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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CAMINHO DE JERUSALÉM / Jan Guillou
A CAMINHO DE JERUSALÉM / Jan Guillou

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O ANO DA GRAÇA de 1150, quando os hereges sarracenos, a escória da terra e a guarda avançada Tio Anticristo infligiam aos nossos muitas derrotas na Terra Santa, o Espírito Santo desceu sobre a senhora Sigrid e deu a ela uma revelação que mudou sua vida.

Talvez se possa dizer, também, que essa revelação conduziu a uma situação que encurtou sua vida. Com certeza sabemos que ela jamais voltou a ser a mesma. Menos certo é aquilo que o monge Thibaud escreveu muito mais tarde, de que, no momento em que o Espírito Santo apareceu diante de Sigrid, surgiu na realidade o que seria o início de um novo reino na Escandinávia, ao norte da Europa, reino que mais tarde viria a se chamar Suécia.

Tudo aconteceu durante a Festa de São Tibúrcio, em meados de abril, num dia que passou a ser considerado como o primeiro dia de verão e em que o gelo começava a derreter na província de Götaland Ocidental. Nunca antes se juntou tanta gente num dia como esse em Skara, isso porque a missa não era uma missa comum, mas a que iria assinalar, finalmente, a inauguração da nova catedral.

As cerimônias já decorriam na sua segunda hora. A procissão já dera três voltas à igreja, num ritmo infinitamente lento, pelo fato de o bispo õdgrim ser muito velho e se arrastar, como se cada passo fosse o seu último. Além disso, ele parecia um pouco confuso, pois leu a primeira oração em linguagem popular em vez de em latim:

“Meu Deus, Tu que invisivelmente cuidas de tudo,

mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível,

assume esta Tua casa e domina neste templo,

assim, todos aqueles que se reúnem aqui para rezar

vão poder receber o Teu conforto e ajuda.”

 

 

 

 

E naquele momento, sem dúvida, Deus fez visível Seu poder, quer tenha sido para gáudio das gentes ou por qualquer outro motivo. Foi um espetáculo que ninguém jamais vira em toda a Götaland Ocidental, foram as cores brilhantes da roupagem dos bispos, em seda vermelho-escura, com listras douradas e azul-claras, foram os aromas estonteantes dos incensórios à volta dos quais os cachorros giravam, e como eles balançavam, e foi a música tão celestial que nenhum ser na Götaland Ocidental podia ter ouvido antes coisa semelhante. E ao olhar para cima era como se a gente visse o céu, se bem que estávamos sob o teto da igreja. Era incompreensível que até mesmo os construtores borgonheses e ingleses pudessem ter erguido claustros tão elevados sem que tudo não caísse de uma vez, se não por outro motivo, por Deus ter ficado zangado diante da pretensão de tentar construir qualquer coisa até lá em cima, até Ele.

A senhora Sigrid era uma mulher prática. Alguns, por isso mesmo, achavam que ela era durona. Ela não teve nem um pouco de vontade de se meter a caminho e fazer a difícil viagem para Skara, porque a primavera chegara cedo e os caminhos ficaram um lamaçal só e ela se preocupou diante da idéia de se sentar numa carruagem, balançando de um lado para o outro, no abençoado estado em que estava. Mais do que qualquer outra coisa na vida terrena, ela receava o nascimento para breve da sua segunda criança. E sabia muito bem que, tratando-se da inauguração de uma catedral, isso significaria ficar de pé no chão de pedra e, de vez em quando, ajoelhar-se para rezar, o que para ela, no seu estado, seria uma tortura. Ela era bem versada, certamente melhor do que a maioria dos fidalgos e das filhas deles à sua volta nesse momento, no que dizia respeito às muitas regras da vida religiosa. Essa capacidade ela não tinha obtido pela fé ou por vontade própria. Mas, quando tinha dezesseis anos, seu pai, não sem uma boa razão, chegou à conclusão de que ela nutria um interesse exagerado por um parente da Noruega, de berço excessivamente menor, um interesse que só poderia resultar em casamento. Foi assim que, severamente, seu pai encarou o problema. E assim ela foi mandada durante cinco anos para um mosteiro na Noruega, e teria ficado por lá para sempre se não tivesse recebido de uma tia sem filhos uma herança na província de Götaland Oriental e, por essa razão, ter se transformado em alguém que podia casar, não importando com quem, de preferência a ficar enclausurada num convento.

Ela sabia, portanto, quando devia ficar em pé e quando devia ajoelhar-se, quando devia balbuciar com os outros o padre-nosso e a ave-maria, sempre que algum dos bispos, lá na frente, indicava e quando as pessoas deviam fazer suas próprias orações. Todas as vezes que ela fazia suas orações silenciosamente, pedia por sua vida.

Deus lhe dera um filho três anos antes. E ela demorara dois dias para dar à luz esse filho. Por duas vezes o sol nasceu e se pôs, enquanto ela ficava banhada em suor, em angústia e em dores. Foi então que soube que iria morrer, e todas as boas mulheres que a ajudaram, no final, também sabiam que isso iria acontecer. Foram elas que mandaram chamar o padre lá em Forshem, e foi ele que lhe deu a absolvição por todos os pecados e a extrema-unção.

Nunca mais, esperava ela. Nunca mais aquela dor, nunca mais aquele pânico da morte, pediu ela em sua oração. Mas essa era uma maneira egoísta de pensar, isso ela sabia muito bem. Era bem comum as mulheres morrerem na cama ao dar à luz. E ela sabia que os seres humanos teriam que nascer na dor. Mas cometeu o erro de rezar para a Virgem Maria para que a poupasse, justo ela, e ela tentaria cumprir seus deveres matrimoniais de forma que isso não conduzisse a uma nova gravidez. O filho deles, Eskil, sobrevivera e era uma criancinha bem constituída e esperta, com todas as qualidades que qualquer criança deve ter.

A Virgem Maria, certamente, a havia punido. O dever das pessoas era encher o planeta, portanto, como é que se poderia esperar que a sua prece fosse atendida quando ela pretendia escapar dessa responsabilidade? E, assim, ela esperava novas dores, isso era certo. E ainda, mais uma vez, muitas vezes, ela pediu para que mais uma vez sobrevivesse sem graves conseqüências.

Para escapar, pelo menos, à tortura muito menor, mas incômoda, de, por muitas horas, ficar em pé e se ajoelhar, levantar-se e logo se ajoelhar novamente, ela deixou que Sot, a sua criada, fosse batizada para que pudesse ir com ela e entrar na casa de Deus, ficar com ela a seu lado para lhe dar apoio na hora de abaixar-se e levantar-se. Os olhos grandes e negros de Sot ficaram paralisados, como se fossem os olhos amedrontados de um cavalo, por tudo o que ela pôde ver, e se ela antes não era cristã de verdade, então, agora, devia passar a ser.

Três metros à frente de Sigrid, estavam o rei Sverker e a rainha Ulvhild. Ambos eram muito pesados pela idade e, assim, tinham muito mais dificuldades para, sem excessivos gemidos ou ruídos impróprios saídos pelo traseiro, levantar-se e cair de joelhos. No entanto, foi por eles e não por Deus que Sigrid se encontrava na catedral. O rei Sverker não considerava muito bem os ancestrais noruegueses ou da Götaland Ocidental dela, nem os do seu marido. E, agora, já bastante idoso, o rei ficou tão desconfiado quanto preocupado com sua vida depois da morte. Deixar de comparecer à grande inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar mal-entendidos. Se o homem ou a mulher desagrada a Deus, eventualmente a coisa pode ser resolvida direto com Ele. Já contrariar o rei seria para Sigrid muito pior.

Mas, lá pela terceira hora, começaram as tonturas na cabeça de Sigrid, e cada vez a situação piorava, na decorrência do eterno exercício de cair de joelhos e levantar-se, com a criança dentro dela, chutando-a e se mexendo cada vez mais, como se quisesse protestar. Ela teve a sensação de que o chão de lajes amarelo-claras e polidas começava a balançar sob seus pés, e que começava a rachar, como se quisesse abrir-se e, de repente, sugá-la. Foi então que ela fez algo nunca visto nem contado. Partiu resoluta, com as sedas farfalhando, e sentou-se em um pequeno banco lá longe na nave lateral. Todos viram o acontecido, o rei também.

Justo no momento em que ela, aliviada, se deixou cair no pequeno banco de pedra junto da parede da igreja, entraram em procissão na igreja os monges de Lurõ. Sigrid enxugou o suor na testa e no rosto com um lencinho de linho e fez para seu filho, que estava lá longe com Sot, um aceno estimulante.

Então, os monges começaram a cantar. Tinham avançado por toda a nave central, de cabeça baixa, como se estivessem em oração, e foram colocar-se bem lá na frente junto ao altar, de onde os bispos e seus ajudantes estavam se retirando. Primeiro, escutou-se apenas algo como um murmúrio, fraco e surdo, e depois, de repente, vozes agudas juvenis; isso mesmo, uma parte dos monges de Lurõ tinha capas marrons e não brancas, e era claramente bem entendido que se tratava de rapazes de pouca idade e suas vozes subiam como se fossem pássaros brancos esvoaçando em direção ao enorme teto da nave, e quando as vozes alcançaram seu ponto mais elevado, enchendo toda a grande nave surgiram as vozes graves e adultas dos próprios monges que cantavam ora em compasso ora em descompasso. Sigrid já tinha escutado cantos em duas ou três vozes, mas neste caso o canto estava sendo apresentado em pelo menos oito vozes. Parecia um milagre, uma coisa que não poderia acontecer, uma vez que três vozes já era muito difícil de conceber.

Sigrid olhava fixa e exaustivamente, de olhos arregalados, para o lugar onde acontecia o milagre, e escutava com todo o seu ser, com todo o seu corpo, de tal maneira que entrou em transe, estremecendo de tensão, e então ficou tudo escuro diante dos seus olhos e ela não mais podia ver, apenas escutar, como se os ouvidos tirassem dos olhos a potência toda para só escutar. Era como se ela tivesse desaparecido, como se tivesse se transformado em sons e em parte de toda a música sagrada, mais bonita do que qualquer outra melodia apresentada nesta vida.

Um momento depois, ela voltou aos seus sentidos normais pelo fato de algo ter tocado sua mão, e quando levantou os olhos descobriu que era o próprio rei Sverker.

Este dava uns tapinhas delicados na sua mão e agradecia a ela, ironicamente, porque ele, de fato, era bem idoso, e bem precisado estava que uma mulher em estado interessante se antecipasse a ele e se sentasse. Se uma mulher abençoada podia sentar-se, também o rei podia, queria ele dizer. Mas, se a ordem dos acontecimentos fosse inversa, isso, claro, já não iria parecer tão bem.

Sigrid conteve decididamente a intenção de contar aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou, se contasse a história, poderia parecer que ela estava se fazendo de importante. Os reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém corta a cabeça deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira rápida a conclusão a que tinha chegado.

Era a respeito, como certamente o rei já sabia, da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. Sua parente Kristina, que acabara de se casar com um tal de Erik Jedvardsson, um homem ambicioso, reclamara metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ precisavam de um lugar com invernos menos rigorosos. Uma grande parte do que plantavam acabava se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à grande generosidade do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela, Sigrid, desse agora Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a dádiva e declará-la legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido. Todos iriam ganhar com a solução.

Ela havia falado rápido e em voz baixa e ficou ofegante, o coração continuando a bater forte, tal como no momento em que escutava a música celestial e a escuridão se transformou em luz.

O rei, primeiro, pareceu ficar surpreso. Ele mal estava acostumado a que os homens à sua volta falassem com ele direto e sem os cerimoniosos rodeios habituais. Muito menos as mulheres.

— Você é uma mulher abençoada em muitos aspectos, minha cara Sigrid — disse ele, finalmente, com palavras lentas e pegando de novo a mão dela. — Amanhã, quando já tivermos dormido no castelo depois do banquete de hoje, irei chamar o padre Henri e aí vamos resolver toda essa história. Amanhã, mas não hoje. Também não ficará bem continuarmos aqui nós dois, sentados durante muito mais tempo a sussurrar.

De um momento para o outro, ela tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher, poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei, assim como o rei jamais poderia quebrar a sua palavra. Aquilo que ela fizera ninguém jamais poderia desfazer.

Mas foi também uma atitude prática, entendeu ela, quando se recuperou um pouco. O Espírito Sinto podia, portanto, ser prático, e os caminhos do Senhor nem sempre eram tortuosos.

Varnhem e Arnäs distavam uma da outra quase dois dias de marcha a cavalo. Varnhem estava situada perto de Skara, não muito longe da residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na margem leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava o de Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais nova e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar lá o tempo mais frio, em especial quando as terríveis dores do parto estivessem para chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca conseguiram chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do problema com a calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher.

Arnäs precisava ser reequipada e reconstruída. Mas estava localizada numa área-limite, ao longo da floresta, sem donos, onde havia muitos terrenos livres e outros pertencentes ao rei, com possibilidades de negociação ou compra. Nessa propriedade muita coisa poderia ser mudada para melhor, em especial se servos e ferramentas fossem transferidos de Varnhem.

Não foi exatamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o assunto quando fez Sua aparição perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava bem clara, uma manada de cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que lembravam a madrepérola. Os cavalos haviam chegado, correndo na sua direção, perto de uma lagoinha com muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as caudas desdenhosamente levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis como gatos. Era um prazer vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos selvagens nem cavalos sem dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por trás dos cavalos brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando num cavalo prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente levantada. Ela conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele portava escudo, mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer como sendo de qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo era totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais.

O jovem refreou o seu cavalo bem junto dela e falou com ela, e ela ouviu todas as palavras, entendeu tudo, mas ao mesmo tempo não entendeu nada. Mas Sigrid sabia que o que ele disse significava que ela teria de dar a Deus um presente, que, no momento, era a atitude mais necessária, neste condado, onde o rei Sverker reinava, isto é, dar um bom lugar para os monges de Lurõ.

Mais tarde, ela observou bem os monges, à medida que saíam lentamente, após a sua longa apresentação. Não pareciam nem um pouco perturbados pelo milagre que tinham acabado de provocar. Parecia mais como se eles tivessem terminado um turno de trabalho, de quebrar pedra, um entre tantos outros turnos na Götaland Ocidental, como se eles, agora, estivessem pensando mais na ceia do que em qualquer outra coisa. Tinham conversado por um momento, coçado por um momento as manchas vermelhas que muitos deles exibiam nas carecas grosseiramente raspadas. Em muitos a pele era enrugada no rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ, qualquer um podia ver isso, e o inverno, certamente, não lhes fora muito benigno. Portanto, a vontade de Deus não era difícil de entender, aqueles que conseguiam cantar milagres precisavam receber um lugar melhor para viver e para trabalhar. E Varnhem era um lugar muito bom.

Quando saiu pela escada da catedral, sua mente clareou por efeito do vento fresco que soprava, e ela entendeu, num golpe repentino de inspiração, quase como se estivesse ainda possuída pelo Espírito Santo, o que e como devia dizer para o marido que vinha na sua direção naquela confusão toda, com os mantos no braço. Ela examinou-o, com um sorriso meio discreto, mas totalmente seguro. Ela mantinha essa relação porque ele era um marido tranqüilo e um pai extremoso, embora não fosse o tipo de homem para ser venerado ou admirado. Era difícil acreditar que ele, de fato, fosse neto de um homem totalmente diferente, o fortíssimo Folke, o Gordo. Magnus era um homem magro e, se não fossem as roupas estrangeiras que no momento ele vestia, as pessoas poderiam dizer que se tratava de um qualquer no meio da multidão.

Quando chegou à sua frente, ele fez uma vênia e pediu a ela para pegar seu manto enquanto ele envolvia o próprio corpo com o seu grande manto azul-celeste, forrado com pele de marta, prendendo-o ao pescoço com uma fivela norueguesa de prata. Depois, ajudou-a, ensaiando uma carícia com suas mãos delicadas, que não eram as mãos de um guerreiro, e perguntou como é que tinha podido agüentar por tanto tempo as louvações ao Senhor no seu bem-aventurado estado. Ela respondeu que não tinha passado por nenhuma dificuldade, já que, em parte, tinha trazido Sot para ampará-la e, por outro lado, o Espírito Santo dignou-se aparecer para ela. Disse isso de uma maneira que costumava usar quando dava a entender que não falava a sério. Ele sorriu da sua esposa, acreditando que se tratava de mais uma das habituais brincadeiras, e procurou em seguida pelo escudeiro que vinha na sua direção com a espada trazida da sala de armas.

Quando meteu a espada por baixo do manto e começou a colocá-la no cinturão, seus cotovelos ficaram por baixo do manto, o que fez com que seu corpo parecesse largo e forte, coisa que ele não era.

Então, ofereceu à mulher seu braço e perguntou se ela queria dar uma voltinha pela praça diante deles e ver o espetáculo ou queria ir imediatamente descansar.

Sigrid respondeu logo que gostaria de esticar um pouco as pernas, sem precisar cair de joelhos a toda hora, e ele sorriu timidamente de mais essa piada atrevida dela e comentou que seria até divertido ver todos esses jogos para os quais o rei os convidou. No centro da praça atuavam acrobatas franceses e um homem que vomitava fogo, tocavam-se flautas e gaitas e, mais além, de uma das grandes barracas de cerveja escutava-se o som surdo de tambores.

Os dois avançaram cuidadosamente entre a multidão onde os mais conceituados visitantes da igreja agora se misturavam com o povo e os servos. Depois de um curto momento, ela inspirou profundamente e disse tudo de uma vez, sem desvios:

— Magnus, meu querido marido, espero que você possa se manter superiormente calmo e digno, ao escutar agora aquilo que acabo de fazer — começou ela e, fazendo nova inspiração, continuou rápido, antes que ele tivesse tempo de responder: — Dei a minha palavra ao rei Sverker de que ofereceria de presente aos monges cistercienses de Lurõ a nossa propriedade de Varnhem. Jamais poderei retirar a minha palavra dada ao rei, é irrevogável. Vamos nos encontrar com ele amanhã no castelo, para que isso seja escrito e ratificado com o sigilo real.

Tal como havia previsto, ele parou de repente e olhou primeiro para o rosto dela, inquiridor, procurando por aquele sorriso que ela exibia ao falar brincando, à sua maneira toda especial. Mas ele entendeu logo que ela falava sério e, então, a raiva se apossou dele com tal intensidade que por pouco não lhe deu uma bofetada, que seria a primeira, se eles não estivessem entre amigos e inimigos e todo aquele povão.

— Você está fora de si, mulher! Se não fosse pelo fato de ter herdado Varnhem, ainda hoje estaria apodrecendo no mosteiro. E foi por causa de Varnhem que nos casamos.

Foi no último momento que ele se conteve e acabou falando baixo, mas entre dentes, os lábios fortemente contraídos.

— Sim, isso é verdade, meu querido marido — respondeu ela, com o olhar virtuosamente abaixado. — Se eu não tivesse herdado Varnhem, os seus pais teriam escolhido outra pretendente. Nesse caso, é verdade, eu seria agora uma freira, mas é verdade também que nem Eskil nem essa nova vida que carrego abaixo do meu coração existiriam se não fosse por Varnhem.

Magnus não respondeu. Parecia estar pensando na escolha das palavras certas para expressar a sua raiva. E, nesse momento, chegou Sot, trazendo pela mão Eskil, que imediatamente correu na frente e pegou a mão de sua mãe e começou a falar rápido e alto de tudo o que tinha visto lá dentro na catedral. Depois de ter sido obrigado a ficar calado e quieto por tanto tempo, ele falava agora como se as palavras jorrassem como a água de uma represa quando é aberta na primavera, impossível de conter.

Magnus pegou seu filho nos braços, acariciou seus cabelos com amor, ao mesmo tempo que encarava a esposa com hostilidade. Mas, de repente, ele largou o menino no chão e ordenou a Sot, quase que de maneira desagradável, que levasse Eskil para ver as brincadeiras e que logo em seguida se veriam de novo. Sot, surpresa, pegou o menino pela mão e puxou-o para longe, enquanto este, contrariado, choramingava e resistia.

— Mas, como você sabe, meu caro marido — continuou Sigrid, rápido, para que fosse ela a conduzir a conversa e não deixando que ele prosseguisse, encolerizado, antes voltasse ao bom senso e à calma. — Sempre desejei receber Varnhem de presente de casamento, embora tenha sido eu que herdei a propriedade, e que consegui que a herança ficasse registrada com o sigilo real, e ainda que, para mim, bastem o manto que trago sobre meus ombros agora e apenas um pouco de ouro para me enfeitar.

— É, isso também é verdade — respondeu Magnus, ainda mal-humorado. — Mas, ao mesmo tempo, Varnhem representa um terço do nosso patrimônio em comum, um terço que agora você acaba de tirar de Eskil. O que não consigo entender é como você foi capaz de fazer uma coisa dessas, mesmo que tivesse direito a fazê-lo.

— Vamos andar devagar, na direção das brincadeiras, para não ficarmos aqui quietos, como se déssemos a entender que estamos zangados um com o outro. Eu vou explicar tudo — disse ela, oferecendo o braço para ele.

Magnus olhou em volta preocupado, reconheceu que ela tinha razão, sorriu com esforço e pegou-a pelo braço.

— Bem — disse ela, hesitante, após uns segundos. — Vamos começar pelas coisas terrenas, as que mais enchem a sua cabeça neste momento. Evidentemente, vou levar para Arnäs todos os animais e os servos. Varnhem tem, sem dúvida, as melhores construções, mas Arnäs, por isso mesmo, vai possibilitar que a gente construa a partir do terreno, especialmente agora, quando vamos receber tantas mãos para trabalhar mais. Dessa maneira, vamos ter um lugar melhor para morar, em especial durante o inverno. Mais animais significam mais barricas de carne salgada e mais peles, que agora já podemos mandar para Lõdõse de barco. Você sempre quis muito negociar com Lõdõse, e isso a gente poderá fazer a partir de Arnäs, com muito mais facilidade, tanto no inverno quanto no verão. Isso seria mais difícil de fazer a partir de Varnhem.

Magnus andava ao seu lado, silencioso e inclinado para a frente, mas ela viu que ele se tinha acalmado e começava a escutar com interesse, e então concluiu que não era mais uma questão de guerra com palavras. Viu tudo bem claro diante de si, como se tivesse levado muito tempo para planejar as coisas, quando, na verdade, a idéia toda não tinha mais do que uma hora de vida.

Mais peles e mais barricas com carne salgada para Lõdõse significavam mais moedas de prata, e mais moedas de prata significavam mais sementes. Mais sementes significavam que mais servos poderiam conquistar a sua liberdade através da preparação de novos campos para sementeira, de empréstimos em sementes pagas pelo dobro em centeio que, mandadas para Lõdõse, seriam trocadas por mais moedas de prata. E, então, seria possível encomendar as muralhas que Magnus sempre havia pensado em erguer, já que Arnäs era difícil de defender, em especial durante o inverno, quando o gelo facilitava a passagem. Através da unificação de todos os esforços em Arnäs, em vez de os partilhar por dois lugares, seria possível para eles dois ficarem mais ricos, com todos os terrenos novos compondo uma propriedade maior, edificar um lar mais quente e seguro e deixar para Eskil uma herança maior do que se poderia imaginar antes.

Quando chegaram bem na frente da multidão, tiveram que forçar a passagem, é claro, e, sem dar quaisquer sinais, Magnus se manteve silencioso e pensativo. Sot chegou aos pulos, trazendo Eskil nos braços, e levantou-o diante de si para que o povo pudesse ver as roupas dele e que, com ele nos braços, também ela, uma escrava, tinha direito a forçar a passagem, e aí o garoto pulou para o chão e colocou-se em frente da mãe que suavemente colocou suas mãos em seus ombros, acariciou sua face e corrigiu a posição do gorro cheio de penas. Os artistas diante deles estavam vestidos com roupas engraçadas, de cores fortes e com pequenas campainhas penduradas nas pernas e nos punhos, de modo que todos os seus movimentos se misturavam com o som das campainhas. Nesse momento estavam formando uma pirâmide humana, e, com um garoto muito pequeno, talvez um pouquinho mais velho do que Eskil, no final, lá bem no alto e sozinho no topo. O povo gritava alto, de terror e deslumbramento, e Eskil apontava o dedo insistentemente e dizia que queria ser artista, o que levou seu pai a explodir numa sonora e surpreendente gargalhada. Sigrid olhou disfarçadamente para ele e pensou que com aquela gargalhada o perigo já havia passado. Magnus descobriu que ela tinha olhado furtivamente e ainda sorria quando ele se inclinou para a frente e a beijou na face.

— Você é, na realidade, uma mulher especial, Sigrid — sussurrou ele, sem sinal de raiva na voz. — Pensei no que falou e você tem razão em tudo. Se juntarmos todas as nossas forças em Arnäs, vamos ficar mais ricos. Como é que um mercador poderia conseguir uma esposa melhor e mais fiel do que você?

Ela respondeu depressa e em voz baixa, com olhar submisso, que nenhuma esposa poderia ter um homem mais bondoso e mais compreensivo do que ele. Mas levantou logo os olhos, encarou-o seriamente e acrescentou que, de fato, era verdade, ela tivera uma revelação lá dentro na igreja e que todos os seus pensamentos devem ter vindo direto do próprio Espírito Santo, até mesmo os mais sensatos e que diziam respeito aos negócios.

Magnus mostrou-se um pouco mal-humorado, como que não acreditando realmente no que ela estava dizendo, quase como se ela estivesse zombando com o Espírito Santo. Ele era muito mais religioso do que ela, isso os dois sabiam muito bem. Os anos que ela passava no mosteiro não a tinham tornado mais maleável.

Quando os artistas terminaram a apresentação e saíram na direção da tenda da cerveja, para receber sua dose grátis e os bifes que bem mereciam, Magnus levantou o filho nos braços e caminhou em direção ao portão da cidade, tendo Sigrid a seu lado e Sot dez reverenciosos passos atrás. Do outro lado do cercado, esperava a carroça deles e os escudeiros. No caminho, Sigrid contou a respeito da revelação que ela teve. Relatou sensatamente, com muitas palavras, já que ela também descreveu como se deve entender o conteúdo das santas mensagens.

O primeiro parto quase provocara a sua morte e fora a Santa Mãe de Deus que a salvara, e também a Eskil, quando já estavam no limiar da morte. Era já bem conhecido que um parto difícil muitas vezes seria seguido de outro também difícil e agora estava novamente na hora. Mas através da dádiva de Varnhem ela tinha assegurado muitas preces favoráveis, mais ainda partindo de homens os mais competentes para fazê-las. Ela e a nova criança iriam sobreviver.

Mas, mais importante, evidentemente, era saber que as suas famílias reunidas iriam agora ficar mais poderosas quando Arnäs fosse reconstruída mais forte e mais rica. A única coisa sobre a qual ela estava insegura era a respeito de quem seria o jovem do cavalo prateado, com uma farta crina branca e uma cauda longa e vistosamente levantada, também branca. Que não fosse, pelo menos, o Santo, Jesus Cristo. Ele não poderia vir a cavalo naquele garanhão folgado e de escudo no braço.

Magnus ficou refém do problema, cogitou por um momento e começou depois a se questionar a respeito do tamanho dos cavalos e da maneira como se movimentavam. Depois, objetou que tais cavalos certamente não existiam. E a seguir tentou imaginar o que ela quereria dizer com o fato de o escudo ter uma cruz de sangue. Nesse caso, certamente, era uma cruz vermelha, mas como é que ela poderia saber que era sangue e não apenas tinta vermelha?

Ela respondeu que apenas sabia que era assim. A cruz era vermelha, mas de sangue. O escudo era totalmente branco. Ela não pôde reparar nas roupas do jovem, visto que seu escudo tapava o peito dele, mas, de qualquer maneira, de fato, as roupas eram brancas. Brancas como as dos cistercienses, mas monge ele não era absolutamente, visto que segurava o escudo de um guerreiro. E supostamente ele teria uma cota de malha por baixo da roupagem.

Magnus, pensativo, perguntou sobre o formato e o tamanho do escudo, mas quando soube que o “formato era de um coração, não maior do que o peito defendido, abanou a cabeça, descrente, explicando jamais ter visto esse tipo de escudo. Os escudos eram ou grandes e redondos, como os que antigamente eram levados para a guerra, ou alongados e de base triangular, de forma que os guerreiros pudessem se movimentar melhor quando colocados em grupo. Um escudo tão pequeno como esse que ela tinha visto na revelação seria mais um contratempo do que uma defesa quando usado em combate.

Mas, como simples mortal, não se podia entender tudo o que fora revelado. E à noite eles iriam rezar juntos em agradecimento pelo que a Mãe de Deus lhes mostrara como indulgência e sensatez.

Sigrid respirou fundo e teve uma grande sensação de alívio e de paz. Agora, o pior já tinha passado. Restava apenas torcer o velho soberano para que ele não tirasse dela o presente e o desse apenas em seu próprio nome. Desde que chegara à velhice, o rei começara a se preocupar cada vez mais com o número de orações rezadas diariamente por sua alma e já tinha fundado dois mosteiros para assegurar sua salvação. Todos sabiam disso, tanto seus amigos quanto seus inimigos.

O rei Sverker estava sofrendo de uma cruel ressaca e, mais ainda, furioso quando Sigrid e Magnus entraram no grande salão do castelo onde ele estava terminando um dia inteiro de decisões a respeito dos mais variados assuntos, desde se os gatunos apanhados no dia anterior no mercado deveriam ir para a guilhotina, ou se seriam enforcados ou torturados antes, até as questões de terras e heranças que não teriam sido solucionadas da maneira normal.

Aquilo que muito mais do que a ressaca o tornava ranzinza foi a notícia do dia de que o seu filho, o segundo mais novo, um canalha, o havia traído miseravelmente. O filho, Johan, saíra em campanha de saque e pilhagem na província dinamarquesa de Halland e isso, na realidade, não tinha nada de mais. Isso os jovens podiam fazer se quisessem colocar as suas vidas em risco, em vez de apenas jogarem dados. Mas ele havia mentido a respeito de duas mulheres que trouxera para casa para serem escravas. Insinuou que, supostamente, se tratava de duas mulheres estrangeiras quaisquer, que eles tinham roubado. Mas tinha chegado um documento do rei dinamarquês onde estava escrito, lamentavelmente, algo muito diferente e sobre o que ninguém duvidava. As duas mulheres eram nada mais, nada menos do que a esposa do conde dinamarquês de Halland, cavaleiro do rei da Dinamarca, e sua irmã. Tratava-se, portanto, de insulto e de ação covarde, e qualquer um que não fosse filho de rei teria imediatamente perdido a vida por tal crime. É claro, ele tinha manchado o nome das duas. Por isso, não dava nem para entregá-las de volta no mesmo estado em que foram seqüestradas. Iria custar muita prata qualquer que fosse a maneira de agir e, na pior das hipóteses, haveria guerra pela frente.

O rei Sverker e seus homens mais próximos tiveram uma discussão em voz tão alta que todos na sala logo ficaram sabendo de toda a verdade. A única coisa que ficou acertada era a de que as mulheres teriam que ser mandadas de volta. Mas a partir daí acabava o consenso. Alguns achavam que seria um sinal de fraqueza pagar a prata. Isso poderia criar idéias na cabeça do rei Sven Grate, da Dinamarca, de vir com o exército, saquear e fazer conquistas.

Outros diziam que pagar até muita prata iria sair mais barato do que enfrentar o exército e os saques, independentemente de quem ganhasse a tal guerra.

Depois de uma longa e acirrada discussão, muito rica em palavreado, o rei, de repente, com um suspiro de cansaço, virou-se para o padre Henri de Clairvaux, que estava sentado bem na frente, esperando que a questão de Lurõ fosse resolvida. O padre estava com a cabeça pendente, como se estivesse orando, e com o capuz cobrindo toda a cabeça, de tal maneira que ninguém poderia dizer se ele estava, de fato, orando ou dormindo. Em seguida verificou-se que ele estava, sim, dormindo. De qualquer forma, o padre Henri não entenderia a acalorada discussão havida e quando respondeu ao chamado do rei suas palavras pareciam muito mais latim do que a língua comum. Por isso, ninguém entendeu o que ele quis dizer. Não havia mais nenhum homem de Deus por perto, visto que estavam sendo tratadas questões mundanas e de nível corriqueiro. O rei mostrou-se furioso, olhando em volta pela sala, e rugiu, o rosto vermelho, que trouxessem um diabo qualquer que soubesse falar essa língua danada dos burocratas. Sigrid viu de imediato a oportunidade, levantou-se e avançou de cabeça baixa para a frente da sala, onde reverenciou primeiro o rei Sverker e depois o padre Henri.

— Meu rei, estou à sua disposição — disse ela, esperando em pé pela decisão real.

— Se não há nenhum homem aqui, então que seja como for; quero dizer, se não há nenhum homem aqui que saiba falar essa língua — murmurou o rei, já cansado. — Aliás, como você aprendeu essa língua, minha querida Sigrid? — acrescentou ele, num tom de voz muito mais suave.

— A única coisa que realmente aprendi durante a minha permanência no mosteiro, para minha vergonha, foi o latim — respondeu Sigrid em voz baixa, com semblante de seriedade e modéstia, embora Magnus fosse o único homem presente na sala que podia pressentir nela aquele sorriso maroto quando ela falou. Sigrid falava muitas vezes dessa maneira, isto é, dizia uma coisa, mas tinha em mente outra.

O rei, entretanto, não tinha entendido nada naquela questão do Espírito Santo e pediu de imediato a Sigrid para se sentar ao lado do padre Henri, explicar a situação para ele e, depois, solicitar seu ponto de vista sobre o assunto discutido. Ela obedeceu rápido e, enquanto ela e o padre Henri começavam uma conversa feita de murmúrios naquela linguagem que aparentemente eram os únicos a conhecer, criou-se em volta um ambiente penoso, todos os homens olhando-se intrigados uns para os outros, alguns encolhendo os ombros, outros esfregando exageradamente as mãos uma na outra e olhando para o teto. Uma mulher no conselho do rei entre tantos homens competentes, mas assim aconteceu. E aquilo que já tinha acontecido não poderia ser dado como não acontecido.

Após alguns momentos, Sigrid levantou-se e explicou em voz alta, de modo a conseguir silenciar todos os murmúrios na sala, que o padre Henri tinha considerado o problema e agora queria dizer que o mais inteligente seria obrigar o canalha a casar com a irmã da esposa. Mas a esposa deveria ser mandada de volta, com presentes e boas roupas, com bandeiras e muita música. O rei Sverker e seu filho patife devem, entretanto, dispensar o dote, daí estaria resolvido o problema da prata. Aquilo que o próprio canalha pensa a respeito do caso não precisamos levar em conta, visto que se pudermos casá-lo com a irmã da esposa, essa união pelo sangue evitará a guerra. Alguma coisa esse patife terá que pagar pela sua trapalhada. A guerra seria, sem dúvida, a solução mais cara.

Quando Sigrid terminou e se sentou, todos se calaram enquanto a assembléia pensava sobre o conteúdo da proposta do padre. Mas logo se espalhou um murmúrio de aprovação, alguém desembainhou a espada e bateu com a lâmina bem forte em cima da pesada mesa posta ao longo da parede da frente. Outros seguiram seu exemplo e em breve a sala vibrava com as batidas estridentes das armas e com isso o assunto estava resolvido.

Como Sigrid nesse momento já estava sentada bem na frente da sala, e como parecia que ela tinha compartilhado a inteligente proposta do padre Henri, o rei Sverker decidiu então que era melhor resolver também, de uma vez, a questão de Varnhem e aí fez sinal para um escrivão para que se aproximasse e lesse um documento que o rei havia encomendado, a fim de resolver legalmente o problema. Segundo a leitura do texto, no entanto, parecia que a dádiva viria somente da parte do rei.

Sigrid pediu que lhe entregassem o documento para poder traduzi-lo para o padre Henri, mas aproveitou a ocasião também para sugerir, em tom conciliatório, que talvez o senhor Magnus pudesse participar da discussão seguinte. Claro, claro, sinalizou o rei, concordando a contragosto, sentindo-se incomodado, mas fazendo sinal para Magnus se aproximar e sentar-se na frente, junto da esposa.

Rapidamente Sigrid traduziu o texto para o padre Henri, que agora tinha atirado o seu capuz pararás e tentava acompanhar o texto à medida que Sigrid o apontava com o dedo. Ao chegar ao fim da tradução, ela acrescentou rápido, de modo que parecesse que era a continuação do texto traduzido, que a dádiva era dela e não do rei, mas que ela precisava, pela lei, da aprovação do rei. O padre Henri lançou para ela um olhar rápido e um sorriso que lembravam os dela própria e abanou a cabeça, agradecido.

— Muito bem — disse o rei, impaciente, como se quisesse ver-se livre da questão —, o venerável padre Henri tem alguma coisa a dizer, ou a propor a respeito deste assunto?

Sigrid traduziu a pergunta ao mesmo tempo que fixava intensamente o olhar do monge e este não teve qualquer dificuldade em entender seus pensamentos.

— Oh, sim — começou o monge, cuidadosamente —, é uma agradável notícia para Nosso Senhor Jesus Cristo a sua oferta de mais um jardim. Mas diante de Deus, assim como diante da lei, para que as dádivas possam ser aceitas há que se saber ao certo quem é verdadeiramente o doador e quem é o receptor. É esta generosa dádiva, de fato, propriedade de Sua Majestade?

E ele fez sinal com a mão, um sinal circular, na direção de Sigrid, para que ela traduzisse. E ela cumpriu o mandado de maneira rápida e sem inflexões.

O rei ficou claramente embaraçado e lançou na direção do padre Henri um olhar retraído, enquanto o padre apenas se mostrou atencioso, como se admitisse como certo que tudo estava na mais perfeita ordem. Sigrid não disse nada, apenas aguardava.

— É, pode ser, pode ser — murmurou o rei, incomodado. — Talvez se possa dizer que por questões legais a dádiva deve vir do rei, é assim mesmo. Quero dizer, para que ninguém venha a brigar pela coisa. Mas a dádiva vem também da senhora Sigrid, que está aqui entre nós.

Como o rei hesitou antes de continuar, Sigrid aproveitou para interferir e traduzir o que ele acabara de dizer, no mesmo tom formal de antes. E então o rosto do padre Henri brilhou como se fosse pela agradável surpresa de ficar sabendo aquilo que já sabia e abanou lentamente a cabeça, onde surgiu um suave sorriso, e declarou, com palavras muito simples, mas com toda a sinuosa reverência exigida quando se trata de corrigir a realeza, que diante de Deus seria mais justo se remeter a toda a verdade, também, no documento formal de doação. De modo que se agora se escrevesse a carta substituta com o nome correto do doador e com o beneplácito e a chancela de Sua Majestade, a dádiva poderia ser considerada oficial e as orações de agradecimento iriam beneficiar por igual tanto Sua Majestade quanto a verdadeira doadora.

Não apenas a questão ficou resolvida justo dessa maneira, isto é, da forma como Sigrid desejava. Também o rei Sverker não poderia deixar de reconhecer e aceitar a modificação sugerida. Por isso, ele decidiu de imediato que fosse feito o respectivo adendo e que a dita carta deveria ser escrita tanto em linguagem comum quanto em latim, pois ele queria impor seu sigilo nela ainda naquele dia. E, sendo assim, talvez todo o mundo agora pudesse se animar mais um pouco, passando a tratar a questão de como as execuções previstas deveriam acontecer.

Também se constatou que o padre Henri e a senhora Sigrid possuíam duas almas em harmonia, ou seja, duas pessoas na terra com o mesmo senso e compreensão das coisas.

A questão de Varnhem, portanto, estava resolvida.

No dia de Filipe e Jacó, em maio, nesse dia em que o pasto devia estar bem verde e abundante, onde o gado devia ser solto para pastar sob a vigilância de seus pastores, Sigrid sentiu medo, como se uma mão fria tivesse apertado o seu coração. Ela teve a sensação de que as dores do parto estavam chegando. Mas a sensação desapareceu tão rápido, que logo ela pensou que tudo tinha sido apenas sua imaginação.

Ela estava passeando com Eskil pela mão, descendo até o córrego onde os monges e seus irmãos de fé colocavam no lugar uma enorme roda de moinho, com a ajuda de blocos e cordas e muitos animais de tração. Tinham empedrado o córrego, fazendo-o mais estreito e mais profundo, e conseguindo assim aumentar sua corrente no lugar onde iria ser colocada a roda de moinho. A roda foi engenhosamente montada com mais de mil pedaços de carvalho e daria energia suficiente não apenas para o moinho de farinha, mas também para o martelo do ferreiro que em breve iria funcionar.

Um pouco mais à frente e embaixo existia um equipamento semelhante, porém menor. A roda era um pouco diferente, formada por uma longa série de caçambas que levantavam a água e a deslocavam para um canal cavado em troncos de carvalho, que seguia em queda para o lugar onde iriam ficar a igreja e as outras construções anexas do mosteiro. A corrente de água passaria pelas construções e iria desaguar novamente no córrego. Tudo para que a água não congelasse no inverno e houvesse sempre água corrente, tanto na cozinha quanto nas retretes para excrementos.

Sigrid passou muito tempo assistindo ao levantamento das construções, e o padre Henri, pacientemente, explicou para ela o que era feito e aquilo que estava nas suas intenções. E ela levou consigo dois dos seus melhores servos para ajudar nos trabalhos. Svarte, que dormia com Sot, e Gur, que mantinha sua vaca e os filhotes dela lá em Arnäs. E ela traduzia tudo para a linguagem deles, e explicava aquilo que o padre Henri descrevia.

Magnus queixou-se de que ela não tinha qualquer trabalho para os melhores servos, pelo menos para os homens, lá em Varnhem. Eles seriam muito mais úteis para acelerar as construções em Arnäs. Mas Sigrid insistiu e explicou que era muito útil aprender com os leigos borgonheses e com os pedreiros ingleses que o padre Henri tinha reunido. E, como habitualmente, ela levou a melhor, embora fosse muito difícil explicar para qualquer homem nascido na Götaland Ocidental que os forasteiros eram muito melhores construtores do que a boa gente do lugar.

Durante alguns meses, Varnhem transformou-se num lugar de trabalho, onde as batidas dos martelos ecoavam, as serras chiavam e gemiam e as grandes rodas de pedra para lixar funcionavam ruidosamente. Havia vida e movimentação por toda parte e à primeira vista tudo parecia funcionar sem planejamento, à doida, tal como acontece nos formigueiros na primavera, quando as formigas parecem correr de um lado para o outro, sem sentido e sem proveito. Mas existiam planos para tudo o que era feito. O líder dos operários era um enorme monge, de nome Guilbert de Beaune. Era o único dos monges que trabalhava nas obras. Só os leigos de roupas marrons é que faziam todos os trabalhos manuais. Eventualmente, poderia se dizer que também o frei Lucien de Clairvaux ia contra esta regra. Ele era o mestre jardineiro do mosteiro e não quis encarregar o plantio sensível a outras mãos que não as suas, já que era um pouco tarde nesse ano para plantar e era muito difícil ter sucesso caso esse plantio não fosse feito por alguém com a correta sensibilidade nas mãos e a correta experiência no olhar.

Os outros monges, que até então utilizavam a casa grande como moradia e salão de orações, viviam ocupados com as coisas do espírito ou em escrever.

Após algum tempo, Sigrid ofereceu aos leigos a colaboração de Svarte e de Gur e o pensamento dela foi mais o de proporcionar um aprendizado melhor para eles do que ajudar os leigos substancialmente. No princípio, alguns dos leigos foram até o padre Henri para reclamar que os escravos, sem boa apresentação e sem instrução, mais agiam desajeitadamente do que eram úteis. Mas o padre Henri desconsiderou todas essas reclamações, pois ele entendeu muito bem quais eram as intenções de Sigrid com esses aprendizes. Ao contrário, ele falou com o irmão Guilbert a respeito do caso, e isso levou a que Svarte e Gur, para irritação de muitos dos trabalhadores seculares contratados, quando começavam a ser úteis no trabalho, fossem mandados para outra função onde a falta de jeito e a irritante falta de prática voltavam a surgir. Quebrar pedras, lixá-las, dar forma ao ferro incandescente, juntar e grudar as peças de carvalho da roda de moinho, montar um chafariz ou uma canaleta, limpar o jardim daquilo que ali não devia crescer, cortar a machado carvalhos e faias e dar forma conveniente aos troncos segundo as diversas finalidades, de tudo isso os dois escravos em breve, apressadamente, já tinham aprendido um pouco e Sigrid sempre perguntava a respeito de seus progressos e fazia planos para a sua utilização futura. Ela já tinha pensado numa coisa, que ambos iriam trabalhar para alcançar a sua liberdade. Apenas aqueles que conseguiam realizar alguma coisa de valor podiam subsistir como homens livres. A fé e a religião deles interessavam menos, e ela não obrigou nenhum dos seus escravos ao batismo, a não ser no caso de Sot, mas isso porque ela precisou de apoio especial durante a inauguração da catedral.

Foi uma época de paz. Como esposa, Sigrid não teve tanto a fazer quanto na hipótese de ficar como dona de Varnhem e ter que administrar essa propriedade. Nem tampouco no caso de assumir a responsabilidade do trato do jardim em Arnäs. Ela tentou pensar o menos possível sobre o inevitável, aquilo que viria a acontecer, tão certo quanto a morte para todos, tanto para os escravos quanto para o povo. Como a casa grande ainda não tinha sido inaugurada como parte do mosteiro, ela podia participar em qualquer dos cinco horários de oração todos os dias, à sua vontade. À medida que o tempo passava, mais ela participava dos momentos de oração. E ela rezava, sempre pedindo a mesma coisa,pela vida dela e da criança, para que tivesse as forças e a coragem da Virgem Maria e para que fosse poupada das dores que havia sofrido na vez anterior.

E, então, ela avançou no caminho de casa, com suores frios na testa e com movimentos muito lentos e cuidadosos, como se qualquer movimentação mais desabrida fosse provocar as dores, entre os ruídos da construção. Chamou Sot, mas não precisou dizer do que se tratava.

Sot fez sinal que tinha entendido e resmungou qualquer coisa na sua língua estranha. Correu para a cozinha e começou a organizar as coisas com a ajuda das outras escravas. Retiraram tudo o que tinha a ver com carne para cozer e assar, lavaram e enxugaram o chão e trouxeram fardos de palha e os cobertores do depósito onde Sigrid guardava todos os seus pertences. Quando tudo estava em ordem e Sigrid devia tomar seu lugar na cama, ela sentiu pela segunda vez as dores do parto, tão fortes, muito piores que as primeiras, tanto que seu rosto ficou branco, o corpo contorceu-se de dor e precisou ser arrastado para a cama no meio do chão. As escravas já tinham acendido o fogo lá dentro e trazido as bacias de água que aqueceram sobre o fogo.

Quando a dor se foi, ela pediu a Sot para buscar o padre Henri e para fazer com que Eskil ficasse com as outras crianças bem longe, a fim de que se distraísse com as brincadeiras e não escutasse os gritos de sua mãe, se isso chegasse a acontecer. Mas alguém precisava também vigiar as crianças para que não se aproximassem muito da grande e perigosa roda de moinho, que mais do que qualquer coisa na região parecia atrair a sua curiosidade. As crianças não podiam ser deixadas a sós, sem vigilância!

Por alguns momentos, ela ficou sozinha, olhando pela abertura no teto que dava saída à fumaça, e pela janela lateral na parede mais comprida. Os pássaros cantavam lá fora, eram os tentilhões que cantavam durante o dia, antes de os tordos tomarem a vez, e faziam com que todos os outros pássaros ficassem em silêncio como que por pura vergonha.

O suor escorria pela sua testa, mas ela sentia frio, chegando a tremer. Uma das suas servas veio até ela, timidamente, e enxugou seu suor com um pano molhado, de linho, mas nem ousou fixar os olhos nela.

Magnus insistiu para que ela mandasse chamar a tempo as boas mulheres de Skara quando chegasse a hora e não desse à luz entre as escravas. Mas foi como se ela, o tempo todo, quisesse adiar o inevitável, como se ela esperasse em segredo que a criança nascesse sem que ela tivesse que dar à luz. Foi besteira, pura vaidade. Agora, ali estava ela, pronta para procriar e viver, para procriar e morrer, ou morrer com a criança, entre as escravas. Ela sabia muito bem o que Magnus iria pensar. Mas ele era apenas um homem e não poderia compreender que as escravas, habituadas a procriar muito mais do que as suas donas, tinham um entendimento apurado a respeito de tudo o que iria acontecer. Ainda que não tivessem pele branca, falavam bonito e sabiam portar-se cortesmente, tal como as mulheres que Magnus certamente gostaria de ver enchendo a sala, com a sua tagarelice e as suas desmioladas corridas para a frente e para trás. E as escravas eram competentes, sim, o bastante. Se é que a ajuda humana iria bastar. E a Santa Virgem Maria iria certamente ajudar ou não, independentemente das almas que estivessem na sala.

As escravas tinham alma como a gente, foi isso que o padre Henri falou para ela, com palavras fortes e convincentes. E no céu não existem pessoas livres ou escravas, ricas ou pobres, existem apenas almas que se tornaram merecedoras de estar lá pela sua bondade. Sigrid achava que isso podia muito bem ser verdade.

Quando o padre Henri entrou na sala, ela viu que ele trazia consigo o breviário. Tinha entendido qual era a ajuda de que ela precisava. Mas fez de conta, primeiro, que nada era preciso e nem se preocupou em mandar embora as escravas que, apressadamente, limpavam e corriam com novos baldes de água e traziam mais panos de linho e fraldas.

— Mandou me chamar, a veneranda esposa? Entendo que está se aproximando a hora da alegria, nesta casa, aqui em Varnhem — disse o padre Henri, mostrando-se mais sorridente e calmo para ela do que as suas palavras queriam mostrar.

