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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CURA DE SCHOPENHAUER / Irvin D. Yalom
A CURA DE SCHOPENHAUER / Irvin D. Yalom

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça. (...) No final, ela vence, pois desde o nascimento esse é o nosso destino e ela brinca um pouco com sua presa antes de comê-la. Mas continuamos vivendo com grande interesse e inquietação pelo maior tempo possível, da mesma forma que sopramos uma bolha de sabão até ficar bem grande, embora tenhamos absoluta certeza de que vai estourar.

 

 

 

 

Como todo mundo, Julius conhecia as homílias a respeito da vida e da morte. Concordava com os estóicos, que diziam: "Começamos a morrer quando nascemos", e com Epicuro, que refletia: "Onde estou, a morte não está, e onde ela está, não estou. Então, por que temê-la?" Como médico e psiquiatra, tinha dito, baixinho, esse consolo no ouvido dos doentes graves.

Embora acreditasse que essas sombrias reflexões fossem úteis para seus pacientes, Julius jamais achou que tivessem algo a ver com ele. Até o momento em que enfrentou uma situação muito difícil, ocorrida há quatro semanas e que mudou para sempre a sua vida.

Foi durante o exame médico anual de rotina. Seu clínico, Herb Katz — um velho amigo e colega de classe na Faculdade de Medicina —, acabou de examiná-lo e, como sempre, pediu para Julius se vestir e voltar à sala para uma conversa.

Herb sentou-se à mesa e falou olhando as fichas de Julius:

— No geral, você está muito bem para um sujeito de sessenta e cinco anos. A próstata está um pouco aumentada, mas a minha também está. Os exames de sangue, colesterol e os níveis de lipídio estão bons, prova que os remédios e a dieta estão fazendo efeito. Eis a receita para compra do Lipitor, que junto com as corridas reduziram bastante seu colesterol. Portanto, você pode comer um ovo de vez em quando. Eu como dois no café da manhã dos domingos. E esta é a receita para o sintiróide. Aumentei um pouco a dose. Sua tireóide está diminuindo aos poucos, as células boas estão morrendo e sendo substituídas por material fibrótico. Situação perfeitamente benigna, como você sabe. Acontece com todo mundo, também estou tomando remédio para a tireóide.

— É, Julius, nenhuma parte de nós escapa da velhice. Além da tireóide, sua cartilagem do joelho está gasta, seus folículos capilares estão morrendo e seus discos lombares superiores não são mais os mesmos. Sua pele também piora de forma evidente: as células epiteliais estão simplesmente acabando, basta reparar nessas ceratoses senis no seu rosto, essas manchas lisas, marrons.

Segurou um espelhinho para Julius olhar.

— Deve ter aparecido mais uma dúzia, desde a última vez que examinei você. Quanto tempo tem passado no sol? Usa um chapéu de abas largas, como recomendei? Quero que consulte um dermatologista sobre isso. Bob King é um bom especialista. Fica no prédio ao lado. Aqui está o telefone dele. Conhece-o?

Julius assentiu com a cabeça.

— Ele pode queimar as manchas mais aparentes com uma gota de nitrogênio líquido. No mês passado, tirou várias minhas. É rápido, só uns cinco a dez minutos. Muitos clínicos também estão fazendo isso agora. Há uma mancha nas suas costas que quero que ele examine: não dá para você ver, fica bem embaixo da omoplata direita. Parece diferente das outras, tem pigmentação desigual e as bordas não são nítidas. Não deve ser nada, mas é melhor ele ver. Certo, amigo?

"Não deve ser nada, mas é melhor ele ver." Julius ouviu o tom tenso e forçadamente informal na voz de Herb. Mas, sejamos francos, a frase "tem pigmentação desigual e as bordas não são nítidas", dita de um médico para outro, era alarmante. O código para um provável melanoma, e, pensando nisso depois, Julius marcou aquela frase, aquele exato momento, como sendo o instante em que a vida despreocupada terminou e a morte, até então sua inimiga invisível, se materializou em toda a sua terrível realidade. A morte tinha chegado para ficar, não saiu mais do lado dele, e todos os horrores que se seguiram foram pós-escritos previsíveis.

Anos antes, Bob King tinha sido paciente dele, como também muitos médicos de San Francisco. Julius imperava na comunidade psiquiátrica há trinta anos. Como professor de psiquiatria na Universidade da Califórnia, tinha treinado levas de estudantes e, cinco anos antes, havia sido eleito presidente da Associação Americana de Psiquiatria.

A fama dele? De médico dos médicos. Terapeuta de ponta, um bruxo sagaz e disposto a fazer tudo para ajudar o paciente. Foi por isso que, dez anos antes, Bob King o procurou para tratar seu velho vício em Vicodan, a droga que viciava os médicos porque era muito fácil de conseguir. Na época, King estava com muitos problemas. Tinha aumentado muito sua necessidade de consumir a droga, pois o casamento estava acabando, seu consultório ia mal e ele precisava do remédio todas as noites para dormir.

Bob King tentou se tratar, mas todas as portas se fecharam para ele. Os terapeutas que consultou insistiram para que fizesse um programa de recuperação para médicos, idéia que ele não aceitou porque não queria comprometer sua privacidade freqüentando grupos de terapia com colegas viciados. Os terapeutas não iam fazer nada. Se tratassem um médico viciado e em atividade, sem usar o programa oficial de recuperação, arriscavam-se a serem punidos pelo Conselho de Medicina ou processados (caso, por exemplo, o paciente cometesse um erro médico).

Como último recurso antes de largar o consultório e ir se tratar como anônimo em outra cidade, Bob King procurou Julius, que aceitou o risco e confiou que conseguiria largar o Vicodan. Embora a terapia tivesse sido difícil, como sempre é com viciados, Julius tratou o colega por três anos, sem ajuda de um programa de recuperação. E foi um daqueles segredos que todo psiquiatra guarda, um sucesso terapêutico que não poderia de forma alguma ser discutido em congresso, nem publicado em livro ou revista especializada.

Depois de sair do consultório de Herb Katz, Julius sentou-se no carro. O coração batia tão forte que o carro parecia balançar. Respirou fundo para dominar seu medo crescente, tomou fôlego outra vez e mais outra, abriu o celular e, com mãos trêmulas, pediu uma consulta urgente com Bob King.

— Não gostei — disse Bob na manhã seguinte, enquanto examinava as costas de Julius com uma grande lupa redonda de aumento. — Pegue a lupa, quero que você veja, podemos olhar em dois espelhos.

Bob pôs Julius ao lado do espelho de parede e colocou um grande espelho manual junto à mancha. Julius olhou o dermatologista pelo espelho: era loiro, de rosto corado, óculos grossos sobre o nariz comprido e imponente. Lembrou de Bob contando que, na infância, as outras crianças o provocavam chamando-o de "nariz de pepino". Ele não havia mudado muito em dez anos. Parecia ansioso como na época em que foi paciente de Julius — agitado, chegando sempre alguns minutos atrasado. Julius lembrava sempre da frase do Coelho, de Alice no país das maravilhas. "Estou atrasado, atrasado para um encontro importante", quando Bob entrava correndo em seu consultório. Tinha engordado, mas continuava miúdo. Parecia mesmo um dermatologista. Alguém conhece um dermatologista grande? Julius olhou para ele — oh, oh, eles pareciam apreensivos —, as pupilas estavam bem dilatadas.

— É isso aqui. — Julius olhou pelo espelho enquanto Bob mostrava com uma caneta com ponta de borracha. — Esse sinal embaixo do ombro direito sob a omoplata. Está vendo?

Julius concordou.

Segurando uma pequena régua, ele continuou: — O diâmetro é menor que um centímetro. Você com certeza lembra da prática lei ABCD de seu curso de dermatologia na faculdade (...)

Julius interrompeu: — Não lembro nada do curso de dermatologia na faculdade. Faça como se eu fosse idiota.

— Certo. ABCD. A de assimetria: olhe aqui — ele passou a caneta por cima da lesão. — Não é bem redonda, como todas as outras nas suas costas, veja essa aqui e essa — disse, apontando para duas pequenas manchas próximas.

Julius tentou quebrar a tensão respirando fundo.

— B de bordas, olha aqui, sei que está difícil ver. — Bob mostrou outra vez a lesão subescapular. — Veja, a parte de cima tem a borda definida mas o centro não, vai sumindo na pele. C de cor. Aqui, desse lado, veja que é marrom-claro. Se eu ampliar com a lupa, há um tom de vermelho, um pouco de preto, talvez até de cinza. D é de diâmetro, digamos, menos de dois centímetros. É de bom tamanho, mas não sabemos quanto tempo tem, isto é, com que rapidez está crescendo. Herb Katz diz que não havia mancha alguma quando examinou você no ano passado. Finalmente, se olharmos com a lupa, não há dúvida, o centro está ulcerado.

Deixando o espelho de lado, ele pediu: — Vista a camisa.

Depois que Julius terminou de abotoar a camisa, Bob sentou-se no banquinho da sala de exame e começou: — Bom, Julius, você conhece a literatura médica sobre o tema. O caso é preocupante, claro.

Escute, Bob. Sei que nosso relacionamento anterior faz com que essa situação seja difícil para você, mas, por favor, não me peça para fazer seu trabalho. Não pense que entendo alguma coisa disso. Lembre que estou apavorado, quase em pânico. Quero que você assuma a situação, seja totalmente honesto comigo e cuide me mim. Exatamente como fiz com você. E, Bob, olhe para mim! Se você evita me olhar como fez agora, fico assustado pra caralho.

Certo, desculpe — olhou Julius de frente. — Você cuidou muito bem de mim. Vou fazer o mesmo. — Pigarreou: — Olha, na minha opinião, é um melanoma.

Percebendo que Julius titubeou, acrescentou: — Mas o diagnóstico em si diz pouco. Lembre que a maioria dos melanomas, eu disse maioria, é facilmente tratável, mas alguns são foda. Precisamos saber umas coisas com o patologista: é um melanoma mesmo? Se for, qual a profundidade? Ele aumentou? O primeiro passo é a biópsia e uma amostra do tecido para o patologista.

— Assim que terminarmos, vou chamar um cirurgião-geral para extirpar a lesão. Vou ficar ao lado dele. A seguir, o patologista fará o exame de uma parte congelada e, se o resultado for negativo, ótimo, paramos aí. Se der positivo e for um melanoma, removemos o nódulo mais suspeito e, se necessário, fazemos uma ressecção múltipla do nódulo. Não é preciso hospitalização, tudo é feito no centro cirúrgico. Tenho certeza de que não será preciso enxerto de tecido e você perde no máximo um dia de trabalho. Mas vai sentir alguns dias de desconforto no local da cirurgia. Não há mais o que dizer, até sabermos o resultado da biópsia. Como você pediu, vou cuidar de você. Confie na minha avaliação, já tratei centenas de casos. Certo? Minha enfermeira liga mais tarde para você dando todos os detalhes de hora, local e cuidados preparatórios. Certo?

Julius concordou. Os dois se levantaram.

— Desculpe, gostaria de lhe poupar de tudo isso, mas não posso — disse Bob, entregando um folheto. — Sei que você não quer, mas sempre dou mais informações para pacientes nessa situação. Alguns se sentem seguros, outros preferem não saber e jogam fora o folheto quando saem do consultório. Depende da pessoa. Espero que após a cirurgia eu possa dizer algo mais animador.

Mas não houve nada mais animador; as notícias posteriores foram piores ainda. Três dias após a biópsia, eles se encontraram outra vez. — Quer ler isso? — perguntou Bob, com o diagnóstico final do patologista. Como Julius não quis, Bob deu uma olhada no papel outra vez e disse: — Certo, vamos deixar isso de lado. Preciso dizer que a notícia não é boa. É um melanoma com diversas, como dizer, características notáveis: é profundo, cerca de quatro milímetros, ulcerado e com cinco nódulos positivos.

O que isso significa? Vamos, Bob, não fique dando voltas. "Notáveis", quatro milímetros, ulcerado, cinco nódulos? Seja claro, fale como se eu fosse um leigo.

Significa má notícia. É um melanoma de tamanho considerável e se espalhou pelos nódulos. O perigo é se espalhar mais, o que só saberemos depois da tomografia computadorizada que marquei para você fazer amanhã, às oito.

Dois dias depois, continuaram a conversa. Bob informou que a tomografia deu negativo, não havia prova de que o melanoma tivesse se espalhado por outra parte do corpo. Essa foi a primeira boa notícia. — Mesmo assim, Julius, esse melanoma é grave.

Grave a que ponto? Do que estamos falando? Qual é o índice de sobrevivência? — perguntou Julius, com a voz falha.

Você sabe que só podemos responder em termos de estatísticas. Cada pessoa é diferente. Mas para um melanoma ulcerado, de quatro milímetros de profundidade, cinco nódulos, as estatísticas mostram uma sobrevida de menos de vinte e cinco por cento.

Julius ficou vários minutos com a cabeça caída, o coração batendo pesado, lágrimas nos olhos, antes de pedir: — Pode continuar. Você está sendo objetivo. Preciso saber o que dizer aos meus pacientes. Como a doença vai progredir? O que vai acontecer?

— É impossível precisar, pois nada mais vai lhe acontecer até o melanoma aparecer em outra parte do corpo. Se isso ocorrer, principalmente se houver métastase, o processo pode ser rápido, talvez de semanas ou meses. Quanto aos seus pacientes, é duro dizer, mas seria razoável pensar que você vai ter um ano de saúde. Julius assentiu lentamente, de cabeça baixa.

Onde está sua família, Julius? Você não devia ter vindo aqui com alguém ?

Acho que você sabe que minha mulher faleceu há dez anos. Meu filho mora na Costa Leste e minha filha, em Santa Bárbara. Ainda não contei nada, achei que não valia a pena atrapalhar a vida deles sem necessidade. De todo jeito, sou de curtir as tristezas sozinho, mas tenho certeza de que minha filha virá na mesma hora em que eu contar.

Julius, lastimo ser obrigado a dizer tudo isso. Quero terminar com uma pequena notícia boa. Há muita pesquisa sendo feita, talvez uma dúzia de laboratórios de pesquisa muito eficientes trabalhando, aqui e no exterior. Por motivos desconhecidos, nos últimos dez anos a incidência de melanomas aumentou, quase dobrou, por isso há muita pesquisa nessa área. Deve aparecer logo uma cura.

Julius passou a semana seguinte num torpor. A filha, Evelyn, professora de Humanidades, cancelou as aulas e veio imediatamente passar vários dias com ele. Julius conversou muito com ela, com o filho, com a irmã, o irmão e os amigos íntimos. Passou a acordar assustado às três da manhã, gritando e com falta de ar. Cancelou por duas semanas as consultas de pacientes individuais e do grupo de terapia e passou horas pensando como e quando dar a notícia para eles.

O espelho lhe dizia que ele não parecia um homem que tinha chegado ao fim da vida. Seus nove quilômetros diários de corrida mantiveram o corpo jovem e elástico, sem nenhuma gordura. Havia rugas em volta dos olhos e da boca, não muitas; o pai dele morreu sem nenhuma. Tinha olhos verdes, dos quais sempre se orgulhou. Olhos firmes e sinceros, nos quais se podia confiar e que conseguiam encarar qualquer pessoa. Olhos jovens, do Julius de dezesseis anos. O homem que ia morrer e o rapaz de dezesseis se viram no espelho décadas afora.

Olhou a boca. Lábios polpudos e simpáticos que, mesmo naquele momento de desespero, estavam prontos a dar um sorriso caloroso. A cabeça era coberta de cabelos negros e rebeldes, ficando grisalhos só nas laterais. Quando era adolescente no Bronx, o velho barbeiro anti-semita de cabelos grisalhos e cara vermelha, que ficava entre a loja de balas de Meyer e o açougue de Morris, xingava os cabelos rebeldes quando os puxava com um pente de aço e cortava-os rente. E agora Meyer, Morris e o barbeiro estavam mortos e o jovem Julius de dezesseis anos estava na lista de chamada da morte.

Uma tarde tentou controlar um pouco o problema lendo a literatura sobre melanoma na biblioteca da Faculdade de Medicina, mas não adiantou, foi inútil. Mais que inútil: fez com que as coisas ficassem mais horrendas. Quando percebeu o verdadeiro horror que era sua doença, passou a pensar no melanoma como um animal voraz, cravando garras negras na carne dele. Incrível pensar que, de repente, ele não era mais a forma superior da vida. Ao contrário, era um hospedeiro, era comida, alimento para um organismo com células devoradoras que se multiplicavam com enorme rapidez, um organismo que atacava e anexava os protoplasmas próximos e que naquele momento estava preparando bandos de células para entrarem na corrente sangüínea e invadirem órgãos distantes, talvez seu silencioso e destrutível fígado, ou seus esponjosos e labirínticos pulmões.

Julius deixou de lado a leitura. Mais de uma semana tinha se passado e precisava ir em frente. Ver o que estava realmente acontecendo. — Sente-se, Julius — ordenou para si mesmo. — Sente-se e pense na morte. — Fechou os olhos.

Quer dizer que a morte finalmente entrou em cena, pensou ele. Mas não foi uma entrada banal: as cortinas foram abertas por um dermatologista gorducho, com nariz de pepino, lupa na mão e jaleco branco de hospital, com o nome bordado em letras manuscritas azul-escuras no bolso do peito.

E a cena final, como seria? Tinha toda a possibilidade de ser banal também. O figurino dele seria o amassado pijama listrado dos New York Yankees, com o número cinco do jogador DiMaggio nas costas. O cenário? A mesma cama grande na qual ele dormia há trinta anos, roupas empilhadas na cadeira ao lado e, na mesa de cabeceira, um monte de romances que ignoravam que jamais seriam lidos. Um final frustrante, choramingas. Certamente, pensou, a gloriosa aventura de sua vida merecia algo mais (...) mais (...) mais o quê?

Lembrou de uma cena que viu alguns meses antes, nas férias passadas no Havaí. Ao dar uma caminhada, chegou por acaso num grande centro de meditação budista e viu uma jovem andando num labirinto circular feito com pequenas pedras de lava. Ao chegar ao centro do labirinto, a jovem parou e ficou meditando em pé. A reação imediata de Julius a esse tipo de ritual religioso não era muito complacente; costumava ficar entre a zombaria e a repulsa.

Mas agora, ao pensar na jovem meditando, sentiu algo mais terno, uma onda de compaixão por ela e por todos os demais humanos que eram vítimas daquela excêntrica virada de evolução que permite ter consciência de si mesmo, mas não as ferramentas psicológicas necessárias para lidar com a dor da existência transitória. E assim, por anos, séculos e milênios afora, construímos sem parar negações paliativas da finitude. Será que nós, será que algum de nós, jamais cessará de buscar um poder superior no qual possamos nos fundir e existir para sempre, parar de querer manuais de instruções dados por um Deus, de querer um desígnio maior, de buscar rituais e cerimônias?

Apesar disso, considerando que seu nome estava na lista de morte, Julius pensou que uma cerimônia discreta não seria má idéia. Afastou a idéia como se queimasse, já que a vida inteira ele foi profundamente contra rituais. Sempre detestou as formas que as religiões usam para tirar a razão e a liberdade de seus seguidores: os trajes cerimoniais, o incenso, os livros sagrados, os cantos gregorianos com seu som hipnotizante, os cilindros de oração dos budistas, os tapetes para ajoelhar, os mantos e solidéus, as mitras e os bastões dos bispos, as hóstias e os vinhos bentos, as extrema-unções, as cabeças batendo e os corpos balançando no ritmo de velhas cantilenas. Ele considerava tudo aquilo a parafernália da mais poderosa e duradoura vigarice, que fortalecia os líderes e satisfazia o desejo de submissão da comunidade.

Mas naquela hora, com a morte ao lado, Julius notou que sua veemência perdeu a força. Talvez não gostasse apenas do ritual imposto. Talvez fosse possível elogiar uma cerimônia discreta e criativa. Ficou sensibilizado com a cena que os jornais descreveram dos bombeiros no local do atentado ao World Trade Center em Nova York, todos de pé, tirando os capacetes em homenagem aos mortos, à medida que os corpos eram trazidos à superfície. Não tinha nada de errado em honrar os mortos, não, os mortos não, mas a vida daqueles que morreram. Ou seria algo mais do que homenagear, mais do que santificar? O gesto, o ritual dos bombeiros, também não tinha um sentido de ligação? Reconhecendo que estavam ligados, que formavam uma unidade com cada uma das vítimas ?

Dias após a fatídica consulta com o dermatologista, Julius sentiu um sabor de ligação ao encontrar seu grupo de apoio formado por colegas médicos. Todos ficaram pasmos quando ele contou do melanoma. Depois de incentivá-lo a falar, cada um demonstrou seu choque e tristeza. Julius não conseguiu dizer mais nada, nem ninguém. Por duas vezes, alguém começou a falar e parou, depois foi como se o grupo concordasse tacitamente que as palavras eram desnecessárias. Nos vinte minutos finais, ficaram todos em silêncio. Esses silêncios prolongados em grupo costumam ser estranhos, mas aquele foi diferente, quase consolador. Julius não conseguia admitir, ainda que para si mesmo, que o silêncio parecia sagrado. Mais tarde, achou que as pessoas estavam demonstrando não só tristeza, mas também tirando seus capacetes, atentos, participando e homenageando a vida dele.

E talvez aquela fosse uma forma de homenagear a vida deles mesmos, pensou Julius. O que mais temos? O que mais senão aquele abençoado e milagroso intervalo de ser e estar consciente? Se algo deve ser homenageado e abençoado, deveria ser apenas isso, a incalculável dádiva do mero existir. Viver desesperado porque a vida acaba ou porque não tem outra finalidade maior ou desígnio intrínseco é pura ingratidão. Pensar num criador onisciente e dedicar a vida a um ajoelhar-se sem-fim parece sem sentido. Além de um desperdício: por que dar todo esse amor a um fantasma, quando há tão pouco amor em volta da Terra? Melhor aceitar a solução de Einstein e Spinoza: apenas inclinar a cabeça e bater no chapéu para as elegantes leis e mistérios da natureza, mas tratar de viver.

Essas idéias não eram novas para Julius. Ele sempre soube da finitude e da evanescência da consciência. Mas há saber e saber. E a morte em cena fez com que ficasse mais próximo de realmente saber. Não que tivesse ficado mais sábio, mas a falta de outras coisas — ambição, desejo de sexo, dinheiro, prestígio, aplauso, popularidade — proporcionava uma visão mais pura. Não foi esse desprendimento a verdade pregada por Buda? Talvez fosse, mas ele preferia o caminho dos gregos: tudo pela moderação. Grande parte da graça da vida se perde se nunca tiramos nossos mecanismos de proteção e partilhamos da alegria. Por que correr para a porta de saída antes da hora de fechar?

Alguns dias depois, quando se sentiu mais calmo, com menos ondas de pânico, passou a pensar no futuro. Bob King tinha dito: "Um ano, seria razoável pensar em pelo menos um ano de boa saúde". Mas como passar esse ano? Julius decidiu que o jeito era não deixar que aquele único ano ficasse ruim por ser apenas um.

Certa noite, sem conseguir dormir e precisando se animar um pouco, foi mexer nos livros da biblioteca. Não encontrou nada na sua área que pudesse, mesmo remotamente, aliviar a situação, nada que dissesse como uma pessoa deveria viver, ou encontrar sentido nos dias de vida que ainda lhe restam. Viu então um exemplar bastante manuseado de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. Conhecia bem aquele livro: décadas antes, ele o tinha estudado muito quando escrevia um artigo sobre a grande, mas não reconhecida, influência de Nietzsche sobre Freud. Achava Zaratustra um livro corajoso, que, mais que qualquer outro, ensina como reverenciar e celebrar a vida. Sim, podia ser a resposta. Ansioso demais para ler com método, percorreu as páginas aleatoriamente e leu algumas linhas que estavam sublinhadas.

"Mudar" foi assim para "eu quis assim" é o que chamo de redenção.

Entendeu que as palavras de Nietzsche significavam que era preciso escolher sua vida — ele tinha que usufruí-la em vez de ser "usufruído" por ela. Em outras palavras, tinha que amar seu destino. E, acima de tudo, havia a pergunta que Zaratustra sempre fazia — se gostaríamos de repetir a mesma vida eternamente. Uma idéia curiosa e, quanto mais Julius pensava nela, mais seguro se sentia: a mensagem de Nietzsche para nós era viver de forma a querer a mesma vida sempre.

Continuou folheando as páginas e parou em dois trechos bem sublinhados por tinta rosa. "Complete sua vida." "Morra na hora certa"

Isso mesmo. Viva o melhor possível e, só então, morra. Não deixe nada por viver. Julius costumava comparar as idéias de Nietzsche a um teste de Rorschach, pois tinham tantos pontos de vista opostos que a conclusão dependia de quem lesse — ou, no teste, de quem olhasse. Naquele instante, leu de uma forma bem diferente. A presença da morte incitava a uma leitura diferente e mais ampla: página pós página, ele percebeu uma ligação panteísta que não tinha visto antes. Por mais que Zaratustra exaltasse, até glorificasse a solidão, por mais que exigisse o isolamento para poder pensar, ainda assim estava preocupado em amar e exaltar os outros, em ajudá-los a se aperfeiçoar e se exceder, em compartilhar com eles sua maturidade. Compartilhar sua maturidade — isso era com ele, pensou Julius.

Colocou o livro de volta na estante, sentou-se no escuro e ficou olhando o farol dos carros que atravessavam a ponte Golden Gate, pensando nas palavras de Nietzsche. Após alguns minutos, conseguiu: descobriu o que fazer e como passar seu último ano de vida. Iria viver exatamente do mesmo jeito que o ano anterior e o antes do anterior. Gostava de ser terapeuta, gostava de se ligar a outras pessoas e ajudar a trazer algo à vida. Talvez seu trabalho fosse uma sublimação da ligação que tinha com a mulher. Talvez ele precisasse do aplauso, da ratificação e da gratidão daqueles a quem ajudava. Mesmo assim, mesmo se houvesse motivos latentes, ele estava grato pela função que tinha. Abençoada seja ela!

Julius foi até a parede de arquivos, abriu uma gaveta cheia de fichas e de transcrições de sessões gravadas com pacientes há anos. Olhou os nomes: cada ficha era um monumento a um pungente drama humano que um dia se desenrolou naquela mesma sala. Enquanto olhava as fichas, a maior parte dos rostos veio imediatamente à sua memória. Alguns rostos sumiram, mas, após ler poucos parágrafos das anotações, também voltavam. Outros foram realmente esquecidos, rostos e histórias perdidos para sempre.

Como a maioria dos terapeutas, Julius tinha dificuldade em lidar com os repetidos ataques ao campo da terapia. Os ataques vinham de várias direções: de empresas farmacêuticas e de seguros de saúde que financiavam pesquisas superficiais para provar a eficácia das drogas e das terapias mais curtas. Ataques dos meios de comunicação, que não se cansavam de ridicularizar os terapeutas. Dos behavioristas. Dos milhares de palestrantes sobre motivação; das hordas de curandeiros e de seitas da Nova Era, todos competindo para ganhar quem tem algum problema. E, claro, havia dúvidas que vinham da própria medicina, como as suscitadas pelas incríveis descobertas neurobiológicas sobre moléculas, relatadas com freqüência cada vez maior e fazendo até os terapeutas mais experientes questionarem a importância de seu trabalho.

Julius não era imune a esses ataques e muitas vezes duvidava da eficácia do tratamento que oferecia. E com a mesma freqüência, se acalmava. Claro que ele era um psicanalista eficiente. Claro que ele oferecia algo de valor para a maioria dos pacientes, talvez até para todos.

Mas a dúvida continuava: "Será que você foi realmente, verdadeiramente, útil para seus pacientes? Talvez só tenha ajudado os que iam melhorar de qualquer jeito."

Não. Errado! Não fui eu que aceitei os maiores desafios?

Argh, agora chega! Qual foi a última vez que você realmente se esforçou, que chegou a um flagrante limite no tratamento? Ou enfrentou um caso de esquizofrenia grave ou um paciente de comportamento bipolar?

Continuou a mexer em velhas fichas e surpreendeu-se com a quantidade de informação pós-terapia que tinha, obtidas através de eventuais contatos depois da análise terminada, consultas de reciclagem, encontros casuais com ex-pacientes ou recados trazidos por novos pacientes, indicados por antigos. Mesmo assim, será que ele fez uma grande diferença para aquelas pessoas? Talvez os resultados fossem evanescentes. Talvez muitos de seus pacientes bem-sucedidos tivessem tido uma recaída e não lhe contaram por pura bondade.

Tinha consciência de seus fracassos também com as pessoas que não estavam preparadas para seu avançado estilo de tratamento. "Espera aí, Julius", pensou ele. "Como sabe que foram realmente fracassos? Fracassos para sempre} Você nunca mais viu os pacientes. Todo mundo sabe que muita gente amadurece tarde."

Bateu os olhos na pilha de fichas de Philip Slate. Por falar em fracasso, pensou ele, esse foi um. Fracasso antigo e de bom tamanho. Philip Slate. Foi há mais de vinte anos, mas a imagem dele continuava nítida. Os cabelos castanhos-claros penteados para trás, o nariz fino e elegante, as maçãs salientes que davam um toque de nobreza ao rosto e aqueles agitados olhos verdes que lembravam o mar do Caribe. Pensou em quanto detestava tudo nas sessões com Philip. Exceto uma coisa: o prazer de olhar aquele rosto.

Philip Slate era tão alienado de si mesmo que nunca pensou em olhar para dentro, preferindo surfar na superfície da vida e dedicar toda a sua energia ao sexo. Graças à sua bela estampa, não lhe faltavam parceiras. Julius balançou a cabeça ao passar os olhos pela ficha de Philip: três anos de tratamento, todo aquele envolvimento, apoio e afeto, todas aquelas interpretações sem uma gota de progresso. Incrível! Talvez ele não fosse o psicanalista que achava que era.

Bom, não tire conclusões, pensou. Por que Philip faria um tratamento por três anos, se não recebesse nada em troca? Por que continuaria a gastar todo aquele dinheiro por nada? E Deus sabe que Philip detestava gastar dinheiro. Talvez as sessões tivessem mudado Philip. Talvez ele fosse uma pessoa que amadurece tarde, um daqueles pacientes que precisam de tempo para digerir o alimento dado pelo analista, daqueles que guardam a boa comida do terapeuta e levam para casa, como um cachorro que guarda o osso para roer depois, sozinho. Julius teve pacientes tão competitivos que escondiam as melhoras só para não darem ao terapeuta a satisfação (e o poder) de tê-los ajudado.

Depois que pensou em Philip Slate, Julius não conseguiu mais tirá-lo da cabeça. Era como se Philip tivesse cavado um buraco e se enraizado lá dentro. Exatamente igual ao melanoma. Seu fracasso com Philip se transformou no símbolo de todos os seus fracassos na terapia. O caso de Philip Slate tinha algo peculiar. De onde ele tirava toda aquela força? Olhou a ficha e leu a primeira anotação, feita vinte e cinco anos antes.

Philip Slate — 11 de dezembro de 1980

Vinte e seis anos, solteiro, branco, químico, trabalha na DuPont — cria novas fórmulas de pesticidas —, muito bonito, veste-se em estilo casual mas sofisticado, formal, senta-se reto, poucos gestos, não demonstra sentimentos, sério, ausência de humor, não ri nem sorri, só negócios, nenhuma relação social relatada. Recomendado pelo clínico dele, Dr. Wood.

Maior queixa: "Sou dominado, contra minha vontade, por impulsos sexuais".

Por que resolveu se tratar agora? Gota d’água foi há uma semana, fato relatado como se fosse decorado.

Cheguei de avião a Chicago para uma reunião de trabalho, saí no saguão do aeroporto, procurei o telefone mais próximo e consultei minha lista de mulheres na cidade com quem pudesse fazer sexo naquela noite. Estava sem sorte! Todas tinham compromisso. Claro: era sexta-feira à tarde. Eu sabia que ia a Chicago, podia ter ligado antes, até semanas antes. Depois de falar com o último nome da agenda, desliguei e pensei: "Que ótimo, assim posso ler e dormir bem, que era o que realmente queria fazer".

Paciente diz que ficou assustado a semana toda com essa frase, essa contradição: "O que realmente queria fazer", que é o motivo específico para procurar tratamento. "É o que quero ver na terapia", ele diz. "Dr. Hertzfeld, se o que realmente quero é ler e dormir bem, por que não posso, não consigo fazer isso?"

Aos poucos, Julius se lembrou de mais detalhes da análise de Philip Slate. Tinha ficado intelectualmente intrigado com o paciente. Na época da primeira consulta, Julius estava escrevendo um artigo sobre análise e vontade, e a pergunta de Philip — "Por que não consigo fazer o que realmente quero?" — era uma ótima abertura para o texto. Além do mais, lembrou-se da incrível imutabilidade de Philip: após três anos de tratamento, parecia não ter sido afetado, nem mudar nada. E estava mais dominado pelo sexo do que nunca.

Que fim teria levado Philip Slate? Não teve mais notícia desde que o paciente interrompeu de repente o tratamento, há vinte e dois anos. Mais uma vez, Julius se perguntou se, sem saber, ele teria sido útil a Philip. Subitamente, precisou saber aquilo, parecia uma questão de vida ou morte. Pegou o telefone e discou "auxílio à lista".

 

Êxtase no ato da cópula. É isso! Essa é a verdadeira essência e cerne de tudo, a meta e a finalidade de toda a existência.

Alô, é Philip Slate?

Pois não, é ele.

Aqui quem fala é o Dr. Hertzfeld. Julius Hertzfeld.

Julius Hertzfeld?

Uma voz do seu passado.

Passado distante. Período plistoceno. Julius Hertzfeld. Incrível, deve ter quantos anos? No mínimo, vinte. E a que devo o telefonema?

Bem, Philip, estou ligando por causa de pagamento. Acho que você ficou devendo a nossa última sessão.

Como? A última sessão? Mas tenho certeza de que (...)

É brincadeira, Philip. Desculpe, há coisas que não mudam, o velho aqui continua animado e desreprimido. Agora vou falar sério. Para resumir, estou ligando porque estou com problemas de saúde e pensando em me aposentar. Enquanto amadurecia essa idéia, fui tendo uma necessidade irresistível de encontrar alguns ex-pacientes, só para acompanhar o caso, satisfazer minha curiosidade. Posso explicar melhor depois, se você quiser. Então, pergunto: "Poderia me encontrar? Conversar durante uma hora? Rever nosso tratamento e dizer o que você tem feito? Será interessante para mim e vai me ajudar. Quem sabe? Talvez seja para você também."

