo o assunto. Ou podemos tentar assumir o controle e jogar com os outros.

Proponho a segunda opção. Nós dissemos A. Agora temos que dizer todo o alfabeto.

Proponho que você volte ao ponto de partida: a Cabana Flatbre, onde vimos Bibbi Bokken pela primeira vez. Leia o livro de visitas. Procure os nomes de Bruun e Bresani. Talvez você encontre um código secreto ou uma mensagem que possa abrir uma brecha no nevoeiro, pois eu estou tateando no escuro. Por enquanto não tenho nenhuma teoria na gaveta, mas sei que estou ficando furioso e eu quero aproveitar essa raiva!

Nils

 

PS. Não entendi a história dos ossos enterrados, do livro do Gunnar Staalesen. O que tem a ver com Bibbi Bokken? Você acha que tem alguma coisa enterrada nessa história? Mas o quê? Os livros de Bibbi Bokken talvez? Mas por que, por tudo o que há neste mundo, ela juntaria um monte de livros valiosos para depois enterrá-los? Você está tirando uma com a minha cara?


Querido escritor,

não me leve a mal, mas tenho que admitir que não entendi essa de você de repente ser convidado pelos “confeiteiros” Bruun para assistir a um curso completo de preparação de escritores! Isso depois daquela redação!!!

No mais, acho que ninguém pode nos acusar de ter feito cinco galinhas com uma pena. Temos galos e galinhas suficientes para uma granja inteira, e pelo jeito essa granja é tão grande que vai até Roma. Logo teremos mais do que o suficiente para ir a todos os jornais com a história completa — como no conto de fadas. (E então vamos depenar um monte de galinhas!) Mas acho que ainda devemos esperar um pouco, pois a nossa história não para de crescer.

O livro de cartas chegou aqui ontem à tarde e isso foi bom, pois hoje é sábado e está fazendo um dia maravilhoso de outono. Bem, eu segui à risca a sua sugestão. Você não disse que talvez houvesse pistas importantes na Cabana Flatbre? Pois agora eu estou aqui. Arrumei minha mochila num instante e pus o pé na estrada. Minha mãe me levou de carro até øygarden.

É uma subida cansativa, Nils, mas o esforço é recompensado no momento em que se chega à geleira, e ainda por cima se tem aquela vista maravilhosa do fiorde de Fjærland. Fiquei me sentindo orgulhosa por ter nascido aqui, e pensei em coisas presunçosas do tipo “não existe lugar mais bonito no mundo todo”.

Agora estou aqui sozinha na Cabana Flatbre, e sinto nas pernas os efeitos de ter subido a mil metros acima do nível do mar. Folheei demoradamente o livro de visitas. Preste atenção:

Estivemos aqui na quarta-feira, dia 12 de julho, e Bibbi Bokken escreveu seu maldito nome bem embaixo das nossas assinaturas. Mas NOSSO POEMA DESAPARECEU, Nils! Alguém arrancou exatamente essa página do livro de visitas. Por quê? Não era bom o suficiente? Ou será que existe gente que se sente ameaçada pela imaginação das crianças???

Eu estava tão furiosa que declamei o poema bem alto. Sei todo ele de cor e ninguém vai conseguir arrancá-lo da minha memória:


Aqui em cima nada nos amola,

Juntos tomamos uma coca-cola,

Nils e Berit, assim nos chamamos,

Férias fantásticas aqui passamos.

Nos divertimos muito no verão,

E não queremos ir embora não!


Além disso, Bibbi Bokken esteve aqui mais uma vez alguns dias depois — e agora segure-se de novo: no sábado, dia 15 de julho, o nome dela aparece novamente ao lado de uma outra assinatura. A de Mario Bresani!

Gastei uma quantidade considerável de calorias para descobrir o primeiro nome desse livreiro surdo, mas infelizmente você vai ter que se conformar com o fato de aqui a família Bruun prima pela ausência. Eles simplesmente não deixaram nenhum rastro no livro de visitas da Cabana Flatbre, pelo menos não neste volume (a partir de 26 de maio de 1996).

E ainda falta o careca maluco que vive aparecendo no seu caminho. (Podemos dizer que você está sendo seguido?) No dia 3 de agosto, alguém desenhou um sol com um grande sorriso, mas não acho que tenha sido o Smiley (ou será...?).

Foi só isso que eu descobri, Nils. Se você estava esperando encontrar um grande depósito de livros por aqui, sinto muito, mas vou ter que decepcioná-lo. É claro que pode existir uma biblioteca secreta em Fjærland, mas não na Cabana Flatbre. Tirei pedras do lugar e procurei nos rochedos. (Você não está querendo que eu procure nas fendas da geleira, espero.)

Mas agora me lembrei de outra coisa. Acho que mais uma vez você foi a galinha cega que encontra um grão, e desta vez foi um grão de ouro. No seu ps., você escreveu: “Você acha que tem alguma coisa enterrada nessa história? Mas o quê? Os livros de Bibbi Bokken talvez?”.

Sim!!! Pelo menos, existe a possibilidade, uma vez que na casa dela não há um único livro. Acho que Bibbi Bokken enterra seus livros em algum lugar em Fjærland! Acho que ela está construindo uma biblioteca subterrânea. E EU ACHO QUE É UMA BIBLIOTECA MÁGICA!

Temos que achar essa biblioteca. E temos que chegar antes do Smiley. You see? Mas acho melhor trabalharmos junto com as toupeiras do que com alpinistas e excursionistas.

Continuo quando chegar lá embaixo.

Espera um pouco! Acabei de dar uma olhada no resumo da tabela principal de Dewey. Ela termina no número 990, com a “História dos mundos extraterrestres”. Não tem o número 1000, mas eu tenho uma teoria: Talvez esse grupo se chame “História dos mundos subterrâneos”. Para não dizer “História das bibliotecas subterrâneas”.

AGORA ESTOU VENDO MAIS UMA COISA: o primeiro grupo principal de Dewey se chama “010 Bibliografia”. E Bibbi Bokken é uma autêntica bibliógrafa. (Fonte: Siri. “Se em toda a Noruega existisse apenas uma bibliógrafa, teria que ser você.”) A Cabana Flatbre, onde encontramos diversas pistas, fica exatamente 1000 metros acima do nível do mar. E a casa de Bibbi Bokken fica exatamente dez metros acima do nível do mar. De 10 a 1000 — exatamente como no sistema de Dewey! Isso pode ser uma pista? Não sei, não sei!

 

Recepção do Hotel Mundal.

Estou tremendo. Acabo de saber que já cruzei com a sra. Livros uma vez, há não sei quantos anos. Eu tinha sete ou oito anos na época (Fonte: Billie Holiday). Mas vou deixar para falar disso na próxima carta, pois logo o correio vai ser recolhido e tenho que escrever pelo menos dois PS.

Sua até a morte, Berit

PS. Já não gosto tanto da foto da capa do livro. É o fiorde Sogne, não é? Quando eu estava descendo da Cabana Flatbre, de repente me lembrei de uma coisa que Siri escreveu naquela carta misteriosa de Roma. “Na capa, havia uma foto de umas montanhas muito altas” !!!???!!!

Talvez você devesse ter escolhido o livro com o pôr do sol e o coração vermelho. (Mas então será que Bibbi Bokken teria ajudado a pagar???)

 

PPS. Talvez Bibbi Bokken e Bresani, o Smiley e a família Bruun pertençam todos a uma seita que pretende dominar o mundo. Talvez seu objetivo seja controlar todas as crianças do planeta. Já ouvi falar dessas seitas malucas que tentam doutrinar crianças e adolescentes. (Doutrinar — procure essa palavra no dicionário!)


PPPS. Você escreveu: “Nós dissemos A. Agora precisamos dizer todo o alfabeto”. Só que a coisa ficou tão misteriosa que eu tenho as minhas dúvidas. Por isso aí vai um pequeno poema de Jan Erik Vold:


Quem diz A

disse A


Entende o que eu quero dizer? Se você disse A — então você disse A e tem que arcar com as consequências. Mas isso não significa que você tenha que dizer B.

Lembranças, B.


Querida Berit!

Acho que agora você está realmente na pista certa! Uma seita! Você praticamente tirou as palavras da minha boca. Isso se não for coisa ainda pior.

Você já leu As bruxas, de Roald Dahl? Não leia. O seu coração vai querer sair pela boca. De medo.

O livro trata de um bando de mulheres que agem como se gostassem muito de crianças, mas não gostam nem um pouco. Elas são bruxas que odeiam crianças, e querem exterminar todas as crianças do mundo transformando-as em ratos.

Agora imagine que todo o bando, na verdade, é formado por bruxas que, em vez de querer nos transformar em ratos, querem roubar nossos pensamentos e substituí-los pelos delas! E imagine que Bibbi Bokken construiu uma biblioteca mágica sob o gelo! Uma biblioteca que ela preenche com os nossos pensamentos! Isso explica por que é uma biblioteca mágica. Estou cada vez mais convencido de que estamos realmente lidando com magia.

Por que você acha que o professor Bruun e a mulher dele de repente me convidaram para tomar limonada com bolinhos de passas? Para serem simpáticos? Ha, ha! Não, nada disso, eles queriam controlar meus pensamentos. Por isso é que eles me contaram como os escritores trabalham, é óbvio. Mas o que eles disseram não tem nada a ver. Eu já li muito e sei que cada escritor escreve de um jeito diferente. Existem até mesmo livros em que escritores de verdade escrevem: “A flor é absolutamente fantástica”. Não existe nenhuma regra para escrever, nem para pensar. Mas Bibbi Bokken está tentando criar essas regras para que a gente vire decalques uns dos outros e para que nunca mais possamos surpreendê-los.

Eles colocam nossos pensamentos antigos numa biblioteca mágica embaixo da geleira de Jostedalsbreen. Esta é a verdade, Berit, e temos que enfrentá-la se não quisermos virar robôs nem mortos-vivos.

Essas são apenas algumas teorias sobre as quais andei pensando. O que me pôs nessa pista foi a sua carta, e a descoberta de que o professor Bruun tem o poder de ler pensamentos.

Percebi isso ontem na hora do recreio quando ia tomar meu lanche. O professor Bruun estava tomando conta do pátio na hora do recreio. Eu estava com a minha mochila, porque a aula seguinte era de educação física. E dentro da mochila estava o livro de cartas. Não me arrisco a deixá-lo sozinho nem por um segundo. Quando pus a mão dentro da mochila para pegar o lanche, quis conferir se o livro de cartas ainda estava lá. Estava, e eu respirei aliviado. Nesse momento, Bruun chegou perto de mim. Ele sorriu (atualmente parece que todo mundo sorri para mim) e disse:

— Então, Nils. Que mistérios estão escondidos na sua mochila?

Levei um susto que me fez dar um pulo de 114 metros de altura, e disse que o único mistério era o que a minha mãe tinha passado no pão.

— Ah — disse o professor Bruun. — Tem certeza de que é só isso?

Com as mãos tremendo, desembrulhei o meu lanche. Percebi que ele tinha lido meus pensamentos como um livro aberto, para não dizer livro de cartas.

— Não — sussurrei. — Não é só isso. Tem também queijo de cabra.

Eu sorri meio amarelo e dei uma mordida no meu pão, que formou uma bolota gigantesca dentro da minha boca. Eu não conseguia engolir, e fiquei ali ruminando como uma vaca.

— Essa foi boa — disse o professor. — Você deveria anotar. Tiradas como essas não crescem em árvores.

Então ele se foi. Cuspi o pão e conferi se o livro de cartas ainda estava na minha mochila.

Agora estou sentado aqui, tentando organizar meus pensamentos. O que nem sempre é fácil, principalmente quando tem alguém tentando roubá-los.

Talvez todas essas teorias sejam apenas fantasias da minha cabeça, mas devo confessar que estou feliz por ter pelo menos algumas fantasias.

Continue com as suas investigações, Berit. Ultimamente é você quem tem tido as ideias mais inteligentes. Eu sou apenas um confuso

Nils

 

PS. No mais, também tenho uma teoria sobre o sorriso desenhado no livro de visitas. Talvez eu acredite que o sorriso possa ser o símbolo secreto das bruxas.

Você está vendo como estou inseguro? Ou eu acredito, ou não acredito. Ninguém acredita talvez. A não ser alguém que está prestes a perder seus pensamentos.

SOCORRO!


Querido Nils,

fique tranquilo, companheiro. Você não pode simplesmente pegar o último livro que leu e achar que as coisas acontecem do mesmo jeito na realidade. Afinal de contas, literatura é literatura. E bruxas não crescem em árvores. Mas você também tem que ter cuidado. A partir de agora, você deve prestar bastante atenção no nosso livro e não pode mais andar com ele pela cidade mostrando-o para Deus e o mundo. Pois nós estamos sendo vigiados, querido primo... Se tem alguém lendo nossos pensamentos, disso já não tenho tanta certeza...

Tenho coisas importantes para contar, sobre as quais não pude escrever na minha última carta. Descobri que já me encontrei com Bibbi Bokken uma vez — há muito, muito tempo. Na época, eu era ainda muito pequena. Talvez isso possa ser uma pista importante. Quem me contou foi a mulher que dirige o hotel junto com Billie Holiday. Ela se chama Marit Orheim Mauritzen.

Trata-se de fatos históricos. Portanto, aperte os cintos!

Foi na época em que o ex-vice-presidente Walter Mondale esteve aqui para inaugurar o grande túnel de Fjærland. Essa inauguração aconteceu em 17 de maio de 1986, e Ludvig Eikaas, o artista mais importante da região, foi responsável por boa parte das festividades. Para fazer cumprir as palavras dos profetas, ele pintou uma grande imagem de Nossa Senhora na entrada do túnel. Ela foi chamada de “deusa do túnel”.

E a srta. Berit Bøyum também deixou a cidade de Bergen, onde residia, e dirigiu-se a Fjærland, pois pertencia à estirpe dos Bøyum e queria assinar o livro de hóspedes do Hotel Mundal junto com seus pais, que na época estavam noivos (!). Mas não havia mais lugar no albergue da cidade e eles foram alojados numa pequena cabana, na antiga propriedade rural do meu avô...

Está acompanhando, Nils? A cidade inteira estava em polvorosa. Havia moradores, policiais e jornalistas por toda parte. Afinal, quem inauguraria o túnel era o ex-vice-presidente dos EUA. MAS EU TAMBÉM ESTAVA LÁ! Não me lembro de muita coisa desse dia, mas agora estou com Ms. Manager Marit Orheim Mauritzen na recepção do hotel. Consultamos o livro de hóspedes do dia da inauguração, e eu achei o meu nome ao lado do das muitas (outras) celebridades. Pois é, faz anos que eu me gabo de ter me encontrado com Walter Mondale. (Sabia que os avós dele são de Mundal? Daí o nome...) MAS EU NÃO FAZIA A MENOR IDEIA DE QUE BIBBI BOKKEN TAMBÉM ESTAVA PRESENTE NAS FESTIVIDADES!

Isso é a mais pura verdade. Da próxima vez que vier aqui, você poderá comprovar com seus próprios olhos. E Marit se lembra bem dela. Na época, ninguém a conhecia, mas ela se apresentou como jornalista. E ELA CONHECIA WALTER MONDALE! Ela ficou ao lado dele, cochichando segredinhos no seu ouvido o tempo todo...

Estou falando sobre Fjærland, Nils. E como esse nome pouco a pouco está adquirindo uma certa fama, vão aí algumas informações. Se você procurar na enciclopédia, vai achar:

 

Fiorde de Fjærland: braço do fiorde Sogne com cerca de 25 quilômetros de extensão. A partir de Balestrand, o Fjærland serpenteia entre imponentes montanhas cobertas de geleiras, em direção à geleira de Jostedalsbreen. No fundo do fiorde, na margem esquerda, fica a igreja de Fjærland e o Hotel Mundal. Dali partem os caminhos para as geleiras de Bøyumsbreen e Suphellebreen, dois braços da geleira de Jostedalsbreen. Não se sabe ao certo qual é a origem do nome Fjærland.

 

Mas isso foi antes de Mr. Mondale & Co. Isto é, antes de aparecermos no mapa-múndi ou mesmo de aparecermos em qualquer mapa, pois foi só então que adquirimos uma ligação com o mundo por via terrestre. E agora vai aí mais um trecho (árido como o deserto) de literatura técnica para digerir. Foi tirada de um folheto do Departamento Nacional de Estradas:

 

Depois de anos de luta por um acesso por via terrestre até Fjærland, em 1975 o Parlamento finalmente aprovou a construção de uma autoestrada. O grupo de trabalho “estrada para Fjærland” desenvolveu três alternativas: via fiorde Vetle, via Skei e via Sogndal. O Departamento de Construção de Estradas era favorável ao caminho via Sogndal, porém o Parlamento era contrário a essa ideia e em 1976 foi aprovada a construção da estrada via Skei.

Os trabalhos de construção começaram em 1977. A estrada e o túnel para Fjærland foram entregues oficialmente ao tráfego em 31 de maio de 1986.

A estrada Fjærland—Skei parte do porto de Fjærland e atravessa a rua 14 em direção a Skei, em Jølster. Seu comprimento total é de 30 600 metros.

A estrada possui três túneis, com um comprimento total de 7355 metros. O mais longo deles é o túnel de Fjærland, com 6381 metros.

Em setembro de 1977 iniciou-se a primeira fase das obras, com a reforma da antiga estrada paralela ao fiorde Kjøsnes e a proteção desta contra avalanches. A construção do túnel de Fjærland foi iniciada em 1981, com trabalhos ininterruptos de dois e três turnos.

Em 8 de maio de 1985 começaram as explosões propriamente ditas. Foram dinamitados 4463 metros do lado de Fjærland e 1977 metros do lado de Skei.

O túnel foi projetado e construído sob a égide do Departamento Nacional de Estradas. Para a retirada da massa rochosa foram mobilizadas todas as empresas de transporte da região. O mesmo aconteceu em relação aos procedimentos de segurança do lado de Fjærland, as instalações elétricas e a pavimentação.

Foram dinamitados cerca de 336 mil metros quadrados de massa rochosa. Para isso, foram utilizadas 638 toneladas de explosivos com 609 quilômetros de perfurações. A massa rochosa retirada do túnel foi utilizada para a pavimentação de 8,4 quilômetros de estrada do lado de Fjærland, e 3,3 quilômetros do lado de Lunde. O restante foi armazenado em Bøyadalen e, em colaboração com o paisagista...

 

Você ainda está aí, Nils? Ou já perdeu o fio da meada? Ainda gostaria de acrescentar por minha conta que o túnel de Fjærland passa embaixo da geleira de Jostedalsbreen. NÃO PARECE A OPORTUNIDADE IDEAL PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA BIBLIOTECA SECRETA? Embaixo da geleira de Jostedalsbreen, a maior geleira da Europa. Estamos falando de uma área de mais de mil quilômetros quadrados. De repente vão construir um túnel de mais de seis quilômetros embaixo dessa geleira. Em outras palavras, uma obra gigantesca: “todas as empresas de transporte da região” foram mobilizadas para “a retirada da massa rochosa”, e essa massa foi armazenada em colaboração com um paisagista. E isso numa região quase desabitada!!!

UMA BIBLIOTECA DESSAS PODE SOBREVIVER ATÉ O DIA DO JUÍZO FINAL!

Quase não tenho mais dúvidas. Não é possível que não exista uma ligação entre essa obra colossal e a biblioteca secreta de Bibbi Bokken.

Você mesmo escreveu na sua última carta — e, como sempre, acertou o rabo no burro (Bibbi Bokken) de olhos vendados: “Imagine que Bibbi Bokken construiu uma biblioteca mágica sob o gelo!”. São as suas palavras. Mas desta vez sou eu que coloco suas palavras na minha boca.

E NÃO PARA POR AÍ!

Exatamente cinco anos após a inauguração do túnel de Fjærland, houve uma outra inauguração em Fjærland. Foi em 31/5/1991. Nesse dia, foi aberto ao público o Museu Norueguês das Geleiras, com a presença da rainha Sônia. A rainha Sônia, sim, senhor. Você já ouviu falar dela??? Ela também é a patrocinadora do ANO NORUEGUÊS DO LIVRO! E Bibbi Bokken também esteve aqui na inauguração desse museu. Foi a sua segunda visita a Fjærland. (Não precisa acreditar em mim, Nils. Você pode simplesmente ligar para o Hotel Mundal e confirmar tudo.) Alguns meses depois, a sra. Livros comprou a casa amarela em Mundal...

You see? Não tem importância, pois não vou dizer mais nada.

Até agora, estão implicadas no caso as seguintes instâncias:

— uma bibliógrafa de fama mundial (Bibbi Bokken)

— um ex-vice-presidente dos EUA (Walter Mondale)

— a Casa Real (rainha Sônia)

— o Parlamento (deputado Mauritzen)

— um misterioso livreiro italiano (Mario Bresani)

— um cabeça de ovo, que aparece em todos os lugares (Smiley)

— o Departamento Nacional de Estradas (seção do Ministério dos Transportes)

— o hotel mais aconchegante do mundo (inaugurado em 1891, exatamente cem anos antes do Museu Norueguês das Geleiras)

— o túnel de Fjærland (inaugurado em 31/5/1986)

— o Museu Norueguês das Geleiras (inaugurado em 31/5/1991, exatamente cinco anos depois do túnel de Fjærland)

— a geleira de Jostedalsbreen (fundada há muitos milênios)

Lembranças de (to be or not to be) Be Rit Bøyum

 

PS. Já que nesta carta falei tanto de geleiras e coisas assim, vai aí mais um poema de Jan Erik Vold. Mas, para entender, você precisa saber exatamente como é um esquimó com diploma de gelo: aquele que ergue a mão num legítimo cumprimento de esquimó. Três linhas, Nils, mas um poema inteiro:


No trenó

um esquimó com diploma de gelo

retribuí o aceno


Quando li o poema pela primeira vez, quase enlouqueci. Não durou muito, mas durante esse curto tempo eu fiquei totalmente fora do ar. Sabe o que eu fiz? Eu acenei. Como se estivesse totalmente sozinha sobre o gelo da Groenlândia e de repente encontrasse um esquimó tão sozinho quanto eu!