— Ou a hora da tristeza, padre. Não saberemos de nada antes que tudo tenha terminado — atalhou Sigrid, olhando fixamente para ele, com um olhar de medo, como se pressentisse que uma nova dor estava a caminho. Mas foi apenas imaginação, a dor não veio.

O padre Henri puxou um pequeno banco de três pernas e sentou-se junto dela, segurando-lhe a mão com carinho.

— A senhora é uma mulher inteligente — disse ele —, a única que encontrei no mundo laico que sabe falar em latim, e a senhora sabe também muitas outras coisas, como, por exemplo, ensinar às suas escravas aquilo que nós sabemos. Me diga então uma coisa: por que isso no seu caso seria um ato tão excepcional, quando todas as outras mulheres passam pelo mesmo, mulheres bem-nascidas como a senhora, escravas e mulheres miseráveis, todas, milhares e milhares. Pense bem, justo neste momento a senhora não é a única no mundo. Talvez agora, neste exato momento em que estamos aqui sentados, a senhora esteja na mesma situação de dez mil mulheres pelo mundo afora. Por isso, me diga, por que razão tem algo a recear, mais do que todas as outras?

Ele tinha falado bem, quase uma prédica, e Sigrid pensou que aquilo que ele havia dito certamente tinha sido coisa pensada durante vários dias, as primeiras palavras que ele iria lhe dizer quando o terrível momento chegasse. Ela não pôde deixar de sorrir quando levantou o olhar para ele, e ele viu no seu sorriso que ela tinha adivinhado tudo.

— O senhor fala muito bem, padre Henri — disse ela, com a voz meio enfraquecida, receosa de que as dores voltassem de novo. — Mas, das dez mil mulheres de que o senhor falou, talvez a metade amanhã esteja morta e eu talvez seja uma delas.

— Então, eu teria dificuldades para compreender nosso Salvador, — disse o padre Henri, calmamente, e ainda com um sorriso nos lábios e o olhar procurando o tempo todo pelo dela.

— Ainda existem coisas que o nosso Salvador faz que o senhor não pode entender, padre? — murmurou ela, enquanto sua tensão aumentava à espera do próximo golpe da dor.

— Isso é certamente verdade — concordou o padre Henri. — Existem coisas que até o nosso fundador, São Bernardo de Clairvaux, não entende. Como as grandes derrotas sofridas pelos nossos, justamente agora, na Terra Santa. Ele próprio, mais do que qualquer outro, quer que mandemos mais gente. Ele próprio não desejaria nada mais do que a vitória da nossa justiça contra os infiéis. No entanto, acabamos sendo derrotados, uma tremenda derrota, apesar da nossa fé muito forte, apesar da nossa boa missão, apesar de estarmos lutando contra os pecadores. Por isso, a verdade é que nós, os homens de bem, nem sempre conseguimos entender o nosso Salvador.

— Quero me confessar a tempo — segredou ela.

O padre Henri mandou sair as escravas, colocou sobre si a estola, abençoou-a e falou que estava pronto para escutar sua confissão.

— Padre, peço perdão, pois pequei — disse ela, arfando, com o medo brilhando nos olhos.

Depois, precisou respirar fundo várias vezes e se recuperar antes de continuar:

— Tive pensamentos impiedosos, pensamentos mundanos, doei Varnhem para o senhor e para os seus, não apenas porque o Espírito Santo me disse que isso era correto e uma boa ação; eu também esperava que com esta dádiva pudesse aplacar a Mãe de Deus, pela razão de eu, por desatino e egoísmo, ter pedido a ela para me poupar de novos partos, apesar de saber que é nosso dever encher o mundo de gente.

Sigrid havia falado rápido e em voz baixa, na espera de que as dores voltassem, e elas vieram justo quando ela acabou de falar. Seu rosto ficou desfigurado pela dor, e ela mordia os lábios fortemente para não gritar.

O padre Henri sentiu-se inseguro, primeiro, a respeito do que devia fazer, mas, depois, levantou-se e foi buscar uma toalha de linho que molhou na água fria numa bacia junto da porta. Em seguida, dirigiu-se para ela, levantou sua cabeça e molhou sua testa e seu rosto, enxugando a saliva e o sangue que escorriam da sua boca.

— A verdade, minha filha — murmurou ele ao mesmo tempo que se inclinava para ela e sentia a pressão do seu medo —, é que os favores de Deus não podem ser comprados com dinheiro, que é um grande pecado tanto vender quanto comprar aquilo que apenas Deus pode dar. A verdade é que você, em sua fraqueza humana, sentiu medo e pediu à Mãe de Deus por ajuda e consolo. Mas, neste último caso, não existe pecado nenhum. E, no que diz respeito à dádiva de Varnhem, acontece que o Espírito Santo pairou sobre você com uma revelação que você estava pronta para receber. E nada na sua vontade pode ser mais forte do que a vontade do Espírito Santo, e esta você cumpriu. Eu lhe perdôo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Você está agora livre de pecados, e vou deixá-la para que eu próprio possa me recolher em oração.

O padre Henri largou cuidadosamente a cabeça dela na cama e viu que, em algum lugar bem lá dentro na sua dor, ela tinha sentido um pouco de alívio. Depois, saiu rápido e, em tom áspero, mandou entrar as mulheres que aguardavam do lado de fora da casa, e todas entraram como um bando de pássaros negros.

Mas Sot deixou-se ficar e puxou timidamente pela roupa dele e disse qualquer coisa que, inicialmente, ele não entendeu, já que ambos não falavam direito a língua do país. Ela, porém, se esforçou de novo, falou muito lentamente, acompanhando a sua fala com sinais. Foi, então que ele percebeu que ela tinha uma poção secreta feita de plantas proibidas, que podia aliviar a dor e que as escravas costumavam dar para aqueles entre os seus que iriam receber chibatadas, ser mutilados ou ir para as galés.

Ele olhou pensativamente o rosto escuro daquela mulher na sua frente enquanto refletia. Ele sabia muito bem que ela era batizada e que, por isso, tinha que a tratar como se fosse alguém da sua paróquia. Ele sabia também que aquilo que ela contou era verdade. Lucien de Clairvaux, que cuidava de todas as plantações no quintal, tinha muitas receitas que poderiam atingir os mesmos efeitos. No entanto, havia o risco de a poção de que a escrava falara ter sido preparada com bruxaria e maus espíritos.

— Escuta aqui, mulher — disse ele, lentamente e tão claramente quanto sabia. — Eu ir perguntar homem que sabe. Se voltar, dar bebida. Não voltar, não dar bebida. Jura por Deus que vai obedecer!

Sot jurou submissa diante do seu novo Deus, e o padre Henri foi embora rápido para ter uma conversa com o irmão Lucien, antes de juntar todos os irmãos para uma oração em favor da sua benemérita.

Momentos depois, ele conseguiu encontrar o irmão Lucien, que, amedrontado, afastou a idéia com ambas as mãos. Tais poções que aliviavam as dores eram muito fortes. Podia-se usá-las em casos de feridos, moribundos ou na medicina, quando alguém precisa ter seu braço ou pé amputado. Mas não se podia dar isso de jeito nenhum para mulheres que iam parir, porque assim seria dado também ao II bebê, que poderia nascer retardado ou ficar deformado para sempre.

Uma vez nascida a criança, então, tudo bem. Se bem que, por outro lado, a essa altura já costuma não ser preciso. Portanto, não se tratava apenas de seguir a vontade de Deus, de que todos nós devemos nascer na dor, mas também num plano mais prático isso aliviava a dor, que é o preço que temos de pagar ao parir crianças ainda não prontas para a vida. Aliás, seria interessante saber qualquer dia de que essa poção que alivia dores é composta. Quem sabe, podemos ter uma nova idéia.

O padre Henri concordou, abanando a cabeça, envergonhado. Devia ter conhecimento disso, mesmo que especializado nas Escrituras Sagradas, em teologia e música, e não na arte da medicina e na arte de agricultura. Passou a reunir rapidamente os irmãos para começar uma sessão de orações bastante longa.

Sot tinha decidido obedecer ao monge até então, ainda que achasse ser uma pena e uma vergonha não aliviar o sofrimento da sua patroa. Entretanto, assumiu o comando sobre as outras mulheres na sala; elas puxaram Sigrid para cima na cama e soltaram seu cabelo, que se alongou, brilhante e quase tão negro quanto o de Sot. Deram-lhe banho, apesar de ela tremer de frio, e, depois, vestiram-na com uma nova camisola de linho e obrigaram-na a começar a andar em volta, no chão da sala, dizendo que isso iria apressar tudo. Através de uma névoa de medo, à espera da nova onda de dores, Sigrid cambaleava, andando em círculos na sala entre duas das suas escravas, e se sentia envergonhada, se sentia como uma vaca guiada às voltas no mercado por escravos que estavam ali para a vender a mando do seu dono e senhor. Ela ouviu o toque do sino da casa grande, mas não tinha certeza, talvez fosse apenas sua imaginação.

Em seguida, chegou nova onda de dores, que começaram desta vez mais embaixo, no mais profundo do seu ser, e ela suspeitou que as dores iriam durar mais tempo. Então, gritou alto, mais de medo do que de dor, e caiu de vez na cama, onde as servas pegaram-na, à sua volta, por baixo dos braços e por trás, levantando-a um pouco enquanto todas as outras gritavam ao mesmo tempo que ela precisava ajudar, que ela precisava fazer força. Mas ela não se atrevia a fazer força e talvez até tivesse desmaiado.

Quando a penumbra deu lugar à noite e os tordos silenciaram, era como se viesse também um período de calma para Sigrid. As contrações que haviam chegado bem amiúde horas antes, pareciam que tinham terminado. Era um sinal sinistro, sabiam disso tanto Sot quanto as outras. Alguma coisa tinha que ser feita.

Sot chamou uma das outras e saiu com ela, avançando às escondidas pela noite e passando furtivamente pela casa grande, onde os murmúrios e as cantorias dos monges podiam ser escutados fracamente por trás das paredes espessas. Alcançaram então o estábulo, de onde retiraram um cordeiro ainda por castrar, passando uma corda à volta do seu pescoço. E, no meio da noite cada vez mais escura, partiram para um pequeno bosque proibido. Passaram uma corda por um dos cascos traseiros do animal e a outra ponta da corda por cima do ramo de um dos muitos carvalhos do bosque, todos eles bastante avantajados. Enquanto Sot puxava a corda, suspendendo o cordeiro no ar por uma das patas, a outra escrava se jogava sobre o animal, segurava-o pelas pernas da frente e puxava-o para baixo com todo o peso do seu corpo, ao mesmo tempo que pegava numa faca e cortava o pescoço dele. Depois, as duas se ajudaram mutuamente para içar rápido o cordeiro ainda se debatendo e gritando perante a morte, enquanto o sangue dele esguichava para todos os lados. Quando conseguiram amarrar a corda na base da árvore, as duas despiram suas batas escuras e se colocaram nuas debaixo dos esguichos, untando os cabelos, os seios e os sexos de sangue, ao mesmo tempo que oravam por Frej.[1]

Quando a manhã chegou e Sigrid acordou da sua letargia, o fogo dos infernos voltou a atormentá-la e ela pediu, desesperada, à sua querida e sagrada Virgem Maria para poupá-la das dores, que era melhor levá-la de vez, agora, se fosse isso que viesse a acontecer, mas pelo menos que a livrasse das dores.

As escravas que ficaram sonolentas à sua volta acordaram rápido e começaram a apalpar o corpo dela e a falar apressadamente entre si na sua própria língua incompreensível. Depois, começaram a rir e olharam intensamente, abanando a cabeça para a frente, afirmativamente, para ela e para Sot, que ainda estava literalmente molhada, com o cabelo que caía na vertical e em faixas e não deixava de pingar água fria, até que ela se inclinou para Sigrid, falando que agora o parto ia acontecer, em breve seu filho iria nascer, mas era preciso que ela pela derradeira vez realmente ajudasse, se esforçasse. Então elas a pegaram por baixo dos braços e levantaram-na, na posição meio sentada, e Sigrid arfava e gritava preces desesperadas, até que reconheceu que desse modo poderia acordar o pequeno Eskil, deixando-o amedrontado, e então voltou a morder os lábios já feridos que imediatamente voltaram a sangrar e sua boca ficou cheia do gosto de sangue. Mas, lentamente, no meio daquela situação insuportável, ela ficou cada vez mais esperançosa, como se a Mãe de Deus, agora, realmente estivesse ao seu lado, falasse suavemente para ela e a exortasse a fazer aquilo que as suas sensatas e fiéis escravas lhe diziam. E ela fez força e gritou, mas mordeu novamente os lábios para não gritar, e então ouviram-se os cantos dos monges ao longe, no amanhecer, em alto e bom som, como se fosse uma canção de graças ou uma canção para sobrepujar o insuportável.

E, de repente, tudo acabou. Ela viu através do suor e de suas lágrimas uma trouxinha ensangüentada na sua frente, que parecia mais ser algo vindo da matança das escravas. As mulheres na sala corriam umas pelas outras com águas e toalhas de linho e, num ataque de desespero, Sigrid jogou o corpo para trás como se tivesse desistido de tudo.

Sigrid sabia que elas a estavam lavando e tagarelando, ouviu várias palmadas e depois um grito, um choro, um som trêmulo, mas que só poderia significar uma coisa.

— É um menino perfeito — disse Sot, cheia de alegria. —A senhora teve um menino bem constituído que tem todos os dedos das mãos e dos pés, tudo como deve ser. E ele nasceu com aura de vencedor!

Elas colocaram-no, lavado e envolvido em roupinhas, ao lado do seu peito dolorido e ingurgitado, e ela olhou para o rosto enrugado do filho e ficou pensando em como ele era pequeno. Afagou-o um pouco e ele, com o bracinho livre, movimentou-o no ar até que ela estendeu o seu dedo, e o bebê imediatamente o agarrou e segurou com vontade.

— Como é que ele vai se chamar? — perguntou Sot, com o rosto vermelho e excitado.

— Ele vai se chamar Arn, por causa de Arnäs — segredou Sigrid, ainda pálida. — Arnäs e não Varnhem vai ser a sua casa, mas ele será batizado aqui pelo padre Henri, quando chegar o momento.

 

O FILHO JOHAN do rei Sverker Morseti como merecia. O rei, seguindo os conselhos do padre Henri, cuidou para que o conde dinamarquês, imediatamente, tivesse de volta a sua esposa na província de Halland. Mas tanto o rei Sven Grate como o seu conde-ministro recusaram com desprezo a parte seguinte do plano do padre Henri, o de arranjar o casamento entre o filho safado do rei e a outra mulher dinamarquesa ofendida, de modo que, através dos laços de sangue, a guerra pudesse ser evitada.

O erro talvez não estivesse tanto no plano do padre Henri, mas no fato de o rei Sven Grate desejar a guerra. Quanto mais mensagens conciliadoras vinham da parte do rei Sverker, mais o rei Sven Grate queria guerrear. Este entendeu, possivelmente com razão, que o rei dos gotas mostrava sua fraqueza ao fazer esta e aquela oferta para evitar a guerra.

Sven Grate estava tão certo da sua vitória que começou logo a fazer as partilhas das terras de Götaland entre os seus homens mais próximos. E como se dizia que lá havia uma mulher muito bela de nome Sigrid, ele resolveu prometê-la como esposa para aquele entre os seus homens que demonstrasse mais coragem durante as conquistas.

O rei Sverker, num derradeiro esforço, convenceu o cardeal do papa, Nicolaus Breakspear, de que, a caminho de Roma, fizesse uma visita a Sven Grate e lhe falasse de bom senso e de paz.

O cardeal foi malsucedido nesta intervenção, tal como já tinha sido em ordenar um arcebispo sobre as terras reunidas de Götaland e Svealand.

A missão do papa em nomear um arcebispo fracassou pelo fato de que as representações de ambas as partes não conseguiram chegar a um acordo quanto à localização da catedral e da sede do arcebispado, em Aros Oriental, como os de Svealand exigiam, ou em Linkõping, como o rei Sverker queria.

A missão secular do cardeal, a de manter a paz, o que era mais do interesse da Igreja que a guerra, já que estava prestes a ser conseguida a inclusão de mais um país nos domínios do Senhor, nosso Pai, fracassou pela simples razão de que o rei dinamarquês estava convencido da vitória, tão próxima. E as terras então conquistadas ficariam sob a jurisdição do arcebispo Eskil, em Lund, de modo que, quaisquer que fossem as razões cristãs para desistir da guerra, Sven Grate não podia reconhecer.

O rei Sverker não tinha feito quaisquer preparativos para a defesa do país por estar muito ocupado, em parte com as cerimônias fúnebres da sua rainha Ulvhild, e em parte com os preparativos do novo casamento com outra viúva, Rikissa, aliás, viúva duas vezes. Talvez acreditasse também que todas as orações que conseguiu garantir no mosteiro fossem suficientes para salvá-lo, a ele e ao país.

Johan, seu filho canalha, porém, não acreditava nem um pouco em orações salvadoras. E, a respeito de os dinamarqueses saírem vencedores da próxima batalha, isso era, na sua opinião, uma esperança vazia. Por isso, convocou para a residência real em Vreta — e a convocação não partiu do seu pai, o rei — uma reunião, a fim de decidir como a defesa contra os dinamarqueses deveria ser organizada. Ele não entendia até que ponto era odiado como vândalo. Se seu pai não fosse já idoso e de coração fraco, teria punido o filho com a morte, e por dois motivos: vandalismo e mentira. Ninguém honestamente desejava entrar em guerra e arriscar a vida por culpa de um vândalo, um estuprador de mulheres da pior espécie.

Em compensação, vieram muitos homens esperançosos para a reunião do conselho em Vreta, mas por outras razões, não as que Johan havia imaginado. Quando viu quantos eram os homens que tinham vindo, ele entendeu tudo errado.

Eles chegaram para espancá-lo até a morte. E foi isso que fizeram. Seus próprios escudeiros não levantaram um dedo para defendê-lo. E também não foram sequer atacados. O cadáver de Johan foi cortado em vários pedaços de tamanho razoável, atirados aos porcos nos quintais de Skara para que não houvesse jamais algum tipo de sepultamento real.

No ano da graça de 1154, o inverno chegou cedo e, quando os gelos permitiram, o rei Sven Grate liderou o seu exército pelo sul, entrando pela província de Skâne e avançando até Finnveden, na província de Smâland. O exército queimou e devastou tudo o que encontrava pela frente, mas o avanço foi lento porque caiu muita neve nesse ano. Os cavalos e os outros animais de tração tiveram dificuldades em seguir em frente.

Além disso, os camponeses de Várend ofereceram resistência. Anos antes, a aldeia fora assaltada pelo norueguês Sigurd Jorsalafar, que, em nome da fé cristã, resolveu realizar uma cruzada contra Vãrend. Segundo se conta, ele veio encontrar cinco ou seis escravos fugitivos, a quem deixou decidir entre a espada e o batismo, mas, fora isso, as pessoas se lembravam melhor dele roubando mais de mil e quinhentas reses, e levando-as para casa.

Os habitantes de Várend, pouco familiarizados em questões de uma ou outra mulher estuprada ou naquilo que os reis podiam oferecer como motivo para roubar e queimar, decidiram em sua reunião que se era para morrer que morressem como homens, de acordo com a antiga crença de seus ancestrais. Morrer como senhor ou como escravo, sem luta, era morrer em desgraça. Além disso, ninguém pode estar certo quando se trata de guerra, a não ser de uma coisa: mesmo aquele que não lutou ou ficou sozinho contra qualquer exército estrangeiro acabaria morrendo, se o exército passasse no seu caminho. Todo o resto estava nas mãos de Deus.

E o rei Sven Grate acabou enfrentando dificuldades. Os habitantes de Várend defenderam suas terras palmo a palmo, atrás de barricadas nas trilhas das florestas, barricadas feitas de troncos de árvores que eles próprios derrubaram. Custou muito esforço e tempo lutar contra essas barricadas, e vencer não se conseguia nunca, no verdadeiro sentido da palavra. Se a situação parecia dominada ao anoitecer, a luta tinha que ser interrompida para a ceia, o descanso noturno e a oração. E então, na manhã seguinte, os homens por trás das barricadas não estavam mais lá. Em seguida se reuniam um pouco mais além, com gente nova, preparada para defender seus lares. E começava tudo de novo.

Os soldados do exército dinamarquês fugiam de noite em grandes grupos e começaram a voltar para casa. Aqueles que tinham por profissão a luta armada sabiam que o inverno já avançara demais. Mesmo que, no final, conseguissem passar pelos malditos camponeses, iriam chegar às planícies da Götaland Ocidental na primavera e ficar presos na lama. Além disso, os camponeses tinham uma maneira detestável de se defender. Eles matavam e feriam tantos animais quantos podiam atingir. Durante a noite, vinham em pequenos grupos, atacavam as sentinelas e, depois, abatiam cavalos e bois, às estocadas, na barriga, o máximo que o tempo fugaz lhes permitia, antes que os reforços chegassem. Em seguida, fugiam no meio da noite escura.

Um cavalo abatido por uma lança ou espada morre bastante rápido. Os bois agüentam-se mais, mas também eles morrem se um forcado ou a ponta de uma lança perfura a pele da sua barriga. Sem dúvida, o exército dinamarquês tinha muita carne de boi para fazer churrasco. Mas isso servia de pouca consolação, visto que estava “comendo” suas possibilidades de vitória.

Quando Sven Grate, finalmente, teve de aceitar o fato de que a guerra de qualquer maneira não poderia ser vencida naquele ano, decidiu que o exército deveria ser dividido para a carreira de volta. Ele próprio avançaria pela província de Skâne, a caminho de casa, nas ilhas dinamarquesas. E o seu conde levaria a outra metade do exército restante consigo para a província dinamarquesa de Halland e seu próprio condado. Sven Grate mandou enviar um mensageiro para comunicar que não havia mais guerra, no momento em que seus soldados, ele próprio e o seu conde estavam voltando para casa.

Mas em Vãrend existia muita vontade de vingança. E, por isso, contava-se muito a história de uma mulher, Blenda, que enviara mensagens de convocação para muitas outras mulheres, e todas elas juntas foram se encontrar com o conde e seus homens perto da lagoa Nissa, oferecendo-lhes pão e carne salgada. Aliás, uma grande quantidade de carne salgada é o que viria a constatar-se. Elas convidaram todos para uma grande festa e ofereceram uma quantidade extraordinária de cerveja para acompanhar a carne salgada. Quando o conde e seus homens avançaram, vacilando, até um palheiro, para dormir, enquanto os soldados se acomodavam no meio da neve o melhor que podiam, enrolados em peles de boi e de carneiro, mas tão bêbedos quanto a gente fina, Blenda e suas amigas se prepararam com todo o cuidado. Acenderam grandes tochas de piche. E chamaram seus homens que estavam escondidos num bosque.

Quando o silêncio baixou sobre o acampamento do exército e apenas se escutavam roncos, eles fecharam bem o palheiro e puseram fogo nos quatro cantos ao mesmo tempo. Em seguida, apunhalaram os soldados sonolentos.

Na manhã seguinte, no meio de grandes gargalhadas, acabaram afogando os últimos prisioneiros, sob o gelo da lagoa Nissa, onde antes fizeram dois grandes buracos pelos quais, depois, foi só puxar a fila de prisioneiros como se estivessem puxando uma rede de peixes.

O rei Sverker tinha vencido a guerra contra os dinamarqueses sem enviar um único homem e sem levantar um único dedo.

Certamente, considerou que isso tinha dependido acima de tudo das orações oferecidas por ele à providência divina. Mas se mostrou um homem de bem ao chamar Blenda e suas amigas mais próximas, decidindo que as mulheres de Vãrend, que tinham se mostrado tão másculas na defesa do país, no futuro teriam direito a herdar tanto quanto os homens. E que, como digno sinal de guerra, elas deveriam usar um cinto vermelho com uma cruz bordada a ouro, sinal que apenas a elas seria permitido usar e a mais ninguém. E quando se casassem, as mulheres de Vãrend, e mais ninguém, teriam direito à sublime honra de uma banda de tambores à frente da procissão nupcial.

Se o rei Sverker tivesse vivido bastante, seu decreto teria tido, certamente, um efeito legal muito mais prolongado do que teve. Mas os dias do rei Sverker estavam contados. Dali a pouco tempo, seria assassinado.

Nenhum castelo pode ser construído para ser inconquistável. Desde que haja uma razão forte, o lar de qualquer homem pode ser arrasado e incendiado. Mas a questão sempre será se isso valerá seu preço, quantos sitiantes foram mortos por flechas, quantos foram esmagados por pedras, quantos perderam a vontade e a saúde durante o cerco.

De tudo isso sabia o senhor Magnus e ele pensou muito no assunto enquanto a construção prosseguia. Porque aquilo que ele nem ninguém naquela época poderia saber era o que aconteceria depois da morte do velho rei Sverker, morte que, independentemente da maneira como se olhasse para o caso, não poderia estar longe.

Tudo era possível. O filho mais velho de Sverker, Karl, poderia assumir o poder e, então, pouca coisa mudaria. A situação em relação ao rei Sverker tinha melhorado, se não por outro motivo, pela atitude de Sigrid ao doar Varnhem quase que em nome dele.

Mas ninguém sabia o que estava acontecendo em Svealand, quem ou quais dos sveas estavam se preparando para a luta pelo trono. Ou talvez alguns gotas ocidentais? Talvez alguém da própria dinastia ou de uma dinastia amiga ou de uma dinastia inimiga. Na espera de uma decisão, havia que se continuar construindo.

Arnäs estava situada bem na ponta de um cabo no lago Vänern e era defendida pelos três lados, naturalmente, pelas águas. Junto da velha casa grande, erguia-se agora uma torre de pedra com a altura de sete homens. Os muros à volta da torre ainda não estavam prontos. Por isso, a área era defendida, principalmente, por paliçadas formadas por ramos de carvalhos, amarrados e com suas pontas para cima. Ainda havia muita coisa por fazer.

Magnus ficou durante muito tempo na torre de sua propriedade, treinando arco contra um monte de palha colocado do outro lado dos dois fossos. Era realmente maravilhoso ver a distância que a flecha podia atingir, disparando-a do alto para baixo. E depois de um curto período de treinamento, podia-se calcular o ângulo de tiro, de maneira que a pontaria quase ficou precisa, no máximo à distância de um braço da mosca. Já na sua configuração atual, Arnäs seria difícil de tomar, pelo menos por algum grupo de soldados em retirada de uma ou outra guerra, necessitados de provimentos para a caminhada de volta para casa. E mais forte ficaria, embora tudo tivesse que vir a seu tempo e porque Sigrid, na maioria dos casos, queria coisas diferentes de Magnus.

Este sabia que na maioria das vezes ela conseguia fazer prevalecer a sua vontade quando estavam em desacordo. Ele sabia até como ela se comportava para que parecesse que não era ela que o dirigia, mas que apenas se juntava a ele, obedecendo à vontade do seu homem e senhor.

Como no caso da mesa de honra dos seus ancestrais noruegueses. Na antiga casa grande, a mesa de honra e as paredes junto do canto mais estreito da sala estavam emolduradas por entalhes de madeira da Noruega, onde havia barcos vikings com dragões, balançando no mar, e uma cobra enorme, cujo nome já fora esquecido, em volta de toda a moldura e de tudo o que se podia ver e ler nela. Aliás, o texto rúnico era velho e difícil de ler.

Sigrid propôs primeiro que se queimasse toda essa idolatria paga, uma vez que se estava reconstruindo tudo de novo. As paredes, por sua vez, deviam ser revestidas com as telas do novo tempo em que cristãos defendiam a Cidade Santa, Jerusalém, onde se levantavam igrejas e eram batizados os gentios.

Magnus teve dificuldade em aceitar a idéia de queimar os entalhes bem produzidos por seus ancestrais. Isso não se fazia mais nos tempos que corriam. Coisas semelhantes eram difíceis de serem encontradas em outros lugares da Götaland Ocidental. Mas ele também achou difícil acompanhar as palavras dela a respeito de idolatria paga e da arte de gentios. E nisso ela tinha razão.

Mas esses ancestrais que esculpiram os dragões nos barcos e as pedras rúnicas desconheciam outras maneiras de esculpir e deles existiam agora apenas os trabalhos feitos por suas mãos, e eram belos esses trabalhos. Suas imagens falavam para os sentidos dos admiradores atuais como se fossem uma voz do passado, sem que por essa razão alguém precisasse ter pensamentos sujos. Era como se olhasse para um maravilhoso nascer do sol. Isso podia significar qualquer coisa e significava algo diferente no tempo dos monstros e dragões do que agora, no tempo de nosso Salvador. Mas de tudo isto ele tinha dificuldade em falar realmente bem, enquanto ela conversava sobre idolatria paga e purificação pelo fogo. Acabou como se ela estivesse certa e ele, errado.

Mas, ao mesmo tempo que discutiam sobre dragões monstruosos e símbolos rúnicos, a questão era saber quem podia trabalhar como pedreiro, em primeiro lugar Svarte e Gur e alguns dos seus filhos. Deveriam começar o trabalho erguendo os muros de defesa ou a empena da casa grande?

Na antiga casa grande, a lareira comprida estava situada ao centro, no chão, de modo que o calor se espalhava, mais ou menos equilibradamente, por toda a casa. Na parte mais afastada ficavam os escravos e o gado, e na parte junto à mesa de honra ficavam o dono, seus familiares e convidados. Nos invernos mais rigorosos, essa era a melhor maneira de manter a casa aquecida.

Agora, porém, Sigrid tinha vindo com idéias inteiramente novas que, sem dúvida, fora buscar nos monges em Varnhem. Magnus se recordava ainda de seu espanto e suas dúvidas quando ela desenhou tudo na areia diante dele. Tudo era novo, nada como antes.

A sua casa grande era dividida em duas metades, com uma porta grande no meio, que dava primeiro para uma entrada, e dali, então, ficavam os acessos à metade do dono da casa e à metade dos escravos e animais. Esta metade, por sua vez, estava dividida em dois andares: o de cima servia como palheiro e o de baixo como estábulo e dependências dos servos. Nesta metade da casa não existia nenhuma lareira. Pelo contrário, era proibido fazer fogo e a transgressão desta ordem recebia punição severa.

Na outra metade da casa que iria ser a sua, com a mesa de honra como antes, a parede mais afastada seria construída totalmente em pedra, e abaixo da cumeeira dois mezaninos planos formando conjunto com uma lareira quase tão larga quanto a casa, e acima da lareira um grande chapéu de chaminé com saída de pedra para a fumaça.

Magnus fez muitas objeções, e Sigrid deu outras tantas respostas. Se não fizermos uma lareira no chão, ao comprimento da casa, vai fazer frio demais durante os invernos mais rigorosos?

- Não, meu querido senhor e marido. As paredes de pedra vão ficar aquecidas permanentemente, pelo fato de haver fogo na lareira durante o dia e o calor demorar a cair durante a noite. E sem todas essas aberturas no teto para a fumaça, através das quais desce aquele frio como se fossem demônios, a gente conserva melhor o tempo todo o calor da lareira.

— Mas sem essas aberturas no teto não vamos andar permanentemente de olhos vermelhos e tossindo na fumaça?

— Não, meu querido senhor e marido. A fumaça sobe apenas até o respiradouro da chaminé, construído de pedra. Para a sala não sai nenhuma fumaça.

— Mas, se os escravos e os animais não têm fogo nenhum na sua metade da casa, como é que vão agüentar este inverno, podemos perdê-los. Será que não vão morrer de frio e nós não vamos ficar bem pobres na primavera?

— Não, meu querido senhor e marido. Através da divisão que fazemos da sua metade em dois andares, o calor dos animais embaixo permanece na casa e, debaixo de tanta palha no andar de cima, tanto os escravos quanto os homens podem sobreviver bem.

— É, mas se nós construirmos como você diz, com longos troncos colocados uns sobre os outros, na horizontal, o vento vai soprar para dentro e para fora e as tempestades de neve vão acabar congelando nossos ouvidos.Temos de construir à moda antiga com pranchas na vertical, não é verdade?

— Não, meu querido senhor e marido. Os madeireiros, primeiro, vão ter que aplainar os troncos, tanto quanto a machadinha o permitir, de maneira que se justaponham o melhor possível uns sobre os outros. Depois, botamos alcatrão nas fendas que restarem, até que fiquem bem fechadas, e em seguida jogamos piche tanto nas paredes externas quanto nas internas como fazem na Noruega com suas igrejas de madeira.

Dessa maneira, Sigrid continuou a falar e justo quando mencionou as igrejas norueguesas de madeira, onde certamente não faltavam dragões monstruosos. Ela chegou à conclusão, depois de pensar bem, que poderia desistir no caso da mesa de honra dos ancestrais e sua falta de ornamentação cristã. E ele, então, rapidamente, muito excitado e aliviado, concordou em liberar os pedreiros primeiro para trabalhar na nova casa grande, já que tinha conseguido o que ele queria.

É claro que tinha observado tudo, é claro que tinha entendido como ela fazia para levar sua vontade adiante em quase tudo. Por vezes, tinha sentido uma breve onda de raiva correr pelos seus membros e por sua cabeça diante do pensamento de que tal como sua mulher se apresentava, era ela e não ele que dominava em Arnäs.

Mas aquilo que ele via agora, ao retesar o arco e gritar para os escravos para juntar a palha e colocá-la em pilhas na casa de armas, não era apenas uma bela vista. Era uma vista realmente impressionante.

Abaixo dele, na própria área da fortaleza, estava situada a nova casa grande, brilhando nas suas paredes alcatroadas e com o telhado de turfa luxuriante de verde. Eles tinham trocado o telhado de junco em todas as casas para telhado de turfa com grama, apesar de existir muito junco, fácil de colher nas proximidades. Não era apenas por uma questão de calor, mas também porque uma única flecha em chamas transformaria os telhados de junco em grandes tochas.

Na outra ponta do castelo, na área da fortaleza, sob a proteção do primeiro paredão alto que ficou pronto, estava localizado o estábulo. Por baixo dele, na torre, ficavam os cereais e as armas. Tal como estava até agora, ele iria conseguir organizar a defesa de Arnäs em meio dia.

Alongando a vista para o interior da terra, pelo lado de fora do fosso externo, podia-se ver uma verdadeira vila em crescimento. Era onde ficavam o curtume e o mau cheiro, ao longo das águas, longe das outras casas onde se preparavam os couros e as peles de marta e de arminho que valiam tantas moedas de prata em Lõdõse. Na direção do castelo, ficavam as outras casas em dois níveis, estábulos e habitações de escravos, a oficina de cortar pedras e a de ferreiros, a despensa, a cozinha, a casa de costura e a tecelagem de linho. Existiam então mais do dobro de escravos e de animais em comparação com alguns anos antes.

Este caso era um verdadeiro milagre e igualmente difícil de entender. Ele próprio tinha aprendido com seu pai, que tinha aprendido com seus ancestrais, tão longe no tempo quanto qualquer um podia se lembrar, exatamente quantos escravos e animais as terras podiam alimentar em relação ao seu tamanho, isto para que o dono das terras não acabasse sem comida e expulso da sua própria casa.

E agora era uma multidão lá embaixo, o dobro daquilo que seria aconselhável e, no entanto, Arnäs continuava a ficar mais rica e maior a cada mês que passava. O bosque que vinha até junto da fossa do lado norte acabava a uma distância de mais de dez tiros de flecha, tão longe que os olhos mal podiam enxergar direito. O bosque virou madeira com a qual se construíram as novas casas. E no lugar onde estava o bosque surgiram terras aráveis e de pasto.

E por muita prata que tivesse gasto com coisas que não podiam ser fabricadas em Arnäs ou que só podiam ser pagas com prata, como sal ou os ornamentos em ferro em todos os portões feitos pelo mestre ferreiro de Bjâlbo, mesmo assim, sua quantidade de moedas de prata sempre aumentava, como se as moedas pudessem se reproduzir, como os animais e os escravos, nas suas caixas de carvalho guardadas na sala de contas da torre.

Quando o rei Sverker colocou em funcionamento a cunhagem de moedas em Lõdõse, dois invernos atrás, ele foi o único soberano que acreditou na moeda como meio de pagamento, desde tempos imemoriais, desde o tempo do paganismo. Os mercadores, na sua maioria, se mostraram desconfiados em relação à nova moda e queriam que as coisas continuassem como antigamente, quando eram trocados sal e ferro, peles, manteiga e couro por alqueires de sementes.

Mas Sigrid, entusiasticamente, convenceu Magnus a seguir, desde o início, a nova ordenação e a ser o primeiro a aceitar moedas de prata em troca de tudo. Ela acentuou que ele, dessa maneira, podia ajudar o rei Sverker no lançamento da nova resolução em que ninguém acreditava e com isso manter as boas graças do soberano em relação a Arnäs.

Por isso, no início, ele recebeu dez vezes mais moedas de prata por produto do que recebia agora, quando todos já tinham aderido. Mas, apenas por ter sido o primeiro, conseguiu duplicar a sua fortuna em poucos anos. O tempo todo, Sigrid assegurava que o pagamento com moedas de prata viria a desenvolver-se cada vez mais, que isso era patente dos novos tempos e que seria inteligente cuidar da reforma da casa a tempo, antes de saber o que aconteceria de fato com essa resolução estranha e insegura.

Ela tinha razão, como habitualmente. E quando pela primeira vez reconheceu isso, sabendo quanta força existia agora no fundo dos seus cofres na torre, ele, sem saber por quê, sentiu vontade de puni-la, de fazê-la sentir o gosto amargo das dificuldades, de obrigá-la a reconhecer seu lugar como esposa.

Mas a raiva passou depressa. Em vez disso, ao olhar em volta, ao ver toda a vizinhança em atividade, a vida que se formou à volta de Arnäs, ele se dirigia a Deus com uma prece de agradecimento, por Deus lhe ter dado a esposa mais sagaz de toda a Götaland. Ele considerava o país dos sveas como atolado e em decadência desde os tempos antigos, e inválido como termo de comparação. Sigrid era um presente de Deus, sem dúvida. E sozinho, tendo o céu como teto e onde apenas Deus podia escutar seus pensamentos, Magnus admitiu toda essa verdade, sem sentir amargura. Eram apenas ele próprio e Deus, sim, e Sigrid, que sabiam. Ninguém mais sabia. Todos acreditavam que a área próspera à volta de Arnäs e as duas aldeias que pertenciam ao burgo, mais abaixo na direção de Forshem, tudo isso era trabalho dele e de ninguém mais. Todos acreditavam que ele era um grande homem, um homem com quem se podia contar, um homem que sabia criar riquezas.

Certamente, embora neste caso Magnus não tivesse certeza, Sigrid acreditava também que ele próprio vivia nessa vaidosa ilusão. Pensava que jamais deixaria que ela soubesse que entendia muito bem que era ela que estava por trás de tudo. Seria melhor assim.

Além disso, consolava-se ele, Sigrid e ele eram um só, visto que Deus tinha unido aquilo que ninguém podia separar. Tudo o que florescia e crescia à volta de Arnäs era trabalho de ambos, do mesmo jeito que Eskil e Arn eram metade dele e metade dela.

Visto por esse prisma, que era na realidade o único jeito cristão de ver as coisas, era ele, sem dúvida, um grande homem, por ato providencial de Deus. E de que outra maneira, sem ser por ato providencial de Deus, tudo podia acontecer?

O inverno era tempo de festas na Götaland Ocidental. Mas justo nesse inverno em que o tempo estava terminando para o rei Sverker, houve muito mais festas do que o normal. Os trenós iam e vinham por todo o país e não era apenas por causa da carne-seca e da cerveja. Eram um tempo frio, de incertezas para alguns, e um período propício para costurar planos e inventar intrigas, para outros.

Erik Jedvardsson tinha comunicado que gostaria de visitar Arnäs pouco antes do meio do inverno, e como motivo para a visita informou que, além de que deviam se conhecer melhor, visto que Sigrid e Kristina eram parentes, havia muito o que falar. Mais ainda, talvez se pudesse acabar de vez com a discussão a respeito de Varnhem.

Apenas uma coisa na mensagem preocupava Magnus, a de que havia muito o que falar. Não estava claro qual era o conteúdo da conversa, mas ainda assim era ameaçador, visto que todos sabiam que Erik Jedvardsson era um homem com elevados planos em andamento. Na pior das hipóteses, tentava conseguir o poder real. E isso significava, por sua vez, que ele queria saber quem era seu inimigo e quem era seu amigo nessa batalha.

Magnus lutava há muito tempo no seu íntimo, pró e contra. O que queria com a sua vida, ele sabia muito bem. Era construir uma Arnäs forte e rica e deixar uma boa herança para Eskil, talvez alguma coisa para Arn. Mas aquele que se deixasse sugar na luta pela coroa real podia ganhar muito, mas também, da mesma maneira, podia perder tudo. E até aí a escolha para Magnus não seria difícil, visto que sua maneira de ganhar alguma coisa na vida já estava determinada até a sua morte, ocorrência a esperar para uma idade avançada. Continuaria a construir, continuaria a comerciar e continuaria a preparar novas terras. Esse era seu caminho, um caminho seguro para vencer e ter uma vida boa.

Mas, por outro lado, o que tornava a coisa verdadeiramente complicada era o fato de que aquele que não apoiasse o vencedor na luta pela coroa real teria de esperar aborrecimentos pela frente, quando o vencedor viesse de visita novamente, só para perguntar por que razão não tinha recebido qualquer apoio, antes de esse apoio não ser mais necessário. O pouco que Magnus sabia sobre Erik Jedvardsson era que certamente ele iria entrar na luta e certamente, também, teria muita dificuldade em perdoar seus inimigos. Qualquer que fosse a posição a tomar, Magnus estaria se arriscando a perder.

Entretanto, secretamente, Magnus não se considerava nenhum tipo de guerreiro. É claro que sabia manejar a espada e o escudo, a lança e o arco e flecha. Quando jovem, teria aprendido alguma outra coisa além disso? O seu esquadrão era composto de doze homens, parentes afastados, na maioria jovens que não podiam esperar por heranças e não conheciam qualquer outro trabalho a não ser o que era feito com armas. Na maioria, preguiçosos, pensava Magnus. Tinha tido muita dificuldade em fazê-los dedicar pelo menos metade do tempo a trabalhar como madeireiros ou construtores de barcos, os únicos serviços que eles não consideravam indignos e próprios apenas para escravos. O resto do tempo, segundo eles, era para se dedicar aos jogos de armas para ganhar as lutas no dia em que isso fosse necessário. Aos olhos de Magnus, seus jogos de armas, no entanto, eram mais curtos do que os momentos que eles dedicavam a matar a sede com cerveja.

Portanto, Magnus podia colocar em ação e em qualquer momento um grupo de doze homens armados. E poderia, se necessário, armar mais oito grupos de doze, escolhidos entre os camponeses das duas aldeias, situadas na direção de Forshem. Não era exatamente uma força de guerra capaz de mudar o fiel da balança para um lado ou para outro numa luta real. Mas havia outra coisa mais importante. O fator decisivo para o futuro era saber de que lado se colocar na luta, a favor ou contra o vencedor. E se a metade da família, a sua própria, da Götaland Ocidental, se colocasse a favor ou contra Erik Jedvardsson iria depender talvez mais de como a outra parte da família, a de Bjälbo, na Götaland Oriental, iria se colocar.

Magnus mandou uma mensagem para seu irmão mais novo, Birger, que embora não sendo o mais velho e o mais representativo, mesmo assim era aquele que falava em nome da parte da família de Bjälbo em muitas questões difíceis. Birger era visto como astuto e correto nas negociações, um homem que, apesar da sua face lisa, era considerado por muitos como alguém destinado a ocupar um alto posto. Isto independentemente de quem estivesse no comando, visto que a família de Birger era muito forte em propriedades e em guerreiros.

Birger, o do sorriso permanente, veio voando como um redemoinho de vento na neve uma tarde antes dos outros convidados. Aos gritos, conduziu o seu trenó para a praça, diante da casa grande, finalizando com uma curva apertada que jogou neve para o alto. Saltou rápido do trenó e deixou que os escravos das cavalariças, que chegaram apressados, tomassem conta dele. Entretanto, jogou no chão um lobo já morto, para que fosse levado imediatamente para o curtume, a fim de ser esfolado. Muitos dos escravos achavam que significava desgraça deixar que um lobo morto chegasse perto da casa das pessoas.

A seguir, jogou no ombro a mochila com as roupas mais finas e já ia a caminho da casa grande quando Magnus chegou, tropeçando, para lhe dar as boas-vindas. Ao entrar na casa grande e ao se encontrar com Sigrid, que o cumprimentou com respeito e reverência, foi logo fazendo os maiores elogios à construção. Sob a liderança de Sigrid, mas com Magnus indo atrás, ele caminhou ao redor da sala e deixou que o calor da parede de pedra onde ardia uma lenha graúda chegasse até ele. Esfregou as mãos com prazer, escolheu logo um lugar para dormir, despiu suas roupas de viagem, puxou de novo o cobertor de lã que cobria a alcova, continuou em seguida para o banco perto do fogo e começou a contar sua viagem sobre os gelos do lago Vättern. Como ele avistou um grupo de lobos e como foi fácil para o cavalo chegar perto, devido à pequena camada de neve sobre o gelo, e como ele atirou contra um lobo, mas este, infelizmente, acabou se embaraçando no trenó, de modo que os outros escaparam.

Logo retirou a luva e recebeu uma jarra de cerveja, sem fazer mais do que dar uma piscadela para o criado que tomava conta da bebida. Aí ele brindou aos donos da casa e arrotou sonoramente, muito satisfeito.

Magnus admirou-se diante do seu irmão mais jovem, tão cheio de vida e para quem absolutamente nada parecia difícil ou impossível. Bastava pensar na sua viagem, saindo sozinho de trenó, correndo por gelos perigosos, sob mau tempo, vencendo a distância de Bjälbo até Arnäs apenas em um dia, sem a menor preocupação. Tudo isto fez com que Magnus refletisse sobre o quanto o pai, na realidade, significava, caso os dois irmãos tivessem mães diferentes.

Demorou bastante até que ficasse esclarecida a situação dos parentes em ambas as propriedades e Magnus, quase timidamente, pudesse conduzir a conversa para as questões difíceis do dia seguinte.

Mas nem mesmo isso parecia apresentar qualquer dificuldade para Birger, que despachou todo o problema através de algumas poucas sentenças.

— É vero e certo — disse ele, enquanto esticava o braço para receber mais uma jarra de cerveja — que esse tal de Erik Jedvardsson é um homem que vai acabar sendo rei ou uma cabeça mais baixo ou as duas coisas juntas. Isso é o que todos já sabem. Mas tal como a questão se põe hoje, ele não pode nos colocar em pé de guerra. Ele não pode ganhar a província de Götaland Oriental contra Götaland Ocidental, ou ao contrário. Possivelmente, poderá ganhar os sveas para o seu lado, com ou sem os não-cristãos. Se ele conseguir isso, teremos que ver como vamos agir daí em diante. O jogo terá, então, mudado. E basta de falar sobre problemas menores. Quando vamos comer?

A chegada de Erik Jedvardsson a Arnäs no dia seguinte veio confirmar a lenda. Chegou com um séquito em quatro trenós e tinha doze escudeiros por companhia, como se ele já fosse rei ou, pelo menos, conde. Além disso, chegou quatro horas antes do horário previsto, o que aconteceu em função do fato de não ter saído de sua propriedade, Ladâs, perto de Lidan, naquele mesmo dia. Teria passado uma noite, mais ou menos, a meio do caminho, em casa de um dos homens do rei Sverker, na estância real de Husaby. Embora, a respeito do que se passou lá, durante tão curta visita, ele fosse muito reticente.

A carne nas grelhas ainda continuava meio crua, os animais de caça ainda continuavam chegando à cozinha, e Sigrid mal teve tempo de limpar a sala e pendurar os trabalhos de tapeçaria. Por isso, após um curto momento de boas-vindas, mais como uma formalidade, onde se tomou um gole de cerveja e se comeu um pedaço de pão branco, orgulho de Arnäs, foi preciso separar as pessoas presentes por grupos de conveniência, para que o tempo passasse sem muito enfado. Magnus pediu ao seu escudeiro mais velho para tomar conta dos seus irmãos de armas de Ladâs, para os deixar bem acomodados e abastecidos de bebidas. Sigrid levou Kristina para conhecer a casa e fazer um giro pelas casas novas na aldeia, e Magnus levou Erik Jedvardsson para visitar os trabalhos na fortaleza.

Erik Jedvardsson não se mostrou impressionado com nada lá em cima. Achou os muros baixos e frágeis demais, e que os fossos duplos eram, sem dúvida, uma idéia engenhosa, mas ainda assim não serviriam para muita coisa quando se tivesse que defender a fortaleza durante o inverno, quando as águas congelavam. E assim ele continuou, fazendo o tempo todo comparações com suas próprias construções, principalmente a construção da igreja perto de Eriksberg, que agora já estava quase pronta. Tinha contratado, é claro, pedreiros ingleses, requisitados através de seus parentes ingleses, por parte de seu pai, e achava que esses trabalhadores poderiam ser alugados a serviço de Magnus quando a primavera chegasse, em vez de viajarem de volta para casa.

Magnus lhe deu razão. Se os muros de Arnäs eram baixos e fracos demais, também o eram para um rei. Se houvesse um rei lá dentro, na fortaleza, os sitiantes seriam em maior número e mais pacientes do que no caso de haver lá dentro apenas um mercador. Não era difícil ver que Erik Jedvardsson já sonhava em ser rei.

Mas Magnus não se sentia à vontade nessa companhia. O outro era mais alto e mais pesado, e isso fazia com que falasse e se comportasse como anfitrião e não como convidado.