Hum, uma hora. Por que não? Suponho que sem cobrar?

Não, a não ser que você queira me cobrar, Philip, estou pedindo o seu tempo. Pode ser no final desta semana? Digamos, na sexta à tarde?

Sexta? Ótimo. Combinado. Dou-lhe uma hora, às treze. Não precisa pagar, mas desta vez vamos nos encontrar no meu consultório. Estou na Union Street, 431. Perto da Franklin. Procure o número do consultório no quadro da portaria, estou em Dr. Slate. Agora também sou terapeuta.

Julius teve um arrepio ao desligar o telefone. Girou a cadeira e esticou o pescoço para dar uma olhada na ponte Golden Gate. Depois daquela ligação, precisava ver alguma coisa bonita. E sentir um pouco de calor nas mãos. Encheu de fumo Balkan Sobranie seu cachimbo de espuma do mar, acendeu o fósforo e tragou.

Ah, que delícia, pensou Julius, aquele sabor cálido de terra no fumo da Latakia, aquele cheiro delicioso de mel não tinha igual no mundo. Difícil acreditar que não fumava há tantos anos. Entrou num devaneio e pensou no dia em que parou de fumar. Devia ter sido logo depois daquela consulta ao dentista, seu vizinho de consultório, o velho Dr. Denboer, que morreu há vinte anos. Vinte anos, será possível? Julius ainda era capaz de ver muito bem a cara comprida de holandês e os óculos de aro dourado. O velho Dr. Denboer estava embaixo da terra há vinte anos. E ele, Julius, continuava em cima. Por enquanto.

— Essa bolha no céu da boca parece algum problema. Vamos precisar de uma biópsia — disse o Dr. Denboer, balançando de leve a cabeça. E, embora o resultado da biópsia fosse negativo, chamou a atenção de Julius porque na mesma semana foi ao enterro de Al, seu velho parceiro de tênis, tabagista, morto de câncer do pulmão. Influiu também o fato de estar lendo Freud, vida e morte, de Max Schur, médico de Freud, que contava como o câncer, causado por fumar charuto, devorou aos poucos o palato, a mandíbula e, finalmente, a vida de Freud. O médico prometeu ajudar Freud a morrer quando fosse a hora e, no dia em que Freud finalmente disse que estava com tantador que não fazia mais sentido continuar vivendo, Schur mostrou ter palavra. Aplicou uma dose fatal de morfina. Isso é que é médico. Hoje, aonde se vai achar um Dr. Schur?

Mais de vinte anos sem fumar e também sem comer ovos, queijos ou gorduras animais. Abstinência com saúde e alegria. Até o dia daquele maldito exame clínico. Agora, podia tudo: fumar, tomar sorvete, comer costeleta de porco, ovos, queijo, tudo. Que diferença fazia? Que diferença fazia qualquer coisa? Dentro de um ano Julius Hertzfeld estaria enterrado, as moléculas dispersas, à espera da próxima tarefa. E mais cedo ou mais tarde, em alguns milhões de anos, todo o sistema solar estaria acabado.

Sentindo que a cortina do desespero estava começando a baixar, Julius passou a pensar no telefonema para Philip Slate. Philip, terapeuta? Como era possível? Lembrava dele como um homem frio, insensível, indiferente aos outros. A julgar pelo telefonema, continuava o mesmo. Julius segurou o cachimbo e balançou a cabeça em silenciosa surpresa, enquanto abria a ficha de Philip e continuava lendo as anotações transcritas da primeira sessão.

Problema atual: Dominado pelo sexo desde os 13 anos — masturbação compulsiva da adolescência até hoje (às vezes, quatro a cinco vezes por dia), obcecado por sexo, masturba-se para se acalmar. Passou maior parte da vida fixado em sexo: "O tempo que gastei correndo atrás de mulheres, poderia ter feito um doutorado em filosofia, chinês em dialeto mandarim e astrofísica".

Relacionamentos: Solitário. Mora com cachorro em casa pequena. Sem amigos homens. Nenhum. Nem contato com conhecidos do passado, do colégio, da faculdade, do doutorado. Muito isolado. Jamais teve relacionamento duradouro com mulher. Evita relações que durem (prefere sair uma noite só). Às vezes chega a ver uma mulher durante um mês — em geral, a mulher rompe, porque quer mais dele ou se irrita por estar sendo usada ou porque ele encontra outras. Deseja novidade (gosta da caçada sexual), mas nunca se sacia. Às vezes, quando viaja, atrai uma mulher, faz sexo, se livra dela e uma hora depois sai do hotel à caça, outra vez. Mantém registro das parceiras que teve; nos últimos doze meses fez sexo com noventa mulheres. Diz tudo isso sem qualquer emoção — nem vergonha, nem vantagem. Fica ansioso se não tem um encontro à noite. Sexo costuma fazer o efeito de um Valium. Depois do sexo, fica calmo o resto da noite e pode ler tranqüilo. Sem atividades ou fantasias homossexuais.

Como é uma noite típica? Sai cedo, atrai uma mulher num bar, vai para a cama (prefere antes de jantar), livra-se da mulher o mais rápido que pode —; se possível, sem ter que lhe pagar jantar, mas em geral acaba sendo obrigado. Importante ter maior tempo para ler antes de dormir. Não assiste tevê, não vai ao cinema, não tem vida social, não pratica esporte. Único lazer é ler e ouvir música clássica. Leitor voraz dos clássicos, história e filosofia; nada de ficção, nada atual. Queria falar nos filósofos Zeno e Aristarco, seus atuais interesses.

Passado: Nasceu em Connecticut, filho único, classe média alta. Pai banqueiro que se suicidou quando Philip tinha 13 anos. Não sabe das circunstâncias ou dos motivos do suicídio, vaga idéia de que o pai piorou com as críticas contínuas da mãe. Amnésia da infância — lembra pouco dos primeiros anos e nada do enterro do pai. Mãe casou-se de novo quando ele tinha 24 anos. Solitário na escola, estudioso fanático, nunca teve amigos próximos e depois que entrou para Yale, aos 17 anos, afastou-se da família. Fala com a mãe pelo telefone uma ou duas vezes por ano. Não conhece o padrasto.

Trabalho: Químico de sucesso — criou novos pesticidas à base de hormônios, para a DuPont. Trabalha das 8 às 17 horas, sem grande interesse pela área. De uns tempos para cá tem se entediado. Mantém-se informado das pesquisas em sua área, mas só dentro do horário de trabalho. Alto salário e possui ações de valor na bolsa de valores. Retentivo, gosta de verificar as aplicações e controlar os investimentos, almoça sempre sozinho, estudando o movimento das bolsas.

Impressão: Esquizóide, compulsivo sexual — muito distante / não olhou para mim / impressão de nada pessoal entre nós —, não demonstra relacionamentos pessoais. Respondeu à pergunta sobre que impressão teve de mim com cara de surpresa, como se eu estivesse falando catalão ou suaíli. Parecia irritado e fiquei pouco à vontade com ele. Sem qualquer senso de humor. Nada. Muito inteligente, articulado, mas de poucas palavras — me faz trabalhar duro. Muito preocupado com o preço do tratamento (embora possa pagar com folga). Pediu abatimento no preço, recusei. Pareceu insatisfeito por eu começar com um pouco de atraso; perguntou logo se podia compensar o atraso no final da sessão para não ter prejuízo. Perguntou duas vezes com que antecedência tinha de cancelar uma sessão para não precisar pagar.

Fechando a pasta, Julius pensou: "Agora, vinte e cinco anos depois, Philip é terapeuta. Existe alguém no mundo menos adequado para esse trabalho? Ele parece o mesmo: sem senso de humor, preocupado com dinheiro (vai ver que eu não devia fazer aquela brincadeira da falta de pagamento). Terapeuta sem senso de humor? E uma pessoa tão fria. E aquela exigência de marcar o encontro no consultório dele." Julius teve outro arrepio.

 

A vida é uma coisa miserável. Decidi passar a vida pensando nisso.

A Union Street estava ensolarada e animada. O tilintar dos talheres e o som alegre de conversa de almoço vinha das mesas apertadas dos restaurantes na calçada (Prego, Beetlenut, Exotic Pizza e Perry's). Balões azuis e vermelhos amarrados nos parquímetros avisavam da liquidação de fim de semana na calçada. Enquanto ia para o consultório de Philip, Julius mal olhou as pessoas almoçando, nem as barracas com pilhas de roupas de grife do verão. Também não olhou nenhuma de suas vitrinas preferidas, a loja de móveis japoneses antigos Morita e a loja tibetana Asian Treasures, com o alegre telhado colorido do século XVIII mostrando uma incrível mulher guerreira, que ele jamais deixava de admirar quando passava por lá.

Também não pensou em morte. As dúvidas em relação a Philip Slate fizeram com que não pensasse naquelas coisas inquiétantes. Primeiro, a dúvida em relação à própria memória, como conseguiu lembrar de Philip com tanta clareza. Onde ficaram escondidos o rosto, o nome e a história de Philip durante todos aqueles anos? Era difícil acreditar que a lembrança de toda a sua relação com Philip era um processo neuroquímico localizado em algum ponto do córtex cerebral. Era provável que o paciente estivesse numa intricada rede "Philip" de neurônios conectados que, quando acionados pelos neurotransmissores certos, entravam em ação e projetavam uma imagem de Philip numa tela em seu córtex visual. Achou incrível pensar que tinha um pequeníssimo robô projecionista dentro do cérebro.

Mais intrigante ainda era o enigma de querer encontrar Philip. De todos os pacientes antigos, por que escolheu aquele para levantar todo o seu arquivo de memória? Seria apenas por que o tratamento foi tão malsucedido? Certamente, era mais que isso. Afinal, havia muitos outros pacientes que ele não tinha conseguido ajudar. Mas quase todos os rostos e nomes dos fracassos tinham sumido sem deixar vestígio. Talvez porque a maioria dos fracassos tivesse largado o tratamento logo. Philip era um fracasso incomum, que tinha insistido. Puxa, como insistiu! Em três frustrantes anos, nunca faltou a uma sessão. Nunca chegou atrasado um minuto, era caro demais para desperdiçar. Até que um dia, sem qualquer aviso prévio, anunciou de forma simples e definitiva, no final da sessão, que aquela era a última.

Mesmo quando Philip interrompeu a análise, Julius ainda o considerou tratável, mas sempre achou que todo mundo era. Por que fracassou? Philip tinha a intenção de resolver seus problemas, era desafiador, inteligente, com cabeça para pensar. Embora Julius raramente aceitasse um paciente do qual não gostasse, não havia nada de pessoal em não gostar de Philip: ninguém gostava. Bastava lembrar que nunca teve amigos.

Embora pudesse não gostar de Philip, adorava o enigma intelectual que ele representava. Sua maior reclamação ("Por que não posso fazer o que realmente quero?") era um ótimo exemplo de paralisia da vontade. E o tratamento podia não ter sido útil, porém foi muito bom para os textos de Julius, teve muitas idéias a partir das sessões, usadas em seu festejado artigo O terapeuta e a vontade, e em seu livro Desejar, querer e agir. Achou de repente que talvez tivesse explorado Philip. Talvez naquele momento, de posse de um senso maior de ligação, pudesse se redimir, pudesse conseguir o que não pôde antes.

O número 431 da Union Street era um modesto prédio de esquina, dois andares, de tijolos aparentes. No saguão, Julius viu o nome afixado na parede: "Philip Slate, Ph.D., Orientação Filosófica". Orientação filosófica? Que diabo seria aquilo? Daqui a pouco, Julius ironizou, teremos barbeiros oferecendo terapia "tonsorial" e verdureiros anunciando aconselhamento "verdurial" e "legumial". Subiu a escada e tocou a campainha.

Uma cigarra soou enquanto a tranca da porta se abria com um clique e Julius entrou numa saleta de espera de paredes nuas, com apenas uma poltrona de dois lugares de vinil preto pouco convidativa. Philip estava na porta do consultório propriamente dito e, sem se aproximar, fez sinal para Julius entrar. Não estendeu a mão para cumprimentar.

Julius comparou Philip com a imagem que tinha na memória. Combinava bastante. Não havia mudado muito nos últimos vinte e cinco anos, exceto por algumas rugas em volta dos olhos e uma certa flacidez no pescoço. Os cabelos castanhos-claros continuavam penteados para trás, os olhos verdes ainda eram profundos, ainda arredios. Julius lembrava que raras vezes seus olhos haviam encontrado os de Philip em todos aqueles anos juntos. Philip lembrava um daqueles colegas muito arrogantes, que ficavam sem tomar notas na aula, enquanto ele e todos os demais queriam pegar tudo que pudesse aparecer depois, numa prova.

Ao entrar no consultório, Julius pensou em fazer graça com aqueles móveis espartanos: uma mesa gasta e atulhada de coisas, duas cadeiras descombinadas, com cara de desconfortáveis, uma parede enfeitada só com um diploma. Mas pensou melhor, sentou-se empertigado na cadeira que Philip mostrou e aguardou o seu comando.

Bom, quanto tempo. Muito tempo — Philip falava com voz formal, profissional, e não demonstrou nervosismo em liderar a entrevista e assim trocar de papel com seu antigo terapeuta.

Vinte e dois anos. Consultei meus arquivos.

E qual o motivo para me procurar, Dr. Hertzfeld?

Quer dizer que não vamos bater um papinho antes? — perguntou Julius, ao mesmo tempo que pensou "não, esqueça!", lembrando que Philip não tinha senso de humor.

Philip parecia não ter se perturbado. — Essa é uma técnica elementar de entrevistas, Dr. Hertzfeld. O senhor sabe como é. Dar as coordenadas. Já marcamos dia e local (aliás, minha sessão é de sessenta minutos, não os cinqüenta habituais) e o preço, no caso, a ausência de cobrança. Assim, o próximo passo é a meta. Estou tentando me colocar à sua disposição, Dr. Hertzfeld, para que a sessão seja a mais eficiente possível para o senhor.

— Certo, Philip. Agradeço. A pergunta que você fez, "por que agora?", é sempre boa, uso sempre. Foca a sessão. Vai direto ao assunto. Como falei pelo telefone, estou com problemas de saúde, graves, por isso tive vontade de ver e avaliar meu trabalho com os pacientes. Talvez seja a idade, a hora de fazer um balanço de vida. Acho que, quando você tiver sessenta e cinco anos, vai entender.

— Quanto a balanço de vida, tenho de acreditar no que você diz. Não entendi direito o motivo para querer me ver ou a qualquer de seus pacientes, nem tenho interesse nisso. Meus clientes me pagam uma quantia e eu lhes dou minha orientação especializada. Nossa troca termina aí. Quando terminamos, eles sentem que valeu o preço, eu sinto que fiz o melhor que pude. Nem me passa pela cabeça vê-los algum dia, no futuro. Mas estou à sua disposição. Por onde começar?

Julius não costumava se alongar nas entrevistas. Era um de seus pontos fortes; as pessoas achavam que ele acertava direto. Mas, naquele dia, obrigou-se a ir devagar. Estava pasmo com o jeito brusco de Philip, mas não foi lá para lhe dar conselho. Queria apenas a versão honesta do trabalho que fizeram juntos e quanto menos Julius comentasse de seu estado psicológico, melhor. Se Philip soubesse do desespero, da busca de sentido, da necessidade que Julius estava sentindo de ter tido algum papel duradouro na vida do outro, poderia, sem ser por pena, dizer exatamente o que Julius queria ouvir. Ou talvez, devido ao seu espírito antagonista, Philip podia fazer exatamente o inverso.

— Bom, começo agradecendo a boa vontade em aceitar me ver. O que quero é, primeiro, sua opinião sobre o nosso trabalho conjunto, como ajudou você ou não. Segundo — e esse é um pedido mais difícil —, gostaria muito de ter um resumo de sua vida desde a última vez em que nos encontramos. Gosto de saber o final das histórias.

Se ficou surpreso com o pedido, Philip não demonstrou. Calou-se alguns minutos, de olhos fechados, apoiando as mãos na ponta dos dedos. Numa voz cuidadosamente medida, começou: — A história ainda não está no final; na verdade, minha vida mudou tanto nos últimos anos que é como se estivesse começando agora. Mas vou fazer uma cronologia a partir da terapia. Garanto logo que a terapia foi um fracasso absoluto. Uma perda de tempo e de dinheiro. Acho que cumpri meu papel como paciente. Pelo que me lembro, cooperei bastante, trabalhei duro, não faltei às consultas, paguei, lembrei dos sonhos, segui tudo o que você disse. Concorda?

— Se concordo que você foi um paciente participante? Totalmente. Diria até mais, foi dedicado.

Olhando para o teto outra vez, Philip concordou e prosseguiu: — Pelo que me lembro, eu o vi durante três anos inteiros. E grande parte desse tempo, duas vezes por semana. São muitas horas, pelo menos duas mil. Cerca de vinte mil dólares.

Julius quase reagiu. Toda vez que um paciente dizia uma coisa daquelas, o reflexo dele era acrescentar: "um buraco no bolso". E depois mostrar que os temas tratados na análise tinham dificultado a vida do paciente durante tanto tempo que não podiam mudar de uma hora para outra. Costumava dar também um dado pessoal: que sua análise didática tinha sido cinco vezes por semana, durante três anos, somando mais de sete mil horas. Mas Philip, naquele momento, não era paciente dele e Julius não estava lá para convencê-lo de nada. Estava para ouvir. Mordeu o lábio em silêncio.

Philip prosseguiu. — Quando comecei o tratamento com você, eu estava no fundo do poço, na sarjeta, seria mais exato. Trabalhando como químico e criando novas formas de matar insetos, entediado com a profissão, entediado com a vida e com tudo mais, exceto com a leitura de filosofia e a reflexão sobre os grandes enigmas da história. Mas procurei-o por causa de meu comportamento sexual. Lembra disso, não é mesmo?

Julius concordou.

— Eu estava descontrolado. Só queria sexo. Estava obcecado. Insaciável. Tremo de pensar na vida que levava. Queria seduzir o maior número possível de mulheres. Após o coito, a compulsão dava uma breve trégua, mas logo o desejo voltava.

Julius reprimiu um sorriso por Philip usar a palavra coito e pensou no estranho paradoxo de ele mergulhar na carne, mas evitar qualquer palavrão.

Era só nesse curto período logo após o coito que eu conseguia viver plena e harmoniosamente, quando conseguia me conectar com os grandes pensadores do passado.

Lembro de você com os filósofos Aristarco e Zeno.

— Sim, esses e muitos outros desde então, mas as tréguas, os espaços não-compulsivos eram curtos demais. Agora estou livre. Agora estou num plano superior o tempo todo. Mas vou continuar recapitulando minha análise com você. Não é essa a função principal?

Julius concordou.

Lembro de ter ficado muito apegado à nossa análise. Tornou-se outra compulsão, mas infelizmente não substituiu a sexual, apenas coexistiu com ela. Lembro de esperar cada sessão com ansiedade e terminar desapontado. É difícil lembrar muita coisa do que fizemos, acho que tentamos compreender minha compulsão a partir da minha história de vida. Entender, sempre tentávamos entender. Mas todas as soluções me pareciam suspeitas. Nenhuma tese era bem argumentada ou bem estruturada e, pior, nenhuma teve o menor efeito sobre minha compulsão.

E era uma compulsão. Eu sabia que era. E que precisava parar com aquilo. Demorei, mas acabei concluindo que você não sabia como me ajudar e perdi a confiança em nosso trabalho conjunto. Lembro que gastou um tempo enorme explorando meus relacionamentos com os outros e principalmente com você. Isso nunca fez sentido para mim. Não fazia na época. Continua não fazendo. Com o tempo, ficou doloroso encontrar com você, doloroso ficar explorando nosso relacionamento como se ele fosse real ou duradouro ou qualquer outra coisa, menos o que realmente era: a compra de um serviço.

Philip parou e olhou para Julius com as mãos espalmadas para cima, como quem diz: "Você perguntou, aí está a resposta".

Julius estava pasmo. Uma voz, que não parecia ser dele, disse: — Perfeito, ótimo. Obrigado, Philip. Agora, o resto de sua história. O que fez desde então?

Philip juntou a palma das mãos, encostou o queixo nos dedos, olhou para o teto para se concentrar e continuou: — Bom, vejamos. Vou começar pela área do trabalho. Minha capacidade de criar agentes hormonais para impedir a reprodução de insetos foi ótima para a empresa e meu salário foi subindo. Mas eu estava muito entediado com a química. Então, aos trinta anos, venceu um dos seguros que meu pai fez em meu nome. Foi a dádiva da liberdade. Eu tinha como me sustentar por vários anos, então cancelei as assinaturas de publicações sobre química, larguei o trabalho e passei a dar atenção ao que eu realmente queria na vida: ter cultura.

Eu continuava mal, ansioso, obcecado por sexo. Tentei outros analistas, mas nenhum conseguiu me ajudar mais do que você. Um deles, que tinha estudado com Jung, disse que eu precisava mais do que psicanálise. Disse que, para um viciado como eu, a maior esperança de libertação estava na conversão espiritual. Essa sugestão me levou à filosofia da religião, principalmente as idéias e costumes do Extremo Oriente, os únicos que faziam algum sentido. Todos os demais sistemas religiosos não conseguiam abordar as questões filosóficas fundamentais e usavam Deus para evitar a verdadeira análise filosófica. Cheguei a passar algumas semanas em centros de meditação. Foi interessante. Não aplacou minha obsessão, mas tive a impressão de que ali havia alguma coisa interessante. Só que eu ainda não estava preparado para ela.

Enquanto isso, exceto pelo período de castidade forçada no ashram, no centro de meditação, consegui descobrir algumas portas corrediças, e continuei a caçada sexual. Como sempre, fiz sexo com muitas mulheres, às dúzias, às centenas. Às vezes, duas por dia, em qualquer lugar, a qualquer hora que conseguisse uma, exatamente como quando estava me tratando com você. Sexo uma vez, às vezes duas com a mesma mulher, depois passava adiante. Após a primeira vez, nunca era excitante; você deve conhecer o velho ditado que diz: Só se pode ter sexo pela primeira vez, com a mesma garota, uma vez. Philip tirou as mãos do queixo e virou-se para Julius.

Esse ditado era para fazer graça, Dr. Hertzfeld. Lembro que você uma vez disse que era interessante que eu, em todas as horas em que estivemos juntos, jamais contei uma piada.

Julius, que naquele momento não estava com qualquer disposição para bobagens, forçou-se a sorrir, embora sabendo que foi ele quem contou aquela piada para Philip. Pensou em Philip como sendo um grande boneco mecânico com uma chave para dar corda no alto da cabeça. Estava na hora de dar corda outra vez. — E então, o que aconteceu?

Olhando para o teto, Philip continuou: — Então, um dia tomei uma decisão. Já que nenhum terapeuta tinha conseguido me ajudar e, desculpe, inclusive você, Dr. Hertzfeld.

— Já entendi isso — interrompeu Julius e acrescentou, rápido: — Você não precisa se desculpar. Está apenas respondendo as minhas perguntas com sinceridade.

— Desculpe, não tive a intenção. Continuando: como a terapia não tinha me dado uma resposta, resolvi me curar, fazer uma biblioterapia, um tratamento através dos livros, assimilando o pensamento dos maiores sábios que já existiram. Assim, comecei a ler filosofia com método, desde os pré-socráticos até Popper, Rawls e Quine. Após um ano de estudo, minha compulsão sexual não tinha melhorado, mas cheguei a algumas conclusões importantes: estava no caminho certo e a filosofia era o meu negócio. Esse foi um grande passo; lembro de termos comentado que eu não me sentia à vontade em lugar algum.

Julius concordou: — É, também me lembro disso.

Resolvi que, como eu ia passar anos lendo filosofia, podia transformar aquilo numa profissão. Meu dinheiro não ia durar eternamente. Então, fiz mestrado em filosofia, na Columbia. Fui bem, defendi bem minha tese e cinco anos depois fiz o doutorado. Passei a dar aulas e, há dois anos, me interessei em aplicar a filosofia ou, como prefiro chamar, me interessei pela filosofia clínica. E cá estou.

Você não terminou de contar sobre a cura.

Bom, na Columbia, nas minhas leituras, conheci um psicanalista, o analista perfeito que me deu o que ninguém conseguiu.

Ele é de Nova York, não? Como se chama? Na Columbia mesmo? Pertence a que sociedade psicanalítica?

— Ele se chama Arthur — Philip parou e ficou olhando Julius com um meio sorriso.

Arthur?

Arthur Schopenhauer, meu terapeuta.

Schopenhauer? Você está brincando comigo, Philip.

Nunca fui tão sério.

Conheço pouco Schopenhauer, só os clichês sobre seu enorme pessimismo. Nunca ouvi o nome dele citado no contexto da terapia. Como ele conseguiu ajudar você? O quê?

Detesto ter que interromper, Dr. Hertzfeld, mas tenho um cliente chegando e até hoje não consigo me atrasar para um compromisso, isso não mudou. Por favor, me dê seu cartão de visitas. Numa outra ocasião conto mais sobre ele, o terapeuta feito para mim. Não exagero ao dizer que devo a vida ao gênio de Arthur Schopenhauer.

 

Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Gênio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem.

1787 — O gênio:

Começo difícil e falso início

Começo difícil: o gênio tinha apenas dez centímetros de comprimento quando houve a tempestade. Em setembro de 1787, o mar amniótico que o envolvia se encapelou, jogando-o de um lado para outro e ameaçando a frágil ligação com a praia uterina. A água do mar recendia a raiva e o medo. Ele foi invadido pelos amargos ácidos da nostalgia e do desespero. Acabaram-se para sempre os suaves e doces dias flutuando. Sem ter para onde ir e sem esperança de sossego, seus pequenos impulsos neurais dilataram-se e espocaram em todas as direções.

O que se aprende quando pequeno, aprende-se melhor. Arthur Schopenhauer nunca esqueceu suas primeiras lições.

Falso início, ou como Arthur Schopenhauer quase foi inglês: — Arthurrr. Arthurrr. Arthurrr — Heinrich Florio Schopenhauer escandia cada letra. Arthur era um excelente nome para o futuro chefe da importante empresa comercial Schopenhauer.

Era o ano de 1787 e Johanna, a jovem esposa de Heinrich, estava grávida de dois meses quando ele resolveu: se o filho fosse menino, ia se chamar Arthur. Homem honrado, Heinrich não permitia que nada viesse antes do dever. Exatamente como seus antepassados entregaram-lhe a direção da grande casa comercial Schopenhauer, ele a passaria para o descendente. Os tempos estavam difíceis, mas Heinrich tinha certeza de que seu futuro filho iria dirigir a empresa rumo ao século XIX. Arthur era um nome perfeito para o cargo. Escrevia-se igual nas maiores línguas européias, passaria com facilidade por todas as fronteiras do país. Mas, acima de tudo, era um nome inglês!

Durante séculos, os antepassados de Heinrich comandaram os negócios com grande eficiência e sucesso. O avô hospedou Catarina, a Grande, da Rússia e, para garantir seu conforto, mandou jogar conhaque no piso de todos os aposentos da hóspede e atear fogo para que ficassem secos e perfumados. O pai de Heinrich recebeu a visita de Frederico, rei da Prússia, que passou horas tentando inutilmente convencê-lo a mudar a empresa de Danzig, na Polônia, para a Prússia. A direção da grande casa comercial estava agora com Heinrich, que garantia que um Schopenhauer com o nome de Arthur levaria a empresa a um brilhante futuro.

A Schopenhauer vendia grãos, madeira e café, e era, há muitos anos, uma das maiores empresas de Danzig, a respeitável cidade integrante da Liga Hanseática que dominava o comércio no Mar Báltico. Mas os maus tempos tinham chegado à grande cidade livre. Com a Prússia ameaçando pelo lado oeste, a Rússia pelo leste e a Polônia fraca, incapaz de continuar garantindo a soberania da cidade, Heinrich tinha certeza de que os tempos de liberdade e estabilidade comercial de Danzig estavam perto do fim. A Europa estava imersa em distúrbios políticos e financeiros, com exceção da Inglaterra. A Inglaterra era o rochedo. Era o futuro. A empresa e a família Schopenhauer teriam um porto seguro na Inglaterra. Mais que um porto seguro, a empresa iria prosperar se seu futuro dirigente fosse nascido lá e tivesse nome inglês. Herr Arthurrr Schopenhauer, ou melhor, Mister Arthurrr Schopenhauer, um inglês capitaneando a empresa, era essa a senda para o futuro.

Assim, sem dar ouvidos aos protestos da esposa grávida, que era quase uma adolescente e implorava para ter o primeiro filho na presença tranqüilizante da mãe, Heinrich partiu com ela a reboque, na longa viagem rumo à Inglaterra. A jovem Johanna ficou consternada, mas teve de obedecer à vontade irredutível do marido. Depois que se instalaram em Londres, ela retomou seu temperamento extrovertido e seu encanto logo conquistou a sociedade. Escreveu em seu diário de viagem que recebeu muito apoio dos novos e simpáticos amigos ingleses e que logo se sentiu cheia de atenções.

Atenção e carinho demais para o casmurro Heinrich, cujo ciúme logo se transformou em pânico. Nervoso, sentindo uma tensão que parecia prestes a arrebentar no peito, ele tinha de fazer alguma coisa. Então, saiu de Londres num rompante, levando a esposa grávida de quase seis meses de volta a Danzig, num dos invernos mais rigorosos do século. Anos depois, Johanna escreveu como se sentiu ao ser arrancada de Londres: "Ninguém me ajudou, tive de vencer o sofrimento sozinha. O homem me arrastou por metade da Europa para conseguir controlar a própria inquietação."

Esse, portanto, foi o tempestuoso ambiente da gestação do gênio: um casamento sem afeto, uma mãe assustada e revoltada, um pai ansioso e ciumento, duas árduas viagens pela Europa no inverno.

 

Uma vida feliz é impossível. O máximo que se pode ter é uma vida heróica.

Julius saiu atordoado do consultório de Philip. Desceu a escada apoiado no corrimão, trôpego, e cambaleou ao sair na luminosidade do dia. Ficou em frente ao prédio, sem saber se virava à esquerda ou à direita. A liberdade de uma tarde sem compromissos trouxe confusão em vez de alegria. Julius sempre foi uma pessoa ocupada. Quando não estava atendendo pacientes, tinha projetos e atividades (escrever, dar aulas, jogar tênis, pesquisar) exigindo sua atenção. Mas, naquele dia, nada parecia importante. Ele desconfiava de que nada jamais teve importância, sua cabeça deu importância a coisas e depois, esperta, apagou os rastros. Naquele dia, ele enxergou através do emaranhado de uma vida. Não tinha nada importante para fazer e caminhou lentamente, sem rumo, pela Union Street.

Quase no fim da área de escritórios depois da Fillmore Street, uma velha se aproximou, empurrando ruidosamente um andador. — Puxa, que figura! — pensou Julius. Virou o rosto para o lado, depois olhou para trás para avaliar. As roupas da mulher (vários suéteres sob um enorme casacão) não eram para um dia quente como aquele. A mulher tinha cara de esquilo e mexia a boca sem parar, certamente para segurar a dentadura. Mas o pior era aquela bola de carne numa das narinas, uma verruga rosada e transparente do tamanho de uma uva, com vários pêlos duros e compridos.

Velha idiota — pensou novamente Julius, e acrescentou rápido: — Não deve ser mais velha que eu. Na verdade, ela sou eu amanhã, com a verruga, o andador, a cadeira de rodas. — Ao se aproximar dela, ouviu-a resmungar: — Vamos ver o que tem nessas lojas aí na frente. O que deve ter? O que vou achar lá?

Senhora, não tenho a menor idéia, estou dando uma volta por aqui — gritou Julius para ela.

Não estava falando com você.

Não há mais ninguém por perto.

Isso não significa que eu esteja falando com você.

Se não era comigo, era com quem ? — Julius colocou as mãos em concha na testa e fingiu procurar para cima e para baixo na rua vazia.

Isso é da sua conta? Malditos malucos de rua — resmungou a mulher, batendo o andador no chão e seguindo.

Julius teve um calafrio. Olhou em volta para garantir que ninguém tinha visto a cena. "Puxa", pensou, "perdi as estribeiras; que merda eu estava fazendo? Ainda bem que não tenho pacientes esta tarde. Sem dúvida, ver Philip Slate não me fez bem."

Virou-se na direção do inebriante cheiro de café da Starbucks e resolveu que uma hora com Philip dava direito a um expresso duplo. Sentou-se numa cadeira à janela e ficou assistindo às pessoas passando na calçada. Nenhum velho à vista, nem dentro, nem fora do café. Com sessenta e cinco anos, ele era a pessoa mais velha por ali, o mais velho dos velhos, envelhecendo ainda mais por dentro, à medida que o melanoma continuava sua silenciosa invasão.

Duas balconistas ousadas flertavam com alguns fregueses da loja. Eram aquelas garotas que jamais olhavam para o lado dele, jamais flertaram com ele quando jovem, nem trocaram olhares depois que envelheceu. Era hora de ver que sua vez jamais chegaria, que aquelas garotas casadoiras e peitudas, com cara de Branca de Neve, jamais chegariam para ele com um sorriso tímido e perguntariam: "Ué, você não tem aparecido aqui. Como vão as coisas?" Isso não iria acontecer. A vida era bem linear e irreversível.

Chega. Chega de ter pena de si mesmo. Ele sabia o que dizer aos queixosos: trate de olhar para fora, de sair de dentro de você. Sim, era esse o jeito: descobrir como transformar aquela merda em ouro. Por que não escrever sobre o tema? Talvez em estilo de diário ou blog. Depois, algo mais visível (o quê, por exemplo?), talvez um artigo no Journal of the American Psychiatric Association, sobre O psiquiatra frente à morte. Ou algo comercial para o suplemento dominical do New York Times. Podia ser. Por que não um livro? Qualquer coisa como Autobiografia de uma morte. Nada mal! Às vezes, quando o título é forte, o livro vai se escrevendo sozinho. Pediu um expresso, pegou a caneta e desdobrou um saco de papel que achou no chão. Começou a rabiscar, a boca num meio sorriso, pensando na origem humilde de seu grande livro.

Sexta-feira, 2 de novembro de 1990,16 dias após o DDM (Dia da Descoberta da Morte)

Sem qualquer dúvida, procurar Philip Slate foi uma má idéia. Má idéia achar que poderia conseguir alguma coisa dele. Má idéia encontrar com ele. Nunca mais. Philip, terapeuta? Inacreditável, um terapeuta sem empatia, sem sensibilidade, sem afeto. Falei ao telefone que estava com problemas de saúde e que esse era, em parte, o motivo para querer encontrá-lo. E ele nem perguntou o que eu tinha. Sequer um aperto de mão. Frio. Desumano. Ficou a vinte passos de mim. Durante três anos trabalhei à beça por aquele sujeito. Dei tudo a ele. O melhor que eu tinha. Filho da puta ingrato.