Com essas palavras, aceno para você também.

Você está acenando de volta?

PSSSSSIU! Agora está acontecendo uma coisa... lá vem Bibbi Bokken!!! Agora ela está na escada da entrada do hotel. Vou sair pelos fundos... mas você ainda vai ter notícias minhas. CUIDE BEM DO LIVRO DE CARTAS!


Querida Berit!

Estou tendo vertigens. Quer dizer então que a Casa Branca em Washington está envolvida no caso? E a rainha Sônia também??

Obrigado por me ter recolocado de novo sobre o chão firme, pelo menos com um pé. Também acho que a minha teoria sobre as bruxas não tinha muito a ver, mas estamos levantando todas as possibilidades.

E agora lá vai mais um enigma! E não é nenhuma teoria. Trata-se de fatos!

A coisa toda começou ontem à tarde. Eu estava andando pela avenida Karl Johan, você sabe, o famoso boulevard de Oslo. E quando eu passei em frente à livraria Tanum, quem é que eu vi lá dentro? Certo — o SMILEY.

Ele estava conversando com uma vendedora. Fiquei olhando pela vitrine, fingindo que estava admirando as obras completas de Ibsen.

Quando o Smiley saiu, eu me virei de costas para ele não me reconhecer. No que ele atravessou a Universitetsgate, fui atrás dele.

Ele passou em frente ao Teatro Nacional, depois foi pela Stortingsgate e entrou num restaurante chamado Café do Teatro. Continuei atrás dele. Quando o maître me perguntou se eu tinha reservado uma mesa, respondi que tinha marcado um encontro com o meu pai, que era armador de cenário. É claro que foi uma desculpa idiota, mas ele me deixou entrar.

E lá estava o Smiley sentado numa mesa ao lado da janela. E adivinhe junto com quem! Segure firme seu batom, Berit! Ele estava com Astrid Lindgren. A escritora que escreveu Píppi Meialonga, Píppi a Bordo e muitos outros livros legais.

Embora muita gente pense que são livros para criancinhas pequenas, eles são ainda mais legais quando crescemos. Eles nos fazem lembrar de coisas que já esquecemos. (Assim como a história dos suspensórios azuis no ursinho Pooh.) Além disso, eles nos dão uma certa sensação de segurança no meio da confusão do mundo. E se tem uma coisa da qual estou precisando, é segurança. Senão vou acabar em frangalhos.

Imagine só, Berit. Smiley e Astrid Lindgren! Eu me sentei numa mesa perto deles, me escondi atrás de um gibi e pedi uma Coca-Cola.

Eu estava tão perto deles que poderia cuspir na nuca dos dois. Tentei ouvir o que eles estavam dizendo, mas não consegui por causa do barulho nas outras mesas. De qualquer forma, eles não paravam de falar. Principalmente o Smiley. Mas ele não sorria. Quem sorria era Astrid Lindgren, e seu sorriso não tinha nada de sinistro. Era um sorriso amável e bondoso como o de uma vovó.

No final, ela sacudiu a cabeça e se levantou. Ficou tão perto de mim que eu poderia tocá-la. Eu poderia ter tocado Astrid Lindgren, Berit! Mas não fiz isso. Fiquei duro como uma pedra atrás da minha revistinha, e pelo menos agora deu para ouvir o que ela estava dizendo:

— Não, acho que não posso fazer isso. Receio que não seja a minha especialidade.

Então ela saiu.

O Smiley ficou sentado mais um segundo. Depois ele deu um salto, correu atrás dela e gritou:

— Espere, Astrid! Nós poderíamos pelo menos discutir!

E saiu do restaurante correndo atrás dela. Eu ia segui-lo, mas de repente vi um envelope em cima da mesa onde eles estavam. Sabe o que estava escrito nesse envelope? Não, é claro que você não sabe. No canto superior esquerdo tinha um carimbo com os dizeres “Children’s Amusement Consult”. Embaixo do carimbo estava escrito com caneta hidrográfica: “A biblioteca mágica de Bibbi Bokken”.

É isso. Eu via tudo girar, Berit. Não tinha nenhuma ideia do que devia fazer. A porta da chapelaria se abriu e vi o Smiley vindo na minha direção.

Peguei o envelope, escondi debaixo do meu pulôver e, não sei como, consegui passar pelo Smiley e sair a salvo do restaurante. Ultimamente, tenho me revelado um ladrão de cartas muito talentoso.

Corri para casa, rasguei o envelope e encontrei essas folhas que estou mandando agora para você. Talvez você entenda mais do que eu.


A biblioteca mágica de Bibbi Bokken


VÍDEO/FILME

2a versão, cena 3 de 5

1. EXTERNA. RUA EM FRENTE À IGREJA DE FJÆRLAND. NOITE. OUTONO. MÚSICA. SINFONIA DO DESTINO. Berit e Nils passam lentamente em frente à igreja a caminho de Mundal. O céu está escuro. Ouvem-se fortes trovoadas. De vez em quando, raios brancos cortam a paisagem, tornando a atmosfera fantasmagórica.


BERIT: Mais depressa, Nils.

NILS: Não sei se tenho coragem.

BERIT: Temos que ir!

NILS: Estou com medo, Berit.

BERIT (segura mão dele): Eu também, mas temos que achá-la, temos que achá-la... A bruxa dos livros!


Um raio corta o céu. Veem-se os rostos pálidos e aterrorizados de Berit e Nils. Depois vê-se a rua que dá na casa amarela, pela perspectiva das crianças. A música fica mais alta.


Corta.


2. CENA INTERNA NA CASA DA BRUXA DOS LIVROS. NA MESMA HORA. Vê-se a rua através da janela: perspectiva da bruxa dos livros. Dois vultos se aproximam da casa. A bruxa dos livros ri baixinho e apaga as luzes da sala. Depois fecha as cortinas.


Corta.


3. EXTERNA. EM FRENTE À CASA DA BRUXA DOS LIVROS. LOGO DEPOIS. Os dois jovens se esgueiram pelas paredes da casa. O vento uiva por entre as árvores. Chove copiosamente. Os dois estão encharcados. Acima deles, vê-se uma janela com cortinas fechadas. Dentro está escuro. Os dois cochicham:


NILS:: Tem certeza de que ela está dormindo?

BERIT: Claro, é uma e meia.

NILS:: Não podemos ir embora e tentar de novo amanhã?

BERIT: Por quê?

NILS:: Está um tempo horrível.

BERIT: Isso é uma piada?

NILS:: Não.

BERIT: Venha!


Eles chegam à porta. Berit segura a maçaneta. Ouve-se um rangido de dobradiças enferrujadas, a velha porta se abre.


Corta.


4. CENA INTERNA. NA CASA DA BRUXA DOS LIVROS. Berit e Nils andam pé ante pé por um corredor escuro. Chegam a uma outra porta e a abrem. A câmera acompanha os dois jovens até a sala. lá dentro está completamente escuro. Tateando no escuro, eles avançam. De repente acende-se a luz. Vemos rostos amedrontados e olhos que ainda não se acostumaram à luz. Então vemos, pela perspectiva das crianças, a bruxa dos livros de pé no meio da sala.


BRUXA DOS LIVROS (com voz sedosa): O que vocês estão querendo por aqui? Aonde pensam que vão?...

BERIT: Nós, nós...

Ela emudece no meio da frase. Eles ficam paralisados de medo, enquanto a bruxa se aproxima deles com passos lentos e pesados.

Era só isso, Berit. Tudo indica que se trata do começo de um vídeo sobre nós dois!

Mas por que o Smiley quer fazer um vídeo sobre a gente, e o que Astrid Lindgren tem a ver com isso?

Talvez o garçom tenha me visto pegar o envelope. Se o Smiley perguntar, o garçom poderá descrever bem o ladrãozinho magro com cabelos de palha e olhos azuis. E então... não, nem tenho coragem de pensar nisso. Socorro! S. O. S.! Perigo! O que eu faço? Lembranças carinhosas,

Nils, o ladrão


Querido Nils,

você precisa vir o mais rápido possível para Fjærland. Eu imploro, Nils. Você está correndo grande perigo. Além disso, eu preciso de você aqui. Vou logo ao assunto... eu tinha subido de bicicleta até Bøyadalen, pois estava com a estranha sensação de que precisava dar uma olhada de perto no túnel de Fjærland. A subida não me pareceu tão longa nem tão íngreme: eu estava me sentindo incrivelmente bem-disposta. Olhei para a geleira de Bøyabreen lá no alto, deixei a bicicleta na entrada do túnel e olhei para dentro da escuridão.

De repente, pensei ter ouvido algo lá dentro.

— Beeeriit — dizia uma voz.

Eu entrei. Estava com a sensação de que não tinha escolha. Eu sabia que era perigoso, mas ignorei a placa que proibia o acesso ao túnel para pedestres e ciclistas.

Dois automóveis passaram zunindo por mim, mas me comprimi contra a parede do túnel e acho que os motoristas não me viram. Eu estava com a minha capa de chuva, aquela preta.

Mais uma vez, pensei ter ouvido alguma coisa.

— Beeeerit....

No túnel, tudo soava oco e irreal.

Eu sentia que realmente não tinha escolha. Como se não tivesse mais poder sobre os meus atos. O ar dentro do túnel era pesado e frio, mas a minha vida dali em diante parecia depender de eu avançar mais e mais no interior do túnel.

Finalmente, avistei uma gigantesca porta corta-fogo do lado direito. Ela tinha um anel de ferro como puxador e estava trancada, é claro. “Droga”, eu pensei.

Eu tinha levado uma lanterna e, como naquele momento não passava nenhum carro no túnel, acendi a lanterna e foquei uma espécie de fechadura com código, um disco metálico com números, como num cofre ou coisa parecida.

E então aconteceu uma coisa inexplicável. De repente, parecia que eu conhecia o código! Sem pensar antes, girei o disco até os números 5-8-5-5-8-5 e, quando eu empurrei a argola gigantesca, a porta cedeu. Pela última vez eu acreditei ouvir a voz que me chamava:

— Beeriit... — agora a voz cavernosa vinha lá de dentro.

Atravessei a porta corta-fogo — que então bateu atrás de mim, trancando a fechadura. Estava escuro como o breu. Mas eu liguei a lanterna e vi que estava num corredor estreito. Iluminei à minha frente e fui andando. Logo eu estava diante de uma nova porta. Era de madeira, e também estava trancada.

“Agora eu estou presa dentro da montanha, embaixo da geleira”, eu disse a mim mesma. “E agora não posso mais ir em frente nem voltar atrás? Nem entrar nem sair?”

De repente, descobri uma latinha sobre uma saliência na rocha. Dentro dela tinha uma chave. Enfiei a chave na fechadura, girei, e a porta se abriu.

“Agora eu tenho que continuar”, pensei. Mas antes eu precisava memorizar seis números. Como eu sabia aqueles números? Não faço ideia, mas eu sabia. Acho que pensei que tinha me tornado vidente. Sim, vidente, Nils. Na hora eu já achei esquisito, mas agora me parece ainda mais...

Iluminei uma pequena sala onde havia centenas, talvez milhares de gavetinhas de madeira, do chão até o teto. Abri uma delas. Ela estava repleta de fichas de cartolina. Eu tirei uma e li: HJORTH, VIGDIS: Tilla ama Philip, Oslo, 1984.

Então me dei conta de que me encontrava diante de um imenso arquivo, e que a biblioteca à qual todas aquelas fichas se referiam devia ser gigantesca. Eu pelo menos nunca tinha visto um arquivo tão grande (se bem que eu também nunca estive numa biblioteca de universidade).

Como não podia deixar de ser, pensei em Bibbi Bokken e compreendi que tinha encontrado a tal biblioteca secreta, pois havia mais uma porta, e esta não estava trancada.

Fui até a porta e iluminei uma pequena placa na qual estava escrito:


NÃO É PARA TODO MUNDO

Você pertence aos poucos eleitos que têm acesso a este salão sagrado. Aqui você encontrará todos os livros que já foram escritos em toda a história da humanidade. Atualmente estamos enchendo as estantes com livros que ainda estão sendo escritos. TENHA CUIDADO!


Eu não sabia quem tinha posto todos aqueles livros ali, Nils, mas sabia que uma certa pessoa estava envolvida. Obviamente, um monte de gente devia ter trabalhado junto. Ela sozinha não conseguiria escavar na rocha nem uma única das salas nas quais estive.

Então me lembrei da construção do túnel de Fjærland. E pensei que durante aqueles anos todos, além do túnel, talvez tivessem construído secretamente uma biblioteca dentro da montanha. Uma biblioteca onde havia todos os livros do mundo. E agora... agora eu estava lá!

É chato ter que admitir, mas não pensei em você. Aquele era o maior segredo da minha vida, e naquele momento ele pertencia somente a mim.

Abri a porta e vi uma sala do tamanho de uma sala de aula. Havia uma lâmpada fraca pendurada no teto. Todas as paredes estavam cobertas de livros, e no chão havia algo escrito com letras vermelhas: EGITO.

Não me atrevi a pegar nenhum livro. Mas na lombada de muitos deles eu distingui uns desenhinhos. Pareciam desenhos de crianças representando coisas da natureza: pássaros, chifres de touros e figuras humanas. Esses sinais não se chamam hieróglifos?

Não havia outras portas. Mas nessa sala havia aberturas que davam para outras salas. Você deve se lembrar de quando eu estava na sua casa no ano passado e o meu pai levou a gente para visitar o Museu de História Natural. Ali também havia salões com essas aberturas. Eu entrei. Acho que não estava com medo, Nils. Pelo contrário, de repente me senti tão leve e tão livre como não me sentia mais desde a minha infância.

Na próxima sala também havia algo escrito no chão, acho que era MESOPOTÂMIA. Mas eu passei rápido. Não me lembro mais da sequência das salas. Em todas elas era fraca a iluminação das lâmpadas penduradas no teto, mas a minha lanterna era forte e, quanto mais escuro é o lugar, mais luz ela parece fazer. Só sei que ainda li: CHINA, ÍNDIA, GRÉCIA, ROMA...

Eu parei algumas vezes e iluminei as lombadas de alguns livros. Mas também não me atrevi a tocá-los, mesmo não havendo mais ninguém ali. Mas o mais estranho de tudo é o que vou contar agora:

Sempre que eu iluminava alguma lombada, via uma coisa que eu já conhecia. Quando eu entrei na sala de ISRAEL, vi um livrinho que se chamava Gênesis. E eu sabia que o primeiro livro de Moisés se chama assim, nós aprendemos isso na escola. Na sala da Grécia eu li o nome “Homero”, e dele eu também já tinha ouvido falar. Na sala de Roma, li “César”, e um outro livro se chamava Homo sapiens. Por acaso eu sei que isso significa homem. E assim por diante!

Você não pode imaginar que sensação estranha, Nils! Eu estava cercada por milhares, talvez milhões de livros. Mas toda vez que eu iluminava um livro, era um título ou um autor do qual eu já tinha ouvido falar. E eu nem conheço tantos livros ou escritores antigos assim...

Depois disso, comecei a andar cada vez mais depressa, de uma sala a outra, de corredor a corredor, de um saguão para outro. Acho que não consigo mais me lembrar de todos os livros que vi, mas todos os livros que eu vi eram conhecidos. MAS POR QUE EU SEMPRE ILUMINAVA LIVROS DOS QUAIS POR ACASO JÁ TINHA OUVIDO FALAR?

Vou dar apenas alguns exemplos, dos quais me lembro bem. Na sala da ALEMANHA, eu iluminei “Grimm” e “Goethe”. Na sala inglesa, foram “Shakespeare”, “C. S. Lewis: Nárnia” e “A. A. Milne”. Na sala sueca encontrei Astrid Lindgren. Mas nenhum desses nomes era novo para mim. Eu tinha a sensação de saber tudo o que toda a humanidade sabia.

E agora uma coisa mais estranha ainda. Estou me dando conta de que li “Astrid Lindgren”, porque sei o nome e o sobrenome dela. Mas eu li apenas “A. A. Milne”. É o autor dos livros sobre o ursinho Pooh, mas não tenho a menor ideia do que essas iniciais significam. Por isso é que no livro só tinha as iniciais.

Não fiquei com medo, Nils. Eu estava simplesmente alegre, aliviada. Nós sabemos apenas o que sabemos. Seria terrível se de repente soubéssemos mais. Pois então de onde viria esse conhecimento?

Fiquei andando de uma sala para outra. Mas eu não ia sempre na mesma direção, cada sala tinha diversas saídas, como num imenso labirinto. Talvez houvesse até mesmo diversos andares, pois eu tive que subir e descer algumas escadas.

Finalmente cheguei à sala onde estava escrito NORUEGA. Só então me atrevi a tirar um livro da estante, pois estava fazendo uma espécie de jogo comigo mesma. Tentei pegar alguns livros sem ler a lombada antes. Eu não queria pegar um livro que já conhecesse. Só nessa sala havia milhares e milhares de livros.

Peguei um livro e abri numa página qualquer. Eu li:

 

A FORMIGA

 

Pequena?

Eu?

Nada disso.

Sou de bom tamanho.

Cuido de mim mesma,

ando para todos os lados,

até de cima para baixo.

Por acaso você

É maior do que você mesmo?


Coloquei depressa o livro de volta na estante. Foi como se eu tivesse me queimado! É que eu já conhecia esse poema. Foi escrito por Inger Hagerup, e eu o declamei na festa de fim de ano da escola no ano passado!!!! É o único poema que eu conheço de cor (a não ser os de Jan Erik Vold, é claro).

Fiz mais uma tentativa e abri um livro no começo. Eu li: “ÅSE: Peer, você está mentindo”; “PEER: Não, não estou”; “ÅSE: Então jure que é verdade”. Também devolvi esse livro bem depressa, pois era a peça de Henrik Ibsen que estávamos lendo na escola.

Continuei a correr e pensei ouvir mais uma vez a voz chamar:

— Beeriit...

E foi então que aconteceu: eu corri para uma sala que era quase tão grande quanto um campo de futebol. Mas ali quase não tinha livros. As paredes estavam cobertas com estantes, mas havia apenas dois livros. No chão estava escrito: LIVROS A SEREM PUBLICADOS.

Corri até os dois livros e iluminei suas lombadas. Num deles estava escrito: Gunnar Staalesen: Esqueletos não enterram ossos. No outro livro, Nils — agora você tem que se segurar — no outro livro estava escrito: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

Por pouco não soltei um grito, mas consegui me conter. Fechei o livro e o coloquei de volta na estante.

Então ouvi passos numa sala distante. Saí correndo para fugir deles mas, embora eu corresse desesperadamente, a cada vez que eu parava para escutar eles soavam cada vez mais próximos.

Logo eu estava de novo na sala dos livros a serem publicados, e então ouvi passos na sala ao lado.

Então ela chegou, Nils. Bibbi Bokken entrou na sala e deu seu sorriso de sabichona.

— Ah, é você — ela me disse com sua voz melosa de marzipã, como se achasse absolutamente normal que eu estivesse ali.

Ela se aproximou de mim com passos longos e enérgicos, ergueu uma mão e disse:

— Você me enganou de novo, Berit. E eu não estou gostando nada disso!

Então acordei, Nils. Foi tudo um sonho. Eu me sentei na cama e comecei a chorar. E logo minha mãe estava ao meu lado. Você deve saber como é. Eu a abracei e comecei a chorar.

— Com o que você sonhou? — ela perguntou.

Só consegui responder depois de um tempo. Finalmente balbuciei:

— A bruxa dos livros, mãe. Eu sonhei com a bruxa má dos livros...

Então ela me acariciou e me consolou. Teve até um chá quente de amoras, embora já fosse de madrugada. Mas achei que tinha merecido tudo aquilo. Afinal de contas, mesmo que fosse em sonho eu tinha mostrado coragem e tinha tido um dia perigoso.

No dia seguinte, depois da escola, senti necessidade de ir realmente a Bøyadalen. Deixei a bicicleta na entrada do túnel, e agora estou aqui sentada com o livro de cartas na mão.

Estou pensando no que pode haver dentro da montanha, pois aquele sonho não me sai da cabeça. Sinto como se tivesse visitado uma outra realidade. Minha alma parece ter estado num tipo de mundo da fantasia que fica em algum lugar paralelo ao mundo em que o meu corpo mora.

Estou tendo um monte de pensamentos estranhos, mas agora acho que você precisa receber o livro o mais depressa possível, por isso vou indo embora. (Vou mandar registrado embora seja muito mais caro.) E além disso tenho uma quantidade imensa de lição para amanhã.

Talvez a sua carta tenha me levado à montanha de Jostedalsbreen. Mas agora é sério, Nils. VOCÊ PRECISA VIR PARA CÁ O MAIS DEPRESSA POSSÍVEL!

A partir de segunda-feira, temos uma semana de férias de outono. E vocês? Simplesmente cabule na sexta-feira.