Uma surpresa melhor para Magnus aconteceu quando deixaram a fortaleza e iniciaram a inspeção das cavalariças e da casa grande. Sem dúvida, era um novo método de construção, esse de sobrepor os troncos de pinheiros, deitados uns sobre os outros, e de erguer do chão três chaminés em pedra até o teto e ao longo da casa, uma coisa totalmente nova para Erik Jedvardsson. Onde ele habitava, ainda se construíam as casas com madeiras na posição vertical, tampadas com palha e barro, de pau-a-pique.

Magnus ficou, imediatamente, mais bem-disposto quando começou a explicar como concebera toda a construção, embora soubesse que fora Sigrid quem conseguira convencê-lo das novidades. No entanto, estava certo de que ela não iria ficar zangada ao saber que ele estaria descrevendo os trabalhos realizados como se fossem idéia dele.

Quando Erik Jedvardsson foi convidado a entrar na sala e o calor da lareira, perto da mesa de honra, bateu nele, suas palavras foram só de elogios, e ele avançou rápido, a mão levantada, na direção dos troncos para se assegurar de que o frio não entrava nem um pouco. Enquanto a cerveja chegava para o perigoso convidado, Magnus contou timidamente que no norte, onde estavam, e onde a floresta Sunnanskog se encontrava com a Nordanskog, havia muita madeira, os troncos dos abetos eram retos, e que, portanto, existiam outras possibilidades de material de construção que não havia, por exemplo, lá para os lados de Lidan onde a madeira que existia, na maioria dos casos, era fraca.

A cerveja ajudava a aquecer o ambiente, e Magnus continuou a se sentir cada vez mais bem-disposto.

Sigrid atravessou outras dificuldades ao mostrar a casa à sua parente Kristina. O ambiente entre elas não podia ser outro senão o de frieza respeitosa, visto que Kristina começou reclamando dos padres e do rei, porque, pelo menos em parte, Varnhem lhe pertencia e que ela nem de longe tinha pensado em dar a sua parte da herança para os monges.

Mas essa questão não era para ser levantada no momento, uma vez que seus maridos não estavam presentes. Se alguma coisa devia ser dita sobre o assunto, seria melhor falar quando todos os que tivessem esse direito estivessem reunidos na mesma sala.

Kristina não pôde esconder a boa impressão que teve de todas as oficinas existentes à volta da praça. As duas não chegaram até o curtume, por causa do mau cheiro, mas visitaram a grande cozinha, as oficinas onde se trabalhavam as pedras, aquelas onde se faziam as aduelas para barris, as ferrarias, as casas de costura e de tecelagem de linho, antes de dar uma volta pela copa e por um dos dormitórios de escravos, onde elas surpreenderam um casal copulando, o que não as perturbou nem um pouco. Muito pelo contrário. Ao passar, disseram algumas palavras de encorajamento para o casal embaraçado. Kristina comentou por graça que em casa ela mandava capar, pelo menos, um em cada dois machos, visto que as bestas tinham uma capacidade de se reproduzir muito alta, criando bocas demais para alimentar.

Sigrid explicou que tinha acabado com essa prática. Não por causa dos escravos, ainda que a nova ordem fosse muitíssimo apreciada por eles, mas porque não se conseguia ter escravos demais.

Isso era um raciocínio que Kristina não podia entender. Mais escravos significavam mais bocas para alimentar, mais animais a abater e mais cereais para moer, isso é claro como água, não é verdade?

Sigrid tentou explicar o método de transferência, preparação de novas terras e a libertação, no mesmo ritmo em que os escravos se reproduziam. E que receita, por sua vez, esse método rendia por ano em barris extras de cereais produzidos nas novas áreas lavradas. E que os escravos, afinal, comiam pouco por terem de pagar o que comiam. E que assim conseguiam poupar e pagar o preço da sua liberdade.

Kristina dava apenas risadinhas ao escutar esses pensamentos errados e invertidos. Era como se deixassem as vacas irem para o pasto verdejan-te para tirar leite e abater e, por fim, se assarem a si mesmas. Sigrid desistiu de todas as tentativas de explicação e levou Kristina, finalmente, para o lavatório, onde um bando de servos da casa se preparava para tomar banho antes do anoitecer.

O vapor envolveu-as como uma grande nuvem ao abrirem a porta para o lavatório e no momento em que o frio do meio do inverno se encontrou com a umidade quente do ambiente interior. Quando fecharam a porta e a visão do interior voltou, o assombro de Kristina, pela primeira vez, não foi possível esconder. A sala estava cheia de escravas e escravos, todos nus, correndo com baldes de água quente na mão, que despejavam em grandes tinas de carvalho, enquanto outros permaneciam sentados nas tinas entre vapores de água quente. Sigrid avançou e pegou o braço de uma das servas da casa e deixou que Kristina apalpasse a sua pele. É claro que eram saudáveis e bem tratadas, não é verdade?

Todos pareciam bem tratados. Mas valeria a pena deixar que os escravos usassem a lenha e aquele local como se fossem gente? Isso ela não podia entender de jeito nenhum.

Sigrid explicou que se tratava de servos da casa, os que preparavam as carnes e as traziam para a mesa, e que serviam a cerveja e retornavam com os restos toda a noite. E não seria muito mais agradável conviver com escravos que não cheiravam mal? Todos, aliás, deviam vestir roupas de linho depois do banho. Atualmente, fabricava-se muito mais tecidos de linho em Arnäs do que dava para vender.

Kristina abanava a cabeça. Ela não podia evitar dizer o quanto achava absurda essa maneira de tratar os escravos. Eles podiam começar a ter idéias, achava ela. Eles já tinham idéias, respondeu Sigrid, com um sorriso, que Kristina tinha dificuldades em compreender.

Mas, à noite, quando a grande festa para os convidados começou, a visão foi muito bonita quando todos os servos saídos do banho e limpos entraram no recinto em procissão, de vestimentas brancas de linho e com a primeira entrada de carnes, animais silvestres, pão branco e sopas de cebola, de feijão e de uma coisa que Sigrid denominava raízes vermelhas e que era uma novidade para os convidados.

Na mesa de honra norueguesa, com os dragões vikings, sentaram-se Magnus e Erik Jedvardsson. À esquerda de Magnus sentou-se seu irmão Birger, os filhos Eskil e o pequeno Arn, e junto com eles o filho de Erik Jedvardsson, Knut, que era da mesma idade. À direita, ainda na mesa de honra, sentaram-se Kristina e Sigrid. Ao longo das paredes, queimavam tochas de alcatrão em suas peças de ferro. E na mesa longa onde estavam sentados os vinte e quatro escudeiros por ordem de idade, ardiam velas de cera, caríssimas, como numa igreja. E da parede de pedra por trás da mesa de honra vinha um calor muito confortável, embora a temperatura fosse diminuindo, cada vez mais, à medida que as pessoas ficavam mais longe na sala. Os escudeiros mais jovens, mais afastados, em breve teriam que usar seus mantos.

Os criados começaram a servir os pedaços mais macios e também os que levavam menos tempo para preparar na grelha localizada entre as duas asas da casa grande, leitõezinhos para abrir o apetite. Em seguida, carnes menos nobres, de vitela, cordeiro e filhotes de javali, e também pão preto integral, à moda antiga, para aqueles que não gostassem de modernidades, como o pão branco. A cerveja rolava em grandes quantidades, tanto a cerveja forte, sem condimentos, quanto aquela que era dada para as mulheres e as crianças, misturada com mel e amoras de zimbro.

O banquete correu bem no início e todos conversavam alegres a respeito de coisas menos importantes, e Birger, que sempre sorria, teve a oportunidade, mais uma vez, de contar sua aventura do dia anterior, quando conseguiu matar um lobo.

Erik Jedvardsson e seus escudeiros beberam em honra de seus anfitriões. Magnus e seus escudeiros beberam em honra de seus convidados e tudo corria jovialmente e sem pensamentos ruins e palavras duras.

Erik Jedvardsson teve até mesmo a oportunidade de elogiar mais uma vez a beleza da sala, o novo método de construir com troncos longos, a maneira de conseguir que ficassem compactados, as belas máscaras à volta da mesa de honra e acima de tudo as camas que constituíam uma fila ao longo da parede mais comprida, postas umas sobre as outras, com muitas roupas e com peles, de modo que as pessoas podiam se acomodar bem, em número razoável, cama sobre cama, sem que passassem apertados ou com calor demais. Até mesmo isso era para pensar quando se fosse construir novas casas. Magnus explicou, timidamente, que aquela maneira de montar as camas era normal na Noruega, que todos os noruegueses sabiam que a melhor forma de escapar do frio era dormir num plano um pouco acima do solo.

Mas à medida que Erik Jedvardsson despejava no estômago mais cerveja, sua língua começou a ficar ferina, no começo quase despercebidamente. Fez piada sobre o rei Sverker, o único soberano nórdico que conseguiu vencer uma guerra com uma tática covarde. E fazia cada vez mais piadas a respeito dos monges e dos problemas que se tinha com eles. Voltou a falar da covardia do rei Sverker e a fazer graça, dizendo que o velhinho tinha se casado mais uma vez com uma ovelha velha, uma tal de Rikissa, que fora amante de um russo, Volodar, ou como quer que ele se chamasse, no outro lado do mar Báltico.

— Mas, meu querido convidado, com isso ele salvou mais uma vez o país de entrar em guerra e de ser incendiado, o senhor ainda não pensou nisso? — objetou Sigrid, com o rosto iluminado pela alegria, como se a cerveja também tivesse subido à sua cabeça e, por isso, a sua língua também pudesse deslanchar com menos responsabilidade do que normalmente. Magnus enviou para ela um olhar severo que ela fingiu não entender.

— Como assim? Qual é o grande feito que esse velhinho pode realizar, dividindo a cama com uma mulher duas vezes viúva? — respondeu Erik Jedvardsson, em voz alta, mais na direção dos seus próprios escudeiros à mesa do que para Sigrid. Os escudeiros riram imediatamente das suas graças.

— Porque Rikissa tem um filho, Knut Magnusson, do primeiro casamento, e porque Knut Magnusson hoje é rei da Dinamarca e dificilmente irá atacar o país onde a sua mãe é rainha — respondeu Sigrid, logo que as risadas dos escudeiros esmoreceram. E, ao dizer isso, ela se mostrou de semblante muito alegre. Entretanto, Erik Jedvardsson ficou resmungando, o que a deixou ainda mais feliz. E então, no meio do silêncio constrangedor que se fez, ela acrescentou que até mesmo um velho, longe de cumprir suas funções masculinas na cama, mesmo assim pôde usar a cama para evitar a guerra. Por isso, poder-se-ia dizer que até um membro flácido serve para alguma coisa. E não era pouca coisa não.

Esta última piada a respeito do membro flácido do rei fez com que todos os escudeiros explodissem em sonoras gargalhadas de aprovação, maiores do que aquelas obtidas pela piada de Erik Jedvardsson.

Sigrid baixou os olhos por timidez e corou por causa de seu próprio atrevimento. Mas Magnus pressentiu problemas. Ninguém conhecia melhor do que ele a língua ferina de sua mulher. Também ninguém sabia melhor do que ele que se o banquete descambasse para um torneio de palavras, como se fossem espadas, Sigrid iria vencer a todos, com exceção, talvez, de Birger. E isso jamais poderia acontecer, visto que terminaria, certamente, em sofrimento.

Então, ele salvou a situação através de uma manobra, desviando a atenção de todos ao fazer uma longa e meio desorientada explicação sobre o significado de toda a sabedoria que os monges haviam trazido para o país. Bastava olhar em volta, em Arnäs, a nova maneira de construir, como colocar em posição rodas de moinho muito maiores do que antes, como se podia semear o trigo já no outono e deixar que ficasse hibernando durante o inverno para, depois, crescer durante toda a primavera e o verão até ser colhido. Como aquela idéia de trocar produtos por moedas de prata em vez de por produtos iria frutificar, sem dúvida, no futuro. E outras coisas que, em grande parte, aprendera com Sigrid, mas que só ele e Sigrid sabiam que tinha sido ela que lhe ensinara.

Sem dúvida, era muito difícil para um convidado interromper o seu anfitrião, mas, quando Magnus começou a repetir-se, e pela terceira vez começou a explicar a importância das moedas de prata nas trocas comerciais, Erik Jedvardsson, ostensivamente, levantou-se e saiu para urinar. Com isso, Magnus calou-se e olhou, preocupado, para Birger, seu irmão. Mas Birger sorria como habitualmente e pareceu não estar preocupado, nem um pouco, quando se inclinou na direção de Magnus e lhe segredou que talvez esse fosse o momento certo de também sair para urinar, porque em breve seria a hora de tratar do assunto pelo qual o convidado tinha vindo.

Estava mesmo na hora de fazer uma parada. Metade dos guardas já tinha seguido o exemplo do excelso convidado e, de repente, todos os homens estavam em fila, conversavam animadamente e regavam os galhos colocados no chão para aquele fim. Durante o inverno, a área interna da fortaleza ficaria facilmente imprópria, suja, depois de uma festa, se não fossem jogados no chão os galhos de árvores que eram regularmente trocados pelos escravos.

Quando Erik Jedvardsson voltou para o seu lugar, ao lado de Magnus, na mesa de honra, e recebeu uma nova jarra de cerveja recém-tirada, ele levantou a mão, fazendo sinal de que queria falar sem ser interrompido. Birger, com um sorriso disfarçado, olhou para Magnus e fez um aceno de confirmação, do tipo: “Eu não disse?”

— Antes que essa boa hospitalidade nos suba demais à cabeça e a gente comece a falar dos gigantes que nós somos — começou ele, sorrindo, ao mesmo tempo que esperava pelos respeitosos risos que vieram mais dos seus próprios guardas —, está na hora de levantar uma questão de suma importância. Os dias do rei Sverker estão contados. Acho que não é novidade dizer que em breve ele já não estará mais entre nós. Karl Sverkersson está sentado lá em Linkõping e acha que a coroa real vai cair no seu colo. Somos muitos na Götaland Ocidental que não concordamos com essa infeliz ocorrência. Por isso, com a ajuda de Deus, vou ganhar a coroa de rei. E pergunto agora a todos vocês, concidadãos e amigos: posso contar com seu apoio ou devo deixar esta bonita casa como inimigo?

Na sala, seguiu-se um silêncio total. Até mesmo os três rapazinhos junto de Birger ficaram olhando fixamente, calados, para Erik Jedvards-son, que declarara querer ser rei. E, ao mesmo tempo, ameaçara todos com a sua inimizade.

Magnus voltou a olhar para seu irmão Birger em desespero de causa, mas Birger apenas sorriu e acenou como dizendo que ele assumiria dali em diante a responsabilidade.

— Meu caro senhor Erik, o senhor fala com uma tal força e decisão que nem por um momento duvido que em breve o senhor será o rei de todos nós — começou Birger, em voz alta para que todos soubessem que era ele, o irmão mais novo, embaixo, mas junto do lugar de honra, e não Magnus, que estava falando. Só depois baixou a voz. — Deixe que eu responda primeiro ao senhor. Eu falo por toda a região de Bjälbo, da qual sou porta-voz. E meu irmão Magnus vai responder depois de mim, mas o senhor deve saber que as nossas duas regiões têm muitas relações de sangue entre si e dificilmente irão entrar em conflito uma contra a outra. O senhor pode confiar. Nós não somos seus inimigos justo nesta questão e justo neste momento. Para ser nosso rei, o senhor precisa começar, nomeadamente, em outra região que não a nossa. O senhor precisa convencer os sveas a escolherem sua pessoa como soberano nas pedras de Mora. Se conseguir isso, a metade do caminho estará ganha. Se, em contrapartida, o senhor quiser ser rei a partir da Götaland Ocidental contra a vontade dos habitantes da Götaland Oriental, então o senhor vai atrair a guerra para si mesmo e ninguém poderá saber quem irá sair vencedor dessa devastação. A mesma coisa acontecerá se decidir pelo caminho inverso. Portanto, o senhor precisa ganhar primeiro os sveas. Se for bem-sucedido nessa empreitada, pode estar certo de que ganhará o nosso apoio. Será que estou errado? Se estiver, que me corrija o meu irmão Magnus.

Magnus reconheceu que todos estavam olhando para ele e que se fez silêncio como no momento em que se arma o arco, puxando a corda o máximo possível, e a flecha fica pronta para partir em direção ao alvo. Quando reagiu, fez apenas um aceno com a cabeça, de concordância, com o que foi dito, um aceno lento, bem refletido, como se ele fosse um velho senhor cheio de sabedoria. Houve um murmúrio de descontentamento por parte dos escudeiros de Erik Jedvardsson, na parte mais afastada da sala.

— Birger, o senhor é um pequeno tratante — gritou Erik Jedvardsson, com o rosto vermelho —, eu poderia desancar o senhor até a morte, aqui e agora, por suas palavras atrevidas. Quem é o senhor para ensinar a um experimentado guerreiro como eu o que se deve fazer?

Erik Jedvardsson fez um gesto na direção do lugar onde sua espada estaria pendente, como se tivesse esquecido que não era mais chique e de bom-tom comer num banquete com a espada na cintura. Todas as armas ficavam penduradas lá fora, na casa intermediária, junto do lugar onde se assavam as carnes.

Birger não se deixou amedrontar pelo gesto artificial dirigido ao cinturão vazio da espada, e seu sorriso não se esvaiu nem um momento ao responder:

- O senhor pode achar que sou um tratante, Erik Jedvardsson — começou ele, tranqüilo, embora em voz um pouco mais elevada, para que ninguém na sala pudesse deixar de escutar suas palavras. — Não me dá nenhuma satisfação saber que para o senhor sou apenas um tratante. Mas isso não tem nenhuma importância, comparado com um problema maior, porque se o senhor puxar pela sua espada contra mim, então, nesse mesmo momento, estará chamando a infelicidade sobre si mesmo, independentemente do resultado final.

— O senhor acha, seu pirralho, por um momento sequer, que poderá me enfrentar com a espada! — gritou Erik Jedvardsson, com o rosto ainda mais vermelho e cheio de raiva, de modo que todos na sala começaram a recear o pior e uma das escravas avançou na direção dos três garotos ao lado de Birger e os afastou para lugar seguro.

Birger ergueu-se devagar, mas seu sorriso permaneceu, enquanto respondia:

— Realmente, agora, devo pedir ao senhor, como nosso convidado, que reflita e reconsidere, Erik Jedvardsson — disse ele. — Se o senhor e eu viermos a cruzar armas, vai ser ruim para o senhor. Se morrer aqui e agora, não chegará a ser rei. E se me matar, então, o resto da sua vida vai ser uma longa viagem em que todos os habitantes de Bjälbo vão caçá-lo por todos os cantos e acabar por matá-lo. É melhor refletir, pensar! O senhor tem um reino à distância de um braço, a esse respeito não duvido. Não deixe que isso acabe em nada, só porque acha que o porta-voz de Bjälbo é jovem demais e atrevido demais! Convença primeiro os sveas, depois a nós. Pela segunda vez, este é o meu conselho.

Birger sentou-se de novo, tranqüilamente, e dirigiu-se a uma das servas, brancas de medo, pedindo mais cerveja, como se nada de especial se tivesse passado.

Erik Jedvardsson continuou sentado, carrancudo, por um longo tempo, antes de responder. Reconheceu que o jovem Birger de Bjälbo falara acertadamente e fora claro como água. Ele precisava reconhecer que fora, portanto, corrigido e tivera a sua cabeça virada por um jovem esperto e sagaz. Aquilo que todos tinham escutado não podia ser desdito.

—Ah, muito bem — disse ele, finalmente. — Eu já tinha pensado em me dirigir a Mora para ganhar o apoio dos sveas. Portanto, a respeito desse assunto, estamos os dois de acordo. Mas, por suas palavras, vou ter que ajustar contas com o senhor, quando aqui voltar de novo como seu rei.

— Não duvido nem um pouco, meu futuro senhor e soberano — afirmou Birger, com o sorriso bem aberto e quase exagerado, e esperou depois um bom momento, meio gozador, antes de continuar: — No entanto, como o senhor parece ter aceito meus conselhos como bons, gostaria de sugerir que me transforme em seu conde, em vez de querer acertar contas comigo!

Sua maneira atrevida e alegre de dizer isso, direto na cara do enraivecido Erik Jedvardsson, teve uma estranha conseqüência. Primeiro, houve um silêncio geral e Erik Jedvardsson olhou fixamente para ele com seus olhos negros. E Birger apenas o encarou, sorrindo. Até que o rosto de Erik Jedvardsson, de repente, se transformou num riso aberto. E, logo em seguida, soltou uma grande gargalhada. Imediatamente seus escudeiros começaram a rir. E os de Magnus, também. Depois, as mulheres, depois, os escravos e por fim os três garotos que já tinham voltado para os seus lugares. E, então, toda a sala rebentou a rir e a tempestade passou.

Erik Jedvardsson, sentindo que todas as conversas subseqüentes acerca do seu próprio caminho para a coroa real tinham de ficar para uma outra vez, quis mudar de tática, mostrar-se amável e alegre. Assim, batendo palmas, chamou o menestrel norueguês que tinha trazido consigo e pediu para ele contar histórias do tempo em que os homens da Escandinávia eram cheios de energia e de coragem de um jeito que raramente se via nos dias de hoje.

Enquanto o bardo se levantava do seu lugar, bem afastado, atrás dos escudeiros mais jovens, e começava a se aproximar da parte anterior da sala, perto do aquecimento, onde iria contar e cantar suas histórias, as criadas da casa limpavam migalhas e restos e serviam novas jarras de cerveja, indo depois limpar os urinóis e as escarradeiras lá embaixo, perto do portão. Um silêncio de expectativa se espalhou pela sala, depois que o bardo se apresentou, competentemente, de cabeça curvada, para que essa expectativa aumentasse até o limite, antes de começar.

Com uma voz fraca, mas bonita, quase cantando, iniciou a apresentação, falando das oito grandes vitórias de Sigurd Jorsalafar a caminho de Jerusalém, como ele fez suas pilhagens na Galiza, como ele, perto da costa de Sãrland, pela primeira vez, defrontou navios com sarracenos infiéis que vieram remando na sua direção com uma grande frota de galés e como ele, sem hesitar, partiu para o ataque e rapidamente venceu os infiéis que, aparentemente, jamais tinham enfrentado uma frota nórdica e não entendiam nada do que se passava na batalha que só poderia terminar de uma maneira, aquela que o bardo descreveu na canção:

 

Os pobres infiéis

atacaram o rei.

O poderoso príncipe

matou todos eles.

O exército afundou oito navios

na violenta batalha.

O príncipe amigo, dedicado,

conduziu os despojos para bordo.

O corvo voou para novas feridas.

 

Aqui o menestrel fez uma pausa e pediu mais cerveja para poder continuar e todos os escudeiros bateram com os punhos na mesa como sinal de que queriam ouvir mais.

Os dois garotinhos, Arn e Knut, ouviram tudo de boca aberta e de olhos arregalados, mas Eskil, um pouco mais velho, começou a choramingar e a bocejar, de modo que Sigrid fez sinal para suas criadas para que levassem os meninos para a cama. Ela tinha preparado tudo para eles em uma das cozinhas. Achou que os meninos talvez não agüentassem passar uma noite inteira entre adultos que bebiam até cair.

Eskil saiu obediente, bocejou de novo e parecia ele próprio achar que uma cama quente era preferível a um velho cantante que numa língua de difícil compreensão contava as velhas histórias de sempre. Mas Arn e Knut espernearam, choraram e resistiram, queriam escutar mais e prometeram ficar sentados, quietos e em silêncio, mas nada adiantou.

Logo, os três estavam recolhidos debaixo de espessos cobertores em uma cozinha com três dos maiores braseiros de ferro, cheios de carvão incandescente. Eskil virou logo o corpo e adormeceu, fungando, enquanto Arn e Knut permaneciam acordados e bastante revoltados contra o mais velho, aquele que lhes estragou a festa. Em seguida, fizeram um acordo, segredando, vestiram-se em silêncio e passaram despercebidos por dois escudeiros que estavam vomitando do lado de fora do portão, entraram rápido na sala e sentaram-se longe, no escuro, perto da porta, onde ninguém podia vê-los, visto que Arn encontrou um grande manto que ele, com movimentos cuidadosos, puxou para cima de seus corpos, de maneira que apenas apareciam as madeixas louras e os olhos arregalados dos dois fora do manto. Ficaram sentados como ratos, totalmente quietos, em atitude de total devoção, diante dos novos grandes feitos de Sigurdjorsalafar.

— A norte de Sãrland, numa ilha que se chama Formentera — recomeçou contando o bardo, ao fazer uma parada para que o silêncio fosse restabelecido antes de continuar — Sigurd Jorsalafar e sua tropa bateram de frente com piratas sarracenos, infiéis e inúteis, malcheirosos que jamais tomavam banho, nem mesmo no Natal, vagabundos e fornicadores habituais de jumentas, mas ricos em produtos de pilhagens feitas contra os bons peregrinos cristãos que nada têm para se defender durante suas caminhadas peregrinas.

“No entanto, os infiéis se entrincheiraram bem, junto com o resultado de todas as suas pilhagens numa gruta lá no alto à beira de uma estrada montanhosa, de grande inclinação, e diante da entrada da gruta eles construíram um muro de pedra. Por isso de início pareciam inatingíveis e ridicularizavam os noruegueses, acenando com sedas e outras coisas muito caras por cima do muro. Os infiéis podiam atirar de cima para baixo e jogar pedras e porcarias nos noruegueses, sempre que estes tentavam subir a íngreme encosta. Assim, essa tentativa para tomar a posição não parecia inteligente.”

“Mas Sigurd Jorsalafar encontrou um caminho. Ele mandou puxar botes para a praia e mandou que os subissem pela montanha. No topo da montanha, acima da entrada da gruta, os noruegueses amarraram fortes cordames nas proas e nas armações dos botes, encheram-nos de homens corajosos, de pedras e armas e os fizeram descer lentamente, de modo que os infiéis tiveram que saborear os efeitos da sua própria tática, a de ter que se defender de um inimigo que vinha de cima.”

Em breve, a luta tinha terminado. Os homens do rei puderam colorir as pontas das suas flechas com sangue. O corvo voou para novas feridas. Melhores despojos do que aqueles jamais foram tomados durante toda a viagem.”

De novo, o bardo recebeu entusiásticos aplausos e as pessoas pediram que continuasse. Ele se fez de cansado, mas, para ser persuadido, embolsou mais moedas de prata de Magnus e foi servido de mais cerveja. Sentou-se por algum tempo à espera de que todos retornassem à sala, aqueles que agüentaram até as últimas, antes de urinar.

Apesar de uma dúzia de homens ter passado por Arn e Knut, quase tocando neles, e de alguns até terem passado por cima deles, ao sair ou ao entrar, ninguém os descobriu onde estavam, mais parecendo filhotes de ganso encolhidos na floresta à noite.

Durante o verão, Sigurd Jorsalafar viajou em direção à Terra Santa e foi muito bem recebido pelo rei Balduin, em Jerusalém — continuou o bardo. — O rei Balduin demonstrou estar muito honrado com a visita de tão imponente grupo de guerreiros nórdicos e viajou com Sigurd até o rio Jordão e até a cidade portuária de Akka, bem fortificada, onde a frota dos noruegueses ancorou.

“O rei Balduin entendeu facilmente que poderia utilizar os poderosos guerreiros nórdicos e os arrastou até a Síria, onde conseguiram libertar a cidade de Sidon de todos os infiéis e assim se salvou mais uma cidade na Terra Santa para aqueles que acreditam em Deus.

“Mas por esta ajuda Sigurd não pediu nem ouro nem sedas. Em vez disso, recebeu, por sugestão tanto do patriarca quanto do rei Balduin, lascas da sagrada cruz em que o próprio Jesus foi torturado. E ele jurou, uma jura sagrada, de que levaria essas relíquias para o túmulo de Olav, o Santo, em Nidaros, e ali mandaria construir uma imponente igreja.”

O poeta voltou a escutar aplausos entusiásticos, ao mesmo tempo que lhe pediam insistentemente para repetir os belos versos da canção:

 

Sigurd venceu

junto de Sidon, os homens se lembram disso.

As armas se cruzavam com violência

no calor da batalha.

Os guerreiros quebraram com força

a inabalável fortaleza.

As belas lanças se coloriam de sangue.

Era a vitória do príncipe.

 

Os aplausos na sala pareciam não acabar, nem os murmúrios de todos, falando uns com os outros a respeito dos grandes feitos em épocas passadas e dos feitos dos reis atuais, que eram mais parecidos com Sverker, do Membro Frouxo, do que com Sigurd Jorsalafar.

Magnus tentou fazer um comentário jocoso, dizendo que era diferente com os noruegueses, de quem ele era aparentado. Mas ninguém achou graça, muito menos Erik Jedvardsson, que, naquele momento, se levantou para fazer um brinde, um skol, segurando um antigo chifre vazado, como se fosse uma jarra, cheio de bebida, que lhe tinham apresentado. Sem dúvida, era um chifre vazado norueguês, embora talvez ele não soubesse disso. Bebeu todo o conteúdo de uma vez, e em seguida declarou que naquele momento tinha recebido uma revelação, a imagem do escudo que seria a marca do seu reinado e de todo o reino. Na imagem, estariam três coroas douradas, a coroa de Svealand, a de Götaland Oriental e a de Götaland Ocidental. As três coroas teriam por fundo o azul do céu. Esse, jurou ele, seria, portanto, o novo símbolo do seu reinado e do reino num futuro não muito longínquo.

A sala estremeceu de calorosos aplausos. Mas Erik Jedvardsson queria dizer algo mais, ao mesmo tempo que sentia necessidade de voltar a urinar. E como queria fazer ambas as coisas simultaneamente, com a mesma intensidade, foi falando alto e já bêbado, a caminho da porta, que todos aqueles que o seguissem no futuro podiam estar certos de colher honras nas cruzadas. Talvez apenas até os fenícios do outro lado do Báltico numa primeira investida, mas, depois, quando os fenícios estivessem cristianizados, talvez os nossos precisassem de uma ajuda lá em-baixo, na Terra Santa.

Quando chegou à porta, não teve energia para pular a soleira e, cambaleante, encostou-se na ombreira e aliviou suas necessidades ali mesmo onde estava.

Nem mesmo notou que estava urinando em cima de Arn e de seu próprio filho Knut. E eles, por sua vez, não puderam fazer nada, a não ser se comprimir ainda mais e sofrer em silêncio. Nenhum dos dois meninos jamais esqueceria aquilo.

Em especial porque agora tinham sido mijados por um homem que iria ser não só e apenas rei, mas também um santo.

 

O inverno manteve Arnäs isolada, todos os caminhos para o sul estavam intransitáveis desde a primeira missa, pela manhã, no dia de Natal e ainda que os gelos do lago Vänern fossem transitáveis, pelo menos com trenós de apoios largos, não havia grandes motivos para suportar esse inconveniente. Aquilo que Magnus quisesse vender nessa direção, na direção de Lõdõse, daria o dobro do preço no final do inverno, quando começassem a escassear produtos em muitos armazéns.

Em Amas, o trabalho continuou como habitualmente nas oficinas de costura, nos matadouros e áreas de salgação, assim como nas oficinas onde as mulheres preparavam a lã e o linho, e teciam, tanto tecidos grossos quanto finos, para alegria de Deus e dos homens.

Suom era o nome de uma competente tecelã que se distinguia das outras escravas por ter o cabelo liso e louro, não negro e encaracolado. E ela era ainda bem constituída e bonita de se olhar. E não tinha procriado. Era como se vivesse no seu canto ou como se sonhasse com outra vida, embora fosse escrava. Empertigada, parecia não escutar as palavras grosseiras e as risadas jogadas para ela quando passava pelas ferrarias e as oficinas de aduelas. Era uma das escravas de quem Sigrid mais gostava e as duas, muitas vezes, iam juntas às tecelagens onde o tempo todo encontravam novos padrões para tecer. Suom havia dito não, timidamente, mas com determinação, quando uma vez Sigrid lhe perguntou se queria ser batizada como cristã branca. Depois disso, Sigrid nunca mais perguntou, mas ficava pensando como é que uma infiel podia pintar retratos tão bonitos dos soldados e templários do Senhor, vencendo as forças do mal e o fogo do inferno. Sobretudo como ela pintava os radiantes templários de Deus!

Entretanto, Magnus estava irritado com a inatividade forçada que o inverno trazia. Não podia trabalhar como gostaria nas oficinas e a grande quantidade de neve tornava impossível a caça. Mas ele havia começado a demonstrar certo interesse pela tecelagem e Sigrid, de vez em quando, notava as pegadas dele diante das oficinas. E também notou que Suom ficava em sobressalto, como se com medo, quando a via entrar.

Finalmente, Sigrid perguntou direta e seriamente o que estava acontecendo. De início, Suom negou tudo persistente e veementemente, mas, depois, levou as mãos ao rosto e chorou.

Sigrid consolou Suom, acariciando-a nas costas com afeto, enquanto considerava a situação. Se Suom fosse uma mulher livre, Magnus seria culpado de adultério. Mas não era esse o caso. Se quisesse copular com suas escravas, o senhor tinha indiscutivelmente esse direito. E não era difícil entender por que Suom causava uma forte atração, não apenas para os escravos, como também para os homens de bem. Além disso, Sigrid também tinha razões, em parte, para se sentir culpada e disso ela estava muito consciente. Muitas vezes, oferecia dificuldades para Magnus satisfazer seus direitos de homem casado, e a razão para essa complicação só ela conhecia e jamais iria conseguir que seu homem entendesse. Ela não queria ter mais filhos, não queria de novo ter de jogar sua vida nos dados, entre a dor e a morte.

E, por isso, tinha que pagar um preço. Se as escapadas de Magnus já persistiam há bastante tempo, se já houvesse murmúrios e cochichos, talvez fosse necessário propor a ele uma pequena pausa na diversão. Mas no momento era mais importante mostrar amizade para com Suom, para que ela entendesse que não estava a caminho de transformar sua patroa em inimiga ciumenta, uma coisa que mais de uma escrava havia sofrido muito em épocas passadas. Com um estremecimento, Sigrid recordava-se da história de uma parente de sua mãe em que alguém, ela já tinha esquecido o nome, resolveu mandar assar no espeto uma escrava atraente e servi-la para o jantar de seu marido. Segundo se conta, dessa maneira, o tal marido teve a sua coceira nas calças curada.

Entretanto, espalhou-se rápido por Arnäs que a distante Suom já tinha sido desflorada e que não podia mais andar por aí numa atitude arrogante e desdenhosa como se ainda continuasse intocada. Isso fazia com que os escravos ficassem cada vez mais indecentes em seu linguajar e, por fim, também mais atrevidos, começando a fazer-lhe propostas de como ela se sentiria melhor se quisesse provar da força de um macho de verdade, de um touro bem mais potente e menos inclinado a floreados e atenções aristocráticas. E assim corriam as piadas que se espalharam como um rastro de pólvora à volta da pobre Suom. Por isso, estava escrito que um acidente aconteceria.

Para os garotos Eskil e Arn, no entanto, o inverno rigoroso era um tempo maravilhoso. Seu professor, o noviço Erlend, de Varnhem, tinha voltado para o mosteiro pouco antes do Natal e até aquele momento, apesar de já ser o dia da Festa de São Paulo, em fins de janeiro, ainda não tinha reaparecido, não podendo chegar a Arnàs por causa da neve. Nesses dias, eles já deviam estar sentados e de narizes apontados para o texto em latim sobre o filósofo São Bernardo, mas, em vez disso, estavam com os dias livres para se dedicarem com energia e prazer às brincadeiras de inverno e às travessuras próprias da idade. O mais divertido era apanhar camundongos vivos no armazém dos cereais e jogá-los, depois, entre as escravas na cozinha, e correr de lá guinchando de tanto riso contido, enquanto as pobres gritavam e se ouviam as batidas fortes e sonoras denunciando o que acontecia com os camundongos.

Uma vez, eles se infiltraram na casa das armas e pegaram dois escudos redondos que levaram para fora, subindo com eles até chegarem ao palheiro, onde se estocava a palha no final do verão. Então se sentaram nos escudos e deslizaram pela neve, descendo pela encosta como se fossem duas lontras. Suas sonoras gargalhadas atraíram as atenções, e quando Magnus viu o que eles tinham feito com o equipamento dos adultos ficou zangado e deu-lhes uma surra, de modo que eles se foram choramingando e correndo para a mãe, na tecelagem.

Mas aquela pequena tristeza se foi rápido. O escravo Svarte, que viu os meninos e reconheceu a força de sua imaginação, foi até a carpintaria, escolheu algumas pranchas de bom tamanho e deu-lhes a forma de um disco plano. Depois, amoleceu uma das pontas dos discos com vapor e dobrou essa ponta, lentamente, para cima, a fim de embater primeiro na neve como se fosse um esqui, e passou uma fita de couro para que pudessem se segurar e dirigir o veículo, e logo em seguida havia de novo gritos e risos na descida na neve.

Entretanto, quando os filhos do próprio Svarte viram o que o pai tinha feito para os filhos do patrão, exigiram o mesmo brinquedo. E quando ele ponderou que havia uma diferença entre os meninos de escravos e os meninos dos patrões, apareceu a sua Sot subindo nos cascos. E ele passou um dia inteiro na carpintaria. Mas os veículos para seus próprios filhos, ele não os fez tão perfeitos.

A princípio, Magnus não ficou nada contente em ver seus filhos brincando na neve com os filhos dos escravos. Achou que não ficava bem. Eskil e Arn deviam crescer como proprietários de escravos, não como seus companheiros de brincadeiras.

Sigrid achava que crianças são crianças e que as diferenças na vida dos adultos não lhes escapariam quando ficassem mais velhos, quer fossem escravos ou filhos de camponeses. Além disso, eles, agora, nem precisavam estudar latim.

Ela sorriu, sem dúvida pela maneira equivocada da sua última afirmação. Que os garotos iriam aprender latim era tão evidente para ela quanto incompreensível para Magnus. Ela achava que essa seria a língua do futuro. Ele achava que apenas os monges e os padres precisavam desse conhecimento e que em Lõdõse as gentes podiam negociar umas com as outras, longamente, usando a linguagem vulgar, mesmo que, de vez em quando, as coisas se complicassem e fosse necessário começar tudo de novo. Tudo bem, logo o noviço professor estaria de volta, vindo de Varnhem, para retomar as leituras com os garotos. E assim estariam terminadas as brincadeiras na companhia dos escravos.

No entanto, o inverno não quis afrouxar as suas garras sobre Arnäs e inverno mais gostoso e divertido nunca Eskil e Arn tiveram antes, visto que agora a situação mudara e eles passaram a ficar cada vez mais tempo com os meninos dos escravos. Construíram um castelo com a neve que Eskil e Arn defendiam por turnos, enquanto os outros tentavam tomar a fortaleza. A proporção era de dois filhos de escravos para cada um. Eskil e Arn tinham nas mãos pequenas espadas de madeira, ao passo que os outros apenas podiam atirar com bolas de neve, visto que eram escravos e não podiam portar armas. Um choro aqui e acolá e algumas manchas roxas acabaram acontecendo.

Eles ajudaram Kol, filho de Svarte, que era da mesma idade, a caçar camundongos vivos para usar nas armadilhas para arminhos. As peles de arminho eram muito valiosas, cada quatro valiam um escravo.

Quando os lobos começavam a chegar perto de Arnäs, Svarte levava para fora restos do matadouro e ficava estendido, num monte de feno, com uma abertura por onde podia ver os bichos, em noites de luar, de tempo calmo e de quietude.

De um jeito infantil, Eskil garantiu — e Arn confirmou entusiasticamente — que seu pai disse que podiam acompanhar a vigília sobre os lobos, desde que se mantivessem em silêncio, como se fossem ratos. Svarte tinha as suas dúvidas, mas não se atreveu a ir perguntar ao senhor Magnus como é que este podia ter filhos tão brincalhões.

Quando o tempo melhorou, Eskil e Arn se esgueiraram de noite, com armadilhas de pele de carneiro sob os braços, e foram se sentar junto de Svarte, que já estava com duas bestas preparadas e esperava, quieto, pelos lobos. Svarte tinha falado demais em casa, de modo que dali a pouco chegou também seu filho Kol, e os três meninos, de olhos cintilantes e coração batendo forte, sentaram-se ao lado de Svarte e ficaram à espera, tentando não se mexer, não fazer ruídos com a palha, perscrutando a planura de neve e olhando para o montão de restos do matadouro que todas as noites era visitado também pelas raposas.

Por fim, numa noite em que a lua já tinha baixado o horizonte pela metade, mas em que o tempo estava claro e tudo estava imóvel e em que o frio era intenso, chegaram os lobos. Eles escutaram seus passos cuidadosos na crosta congelada sobre a neve muito antes de conseguir descobri-los com os olhos. Excitado, Svarte fez sinal para que os garotos se mantivessem em silêncio absoluto, nada de sussurros nem de mexer uma palha. Na ânsia de reforçar a situação, ele desenhou um corte sobre o pescoço para expressar qual seria a punição dura que os atingiria. Ao mesmo tempo, descobriu os olhos espantados e bem abertos de Eskil e Arn. Em toda a vida, eles nunca tinham sido ameaçados por um escravo, nem mesmo por brincadeira. Mas, naquele momento, muito animados, concordaram, acenando com a cabeça e fazendo sinal com o dedo indicador sobre o anelar de que juravam não soltar nem um pio.

Svarte se mexeu com uma lentidão martirizante ao armar as duas bestas, sem o menor ruído, sem o menor clique. Depois, colocou uma delas de prontidão e levantou a outra com cuidado, na posição de tiro.

Mas os lobos estavam desconfiados. No momento, eram como sombras escuras um pouco mais além, no meio da neve. Demoraram a se aproximar, e Svarte foi obrigado a baixar a arma para não ficar com os braços cansados. Por fim, o primeiro lobo avançou, pegou um pedaço de carne e desapareceu, rápido, do ângulo de tiro, mas foi seguido imediatamente pelos outros lobos. Fora do campo de visão dos meninos, escutava-se o ruído dos lobos disputando entre si a comida. Mas logo se acalmaram e avançaram um a um e ali estavam todos comendo, engolfando a comida e rosnando, e até se escutava o ruído da comida descendo goela abaixo. Os meninos achavam a excitação quase insuportável e não podiam entender por que Svarte perdia tanto tempo para agir.

E de novo ele fez sinal para que se mantivessem absolutamente quietos, desta vez com gestos mais delicados. Depois, elevou a arma e fez pontaria. No mesmo momento do disparo, ele pegou na outra besta, levantou-a na posição, fez pontaria rapidamente e disparou de novo. Lá de fora, da neve, veio como que um lamento, uma lamúria.

Em seguida, logo que Svarte se mexeu sem se preocupar com o barulho, os garotos dispararam em aplausos de júbilo e avançaram brigando pela melhor posição, para ver tudo através do buraco. Lá na frente estava um lobo caído e esperneando na neve. Svarte olhou por cima da cabeça deles. E disse, depois, que o momento a seguir não era conveniente para crianças; um dos lobos estava ferido, mas tinha fugido. Os meninos precisavam voltar para casa ou ficar quietos no lugar e em segurança, enquanto ele ia lá fora ver o que tinha acontecido. Eles prometeram imediatamente ficar sentados e quietos e não ir a lugar nenhum.

Ao descer para o local na neve onde os lobos tinham se exposto, Svarte avançou com uma lança na mão e o corpo inclinado para a frente, pesquisando na neve um pouco mais além. Com o lobo já abatido e que já tinha deixado de espernear, ele não se preocupou. Mas logo descobriu manchas de sangue, começando a caminhar com dificuldade na neve alta.

Os garotos ficaram quietos por muito tempo, escutando no silêncio da noite, e já tinham começado a sentir frio quando escutaram um uivo cortante lá fora na escuridão, depois um rosnar profundo parecido com aquele quando os lobos disputavam a comida. Eskil, Arn e Kol ficaram pálidos de ansiedade, silenciosos e com medo que não era pouco. E esperaram. Mas aguçaram os ouvidos um pouco mais e ouviram então, primeiro fracos, mas depois, cada vez mais identificáveis, os passos pesados de Svarte e o som da sua respiração ofegante.

— O pai está trazendo o segundo lobo nas costas, por isso avança devagar e pesadamente — constatou Kol, com mal afetada segurança. Eskil e Arn concordaram, muito atentos. E pensaram depois no fato estranho de Kol chamar o escravo Svarte de pai. Entre o povo, todos sempre tinham pai, mas e entre os escravos?

A infelicidade de Suom chegou como estava escrito. A velha escrava Urd, que era uma competente curtidora, ainda que mulher, tinha um filho que era meio retardado chamado Skule. Este era forte como um touro e fazia bem seu trabalho diário, desde que não fosse preciso muita inteligência, como quando era necessário trazer a colheita para dentro ou carregar o feno e empilhar barris. Por isso, seus donos tinham sido indulgentes, ele ainda tinha alguma utilidade.

Havia muito tempo que ele lançava seus olhares para Suom. E já tinha se sentido excitado por outras escravas, de uma maneira que ia além da sua compreensão. Mas de tanto escutar dizeres atrevidos delas, ele começou a entender do que se tratava.

Uma semana antes da Festa de São Paulo, em fins de janeiro, numa tarde, ele entrou correndo na oficina de tecelagem, com seu membro ereto diante de si, a camisa levantada, como se ele não agüentasse mais. Muitas viram o que estava acontecendo e pediram rápido por ajuda.

No entanto, Suom acabou sendo maltratada e, pelo que se podia entender, violentada. Quando Sigrid chegou, Skule já tinha sido derrubado e dominado, amarrado com tiras de couro e jogado na praça coberta de neve. Sigrid apenas pulou por cima dele e se apressou na direção de Suom, que tinha desmaiado, mas respirava. Sigrid fez com que ela fosse levada rapidamente para a cozinha mais aquecida e falou para a velha Sot, com insistência, para que ela tomasse conta de Suom com o máximo cuidado e com todas as artes das quais Sigrid não queria ouvir falar, nem queria saber. Só lhe interessava que Suom voltasse a ser o que era. E que Skule fosse jogado numa despensa e que esta ficasse com o ferrolho bem fechado.

Depois da oração da tarde, tudo estava estranhamente quieto na casa grande. As servas da casa andavam lentamente, retraídas, e não se atreviam a perturbar o ambiente com nada além de sussurros entre si. Sua alegria, por vezes quase exagerada, tinha desaparecido, o vento a tinha levado.

Também na mesa de honra onde Magnus e Sigrid e seus dois filhos tomavam a refeição da noite, o ambiente era de tristeza e pouco se falava. Magnus apenas tocara no assunto que a todos agora impressionava, com algumas poucas palavras, no momento em que soube do acontecido. Murmurou algo, que isso de tirar a vida de escravos era uma coisa da qual ele nunca gostara.

Sigrid não se preocupava muito com esse tipo de coisa, estava claro para ela que o tal de Skule devia perder a vida e não importava saber quem é que devia desempenhar a tarefa. Em contrapartida, era preciso evitar a todo custo que Magnus tivesse a sensação de que fora ela a tomar a decisão e não ele. Porque suas diversões com Suom nada tinham a ver com o caso. E era preciso que ele não acreditasse que sua esposa sabia disso. E muito menos que estivesse com ciúmes. Por isso, Sigrid decidiu não dizer absolutamente nada e deixar que ele acabasse chegando por seus próprios meios a uma decisão, fosse ela qual fosse.

Por sua vez, Magnus ficou sentado na esperança de que sua brilhante esposa o liberasse daquela agonia, assumindo ela a responsabilidade da decisão e lhe dizendo apenas o que devia ser feito. Era o que ele esperava que acontecesse.

Portanto, os dois quase não se falaram. E Eskil e Arn notaram o ambiente e não se atreviam a fazer nada à mesa, a não ser comer em silêncio e pensar em esquiar e em lobos.

Por fim, Magnus achou que não podia fugir do problema. Tossiu, para clarear a voz, afastou seu prato de carne em sinal de que já tinha comido o bastante, e pediu mais cerveja, que recebeu de imediato de uma das silenciosas servas que pareciam almas penadas andando por perto.

— Ah, há muito tempo que não se dá cabo de nenhum escravo aqui em Arnäs, não se bota nem algemas neles — começou ele, com um espírito de resolução que logo arrefeceu, diante da passividade de sua esposa que não fez nem sinal de que iria responder.

— Vai acabar com a vida dele, pai? — perguntou Arn, ansiosamente.

— É, meu filho, essa é a pesada responsabilidade do senhor da casa — respondeu Magnus, ao mesmo tempo que olhava de esguelha para Sigrid, que, no entanto, não encarou o seu olhar. E então ele continuou a responder ao filho, se bem que, na realidade, estava falando para sua mulher. — Você entende, meu filho, e você também, Eskil, que nós aqui em Arnàs temos um bom sistema. Os nossos escravos são bem tratados e de boa origem. Eles já sabem que aqui podem adorar seus deuses infiéis, visto que vivem aqui e não em outros lugares. Mas eu sou seu dono e sua lei. Todas as leis devem ser firmes, todas as leis devem ser cumpridas. Assim, têm de ser cumpridas as leis dos donos da casa. Aquele que estupra, que violenta a mulher, deve morrer. Apenas isso. Não é nada divertido cortar a cabeça de um escravo, mas é isso que temos de fazer para manter a boa ordem aqui em Arnäs.

Ele se calou, então, sentindo que falava para seus filhos pequenos num tom de voz e com palavras que não eram indicadas para eles. Mas agora já era tarde, ele já tinha se emaranhado todo, para o terror de seus garotos.

— É o senhor mesmo que vai cortar a cabeça dele, pai? — perguntou Arn de novo.