Ah, sim, sei o que ele diria. Consigo até ouvir aquela voz precisa e sem alma: — Nós fizemos uma transação comercial: eu dei dinheiro e você deu seus serviços especializados. Paguei por cada hora de consulta. A transação terminou. Estamos quites, não lhe devo nada.

Ele então acrescentaria: — Devo menos que nada, Dr. Hertzfeld, pois o senhor ficou com o melhor da nossa troca. Recebeu o pagamento completo, enquanto eu não recebi nada.

O pior é que ele tem razão. Não me deve nada. Costumo brincar dizendo que a psicanálise é uma vida a serviço. Serviço feito com amor. Não tenho nenhum saldo com ele. Por que esperar retribuição? De todo jeito, seja o que for que eu esteja querendo, ele não tem para dar.

"Não tem para dar", quantas vezes eu disse isso aos meus pacientes, referindo-me a maridos, mulheres, pais e mães. Mesmo assim, não posso largar Philip, esse homem inexorável, empedernido, egoísta. Será que faço uma ode à obrigação que os pacientes têm com seus terapeutas anos depois?

E por que tanto interesse? Por que, dentre todos os meus pacientes, escolhi falar com ele? Continuo sem saber. Achei uma pista na minha pasta de anotações: procurei-o por achar que estava falando com meu fantasma quando jovem. Talvez haja mais de um vestígio de Philip em mim, o eu que nos meus dez, vinte, trinta anos ficou escondido pelos hormônios. Achei que sabia o que ele ia fazer, achei que tinha uma pista para curá-lo. Por isso insisti tanto? Por que dei mais atenção e mais energia a ele do que a quase todos os meus pacientes juntos? Em todo consultório de terapeuta, há sempre um paciente que consome uma quantidade enorme de energia e atenção. Para mim, Philip foi esse paciente durante três anos.

Naquela tarde, Julius voltou para uma casa escura e fria. O filho, Larry, tinha passado o fim de semana com ele, mas foi embora na segunda-feira de manhã para Baltimore, onde fazia pesquisa neurobiológica no Hospital Johns Hopkins. Julius quase ficou aliviado com a saída do filho, pois o olhar angustiado e os esforços carinhosos, porém desajeitados, para confortá-lo deram mais tristeza do que serenidade. Julius pegou o telefone, começou a ligar para Marty, um dos colegas no grupo de apoio, mas estava muito desanimado. Colocou o fone no gancho e ligou o computador para copiar as anotações feitas no saco amassado da Starbucks. Uma notícia o saudou na tela: "Você tem um e-mail" e, para sua surpresa, a mensagem era de Philip. Leu, rápido:

No final de nossa conversa hoje, você perguntou sobre Schopenhauer e como a filosofia dele me ajudou. Também deu a entender que gostaria de saber mais sobre ele. Talvez seja do seu interesse minha palestra no Coastal College, na próxima segunda-feira, às 19 horas. (Sala Toyon, na Fulton Street, 340.) Estou ministrando um curso sobre filósofos europeus e na segunda-feira farei uma breve exposição sobre Schopenhauer (tenho que cobrir dois mil anos em doze semanas). Quem sabe podemos conversar um pouco após a palestra. Philip Slate

Na mesma hora, Julius respondeu: "Obrigado. Estarei lá". Abriu a agenda na segunda-feira seguinte e escreveu a lápis: "Sala Toyon, Fulton Street, 340, 19 horas".

Às segundas-feiras, Julius atendia um grupo de terapia das quatro e meia às seis horas. Mais cedo, nesse dia, ficou pensando se contava ao grupo da doença. Tinha resolvido adiar a notícia para os pacientes individuais até se reequilibrar, mas o grupo colocava um problema diferente: os participantes costumavam falar nele, era bem possível que alguém notasse uma mudança de comportamento e comentasse.

Mas as preocupações foram infundadas. O grupo aceitou a desculpa do resfriado para ele cancelar as duas sessões anteriores e passou a tratar das duas últimas semanas na vida de cada um. Stuart, um pediatra baixo e atarracado, que parecia sempre distraído como se estivesse com pressa para atender o próximo paciente, parecia oprimido e pediu para falar. Foi um pedido totalmente fora do comum; em um ano de grupo, Stuart raramente pediu ajuda. Tinha entrado no grupo por pressão da mulher, que lhe enviou um e-mail dizendo que, se não fizesse uma terapia e mudasse muito, ia largá-lo. Disse também que mandava uma mensagem eletrônica porque ele dava mais atenção ao contato por computador do que a qualquer coisa dita diretamente. Na semana anterior, a mulher tinha radicalizado saindo do quarto do casal, e grande parte da sessão foi passada ajudando Stuart a avaliar seus sentimentos naquela situação.

Julius gostava muito do grupo. Muitas vezes ficava impressionado com a coragem das pessoas quando assumiam novas atitudes e grandes riscos. Aquela sessão também foi assim. Todos apoiaram Stuart por mostrar que estava vulnerável, e a sessão passou rápido. No final, Julius estava bem melhor. Ficou tão preso ao tema da sessão que, por uma hora e meia, esqueceu o próprio desespero. Isso era comum acontecer. Todo terapeuta de grupo sabe das grandes propriedades curativas de um grupo. Muitas e muitas vezes, Julius tinha entrado numa sessão inquieto e saído bem melhor, embora sem ter, é claro, tocado em nenhum problema próprio.

Mal teve tempo para um jantar rápido no We Be Sushi, que ficava perto do consultório. Ia sempre lá e, ao sentar-se, foi saudado pelo chefe dos sushi-men, Mark. Quando não estava acompanhado, preferia ficar no balcão, pois, como todos os seus pacientes, não se sentia à vontade sozinho numa mesa de restaurante.

Julius pediu o de sempre: rolinhos Califórnia, enguia no vapor e um sortido de maf{i vegetariano. Gostava muito de sushi, mas evitava peixe cru por medo de parasitas. Aquela altura, toda aquela batalha contra invasores externos parecia piada! No final, que ironia, o problema seria interno. Foda-se. Julius jogou os cuidados para o alto e pediu um ahi sushi para o surpreso chef. Comeu com grande prazer, antes de correr para a Sala Toyon e seu primeiro encontro com Arthur Schopenhauer.

 

A sólida base de nossa visão do mundo e também o grau de sua profundidade são formados na infância. Essa visão é depois elaborada e aperfeiçoada, mas, na essência, não se altera.

Mamãe e papai Schopenhauer

Zu Hause

Que tipo de pessoa era Heinrich Schopenhauer? Duro, rígido, reprimido, inflexível, orgulhoso. Conta-se que em 1783, cinco anos antes do nascimento de Arthur, a cidade de Danzig foi bloqueada pelos prussianos e havia pouca comida e forragem para os animais. Os Schopenhauer foram obrigados a aceitar que um general inimigo se instalasse na casa de campo deles. Como retribuição, o oficial prussiano ofereceu a Heinrich o privilégio de receber forragem para os cavalos. Mas ele respondeu: — Minhas cocheiras têm bastante forragem, e quando acabar a comida dos cavalos, mando matá-los.

E como era Johanna, a mãe de Arthur? Romântica, gentil, criativa, alegre, coquete. Embora toda a Danzig de 1787 achasse a união de Heinrich e Johanna um grande acontecimento, na realidade foi um trágico desencontro. A família dela, os Troiseners, era de origem modesta e sempre admirou os arrogantes Schopenhauer. Assim, quando Heinrich, aos trinta e oito anos, passou a cortejar Johanna, de dezessete, os pais ficaram muito satisfeitos e Johanna aceitou a escolha deles.

Será que Johanna achava seu casamento um erro? Leia o que escreveu anos depois, quando dava conselhos para moças sobre casamento: "Toda moça que pensa em se casar, fica atraída pelo esplendor, a distinção e o título obtidos através dos laços matrimoniais (...) um erro que terá por conseqüência um duro castigo pelo resto da vida".

"Um duro castigo pelo resto da vida" — duras palavras da mãe de Arthur. Em seus diários, ela confidenciou que antes de ser cortejada por Heinrich, teve um jovem amor que o destino afastou e ela então, resignada, aceitou a proposta de casamento de Heinrich. Será que teve escolha? E bem provável que não. Este típico casamento de conveniência do século XVIII foi acertado pelos pais dela, por questões de posse e posição social. Será que havia amor? Não se falou em amor entre Heinrich e Johanna. Nunca. Mais tarde, em suas memórias, ela escreveu: "Eu não fingia amor ardente, nem ele exigia." Também não havia muito amor para outras pessoas na casa — nem para o pequeno Arthur, nem para a irmã Adele, nascida nove anos depois dele.

O amor dos pais gera amor pelos filhos. Às vezes, ouve-se falar de pais que se amam tanto que consomem todo o amor disponível na casa, deixando apenas cinzas de carinho para os filhos. Mas esse modelo econômico, de amor zero, não faz muito sentido. O inverso parece verdadeiro: quanto mais se ama, mais isso se reflete nos filhos e nos outros, de uma forma afetuosa.

A falta de amor na infância teve graves implicações no futuro de Arthur. As crianças que não recebem carinho materno costumam não se sentir seguras para gostarem de si mesmas, para acreditarem que os outros vão gostar delas ou para gostarem de viver. Na idade adulta, tornam-se distantes, recolhidas em si mesmas, e têm uma relação difícil com os outros. Foi esse o cenário psicológico que formou a visão do mundo de Arthur.

 

Se olharmos a vida em seus pequenos detalhes, tudo parece bem ridículo. É como uma gota d’água vista num microscópio, uma só gota cheia de protozoários. Achamos muita graça como eles se agitam e lutam tanto entre si. Aqui, no curto período da vida humana, essa atividade febril produz um efeito cômico.

Faltando cinco minutos para as dezenove horas, Julius bateu as cinzas de seu cachimbo de espuma e entrou na Sala Toyon. Sentou-se na quinta fila da direita e olhou o auditório: trinta fileiras a partir do estrado onde seria dada a palestra. A maioria dos duzentos lugares estava vazia; havia umas trinta poltronas quebradas e isoladas com um plástico amarelo. Dois mendigos e suas coleções de jornais se espalhavam pelas poltronas da última fila. Cerca de trinta poltronas estavam ocupadas por alunos desleixados, espalhados pelo auditório, com exceção das três primeiras filas que continuavam vazias.

Exatamente como num grupo de terapia, pensou Julius, ninguém quer sentar perto do orientador. Até no seu grupo, naquela tarde, os lugares dos dois lados ficaram vazios para os que chegassem atrasados, e ele brincou dizendo que ficar ao lado dele parecia ser um castigo pelo atraso. Julius pensou na terapia de grupo e seu folclore a respeito de lugar na sala: as pessoas mais dependentes sentam à direita do orientador enquanto os mais paranóicos ficam bem na frente dele. Mas, pela sua experiência, a relutância de sentar ao lado do orientador era a única regra confirmada sempre.

O mau estado e o estrago da Sala Toyon eram típicos do campus do Coastal College da Califórnia, que tinha começado como escola de comércio vespertina, depois se ampliou e funcionou por pouco tempo como escola de administração à tarde, e naquele momento estava em fase de decadência. No caminho para a sala, passando pelo insípido quarteirão de hotéis, restaurantes e delegacias policiais, Julius quase não conseguiu diferençar os estudantes desleixados dos mendigos que moravam por lá. Que professor não se sentiria desmoralizado num lugar como aquele? Julius começou a entender por que Philip queria mudar de profissão e trabalhar em consultório.

Olhou o relógio. Sete horas em ponto e, pontualmente, Philip entrou na Sala, com uniforme profissional de calças caqui, camisa xadrez e jaqueta de veludo grosso, com acabamento de couro nos cotovelos. Tirando as anotações da palestra de uma pasta adequadamente gasta, e mal olhando a platéia, começou:

Este é um resumo da filosofia ocidental, palestra dezoito, sobre Arthur Schopenhauer. Hoje, vou fazer diferente e me aproximar de minha presa de forma mais indireta. Se parecer sem método, peço compreensão, prometo voltar logo ao assunto em pauta. Vamos começar falando sobre os grandes começos da história.

Philip deu uma olhada na platéia buscando algum sinal de compreensão e, não encontrando, apontou para um estudante sentado mais perto dele e mostrou o quadro negro. Depois, soletrou e definiu três palavras e-r-r-a-d-i-o, c-o-m-p-r-e-e-n-s-ã-o-ed-é-b-u-t-s, que o aluno copiou no quadro. Quando o rapaz ia voltar para seu lugar, Philip mostrou uma poltrona na primeira fila e mandou que ficasse lá.

Quanto aos grandes começos, fiquem tranqüilos, vão entender aos poucos por que inicio a palestra assim. Imaginem Mozart encantando a corte imperial vienense ao tocar espineta com perfeição, aos nove anos. Ou, se o nome de Mozart não lhes diz muita coisa (nesse ponto, um leve sorriso do palestrante), pensem em algo mais próximo de vocês, os Beatles, aos dezenove anos, cantando suas músicas para o público de Liverpool.

Outros incríveis começos incluem o extraordinário Johann Fichte. (Sinal para o estudante escrever F-i-c-h-t-e no quadro.) Alguns de vocês lembram desse nome, da última palestra, quando discuti os grandes filósofos idealistas alemães que seguiram Kant no final do século XIII e início do XIX, Hegel, Schelling e Fichte? Dentre esses, a vida e o começo de Fichte foram os mais interessantes, pois ele era um pobre e analfabeto pastor de gansos em Rammenau, pequena aldeia alemã cuja única fama eram os inspirados sermões do padre aos domingos.

Bem, certo domingo, um rico aristocrata chegou à aldeia muito atrasado para ouvir o sermão. Ficou do lado de fora da igreja, desapontado, até que um velho aldeão se aproximou e disse para ele não se preocupar que o pastor de gansos, o jovem Johann, poderia repetir o sermão inteiro para ele. O aldeão chamou o menino que, realmente, repetiu tudo, literalmente. O barão ficou tão impressionado com a incrível memória do menino que patrocinou a educação dele e conseguiu que freqüentasse o Pforta, famoso colégio interno onde mais tarde passaram muitos pensadores alemães famosos, inclusive o tema de nossa próxima palestra, Friedrich Nietzsche.

Johann teve excelente desempenho no colégio e depois na universidade, mas, quando seu mecenas morreu, não pôde se sustentar e aceitou o emprego de tutor numa residência. Foi contratado para dar aulas a um jovem sobre a filosofia de Kant, que ele ainda não tinha lido. Logo se encantou com a obra do divino Kant (...)

Philip de repente olhou para suas anotações e depois para a platéia. Não vendo qualquer sinal de interesse, perguntou, baixinho:

Olá, tem alguém aí na platéia? Kant, Emanuel Kant, Kant, lembram? (Fez sinal para o rapaz do quadro negro escrever K- a - n - t. ) Na semana passada, falamos nele durante duas horas. Kant que, ao lado de Platão, forma a dupla de maiores filósofos do mundo. Garanto uma coisa: Kant será tema no final. Rá-rá, vejo sinais de vida na platéia, movimento, alguns olhos se abrindo. Uma caneta entrando em contato com o papel.

Então, em que parte eu estava? Ah, sim. O pastor de gansos. A seguir, Fichte recebeu um convite para ser tutor particular em Varsóvia, na Polônia, e, sem um tostão, foi a pé até essa cidade. Chegando lá, não conseguiu o emprego. Como estava a poucos quilômetros de Königsberg, cidade natal de Kant, resolveu conhecer o mestre em pessoa. Caminhou dois meses e, ousado, foi direto à casa de Kant, bateu na porta, mas não foi recebido. Kant era metódico e não recebia estranhos. Na semana passada, contei para vocês a monotonia de seus horários, tão rígidos que os habitantes da cidade podiam acertar os relógios quando o viam sair para a caminhada diária.

Fichte achou que não conseguiu falar com o filósofo porque não tinha cartas de recomendação, e resolveu escrever. Num ataque extraordinário de energia criativa, escreveu seu primeiro texto, o famoso Ensaio de uma crítica a toda a revelação, que usava a visão de Kant sobre a ética e o dever, conforme interpretados pela religião. Kant ficou tão impressionado com o texto que não só concordou em receber Fichte como incentivou a publicação do texto.

Devido a um estranho mal-entendido, talvez um golpe de marketing do editor, a Crítica saiu anônima. Era um trabalho tão brilhante que os críticos e os leitores pensaram que fosse uma nova obra de Kant. O filósofo acabou tendo que fazer uma declaração pública de que o autor daquele excelente texto não era ele, mas um jovem muito talentoso chamado Fichte. O elogio de Kant garantiu o futuro de Fichte na filosofia, e um ano e meio depois ele foi convidado para dar aulas na Universidade de Jena.

— Isso — disse Philip, tirando os olhos de suas anotações, absorto, e depois socando o ar numa esquisita demonstração de entusiasmo —, isso é o que chamo um começo!

Nenhum estudante olhou ou deu sinal de notar a breve e estranha demonstração de entusiasmo. Se ele ficou frustrado com a falta de reação da platéia, não demonstrou e, sem se alterar, continuou:

Agora, pensem algo mais próximo de vocês: o começo de grandes atletas. Quem pode esquecer de Chris Evert, Tracy Austin ou Michael Chang, que venceram campeonatos profissionais de tênis aos quinze ou dezesseis anos? Ou os prodígios adolescentes do xadrez Bobby Fischer e Paul Morphy ? Ou José Raul Capablanca, que ganhou o campeonato nacional de xadrez em Cuba aos onze anos?

Por fim, quero falar num começo literário, o mais brilhante de todos os tempos, de um rapaz de vinte e poucos anos que brilhou na literatura com um romance fantástico (...)

Nesse ponto, Philip parou para fazer suspense e olhou para cima, o rosto brilhando de segurança. Tinha segurança do que fazia, isso era evidente. Julius olhou, sem acreditar. O que Philip estava querendo? Que os alunos ficassem na beira das poltronas, trêmulos de curiosidade, se perguntando quem era aquele prodígio literário?

De sua poltrona na quinta fila, Julius virou a cabeça para examinar a platéia: os estudantes, olhos parados, jogados nas poltronas, rabiscavam ou olhavam jornais, fazendo palavras- cruzadas. A esquerda dele, um aluno tinha se esticado sobre duas poltronas e dormia. A direita, no final da fila, um casal de alunos trocava um longo beijo. Na fila bem na frente, um rapaz cutucava o outro e os dois olhavam de esguelha para o fundo da sala. Julius ficou curioso, mas não virou para ver o que era, devia ser a saia de alguma mulher, e voltou sua atenção para Philip.

E quem foi esse prodígio? {Philip insistia.) Seu nome era Thomas Mann. Na idade de vocês, isso mesmo, na idade de vocês, começou a escrever uma obra-prima, um maravilhoso romance chamado Os Buddenbrooks, que publicou quando tinha apenas vinte e seis anos. Thomas Mann, que espero que vocês conheçam, tornou-se uma das maiores figuras do mundo literário no século XX tendo ganho o Nobel da Literatura. (Nesse ponto, soletrou M-a-n-n e B-u-d-d-e-n-b-r-o-o-k-s para seu escriba no quadro negro.) Lançado em 1901, o livro conta a vida de quatro gerações de uma família alemã burguesa e todas as suas vicissitudes.

E o que isso tem a ver com filosofia e com o tema da palestra de hoje? Conforme prometi, saí um pouco do tema central para voltar com mais força ainda.

Julius ouviu um movimento na platéia e o som de passos. Os dois rapazes que tinham se cutucado, bem na frente dele, juntaram seus pertences com estardalhaço e saíram da sala. O casal que se beijava no final da fila tinha ido embora, e até o estudante no quadro negro havia sumido.

Philip continuou:

Para mim, os trechos mais marcantes de Os Buddenbrooks estão no final do romance, quando o protagonista, o velho patriarca Thomas Buddenbrooks, está para morrer. É surpreendente que um escritor com vinte e poucos anos tivesse tal noção e tal sensibilidade em relação ao fim da vida. (Um leve sorriso nos lábios e Philip segurou o livro com páginas marcadas?) Recomendo essas páginas para qualquer pessoa que pretenda morrer.

Julius ouviu o riscar de fósforos; eram dois estudantes que acendiam cigarros ao sair do auditório.

Quando a morte veio buscá-lo, Thomas Buddenbrooks ficou confuso e desesperado. Nada do que ele acreditava o consolava: nem a religião, que há muito tinha deixado de satisfazer às suas necessidades metafísicas, nem seu ceticismo e sua inclinação pelo materia-lismo de Darwin. Nada, nas palavras de Mann, conseguia oferecer ao doente grave uma só hora de calma, ao aproximar-se dos olhos penetrantes da morte.

Nesse ponto, Philip olhou para cima. — O que ocorre a seguir é de grande importância e aqui começo a me aproximar do tema de nossa palestra dessa noite.

Em seu desespero, Thomas Buddenbrooks viu por acaso em sua estante um livro de filosofia barato e mal encadernado, que tinha comprado há anos numa barraca de sebo. Começou a ler e sentiu um conforto imediato. Ficou maravilhado, como diz Mann, "como um mestre podia dominar essa coisa cruel e irônica chamada vida".

A extraordinária clareza de visão no livro de filosofia encantou o doente e as horas se passaram sem que ele parasse de ler. Até chegar ao capítulo intitulado Sobre a morte e sua relação com nossa imortalidade e, inebriado pelas palavras, continuar, como se lesse para viver. Ao terminar, Thomas Buddenbrooks tinha se transformado num homem que encontrou o conforto e a paz que precisava.

O que descobriu o doente? (De repente Philip usou uma voz de oráculo.) Ouça bem, Julius Hertzfeld, porque isso pode ser útil para sua prova final na vida (...)

Chocado por alguém se dirigir diretamente a ele numa palestra, Julius se aprumou na poltrona. Olhou em volta, nervoso, e se surpreendeu ao ver que a platéia estava vazia, todos tinham ido embora, até os dois mendigos.

Mas Philip, imperturbável com sua platéia ausente, continuou, calmo:

— Lerei um trecho dos Buddenbrooks. (Abriu uma brochura em mau estado.) — Você deve ler esse livro, principalmente o capítulo nove, com muita atenção. Será de imenso valor para você, muito mais do que tentar encontrar sentido nas lembranças de pacientes de muitos anos atrás.

Será que eu queria continuar vivo em meu filho? Numa personalidade ainda mais fraca, insegura e medrosa do que a minha? Cego e pueril engano! O que meu filho pode fazer por mim? Onde estarei depois de morto? Ah, é tão brilhantemente claro. Estarei em todos aqueles que já disseram, dizem ou dirão "eu", principalmente naqueles que dizem com mais segurança, mais força e alegria! (...) Será que alguma vez detestei a vida, esta pura, forte e implacável vida? Loucura e engano! Detestei apenas a mim mesmo por não conseguir suportá-la. Amo vocês todos, abençoados, e logo, logo, deixarei de estar separado de vocês por um cárcere apertado; dentro em breve, aquela parte de mim que os ama se libertará e estará com vocês e em vocês, com vocês e em vocês todos.

Philip fechou o livro e voltou às anotações.

Quem era o autor do trecho que tanto transformou Thomas Buddenbrooks? Mann não revela no romance, mas, quarenta anos depois, ele escreveu um excelente ensaio onde dizia que o autor era Arthur Schopenhauer. E conta que, aos vinte e três anos, teve a grande alegria de ler Schopenhauer pela primeira vez. Ficou não só encantado com o som das palavras que descreve como "tão perfeitas e consistentemente claras, tão harmoniosas, com uma apresentação e linguagem tão fortes, tão elegantes e infalivelmente adequadas, tão apaixonadamente brilhantes, tão magníficas e alegremente severas como nenhum outro escritor na filosofia alemã", mas também com a essência do pensamento de Schopenhauer, que descreve como "emocional, empolgante, jogando com contrastes enormes, entre instinto e mente, paixão e redenção". Mann concluiu que descobrir Schopenhauer era uma experiência preciosa demais para guardar só para ele e usou-a imediatamente de forma criativa, oferecendo o filósofo para o sofrido herói de seu romance.

Não só Thomas Mann, mas outras grandes inteligências admitiram sua dívida com Schopenhauer. Tolstoi chamou-o de "gênio por excelência". Para Richard Wagner, ele foi "uma dádiva do céu". Nietzsche disse que sua vida nunca mais foi a mesma depois que comprou um gasto exemplar de Schopenhauer num sebo em Leipzig e, como disse, "deixou aquele gênio dinâmico e lugubre agir na minha mente". Schopenhauer mudou para sempre o mapa intelectual do Ocidente, e sem ele Freud, Nietzsche, Hardy, Wittegenstein, Beckett, Ibsen, Conrad seriam muito diferentes e menos fortes.

Philip pegou um relógio de bolso, consultou-o um instante e, bem solene, informou:

Aqui termina minha introdução a Schopenhauer. A filosofia dele tem tal amplidão e profundidade que não comporta um resumo. Por isso preferi atiçar sua curiosidade, na esperança de que leia atentamente o capítulo, que tem sessenta páginas. Prefiro dedicar os últimos vinte minutos da palestra às perguntas da platéia e debate. A platéia tem alguma pergunta, Dr. Hertzfeld?

Sem se alterar com o tom de voz de Philip, Julius mais uma vez deu uma olhada na platéia vazia, depois perguntou com delicadeza: — Philip, será que não percebeu que sua platéia foi embora?

— Que platéia? Eles? Os alunos, digamos assim? — Philip revirou a mão com menosprezo para mostrar que não mereciam a atenção dele, chegarem e saírem não fez qualquer diferença para ele. — Hoje, Dr. Hertzfeld, você é a minha platéia. Fiz a palestra só para você disse Philip, sem demonstrar qualquer estranheza por conversar com uma pessoa a nove metros de distância, num auditório deserto e escuro.

Certo, vou responder. Por que sou sua platéia hoje?

Pense um pouco, Dr. Hertzfeld.

Gostaria que você me chamasse de Julius, já que eu o chamo de Philip e suponho que goste, então é no mínimo adequado que me chame de Julius. Ah, já tratamos disso também, lembro bem que anos atrás pedi, por favor, para me chamar pelo nome porque não somos estranhos.

Não costumo tratar meus clientes pelo nome, sou consultor profissional e não amigo deles. Mas, já que você quer ser chamado assim, que seja. Vou começar de novo. Você pergunta por que é minha platéia. A resposta é que estou apenas atendendo ao seu pedido de ajuda. Pense, Julius, você me procurou querendo uma entrevista e dentro desse pedido havia outros.

É mesmo?

  1. Vou me estender sobre o tema. Primeiro, sua voz tinha um toque de pressa. Era muito importante para você se encontrar comigo. Obviamente, seu pedido não era pela simples curiosidade de saber como estou. Não, você queria mais. Mencionou que sua saúde estava ameaçada e, estando com sessenta e cinco anos, você deve estar frente à morte. Portanto, eu só podia concluir que você estava assustado e buscando algum tipo de consolo. Minha palestra hoje é uma resposta ao seu pedido.

Uma resposta por vias tortas, Philip.

Tão tortas quanto seu pedido, Julius.

Concordo! Mas, pelo que lembro, você jamais deu importância às vias tortas.

Mas agora me sinto à vontade. Você pediu ajuda e eu dei apresentando o homem que, mais que qualquer um, pode ser útil a você.

Então sua intenção era me consolar mostrando como o personagem doente de Mann recebeu consolo de Schopenhauer?

Exatamente. E ofereci apenas um petisco, uma amostra do que você pode ter. Há muita coisa que eu, como seu guia no pensamento de Schopenhauer, posso lhe oferecer e gostaria de fazer uma proposta.

Proposta? Philip, você continua a surpreender. Agora estou curioso.

Fiz o curso de orientação e cumpri todas as exigências para receber o registro do estado, mas faltam as duzentas horas de supervisão por um profissional. Posso continuar praticando como filósofo clínico, área que não está regulamentada pelo estado, mas o registro de orientador tem várias vantagens, inclusive seguro contra tratamento inadequado de paciente e licença para divulgar melhor meu serviço. Ao contrário de Schopenhauer, não tenho respaldo financeiro nem qualquer apoio acadêmico. Você viu o desinteresse pela filosofia demonstrado pelos alunos idiotas dessa porcaria de universidade.

Philip, por que temos de conversar aos berros? A palestra ter minou. Não prefere sentar-se e continuar a discussão mais à vontade?

Claro. — Philip juntou suas anotações, enfiou-as na pasta e sentou-se numa poltrona na primeira fila. Embora mais próximos, ainda estavam separados por quatro fileiras de poltronas e Philip era obrigado a virar a cabeça para ver Julius.

Acho que você está propondo uma troca: eu faço sua supervisão e você me dá aulas sobre Schopenhauer? — perguntou Julius, agora em voz baixa.

Isso mesmo! — Philip virou a cabeça, mas não o bastante para encarar Julius.

E você pensou como seria o nosso acerto na prática?

Pensei muito. Na verdade, Dr. Hertzfeld (...)

Julius.

Sim, sim, Julius. Eu ia dizer que pensei semanas em ligar para você e pedir a supervisão, mas fui adiando, principalmente por motivos financeiros. Então, fiquei impressionado com a incrível coincidência de você me ligar. Na prática, sugiro um encontro semanal e dividir nossa consulta: meia hora você dá orientação sobre meus pacientes e meia hora eu oriento você sobre Schopenhauer.

Julius fechou os olhos e ficou pensando.

Philip esperou dois minutos e disse: — O que acha da proposta? Embora eu tenha certeza de que nenhum aluno vá aparecer, tenho hora marcada depois da palestra, por isso tenho de voltar para o prédio da administração. — Bem, Philip, não é uma proposta que se recebe todos os dias.

Preciso mais tempo para pensar. Vamos nos encontrar de novo esta semana. Tenho as tardes de quarta-feira livres, você pode às quatro horas?

Philip concordou. — Às quartas, termino às três. Pode ser no meu consultório?

— Não, no meu. Fica na minha casa, na Pacific Avenue, número duzentos e quarenta e nove. Perto do meu antigo consultório. Olha, fique com meu cartão de visitas.

Trechos do diário de Julius

Fiquei pasmo com a proposta de Philip após a palestra. Com que rapidez uma pessoa entra na área do outro! Parece as lembranças que surgem nos sonhos, em que o cenário mostra que você já esteve naquele lugar em outro sonho. O mesmo ocorre quando se fuma um baseado, dá-se dois tapinhas e de repente estamos num lugar conhecido, pensando coisas que só surgem sob o efeito da erva.

Com Philip é a mesma coisa. Basta ficar um pouquinho com ele e pronto, voltam as velhas lembranças que tenho, somadas a um estranho efeito-Philip. Como ele é arrogante, quanto desprezo. Está se lixando para os outros. Mesmo assim, alguma coisa forte (o que seria?) me atrai nele. Seria a inteligência? Seria a arrogância e o desligamento somados a uma tremenda ingenuidade? Não mudou nada em vinte e dois anos. Não, mudou sim! Está livre da compulsão por sexo, não precisa mais ficar farejando xoxotas. Vive nas esferas mais altas do intelecto, como sempre quis. Mas seu espírito manipulador continua lá, tão óbvio; ele nem percebe como é evidente, achou que eu ia aceitar correndo a proposta, que daria duzentas horas do meu tempo em troca do que ele me ensinaria sobre Schopenhauer. Ainda teve o descaramento de falar como se a sugestão fosse minha, fosse eu quem quisesse e precisasse. Não nego que tenho um certo interesse por Schopenhauer, mas passar duzentas horas com ele para aprender sobre o filósofo não faz parte das minhas prioridades agora. E se aquele trecho que leu do Buddenbrooks doente é um bom exemplo do que Schopenhauer pode me oferecer, fico gelado. A idéia de reintegrar-se à unidade universal sem qualquer interferência minha ou de minhas lembranças é um gélido consolo. Não, nem chega a ser consolo.

E qual a atração que exerço sobre ele? Essa é outra pergunta a ser feita. Aquela agressão que me fez no outro dia, dos vinte mil dólares que gastou na análise comigo, talvez esteja querendo um retorno do investimento.

Supervisionar Philip? Fazer com que ele seja um analista legítimo, sacramentado? Tenho minhas dúvidas. Será que quero patrociná-lo? Como dar minha bênção, se acredito que uma pessoa que odeia (e ele odeia) não pode ajudar ninguém a crescer?

 

A religião tem todas as coisas a seu favor: a revelação feita por Deus aos homens, as profecias, a proteção do governo, das figuras mais respeitáveis e importantes. Mais que isso, o enorme privilégio de poder gravar sua doutrina na mente das pessoas quando elas são crianças e, com isso, as idéias se tornam quase congênitas.

Tempos felizes da infância

Johanna anotou em seu diário que quando Arthur nasceu, em fevereiro de 1788, ela, como todas as mães jovens, gostava de brincar com seu "novo boneco". Mas bonecos novos logo ficam antigos, e poucos meses depois ela estava cansada do brinquedo e passou a se sentir entediada e isolada em Danzig. Algo novo surgia nela, um vago sentimento de que a maternidade não era seu verdadeiro destino, que havia um outro futuro à sua espera. Os verões passados na casa de campo da família eram especialmente difíceis. Embora Heinrich, acompanhado de um padre, ficasse os fins de semana com ela, o resto do tempo passava sozinha com o bebê e as criadas. Por causa de seu enorme ciúme, Heinrich proibiu a esposa de receber os vizinhos ou sair de casa, fosse qual fosse o motivo.

Quando Arthur estava com cinco anos, a família sofreu um grande trauma. A Prússia anexou a cidade de Danzig e logo depois tropas prussianas ficaram sob o comando do mesmo general para quem Heinrich, anos antes, dera uma resposta ríspida. Então, a família mudou-se para Hamburgo e lá, numa cidade estranha, Johanna deu à luz a Adele e se sentiu ainda mais presa e angustiada.

Heinrich, Johanna, Arthur, Adele: pai, mãe, filho e filha, os quatro juntos, mas não ligados.

Para Heinrich, Arthur era uma crisálida que se transformaria no futuro chefe da casa comercial Schopenhauer. Heinrich era o pai tradicional, que cuidava dos negócios e não pensava no filho; só iria entrar em ação e assumir seus deveres paternos quando Arthur saísse da infância.