Sua para sempre jurada Berit, a destemida de Bøyadalen

 

PS. Não consigo imaginar que Astrid Lindgren esteja envolvida em negócios escusos. Talvez o Smiley queira aliciá-la, já que ela está tão ligada às crianças. Mas ela recusou: “Receio que essa não seja a minha especialidade”.


PPS. Talvez Bibbi Bokken tenha escrito o roteiro do filme. De qualquer forma, quem escreveu esse roteiro conhece Fjærland.


Querida Berit,

quando você ler esta carta, já estarei em Fjærland. Mesmo assim vou escrever, pois tenho a sensação de pensar melhor quando escrevo do que quando falo. Sua última carta foi simplesmente fantástica. Exatamente como um conto de fadas. Você deveria mandá-la para uma revista. Se a minha mãe ganhou uma viagem para Roma com a tal “Cidade do meu primeiro amor”, você deveria ganhar pelo menos uma viagem ao redor do mundo. Você escreveu de um jeito que me fez pensar que era uma maravilha real, mas depois era um sonho maravilhoso. Mesmo assim, Berit. Eu acho que era verdade mesmo assim. Pois tudo o que você sonhou veio da realidade: os escritores, Bibbi Bokken, o túnel. Você já sabia de tudo, mas antes de dormir não conseguia descobrir nenhuma relação entre essas coisas. Depois tudo se juntou como as peças de um quebra-cabeça. E você teve a biblioteca mágica de Bibbi Bokken na sua frente. Mas o livro mais importante dela você não pôde ler nem em sonhos, pois ainda não completamos o quebra-cabeça que abre esse livro.

Mas voltando à realidade, Berit. Agora estou sentado no cais de Flåm, escrevendo enquanto espero a barca. A viagem de trem foi inacreditável.

Eu entrei no trem, vesti meu pijama e me deitei para dormir.

Minha mãe me comprou um pijama novo em Roma. Vermelho, com botões e bolinhas brancas. Muito chique, mas isso já é outra história.

Pois bem. Eu estava podre de cansado e precisava urgentemente de uma boa noite de sono.

Mas você acha que eu consegui dormir? Claro que não. Nils Bøyum Torgersen nunca dorme! Principalmente se na cama em cima dele tem um gordão roncando como uma serra elétrica.

Fiquei rolando de um lado para outro por um bom tempo. Então desisti, me vesti de novo e fui para o corredor. Eu tinha levado um livro, Os irmãos Coração de Leão, de Astrid Lindgren. Deve ter sido a criança dentro de mim que escolheu esse livro. Além disso, eu me sinto como uma espécie de irmão. Bem, não tenho exatamente um irmão maior, como Jonas Coração de Leão, mas pelo menos tenho uma grande prima, Berit (hi, hi).

Comecei a andar pelo corredor, procurando um lugar para sentar em alguma cabine. No vagão seguinte tinha uma cabine de fumantes. Olhei pela porta de vidro e pulei para trás com tanta força que quase quebrei a janela do corredor.

Não foram as duas mulheres jogando cartas que me assustaram. Nem o velho fumando cachimbo, que não tinha tirado o chapéu.

Não, o que quase me lançou pelos ares foi o careca baixinho fumando seu cigarro perto da janela. Era o SMILEY.

Agora um bom conselho seria bem-vindo, além de urgentemente necessário. O que ele estava fazendo naquele trem? Podia ser uma coincidência? Não, com certeza não. Eu passara por tantas “coincidências” nos últimos tempos que não sabia mais reconhecer uma verdadeira. E aquela coincidência era tão falsa quanto a amabilidade de Reinert Bruun.

O Smiley estava viajando naquele trem porque eu também estava. Ele tinha uma missão. Uma missão de espionagem. Só que agora os papéis estavam invertidos. Agora Nils B. T. estava no controle. Olhei cuidadosamente para dentro da cabine mais uma vez. O Smiley tirou seu maço de cigarros do bolso. O maço estava vazio. Ele se levantou.

Com toda a minha presença de espírito, eu me escondi no banheiro. Deixei a porta encostada. O Smiley veio. Por um momento terrivelmente sinistro e macabro, pensei que ele precisava ir ao banheiro. Mas felizmente ele seguiu em frente. Respirei aliviado em silêncio, abri a porta com cuidado e fui andando furtivamente atrás dele. Foi muito perigoso, mas eu arrisquei, e ele não se virou.

Ele entrou no vagão-dormitório, cabine dos leitos nos 61, 62, 63. Eu parei no fim do corredor e fiquei esperando. Como uma pantera à espreita. Será que a minha teoria estava certa? Eu segurei firme o livro.

Não demorou muito, ele saiu. Minhas suspeitas estavam corretas. Ele tinha ido buscar mais cigarros.

Vipt! Vapt! Logo a seguir, Nils Bøyum Torgersen estava de novo no banheiro. Pálido, mas recomposto. Ouvi os passos repugnantes do Smiley se aproximarem e se distanciarem.

Esperei cinco segundos. Talvez dez. Então eu saí e fui andando pé ante pé pelo corredor até a cabine dos nos 61, 62 e 63.

Eu já tinha um plano. Se tivesse alguém lá dentro eu diria que tinha errado de porta, e caso encerrado. Mas a cabine estava vazia.

Olhei rapidamente ao redor. A maleta dele estava no chão. Reconheci imediatamente a fechadura com combinação. Quanto a isso, não havia o que fazer. A cama inferior estava desarrumada. Então eu não era o único que não conseguira dormir naquela noite. Nos lençóis desarrumados, havia um bilhete. Coloquei o livro em cima do travesseiro, peguei o bilhete e li:


Marcus! Tire seus dedos de Fjærland. Tenha um pouco de paciência e deixe as coisas por minha conta. Bibbi.


De repente, percebi que as minhas (nossas) teorias estavam certas. Bibbi Bokken e o Smiley (que pelo visto se chama Marcus) trabalham juntos e têm algum plano para nós.

Eles sabem que em breve estaremos os dois em Fjærland, mas ele tem menos paciência do que ela. Ele pretende fazer alguma coisa conosco, mas ela quer resolver a coisa sozinha.

Tenho a sensação de que estamos nos aproximando do último capítulo deste mistério, e não sei muito bem se vamos achar esse capítulo muito divertido.

Depois de ler a carta, voltei para minha cabine. Deitei na cama e, como por milagre, adormeci.

Quando fui acordado pelo cobrador e comecei a arrumar a minha mala, fiz uma descoberta que terminou definitivamente de me acordar. Eu tinha esquecido o livro de Astrid Lindgren na cabine do Smiley.

Pegá-lo de volta era totalmente impossível. Ele teria que ficar onde estava. Um pouco de boa literatura não ia fazer mal ao Smiley.

Agora estou sentado aqui em Flåm e a paisagem está coberta por uma névoa.

Embora eu esteja com medo, estou feliz com a ideia de que logo estaremos juntos. No momento, estou até bem tranquilo. Aqui é tão silencioso. Como se nada perigoso pudesse acontecer. Mas agora estou ouvindo passos. Parece que tem alguém se aproximando. É o Smiley. Ele...

 

OS BOBÕES CAÍRAM COMO DOIS PATINHOS. ESTÁ CHEGANDO O MOMENTO DA VERDADE! COMPOR EM SABON 12/14 PTS. (NILS) E BERKELEY OLD STYLE 12/14 PTS. (BERIT). MBH


PARTE 2
A BIBLIOTECA


Caímos como dois patinhos e devíamos ter previsto que isso ia acontecer. Mas até a galinha cega às vezes vai parar na gaiola.

Ele tinha escrito no livro de cartas que seríamos compostos em 12/14 pts. Passaram-se mais alguns dias e agora estamos aqui.

Estou olhando para Nils, que está sentado na minha frente do outro lado desta mesa enorme. Ele não para de se mexer na cadeira e já comeu quase todo o lápis. Eu comecei a roer as unhas.

O telefone toca sem parar na outra sala, e ouvimos passos apressados lá fora no corredor. Apenas aqui dentro está tudo em silêncio.

De vez em quando, um rosto sorridente vem nos perguntar se está tudo bem. Há meia hora, a mulher nos trouxe alguns pães. É melhor pôr mãos à obra. Nils vai começar.

 

Eu estava sentado num banco na estação de Flåm, quando de repente ouvi passos. Olhei para a frente e dei de cara com o rosto transtornado do Smiley. Não sei se estava realmente transtornado, mas me pareceu que sim. Ele estava plantado na minha frente como uma sombra tenebrosa, e disse com voz baixa e macia:

— Tenho algo que lhe pertence, meu jovem, e o contrário também se aplica.

O roteiro do filme, eu pensei. Ele quer o roteiro de volta.

— Sem problemas — sussurrei. — Podemos trocar.

Ele sorriu e avançou um passo.

E eu desatei a correr, deixando para trás Smiley, pôr do sol, livro de cartas, tudo. A barca tinha acabado de atracar. Embarquei correndo, desviando dos automóveis que começavam a desembarcar, e me tranquei num banheiro. Eu sabia que o Smiley estava atrás de mim, e por isso fiquei ali até a hora de ter que passar para a outra barca e para outro banheiro. Felizmente deu tudo certo.

Ao chegar a Fjærland, só saí quando tive certeza de que não havia nenhum passageiro a bordo além de mim.

O porto estava vazio. Berit já devia ter desistido de esperar. Subi lentamente até o hotel.

Como a casa da minha tia é muito pequena, ela tinha arranjado um quarto no hotel para mim. O que viria bem a calhar. Para a Agência de Detetives Bøyum & Bøyum, isso significava um autêntico escritório. Embora naquele momento eu não me sentisse exatamente um detetive, mas um garotinho de doze anos: burro, envergonhado e totalmente apavorado. Burro, porque eu tinha roubado o roteiro. Envergonhado, porque tinha perdido o livro de cartas — não, pior ainda, eu o deixara cair nas mãos sujas do inimigo. Apavorado, porque era evidente que ele estava em Fjærland e a qualquer momento poderia vir para cima de mim com dentes e unhas, ou seja lá como se diz.

Quando finalmente cheguei à recepção do hotel, meu queixo já estava na altura dos joelhos. Balbuciei o meu nome e recebi uma chave. Ia começar a me arrastar escada acima quando alguma coisa me espetou pelas costas. Ouvi uma voz irreconhecível, que ordenou:

— Mãos ao alto!

Sei que a minha fantasia às vezes segue seus próprios rumos, e então sou capaz de imaginar coisas que estão a centenas de quilômetros de distância da realidade. Mas dessa vez eu tinha bons motivos para reagir daquela maneira. Eu já estava com um medo terrível, só esperava o momento em que o Smiley sairia de trás de um vaso ou de uma porta para se vingar do roubo do roteiro. Portanto, agi instintivamente, como o Fantasma ou o Batman quando são atacados por trás. Eu me virei rapidamente, abaixei a cabeça e me atirei contra a barriga da pessoa que estava atrás de mim.

— Auuuuuu! Aaaaiiiiii! Você está louco? Oooooooh!

Não era o Smiley. Era Berit. Ela apertou a barriga com as mãos e olhou para mim, com um olhar que era metade raiva e metade surpresa.

E eu fiquei ali no chão, deitado de barriga para baixo, olhando para ela como um idiota.

— Desculpa. Não sabia que era você.

— Lógico que não! Mas agora você sai enfiando a cabeça na barriga de todo mundo que encontra no caminho?

— Você me assustou!

— Certo, nunca mais vou fazer isso.

De repente, ela sorriu. Ela havia passado batom e rímel, e estava realmente bonita para uma prima. Por alguma razão, eu me senti como se tivesse dez anos.

— Você está com o livro de cartas?

Engoli a saliva, e notei que fiquei vermelho.

— É justamente sobre isso... — balbuciei, mas Berit me interrompeu.

— Ouça, Nils, tem uma pessoa querendo falar com a gente no salão.

Salvo pelo gongo, pensei, e acompanhei Berit até a sala da lareira. Ela foi falando o tempo inteiro.

— Ele diz que tem um contrato para nós, que conhece você e...

Agarrei o braço dela e apertei com força. O homem estava sentado no salão, olhando pela janela. Embora estivesse de costas para nós, era como se eu pudesse ver aquele sorriso asqueroso através de sua cabeça lisa e brilhante. Berit gemeu.

— Ai, o que...

Tapei sua boca com a mão e arrastei-a até a recepção. Modéstia à parte, foi uma atuação bastante profissional para um detetive jovem como eu.

— O Smiley — sussurrei. — É o Smiley.

Berit olhava para mim com os olhos arregalados.

— Se eu te largar, você vai gritar? — perguntei. Uma pergunta que milhões de detetives já fizeram antes de mim. Ela sacudiu a cabeça.

— Para a sua casa ou para o meu quarto? — perguntei bem baixinho.

— Para o quarto, seu cretino — ela sussurrou e subiu a escada correndo. Eu corri atrás dela. Meia hora depois, eu tinha contado toda a história. Eu não era tão durão quanto queria parecer, e agora estava sentado numa cadeira azul, tremendo e sentindo que as lágrimas iam começar a escorrer.

— O que vamos fazer? — perguntei.

 

“O que vamos fazer?” Para mim, foi muito fácil responder a essa pergunta.

Assim que chegara a Fjærland, Nils tinha me atacado de cabeça na barriga e eu quase parara de respirar. Logo depois, ele tapou minha boca com a mão e quase me estrangulou.

O pior de tudo, é claro, foi ele ter perdido o livro de cartas. Ele o deixou num banco em Flåm, e com isso praticamente o entregou de mão beijada para o Smiley. Eu estava a ponto de explodir de tanta raiva. Agora ele que desse um jeito de pegar o livro de volta.

O Smiley também estava hospedado no hotel, e a suíte dele ficava no mesmo corredor que o quartinho de Nils. Eu já tinha falado com ele, mas não me passara pela cabeça, nem por um segundo, que aquele homem pudesse ser o Smiley. É verdade que ele tinha um sorriso presunçoso grudado no rosto o tempo inteiro, mas tem muita gente que é assim.

Já antes de ele chegar, eu tinha ouvido falar que fazia questão de ser acomodado na única suíte do hotel — que possui um terraço enorme e uma vista maravilhosa para o fiorde e a geleira. Será que se tratava de um rico executivo?

A primeira vez que o vi foi no salão de bilhar, que funciona ao mesmo tempo como biblioteca do hotel. Eu estava lá, totalmente despreocupada, brincando com as bolas de bilhar, enquanto esperava Nils. Até que não sou ruim em geometria e, de certa forma, o bilhar é a mesma coisa. No fundo, é uma questão de calcular ângulos.

E então ele apareceu, o novo hóspede do hotel — sobre o qual já circulavam boatos, pois queria ficar no quarto mais caro do hotel a qualquer preço. Só podia ser ele, pois naquela tarde estavam sendo esperados apenas dois novos hóspedes. (À noite, ainda chegariam uns professores.) O outro era um italiano, que tinha chegado com a barca anterior e não entendia uma só palavra em outra língua que não fosse a sua. Isso já causara alguns problemas, pois italiano é praticamente a única língua que ninguém domina muito bem no Hotel Mundal. Mas logo todo mundo percebeu que se tratava de um excêntrico. Por exemplo, ele queria visitar imediatamente o Museu das Geleiras e por isso dispensou o jantar.

O homem com o sorriso presunçoso ficou tirando livros das estantes, e lembro que nessa hora eu pensei que acharia melhor se ele me convidasse para uma partida de bilhar.

Ele colocou um luxuoso volume sobre a geleira de Jostedalsbreen de volta na estante, virou-se para mim e disse:

— Bela biblioteca...

Em algum lugar deve ter tocado um sininho na minha cabeça, mas um daqueles que ficam lá longe, tão longe que só ouvi quando ele acrescentou:

— O hotel tem muitos livros interessantes. Pena que estejam todos misturados, sem nenhum sistema de organização.

Fiquei tão perplexa que disse:

— O senhor deveria dar uma olhada na biblioteca municipal. Lá eles usam Dewey.

Ele sorria o tempo todo, e então ergueu a sobrancelha. Fiquei pensando um tempo e depois me arrisquei a dizer:

— Se o senhor se interessa por montanhas, vales e coisas assim, encontrará esse assunto entre os números 550 e 559.

A situação toda me lembrou aqueles programas de perguntas e respostas que passam na televisão. Só alguns dias depois é que me dei conta de que ele tinha começado aquela conversa para arrancar o meu nome. Ele disse:

— Estou impressionado com você, minha filha. Diga-me... você já ouviu falar que aqui existe uma outra biblioteca?

Não gostei de ele me chamar de “minha filha”. Também não gostei de ele mencionar “outra” biblioteca. Desviei o olhar para a mesa de bilhar e fiz a bola preta de mármore rolar pelo feltro. Ela bateu nas duas brancas.

É claro que pensei em Bibbi Bokken. Mas como poderia imaginar que era o Smiley quem estava ali na minha frente? Eu não fazia a menor ideia de que ele viria a Fjærland. Além disso, eu tinha imaginado uma pessoa ainda mais asquerosa.

Mas percebi na hora que estava falando com alguém que devia ter ouvido alguma coisa sobre Bibbi Bokken.

— Temos uma pequena biblioteca na escola — eu disse.

Algo passou como um raio pelo rosto dele. Ou ele estava desapontado ou, ao contrário, alguma coisa havia despertado o seu interesse. Seu olhos pareciam dizer: “Não se faça de besta!”. Mas sua boca disse:

— Ah, mas essa não conta!

Então ficamos um tempo em silêncio. Achei esse silêncio tão terrível que disse:

— Só que ela está fechada agora. Estamos tendo uma semana de férias de outono.

Ele grunhiu:

— Vou ficar aqui só até amanhã. Se você puder me ajudar um pouco... será muito bem recompensada...

Tive vontade de sair correndo dali, pois além de tudo eu também não estava gostando que um estranho me fizesse propostas daquele tipo. O fato de que talvez ele fosse um rico executivo não me importava nem um pouco. Mas eu tinha uma ideia do que se tratava. Eu pensei nos livros de Bibbi Bokken...

— Tenho um contrato — ele disse. — Um para você e um para Nils. E não precisamos incluir mais ninguém além de nós três... Você está me entendendo?

Era isso que deveria estar acontecendo, só que eu não estava entendendo patavina. De onde ele conhecia Nils? E que contrato era aquele? Para quê?

Fui salva por Billie Holiday, que entrou na sala e disse que queria falar comigo no escritório. Quando estávamos saindo, o rico executivo ainda me disse:

— Vamos continuar a nos falar.

Quando passávamos pelo saguão, Billie me perguntou se eu conhecia aquele homem. Eu neguei com a cabeça. Então ela me perguntou se eu gostaria de ajudar a servir as mesas no restaurante.

Embora Nils estivesse para chegar, resolvi aceitar. Era a segunda vez naquela tarde que me ofereciam uma oportunidade de ganhar dinheiro. Tive a sensação de ter escolhido a melhor oferta.

Então Nils chegou, no maior pique e com toda a fúria. Depois que ele me contou o que tinha acontecido em Flåm, eu sabia exatamente o que responder quando ele me perguntou o que iríamos fazer.

— Você perdeu o livro — eu disse. — Agora faça o favor de pegá-lo de volta.

E ainda acrescentei:

— Não posso suportar a ideia de que o Smiley vai ler tudo que escrevemos.

Mas é claro que ele já tinha lido tudo. Por isso ele havia falado de uma “outra” biblioteca. Ele sabia de tudo pelo nosso livro de cartas.

Verificamos na recepção que ele havia se registrado como Marcus Buur Hansen e que estava hospedado no quarto 115. Combinamos então que Nils entraria escondido no quarto durante o jantar. Eu iria arranjar uma chave com uma camareira.

Como eu mesma serviria o jantar, pelo menos poderia tentar dar um jeito para que o Smiley não saísse da mesa de repente...

 

Minha querida prima tinha razão, é claro. Eu tinha o maldito dever moral de recuperar o livro. Subi as escadas como um ladrão e me esgueirei pelas paredes do corredor até o quarto do Smiley. A chave que Berit tinha arranjado estava na minha mão, ensopada de suor. Embora eu soubesse que o sr. Smiley Marcus Buur Hansen estava lá embaixo se empanturrando de cordeiro assado com mirtilos, minhas pernas pareciam de gelatina e minha mão tremia como vara verde a cada vez que eu tentava enfiar a chave no buraco da fechadura. Na terceira vez, deu certo. Abri a porta lentamente. Na verdade nem acho que ela tenha rangido tão alto, mas na hora me pareceu que estava acontecendo uma briga de gatos na soleira da porta. Deixei a porta encostada e entrei.

O quarto 115 é o quarto mais bonito do hotel, e Berit tinha me contado sobre todas as celebridades que já haviam passado por ali. Mas se fosse uma cela de prisão ou uma cabana na floresta, para mim teria dado na mesma. Olhei ao meu redor e... a sorte sorriu para mim.... Lá estava ele! Em cima do criado-mudo do Smiley! Dei um suspiro de alívio. Que soou como um estrondo. Cerrei os lábios e peguei o livro de cartas. Estava aberto na última página, e eu li o que estava escrito com a minha letra:

“Aqui é tão silencioso. Como se nada perigoso pudesse acontecer. Mas agora estou ouvindo passos. Parece que tem alguém se aproximando. É o Smiley. Ele...”.

Parecia estar tudo em ordem. Então virei a página e senti o sangue escoar da minha cabeça. No alto da página havia algo escrito, com uma letra que não era a minha nem a de Berit.