— É, eu mesmo — suspirou Magnus. — Em muitos outros lugares, os senhores contratam carrascos, mas nunca se considerou isso uma boa medida. O que é que ele vai fazer quando não está cortando cabeças ou chicoteando seus próprios irmãos? E, segundo se conta, muitas vezes acontece que eles próprios acabam sendo mortos pelos próprios irmãos. Não, eu nunca quis ter um carrasco aqui em Arnäs. Essa é a minha responsabilidade e é uma responsabilidade pesada. Mas ninguém deve fugir às suas responsabilidades mesmo quando se trata de matar. Isso é bom você saber, Eskil, visto que terá de enfrentar muitas situações como essa no futuro.

A conversa morreu tão depressa como tinha começado. Nada mais precisava ser dito sobre o assunto. E nenhum outro assunto poderia agitar de novo aquela falecida conversa.

Na manhã seguinte, Magnus mandou formar seus doze escudeiros e reunir seus cerca de cem escravos e liberados, contando com todas as suas crianças, lá no alto da praça da fortaleza, para que todos pudessem olhar para baixo e ver onde ele estava, esperando, com a espada de folha larga na mão.

Magnus tinha dormido mal, mas não tinha trocado nem uma palavra com Sigrid, tomando ele mesmo todas as decisões. Não consentiria que torturassem o escravo, nem que o estropiassem, nem que lhe cortassem fora aquela parte do corpo com a qual pecou mais, nem que o suspendessem até a degradação. Só tirar a vida. E isso ele próprio ia fazer com a espada. Dessa maneira, mostraria ser um senhor indulgente, em especial usando uma espada, o que era considerado um favor recusado normalmente aos maus escravos.

Skule apresentava feridas de frio e os lábios roxos, quando foi trazido. Sua noite passada numa despensa, sem aquecimento, sem mantas e capa, tinha tido conseqüências dolorosas. Mas, no entanto, parecia não entender o que o esperava. Quando viu seu patrão, de pé, no meio da neve, com a grande espada na mão e com ramos de folhas de árvores espalhados como uma coroa à volta de seus pés, ele começou a espernear e a lutar, a resistir, levantando um turbilhão de neve à volta dos seus pés mal revestidos. Conseguiu até soltar uma das botas, ficando à mostra um pé azulado de frio e sujo que deixava marcas na neve, enquanto ele era arrastado sem hesitações para a execução.

Eskil e Arn estavam juntos com sua mãe um pouco à frente dos escudeiros que, por sua vez, estavam um pouco à frente dos escravos e liberados. Sigrid manteve-se impassível, seu rosto parecia congelado na neve com a dignidade de patroa. Mas Eskil e Arn sussurravam e apontavam com o dedo e estavam excitados, de tal maneira que sua mãe teve de pegar em seus pequenos pescoços, sem que ninguém notasse, e apertá-los fortemente, como que os avisando de que tinham que ficar quietos. Magnus considerou insistentemente que os meninos,,deviam estar presentes, para que aprendessem que a vida dos patrões não é feita apenas de prazeres, mas também de deveres duros, deveres que têm de ser cumpridos.

Foi difícil conseguir que Skule mantivesse a cabeça no lugar, visto que ele jogava a parte de cima do corpo para a frente e para trás e gemia o tempo todo. Os dois escravos que o seguravam, por várias vezes, foram atirados para a frente, ficando em posição perigosa, abaixo da espada levantada. Mas, por fim, Magnus executou o golpe e acertou em cheio.

A cabeça de Skule caiu sobre a folhagem das árvores e parou de rosto voltado para cima, de modo que todo o mundo pôde ver todas as suas — derradeiras contrações faciais, como se os lábios quisessem dizer alguma coisa e os olhos, por trás do cílios pestanejando, quisessem ver alguma coisa. O corpo de Skule caiu em convulsões e o sangue jorrou do pescoço cortado em dois lugares, com ímpeto cada vez mais fraco.

Arn ficou olhando intensamente para o pé nu e sujo na neve que primeiro se mexeu ferozmente, coiceando, mas logo ficou totalmente parado. Foi, então, que ele rezou silenciosamente, de cabeça baixa e olhos bem fechados, pedindo a Deus que fosse poupado de presenciar esse ato de novo.

Mas Deus não o atendeu, visto que estava escrito que nenhum outro homem, tanto no país dos sveas como no país dos gotas, viria a presenciar tantos atos semelhantes quanto o pequeno Arn.

Nos dias que se seguiram, os garotos não puderam conviver com os filhos dos escravos. Ficaram dentro de casa, onde a própria Sigrid começou a dar lições de latim para eles, enquanto o noviço Erlend não chegava por causa da neve.

Em fins de janeiro, quando o inverno estava a meio caminho, os ursos se viravam nas suas tocas de hibernação e a neve caía em quantidades iguais, tanto antes como depois. Magnus mandou limpar o caminho até a igreja de Forshem, para que ele e os seus mais chegados estivessem presentes na missa pela primeira vez depois de um período longo demais.

O tempo estava agradável, com sol e ventos fracos, e não fazia frio demais, além do limite que permitia a retirada da capota do trenó. Por isso, a viagem se tornou bastante agradável, com a pista já batida por outros viajantes. Magnus podia ouvir os garotos, bem agasalhados na grande pele de lobo de seu avô, fazendo barulho e rindo atrás no trenó quando este pulava na estrada. E ele incitava os dois cavalos muito fortes para correr mais rápido, porque gostava de escutar o pipilar alegre dos seus dois pimpolhos. Desejava essa diversão também por causa de seus maus pressentimentos, embora não soubesse a razão deles. Deixara metade do seu pelotão de escudeiros em Arnäs, coisa sobre a qual os homens resmungaram, pela simples razão de que, depois dos longos meses de inverno na solidão de Arnäs, eles gostariam de aparecer na entrada da igreja. Era nisso que estavam seus pensamentos e não na igreja, onde como cristãos iriam ouvir a palavra de Deus.

Quando o grupo de trenós de Arnäs surgiu na entrada da igreja, Magnus viu aumentarem os maus pressentimentos. O povo estava dividido em pequenos grupos e falava baixo e não se tinha misturado como antes era tradição. Cada um ficou perto da sua própria família e muitos dos homens usavam cotas de malha de aço por baixo dos mantos, um vestuário que era utilizado apenas em tempos de agitação. A igreja iria encher, visto que todos os vizinhos do sul e do oeste e de Husaby tinham vindo. Mas de leste não havia vizinho nenhum, a não ser seus próprios libertos, e esses ficaram um pouco afastados, isolados e curvados, servil-mente, como se ainda não tivessem aprendido a portar-se como homens livres. Normalmente, Magnus iria ao seu encontro, falar com eles a respeito do tempo e dos ventos, em voz alta, para mostrar o que a liberdade realmente significava, mas nesse momento não havia tempo para essas atenções. Assim que Sigrid e os meninos desembarcaram do trenó, ele deixou que seus criados de casa cuidassem dos cavalos e avançou com a sua família de imediato em direção aos seus melhores vizinhos, a família de Pâl, de Husaby, para saber o que estava acontecendo.

O rei Sverker tinha sido assassinado a caminho da primeira missa do dia de Natal, perto da igreja de Tollstad, e já tinha sido enterrado junto de Ulvhild, sua esposa, em Alvastra. Já se sabia quem era o criminoso, um liberto do próprio rei Sverker e cavalariço em Husaby, e o homem estava fugido, certamente, a caminho da Dinamarca.

Entretanto, a grande questão não era saber quem tinha usado a espada, mas quem fora o mandante. Algumas pessoas achavam que teria sido Erik Jedvardsson que, no momento, se encontrava em Aros Ocidental, no país dos sveas, e que, segundo boatos, já fora eleito rei dos sveas em Mora. Outros achavam que o instigador devia ser procurado na Dinamarca, e era Magnus Henriksen, que agora apresentava suas pretensões à coroa, visto que era neto do rei Inge, o Velho.

Em Linkõping, Karl Sverkersson já tinha se autodenominado rei e convocado o conselho para confirmar sua pretensão. Portanto, a questão oo agora era saber quem seria escolhido rei na Götaland Ocidental, Karl Sverkersson ou Erik Jedvardsson. Mas jamais essa escolha seria feita tranqüila e pacificamente.

Ao tocar o sino chamando para a missa, interromperam-se todas as conversas, e o povo avançou e entrou na casa de Deus para acalmar suas inquietações, se consolar com os evangelhos ou esfriar suas exaltações com os cânticos celestiais, ou ainda fazer como Magnus, que estava concentrado, completamente, em outros pensamentos, que em nada se poderiam considerar como puros e afastados das questões mundanas. Era para crer que a maioria dos homens de família nobre e de armas lá dentro pensaria da mesma maneira que Magnus. E que talvez essa fosse a última vez que se viam como amigos sob o mesmo teto de igreja. Apenas Deus podia saber o que o futuro lhes reservava e qual a família que ficaria contra outra família. Depois de o rei Sverker ter tomado o poder, e isso acontecera quando Magnus ainda era um menino, os gotas nunca haviam guerreado entre si. Mas esse momento, agora, parecia não estar muito longe.

Ao terminar a missa, Magnus estava tão concentrado em seus pensamentos que não notou que era hora de ir embora, até que Sigrid o tocou. Ele pensara bastante e sabia o que devia e o que não devia dizer.

Nas longas conversas que houve entre os homens, enquanto suas mulheres e crianças, cada vez com mais frio e cada vez mais impacientes, esperavam nos trenós, Magnus escolheu muito bem as palavras, o tempo todo. Concordou que Erik Jedvardsson tinha estado como convidado em Arnâs pouco antes do assassinato, mas salientou que a mulher de Erik, Kristina, criara muitos problemas por causa da questão de Varnhem. Por isso, sua família estava a favor e contra Erik Jedvardsson.

Concordou também que sua mulher, Sigrid, fora muito próxima do rei Sverker, mas que o soberano sempre considerara a família da sua própria mãe norueguesa com desaprovação. Por isso, sua família era tanto a favor como contra a família Sverker.

Outros assumiram uma posição mais clara, a maioria pela família Sverker, ao que parecia, mas Magnus não queria se comprometer, não queria indicar ninguém dos próximos como seu futuro inimigo. Seria uma estupidez aquilo que viesse a acontecer. Os inimigos que Deus queria impor, mais cedo ou mais tarde, teriam que ser enfrentados com a espada, independentemente daquilo que fosse dito num momento de empolgação nà entrada de uma igreja.

Mas ficou triste e sombrio durante a viagem de volta para casa, e quando se aproximaram de Arnäs, ficou alerta, inquieto, olhando para todos os lados, como se já esperasse ver sitiantes, embora a neve continuasse ainda a defender Arnäs contra todos os soldados pelo norte e pelo leste.

Quando chegou em casa, mandou buscar mais lenha para as forjas, acendeu-as e foi buscar todos os escravos ferreiros que ficaram trabalhando nos foles e nas bigornas, produzindo flechas e pontas de lança em quantidades tão grandes quanto possível. O ferro que existia em quantidade à volta de Arnäs não dava para produzir espadas.

Já no dia seguinte, Magnus mandou montar dois trenós pesados para viajar a Lõdõse e obter tudo o que fosse preciso para a guerra que se aproximava.

Entretanto, o inverno apenas fingiu que ia abrandar sobre Arnäs e nada de notícias de exércitos sendo equipados, nem da Götaland Oriental nem da Svealand e, assim, Magnus ficou de melhor humor e mudou o esquema de trabalho na ferraria e na carpintaria para finalidades mais triviais. Além disso, Sigrid tranqüilizou-o, dizendo que era improvável que a guerra chegasse a Arnäs em primeiro lugar. Se Erik Jedvardsson fora entronizado rei dos sveas e Karl Sverkersson, escolhido para reinar na Götaland Oriental, eles que se digladiassem entre si para definir a questão, se isso lhes desse prazer. Depois, para a Götaland Ocidental, restaria apenas festejar o vencedor.

Magnus concordou com ela em parte. Na sua opinião, podia acontecer, também, que um dos lados se virasse primeiro para a Götaland Ocidental, para conquistar uma das três coroas, tal como Erik Jedvardsson disse que queria. E então havia que se tomar uma decisão. E se Erik Jedvardsson chegasse primeiro com essa exigência? Ou se Karl Sverkersson viesse primeiro? Ambas as possibilidades estavam em aberto.

Em todos os casos, Sigrid era de opinião que nada podia ser feito e influenciado a partir de Arnäs. Não adiantava ficar bebendo cerveja à noite e especulando sobre o assunto. Mais cedo ou mais tarde, tudo se esclareceria e, então, mas só então, chegaria a hora de tomar decisões. Por seu lado, Magnus achou que, por agora, podia ficar satisfeito com essa idéia.

Mas quando começou a pingar água dos telhados e os gelos começaram a ficar frágeis, aconteceu em Arnäs um acidente muito maior do que teria acontecido se um dos reis chegasse e exigisse fidelidade.

Os garotos mantinham-se agora na maior parte do tempo quietos, disciplinados e ajuizados, visto que o noviço Erlend tinha voltado para Arnäs pouco depois da Festa de São Brás, no início de fevereiro. De manhã até a noite, eles ficavam retidos a um canto da sala da casa grande, perto das lareiras, onde o noviço Erlend tentava enfiar sabedoria nas suas cabecinhas relutantes. Ambos os garotos achavam seu trabalho meio escravo, visto que os textos que Erlend trouxera consigo de Varnhem eram poucos e tratavam de assuntos que não podiam interessar a garotos, nem mesmo a adultos da Götaland Ocidental. A maior parte do tempo era dedicada ao estudo dos filósofos e a suas apresentações sobre os elementos e física. Mas o trabalho não servia para ensinar a eles sobre filosofia; para isso eles eram jovens demais, mas, sim, para lhes incutir gramática e, assim, atormentá-los. Sem a gramática não existe conhecimento, sem gramática o mundo ficará fechado a todo entendimento, insistia Erlend constantemente. E, suspirando, os garotos voltavam, obedientemente, a enfiar a cabeça nos textos.

O noviço Erlend não era de resmungar. Mas até ele podia imaginar uma expressão mais importante para o seu chamado a Deus ou, de qualquer maneira, um trabalho mais agradável do que tentar enfiar sabedoria na cabeça de garotos relutantes. Todavia, jamais iria sequer pensar em questionar as ordens do seu superior, o padre Henri. E, pensava ele, por vezes melancolicamente, talvez essa missão fosse apenas uma provação dura pela qual devia passar ou uma continuada punição pelos pecados que cometera na sua vida terrena antes de ter sido chamado por Deus.

Mas o dia de descanso era feriado também para os garotos, que apenas trabalhavam com o latim. E nos dias de descanso os dois corriam rápido para a oração matinal e logo desapareciam da vista de todos como dois esquilos aperreados. Magnus e Sigrid estavam de acordo que era melhor deixá-los à vontade, para não descobrir que suas condutas estavam longe de representar a quietude e a reflexão que o dia de descanso exigia, segundo a mensagem do Senhor.

O jovem escravo Kol tinha uma gralha domesticada, ensinada a ficar no seu ombro aonde quer que ele fosse. E ele prometeu a Eskil e a Arn que todos iriam, juntos, caçar novos filhotes de gralha, logo que os filhotes das ninhadas do ano, no início do verão, que chegou cedo, ficassem razoavelmente grandes para serem tirados dos ninhos no alto da torre.

Os garotos já tinham subido na torre sem serem notados, para ver quantos ninhos existiam e se já tinham ovos. Por enquanto, verificaram, nada de ovos, mas viram que as gralhas começavam a trabalhar diligentemente para construir seus ninhos. A situação prometia.

Eskil exigiu que Kol lhe emprestasse a gralha e esta pousasse no seu ombro. Naturalmente, Kol nada tinha contra isso, mas chamou a atenção para o fato de a gralha ficar um pouco mais arredia diante de estranhos.

E precisamente como Kol havia receado, a gralha, de repente, deixou o ombro de Eskil e fugiu voando, vindo a pousar num parapeito bem alto, de onde podia observar todo o espaço para vôo livre à sua volta e refletir sobre o término da sua escravatura. Eskil não se atrevia a fazer nada, porque tinha medo de altura. Kol não se atrevia a fazer nada, porque tinha medo de afugentar a gralha e perdê-la entre o céu e a terra. Mas Arn deslizou despercebido até o parapeito e se esticou para apanhar a linha que pendia do pé da gralha. Não conseguindo, subiu mais um pouco na abertura de tiro ainda com gelo, ficando na ponta dos pés e se esticando cada vez mais. Foi então que ele chegou perto da linha e com todo o cuidado a pegou, mas nesse momento a gralha se espantou, soltou um grito e levantou vôo novamente, puxando o menino que se desequilibrou e caiu no vazio. Para os dois garotos embaixo pareceu uma eternidade até que escutaram um som surdo quando Arn atingiu o chão.

Logo Arnäs reverberou de gritos e lamentações quando o pequeno Arn, desmaiado, foi trazido de maca para a cozinha que Suom tinha deixado, justamente nesse dia, após seu restabelecimento. Deitaram o garoto e viram que toda a esperança tinha terminado. Arn estava totalmente pálido e imóvel, sem respirar.

Quando chegou correndo da casa grande, Sigrid ficou fora de si, como qualquer mãe ficaria ao saber que seu filho tinha caído e se machucado muito, mas, quando viu que se tratava de Arn, ela como que parou no tempo, ficou calada e seu rosto totalmente cheio de dúvidas. Era como se sentisse que o acontecido não podia ser verdade. Arn não podia morrer tão jovem, disso ela tinha recebido um aviso no momento em que ele nascera com a aura de vencedor.

Mas ali estava ele, desmaiado, pálido, sem respirar.

Logo em seguida, chegou Magnus, que se ajoelhou ao lado de Sigrid, sabendo já que toda a esperança tinha acabado. Em desespero, mandou que todas as pessoas fossem embora, menos o noviço Erlend. Não queria que ninguém visse suas lágrimas, nem escravos nem criados.

Continuar rezando pela vida de Arn parecia não mais fazer sentido. Melhor seria pedir perdão pelos pecados que, incontestavelmente, tinham atraído a condenação de Deus sobre eles, achava Magnus. Erlend não se arriscava a ter opinião sobre o assunto.

Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, Sigrid apelava aos dois para que não perdessem a esperança, mas rezassem por um milagre. E eles ficaram em silêncio diante do apelo. Afinal, milagres acontecem e ninguém podia estar certo a respeito disso antes de rezar.

Magnus sugeriu que as suas preces deviam ser dirigidas a Nossa Senhora, visto que, sem dúvida, ela tinha tudo a ver com o nascimento dos garotos.

Sigrid sentia, no entanto, dentro de si que Nossa Senhora, Mãe de Deus, certamente tinha perdido a paciência a esta altura para com ela e estava pensando febrilmente quando de repente lhe veio à idéia que o santo que talvez, de certa maneira, estaria mais perto de Arn fosse São Bernardo, que era um santo novo e cujas forças ninguém ainda conhecia direito no norte, nos países nórdicos.

O noviço Erlend concordou de imediato com a proposta e passou a ordenar uma prece depois da outra, diante dos pais ajoelhados. Para Erlend, estava absolutamente claro que São Bernardo era o santo que estava mais próximo de Arn.

Quando a noite começou a descer, Arn ainda não tinha dado nenhum sinal de vida. Mas eles não desistiam, até mesmo quando Magnus, em dado momento, afirmou, num murmúrio, que a esperança tinha acabado e que era melhor aceitar a punição de Deus com pesar, dignidade e arrependimento.

Entretanto, Sigrid jurava diante de São Bernardo e de Deus que, se Arn se salvasse, iria ficar ao serviço das obras sagradas do Senhor entre as gentes do mundo. E ela repetia a sua promessa e conseguiu que Magnus a repetisse pela terceira vez junto com ela.

Justo no momento em que Sigrid sentia que a última luz de esperança estava para desaparecer até mesmo no seu coração, aconteceu o milagre.

Arn levantou-se, apoiado no cotovelo, e olhou em volta, espantado, como se tivesse acordado de uma noite de sono e longe de ter voltado do reino dos mortos. Resmungou qualquer coisa a respeito de sentir uma dor no outro braço e que não podia se apoiar nele. Mas os três adultos nem escutavam mais as suas palavras, visto que estavam empenhados em agradecer a Deus, dizendo suas preces, as mais puras e sinceras, jamais dirigidas ao Senhor.

Arn pôde andar, logo em seguida, junto com sua mãe e se aproximar do aquecimento da sala da casa grande, onde fizeram uma cama para ele perto das lareiras e da parede mestra. Mas como ele continuava com dores no braço direito, chamaram Sot, convencida esta a utilizar artes puras para não ofuscar nem manchar o milagre de Deus com qualquer feitiçaria ou tratamento impuro. Sot apertou um pouco o braço de Arn e verificou o lugar onde ele resmungava mais, onde, portanto, doía mais. Não foi fácil. Arn queria mostrar-se corajoso, não reconhecendo a dor, diante de tanta gente que o olhava e também de seu pai que estava entre todos.

Mas a Sot ele não enganava. Ela foi buscar urtigas secas e cozinhou uma papa, que colocou à volta do braço, prendendo tudo com um tecido de linho. Depois falou com Svarte, que foi até a carpintaria onde trabalhou por um tempo e de lá voltou com dois pedaços de pinho em formato de concha com que mediu o braço, antes de desaparecer novamente para terminar o serviço tal como tinha sido pedido por Sot.

Quando Svarte voltou, ela envolveu o braço de Arn com os dois pedaços de madeira e enrolou tudo com uma nova ligadura, e convenceu a ele e a Sigrid a conservar o braço imóvel, visto que este estava bem machucado, tinha torcido. Em seguida, Sot deu a ele um chá de folhas secas e raízes do prado para que Arn pudesse dormir sem febre.

E logo Arn ressonava, o rosto tranqüilo como se nada de ruim, nem nenhum milagre tivesse acontecido. Sigrid e Magnus ficaram sentados por longo tempo, olhando para seu filho adormecido, ambos igualmente cheios de felicidade diante do inquestionável, que Deus, Nosso Senhor, tinha deixado que um dos seus milagres acontecesse no seu burgo.

Seu segundo filho, Arn, tinha sido chamado de volta, da morte. Ninguém podia duvidar disso. Mas a questão estava em saber se o Senhor teria querido mostrar sua bondade perante aqueles que Lhe pediram com as mesmas lágrimas que todos os pais e todas as mães teriam derramado nos mais difíceis dos momentos. Ou se seria verdade aquilo que Sigrid dizia saber bem dentro de si, que o Senhor teria uma missão especial preparada para Arn quando ele chegasse à idade adulta.

A esse respeito, contudo, ninguém sabia nada ao certo, já que os caminhos do Senhor, muitas vezes, passam por cima da lógica dos homens. Eles podiam apenas incorporar o milagre de Arnäs nos seus sentidos e rezar de novo em agradecimento.

O noviço Erlend há muito que andava ocupado na santificada missão de escrever com precisão e com todos os detalhes a história do milagre de Arnäs. Como a morte de São Bernardo não havia acontecido há muitos anos, certamente este teria sido o seu primeiro milagre, atribuído a ele justamente em Götaland Ocidental e, por isso, alcançando grande significado. Erlend achou também que poderia dar uma grande alegria ao padre Henri com essa história. E, possivelmente, com a sua operosidade e exatidão, talvez conseguisse encurtar a sua espera para ser aceito como irmão de fato na ordem cisterciense. De qualquer maneira, não iria fazer mal chegar com tão grandes notícias.

O pergaminho ainda não era produzido em Arnâs, mas havia a pele de vitela, bem fina, que era raspada com vidro em um dos lados e que o senhor Magnus vendia para vestuário. Erlend pôde utilizar as sobras desse material para seus exercícios de escrita com os garotos.

Entretanto, a escrita e o desenho passaram a ser muito mais freqüentes do que a leitura no canto de estudo na grande sala. E os garotos não tinham nada contra essa mudança, visto que ambos possuíam boas mãos para usar a pena e as cores. Receberam, então, a incumbência de escrever nas sobras o texto que Erlend criava em latim e, depois, tentar traduzir para a linguagem rúnica na linha embaixo. O senhor Magnus foi rigoroso ao dizer que, se era para escrever na linguagem da Igreja, também tinham que aprender ao mesmo tempo a escrever como seus ancestrais. Para futuros mercadores isso não seria de forma alguma uma arte inútil.

Nas primeiras tentativas de escrever, Erlend reparou que o pequeno Arn, que continuava com seu braço direito inutilizável, escrevia, produzia manuscritos e desenhava pequenos retratos com a mesma facilidade com a mão esquerda. Enquanto a lesão subsistiu, Magnus não se preocupou com a questão, se bem que não se tratava de um bom sinal alguém preferir usar a mão imprópria. Mas, quando a mão direita de Arn ficou boa de novo, verificou-se que ele a utilizava tão bem quanto a mão esquerda. Era como se não houvesse qualquer diferença, mais como se fosse uma questão de humores ou com que mão ele por acaso apanhava a pena de ganso.

Depois de muito repetir o escrito, de muito trabalho e orações, Erlend achou que a sua história estava pronta e logo se dispôs a viajar, o mais rápido possível, para Varnhem, justificando a viagem com compromissos a cumprir no mosteiro, qualquer coisa a respeito de certos feriados exigirem a presença de todos os noviços e que, caso não fosse, se arris- “* caria a ser punido. Cheio de fervor, pôde viajar a cavalo para Varnhem, na Anunciação de Maria, no dia em que as garças-azuis voltaram para Götaland Ocidental.

Os garotos não lamentaram a sua viagem. Quando a primavera chegou e as praças do burgo, a praça da fortaleza e as outras grandes áreas entre as casas em Arnäs ficaram livres da neve, chegou também a hora das brincadeiras para todas as crianças. Uma brincadeira especial em Amas era a de pegar um arco na oficina de arcos para barris e depois correr com ele na frente, rolando, enquanto o tempo todo o garoto o dirigia e lhe dava mais velocidade com uma varinha. A brincadeira evoluiu de modo que cada um tentava tirar o arco do outro, mas apenas com a ajuda da varinha, dirigindo depois o arco entre os muros da fortaleza. Quando alguém conseguia bater com o arco no muro, a vitória era sua. O que não era tão fácil, visto que todos os outros sem arcos, mas com suas varinhas, faziam todo o possível para evitar isso.

Arn não pertencia à faixa dos garotos mais velhos, mas mostrou logo ser aquele que sempre se saía melhor nessa brincadeira, ainda que pequeno fosse. Era rápido como uma doninha, mas, além disso, conseguia fazer uma coisa que os outros não podiam imitar, a de mudar rápido da mão esquerda para a direita, e com isso alterava repentinamente a direção do arco rolante, de modo que todos os outros garotos corriam para o lugar errado. Só quando passavam uma rasteira nele ou puxavam sua camisa ou o agarravam é que conseguiam pará-lo. O ardor dos garotos mais velhos na aplicação de tais métodos era cada vez maior, mas a rapidez de Arn também aumentava cada vez mais. Por fim, Eskil, o único que se atreveria, começou a pará-lo com tapas no rosto, desde que Arn lhe desse essa chance.

Mas, então, Arn se cansava, abandonava tudo e ficava zangado.

Magnus achou por bem consolá-lo e deixou que fabricassem arcos e flechas de tamanho apropriado e levou Arn para começar a ensiná-lo a atirar. Não demorou muito e Eskil chegou correndo e queria aprender junto. Mas, para sua frustração, seu irmão mais jovem conseguia atirar, todas as vezes, muito melhor do que ele, e então, em breve, os dois irmãos entravam em choque e brigavam um com o outro. Magnus interferiu logo, meteu-se no meio e decidiu que se voltassem a brigar só voltariam a atirar quando ele estivesse presente. Daí, a brincadeira transformou-se, de repente, em estudo, mais ou menos como ficar sentado escrevendo e lendo textos incompreensíveis. E assim acabou a diversão, pelo menos para Eskil, que sempre acabava vencido tanto pelo pai quanto pelo irmão mais novo.

Entretanto, aquilo que Magnus tinha visto entre os dois irmãos deixou-o pensativo. Eskil era como todos os outros meninos na sua maneira de agir e de atirar com arco e flecha, mais ou menos como ele tinha sido quando criança. Mas Arn tinha qualquer coisa que os outros garotos não tinham, uma capacidade que lhe devia ter sido dada por mão divina. Alguns dos escudeiros a quem Magnus tinha perguntado a opinião passaram a examinar Arn com cuidado, quando ele atirava, e acenavam afirmativamente com a cabeça, concordando. Quais as conseqüências disso ninguém podia dizer com certeza, mas sua competência era grande.

Durante várias noites claras de verão, Magnus falou deste assunto com Sigrid, depois que os garotos já tinham ido para a cama. Que Eskil seria o herdeiro de Arnäs estava certo e era a vontade de Deus, visto que Eskil nasceu primeiro. Portanto, Eskil iria dirigir o burgo e o comércio. Mas quais seriam as intenções de Deus a respeito de Arn?

Sigrid concordou que, ao que parecia, Deus havia pensado em uma missão de guerra para Arn, mas ela não estava ainda absolutamente certa de gostar dessa explicação, por mais clara que ela pudesse parecer. E em seu íntimo atormentava-a a consciência pesada de que havia prometido a Deus, sem dúvida num momento em que as lágrimas caíam e os sentidos estavam dominados pelo desespero, mas ainda assim ela tinha prometido a Deus que Arn seria dedicado ao trabalho divino entre os homens na terra.

Sobre o assunto, ela ainda não tinha falado com Magnus, parecia que essa promessa, justamente, era algo que Magnus escondia na sua memória, embora ele devesse se lembrar dela tão bem quanto Sigrid e fosse um homem orgulhoso de sempre ter cumprido com a sua palavra. Mas agora Magnus via o futuro do seu segundo filho como um poderoso guerreiro à frente da família, e essa imagem, certamente, lhe dava mais alegria do que vê-lo como bispo em Skara ou prior em qualquer mosteiro. Os homens pensam assim. Isso não era nenhuma novidade para Sigrid.

Mas logo em seguida Deus se fez presente e lembrado de Suas vontades. Tudo começou com uma pequena ferida irritante numa das mãos de Sigrid. Segundo se lembrava, a ferida advinha do impacto de uma vara de madeira, provocado por uma novilha arisca em um dos estábulos. A novilha lhe dera um encontrão e ela teve que se apoiar fortemente para não cair. A ferida não quis sarar e tornou-se cada vez maior e mais feia.

Uma manhã Magnus descobriu uma coisa estranha no rosto de Sigrid. E quando ela foi até a barrica de água e se viu refletida, verificou que tinha no rosto uma nova ferida igual à da mão e levando o dedo à ferida descobriu que estava cheia de pus.

Depois disso, a doença se desenvolveu rapidamente. A ferida no rosto se alastrou e, em breve, ela já não conseguia ver com o olho que estava mais próximo da primeira ferida, onde ela coçava mais e, muitas vezes, era levada a esfregar. Sigrid começou a esconder o seu rosto e rezava fervorosamente todas as manhãs, ao meio-dia e à tarde. Mas parecia não dar certo. Seu marido e os garotos começaram a olhar para ela com medo.

Quando o noviço Erlend voltou cavalgando de Varnhem, trouxe muitas notícias, boas e más. As boas notícias, tal como ele contou primeiro, eram as de que a história do milagre de Arnäs tinha sido aceita muito bem em Varnhem, e acabou sendo transposta para o verdadeiro pergaminho, com uma caligrafia muito bonita e colocada no livro de registros do mosteiro.

As más notícias diziam respeito a Kristina, mulher de Erik Jedvar-dsson. Ela se encontrava num dos burgos de sua família, nas proximidades, com um poderoso escudeiro que seu marido, rei dos sveas, tinha providenciado para ela. Isso mesmo, era verdade, Erik Jedvardsson era agora o rei de Svealand.

Kristina tinha realizado manobras diabólicas, uma atrás da outra, instigando os camponeses contra seus irmãos e até convencido um ou outro padre a ficar do seu lado. Acontecia que o mosteiro estava localizado num terreno incorretamente ocupado, que uma parte do terreno, na realidade, pertencia a ela e se alguém não quisesse seguir, voluntariamente, a vontade dela, mais tarde não teria perdão, quando o rei Erik chegasse a Götaland Ocidental.

Um dia, durante uma missa, um grupo de mulheres invadiu o mosteiro apenas em camisolas e dançaram e cantaram canções impróprias nesses trajes íntimos. Depois, sentaram-se no meio da praça interna do mosteiro e fizeram as suas necessidades. Foi uma trabalheira infernal para os irmãos limpar e benzer o mosteiro de novo.

Sigrid entendia agora a dura advertência de Deus. Chamou seu marido e Erlend para um canto da sala, mandou embora todas as criadas e mostrou o seu rosto desfigurado para Erlend, que ficou pálido e aterrorizado pelo que viu. Depois, ela disse o que devia ser dito:

— Magnus, meu querido senhor e marido, com certeza você se lembra da promessa que fizemos a São Bernardo e a Deus, Nosso Senhor, justo no momento antes de o Senhor ter chamado Arn de volta à vida. Nós prometemos oferecê-lo para o santificado trabalho divino na terra se ele sobrevivesse. Depois disso, no entanto, nunca mais falamos no assunto. E, em vez disso, falou Deus para nós como Ele considera a nossa perfídia. Nós precisamos nos arrepender e remediar a situação, você entende?

Magnus esfregou as mãos uma na outra e reconheceu que ele se lembrava, sim, muito bem dessa promessa, mas que essa promessa saíra deles num momento muito difícil e isso até Deus devia entender, não era verdade?

Sigrid voltou-se, então, para Erlend, que era muito mais íntimo com as coisas divinas do que ela e Magnus. Erlend não podia fazer nada a não ser concordar. Parecia ser lepra, teve ele que dizer diretamente. E essa praga não era conhecida em Arnäs nem em nenhum lugar na Götaland Ocidental e, por isso, o acontecido não podia ter vindo de outra origem senão do Senhor. E o sinal estava no fato de que o gesto de Sigrid mais agradável a Deus, o de ter oferecido o terreno para a construção do mosteiro de Varnhem, agora estava em perigo. Isso não podia deixar de ser considerado também como uma nítida advertência.

Deus exigia o cumprimento da sua promessa. E Ele punia Sigrid por sua hesitação. De outra maneira, não se podia entender o acontecido.

No dia seguinte, pesava a tristeza sobre Arnäs. Nas praças do burgo e na praça da fortaleza não se escutava nem uma risada nem nenhuma briga entre as crianças brincando. As criadas da casa passavam na sala como os espíritos silenciosos da floresta e para algumas era difícil esconder suas lágrimas.

Magnus estava perdido, sem saber como comunicar a dura mensagem ao seu filho mais jovem. Mas enquanto Sigrid se ocupava em fazer as malas para a viagem, ele chamou Arn e os dois subiram até o cimo da torre onde podiam ficar completamente à vontade. Arn, que ainda não tinha entendido o que estava para lhe acontecer, pareceu pensativo, mas mais curioso do que receoso.

Magnus levantou-o e sentou-o numa das aberturas de tiro para que pudesse encarar seu filho, mas logo se deu conta de que talvez essa não tivesse sido uma escolha inteligente do lugar, talvez Arn sentisse medo de altura, de onde caíra para entrar no reino da morte.

No entanto, Arn não mostrou nenhum receio da altura, antes se debruçou sobre a ameia para olhar para baixo e ver onde tinha caído, enquanto seu pai parecia distraído com seus próprios pensamentos.

Magnus, com todo o cuidado, puxou seu filho para trás e abraçou-o, começando em seguida sua difícil explicação. Apontou para o campo, até onde a vista alcançava, vendo que em todo lugar ocorriam os trabalhos agrícolas da primavera. Depois, declarou que tudo aquilo iria ser o reino de Eskil, no dia em que ele próprio deixasse esta vida, mas que para Arn o reino seria ainda maior, seria o reino de Deus aqui na terra.

Arn pareceu não ter entendido ainda as palavras de seu pai, talvez fossem, para seus ouvidos, mais um discurso religioso, quando as pessoas gostavam de ser solenes e diziam coisas que nada significavam, momentos antes de dizerem coisas que significavam algo. Magnus teve de voltar ao princípio.

Contou, então, a respeito daqueles momentos difíceis em que Arn não esteve entre os vivos e como ele e Sigrid, no seu desespero, prometeram a Deus que ofereceriam seu filho a Ele, para que ficasse ao serviço de Deus na terra, desde que seu filho voltasse a viver. Depois disso, tinham hesitado em cumprir sua promessa, mas Deus estava punindo os dois, duramente, pela sua falha e, por isso, a promessa precisava ser cumprida imediatamente.

Arn começou a ficar inquieto, imaginando que algo de ruim estava para lhe acontecer. E logo em seguida seu pai confirmou isso, ao lhe dizer, sem rodeios, o que estava planejado para ele. Arn iria viajar para Varnhem com sua mãe e Erlend. Iria entrar para o mosteiro como coroinha, que era o nome que se dava às crianças que entravam para o serviço de Deus. Deus, certamente, tomaria conta dele, assim como o seu santo, São Bernardo, visto que Deus, sem dúvida, tinha grandes planos para ele.

Agora, sim, Arn começava a entender. Seus pais iriam oferecê-lo a Deus. Não como antes no mundo, não como diziam as lendas dos tempos pagãos, mas, de qualquer maneira, iriam oferecê-lo a Deus, e ele, apenas uma criança, não podia fazer nada a respeito, visto que as crianças sempre devem obedecer a seu pai e a sua mãe. Ele começou a chorar e, por muito que se envergonhasse de chorar na frente do pai, não podia conter as lágrimas.

Magnus abraçou-o e, meio sem jeito, tentou consolá-lo com palavras a respeito da boa vontade e da proteção de Deus e a respeito de São Bernardo, que seria seu anjo da guarda e mais outras coisas de que se lembrou. Mas o corpo pequenino do garoto sacudia em convulsões com o choro, nos braços do pai, e este se sentiu como se fosse ele e, embora Deus proibisse, sentiu-se prestes a mostrar também sua tristeza.

As carruagens foram trazidas e os escudeiros assumiram seus lugares e ficaram à espera nos seus cavalos na praça do burgo, diante do portão da casa grande. Foi então que Sigrid saiu primeiro, com seu rosto coberto, e subiu na carruagem da frente. Depois saiu Erlend, olhando temeroso em volta e subindo rápido na segunda carruagem.

Por último, apareceu Magnus com os dois garotos que, chorando, se abraçaram e se agarraram um ao outro como se, com a força dos seus braços infantis, pudessem evitar o que tinha de acontecer. Magnus interferiu suavemente, mas com firmeza, separando os dois. Depois, levantou Arn e levou-o até a carruagem de Sigrid, sentando-o ao lado da mãe. Em seguida, fez uma inspiração profunda e chicoteou os cavalos que partiram puxando a carruagem com uma sacudida brusca enquanto ele próprio se virava e se dirigia de volta para o portão, não sem antes fazer uma tentativa frustrada para segurar Eskil, que, entretanto, se soltou.

Magnus entrou e fechou o portão, sem se virar. Eskil correu durante algum tempo, chorando, atrás das carruagens até que caiu e se machucou e, desesperado, viu a cabeça de seu irmão desaparecer entre as nuvens de poeira da estrada.

Arn chorou amargamente, ficou de joelhos, olhando para trás na direção de Arnäs que foi ficando cada vez menor no horizonte. E compreendeu, então, que nunca mais veria a sua casa, o seu lar. E, para Sigrid, foi impossível consolá-lo.

Para o padre Henri, a visita de Sigrid veio num momento inconveniente. Seu velho amigo e colega de Clairvaux, o padre Stephan, que agora era prior em Alvastra, estava de visita para discutir uma situação difícil que surgiu com uma rainha que brigou e incitou o povo contra os irmãos em

Varnhem. Sem dúvida, entre todos, Stephan era aquele com quem o padre Henri gostaria de discutir questões complicadas. Os dois tinham vivido juntos desde a juventude e tinham pertencido ao primeiro grupo que recebeu a terrível instrução do próprio São Bernardo, que ambos teriam que se mudar para a fria e bárbara região nórdica para montar um mosteiro afiliado. Foi uma longa, horrível e depressiva ronda até chegar à Escandinávia.

O padre Stephan já tinha lido a história do milagre de Arnäs e já sabia do problema de Sigrid. Na realidade, já não se aceitavam coroinhas em Alvastra e Varnhem, como também no mosteiro matriz em Burgund. O pensamento por trás dessa mudança era lógico e fácil de entender. O livre-arbítrio do homem em escolher o caminho de Deus ou o caminho da danação ficaria fora de ordem caso se aceitassem crianças de pouca idade a serem educadas no mosteiro. Essas crianças já aos doze anos de idade estavam prontas para serem monges e desconheciam outro tipo de vida que não a dos monges. É fácil chegar à conclusão de que esse tipo de crescimento retirava às crianças o direito de escolha. Por isso, foi uma mudança inteligente não mais aceitar crianças nos mosteiros.

Por outro lado, o milagre de Arnäs não era coisa que se deixasse passar em branco, não era pouca coisa. Se os pais prometeram a criança a Deus no momento mais crítico e a esse respeito não subsistiam dúvidas, e se Deus realmente permitira que o milagre acontecesse, então a promessa dos pais só podia ser entendida como sagrada, sendo impossível a sua quebra.

E se os próprios servidores de Deus tornassem a promessa impossível de ser cumprida? E se eles se negassem a aceitar a criança com base na decisão de não receberem mais coroinhas?

Então, possivelmente, os pais estariam livres de sua promessa. Mas, ao mesmo tempo, dessa maneira, as pessoas estariam se colocando, por conhecimento e vontade e calculadamente, acima da declarada vontade de Deus. Era impossível. Quer dizer, a criança tinha de ser aceita.

E o que estaria acontecendo com a senhora Sigrid? Pelo que se dizia, Deus a punira duramente por sua hesitação e agora ela estava aqui para remediar a situação. Ela dissera qualquer coisa a respeito de que do mosteiro bastaria receber as migalhas das refeições para viver, mais ou menos isso.

Mas tudo foi influenciado por uma questão muito maior, a de que, muito simplesmente, Varnhem teria que ser abandonado, teriam que voltar para Clairvaux e de lá tentar fazer com que Kristina e, eventualmente, seu marido fossem banidos, de modo que ficassem sem mais esse problema e começassem tudo de novo. Seria um procedimento que com o tempo de viagens e tudo o mais incluído devia demorar uns dois anos.

Os dois homens estavam sentados na sombra das arcadas construídas para ligar a igreja aos quartos dos monges. Diante deles se estendiam as plantações do irmão Lucien. O padre Henri tinha mandado o irmão Lucien ir à antiga casa de hóspedes onde Sigrid e seu filho agora se encontravam. E então sua conversa, muito séria e difícil, foi interrompida pela volta do irmão Lucien, com uma profunda ruga de preocupação na testa.

— Bem — disse ele, com um suspiro e deixando-se cair no banco de pedra ao lado deles. — Não sei bem em que devo acreditar. Lepra, acho que não é. As feridas são grandes e demasiado aquosas. Acredito mais que se trata de alguma variante de peste suína, essa que vem da sujeira dos animais. Mas que a coisa está feia está, sem dúvida.

— E em se tratando de alguma espécie de peste suína, o que é que você pode fazer, meu caro irmão Lucien? — perguntou o padre Henri, interessado.

— Hum... Você quer dizer, realmente, padre, que eu devo fazer alguma coisa? — estranhou o irmão Lucien, hesitante.

— Como assim? — perguntaram os outros dois ao mesmo tempo, ambos igualmente surpresos.

— Bem, quero dizer... Se foi o próprio Senhor que colocou essa doença nela, quem sou eu para ir contra a vontade do Senhor?

— Basta, irmão Lucien, não se faça de tolo, agora! — exortou o padre Henri, irritado. — Você é o instrumento de Deus e deve fazer o melhor possível, e se Ele achar que você fez um bom trabalho, isso ajuda. Se você não fizer nada, nada vai mudar. Portanto, diga logo o que você pensa fazer.

O monge, especializado em ervas curativas, explicou que era preciso limpar e secar as feridas, pelo que ele entendia. Era preciso lavá-las com água fervida e benzida. Depois, só ar e sol e os furúnculos estariam secos dentro de uma semana. Pelo menos, os furúnculos do rosto da senhora Sigrid. Os da mão pareciam mais difíceis e na pior das hipóteses tratava-se de alguma coisa diferente de uma insignificante peste suína.

O padre Henri acenou com a cabeça, concordando, interessado. Como de costume, quando o irmão Lucien descrevia seu primeiro diagnóstico medicinal, ele convencia. Aquilo que o padre Henri admirava mais era a sua capacidade de manter a mente fria diante do problema e de não correr e botar toda espécie de ervas medicinais de uma vez, na esperança de que se uma não desse certo, talvez a outra desse. Segundo o irmão Lucien, um tal comportamento irrefletido poderia até piorar a situação.

Assim que o irmão Lucien foi embora para desempenhar a sua tarefa mais urgente no momento, o padre Stephan retomou a antiga conversa, dizendo que, sem dúvida, estava claro ser desejo de Deus, Nosso Senhor, receber algo de especial daquele menino. Mas se era apenas mais um monge entre tantos outros monges que Ele desejava, não seria um pouco de exagero sinalizar isso com um milagre e lepra? As pessoas se tornam monges, realmente, por muito menos pressão do que essa.

O padre Henri rompeu em gargalhadas diante da lógica do colega, tão drástica quanto bem-humorada. Mas, muito bem, não existiam contra-argumentos. Deviam, então, aceitar o garoto, mas tratá-lo com muito cuidado, como se fosse uma planta frágil do irmão Lucien e, além disso, cuidar para que sua vontade livre não fosse tolhida. Talvez daqui a algum tempo fosse possível ver melhor as intenções do Senhor para com este garoto. Embora sobre isso, na realidade, todos já tivessem concordado.

Portanto, o garoto iria ser coroinha, ainda que um coroinha meio tardio. E se tivessem que mudar de Varnhem, ele seguiria junto. Mas isso era uma questão para mais tarde.

Restava o problema da senhora Sigrid. O mais simples, evidentemente, seria começar por recebê-la em confissão e escutar o que ela teria a dizer. O padre Stephan entrou no scriptorium para mais uma vez ler a história do milagre de Arnäs, desta feita com um pouco mais de atenção. O padre Henri seguiu preocupado para a antiga casa de hóspedes fora dos muros do mosteiro para escutar a confissão de Sigrid.

Foi encontrar mãe e filho em estado lastimável. Existia apenas um catre no quarto, onde Sigrid estava deitada, ardendo em febre, de olhos fechados, e, a seu lado, um garotinho de olhos vermelhos de choro, que segurava, convulsivamente, a mão sã de sua mãe. A casa não tinha sido limpa, estava cheia de sucatas e lixo, e fazia frio. Não era utilizada há muitos anos. E estava assim porque havia outras coisas mais importantes para fazer do que derrubá-la, isto porque suas paredes de madeira estavam velhas e podres e não podiam ser reutilizadas.

Ele jogou a estola sobre os ombros e avançou na direção de Arn a quem acariciou na cabeça com carinho. Mas Arn pareceu não ter notado nada ou fingiu não ter notado.

Então o padre Henri pediu ao garoto para ficar lá fora por uns momentos, enquanto a sua mãe se confessava, mas o menino apenas abanou a cabeça sem olhar para cima e apertou ainda mais a mão de sua mãe.

Nesse momento Sigrid acordou e, logo em seguida, Arn, contrariado, saiu da casa, batendo com a porta já em mau estado. Sigrid ficou zangada com isso, mas o padre Henri, sorrindo, colocou o indicador sobre a sua boca e soprou um som sibilante como sinal de que ela não devia se preocupar com o caso. E, então, perguntou se Sigrid estava disposta a se confessar.

— Sim, padre — respondeu ela, com a boca seca. — Me perdoe, padre, visto que pequei. Com a ajuda do sagrado São Bernardo, eu e o meu marido e senhor, junto com o noviço Erlend, conseguimos, através de profundas orações, com a ajuda do Senhor, trazer de volta à vida o nosso filho Arn. Mas, momentos antes de este milagre acontecer, prometi ao Senhor, solenemente, oferecer o menino para o trabalho sagrado de Deus na terra, se Ele, prazerosamente, salvasse o meu filho. * — Sim, já conheço a história, é precisamente, palavra por palavra, como foi escrito pelo noviço Erlend. Aliás, o seu latim flui como água. A senhora tem praticado nos últimos tempos? Não, de qualquer forma, voltemos à sua confissão, minha filha.

— Sim, tenho praticado junto com os meninos — sussurrou ela, cansada, fazendo uma inspiração profunda e pensando intensamente antes de continuar. — Eu traí minha sagrada promessa a Deus, Nosso Senhor, fingi que nada tinha prometido e, por isso, Ele me castigou com a lepra como o senhor pode ver. Quero fazer penitência, se é que se pode fazer penitência por um pecado tão grave. E para mim será bom se eu puder viver aqui nesta casa, sem incomodar ninguém e comendo apenas as migalhas da mesa dos monges enquanto viver.