E a esposa, que planos tinha para ela? Era a chocadeira dos Schopenhauer. Mas tinha muita vida, o que era um perigo, por isso ela precisava ser contida, protegida e reprimida.

Johanna, o que achava? Tinha caído numa armadilha! Seu esposo e provedor tinha sido um erro mortal, seu triste carcereiro, que consumiu sua energia. E o filho, Arthur? Não fazia parte da armadilha, não era ele a tampa de seu caixão mortuário? Talentosa, Johanna queria cada vez mais se expressar e se realizar. E Arthur seria, infelizmente, uma triste recompensa para a auto-renúncia dela.

E a filha caçula Adele? Recebia pouca atenção do pai, teve papel secundário na cena familiar e iria passar a vida inteira como assistente da mãe.

Assim, cada um tomou seu rumo.

O pai, cheio de ansiedade e angústia, buscou a morte dezesseis anos após o nascimento de Arthur. Subiu até o último andar do armazém da casa comercial e de lá saltou para as águas gélidas do canal Hamburgo.

Graças a esse salto, a mãe escapou da armadilha matrimonial, tirou dos sapatos a poeira de Hamburgo e foi, rápido como o vento, para Weimar, onde logo inaugurou um dos mais animados salões literários da Alemanha. Tornou-se grande amiga de Goethe e outros letrados importantes, escreveu uma dúzia de livros românticos que venderam muito, vários tendo por tema mulheres obrigadas a se casarem contra a vontade, mas que se recusavam a ter filhos e continuavam querendo amar.

E o jovem Arthur? Seria um dos maiores sábios que já existiram. E um dos mais desesperados, que detestava a vida, e aos cinqüenta e cinco anos escreveria:

Poderíamos prever que, às vezes, as crianças parecem inocentes prisioneiros, condenadas não à morte, mas à vida, sem ter consciência ainda do que significa essa sentença. Mesmo assim, todo homem deseja chegar à velhice, época em que se pode dizer: "Hoje está ruim e cada dia vai piorar até o pior acontecer".

 

Num espaço infinito, inúmeras esferas luminosas em torno das quais rodam dezenas de outras menores, quentes no centro e cobertas com uma casca dura e fria onde uma névoa bolorenta originou a vida e os seres conhecidos. Esta é a realidade, o mundo.

A espaçosa casa de Julius em Pacific Heights era muito maior do que qualquer uma que ele poderia comprar agora: ele foi um dos afortunados milionários de San Francisco que teve a sorte de comprar uma casa, qualquer casa, trinta anos antes. A compra foi graças à herança de trinta mil dólares que a mulher dele, Míriam, recebeu e, ao contrário de qualquer investimento feito pelo casal, o valor da casa subiu como um foguete. Após a morte de Míriam, Julius pensou em vender a casa, que era grande demais para uma pessoa, mas acabou transferindo seu consultório para o primeiro andar.

Quatro degraus levavam da rua para um patamar onde havia uma fonte revestida de azulejos azuis. A esquerda, uma pequena escada dava acesso ao consultório de Julius; à direita, uma escada maior ia para a casa. Philip chegou exatamente na hora. Julius cumprimentou-o na porta, acompanhou-o até o consultório e mostrou uma poltrona de couro marrom.

— Aceita café ou chá?

Philip não olhou em volta quando se sentou e, ignorando a pergunta de Julius, disse: — Estou esperando sua resposta sobre a supervisão.

— Ah, mais uma vez, você vai direto ao assunto. Estou com dificuldade de resolver isso. Muitas dúvidas. Há alguma coisa em seu pedido, uma enorme contradição que me intriga muito.

— Claro, você quer saber por que peço a sua supervisão depois de ficar tão insatisfeito com você como terapeuta, não?

Exatamente. Numa linguagem bastante clara, você disse que nosso tratamento foi um fracasso absoluto, perda de três anos e de muito dinheiro.

Não há contradição no meu pedido — replicou Philip, na hora. — É possível ser um terapeuta e supervisor competente mesmo falhando com determinado paciente. As pesquisas mostram que o tratamento não faz efeito para cerca de um terço dos pacientes. Além disso, sem dúvida tive uma participação importante no fracasso da terapia, por ser teimoso, rígido. O único erro seu foi escolher a terapia errada para mim e insistir nela durante tempo demais. Mas reconheço seu esforço e até seu interesse em me ajudar.

Que bom, Philip. Parece razoável. Mesmo assim, é estranho pedir supervisão de um terapeuta que não lhe deu nada. Fosse eu, procurava outro. Tenho a impressão de que existe mais alguma coisa que você não diz.

Talvez eu deva fazer uma pequena correção. Não é verdade que não recebi nada. Você disse duas coisas que me marcaram e podem ter servido para eu melhorar.

Por um instante, Julius ficou furioso por ser obrigado a pedir detalhes. Será que Philip achava que ele não queria saber? Será que era tão desligado assim? Finalmente, desistiu e perguntou: — Quais foram as duas coisas?

Bom, a primeira não parece muito importante, mas teve certa força. Eu tinha contado a você uma das minhas noites típicas: atrair uma mulher, levar para jantar, fazer a cena de sedução no meu quarto, seguindo a mesma seqüência e com a mesma música para dar clima. Lembro de perguntar o que você achava da minha noite, se achava desagradável ou imoral.

Não lembro o que respondi.

Disse que não achava nem desagradável nem imoral, apenas chato. Tive um choque de pensar que minha vida era um tédio, monótona.

Ah, interessante. Essa foi uma coisa. E a outra?

Estávamos falando em frases de túmulos. Não lembro por que, mas acho que falei na frase que eu escolheria.

É bem provável, sempre pergunto isso quando estou num impasse e preciso de uma intervenção de impacto. Então?

Bom, você sugeriu que meu epitáfío fosse "Ele gostava de foder" e que a frase podia servir para a lápide do meu cachorro também (podia usar a mesma para nós dois).

Duro. Fui tão agressivo assim?

Se foi ou não, não interessa. O importante é a eficácia e a adequação. Bem mais tarde, uns dez anos depois, aproveitei isso.

São as intervenções de efeito retardado! Sempre achei que são mais importantes do que se pensa. E sempre quis estudar isso. Mas voltando aos motivos de estarmos hoje aqui, por que não quis falar isso em nosso último encontro, reconhecer que, apesar de pouco, fui útil para você?

Julius, não sei se é importante para o nosso assunto, que é saber se você quer ou não ser meu terapeuta supervisor. Em troca, eu seria seu orientador sobre Schopenhauer.

O fato de você não achar importante faz com que fique mais importante. Olha, não vou usar de meias palavras. Eis o que acho, de cara: não sei se você tem condições de ser um terapeuta e por isso não sei se faz sentido esta supervisão.

Você disse se tenho condições? Explique melhor, por favor — pediu Philip, sem qualquer sinal de constrangimento.

Bem, digamos que sempre considerei a psicoterapia mais como uma vocação do que uma profissão, adequada para pessoas que se interessam e se importam com os outros. Não vejo isso em você. O bom analista quer aliviar o sofrimento, quer ajudar as pessoas a crescerem. Mas só vejo em você desdém pelos outros: pense como dispensou e insultou seus alunos. O terapeuta tem que interagir com os pacientes, mas, para você, pouco importa o sentimento dos outros. Pense na nossa situação. Você me disse que, pelo que falei ao telefone, eu estava com uma doença fatal. Mesmo assim, não me deu uma só palavra de consolo ou solidariedade.

Será que ajudava se eu rosnasse umas besteiras solidárias? Eu dei mais, muito mais. Preparei e fiz uma palestra inteira para você.

Eu agora percebo isso. Mas foi feito de uma forma tão indireta, Philip, que me senti usado e não acolhido. Teria sido melhor para mim, bem melhor, se você fosse direto, se tivesse enviado uma mensagem do seu afeto para o meu. Nada muito grande, talvez só umas perguntas sobre a situação e como estou me sentindo, ou, porra, podia ter dito: "Só lastimo saber que você está morrendo. Seria difícil ? "

Se eu estivesse doente, não gostaria de ouvir isso. Teria preferido as ferramentas, as idéias, a visão de Schopenhauer em relação à morte. E foi o que fiz para você.

Até agora, Philip, você não se incomodou de confirmar se estou com uma doença mortal.

Eu estava enganado?

Vamos, Philip. Diga tudo, não vai me magoar.

Você disse que estava com problemas graves de saúde. Pode me contar mais um pouco?

Muito bem, Philip, começou bem. Uma pergunta direta é muito melhor. — Julius parou para pensar e ver até que ponto poderia contar a Philip. — Bom, há poucas semanas eu soube que estou com um tipo de câncer de pele chamado melanoma maligno, que é muito perigoso, embora meus médicos garantam que estarei bem por um ano.

Tenho mais certeza ainda que a visão de Schopenhauer dada na minha palestra seria muito útil para você. Lembro-me que, na nos sa análise, você disse uma vez que a vida é uma situação temporária que tem uma solução permanente. Isso é puro Schopenhauer.

Philip, isso foi uma piada.

Bom, nós sabemos o que seu guru Sigmund Freud pensava a respeito de chistes. Continuo achando que a sabedoria de Schopenhauer tem muita coisa útil para você.

Não sou seu supervisor, isso ainda está para ser resolvido, mas vou dar a primeira lição de terapia, grátis. Não são as idéias, nem a visão, nem as ferramentas que realmente interessam na psicanálise.Se, no final de um tratamento, você perguntar ao paciente qual foi o processo da análise, do que ele se lembra? Nunca das idéias e sempre do relacionamento com o terapeuta. Eles raramente se lembram de uma conclusão importante do terapeuta, mas se lembram com carinho da relação. E me arrisco a dizer que isso serve para você também.

Por que se lembra tão bem de mim e valoriza tanto o que aconteceu entre nós a ponto de agora, depois de tantos anos, querer que eu seja seu supervisor? Não é por causa daqueles dois comentários que fiz, por mais instigantes que fossem. Não, é por alguma ligação que tivesse por mim. Acho que você deve ter um grande afeto por mim e que o nosso relacionamento, por mais difícil que tenha sido, foi significativo. Por isso você está me procurando de novo, na esperança de receber algum tipo de afeto.

Tudo errado, Dr. Hertzfeld.

É, tão errado que a mera menção da palavra afeto faz você correr para trás de títulos formais.

Tudo errado, Julius. Primeiro, aviso para não cometer o erro de achar que a sua visão é a verdadeira, a res naturalis. E que sua função é impor sua visão aos outros. Você precisa e valoriza os relacionamentos e conclui erradamente que eu, ou melhor, todo mundo deve fazer o mesmo, e, se eu discordo, é porque estou reprimindo minha necessidade de relacionamento.

É provável que, para uma pessoa como eu, um enfoque filosófico seja bem preferível. A verdade é que nós dois somos muito diferentes. Eu jamais tive prazer na companhia dos outros, as bobagens que dizem, as exigências que fazem, seus esforços insignificantes e efêmeros. Suas vidas sem sentido são um aborrecimento e um obstáculo para minha comunhão com os inúmeros grandes pensadores do mundo com algo importante a dizer.

Então, por que ser terapeuta? Por que não fica com os grandes pensadores do mundo? Por que se incomoda em oferecer ajuda para essas vidas sem sentido?

Se, como Schopenhauer, eu tivesse uma herança para me sustentar, garanto que não estaria aqui hoje. É só uma questão de necessidade financeira. As despesas com estudos reduziram minha conta bancária, recebo uma miséria pelas aulas, a faculdade está quase falida e acho que não vai renovar meu contrato. Preciso de poucos clientes por semana para pagar minhas despesas, levo uma vida muito sóbria, não preciso de nada, exceto da liberdade de ter o que é realmente importante para mim: ler, pensar, meditar, ouvir música, jogar xadrez e caminhar com Rugby, meu cachorro.

Você ainda não respondeu à minha pergunta: por que me pro curou, se é óbvio que trabalho de forma totalmente diferente da que você quer? Também não respondeu à minha hipótese de que algo em nosso relacionamento passado faz você me procurar.

Não respondi por que foge ao assunto. Mas, já que parece importante para você, vou continuar avaliando a sua tese. Não vá pensar que estou questionando a existência de necessidades interpessoais básicas. Schopenhauer disse que os bípedes — termo dele — precisam se juntar em volta do fogo para se aquecer. Mas avisou do perigo de se chamuscarem por ficarem muito perto do fogo. Ele gostava dos porcos-espinhos, que se encostam para se aquecerem, mas usam os espinhos para manter uma distância. Schopenhauer valorizava muito seu isolamento, dependia apenas de si mesmo para ser feliz. Nesse ponto, não estava sozinho, outros grandes homens, como Montaigne, por exemplo, concordavam com essa idéia.

Eu também temo os bípedes e concordo que o homem feliz é o que consegue evitar quase todo mundo. E como não concordar que os bípedes criam o inferno aqui na Terra? Schopenhauer dizia: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem. Tenho certeza de que ele inspirou o livro Entre quatro paredes, de Sartre.

Certo, Philip. Mas você confirma o que eu acho: que não está preparado para trabalhar como terapeuta. Sua visão das coisas não deixa espaço para amizades.

Toda vez que me aproximo de alguém, acabo ficando com menos para mim. Não tive uma amizade na idade adulta, nem me preocupo em ter. Você deve se lembrar que fui uma criança solitária, minha mãe não se interessava por mim e meu pai era tão infeliz que acabou se matando. Para ser sincero, jamais encontrei ninguém com algo interessante para me oferecer. Não que não tenha procurado. Toda vez que tentei ser amigo de alguém, tive a mesma experiência de Schopenhauer, que disse só ter encontrado pessoas infelizes, de inteligência limitada, mau coração e más intenções. Falo de pessoas vivas, não dos grandes pensadores do passado.

Você me conheceu, Philip.

Aquele era um relacionamento profissional. Estou falando em relações sociais.

Dá para perceber isso em seu comportamento. Com o desprezo que sente e a incapacidade de se relacionar por causa desse desprezo, como vai interagir com os outros de forma terapêutica?

Nesse ponto, estamos de acordo: tenho de conseguir me relacionar socialmente. Schopenhauer disse que, usando de um pouco de amizade e afeto, é possível manipular as pessoas da mesma forma que é preciso aquecer a cera para usá-la.

Julius levantou-se, balançando a cabeça. Serviu um café para ele e ficou andando de um lado para outro. — A cera não é apenas uma metáfora ruim, é uma das piores metáforas para psicanálise que eu já ouvi. Aliás, é a pior. Sem dúvida, você não está usando a sua inteligência. Nem está conseguindo que eu aprecie seu amigo e terapeuta Arthur Schopenhauer.

Julius sentou-se de novo, deu um gole no café e disse: — Não vou perguntar outra vez se aceita café porque concluí que a única coisa que você quer é a resposta para a supervisão. Você parece bem decidido, Philip, por isso serei simpático indo direto ao assunto. Sobre a supervisão, decidi que (...)

Philip, que evitou olhar para Julius durante toda a conversa, encarou-o pela primeira vez.

Você é muito inteligente, Philip. Sabe muita coisa. Talvez encontre um jeito de usar seu conhecimento na terapia. Talvez acabe dando contribuições para ela. Espero que sim. Mas não está preparado para ser um terapeuta. Nem para ter uma supervisão. Suas qualidades, sensibilidade e consciência precisam ser trabalhadas, bastante trabalhadas. Mas quero ser útil a você. Falhei uma vez e agora tenho outra chance. Consegue me ver como seu aliado, Philip?

Respondo à pergunta depois de ouvir sua proposta, que imagino venha a seguir.

Puxa! Está bem, eis a proposta. Eu, Julius Hertzfeld, concordo em ser supervisor de Philip Slate com a única e exclusiva condição de ele freqüentar meu grupo de terapia como paciente.

Dessa vez, Philip ficou assustado. Não tinha previsto aquela proposta de Julius. — Você está brincando.

Nem um pouco.

Depois de tantos anos patinando na lama, eu finalmente consegui arrumar minha vida. Quero me sustentar como terapeuta e para isso preciso de um supervisor, mais nada. Mas você oferece o que não quero e não posso pagar.

— Repito que você não está preparado para uma supervisão nem para ser terapeuta, mas acho que essa terapia de grupo pode começar a suprir suas falhas. São essas as minhas condições. Primeiro, uma terapia de grupo, e só depois faço a supervisão.

Quanto custa a terapia de grupo?

Não muito. Setenta dólares a sessão de noventa minutos. Aliás, pagos mesmo quando você não comparecer.

Quantos pacientes há no grupo?

Tento manter uma média de sete.

Sete vezes setenta dólares são quatrocentos e noventa dólares por uma hora e meia. É um bom negócio. E qual o objetivo da sua terapia de grupo?

O objetivo? O que nós estávamos falando? Olha, Philip, vou ser claro: como você pode ser terapeuta se não sabe que merda há entre você e os outros?

Não, não. Eu entendi esse objetivo. Minha pergunta foi mal formulada. Nunca fiz terapia de grupo e queria saber como funciona. Que vantagem eu levo em ouvir as pessoas contarem suas vidas e seus problemas? Só de pensar nesse coro de infelicidades já me assusto, mas, como diz Schopenhauer, é sempre um prazer saber que os outros sofrem mais do que você.

Ah, você está pedindo uma explicação. É pertinente. Sempre informo o paciente que começa sobre o funcionamento desse método de terapia. Todo terapeuta devia fazer isso. Pois vou lhe dizer. Primeiro, meu enfoque é do relacionamento entre as pessoas e tenho por hipótese que elas estão lá devido a dificuldades para manter relações duradouras.

Mas, esse não é o meu caso. Não quero e nem preciso.

Eu sei, eu sei. Ria do que eu disse, Philip. Falei apenas que suponho que existem tais dificuldades, você pode concordar ou não. Quanto ao meu objetivo no grupo, serei bem claro: é ajudar cada pessoa a entender o melhor possível como ela ou ele se relaciona com cada um no grupo, inclusive com o terapeuta. Mantenho um enfoque de "aqui e agora", um conceito essencial para você ter como analista, Philip. Em outras palavras, o grupo trabalha sem conotação de tempo. Enfocamos o agora, não é preciso investigar muito o passado de cada um do grupo. Enfocamos o presente e o aqui, esqueça o que as pessoas dizem que deu errado em outros relacionamentos. Acredito que as pessoas têm no grupo o mesmo comportamento que criou problemas para elas na vida. Acredito também que vão usar o que aprendem dos relacionamentos no grupo, nos relacionamentos fora dele. Está claro? Se quiser, posso lhe dar algumas apostilas.

Está claro. Quais são as regras básicas do grupo?

A primeira, é discrição absoluta, não se comenta com ninguém de fora sobre os integrantes do grupo. Segunda, procurar se mostrar e ser sincero nas suas impressões sobre os outros e o que sente por eles. Terceira: tudo deve se passar dentro do grupo. Se as pessoas têm contato fora da sessão, isso deve ser trazido depois para o grupo.

Só assim você aceita fazer minha supervisão?

Só. Se quiser que eu treine você, essa é a condição.

Philip ficou em silêncio, de olhos fechados, cabeça apoiada nas mãos. Abriu os olhos e disse: — Vou aceitar sua idéia só se você considerar as sessões no grupo como de supervisão.

Isso é um exagero, Philip. Consegue imaginar o dilema ético que me coloca?

Pode imaginar o dilema que sua proposta me coloca? Dar atenção às minhas relações com os outros quando eu não quero queninguém seja nada para mim. Além disso, você não disse que melhorando meu desempenho social vou ser um terapeuta mais eficiente?

Julius levantou-se, levou a xícara de café para a pia, balançou a cabeça, pensando aonde tinha se metido e voltou para sua cadeira. Expirou devagar e disse: — Está bem, eu considero as horas de terapia de grupo como sendo de supervisão.

Outra coisa: não discutimos a logística da minha orientação sobre Schopenhauer.

Seja como for, teremos de aguardar, Philip. Outra recomendação na terapia: evite relacionamentos dúbios com os pacientes por que interferem no tratamento. Estou falando de qualquer tipo de relacionamento: amoroso, de negócios e até de professor com aluno. Por isso e por você, prefiro que nosso relacionamento seja claro e definido. Por isso também, sugeri que comecemos com o grupo e depois, no futuro, passemos a uma relação de supervisão e, depois ainda, talvez (não estou prometendo) uma orientação sobre filosofia. Embora, no momento, eu não tenha muita vontade de estudar Schopenhauer.

Mesmo assim, podemos estabelecer uma quantia para sua orientação filosófica.

Isso é uma possibilidade e bem remota, Philip.

Mesmo assim, gostaria de estabelecer uma quantia.

Você continua a me surpreender, Philip. As merdas que preocupam você! E as que não preocupam.

Mesmo assim, quanto cobrar?

Costumo cobrar pela supervisão o mesmo que pela análise individual, com desconto para estudantes que estão começando.

Certo — disse Philip, concordando com a cabeça.

Espera aí, Philip. Quero ter certeza de que você ouviu eu falar que essa orientação sobre Schopenhauer não é muito importante para mim. Quando falamos nisso pela primeira vez, eu apenas demonstrei certo interesse em saber como o filósofo tinha lhe ajudado tanto. Você foi em frente e achou que tínhamos combinado uma coisa.

Espero aumentar seu interesse pelo trabalho dele. Ele tinha muito a dizer sobre a nossa área. E antecipou Freud em muitas coisas, que usou todo o trabalho dele sem nem reconhecer.

Vou ficar atento, mas repito: grande parte do que você falou não aumenta meu interesse em conhecer melhor o trabalho dele.

Inclusive o que eu disse na palestra sobre a visão dele da morte ?

Principalmente. Pensar que um dia me juntarei a uma vaga e etérea força universal não me dá qualquer consolo. Se a consciência não permanece, que consolo há? Da mesma forma, pouco consola saber que as moléculas do meu corpo se dispersarão no espaço e que meu DNA acabará fazendo parte de alguma outra forma de vida.

Gostaria que lêssemos juntos os ensaios dele sobre a morte e sobre a permanência do ser. Se fizermos isso, tenho certeza de que (...)

Agora não, Philip. No momento, estou mais interessado em viver o mais plenamente possível e não em pensar na morte. Só isso.

A morte está sempre presente, é o horizonte de todas as preocupações. Sócrates foi bem claro: "Para aprender a viver bem, é preciso aprender a morrer bem". E Sêneca: "Só quem aceita a morte e está pronto para morrer pode sentir o verdadeiro sabor da vida".

— Sim, sim, conheço essas frases, pode ser que, no fundo, sejam verdade. E não tenho problema em juntar a sabedoria da filosofia à psicoterapia. Sou totalmente a favor. Sei também que Schopenhauer foi útil a você de várias maneiras. Mas não em todas: talvez você precise de ajuda e é nesse ponto que entra o grupo. Espero você aqui na sua primeira sessão, segunda-feira às quatro e meia.

 

Na infância, o aparelho sexual ainda está inativo enquanto o cérebro já funciona plenamente; por isso, essa é a época da inocência e da felicidade, o paraíso perdido do qual sentimos falta pelo resto da vida.

OS ANOS MAIS FELIZES DA VIDA DE ARTHUR

Quando Arthur fez nove anos, o pai concluiu que estava na hora de cuidar da educação do menino. O primeiro passo foi mandá-lo passar dois anos no porto francês do Havre, na casa de um colega de comércio, Gregories de Blesimaire. Lá, Arthur teve de aprender francês, traquejo social e, como disse Heinrich, "escolarizar-se nos livros do mundo."

Um menino expulso de casa, separado dos pais aos nove anos? Quantas crianças não consideraram esse exílio um marco dramático na vida? Mais tarde, porém, Arthur viu esses dois anos como "os mais felizes da sua infância".

Algo importante ocorreu no Havre: talvez pela única vez na vida, Arthur se sentiu amado e gostou de viver. Passou anos lembrando com prazer do simpático casal Blesimaire, com o qual conheceu algo parecido com o amor de pai e mãe. As cartas que escreveu para casa elogiavam tanto o casal que a mãe de Arthur precisou lembrar-lhe as qualidades e a generosidade do pai dele: "Não se esqueça de que seu pai deixou você comprar aquela flauta de marfim que custou uma moeda de ouro".

Outro fato importante durante a estada no Havre foi que Arthur arrumou um amigo, um dos poucos que teve na vida. Anthime, filho dos Blesimaire, era da mesma idade, e os dois se aproximaram e trocaram algumas cartas depois que Arthur voltou para Hamburgo.

Anos mais tarde, quando tinham vinte anos, eles se reencontraram e saíram algumas vezes à procura de aventuras amorosas. Depois, os caminhos e os interesses mudaram. Anthime virou comerciante e sumiu da vida de Arthur por trinta anos, quando voltaram a se corresponder. Arthur queria conselhos sobre finanças e Anthime respondeu que poderia administrar as posses do amigo em troca de algum pagamento, mas Arthur parou de escrever de repente. Na época, ele suspeitava de todo mundo, não confiava em ninguém. Deixou de lado a carta de Anthime e escreveu no verso do envelope uma frase cínica de Graciano, filósofo espanhol que o pai admirava muito: "Entre nos negócios do outro para cuidar dos seus".

Arthur e Anthime se viram pela última vez dez anos depois, num estranho encontro onde não acharam muito o que conversar. Arthur disse que seu amigo de tantos anos se tornara "um velho insuportável" e escreveu em seu diário que "o encontro de dois amigos após uma vida inteira é um desaponto com a própria vida".

Outro fato marcou a estadia no Havre: Arthur foi apresentado à morte. Enquanto morava na França, um colega de infância, Gottfried Janish, faleceu em Hamburgo. Embora Arthur parecesse não se perturbar e dissesse que nunca mais pensou no colega, parece que jamais esqueceu dele, nem do choque de seu primeiro contato com a morte, pois trinta anos depois anotou no diário um sonho que teve: "Eu estava num país desconhecido, havia um grupo de homens num campo e um deles, alto e esguio, não sei por que se apresentou como sendo Gottfried Janish e me deu as boas-vindas".

Arthur não teve muita dificuldade em interpretar o sonho. Na época, estava morando em Berlim, onde havia uma epidemia de cólera. A imagem onírica de se juntar a Gottfried só podia significar um aviso de morte próxima. Assim, resolveu escapar da morte saindo imediatamente de Berlim. Foi para Frankfurt e viveu lá trinta anos, principalmente por achar que a cidade não poderia ser atingida pela doença.

 

A maior sabedoria é ter o presente como objeto maior da vida, pois ele é a única realidade, tudo o mais é imaginação. Mas poderíamos também considerar isso nossa maior maluquice, pois aquilo que existe só por um instante e some como sonho não merece um esforço sério.

Primeira sessão de Philip no grupo

Philip chegou quinze minutos adiantado na primeira sessão de terapia de grupo, usando as mesmas roupas dos dois encontros com Julius: a amassada e desbotada camisa xadrez, as calças caqui e a jaqueta de veludo. Impressionado com a indiferença de Philip por roupas, móveis de escritório e platéia de estudantes, ou, aparentemente, por qualquer pessoa com quem se relacionasse, Julius mais uma vez colocou em dúvida sua idéia de convidá-lo para participar do grupo. Será que foi uma avaliação profissional correta ou era a velha ousadia descarada mostrando a carantonha outra vez?

Ousadia descarada, que em iídiche erachutzpah, palavra sem uma correspondência exata em outras línguas, mas bem definida na história do menino que matou os pais e depois pediu clemência aos jurados por ser órfão. Julius sempre lembrava dessa palavra quando pensava em como enfrentava a vida. Talvez ele tivesse uma ousadia descarada desde que nasceu, mas resolveu adotar esse comportamento no outono em que fez quinze anos e mudou-se com os pais do Bronx, em Nova York, para Washington, D.C. O pai sofreu um revés financeiro e instalou a família à noroeste da cidade, numa das pequenas casas iguais da Farragut Street. As dificuldades financeiras paternas não eram para ser comentadas, mas Julius sabia que estavam ligadas às pistas de corridas de Aqueduct e a uma égua chamada She's All That, que o pai tinha em sociedade com Vic Vicello, um de seus parceiros no pôquer. Vic era um sujeito difícil de definir, que usava lencinho rosa-choque no bolso do paletó esporte amarelo e não entrava na casa deles se a mãe estivesse lá.

O novo emprego do pai era gerenciar uma loja de bebidas que pertencera a um primo, morto do coração aos quarenta e cinco anos (coração, aquele inimigo soturno, que tinha lesado ou matado uma geração inteira de judeus asquenazitas cinqüentões, criados com creme azedo e fatias de carne de peito). O pai detestava o novo emprego, mas conseguiu manter as contas da família em dia; além de o salário ser bom, as longas horas de funcionamento da loja o mantinham longe da Laurel e Pimlico, as pistas de turfe próximas.

Em setembro de 1955, no primeiro dia de aula na escola Roosevelt High, Julius tomou uma grande decisão: ia se reinventar. Ninguém o conhecia em Washington, era uma alma livre e sem passado. Os três anos que passou na Public School 1.126, no Bronx, não foram de ninguém se orgulhar. Jogar era tão mais interessante do que as outras atividades escolares que ele passava todas as tardes na pista de boliche recebendo apostas nele ou no amigo Marty Geller, grande jogador de canhota. Julius mantinha também uma pequena banca onde aceitava apostas de dez para um para quem marcasse três jogadores de beisebol que fizessem seis lances no dia que o apostador escolhesse. Fosse qual fosse o nome que os trouxas escolhessem (Mantle, Kaline, Aaron, Vernon ou Stan Musial, o Cara), acertavam no máximo uma a cada vinte ou trinta apostas. Julius andava com valentões da mesma laia, ganhou fama de briguento na rua para intimidar prováveis caloteiros; nas aulas, ele se fazia de burro porque achava legal e matava muitas aulas à tarde para ver Mantle jogar no campo do Yankee Stadium.

Tudo mudou no dia em que ele e os pais foram chamados à sala do diretor, que apresentou o livrinho de apostas que Julius há dois dias procurava sem parar. O castigo foi duro: não sair à noite por dois meses, não ir ao boliche nem ao Yankee Stadium, não fazer esporte depois das aulas, ficar sem mesada. Julius viu que o pai não estava dando muita importância ao fato, estava era intrigado com o fato de três jogadores acertarem seis lances. Apesar de tudo, Julius gostou do diretor e ficou tão assustado de ser considerado mau aluno que resolveu se emendar. Mas como isso era querer demais, o máximo que conseguiu foi ganhar nota cinco, o que já era uma melhora. Não deu para fazer novos amigos: estava preso ao papel que tinham lhe destinado e ninguém conseguia ver nele o novo garoto que tinha decidido ser.

Por causa disso, mais tarde Julius teve uma estranha sensibilidade para o fenômeno do papel a que se destinou: viu muitos pacientes mudarem totalmente, mas continuarem sendo vistos do mesmo jeito pelo resto do grupo. Isso ocorre também nas famílias. Muitos pacientes passavam por maus pedaços ao visitarem a casa dos pais: tinham de ficar atentos para não serem jogados no velho papel que a família tinha lhes reservado e precisavam de muito esforço e energia para convencer pais e parentes de que tinham realmente mudado.

O grande teste de Julius na reinvenção de si mesmo começou com a mudança da família. Aquele primeiro dia de aula em Washington, D.C., era uma manhã suave de verão. Julius pisou no chão coberto de folhas de plátanos e entrou pela porta da frente da Roosevelt High pensando num bom plano de mudança. Reparou nos cartazes do lado de fora do auditório que indicavam os candidatos a presidente de turma e teve uma boa idéia. Antes mesmo de saber onde ficava o banheiro dos meninos, ele já tinha se candidatado.

Candidatar-se foi uma jogada ambiciosa, mais que isso, foi como querer sair do buraco apostando nos incompetentes jogadores de beisebol do Washington Senators, time que pertencia ao pão-duro Clark Griffith. Julius não sabia nada sobre a escola e não conhecia um colega de turma. Será que o velho Julius do Bronx teria se candidatado? De jeito nenhum. Mas era por isso mesmo, exatamente por isso que o novo Julius aceitou o desafio. O que podia acontecer de pior? O nome dele estaria lá e todos reconheceriam Julius Hertzfeld como uma força, um líder potencial, um cara a se pensar. Além do mais, ele adorava agitar.

Claro, os adversários iriam rejeitá-lo como uma piada de mau gosto, um mosquito, um desconhecido, um nada. Sabendo que essas críticas seriam feitas, Julius se preparou e pensou em argumentar que um recém-chegado podia enxergar erros invisíveis para os que estão muito perto. Ele tinha a vantagem da boa lábia, aperfeiçoada em muitas horas na pista de boliche convencendo os babacas nos jogos. O novo Julius não tinha nada a perder e, destemido, procurou os grupinhos de alunos para anunciar: — Olá, sou Julius, novo na área, espero que votem em mim para presidente de turma. Não sei nada de política estudantil, mas às vezes uma visão nova é a melhor visão. Além disso, sou totalmente independente, não tenho nem turma, pois não conheço ninguém.

O fato é que Julius não só se reinventou, mas venceu a eleição. A Roosevelt High tinha um time de futebol que perdeu dezoito jogos seguidos e um time de basquete quase tão ruim quanto; portanto, estava desmoralizada. Os outros dois candidatos podiam ser derrubados: Catherine Schumann, a inteligente filha de um pastor baixinho e de cara comprida, que iniciava a reza antes de cada assembléia na escola, era afetada e impopular. Já Richard Heishman, era bonito, de cabelos ruivos e pescoço vermelho, zagueiro do time de futebol, mas com um bocado de inimigos. Julius liderou os votos de oposição. Além disso, para surpresa própria, foi imediatamente apoiado por todos os alunos judeus, que eram trinta por cento da escola e até então mantinham uma participação discreta e apolítica. Eles o adoraram com aquele amor que os tímidos, indecisos e discretos judeus que viviam abaixo da linha divisória Mason-Dixon tinham pelos decididos e arrojados judeus de Nova York.

A eleição foi a virada na vida de Julius. Foi tão recompensado pelo atrevimento que reformulou toda a sua identidade com base na pura ousadia descarada, chutzpah. Passou a ser disputado pelas três fraternidades judaicas da escola, que o consideravam um cara com coragem e personalidade, o indefinível Santo Graal da adolescência. Em pouco tempo, estava cercado de colegas na lanchonete e depois da escola era visto de mãos dadas com a encantadora Míriam Kaye, editora do jornal da escola e única aluna inteligente o bastante para competir com Catherine Schumann como oradora oficial de fim de ano. Julius e Míriam tornaram-se inseparáveis. Ela o apresentou à arte e estética, e ele jamais conseguiu fazer com que ela entendesse o alto nível de dramaticidade contido num lance de boliche ou beisebol.