Os bobões caíram como dois patinhos. Está chegando o momento da verdade! Compor em Sabon 12/14 pts. (Nils) e Berkeley Old Style 12/14 pts. (Berit). MBH


Tive que me sentar na cama para recuperar o fôlego, meu coração parecia que ia pular para fora. Tentei decifrar o que diziam aqueles garranchos. Mas não consegui. Que momento da verdade era esse? Onde deveríamos ser compostos? Quem ou o que eram Sabon e Berkeley Old Style? Eu não estava entendendo mais nada, mas sabia que estávamos correndo perigo. A antiga teoria das bruxas passou como um raio pela minha cabeça. Se o Smiley e Bibbi Bokken realmente...

Tudo girava na minha frente. Eu me vi sentado diante de um terrível Sabon de dentes amarelos e olhos faiscantes.

— Pois bem, Nils — grunhiu Sabon. — Chegou o momento da verdade!

Eu queria gritar, e talvez tivesse feito isso se a realidade não tivesse me arrancado daquelas tenebrosas fantasias. Mas a realidade infelizmente não era brincadeira. Ela consistia de passos apressados lá fora, no corredor. Cada vez mais próximos.

Confesso que não tenho a menor ideia de como fui parar lá, mas no mesmo instante eu estava no grande terraço em frente ao quarto 115, ouvindo o Smiley falar sozinho. A porta estava aberta, mas pelo menos eu tinha fechado a cortina.

— Estranho — ele murmurou. — Tenho certeza de que tranquei a porta quando...

De repente ficou tudo em silêncio, e em seguida o Smiley berrou uma coisa que prefiro não ver impressa. Mas posso dizer que ele estava muito nervoso. Só então me dei conta de que eu estava com o livro de cartas na mão. Eu levara o livro sem perceber. Mas que idiota eu era! Um detetive amador a quem não se pode confiar nem mesmo uma lupa! É claro que eu deveria ter deixado o livro onde estava. O Smiley voltara certamente porque havia esquecido alguma coisa. Se eu não tivesse pegado o livro, ele teria descido e o resto teria sido sopa. Mas agora não. Agora ele iria começar a procurar, mais cedo ou mais tarde iria entrar no terraço e então...

Olhei para baixo, já pensando em pular, quando ouvi a voz do Smiley. Ele estava falando ao telefone, e o que ele disse me deixou de orelhas em pé.

— Bibbi. Aqui é Marcus. Agora basta. (PAUSA) Sim, basta, acho que já é mais do que suficiente. Não dá pra fazer uma limonada só com dois limões. (PAUSA) Não tente fazer isso, Bibbi. Não posso ficar esperando eternamente. (PAUSA) Então terei que tomar a coisa nas minhas próprias mãos.

Ele desligou e saiu do quarto. Eu suspirei novamente. Não, eu gemi, e dessa vez não foi de alívio, mas de medo. Pelo jeito, o Smiley tinha pensado que Bibbi Bokken estava com o nosso livro de cartas. E pelo jeito era por isso que estava furioso. Mas por quê? Que interesse os dois podiam ter nas nossas cartas particulares? Ele ficou tão perturbado como se a vida dele estivesse em jogo. E agora ele queria tomar a coisa em suas próprias mãos.

Mas que coisa? Berit e eu éramos essa coisa? E como ele imaginava nos pegar “em suas próprias mãos”? Com luvas de seda é que não era. Disso eu tinha certeza.

Algo terrível estava para acontecer, e eu não tinha dúvidas de que Marcus Buur Hansen estava a caminho da casa de Bibbi Bokken para tomar a coisa em suas patas repugnantes.

De repente, notei que estava gelado como um pinguim. Ou, em outras palavras: eu estava furioso. O que é que eles estavam pensando? Que espécie de jogo era aquele que estavam jogando com Berit e comigo? Não tínhamos feito nada para eles! Era o nosso livro de cartas. Eu queria pegá-lo de volta. Já estava simplesmente farto de pistas misteriosas, bibliotecas secretas e ladrões de livros carecas e sorridentes. Eu queria ter de volta o meu livro de cartas e aproveitar as minhas férias de outono!

Voltei para o quarto 115, desviei de uma cadeira onde o casaco do Smiley estava pendurado e saí em disparada. Corri pelo corredor e desci a escada em caracol que levava até a cozinha. Entrei na sala de refeições e fui até Berit, que naquele momento estava servindo um pudim de passas para um casal de americanos. Joguei o livro de cartas em cima da mesa com tanta força que a água transbordou para fora da jarra.

— Agora basta — exclamei. — Chegou o momento da verdade!

— Young man, I must say... — começou o americano, mas eu não estava nem aí para ele. Nem sequer me dignei a lhe dirigir o olhar, se soar melhor assim.

— Aqui está o livro de cartas — eu disse.

— !!!!!????????

Berit estava com cara de cinco pontos de exclamação e oito de interrogação.

Eu agarrei a mão dela.

— Agora vamos procurar Bibbi Bokken — eu disse, arrastando-a para fora da sala de refeições antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

Ainda ouvi a voz do americano:

— Can anybody tell me what’s happening here?

Contei a Berit toda a história, o telefonema, as ameaças e tudo o mais. Ela me ouvi sem dizer uma palavra. Quando terminei, ela estava séria como nunca.

— Sim — disse ela. — Chegou o momento da verdade.

 

Só que, quando eu disse isso, estava pensando também em outras coisas. Algumas horas antes, de filha da cozinheira eu tinha sido promovida a garçonete. Não só era o meu primeiro trabalho remunerado como também a primeira vez que eu serviria uma refeição completa. E enquanto servia essa refeição, compreendi que também seria a última, pelo menos no Hotel Mundal.

No começo, tudo correu muito bem. Pelo menos, não houve nenhum incidente do tipo “sopa no colo” ou “cordeiro assado no cabelo”. O único problema era que eu também deveria servir o Smiley. Resolvi agir como se nunca o tivesse visto antes.

Quando ele terminou a sopa de couve-flor e eu ia justamente levar uma garrafa de água mineral para a sua mesa, de repente ele ficou duro como uma estátua. Parecia que tinha engolido uma moeda de cinco coroas. Isso me lembrou da nossa viagem para Tenerife, quando minha mãe de repente se deu conta de que tinha esquecido um biquíni pendurado no aquecedor. O problema foi que, quando ela se lembrou, estávamos a mais de dez mil metros de altitude, sobrevoando Gibraltar.

— Temos que voltar — ela exclamou. Minha mãe nunca esteve tão perto de entrar no ramo de sequestro de aviões.

Agora o Smiley estava com aquela mesma cara, mas isso não durou muito. Ele logo se levantou e saiu apressado do restaurante.

Eu pensei rápido: claro, ele estava indo para o quarto dele, mas se ele tivesse esquecido um biquíni no aquecedor, Nils agora estava lá em cima e faria alguma coisa se sentisse cheiro de queimado.

Corri atrás do Smiley e o alcancei quando estava saindo do restaurante.

— O senhor... ainda não comeu o seu assado — eu disse, segurando-o pela manga do casaco. — O senhor achou que ele ficou muito passado?

Eu disse isso tão alto que a metade do restaurante deve ter ouvido. Mas o Smiley simplesmente se desvencilhou de mim e continuou a correr.

Corri para a sala de música, pois sabia que ela ficava bem embaixo da suíte do Smiley. Peguei uns CDs com os Romanzen de Grieg e atirei-os contra o teto. Era o mínimo que eu podia fazer por Nils. E não havia mais nada a fazer.

Eu me recompus e voltei para o restaurante. Todos os hóspedes olharam para mim com olhos arregalados, e Billie Holiday estava atrás do bufê. Ela podia ter me matado com o olhar.

A coisa ficou ainda pior quando, depois de alguns minutos, o Smiley voltou. Ele estava fervendo de raiva. Seu rosto lembrava um tomate assado, pois não só estava vermelho-vivo como também fumegava.

— Berit — ele disse, como se eu fosse filha dele ou coisa ainda pior. — Meu jantar!

Os outros hóspedes estavam ocupados com o pudim de passas, e mais uma vez ergueram os olhos para ver o que estava acontecendo durante o que deveria ser uma refeição tranquila no hotel mais aconchegante do mundo. Fui buscar a travessa com o cordeiro assado e a coloquei na mesa dele. Ele jogou algumas fatias no prato e as engoliu em mais ou menos um minuto. Então saiu apressado novamente. Sem comer o pudim de passas e sem beber o vinho tinto que Billie lhe trouxera (pois tenho menos de dezoito anos e não posso servir bebidas alcoólicas).

Eu não tinha muita certeza se ele já havia matado Nils, mas estava firmemente convencida de que o trancafiara lá em cima. Por isso, fiquei pasma quando vi Nils sair da cozinha do hotel e entrar correndo no restaurante. Ele parecia um tigre domesticado que acabara de decidir voltar a ser selvagem.

O engenheiro petrolífero de Seattle era um sujeito que com certeza encararia com muita tranquilidade de espírito uma erupção descontrolada de petróleo. Mas o homem ficou bastante perturbado quando Nils jogou o livro de cartas em cima da mesa, fazendo respingar água da geleira no peito da sra. Engenheira.

— Young man — ele disse. — I must say you are a little out of control.

Quando eu disse “chegou o momento da verdade”, não pensei apenas em Bibbi Bokken. Também pensei no meu próprio futuro aqui em Fjærland. E na minha mãe, que estava o tempo todo na cozinha trabalhando.

— Can anybody tell me what’s happening here?

 

Lá fora estava tão claro ou tão escuro como costuma estar uns quinze minutos antes do cair da noite. Quando chegamos à igreja, ainda por cima começou a chover.

— Capa de chuva? — perguntei.

Mas Nils apenas sacudiu a cabeça.

— É agora ou nunca — ele disse. — Pois agora Torgersen está furioso e temos que tirar proveito disso.

Logo depois ouvimos ao longe o estrondo de um trovão. Soou como um eco da fúria de Nils. Lembro que gostei daquela demonstração de temperamento.

— O que aconteceu afinal? — perguntei.

— Nada de especial. Acho que ele quer matar Bibbi Bokken.

Continuamos a andar em direção a Mundalsdalen.

— Só que eu não quero servir de isca para uma mulher bibliófila — Nils prosseguiu — nem para um ladrão de livros sorridente que quer comprar a ajuda da minha prima.

Concordei com a cabeça, mas não creio que Nils tenha visto. Então eu disse:

— De qualquer forma, viemos parar bem no meio do fogo cruzado entre dois loucos. Você acha que podemos simplesmente ir tocando a campainha e... dizer “olá, como vai” ou coisa parecida?

Ouvimos mais um trovão, e dessa vez o estrondo fez Nils se deter, embora continuasse a chover a cântaros e provavelmente o rímel já tivesse borrado e se espalhado pela metade do meu rosto.

— Isto já aconteceu comigo antes — ele disse.

— Isto o quê?

— Isto aqui! Nós dois andando aqui à noite... a chuva... Tenho certeza.

— Ai, você está me assustando.

— Talvez, mas também não seria a primeira vez.

— Vamos voltar? — perguntei.

— Nada disso — ele disse, e se pôs a andar novamente. — Depressa, Berit.

Apesar de tudo, eu tinha estado mais perto de Bibbi Bokken do que ele, e por isso disse:

— Não sei se tenho coragem.

— Não temos outra escolha — disse Nils.

— Mas estou com medo de verdade.

— Eu também.

 

Quando chegamos ao muro com o portão, vimos luzes acesas na casa amarela de Bibbi Bokken. Estávamos ensopados até a alma. Mas Nils Torgersen não se deixaria deter facilmente. Talvez a coisa toda fosse mais importante para ele do que para mim, pois ele encontrara o Smiley mais vezes. Além disso, ele só estava passando férias em Fjærland. Eu moro aqui.

Quando dei por mim, já tínhamos tocado a campainha. Desde o dia em que havia entrado na casa e inventado aquela história da rifa para a biblioteca da escola, eu nunca mais tinha estado ali.

O que aconteceu a seguir chama-se anticlímax, se eu não me engano. Tínhamos imaginado que o Smiley ou Bibbi Bokken abririam a porta e se lançariam sobre nós. Também pensei que o Smiley poderia ter tomado Bibbi Bokken como refém. Achei que ele apareceria arrastando-a, tapando sua boca com uma mão e apontando a pistola para mim com a outra. Mas o que aconteceu foi que simplesmente ninguém veio atender. Tocamos mais algumas vezes, mas tudo continuou em silêncio dentro da casa.

Experimentei cuidadosamente a maçaneta — como na primeira vez — e também agora a porta estava destrancada.

Entramos furtivamente na casa. Por alguns minutos, ficamos ali quietinhos escutando com atenção. Mas não ouvimos absolutamente nada.

— Talvez ela esteja dormindo — sussurrei.

Nils sacudiu os ombros.

— Ou talvez ela...

Ele não terminou a frase, mas acho que entendi o que ele estava querendo dizer.

E então fizemos uma coisa totalmente insana: tiramos os sapatos. Ou para fazer o mínimo barulho possível, ou simplesmente porque nossos tênis estavam encharcados. Não sei. De qualquer forma, entramos na sala só de meias.

— Já entrei uma vez em cada um dos quartos — sussurrei.

Mas Nils não tinha entrado. Ele olhou ao seu redor e ficou visivelmente espantado por não ver ali uma única estante de livros.

— Você acha que existe um andar subterrâneo? — ele perguntou.

— Aaaacho — sussurrei. — Ela mandou escavar mais uma sala lá embaixo.

Foi só então que compreendi que ruídos estranhos eram aqueles que Hilde Mauritzen ouvira quando Bibbi Bokken tinha se mudado para aquela casa. E agora eu também sabia onde estavam todos os livros de Bibbi Bokken.

Começamos uma busca pela casa, limitando-nos quase exclusivamente ao chão. Não demorou para que descobríssemos um alçapão com uma argola de metal. Ele ficava embaixo da mesa da sala onde Bibbi Bokken abrira o pacote com livros novos enquanto eu me escondia atrás do sofá, deitada no chão empoeirado.

Pensei ter ouvido uns estalos no andar de cima, pus o indicador sobre os lábios e fiquei imóvel.

Nils sacudiu a cabeça.

— É só o vento — ele sussurrou. — Eles devem estar no bar do hotel. Se é que não estão a caminho da Cabana Flatbre.

Segurei a argola com dois dedos e abri o alçapão. Lá embaixo estava mais escuro do que a noite lá fora. Mas acho que Nils tinha lido mais romances policiais do que eu, pois sacou uma lanterna do bolso e iluminou os primeiros degraus de uma escada muito inclinada.

É claro que foi ele que desceu primeiro. Logo depois ele estava no chão do porão, passando o foco da lanterna pelas paredes. Antes que os meus pés tocassem o chão firme, ouvi-o dizer:

— A bib... bib... biblioteca, Berit.

 

— É só o vento — sussurrei, tentando esconder que estava apavorado. Só que eu estava. Eu estava exausto, mas me esforcei para que minha voz parecesse o mais natural possível.

— Eles devem estar no bar do hotel — eu disse.

Soou meio idiota, mas eu ainda acrescentei bravamente:

— Se é que não estão a caminho da Cabana Flatbre.

Mordi a língua e olhei para Berit. Ela segurou a argola de latão e ergueu a tampa. Prendi a respiração. Tive vontade de sair correndo, mas meus pés pareciam estar colados no chão. Ali embaixo, na nossa frente, havia um buraco completamente escuro.

Enfiei a mão no bolso do meu casaco e peguei uma lanterna que eu tinha comprado em Oslo antes de viajar. Tive o pressentimento de que poderia precisar dela, e estava certo. Havia chegado o momento. Eu estava encharcado, sem saber o que era água da chuva e o que era suor. Liguei a lanterna e iluminei o buraco escuro. Uma velha escada de madeira em caracol levava para baixo. Berit estava bem atrás de mim.

Eu sabia que alguém tinha que descer primeiro e também sabia que não podia ser ela. Teria preferido voltar, mas agora era tarde demais. Fui atraído para baixo por uma força invisível. Assim como me sinto atraído para o parapeito das pontes e para a beira dos abismos, justamente porque sofro de vertigem.

Ouvi os passos de Berit atrás de mim. Acho que não levei mais de dois segundos para descer a escada, mas me pareceu uma eternidade. Fui dar numa grande sala, que tinha um ar curiosamente seco embora fosse um porão. Fiz o foco da lanterna correr pelas paredes. E então senti o sangue sumir da minha cabeça e ouvi a minha própria voz:

— A bib... bib... biblioteca, Berit.

Tínhamos encontrado! A biblioteca mágica de Bibbi Bokken! Eu sentia, não, eu sabia! Não só com a cabeça, mas com o corpo inteiro. Eu tremia de emoção, mas ao mesmo tempo me sentia estranhamente tranquilo, como se tivesse voltado para casa depois de uma longa viagem.

Estávamos numa espécie de câmara do tesouro repleta de livros. Embora estivesse escuro no porão, os livros pareciam brilhar, e eu tive a sensação — perturbadora, mas feliz — de já ter estado ali antes.

Nesse momento ouvi um suave clique. Uma luz tênue encheu a sala e milhões de minúsculas partículas de pó cintilavam como estrelas ao nosso redor.

Agora sou uma parte do universo, pensei.

Não sei por que mas, embora estivéssemos no pequeno porão de uma pequena casa numa pequena cidade de um pequeno país, aquela sala me pareceu tão grande quanto o mundo inteiro lá fora.

As paredes estavam cobertas com estantes e armários cheios de livros. “Deve haver milhões deles aqui”, eu pensei. Imaginei que, se os abrisse, veria livros com inscrições douradas, livros tão bonitos que não pareciam impressos mas sim pintados à mão, livros com minúsculas pérolas incrustadas na capa, livros com letras tão antigas que eu não conseguia ler e livros cujas folhas pareciam tapetes velhos, com letras a ponto de se soltarem.

A sensação de já ter vivido tudo aquilo ficou cada vez mais forte e, por mais estranho que pareça, quando vi o homem sentado numa mesa no fundo da sala, de costas para nós, não me surpreendi nem um pouco.

Berit já havia descoberto esse homem. Ela estava atrás dele.

— Olá — ela disse.

Ele não reagiu.

— Com licença — disse ela.

Ele continuou sem reagir. Parecia estar escrevendo.

— Estamos procurando Bibbi Bokken — ela disse mais alto.

Ele continuou a escrever.

Aproximei-me de Berit, coloquei a mão no braço dela e sussurrei:


“Nesta cidade vive um velho homem,

ele é surdo, mas enxerga muito bem,

seu amor é jovem, fresco e reluzente,

milhares de livros vivem em sua mente”.


Berit olhou para mim, perplexa, e então teve um estalo.

— Mario Bresani!

Fiz que sim com a cabeça.

— Ele é surdo.

Fiz que sim novamente.

— Ele ajudou Bibbi Bokken a construir a biblioteca mágica. Ele...

Berit completou a frase.

— ... também tem uma.

E eu só balançando a cabeça.

— “Dante, Homero, Ovídio e Petrarca são preciosos tesouros de sua arca” — disse Berit.

De repente, ela sorriu. Ainda não disse isso para ela, mas ela tem um sorriso realmente fantástico.

Soltei o braço dela e toquei levemente no ombro de Bresani. Ele não se assustou, apenas se endireitou na cadeira, virou-se e retribuiu o sorriso de Berit. Parecia que ele estava nos esperando.

Em Roma tudo tinha acontecido tão depressa que eu não conseguira ver seu rosto direito. Mas agora sim. O curioso é que era um rosto sem idade.

Mario Bresani podia ter cinquenta ou oitenta anos. Era impossível saber. Seus cabelos eram brancos, mas cheios como os de um homem jovem. Milhares de pequenas rugas na testa e em volta dos olhos falavam de um homem que tinha vivido uma longa vida. Seu olhar era franco e curioso como o de uma criança. Seus dentes eram brancos como giz, e seu sorriso era alegre e um pouco maroto como o de um adolescente. E agora ele estava sorrindo para Berit.

— Buon giorno, signorina Berit — ele disse, e ficou olhando para a boca de Berit enquanto ela respondia lenta e claramente:

— Buon giorno, signore Bresani.


— Buon giorno — respondi. Não foi difícil entender que aquilo queria dizer “bom dia”.

Na mesma hora, me dei conta de que Mario Bresani devia ser o italiano do qual se falava no hotel. Aquele que não quis esperar pelo jantar... como é que eu não tinha pensado nisso antes?

Fiquei olhando para aquele rosto inteligente, bonito e afetuoso.

Quem era aquele homem? Por que ele estava ali — e por que era tão bonito? Acho que pensei que talvez fosse a surdez que deixasse o rosto bonito — ou que fosse consequência de tanto ler livros. Seu olhos castanhos vibravam suavemente e ele não baixou o olhar. Ele parecia ler todo o meu rosto, não apenas os meus lábios. Só quando olhei para o lado ele se levantou. Então deu uma batidinha nos nossos ombros e disse:

— Benvenuti alla biblioteca!

Ele não era muito mais alto do que Nils, e meia cabeça mais baixo do que eu. Agora ele olhava atentamente para mim, para ver se eu entendera ou para ler minha resposta.

— Bem-vindos à biblioteca — adivinhei.

Ele inclinou a cabeça.

— Sì, sì!

— À biblioteca mágica de Bibbi Bokken — disse Nils.

Bresani virou-se para ele e abriu os braços num gesto resignado. Ele não tinha visto o que Nils dissera.

— Acho que esta é uma biblioteca mágica — Nils continuou. Dessa vez falou bem mais alto, como se isso fizesse alguma diferença.