— Pode parecer, minha cara senhora Sigrid, que tanto fez por nós, assíduos neste jardim do Senhor aqui em Varnhem, que o Senhor foi duro com a senhora — disse o padre Henri, agradecido. — Mas não podemos esquecer que é um pecado grave quebrar uma promessa sagrada feita a Deus, Nosso Senhor, mesmo que essa promessa tenha sido feita num momento difícil. Porque não é mesmo no momento das nossas maiores dificuldades que fazemos ao Senhor as maiores promessas? Vamos tomar conta do seu filho, embora de maneira diferente, como o Senhor e a senhora nos pediram. É Arn o nome dele, não é verdade? Eu devia saber, pois fui eu que o batizei. Bem, e depois vamos tratar das suas feridas e a senhora ficará aqui, comendo, sim, como diz a senhora, as migalhas da nossa mesa. Mas eu não lhe posso dar agora o perdão por seus pecados. E peço para não ficar pensando horrores por isso. Acontece que não sei ainda o que o Senhor nos quer dizer. Quem sabe, talvez Ele queira lhe dar apenas uma leve reprimenda? Reze agora vinte padre-nossos e vinte ave-marias, durma depois e fique tranqüila que a senhora está em boas mãos, seguras e cuidadosas. Vou mandar o irmão Lucien para tratar das suas feridas com o maior dos cuidados e se acontecer, como acho, mas ainda não sei, que o Senhor a cure e lhe devolva a boa saúde, então, em breve, a senhora estará livre do pecado. Descanse agora. Vou levar o garoto comigo para o mosteiro.

O padre Henri levantou-se e examinou o rosto desfigurado de Sigrid onde um dos olhos já estava tão fechado de pus e sujeira que nem se conseguia ver e o outro olho estava apenas meio aberto. Inclinando-se para a frente, ele cheirou com cuidado as feridas, acenou depois com a cabeça pensativamente, de modo afirmativo, e saiu enquanto colocava a estola no bolso.

 

Lá fora, Arn estava sentado numa pedra e olhava para o chão e nem se virou quando o padre Henri saiu.

Este ficou de pé, olhando para Arn por momentos, até que o garoto não podia mais deixar de notar sua presença. Então, o padre Henri sorriu, demonstrando ser amigo, mas recebeu de volta apenas um soluço zangado como resposta. E o garoto voltou a desviar o olhar.

— Venha, mon fils, venha comigo como menino educado que você é — disse o padre Henri, tão suavemente quanto podia, habituado como estava a sempre ser obedecido. Avançou e pegou Arn pelo braço.

— Será que você não pode falar direito, velho ranzinza? — cortou Arn, esperneando e resistindo o quanto podia, enquanto o padre Henri, que era um homem forte e alto, o arrastava em direção ao mosteiro com a mesma facilidade com que teria pego um pequeno cesto com hortaliças do quintal do irmão Lucien.

Ao chegar ao claustro no jardim do mosteiro, o padre Henri encontrou seu colega de Alvastra no mesmo lugar onde antes tinham estado a conversar.

O padre Stephan levantou-se, animado, logo que viu o indisciplinado e impaciente Arn.

— Ah! — exclamou ele. — Aqui temos... Oh, o nosso jeune oblat. Enfin, nada bem agradecido a Dieu, não é verdade?

O padre Henri, com um sorriso, abanou a cabeça concordando, e colocou Arn de imediato no colo do seu colega que sem dificuldade evitou um resoluto soco do garotinho.

— Segure esse menino enquanto puder, meu caro irmão. Eu tenho que falar um pouco, imediatamente, com o irmão Lucien — disse o padre Henri e saiu para o jardim à procura do seu irmão de fé, responsável pela medicina no mosteiro.

— Vamos, vamos, pára de espernear — intimou, divertido, o padre Stephan ao garoto.

— É pára. Não é parál — corrigiu Arn, tentando se libertar, mas descobriu que estava bem preso em braços fortes e desistiu.

— Tudo bem, se você acha que a minha linguagem nórdica soa mal ; aos seus pequenos ouvidos, então talvez a gente possa falar numa língua que, no caso, para mim é melhor — segredou o padre Stephan em latim, sem que, na realidade, esperasse qualquer resposta.

— Isso é melhor para nós dois, visto que você não sabe falar a nossa língua, seu velho monge — respondeu Arn, zangado, na mesma língua em que o padre lhe tinha acabado de falar.

O padre Stephan se animou, agradavelmente surpreso.

— Na verdade, acho que vamos mesmo chegar a um acordo, você e eu e o padre Henri, melhor e mais rápido do que você pensa, meu jovem, — segredou o padre Stephan no ouvido de Arn, como se estivesse informando a respeito de uma grande novidade sigilosa.

— Não quero ficar sentado como um escravo ao lado dos livros, velhos e chatos, todos os dias — murmurou Arn, agora um pouco menos zangado do que momentos antes.

— E o que é que você prefere fazer? — perguntou o padre Stephan.

— Quero ir para casa, não quero ser seu prisioneiro e escravo — disse Arn, não conseguindo mais continuar insolente e rompendo novamente em choro convulsivo. Mas inclinou-se sobre o peito do padre Stephan e ficou quieto, enquanto era acariciado e recebia uns tapinhas nas suas costas viçosas.

O irmão Lucien, como muitas vezes antes, teve razão no seu primeiro diagnóstico. As feridas no rosto de Sigrid não tinham nada a ver com lepra e, assim, ele conseguiu um sucesso bem rápido no tratamento previsto.

Primeiro, mandou alguns noviços para a casa de hóspedes para limpá-la e para tampar com cal e pintar as paredes, isto apesar da oposição de Sigrid às melhorias, visto que, segundo ela, no seu estado tão ruim, não merecia ornamentações nem limpezas. O irmão Lucien tentou explicar a ela que não era questão de estética, mas de saúde, mas parecia que eles não se entendiam realmente nessa discussão.

No entanto, o rosto de Sigrid se recuperou, justamente, com os remédios que o irmão Lucien de início pensou, água benta limpa, sol e ventilação. Em contrapartida, não teve qualquer sucesso com a ferida que se alastrou da sua mão, subindo pelo braço que começou a inchar e a ficar roxo. Ele experimentou vários preparados muito fortes, por vezes quase perigosos, mas sem êxito. Finalmente, sabia que apenas existia um remédio para curar aquele envenenamento do sangue. Um sinal seguro disso é que ele não tinha conseguido baixar sua temperatura.

No entanto, não queria informar Sigrid, pessoalmente, do que havia a fazer, antes procurou o padre Henri e explicou para ele qual era a solução. Era preciso cortar tudo o que estivesse ruim, era preciso cortar o braço dela. Caso contrário, o mal do braço se espalharia em breve para o coração. Caso se tratasse de algum dos irmãos, era só chamar o irmão Guilbert com seu grande machado. Mas seria possível uma ação dessas para com a senhora Sigrid, benemérita de todos os irmãos?

O padre Henri concordou com tudo. Iria tentar apresentar a questão o melhor possível para a senhora Sigrid, mas antes tinha outra coisa a resolver. O irmão Lucien, então, corrigiu-o, tímida, mas enfaticamente, pela primeira vez na vida. Nessa questão não havia tempo a perder, era um problema de vida ou morte.

Mesmo assim, o padre Henri teve de adiar um pouco a solução do caso. É que a senhora Kristina estava a caminho do mosteiro com um grande grupo de homens armados.

Quando chegou a Varnhem, Kristina cavalgava à frente dos seus escudeiros como se fosse a comandante, o líder másculo de um exército. Estava vestida com roupagem solene e na cabeça, para demonstrar quem era, trazia a coroa de rainha.

O padre Henri e cinco dos seus irmãos mais próximos foram ao seu encontro fora do portão do mosteiro que, ostensivamente, mandaram fechar atrás de si.

Kristina não desceu do cavalo, preferindo falar de cima para baixo com os monges. E foi desdenhosa no seu discurso, ao informar que, de qualquer maneira, uma das casas teria que ser derrubada, e pronto. Essa casa seria o scriptorium do padre Henri, localizado no terreno que legalmente lhe pertencia.

Kristina sabia muito bem onde tinha atirado a sua lança. Sua intenção era, em última análise, levar o padre Henri a perder a paciência e, melhor ainda, a cabeça. E soube, então, que tinha alcançado êxito, pelo menos no primeiro caso. O padre Henri passava a maior parte do seu tempo entre os livros no scriptorium, eram os seus momentos mais luminosos no meio da escuridão nórdica e da barbárie. Aquela era a parte do mosteiro que, mais do que qualquer outra, lhe pertencia.

Ele explicou, resolutamente, que não era sua intenção derrubar o scriptorium.

Kristina respondeu, então, que se a casa não estivesse derrubada dentro de uma semana, ela voltaria, não apenas com escudeiros, mas com escravos que, sob o chicote dos escudeiros, fariam esse trabalho rápido. É de esperar que os escravos avancem nessa tarefa com menos cuidado do que os irmãos, se estes preferirem não executar a sua decisão. Resta apenas escolher.

O padre Henri respondeu a ela então, tão zangado que mal podia se controlar. Que ele, em vez disso, estava prestes a deixar Varnhem. E que a viagem iria terminar com uma representação ao papa em Roma para excomungar a mulher e seu marido, no caso de este estar também comprometido, na ousadia inqualificável de irem contra os servidores de Deus na terra e contra Sua Sagrada Igreja Romana. Será que ela não entendia que estava prestes a atrair a eterna infelicidade sobre si mesma e sobre Erik Jedvardsson?

Era verdadeira a ameaça de padre Henri. Mas Kristina parecia não entender o caso, como também não entendia que ameaça ela estava dirigindo contra os planos de glória do seu próprio marido: um soberano excomungado não tinha muito a esperar num mundo cristão.

Mas ela apenas levantou a cabeça desdenhosamente, virou seu cavalo, fez uma volta larga, de modo a forçar os monges a recuar para não serem derrubados, e repetiu por cima do ombro, enquanto se afastava, que dentro de uma semana viriam seus escravos, de resto, escravos pagãos para cumprir sua missão.

E com isso estava decidido que os trabalhos no mosteiro de Varnhem iriam ser interrompidos até que a Igreja mostrasse seu poder e pudesse restabelecer a ordem. A Sagrada Igreja Romana não podia aceitar tal insulto e muito menos permitir-se a derrota na batalha que estava por vir.

Causava um certo espanto ao padre Henri que essa pretensa rainha fosse tão ignorante a respeito disso.

Quanto a Arn, os monges avançaram com cuidado e não o obrigaram a estudar gramática mais do que quatro horas por dia. Primeiro, convinha melhorar o seu latim, de modo que falasse um latim sem erros. E, depois, então, uma nova língua. Primeiro, uma ferramenta para obter sabedoria, depois, a sabedoria propriamente dita.

Entretanto, para aliviar a melancolia do garoto, o padre Henri também decidiu que ele ficaria a mesma porção de tempo com o enorme irmão Guilbert de Beaune, que podia ensinar a ele artes completamente diferentes do latim e das cantorias.

A principal função do irmão Guilbert em Varnhem era a de ferreiro e, em especial, a forja para produção de armas era a maior e a mais bem equipada. A produção de armas era descrita como um negócio e nada mais, e as espadas que o irmão Guilbert produzia, claro, eram superiores a todas as outras, fabricadas na parte bárbara do mundo. A fama das espadas dos monges se espalhou rapidamente e, por isso, a produção de armas era uma boa fonte de moedas de prata.

Arn se portou como se seu pensamento tivesse sido seduzido por ver e ajudar, de vez em quando, o irmão Guilbert. E este assumiu o garoto com a mesma seriedade e rigor como se fosse ensiná-lo a trabalhar com ferro, pela simples razão de isso ser uma bela arte.

Mas assim que Arn ficou menos emburrado e de espírito mais aberto, ele se tornou ao mesmo tempo mais ousado em termos de perguntar coisas que não diziam respeito exclusivamente ao próprio trabalho. Como, por exemplo, se o irmão Guilbert já tinha atirado com arco e flecha alguma vez e se, nesse caso, gostaria de entrar num torneio contra ele.

O irmão Guilbert, para ressentimento de Arn, achou isso tão divertido que começou a rir, de tal maneira que, simplesmente, teve que abandonar o que estava fazendo, jogou o ferro em brasa no tanque de água e sentou-se ainda rindo até as lágrimas.

Por fim, quando conseguiu recompor-se e, sério, enxugou suas lágrimas, confessou que já tinha, sim, atirado com arco e flecha algumas vezes e que os dois, certamente, poderiam gastar algum tempo com essa brincadeira. Depois acrescentou que ele, evidentemente, receava esse confronto com um jovem guerreiro tão audacioso quanto Arn de Gothia. E aí caiu novamente na gargalhada.

Demoraria ainda bastante tempo antes de Arn saber a razão de tanta risada. No momento, ele se sentia apenas indignado. E sussurrou que talvez o irmão Guilbert fosse covarde. E isso motivou mais uma nova sessão de gargalhadas da parte de Guilbert de Beaune.

Colocada diante da escolha entre ter o seu braço cortado e talvez se salvar como mutilada ou morrer, Sigrid escolheu a morte. Pensava que de outra maneira não poderia entender a vontade do Senhor. Com o coração pesado de tristeza, o padre Henri preparou-se para receber a sua confissão pela última vez, absolvê-la por todos os pecados e dar a ela a sagrada comunhão e a extrema-unção.

Na Festa de São Pedro, em fins de junho, quando o verão atingiu seu ponto alto e chegou a hora de cortar o feno nos campos, Sigrid faleceu tranqüilamente na casa de hóspedes do mosteiro.

Simultaneamente, chegou a hora de o padre Henri e mais sete irmãos que o seguiriam viajarem na direção do sul. Enterraram Sigrid na igreja do mosteiro, debaixo do piso e diante do altar, marcando o lugar apenas com pequenos sinais secretos, visto que o padre Henri, agora, pensava muito mal da senhora Kristina e seu marido. Dois irmãos seguiram com a mensagem do seu falecimento para Arnäs e o convite para visitarem a campa de Sigrid quando quisessem e pudessem.

Durante as quatro horas da longa missa pela morte de sua mãe, Arn manteve-se de pé, ereto e tranqüilo, sozinho entre todos os monges. Apenas no momento dos cânticos, de vez em quando, qualquer coisa se quebrava por dentro do seu ser e ele, então, não podia evitar as lágrimas. Mas não sentia vergonha por isso, pela simples razão de que descobriu não ser o único que chorava.

No dia seguinte, começou a longa viagem para o sul, com uma primeira parada na Dinamarca. Arn sabia agora com certeza absoluta que a sua vida pertencia a Deus e que nenhuma pessoa, boa ou má, forte ou fraca, podia fazer nada a respeito disso.

Durante a viagem, Arn jamais se virou para trás.

 

Não é raro as coisas acontecerem de maneira completamente diferente do que se pensava. Aquilo que os de pouca fé chamam de pequenas coincidências e os de muita fé chamam de vontade de Deus, às vezes pode mudar um acontecimento de tal maneira que ninguém consegue antecipar o que vai ocorrer. Isso vale para homens fortes, convencidos de que são os artífices do seu próprio destino, tais como Erik Jedvardsson. Mas vale também para homens que estão mais perto de Deus do que os outros e melhor do que ninguém deviam poder entender os Seus caminhos, tais como Henri de Clairvaux. E para esses dois homens os caminhos do Senhor, nos anos mais próximos, mostraram-se, sem dúvida, inesperados.

Quando o padre Henri mais seus sete seguidores e o garoto chegaram a Roskilde, a caminho do sul da Europa, ele estava firmemente decidido a prosseguir até o capítulo geral dos cistercienses em Citeaux, para apresentar a questão da excomunhão de Erik Jedvardsson e sua mulher, Kristina. Era uma questão de princípio de grande peso. Era a primeira vez que os cistercienses seriam obrigados a desistir de um mosteiro por motivo do capricho de um rei e de uma rainha mais ou menos importantes. Era também uma questão de significado decisivo para todo o mundo cristão: quem decide sobre a Igreja? A própria Igreja ou o poder real? A esse respeito, a polêmica existia há muito tempo, e não tinha que ser aquela rainha bárbara na Escandinávia, essa tal de Kristina, para se mostrar ignorante sobre a questão.

Varnhem tinha que ser reconquistado a qualquer preço. Nenhum compromisso seria possível em relação a esse problema.

E caso o padre Henri e sua companhia tivessem chegado a Roskilde alguns anos antes, ou alguns anos mais tarde, tudo teria corrido como planejado. A esse respeito, não havia nenhuma dúvida.

Mas o padre Henri e seus seguidores chegaram a Roskilde justo no momento em que terminava uma violenta guerra civil de dez anos e uma nova e poderosa dinastia assumia o poder. O novo soberano chamava-se Valdemar e dentro de pouco tempo passaria a chamar-se Valdemar, o Grande.

Finalmente, tinha conseguido matar seus adversários Knut e Svend, e antes da luta decisiva prometeu que, se vencesse, iria erguer um mosteiro cisterciense, caso Deus o contemplasse com a vitória. Seu arcebispo, Eskil, em Lund, era sabedor desta promessa, visto que fora obrigado a assistir e a abençoar a luta antes do combate final. E o arcebispo Eskil era um velho amigo pessoal de ninguém menos que o próprio São Bernardo. E foi em casa de São Bernardo, em Clairvaux, que ele também se tornou amigo do padre Henri.

Ao se reencontrarem em Roskilde, precisamente no momento em que a Igreja dinamarquesa convocava para um sínodo, eles não ficaram apenas alegres e satisfeitos de um modo geral, pelo reencontro em si. Ficaram também ligeiramente comovidos diante da sabedoria com que Deus podia guiar os passos do homem nos mínimos detalhes.

As partes se encaixavam umas nas outras com precisão miraculosa. Eis que chegava um prior cisterciense, justo no momento em que o novo rei devia honrar, ou esquecer, sua promessa diante de Deus de criar um novo mosteiro. Em vez de iniciar uma troca de correspondência de muitos anos com Citeaux, tudo iria ser resolvido de imediato, visto que no local estavam um arcebispo e um prior.

O próprio rei Valdemar reconheceu a força da vontade de Deus, ao ser informado pelo seu arcebispo de que a sua sagrada promessa para com Ele, na realidade, tal como Deus tinha ordenado, poderia ser cumprida de imediato.

O rei Valdemar separou uma parte da herança que recebeu do pai, um promontório que entrava no mar, em Limfjorden, na província de Jylland, denominado Vitskol, e ofereceu o terreno para a construção do mosteiro. O sínodo que praticamente já tinha sido convocado para Roskilde abençoou a iniciativa e em breve o padre Henri já poderia continuar a sua viagem como se apenas tivesse feito uma pausa para descansar um pouco, mas agora com um destino totalmente diferente do que seus dois mosteiros de origem, Clairvaux e Citeaux.

Quanto à questão de Varnhem e à excomunhão de Kristina e Erik Jedvardsson, não houve, evidentemente, nenhuma diferença em princípio. Mas uma diferença prática, visto que o problema agora tinha que ser tratado por correspondência e, por isso, iria demorar um pouco mais. O padre Henri tinha, portanto, algumas cartas importantes a escrever antes de iniciar a viagem para Vitskol, mas demoraria pouco. Escreveu para Varnhem e deu instruções para que vinte e dois dos seus monges trouxessem o gado e, principalmente, todos os livros consigo e comparecessem para a construção do novo mosteiro em Vitskol. No entanto, cinco homens deviam ficar em Varnhem com a missão sinistra de tentar manter as construções em bom estado e defendidas de pilhagens e, ao mesmo tempo, contando para todo mundo a respeito da próxima excomunhão da senhora Kristina e Erik Jedvardsson, a quem essa delação devia prejudicar.

Depois, escreveu mais duas cartas, uma para o capítulo geral dos cistercienses e outra para o sagrado papa Adriano IV, para quem descreveu como imoral e bêbado esse Erik Jedvardsson que queria se entronizar como rei, apesar de ter permitido que sua mulher profanizasse um mosteiro. Depois disso, o padre Henri ficou pronto para partir para Vitskol, para onde o Senhor agora, sem hesitação, dirigia seus passos.

E para onde o Senhor dirigisse os passos do padre Henri, dirigia também os de Arn.

Erik Jedvardsson veio a sentir, rapidamente, a força da Igreja. Depois de ter conquistado uma das três coroas a que se propunha, despachou negociadores para se encontrarem com os juizes da Götaland Ocidental e da Oriental. Mas a resposta que obteve derrubou qualquer esperança sua. Para aqueles lados, Varnhem tinha funcionado como um exército de cavalaria, espalhando rumores e mantendo-os em fogo lento, de modo que a fumaça se espalhava por toda a superfície das duas províncias: Erik Jedvardsson e sua mulher, Kristina, seriam excomungados. Ninguém iria querer um soberano excomungado.

Por sorte, os sveas ignoravam o que estava se dizendo por lá ou então, não entendiam o que a excomunhão significava. E, por isso, Erik continuou bem sentado como rei dos sveas. Pelo menos, até ver.

Duas coisas tinham que ser feitas, uma fácil e outra difícil. A fácil era mandar um grupo de negociadores para se encontrar com esse tal de monge francês que devia estar instalado, no momento, em algum lugar na Dinamarca e, por escrito, se humilhar e retirar tudo o que fora dito, e rogar aos monges para voltarem para Varnhem, garantir a eles o apoio real e pedir que Varnhem passasse a ser o mausoléu da sua própria dinastia, além de garantir mais terras para Varnhem e mais o que fosse que pudesse inventar. Seu bispo Henrik, que era um homem prático a serviço de Deus, garantiu a ele que a alternativa era um veneno pior do que tudo isso. Porque essa alternativa significava uma romaria até Roma, indo a pé e descalço, vestindo uma roupagem de burel, em hábito de penitência, e chegando lá, avançar para o papa ainda descalço, jogando-se no chão e aos pés do Santo Padre. Isso não era só complicado e exigia tempo. Também era incerto o resultado. Não existia garantia nenhuma de que o papa se sentisse aplacado por essas artes. E não seria para se sentir bem vexado, tendo feito tudo aquilo para nada?

Muito mais simples, portanto, era tentar apaziguar os monges, pois isso poderia ser feito com algumas cartas, umas poucas palavras bonitas e algumas terras, uma área muito pequena em relação a todas as terras do soberano. Por isso, essa era a maneira fácil de resolver o assunto.

A maneira difícil seria a de tentar para sempre apagar a tagarelice sobre esse tal de rei ateu. A velha idéia de Erik de avançar com uma cruzada pela Finlândia estava sendo polida e o bispo Henrik considerava a idéia muito boa. Um rei que fosse ao mesmo tempo um bom lutador pela causa de Deus e de sua fé seria abençoado por todos. Portanto, o caminho para a conquista das outras duas coroas passava pela Finlândia.

Os sveas, que constituíam um povo guerreiro e que há muito tempo não tinham tido a oportunidade de mostrar isso para si e para os outros, concordaram alegremente com os novos planos reais de avançar numa cruzada de pilhagens pela Finlândia. Além de tudo, havia velhas contas a ajustar. Afinal, os finlandeses e os estonianos tinham por hábito atacar as costas da Svealand e, na memória dos homens, ainda restava a forte lembrança de como eles haviam pilhado e incendiado Sigtuna.

A guerra correu bem durante dois anos. Os sveas recolheram ricos despojos. O corvo voou para novas feridas.

Sem dúvida, os finlandeses encontrados, na sua maioria, já eram cristãos, mas deixar que eles escolhessem entre a espada e serem batizados de novo por um bispo de Svealand não poderia prejudicar ninguém. Foram encontrados mais alguns infiéis no interior do país, já no segundo ano de guerra.

Um dia, os soldados de Erik encontraram uma velha bruxa ao se desviarem do caminho do exército para visitar alguns camponeses e pilhar comida. O estranho com essa mulher é que ela falava quase a mesma língua dos sveas e não se deixou amedrontar ao ser levada presa. Ao contrário. Exigiu em termos ásperos que fosse levada à presença do líder do exército, pois tinha uma proposta a fazer, proposta que o líder difícil-mente iria poder recusar. E que se os soldados não lhe obedecessem, ela iria condená-los à eterna infelicidade.

Mais do que a curiosidade a respeito do que a bruxa poderia sugerir a Erik Jedvardsson e que este jamais poderia recusar, era o medo de ser amaldiçoado por uma bruxa. Por isso, os soldados fizeram o que ela ordenava.

Quando escutou falar do que aconteceu, Erik Jedvardsson achou que isso podia ser um intervalo bem divertido para a noite e deixou que a bruxa fosse trazida, até que eles resolvessem acampar mais tarde ao anoitecer.

Então, mandou chamar o seu carrasco para diante da tenda real, com o toco de madeira e o machado preparados. Seus homens mais chegados reuniram-se na expectativa de um bom divertimento, e, assim, foi só trazer a bruxa e jogá-la de joelhos perante o rei.

— E aí, bruxa desgraçada, qual é a tal proposta que tem para me fazer que eu, como rei, não posso recusar? Diga lá, vamos ouvir! — gritou Erik em voz alta para a mulher na sua frente, suja, de joelhos e mãos amarradas. E riu, alegre, para seus homens com incontida hilaridade.

— Minha nossa — soltou a mulher, roucamente, visto que um soldado a segurava pela garganta —, tenho uma proposta que qualquer rei inteligente jamais poderá recusar.

— É isso que todos nós queremos ouvir, mas, pense bem, o carrasco não está aqui para não fazer nada. Imagina, portanto, se eu disser não? — respondeu Erik, ainda tão alegre quanto antes.

— Deixe, então, que eu me levante e tenha as mãos desamarradas para que possa falar. Se o senhor disser não à minha proposta, irei imediatamente para o seu carrasco — replicou a mulher, rápida e seguramente.

Erik fez sinal com a mão para que seus homens a libertassem, e em seguida mostrou, tão divertido quanto antes, que estava disposto a ouvi-la. Os seus homens em volta continuavam se divertindo com o que estava acontecendo.

A mulher corrigiu a sua postura e o cabelo, e clareou a voz, antes de falar.

— A minha proposta é a seguinte, rei Erik. Deixe que eu leia a sua mão e diga quem é e como seu futuro vai ser. Se achar que falei errado a seu respeito ou se o senhor não acreditar no que vou dizer que virá a acontecer, então poderá me mandar de imediato para o carrasco. Mas se o senhor acreditar no que eu disser, exijo que me dê um cavalo e uma carroça para eu voltar para casa, de onde fui seqüestrada.

Erik ficou logo pensativo e o riso dos homens se transformou em murmúrios. Todos acharam que aquela que estava tão segura a respeito das suas profecias, a ponto de arriscar a sua própria cabeça nessa crença, talvez, quem sabe, tivesse uma boa visão do futuro. Mas nem todos os homens gostariam de saber a respeito do seu futuro, visto que este pode ser ruim já no dia seguinte, uma flecha disparada da floresta onde ninguém viu o atirador, uma lança jogada por engano já no fim da batalha, quando, na realidade, mais nada está em jogo. E se alguma praga vai arrasar sua família, será que alguém vai querer saber disso justo neste momento, por antecipação? Era preciso coragem para querer saber o futuro.

Erik entendeu a coisa justamente dessa maneira, mas naquele momento entregar a bruxa tagarela ao carrasco seria demonstrar covardia. Em contrapartida, se ele primeiro a escutasse e depois mandasse cortar o seu pescoço, a sua posição ficaria muito melhor.

— Muito bem — disse Erik Jedvardsson. — Vou ouvir as suas palavras. Se eu as achar boas, você terá minha palavra de rei que a mandarei de volta para casa, com cavalo e carroça. Se eu não achar as suas palavras boas, vou deixar aqui e agora que o carrasco tome conta da sua vida. E vamos, então, ouvir o que você tem a dizer!

— Minha nossa — disse a bruxa explicando a coisa. — Temos que entrar a sós na sua tenda para que apenas o senhor ouça as minhas palavras.

Um murmúrio de desapontamento perpassou entre os homens. Entrar só com uma bruxa podia não ser sensato. Erik viu o receio de seus homens e se indignou tanto quanto eles diante do atrevimento da bruxa.

— E se agora eu disser não à sua proposta, se eu disser para que você fale, aqui e agora, qual é a sua profecia! — reagiu ele, com a sua voz de comando que, como de hábito, saiu grave e pesada.

— Então, o senhor não ficará sabendo quem é e para onde vai, visto que seu futuro só ao senhor pertence e talvez acabe achando imprudente que todos tomem conhecimento dele. Mais tarde, o senhor poderá contar a quem quiser aquilo que quiser contar — respondeu a mulher, com uma tal segurança que parecia como se ela já soubesse que Erik iria concordar com a sua proposta.

E ele concordou. A mulher foi revistada pelas mãos ousadas de soldados, procurando por qualquer coisa afiada que ela pudesse ter consigo. Erik voltou as costas e entrou na tenda e a mulher foi empurrada, brutalmente, para dentro, atrás dele.

Dentro da tenda, ela caiu imediatamente de joelhos diante do rei e pediu para ler a palma da mão dele. Recebeu, então, a mão real nas suas mãos, passando a estudá-la em silêncio.

— Eu vejo a Inglaterra... — começou ela, não muito segura. — Alguém na sua família... Seu pai veio da Inglaterra. Vejo Roma e esse homem a quem chamam de papa... Não, essa linha está interrompida aqui. O senhor vai a caminho de Roma... Descalço... Como é que isso pode ser? Ah, não, essa viagem acaba não acontecendo... É, seu futuro, na verdade, é muito interessante.

 

Erik Jedvardsson ficou gelado ao escutar as palavras verdadeiras a respeito das suas origens inglesas e de como ele quase fora obrigado a ir até o papa. Já estava impressionado.

— E aí, mulher! Já sei quem eu sou, agora diga qual é meu futuro, sem demoras! — ordenou ele, sem tremer muito a voz.

— Eu vejo... Eu vejo três coroas reais. Um novo reino com três coroas, como marca nos escudos, e essa marca vai existir por mais de mil anos, por toda parte no seu reino, senhor. Parentesco após parentesco, rei após rei, por toda a eternidade, a sua marca vai subsistir. As três coroas significam três países que se unem em um só e poderoso reino, e daqui a mil anos essas três coroas vão continuar a ser a marca do reino, por toda parte, em todos os timbres, em todos os documentos.

— E o que é que vai acontecer com esse tal de papa? — perguntou Erik Jedvardsson, sentindo-se atingido e com a voz quase desfalecida.

— Eu vejo o seu retrato por toda parte... — murmurou ela, em voz baixa. — Por toda parte, o seu retrato, a sua cabeça... Como santo, a sua cabeça em ouro em contraste com o azul do céu. O senhor começou por se portar mal perante o seu Deus... Daí a viagem interrompida para Roma... Depois se reabilitou e, por isso, o seu nome irá sobreviver para sempre.

— O que você tem a dizer a respeito da minha morte? — perguntou Erik Jedvardsson, finalmente.

— A sua morte... A sua morte... O senhor quer saber, realmente, como será a sua morte? Poucos são os homens que querem saber como será a sua morte.

— Sim, diga alguma coisa!

— Não vejo isso bem... — murmurou a mulher que, de repente, como que ficou um pouco receosa do que acabara de ver. Mas logo se recompôs e soou, novamente, segura do que tinha a falar.

— O seu nome vai viver para sempre e nenhum homem de mulher nascido e nenhuma mulher na Svealand ou nas duas terras de Gota podem matar ou até mesmo ferir o senhor — disse ela, rápido, levantando-se.

Erik Jedvardsson que agora estava cheio de certezas, de que todos os seus sonhos se tornariam realidade e que, além disso, nenhum dos seus previsíveis inimigos iria poder matá-lo, saiu da sua tenda e, com voz forte, ordenou que uma carroça com cavalo fosse entregue a ela, que ninguém deveria molestá-la ou se dirigir a ela com palavras grosseiras, e que ela tinha toda a liberdade garantida pelo rei.

Erik Jedvardsson viajou em seguida para casa, para Aros Oriental, de ânimo leve, perante o brilhante futuro que agora o esperava e do qual tinha a certeza. Visto que nada tinha a recear, de nenhum homem, nem na Svealand, nem na Götaland Ocidental, nem na Götaland Oriental.

Magnus Henriksen não era, todavia, um homem de mulher nascido, nem na Svealand, nem na Götaland Ocidental, nem ainda na Götaland Oriental. Ele era dinamarquês.

Era um dos muitos grandes homens dinamarqueses que os ventos da guerra tinham feito voar como pedaços de palha pelo mundo inteiro, depois que Valdemar, finalmente, venceu a longa batalha entre a realeza da Dinamarca. Em fuga, deixando a Dinamarca, ele seguiu de navio pelo mar Báltico, parou por algum tempo em Linkõping e teve uma conversa com o rei Karl Sverkersson, da qual ninguém soube nada, tendo depois continuado a viagem pela costa, entrando no lago Málaren e subindo por uma lagoa, a Fyriân.

Apanhou o rei Erik Jedvardsson de surpresa e foi ele, pessoalmente, que lhe cortou a cabeça, a tal que, segundo a bruxa na Finlândia, seria o símbolo do novo reino.

Ele se entronizou como novo rei, visto que tinha matado o anterior, o que naquele tempo era a maneira mais normal de se tornar rei na Escandinávia e por ser descendente direto, por lado de mãe, do antigo rei Inge, o Velho.

Magnus Henriksen conseguiu viver por mais um ano. Erik Jedvardsson, por uma eternidade.

Ler é a base de toda a sabedoria. Era convicção absoluta do padre Henri que até homens como ele próprio, que tinha o texto como trabalho principal, para escrevê-lo ou copiá-lo, deveriam utilizar pelo menos duas horas de cada dia para o tipo de leitura que é alimento para a alma, uma espécie de prazer permitido.

As regras a respeito da leitura em Vitskol eram, portanto, muito rígidas. Até os irmãos que trabalhavam com as mãos como ocupação principal, tais como os cozinheiros provençais, os noviços que tinham como ocupação permanente a construção de muros ou o corte de pedras, o irmão Guilbert e seus alunos ferreiros ou o irmão Lucien e seus alunos de jardinagem, tinham de ler todos os dias a respeito de assuntos que, eventualmente, nada tinham a ver com os trabalhos de que eles se ocupavam.

Um pouco diferente era essa obrigação quando se tratava do pequeno Arn. Os primeiros quatro, cinco anos de leitura não estavam destinados a outra finalidade prática que não o aprimoramento do seu instrumento de comunicação, a linguagem. Pela mesma razão, ele era obrigado a falar em latim com o padre Henri, sempre em francês com o irmão Guilbert e sempre em nórdico com os noviços nórdicos. Os textos com que ele se ocupou durante os primeiros anos eram na maioria salmos, visto que, de qualquer maneira, precisava conhecê-los bem. E ele também era um soprano muito competente que, usado como primeira voz, atribuía uma beleza extraordinária às missas matinais e vespertinas.

Cinco anos depois, a igreja do mosteiro de Vitskol, finalmente, ficou pronta e seria abençoada pelo arcebispo Eskil, que partiu de Lund. Ao mesmo tempo que a igreja seria inaugurada, o mosteiro também receberia seu nome, pois todos os mosteiros cistercienses tinham nomes próprios. Para Vitskol, o padre Henri já há muito tempo tinha decidido que o nome seria Vitae Schola, a Escola da Vida.

Arn tinha alguma coisa a ver, evidentemente, com a escolha do nome. Normalmente, já não existiam mais coroinhas nos mosteiros e, portanto, Arn era a única criança entre os monges. Mesmo considerando que era impossível dizer por que razão Deus tinha colocado uma criança entre os irmãos cistercienses, era fácil constatar que a Vitae Schola, a Escola da Vida, era um nome que se adequava a Arn. Tudo o que, de importância, tinha aprendido na vida, ele tinha aprendido no mosteiro, entre os cistercienses.

E, agora, no momento em que o garoto começava a ter o instrumento lingüístico sob controle, o padre Henri deixou que ele entrasse de cabeça na grande literatura. Arn continuou trabalhando, tendo que ler, obrigatoriamente, todos os dias, tal como todos os outros.

O padre Henri estava convencido de que a literatura laica era quase tão importante quanto a literatura teológica para a formação intelectual de qualquer jovem. Era necessário, no entanto, que o padre Henri tivesse um certo cuidado, visto que Arn, desde o início, tinha por hábito entrar e sair do scriptorium um pouco à vontade demais e, por vezes, encontrava livros inconvenientes para garotos da sua idade.

A idéia de ler Ovídio, por exemplo, era para que Arn se concentrasse em Metamorfoses, quase duzentas sagas sobre transformações mágicas, textos que ensinavam ao leitor muita coisa sobre lendas e culturas que integravam o Império Romano. Em compensação, foi um sucesso menor quando o garoto pegou o Ars amatoria, a Arte de amar. O padre Henri foi descobrir Arn com esse livro na mão a um canto da cozinha. Além disso, Arn se mostrava excitado, de uma maneira pouco salutar e que a natureza masculina não poderia esconder.

Naturalmente, o padre Henri aplicou, então, uma punição adequada, uns banhos frios e um certo número de orações e o mais que fosse adequado, mas não estava tão preocupado a respeito do problema como se mostrou. Ao contrário. Chegou mesmo a contar, alegremente, toda a questão para o irmão Guilbert, que riu bastante do insuspeito pecado do garoto.

Os textos menos apropriados de Ovídio foram levados pelo padre Henri para a sua cela e a escolha da literatura para Arn ler nas horas livres passou a ser feita com mais precisão e cuidado.

Germania, de Tácito, por exemplo, era uma leitura perfeita para um garotinho de origem igualmente bárbara. Segundo o padre Henri, talvez Tácito tivesse uma razão de motivação política interna para descrever esses germanos como exemplo a seguir pela depravada população romana. Mas todos os conhecimentos sobre o passado da humanidade, inclusive aqueles que diziam respeito aos tempos e aos rituais pagãos, segundo o padre Henri, podiam servir como bons esclarecimentos. A Epistulae, de Horácio, ou, em especial, a Arspoética eram exemplos perfeitos para uma boa educação a ser extraída dos autores clássicos. Por vezes, um tanto teóricos, mas aí era só mudar para Virgílio, de preferência, lendo Aeneidos, A Eneida, justamente o que o garoto fazia agora. Arn chegou, corado, contando a respeito da rainha Dido, em Cartago, e do episódio seguinte, quando Virgílio foi obrigado a se esconder para ver o futuro de Roma.

A leitura era a base para todos os conhecimentos e para todos os pensamentos puros e inteligentes. A esse respeito todos estavam de acordo, é claro. Mas o padre Henri, possivelmente, se diferenciava um pouco de muitos dos seus colegas. Achava que até os garotinhos deviam ter acesso a esses textos, a tempo, antes de endurecerem demais dentro da ciência teológica, nunca podendo ler uma linha sem pensar se isso seria das Sagradas Escrituras e se o texto lido devia ser interpretado literalmente, alegoricamente, moralmente ou anagogicamente, as quatro alternativas existentes para a interpretação da Bíblia.

Por outro lado, naturalmente, não seria possível esquecer a formação teológica de Arn. Por enquanto, existiam apenas dois exemplares do livro mais lido na época, na Vitae Schola, o das instruções de como a Bíblia devia ser lida, Glossa Ordinária, um livro que todos os irmãos sempre buscavam. Entretanto, padre Henri providenciou para que Arn tivesse acesso a esse texto no máximo de tempo possível.

E para evitar novas situações penosas no estilo dos textos inconvenientes de Ovídio, Arn ficou obrigado a pegar todos os livros, diretamente, das mãos do padre Henri. Dessa maneira, pelo menos uma hora por dia seria dedicada a ensinar-lhe o que era fácil e o que era difícil de entender nas Sagradas Escrituras.

Em segredo, o padre Henri se sentia muito satisfeito diante do ardor com que Arn chegava correndo para receber novas instruções de leitura ou para ser testado a respeito dos textos bíblicos do dia anterior. A idéia era a de que o menino devia ser formado, metade no uso das mãos e metade no uso do espírito. Sabendo que ainda não estavam claras quais as intenções de Deus para com o garoto, esse método, de qualquer maneira, não podia ser considerado errôneo.

Eventualmente, e sem que se fosse pensar mal dele por esse motivo, podia-se considerar que o tempo passado junto do irmão Guilbert era mais agradável do que o tempo passado no scriptorium, que o tempo junto dos noviços que construíam os muros, e onde Arn era usado para buscar argamassa e levá-la para lugares onde seria difícil para um adulto se infiltrar, era mais agradável do que o tempo em que ele era obrigado a servir na cozinha, que o tempo passado no porto e a pescar no fiorde era mais agradável do que o tempo passado a exercitar uma voz difícil para a próxima grande missa.

O padre Henri pensou bastante e chegou à conclusão de que ele próprio, como menino, também valorizaria todos esses deveres diferenciados de maneiras muito diferentes. Mas no pequeno Arn ele não notava nada disso. Era como se Arn, com o mesmo ardor, assumisse tudo da maneira como o nome do mosteiro, realmente, queria significar: Vitae Schola, a Escola da Vida.

Portanto, desse menino podia surgir qualquer tipo de homem. Ele poderia terminar seus dias como prior num mosteiro, da maneira como o padre Henri enxergava a coisa. Poderia também se transformar no oposto, algo que o irmão Guilbert só ousava falar em segredo e o padre Henri dizia que não era para falar alto. Mas o problema era que as intenções de Deus em relação a Arn ainda não tinham sido demonstradas com clareza. Por isso, o remédio era continuar como até aqui, isto é, dar ao espírito aquilo que lhe pertencia, e à mão, o que era devido.

O padre Henri tinha transferido seus livros de consulta diária para um corredor junto do jardim e estava sentado, então, profundamente concentrado num dos problemas clássicos da teologia: por que razão Deus, depois que o Diabo, através da serpente no Paraíso, enganou o homem e o levou a pecar, foi obrigado a corrigir a situação, renascendo como homem, para ser torturado e morrer para salvar os homens. Por que não usar apenas o seu ilimitado poder divino?

É evidente que o Diabo enganou o homem insidiosamente, como um ladrão. E ladrão não tem direito nenhum.

Mas mesmo que se retirasse o Diabo da equação, ainda assim permanecia a dívida do homem perante Deus. E por que razão Deus não mandou um dos seus anjos para resolver a questão?

Primeiro, porque nenhum dos anjos do Senhor poderia se colocar no lugar do homem e, por isso mesmo, também não poderia pagar sua dívida. E, segundo, mesmo que isso fosse possível, o homem, mais tarde, ficaria com uma eterna dívida de gratidão para com algum dos anjos de Deus, em vez de para com Deus propriamente. Por isso, só se colocando no lugar do homem, o que apenas Deus podia fazer, Ele poderia pagar a dívida dos homens e absolvê-los do pecado original.

Até aí, tudo lógico e claro. Até aí o padre Henri chegava à conclusão de que a explicação era, sem dúvida, elegante, já que derrubava todas as velhas polêmicas a respeito dos direitos do Diabo na questão.

Mas essa explicação não bastava, existia uma falha. Deus poderia, pura e simplesmente, por compaixão, ter perdoado o homem. Parecia muito mais simples perdoar uma coisa dessas, no Paraíso, deixando que ele provasse o gosto do fruto proibido, do que, muito pior, ter deixado que o Filho de Deus morresse na cruz e na dor em vez de Barrabás.

Se Deus quisesse apenas descer até os homens na figura de um homem, poderia tê-lo feito e resolvido tudo em uma semana. Mas, em vez disso, Ele achou que devia nascer como criança e viver, depois, uma vida longa, até o momento do sacrifício final. Portanto, a vida de Jesus na terra tem um significado, um grande significado.

O Filho de Deus, portanto, teria vivido na terra uma vida inteira como modelo a seguir pelos homens? É, assim devia ser! Na Sua vida na terra, os homens podiam ver como deviam viver e como deviam escutar as Suas palavras e, ainda, aprender com as palavras. Como ficariam muito mais pobres as Sagradas Escrituras sem as palavras do próprio Deus?

O padre Henri sentiu uma onda de satisfação interior, como se um calor energizasse todo o seu corpo, ao chegar à verdade, de maneira lenta, sem exigir de si mesmo nenhuma pressa. Tais momentos eram os melhores.

E, então, chegou Arn, correndo, com pressa, e de pés molhados. Estava chegando direto do lavatório. Era contra as regras passar das tarefas braçais para as tarefas espirituais sem, primeiro, se lavar no banheiro. Nas duas últimas horas, ele havia trabalhado na torre da igreja do mosteiro, botando massa nas paredes. E havia trabalhado no final do que parecia, quando se decidiu marcar a data para a inauguração da igreja. Os andaimes tinham ainda que ser retirados, antes que o arcebispo Eskil chegasse para abençoar a igreja.

Entretanto, ao começar a retirada dos andaimes, foi possível ver melhor. E o irmão Guilbert e o irmão Richard, lá embaixo, olhando bem, descobriram algumas rachaduras que precisavam ser fechadas, o que ainda estava por fazer. Arn teve que subir aqui e ali, como uma pequena marta, para realizar todas as melhorias exigidas. Como ainda era pequenino, comparado com todos os outros, Arn era o único que, sem medo e enfrentando grandes dificuldades, podia subir até lá em cima sem os andaimes. As alturas não eram para ele, efetivamente, uma coisa que lhe agradasse. Mas estava convencido de que Deus não iria consentir que ele sofresse mais um acidente, já que era apenas uma criança e estava trabalhando numa obra em Sua honra. Foi assim, pelo menos, que Arn se explicou perante alguns dos irmãos quando lhe fizeram uma pergunta furtiva a respeito de grandes alturas e medos.

Talvez não fosse totalmente verdadeira a sua resposta. Não que ele tivesse mentido. Na Vitae Schola, ninguém mentia. Isso seria um pecado grosseiro contra as regras do mosteiro. Mas Arn estava convencido, também, de uma coisa que lhe tinham ensinado desde muito pequeno, que Deus tinha uma missão especial para ele desempenhar na vida. E essa missão não podia ser apenas a de fazer com que ele ficasse botando argamassa nas paredes ainda criança, para depois perder o equilíbrio, cair e ficar aleijado ou morrer, como aconteceu com dois noviços durante a construção. E, por isso mesmo, não sentia medo nenhum.

Mas responder desse jeito, se alguém lhe fizesse a pergunta, seria uma demonstração de arrogância, seria acreditar que era superior aos outros. E isso seria um pecado maior, talvez até mais pesado do que mentir.

Uma vez ele havia caído de uma torre bem alta. Não se lembrava muito bem de como fora, mas havia lido a história dessa queda num apontamento feito no livro de memórias de Varnhem, e o padre Henri disse para ele como se devia entender tudo. Deus quisera poupar a sua vida para uma missão futura, uma grande missão. Isso era o mais importante na interpretação da história, qualquer um podia ver isso.

Desde alguns anos antes, todo o trabalho de leitura cada vez mais se desenvolveu nesse sentido: como interpretar os textos e, acima de tudo, as Sagradas Escrituras, e era para esse fim que Arn estava chegando agora, já um pouco atrasado, ofegante, descalço, mas de pés lavados, quase escorregando nos azulejos do chão do corredor onde se encontrava o padre Henri.

No entanto, o padre Henri não o repreendeu e mostrou até que estava de bom humor. Ficou sentado, como que concentrado em pensamentos longínquos, com um sorriso de satisfação nos lábios e afagando lentamente a pequena cabeça raspada do garoto, por momentos, antes de dizer qualquer coisa.

Arn, que tinha se sentado ao seu lado, num banco de pedra, viu que o livro Glossa Ordinária estava aberto diante do padre Henri e ainda que ele estivesse longe demais para poder ler o texto, podia adivinhar bastante bem onde, mais ou menos onde o livro estava aberto.

— Bem — disse o padre Henri, após um momento em que ele, quase contrariado, abandonou o mundo dos seus pensamentos. — Vamos começar justo neste texto que vais cantar como solo no final da missa da inauguração... Como entender... Aliás, canta as primeiras estrofes para mim!

 

“O Senhor é meu pastor;

nada me faltará,

Deitar-me faz em pastos verdejantes;

guia-me mansamente a águas tranqüilas.

Refrigera a minha alma; guia-me nas veredas da justiça

por amor do seu nome.”[2]

 

Arn cantou, obedientemente, com a sua voz clara de soprano, de tal modo que os irmãos, trabalhando na horta, agachados, se levantaram do seu trabalho, apoiaram-se nas suas ferramentas e ficaram escutando, com sorrisos enternecidos. Todos amavam a voz do garoto.

— Ótimo, ótimo, podemos ficar por aí — exclamou o padre Henri. — E vamos agora entender esse texto. Vamos traduzi-lo moral ou literalmente? Não, claro que não. Então, como?

— É evidente que o texto é alegórico — respondeu Arn, inspirando fundo. Precisava de um pouco mais de ar. Tinha começado a cantar quando se recuperava da corrida e ainda não estava recomposto.

— Queres dizer, portanto, que, de fato, nós não somos carneiros, meu filho? Claro, é evidente que não. Mas por que essa comparação?

— Ela é clara, fácil de entender — refletiu Arn, mostrando uma pequena ruga na testa. — Todos já vimos rebanhos de carneiros, e tal como os carneiros precisam do seu pastor para sua defesa e encaminhamento, nós precisamos de Deus. Ainda que sejamos pessoas e não carneiros, o nosso Deus como que se transforma e passa a ser nosso pastor.

— Muito bem — disse o padre Henri. — Até aqui não foi muito difícil. Mas o que é que significa “(Ele) refrigera a minha alma; guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome.” Será que os carneiros têm alma?

— Não — respondeu Arn, refletidamente. Ele já esperava as muitas armadilhas da lógica do padre Henri, mas já tinha afirmado que o texto devia ser traduzido alegoricamente. — Como, desde o início, a alegoria é patente... Essa de os carneiros nos representarem... Portanto, o texto seguinte deve ser interpretado literalmente. O Senhor refrigera, de verdade, as nossas almas.

— Tudo bem, tudo bem — exclamou o padre Henri e sorriu, com um ar de esperteza que costumava assumir quando encontrava uma armadilha lógica. — Mas e no seguimento “guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome”. Que caminhos são esses? É conteúdo literal ou alegórico?

— Não sei — replicou Arn. — Talvez possam ser ambas as coisas?