É, ele foi longe, graças à ousadia descarada. Julius continuava ousado, orgulhava-se disso e, mais tarde, gostava de ser definido como um sujeito original, um independente, o terapeuta que tinha coragem de aceitar pacientes que derrotaram os outros terapeutas. Mas a ousadia tinha seu lado ruim: a megalomania. Julius errou algumas vezes ao querer fazer mais do que poderia ser feito, pedindo a pacientes que mudassem mais do que podiam, ou deixando outros numa longa terapia que acabava não dando resultado.

Portanto, será que foi por compaixão ou por simples insistência clínica que achou ainda ser possível recuperar Philip? Ou foi por muita ousadia descarada? Sinceramente, não sabia. Ao conduzir Philip para a sala de terapia de grupo, deu uma longa olhada em seu relutante paciente. Philip estava com os cabelos castanhos-claros penteados para trás, sem repartir, a pele tensa nas maçãs salientes, os olhos atentos, o andar pesado como se estivesse sendo levado para a execução.

Julius teve uma onda de compaixão e ofereceu consolo com a voz mais suave e confortadora que conseguiu. — Sabe, Philip, os grupos de terapia são muito complexos, mas têm uma característica totalmente previsível.

Se Julius esperava uma pergunta sobre qual era a característica totalmente previsível, não deu sinal de desapontamento cora o silêncio de Philip. Continuou falando como se o outro tivesse demonstrado a esperada curiosidade. — E que a primeira sessão num grupo de terapia é mais agradável e mais acolhedora do que os novos integrantes esperam.

Estou bem, Julius.

Então, apenas guarde o que eu disse para consultar caso fique nervoso.

Philip parou na porta do escritório onde ele e Julius estiveram alguns dias antes, mas Julius tocou no braço dele e o conduziu pelo corredor até a porta seguinte, que abria para uma sala com três paredes cobertas de estantes, do piso ao teto. Na quarta parede, três janelas com vidraças em caixilho de madeira abriam para um jardim japonês com pinheiros anões, dois montes de pequenos seixos e um lago estreito de dois metros de comprimento onde deslizavam carpas douradas. Os móveis da sala eram simples e funcionais, apenas uma pequena mesa ao lado da porta e sete confortáveis cadeiras de vime colocadas em círculo com mais duas de reserva, nos cantos.

— Chegamos. Essa é a sala da minha biblioteca e do grupo. Enquanto aguardamos os outros, vou dar as coordenadas de funcionamento da casa. Nas segundas-feiras, destranco a porta da frente uns dez minutos antes da hora da sessão e as pessoas entram nesta sala. Chego às quatro e meia e começamos, terminando às seis. Para facilitar o controle, o pagamento é feito no final de cada sessão; basta deixar um cheque na mesa ao lado da porta. Alguma dúvida?

Philip balançou a cabeça e olhou a sala, respirando fundo. Foi direto para as estantes, enfiou o nariz perto dos livros encadernados de couro e respirou outra vez, demonstrando grande prazer. Continuou lá e percorreu, atento, os títulos.

Logo em seguida chegaram cinco pessoas e cada uma olhou as costas de Philip antes de sentar-se. Apesar da agitação que causaram, Philip não virou a cabeça, nem interrompeu a tarefa de examinar os livros de Julius.

Nos seus mais de trinta e cinco anos como terapeuta de grupos, Julius tinha visto muita gente chegar. A situação era previsível: o novo integrante está bastante apreensivo e se comporta de forma respeitosa com os outros, que dão boas-vindas e se apresentam. De vez em quando, num grupo recém-formado, alguns se enganam achando que os benefícios da terapia são diretamente proporcionais à atenção que recebem do terapeuta, podendo haver uma certa má vontade com novatos. Mas em grupos já formados, as pessoas são simpáticas: acham que o grupo completo é bom para a eficácia da terapia.

Às vezes, o recém-chegado entra direto na discussão, mas em geral fica em silêncio por quase toda a primeira sessão, enquanto tenta ver quais são as regras, e espera até alguém convidá-lo para participar. Mas um novo membro tão indiferente que fica de costas e ignora os outros? Julius jamais tinha visto uma coisa daquelas. Nem em grupos de pacientes psicóticos na enfermaria psiquiátrica.

Sem dúvida, pensou Julius, tinha sido besteira convidar Philip para o grupo. Naquela sessão, ele tinha de falar de seu câncer, o que era mais que suficiente para a agenda do dia. Sentiu um peso por ter de se preocupar com Philip.

O que estaria havendo com Philip? Será que estava só morrendo de medo e tímido? Era pouco provável. Não, devia estar irritado com minha insistência para fazer a terapia e, no seu estilo passivo-agressivo, estava mandando o grupo e eu à merda. Céus, pensou Julius, gostaria de dependurá-lo num varal para secar. Não fazer nada.

Deixar que ele afunde ou nade. Seria um prazer sentar-se e apreciar o ataque feroz que o grupo certamente faria.

Julius não costumava guardar o final das piadas, mas lembrou de uma que ouviu anos antes. Um filho diz para a mãe: — Não quero ir à escola hoje.

Por quê? — pergunta a mãe.

Porque detesto os alunos e eles me detestam.

Pois tem de ir por dois motivos — diz a mãe —, primeiro, você tem quarenta e cinco anos, e segundo, é o diretor da escola.

Sim, Julius era adulto. E o terapeuta do grupo. Seu trabalho consistia em integrar novos membros, protegê-los dos outros e deles próprios. Ele nunca era o primeiro a falar numa sessão, preferia incentivar os integrantes a isso, mas naquele dia não tinha escolha.

— Quatro e meia, vamos começar. Philip, pegue uma cadeira.

— Philip virou-se para olhá-lo, mas não fez menção de pegar nada. Vai ver que ficou surdo, pensou Julius. Será que é um idiota social? Só depois de Julius fazer sinais enfáticos com os olhos indicando uma cadeira vazia foi que Philip sentou-se.

Julius então lhe disse: — Este é o nosso grupo. Falta uma pessoa, Pam, que está viajando por dois meses. — Virando-se para o grupo, informou: — Comentei há algumas sessões que talvez trouxesse uma pessoa nova. Estive com Philip na semana passada e ele começa hoje. (Claro que começa hoje, pensou Julius. Burro, comentário burro. Pronto, chega de levar o outro pela mão. Ele que afunde ou nade.)

Nesse instante, Stuart entrou na sala, correndo da clínica pediátrica no hospital e, ainda de jaleco branco, resmungou uma desculpa pelo atraso e afundou numa cadeira. Todos então olharam para Philip e quatro pessoas se apresentaram e deram as boas-vindas: — Meu nome é Rebecca. Tony. Bonnie. Stuart. Olá. Prazer em conhecer. Seja bem-vindo. Bom você estar aqui com a gente. Precisamos de sangue novo, quer dizer, de novas contribuições.

O integrante que faltou falar era um rapaz bonito, com a cabeça precocemente calva e um halo de cabelos castanhos-claros no alto, um corpo forte de juiz de futebol meio velho que, numa voz calma, disse:

— Olá, meu nome é Gill. Espero, Philip, que você não ache que o estou ignorando, mas hoje preciso muito de falar. Nunca precisei tan to do grupo como agora.

Nenhuma reação de Philip.

— Certo, Philip? — insistiu Gill.

Assustado, Philip arregalou os olhos e concordou com a cabeça.

Gill virou-se para os rostos familiares do grupo e começou: — Aconteceram muitas coisas e tudo culminou esta manhã, depois de uma sessão com o psicanalista da minha mulher. Nas últimas semanas, contei para vocês que o analista de Rose deu-lhe um livro sobre abuso sexual de crianças e ela se convenceu de que sofreu abuso quando pequena. Isso se transformou numa idéia fixa na cabeça dela, como é mesmo que se diz, uma idéia fixada? — Gill perguntou para Julius.

Uma idée fixe — interveio Philip, falando com o sotaque francês perfeito.

Isso, obrigado — disse Gill, que deu uma olhada em Phillip e acrescentou, baixo: — Opa, essa foi rápida — e voltou para sua história. — Bom, Rose tem idéia fixa de que quando pequena foi molestada pelo pai. Não consegue pensar em outra coisa. Ela lembra de algum abuso sexual? Não. Tem alguma testemunha? Não. Mas o analista acha que, se ela está deprimida, com medo de sexo, tem lapsos de atenção e emoções descontroladas, principalmente raiva de homens, então sofreu abuso. E o que diz o maldito livro. E o analista dela jura que é isso mesmo. Assim, há meses, como já contei aqui até enjoar, não fala mos em outra coisa. A psicanálise da minha mulher é a nossa vida. Não há espaço para mais nada. Não há outro assunto. Nossa vida sexual está morta e enterrada. Nada. Esqueça. Duas semanas atrás, ela pediu para eu ligar para o pai, pois não fala com ele, e convidá-lo para uma sessão da análise. Queria que eu também fosse por proteção, conforme ela disse.

Então liguei e ele concordou na hora. Ontem, tomou um ônibus em Portland e apareceu na sessão hoje de manhã carregando a maleta surrada, pois depois voltava direto para a rodoviária. A sessão foi um desastre. Um horror. Rose simplesmente despejou tudo no pai sem parar. Sem limites, sem uma palavra de agradecimento pelo velho ter viajado centenas de quilômetros por causa dela e dos noventa minutos da sessão dela. Acusou-o de tudo, até de convidar os vizinhos, os parceiros de pôquer, os colegas de trabalho no Corpo de Bom beiros (ele foi bombeiro), para fazerem sexo com ela quando criança.

Qual a reação do pai? — perguntou Rebecca, uma mulher

alta e esguia, de quarenta anos, muito bonita, que estava inclinada para frente, ouvindo atenta o relato de Gill.

Ele foi equilibrado e sensato. É um sujeito ótimo, de uns setenta anos, gentil, carinhoso. Foi a primeira vez que o vi. Ele foi incrível, puxa, gostaria de ter um pai assim. Ficou só sentado lá ouvindo e disse a Rose que, se ela estava com tanta raiva, devia ser melhor pôr para fora. Negou, calmo, todas as loucas acusações e supôs (acho que tinha razão) que ela estava com raiva porque ele largou a família quando ela estava com doze anos. Disse que a raiva foi adubada (palavra dele, que hoje tem um sítio) pela mãe, que envenenou a cabeça da filha desde pequena contra ele. Disse que teve de largar o casamento, estava deprimido com a vida que levava com a mulher e teria morrido se continuasse lá. Vou dizer uma coisa, conheço a mãe de Rose e ele acertou. Acertou em cheio.

Então, no final da sessão ele pediu carona até a rodoviária e, antes de eu responder, Rose disse que não se sentia segura de ficar no mesmo carro que ele. — Entendi — disse ele, e foi embora com sua maleta.

Bem, dez minutos depois, Rose e eu passávamos de carro pela Market Street e vi aquele velho grisalho e curvado carregando uma mala. Começava a chover, e pensei: "Que merda." Perdi a calma e disse a Rose que ele viera lá de Portland por causa dela, para a sessão de análise dela, estava chovendo e, porra, eu ia levá-lo à rodoviária. Parei no meio-fio e lhe ofereci carona. Rose me fuzilou com os olhos e disse que, se ele entrasse no carro, ela sairia. Mandei fazer o que bem entendesse. Mostrei a loja da Starbucks e disse para esperar lá, eu voltava logo. Ela saiu, irritada, e cinco horas depois ainda não tinha aparecido na Starbucks. Fui de carro para o Golden Gate Park e fiquei andando sem parar. Estou pensando em nunca mais voltar para casa.

Depois de dizer isso, Gill se encostou na cadeira, exausto.

Todo o grupo (Tony, Rebecca, Bonnie e Stuart) aprovou em coro. — Muito bem, Gill... Já estava na hora... Puxa, você conseguiu... Fez muito bem. — E Tony acrescentou: —- É difícil expressar a alegria que sinto por você se livrar dessa filha da puta. — E Bonnie: — Se precisar de um lugar para dormir, tenho ura quarto vago — disse, nervosa, passando a mão nos cabelos castanhos e crespos e ajustando os óculos de armação amarela. — Não se preocupe, sou bem mais velha que você e minha filha está em casa — acrescentou, com uma risadinha.

Julius não estava satisfeito com a pressão que o grupo estava exercendo, tinha visto muitos pacientes saírem de grupos por medo de desapontar os demais. Assim, fez sua primeira intervenção: — Você está recebendo bastante apoio, Gill. Como está se sentindo?

Ótimo. Muito bem mesmo. Só que não quero desapontar as pessoas. Está tudo tão rápido, aconteceu hoje de manhã, estou confuso, não sei o que vou fazer.

Você quer dizer que não quer substituir as exigências de sua mulher pelas exigências do grupo — disse Julius.

É. Acho que sim. Entendo o que você quer dizer. Certo. Mas é uma coisa confusa, eu preciso, preciso mesmo desse apoio, obrigado, preciso d e ajuda, isso pode ser uma mudança na minha vida. Todomundo falou, menos você, Julius. E, claro, o nosso novo colega de grupo. Seu nome é Philip, não?

Philip concordou.

— Philip, sei que você não conhece o meu caso, mas você conhece — Gill virou-se para encarar Julius. — O que acha? O que acha que eu devia fazer?

Sem querer, Julius se encolheu e esperou que ninguém tivesse percebido. Como quase todo terapeuta, ele detestava aquela pergunta, a maldita "o que eu faço, o que não faço". Tinha percebido que ia ser feita.

— Gill, você não vai gostar da minha resposta. Não posso lhe dizer o que fazer: essa é uma decisão sua, e não minha. Um dos motivos para você estar neste grupo é aprender a confiar na sua própria avaliação. Outro motivo para minha resposta é que só sei de Rose e do seu casamento através do que você diz. E é difícil você não me dar uma informação tendenciosa. A única coisa que posso fazer é ajudá-lo a ver como contribuir para a vida que tem. Não podemos entender ou mudar Rose, aqui é você que importa, seus sentimentos, seu comportamento, porque é isso que você pode mudar.

Fez-se silêncio. Julius estava certo: Gill não gostou da resposta. Nem o resto do grupo.

Rebecca tirou as duas presilhas e sacudiu os longos cabelos negros, antes de prendê-los de novo e quebrar o silêncio dirigindo-se a Philip: — Você é novo aqui, não sabe tudo o que sabemos. Mas, às vezes, da boca de um bebê recém-nascido...

Philip ficou quieto. Não dava para saber nem se ele tinha ouvido o que foi dito.

Tem algum comentário a fazer sobre isso, Philip? — perguntou Tony numa voz suave que não era comum nele. Tony era moreno, tinha muitas marcas de acne no rosto e um corpo esguio e atlético, valorizado pela camiseta negra dos San Francisco Giants e pelos jeans apertados.

Tenho uma observação e um conselho — disse Philip, com as mãos entrelaçadas, a cabeça para trás e os olhos no teto da sala. — Nietzsche uma vez escreveu que a maior diferença entre o homem e a vaca era que a vaca sabia como existir, como viver sem angústia (isto é, sem medo) no bendito presente, sem o peso do passado e a preocupação com os horrores do futuro. Mas nós, humanos infelizes, somos tão perseguidos pelo passado e pelo futuro que só podemos passar rapidamente pelo presente. Sabe por que sentimos tanta saudade da maravilhosa infância? Segundo Nietzsche, porque foi a única época despreocupada, ou seja, sem preocupação antes de termos lembranças tristes e graves do lixo do passado. Permita que eu acrescente uma coisa: estou falando num ensaio de Nietzsche, mas essa idéia não era dele. Como tantas outras, Nietzsche tirou-a de Schopenhauer.

Fez uma pausa. Caiu um silêncio pesado sobre o grupo. Julius mexeu-se na cadeira, pensando. Ah, merda, eu devia estar louco quando quis trazer esse sujeito para cá. Foi a pior e a mais estranha forma que já vi de um paciente entrar num grupo.

Bonnie quebrou o silêncio. Olhando direto para Philip, disse: — Muito interessante, Philip. Sei que vivo lamentando a infância perdida, mas nunca percebi que ela parece livre e maravilhosa porque não tem o peso do passado. Obrigada, não vou esquecer isso.

Nem eu. Muito interessante mesmo. Mas você disse que tinha um conselho para mim? — perguntou Gill.

Tenho, é o seguinte. — Philip falava sem alterar a voz e ainda sem olhar para ninguém. — Sua mulher é uma dessas pessoas particularmente incapazes de viver no presente porque está sobrecarregada de passado. É um navio afundando. Aconselho você a saltar do navio e sair a nado. Sua mulher vai causar uma onda enorme quando afundar, por isso sugiro que você nade o mais rápido e mais longe que puder.

Silêncio. O grupo parecia pasmo.

Puxa, ninguém pode lhe acusar de não revidar. Perguntei uma coisa, você respondeu. Obrigado, gostei muito. Seja bem-vindo ao grupo. Qualquer outro comentário que você tiver, eu quero ouvir — disse Gill.

Bom — disse Philip, continuando a olhar para o teto. — Nesse caso, vou acrescentar uma coisa. Kierkegaard dizia que algumas pessoas têm duplo desespero, isto é, estão desesperadas, mas nem sabem. Você deve estar nesse desespero duplo. Quero dizer o seguinte: grande parte do sofrimento de uma pessoa vem por sentir desejo, realizá-lo, ter um instante de saciedade que logo se transforma em tédio e, por sua vez, é interrompido pelo surgimento de outro desejo. Schopenhauer achava que era essa a condição humana universal: desejar, saciar-se, entediar-se e desejar outra vez.

Voltando a você: não sei se já pensou nesse ciclo de desejos sem-fim. Talvez esteja tão preocupado com os desejos de sua mulher que não vê os próprios, não? Não foi por isso que as pessoas hoje cumprimentaram você aqui? Não foi por finalmente não querer se definir pelos desejos dela? Em outras palavras, pergunto se não adiou ou não fez o que precisava fazer em você por estar preocupado em atender aos desejos dela.

Gill escutou, boquiaberto, olhar fixo em Philip. — Profundo. Isso que você disse tem algo de profundo e importante, essa idéia do desespero duplo, mas não estou entendendo bem.

Todos olhavam para Philip, que continuava a só ter olhos para o teto. Rebecca terminou de colocar as presilhas no cabelo e perguntou: — Philip, você disse que a terapia de Gill só vai começar quando ele se livrar da mulher?

E Tony: — Ou que a relação impede que ele veja como está fodido? Sei disso pela minha relação com a terapia. Nessa semana, concluí que fico tão preocupado em me envergonhar de ser carpinteiro, operário, ganhar pouco, ser rejeitado, que não trato do verdadeiro problema que deveria estar cuidando aqui.

Julius observou, perplexo, o grupo sedento por cada palavra de Philip, concordando. Percebeu uma vontade de competir surgindo dentro dele, mas conteve-se dizendo para si mesmo que as metas do grupo estavam sendo atendidas. Calma, Julius, o grupo precisa de você. Não vão largar você para ficar com Philip. E ótimo o que está acontecendo aqui, eles estão assimilando o novo membro e também colocando temas para futuras sessões.

Ele tinha pensado em falar, naquela dia, sobre a doença. De certa forma, era obrigado a isso, pois já tinha falado com Philip do melanoma e, para não dar a impressão de uma relação especial com ele, tinha de avisar o grupo. Mas foi tomado por outros assuntos. Primeiro, pela urgência de Gill falar, e depois, pela total fascinação do grupo por Philip. Olhou o relógio. Faltavam dez minutos para a sessão terminar. Não dava tempo. Resolveu que começaria a próxima sessão com a má notícia. Ficou em silêncio e deixou o relógio correr.

 

Os reis deixaram aqui suas coroas e cetros; os heróis, suas armas. Mas os grandes espíritos, cuja glória estava neles e não em coisas externas, levaram com eles sua grandeza.

— Arthur Schopenhauer, aos dezesseis anos, na Catedral de Westminster, em Londres

1799 — Arthur aprende o que é escolher e outros horrores

Quando o menino Arthur, de 11 anos, voltou do Havre, o pai matriculou-o numa escola particular especializada em preparar futuros comerciantes. Lá, o menino aprendeu o que os bons comerciantes da época deviam saber: fazer contas com moedas estrangeiras, escrever cartas comerciais nas línguas européias mais importantes, estudar as rotas de transporte, os centros comerciais, a produção agrária e outros temas igualmente fascinantes. Mas Arthur não ficou fascinado, não tinha interesse naqueles assuntos, não fez amigos na escola, e ficava cada dia mais apavorado com o plano do pai para o futuro dele: fazer um aprendizado de sete anos com um magnata local dos negócios.

O que Arthur queria? Não a vida de um comerciante, odiava até a idéia. Queria ser um erudito. Muitos colegas dele também não gostavam de pensar num longo aprendizado, mas o protesto de Arthur era mais profundo. Apesar da firme recomendação dos pais (uma carta da mãe mandava que deixasse de lado todos esses escritores por um tempo (...) você tem quinze anos e já leu e estudou os melhores autores alemães, franceses e parte dos ingleses), ele passava todas as horas livres estudando literatura e filosofia.

Heinrich, o pai, ficava desesperado com os interesses de Arthur. Já havia sido informado pelo diretor da escola que o filho era apaixonado por filosofia e tinha excepcional talento para erudições, e seria bom transferi-lo para um ginásio, onde se prepararia melhor para a universidade. No fundo, Heinrich pode ter entendido a sensatez do conselho; era evidente que o filho lia e compreendia vorazmente todos os livros de filosofia, história e literatura da enorme biblioteca dos Schopenhauer.

O que Heinrich podia fazer? Estava em jogo sua sucessão na empresa, assim como o futuro dela e o compromisso com os antepassados de manter a estirpe dos Schopenhauer. Além disso, tremia de pensar num herdeiro do nome sobrevivendo com os parcos proventos de um erudito.

Primeiro, Heinrich pensou em criar uma renda anual vitalícia para o filho através da sua igreja, mas seria caro demais. Depois, os negócios iam mal e ele também era obrigado a garantir o futuro financeiro da esposa e da filha.

Então, foi surgindo uma solução em sua cabeça, de certa forma diabólica. Heinrich vinha resistindo há algum tempo aos pedidos de Johanna para fazerem uma longa viagem pela Europa. Os tempos estavam difíceis e a política interna tão instável que ameaçava a segurança das cidades da Liga Hanseática, o que exigia dele atenção constante nos negócios. Mas o cansaço e a vontade de largar o peso das responsabilidades no trabalho minaram sua resistência ao pedido da esposa. Aos poucos, imaginou um plano inspirado que teria dois propósitos: agradar a esposa e decidir o futuro de Arthur.

Resolveu dar uma escolha ao filho de quinze anos. — Ou você acompanha seus pais numa grande viagem de um ano por toda a Europa, ou fica com a carreira de erudito. Ou promete para mim que no dia em que voltar da viagem, começa o aprendizado nos negócios, ou esquece a viagem, fica em Hamburgo e imediatamente passa a estudar os clássicos e assim se preparar para a vida acadêmica.

Imagine-se um menino de quinze anos tendo de tomar uma decisão que valeria pelo resto da vida. Talvez o sempre pedante Heinrich estivesse dando uma lição de vida. Talvez estivesse ensinando ao filho que as escolhas são excludentes, para todo sim existe um não. (Anos depois, Arthur escreveria: "Aquele que quer ser tudo não pode ser nada".)

Ou será que Heinrich estava dando ao filho um aperitivo de renúncia, ou seja, se não podia renunciar ao prazer da viagem, como renunciaria aos prazeres mundanos e teria a vida modesta de um erudito?

Talvez estejamos sendo muito generosos com Heinrich. É mais provável que sua proposta fosse falsa, pois sabia que o filho não ia, nem podia, recusar a viagem. Nenhum rapaz de quinze anos podia fazer isso no ano de 1803. Na época, uma viagem assim custava uma fortuna que poucos privilegiados faziam uma vez na vida. Antes da invenção da fotografia, os lugares no exterior só eram conhecidos por desenhos, quadros, livros e diários de viagem (gênero, aliás, que Johanna Schopenhauer iria explorar mais tarde com muito brilho).

Será que Arthur achou que estava vendendo a alma? Será que ficou atormentado com a decisão? Não se sabe. Sabemos apenas que em 1803, aos quinze anos, ele partiu com o pai, a mãe e um criado numa viagem de quinze meses por toda a Europa Ocidental e a Grã-Bretanha. Adele, a irmã de seis anos, ficou com um parente em Hamburgo.

Arthur registrou muitas impressões em seus diários de viagem, escritos, como pediram seus pais, na língua do país visitado. Tinha enorme talento para línguas e aos quinze anos era fluente em alemão, francês e inglês, além de ter noções de italiano e espanhol. Acabaria dominando uma dúzia de línguas modernas e antigas e tendo por hábito (como quem visita sua biblioteca pode notar) fazer anotações nas margens dos livros na língua em que foram escritos.

Os diários de viagem de Arthur dão uma pequena idéia dos interesses e traços que iriam formar a base de sua personalidade. Um forte subtexto nos diários é a atração pelos horrores da humanidade. Com muitos detalhes, Arthur descreve cenas impressionantes de mendigos esfomeados na Westfália, multidões fugindo em pânico da guerra iminente (as campanhas napoleônicas estavam para começar), os bandos de ladrões, batedores de carteira e bêbados em Londres, os grupos de saqueadores em Poitiers, a guilhotina exibida para o público em Paris, os seis mil condenados às galés em Toulon mostrados como animais num zoológico, acorrentados pelo resto da vida em navios parados e arruinados demais para navegar. Arthur descreveu também a fortaleza em Marselha, onde havia estado o Homem da Máscara de Ferro, e o Museu da Peste, onde se lia a recomendação que as cartas enviadas das partes isoladas da cidade deviam antes ser mergulhadas em baldes de vinagre quente. E em Lyon, Arthur observou que as pessoas caminhavam, indiferentes, pelo mesmo lugar onde seus pais e irmãos foram mortos na Revolução Francesa.

Arthur aperfeiçoou o inglês num colégio interno em Wimbledon, na Inglaterra, onde estudou Lorde Nelson; assistiu a execuções públicas e ao chicoteamento de marinheiros, visitou hospitais e asilos, e andou pelos enormes e atulhados cortiços de Londres.

Quando jovem, Buda morou no palácio do pai, onde foi poupado de conhecer os pobres do mundo. Só quando saiu do palácio pela primeira vez, viu os três grandes males da vida: os doentes, os velhos e os mortos. Descobrir a natureza trágica e terrível da existência fez com que renunciasse a tudo e buscasse alívio do sofrimento.

A vida e a obra de Arthur Schopenhauer também foram profundamente influenciadas por essas visões precoces do sofrimento. Ele percebeu a semelhança de sua experiência com a de Buda, e, anos depois, ao escrever sobre a viagem, disse: "Aos dezessete anos, sem educação escolar, entendi a miséria do mundo, como Buda em sua juventude ao ver a doença, a dor, a velhice, a morte".

Arthur nunca teve uma fase religiosa, não tinha fé, e quando jovem, quis acreditar, teve vontade de fugir de uma vida totalmente descrente. Mas, se acreditasse na existência de um Deus, teria passado por dura prova na viagem pelos horrores da civilização européia. Aos dezoito anos, escreveu: "É esse o mundo que dizem ter sido criado por um Deus? Não, deve ter sido por um demônio!"

 

No fim da vida, a maioria dos homens percebe, surpresa, que viveu provisoriamente e que as coisas que largou como sem graça ou sem interesse eram, justamente, a vida. E assim, traído pela esperança, o homem dança nos braços da morte.

O problema é que o gatinho acaba virando gato.

O problema é que o gatinho acaba virando gato.

Julius sacudiu a cabeça para afastar os versos incômodos e sentou-se na cama, acordando. Eram seis da manhã, uma semana tinha se passado, dia do grupo outra vez e as palavras do poeta Ogden Nash davam voltas na cabeça dele como música de fundo, em mais uma noite maldormida.

Todo mundo sabe que a vida é uma sucessão de perdas, mas poucos sabem que uma das piores perdas que nos aguardam nas décadas finais é dormir mal. Julius sabia muito bem disso. Suas noites consistiam num leve cochilo que quase nunca chegava a um profundo e abençoado sono em freqüência delta, interrompido por tantos despertares que ele muitas vezes temia se deitar. Como tantos insones, acordava achando que tinha dormido menos horas do que dormiu, ou que passou a noite acordado. Em geral, só conseguia se convencer de que tinha dormido revendo o que pensou à noite e percebendo que, acordado, não pensaria coisas tão estranhas e irracionais.

Naquela manhã, não tinha a menor idéia de quantas horas dormiu. Os versos do gatinho-gato deviam ter aparecido num sonho, mas as outras coisas em que pensou durante a noite ficaram numa terra de ninguém, sem a clareza e a objetividade da vigília, nem os ardis caprichosos dos pensamentos oníricos.

Sentou-se na cama, repetindo os versinhos de olhos fechados, seguindo a recomendação que dava aos pacientes para separar as fantasias e imagens que aparecem entre o sono e a vigília. O poema falava nas pessoas que gostam de gatinhos, mas não quando eles viram gatos. E o que isso tinha a ver com ele, Julius? Gostava de gatinhos e de gatos, gostou dos dois gatos na loja do pai, gostou dos filhotes deles e dos filhotes dos filhotes, não conseguia entender por que os versos grudaram na cabeça dele de forma tão cansativa.

Pensando melhor, talvez os versos fossem um lembrete amargo de como ele tinha passado a vida inteira preso ao mito errado de que tudo em Julius Hertzfeld (seu destino, sua fama e glória) era uma espiral ascendente e que a vida só iria melhorar. Claro, ele agora percebia que o inverso era verdade (o versinho estava certo), a idade do ouro vinha primeiro, a inocência, o engatinhar, as brincadeiras, o esconde-esconde, o jogo de pique, construir fortes com caixotes vazios de bebidas na loja do pai, quando não sentia o peso da culpa, do engano, do conhecimento ou do dever, aquela tinha sido a melhor época da vida. Com o passar dos anos, a chama diminuiu e a vida ficou implacavelmente mais sombria. O pior ficava no fim. Lembrou do que Philip falou da infância na sessão anterior. Sem dúvida, Nietzsche e Schopenhauer acertaram.

Balançou a cabeça, triste. Era verdade, ele nunca tinha realmente desfrutado o momento, nunca tinha sentido o presente, nunca pensou: "É isso, agora, hoje, é isso o que eu quero! Os velhos bons tempos são hoje, exatamente agora. Vou ficar nesse instante, vou criar raízes nesse lugar para sempre." Não, ele sempre achou que o melhor da vida ainda estava por ser descoberto e ansiava pelo futuro, quando estaria mais velho, mais inteligente, maior, mais rico. E então veio a revolta, a grande virada, a súbita e dramática desidealização do futuro e o início do doloroso desejar o que já tinha sido.

Quando foi aquela mudança? Quando a nostalgia substituiu a promessa dourada do amanhã? Não foi no colégio, onde ele considerava tudo como um prelúdio (e um obstáculo) para o grande prêmio: entrar na Faculdade de Medicina. Também não foi na faculdade onde, nos primeiros anos, ansiava para sair das salas de aula e entrar nas enfermarias como médico, de jaleco branco, um estetoscópio saindo do bolso ou dependurado casualmente no pescoço como um xale de aço e borracha. Também não foi no terceiro e quarto anos da faculdade, quando finalmente assumiu seu posto no hospital. Então, desejou mais autoridade: ser importante, tomar decisões médicas vitais, salvar pessoas, batalhar, olhar um paciente e empurrá-lo na maça pelo corredor para o centro cirúrgico numa emergência. Também não foi quando se tornou residente-chefe de psiquiatria, escondido atrás da cortina do xamanismo, e ficou pasmo com os limites e incertezas da profissão que escolheu.

Sem dúvida, a mania crônica de não se prender ao presente tinha destruído seu casamento. Ele gostou de Míriam desde o instante em que a viu no colégio, ao mesmo tempo em que a considerou um impedimento para não aproveitar a multidão de mulheres que ele queria ter. Julius nunca admitiu por completo que sua caçada tinha acabado ou que a liberdade de obedecer ao desejo estava, no mínimo, reduzida. Quando começou no hospital, descobriu que o dormitório dos residentes ficava ao lado dos quartos da Escola de Enfermagem, cheia de jovens casadouras que adoravam médicos. Era uma verdadeira loja de doces e ele se empanturrou de todos os sabores.

A mudança deve ter sido só depois da morte de Míriam. Nos dez anos seguintes ao acidente de carro que a levou, sentiu mais carinho por ela do que quando era viva. Às vezes, ficava angustiado ao pensar em sua satisfação física com Míriam, os momentos realmente idílicos e sublimes da vida tinham surgido e acabado sem que ele aproveitasse de verdade. Mesmo naquela hora, dez anos depois, não conseguia pronunciar seu nome rápido, tinha de fazer uma pausa em cada sílaba. Sabia também que não se interessaria muito por nenhuma outra mulher. Várias tinham afastado a solidão dele por algum tempo, mas logo percebeu, e elas também, que jamais iriam ocupar o lugar de Míriam. Nos últimos tempos, a solidão era atenuada pelos dois filhos e por um vasto círculo de amigos homens, vários deles colegas no grupo terapêutico de apoio. Nesses anos, tinha passado todas as férias com os dois filhos e cinco netos.

Mas todas essas idéias e lembranças foram apenas trechos e partes do que pensou durante a noite; o principal foi ensaiar o que teria de dizer ao grupo de terapia naquela tarde.

Já havia contado do câncer para muitos amigos e para os pacientes individuais, mas, estranho, estava muito preocupado com seu desempenho no grupo. Achava que tinha um pouco a ver com o fato de ser apaixonado pelo grupo de terapia. Há vinte e cinco anos aguardava ansioso por cada sessão. O grupo era mais que um bando de gente, pois tinha vida própria e personalidade forte. Apesar de não restar ninguém do grupo original (exceto ele, claro), havia um sentimento persistente e estável, uma cultura (no jargão da profissão, uma série de normas tácitas) que parecia imortal. Nenhum integrante era capaz de listar as normas do grupo, mas todos sabiam se determinado comportamento convinha ou não.