O pequeno italiano riu.

— Naturalmente, signore... una biblioteca magica... e molto segreta!

Ele pôs um dedo sobre os lábios, como que para dizer que prometera guardar um segredo.

Tive uma sensação um pouco semelhante à do meu sonho com a grande biblioteca sob a geleira de Jostedalsbreen. No sonho, era como se eu conhecesse todos os livros e todos os escritores do mundo inteiro. Agora, de repente eu entendia italiano!

— Naturalmente, senhor — Bresani tinha dito. — Uma biblioteca mágica... e muito secreta.

Ele abriu os braços como que para apontar para a biblioteca inteira, e lançou um olhar sobre o livro de cartas que Nils segurava na mão. Depois continuou a falar — sempre bem devagarzinho.

— Signore e signorina! Questo è il centro... del loro labirinto grande... è molto misterioso...

Agora Nils se aventurou como tradutor:

— Acho que ele disse que nos encontramos num misterioso labirinto.

Bresani mostrou seus dentes brancos e bateu palmas.

— Bravo!

Só então comecei a olhar ao meu redor. A sala era do tamanho de uma sala de estar espaçosa, mas as paredes eram bem mais baixas. No centro, havia uma mesa com quatro cadeiras. As quatro paredes estavam cobertas de livros. Não havia apenas estantes para guardá-los, mas também caixas das mais diversas cores. Além disso, entre as estantes havia magníficos armários com portas de vidro.

Não vi uma única brochura ou livro de bolso. Havia muitos livros antigos, mas também não eram poucos os livros novos. E todos eram incrivelmente bonitos.

Aquela visão me fez lembrar dos vitrais das grandes catedrais — dos mosaicos que não representam nada em especial, mas que formam um desenho bonito porque as cores combinam muito bem. Foi mais ou menos essa a impressão que tive ao ver todas aquelas lombadas marrons, pretas, vermelhas e brancas dos livros da biblioteca de Bibbi Bokken. Havia sobretudo muitos tons de couro marrom e, por serem muitos os livros encadernados em couro, dava quase a impressão de que eles estavam vivos.

Toda a atmosfera na biblioteca subterrânea e o encontro com o velho homem foram tão solenes e pacíficos, tão distantes da barulheira do hotel, que eu já tinha esquecido todo o medo que havíamos sentido ao entrar na casa. Se havia alguma coisa que eu sabia com toda a certeza, era que aquele velho homem nunca faria algo contra nós em toda a sua vida.

Mas e Nils? Ele ainda tinha medo de que acontecesse alguma coisa ruim? No seu último encontro com Bresani, o Smiley aparecera de repente e estragara tudo. E isso num lugar parecido com aquele ali....

Como é que eu sabia? Eu nunca estivera em Roma. Mas eu sabia por que Nils havia escrito sobre isso. E, por isso, de certa forma, eu também estive no sebo de Bresani. Apenas de certa forma, mas mesmo assim...

De repente, ouvimos passos no andar de cima. Quem podia ser? O Smiley? Ou era Bibbi Bokken?

Então ela desceu solenemente a escada para a sua biblioteca subterrânea. Primeiro vi seus sapatos de salto alto, depois o longo vestido vermelho apareceu no final da escada — quase como um paraquedas que vai lentamente tocando o chão.

Era Bibbi Bokken. Ela não era magra, mas também não era gorda. Era exatamente o que se chama de uma pessoa “distinta”. Até então, eu pensara nela como a “bruxa dos livros”. Mas se aquela mulher de vestido vermelho era uma bruxa, ela tinha mais parentesco com a Madame Min ou com a Maga Patalógica.

“Por que senti tanto medo dela?”, perguntei a mim mesma. Será que eu logo saberia? Mas no momento em que ela atravessou a biblioteca e chegou perto de mim, soube que eu e Nils tínhamos nos enganado. Ela era de fato uma pessoa estranha — isso era evidente — mas não tinha um lado mau.

— Nils e Berit — ela disse com um sorriso amável, depois olhando para o livro que Nils segurava na mão. — Vocês não sabem como estou feliz em vê-los!

Tive a impressão de que ela se interessava sinceramente por nós — quase como se tivéssemos passado um tempão perdidos na montanha e finalmente sido resgatados, depois de muito vagar às cegas pelo nevoeiro e tempestade. De alguma forma isso era verdade, havíamos tateado no escuro, não tínhamos uma visão clara dos acontecimentos.

Então Bibbi Bokken fez um gesto orgulhoso com a mão.

— O que vocês acharam da minha biblioteca? — ela perguntou.

— Superlegal — disse Nils.

— Maravilhosa — eu disse.

— Sì, sì — disse Mario Bresani. — Bellissima!

Ele sorriu e fez uma reverência. Então voltou à sua escrivaninha, tão silenciosamente como se levantara. A escrivaninha estava repleta de tinteiros vermelhos e pretos, penas, pincéis e papel.

Bibbi Bokken olhou para ele e inclinou a cabeça.

— E vocês já se apresentaram? — ela perguntou.

— Oh, sim — eu disse. — Já conversamos bastante.

 

Bibbi Bokken andou até uma parede e apertou um interruptor. Imediatamente acenderam-se inúmeras luzinhas sobre os armários e as estantes de livros.

— Ooooh — exclamei, pois agora a biblioteca estava ainda mais bonita. As cores dos livros se destacavam melhor, e as luzes lembravam uma quermesse.

— É fantástico, Berit — disse Nils. Depois ele se virou para Bibbi Bokken.

— O que é que leva alguém a... colecionar livros dessa maneira? — ele balbuciou.

Ela riu.

— E o que leva uma pessoa a construir uma piscina no subsolo? Minha pequena biblioteca não custou mais do que isso, Nils. Faz muitos anos que coleciono livros. E sempre cuidei muito bem deles. Agora tive o cuidado de colocar cada um deles em seu lugar no grande contexto.

— Segundo Dewey? — perguntei.

— Sim, aqui todos os livros estão ordenados segundo o sistema de Dewey. Eu simplesmente aaaaaamo Dewey. E não sou a única. Já se passaram mais de cem anos desde que ele desenvolveu a classificação decimal. E ela continua gozando de muito boa saúde.

Ela apontou para as quatro paredes e explicou que duas delas continham livros especializados sobre todos os assuntos possíveis. E que todos estavam ordenados de 100 a 990 segundo a tabela de Dewey.

Nils apontou para as outras paredes.

— E que livros são estes? — ele perguntou.

— Literatura — explicou Bibbi. — Mas, como vocês estão vendo, ela está dividida em três grupos. Primeiro vem a seção de prosa...

— Romances, novelas etc. — disse Nils, como se estivesse na aula de norueguês.

Bibbi Bokken confirmou balançando a cabeça.

— Lá em cima, na quarta parede, vocês estão vendo um belíssimo V, de “verso”, que Mario pintou para mim. Embaixo dele estão os meus livros de poesia.

Apontei novamente para o alto das prateleiras.

— E ali tem um T muito bonito também — eu disse.

— Ali estão as peças de teatro, ou seja, a dramaturgia.

— Peer Gynt — eu disse.

Bibbi Bokken ficou radiante.

— Sim, Peer Gynt, por exemplo. Tenho a primeira edição dessa obra, de 1876. Um bem muito estimado, Berit.

Nils apontou para um pequeno armário cheio de gavetinhas.

— O arquivo?

— Ou os arquivos — corrigiu Bibbi Bokken. — Cada livro da biblioteca possui pelo menos três fichas diferentes. E por isso existem três arquivos diferentes. Num deles, as fichas estão em ordem alfabética segundo o nome dos autores. No segundo arquivo, de acordo com o título do livro. E a terceira ficha contém palavras-chave que indicam os temas tratados pelo livro. Se, por exemplo, eu quiser saber mais sobre astronomia, vou até esse arquivo e vejo quais são os livros que tenho sobre o espaço. E ali encontro não só livros técnicos, mas também livros de literatura sobre esse tema.

— Que sofisticado — disse Nils. — Deve ser fundamental manter a ordem do sistema. Hum...

Bibbi Bokken suspirou:

— Ora, não se pode enfiar os livros nas estantes ao sabor do acaso. Um filatelista não guardaria seus selos todos misturados numa grande gaveta! Como ele faria para encontrar um determinado selo cor-de-rosa de dois xelins e meio de 1882? E eu, como vou achar a primeira edição de Peer Gynt? Posso saber?

Nils não quis discutir.

— Foi você quem inventou todo esse sistema sofisticado? — ele perguntou.

Bibbi Bokken deu uma risada rouca.

— Não, esse sistema é usado em bibliotecas do mundo inteiro. Bem... existem algumas variações. E a maioria das bibliotecas atualmente já passou a utilizar o registro por computador...

— Que original — eu disse.

Não sei por que eu disse isso, simplesmente escapou.

 

Nils descobrira alguma coisa num grande armário. Ele andou até lá e apontou para três livros que estavam deitados, um em cima do outro. Cada um deles tinha mais ou menos o tamanho de duas listas telefônicas colocadas lado a lado. Os três livros pareciam muito antigos.

— O que... o que é isto? — perguntou Nils.

— Psssiu! — sussurrou Bibbi Bokken, como se fossem três bebezinhos que não podiam ser acordados. Seu rosto adquiriu uma expressão solene, como um sacerdote que vai executar uma importante cerimônia.

— Meu amigo, você está diante de três vivíssimos incunábulos!

— Livros que foram impressos na infância da arte tipográfica — eu disse. — Antes do ano 1500...

Bibbi Bokken bateu palmas.

— Mas não é que aprenderam tudo!?

Poucos segundos depois, um amontoado de pensamentos confusos rodava na minha cabeça. E acho que na cabeça de Nils devia estar acontecendo algo parecido. “Mas não é que aprenderam tudo!?”

Pensei na carta de Siri, no livro de cartas — que Nils não tinha largado nem por um segundo — na biblioteca mágica de Bibbi Bokken, no Smiley, no que ele havia dito no salão de bilhar sobre eu ser “muito bem recompensada”, no poema que Nils e eu tínhamos escrito no livro de visitas do albergue e em muitas outras coisas. A sensação que eu tinha era de que precisaria de uma longa tarde e duas grandes gavetas de arquivo para organizar todas as nossas experiências das últimas semanas.

Eu ia justamente perguntar a Bibbi Bokken sobre a carta de Siri — agora não achava mais tão terrível ter que confessar que eu a lera escondido —, mas nesse momento Bibbi Bokken tirou um dos pesados incunábulos de dentro do armário e o colocou sobre a mesa que ficava no meio da sala. Ela parecia uma rainha erguendo uma coroa de ouro coberta de diamantes e pedras preciosas.

— Sentem-se — ela disse, mais ou menos como uma professora ao entrar na sala de aula.

Então nos sentamos os três. Quando Bresani viu que Bibbi Bokken estava com o velho livro nas mãos, disse:

— Prudente, Bibbi! Prudente!

Ela riu:

— Ele está dizendo para tomarmos cuidado.

O grande livro era encadernado em sólidas tábuas de madeira. Sobre três plaquetas, também de madeira, havia fechos dourados em forma de ganchos. Bibbi Bokken soltou os fechos, abriu o velho livro com muito cuidado e disse:

— Assim é que se abre um livro de verdade. Houve um tempo em que este era um ato extremamente solene...

As folhas amareladas do gigantesco livro pareciam de papelão.

— Que papel grosso — eu disse.

Bibbi Bokken deu um sorriso muito expressivo.

— Este papel se chama “papel de trapos”, e é feito de algodão e linho triturados e depois cozidos com pele de porco. Mas a velha papa aguentou bem, não acham? Este livro foi impresso em Milão há mais de quinhentos anos. Não são muitos os livros de hoje que terão uma vida tão longa.

— Como ele é grande — disse Nils.

— Este é o chamado formato in-fólio. São as obras completas do poeta italiano Petrarca. Foi um presente de Mario. Quantos milhões de liras pagou por ele é um pequeno segredo que Mario não revela a ninguém.

Começamos então a observar as páginas do livro. A primeira letra em cada página era enorme, pintada em azul e vermelho.

— Isso foi pintado à mão? — Nils perguntou.

Bibbi Bokken fez que sim.

— Na infância da arte tipográfica, a confecção de livros ainda era um ofício envolto em mistério. Naquela época, as pessoas ainda tinham tempo. Mas agora Mario está tentando reavivar essa velha arte. Ele é considerado um dos mais importantes calígrafos do mundo inteiro.

Nils sacudiu a cabeça.

— Calígrafo?

— Sim, caligrafia é a arte de escrever à mão — explicou Bibbi Bokken. — Acho que tenho que agradecer as belas folhas que alguém me trouxe de Roma...

Nils ficou vermelho como um tomate.

— Foi você que escreveu o poema?

Ela deu um sorriso misterioso, mas não respondeu à pergunta.

— Uma coisa de cada vez, Nils. Todas as perguntas de vocês serão respondidas, mas temos que tratar de uma coisa por vez... e talvez seja melhor começar logo pelo começo.

Bibbi Bokken fechou o livro novamente, e os fechos dourados se engancharam com um clique. Depois ela se inclinou sobre a mesa, ficou olhando alternadamente para Nils e para mim, e então perguntou:

— Alguma vez vocês já pensaram que nós, os homens, somos os únicos seres vivos neste planeta — e talvez em todo o Universo — capazes de trocar pensamentos, sentimentos e experiências uns com os outros?

Acho que Nils e eu apenas sacudimos a cabeça.

— Podemos fazer isso há muitas centenas de milhares de anos. Mas só depois de muito tempo, há uns cinco ou seis mil anos, aprendemos a escrever. E isso deu à linguagem possibilidades completamente novas, pois a partir de então pudemos trocar nossas experiências com pessoas que viviam a centenas de quilômetros de distância, ou mesmo com pessoas que só viveriam centenas ou milhares de anos depois de nós. As primeiras línguas escritas utilizavam imagens, ou ideogramas. A escrita naquela época era um pouco parecida com as histórias em quadrinhos de hoje em dia. Mas pouco a pouco foi se desenvolvendo um sistema de escrita que permitia reproduzir todas as palavras de uma língua apenas com algumas letras...

Nils estava sentado na beirada da cadeira. Ele parecia um aluno bagunceiro que de repente resolve se tornar o primeiro da classe, só porque a professora tocou num assunto interessante. Ele disse:

— Embora existam apenas vinte e seis letras diferentes, elas podem encher bibliotecas inteiras...

Bibbi Bokken confirmou com a cabeça.

— Aqui, apesar de tudo, disponho de pouco espaço. Tive que dinamitar a rocha para obter um novo porão.

— A vigia noturna do hotel pensou que fosse um terremoto — eu disse. — Ela quase chamou a polícia!

Bibbi Bokken deu um largo sorriso.

— Bem, estávamos falando do alfabeto. O alfabeto foi a primeira grande revolução da história da escrita. Durante vários milênios, as pessoas escreveram em pedras e papiros, tábuas de madeira e cascos de tartarugas, em tabuletas de barro e cacos de cerâmica, na pele de animais e em pranchas enceradas, ou seja, em qualquer material onde fosse possível gravar símbolos. A escrita foi como uma febre que de repente se alastrou pelo globo. Com o passar do tempo, começaram a ser feitos livros inteiros em pergaminho e papel. Mas cada exemplar tinha que ser escrito à mão e por isso os livros eram caros, inacessíveis para a maioria das pessoas. Assim, em diversos lugares do mundo, fizeram-se experiências com a gravação de letras em placas de madeiras, que serviam de matriz para que a mesma página pudesse ser impressa diversas vezes. Dessa forma, foi criada a nobre arte da reprodução. Mas essa “impressão em bloco” era um processo muito lento e trabalhoso.

— Então veio Gutenberg — eu disse.

Bibbi Bokken confirmou com a cabeça.

— Sim, por volta de 1450. Só a partir daí é que se pode falar em arte tipográfica. E essa foi a segunda grande revolução da escrita. Gutenberg utilizava tipos móveis fundidos em chumbo. Originalmente, ele era ourives. Mas, assim como fundia joias em ouro e prata, ele também fundia as letras do alfabeto, com as quais era possível compor páginas inteiras, e depois as reutilizava. Essas letras ou tipos móveis formavam os átomos e moléculas do mundo dos livros.

Nils pigarreou e depois disse:

— Assim como os átomos e moléculas podem formar um urso, as letras do alfabeto podem formar uma história sobre o ursinho Pooh.

Bibbi deu uma piscada travessa para ele.

— Sim, uma história sobre o ursinho Pooh, por exemplo. Esses tipos móveis de impressão já eram utilizados na China há novecentos anos. Só que lá não havia alfabeto. E não adianta muito confeccionar tipos móveis se o sistema de escrita é constituído por milhares de símbolos diferentes. Portanto, o desenvolvimento da escrita na Europa foi marcado tanto pelo alfabeto simples quanto pelos tipos móveis de Gutenberg.

— E que tipo de livros Gutenberg imprimiu? — perguntei.

Bibbi Bokken tinha a resposta na ponta da língua. Acho que poderíamos fazer qualquer pergunta que envolvesse livros, e ela responderia imediatamente.

— O primeiro livro que Gutenberg imprimiu foi a Bíblia, como não podia deixar de ser. Alguns exemplares dessa Bíblia se conservaram até hoje. De vez em quando uma edição completa é posta à venda, mas obviamente custa muitos milhões de coroas.

— Então preciso economizar mais um pouquinho se quiser comprar uma — disse Nils.

Bibbi Bokken ergueu o livro com a obra de Petrarca e o colocou de volta no armário. Quando ela voltou para a mesa, Mario Bresani se virou.

— Bravo — ele disse.

 

A mulher de vestido vermelho sentou-se novamente e olhou para o livro que estava no colo de Nils. Acho que ela queria dar uma olhada nele. Será que ela imaginava que Nils e eu tínhamos usado aquele livro para nos correspondermos um com o outro? Bem, pelo menos ela não tinha como saber que nossas cartas falavam dela...

Minha cabeça fervia com tantas perguntas sem resposta.

— Você não é de Fjærland — eu disse. — Como é que veio para cá e acabou construindo sua biblioteca justamente aqui?

Ela deu novamente o seu sorriso enigmático. Como ela ainda não tinha respondido, fiz mais uma pergunta:

— Por acaso isso tem alguma coisa a ver com Walter Mondale?

Essa pergunta realmente a pegou de surpresa. Até então, ela mantivera o controle sobre toda a conversa. Mas quando fiz essa pergunta ela quase caiu da cadeira.

Ela olhou outra vez para o livro de cartas, mas não se atreveu a fazer nenhum comentário. Pelos menos não por enquanto. Ela perguntou:

— Mas, Berit, como é que você sabe disso?

Eu sacudi os ombros.

— Ora, eu também estava aqui. Todo mundo estava aqui quando Mondale inaugurou o túnel de Fjærland.

Bibbi Bokken sacudiu a cabeça, resignada. De repente, a situação tinha virado de pernas para o ar. Acho que ela não gostou nem um pouco de eu saber mais do que ela sabia que eu sabia.

Depois de alguns instantes, ela continuou:

— De fato, a primeira vez que estive em Fjærland foi em 1986, quando Walter Mondale inaugurou o túnel. Eu queria cumprimentar o ex-vice-presidente, que era um velho conhecido meu da época em que estudei biblioteconomia nos Estados Unidos...

Nils arregalou os olhos.

— Na mosca, Berit! — ele disse.

Ele fez um sinal para Bibbi continuar.

— Naquela época, eu estava trabalhando num projeto para a construção de um grande depósito para a Biblioteca Nacional. A ideia era construir um depósito onde coubessem todos os livros e revistas da Noruega. E, para garantir que tudo se conservasse para a posteridade, ele deveria ser construído dentro de uma grande montanha.

— Na mosca de novo — disse Nils, parecendo bastante impressionado com o meu desempenho detetivesco em Fjærland.

— Houve um grande debate na Noruega sobre qual iria ser a montanha onde esse depósito seria instalado — contou a sra. Livros. — Quando vim para Fjærland, ocorreu-me que seria uma ideia magnífica construir esse depósito sob a geleira de Jostedalsbreen, já que de qualquer forma haviam escavado lá um grande túnel.

— Os... os... os sonhos de Berit tornam-se reais — balbuciou o meu pobre primo, e nessa hora eu também comecei a suar frio. Quando notou nossa agitação, Bibbi Bokken acrescentou bem depressa:

— Mas não foi o que aconteceu. Em 1989, o Parlamento decidiu que o depósito seria construído em Mo i Rana. Ali, no interior da montanha, foram dinamitadas duas grandes cavidades. Numa delas foi construído um edifício de quatro andares, que foi inaugurado há apenas poucos meses. É nele que fica o chamado “depósito compacto”, onde estão guardados exemplares de todos os livros, revistas, imagens, filmes e vídeos já produzidos na Noruega. Além disso, ali estão também todos os programas de rádio e de televisão da Estação Norueguesa.

Nils respirou fundo.

— Então existe mesmo essa instalação gigantesca?

— E na outra cavidade o que há? — eu perguntei.

— Ela será preenchida com os livros do futuro. Assim, a cultura escrita do nosso tempo será guardada e conservada, para que os seres humanos do futuro também possam conhecer o que escrevemos. Talvez esse depósito perdure por muitos e muitos milênios.

— Então existe mesmo uma biblioteca subterrânea — disse Nils.

Bibbi fez que sim.

— Ela foi aberta ao público recentemente. Esse depósito possui proteção contra incêndios e bombas atômicas, e também contra qualquer tipo imaginável de catástrofe natural.