— Como assim? Um texto que pode ser lido literal e alegoricamente? Vamos ter que esclarecer essa questão, meu filho. Vamos lá.

— Na linha anterior, diz-se que Deus refrigera as nossas almas, portanto, trata-se de uma aproximação literal a nosso respeito e não a respeito de quaisquer carneiros — começou Arn, para ganhar um pouco de tempo, a fim de pensar e se concentrar nisso ao máximo. — Mas Deus, é claro, pode nos conduzir pelos caminhos da justiça, literalmente falando, caminhos pelo chão, caminhos que a gente vê, caminhos percorridos por cavalos, por carroças de bois e por gente. Se Ele quiser, pode nos conduzir até diretamente para Roma, por exemplo, não é verdade?

Hum. — reagiu o padre Henri, mostrando-se um pouco mais

duro. — Não pode ter passado despercebido para você, meu filho, que essa de caminhos para aqui e para ali pertence ao grupo das metáforas mais habituais nas Sagradas Escrituras? No momento em que os caminhos de Deus podem ser espirituais, seria impossível ver caminhos de bois no nevoeiro ou não?

— Não, claro que não, os caminhos da justiça indicam, na realidade, caminhos que não se vêem, caminhos para a redenção e assim por diante. Portanto, alegóricos.

— Muito bem, onde é que nós estávamos? Como é que é o verso seguinte... Não, não precisas cantá-lo, não. Se não, os irmãos lá na horta vão parar novamente, não é verdade?

— “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo” — prosseguiu Arn, rapidamente. — O conteúdo deve ser geral, acho eu. Se me encontrar em grandes dificuldades, se estiver perto da morte, como quando eu estava lá em cima na torre, com a argamassa na mão, por exemplo, eu nada receio, porque Deus está comigo. As palavras “sombra da morte” devem ser alegóricas.

A morte não tem como lançar a sua sombra, literalmente falando. E não existe nenhum vale especial onde eu pudesse andar debaixo dessa sombra. E mesmo que existisse, uma idéia puramente teórica, não seria apenas nesse lugar que eu encontraria consolação. Nem mesmo no vale mais escuro, isto é, nem nos momentos mais sombrios, na tristeza e no perigo, preciso duvidar ou desesperar. Mais ou menos isso, não é verdade?

Quando Arn cresceu e seu velho arco e flecha ficou pequeno demais, acabou-se aquele prazer, que, no entanto, era considerado como trabalho no seu caso específico. O seu campo de treinamento estava localizado logo em frente da ferraria e, por isso, podia dar uma saída de vez em quando para atirar, durante as muitas pausas naturais no trabalho, enquanto o ferro esfriava ou uma nova forja era acesa. Um dia, o irmão Guilbert também deu uma saída e viu como o garoto, sem hesitações, mas também sem se mostrar especialmente interessado pela ação, atirou doze flechas em seguida num alvo em movimento de pêndulo, um conjunto de trapos, enrolados uns aos outros, com correias em volta e suspensos por uma corda fina.

Estava na hora de começar de novo. Porque tão importante como fora o irmão Guilbert ter encontrado um instrumento que, colocado nas mãos de Arn, estava ajustado ao seu tamanho e à sua força, também era importante treinar com a energia máxima do pensamento. Caso fosse feito sem concentração, o treinamento sairia confuso e teria um efeito negativo. O irmão Guilbert achava esta idéia difícil de explicar até para adultos. Para Arn, ele não precisou explicar muito, visto que a obediência era uma das regras mais importantes do mosteiro.

Acharam madeira de teixo, material bom para um novo arco, e freixo para as flechas. Isso porque uma vez mudado o arco, havia que mudar também as flechas, visto que tudo devia estar nas proporções certas para funcionar bem em conjunto, assim como os movimentos das mãos e a força do pensamento devem estar em equilíbrio.

Levou bastante tempo, desde a fria primavera, quando apenas os galantos conseguiam aparecer, abrindo brechas no gelo, até o início do verão, quando as tulipas se desenvolveram como longas fitas vermelhas na beirada dos caminhos, para aprontar o novo arco e suas flechas. E Arn era obrigado a estar presente e a aprender cada momento da produção, como a madeira precisava secar no escuro e a uma temperatura moderadamente fria, como cortar lâminas de várias partes da madeira, lixá-las juntas de forma semelhante, grudá-las umas nas outras com goma de peixe e colocá-las na prensa, para depois lixar o conjunto novamente. com as flechas, evidentemente, era mais simples, embora o trabalho fosse o mesmo, só o comprimento é que era menor. E quanto às pontas, sua produção era uma das tarefas mais simples do ferreiro e Arn já conseguia produzi-las sem ajuda.

Finalmente, quando chegou a hora de começar a experimentar a nova ferramenta de trabalho, o irmão Guilbert modificou inclusive o alvo de dezoito passos longos de homem para vinte e cinco. Para Arn, nos primeiros dias, foi como se estivesse começando de novo. Era difícil e exigia muito esforço na hora de esticar o novo arco, e o esforço influenciava a direção das flechas, de maneira que, às vezes, ele errava o alvo totalmente. Mas quando Arn se mostrava desiludido, o irmão Guilbert vinha logo ao seu encontro e ralhava com ele por se mostrar preguiçoso e com falta de confiança, um pecado mais ou menos tão ruim quanto o outro. E Arn tinha que rezar um certo número de padre-nossos, de joelhos, diante do arco e das flechas, como punição antes de ser chamado de novo para o treinamento.

Nesses momentos, o irmão Guilbert se sentia tentado a contar para o garoto que ele atirava muito bem; sem dúvida, melhor do que a maioria dos adultos mais bem treinados. Mas Arn nunca teve a oportunidade de se comparar com qualquer outro, a não ser com o próprio irmão Guilbert, como se existissem apenas dois arqueiros em todo o mundo. O irmão Guilbert sempre silenciou a respeito da sua vida pregressa e daquilo que fez com que ele terminasse essa vida e entrasse para um mosteiro cisterciense em permanente penitência. O padre Henri tinha proibido que ele contasse sua história para Arn.

Até alguns anos antes, o irmão Guilbert e Arn ainda tinham o seu pequeno campo de tiro ao arco fora dos muros do mosteiro, dos que já estavam prontos e dos que estavam em construção, pelo fato de alguns dos irmãos acharem ofensivo que esse tipo de atividade acontecesse diante dos seus olhos na área interna.

Mas, um dia, um grupo de soldados a caminho de casa e vindo de Fyn, todos de bom humor, pois a guerra tinha acabado e em breve iriam rever seus entes mais queridos, parou diante do mosteiro, no lugar onde Arn treinava. Antes de mais nada, acharam extremamente cômico que um noviço com o alto da cabeça rapada, capuz marrom e tufos de cabelo esvoaçando sobre as orelhas, estivesse com arco e flecha nas mãos. Era uma imagem impossível, algo que não podia acontecer.

Lançaram algumas piadas no ar, mas, depois, pararam para observar o jovem e talvez, quem sabe, dizer mais algumas piadas. O irmão Guilbert, que estava ao lado de Arn e lhe dava instruções, fingiu que não entendia a língua nórdica ou, pelo menos, que não tinha escutado nenhum comentário. —

Mas os soldados ficaram em silêncio rapidamente. É que aquilo que eles viram não poderia ser verdade, de acordo com o bom senso. O pequeno noviço, a dezoito passos de distância, acertava uma flecha atrás da outra no espaço da palma de uma mão e quando falhava por um dedo ou dois parecia ficar descontente e pedia desculpa ao seu instrutor, concentrando-se ainda mais no tiro seguinte. Em silêncio os soldados se afastaram. E, um pouco mais à frente, começaram a discutir em alto e bom som a respeito de alguma coisa.

O irmão Guilbert entendeu muito bem a perplexidade dos soldados recém-dispensados. Isto porque nenhum deles nem o próprio irmão Guilbert jamais tinham visto uma criança com tal capacidade e competência. Mas Arn não entendeu nada, nem naquele momento, nem mais tarde. Para ele, existiam apenas o irmão Guilbert e ele próprio e, por comparação, Arn ainda era o pior arqueiro do mundo.

O padre Henri se mostrou, muitas vezes, relutante em discutir o assunto. Achava que Arn lia bastante e era suficientemente maduro para um garoto cuja voz ainda não tinha começado a engrossar.

tuga estivesse esse dia. Se bem que fosse inevitável. O padre Henri não se considerava uma cabeça muito precoce quando criança. Lembrava-se de ser mais ou menos como Arn, tal como ele o via. O mais importante, no entanto, era a paixão com a qual tanto ele quanto Arn estudavam. E se lembrava, com um sorriso maroto, de como ele próprio, ainda muito jovem, lançava mão a livros que eram impróprios para garotos e, uma vez apanhado em flagrante, recebia punições semelhantes às que aplicava agora a Arn, pelo mesmo motivo. Mas o importante era a inspiração pela leitura, o desejo de aprender e a perseverança. Deus dava um poder de compreensão, mais ou menos igual para todos, e era da responsabilidade de cada um encher essa compreensão de conteúdo, e aproveitar ao máximo os seus talentos.

Contra esta lógica, o irmão Guilbert tinha uma objeção muito simples. Se assim fosse, Deus estaria dando, também, a todos a mesma capacidade de atirar com arco e flecha ou manipular a espada. E não era esse o caso. Alguns, notadamente, tinham menos dessa capacidade e outros, muito mais. E o pequeno Arn era dos que tinham muito mais desse talento. Segundo ele, jamais havia encontrado na vida alguém, jovem ou adulto, que se lhe pudesse comparar.

Esta opinião deixou o padre Henri pensativo. Porque era improvável que alguém tivesse encontrado tantos homens de armas quanto o irmão Guilbert. Isso era fácil de admitir. E, por outro lado, era impossível que o irmão Guilbert estivesse mentindo para o seu prior.

Enfim, o padre Henri achou desconfortável discutir esse assunto e chegou a um acordo com o irmão Guilbert, quer dizer, proibiu-o de incutir quaisquer bobagens na cabeça do garoto. E acabou acontecendo que Arn jamais entendia quando fazia as coisas bem, atirando com o arco e flecha ou manipulando a espada, mas, em contrapartida, sempre entendia ou se lembrava, bruscamente, das vezes que errava.

Aliás, Arn ainda não tinha usado nenhuma espada de verdade nos seus treinamentos. Mas também não era preciso muito mais para o irmão Guilbert imaginar o que viria a acontecer quando o garoto ficasse com braços mais fortes e pudesse passar de varas de pau para o aço.

Para manobrar a espada, a rapidez da visão e do pensamento, o equilíbrio nos pés e a sensibilidade das mãos eram mais importantes do que a força dos braços. Aquilo que o irmão Guilbert tinha visto quando jovem, a respeito de como os homens nórdicos manobravam a espada, o levou a considerar que a técnica desses bárbaros tinha por base, quase unicamente, a força. As espadas deles eram curtas, visto que quase nunca combatiam a cavalo. Achavam que os cavalos não serviam para a guerra, por muito estranho que isso parecesse. E como ficavam de pé, em linha, juntos uns dos outros, mais ou menos como os velhos romanos e gregos, mil anos antes, embora não chamassem a esse posicionamento de falange, mas de legião, a sua técnica era a de golpear de cima para baixo, desfechando o golpe pela esquerda ou pela direita. Como todos os homens, com, pelo menos, alguma coisa parecida com um escudo e, pelo menos, com um mínimo de instinto de preservação, podem parar qualquer desses golpes sem precisar pensar ou mudar de posição, a luta continuava até que um dos dois se cansava e o outro, mais ou menos por acaso, acertava no crânio do adversário. Nessas circunstâncias, era natural que, no final, — ganhasse aquele que tivesse o braço mais forte.

Arn recebeu treinamento, nos primeiros quatro anos, com uma espada de madeira envolta em pano e o irmão Guilbert, metodicamente, incutiu no garoto o ritmo de três momentos, de modo a que esse ritmo ficasse automatizado e permanecesse para sempre. Golpe de cima pela esquerda, golpe de baixo pela direita e, depois, golpe de ponta, direto, ou novo golpe lateral. Milhares e milhares de vezes, os mesmos movimentos.

Dessa maneira, a primeira coisa que Arn aprendeu foi o ritmo e o deslocamento. A segunda, foi aprender a controlar a sua irritação, visto que o irmão Guilbert sempre o acertava no terceiro momento, durante os primeiros dois anos. Só a partir do terceiro ano, Arn passou a controlar bem a movimentação dos pés, deslocando o corpo no tempo certo, como numa canção bem aprendida, de tal maneira que conseguia evitar o terceiro e doloroso golpe.

No quarto ano, o irmão produziu uma nova espada de madeira, mais pesada, na qual introduziu uma folha de metal. Era importante que a espada de madeira nas mãos tivesse o peso certo em relação com a força de seus braços, uma relação que se repetiria mais tarde na vida com a espada metálica. E assim como as flechas, tinham que ser mais duras. Por isso, o irmão Guilbert teve que realizar muitas experiências antes de fabricar as armas certas.

Foi no treinamento com a espada que o irmão Guilbert descobriu que o garoto, tal como na ferraria, tanto usava a mão esquerda quanto a mão direita. Em qualquer outra situação no mosteiro, os professores de Arn tentavam, tal como o faziam no scriptorium, desabituá-lo de utilizar a mão imprópria. Mas para o irmão Guilbert essa questão se punha de maneira um pouco diferente. Consultou a sua consciência e consultou Deus. O padre Henri ele não consultou. Não queria que ele se metesse no assunto.

Em breve, chegou à conclusão de que não se tratava de um canhoto normal. Esse tipo de homens existia, e o irmão Guilbert já tinha se defrontado, de espada na mão, com um desses. E não era fácil, ele sabia. Era como se tudo o que a pessoa aprendera tivesse que ser virado do avesso.

Por isso, desde o início, ele treinou Arn no uso das duas mãos, mudando de um dia para outro ou de uma semana para outra. Entretanto, não conseguiu nunca distinguir qualquer diferença na técnica de Arn, a não ser que o braço esquerdo parecia um pouco mais forte do que o direito. Mas isso significava também que, desde o primeiro momento, foi possível introduzir um segredo na técnica do garoto. De repente, ele podia jogar a espada de uma mão para outra e circular depois, colocando-se a favor do sol na luta e colocando o seu adversário contra o sol. Caso o adversário estivesse vestido pesadamente e uma vez colocado na incerteza, essa mudança de tática repentina teria um efeito mortal.

O irmão Guilbert sabia muito bem que esses pensamentos, eventualmente, eram pecaminosos. E falou deles, em confissão, para o padre Henri, mas explicou que, uma vez sendo a sua missão a de ensinar o garoto, então, ele teria que ensiná-lo o melhor possível. Enquanto Deus não indicasse qual o Seu desejo em termos de missão a cumprir na vida pelo garoto, não fazia diferença nenhuma ler Ovídio, escondido, de faces coradas, ou segurar a espada com a mão esquerda, não é verdade?

Por sua vez, o padre Henri, ao consultar Deus, recebeu como resposta que, enquanto Arn mostrasse o mesmo ardor na leitura quanto nas brincadeiras de guerra com o irmão Guilbert, tudo estaria bem. Ruim seria se ele começasse a preferir flechas e espadas à Glossa Ordinária. Felizmente, Arn não demonstrava qualquer tendência nesse sentido.

E enquanto o padre Henri sempre predicava aplicação e disciplina, pureza e orações, o irmão Guilbert predicava sempre movimentação e mais movimentação, movimentação e aplicação. Era igualmente importante, tal como na música, aprender a sentir quando a flecha devia partir na direção de um lugar futuro onde ela iria se encontrar com o alvo em movimento. Assim, também era importante movimentar os pés o tempo todo, jamais ficar parado, à espera do golpe do adversário. E quando o golpe viesse, estar em outro lugar, para, no momento seguinte, executar o seu golpe.

Aplicação e disciplina. Pureza e orações. Movimentação, mais movimentação, movimentação e aplicação. Arn seguia todas essas regras com a mesma facilidade com que cumpria as de obedecer e amar todos os irmãos, sendo estas as duas regras mais importantes do mosteiro. Depois, vinha a terceira regra, a de falar sempre a verdade, e depois dessa, as outras, mais ou menos importantes, e às vezes quase incompreensíveis, como as de sentar à mesa de jantar e as de se recolher no horário certo.

Aliás, não era nada difícil para ele seguir essas ordenações divinas. Ao contrário, era com satisfação que as cumpria. Às vezes, pensava em como as outras crianças viviam. Tinha vagas recordações de escorregar na neve, de correr com o arco e de outras brincadeiras de criança. Talvez sentisse um pouco a falta dessas coisas. Entretanto, todas as noites, na última oração do dia, ele rezava pela alma de sua mãe e, então, sentia a falta do seu hálito, da sua voz e das suas mãos. Também rezava pelo seu irmão Eskil, recordando o momento em que os dois se separaram, chorando, sendo puxados cada um para o seu lado. Mas entendia, achava que, de qualquer forma, a maior felicidade para qualquer menino era de poder compartilhar seu tempo com todas as maravilhas que vêm nos livros e com todos os trabalhos que o irmão Guilbert proporcionava, às vezes pontilhados por pingos de suor e por lágrimas de dor.

Diante de Deus, Magnus Folkesson prometeu cinco anos de luto por Sigrid, antes de se casar novamente. Entre os seus parentes, esta decisão causou espanto. Não era comum que um homem, ainda bem ativo, e com apenas um filho por herdeiro se contivesse por tanto tempo, renunciando a ter novos filhos e a fortalecer a família com novos laços.

Magnus encontrou algum consolo com Suom e teve até um filho bastardo com ela. Mas Arnäs tornou-se uma fortaleza triste onde não acontecia ou mudava muita coisa. Depois da morte de Sigrid, Magnus sentiu um vazio e não conseguia ter novas idéias no seu comércio e seus negócios. Tudo continuava nos trilhos de antigamente.

Alguma coisa ele construiu, completando os muros e dois lugares de descanso no caminho para Tiveden. Construir caminhos era uma tarefa agradável, divina, e ele tinha prometido fazer essa construção quando, pela primeira vez, visitou a campa de Sigrid, rezou por ela em Varnhem e comprou mais orações que os monges fizeram por ela.

Também pensou que não prejudicaria aliar o agradavelmente divino com algo que fosse bom para seus negócios futuros. No dia em que houvesse uma estrada atravessando toda a Tiveden, ele poderia comerciar para o norte com os sveas, que, sem dúvida, eram pessoas simples que entendiam de muito pouco, mas que tinham muito ferro e um comércio de peles muito fino que podia dar muita prata, se fosse possível fazer esse comércio por caminhos mais fáceis.

Para a tristeza em Arnâs contribuía também o fato de sua mãe, Tora Guttormsdotter, ter vindo de seus burgos noruegueses para, enquanto ele ficasse solteiro, tratar dos assuntos que uma esposa deve resolver. Todavia, ela se mostrou muito dura para com os escravos e queria orientar tudo conforme as velhas tradições da Noruega. E Magnus, tal como muitos homens, tinha dificuldades em forçar sua mãe a reconhecer o seu lugar. Também isso, o fato de ele ter de dominar melhor como senhor a sua própria casa, representava mais uma razão forte para que encontrasse logo uma nova esposa. Segundo a visão do próprio Magnus, seria inteligente uma ligação com a família de Pâl, de Husaby, já que seus próprios terrenos começavam a alcançar fronteira nessa direção. Um dote conveniente que qualquer das filhas de Pälsson poderia levar para o casamento seriam, portanto, as florestas de carvalhos que cresciam para Kinnekulle. Na realidade, essas filhas solteiras eram um pouco mais do que crianças, mas a juventude era uma fase que acabaria rápido.

Eskil era para ele tanto uma alegria quanto uma tristeza secreta. Eskil era como ele próprio e muito como sua mãe, Sigrid, já que parecia ter herdado a compreensão dela. Eskil queria, acima de tudo, fazer viagens de negócios, encontrando-se com outros homens de negócios, conhecendo seus produtos e preços, e aprendendo como avaliar melhor duas barricas de carne de porco, quanto valiam em trigo ou peles ou em gusa. E em prata. Nesse ponto, Eskil era o próprio filho do papai.

No entanto, como adulto que iria ser dentro de pouco tempo, era incapaz de jogar uma lança ou manipular uma espada, e isso para um homem de família com escudo distinto era impensável na sua idade. Magnus era muito parecido com seu filho mais velho nesse aspecto.

Uma única vez, Magnus, como senhor de Arnäs, foi obrigado a entrar em guerra. E isso aconteceu quando o dinamarquês Henriksen nomeou a si mesmo rei dos sveas, depois que, ignominiosamente, decapitou Erik Jedvardsson, em Aros Oriental. Isso acontecera logo depois da grande missa na igreja da Santíssima Trindade, como alguns disseram. Erik Jedvardsson morreu, corajosamente, diante de um grande poder e uma fonte surgiu no lugar em que a sua cabeça caiu.

Ou aconteceu como os inimigos de Erik Jedvardsson contaram e como o rei Karl Sverkersson disse, que Erik Jedvardsson morreu, desnecessariamente, só porque estava bêbedo de tanta cerveja e incapaz, como homem, de se defender.

Isso não importava. Nem era importante saber de que modo Erik tinha sido assassinado. De qualquer forma, tinha que haver guerra. Que os sveas estivessem indignados, porque um dinamarquês matara seu soberano, era fácil de entender. Os dinamarqueses mandaram mensagens até Helsingland e até as florestas mais negras da Svealand, e logo conseguiram reunir um grande exército e colocá-lo a caminho de Aros Oriental. Mas a questão era saber como se comportariam as Götalands Ocidental e Oriental. Se estas províncias iriam deixar que os sveas ajustassem as contas com o assassino dinamarquês por si próprios ou se elas deviam participar na guerra.

Para o rei Sverkersson e seus homens, em Linkõping, essa não era uma decisão difícil. Ele tinha que escolher entre entrar na guerra com todas as forças que conseguisse reunir contra o assassino dinamarquês e, então, ganhar a coroa dos sveas, ou deixar que estes ganhassem a guerra sozinhos e depois escolhessem um novo rei que podia ser qualquer um entre os sveas, aristocratas ou juizes. Para o rei Karl Sverkersson, a escolha era fácil.

Quando os folkeanos se reuniram em conselho de família na cidade de Bjälbo, na Götaland Oriental, chegaram à conclusão de que não havia muito o que escolher. O irmão de Magnus, Birger, que agora se chamava de Brosa, por estar sempre sorrindo, logo convenceu o conselho. Uma guerra era inevitável para todos na Götaland Oriental, declarou Birger Brosa. E essa guerra seria contra o dinamarquês, assassino do rei. Mas a outra guerra que poderia vir a seguir, essa era absolutamente desnecessária. Para o povo da Götaland Oriental, a única coisa certa era apoiar o rei Karl nesta questão. Mas seria de esperar que ele, depois da vitória, se tornasse também rei na Svealand. Isso porque a vitória estava garantida. Aqueles que tinham se reunido em Svealand já bastavam para alcançar a vitória. Os dias do dinamarquês Magnus Henriksen na terra já estavam contados. Mas havia que pensar no que iria acontecer depois da sua morte.

Para os conselheiros, era decisivo que não houvesse dissidências, que todos lutassem do mesmo lado na guerra. E se o rei Karl conseguisse conquistar a coroa de Svealand, logo iria exigir o mesmo reconhecimento também na Götaland Ocidental. E esse reconhecimento, se fosse preciso, ele iria exigir de espada na mão e, então, os senhores folkeanos das duas províncias, ocidental e oriental, ficariam frente a frente.

Portanto, era melhor reunir todos os problemas numa só guerra e, assim, colocar os gotas ocidentais e orientais, juntos, à volta do rei Karl nessa guerra. Isso iria resultar, certamente, na união das três províncias. E se essa escolha não acontecesse agora, viria a acontecer mais tarde, de qualquer maneira, mas a um preço muito mais alto em sangue e, na pior das hipóteses, colocando irmãos contra irmãos.

Ninguém no conselho teria podido ir contra Birger Brosa nesta questão. E, a partir de então, Birger Brosa sempre levava a melhor nas discussões; era a sua vontade que imperava.

Magnus participou da guerra com o seu esquadrão do jeito que ele achou melhor. Ele e seus homens só entraram na guerra quando ela já estava ganha e o que restava fazer era cortar a cabeça dos últimos dinamarqueses e prender aqueles que, eventualmente, podiam pagar resgate. Ele voltou para Arnâs como vencedor, sem perder um único homem e cinqüenta marcos de prata mais rico. Por essa razão, ele se tornou muito querido das mulheres, mas não muito respeitado pelos homens.

Quando avançou para o campo de batalha, Magnus deixou Eskil em Arnäs, esperneando e gritando. Eskil ainda não tinha chegado à idade adulta na época em que Erik Jedvardsson foi vingado e a paz na Götaland salva. Além disso, Eskil era o filho mais velho e herdeiro e não poderia ser substituído como um escudeiro qualquer morto na guerra.

Magnus tentou esquecer o seu segundo filho que Deus tinha levado, — vivo, da sua companhia. Mas como sabia que Arn era dos dois garotos o aquele de que Sigrid mais gostava, não podia esquecê-lo como desejava, para apaziguar a sua alma. Muito menos podia esquecer Sigrid, durante os cinco longos anos com que ele se castigou, depois que Nosso Senhor a separou dele. Sem contar a ninguém, Magnus reconheceu que Sigrid, sem dúvida, fora a pessoa, entre todas que ele encontrou na vida, que mais respeitara, mais do que todos os homens, mais até do que seu irmão, Birger Brosa.

Mas isso ele confessava só para si mesmo. Se dissesse isso em alto e bom som, ele seria desprezado ou considerado louco. Nem mesmo para Eskil ele poderia admitir essa maneira de pensar a respeito de uma mulher que, no entanto, era a sua mãe.

Enquanto os gelos ainda agüentavam o peso da passagem, foi convocada uma nova reunião do conselho em Bjälbo, e Magnus viajou com um pequeno grupo de escudeiros e com Eskil, que, pela primeira vez, iria participar das deliberações dos homens. Mas as instruções, para ele, eram as de não se intrometer, não beber demais, não dizer nada e apenas escutar e aprender.

 

Em Bjälbo, na torre alta, havia várias salas para conferências e, sem dúvida, esse era um dos lugares em toda a Götaland Oriental onde elas mais se realizavam. Isso se notava até mesmo na maneira como os escravos recebiam os viajantes, os alojavam e os informavam a respeito de como e onde as reuniões teriam lugar. Em Bjälbo, esse era um trabalho habitual. Ali, falava-se tanto de poder quanto em Arnâs se falava de prata.

Birger Brosa recebeu seu irmão e seu sobrinho calorosamente e desde o início ofereceu para eles uma hospitalidade maior do que aquela oferecida para os outros parentes. Se isso tinha a ver com o amor fraternal ou com os planos de Birger Brosa diante das questões a serem discutidas ou, de preferência, a serem postas para receber a concordância de todos, Magnus não podia dizer. Mas gostou de ser tratado como um homem de valor, se bem que no seu meio existissem agora vários homens, grandes lutadores, com cicatrizes de muitas batalhas, uma coisa que era muito mais valorizada do que a prata, já que o bispo mais gorducho podia muito bem ter uma grande quantidade de prata, sem que por esse motivo fosse considerado um grande homem.

Os primeiros dias foram dedicados às delícias dos banquetes, onde se falava com liberdade a respeito do que havia para comentar maldosamente em relação aos parentes que não puderam vir, como, por exemplo, os noruegueses, que mais uma vez, como sempre, estavam em guerra. Dessa maneira, dava para esperar por aqueles que chegariam um pouco mais tarde, ou porque os caminhos no inverno ficavam intransitáveis ou porque a espessura dos gelos não merecia confiança. Com isso, ninguém chegava tarde demais para as discussões que fatalmente iriam terminar em decisões e tudo isso poderia acontecer enquanto, em algum lugar, blasfemando e transpirando, alguém lutava para reparar um trenó partido ou virado.

Quando todos já tinham chegado, houve uma reunião na maior sala da torre. O que poderia surpreender muitos dos presentes e também surpreendeu Magnus e Eskil, é que todos se reuniram para discussões logo depois das orações do meio-dia, realizadas na capela da torre, embaixo. Isso, sem comer. Os assados tinham começado a rolar no fogo e não estariam prontos senão dali a muitas horas.

Birger Brosa, que introduziu essa estranha nova ordem, explicou que a maneira tradicional de seus antepassados de comer, beber e discutir, tudo ao mesmo tempo, tinha as suas vantagens. Por vezes, era bom que a cerveja ajudasse a soltar a língua e que ninguém se sentisse constrangido por timidez ao falar sobre assuntos que diziam respeito a todos. Mas, por vezes, também acontecia que a língua ficava solta demais em função de muita cerveja e daí nada se decidia ou então ninguém, no dia seguinte, se lembrava do que havia sido decidido ou ainda alguns parentes acabavam se separando, de mal uns com os outros.

E, assim, numa sala fria em que era preciso usar um manto enquanto sentados e onde uns poucos braseiros foram colocados, começou a reunião.

A grande questão era a fidelidade das famílias para com Karl Sverkersson. Ninguém o considerou como soberano poderoso, capaz de defender o reino se dinamarqueses ou salteadores do outro lado do Báltico atacassem o país. E muito menos se os noruegueses viessem, se bem que, como habitualmente, estivessem agora muito ocupados em se matar uns aos outros. Portanto, a questão era saber se já era o momento de suas famílias ali reunidas começarem a lutar pelas coroas do reino.

Birger Brosa achava que esse momento iria chegar, mas não agora. A família era mais forte na Götaland Oriental do que na Götaland Ocidental, mas a província oriental era também aquela onde o rei Karl estava mais forte e onde vivia a maioria dos parentes, em especial em Linkõping e nas terras à volta. Para vencer era preciso convencer os gotas ocidentais a sair de casa e a entrar em combate por uma ou outra das coroas pelas quais a maioria deles não tinha o menor interesse. Não iria funcionar.

Por isso, por enquanto, era mais conveniente manter uma boa pose, apoiar o rei Karl e não deixar ninguém perceber que esse apoio talvez terminasse como um raio caído de um céu azul, se as condições fossem as corretas.

Portanto, havia que continuar, pacientemente, a fortalecer as famílias da maneira como sempre fora feito, através de casamentos inteligentes. E havia agora uma boa oportunidade de proceder assim, já que o próprio Birger Brosa não deixaria de cumprir suas obrigações, por muito que fosse agradável viver como jovem senhor, sem a responsabilidade a que Deus obrigava todos os homens mais cedo ou mais tarde.

Através do irmão Magnus, continuou Birger Brosa, e agora todos o escutavam intensamente, e nenhum grito, nenhum ressonar, nenhum tilintar de copos de cerveja perturbava os pensamentos, havia uma ligação familiar com o rei Magnus Sigurdsen, da Noruega. Entretanto, o rei Magnus foi vencido por Harald Gille e o poder soberano devia seguir, pelo menos ao que parecia agora, para os filhos de Harald. Esse ponto de vista foi aceito por todos que conheciam, pelo menos um pouco, dos mandos e desmandos dos noruegueses. Na verdade, quando se tratava de noruegueses, ninguém podia estar certo de nada. Tudo podia mudar com uma única cutilada de espada, fazendo de qualquer dinastia real uma dinastia exilada.

Entretanto, Birger Brosa estava se oferecendo, agora, para viajar para a Noruega e propor casamento a uma das filhas de Harald Gille, Solveig ou Birgida, aquela que lhe parecesse a melhor. Isso iria fortalecer a ligação da família com a Noruega, independentemente de os noruegueses continuarem a se matar uns aos outros: ele estaria se ligando à dinastia de Harald Gille e seu irmão Magnus continuaria ligado à dinastia de Magnus Sigurdsen.

O problema passou a ser virado e revirado por algum tempo. Outra possibilidade seria a de se unir pelo casamento com a dinastia de Karl Sverkersson. Mas isso poderia ser tanto uma jogada de mestre quanto um fiasco. Podia acontecer estar ligado por parentesco com a coroa, mas esta iria parar na cabeça de algum filho de Karl, se este acabasse tendo algum. Não, fortalecer a ligação com a Noruega parecia ser um lance menos audacioso, mas, com o tempo, mais inteligente. A questão, a partir daí, ficou clara e mais do que isso não precisaria ser dito a respeito desse casamento.

A seguir, veio a questão de Magnus: a quem ele devia propor casamento. Seu tempo de luto por Sigrid tinha passado e ele era um bom partido com muitas terras e muita riqueza, o que sempre facilitava as coisas. Mas a questão era saber qual seria a proposta mais conveniente.

Magnus teve a oportunidade de dizer, primeiro, o que ele pensava da questão. Não muito seguro na voz, nem a respeito de que palavras escolher, começou dizendo que se ele se juntasse com a família de Pâl, de Husaby, dessa maneira seria mais um laço forte a ligar a Götaland Ocidental com Bjälbo. Além disso, havia uma situação especial a considerar: as terras da família de Pâl e as suas eram fronteiriças, e o casamento, por isso, significaria que uma grande parte das praias do lago Vänern ficaria sob um mesmo dono. Isso significava também que seria possível montar um forte controle sobre o comércio em toda a Götaland Ocidental, já que o Vänern, durante grande parte do ano, era a ligação mais importante, tanto para Lõdõse como para a Dinamarca e a Noruega. Existiam duas filhas em Husaby, ambas graciosas, mas um pouco jovens demais.

Ao se sentar, Magnus percebeu pelos murmúrios e segredinhos dos seus parentes e amigos que eles tinham achado que ele falara bem, mas ainda assim não estavam convencidos. Suspeitou, então, que alguém já tinha um plano para o seu futuro e, nessa altura, não seria muito difícil imaginar de quem viria a eloqüência.

Como já se esperava, Birger Brosa pediu a palavra e falou primeiro de maneira agradável e prestigiosa a respeito do seu irmão mais velho, de seus serviços prestados, do seu talento para os negócios e de seu desejo em se casar bem, para fortalecer a família e trazer amigos para o seu lado.

Em seguida, porém, mudou de tom e descreveu, curto e preciso, que era necessário realizar ligações mais ousadas, e para todos os parentes e amigos mais importantes. A dinastia erikiana não tinha, de forma alguma, e sobre isso as informações eram muitas e seguras, desistido da luta pela coroa. Na Noruega, estava vivendo a viúva de Erik Jedvardsson, planejando sua vingança e criando seus filhos para futuros candidatos ao trono. A família erikiana era forte ao sul de Skara e tinha também ramificações na Svealand. Era uma família, sem dúvida, que ninguém gostaria de ter como inimiga.

Num dos burgos perto de Eriksberg, vivia como senhor o irmão de Erik Jedvardsson, Joar, e ele tinha uma filha, a mais velha, não tão graciosa, que gostaria de ver casada com muita festa até com um homem menos rico que Magnus.

Magnus suspirou fundo ao ouvir seu irmão mais novo apresentar a questão. Compreendeu logo o que estava por acontecer. Seu próprio sangue iria servir para amarrar a família com um futuro inimigo importante ou a uma futura associação importante. A esse respeito, dificilmente iria poder dizer qualquer outra coisa a não ser a de achar a idéia brilhante e que assim fosse feito.

Eskil, que teve um pouco de dificuldade em ver lógica na escolha de amigos entre matadores e não entre aqueles que detinham riquezas da espécie correta, olhou aflito para seu pai. Eskil entendeu também o que estava para acontecer. Em breve, ganharia uma nova mãe, a respeito da qual ele não sabia nada, a não ser que não era muito graciosa.

Arn jamais tinha visto o irmão Guilbert tão feliz como no dia em que chegaram os novos cavalos. Eram um garanhão, duas éguas e um potro quase adulto. Todos foram levados para um pasto separado, para que não se misturassem com os cavalos nórdicos. Pareciam estar em ótimas condições. A sua Viagem tinha decorrido fácil, numa boa época do ano, com muito pasto e muita água pelo caminho. Tinham vindo com o padre Henri de uma das suas constantes viagens ao capítulo geral cisterciense em Cíteaux. E como o padre Henri e os irmãos que vinham com ele muitas vezes seguiam a pé, como sempre acontecia, e como as duas carroças pesadas eram puxadas por jumentos, os cavalos estavam bem descansados.

O regresso do padre Henri, vindo da capítulo geral, era sempre um grande acontecimento no mosteiro, não apenas porque todos os irmãos obedeciam fielmente e aplicavam com o maior prazer a regra da amizade, mas também por causa de tudo o mais, por causa das notícias, das cartas, dos novos livros, para saber a respeito do que acontecia no mundo laico e também no mundo clerical, por todos os bulbos, sementes e enxertos que o irmão Lucien, com o ardor de uma criança, recolhia e começava a pesquisar, instruindo seus alunos. Finalmente, também por causa de certos queijos e barricas de vinho que, pelo menos, os irmãos borgonheses achavam difícil viver sem eles, assim como os cozinheiros provençais achavam impensável viver no mosteiro sem renovar o estoque de certos condimentos que o irmão Lucien ainda não tinha conseguido reproduzir no duro clima dinamarquês.

Eram muitos os irmãos que tinham dificuldades em observar a disciplina e o respeito que um tal regresso exigia, visto que era indispensável assistir primeiro à missa do regresso. E esta era especialmente longa, já que o coro ensaiara cânticos novos ou antigos, mas apresentados, parcialmente, com novas vozes para os agradecimentos pelo regresso. E até mesmo Arn, que continuava ainda com a sua bonita voz de soprano, tinha um trabalho extraordinário nessas ocasiões.

Depois, os irmãos saíam depressa da igreja, conversando como garotinhos, durante a espera pelas cerimônias, sob a liderança do padre Henri, que assistia à abertura da bagagem. O padre Henri lia na sua lista e apontava para os presentes de Deus, e alguns dos irmãos desapareciam, entre murmúrios e risadinhas de satisfação, com um volume há muito tempo esperado entre as mãos. Outros louvavam a Deus, com mais respeito. E o mesmo acontecia com aqueles que recebiam algo de novo para a horta ou para a cozinha.

Mas logo o irmão Guilbert desapareceu, com Arn por baixo dos braços largos e fortes, para mostrar a ele o melhor presente de todos, que nenhum dos outros irmãos sequer conhecia bem, ou seja, os novos cavalos.

Ao chegar ao pasto onde estavam os cavalos recém-chegados, Arn tentou realmente fazer um esforço para entender a razão do irmão Guilbert, normalmente tão contido, estar verdadeiramente excitado. Aos olhos de Arn, sem dúvida, esses cavalos se diferenciavam bastante dos cavalos comuns. Eram mais magros e mais enérgicos, movimentavam-se o tempo todo como se estivessem impacientes por estar num espaço fechado, corriam de um lado para outro, com movimentos suaves, parecidos com os dos gatos, e com as caudas empinadas. Seus focinhos pareciam um pouco mais largos, mais triangulares, do que os dos cavalos nórdicos, e seus olhos eram muito maiores e mais inteligentes. As suas cores eram especiais, uma das éguas era de um marrom-avermelhado, como muitos outros animais, mas tinha uma mancha cinzenta, abaixo do ombro esquerdo, enquanto que o seu potro, meio adulto, era quase branco, com algumas nuances em cinza. O garanhão e a outra égua eram acinzentados.

Mais do que isso Arn não poderia ajuizar, mesmo tendo trabalhado muito na segunda mais importante das oficinas do irmão Guilbert, a ferraria. Arn sabia ferrar qualquer cavalo, sem que o irmão Guilbert ou qualquer dos outros noviços fosse obrigado a refazer o trabalho.

O irmão Guilbert estava em silêncio, debruçado sobre as pranchas de madeira do cercado, com lágrimas nos olhos, observando os cavalos. Era como se os seus pensamentos estivessem longe dali. Arn, não entendendo a situação, mesmo assim ficou esperando.

Para sua surpresa, o irmão Guilbert, de repente, chamou pelo garanhão numa língua que Arn nunca tinha ouvido e da qual não entendeu uma palavra sequer. Mas pareceu que o garanhão logo prestou atenção, parando e levantando as orelhas para cima na direção do irmão cisterciense. E, depois de uma ligeira hesitação, veio com passo firme, tranqüilamente, até ele. O irmão Guilbert, então, de uma maneira estranha, passou o seu rosto pelo focinho do cavalo e falou novamente naquela língua desconhecida, mas suave. E, depois, mudando:

— Vem, meu garoto, vamos cavalgar um pouco, você e eu. Você fica com o jovem cavalinho — disse o irmão Guilbert e fez passar seu corpo por baixo do cercado, ao mesmo tempo que puxava por Arn.

— Mas o cavalinho... Não vai funcionar, ele não deve estar ensinado, não é verdade? — insinuou Arn, com a patente dúvida na voz.

— Não é preciso. Vem cá que eu te mostro como fazer! — reagiu o irmão Guilbert, chamando o jovem cavalo que imediatamente veio trotando.

O que aconteceu em seguida pareceu a Arn um milagre. O irmão Guilbert acariciou o cavalinho no focinho, nas faces e no pescoço, e falou com ele novamente naquela língua estranha que os cavalos pareciam entender melhor do que o francês e o latim. Após um curto momento, ele levantou Arn apenas com um braço e, como se levantasse uma luva, colocou-o em cima do cavalo. Automaticamente, Arn agarrou a crina, para se segurar em cima do animal quando a agitação começasse. Já tinha cavalgado antes, sem dúvida, mas jamais num cavalo ainda por domesticar e ensinar.

No momento seguinte, o irmão Guilbert balançou o corpo, e com um único e amplo movimento acabou sentado no garanhão. Parecia que tinha voado para cima dele. O garanhão logo partiu num galope selvagem no pasto, à volta do cercado. E o irmão Guilbert nele sentado, sem arreios, no pêlo do animal, segurando a crina apenas com uma das mãos e inclinando ousadamente o corpo para baixo nas curvas apertadas e gritando para o cavalo, um berro atrás do outro, na mesma estranha língua.

O jovem cavalo montado por Arn como que se inflamou por essa alegria e começou a correr à volta também, embora com movimentos bruscos e acriançados, aos trancos e barrancos. Mas, em breve, os dois estavam correndo à volta em alta velocidade. E Arn, delirando de satisfação, começou a imitar os berros do irmão Guilbert naquela língua estranha. E, de repente, ele como que ficou bêbado pela velocidade e pelo vento frio passando sobre a cabeça raspada, fazendo esvoaçar as pontas louras um pouco longas demais sobre as orelhas.

Um pouco envergonhado, Arn reconheceu que estava vivendo, então, uma felicidade pura e verdadeira e que isso era uma coisa que ele não poderia deixar de mencionar na próxima confissão com o padre Henri. Era como se a vida e a força do cavalo lhe dessem uma energia extraordinária, ainda que o cavalo fosse muito novo e estivesse muito longe de ser um animal adulto. E por ele não ter sido cavalgado antes, o que era certo, visto ser tão novo, na realidade, tudo aquilo era um verdadeiro milagre.

— Você entende, meu querido cavaleiro — disse o irmão Guilbert mais tarde, quando os rouxinóis já tinham começado suas canções do anoitecer e quase na hora das vésperas, mas eles ainda estavam sentados na grama do pasto e apreciavam, maravilhados, os novos cavalos —, o cavalo é verdadeiramente o melhor amigo do homem. Mas esses novos cavalos, como você já descobriu, não são como os outros. Eles são os mais nobres, os mais inteligentes, os mais rápidos e os mais resistentes que existem. Agradeça a Deus por este presente, porque estes cavalos vêm do ultramar, da Terra Santa.

O irmão Guilbert estava corado de tanta excitação e ainda ofegante, em conseqüência da demonstração selvagem da grande força do animal.

Arn já tinha começado a entender a diferença entre esses cavalos e os outros, não apenas pelo seu aspecto e sua maneira de ser e de se movimentar, como também em relação às finalidades em que podiam ser utilizados. Ainda assim, Arn continuava se questionando, mas recebeu logo a resposta que esperava.

Esses animais eram cavalos de combate. E aquilo que valia para a espada, valia também para os cavalos: movimentação, mais movimentação e ainda mais movimentação.

Pelo fato de os homens aqui no norte, na bárbara Escandinávia, ainda não terem adotado a arte de combater a cavalo, explicou o irmão Guilbert, eles eram obrigados a escolher cavalos lentos, mas fortes, capazes de transportar cargas pesadas para a linha de combate. Aí chegados, os homens nórdicos desciam dos cavalos, amarravam-nos e iam a pé para o combate. Se os cristãos tivessem tentado dominar os sarracenos dessa maneira, jamais Jerusalém teria sido libertada.

Mas, no resto do mundo, os combates eram realizados a cavalo, só mesmo na Escandinávia os homens ainda não tinham entendido assim. E, por isso, o irmão Guilbert tinha a intenção, simples e clara, com esses cavalos, de espalhar seu sangue pela Dinamarca e de introduzir a nova técnica que acompanhava os novos cavalos e com isso ganhar muita prata para o mosteiro. O mesmo que acontecia, mais ou menos, com a produção de espadas melhores para os nórdicos. Uma coisa devia ser tão lógica e lucrativa quanto a outra.

Ainda com a sensação do vento no cabelo e da velocidade do cavalo, Arn pediu com ardor e sem o respeito devido para aprender a arte da luta a cavalo, tal como os cristãos faziam no Sul.

O irmão Guilbert sorriu, esfregou carinhosamente a tonsura de Arn e explicou que era isso mesmo que ele tinha acabado de fazer. O tempo todo. Tudo o que Arn tinha aprendido a respeito de cavalos desde o dia em que começou a trabalhar tivera essa finalidade.

Em primeiro lugar, tratava-se de equilíbrio e mais equilíbrio. Assim como Arn tinha começado por treinar com a sua espada de madeira, às vezes com uma em cada mão, em cima de um mastro, à volta do qual iam e vinham sacos de pele cheios de areia por cima dele, arriscando-se a ser derrubado, do mesmo modo ele tinha sido treinado a montar cavalos desde o início e a montá-los no pêlo, sem sela. Tudo isso para aprimorar o equilíbrio, para se manter sempre em cima do cavalo, independentemente dos movimentos que este fizesse.

Agora, ele iria montar pela primeira vez um cavalo novo, de início sem sela, aprendendo a conhecer o animal, a falar com ele, a fazer-lhe festas e a tomar conta dele. E o nome dele seria secreto, não para Deus, claro, mas entre os dois. Seria chamado Chamsiin, que era o nome para um vento do deserto, um vento que podia soprar por cinqüenta dias e que parecia não se cansar nunca disso. As duas éguas se chamariam Aisha e Khadija e o garanhão, Nasir. O irmão Guilbert não deu explicação sobre esses nomes, disse apenas que eram os dos cavalos na sua língua - secreta e que isso não importava para os outros no mosteiro, mas apenas para eles dois, os únicos que eram cavaleiros.

A sela viria mais tarde, quando Chamsiin crescesse, mas até lá era preciso cumprir o básico: a confiança, o amor e o equilíbrio.

A campainha para as vésperas soou e eles tiveram que se apressar para o vestiário. Enquanto corriam, afastando-se dos cavalos, Arn ainda perguntou se podia aprender também a língua secreta dos cavalos. Para quem já falava três línguas, mais uma, a quarta, não seria problema, não é verdade? O irmão Guilbert sorriu disfarçadamente e respondeu qualquer coisa, não muito claramente, que esse dia iria chegar certamente. Mais não disse.

Arn sempre fora obediente. Amava os irmãos tanto quanto os livros. Amava o trabalho duro tanto quanto o fácil, tanto se sentia à vontade erguendo o muro, lá em cima, na torre da igreja do mosteiro, quanto pescando no fiorde. Amava o treino com a espada e o arco e flecha tanto quanto o trabalho de ler, verso após verso, com a ajuda da Glossa Ordinária, as Sagradas Escrituras, circulando pelos caminhos da fé. Possivelmente, tinha amado um pouco menos Aristóteles e um pouco mais Ovídio, de quem em segredo recitava, de vez em quando, os versos proibidos que tinha conseguido ler antes de eles terem sido levados e fechados à chave. Evidentemente, ele se confessou depois e recebeu uma punição por esse pecado. Mas tinha valido a pena. O que eram alguns padre-nossos extras comparados com a sensação de o sangue aflorar nas faces e sentir o corpo esquentando por momentos, só de pensar em Ovídio?

Essa de Arn ter escasso interesse pelo filósofo e um interesse muito maior, ardoroso, por um texto impróprio para adolescentes, o padre Henri não tinha nenhuma dificuldade em tolerar. No que dizia respeito a Ovídio, havia mais de um religioso na sua roda de conhecidos que tanto como jovens quanto como adultos tinham dedicado a esses estudos mais do que seria apropriado. Nada para se brigar a respeito. Ele próprio pertencia a essa categoria, pelo menos quando recordava seus tempos como noviço. Essas eram as variantes normais da vida e nada mais. E Deus, em Sua sabedoria, tinha criado a vida, de tal forma que houvesse, permanentemente, variantes. Se o garoto, portanto, não achava o filósofo tão interessante e tinha até, por vezes, algumas impertinentes objeções, em especial contra as disposições lógicas, isso não era para estranhar, porque, se isso fosse de fato pecado, então seria um pecado que o garoto compartilharia, por exemplo, com o irmão Lucien. Este, tão devoto na sua arte de, em nome de Deus, fecundar o mundo com coisas que crescem e vão parar na mesa do homem ou que curam suas doenças ou ainda que tornam mais bela a sua visão, também sempre demonstrou pouco interesse em ler o filósofo. Mas o padre Henri jamais poderia sequer sonhar que, por esse motivo, teria o irmão Lucien em menos consideração, um irmão a amar menos do que os outros irmãos.