Aquela atividade exigia dele mais energia do que qualquer outra na semana e Julius esforçava-se muito para manter o grupo navegando. Era como um venerando e misericordioso navio que havia transportado uma horda de gente atormentada até portos mais seguros e mais felizes. Quantas pessoas? Bom, como a média de permanência era de dois a três anos por pessoa, achava que tinha tido pelo menos uma centena de passageiros. De vez em quando, lembrava de alguém que tinha saído, fragmentos de uma permuta, uma imagem passageira de um rosto ou fato. Pena que esses fogos-fátuos de memória fossem só o que sobrara de horas ricas e vibrantes, de fatos borbulhantes de vida, significado e pungência.

Anos antes, Julius tinha experimentado gravar o grupo em vídeo e mostrar na sessão seguinte alguma coisa especialmente problemática. As velhas fitas tinham formato antigo, que não era mais compatível com os equipamentos atuais. Às vezes, ele pensava em pegá-las no porão, mandar transcodificá-las e ressuscitar os pacientes que se foram. Mas nunca fez isso, não agüentava se expor à ilusão de vida armazenada numa fita brilhante e ver com que rapidez o instante presente e todos os seguintes sumiriam no nada das pequenas ondas eletromagnéticas.

Os grupos de terapia precisam de tempo para alcançar estabilidade e segurança. Muitas vezes, um grupo novo rejeita quem não consegue (por falta de motivação ou capacidade) se envolver, isto é, interagir com os outros e analisar essa interação. Pode haver então semanas de conflitos difíceis, com os integrantes competindo por uma posição de poder, atenção e influência, mas, quando ganham confiança, a possibilidade de cura aumenta. Scott, um colega de Julius, uma vez comparou um grupo de terapia com uma ponte construída numa batalha. Na primeira fase da construção há muitas vítimas (isto é, gente que larga o grupo), mas depois que a ponte fica pronta, conduz muitos (as pessoas que estavam antes e todos os que chegaram depois) para um lugar melhor.

Julius tinha escrito artigos em publicações especializadas sobre as diversas formas de a terapia de grupo ajudar os pacientes, mas era sempre difícil descrever o ingrediente realmente importante: o ambiente curativo. Num artigo, comparou esse ambiente com um tratamento contra uma grave lesão na pele, em que o paciente fica imerso em banhos calmantes de aveia.

Uma das maiores vantagens adicionais dessa atividade (nunca citada na literatura especializada) é que um bom grupo costuma curar os pacientes e também o terapeuta. Julius costumava sentir um alívio após uma sessão, mas nunca soube de que forma exatamente aquilo funcionava. Será que era apenas uma questão de esquecer de si mesmo por noventa minutos, ou do ato altruístico da terapia, ou de aproveitar do próprio conhecimento, orgulhoso de sua capacidade e de merecer a admiração dos outros? Todas as opções acima? Julius desistiu de saber; nos últimos anos, aceitava a explicação simplista de apenas mergulhar nas águas curativas do grupo.

Comunicar ao grupo sobre o melanoma parecia um momento grave. Ele achava que uma coisa era contar à família, aos amigos e a todos os colegas; outra, tirar a máscara para sua platéia primeira, aquele seleto bando para o qual ele havia sido o que cura, o médico, o sacerdote e xamã. Era um passo irreversível admitir que estava incapacitado, confessar em público que sua vida não era mais uma espiral para cima rumo a um futuro maior e mais brilhante.

Julius pensou muito em Pam, que estava ausente e só devia voltar de viagem dentro de um mês. Lastimou que ela não estivesse lá para ouvir aquela revelação. Achava que ela era a pessoa-chave no grupo, uma presença sempre confortadora e curativa para os outros (e para ele). Ficou aborrecido porque o grupo não conseguiu ajudá-la em sua raiva e obsessão com o ex-marido e o ex-amante, e ela, desesperada, foi buscar ajuda num centro de meditação budista na Índia.

Assim, lidando com todos esses sentimentos, Julius entrou na sala do grupo às quatro e meia. Todos já estavam sentados e cada um olhava um papel que sumiu quando ele entrou.

Que estranho, pensou. Será que estava atrasado? Deu uma olhada rápida no relógio. Não, quatro e meia em ponto. Esqueceu aquilo e começou a recitar o que tinha ensaiado.

Bom, vamos começar. Como sabem, não costumo iniciar a sessão, mas hoje é exceção porque preciso tirar um peso do peito, uma coisa difícil de dizer. É o seguinte.

Cerca de um mês atrás, soube que estou com uma forma grave ou, melhor, mais que grave, uma forma letal de câncer de pele, um melanoma maligno. Eu achava que estava bem de saúde; soube disso num recente exame médico de rotina.

Julius parou. Alguma coisa estava esquisita. O rosto e a linguagem não-verbal das pessoas não estavam combinando. O comportamento deles estava errado. Deviam ter se virado e olhado para ele, mas ninguém olhou, ninguém o encarou, olhavam para o outro lado, para nada, menos Rebecca, que estudava disfarçadamente o papel no colo.

— O que há? — perguntou Julius. — Será que não estou sendo claro? Vocês parecem preocupados com outra coisa. Rebecca, o que está lendo?

Ela imediatamente dobrou o papel, enfiou na bolsa e evitou olhar para Julius. Ficaram todos quietos até Tony quebrar o silêncio.

Bom, vou falar. Não posso falar por Rebecca, só por mim. O problema, quando você estava falando, é que eu já sabia o que ia contar da sua saúde. Por isso era difícil olhar para você e fingir que estava ouvindo uma novidade. Ao mesmo tempo, não podia interromper você e dizer que já sabia.

Como? Como sabia o que eu ia dizer? Que diabo está havendo?

Julius, desculpe, vou explicar — disse Gill. — Quer dizer, de certa forma, o culpado sou eu. Depois da última sessão, eu continuava mal, sem saber se ia para casa e aonde dormir naquela noite. Insisti para irmos todos à lanchonete, onde continuamos a falar.

Ah, sim? E aí? — Julius insistiu, rodando a mão em pequenos círculos como se dirigisse uma orquestra.

Bom, Philip contou qual era o problema, da sua saúde e do mieloma maligno.

Melanoma — corrigiu Philip, calmo.

Gill deu uma olhada no papel que tinha na mão. — Isso, melanoma. Obrigado, Philip. Continue, estou confuso.

Mieloma múltiplo é um câncer dos ossos — disse Philip. — Melanoma é câncer da pele, a palavra vem de melanina, pigmento da pele.

Então esses papéis são (...) — interrompeu Julius, indicando para Gill ou Philip explicarem.

Philip baixou na Internet informações sobre a sua doença e fez um resumo para nós, que entregou quando entramos na sala, minutos atrás. — Gill estendeu sua cópia para Julius, que leu o título: Melanoma maligno.

Atordoado, Julius recostou-se na cadeira. — Eu, hum, não sei como dizer, me sinto invadido, parece que eu tinha uma grande notícia para dar a vocês e fui furado na reportagem da minha vida, ou da minha morte. — Virando-se para Philip, perguntou: — Você pensou em como eu me sentiria?

Philip continuou impassível, sem responder nem olhar para Julius.

Julius, você não está sendo muito justo — disse Rebecca, tirando a presilha, soltando os longos cabelos negros e enrolando-os num coque no alto da cabeça. — Philip não fez nada de errado. Primeiro, ele não queria ir à lanchonete depois da sessão. Disse que não se enturmava, que tinha de preparar uma aula. Nós quase tivemos que arrastá-lo.

Isso mesmo — concordou Gill, e acrescentou: — Falamos principalmente de mim e de minha mulher e onde eu poderia dormir naquela noite. Depois, claro, perguntamos a Philip porque ele estava fazendo terapia, o que é bastante natural (toda pessoa que entra responde a isso), e ele disse do telefonema que você deu por causa da sua doença. Ficamos muito surpresos e tivemos de insistir para ele contar tudo. Considerando a situação, acho que ele não conseguiria escapar da gente.

Philip até perguntou se era legal o grupo se reunir sem você.

Legal? Philip usou essa palavra? — perguntou Julius.

Bom, não. Fui eu que usei — explicou Rebecca. — Mas era o que ele queria dizer e contei que costumamos nos encontrar depois na lanchonete e que você nunca foi contra, só pede que contemos tudo a quem não estava para não haver segredo entre nós.

Foi bom que Rebecca e Gill deram um espaço de tempo para Julius se acalmar. A cabeça dele ardia com pensamentos negativos. Esse babaca, filho da puta traiçoeiro. Tentei ajudá-lo e eis a retribuição, toda boa ação é castigada. Posso imaginar o quanto falou nele mesmo e que fez terapia comigo primeiro porque (...) aposto uma nota que esqueceu de propósito de contar quefudeu com mais de mil mulheres sem ter qualquer afeto ou interesse por nenhuma.

Mas Julius esqueceu tudo isso, afastou o rancor aos poucos e considerou os fatos ocorridos após a última sessão. Viu que, claro, o grupo insistiria para Philip ir à lanchonete e ele se sentiria obrigado a ir. Na verdade, Julius achava que estava em falta por não ter avisado Philip daquelas reuniões periódicas pós-sessão. E, claro, o grupo iria perguntar por que Philip estava na terapia, Gill tinha razão, eles sempre perguntam a uma pessoa nova e claro que Philip teria que contar aquela estranha história e o que combinaram, como não? Quanto à idéia de distribuir informação sobre o melanoma maligno, claro que foi para ser simpático com o grupo.

Julius estava trêmulo, não conseguia sorrir, mas tomou coragem e continuou: — Bom, vou me esforçar para falar nisso. Rebecca, me empreste esse papel. — Deu uma olhada rápida. — As informações médicas parecem corretas, por isso não vou repeti-las, só completar com o que aconteceu. Começou quando meu médico percebeu uma mancha diferente nas minhas costas, que a biópsia confirmou ser um melanoma maligno. Evidente que por isso cancelei as sessões duas semanas, foram semanas duras, muito duras, mergulhei fundo. — A voz de Julius fraquejou. — Como vêem, ainda é duro. — Parou, tomou fôlego e prosseguiu: — Os médicos não podem prever, mas o importante é que acreditam que tenho pelo menos um ano de saúde. Portanto, esse grupo estará funcionando como sempre nesses doze meses. Não, esperem, vou dizer de outro jeito: se a saúde permitir, me comprometo a ficar com vocês por mais um ano, quando então o grupo acaba. Desculpem a falta de jeito, não tenho prática nisso.

Julius, sua doença é mesmo letal? A informação que Philip encontrou na Internet, aquelas estatísticas sobre os estágios do melanoma? —perguntou Bonnie.

A resposta direta para uma pergunta direta é "sim", é letal. Há grande chance da coisa me pegar. Sei que não foi fácil perguntar isso, mas agradeço sua objetividade, Bonnie, pois sou igual à maioria das pessoas com doenças graves: detesto que os outros fiquem cheios de dedos comigo. Isso só faria me isolar e assustar. Preciso me acostumar com a nova realidade. Não gosto da idéia, mas o fato é que levar a vida como uma pessoa saudável e despreocupada, bom, isso está realmente acabando.

Pensei no que Philip disse a Gill na semana passada. Será que serve para você, Julius? — perguntou Rebecca. — Não sei se foi na lanchonete ou aqui no grupo, mas era algo sobre se definir ou definir sua vida através dos afetos. É isso, Philip?

Quando falei com Gill na semana passada — respondeu Philip, em tom medido e sem encarar ninguém — mostrei que quanto mais apegos se tem, mais pesada fica a vida e mais sofre a pessoa quando perde isso. Schopenhauer e o budismo dizem que não devemos nos apegar a nada e (...)

Não acho que isso vá me ajudar — interrompeu Julius. — Também não acho que essa sessão deva tomar esse rumo. — Percebeu um olhar rápido e preocupado entre Rebecca e Gill, mas continuou: — Pelo contrário, ter muitas ligações é fundamental para uma vida plena e evitá-las por achar que causarão sofrimento é uma boa receita para viver só pela metade. Não quero cortar o que você estava dizendo, Rebecca, porém acho mais adequado saber sua reação e a de todos em relação à notícia que dei. Obviamente, saber que estou com câncer causou emoções fortes, conheço vários de vocês há muito tempo. — Julius parou e olhou as pessoas.

Tony, que estava jogado na cadeira, se aprumou. — Bem, levei um susto quando você disse que o importante para nós era saber por quanto tempo você poderia continuar com o grupo (esse comentário me doeu, apesar de me acusarem de ser casca grossa). Admito que pensei nisso, mas, Julius, o que mais me preocupa é o que isso significa para você, quer dizer, você foi muito, quer dizer, realmente importante para mim, me ajudou em coisas muito difíceis, quer dizer, tem alguma coisa que eu, que nós, possamos fazer? Deve ter sido terrível para você.

Concordo — disse Gill e todos os demais concordaram (menos Philip, que ficou calado).

Vou responder a você, Tony, mas antes quero dizer que estou bem emocionado e que há dois anos atrás vocês não conseguiriam ser tão objetivos e demonstrar tanta generosidade. Respondendo à sua pergunta, foi terrível. Meus sentimentos vêm em ondas. Bati no fundo do poço nas duas primeiras semanas, quando cancelei as sessões. Conversei muito com meus amigos, com toda a minha rede de apoio. Agora, nesse momento, estou melhorando. A gente se acostuma com tudo, até com uma doença fatal. Na noite passada ficou na minha cabeça a frase A vida é só uma porra de perda após outra.

Julius calou-se. Ninguém falou. Todos olhavam para baixo. Ele então disse: — Quero lidar com essa situação de frente, aceito discutir as coisas, não quero fugir de nada, mas, a não ser que façam uma pergunta específica, já falei bastante e não preciso da sessão inteira hoje. Quero dizer que tenho força para trabalhar com vocês aqui do jeito de sempre. Aliás, é importante para mim que continuemos como sempre.

Após um pequeno silêncio, Bonnie disse: — Para ser sincera, Julius, tenho um assunto para falar, mas não sei, meus problemas parecem insignificantes comparados com o seu.

Gill olhou para cima e acrescentou: — Eu também. O meu caso, se aprendo ou não a falar com minha mulher, se fico com ela ou largo o navio afundando, tudo isso parece bobagem comparado com você.

Philip achou que era a deixa para ele entrar. — Spinoza gostava de usar uma expressão latina, sub specie aeternitatis, que significa do ponto de vista da eternidade. Dizia que os fatos perturbadores do cotidiano ficam menos complicados se forem vistos sob a perspectiva da eternidade. Acho que esse conceito talvez seja uma ferramenta pouco valorizada na terapia. Talvez — nesse ponto, Philip virou-se diretamente para Julius — possa dar um pouco de consolo até para o grave problema que você está enfrentando.

— Vejo que você tenta me dar alguma coisa, Philip, e agradeço. Mas agora, nesse momento, pensar numa visão cósmica da existência não é o remédio que me serve. Explico por quê. Na noite passada não dormi bem, estava triste por não ter conseguido apreciar o que tinha no momento em que tive. Quando jovem, sempre considerei o presente como uma preparação para algo melhor que aconteceria no futuro. E então os anos se passaram e eu de repente estava fazendo o contrário (e mergulhando na nostalgia). Não consegui valorizar cada instante e esse é o problema com sua sugestão de desapego. Acho que vê a vida pelo lado errado do telescópio.

Gostaria de fazer uma observação, Julius — disse Gill. — Acho que você não vai aceitar nada do que Philip disser.

Aceito sempre uma observação, mas essa é uma opinião, Gill. Qual é a observação?

Bom, é que você não tem respeitado nada do que ele oferece.

Sei o que Julius vai dizer, Gill — interveio Rebecca. — Continua não sendo uma observação, é uma hipótese do que ele sente. Essa foi a primeira vez que Julius e Philip se falaram, embora indiretamente. Acho também que Julius interrompeu Philip várias vezes hoje, e nunca o vi fazer isso com ninguém.

Muito bem, Rebecca. Uma observação direta e correta — disse Julius.

Julius, não estou entendendo bem essa história. É verdade que você ligou para Philip, assim, de repente? — perguntou Tony.

Julius ficou de cabeça baixa alguns minutos, depois disse: — É, deve ter sido complicado para vocês entenderem. Bom, vou contar tudo, ou tudo o que lembrar. Após o diagnóstico da doença, fiquei desesperado. Achei que era uma sentença de morte e fiquei atordoado. Entre outras coisas ruins, pensei se tinha feito alguma coisa na vida que fosse duradoura em algum sentido. Pensei nisso uns dois dias e, como minha vida é tão ligada ao trabalho, pensei nos pacientes antigos. Será que eu tinha influenciado a vida de alguém para sempre? Achei que não havia tempo a perder e, na mesma hora, resolvi procurar alguns pacientes. Philip foi o primeiro e, até o momento, o único que consegui localizar.

E por que escolheu Philip? — perguntou Tony.

Essa é a pergunta que vale cem mil dólares, talvez a quantia esteja defasada, deve valer um milhão de dólares. Resposta curta: não sei. Pensei bastante nisso. Não foi uma atitude inteligente da minha parte porque, se eu queria confirmar meu valor, teria muitas outras pessoas a quem recorrer. Por mais que tenha me esforçado durante três longos anos, não ajudei Philip. Talvez eu esperasse ouvir algum efeito retardado da terapia, alguns pacientes têm isso. Mas não houve com ele. Talvez eu estivesse sendo masoquista, quisesse esfregar o fato no nariz. Talvez, ainda, eu tenha escolhido meu maior fracasso para me dar uma segunda chance. Confesso que não sei quais foram os motivos. E então, durante nossa conversa, Philip contou que tinha mudado de profissão e perguntou se eu poderia fazer a supervisão dele. Suponho que você tenha contado tudo isso ao grupo — disse Julius, virando-se para Philip.

Dei os detalhes necessários.

Pode ser um pouco mais claro?

Philip desviou o olhar enquanto o resto do grupo ficava constrangido e, após um longo silêncio, Julius disse: — Desculpe a ironia, Philip, mas você consegue perceber como fico com a sua resposta?

— Como eu disse, dei os detalhes necessários — repetiu Philip. Bonnie olhou para Julius. — Para ser sincera, isso está ficando

desagradável, vou tentar ajudar. Acho que você hoje não precisa ser contestado, precisa é de receber carinho. Por favor, o que podemos fazer por você hoje?

— Obrigado, Bonnie, tem razão. Hoje estou muito confuso, sua pergunta é ótima, mas não sei se consigo responder. Vou contar-lhes um grande segredo: algumas vezes entrei nesta sala me sentindo mal por causa de problemas pessoais e saí melhor só por fazer parte desse grupo maravilhoso. Portanto, talvez seja a resposta para sua pergunta. O melhor para mim é apenas que todos usem o grupo e não permitam que meu problema interrompa nada.

Após um curto silêncio, Tony disse: — Tarefa difícil, considerando o que houve hoje.

Eu também me sentiria mal de falar de outra coisa — concordou Gill.

Nessas horas, sinto falta de Pam, ela sempre sabia o que fazer, por mais difícil que fosse a situação — lembrou Bonnie.

Engraçado, também pensei nela — acrescentou Julius.

Deve ser telepatia, pensei em Pam há um minuto, quando Julius falou em vitórias e fracassos — disse Rebecca, e virando-se para Julius: Sei que ela era sua preferida aqui na nossa família e isso não se discute, é óbvio. Mas pergunto: você acha que fracassou por ela passar dois meses fora do grupo, buscando outro tipo de tratamento por não conseguirmos ajudá-la? Não deve ter sido bom para sua auto-estima.

Julius fez um gesto na direção de Philip: — Acho que você pode explicar um pouco para ele.

Então Rebecca disse a Philip, sem conseguir que se olhassem: — Pam é uma grande força aqui no grupo. O casamento dela e um caso amoroso acabaram ao mesmo tempo, pois ela resolveu largar o marido, mas o amante preferiu ficar com a mulher com quem era casado. Pam ficou irritada com os dois e obcecada por eles. Por mais que tentássemos, não conseguimos ajudá-la. Desesperada, ela foi para a Índia procurar um famoso guru num centro de meditação budista.

Philip não disse nada.

Rebecca virou-se para Julius. — O que achou da viagem dela?

Olha, se fosse há quinze anos, eu ficaria bem preocupado. Mais: teria sido totalmente contra e diria que buscar outro tipo de solução era apenas uma resistência. Mas mudei. Hoje, preciso de toda ajuda que puder receber. E acho que procurar um outro tipo de crescimento, mesmo que seja meio maluco, sempre pode oferecer novas saídas para nosso trabalho terapêutico. Espero realmente que isso aconteça com Pam.

Pode não ter sido uma coisa meio maluca, mas uma ótima escolha para ela — disse Philip. — Schopenhauer apreciava as técnicas de meditação orientais e o destaque que elas dão à liberação da mente, de ver através da ilusão e aliviar o sofrimento aprendendo a arte do desapego. Aliás, foi ele quem trouxe o pensamento oriental para a filosofia do Ocidente.

O comentário de Philip não foi dirigido a ninguém em particular e ninguém respondeu. Julius ficou irritado de ouvir tantas vezes o nome de Schopenhauer, mas calou-se ao perceber que várias pessoas gostaram da observação.

Após um pequeno silêncio, Stuart comentou: — Não seria bom voltarmos ao assunto de cinco minutos atrás, quando Julius disse que o melhor para ele é trabalharmos no grupo?

— Concordo, mas por onde começamos? — perguntou Bonnie. — Que tal voltarmos a falar de você e sua mulher, Stuart? A última coisa que ouvimos foi que ela mandou um e-mail dizendo que pensava em terminar o casamento.

— Já nos acertamos, está tudo bem. Ela se mantém a distância,

mas pelo menos as coisas não pioraram. Vejamos o que mais ficou pendente no grupo. — Stuart deu uma olhada nas pessoas. — Pensei em duas coisas. Gill, que tal contar como estão você e Rose? E Bonnie, você disse antes que tinha algo a dizer, mas parecia comum demais.

Hoje, abro mão da minha vez — disse Gill, olhando para baixo. — Semana passada tomei muito tempo na sessão. Mas a verdade é que fui vencido, capitulei. Estou envergonhado de voltar para a mesma situação em casa. Não adiantaram todos aqueles bons conselhos de Philip e de vocês. E você, Bonnie?

Hoje minhas coisas estão parecendo bobagem.

Lembrem da minha versão da Lei de Boyle — disse Julius. — Uma pequena quantidade de inquietação vai acabar ocupando todo o nosso espaço de inquietação. A sua é tão ruim quanto a dos outros, que têm causas obviamente mais graves. — Olhou o relógio: — Já estamos quase passando da hora, vocês querem falar? Ou colocar na agenda da próxima semana?

Você prefere que eu fale agora para não ficar com medo na semana que vem, não? — perguntou Bonnie. — Boa idéia. O que eu tinha a dizer está ligado a eu ser sem graça, gorda e desajeitada, enquanto Rebecca e Pam são lindas e interessantes. Mas Rebecca, você principalmente, me traz sentimentos antigos e tristes que sempre tive (de ser boba, sem graça, desprezada). — Bonnie parou e olhou para Julius. — Pronto, saiu.

E os comentários ficam na agenda da próxima semana — disse Julius, levantando-se para mostrar que a sessão tinha terminado.

 

Uma pessoa de raros dons intelectuais, obrigada a fazer um trabalho apenas útil, é como um jarro valioso, com as mais lindas pinturas, usado como pote de cozinha.

1807 — Como Schopenhauer quase foi comerciante

A grande viagem da família Schopenhauer terminou em 1804 e Arthur, então com dezesseis anos, cumpriu pesaroso a promessa feita ao pai e iniciou o aprendizado de sete anos com Senator Jenisch, grande comerciante de Hamburgo. Passou a levar uma vida dupla, cumprindo todas as tarefas do aprendizado, mas, nas horas livres, estudava escondido as grandes idéias da história do pensamento. A figura do pai, porém, estava tão internalizada que o rapaz sentia muito remorso por esses momentos roubados.

Nove meses depois, ocorreu o grande fato que marcou a vida de Arthur para sempre. Embora o pai tivesse apenas sessenta e cinco anos, sua saúde mental piorava rapidamente: ele parecia ciumento, cansado, deprimido e muito confuso, às vezes não conseguia reconhecer nem velhos companheiros. No dia vinte de abril de 1805, embora doente, conseguiu subir devagar até o último andar do armazém e jogou-se da janela no Canal Hamburgo. Horas depois, seu corpo foi encontrado flutuando nas águas geladas.

Todo suicídio deixa um rastro de choque, culpa e raiva nos que ficam e Arthur sentiu tudo isso. Imagine-se a complexidade de seus sentimentos. O amor que tinha pelo pai resultou em enorme tristeza e perda. O rancor causou remorso e mais tarde ele comentou várias vezes o quanto sofreu com a dureza excessiva do pai. E a maravilhosa perspectiva de liberação deve ter provocado muita culpa: Arthur sabia que o pai jamais teria deixado que ele se tornasse um filósofo. Nesse aspecto, pode-se pensar nos dois outros grandes filósofos morais livre -pensadores, Nietzsche e Sartre, que perderam o pai quando jovens. Será que Nietzsche teria se tornado o Anticristo se o pai, um pastor luterano, não tivesse morrido quando ele era criança? Na autobiografia de Sartre, ele demonstra alívio por não precisar ter a aprovação do pai. Outros, como Kierkegaard e Kafka, por exemplo, não tiveram tanta sorte: passaram a vida oprimidos pelo julgamento do pai.

Embora a obra de Schopenhauer contenha uma enorme gama de idéias, temas, curiosidades históricas e científicas, conceitos e sentimentos, há apenas dois trechos pessoais e ternos, ambos sobre o pai. Num, Arthur demonstra orgulho pela honestidade do pai ao dizer que trabalhava para ganhar dinheiro, e compara essa sinceridade com a falsidade de muitos colegas filósofos (sobretudo, Hegel e Fitche) que almejam riqueza, poder e fama, mas fingem que trabalham pela humanidade.

Aos sessenta anos, Arthur pensou em dedicar sua obra completa à memória do pai. Escreveu e reescreveu a dedicatória que acabou jamais sendo publicada. Uma das versões dizia: "Nobre e maravilhoso espírito ao qual devo tudo o que sou e tenho (...) quem encontrar em minha obra qualquer alegria, consolo, erudição, que ouça o nome dele e saiba que, se Heinrich Schopenhauer não tivesse sido quem foi, Arthur Schopenhauer teria acabado cem vezes."

A intensidade da devoção filial continua intrigante, já que Heinrich não manifestava qualquer afeto pelo filho. As cartas que lhe escreveu eram cheias de críticas, como: "Dançar e andar a cavalo não sustentam um comerciante cujas cartas precisarão ser lidas e, portanto, devem ser bem escritas. Às vezes, vejo que suas letras maiúsculas são horríveis." Ou: "Não fique encurvado, dá péssima aparência. (...) num jantar, se alguém vê uma pessoa curvada, acha que é um alfaiate ou sapateiro disfarçado." Na última carta que escreveu para o filho, Heinrich ensinou: "Quanto a andar e sentar-se ereto, deve pedir a quem estiver com você para lhe dar um soco nas costas sempre que esquecer esse detalhe importante. É o que fazem os filhos dos príncipes, sem se importar com a dor passageira. É melhor do que parecer parvo."

Arthur era parecido com o pai não só no físico, mas no temperamento. Quando estava com dezessete anos, a mãe escreveu: "Sei que você não foi um jovem muito feliz e que tinha grande tendência à melancolia, triste herança que recebeu de seu pai".

Arthur herdou também o grande senso de integridade do pai, que teve peso decisivo no dilema que enfrentou após ficar órfão: deveria continuar o aprendizado, apesar de odiar comércio? Resolveu fazer o que o pai teria feito: cumprir a promessa.

Escreveu sobre essa decisão: "Continuo com meu patrão no comércio, em parte porque minha enorme tristeza quebrantou meu espírito e em parte porque ficaria culpado se contrariasse meu pai logo após sua morte".

Se Arthur se sentiu paralisado e com uma obrigação após o suicídio do pai, a mãe não teve tais problemas. Rápida como um remoinho, ela mudou tudo. Numa carta ao filho de dezessete anos, escreveu: "Sua personalidade é tão diferente da minha; você é indeciso por natureza, enquanto eu resolvo tudo rápido". Poucos meses após ter enviuvado, ela vendeu a mansão e a respeitável empresa da família e mudou-se de Hamburgo. Contou vantagem para o filho: — Sempre escolho o que for mais emocionante. Em vez de me mudar para a cidade natal e voltar para os amigos e parentes como qualquer mulher teria feito, preferi Weimar, que mal conheço.

Por que Weimar? Johanna era ambiciosa e queria ficar no centro da cultura alemã. Segura de seu traquejo social, sabia que conseguiria bons resultados e, realmente, em poucos meses criou uma incrível vida nova. Promovia o mais animado salão literário de Weimar e foi grande amiga de Goethe e de vários outros grandes escritores e artistas. Logo se tornou também uma bem-sucedida autora de diários de viagem, relatando a excursão da família e uma viagem ao sul da França. Depois, por insistência de Goethe, passou para a ficção e escreveu uma série de romances sentimentais. Foi uma das primeiras alemãs realmente liberadas e a primeira a se sustentar como escritora.

Nos dez anos seguintes, Johanna se tornou uma renomada escritora, a Danielle Steel do século XIX, e, por várias décadas, Arthur foi conhecido apenas como "o filho de Johanna Schopenhauer." No final da década de 1820, ela lançou sua obra completa em vinte volumes.

Apesar de ter sido considerada uma narcisista (graças, principalmente, à crítica severa do filho) e pouco carinhosa, não há dúvida de que liberou Arthur de sua escravidão e abriu-lhe o caminho para a filosofia. O instrumento de libertação foi uma carta decisiva que escreveu em abril de 1807, dois anos após o suicídio do marido.

Querido Arthur,

O tom calmo e sério de sua carta de 28 de março passou da sua para a minha mente, mostrando e revelando que você pode estar prestes a perder sua vocação! Por isso tenho de fazer toda e qualquer coisa que possa salvá-lo, sei o que é ter uma vida que répugna à alma e, se for possível, vou lhe poupar, meu querido filho, esse sofrimento. Ah, meu querido Arthur querido, como a minha opinião era tão pouco importante, o que você queria era, na verdade, o que eu mais desejava e lutei muito para que se realizasse, apesar de tudo o que se dizia contra mim. (...) se você não quiser entrar para a honrada classe dos fariseus, eu, meu caro Arthur, não quero colocar qualquer impedimento em seu caminho, é você quem deve buscar e escolher seu caminho. Depois, eu aconselho e ajudo, onde e como puder. Em primeiro lugar, tente ficar em paz consigo mesmo (...) lembre que deve escolher algo que prometa um bom salário, inclusive porque será seu único sustento, pois não poderá viver só da sua herança. Se você já escolheu, me diga, mas a decisão deve ser sua. (...) Se tem força e vontade de fazer isso, vou lhe dar todo o apoio. Mas não pense que a vida de um erudito é fácil. Eu vejo à minha volta, querido Arthur. É uma vida cansativa e complicada, de muito trabalho, só o prazer dela faz com que seja interessante. Ninguém enriquece com essa vida, um escritor sobrevive com dificuldade. (...) Para ganhar a vida como escritor, é preciso escrever algo excelente. (...) e agora mais que nunca há falta de cabeças brilhantes. Arthur, pense bem e escolha, mas depois fique firme, seja perseverante, pois conseguirá seu intento. Escolha o que quer (...) mas com lágrimas nos olhos imploro, não se menospreze. Seja sério e honesto com você. O bem-estar da sua vida está em jogo, assim como a felicidade da minha velhice, pois só você e Adele podem compensar minha juventude perdida. Eu não suportaria saber que você está infeliz, sobretudo se tivesse de me culpar por deixar essa grande desgraça acontecer a você, apesar de toda a minha flexibilidade. Veja, caro Arthur, que gosto muito de você e quero ajudá-lo em tudo. Recompense-me com sua confiança e decida, seguindo meu conselho de escolher o que quiser. E não me magoe com a rebeldia. Você sabe que não sou teimosa. Sei aceitar argumentos e jamais exigirei nada de você que não possa aceitar com argumentos. (...)

Adieu, querido Arthur, escrevo com pressa e meus dedos doem. Pense em tudo o que eu disse e escrevi, e responda logo.

Sua mãe,

  1. Schopenhauer

Já idoso, Arthur escreveu: — Quando terminei de ler essa carta, chorei muito. — Respondeu que preferiu largar o aprendizado comercial e Johanna argumentou: — Se você fosse outra pessoa, eu ficaria preocupada por tomar uma decisão tão rápida. Acharia que foi precipitada, mas, sendo você, considero que a decisão foi motivada por seu desejo mais profundo.

Johanna não perdeu tempo, avisou o patrão do filho e o proprietário da casa onde morava que ele estava saindo de Hamburgo, providenciou a mudança e matriculou Arthur numa escola em Gotha, a cinqüenta quilômetros da casa dela em Weimar.

Arthur tinha rompido os grilhões.

 

É interessante que, além da vida real, o homem sempre tem uma segunda vida abstrata onde, com calma deliberação, o que antes o deixava nervoso e irritado parece frio, sem graça e distante: ele é mero espectador e observador.

Pam na Índia

Quando o trem que ia de Bombaim para Igatpuri reduziu a marcha e parou numa pequena aldeia, Pam ouviu o tinir dos címbalos rituais e olhou pela vidraça suja da janela. Um menino de olhos negros, que devia ter uns dez ou onze anos, veio correndo com um pano na mão e um balde de plástico amarelo. Há duas semanas, desde que tinha chegado à Índia, Pam só fazia balançar a cabeça para mostrar que não queria. Não queria uma volta com guia pela cidade, não queria engraxar os sapatos, nem tomar suco de tangerina natural e fresco, comprar sari, tênis Nike, trocar dinheiro. Não para mendigos e para inúmeros convites para fazer sexo, insinuações às vezes feitas às claras; às vezes, discretamente, com piscadelas, içar de sobrancelhas, lamber de lábios, ou movimentos de língua. Até que enfim, pensou ela, alguém me oferece algo que preciso. Fez sinal enfático que sim, sim, para o menino limpador de vidraças, que respondeu com um sorriso enorme e dentuço. Encantado com o interesse de Pam, lavou a janela com longos gestos teatrais.

Pam pagou com generosidade e quando ele ficou olhando fixo para ela, fez sinal para que se afastasse. Recostou-se na poltrona e viu uma procissão de aldeões serpentear por uma rua empoeirada atrás de um sacerdote de largas calças vermelhas e xale amarelo. Iam para a praça local e carregavam uma grande estátua de papel mache de Ga-nesha, divindade baixo e gordo como Buda, mas com cabeça de elefante. Todos (o sacerdote, os homens de brilhantes túnicas brancas e as mulheres, de amarelo e laranja) levavam pequenas estátuas do deus. Meninos iam, dois a dois, com muitas flores e incensários de bronze que lançavam nuvens de fumaça. Era meio ao tinir dos címbalos e ao som de bumbos, todos cantavam Ganapathi bappa Moraya, Purchya varshi laukariya.