Novamente me lembrei do meu estranho sonho.

— Por favor, conte mais sobre como é lá dentro — pedi.

— Chegando lá, a primeira coisa que se vê é um portão com grades e uma cortina de aço. Atrás dessa cortina começa um túnel de sessenta metros, que conduz ao interior da montanha. Ele é alto e largo o suficiente para permitir a passagem de vagões de carga, e no final do túnel fica o edifício de quatro andares. O edifício propriamente dito tem quase cem metros de comprimento, e contém no total mais de quarenta quilômetros de estantes com livros. Ele possui temperatura e umidade constantes, para que os livros se conservem da melhor maneira possível... embora nem todos os livros impressos hoje em dia sejam tão resistentes quanto os antigos incunábulos.

Refleti um pouco e depois perguntei:

— E como a sua ideia de fazer o depósito aqui em Fjærland não deu certo, você resolveu comprar uma casa por aqui e construir a sua própria biblioteca subterrânea?

Bibbi Bokken abriu um sorriso largo.

— Pode-se dizer que sim. Depois de 1986, quando estive aqui pela primeira vez, voltei diversas outras vezes a Fjærland. Gostei muito daqui e por isso um dia comprei esta casa. Meus livros são valiosos demais e eu não posso morar numa casa de madeira, que pode ser consumida pelo fogo a qualquer momento. E como achei que nunca sentiria necessidade de ter uma piscina no porão, encontrei aqui uma boa oportunidade. Às vezes me sento aqui embaixo para ler e trabalhar. Outras vezes levo um livro para a sala lá em cima. E também acontece de eu ficar simplesmente andando pela biblioteca e lendo as lombadas dos livros...

Bibbi Bokken levantou-se e fez exatamente o que acabara de dizer. Ela se pôs a andar ao longo das paredes e então tirou um livrinho de uma prateleira. O autor era um tal de Simen Skjønsberg, e o título era O prazer assombroso — textos sobre os segredos da leitura. Ela pediu que Nils lesse em voz alta o texto da orelha do livro. Ele pigarreou duas vezes e finalmente leu:


Passeio pelas estantes da biblioteca. Os livros me dão as costas. Não para me rejeitar, como as pessoas: são convidativos, querendo apresentar-se a mim. Metros e mais metros de livros que nunca poderei ler. E sei: o que aqui se oferece é a vida, são complementos à minha própria vida que esperam ser postos em uso. Mas os dias passam rápido e deixam para trás as possibilidades. Um único desses livros talvez bastasse para mudar completamente a minha vida. Quem sou eu agora? Quem eu seria então?

— Entendo muito bem o seu amor pelos livros — eu disse. — Mas você não tem uma profissão... ou um marido?

Bibbi inclinou a cabeça para trás e riu. Mario Bresani devia ter se virado, pois também olhou para nós e riu.

Ela disse:

— Foram duas perguntas de uma vez só. Eu sou bibliógrafa. Isso quer dizer que sou mais ou menos uma especialista em livros e bibliotecas. E é disso que eu vivo. Presto serviços aqui na Noruega e em muitos outros países, portanto viajo muito. Justamente por isso, a minha biblioteca precisa estar muito bem protegida. Às vezes vou para Roma... e outras vezes é Mario quem vem para a Noruega. Mas eu também me sinto muito bem na minha própria companhia — e na de todos os meus livros. Alguém disse uma vez: “Um bom livro é o melhor amigo”. Outra pessoa expressou isso de forma semelhante: “Quem escolhe bem os seus livros estará sempre na melhor das companhias. Neles nos encontramos com os caracteres mais ricos de espírito, mais sábios e mais nobres, que constituem o orgulho e a glória da humanidade”.

Enquanto dizia isso ela se levantou, foi até Mario Bresani e pôs a mão no seu ombro.

Nils e eu a seguimos e, espiando por cima dos ombros de Mario, vimos que ele havia pintado, com nanquim preto e vermelho, uma série de belas letras ornamentais. Mais uma vez lemos o que já tínhamos lido antes: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

Pensei de novo na carta de Siri, mas não quis admitir que sabia dela. Por isso, disse:

— Existe um livro que... que se chama A biblioteca mágica de Bibbi Bokken?

Mario olhava para mim enquanto eu falava.

— Sì, sì — ele exclamou. — La biblioteca magica de Bibbi Bokken!

— E esse livro... por acaso... será publicado no ano que vem?

No mesmo instante eu me arrependi de ter dito isso. Acho que mordi o lábio. Será que Bibbi iria dar-se conta de que eu tinha lido a carta de Siri?

Mais uma vez um sorriso enigmático passou pelo seu rosto. Como ela não respondeu, Nils tomou a palavra. Ele perguntou sem rodeios:

— Você tem esse livro misterioso aqui?

Ainda me lembro que, ao ouvir essa pergunta, Bibbi Bokken soltou uma gargalhada quase histérica. Quando se recompôs, ela disse:

— Não, não mesmo! Acho que agora vocês estão indo longe demais!

Apenas dessa vez, me perguntei se acaso não teríamos motivos para ter medo de Bibbi Bokken. Talvez fôssemos como prisioneiros naquele porão...

Mas então ela disse:

— Na escola deveriam ensinar as crianças a não serem tão impacientes. Vocês não podem querer saber tudo de uma vez. Não é difícil descobrir uma mentira, meus amigos. Nunca perder a verdade de vista é que não é tão fácil, pois a verdade muitas vezes tem diversos lados. Por isso ela não pode ser dita em palavras num simples piscar de olhos. E além disso...

Nós dois olhamos para ela.

— ... vocês ainda não viram a biblioteca mágica.

 

No porão, junto com Berit, Bibbi Bokken e Mario Bresani, eu vivi um milagre. Pela primeira vez na minha vida, entendi o que é um livro. Um livro é um mundo mágico cheio de pequenos símbolos que podem ressuscitar os mortos e dar vida eterna aos vivos. É incrível, fantástico e “mágico” que as vinte e seis letras do alfabeto possam ser combinadas de tantas maneiras, que elas possam encher com livros estantes gigantescas, levando-nos para um mundo que nunca tem fim e nunca cessará de crescer e se expandir, enquanto na Terra existirem humanos.

Olhei para as paredes e, por um instante, tive a sensação de que todos os livros olhavam para mim. Sim, como se estivessem vivos, e eles exclamavam:

— Venha até nós! Não tenha medo! Venha!

De repente senti muita fome. Não de comida, mas de todas as palavras escondidas naquelas estantes. Mas eu sabia que, por mais que eu lesse durante toda a minha vida, nunca conseguiria ler um milésimo de todas as frases que já foram escritas. Sim, pois há tantas frases no mundo quanto há estrelas no céu. E elas se multiplicam e se expandem continuamente, como o espaço infinito.

Mas ao mesmo tempo eu sabia que, a cada vez que eu abrisse um livro, eu veria um pedacinho desse céu. Sempre que lesse uma frase, saberia um pouco mais do que antes. E tudo o que leio faz o mundo ficar maior, ficando maior eu também. Por um momento, eu contemplei o fantástico, o mágico mundo dos livros.

Por isso eu estava tão assombrado quando Bibbi Bokken disse:

— Vocês ainda não viram a biblioteca mágica!

— Vimos, sim — exclamei. — Acabamos de ver. Mil vezes obrigado.

Ela sorriu para mim.

— Esta é apenas a sala externa, meu amigo. A sala para aquilo que já foi criado.

— Existem outras salas? — Berit e eu perguntamos, a uma só voz.

— Sim — disse Bibbi Bokken, olhando para nós com um olhar curioso e, ao mesmo tempo, triste. Como se quisesse ler os nossos pensamentos e estivesse triste por não conseguir.

— Há uma sala interna. Uma sala para o que ainda vai ser criado. A sala das possibilidades.

Berit dava a impressão de estar entendendo.

— Quer dizer que...

Bibbi Bokken fez que sim. Depois fez um sinal para Mario Bresani. Ele se levantou e andou em direção ao enorme armário que havia atrás da escrivaninha. As portas desse armário não eram de vidro como as dos outros. Mario pegou uma chave e abriu. E o que ele abriu não era um armário, mas sim uma passagem. Uma passagem para a sala interna.

— Venham — disse Bibbi Bokken. — Vamos entrar.

Mario Bresani havia voltado à escrivaninha. Ele acenou com a cabeça para nós e continuou a desenhar, enquanto entrávamos na biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

No começo, fiquei um pouco decepcionado. A luz forte e clara que quase nos ofuscou era tudo menos mágica, e a sala interna era muito menor do que a fantástica biblioteca da qual acabáramos de sair. Ali não havia livros bonitos. Nada de incunábulos, inscrições douradas, letras ornamentais, nada. Era simplesmente a mais pura confusão.

As paredes estavam cobertas por estantes normais — do tipo que você compra e monta você mesmo — atulhadas de caixas de papelão, pastas de plástico e cadernos escolares. Numa enorme mesa no meio da sala havia pilhas de papéis, revistas e desenhos que não pareciam exatamente obras de Edvard Munch.

— Então, o que vocês acham?

— Superlegal — eu disse, tentando parecer sincero.

Olhei de relance para Berit e ela não parecia nem um pouco decepcionada. Ela sorriu para Bibbi Bokken, que retribuiu o sorriso. As duas pareciam ter um segredo em comum. Eu me senti totalmente excluído.

— Sim, é mesmo uma sala impressionante — eu disse, dessa vez sem tentar esconder minha decepção.

Bibbi Bokken riu. Achei aquela risada repulsiva. O fato de Berit também rir não ajudou muito.

— Você não está entendendo o que é isto tudo, Nilsinho? — ela perguntou.

— Pois é, que coisa, não estou entendendo nada — murmurei — Já você parece que está entendendo tudo, não é?

— Tudo isto aqui são livros que ainda não foram escritos — disse Berit. — Não é, Bibbi?

Agora era “Bibbi” pra cá, “Bibbi” pra lá. E “Nilsinho” para escanteio! “Bibbi” fez que sim.

— Claro que sim — ela disse. — Shakespeare escreveu que a criança é o pai do homem.

— Ou a mãe — disse Berit.

— Ou a mãe — repetiu Bibbi Bokken. — E a cada segundo que passa, aumenta o saber acumulado na face da Terra. Não param de surgir novos pensamentos, novas palavras e frases feitas por novas pessoas. No mundo inteiro, neste exato momento, milhões de crianças estão criando a língua de amanhã. Algumas guardam tudo para si, enquanto outras escrevem. Poemas inacabados, histórias começadas, frases que nunca foram escritas antes. As crianças estão cheias de um saber que nem ao menos sabem que têm. Elas... vocês trouxeram uma herança do passado e, ao mesmo tempo, têm dentro de vocês as possibilidades do futuro.

— Esta é, portanto, a “sala das possibilidades” — eu disse.

Eu parei de me sentir excluído.

Bibbi Bokken inclinou a cabeça confirmando.

— Não é na primavera que as árvores são mais bonitas?

Ela novamente parecia um pouco triste.

— A biblioteca mágica está cheia de possibilidades, das quais em algum momento surgirão livros. Em alguns séculos, das fantasias reunidas nesta sala poderão surgir preciosos incunábulos. As palavras certamente se combinarão de outras maneiras. As frases não serão as mesmas. Mas aqui está o berço do que será a língua do futuro. Assim é a literatura quando recém-nascida. E a verdadeira magia da nossa vida é o nascimento.

Ela pegou uma folha de papel e leu em voz alta:


As trepadeiras crescem e crescem

para fora da sala. E vão até a Lua

buscar a Apollo 13 de volta para a Terra.

Então vem uma tempestade terrível

e a comprida trepadeira se encolhe,

e se recolhe de novo pela janela e dorme.


Senti um calafrio na espinha. Não porque o poema fosse tão fantástico assim, mas porque eu sabia que podia escrever poemas como aquele e Bibbi Bokken não, embora ela fosse mil vezes mais inteligente do que eu. Peguei um caderno e li:

 

Há muitos e muitos anos vivia uma mulher que era tremendamente preguiçosa. Ela era feia, gorda e rica. Um dia, ela resolveu ir fazer compras. Quando chegou à frente da loja, não conseguiu passar pela porta. Então ela pensou que estava precisando emagrecer e que não fazia sentido comprar doces nem comida. Ela não tinha marido e vivia sozinha. Um dia ela foi à cidade para ver se já tinha emagrecido. Na cidade, ela viu um homem que lhe agradou muito.

— O senhor sabe onde fica a joalheria? — ela perguntou.

— Sim — disse o homem. E explicou o caminho para ela.

— Muito obrigada pela ajuda — ela disse, e foi andando toda satisfeita pelo caminho.

E assim ela chegou à joalheria e comprou uma joia. Depois ela continuou a viver feliz sozinha. Ela ainda era tão gorda, tão rica, tão feia e tão preguiçosa quanto antes. E a casa dela era suja. Essa história entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser que conte outra.


— Sim — disse Bibbi Bokken. — Isso acontece.

Berit estava na frente de uma estante e riu. Fantasma na escola de Kuventræ, ela disse, e leu em voz alta:


Eu e Thomas entramos na sala de aula. Não havia ninguém, mas ouvimos o barulho de uma cadeira sendo arrastada. Ouvimos passos, mas Thomas deu uma pisada e sentiu que bateu em alguma coisa e uma janela quebrou. Achamos que fosse uma cadeira invisível, mas era uma armadilha que Grete tinha preparado para nós.


Bibbi Bokken balançou a cabeça com um ar meditativo.

— Grete deve ser uma menina com muita imaginação — ela disse.

Não dissemos nada. Então Berit leu uma história sobre um menino chamado Arne que fez uma competição de leitura com um dragão.

Peguei uma folha. Parecia ter sido arrancada de um livro. E na folha estava escrito:


Aqui em cima nada nos amola,

Juntos tomamos uma coca-cola,

Nils e Berit, assim nos chamamos,

Férias fantásticas aqui passamos.

Nos divertimos muito no verão

E não queremos ir embora não!


— Foi você quem arrancou esta página do livro de visitas? — perguntei.

Bibbi Bokken ficou vermelha, mas não muito.

— Um delito relativamente pequeno — ela disse.

Berit havia colocado Arne e o dragão novamente na pasta. Ela veio até nós.

— Talvez ainda não esteja totalmente pronto — ela disse.

— Não — disse Bibbi Bokken. — Esta é apenas a introdução. Foi quando vocês foram embora que tudo realmente começou, não é?

De repente, tive a sensação de estar prestes a compreender algo que estava bastante confuso até então. Eu disse a primeira coisa que me veio à cabeça. E isso muitas vezes é a melhor coisa a dizer.

— Já vimos a biblioteca mágica de Bibbi Bokken. Agora quero ver o livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

— Então venham comigo — disse Bibbi Bokken.

 

Eu me inclinei para ver o poema que Nils e eu havíamos escrito no livro de visitas da cabana. Por que Bibbi Bokken o arrancara de lá? Por que ela se interessava pelas coisas escritas por crianças? Ou ela tinha um outro objetivo? Senti um pouco de vaidade ao achar que ela havia analisado detalhadamente o nosso poema. Por isso, eu disse:

— Talvez ainda não esteja totalmente pronto...

Ela parou e olhou para mim. Ela parecia pensar: “Vamos lá, Berit”. Então disse:

— Não. Esta é apenas a introdução. Foi quando vocês foram embora que tudo realmente começou, não é?

De certa forma, isso também era verdade. Depois Nils foi para casa e Billie Holiday sugeriu que nos correspondêssemos usando um livro de cartas.

Seguimos Bibbi Bokken e saímos da biblioteca mágica, que estava repleta de histórias e poemas inacabados escritos por crianças.

Quando atravessamos o armário e voltamos para a outra sala, Mario Bresani olhava animado para nós. Ele lançou um olhar para o livro que Nils segurava na mão e disse:

— Il momento di verità!

E subiu atrás de nós a escada em caracol que conduzia à sala de estar.

— O que ele disse?

— Ele disse que está chegando o momento da verdade — disse Bibbi Bokken sorrindo.

O momento da verdade, pensei. Eu não tinha dito algo parecido?

Bibbi Bokken havia posto a mesa com pratos, xícaras e coca-cola. No centro da mesa havia meia rosca de amêndoas e uma grande travessa com bolinhos de passas caseiros.

Pelo jeito Nils estava com fome, pois foi logo se sentando. Por via das dúvidas, colocou o livro de cartas debaixo do seu pires. Ele ainda estava com medo de que alguém pudesse roubá-lo? Ou o medo era de que Bibbi Bokken de repente exigisse suas dez coroas de volta?

— Bem, vamos nos sentar — disse Bibbi Bokken. — Por favor, sirvam-se.

Logo a seguir, algo sobre a mesa pareceu chamar a atenção dela, mas não era o livro de cartas sob o pires de Nils.

— Estranho — disse ela. — Eu podia jurar que tinha mais bolinhos de passas...

Eu não me senti atingida, pois quando Bibbi Bokken havia posto a mesa Nils e eu já estávamos na biblioteca.

Ela foi até a cozinha e voltou com um bule de café. Quando ela se sentou, Nils deu uma mordida num bolinho e disse:

— Os bolinhos estão deliciosos, Bibbi! Mas, se este é o “momento da verdade”, talvez seja o caso de darmos uma olhada no belo livro que vai ser publicado no ano que vem.

Bibbi Bokken riu e Mario Bresani riu também. Eu não ri, pois agora estava entendendo. Eu só não podia compreender como ela havia conseguido...

Ela olhou para Mario Bresani e estalou os dedos. O silencioso italiano enfiou lentamente uma mão no bolso do casaco. A seguir, colocou um livrinho minúsculo entre mim e Nils. Não era muito maior do que uma caixa de fósforos, tinha a figura de um leão vermelho na frente e parecia muito antigo. Na capa, havia algo impresso em letras quase ilegíveis:

— Almanaque — eu li.

Bibbi Bokken inclinou a cabeça afirmativamente.

Os olhos de Nils pareciam querer saltar para fora.

— Este é o livro sobre a biblioteca mágica? — ele perguntou.

Bibbi estava se divertindo.

— Este almanaque foi publicado muito antes de existir uma Bibbi Bokken. É um calendário do século XVII. No ano que vem, vai fazer exatamente trezentos e cinquenta anos que ele foi impresso...

— O Ano do Livro! — exclamei. — Patrocinado pela rainha Sônia. O Almanaque foi o primeiro livro impresso na Noruega.

Bibbi estava radiante:

— Você sabia disso também, Berit?

Eu sacudi os ombros.

— Conheço um escritor — eu disse. — Ele sabe onde está escondido o esqueleto.

Nils tinha pegado o livrinho e começado a folhear. Então ele disse, com a boca cheia de bolinho de passas:

— É um livro de bruxaria, Berit. Com certeza! Tem aqueles sinais misteriosos... os símbolos antigos das estrelas e dos planetas...

Ele se debruçou sobre o livro e tentou ler as letras antigas.

— “Quen sonha ou pressente que vae perder un dente, na verdade perde un bon amigo...”

Ele olhou para mim e balançou a cabeça energicamente:

— Um livro de bruxaria, sim, senhora.

Parecia que a qualquer momento ele ia se levantar e sair correndo. Mas Bibbi disse:

— Ou, mais precisamente, um velho almanaque. Mas você não deixa de ter razão, pois se trata de uma miscelânea de ciência e antigas superstições. Mas não se esqueça de que ele tem trezentos e cinquenta anos.

Nils não se deu por satisfeito. A cor de seu rosto lembrava os tomates que tinham sido servidos naquela noite no restaurante do hotel.

— Então talvez você possa nos contar o que este livro tem a ver com Berit e comigo — ele disse. — Ou com a biblioteca mágica.

Mario Bresani lançou um olhar severo para Bibbi Bokken.

— Vuota il sacco! — ele disse.

Olhei para ela.

— Ele disse para eu contar tudo de uma vez — ela explicou.

— Isso mesmo — exclamou Nils.

Agora ele já não era mais o comissário-chefe Torgersen da Agência de Detetives Bøyum & Bøyum. Era apenas Nils.

— Exijo uma resposta agora mesmo — ele disse. — Senão vou para o hotel falar com o Smiley. Existe um livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken ou não?

Eu ri. E Bibbi Bokken riu também.

— Ele está debaixo do seu pires, Nils — ela disse.

A cara de Nils era um longo espetáculo de mímica.

Eu fazia ideia dos pensamentos e perguntas que estavam passando pela cabeça dele. No final, ele disse:

— Acho que estou um pouco lento...

— Posso dar uma olhada no livro? — perguntou Bibbi Bokken. — Acho que vocês entendem que eu esteja muito curiosa.

Nils olhou para mim. Eu assenti com a cabeça.

Então ele levantou seu pires e empurrou o livro para Bibbi Bokken. Ela deu um sorriso largo e começou a folheá-lo no mesmo instante. Nils pegou mais um bolinho de passas, embora ainda houvesse um pela metade no seu prato. Eu comecei a trocar olhares com Mario Bresani. Ele inclinou a cabeça apontando para Nils e sussurrou:

— Molto temperamento!

Tive que concordar com ele.

Só depois de um bom tempo Nils voltou a falar. Pelo jeito, ele refletira profundamente.

— E o livro de cartas... quer dizer que ele será publicado no ano que vem?

Bibbi confirmou com a cabeça, e agora o meu pobre primo parecia realmente ter perdido o pé. Ele disse, ofegante:

— Nós... nós escrevemos um livro juntos, Berit! Nós criamos uma história inteira.

— Sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken — eu disse. — É assim que ele vai se chamar.