De maneira análoga, caso por brincadeira utilizássemos a lógica tal como o filósofo teria feito, poderíamos pensar que o garoto estava entre os devotos que também assistiam às aulas do irmão Lucien. Era um trabalho pequeno, meticuloso, mas importante, por trás das exposições do mosteiro das belezas que Deus podia criar na terra com a ajuda dos fiéis irmãos. Primeiro, apareciam os galantos brancos que se esgueiravam pela crosta ainda dura e inóspita do inverno; depois, com o calor, vinham os narcisos silvestres, os narcisos brancos e as tulipas. Tudo isto era novo na

Escandinávia bárbara e atraía visitantes boquiabertos que ficavam fascinados, quando chegavam na época certa e viam as árvores de fruto em flor. Tudo isso era desconhecido dos bárbaros: macieiras, pereiras e amoreiras. As vendas tinham subido de maneira fantástica nos últimos anos. E, de resto, foi Arn que assistiu ao irmão Lucien indo buscar os produtos e traduzindo seus nomes para a língua nórdica.

Arn esteve sempre à altura, diante de tudo o que podia aprender. Era rápido no aprendizado e, nesse aspecto, nada havia para se preocupar. Desde que não se considerasse, como alguns irmãos mais rígidos consideravam, que a espada e a lança não tinham nada a ver com a função divina na terra. Mas os irmãos que acreditavam nisso não tinham estudado o suficiente sobre seu padre, São Bernardo, o criador dos templários, mais do que o papa ou qualquer outro dos homens da Igreja.

No entanto, havia agora um problema com o garoto. Desde que os novos cavalos chegaram, ele como que ficou um pouco enlouquecido. Parecia não ser completamente incorreto dizer que ele agora tinha um vício ou uma ânsia, um interesse que se sobrepunha a todos os outros. E a questão se pôs numa perspectiva mais elevada e estratégica, se Deus queria isso ou se Deus queria ver repreendido, imediatamente, o garoto, Seu escolhido. E, numa perspectiva mais tática, tratava-se de saber como é que um padre devia se portar para fazer essa reprimenda.

O padre Henri mandou chamar o irmão Guilbert em várias ocasiões para discutir o problema. Mas parecia que o bom Guilbert só queria diminuir a importância do assunto com frases como meninos são meninos e o que é que você pensou ou fez nessa idade, temos de entender a atração da novidade e, além de tudo, isso faz parte da instrução que, como todas as outras, estou dando a ele.

Talvez fosse verdade. Mas, no entanto, a adoração do garoto pelos novos cavalos era tão grande que, claramente, ameaçava se sobrepor, pelo menos temporariamente, até mesmo ao seu interesse pelos livros. Aliás, o padre Henri, como confessor de Arn, sabia muito mais do que o irmão Guilbert poderia saber. Visto que, tal como qualquer outro, sobre pouco ou nada Arn poderia mentir ao se confessar diante do seu prior.

Arn viu o problema justamente pelo fato de ter de se confessar, reconhecer a sua posição pecaminosa e, depois, penitenciar-se. Mas não sabia que esse problema era algo que realmente preocupava o padre Henri, porque, se soubesse, isso o faria sentir-se triste e envergonhado. Entretanto, continuava a receber aquelas pequenas punições como orações extras e, talvez, um ou outro dia passava a pão e água, tal como aconteceu depois de ter lido os poemas mundanos e pecaminosos de Ovídio ou, ainda pior, quando escreveu seus próprios poemas, tentando imitar as imagens ovidianas.

Nesse meio-tempo, Chamsiin cresceu e deixou de ser apenas um potro para se transformar num cavalo de verdade. E o amor entre Arn e o jovem cavalo também aumentou, e o verão, além disso, estava no seu ponto alto, com as noites luminosas, de temperaturas agradáveis, e os rouxinóis cantando na Jylland. Numa noite dessas, depois de ter dormido apenas algumas horas depois da missa da meia-noite, Arn saiu para a cavalariça, pegou a sela e os arreios, sussurrou algumas palavras no ar e logo Chamsiin veio correndo para ele, baixou a cabeça e aceitou de bom grado os beijos e as carícias de Arn no seu focinho macio.

Então, uma vez sentado na garupa, Arn seguiu cuidadosamente na direção do cercado, e Chamsiin armou o salto, suave e felino, passando por cima da trave. Depois, avançaram devagar, ainda por alguns momentos, antes de aumentar a velocidade, de tal maneira que, certamente, se tornaram a equipe mais rápida a cruzar o território dinamarquês, em todos os tempos. Isso porque Chamsiin vinha de uma origem onde a velocidade sobre grandes planícies era uma coisa completamente diferente, comparada com os galopes lentos dos cavalos nórdicos em curtas distâncias.

Como um cavaleiro do Apocalipse, Arn avançou com Chamsiin pela planície levemente ondulada e entre as faias esparsas, durante toda a noite, até o mar, com o risco de ter de voltar na mesma velocidade para chegar a tempo para a missa da manhã.

Em breve, corria o boato de que havia um cavaleiro fantasma, um presságio, um mau sinal, um espírito que cavalgava como nenhum ser humano poderia cavalgar, nem mesmo em sonhos, um gnomo com dentes afiados e perversos e com uma espada brilhando pelo fogo.

A espada, entretanto, era de madeira com um núcleo de aço por uma questão de peso. Mas nas suas fantasias Arn cavalgava com uma espada que poderia muito bem ser de fogo, e a balançava para a frente e para trás com a mão esquerda, e no meio da cavalgada mudava a espada para a outra mão e fazia a troca com as rédeas. Embora a espada não fosse o mais importante. Era como se ele quisesse dopar a sua consciência através da realização de um pouco de trabalho, ao mesmo tempo que cavalgava pelo prazer de cavalgar, na hora em que devia estar dormindo aquele sono justo e ordenado por Deus.

Era a velocidade que o atraía. Chamsiin, como ainda era jovem, tinha um galope que Arn nunca havia visto nem cavalgado antes. Nas fantasias de Arn, era como se Chamsiin fosse impulsionado para a frente por forças sobrenaturais, como se essa velocidade fosse uma coisa que só Deus podia criar, como se ele, por isso mesmo, ficasse mais perto de Deus em cima de Chamsiin do que em outros momentos.

Era um pensamento pecaminoso, sem dúvida. Arn também achou — que sim. Rezou as orações devidas e prometeu negar o que devia para procurar indulgência.

Mas que velocidade!, pensava ele. Vergonhosamente, sem dúvida, mesmo durante as suas orações de arrependimento maior.

 

Justo pela época do Natal, no ano da graça de 1144, os cristãos no reino de Jerusalém sofreram a sua maiór derrota desde a conquista da Terra Santa. Na Europa cristã, muitos consideraram que a queda de Edessa fora uma catástrofe. Mas ninguém podia imaginar que aquilo era o começo do fim da ocupação cristã, visto que o simples pensar nisso por apenas um segundo, um tal fantasioso pensamento, já seria uma blasfêmia.

Por essa época, meio século depois de uma conquista que custou a vida de mais de cem mil cristãos, o reino de Jerusalém era composto de uma costa contínua que se estendia de Gaza, no sul da Palestina, passando por Jerusalém e Haifa, até a costa do Líbano, e, em seguida, para o norte, até Antioquia. Mas acima de Antioquia, onde a Ásia Menor se infiltra como uma grande trave por cima da Síria, existia um grande enclave cristão à volta da cidade de Edessa, que, junto com Antioquia na costa, dominava todos os caminhos entre Bagdá, Jerusalém e Damasco, além do rico reino cristão, romano oriental, em Constantinopla. Depois de Jerusalém, Edessa foi a fortaleza mais importante dos cristãos.

Mas, agora, a cidade foi invadida, pilhada e jogada para longe na memória da história, para o esquecimento, por um comandante de exército cujo nome mal era conhecido no norte, na Europa. Esse nome era Unadeddin Zinki. A conquista terminou com um banho de sangue, em que cinco mil francos, seis mil armênios e outros cristãos do país foram assassinados, após os muros terem caído. Depois disso, Zinki deixou que trezentos judeus se mudassem para a cidade, provavelmente para fazer com que ela voltasse a existir. Os judeus estavam mais próximos dos islamitas do que os cristãos, porque os cristãos tinham o hábito singular de sempre matar todos os judeus quando os encontravam.

Zinki era um comandante forte, desejoso de honras e muito cruel. Evidentemente, sua grande vitória provocou muito júbilo em todo o mundo muçulmano, onde as pessoas também o receavam e queriam, antes, que ele vencesse em qualquer outro lugar que não aquele em que elas se encontravam.

Talvez fosse a crueldade, justamente, a sua fraqueza. E talvez por isso a enorme força cristã em preparação para ser mandada numa segunda cruzada para vingar Edessa e salvar a Terra Santa pudesse vencer Zinki, apesar da grande experiência deste na guerra contra os cavaleiros francos.

Mas ele não fazia nenhum segredo de que queria conquistar Damasco, a segunda cidade mais importante depois de Jerusalém, para daí fechar o cerco, cada vez mais, à volta dos cristãos.

No entanto, a população maometana de Damasco não demonstrou nenhum entusiasmo pela idéia de receber dentro dos altos muros da sua cidade esse comandante imprevisível e cruel. Entretanto, quando Zinki estava a caminho de Damasco, foi obrigado a parar e a cercar a cidade de Baalbeck. Ficou tão irritado por ter demorado tanto tempo que, quando finalmente Baalbeck capitulou, depois da guarnição ter recebido a garantia normal de que teria salvo-conduto, ele mandou degolar todos os defensores da cidade, com a exceção do comandante, que foi esfolado vivo.

Possivelmente, ele acreditava que um comportamento como esse iria amedrontar os habitantes de Damasco e os faria oferecer uma resistência menos aguerrida. Mas o efeito foi o oposto. Damasco fez uma aliança com o rei cristão de Jerusalém, pela simples razão de que as duas cidades, independentemente da religião, tinham o mesmo receio em relação a um conquistador como Zinki. Sem a crueldade de Zinki, uma aliança entre Damasco e Jerusalém seria impossível. Sem a aliança entre Damasco e Jerusalém, os cristãos ainda assim teriam vencido a sua segunda cruzada. Por isso, a crueldade de Zinki favoreceu mais a questão de Alá do que a questão de Deus.

Quando as tropas de Zinki entenderam que a guerra tinha terminado dessa vez, que para eles seria impossível conquistar e pilhar a própria Damasco, eles se retiraram a caminho de casa, cheios de despojos e por enquanto satisfeitos. O seu exército se dissolveu. Era a mesma cantiga neste lugar do mundo, um problema tão grande para os exércitos cristãos quanto para os exércitos muçulmanos. Uma questão de Deus, uma questão de Alá, santidade aqui ou ali, mas aquele que obtinha um rico despojo de guerra e, além disso, conseguia conservar a vida, começava a ter saudades de casa.

No meio de toda esta irritação, Zinki descobriu que o seu eunuco cristão estava bebendo escondido o vinho da sua taça pessoal e se contentou em dirigir-lhe no momento uma série de ameaças a respeito das punições que ele iria receber por tal atrevimento, mas resolveu primeiro dormir antes de resolver o assunto. Mas o eunuco, que tinha boas razões para acreditar que seu patrão, depois da soneca, iria voltar com uma boa carga de punições, todas elas terríveis, umas piores do que as outras, preferiu enfiar nele o seu punhal enquanto ele dormia.

Também este acontecimento podia ser visto como favorável para os cristãos, visto que as conquistas de Zinki seriam agora partilhadas entre seus filhos e isso iria levar tempo e, possivelmente, poderia conduzir a as pequenas guerras civis. Portanto, uma situação melhor do que essa jamais que a segunda cruzada vingativa poderia ter.

Mas Alá queria algo diferente. Queria que aquele entre os filhos de Zinki que iria receber o anel, o sinal do poder, da mão de seu pai assassinado, fosse Mahmud, que em breve teria o apelido de Nur ed-Din, a Luz da Religião.

Nur ed-Din herdou as boas qualidades do seu pai, como comandante. Devia vencer sempre os cristãos. Mas sua estratégia era diferente e, ao contrário da maioria dos outros que combatiam as invasões européias, ele aceitou o verdadeiro credo com a maior seriedade. Mandou chamar para junto de si todos os homens sábios, todos os contadores de histórias e todos os que tinham direito a falar nas mesquitas e ainda todos os poetas ou os que podiam espalhar escritos, e convencia-os ou lhes pagava para espalhar a lenda de Nur ed-Din que nunca combateu para proveito próprio, que sempre seguiu a mensagem do Alcorão, que proibiu até a sua própria guarda de beber vinho, que nunca degolou os seus vencidos que se entregavam, que nunca colocou os seus interesses acima dos do Islã. Em breve, já havia conseguido despertar de novo o fervor religioso à sua volta. Mas teve o cuidado de não assaltar Damasco antes do tempo e, em vez disso, fez de Aleppo a sua capital.

Com Nur ed-Din e, acima de tudo, com aquele que viria depois, Salah ed-Din, a presença dos cristãos na Terra Santa estava condenada a fracasso. A queda de Jerusalém era uma questão de tempo. Mas sobre isso só pode contar aquele que escreve com a sabedoria do já visto e que sabe como aconteceu.

Quando a notícia da queda de Edessa se espalhou pela Europa, ela provocou tanto depressão quanto perplexidade. Era como se o mundo cristão nunca tivesse imaginado uma coisa assim, já que a conquista da Santa Sepultura de Deus fora uma boa ação e uma boa ação não poderia conduzir a uma derrota.

Se a cristandade não reagisse rápido e desse uma resposta dura, os infiéis poderiam pensar em ir contra a própria Jerusalém, isso seria uma conclusão puramente militar, fácil de entender também pelos homens de fé.

O papa Eugênio III começou a trabalhar, imediatamente, no lançamento de uma segunda cruzada para garantir o acesso livre à Santa Sepultura e a todos os outros lugares de peregrinação. Dirigiu-se, principalmente, ao rei Luís VII, da França, que tinha problemas matrimoniais tão graves que qualquer desculpa para uma retirada do páreo seria impossível de dar sem muita consideração. Em contrapartida, participar na campanha, a par daquilo que uma guerra sempre poderia trazer como ganho material, iria significar também o perdão de todos os pecados e a conseqüente garantia de entrada no Paraíso.

No entanto, o rei Luís, no início, não obteve o menor sucesso em convencer os seus vassalos a respeito de uma campanha que, sem dúvida, seria grande e longa. Eles não tinham os problemas dele no casamento e estavam satisfeitos, como condes e barões, em relação à sua situação no país de nascimento.

Luís explicou, embaraçado, seus problemas para o papa que, nesta situação constrangedora, fez a única coisa possível. Mandou chamar Bernardo de Clairvaux e seus estandartes sagrados.

Bernardo de Clairvaux era na época, espiritualmente, o homem mais influente do mundo e, provavelmente, o melhor orador do mundo laico. Ao se tornar conhecido que Bernardo iria falar na catedral de Vézelay, em março de 1146, chegaram enormes multidões, tanta gente que logo ficou claro que a catedral não iria poder acomodar a todos. Foi preciso construir uma plataforma de madeira fora da cidade, e Bernardo ainda não tinha terminado de falar e já os dez mil ou mais ali reunidos começaram a gritar pela cruz.

Havia uma grande quantidade de panos com cruzes já preparados, que Bernardo começou a distribuir, primeiro para o rei e seus vassalos, já que nem mesmo os relutantes condes e barões puderam contrariar a onda de entusiasmo e convencimento que então soprava, e depois para todos. Por fim, Bernardo começou a rasgar sua própria roupa para dar para os novos recrutas como cruzes a colocar em si, em sinal, por um lado, de que estavam dispostos a participar na Guerra Santa e, por outro lado, por saber que, assim, estariam preparados, depois de um breve esforço, para receber a eterna absolvição por todos os seus pecados.

Não foi sem uma ponta de orgulho que Bernardo escreveu para o papa a respeito da sua façanha:

“Tu deste a ordem. Eu obedeci. Da Força com que deste a ordem fez com que a obediência desse frutos. Abri a minha boca. Falei e logo em seguida o número de cruzados era multiplicado até ser impossível contá-los mais. As aldeias e as cidades estão agora despovoadas, abandonadas. Mal pudemos contar um homem para cada sete mulheres; por toda aparte o que se vê são viúvas de homens que ainda vivem.

E o despertar cristão na Europa se espalhava agora com a mesma força do despertar de Nur ed-Din em Aleppo, ainda que nenhum dos povos não soubesse nada a respeito do outro. Bernardo de Clairvaux teve de fazer uma longa viagem e repetir, dia após dia, aquilo que tinha dito, primeiro em Burgund, depois em Lorrain e em Flandres.

Mas como o novo despertar se espalhou para a Alemanha, surgiu o problema normal, o mesmo da primeira cruzada. O arcebispo de Colônia teve de chamar apressadamente por Bernardo, visto que um monge cisterciense de nome Peter den Võrdnardsvârde estava viajando por toda a Alemanha com uma mensagem semelhante à de Bernardo quanto à questão da Terra Santa, mas uma mensagem totalmente diferente quando se tratava dos judeus na Europa.

Em conseqüência das suas prédicas, houve massacres em Colônia, Mainz, Worms, Spies e Estrasburgo. Os judeus eram assassinados, em alguns lugares até a última pessoa viva.

Bernardo, logo à chegada, teve que, rapidamente, dar a Peter den Võrdnadsvárde uma penitência, a de ficar em silêncio durante um ano, a de se arrepender, a de voltar imediatamente para o seu mosteiro em Cluny e a de nunca mais se meter em assuntos de que nada entendia.

Depois disso, Bernardo teve de refazer toda a sua turnê francesa, agora, na Alemanha, onde ele, apesar de ter de trabalhar com um tradutor, conseguiu a mesma resposta a favor da Guerra Santa. Mas agora, além do mais, teve de se esforçar muito para parar com as perseguições aos judeus e repetia sempre que “aquele que se dirige a um judeu para lhe tirar a vida é como se atingisse o próprio Jesus Cristo”.

Com isso, as massas, entusiasmadas, puderam se concentrar de novo na questão primordial e a segunda cruzada podia ser considerada como um fato. O soberano alemão, Konrad, fez um acordo com o rei Luís VII e, em breve, estavam pilhando à frente de um incontável exército, através da Europa, a caminho da Guerra Santa. Na Hungria e nos Bálcãs, porém, era como se Deus estivesse mandando uma praga, semelhante àquelas pragas todas juntas que assolaram o Egito. Imprevisíveis como os gafanhotos e os sapos, avançavam os exércitos.

A chegada a Constantinopla, tanto o exército francês como o alemão já tinham erguido tantos entraves entre si, mais em conseqüência dos desacordos a respeito de quem tinha direito a pilhar primeiro quem e quem devia pilhar quem depois, que a partir de Constantinopla resolveram seguir cada um por caminhos diferentes, com destino a Jerusalém. Konrad devia ir pelo interior da Ásia Menor e Luís, ao longo da costa. E os dois exércitos deviam, então, se reencontrar em Antioquia.

Outro exército de cruzados inglês tinha sido formado para se juntar à enorme expedição. Mas os ingleses acabaram ficando retidos em Portugal, onde cercaram Lisboa, que, evidentemente, era difícil de comparar com Jerusalém, mas, de qualquer forma na época, era uma fortaleza islâmica.

Depois de quatro meses de cerco, tendo prometido aos defensores da cidade salvo-conduto, a guarnição moura desistiu e, em seguida, restou para os cristãos fazer o que restava fazer: pregar na cruz, esfolar e atravessar pela espada, cortar o pescoço e queimar, violentar e pilhar, tudo em nome de Deus e pela eterna salvação de suas almas. Depois disso, os ingleses ficaram saturados da Guerra Santa e voltaram para casa. Com exceção de alguns que ficaram e fundaram pequenas colônias.

O rei Konrad, da Alemanha, que escolheu o caminho do interior, o mais perigoso, através da Ásia Menor, na crença de que por lá houvesse — mais para pilhar do que no caminho pela costa, o mais seguro, acabou vivendo uma dura repetição do que podia acontecer a um exército europeu, pesadamente armado, ao enfrentar uma cavalaria oriental superior. Sofreu o ataque de forças turcas perto de Dorylaeum e perdeu nove décimos do seu exército.

Os dois exércitos europeus, ao se reencontrarem em Antioquia, o francês significativamente menos dizimado do que o alemão, foram recebidos principescamente pelo chefe local, o conde Raymond. Também o rei Balduin, de Jerusalém, se juntou ao grupo e, portanto, estava na hora, primeiro, naturalmente, de festejar, mas em seguida de fazer planos precisos.

Os guerreiros recém-chegados ao exército de Deus nem sequer sabiam quem era Zinki, muito menos que ele já estava morto e que agora estavam diante de um inimigo muito mais perigoso na figura de seu filho, Nur ed-Din.

Os cristãos francos locais sabiam muito mais do que se tratava. Ou iam diretamente contra Edessa para recuperar a cidade. Primeiro, porque foi a queda de Edessa que desfechou toda a constituição da nova cruzada.

E, segundo, porque a vitória teria um grande efeito psicológico para ambas as partes.

Ou então iam contra Aleppo, diretamente contra o inimigo principal, Nur ed-Din, e enfrentavam a batalha que, mais cedo ou mais tarde, ia acontecer e, por isso, era melhor que acontecesse logo, quando as forças ainda estavam intactas.

Mas o rei Luís e o rei Konrad, que, compreensivamente, não entendiam muito da situação nessa parte do mundo, concordaram que, em vez disso, era melhor irem contra Damasco. Se conseguissem conquistar a segunda cidade mais importante depois de Jerusalém, então, acreditavam os dois, pensando da mesma maneira, iniciariam a cruzada com uma grande vitória, a ser divulgada em todo o mundo. Além disso, embora talvez eles não falassem a respeito, Damasco seria, sem dúvida, um magnífico despojo a pilhar. Se não fosse por outro motivo, essa seria uma maneira rápida de recuperar todas as suas despesas.

Os francos locais tentaram explicar sem sucesso o erro de atacar Damasco, mas foram derrotados pelo voto dos dois soberanos que, em parte, estavam de acordo e, em parte, dominavam os dois exércitos maiores.

Portanto, todo o exército cristão se colocou a caminho de Damasco. O que era uma autêntica loucura, segundo vários pontos de vista.

Damasco não era apenas a cidade muçulmana mais importante na região. Era também a única cidade muçulmana que estava em contato com Jerusalém. Se esse pacto fosse quebrado, isso mostraria que a palavra dos cristãos não era coisa em que confiar, algo que, em especial, preocupava os templários que ainda continuavam a ser a coluna vertebral de toda a cavalaria ocidental.

O pior era ver que se jogava tudo nas mãos de Nur ed-Din, o homem que em toda esta parte do mundo predicava a união contra os infiéis e a pureza da alma como penitência contra todas as derrotas anteriores. Uma maneira mais efetiva de unir os muçulmanos do que atacar Damasco seria impossível de encontrar.

Quando o exército cristão começou a movimentar-se na direção de Damasco, os habitantes da cidade, primeiro, não queriam acreditar no que ouviam. Isso era uma loucura. Mas, logo em seguida, foram despachados pombos-correio em todas as direções e todos os irmãos de Nur ed-Din e outros aliados vieram com grandes exércitos do norte, do sul e do leste.

Depois de quatro dias de cerco a Damasco, os cristãos ficaram cercados por um exército muitas vezes maior e, além disso, escolheram o pior lugar para assentar barracas, no lado sul da cidade, onde não existia qualquer defesa e onde os damascenos tinham selado a tempo todos os poços de água. Os comandantes dos templários consideraram esse planejamento tático tão claramente idiota que a única explicação possível seria a de haver suborno, de os soberanos, ou o rei Luís ou o rei Konrad, terem recebido dinheiro para perder.

As posições cristãs se mostraram, rapidamente, insustentáveis. Não era apenas uma questão de não poder montar algumas das máquinas de cerco. Era apenas uma questão de fugir, de salvar a vida.

Quando o exército cristão se fragmentou e começou a se retirar na direção do sul, foi atacado pela leve cavalaria árabe que, sempre fora de alcance, cobrira os fugitivos de flechas. As perdas foram terríveis e o mau cheiro da morte permaneceu durante meses em grandes áreas da Terra Santa.

Assim terminou a segunda cruzada. Quatro dias de luta e uma derrota terrível que foi mais conseqüência de idiotice do que qualquer outra coisa.

O rei Konrad, da Alemanha, como sempre em desacordo com o rei Luís, seguiu para casa por terra, desta vez com todo o cuidado, pelo caminho mais seguro, o da costa mediterrânea da Ásia Menor.

O rei Luís, que não tinha mais um grande exército, escolheu, por isso, o caminho do mar, de Antioquia para a Sicília. A sua frota, porém, foi abalroada e pilhada durante a viagem, por estranho que pareça, atacada por uma frota bizantina. Tanto o rei Luís quanto o rei Konrad, depois do que aconteceu, se desinteressaram totalmente de novas cruzadas.

Ao chegar a casa, o rei Luís, ainda por cima, teve uma discussão terrível com sua mulher. A segunda cruzada tinha sido um fiasco horrível. Nur ed-Din conseguiu tomar Damasco sem levantar uma espada ou disparar uma única flecha.

Pela lógica, o reino cristão estaria agora condenado a desaparecer. Nada mais havia a esperar da Europa. Nenhuma das grandes nações européias no momento estaria disposta a enviar, proximamente, qualquer nova expedição, depois do fiasco que tinham acabado de viver, independentemente do quanto Bernardo de Clairvaux e outros falassem bem a respeito de redenção e da absolvição por todos os pecados daqueles que entrassem na Guerra Santa. Ainda ia demorar muito antes de Jerusalém ser libertada pelos verdadeiros fiéis. E não seria privilégio de Nur ed-Din limpar a Cidade Santa dos ocupantes europeus, bárbaros e sedentos de sangue.

Isso dependia de uma ordem monástica. Os cavaleiros templários tinham a mesma origem religiosa da ordem cisterciense. Foi Bernardo de Clairvaux que escreveu as regras para os templários. Inicialmente, esta ordem foi pensada como uma espécie de força policial religiosa para defender os peregrinos cristãos, principalmente nos caminhos entre Jerusalém e o rio Jordão. Isso porque, irritantemente, os grupos de assaltantes árabes achavam a constante corrente de peregrinos se dirigindo para tomar banho no Jordão como muito fácil e compensadora para roubar. Mas a idéia de monges guerreiros que, a princípio, deve ter sido considerada como um paradoxo, se espalhou rapidamente para longe da Terra Santa e muitos dos melhores cavaleiros da Europa se sentiram chamados. Mas poucos foram os escolhidos. Apenas os melhores e aqueles que, religiosamente, eram os mais sérios tiveram a chance de serem aceitos como irmãos da ordem. Com os templários formou-se a melhor força de cavalaria com lança e espada jamais reunida na Terra Santa. E, também, em qualquer outra terra, no mundo.

Em geral, os árabes não tinham muito respeito pelos guerreiros europeus. Muitas vezes, porque eram armados com muito peso, montavam mal e tinham problemas com o calor e em se manter sóbrios. Mas existia uma espécie de cavaleiros europeus que eles preferiam evitar, caso sua superioridade numérica não fosse de dez para um. Talvez até mesmo nessa situação, pois a vitória custaria muito caro. Os templários nunca se rendiam. E em comparação com outros cavaleiros, mais frágeis na fé, eles não tinham medo da morte. Estavam convencidos, totalmente, de que a sua guerra era santa e que, no mesmo momento em que eles morriam na guerra, entravam para o Paraíso. Mas, além disso, a sua maneira de viver asceticamente e as suas rigorosas regras monásticas não apenas proibiam toda e qualquer pilhagem e toda e qualquer celebração das doçuras da vitória, coisas que, regra geral, reduziam rapidamente a qualidade do exército vencedor. Suas regras exigiam, também, que todo o tempo que não estivesse sendo dedicado à guerra ou às orações fosse obrigatoriamente utilizado na melhoria da capacitação militar, não apenas entre recrutas como também entre os veteranos.

Os cavaleiros das vestes brancas com a cruz vermelha, e dos escudos brancos também com a mesma cruz vermelha, eram agora a única esperança do reino de Jerusalém.

Quando a voz de Arn ficou tão ruim que ele não pôde cantar mais e todos notaram isso, ele se convenceu de que Deus o tinha punido tão — dura quanto incompreensivelmente. Devia ter cometido um grande pecado para merecer uma punição tão dura. Mas como é que uma pessoa podia cometer um grande pecado, se não entendia sequer em que esse pecado consistia? Ele tinha obedecido, tinha amado todos os irmãos, não tinha mentido, tinha se esforçado, realmente, para dizer a verdade em todos os momentos de confissão com o padre Henri, até mesmo naquilo que tinha a ver com a auto-satisfação e com os pensamentos torpes a isso ligados. Havia cumprido, sem a mínima redução ou trapaça, todas as penitências que o padre Henri, cada vez mais irritado, lhe dava para cumprir, por seus atos de auto-satisfação. E por todas as vezes tinha recebido a absolvição. Como é que Deus podia, então, puni-lo assim, tão duramente?

Arn pediu perdão a Deus até mesmo por ter feito a pergunta, o que podia ser interpretado como uma indicação de que a punição de Deus fora injusta, mas acrescentou que gostaria de saber qual teria sido o seu pecado, a fim de que fosse mais fácil para ele melhorar. Mas Deus não lhe respondeu.

Entretanto, o mestre da música na Vitae Schola, o irmão Ludwig de Bêtecourt, não ficou nem um pouco admirado com o que aconteceu e consolou Arn, dizendo que tudo ocorreu pela ordem natural de Deus, que todos os garotos, mais cedo ou mais tarde, perdiam a sua voz de soprano e começavam a ter um cantar grasnado, como os corvos, de vez em quando. Não era nada de estranhar, assim como também não era de estranhar que os garotos se transformassem em homens. E que Arn estivesse mais alto e mais forte. Mas, então, como o irmão Ludwig não podia garantir que depois da puberdade a voz continuasse a servir para o canto, ainda que num tom mais baixo, Arn reagiu, menos consolado.

O canto fora o trabalho mais importante para ele na Vitae Schola, porque era através do canto, durante as missas, que ele sentia que fazia mais bem aos outros, que seu trabalho, realmente, significava algo. Evidentemente, ele tinha sido útil na construção da torre. Nessa altura, aconteceu como no canto: ele fazia uma coisa que os outros não podiam realizar. Em todo o resto, ele era apenas um menino que estava aprendendo com todos os outros. Ou, ainda, os outros trabalhos que eram uma pura satisfação para ele, tanto para a alma quanto para o corpo, como os livros ou os cavalos ou os exercícios com o irmão Guilbert. Esses, ele sentia que davam mais prazer para ele próprio do que para os irmãos. E como amava os irmãos segundo prescreviam as regras, era de seu gosto retribuir de alguma forma, por antecipação, o amor que recebia deles. O canto fora o meio mais importante, pelo menos da maneira como ele entendia a questão.

Não poder cantar, apesar de o canto continuar na sua cabeça e cada nota pensada corretamente sair da sua boca de maneira errada, era como se, de repente, ele tivesse perdido o equilíbrio e não pudesse mais andar, ou correr ou cavalgar. O irmão Ludwig explicou que ele não seria mais necessário nas missas, e isso ele aceitou como uma dura punição para o seu fracasso.

O padre Henri sentiu uma certa impaciência diante do que considerava auto-explicável ser tão difícil de explicar para o garoto. Não era suficiente, como tinha pensado antes, apenas explicar que aquilo que aconteceu com ele acontecia com todos. E ele estranhava que até mesmo a simples circunstância, que, segundo acreditava, seria fácil de entender, de que os homens tinham vozes diferenciadas dos garotos, parecia esbarrar na incompreensão de Arn. O que inquietava era, possivelmente, o fato de as preocupações desnecessárias de Arn, na realidade, serem uma demonstração de outra coisa, uma grande solidão. Se ele tivesse tido a oportunidade de crescer junto de outros garotos, dentro ou fora dos muros do mosteiro, talvez tivesse, então, uma facilidade maior de se reconhecer tal como era, um garoto e talvez um futuro irmão, mas, por enquanto, nada, nem noviço nem irmão.

A razão para terminar com a aceitação de garotos coroinhas na ordem cisterciense era de natureza tedrogica, mais do que de natureza prática ou econômica. Os garotos criados dentro dos muros monásticos deveriam ficar, essa era a idéia, sem a liberdade individual e intelectual, sendo impossível, ao chegar à idade adulta, se tornarem outra coisa que não irmãos monásticos. Pela simples razão de que, na realidade, não serviam para outra coisa.

O padre Henri lembrava-se de ter discutido esse problema com o seu colega, padre Stephan, justo na época em que a mãe de Arn veio até Varnhem para, tal como ela se expressou, “oferecer seu filho a Deus”, obedecendo à Sua exigência e, possivelmente, para pagar pelos pecados dela própria. Nessa época, já tinham previsto o problema e falado sobre ele, tendo chegado à conclusão de que Arn devia ser educado como que à rédea solta, para que, futuramente, pudesse atender à eventual chamada de Deus, de espírito livre e intacto.

Aquilo que acontecera, de Arn não poder nem aceitar o conhecimento da existência da quebra da voz na adolescência, numa época entre o nascimento e a morte, já era um sinal de aviso. Por um lado, o garoto, se comparado com o mundo laico, do outro lado dos muros, era mais instruído do que qualquer adulto, pelo menos aqui no norte, na Escandinávia bárbara. Isso era evidente. Além disso, era muito provável que o garoto soubesse manobrar as armas melhor do que qualquer um.

Por outro lado, ele era totalmente ingênuo, comparado com o mundo laico. Nem poderia sentar-se à mesa com os seus compatriotas sem se sentir horrorizado diante do seu comportamento, nem permanecer lá fora por um dia sequer sem se defrontar com as mentiras dos outros. E sem se defrontar com a maioria dos pecados mortais que todos praticavam todos os dias, e que Arn entendia, seguramente, como uma espécie de exemplos teoricamente morais com a finalidade de motivar as pessoas a um comportamento melhor.

Arn não entendia, certamente, o que seria orgulho, caso não fosse procurar isso nas Sagradas Escrituras. A respeito de folguedos, ele não teria a menor idéia do que fossem. Ganância era um conceito totalmente incompreensível. A raiva, ele reconhecia apenas como vinda de Deus, o que se transformava numa consciência de pecado. A inveja era uma coisa que, segundo o padre Henri podia constatar, era para Arn totalmente estranha. Arn, ao contrário, sempre admirava aqueles irmãos que faziam melhor do que ele e ficava tremendamente agradecido pelo que conseguia aprender nessas ocasiões. E apatia ? Que outra coisa poderia ser mais estranha para um garoto que, o tempo todo, explodia de ansiedade para seguir em frente, para a próxima tarefa, fosse ela de trabalho manual ou de leitura?

Restava, possivelmente, fornicação, onde Arn parecia ter uma conceituação um pouco exagerada a respeito da pecaminosidade dos adolescentes na auto-satisfação, como imunidade contra exortações a esse respeito. O padre Henri lembrou-se, de repente, com uma certa ironia, de como Arn, num dos seus momentos de maior arrependimento, ligava a modificação da sua voz na adolescência a uma “penitência de Deus” imposta por causa de pecados terríveis. Pecados que, no seu caso, eram praticamente sempre os mesmos. E assim ele pediu a Deus para conservar a sua voz em troca de muitas penitências e, ao mesmo tempo, pediu para não sentir mais aquela tentação que tornava tão difícil evitar o pecado.

O padre Henri, habitualmente, tinha sempre um pouco de ironia por trás da sua máscara de durão. Então, começava a falar um pouco mais rápido do que pensava e, de repente, para seu próprio espanto, caçoou do problema, assegurando que existia um método simples para não apenas conservar a voz clara e evitar essa tentação, mas o remédio não era recomendável.

Arn não entendeu. Por isso, o padre Henri, constrangido por sua própria falta de tato, tentou explicar que havia, de fato, uma quantidade enorme de razões para não se castrarem garotos no mosteiro, mesmo quando eles cantavam maravilhosamente. E que, portanto e finalmente, esse negócio de quebra de voz na adolescência não era pecado nenhum, mas, sim, uma ordem natural e divina.

No entanto, o padre Henri continuava acreditando que Deus tinha em vista uma missão específica para o jovem Arn. E que até o momento em que Deus desse sinais claros de Suas intenções, o padre Henri tinha por obrigação preparar Arn para a futura missão. Tinha feito o seu melhor, era o que ele podia dizer com toda a sinceridade, sem querer se valorizar, mas agora talvez fosse a hora de reconhecer não ter feito o suficiente. Mais cedo ou mais tarde, Arn precisaria aprender a respeito dos valores menos elevados de Deus, como de fato lá fora, extra muros, a vida se mostrava. Caso contrário, Arn ficaria ingênuo como uma criança, mesmo quando chegasse a adulto, e um homem desses, muitas vezes, acabava se mostrando um ser sem bom senso. E essa, certamente, não era a vontade de Deus.

Quando as tempestades do outono atingiram a costa oriental da província de Jylland, estava na época da colheita. Colher restos de naufrágios era uma coisa que as pessoas nas aldeias de pescadores ao longo da enorme costa arenosa contavam como seu direito desde a Antigüidade, mas o rei Valdemar tinha proibido que qualquer um recolhesse objetos naufragados, com exceção dos monges de Vitskol. O soberano achava que com apenas essa medida ele havia matado vários pássaros com apenas uma flecha. Colher restos de naufrágios não era uma empreitada sem nenhum perigo, visto que aquele que acreditava ter feito um bom achado podia encontrar outro que chegou apenas um pouco mais tarde, que, por seu lado, acreditava que o achado devia ser dividido. Ou acontecia que os camponeses e os pescadores acabavam se atracando e se matando uns aos outros, enquanto a riqueza encontrada que os deuses do mar ofereciam com freqüência acabava estragada.

Mas agora que os monges tinham recebido o direito exclusivo de recolher os despojos dos naufrágios como um privilégio, com selo real, devia passar a haver um pouco mais de ordem. E aqueles que tinham como profissão a “colheita” de peixe poderiam agora se entregar exclusivamente a essa missão, para vantagem de todos. De fato, os monges tinham muito mais entendimento do que todos os outros para saber o que devia ser recolhido e como fazer para tirar o melhor proveito da colheita. Dessa maneira, os presentes recebidos do mar também teriam uma utilização melhor. Era muito mais inteligente fazer os monges salvar os ditos objetos e colocá-los em ordem, antes de vendê-los para os homens de menos sabedoria, do que deixá-los em mãos de homens incapazes, que normalmente estragavam esses despojos. Quer dizer, a nova ordem real parecia ser uma medida sábia.

Mas nem toda a gente, ao longo da costa, achou correto ter de abdicar de tradições que já duravam desde tempos imemoriais.

Apareceram alguns, dizendo que os monges avançavam como se fossem uma praga de gafanhotos egípcios, revirando tudo o que encontravam e não deixavam nada para trás, nada. Existia alguma verdade nessa afirmação, mas também muita inveja. Para os monges de Vitskol não havia muita pressa em realizar a sua tarefa, a não ser a pressa de realizá-la conforme definição dos poderes do tempo. Podiam trabalhar com calma, metodicamente, à luz do dia, mas também podiam, ao contrário de todas as outras gentes da região costeira, apanhar tudo o que encontravam e não apenas recuperar o que parecia de mais valor e mais fácil de transportar entre os salvados. Os monges traziam tudo o que encontravam para a sua Vitae Schola, pedaços de madeira de lenha, todas as mesas e mastros para usar como material de construção para seus próprios barcos, lã para as suas próprias tecelagens, sementes para os campos, ou centeio e trigo para vender, peles e couros para suas oficinas, pedaços de ferro para a ferraria, cordames para andaimes, jóias e valores para Roma, para tudo havia uma utilidade. Mas faziam também uma coisa que nunca ninguém entre as gentes antigas, catadores tradicionais de restos de naufrágios, haviam feito antes. A todos os mortos encontrados, eles davam uma sepultura cristã.

Tal recolha de salvados a partir de Vitskol podia levar até dez dias. A maior parte das coisas era transportada pelas pesadas carroças de bois e a muita carga, em regra, fazia com que a viagem de volta demorasse o dobro do tempo da viagem de ida.

O irmão Guilbert participava sempre desses carregamentos. A sua força extraordinária, muitas vezes, vinha mesmo a propósito e era bem aproveitada. Mas, além disso, ele se aproveitava da ocasião para cavalgar, junto com Arn, ao longo das praias, percorrendo longas distâncias em pouco tempo. Normalmente, ao chegar à praia, com a carroça da Vitae Schola, o pessoal fazia uma parada e, em seguida, ele e Arn partiam em direções opostas, para saberem onde havia mais salvados para apanhar e onde continuar. O irmão Guy le Breton, é claro, também estava sempre presente. Ninguém na Vitae Schola conhecia mais do que ele o mar, seus perigos, seus frutos e o tempo. Por outro lado, os irmãos se revezavam segundo um esquema que o padre Henri montou. Quase todos se mostravam dispostos a seguir nessas saídas para as praias e o mar. Era uma tarefa completamente nova, e o mar, muito bonito para olhar, além da expectativa sempre renovada de ver o que Deus tinha tirado dos navegantes com uma das mãos para dar com a outra mão aos Seus mais fiéis seguidores.

Arn agradecia em dobro por sempre seguir junto. Podia correr tão depressa quanto quisesse, cavalgando Chamsiin ao longo das intermináveis praias, de preferência junto da rebentação onde a areia estava molhada e bem compactada, lisa, de modo que Chamsiin podia pisar bem e ter uma visão ampla pela frente. Então, o cavalo parecia voar em linha reta, e para o seu cavaleiro de peso leve, na sela, era como se em vez de cavalgar normalmente estivesse “sonhando”. O galope era tão rápido e tão longo que o movimento da sela, para baixo e para cima, quase passava despercebido. Enfim, Arn podia fazer a coisa de que mais gostava e, ao mesmo tempo, desempenhava uma tarefa importante para seus irmãos e isso era como se ele ainda cantasse, como no tempo em que podia fazê-lo.

Uma vez, no segundo ano em que Arn desempenhou o papel de cavaleiro pesquisador da recolha de restos de naufrágios, aconteceu algo terrível. Na esparsa floresta de pinheiros, a umas centenas de metros do mar, o grupo da Vitae Schola, a caminho do mosteiro, foi atacado por ladrões bêbados. Talvez não fossem salteadores, mas apenas catadores de salvados, desapontados, que haviam bebido em alguma das aldeias próximas. Beberam cerveja demais, se excitaram com o pensamento de que os gordos monges estavam agora roubando o que por direito pertencia ao povo do mar. Mas salteadores ou catadores desapontados, eles estavam armados com algumas lanças e espadas, e um deles, sentado num cavalo nórdico, balançava ameaçadoramente na mão um antigo machado de lançar ao alvo.

As pesadas carroças de carvalho, com rodas revestidas de aço, pararam com um chiado agudo. Os monges nada fizeram para fugir, apenas baixaram suas cabeças, rezando. O homem do machado manobrou desajeitadamente seu cavalo na direção do irmão Guilbert, que cavalgava à frente do grupo, com Arn um pouco atrás. Arn fez imediatamente como o irmão Guilbert, retirou o capuz do hábito e baixou a cabeça, rezando, se bem que não sabia ao certo por que devia rezar. Mas logo em seguida o homem do machado gritou para o irmão Guilbert que todos deviam se mexer e descer das carroças, porque eles é que tinham o direito e eram os donos dos salvados do mar. Mas o irmão Guilbert não respondeu, por estar ainda rezando, o que fez com que o homem do machado ficasse a um tempo inseguro e furioso e dissesse, numa linguagem muito grosseira, que rezar não ia ajudar em nada e que era para descarregar as carroças imediatamente.

Então, o irmão Guilbert respondeu com voz calma que ele, evidentemente, não estava rezando por uma coisa tão simples como salvados de navios, mas pelas almas desses homens desorientados que estavam prestes a se tornarem infelizes para o resto de suas vidas na terra.

Primeiro, o homem do machado ficou espantado, mas, depois, ainda mais furioso, guiou o seu cavalo para a frente e alçou o machado para o que seria um terrível golpe no irmão Guilbert.

Arn, que estava montado em Chamsiin, apenas a alguns metros dali, sentiu instintivamente o que o irmão Guilbert iria fazer e, pelo menos nesse primeiro momento, Arn teve razão. Quando o catador de despojos elevou o seu machado, pegou-o com as duas mãos e dirigiu o golpe um pouco de lado e para baixo, um golpe que teria morto o atingido, o irmão Guilbert fez dois movimentos quase despercebidos com as pernas e Nasir, rápido como uma cobra, pulou um passo para o lado e um passo para trás. O homem do machado, por conseguinte, desfechou o golpe no ar e, por força do seu próprio movimento, desequilibrou-se para a frente e caiu da sela, deu uma reviravolta no ar e acabou batendo de costas no chão.

Se este fosse um exercício de treino entre Arn e o irmão Guilbert e, por conseguinte, se fosse Arn que estivesse caído no chão, ele já teria sentido, no momento, o pé do irmão Guilbert em cima da sua mão que segurava a espada, a espada já teria sido retirada da sua mão, e ele já teria ouvido mais uma descompostura.

Mas o irmão Guilbert continuava montado no cavalo, as mãos juntas na sua frente e as rédeas seguras apenas entre os dedos mínimos.

O ladrão caído rolou e se levantou, balançando, para empunhar de novo o machado e atacar imediatamente, desta vez a pé, e tudo acabar da mesma maneira. Correu na direção do irmão Guilbert, preparou um golpe terrível, desfechou-o e verificou mais uma vez que dera o golpe no ar e caíra novamente no chão, por força do seu próprio peso. Seus companheiros de assalto não puderam evitar a gargalhada, o que fez com que ele ficasse ainda mais furioso.

Ao empunhar o machado pela terceira vez, o irmão Guilbert levantou a palma da mão para ele e explicou, calmamente, que ali ninguém iria se opor ao roubo, se esse fosse o motivo explícito do assalto. Mas devia avisar, pela última vez, que essa ação teria ruinosas conseqüências.

— Você terá de escolher entre o seguinte — começou ele, com toda a calma, fazendo com que Nasir se mexesse no lugar, a fim de mostrar que qualquer nova tentativa de agressão teria o mesmo insucesso. — Se os senhores vieram para roubar, nós não podemos nem queremos evitar que isso aconteça empregando violência. Mas entendam que os senhores estão se vendendo ao diabo e vão se tornar criminosos à espera de uma dura e inevitável punição real. Ou, então, os senhores se arrependem e voltam para casa e nós lhes oferecemos o perdão e rezamos por todos.

Mas o homem do machado não queria escutar nada disso. Repetia como um idiota que os salvados, desde tempos imemoriais, pertenciam ao povo da costa, e os homens atrás dele bramiam suas lanças e uma ou outra espada, golpeando no ar, por pura excitação, e um deles, de repente, lançou uma lança direto contra o irmão Guilbert.

Era uma lança pesada, lenta, com uma ponta larga, antiquada, e Arn teve tempo, portanto, para pensar antes no que ia acontecer. O irmão Guilbert inclinou-se ligeiramente para o lado na sua sela, apanhou a lança no ar e apontou-a depois, por um momento, contra o grupo, como se pensasse em atacar. Arn teve tempo para ver o branco dos olhos dos assaltantes, espantados e cheios de medo. Mas logo o irmão Guilbert virou a lança, rapidamente, contra o seu joelho e a partiu ao meio, como se estivesse partindo um pequeno galho e jogou os pedaços, com desprezo, para o chão.

— Nós somos servidores do Senhor. Não podemos fazer nada contra os senhores. E isso os senhores sabem! — reagiu ele. — Mas se os senhores quiserem, em absoluto, ser infelizes para o resto de suas vidas, então, roubem o que quiserem. Não vamos impedir essa loucura.

Houve um breve momento de discussão. O homem do machado virou-se para trás, para os seus seguidores, e ouviu-se, então, uma ardorosa troca de palavras. Por seu lado, o irmão Guilbert reuniu os seus irmãos e Arn à sua volta e disse que, se a situação virasse e houvesse violência, cada um devia tentar se salvar correndo do lugar. Nada mais havia a fazer. Arn recebeu uma ordem precisa para se manter à distância de todos os assaltantes e, se houvesse violências, que não ficasse e que corresse cavalgando para o mosteiro, a fim de contar o acontecido.

O problema dos assaltantes era o de que, embora pudessem roubar o que queriam da pesada carga, não poderiam matar todas as testemunhas, tal como haviam matado os infelizes marinheiros que sobreviveram a um naufrágio e acreditaram ter se salvado ao chegar a uma praia, só para chegar à conclusão de que tinham sido salvos por catadores de despojos para, em seguida, serem mortos. No caso presente, porém, seria impossível matar os dois monges a cavalo. Acabaram decidindo roubar alguma coisa e esperar que, como não haveria mortes a lamentar, nenhuma vingança real iria cair sobre eles por apenas terem aliviado um pouco o peso das carroças dos monges.

E assim aconteceu. Os ladrões levaram o que puderam e aquilo que parecia ser de mais valor, enquanto os monges ficavam a distância, rezando pela alma dos impenitentes. Quando a pilhagem das carroças terminou e os ladrões se afastaram gritando, os monges rearrumaram a sua carga, depois que tudo foi remexido, e continuaram a caminho de casa, da Vitae Schola.

Ao chegar, o padre Henri escreveu uma reclamação para o rei Valdemar, cujo privilégio concedido havia sido violado. Logo em seguida, foram mandados soldados para prender os culpados, o que foi fácil. A maior parte dos despojos roubados voltou para a Vitae Schola, trazida pelos soldados. Os ladrões foram todos enforcados.