Por favor, pode me dizer o que eles estão cantando? — perguntou Pam ao homem de pele acobreada, sentado na frente dela, tomando chá, o único passageiro no compartimento. Era delicado, sim pático e usava calças e túnica largas de algodão branco. Ao ouvir a voz de Pam, ele engasgou e tossiu furiosamente. Gostou da pergunta, já que desde que o trem saiu de Bombaim tentava em vão conversar com a linda mulher na sua frente. Após tossir bastante, ele se desculpou: — Perdão, madame. O corpo nem sempre obedece. O que o povo daqui e de toda a Índia está cantando hoje é "Amado Ganapati, senhor de Moraya, volte outra vez no início do próximo ano".

Ganapati?

Sim, é um pouco difícil de explicar. Talvez você o conheça pelo nome mais comum, Ganesha. Ele tem vários outros nomes, como Vighnesvara, Vinayaka, Gajanana.

E a procissão, o que é?

Marca o início dos dez dias de festas de Ganesha. Talvez você tenha a sorte de estar em Bombaim na próxima semana, no fim do festival, e ver a cidade inteira ir à praia mergulhar suas estátuas de Ganesha no mar.

Ah, e aquilo, o que é? Uma lua? Um sol? — Pam mostrava quatro crianças, cada uma com um grande globo de papel machê amarelo.

Vijay gostou das perguntas. Esperava que a parada na estação fosse longa e a conversa continuasse. Mulheres voluptuosas como aquela na frente dele apareciam sempre nos filmes americanos, mas ele nunca teve a sorte de falar com uma. A graça e a beleza da pele clara atiçavam a imaginação de Vijay. Parecia ter saído das antigas esculturas eróticas do Kama Sutra. — Aonde aquilo iria parar? — pensou ele. — Seria aquele o fato que mudaria sua vida e pelo qual esperava há tanto tempo? Estava livre e, graças à sua fábrica de roupas, tinha virado um homem rico para os padrões indianos. Sua noiva adolescente morrera de tuberculose dois anos antes e, até os pais dele escolherem outra, estava desimpedido.

— Ah, é uma lua que as crianças levam seguindo uma antiga lenda. Saiba que o deus Ganesha era famoso pelo apetite. Basta ver sua enorme barriga. Uma vez, foi a um banquete e se empanturrou com doces chamados laddoos. Já experimentou osladdoos?

Pam negou com a cabeça, temendo que ele tirasse um da valise de mão. Uma amiga contraíra hepatite numa casa de chá na Índia, por isso Pam seguiu o conselho médico de só comer em hotéis quatro estrelas. Quando não estava no hotel, restringia-se a comidas que pudesse descascar, como tangerinas, ovos cozidos e amendoins.

Minha mãe fazia deliciosos laddoos de coco e amêndoas — disse Vijay. — São bolinhos de farinha fritos e servidos com calda de cardamomo. Parece uma mistura estranha, mas garanto que são mais do que a soma dos ingredientes. Voltando ao deus Ganesha, ele comeu tanto que não conseguiu ficar de pé, perdeu o equilíbrio e caiu. Sua barriga estourou deixando sair todos os laddoos.

Isso aconteceu à noite, tendo por testemunha apenas a lua, que achou muita graça. Irritado, Ganesha amaldiçoou-a e expulsou-a do universo. Mas o mundo todo lamentou a falta dela. Os deuses se reuniram e pediram a Shiva, pai de Ganesha, que mandasse o filho perdoar a lua. Ela também se desculpou e Ganesha mudou a maldição: a lua teria que ficar invisível um dia por mês, parcialmente visível o resto do mês e só aparecer cheia, em todo seu esplendor, apenas um dia.

Após um breve silêncio, Vijay acrescentou: — É por isso que a lua participa dos festivais de Ganesha.

Obrigada pela informação.

Eu me chamo Vijay Pande.

E eu, Pam Swanvil. Linda essa história e que engraçado esse deus com cabeça de elefante e corpo de Buda. Os aldeões parecem levar seus mitos tão a sério, como se fossem realmente (...)

— É interessante a imagem de Ganesha Vijay interrompeu, gentil, tirando de dentro da camisa uma grande medalha de Ganesha que trazia numa corrente. — Repare que tudo em Ganesha tem um sentido, uma lição de vida. A grande cabeça de elefante é para pensarmos muito. E as orelhas grandes? Para ouvirmos mais. Os olhos pequenos lembram de nos concentrarmos, e a boca pequena, de falarmos menos. Não esqueço a recomendação de Ganesha nem enquanto falo com você (procuro não falar demais). Pode ajudar dizendo se estou falando mais do que você quer saber.

—- Não, não, tenho muito interesse na imagem desse deus.

— Há outras informações, veja mais de perto: nós, indianos, somos pessoas muito sérias — disse ele, pegando uma pequena lupa na pasta de couro pendurada no ombro.

Segurando a lupa, Pam inclinou-se para ver a medalha de Vijay. Sentiu o cheiro de canela, cardamomo e de algodão recém passado a ferro. Como ele podia ter um cheiro tão agradável e fresco naquele compartimento empoeirado e fechado? — Ganesha só tem uma presa — notou ela.

Isso quer dizer: fique com o bom, jogue fora o ruim.

E o que segura? Um machado?

Sim, para cortar todos as ligações, os apegos.

Isso lembra a doutrina budista.

Sim, lembre que Buda saiu da mãe-oceano de Shiva.

E o que segura na outra mão? Não dá para ver direito, é um tecido?

— Uma corda para manter a pessoa próxima de sua meta. De repente, o trem balançou e movimentou-se.

— Nosso trem voltou à vida — disse Vijay. — Repare no veículo usado por Ganesha, aqui, sob os pés dele.

Pam aproximou-se para olhar na lupa e discretamente sentir o cheiro de Vijay. — Ah, sim, o rato. Vi em toda estátua e gravura dele, nunca entendi porque o rato.

— Esse é o atributo mais interessante de todos. O rato significa o desejo. Você só pode montar nele se o controlar, senão ele causa destruição.

Pam calou-se. O trem passou por árvores mirradas, templos, bufalos mergulhados em lagos lamacentos e fazendas cujo solo vermelho havia se exaurido por milhares de anos de plantio. Olhou Vijay e sentiu uma onda de gratidão. Como ele fora discreto e gentil em mostrar a medalha, evitando assim que ela passasse pelo constrangimento de fazer algum comentário irreverente sobre a religião dele. Quando é que um homem fora tão atencioso com ela? "Não", disse para si mesma, "não menospreze outros homens queridos." Lembrou do grupo de terapia. De Tony, que faria tudo por ela. Stuart também sabia ser generoso. E Julius, que parecia ter um amor infinito. Mas a sutileza de Vijay era incomum, era exótica.

E o que pensava Vijay? Também devaneava sobre a conversa com Pam. Estranhamente animado, o coração dele batia forte. Procurou se acalmar. Abriu a pasta de couro e pegou um velho e amassado maço de cigarros, mas não ia fumar (o maço estava vazio e além do mais ele sabia que os americanos são esquisitos em relação a cigarro). Queria apenas olhar o maço azul e branco com o perfil de uma mulher de cartola e, em nítidas letras negras, a marca Cena que passa.

Um de seus primeiros mestres religiosos tinha chamado a atenção para aquela marca que o pai dele fumava e pediu que iniciasse a meditação pensando na vida como uma cena que passa, um rio levando todas as coisas, todas as experiências, todos os desejos, enquanto Vijay assistia, inabalável. Vijay pensou na imagem de um rio fluindo e ouviu as palavras mudas de sua mente anitya, anitya (passagem). — Nada é permanente —lembrou ele —, a vida e todas as coisas passam, é tão certo e garantido quanto a paisagem correndo na janela do trem. Fechou os olhos, respirou fundo e encostou a cabeça na poltrona. O pulso ficou mais lento e ele entrou no bem-vindo porto da serenidade.

Pam olhava Vijay discretamente, e, quando o maço de cigarro caiu no chão, pegou-o, leu a marca e disse: — Cena que passa, que nome diferente para cigarros.

Vijay abriu os olhos devagar e disse: — Como eu falei, nós, indianos, somos muito sérios, até os maços de cigarro trazem mensagens de conduta. A vida é uma cena que passa, medito sobre isso sempre que sinto uma turbulência interna.

— Era o que estava fazendo um minuto atrás? Eu não devia tê-lo interrompido.

Ele sorriu e balançou a cabeça, calmo. — Meu mestre uma vez me disse que ninguém pode ser perturbado por outra pessoa. Só nós podemos perturbar nossa própria serenidade. — Vijay ficou inseguro, sentindo que estava cheio de desejo: queria tanto a atenção da companheira de viagem que transformou sua meditação numa mera curiosidade, tudo para receber um sorriso daquela adorável mulher que era uma aparição, parte de uma cena que passa, logo sairia da vida dele e se dissolveria na inexistência do passado. Mesmo sabendo que isso o afastaria mais ainda do caminho, Vijay continuou:

— Gostaria de dizer uma coisa: vou valorizar muito nosso encontro e nossa conversa. Daqui a pouco vou saltar num ashram onde ficarei dez dias em silêncio e estou imensamente grato pelas palavras que trocamos, os momentos que compartilhamos. Lembrei dos filmes americanos onde o condenado à morte tem direito de pedir o que quiser em sua última refeição. Posso dizer que tive meus desejos totalmente atendidos na minha última conversa.

Pam apenas concordou com a cabeça. Raramente ela ficava sem palavras, mas não sabia como responder à delicadeza de Vijay. — Dez dias numashram? Está falando de Igatpuri? Vou fazer um retiro lá.

Então vamos para o mesmo lugar e temos a mesma intenção, aprender a meditação Vipassana com o honrado guru Goenka. E daqui a pouco, pois é a próxima parada.

Você disse dez dias de silêncio?

Sim, Goenka sempre pede um valioso silêncio. Fora as conversas necessárias com a equipe, os alunos não devem falar. Você já fez meditação?

Pam negou com a cabeça. — Sou professora universitária de literatura inglesa e no ano passado uma aluna teve uma cura e uma experiência transformadora em Igatpuri. Passou então a organizar retiros de meditação Vipassana nos Estados Unidos e pretende promover uma viagem de Goenka para lá.

Sua aluna queria dar um presente à professora. Ela espera que você também se transforme?

Bem, algo parecido. Ela não acha que preciso mudar nada em mim, mas aproveitou tanto dessa experiência que quis compartilhar comigo e com outras pessoas.

Claro. Formulei mal a pergunta, não queria de jeito nenhum dizer que você precisa de uma transformação. Estava interessado no entusiasmo da sua aluna. Mas ela preparou você para esse retiro?

Diretamente, não. Veio para cá por acaso e disse que seria melhor se eu também chegasse com a mente totalmente aberta. Você está balançando a cabeça. Discorda.

Ah, os indianos balançam a cabeça da direita para a esquerda quando concordam e de cima para baixo quando discordam, ao contrário dos americanos.

Ai, meu Deus. Acho que inconscientemente percebi, por isso meus sinais foram recebidos com certa estranheza. Devo ter confundido todas as pessoas com quem falei.

Não, não, os indianos que têm contato com ocidentais se adaptam. Quanto ao conselho de sua aluna, talvez você deva se preparar. Esse não é um retiro para iniciantes. É difícil manter rigoroso silêncio, iniciar as meditações às quatro da manhã, dormir pouco, fazer uma refeição por dia. Você deve ser forte. Ah, o trem está parando,estamos em Igatpuri.

Vijay levantou-se, pegou seus pertences e tirou a valise de Pam da prateleira acima da poltrona. O trem parou. Vijay preparou-se para sair e disse: — Começa a experiência.

As palavras dele pouco consolavam e Pam estava ficando mais apreensiva. — Isso quer dizer que não poderemos nos falar durante o retiro?

Nenhuma comunicação, nem por escrito.

E-mail pode?

Vijay não sorriu. — O valioso silêncio é o caminho para aproveitar a meditação Vipassana. — Ele parecia diferente. Pam sentiu como se ele estivesse sumindo.

Pelo menos, vai ser confortador saber que você está lá. É menos ruim ficar sozinha estando acompanhada.

Ficar sozinha estando acompanhada, que frase feliz — Vijay respondeu, sem olhar para ela.

Talvez possamos nos encontrar outra vez no trem, depois do retiro.

Não devemos pensar nisso. Goenka vai nos ensinar que só podemos viver no presente. Não existe ontem, nem amanhã. As lembranças do passado, as preocupações com o futuro só causam inquietação. O caminho para a serenidade está em observar o presente e deixar que flutue pelo rio de nossa consciência. — Sem olhar para trás, Vijay pôs a pasta no ombro, abriu a porta do compartimento e saiu.

 

Só a mente masculina, turvada pelo impulso sexual, poderia chamar o sexo que tem baixa estatura, ombros estreitos, coxas largas e pernas curtas de belo sexo.

Arthur Schopenhauer, sobre as mulheres

Seus eternos sofismas, suas reclamações do mundo estúpido e da miséria humana não deixam que eu durma direito e me causam pesadelos. Todos os meus momentos desagradáveis foram por sua causa.

Carta de Johanna Schopenhauer para seu filho

a mulher mais importante na vida de Schopenhauer

A mãe foi a mulher mais importante na vida de Arthur, uma relação atormentada e dúbia que acabou mal. A carta de Johanna aprovando que o filho largasse o aprendizado no comércio tinha grandes sentimentos maternais: a preocupação com o bem dele, o amor, as esperanças. Mas tudo isso com uma condição: que ficasse longe dela. Daí a carta dizer para ele mudar de Hamburgo para Gotha e não para a casa dela em Weimar, distante cinqüenta quilômetros.

Após aprovar que Arthur deixasse o aprendizado, os sentimentos afetuosos se evaporaram porque ele ficou pouco tempo na escola preparatória de Gotha. Passou seis meses lá e, aos 19 anos, foi expulso por escrever um inteligente porém cruel poema zombando de um professor. Implorou então à mãe para morar com ela e continuar os estudos em Weimar.

Johanna não gostou da idéia; na verdade ficava nervosa só de pensar em compartilhar a casa com Arthur. O filho visitou-a algumas vezes nos seis meses que passou em Gotha, causando sempre muito desprazer. As cartas que escreveu para ele após a expulsão da escola são das mais agressivas que uma mãe já mandou para um filho.

(...) Conheço você, (...) é uma pessoa irritante e agressiva, acho muito difícil conviver com você. Todas as suas qualidades ficam comprometidas por ser tão inteligente e deixam de ter utilidade no mundo. (...) você acha defeitos em tudo e em todos, menos em si mesmo. (...) e assim exaspera os que estão perto — ninguém quer ser melhorado ou ilustrado à força, muito menos pela pessoa insignificante que você continua sendo. Ninguém agüenta também ser criticado por quem mostra uma tal fraqueza, principalmente em sua insistência em garantir, em tom de oráculo, que as coisas são de determinada forma, sem sequer desconfiar que pode estar errado. Se você não fosse assim, seria apenas ridículo, mas sendo como é, se torna muito desagradável. (...) Você podia, como milhares de outros estudantes, freqüentar a escola e morar em Gotha (...) mas não quis e foi expulso. (...) Escrever um diário literário, como você queria, é algo odioso e inútil, porque não se pode pular as páginas escritas ou jogar todo o lixo atrás do fogão, como se faz com as páginas impressas.

Johanna acabou se conformando com o fato de ter de hospedar o filho enquanto ele se preparava para entrar na universidade, mas escreveu outra carta, caso ele não tivesse entendido a primeira, e mostrou bem sua preocupação.

Acho melhor dizer-lhe logo o que desejo e o que acho, para que possamos nos entender. Creio que não duvida que gosto muito de você. Mostrei isso e mostrarei enquanto viver. Para ser feliz, preciso saber que você está feliz, embora não precise comprovar. Sempre disse que é difícil conviver com você. (...) Quanto mais o conheço, mais difícil acho.

Não vou esconder: já que você é do jeito que é, prefiro qualquer sacrifício a ficar perto de você. (...) o que me afasta não está no seu coração, está fora de você, não dentro. São suas idéias, seu julgamento, seus hábitos; em uma palavra: não concordamos em nada em relação ao mundo exterior.

Olhe, querido Arthur, toda vez que me visitou por poucos dias, tivemos cenas violentas por qualquer motivo. Só voltei a respirar aliviada quando você foi embora, pois sua presença, suas reclamações de coisas que não podem ser mudadas, sua cara zangada, seu mau humor, as opiniões estranhas que tem (...) — tudo isso me deprime e me preocupa, e não o ajuda em nada.

O raciocínio de Johanna parece claro. Pensava que seria prisioneira do casamento para sempre, mas, com a graça dos céus, havia escapado dele. Tonta de liberdade, adorava pensar que nunca mais teria de prestar contas a ninguém. Ia viver sua vida, encontrar-se com quem quisesse, ter ligações amorosas (mas jamais se casar) e explorar seus valiosos talentos.

A possibilidade de perder a liberdade por causa de Arthur era insuportável. Não só era ele uma pessoa muito difícil, controladora, mas filho de seu ex-carcereiro e encarnação viva de muitos defeitos de Heinrich.

Havia também o problema do dinheiro, que surgiu pela primeira vez quando Arthur, aos dezenove anos, acusou a mãe de gastar demais, o que ameaçava a herança que ele receberia aos vinte e um anos. Johanna irritou-se, garantiu que todos sabiam que ela servia apenas pão com manteiga em seu salão literário, e acusou o filho de viver além das posses, freqüentando restaurantes caros e tendo aulas de equitação. Às vezes, as discussões sobre dinheiro ficavam insuportáveis.

Os sentimentos de Johanna em relação ao filho e à maternidade se refletem em seus romances. Num deles, a heroína, bastante parecida com a autora, perde tragicamente seu verdadeiro amor e se conforma com um marido de boa situação financeira, equilibrado, mas sem amor e às vezes autoritário. Por desafio e afirmação, ela não quer filhos.

Arthur não confiava seus sentimentos a ninguém e mais tarde a mãe destruiu todas as cartas dele. Mas há sinais óbvios de uma forte ligação entre os dois. Arthur sempre teve medo de que sua relação com Johanna acabasse (aquela mãe diferente: alegre, sincera, bonita, com idéias livres, culta, muito lida). Certamente, ela e Arthur conversavam sobre o mergulho dele na literatura antiga e moderna.

Pode ser que, para ficar junto da mãe, o rapaz de quinze anos tenha preferido fazer a grande viagem pela Europa em vez de se preparar para a universidade.

Só após a morte do pai o relacionamento mudou. As esperanças de Arthur de substituir o pai no coração da mãe devem ter sido destruídas pela rápida decisão dela de deixá-lo em Hamburgo e mudar-se para Weimar. Se ele teve novas esperanças quando a mãe liberou-o da promessa feita ao falecido pai, acabaram-se outra vez quando ela o mandou para Gotha, embora as escolas de Weimar fossem muito melhores. Talvez, como a mãe deu a entender, ele quis ser expulso de Gotha. Se o comportamento dele se pautava pelo desejo de reencontrar a mãe, deve ter desanimado com a má vontade com que foi recebido na nova casa e com a presença de outros homens na vida dela.

A culpa que Arthur sentia pelo suicídio do pai era causada tanto pela alegria da liberdade quanto pelo medo de ter apressado a morte dele com o desinteresse pelo comércio. Não demorou para sua culpa se transformar numa ardente defesa do bom nome do pai e numa crítica impertinente ao comportamento da mãe em relação ao pai. Anos mais tarde, ele escreveu:

Sei como são as mulheres. Elas encaram o casamento apenas como uma instituição destinada a sustentá-las. Quando meu pai ficou muito doente, a única pessoa a ficar com ele foi um criado fiel que, com seu caridoso afeto, ofereceu o carinho necessário. Minha mãe dava festas enquanto meu pai ficava deitado sozinho; minha mãe se divertia enquanto ele sofria muito. Assim é o amor das mulheres!

Arthur foi para Weimar e preparou-se com um tutor para entrar na universidade, mas a mãe obrigou-o a ficar em aposentos separados, que ela mesma escolheu. Lá, Arthur encontrou uma carta de franqueza cruel, com as regras e limites do relacionamento.

Veja bem minhas condições: você fica à vontade na sua casa, mas na minha, é hóspede (...) e não se intromete nos arranjos domésticos. Todos os dias, você deve chegar às treze horas e ficar até as quinze, e não lhe vejo mais, exceto nos dias em que eu receber no salão literário, que pode freqüentar, se quiser, quando também fará a refeição na minha casa, desde que não provoque discussões cansativas, o que me irrita. (...) Durante o dia, pode me contar tudo o que devo saber de você; nas outras horas, você cuida de si mesmo. Não é possível que o seu conforto seja às custas do meu. Ciente disso, espero que não retribua meus cuidados e amor maternos com hostilidade.

Durante os dois anos em que viveu em Weimar, Arthur respeitou as condições estabelecidas pela mãe e foi apenas uma presença no salão literário, sem jamais conversar com o arrogante Goethe. Seu domínio de grego e latim, seus conhecimentos de autores clássicos e de filosofia aumentaram com enorme rapidez e, aos vinte e um anos, ele entrou para a universidade, em Göttingen. Na mesma época, recebeu a herança de vinte mil Reichstalers, suficientes para sustentá-lo até o fim da vida, embora modestamente. Como previu o pai, ele dependeria muito dessa herança, pois jamais ganharia um centavo como erudito.

Com o tempo, Arthur passou a ver o pai como anjo, e a mãe como demônio. Acreditava que o ciúme e a desconfiança do pai em relação à fidelidade da mãe tinham fundamento, e que ela acabaria desrespeitando a memória dele. Em nome do pai, exigiu que ela levasse uma vida calma e isolada. E atacou com firmeza os homens que julgava serem pretendentes dela, considerando-os inferiores, "criaturas produzidas em massa", indignos de substituir o pai.

Além de Göttingen, Arthur estudou na Universidade de Berlim e doutorou-se em filosofia pela Universidade de Jena. Viveu pouco tempo em Berlim devido à iminente guerra contra Napoleão, voltando a morar em Weimar com a mãe. Logo surgiram as mesmas batalhas domésticas, pois ele não só acusava a mãe de mau uso do dinheiro que recebia para cuidar da avó, mas também de manter uma ligação com o amigo Müller Gerstenbergk. Tornou-se tão agressivo que Johanna foi obrigada a ver Müller só quando o filho não estava em casa.

Nesta fase houve uma conversa, sempre citada, quando deu à mãe uma cópia de sua dissertação de doutorado, um brilhante estudo sobre os princípios da causalidade, intitulado "Da quádrupla raiz do princípio de razão suficiente".

Ao ler o título, Johanna perguntou:

— Raiz quádrupla? Isso é para o boticário preparar remédios?

E Arthur respondeu:

Este estudo continuará sendo lido quando não existir mais um só exemplar dos seus livros.

Sim — disse Johanna —, pois é evidente que os seus escritos jamais sairão da prateleira das livrarias.

Arthur era inflexível com os títulos de seus trabalhos, não se preocupando com o fato de serem herméticos. Em vez do título "Da quádrupla raiz do princípio de razão suficiente", seria mais simples dizer "Uma teoria da explicação". Mesmo assim, até hoje, duzentos anos depois, a obra continua em catálogo nas editoras. Poucas dissertações conseguem tal proeza.

Arthur continuou tendo discussões acaloradas com a mãe por causa de dinheiro e dos relacionamentos dela, até que Johanna perdeu a paciência. Deixou claro que jamais romperia sua amizade com Müller nem com ninguém por causa do filho. Mandou que ele se mudasse, convidou Müller para ocupar os aposentos vagos e escreveu para o filho essa carta fatídica.

A porta que você fechou com tanto estrondo ontem, após seu comportamento inconveniente com sua mãe, foi fechada para sempre. Vou para o campo e só volto quando souber que você saiu daqui. (...) Você ignora o que seja um coração de mãe; quanto mais ele ama, mais sofre com cada golpe dado pela mão que um dia amou. (...) você se distanciou de mim: sua desconfiança, as críticas que fez sobre minha vida, meus amigos, seu comportamento incoerente comigo, sua raiva das mulheres, seu descaso em querer me agradar, sua cobiça, tudo isso, e muito mais, faz com que você seja uma pessoa prejudicial para mim. (...) Se eu tivesse morrido e você tivesse de lidar com seu pai, ousaria se comportar como se fosse professor dele? Ou controlar a vida dele, os amigos? Será que sou inferior a seu pai? Será que ele fez mais por você do que eu? Gostou mais de você do que eu? (...) Minha obrigação em relação a você acabou. Deixe seu endereço, mas não me escreva, não vou mais ler nem responder nenhuma carta sua. (...) Portanto, é o fim. (...) Você me magoou demais. Viva e seja o mais feliz que puder.

Foi mesmo o fim do relacionamento. Johanna viveu mais vinte e cinco anos, porém nunca mais mãe e filho se encontraram. Já idoso, ao lembrar dos pais, Schopenhauer escreveu:

A maioria dos homens sente atração por um rosto bonito. (...) e a natureza faz com que as mulheres exibam todo o seu brilho (...) causem uma "sensação" (...) mas a mesma natureza esconde os muitos demônios imbuídos nas mulheres, tais como os infinitos gastos que fazem, os cuidados com os filhos, a teimosia, a obstinação, o fato de ficarem velhas e feias em poucos anos, a desilusão, o adultério, as vontades, os caprichos, os ataques histéricos, o diabo a quatro. Por isso, considero o casamento como uma dívida que o homem contrai na juventude e paga na velhice.

 

As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até o menor desgosto nos atormenta.

No início da sessão seguinte, todos os olhos convergiam para Bonnie. Com voz insegura e suave, ela disse: — Não foi muito boa idéia me colocar na agenda de hoje porque passei a semana inteira pensando no que dizer, ensaiando sem parar, embora saiba que nós aqui falamos de improviso. Julius sempre disse que o grupo tem que ser espontâneo para funcionar. Certo? — perguntou, olhando para ele.

Julius concordou. — Esqueça o que ensaiou. Experimente fechar os olhos, pensar no texto que preparou, rasgá-lo em pedaços e jogá-lo na cesta de lixo. Certo?

De olhos fechados, Bonnie concordou.

— Agora, fale no sentimento de não ter um lar e não ser bonita. Fale da relação entre você, Rebecca e Pam.

Bonnie, ainda concordando com a cabeça, abriu os olhos devagar e começou: — Tenho certeza de que todos vocês lembram de mim. Eu era aquela colega gordinha da escola. Bochechuda, muito sem jeito, cabelos crespos demais. Péssima em ginástica e a que recebia menos cartões de Dia dos Namorados, chorava à toa, jamais tive amigas, voltava sempre sozinha para casa, nunca recebi um convite para festa de formatura, tão tímida que jamais levantava a mão na classe, embora fosse muito inteligente e soubesse todas as respostas. A Rebecca, aqui do grupo, era meu isômero.

O seu o quê? — perguntou Tony, largado na cadeira, sentado quase na horizontal.

Isômero é como uma imagem no espelho — explicou Bonnie.

Isômero é a molécula com as mesmas espécies e o mesmo número de átomos que outra, mas que difere dessa outra na estrutura — disse Philip.

Obrigada, Philip. Acho que foi pretensioso usar essa palavra, mas Tony, quero dizer que admiro a maneira peculiar que você tem de assinalar quando não entende alguma coisa. Há uns dois meses, na sessão em que você falou de sua vergonha pela pouca instrução e por ser operário me deu abertura para falar dos meus problemas. Agora, voltando aos meus tempos de escola, Rebecca era o meu inverso total. Eu adoraria ter uma Rebecca como amiga, faria qualquer coisa para ser uma Rebecca. É isso. Passei as últimas semanas cheia de lembranças da minha infância horrível.

Aquela menina gordinha entrou na escola faz tempo —- disse Julius. — O que fez com que ela voltasse à escola agora?

Bom, aí que está. Não quero que Rebecca se zangue comigo...

É melhor falar direto para ela, Bonnie — interveio Julius.

Certo — disse Bonnie, virando-se para Rebecca. — Preciso dizer-lhe uma coisa, mas não quero que se zangue comigo.

Estou ouvindo — disse Rebecca, atenta.

Quando a vejo lidar com os homens aqui no grupo (como ficam interessados, como você os envolve), sinto-me totalmente inútil. Todos aqueles velhos sentimentos ruins voltam: gorducha, sem graça, impopular, perdedora.

Nietzsche uma vez disse que, quando acordamos desanimados no meio da noite, os inimigos que derrotamos há muito tempo voltam para nos assustar — lembrou Philip.

Bonnie abriu um grande sorriso para Philip. — Que dádiva, Philip, que ótimo presente você está me dando. Não sei por que, mas melhoro só de pensar nessa idéia de inimigos que venci há muito tempo. Dar um nome faz com que as coisas fiquem mais (...)

— Espera aí, Bonnie. Fale sobre eu envolver os homens aqui, explique isso, por favor — pediu Rebecca.

As pupilas de Bonnie se dilataram, ela evitou o olhar de Rebecca.

— Não é sobre você. Não tem nada de errado com você, é só comigo,

é a minha reação ao comportamento feminino perfeitamente normal.

— Que comportamento? Do que você está falando?

Bonnie respirou fundo e disse: — Ficar se enfeitando. Eu acho que você fica seduzindo. Na sessão passada, não sei quantas vezes soltou os cabelos, balançou a cabeça e passou os dedos neles. Não lembro de você ter feito isso tantas vezes. Deve ser porque Philip entrou para o grupo.

Do que você está falando? — perguntou Rebecca.

Vou citar o velho sábio São Julius. Ele diz que uma pergunta não é uma pergunta se você sabe a resposta — interrompeu Tony.

Por que você não deixa Bonnie falar, Tony? — perguntou Rebecca, com olhar gélido.

Tony não se perturbou e disse: — Ë óbvio. Philip entrou no grupo e você mudou, passou a ser uma, ah, como é a palavra? Você se preparou para atacá-lo. É isso, Bonnie?

Bonnie concordou.

Rebecca pegou um lenço de papel na bolsa e tocou de leve nos olhos, com cuidado para não estragar o rimei. — Isso é uma porra de uma agressão.

É exatamente o que não quero — implorou Bonnie. — Insisto que não é sobre você, Rebecca. Não está fazendo nada de errado.

Isso não melhora nada. Fazer uma acusação desagradável en passant a meu respeito e depois dizer que não sou eu, não melhora nada.

O que é en passant ? — perguntou Tony.

Quer dizer de passagem — interveio Philip. — Ë uma expressão muito usada no xadrez, quando um peão pula duas casas e passa por um peão inimigo.

Philip, você adora aparecer, sabia? — perguntou Tony.

Você perguntou, eu respondi — disse Philip, sem se perturbar com a acusação. — A menos que sua pergunta não seja uma pergunta.

— Argh, não me convenceu. — Tony olhou o resto do grupo e disse: — Vai ver, estou ficando mais idiota, pois tenho me achado mais por fora. Será que é imaginação minha, ou estamos falando mais difícil? Vai ver que a entrada de Philip também afetou outras pessoas, não só a Rebecca.

Julius interveio usando a tática de terapeuta de grupo mais comum e mais eficiente: passou o enfoque do conteúdo para o processo, isto é, saiu do que foi dito para o relacionamento dos envolvidos. — Hoje está acontecendo muita coisa. Talvez possamos voltar atrás um minuto e tentar entender. Primeiro, pergunto a todos: o que está acontecendo entre Bonnie e Rebecca?

Pergunta difícil — disse Stuart, sempre o primeiro a responder a Julius. Usando sua voz de médico, disse: — Não sei se Bonnie quer falar de uma coisa ou da outra.

O que quer dizer? — perguntou Bonnie.

Quer dizer o seguinte: vai falar de homens e da competição que você tem com as mulheres, ou vai falar da Rebecca?

Eu compreendo os dois motivos — disse Gill. — O motivo para as más lembranças de Bonnie e também para a irritação de Rebecca, isto é, ela pode não ter percebido que estava ajeitando o cabelo, e, sinceramente, não acho que isso seja tão importante.

Você é diplomata, Gill — observou Stuart. — Como sempre, tenta agradar a todos, principalmente as mulheres. Mas se ficar muito preocupado em entender o ponto de vista feminino, nunca vai falar o que acha. Foi o que Philip disse a você na semana passada.

Lastimo esses comentários discriminatórios, Stuart — disse Rebecca. — Francamente, sendo médico você deveria pensar melhor. Essa história de ponto de vista feminino é ridícula.

Bonnie fez sinal para falar. — Vamos parar um pouco, não consigo continuar nisso. É um assunto importante, mas surrealista. Como podemos ficar falando nas coisas de sempre quando Julius avisou na semana passada que está morrendo? Erro meu: não devia ter entrado nesse assunto hoje, sobre Rebecca e eu (é corriqueiro demais). Fica tudo comum, se for comparado.

Silêncio. Todos olharam para baixo. Bonnie quebrou o silêncio.

Quero voltar atrás. Eu devia ter começado a sessão falando num pesadelo que tive depois da última sessão. Acho que tem a ver com você, Julius.

Conte — pediu Julius.

Era noite, eu estava numa estação de trem escura (...)

Julius interrompeu: —Tente usar o verbo no presente, Bonnie.

— Eu já devia saber disso. Certo: é noite, estou numa escura estação de trem. Tento pegar um trem que começa a sair da estação. Ando mais rápido. Vejo o vagão-restaurante passar cheio de pessoas bem vestidas, comendo e tomando vinho. Não sei em que vagão em barcar. O trem aumenta a velocidade e, à medida que os vagões passam, ficam mais feios, há janelas fechadas com tábuas. O último vagão, de carga, é só esqueleto, caindo aos pedaços, se afasta e o trem apita tão alto que acordo às quatro da manhã. Meu coração bate forte. Fico suando e não consigo mais dormir.

Você ainda vê esse trem? — perguntou Julius.

Com toda clareza. O trem se afasta, o sonho continua assustador. Estranho.

Sabe o que acho? — perguntou Tony. — O trem é o grupo que vai acabar por causa da doença de Julius.

Isso mesmo — concordou Stuart. — O trem é o grupo, leva você a algum lugar e alimenta você pelo caminho, os passageiros no vagão-restaurante.

É, mas por que você não consegue embarcar? Você correu? — perguntou Rebecca.