Mas Nils já estava pensando em outra coisa:

— Mas o que o nosso livro de cartas tem a ver com este velho almanaque?

Bibbi Bokken levantou-se e tirou um cachimbo muito fino de dentro de uma cômoda. Encheu o cachimbo de tabaco e o acendeu com um fósforo. Enquanto ainda estava no meio da sala, soprando espessas nuvens de fumaça, ela disse:

— Esta é um longa história... que, como eu disse, começou há trezentos e cinquenta anos, quando este almanaque foi impresso em Christiania. Foi o primeiro livro editado na Noruega. Vocês não acham que é motivo para comemorar?

— Por mim, tudo bem — disse Nils. — Só que ainda não estou entendendo o que isso tem a ver com Berit e comigo.

Bibbi Bokken continuou a contar:

— Faz alguns meses, fui consultada pelo comitê de organização do Ano Norueguês do Livro. Eles queriam um livro para ser distribuído gratuitamente em todas as sextas séries da Noruega, e me perguntaram se eu não queria escrever esse livro.

Nils apenas deu de ombros, e a mulher de vestido vermelho continuou a falar, fumando seu cachimbo e dando voltas pela sala.

— Eu aceitei — ela disse. — Mas achei que seria uma ideia melhor se esse livro fosse escrito por crianças. Quando li o poema no livro de visitas da Cabana Flatbre, decidi fazer uma tentativa com vocês. Eu realmente gostei muito do poema.

Mario Bresani fez um gesto de aprovação, mesmo sem ter ouvido nem visto o que Bibbi tinha dito.

— Fazer uma tentativa? — repeti. — Mas como? Simplesmente não entendo como você nos levou a fazer isso.

Bibbi Bokken andou até a mesa e ergueu o livro com a foto do fiorde Sogne na capa. Então ela disse:

— Aqui estão todas as explicações. Se entendi bem, vocês mesmos esclareceram toda a história.

Depois ela começou a folhear o livro e a ler trechos escolhidos ao acaso.

— “... que bom ter visto você nesse verão. Foi realmente muito legal... Você se lembra daquela mulher esquisita? Aquela de olhos arregalados que andava com um livro todo amassado na bolsa? ... tive a sensação de que ela estava me lendo por dentro como um livro aberto.”

Ela olhou para Nils e disse:

— Muito bom, Nils. Essa foi uma grande entrada. E depois entrou Berit...

Ela se inclinou novamente sobre o livro de cartas e leu algumas frases.

— “... quando ela abriu a porta da casa, alguma coisa saiu voando da bolsa dela... mas me apoderei de um pequeno envelope que estava no chão e corri de novo para trás do muro.”

Bibbi ergueu o olhar mais uma vez, e depois continuou a ler:

— E agora vem a carta de Siri: “Querida Bibbi, andei a manhã inteira pela cidade, mas simplesmente não consigo reencontrar aquele estranho sebo. ... Na capa havia uma foto de umas montanhas muito altas... O importante é a data em que o livro foi publicado em Oslo. Em algum momento do ano que vem... Esse volume é mais valioso do que o mais caro dos incunábulos...”.

Eu me endireitei na cadeira.

— Então Bresani também participou? Ele tentou convencer Siri de que tinha um livro que só seria publicado no ano que vem?

Bibbi Bokken parou e me olhou nos olhos. Então disse apenas:

— Siri?

Eu não sabia o que responder, pois pouco a pouco estava me dando conta de uma coisa.

E se não existisse nenhuma Siri? E se aquela carta fosse falsa? Então nós tínhamos realmente caído como dois patinhos.

— Você está dizendo que não existe nenhuma Siri? — perguntei. — Que não foi ela que escreveu a carta que caiu da sua bolsa?

Ela continuava olhando para mim.

— Caiu?

Eu não precisaria ter dito mais nada, até Nils soltou um gemido. Mesmo assim, eu disse:

— Acho que você tem olhos na nuca.

Ela deu um sorriso muito expressivo.

— Quem lê muitos livros acaba criando olhos em lugares estranhos.

Nils colocou sua coca-cola na mesa com um pouco mais de força do que o necessário. Ele sacudiu a cabeça e disse:

— Isso não faz nenhum sentido!

Bibbi virou-se para Nils e ele disse:

— Você viu a gente escrever o poema no livro de visitas. Mas isso a gente sabia o tempo todo. Nesse ponto, não houve nenhum truque. Depois eu comprei um álbum de poesias em Sogndal e não esqueci de modo algum que lhe devo dez coroas. Mas não foi ideia sua que Berit e eu usássemos o livro para trocar cartas.

Bibbi Bokken soprou um anel de fumaça sobre a mesa.

— De quem foi a ideia então?

Respirei fundo e tapei a boca com a mão.

— Billie Holiday — cochichei.

Bibbi estalou a língua, satisfeita.

— Uma senhora muito inventiva.

— Foi você que...

— ... dei a ideia a ela? Sim. Eu plantei a semente dessa ideia na cabeça dela. Às vezes essas ideias florescem, às vezes não.

— Caramba! — exclamei.

Bibbi continuou a contar.

— De vez em quando, Billie e eu nos encontramos no correio. Às vezes conversamos um pouquinho. Acho que ela fica espantada com o número de pacotes que recebo da Itália.

Nils pigarreou. Acho que a palavra-chave foi Itália.

— Obviamente foi você quem mandou o poema para o hotel em Roma... para me atrair para o sebo. Mas como soube que eu iria a Roma?

— Tenho olhos na nuca, Nils. Tenho olhos por quase todo o corpo. Ler livros deixa a gente esperta.

— Certo, certo — disse Nils. — Caso não queiramos falar de espionagem agora. Afinal não foi você quem me mandou para Roma.

— Oh, fui, sim!

Nils pulou da cadeira.

— Mentira! — ele disse. — Fomos para Roma porque a minha mãe ganhou uma viagem num concurso idiota de contos. Talvez você não saiba que ela é escritora e...

Bibbi Bokken parou, seu olhar parecia distante. Então ela disse:

— “Você se lembra de Roma, meu amor? Da basílica de São Pedro, do Coliseu, do Panteão, da escadaria da piazza di Spagna, da piazza Navona? Ou você se esqueceu de tudo? Nosso amor está amarelecido....”.

— Já chega — bufou Nils. — Berit que continue se quiser, eu desisto. Essa história ainda nem foi publicada.

Eu olhei para ela.

— Você não trabalha nessa revista. Ou trabalha? — perguntei.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, mas fiz parte do júri desse concurso. É importante que as pessoas escrevam, Berit! A história da senhora Bøyum não era pior do que as outras... e por isso ela ganhou. Eu achei ótimo e, quando soube que a família viajaria para Roma, fui logo me informando sobre o hotel. Nils recebeu o meu poema e encontrou o caminho até Mario, que lhe entregou as folhas que deveria trazer para a Noruega. Na verdade, Mario deveria mostrar-lhe seu belo sebo... para lhe dar assunto sobre o que escrever. Mas eu já soube que isso não deu certo...

Nils olhou para ela e disse:

— Por causa de um certo Marcus Buur Hansen...

Primeiro ela fez que sim. Depois sacudiu vigorosamente a cabeça e concluiu a frase de Nils:

— ... que, ao que tudo indica, possui planos bem diferentes dos nossos para o Ano do Livro.

Ela já havia olhado diversas vezes para o relógio. Agora olhou novamente. Inclinou-se para o italiano surdo e disse:

— Tazze e piattini, per favore.

Ele se levantou e foi até a cozinha. Bibbi foi até a cômoda e bateu as cinzas de seu cachimbo. Depois tentou fazer um resumo:

— Fiquei impressionada com duas crianças que escreveram um poema divertido na Cabana Flatbre. Depois disso, dei a Billie a ideia de sugerir a vocês que se correspondessem usando um livro de cartas. Quando encontrei Nils na livraria, achei que seria justo que eu participasse dos custos. Ah, sim, eu também fiquei me fazendo de misteriosa para que vocês tivessem algo sobre o que escrever. Na barca, por exemplo, quando fiquei falando sozinha sobre a classificação decimal de Dewey. Afinal, vocês deveriam ter algumas pistas. Escrevi a carta de Siri numa outra viagem de barca, e no caminho de volta para casa tive a sensação de que alguém me espreitava o tempo inteiro. De resto, não é difícil deixar algo cair da bolsa quando se pega a chave de casa. E outras vezes deixa-se a porta aberta — para que visitas não convidadas não precisem arrombá-la. Quando não há nada para encontrar, é claro. Bem, sei que deveria ter limpado melhor atrás do sofá, mas fazer o quê? E é isso. O livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken foi escrito por vocês. Eu apenas acendi algumas lâmpadas à noite, e as duas mariposas foram atraídas pela luz. E...

Eu a interrompi.

— Isso foi muito atrevimento. Você nos enganou o tempo todo.

Ou ela se ofendeu ou apenas fez de conta que havia se ofendido. No caso de Bibbi Bokken, essas coisas não eram muito fáceis de saber.

Ela disse:

— Também não é um pouco atrevido espionar uma velha bibliotecária que... é um pouco diferente? Ou escrever certas histórias de crime e assassinato?

Mario saiu da cozinha e pôs duas xícaras e dois pires sobre a mesa. Logo depois alguém tocou a campainha.

Nils teve um sobressalto.

— O Smiley! — ele disse.

Bibbi Bokken correu para a entrada e abriu a porta. Eu vi duas pessoas de meia-idade que nunca tinha visto antes.

Eu me virei para Nils — e nesse momento seu rosto ficou branco como giz e ele escorregou para a ponta da cadeira. Seus olhos estavam brilhantes e arregalados como duas moedas de cinco coroas.

— Sente direito — eu disse com austeridade. Como se eu fosse mãe dele.

Depois sussurrei:

— Você sabe quem são?

Ele confirmou com a cabeça, perturbado. Então me dei conta de que era a segunda vez naquele dia que ele reconhecia pessoas que eu nunca tinha visto em toda a minha vida.

— Aslaug e Reinert Bruun — ele suspirou.

Nesse momento, lembrei-me do casal de professores que chegaria ao hotel com a última barca.

E então eu também suspirei.

 

Logo a seguir os dois estavam na sala.

— Que bom vê-lo, Nils! Aproveitando as férias de outono, pelo que vejo...

— E você deve ser Berit. Muito prazer em conhecê-la.

— O prazer é meu — eu disse.

Por um momento, me perguntei se Nils não tinha razão com sua teoria estapafúrdia de que todos eles tinham se conhecido em alguma seita religiosa que manipulava a fantasia das crianças e a utilizava para fins doentios.

Agora éramos seis sentados em volta da mesa. Bibbi fizera mais um bule de café e trouxera a segunda metade da trança de amêndoas, Mario Bresani trouxe mais coca-cola.

— Tenho certeza de que assei mais bolinhos — disse Bibbi Bokken para si mesma.

Acho que ninguém ouviu além de mim. Será que ela estava querendo dizer que visitas indesejadas haviam entrado na casa? Claro, era isso. Talvez o Smiley tivesse bisbilhotado a casa à procura do livro de cartas, enquanto estávamos lá embaixo na biblioteca mágica. Mas o que ele queria com isso? E por que Bibbi Bokken achava que o Smiley tinha planos diferentes dos dela para o Ano do Livro?

Depois que terminamos de trocar frases de cortesia, Nils perguntou, sem rodeios:

— Isto aqui é uma conspiração?

Todos, menos Nils e eu, riram com a pergunta. A risada mais animada foi a do homem surdo, que não tinha entendido a pergunta de Nils. Mas é perfeitamente possível rir de um rosto desconcertado mesmo quando não se pôde ouvir as palavras desconcertadas que saíram de sua boca.

— Podem rir — disse Nils. — Mas se for uma conspiração, vou contar tudo para o diretor da escola.

Os outros riram novamente.

— Se fosse uma conspiração, seria uma conspiração de bolinhos de passas — disse Aslaug. — Não faz muito tempo que comemos bolinhos juntos. Muito mais agradável do que no Café Skalken...

Nils não estava achando nada engraçado. Fiquei com um pouco de pena dele, por isso tentei ajudá-lo fazendo uma pergunta a Bibbi Bokken:

— O professor de Nils também tem alguma participação no Ano do Livro?

— Na verdade, não — ela disse. — Mas Nils escreveu uma redação muito divertida e então...

“Mas os professores não têm o dever de manter sigilo?”, perguntei a mim mesma. Acho que eles não podem ir mostrando as redações dos alunos para Deus e o mundo.

Reinert Bruun pigarreou.

— Nils é um garoto com muita imaginação. No outono ele entregou uma... bem... uma redação muito imaginativa, que falava de uma certa Bibbi Bokken. Eu sabia que Bibbi Bokken havia estudado com Aslaug na universidade. Aslaug mencionara esse nome algumas vezes. Mostrei a redação para minha mulher... e foi só isso.

— Mas fazia muito tempo que eu não via Bibbi Bokken — acrescentou Aslaug. — A redação de Nils me levou a telefonar para ela. Eu queria perguntar se ela tinha alguma ideia de como um aluno de Reinert podia conhecer o nome dela e até mesmo escrever uma redação contando que ela tinha... bem... que ela tinha se mudado para Fjærland.

— Eu dei boas risadas — confessou Bibbi Bokken. — Acho que acabei contando um pouco sobre o projeto do livro e sugeri que vocês convidassem Nils para ir à sua casa... e conversassem um pouco com ele sobre como escrever.

Aslaug olhou para Nils e disse:

— E quando você me telefonou e disse que queria se encontrar comigo no Café, resolvi ir por causa de Bibbi Bokken. Ela estava morrendo de curiosidade para saber o que vocês estavam fazendo.

Nils estava estupefato.

— Então foi pelo menos uma miniconspiração — ele disse.

Seu humor parecia estar melhorando. Talvez porque de repente tivesse a sensação de compreender o que estava acontecendo na sua vida. Mas isso não durou muito, pois ele pensou em mais uma coisa.

— Mas há mais uma pessoa — ele disse.

Acho que Bibbi Bokken foi a única que entendeu em que ele estava pensando. Nils disse:

— É aquele sujeito asqueroso que nos últimos tempos tem aparecido em todo lugar aonde eu vou. Ele também foi à casa de Aslaug e Reinert. Ele se chama Marcus “Smiley” Buur Hansen. Ele também está participando do Ano do Livro? Porque, se estiver, estou fora.

Todos na mesa ficaram em silêncio.

— Répondez s’il vous plaît — disse Nils.

Pela primeira vez naquela noite, Bibbi Bokken parecia preocupada.

— Infelizmente — ela disse. — Infelizmente, esse homem foi designado como uma espécie de diretor de divulgação do Ano do Livro. Não entendo por quê...

A conversa não foi muito além disso. Falamos um pouco mais sobre o livro de cartas. Bibbi, Aslaug e Reinert fizeram fila para lê-lo. E não faltaram elogios.

Bibbi disse que na manhã seguinte deveríamos viajar para Oslo com o livro. A editora já tinha pagado a viagem. E nós receberíamos um montão de dinheiro pelo livro, afinal nós é que tínhamos escrito — embora Bibbi Bokken tivesse nos fornecido o argumento.

— Mas o livro ainda não está totalmente pronto — ela disse ao final. — Em Oslo vocês precisam escrever a solução do enigma. Senão os leitores ficarão decepcionados. Somente quando lerem a solução, terão chegado ao objetivo. E o objetivo deste livro é a história do caminho até o objetivo.

Mal ela acabou de dizer isso, ouvimos um barulho no andar de cima. Todos, menos Mario Bresani, tiveram um sobressalto. Bibbi Bokken virou-se para mim e disse:

— Era exatamente isso que eu temia. Afinal de contas, sempre conto quantos bolinhos eu assei.

Balancei a cabeça.

— É, afinal de contas ele não teve tempo de comer direito no hotel.

Bibbi Bokken disparou para a escada. Nils olhou para mim e sussurrou:

— O Smiley?

Ouvimos vozes alteradas no primeiro andar:

— Agora você realmente foi longe demais, Marcus! Vou ter que denunciá-lo por invasão de domicílio.

— Faça isso. Mas eu quero este livro. E quero agora!

— Você está louco!

— Você não acreditou numa única palavra do que eles escreveram, não é? Eles me retrataram como um patife!...

— Pois é, eles têm um excelente senso de observação.

Era tanto barulho que parecia que eles estavam rolando escada abaixo. Quando chegaram à entrada, o Smiley olhou rapidamente para a sala. Dessa vez, não estava sorrindo. Quando viu o livro de cartas sobre a mesa, disse:

— Achei!

Reinert cobriu o livro com a mão e Aslaug se virou. Obviamente éramos seis contra um. Talvez por isso Nils tenha se atrevido a se levantar e dizer:

— E não foi Bibbi quem pegou o livro do seu quarto, Smiley. Fui eu. Eu estava no terraço quando você ligou para ela. Eu... eu quase morri de rir.

O Smiley lançou um olhar acusador para Bibbi Bokken. Parecia que lhe tinham roubado todo um sistema solar.

Ela balançou a cabeça confirmando.

— Afinal de contas, o livro era dele. Agora você poderia fazer a gentileza de sair desta casa?

Ele girou sobre os calcanhares e saiu desabalado. Mas antes ainda disse bem depressa:

— Você vai se arrepender, Bibbi.

Depois que ele bateu a porta e Bibbi Bokken voltou à sala, ela tinha um sorriso que ia de orelha a orelha.

— Esse homem trabalhou desde o começo contra o livro do jubileu — ela disse.

Pouco depois, todos os hóspedes do hotel andavam por Mundalsdalen. E éramos todos hóspedes, menos Bibbi Bokken. Quando nos despedimos, ela disse um montão de coisas em italiano para Mario Bresani. Mas, assim como o encantamento da Cinderela se desfez após a meia-noite, de repente eu tinha perdido a capacidade de entender essa língua.

A tempestade passara. As estrelas brilhavam entre as altas montanhas e podíamos olhar para longe no espaço.

Certo dia no passado, nesse planeta foi impresso um almanaque.

Não invejei Berit por ser ela quem escreveria a solução do mistério. Não tínhamos nenhuma fita gravada ou coisa parecida, e não eram poucos os fios que Bibbi Bokken tinha atado naquela conversa. Mas nós dois achamos que era Berit quem deveria fazer isso. Ela tem mais controle sobre os seus pensamentos do que eu, por assim dizer. Além disso, Bibbi Bokken é uma excelente preparadora de texto. Na edição de um livro, o preparador tem a função de criticar, fazer sugestões e colocar questões complicadas para os autores. Agora sabemos disso, pois estamos trabalhando no ramo editorial.

Mas um fio importante ficou para mim. Esse fio se chama Marcus “Smiley” Buur Hansen e dele não podemos esperar nenhuma ajuda. Ele é o vilão desse livro e vilões são a minha especialidade. Sigam-me!

 

Eu estava com bastante medo quando voltamos para o hotel. O livro de cartas estava comigo, e eu tinha certeza de que o Smiley já descobrira qual era o meu quarto e estava apenas esperando o momento em que eu estivesse sozinho para vir para cima de mim e roubar o livro mais uma vez. Cheguei a pensar em dá-lo a Berit, mas isso eu não ia fazer. Não sou do tipo que transfere seus problemas para mulheres (garotas) indefesas.

Disfarcei o medo e me senti valente como o Leitão, quando a casa do Corujão é derrubada pela tempestade e o porquinho amedrontado vai se equilibrando por uma cordinha até a caixa do correio para ir buscar ajuda.

Quando estávamos na recepção, depois que Reinert e Aslaug Bruun nos deram boa-noite, reparei que a vigia noturna olhava para Berit como se ela fosse uma terrorista que poderia jogar uma bomba no hotel a qualquer momento. Mas ela não disse nada. Pedi a minha chave e pensei num final bem legal para o livro:

“O jovem herói, Nils Bøyum Torgersen, morre numa heroica luta para salvar o livro que escrevera como coautor. Sem pensar em sua própria segurança, ele se sacrifica pela liberdade de opinião”.

Dei uma olhada para Berit e Bresani, e vi que Bresani gesticulava exaltado e apontava para mim. Por um instante desesperado, me perguntei se aquilo também não tinha sido planejado. Talvez Bresani estivesse tentando explicar a Berit que seria um formidável final para o livro se um dos protagonistas morresse lutando contra o vilão. Então me dei conta de que não haveria livro nenhum se ele caísse nas mãos do Smiley. Pelo menos não um livro com o Smiley no papel de vilão.

Tentei sorrir, e já ia pegar a chave para subir a escada e me entregar ao meu tenebroso destino quando Berit disse:

— Você não pode ir com o livro para o seu quarto. O Smiley pode aparecer mais tarde. Com certeza, ele sabe onde você vai dormir.

— Já lutei com fantasmas piores — eu disse, e notei que estava tremendo.

Berit riu.

— Mas por dentro você não é tão durão quanto por fora, não é, Nilsinho?

Ela tinha percebido tudo, como se eu fosse transparente. As garotas sempre fazem isso.

— O que devo fazer então? — perguntei um pouco irritado.

— Trocar de quarto com Mario.

Ela ainda nem tinha acabado de falar e eu já tinha percebido que se tratava de um plano simples e genial. Quando o Smiley entrasse sorrateiramente no quarto para roubar o livro de cartas, não encontraria na cama um garotinho norueguês, e sim um homenzinho italiano. Mas se ele encontrasse o homenzinho italiano na cama do garotinho norueguês, então o homenzinho...

— Mas e o Mario? — perguntei.