O acontecido deixou uma forte impressão em Arn e deu a ele muito em que pensar. Tinha pena dos ladrões que se deixaram dominar pelo pecado mortal da ganância e, por isso, acabaram rapidamente na perdição e agora sofriam na dor eterna. Ele podia entender que se sentissem prejudicados, que era verdade a recolha de salvados pertencer aos habitantes da costa desde tempos imemoriais e que, por isso, devia ser difícil ver um grupo de monges estrangeiros tirar deles essa receita. Além do mais, estavam bêbados. Mesmo que Arn não soubesse muito sobre bebedeiras — dois irmãos, por vezes, bebiam vinho demais e por eles ficava claro que onde entrava o vinho, saía o bom senso, o que lhes custava meses de penitência a pão e água —, portanto, achava ter entendido que aquele que estava bêbado não reconhecia suas responsabilidades.

Entretanto, o que Arn não podia entender era a razão pela qual o irmão Guilbert agiu como agiu. Os homens que atacaram eram pescadores que nada sabiam das armas que empunhavam. Pelo menos, era isso que Arn pensava. O irmão Guilbert, sem muita dificuldade, poderia ter tirado as armas das mãos deles e, depois, afugentá-los. Assim, o roubo não teria acontecido, os soldados do rei não teriam necessidade de encontrar os ladrões e de enforcá-los. O verdadeiro amor ao próximo devia incluir, também, a tentativa de aliviar, se possível, as más conseqüências das loucuras dos outros?

Arn evitou discutir o assunto com o irmão Guilbert, que, certamente, tendo agido dessa maneira e não querendo salvar os desequilibrados de suas loucuras, devia estar convencido de ter agido corretamente.

Mas com o padre Henri ele levantou o problema, reconhecendo que ainda continuava rezando pelas almas dos enforcados.

O padre Henri não tinha nada contra as orações de Arn pelos criminosos. Nisso, ele viu apenas que Arn sentia uma forte empatia pela imagem de Jesus Cristo a respeito da vida do homem na terra. Era apenas uma boa ação.

Em contrapartida, era preocupante ver que Arn ainda não tinha uma idéia clara das razões por que o irmão Guilbert não podia usar de violência. O irmão dentro da ordem que matasse outro ser humano estaria perdido. Não matarás era uma lei sobre a qual não havia acordo possível.

Por sua vez, Arn contestou, dizendo que as Sagradas Escrituras estavam cheias de leis absurdas. Bastava citar um caso simples, como o do irmão Guy le Breton, que até agora fracassara na tentativa de levar os dinamarqueses a comer mexilhões. Lá no fiorde, a cultura dos mexilhões se desenvolveu rápido, logo que o irmão Guy chegou àVitae Schola. Mas até agora somente os irmãos se banqueteavam com os mexilhões, preparados de mil e uma maneiras, isso porque os dinamarqueses de Limfjorden foram levados a entender que “aquilo que não tem barbatanas nem escamas não deveras comer. Valerá para todos como imundo”, segundo o Levítico 11:6 a 8, ou o que quer que seja.

— Levítico 11:9 a 12 — corrigiu o padre Henri —, 11:6 a 8 era a proibição de comer porco e lebre. O que, aliás, ilustra por si só o mesmo problema. Ou, pelo menos, o outro lado do problema, já que os dinamarqueses, certamente, não tinham nada contra se alimentar de porcos e lebres.

De qualquer forma, e isso já Arn devia conhecer a esta altura, existia uma grande diferença entre diversas pequenas proibições desse tipo e as proibições sérias. Ao procurar as pequenas proibições nas Sagradas Escrituras, podia-se encontrar muita coisa realmente ridícula — não se devia cortar curto o cabelo, de determinada maneira, quando se lamenta a morte de alguém — e coisas que eram absurdamente rigorosas e até anticristãs como “aquele que for contra a sua mãe ou o seu pai será apedrejado até a morte”.

Todavia, o mais importante ainda era, mais uma vez, como aprender a entender as Sagradas Escrituras e a ponta correta por onde pegar era, naturalmente, Jesus Cristo. Através do Seu exemplo, Ele tinha mostrado como entender o texto. Em resumo, matar estava entre os atos mais proibidos.

Mas Arn não se deu por vencido. Com a lógica na argumentação que o padre Henri, pessoalmente, havia batalhado para incutir nele, durante grande parte da sua vida, ele afirmava que uma carta podia matar tanto quanto uma espada. Ao escrever para o rei Valdemar, o irmão Henri tinha contribuído para que os infelizes e fracassados ladrões fossem mortos, já que essa conseqüência estava para eles prevista no momento em que o rei recebeu a carta da Vitae Schola.

Do mesmo modo, podia-se matar por omissão, ao não usar de violência. Se tivesse atacado dois ou três dos fracassados ladrões, será que o irmão Guilbert não teria cometido apenas, comparativamente, um pequeno pecado?

Arn se surpreendeu no momento pelo fato de o padre Henri não o ter interrompido e repreendido, antes fez um sinal, um suave círculo com a mão, para que continuasse expondo a sua lógica.

Portanto, se o irmão Guilbert tivesse cometido um pequeno pecado, pelo qual ele, sem dificuldade, teria conseguido a absolvição por uma penitência de mais ou menos um mês, e se tivesse dado uma boa sova em dois ou três ladrões e espantado os outros, colocando-os em fuga, o resultado teria sido muito melhor. Os ladrões não seriam considerados como ladrões, mas como bêbados, tendo um comportamento idiota. Sua tentativa de assalto teria sido detida, eles não teriam sido enforcados, seus filhos não teriam ficado órfãos e suas mulheres, viúvas. Se avaliássemos esta equação, através dos seus prós e contras, chegaríamos à conclusão de que o irmão Guilbert, tendo usado de alguma violência, sem raiva, teria agido no bom sentido. E não teria feito mal a ninguém, não é verdade? Esse, aliás, era um tema muitas vezes repetido pelo próprio São Bernardo.

Então, Arn calou-se. Estava verdadeiramente espantado por ter podido continuar expondo a sua lógica. Viu que o padre Henri estava profundamente concentrado em seus pensamentos, a testa enrugada de um jeito que costumava indicar que não queria ser perturbado na tentativa de resolver mais um problema.

Arn ficou esperando, pacientemente, por longo tempo. Ainda não havia sido dispensado. Por fim, o padre Henri levantou os olhos para Arn e sorriu um sorriso estimulante, deu um tapinha na mão de Arn, acenando afirmativamente com a cabeça, enquanto se preparava para uma explicação, com o habitual longo pigarrear. Arn continuava esperando, na expectativa.

— Meu jovem, você me surpreende com essas observações muito inteligentes, mas que não pertencem à área onde você é melhor — começou o padre Henri. — Você tocou em dois problemas diferentes, embora sejam interdependentes. Ao salientar que um pequeno pecado do irmão Guilbert podia ter evitado algo muito pior, a sua idéia é formalmente correta. No entanto, é falsa. Se o irmão Guilbert, no momento em que tinha de escolher entre usar de violência, o pior pecado que ele entre todos poderia cometer, ou negociar, como ele fez, soubesse quais seriam as conseqüências, então, e somente então, seu raciocínio estaria certo. Sem querer ser malicioso com você, devo salientar ainda que o formal, na sua maneira de estabelecer a lógica, mesmo sabendo que Aristóteles teria aceito a sua exposição, pressupõe, no entanto, que o irmão Guilbert não fosse quem é, um simples mortal e pecador, mas o próprio Deus, sabedor da verdade e do futuro. Mas trata-se de um exemplo estimulante, visto que nos mostra como o homem é canhestro, mesmo quando de consciência limpa tenta fazer o certo. Um exemplo muito estimulante, de fato.

— Estimulante, não tanto para aqueles pobres-diabos que, bem instigados pelo pecado, foram enforcados e estão agora agoniando no inferno — murmurou Arn, mal-humorado, pelo que recebeu de imediato uma admoestação e a penitência de rezar dez padre-nossos pela sua impertinência.

Enquanto Arn, obedientemente, rezava as suas orações, uma pausa que o padre Henri agradeceu e não sem má consciência utilizou para pensar um pouco mais, ele verificou com consternação que já não estava tão certo a respeito do seu contra-argumento.

Não seria ir um pouco longe demais ao dizer que o irmão Guilbert precisava ser Deus para poder prever que uma violência relativa, sem raiva, podia ter feito naquelas circunstâncias um bem maior do que aquele que, normalmente, é atribuído ao pacifismo de Jesus Cristo?

Não seria antes de esperar que o irmão Guilbert, em qualquer circunstância, evitasse o uso de violência, conforme juramento feito, já que ele viveu uma vida em que, com Deus a seu lado, lutou contra todos aqueles que o agrediram enquanto defendia propriedades da Igreja e, por isso, se penitenciou por pecados cometidos na Guerra Santa? Não seria, antes, simplesmente, uma questão de estar impedido ou de impedir a si mesmo de repensar sua ação em tais circunstâncias e de apenas respeitar o seu juramento?

Nesse caso, o irmão Guilbert estava limpo e sem pecados, na seqüência da maneira como agiu. Mas, nesse caso, também o pequeno Arn tinha mostrado de fato, pela primeira vez, uma prova de sagacidade teológica e, melhor ainda, uma pura vivência na fé.

Entretanto, o problema maior levantado por Arn era mais simples para discutir no momento. O primeiro problema podia ser rediscutido em outra ocasião, talvez na semana seguinte, depois de o padre Henri ter estudado e pensado melhor no assunto.

— Vamos discutir o seu segundo problema — disse o padre Henri, numa atitude claramente amigável para com Arn, quando este acabou seus padre-nossos. — São Bernardo salientou, com muita razão, que aquilo que é feito com boas intenções —, você sabe o que eu quero dizer, vamos pular as definições, portanto, aquilo que é feito com boas intenções não pode conduzir ao mal. Em que circunstâncias essa sabedoria tem um significado prático maior?

— Quando se trata das cruzadas, é claro — respondeu Arn, obedientemente.

— Certo! No entanto, as cruzadas são feitas para matar sarracenos em grande número, não é verdade? Muito bem, nesse caso, o que dizer da proibição de matar? E por quê?

— Digamos que não vale, porque isso acontece, e acontece o tempo todo, com a bênção do Santo Padre, de Roma — respondeu Arn, cuidadosamente.

— Sim, concordo. Mas isso é argumentar em círculos, meu filho. Eu perguntei por quê.

— Porque devemos pensar que o bem é muito bom e que o bem em conservar o Santo Sepulcro para os que acreditam na fé é muito melhor do que o mal de ter de matar sarracenos — declarou Arn, hesitante.

— Muito bem, você está no caminho certo — confirmou o padre Henri, com um aceno afirmativo da cabeça. — Mas nem mesmo quando Jesus Cristo expulsou os mercadores do templo, esteve Ele sequer próximo de matá-los, não é verdade?

— Claro, mas isso deve ter sido conseqüência do fato de Ele, através da cólera do Pai, que evidentemente é uma cólera bem diferente da cólera humana, utilizou da violência apenas necessária. Ele expulsou, realmente, os mercadores do templo. Não precisava matá-los. Exatamente como o irmão Guilbert poderia...

— Sim, sim, mas vamos voltar à questão — interrompeu o padre Henri, bruscamente, mas sorrindo por dentro e por trás da sua máscara severa. De repente, e até por acaso, Arn tivera a sorte de encontrar um argumento quase definitivo para fortalecer a sua posição anterior, de que o irmão Guilbert devia ter usado de uma violência limitada, exercida, pura e simplesmente, do jeito que o próprio Jesus Cristo usou no templo.

— Jesus se afastou dos soldados, mas condenou-os alguma vez por serem soldados? — perguntou o padre Henri, com um tom de voz baixo.

— Não que eu saiba... — refletiu Arn. — Tal como no caso dos dinheiros, dêem a César o que é de César e a Deus... Qualquer coisa assim. E temos, evidentemente, a mesma coisa no Evangelho de São Lucas, 3:14, acho eu... “E quando os soldados chegaram e Lhe perguntaram: E nós, o que devemos fazer? Ele disse para eles: Nunca peguem dinheiro pela violência ou pela ameaça, antes fiquem satisfeitos com vossos soldos.” Se os soldados se portarem como homens honestos enquanto soldados... Por isso, nada há de errado em ser soldado!

— Correto! E o que fazem os soldados?

— Eles matam pessoas. Como os soldados que vieram depois da sua carta para o rei, padre. Mas os soldados e os reis no baixo mundo, o que é que eles têm a ver conosco?

— A sua pergunta é muito interessante, meu filho. Na realidade, você pergunta simplesmente o seguinte: existe alguma situação na qual pessoas como você e eu poderíamos matar? Vejo que você hesita e antes que diga alguma idiotice de que talvez se arrependa depois, desnecessariamente, vou lhe responder. Existe, sim, uma exceção. Em Sua indescritível tolerância, Jesus Cristo quis dizer, é claro, que nós não podemos matar outros filhos de Deus, nem mesmo soldados romanos ou dinamarqueses, diga-se de passagem. Mas existe um povo não incluído na proibição do Senhor e eu acho que você pode adivinhar qual é, não é verdade?

— Os sarracenos! — respondeu Arn, rapidamente.

— Correto de novo! Isso porque os sarracenos são a raça mais infame que o diabo colocou na nossa terra. Não são gente, são demônios com a figura de gente. Eles não hesitam em espetar criancinhas cristãs e assá-las na fogueira para depois matarem a fome com elas. São conhecidos pela continuada prática da sodomia e da copulação com animais. São a escória da terra e todo e qualquer sarraceno morto é uma visão agradável para Nosso Senhor e aquele que fizer isso, que matar sarracenos, comete um ato sagrado e, por isso mesmo, terá lugar assegurado no Paraíso!

O padre Henri tinha se exaltado, tudo porque abominava os sarracenos e, diante da sua argumentação, os olhos de Arn ficavam cada vez mais espantados. Aquilo que Arn escutou ultrapassava o seu entendimento. Não podia nem imaginar, com toda a sua fantasia, ver esses abomináveis seres comendo criancinhas cristãs assadas no espeto. Não podia nem entender como esses demônios tinham figura humana.

Mas podia entender facilmente que seria uma ação de graças a Deus, até mesmo para os irmãos dentro dos muros, acabar com esses males. Também chegou à conclusão de que existia uma distância interminável entre a ralé dinamarquesa que infelizmente tinha resvalado para o caminho da ladroagem e os sarracenos. Para o primeiro caso, vingava, sem exceção, Não matarás. No segundo caso, valia, portanto, o contrário.

Se bem que essa conclusão, simples e clara, tinha pouco conteúdo prático na Escandinávia.

Durante os anos em que Arn não pôde realizar a tarefa de cantor, ele mudou tal como mudaram as suas tarefas. O tempo em que ele, antes, ficava com o irmão Ludwig e os irmãos cantores, muitas horas por dia, agora era dedicado a desempenhar tarefas na praia com o irmão Guy. Este já quase tinha ensinado a Arn os métodos da sua terra para costurar redes de pesca, apanhar peixes e manobrar pequenos barcos. Por segurança, o irmão Guy também ensinou Arn a mergulhar e a nadar.

Com o irmão Guilbert, ele agora agia como trabalhador e aluno. Recebia tarefas cada vez mais pesadas nas forjas e seus braços ficavam cada vez mais musculosos. E seu corpo disparava para as alturas. Dominava a maioria das diversas tarefas normais do ferreiro e fazia trabalhos manuais, bons e vendáveis. Apenas na feitura de espadas ele ainda estava longe do irmão Guilbert.

As duas éguas, Khadija e Aisha, já tinham dado à luz três potros cada, e Chamsiin já tinha crescido e se transformado num garanhão tão forte quanto Nasir. Era tarefa de Arn cuidar de todos os cavalos do ultramar, domesticar os potros, e manter Nasir e Chamsiin isolados, cada um no seu cercado, para que não cruzassem com as éguas nórdicas em outra ordem que não a designada pelo irmão Guilbert, depois de estudos bem profundos.

As esperanças do irmão Guilbert de obter muita prata com esses cavalos do ultramar começaram a realizar-se muito lentamente. Os homens fortes da Dinamarca que vinham visitar o mosteiro para, em primeiro lugar, comprar novas espadas e ervas medicinais para suas mulheres, olhavam para os estranhos animais com desconfiança. Achavam que esses cavalos eram magros demais e não agüentariam os serviços pesados. No início, o irmão Guilbert teve dificuldade em aceitar essas objeções e por sua vez desconfiava que queriam fazer piada à sua custa. Quando percebeu que os bárbaros, de fato, estavam falando sério, às vezes trazendo os seus próprios animais e exibindo-os com orgulho, mostrando como um cavalo de verdade devia ser, ele ficava angustiado. Os cavalos nórdicos eram muito musculosos e pesados, além de lentos.

Por fim, através de um jogo de circunstâncias, encontrou um jeito para enfrentar o problema, que funcionou muito bem, mas lhe machucou a consciência e lhe deu algum remorso. Quando um desses dinamarqueses entrou com o seu cavalo nórdico, pesado e indisciplinado, e começou a falar das suas qualidades como a força e a rapidez em relação a todos os cavalos estrangeiros “magros”, o irmão Guilbert teve imediatamente uma idéia brilhante. Sugeriu que o ilustre cavaleiro dinamarquês cavalgasse o seu cavalo, fazendo uma corrida até a praia e de volta para o mosteiro, contra um rapazinho que montaria um dos novos cavalos. E se o ilustre cavaleiro dinamarquês chegasse primeiro não precisaria pagar nada pela sua negociada espada. Para qualquer homem do mundo laico, nestas circunstâncias, seria natural que ele se sentisse tentado a impor uma condição compensatória pela aposta, que o ilustre cavaleiro dinamarquês, no caso de perder, se obrigasse a comprar uma ou outra coisa, um certo cavalo, por exemplo. Mas jogar por dinheiro seria um pecado grande demais. E, além disso, aquela aposta já tinha para ele um resultado conhecido. Pretender que não era conhecido era outro pecado, ainda que de menor importância em relação ao jogo por dinheiro. Por isso, o irmão Guilbert resolveu seguir em frente, mediante uma determinada penitência na semana seguinte.

E foi, então, que Arn, para sua grande surpresa, ficou sabendo que iria apostar uma corrida com Chamsiin contra um homem, velho e gordo, e um cavalo que se parecia com o próprio cavaleiro. Ele nem queria acreditar no que ouvia, mas obedecer era seu dever. Ainda perguntou ao irmão Guilbert, no momento em que os dois cavaleiros estavam a postos para a partida fora dos muros do mosteiro — e, por nervosismo, ainda perguntou em latim quando, normalmente, sempre falavam em francês —, se era para cavalgar a toda a velocidade ou se era para ir devagar, de modo que o outro cavalo pudesse acompanhar. Por estranho que parecesse, recebeu ordens do irmão Guilbert para ir e voltar o mais rápido possível. Arn obedeceu, como de hábito.

E já chegava de volta ao mosteiro enquanto o cavaleiro dinamarquês ainda, precisamente, iniciava o retorno na praia, a meio da estipulada distância.

E assim aconteceu que alguns homens poderosos de Ringsted que tinham por diversão a competição da corrida de cavalos acompanhada de apostas em dinheiro, acharam que, de qualquer maneira, havia alguma utilidade para os magros e infelizes animais de Vitskol. A notícia se espalhou e atingiu Roskilde e dali a pouco tempo os cavalos da Vitae Schola começaram a trazer muito dinheiro. Mas não foi bem assim que o irmão Guilbert tinha pensado toda a questão.

Os exercícios que o irmão Guilbert atualmente realizava a cavalo com Arn não mais diziam respeito apenas a equilíbrio e velocidade, mas a coisas muito mais minuciosas. Trabalhavam todos os dias, mais ou menos por uma hora, nos cercados dos cavalos, cavalgando em volta segundo várias variantes, recuando, subindo e virando no ar, deslocando-se na lateral e para a frente ou para trás, ao mesmo tempo, ensinando aos cavalos quais os sinais que significavam ataque com as patas da frente e, ao mesmo tempo, salto para a frente ou coice para trás, com ambas as patas, e salto lateral na seqüência. Era uma arte de que Arn tanto gostava, quando tudo funcionava como planejado, quanto achava um pouco monótona. Pelo menos, quando se tratava dos exercícios obrigatórios. Os exercícios livres eram mais estimulantes, com espadas de madeira ou lanças na mão, enfrentando-se os dois, lutando um contra o outro.

A pé, os exercícios tinham se tornado mais pesados e, na maior parte, se resumiam a golpear e a aparar golpes com a espada. Arn usava há muito tempo espadas de verdade, feitas de aço. E embora o irmão Guilbert, muito raramente, lhe fizesse elogios, na maior parte das vezes vinha só com críticas. Arn nunca tinha visto na vida outro espadachim, além do irmão Guilbert, mas pela maneira como este manobrava a sua espada, lhe parecia ser um espadachim menos brilhante. Mas Arn não desistia e continuava trabalhando persistentemente, até mesmo neste vinhedo do Senhor. O desespero seria neste caso um pecado maior.

Ele encarava o trabalho com o irmão Guy na praia de maneira diferente. O irmão Guy tinha desistido da idéia nitidamente impossível de convencer os dinamarqueses de Limfjorden a comer mexilhões. A cultura de mexilhões tinha sido reduzida a uma pequena parte da sua ambição inicial e chegava agora apenas para as necessidades dos cozinheiros provençais da Vitae Schola.

A missão do irmão Guy não era a de obter dinheiro para a Vitae Schola, mas a de espalhar as bênçãos da civilização, e isso ele fazia apresentando bons exemplos. A finalidade por trás de suas tarefas era mais ou menos a mesma dos outros irmãos que trabalhavam nas hortas, não a de vender, mas, em primeiro lugar, a de ensinar. E, nesse sentido, ele começara com um grande fracasso na missão de mostrar como funcionava a bênção dos mexilhões.

Mas com a preparação dos equipamentos de pesca e a construção de barcos, a coisa saiu melhor. Ao ver que os anzóis usados pelos habitantes de Limfjorden eram de pontas retas, o irmão Guy foi ter com o irmão Guilbert e encomendou uma série de anzóis com rebarba, que ele, depois, ofereceu de graça. Quando descobriu que os pescadores locais só sabiam usar redes fixas para pescar no fiorde, ele começou a tecer redes móveis e redes especiais de arrasto. A diferença entre as suas redes e as que os habitantes de Limfjorden usavam estava, principalmente, na sua flexibilidade, mas também no uso de iscas maiores e material mais fino.

De qualquer maneira, Arn aprendeu logo a tecer as redes de pesca e, segundo o irmão Guy, elas pareciam ser produzidas por um dos pescadores da sua terra. Para Arn, o trabalho não era difícil, mas sim monótono.

Em breve, tudo começou a funcionar como o irmão Guy tinha pensado. Os habitantes de Limfjorden começaram a chegar de todas as aldeias dos arredores da Vitae Schola e, de início um pouco desconfiados, vinham por curiosidade estudar como se usavam as redes de arrasto. E o irmão Guy se ofereceu para compartilhar, com a ajuda de Arn como intérprete e no espírito cristão, todos os seus conhecimentos.

Isso implicava, porém, o fato de o irmão Guy, de vez em quando, deixar Arn sozinho na garagem dos barcos, enquanto ele levava os pescadores dinamarqueses de barco para lhes ensinar, por exemplo, como as redes deviam ser lançadas ao mar a partir de um barco em movimento. Mas quem veio para aprender a tecer as novas redes era um grupo de mulheres, velhas e novas, já que o trabalho de tecer redes era exclusivamente feminino em toda a região de Limfjorden.

E, então, aconteceu que Arn, cuja única experiência com mulheres era a de uma visão quando rezava pela alma de sua mãe, de repente, vivia diariamente quase todo o tempo cercado de mulheres. E, de início, essas mulheres achavam muita graça naquele jovem magricela, mas de braços fortes, que corava e se engasgava, e virava os olhos para o chão, de tal maneira que, em vez dos seus olhos azuis, mostrava quase sempre a careca da sua cabeça raspada.

Em teoria, Arn sabia como um professor devia se comportar. Afinal, ele já tivera muitos. Mas aquilo que ele acreditava saber a respeito da arte de ensinar não correspondia em nada àquilo que agora acontecia com ele. Suas alunas não se comportavam com aquela obediência e com aquele respeito que deviam. Faziam piadas e falavam em segredo entre si, rindo muito, e as mais velhas se atreviam sem pejo a passar a mão pela careca de Arn.

Mas ele mordia os lábios, por saber que a sua tarefa tinha de ser conduzida com responsabilidade. Todavia, depois de algum tempo, atreveu-se a levantar um pouco o olhar. E depois já olhava, inevitavelmente, para os seios das mulheres por baixo das finas roupas de verão e para os seus sorrisos, seus lábios carnudos e seus olhos curiosos.

Enfim, Bireite era o seu nome, tinha o cabelo ruivo, unido numa 2 única e grossa trança que lhe caía pelas costas. Era da mesma idade de Arn e gostava de pedir que ele lhe mostrasse de novo como se fazia o trabalho. E ele percebia que ela já sabia como fazer. Quando se sentava ao seu lado, ele podia sentir o calor da sua coxa. E quando, de propósito, ela errava no ponto, ele pegava nas mãos dela para mostrar, mais uma vez, como se faziam e dobravam os nós.

Arn não entendia que, assim, se tornava um pecador. E, por isso, demorou até comparecer diante do padre Henri para confessar o que estava acontecendo. Mas, então, já era tarde demais.

Birgite era a coisa mais bonita que Arn tinha visto na vida, com exceção, talvez, de Chamsiin. E ele começou a sonhar com ela durante as noites, de tal modo que acordava molhado, sem ter feito nada para isso. Começou também a sonhar com ela durante o dia, mesmo quando estava ocupado com qualquer outra coisa. Quando o irmão Guilbert lhe deu uma bofetada, porque ele não seguiu corretamente um determinado exercício, nem chegou a entender o que acontecera.

Quando Birgite lhe pediu para trazer alguma das plantas que existiam no mosteiro e que cheiravam divinamente, Arn achou que só podia ser bálsamo de limão ou lavanda. Uma pergunta meio furtiva feita ao irmão Lucien resolveu rápido a questão. Todas as mulheres são loucas por lavanda, murmurou o irmão Lucien, distraído, sem imaginar quanto fogo estava plantando, justamente naquele momento.

No começo, ele apenas contrabandeava alguns ramos, de vez em quando. Mas quando ela o beijou na testa, rápido, sem que ninguém visse, Arn perdeu o bom senso por completo e, na vez seguinte, trouxe uma braçada inteira que Birgite logo levou, correndo para casa, radiante de felicidade. Arn ficou olhando para os seus pés descalços, na sua movimentação rápida que jogava areia para todos os lados.

Nessa posição, com o olhar lânguido e ausente, a boca aberta, foi que irmão Guy encontrou o seu aluno. E com isso terminou bruscamente o enrabichamento.

Isto porque, ao mesmo tempo, o irmão Lucien, para sua perplexidade, descobriu grandes buracos na sua plantação de lavanda.

Arn foi punido com duas semanas a pão e água, em isolamento para — pensar e rezar, na primeira semana. Como não possuía uma cela própria, mas partilhava o mesmo dormitório com vários noviços, foi obrigado a ficar em uma cela livre na área fechada dos irmãos, no mosteiro. Consigo levou as Sagradas Escrituras, o exemplar mais antigo e mais usado, e nada mais.

O primeiro dos seus dois grandes pecados Arn podia entender. O segundo, não. Por muito que, honestamente, tentasse. Por muito que ele pedisse perdão à Virgem Sagrada.

Tinha roubado a lavanda, isso era concreto e compreensível. A lavanda era uma mercadoria muito procurada que o irmão Lucien vendia com muito sucesso. Pura e simplesmente, Arn tinha se enganado a respeito do que era de graça. De graça era ensinar aos outros o método para tecer redes de pesca. Outra coisa era gerar receitas através da feitura de espadas pelo irmão Guilbert e das plantações do irmão Lucien, se bem que nem todas as plantas fossem para vender. Uma parte era para dar, também, de graça, como, por exemplo, a camomila.

O padre Henri também levou isso em consideração. Embora um roubo fosse um roubo e, portanto, um crime horroroso contra as regras do mosteiro, mesmo assim o que aconteceu, no mínimo, podia ser considerado como incompreensão juvenil. O padre Henri foi buscar razão na versão do irmão Guy para o que aconteceu. O que acabou valendo também uma repreensão para ele. O irmão Guy levou pouco a sério os erros cometidos por Arn e acabou por se enganar, dando como explicação que, se o padre Henri tivesse visto ele mesmo a menina de que se tratava, nada do que aconteceu podia ser considerado como um mistério. Isso o irmão Guy não devia ter dito, pelo que ele próprio pôde verificar rápida e praticamente.

O segundo pecado de Arn, muito pior, foi o de ter sentido desejo. Se fosse um irmão acolhido pela ordem, teria sido punido com meio ano a pão e água e com trabalho apenas na lixeira da cozinha e nas latrinas.

Era tão fácil para Arn entender, no seu isolamento, como devia compensar pelo pecado de roubar lavanda, um pecado que sem dificuldade ele podia lamentar e do qual podia facilmente se arrepender. E era tão difícil ou, melhor, impossível, entender como sendo pior do que roubar o pecado de ter saudades e de sonhar com Birgite. Era impossível deixar de pensar nela. Sua camisa de cilício não o impedia de pensar nela, a frial-dade da noite também não, nem a dureza do seu catre de madeira, sem a pele de cordeiro ou o cobertor. Quando acordado, ele a via diante de si. Se por sorte adormecia, sonhava com seu rosto sardento e seus olhos castanhos ou seus pés nus, correndo rápido como os de um rapazinho pela areia. Além disso, o corpo de Arn assumia uma forma volumosa logo que ele adormecia. Pela manhã, quando algum dos irmãos, sem dizer uma palavra sequer, trazia para dentro da cela uma bacia de água gelada, a primeira coisa que ele fazia era mergulhar o elemento escabroso na água para eliminar pelo frio o pecado por demais escancarado.

E quando ele conseguia se concentrar na leitura das Sagradas Escrituras, era como se o próprio diabo o conduzisse para as partes que ele não devia ler. Ele conhecia tão bem as Sagradas Escrituras que tentava abrir o livro ao acaso, de olhos fechados. E, então, aconteceu que:

 

Porque o amor é forte como a morte.

E duro como a sepultura, o ciúme,

As suas brasas são brasas de fogo,

São veementes labaredas,

As labaredas do Senhor.

Os maiores oceanos

Não conseguem apagar o amor,

As grandes correntes não afogam o amor.

Se alguém quiser trocar todos os pertences

Da sua casa

Por amor, Ainda assim seria rejeitado.

(Cantares, 8:6-8)

 

Por mais que Arn tentasse usar seus conhecimentos a respeito de como as palavras do Senhor deviam ser lidas e interpretadas, mesmo assim não conseguia ver no amor um pecado. Esse poder, a respeito do qual Deus, nosso Pai, falou como sendo uma bênção para a humanidade, que era tão forte que nem o oceano conseguia afogá-lo nem o homem mais rico do mundo podia comprá-lo, esse poder que era impossível de impor como a própria morte, como é que podia ser pecado?

Quando Arn, na sua segunda semana de penitência a pão e água, ficou liberado para falar, o padre Henri convocou-o para que, assuntando o caso do roubo de lavanda, ele tentasse levar o jovem sobreexcitado a entender o que era o amor. Não foi o próprio São Bernardo que expôs o assunto de maneira clara como água?

A pessoa começa por amar a si mesma e para seu próprio bem. No passo seguinte de desenvolvimento, a pessoa aprende a amar a Deus, ainda para seu próprio bem e não por amor a Deus. Depois, a pessoa aprende verdadeiramente a amar a Deus e não mais para seu bem, mas por amor a Deus. Finalmente, a pessoa aprende a amar a pessoa, mas apenas por amor a Deus.

O que aconteceu neste processo de desenvolvimento era que cupiditas, ou seja, o desejo que está por trás de todo apetite humano, pôde acabar sob controle e passou a ser caritas, de modo que todos os desejos torpes são objeto de limpeza geral e o amor passa a ser limpo. Tudo isso era elementar, não é verdade?

Arn concordou, contrariado, que tudo isso era em si elementar. Tanto ele quanto quase todos os outros na Vitae Schola eram íntimos com os textos de Bernardo de Clairvaux. Mas como Arn entendia, existiam duas espécies de amor. Era verdade que ele amava o padre Henri, o irmão Guilbert, o irmão Lucien, o irmão Guy, o irmão Ludwig e todos os outros. Podia fixar, sem hesitar, seus olhos azuis nos olhos castanhos do padre Henri, garantindo esse amor. E ele sabia que o padre Henri podia ver direto na sua alma.

Mas isso não podia ser toda a verdade... E aí, de repente, ele citou, sem poder se conter, o longo pedaço dos Cantares.

E o que é que Deus queria dizer com isso? E o que é que Ovídio queria dizer nos seus textos que Arn pôde ler por engano quando ainda era pequeno? Sob certos aspectos, não lembravam muito Ovídio, suspeitosa-mente, as palavras de Deus?

Depois da sua explosão, incontrolável, Arn baixou a cabeça, envergonhado. Nunca antes ele tinha entrado em desobediente polêmica com o padre Henri e esperava, sem que achasse isso injusto, por mais duas semanas a pão e água como punição. Já que ele tinha demonstrado não estar ainda curado.

Mas a reação do padre Henri foi completamente outra, como se ele tivesse ficado satisfeito pelo que escutou, se bem que não pudesse concordar com a interpretação de Arn.

— A sua vontade é forte, seus sentidos continuam livres e, por vezes, indomáveis, tal como os de uma parte desses cavalos que você monta. Eu tenho visto você, pode crer — disse o padre Henri, pensativo. — Está muito bem. Eu receei, mais do que tudo, ter quebrado a sua livre vontade, de tal maneira que você não pudesse compreender Deus na hora de Ele o chamar. E isso é tudo sobre o caso. Agora, vamos ver por que você está errado?

O padre Henri explicou tudo de modo muito tranqüilo e calmo. Na verdade, Deus incutiu no homem uma libido que não é escabrosa e foi sobre ela que, por exemplo, os Cantares falaram. A ordem divina ditou que o ser humano tinha como missão povoar o mundo e para cumprir a finalidade assinalada era melhor que essa tarefa especial, exigida para cumprir a missão, fosse agradável. E feito numa união abençoada por Deus, pelo casamento, na missão de procriar, esse desejo seu se tornou divino e nada pecaminoso.

Arn tirou por conclusão, completamente absurda, que um homem e uma mulher deviam esperar encontrar alguém que amassem para, depois, verem o seu casamento abençoado. O padre Henri se divertiu imensamente diante desse pensamento Bizarro.

Mas Arn não desistiu, além de tudo instigado por um inesperado sinal suave do padre Henri. Ele argumentou em seguida se o amor em si — essa forma de amor da qual falam os Cantares — não tinha nada de mau, antes pelo contrário, segundo certas premissas, era até do agrado de Deus, por que razão esse amor era proibido para aqueles que eram os mais fiéis a Deus na sua horta? Em resumo, como é que o amor podia ser pecaminoso, merecendo um castigo a pão e água e camisa de cilício ao ser possuído por ele e ao mesmo tempo podia ser uma bênção divina para as pessoas?

— Bom, bom — reagiu o padre Henri, nitidamente divertido diante das perguntas apresentadas. — Para começo de conversa, há que fazer a diferença entre o mundo superior e o mundo inferior. Platão, você sabe. Nós pertencemos, portanto, ao mundo superior. Esse é o ponto de partida teórico. Mas acho que você vai querer saber muito mais. De Platão, já sabe tudo. Pense em todos os campos verdes que rodeiam a Vitae Schola, pense que todas as ervas e frutos das hortas do irmão Lucien e os conhecimentos que ele espalha entre os próximos, pense na arte de ferraria do irmão Guilbert e no seu saber a respeito da criação de cavalos ou no trato da pesca pelo irmão Guy. Repare que não estou falando por metáforas. Antes, estou me mantendo no plano prático. Agora, pense em tudo isso, o que significa?

— Fazemos o bem pelo próximo. Assim como o Senhor sempre será o nosso pastor, nós podemos, pelo menos de vez em quando, ser os pastores das pessoas. Damos a elas uma vida melhor através dos nossos conhecimentos e do nosso trabalho, não é isso que o senhor quer dizer, padre?

— Sim, meu filho, é isso precisamente o que eu quero dizer. Nós somos os construtores de Deus espalhados pelo mundo desconhecido. Aliás, quem foi que disse isso?

— O sagrado São Bernardo, claro!

— É claro. Nós experimentamos o desconhecido, domesticamos a natureza, dobramos o aço de uma nova maneira e encontramos o remédio contra os males. Fazemos com que o pão chegue para todos. É isso que nós fazemos de uma maneira prática e, depois, ainda espalhamos o conhecimento de uma forma geral e, em especial, o conhecimento sobre as palavras do Senhor e como elas devem ser entendidas. Ainda está me acompanhando?

— Sim, sim, claro, mas ainda assim... — começou Arn, cheio de vontade de contradizer tudo, mas sabendo se conter para começar de novo. — Desculpe, padre, mas vou ter que fazer a pergunta de maneira concreta e de novo. Desculpe, se vou ser impertinente. Eu entendi tudo o que o senhor disse a respeito do nosso bom trabalho. Mas por que razão, então, os irmãos pertencentes à ordem jamais podem aceitar os prazeres do amor? Se o amor é uma coisa boa, por que devemos evitá-la?

— Pode-se esclarecer isso em dois planos — afirmou o padre Henri, aparentemente ainda divertido perante as considerações do aluno. — Nossa vocação maior, nosso trabalho como os servidores mais fiéis de Deus na Terra, tem um preço. E esse preço é o de que temos de dedicar toda a nossa alma e o nosso corpo ao serviço de Deus. Caso contrário, jamais poderíamos fazer qualquer coisa de durável. Pense se os irmãos aqui tivessem mulheres e crianças em cada canto! Como é que ficaríamos? Pelo menos, metade do nosso tempo seria utilizado em outras coisas que não aquelas que executamos agora. E começaríamos a nos preocupar com a propriedade, os nossos filhos iriam querer herdar nossos haveres. Imagine apenas essa questão! O nosso juramento a respeito da pobreza tem a mesma função que o nosso voto de castidade. Nós nada temos e depois de nós a Igreja recebe tudo o que usamos e o que construímos.

Arn ficou em silêncio, refletindo. Para ele, havia lógica naquilo que o padre Henri explicou, com exemplificações terrenas, em vez de se jogar nos braços de Platão e nas teorias de São Bernardo a respeito das almas diferenciadas dos seres humanos em estágios diferenciados. Mas ainda não estava satisfeito. Sentia como se ainda faltasse alguma coisa na lógica. Se nada mais houvesse a questionar, seria válido perguntar por que a auto-satisfação devia ser tão horrorosa. Como uma espécie de festança da alma, talvez? Ou apenas uma coisa que afastou os pensamentos de Deus? Era, de fato, impossível, reconhecia ele, corando, pensar em Deus e ao mesmo tempo se auto-satisfazer.

Quando viu que Arn parecia ter entendido e, pelo menos, em grande parte, ter aceito a explicação simples que recebeu, o padre Henri decidiu, visivelmente aliviado, que a semana seguinte de penitência, Arn I podia passar na cozinha, junto dos irmãos provençais. Embora continuasse a pão e água. Isso iria tornar-se, evidentemente, uma provação ainda mais dura, mas fortalecedora da vontade da alma.

A cozinha era o lugar em toda a Vitae Schola onde o trabalho era mais intenso. Os irmãos que trabalhavam fora voltavam para casa na hora das vésperas, os irmãos que trabalhavam nas forjas, na carpintaria, nas pedreiras, na tecelagem, nas ferrarias, na olaria, no estábulo, na carneirada ou no apiário, ou no ervário ou na horta, todos tinham a sua pausa noturna no trabalho e todos tinham tempo para ler, sem que isso implicasse atraso nas suas tarefas diárias.

Mas na cozinha havia apenas duas horas de silêncio por dia, depois da missa da meia-noite, quando os fogos esmoreciam e tudo ficava abandonado e brilhando de limpeza. Mas muito antes do amanhecer já recomeçava o trabalho de novo. Primeiro, saía a grande fornada de pão. Depois disso a cozinha ficava cheia de irmãos e de noviços. As horas antes da grande refeição do dia eram as de trabalho mais intenso, com pelo menos dez irmãos e noviços em ação e com muita pressa. Todos os dias, havia de cinqüenta a sessenta bocas para alimentar, dependendo de quantos irmãos estivessem no momento em viagem e de quantos visitantes estivessem presentes. Na cozinha, mandava o irmão Rugiero, de Nimes, com poderes absolutos, e abaixo dele, os irmãos Catalan e Luís, que, no entanto, ainda não tinham sido reconhecidos como membros da ordem, possivelmente por nunca terem tempo suficiente para completar seus estudos.

Na manhã em que Arn se apresentou para o serviço na cozinha, o jantar do dia seria carneiro. Por isso, a primeira coisa que Arn teve de fazer foi ir buscar dois animais jovens, dois cordeiros, e levá-los para o matadouro, ao lado da cozinha. Estes cordeiros não eram para ser servidos naquele dia. Os que iam ser servidos tinham sido mortos dez dias antes e ficaram pendurados durante esse tempo todo para maturar. Por isso, tinham que ser substituídos pelos dois, mortos naquele dia, para serem servidos dali a dez dias. Só os bárbaros comiam carne não maturada.

Arn não gostou de levar os dois cordeiros, sem que eles tivessem a menor idéia do que lhes ia acontecer, para o matadouro. Colocou uma corda no pescoço deles e puxou-os, levemente, parando de vez em quando, sempre que eles viam um tufo de grama que lhes parecia mais apetitosa e o comiam. Arn acabou pensando em todas as semelhanças nas Sagradas Escrituras que descreviam, justamente, a ligação entre o bom pastor e o seu rebanho. Naquele momento, sem dúvida, ele não podia ser considerado um bom pastor.

Quando chegou com os animais no matadouro e os entregou a um noviço taciturno, este logo os pendurou em grandes ganchos por uma das patas traseiras e cortou seus pescoços. Enquanto a vida escorria dos animais e o branco dos olhos deles revirava de medo, o noviço foi buscar uma vassoura e abriu um ralo de madeira que dava para um canal de água por onde o sangue escorreu do chão de cerâmica e foi parar num esgoto subterrâneo. Uma vez tudo pronto, entrou na área mais um noviço, e os dois, cada um de faca em punho, transformaram rapidamente os animais numa coisa mais parecida com carne e comida.

Arn teve de levar as duas peles ainda quentes para o curtume e os intestinos para serem lavados. Depois, foi cortar mais um bloco de gelo que carregou num carrinho para o refrigerador onde os dois novos corpos já se encontravam devidamente numerados e pendurados atrás, em filas de bezerros, porcos, vacas, patos e percas. Os blocos de gelo eram colocados no meio da área do refrigerador, de modo que a água do gelo derretido corresse por um canal e seguisse pelo sistema de esgoto. Lá dentro, era escuro e frio e Arn sentia arrepios ao ter que jogar água fria nas paredes porosas de tijolos com um instrumento semelhante ao purificador de água benta. O compartimento tinha teto alto, e no teto havia pequenas aberturas para a entrada de luz e para a saída do mau cheiro produzido pelos corpos dos animais.

Quando Arn voltou à cozinha, os dois cordeiros pendurados e maturados tinham sido cortados em pedaços e colocados em vinha-d'alhos: azeite, alho, hortelã e vários outros condimentos muito fortes das terras provençais. Os enormes fornos já estavam em aquecimento. As pernas e os lombos seriam assados nos fornos, depois de absorverem os temperos, durante tempo suficiente, na vinha-d'alhos. As outras partes dos animais eram cortadas em pedaços menores e preparadas em panelas de ferro como ensopados. Para a ceia, havia sopa de cordeiro com vegetais, couve e, para terminar, um pouco de cerejas com mel e amêndoas torradas. Para acompanhar o cordeiro assado, pão branco, azeite e queijo de cabra fresco. —

Não dava para beber vinho todos os dias na Vitae Schola, mas isso já não tinha nada a ver com as regras do mosteiro, mas com as dificuldades em transportar o vinho em quantidades razoáveis da região de Burgund até o norte, à Escandinávia. Por isso, era ao irmão Rugiero que competia decidir a seu bel-prazer quando era para servir vinho ou água nas refeições. Para o carneiro assado no forno, ele achou que o vinho acompanhava melhor. Despachou então Arn para a adega para trazer meio barril pequeno de vinho, com instruções para que escolhesse o vinho do barril do final da adega, onde se encontrava a bebida da safra mais antiga. O vinho era servido por ordem de antigüidade e, por isso, Arn recebeu todas as instruções a respeito das referências inscritas no barril. Acabou trazendo no carrinho o barril errado e recebeu uma reprimenda, a de que o vinho trazido podia servir para os sacramentos, mas não para uma refeição cristã, uma piada grosseira que o chocou. E teve que refazer a tarefa.

Quando o jantar foi servido e todos os outros se reuniram à mesa, Arn teve de voltar para a cozinha e pegar uma caneca de água da corrente de água potável que passava direto no meio da cozinha e não podia ser trocada por engano pela água do esgoto que vinha dos banheiros. Ele bebeu a sua água fria e se deleitou como se fosse um presente de Deus. Depois, rezou uma longa oração à mesa, antes de pegar um pedaço de pão branco.

Não sentia nenhuma fome, nem inveja dos seus irmãos. Estavam comendo uma refeição normal, mais ou menos a mesma que se comia sempre na Vitae Schola. Depois de comer, Arn ainda limpou tudo e deu uma olhada nos tachos preparados com a comida da refeição seguinte.

Depois da missa da meia-noite, a cozinha tinha que ser bem lavada com água, e todo o lixo tinha que ser retirado ou jogado no esgoto, para seguir pelo córrego e chegar até o fiorde, ou levado para a área onde ficava a lixeira, atrás da cozinha, onde uma parte era queimada e outra, muito importante, servia de estrume. O irmão Lucien era muito meticuloso a respeito de como trabalhar com a estrumeira. Isso representava muito para a sua tarefa de tornar a terra mais produtiva.

Depois de tudo feito, Arn teria duas horas de sono antes de começar a amassar o pão. Mas tinha trabalhado sob tanta pressão na cozinha quente que nem conseguia relaxar. Continuava ainda com muita força e ritmo no corpo.

Era uma noite de verão, amena, em que já se podia sentir o aroma do outono no ar. As estrelas brilhavam no céu e não havia vento. A lua brilhava pela metade.

Primeiro, Arn sentou-se por momentos na escada que levava para a cozinha e ficou olhando para as estrelas, sem se concentrar em nenhum pensamento em especial. Seus pensamentos viajavam entre as intensas tarefas do dia, todos aqueles aromas fortes da cozinha e a conversa matinal com o padre Henri. Ele tinha a certeza de que havia ainda alguma coisa que não entendia a respeito do amor.

Depois, foi andando até Chamsiin e chamou por ele. O agora forte garanhão veio trotando, reagindo rápido ao costumeiro chamado. Veio num trote suave, com um lindo movimento das pernas e a cauda levantada. Era ainda um jovem garanhão, mas já crescido como adulto e com uma cor que tinha deixado de ser aquele branco infantil e se transformado numa tonalidade de cinza e branco que, à luz da lua, parecia até ter uma tonalidade de prata.

Sem saber por quê, Arn passou os braços à volta do pescoço do cavalo e abraçou-o, acariciando-o. E começou a chorar. O peito estremecia de sentimentos que ele não podia entender.

— Eu te amo, Chamsiin. É a ti que eu amo de verdade — dizia ele, num murmúrio, enquanto as lágrimas corriam pelo seu rosto como um córrego. Dentro de si, ele sentia estar pensando em algo pecaminoso e proibido, coisa que não sabia como explicar.

Pela primeira vez na vida, chegou à Conclusão de que sempre existia alguma coisa sobre a qual nada havia a confessar.

 

 

                                       CONTINUA

 

 

MONASTERIO BEATAE MARIAE DE VÀRNHEMIO foi o nome dado, finalmente, ao mosteiro de Varnhem. O padre Henri, que de novo estava sentado no seu antigo scriptorium, sentiu um arrepio de felicidade ao escrever em definitivo essa designação. A Virgem Santa devia ter esse mosteiro a si dedicado com toda a razão, pois foi ela que teve uma participação maior na sua criação através da revelação dada à senhora Sigrid durante a inauguração da catedral de Skara. E agora, finalmente, todo o processo tinha chegado ao ponto desejado.

 

 

 

 

O padre Henri, na verdade, tinha muito do que se alegrar, tal como -, ele agora tentava expressar bem na sua longa carta. Os cistercienses tinham ganho uma jogada, não só complicada como perigosa, contra o próprio imperador da Alemanha, Frederico Barbarossa. E o padre Henri tinha mexido os seus pauzinhos do lugar onde estava, acompanhando dois grandes amigos que desempenharam um papel importante no assunto, o arcebispo Eskil e o padre Stephan, de Alvastra. Quem podia imaginar uma evolução dessas vinte anos atrás, quando ele e o padre Stephan percorreram o triste e frio caminho até o norte, na Escandinávia?

O imperador Frederico Barbarossa tinha derrubado o papa Alexandre III e colocado no seu lugar um outro papa da sua corte, mais obediente, em Roma. Em face dessa movimentação, o mundo cristão teve de escolher entre...

 

 

 

[1] Frej, deus da fertilidade. (N. T.)

[2] Citado da Bíblia, na versão de João Ferreira de Almeida. Daqui em diante, todas as citações bíblicas são da mesma versão. (N. do T.)

 

 

                                                                                                  

 

 

                                       

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