Ele estava olhando para a minha boca. Embora Mario Bresani não falasse norueguês, ele sabia “ler” diversas línguas além do italiano. De repente ele estendeu a mão para mim, e no instante seguinte parecia que eu estava voando. Dei um gracioso salto mortal, controlado pelo braço peludo de Mario Bresani.

Estava convencido de que ia me esborrachar com o nariz no chão, mas Mario me segurou elegantemente em seus braços, como se eu fosse um bebezinho. Foi um pouco constrangedor.

Ele me colocou de novo no chão e sorriu com seus dentes brancos como o giz.

— Judò — ele disse.

Eu estava perturbado e aliviado ao mesmo tempo. Trocamos de chave e mudamos as bagagens de quarto. Dei boa-noite a Berit, fui para o quarto e adormeci quase instantaneamente.

Sonhei que lutava contra o Smiley na final do campeonato mundial de judô. Foi uma luta dura, e o Smiley gritava e rugia a cada vez que eu o derrubava. Fui acordado por alguma coisa que pensei ser o apito do juiz, mas era Berit ao telefone dizendo que eu precisava me levantar imediatamente, se quisesse tomar café da manhã. A barca partiria dali a uma hora.

Quando passei pelo quarto 151, ouvi fortes pancadas do lado de dentro.

— Bresani! — gritei. Eu ainda não tinha acordado direito, e tinha me esquecido de que ele era surdo. Mas o homem atrás da porta não era Bresani. As batidas pararam e ouvi aquela inconfundível voz melosa tentando soar amável.

— Ah, é você, Nils? — disse a voz. — Por favor, abra a porta. Eu gostaria de lhe fazer uma oferta.

— Uma oferta muito compensadora, não é? — gritei.

— Isso mesmo — respondeu o Smiley com voz de manteiga derretida. (Não gosto de manteiga.)

— Sinto muito — eu disse. — Agora estou a caminho da editora com o livro sobre a biblioteca mágica de Bibbi Bokken.

Eu devia ter mordido a língua. Não poderia ter dito coisa mais idiota. Agora ele sabia para onde estávamos indo. Pelo menos, eu não havia revelado o endereço da editora.

Saí correndo pelo corredor e ainda ouvi os estrondos e palavrões do Smiley, que se arremessava contra a porta trancada.

Berit e Bresani estavam sentados no restaurante. Eu não estava com muito apetite.

— Smiley — eu disse, apontando para o teto.

Bresani pegou um ovo e o jogou para cima. Então o pegou no ar e bateu com ele em cima da mesa, fazendo a casca arrebentar. Pareceu um pouco macabro, mas eu sabia que ele não tinha esmagado o crânio do Smiley.

— Judô? — eu perguntei.

Bresani fez que sim, pegou uma chave do bolso e a balançou na nossa frente. Não era preciso dizer nada. Ele olhou para o relógio e se levantou.

— E adesso, avanti, amici miei! — ele disse.

Entendemos que estava na hora de abandonar o local do crime.

Bresani nos acompanhou até a barca. Quando íamos embarcar, o Smiley chegou correndo. Pelo jeito, ele tinha conseguido arrombar a porta. Mas não parecia estar muito bem. Seus cabelos estavam desgrenhados, e um braço pendia frouxo e imóvel ao longo do corpo.

— Avanti — exclamou Bresani mais uma vez. — Forza!

Corremos para a barca.

Quando olhamos para trás, Bresani tinha se virado. Ele estava de braços abertos como se fosse abraçar calorosamente o homem que vinha correndo. O Smiley parou a dez metros do calígrafo e faixa preta italiano. Berit acenou para ele.

— Levantar âncora — ela gritou.

— Você está maluca? — sussurrei, mas ela apenas riu.

— Ele não virá — ela disse.

E tinha razão. Como sempre. O Smiley parecia petrificado olhando para Bresani. Embora ele estivesse muito longe para podermos ouvi-lo, tenho certeza de que estava praguejando. Bresani deu um passo na direção dele.

O Smiley deu um salto, fez meia-volta e voltou galopando para o hotel.

Bresani virou-se e acenou para nós. Nós acenamos para ele também, enquanto a barca deixava o cais de Fjærland rumo ao derradeiro capítulo.

 

Quando o trem chegou a Oslo, era muito tarde para ir à editora. Para grande alegria dos meus pais, Berit passou a noite conosco, e na manhã seguinte tomamos um táxi.

Eu nunca tinha estado numa editora antes, mas imaginava uma espécie de casa encantada com salas escuras e longos corredores, pelos quais perambulavam homens com calças de veludo e óculos de tartaruga, mulheres com boinas e capas esvoaçantes, todos lendo grossos livros e murmurando coisas consigo mesmos. A realidade era um pouco diferente.

Encontramos o endereço que Bibbi Bokken tinha nos dado, e descemos do táxi na frente de um edifício gigantesco em pleno centro da cidade. Se eu não soubesse, diria que era sede de uma companhia de seguros, e não uma editora. Mas em certo sentido era isso mesmo. Uma editora assegura nosso cérebro contra ressecamento.

Nosso primeiro problema foi encontrar a entrada. Demos duas voltas ao redor do edifício, mas só encontramos diversas entradas de serviço. Todas trancadas, é claro. No final, pedimos informação no ponto de táxi da esquina, e um motorista gordo e muito simpático, que estava no final da fila, levou-nos até a única porta que ainda não havíamos tentado abrir.

Entramos numa espécie de recepção, onde uma mulher olhava para nós de dentro de uma caixa de vidro. Parecia que estávamos na bilheteria do cinema.

— Duas crianças para a editora — eu disse.

— Não entendi muito bem.

— Nós escrevemos um livro — disse Berit.

— Um livro?

Berit fez que sim.

— Vocês têm certeza? — perguntou a mulher, que parecia estar segurando uma risada.

— Mais ou menos — murmurei.

— Sim — disse Berit corajosamente. — Certeza absoluta. Nós...

Felizmente fomos poupados de maiores explicações, pois nesse momento uma senhora baixinha e jovial saiu do elevador e veio até nós.

— Berit Bøyum e Nils Torgersen Bøyum? — ela perguntou.

Confirmamos com a cabeça, emudecidos.

A mulher estendeu a mão e sorriu satisfeita.

— Estávamos esperando por vocês — ela disse. — Eu me chamo Gerda Lothe e sou a responsável pela programação da editora.

Ela nos levou até o elevador, que então subiu até o sexto andar.

Havia uma cantina e alguns corredores que conduziam a um grande número de salas.

— A minha sala fica ali atrás — ela disse, apontando para um corredor. — Se precisarem de alguma coisa, falem comigo. Ele já está esperando por vocês. Segunda porta à esquerda. Podem entrar sem bater.

Ela apontou para um outro corredor.

— Vocês querem uma coca-cola?

Ele? Eu não estava entendendo mais nada.

— Sim, por favor — disse Berit.

Com nossas cocas na mão, fomos até a porta que a sra. Lothe apontara.

— Um, dois, três — disse Berit. — Lá vamos nós.

Ela abriu a porta. O homem atrás da escrivaninha levantou-se sorrindo. E em toda a minha a vida eu nunca estive tão perto de desmaiar de terror.

ERA O SMILEY!

Tentamos sair o mais depressa que pudemos, mas ele foi mais rápido que nós.

Com um pulo de tigre, ele alcançou a porta, apoiou-se contra ela e disse em voz baixa:

— Então nos encontramos novamente, meus queridos amigos.

Ele tirou uma chave do bolso e agitou-a com ar triunfante diante de nós. Achei que ele fosse engoli-la. Minhas calças tremiam tanto que eu devia estar parecendo um paraquedista. Já Berit parecia manter o sangue-frio.

— Como está o seu braço, Buur Hansen? — ela perguntou. — Andou exagerando um pouco nos treinos de judô ultimamente?

Fiquei tão impressionado que quase aplaudi, apesar de todo o medo. O Smiley apertou os olhos.

— Ah, não fale assim comigo — ele disse.

— Como não? — disse eu. — Falamos sim, nós dois...

— Feche o bico, garoto — vociferou o Smiley.

Eu fechei o bico. Às vezes, sou um garoto de poucas palavras.

Ele estendeu a mão.

— O livro — ele disse.

Sei que eu deveria ter dito “só por cima do meu cadáver”, mas continuei de bico fechado. Berit sacudiu a cabeça em sinal de recusa.

— Ele me pertence — disse o Smiley.

— Não — disse Berit. — Ele pertence a nós e à editora. Ele vai ser publicado no Ano do Livro e distribuído para as crianças da sexta série em todo o país.

— Então você poderá ter um exemplar — eu disse, um pouco idiota.

O Smiley riu. Foi a primeira vez que o ouvi rir, e não era uma risada agradável. Parecia um crocodilo resfriado.

— A senhora Bokken não contou a vocês que fui designado para ser o responsável pela divulgação do livro de vocês?

Ela tinha dito, e por isso a única coisa que pudemos fazer foi balançar a cabeça, emudecidos.

— Então, passe-o para cá!

A porta estava trancada, e ele era muito mais alto e mais forte do que Berit e eu juntos. Portanto, não tínhamos escolha.

Eu entreguei o livro. Ele se sentou atrás da escrivaninha e começou a ler. Isto é, fez de conta que estava lendo. Na verdade, ele já tinha lido tudo. Ele folheou o livro inteiro. Pulando umas dez páginas por vez. No mínimo.

— Infelizmente não é bom o bastante para publicar.

Ele pôs o futuro incunábulo em cima da mesa, colocou as duas mãos no peito e olhou para nós com um sorriso que pretendia ser triste.

— Sinto muito ter que dizer isto, mas o livro não é bom o bastante.

Essa afirmação era tão falsa quanto ele próprio, nós sabíamos disso. Mas o que podíamos fazer? Além de Berit e eu, apenas o Smiley e mais ninguém, nem mesmo Bibbi Bokken, tinha lido o livro inteiro. Ela estava convencida de que éramos capazes de escrever este livro, e tinha razão. Nós sabíamos disso, e o Smiley também sabia. Mas ele era um adulto e nós éramos crianças, e quem acredita no que as crianças dizem?

— O que pretende fazer com ele? — eu sussurrei, embora já soubesse a resposta.

— Vou guardá-lo para vocês — disse o Smiley, sorridente.

Eu estava com o coração na mão e acho que Berit também estava.

Ficamos olhando mudos para a mesa onde estava o livro, ao lado de um copo de café e um telefone. Nele havia diversas teclas numeradas, e ao lado de cada tecla tinha um nome escrito.

Então Berit fez uma coisa que na hora me pareceu uma grande burrice. Na verdade, foi a coisa mais inteligente que um nós já fez até agora, e se ela não tivesse tido essa ideia, este livro nunca teria sido publicado.

Ela se jogou sobre a mesa, pegou o livro e gritou:

— Este livro nos pertence! E você não vai ficar com ele, nem que a vaca tussa!

Então ela jogou o livro de cartas para mim.

— Corra, Nils — ela exclamou.

Aquilo me pareceu totalmente ridículo. Correr para onde? A porta estava trancada, e eu não estava com muita vontade de me jogar pela janela do sexto andar. Então fiquei parado no meio da sala, segurando o livro na mão. O Smiley veio para cima de mim imediatamente. Eu não sou nenhum faixa preta, e ele levou apenas um segundo e meio para tirar o livro de mim.

Berit não mexeu um dedo para me ajudar. Ao contrário. Ela parecia ter desistido do livro e continuava na frente da escrivaninha, de costas para mim.

Quando o Smiley voltou para a escrivaninha com o livro, ela se virou para mim e deu uma piscada. Respondi com um olhar mal-humorado.

— O jogo acabou — disse o Smiley.

— É o que parece — disse Berit lentamente. — Só tenho mais uma pergunta. Por que você odeia tanto o nosso livro? Você sabe que ele não é tão ruim quanto você diz.

Primeiro parecia que ele não ia responder, mas pelo jeito ele mudou rapidamente de ideia. Ele deu o sorrisinho de sempre e disse com sua voz de manteiga derretida:

— É verdade, minha filha. Ele não é ruim, eu digo, como produto de dois pirr... jovens como vocês.

Eu ia dizer algo de que talvez me arrependesse depois, mas Berit me deu um beliscão no braço.

— Justamente por isso — ela disse alto e bom som — queremos saber por que você não quer publicá-lo. Você foi contratado para divulgá-lo. É porque nós o retratamos como vilão?

O crocodilo tossiu novamente.

— Isso não tem nenhuma importância, minha filha — ele disse.

— Eu já tinha pensado nisso — disse Berit. — Pois se você tivesse roubado o livro do Nils porque realmente se interessa pelo nosso trabalho, não seria o vilão da história.

O Smiley parecia estar gostando daquela situação, e eu tinha a sensação de que era exatamente o que Berit pretendia.

— Pois bem — ele disse, e bebeu um gole de café. Uma gota marrom escorreu pelo seu queixo. — Posso abrir o jogo com vocês. É muito simples. Vocês já ouviram falar na Children’s Amusement Consult?

Eu fiz que sim.

— Mas não sabemos o que é — murmurei.

— É uma pequena empresa que produz vídeos de entretenimento para crianças. Sou o principal acionista.

— Conte mais — disse Berit.

Olhei para ela. Ela fez cara de quem estava impressionada. Eu não estava entendendo mais nada.

— Somos mais ou menos concorrentes do ramo editorial. — disse o Smiley. — Muitos ainda não entenderam isso, mas o tempo do livro já era. É por isso que desde o começo fui contra o projeto desse livro.

— Mas por que, por tudo o que há nesse mundo, a editora contratou você para trabalhar na divulgação do livro do jubileu? — perguntei.

— Sou um homem versátil — disse o Smiley. — Trabalhei muitos anos no ramo editorial. Coloquei meus conhecimentos à disposição deles, vamos dizer assim, e também apresentei propostas interessantes para o lançamento do livro. Até mesmo comecei a trabalhar num vídeo promocional para o livro, para o caso de não conseguir barrar esse projeto e substituí-lo pelo meu.

— Astrid Lindgren — exclamei. — Por isso você falou com Astrid Lindgren. Para que ela o ajudasse com o vídeo.

O Smiley fez que sim.

— Sim, mas ela disse que não era a especialidade dela. E ela tinha razão, é claro.

— O que você quer dizer com “seu projeto”? — Berit perguntou.

O Smiley esfregou as mãos.

— Meu projeto é substituir o livro do Ano do Livro por um filme comemorativo. Um filme divertido de animação, que mostrará a evolução da arte tipográfica até a moderna produção de vídeo. O título provisório é Da letra à fita. Já entrei em contato com um desenhista italiano de histórias em quadrinhos.

Eu tinha um estalo após a outro.

— Por isso você esteve na Itália!

— Sim, mas não foi por isso que eu estive lá na mesma época que você. Quando li a revista que falava da viagem de uma tal Ingrid Bøyum e sua família, pensei que poderia matar dois coelhos com uma cajadada só. Imaginei que você levaria o livro. Talvez eu conseguisse pegá-lo... e depois tivesse o azar de perdê-lo.

— Você me seguiu!

— Prefiro dizer que eu mantive você sob as minhas vistas.

— Que relação você tem com Bibbi Bokken? — perguntou Berit.

Parecia um interrogatório, mas o Smiley pelo jeito não estava percebendo.

— Bibbi Bokken — disse ele lentamente — é um fóssil. Eu a conheço desde o tempo da universidade. Ela cursava biblioteconomia e eu economia. Éramos amigos...

Ele parou no meio da frase.

— Mas agora acabou — disse Berit.

— Correto, nossas opiniões foram ficando cada vez mais divergentes. Ela foi totalmente contra o que propus para a divulgação deste livro, e eu não gostei nada de ser ela a responsável pelo texto.

— E quanto ao Café Skalken? — perguntei. — Como é que você sabia que estaríamos lá?

— Isso foi um problema. Naturalmente, eu tinha entrado em contato com o seu professor para me informar sobre os progressos do jovem autor. Aslaug Bruun me contou onde vocês iriam se encontrar. Fui até lá e me escondi...

— ... atrás de um jornal — eu disse.

— Exatamente.

— E por isso você também visitou o casal Bruun no dia em que eu estive lá?

— Você não é tão bobo quanto parece, meu jovem. Eu fingi estar muito preocupado com a qualidade do livro. Eu perguntei se você escrevia bem.

— E o que o professor Bruun respondeu? — eu perguntei.

— Ele disse que você não era nada mau, mas que ainda não sabia controlar a sua fantasia.

De repente, ele fez uma cara furiosa.

— Foi uma idiotice de vocês — disse o Smiley — não querer escutar a oferta que eu queria lhes fazer em Fjærland.

— Que oferta? — Berit olhou fixamente para ele.

— Eu ia propor que vocês cedessem todos os direitos autorais do livro em troca de uma porcentagem sobre a renda do vídeo. Mas agora infelizmente é tarde demais.

Ele se recostou confortavelmente na poltrona da sua escrivaninha e olhou para o teto.

— Já acabou? — perguntou Berit.

— Não — disse o Smiley. — O que acabou é a brincadeira de vocês.

— Eu não teria tanta certeza disso — disse Berit.

O Smiley ia dar uma resposta, mas nesse momento ouvimos passos apressados do lado de fora. A porta se abriu, e ali estava Gerda Lothe ao lado de um homem que parecia bastante furioso.

O Smiley tentou ficar com o livro, mas Gerda Lothe se antecipou rápida como um raio.

— Suponho que este seja o livro — ela disse e sorriu para nós. — Este é o nosso diretor. Ele quer conhecer vocês.

O diretor parecia ter se acalmado quando nos estendeu a mão.

— Foi realmente muito sagaz — ele disse. — Qual dos dois teve a ideia?

— Acho que fui eu — disse Berit, tentando parecer modesta.

Nos últimos segundos, o queixo do Smiley tinha caído até os joelhos. Ele olhou atônito para Berit.

— Que ideia?

Berit deu um sorriso doce.

— Quando você foi para cima de Nils para tirar o livro dele, eu apertei uma tecla no telefone. Ao lado dessa tecla, estava escrito “Gerda Lothe”. Isso não foi tão idiota assim, foi?

— Não — disse Gerda Lothe. — Foi uma conversa interessantíssima.

Berit piscou para mim. Eu quase dei um beijo nela.

 

E agora estamos aqui sentados na sala do Smiley. Não faço ideia de onde ele se enfiou. E na verdade nem quero saber. Talvez ele tenha ido para a Itália e esteja por lá tentando desbaratar a arte tipográfica. Nesse caso, encontrará em Mario Bresani um adversário digno.

 

Com a ajuda de Bibbi Bokken, vamos finalizando o nosso livro de cartas. Ela nos ajuda a formular as frases e nos diz como certas coisas se chamam. Ela também ajuda os autores com a ortografia. E isso muitas vezes é necessário. Sobretudo no caso deste autor aqui.

No que diz respeito à linguagem, Bibbi Bokken não deixa tudo nas nossas mãos. Considerando que somos crianças, ela diz que ainda temos muito a aprender, mas que ela também tem muito a aprender conosco. Assim é Bibbi Bokken. Uma verdadeira amante de livros.

E já não há mais o que dizer. Precisamos terminar. Já estamos no final de outubro e o livro será publicado em abril.

Ainda é preciso encontrar um ilustrador para fazer o desenho da capa. E o pessoal da produção vai definir o formato do livro e o tipo de letra (Sabon e Berkeley Old Style são inofensivos tipos de letra, e não os monstros que achei que eram. Na verdade, era apenas a proposta do Smiley para o caso de o livro ser publicado contra a sua vontade. E vai ser, mas ele deverá ser composto em Palatino 11/13 pts).

Nosso livro será finalmente entregue a um diagramador, que vai compor o texto no computador, no tipo e no tamanho certo de letra. Depois ele será impresso numa impressora a laser e enviado ao revisor, que corrigirá as falhas que surgiram na digitação. Também a autora e o autor lerão tudo mais uma vez. E por fim a editora enviará as páginas prontas para a gráfica.

E agora chegamos ao fim. Acho um pouco triste, mas só um pouco. Acho que Berit está maquinando alguma coisa... Ela está sempre fazendo anotações no seu bloco. Talvez um dia ela escreva um livro sobre como eu e ela escrevemos o livro sobre Bibbi Bokken ou desvende os novos crimes de Marcus Buur Hansen. Ou quem sabe ela descobrirá um tesouro misterioso sob a geleira de Jostedalsbreen, ou então desmascare a verdadeira assassina da Cidade da Carne. Não, isso não, afinal essa historia é minha. Se ela escrever isso, vou processá-la por me imitar. Isso se chama plágio, e é proibido.

De resto, não acredito que eu vá ser escritor quando crescer. Tenho mais vontade de ser um jogador de futebol, que aos trinta anos escreve sua própria biografia. Não! Eu não vou escrevê-la. Vou contar a minha vida para Berit e contratá-la para escrever. Acho que ela gostaria disso. Mas agora estou falando besteira. Não sei nada sobre o futuro e estou realmente feliz por isso. Só sei que a maioria dos livros ainda não foi escrita, e que em vinte e seis letras há mais coisas ocultas do que na cabeça de qualquer pessoa neste mundo. O que é uma ideia legal. E, quem sabe, talvez neste exato segundo esteja caindo uma carta da bolsa de uma misteriosa mulher vestida de vermelho. E talvez uma garota recolha a carta e sinta uma estranha sensação de tremor em todo o corpo.

E essa sensação eu conheço. Ela se chama INSPIRAÇÃO!

 

 

                                                                  Jostein Gardeen

 

 

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