Não corri, parece que eu sabia que não podia embarcar.

Estranho. É como se quisesse e, ao mesmo tempo, não quisesse embarcar — disse Rebecca.

Não me esforcei muito.

Talvez tivesse medo de embarcar? — perguntou Gill.

Já contei para vocês que estou apaixonado? — perguntou Julius.

Uma agitação percorreu o grupo. Silêncio total. Julius olhou com jeito brincalhão para os rostos intrigados e preocupados.

— Isso mesmo, apaixonado por esse grupo, principalmente quando funciona como hoje. Muito boa a forma de vocês interpretarem esse sonho. Vocês são ótimos. Vou dizer o que pensei: acho, Bonnie, que esse trem é um símbolo para mim também. Ele traz medo e o escuro. E, como disse Stuart, alimenta. Tento fazer isso. Mas você tem medo dele, como deve ter de mim ou, melhor, do que está acontecendo comigo. E o último vagão, de carga, parecendo um esqueleto, não será um símbolo, uma previsão, da minha deterioração?

Bonnie pegou lenços de papel na caixa que ficava no meio da sala, enxugou os olhos e gaguejou: — Eu, hum, eu, eu não sei o que responder, tudo isso é estranho. Julius, você me confunde, me impressiona seu jeito tão prosaico de falar na morte.

Todos nós estamos morrendo, Bonnie. Só que eu sei meu prazo melhor do que vocês — disse Julius.

É isso que eu quero dizer, Julius. Sempre gostei muito da sua irreverência, mas agora, nessa situação, ela parece evitar um pouco as coisas. Lembro naquela época em que Tony cumpria pena de prisão nos fins de semana e nós não estávamos falando nisso. Você então disse que se o grupo ignora uma coisa importante, não vai falar em nada de importante.

Quero dizer duas coisas — interveio Rebecca. — Primeira, Bonnie: nós estávamos falando sobre algo importante, várias coisas importantes. E segunda: meu Deus, o que vocês querem que Julius faça? Ele está falando no assunto.

Na verdade, até ficou irritado porque a gente soube da doença por Philip e não por ele — disse Tony.

Concordo — disse Stuart. — Então, Bonnie, o que você quer que ele faça? Está enfrentando a situação, disse que tem uma rede de apoio para ajudar.

Julius interveio, o assunto já tinha ido longe demais. — Olha, agradeço todo o apoio de vocês, mas, quando é forte assim, começo a me preocupar. Talvez eu esteja relaxando; sabem quando foi que o jogador Lou Gehrig resolveu se retirar do esporte? Quando o time todo o cumprimentou por uma jogada normal que ele fez. Talvez vocês estejam me achando frágil demais para falar por mim mesmo.

Então, qual é a conclusão? — perguntou Stuart.

Primeiro, quero dizer a você, Bonnie, que é muito corajosa por falar num assunto que queima quem toca nele. Além disso, você está absolutamente certa, incentivei um pouco, aliás, muito, a não falarmos na minha doença aqui.

Vou contar umas coisas. Tenho dormido mal e pensado muito em tudo, inclusive no que fazer com meus pacientes individuais e com o grupo. Não tenho nenhuma experiência nisso, claro. Ninguém tem prática em morrer, já que só acontece uma vez. Não há livros escritos contando como se morreu, tudo é de improviso.

Preciso resolver o que faço com o tempo que me resta. E quais são as opções? Interromper a terapia de todos os pacientes e do grupo? Não estou preparado para isso, tenho pelo menos um ano de saúde e o trabalho é muito importante para mim. Também recebo muito dele. Se parasse com tudo, iria me considerar um pária. Acompanhei muitos pacientes com doenças fatais que me disseram que o pior era o isolamento causado pela doença.

E o isolamento é duplo: primeiro, a própria pessoa se isola porque não quer trazer os outros para o desespero dela. Posso dizer que essa é uma de minhas preocupações aqui. Segundo, porque os outros evitam o doente por não saberem o que falar, ou não quererem nada com a morte.

Portanto, me afastar de vocês não é bom para mim nem para vocês. Vi muitos pacientes terminais fazerem mudanças, ficarem mais sensatos, mais maduros e terem muito que ensinar aos outros. Acho que isso começa a ocorrer comigo e tenho certeza de que terei muito a oferecer a vocês nos próximos meses. Mas se vamos trabalhar juntos, vocês terão que enfrentar muita inquietação. Terão não só de encarar minha morte chegando, mas de pensar na morte de vocês também. Pronto, terminei de falar. Talvez vocês tenham que pensar nisso e ver o que querem fazer.

Não preciso pensar, já está resolvido — disse Bonnie. — Adoro esse grupo: você, Julius, e todas as pessoas que fazem parte dele, quero ficar aqui o máximo possível.

Depois que os outros concordaram com Bonnie, Julius disse: — Agradeço o voto de confiança. Mas a primeira regra da terapia de grupo é admitir a enorme pressão do grupo, que dificulta ir contra ele em público. Seria preciso uma determinação sobre-humana para um de vocês dizer hoje: desculpe Julius, mas não agüento, vou procurar um terapeuta com saúde para cuidar de mim.

Portanto, não vamos nos comprometer, vamos só tocar no assunto, avaliar nosso trabalho e ver como cada um se sente nas próximas semanas. Um grande perigo, citado por Bonnie hoje, é deixar os problemas de vocês parecer insignificantes. Temos que ver o melhor jeito de eu manter vocês tratando de seus problemas.

Acho que você faz isso, se nos mantém informados sobre sua saúde — disse Stuart.

— Certo, obrigado, ouvir isso ajuda. Voltemos a vocês. Longo silêncio.

— Bom, talvez eu não tenha conseguido liberar vocês. Vou tentar uma coisa. Stuart ou alguém é capaz de dizer em que ponto estamos, quais são os assuntos em pauta hoje?

Stuart era uma espécie de historiador informal do grupo: tinha uma memória tão boa que Julius podia sempre pedir-lhe ajuda para lembrar fatos passados ou atuais. Julius tentava não abusar de Stuart, que estava no grupo para aprender como se relacionar com os outros, não para ser um arquivo. Maravilhoso com seus pequenos pacientes na pediatria, Stuart era um fracasso social sempre que saía desse papel. Até no grupo ele costumava vir com apetrechos do trabalho no bolso da camisa: espátulas para abaixar a língua, caneta com luzinha, pirulitos, amostras de remédios. Há um ano ele era uma força estável no grupo e tinha feito grandes progressos no "projeto de humanização", como ele dizia. Mas sua sensibilidade em relação aos outros ainda estava tão mal desenvolvida que relatava os fatos do grupo sem qualquer malícia.

Stuart se recostou na cadeira, fechou os olhos e disse: — Bom, vejamos, começamos a sessão com Bonnie falando na infância. — Bonnie costumava criticar Stuart e ele deu uma olhada procurando aprovação dela antes de continuar.

Não, não é bem assim, Stuart. Os fatos estão corretos, mas o tom está errado. Você falou como se fosse uma coisa frívola, como se eu quisesse contar uma história engraçada. Tenho muitas lembranças dolorosas da infância que estão aparecendo e me assustando. Entendeu a diferença?

Não sei se entendi. Não disse que você queria falar porque era divertido. É o tipo da coisa que minha mulher reclama de mim, esse mal-entendido. Mas continuando: a seguir, Rebecca ficou ofendida e irritada com Bonnie, que achou que ela estava se exibindo e que rendo impressionar Philip.

Stuart não se importou quando Rebecca deu um tapa na testa e resmungou "Droga" e continuou: — Tony então reclamou que estamos usando palavras mais complicadas para impressionar Philip. E que Philip gosta de aparecer. Philip deu uma cortada em Tony e eu comentei que Gill tinha tanta vontade de agradar as mulheres que perdia a noção de si mesmo.

— Vejamos o que mais — disse Stuart, olhando a sala. — Bom,

há Philip e não o que ele disse, mas o que deixou de dizer. Não falamos muito nele, como se fosse um tabu. Vamos pensar nisso, não falamos nem no fato de não falarmos nele. E, claro, Julius. Mas já trabalhamos o tema. Exceto que Bonnie estava particularmente preocupada e protetora com ele, como costume. Na verdade, a parte da sessão sobre Julius começou com o sonho de Bonnie.

Muito bom, Stuart — disse Rebecca. — Um resumo bem completo, faltou só dizer uma coisa.

O quê?

Falar em você, que voltou a ser a máquina fotográfica do grupo e com isso não entra na foto.

O grupo tinha cobrado Stuart muitas vezes por sua participação impessoal. Meses antes, ele contou um pesadelo em que a filha pisava em areia movediça e ele não conseguiu salvá-la porque foi pegar a máquina na mochila para fotografar. Foi então que Rebecca apelidou-o de fotógrafo do grupo.

Está certo, Rebecca. Vou largar a máquina e concordar com Bonnie: você é uma mulher bonita. Mas isso não é novidade para você, já sabia. E claro que você está se exibindo para Philip quando solta e prende os cabelos. É óbvio. O que acho disso? Tive um pouco de ciúme, aliás, muito ciúme, você nunca se exibiu para mim. Nem ninguém.

Essas coisas dão a impressão que estou num presídio de segurança máxima — replicou Rebecca. — Detesto quando os homens tentam me controlar, como se vigiassem todos os meus movimentos. — Rebecca pronunciou bem cada palavra, mostrando uma agressividade e uma fragilidade que estavam latentes há muito tempo.

Julius lembrou da primeira impressão que teve de Rebecca. Dez anos antes, muito antes de entrar no grupo, ela teve sessões individuais durante um ano. Era uma mulher delicada, com um jeito gracioso de Audrey Hepburn, esguia e bonita, de olhos grandes. E quem ia esquecer o primeiro comentário dela na terapia? — Depois que fiz trinta anos, notei que entro nos restaurantes e ninguém pára de comer para me olhar. Estou arrasada.

Julius seguiu duas orientações no trabalho individual e de grupo com ela. Primeiro, a recomendação de Freud para o analista ser compreensivo com uma mulher bonita e não se reprimir ou castigá-la apenas porque é bonita. A segunda orientação foi um ensaio que Julius leu quando era estudante, intitulado "A linda mulher vazia", que dizia que a mulher muito bonita costuma ser tão festejada e gratificada pela beleza que deixa de se esforçar. Sua segurança e sucesso são apenas superficiais e, quando a beleza acaba, ela sente que tem pouco a dar: não aprimorou a arte de ser uma pessoa interessante nem a outra arte, de se interessar pelos outros. Stuart interrompeu os pensamentos de Julius dizendo:

Se faço uma observação, me chamam de máquina fotográfica; se digo o que sinto, me chamam de controlador. Fico sem saída — reclamou Stuart.

Não entendi você, Rebecca — disse Tony. — Por que não gostou do que Stuart disse? Ele só repetiu o que você falou. Quantas vezes você contou que sabe seduzir, que é uma coisa natural em você? Lembro de dizer como era bom na faculdade e no seu escritório de advocacia, pois você manipulava os homens com a sua sexualidade.

Você faz com que eu me sinta uma puta — Rebecca virou-se de repente para Philip. — Não me acha uma puta, depois do que ele disse?

Philip, sem deixar de olhar para seu ponto preferido em algum lugar do teto, respondeu logo: — Schopenhauer disse que as mulheres muito atraentes, assim como os homens muito inteligentes, estão destinados a viver isolados. E que os outros ficam cegos de inveja e de raiva da pessoa superior. Por isso, esses dois tipos nunca têm amigos íntimos do mesmo sexo.

Nem sempre — disse Bonnie. — Lembrei de Pam, que está ausente; ela também é linda e tem muitas amigas íntimas.

Philip, você está querendo dizer que, para ser popular, a pessoa tem que ser burra ou feia? — perguntou Tony.

Exatamente — concordou Philip. — E a pessoa sensata não vai passar a vida querendo ser popular. Engano. A popularidade não mostra o que é verdadeiro ou bom, pelo contrário, nivela por baixo. Melhor buscar dentro de si mesmo os valores e metas.

E quais são as suas metas e valores? — perguntou Tony.

Se Philip percebeu a agressividade da pergunta, não demonstrou e respondeu, sincero: — Como Schopenhauer, quero desejar o menos possível e saber o mais possível.Tony concordou, sem saber o que dizer.

Rebecca interrompeu: — Philip, o que você ou Schopenhauer disseram sobre amigos foi muito certo em relação a mim; na verdade eu tive poucas amigas íntimas. Mas o que dizer de duas pessoas com interesses e capacidades parecidos? Não acha que é possível serem amigos?

Antes que Philip pudesse responder, Julius lembrou: — Nosso tempo está acabando. Nos últimos quinze minutos da sessão, quero checar como vocês estão se sentindo. Como estamos?

Não estamos atingindo o alvo, tem alguma coisa esquisita — disse Gill.

Eu estou gostando — disse Rebecca.

Não, está um papo muito vago — disse Tony.

Concordo — disse Stuart.

Bom, eu não acho vago — disse Bonnie. — Estou prestes a explodir, gritar, ou (...) — Bonnie de repente levantou-se, pegou a bolsa a jaqueta e saiu da sala. Gill levantou-se e saiu para buscá-la. Num estranho silêncio, o grupo ficou ouvindo os passos se afastando. Pouco depois, Gill voltou e disse: — Ela está bem, pediu desculpas, mas tinha de sair para relaxar. Volta na semana que vem.

O que está havendo? — perguntou Rebecca, abrindo a bolsa para pegar os óculos e as chaves do carro. — Detesto quando ela faz isso. É irritante.

Alguém sabe o que está havendo? — perguntou Julius.

Acho que é TPM — disse Rebecca.

Tony viu Philip fazer cara de quem não entendeu e explicou: — TPM é tensão pré-menstrual. — Philip fez sinal de entender e Tony, por sua vez, fez sinal de positivo com as duas mãos e disse: — Ôba, ensinei uma coisa a você.

— Por hoje, ficamos por aqui — disse Julius. — Mas tenho a impressão de que sei o que há com Bonnie. Pensem no resumo que Stuart fez da sessão e o modo como Bonnie começou falando na menina gorducha que não era popular na escola, incapaz de competir com as ou tras, principalmente as bonitas. Será que isso não foi recriado hoje aqui? Ela iniciou a sessão e logo depois o grupo trocou-a por Rebecca. Em outras palavras, o tema que ela queria abordar pode ter sido mostrado aqui ao vivo, com todos nós participando da encenação.

 

Nada mais consegue assustá-lo ou emocioná-lo. Ele cortou todos os milhares de fios da vontade que nos ligam ao mundo e nos puxam para a frente e para trás (cheios de ansiedade, carência, raiva e medo), num sofrimento constante. Sorri e olha calmamente para trás, para a ilusão do mundo, indiferente como um jogador de xadrez no final de uma partida.

Pam na Índia (2)

Poucos dias depois, às três da manhã, Pam estava acordada na cama, olhando o escuro. Por interferência da aluna Marjorie, ela teve o privilégio de ficar num quarto quase individual, uma pequena alcova com banheiro, ao lado do dormitório das mulheres. Mas a alcova não tinha abafador de ruídos e ela ouvia a respiração das outras cento e cinqüenta alunas da meditação Vipassana. Aquele ressonar fez com que se lembrasse de seu quarto no sótão da casa dos pais em Baltimore, quando ficava acordada ouvindo o vento de março chiar na janela.

Pam conseguia agüentar toda a rigidez do ashram (acordar às quatro da manhã; fazer uma única refeição vegetariana por dia; meditar horas a fio; manter silêncio; viver em instalações espartanas), mas a falta de sono estava acabando com ela. Não conseguia se lembrar do mecanismo de dormir. Como fazia antes? Não, a pergunta está errada, pensou, assim complicava, pois dormir é uma dessas coisas que não se pode controlar, vem por acaso. De repente, lembrou de uma coisa antiga, o porquinho Freddie, grande detetive numa série de livros infantis, em quem ela não pensava há vinte e cinco anos. Um dia, o detetive Freddie foi chamado para ajudar uma centopéia que não conseguia mais andar porque suas centenas de pés estavam fora de compasso. Freddie resolveu o problema mandando a centopéia andar sem olhar nem pensar nos pés. A solução estava em tirar a atenção do problema e deixar que a sabedoria do corpo resolvesse. Era a mesma coisa com o sono.

Pam tentou usar a técnica que aprendeu na palestra, esvaziando a mente de todos os pensamentos. O guru Goenka era gorducho, de pele azeitonada, pedante, excessivamente sério e arrogante. Começou a palestra dizendo que ia ensinar a meditação Vipassana, mas primeiro precisava mostrar ao aluno como acalmar a mente. (Pam agüentou o uso exclusivo do sujeito da frase no masculino; com certeza a onda feminista ainda não tinha chegado às praias indianas.)

Nos primeiros três dias, Goenka ensinou a anapana-sati (conscientização do respirar). E os dias demoravam a passar noashram. Além da palestra seguida de perguntas e respostas, a única atividade diária, das quatro da manhã às nove e meia da noite, era meditar sentada. Para conscientizar a respiração, Goenka mandou os alunos aprenderem a inspirar e expirar.

Ouçam. Ouçam o som da respiração — disse ele. — Tomem consciência da duração e da temperatura que ela tem. Reparem na diferença entre o frio da inspiração e o calor da expiração. Fiquem como um sentinela na porta. Prestem atenção nas narinas, no ponto exato onde o ar entra e sai.

Em pouco tempo, a respiração fica cada vez mais suave até que parece sumir completamente, mas quando você se concentra mais, consegue distinguir sua forma delicada e sutil. Se seguirem bem todas s minhas orientações — disse Goenka, apontando para o alto —, se forem dedicados, a prática do anapana-sati vai acalmar a mente de vocês. E vão se libertar de todos os obstáculos da vigília: a ansiedade, a raiva, a dúvida, o desejo sexual e a preguiça. Vão ser pessoas atentas, tranqüilas e alegres.

A tranqüilidade era a meta de Pam, o motivo de sua peregrinação a Igatpuri. Nas últimas semanas, sua mente era um campo de batalha onde lutava para afastar lembranças e fantasias barulhentas, obsessivas e invasivas sobre o ex-marido Earl e o ex-amante, John. Sete anos antes, ela procurou o ginecologista Earl quando engravidou de um parceiro eventual e resolveu fazer um aborto; preferiu não avisar o parceiro, não queria qualquer envolvimento maior com ele. O ginecologista Earl foi incrivelmente gentil e cuidadoso. Fez o aborto e deu ura acompanhamento, telefonou para a casa dela duas vezes para saber como estava. Pam concluiu que não passava de exagero o hábito de as pessoas dizerem que faltam médicos cuidadosos e humanos. Dias após, recebeu um terceiro telefonema convidando-a para almoçar, ocasião em que Earl passou com perícia de médico a namorado. No quarto telefonema ela aceitou, animada, viajar com ele para uma convenção médica em Nova Orleans.

O namoro progrediu com incrível rapidez. Nenhum homem jamais a entendeu tão bem, foi tão solidário, conheceu cada detalhe e cada pedacinho dela, proporcionou maior prazer sexual. Embora ele tivesse muitas qualidades maravilhosas (era competente, bonito e sabia impressionar), ela lhe deu (percebeu depois) uma dimensão heróica, enorme. Ficou surpresa por ter sido a escolhida, promovida à primeira na fila de mulheres que batiam no consultório dele em busca de seu dom curativo, apaixonou-se perdidamente e aceitou se casar com ele semanas depois.

No começo, o casamento foi perfeito. Mas na metade do segundo ano, apareceu a realidade de ter um marido vinte e cinco anos mais velho: ele precisava descansar mais; o corpo mostrava a idade que tinha; os cabelos brancos apareciam, derrotando a tintura de fórmula grega. Um problema no punho acabou com as partidas de tênis que os dois jogavam aos domingos, e uma torção no joelho acabou também com o esqui na neve. Earl colocou à venda o chalé de montanha estilo Tahoe sem consultá-la. Sheila, grande amiga de Pam e colega de faculdade, tinha avisado para ela não se casar com um homem mais velho e, a essa altura, recomendou também que Pam mantivesse a identidade e não se apressasse em envelhecer. Pam se sentia acelerando o tempo. O envelhecimento de Earl irritava a juventude dela. Todas as noites, ele chegava em casa com disposição só para os três martinis habituais e assistir tevê.

O pior era que ele não lia nada, embora um dia tivesse falado com fluência e segurança sobre literatura. Como ela gostou de saber que Earl gostava àaMiddlemarch eDanielDeronda. E que choque ver, pouco depois, que ele tinha confundido forma com conteúdo: não só as opiniões sobre literatura eram decoradas, mas tinha poucos livros e não se interessava por novos. Isso foi o mais duro de encarar: como foi gostar de um homem que não lia? Ela, cujos melhores e maiores amigos mergulhavam nas páginas de George Eliot, Woolf, Murdoch, Gaskell e Byatt?

Foi a essa altura que entrou em cena o ruivo John, professor-assistente no departamento dela em Berkeley, carregado de livros, pescoço longo e bonito, pomo de Adão proeminente. Era de se esperar que os professores de inglês lessem muito, mas Pam conheceu vários que mal se aventuravam fora dos autores do seu século de especialização, desconhecendo totalmente qualquer nome novo. Mas John lia tudo. Três anos antes, Pam havia apoiado a entrada dele para o corpo docente com base nos dois livros incríveis que ele publicara: Xadrez, a estética da brutalidade na ficção contemporânea e Não, senhor!: a heroína andrógina na literatura inglesa do final do século XIX.

A amizade deles aumentou com as visitas a todos os lugares e programas românticos àocampus: reuniões do Departamento e almo-ços do Clube de Professores, palestras mensais no Auditório Norris pelo poeta ou romancista residente. A amizade se enraizou e floresceu em atividades acadêmicas, como dar aulas em dupla sobre grandes pensadores ocidentais do século XIX, ou para um dar palestra no curso do outro. A ligação definitiva foi na guerra das discussões do conselho docente sobre carga horária e salários e nas grandes discussões do comitê de promoções. Em pouco tempo, confiavam tanto na opinião recíproca sobre romancistas e poetas que não precisavam de outras; o correio eletrônico vivia abarrotado de citações filosóficas. Desprezavam textos que fossem bonitinhos ou pretensamente inteligentes; queriam apenas o máximo: beleza e sabedoria através dos séculos. Os dois detestavam Fitzgerald e Hemingway, adoravam Dickinson e Emerson. A medida que aumentava a pilha de livros que tinham lido, a relação ficava mais harmoniosa. Emocionavam-se com os mesmos pensamentos dos mesmos escritores. Juntos, tinham epifanias. Em resumo, os dois professores de inglês estavam apaixonados.

Você larga o seu casamento e eu largo o meu. Quem disse essa frase primeiro? Nenhum dos dois lembrava, mas, a certa altura do segundo ano de ensino em dupla, chegaram a esse compromisso de alto risco amoroso. Pam estava pronta, mas John tinha duas filhas pré-adolescentes e, naturalmente, pediu mais tempo. Pam teve paciência. Graças aos céus, John, o homem dela, era um bom sujeito e pediu tempo para lutar contra temas morais, como o sentido das juras de casamento. Lutava também com a culpa de abandonar as filhas e como fazer para largar uma mulher cujo único defeito era o embotamento, que, devido às obrigações domésticas, fez com que ela passasse de grande amante a mãe sem graça. Várias vezes, John garantiu a Pam que estava digerindo os fatos, que tinha conseguido identificar e reconhecer o problema, só precisava de mais tempo para resolver, ver o momento certo de agir.

Mas os meses se passavam e o momento certo não chegava. Pam desconfiava que John, como tantos maridos e mulheres insatisfeitos, tentava fugir da culpa e do peso de atos contrários ao moral e irreversíveis, fazendo com que a mulher decidisse. Ele recuou, perdeu todo o interesse sexual pela mulher e a criticava, às vezes alto, às vezes em silêncio. Era o velho golpe do "não posso largar dela, mas rezo para que ela me largue". Só que não estava funcionando: aquela mulher não caía nesse golpe.

Finalmente, Pam agiu. A decisão foi apressada por dois telefonemas começando por "Querida, acho melhor você saber que (...)". Duas pacientes de Earl, com a desculpa de fazerem um favor, contaram das investidas do médico. Quando uma terceira paciente fez uma inti-mação judicial acusando-o de comportamento antiético, Pam agradeceu sua boa estrela por não ter filhos e ligou para o advogado.

Será que isso forçaria John a tomar uma decisão? Ela teria terminado o casamento mesmo se não houvesse outro homem na história, mas, numa incrível negação, convenceu-se de que largou o marido por causa do amante e continuou a apresentar essa versão. John remanchava; ainda não estava pronto. Até que um dia resolveu. Foi em junho, no último dia de aula, logo após um fantástico encontro de amor no lugar de sempre, o colchão de espuma azul meio desenrolado embaixo da mesa, no piso de madeira dura do escritório. (Os sofás foram proibidos nos escritórios dos professores de inglês devido às inúmeras reclamações, no departamento, de professores que atacavam alunas.) Depois de fechar o zíper da calça, John olhou para ela, sério. — Pam, eu amo você. E porque amo, decidi ser firme. Não estou sendo justo e resolvi tirar um pouco da pressão sobre você, principalmente, mas sobre mim também. Temos de passar um tempo sem nos vermos.

Pam ficou atordoada. Mal ouviu o que ele disse. Nos dias que se seguiram, as palavras dele pareciam um comprimido que engolira, grande demais para digerir e pesado demais para vomitar. Uma hora ela o odiava; outra, o amava e desejava; mais outra e queria que ele morresse. Via uma cena após outra: John e a família mortos num acidente de carro. A mulher dele morta num desastre de avião e John na porta do apartamento dela, às vezes com as filhas, outras vezes sozinho. Uma hora, ela o abraçava, os dois choravam, emocionados. Outras vezes, ainda, ela fingia que tinha um homem no seu apartamento e batia a porta na cara de John.

Pam aproveitou muito os dois anos de análise individual e depois a terapia de grupo, mas essa crise o tratamento não conseguiu resolver: vencer o enorme poder do pensamento obsessivo. Julius tentou corajosamente. Foi infatigável e usou todas as ferramentas de sua caixa. Primeiro, disse para ela anotar quanto tempo desperdiçava com aquela obsessão. Duzentos a trezentos minutos por dia. Incrível! E parecia totalmente fora do seu controle, a obsessão tinha um poder diabólico. Julius tentou ajudá-la a recuperar o controle da mente com uma diminuição sistemática das horas de fantasias. Também não adiantou e então sugeriu algo paradoxal: que ela escolhesse uma hora todas as manhãs só para fazer grandes fantasias sobre John. Pam obedeceu, mas a obsessão não diminuía e continuou invadindo os pensamentos como antes. Depois, sugeriu várias técnicas de interrupção de pensamentos. Pam passou dias berrando "não" para si mesma ou puxando elásticos no pulso.

Julius também tentou afastar a obsessão buscando seu sentido subliminar. — Esses pensamentos a protegem de pensar em outra coisa — explicou. — O que estão escondendo? Se a obsessão não existisse, no que você pensaria? — Não adiantou.

Os outros membros do grupo ajudaram. Contaram sobre suas fases obsessivas; ofereceram-se para atender telefonemas de Pam sempre que ela estivesse obcecada; sugeriram que se ocupasse, ligasse para os amigos, tivesse uma atividade social diária, arrumasse um namorado e, merda, parasse com aquilo! Tony fez com que ela risse ao se candidatar para ao posto de Earl. Mas nada funcionou. Contra o enorme poder da obsessão, as armas da terapia foram tão eficazes quanto um revólver de ar comprimido contra um rinoceronte no ataque.

Houve então um encontro casual com Marjorie, a aluna de graduação de olhar sonhador, praticante da meditação Vipassana, que foi consultar Pam sobre mudança no tema da dissertação. Marjorie não estava mais interessada na influência dos conceitos de amor de Platão na obra de Djuna Barnes. Achava muito melhor o protagonista Larry, do romance de Somerset Maugham, O fio da navalha, e propunha o tema Origens do pensamento religioso orientaient Maugham e Hesse. Nas conversas das duas, Pam ficou impressionada com uma das frases preferidas de Marjorie (e de Maugham), a calma da mente. A frase parecia tão incitante, tão atraente. Quanto mais pensava, mais Pam sentia que precisava acalmar a mente. E como nenhuma terapia individual nem de grupo parecia capaz de oferecer isso, resolveu seguir o conselho de Marjorie. Comprou uma passagem rumo à Índia e ao guru Goenka, o tranqüilizador de mentes.

A rotina no ashram deu um pouco de calma. Ela pensava menos em John, mas passou a achar a insônia pior do que a obsessão. Ficava deitada ouvindo os sons da noite: o ritmo compassado da respiração das alunas dormindo e o libreto de roncos, resmungos e bufos. E a cada quinze minutos Pam levava um susto com um guarda-noturno apitando alto, lá fora.

Mas por que não conseguia dormir? Devia ser por causa das doze horas de meditação diárias. Senão, por quê? As outras cento e cinqüenta alunas pareciam descansar tranqüilas nos braços de Morfeu. Se ela pudesse perguntar essas coisas a Vijay! Uma vez, quando procurava disfarçadamente por ele no salão de meditação, o assistente Manil (que percorria as fileiras de alunos para baixo e para cima) tocou nela com a vara de bambu e disse: — Olhe apenas para o seu interior. — E quando ela viu Vijay no fundo da ala masculina, ele parecia em transe, ereto na posição de lótus, imóvel como um Buda. Deve ter percebido que ela estava no salão; das trezentas pessoas, era a única sentada numa cadeira. Ficou aflita com o problema, mas as dores nas costas, depois de sentar no chão por vários dias, fizeram com que pedisse uma cadeira a Manil.

Manil não gostou. Era um indiano alto e esguio que se esforçava para parecer tranqüilo. Sem tirar os olhos do horizonte, ele reagiu: — Suas costas? O que fez nas vidas passadas para ter isso?

Que desaponto! A resposta de Manil desmentia as veementes afirmações de Goenka de que seu método não era ligado a nenhuma religião. Aos poucos, ela estava notando a enorme distância entre as afirmações não-religiosas do budismo rarefeito e as crenças supersticiosas das massas. Nem os assistentes noashram conseguiam resistir ao apelo pelo mágico, o mistério e a autoridade.

Uma vez, ela notou a presença de Vijay no almoço das onze horas e conseguiu um lugar ao lado dele na mesa. Ouviu-o respirar fundo, como se sentisse o cheiro dela, mas não olhou nem falou com ela. Na verdade, ninguém falava com ninguém; a regra de silêncio absoluto era cumprida.

Na terceira manhã, um fato estranho animou o dia. Durante a meditação, alguém peidou alto e alguns alunos riram. O riso era contagioso e logo vários estavam num acesso de riso. Goenka não gostou e retirou-se do salão imediatamente, com a esposa a reboque. Em seguida, um dos assistentes informou solenemente que o mestre se sentiu desrespeitado e não continuaria sem que todos os que o ofenderam saíssem do ashram. Alguns alunos se levantaram e saíram, mas a meditação continuou perturbada pelos rostos dos expulsos nas janelas, piando como corujas.

Não houve comentários posteriores, mas Pam desconfiou que os alunos foram expulsos no final da noite, já que na manhã seguinte a quantidade de budas sentados no salão era bem menor.

Só era permitido falar ao meio-dia, quando os alunos podiam fazer perguntas objetivas aos assistentes do mestre. Na quarta manhã, ao meio-dia, Pam perguntou como resolver sua insônia.

Não se preocupe — respondeu Manil, olhando ao longe. — O corpo tem o sono que precisa.

Então, pode me dizer por que o guarda-noturno apita bem na minha janela a noite inteira? — perguntou ela.

Esqueça isso. Concentre-se apenas noanapana-sati. Preste atenção na sua respiração e esses fatos triviais não vão mais incomodar.

Pam estava tão aborrecida com a meditação que não sabia se agüentaria dez dias noashram. Além de meditar sentada, a outra atividade era ouvir as preleções monótonas de Goenka, à noite. Vestido numa brilhante túnica branca, ladeado por toda a equipe, ele se esforçava em vão para demonstrar eloqüência, mas surgia sempre um toque de autoritarismo. A preleção consistia em longas frases repetidas, exaltando as muitas virtudes da meditação Vipassana que, praticada de forma adequada, purificava a mente, levava à iluminação, a uma vida de calma e equilíbrio, à erradicação de doenças psicossomáticas e à eliminação das três causas da infelicidade: desejar, odiar e ignorar. Praticar sempre a Vipassana era como ser jardineiro da própria mente, arrancando dela as ervas daninhas. Mais que isso, destacava Goenka, a Vipassana podia ser feita em qualquer hora e lugar e tinha uma vantagem: enquanto outras pessoas perdiam tempo na fila do ônibus, o praticante podia arrancar algumas ervas daninhas da mente.

A meditação era cheia de obrigações que, à primeira vista, pareciam justas e razoáveis. Só que eram tantas! Não roubar, não matar nenhum ser animal ou vegetal, não mentir, não ter relações sexuais, não tomar bebidas alcoólicas, não ter diversões sensuais, não escrever, não fazer anotações, não usar caneta ou lápis, não ler, não ouvir música ou rádio, não falar ao telefone, não usar roupas de cama luxuosas, não usar enfeites no corpo, não usar roupas com décotes, curtas ou sem mangas, não comer após o meio-dia (exceto os alunos iniciantes, que recebiam um chá e uma fruta às cinco da tarde). Por fim, os alunos eram proibidos de questionar a orientação ou as instruções do mestre, tinham que ter disciplina e meditar exatamente como pedido. Goenka disse que só com obediência os alunos encontrariam a iluminação.

Pam ponderou um instante. Afinal, o mestre dedicou a vida a ensinar Vipassana. Claro que ele tinha uma ligação com a cultura do país. Quem não tinha? E a Índia não esteve sempre sob o peso dos rituais religiosos e de rígidas classes sociais? Além do mais, ela adorava a linda voz de Goenka. Todas as noites, ficava encantada com o profundo e sonoro cântico entoado na antiga língua Pali, dos estudos budistas sagrados. Da mesma forma que se encantava com as músicas religiosas cristãs, principalmente os cantos litúrgicos bizantinos e com os solistas nas sinagogas, e uma vez, no interior da Turquia, ficava hipnotizada com o canto do muezim chamando os muçulmanos para a oração na mesquita, cinco vezes ao dia.

Embora fosse uma aluna aplicada, achava difícil prestar atenção na respiração durante quinze minutos sem entrar num devaneio sobre John. Mas aos poucos, foi mudando. Os primeiros cenários disparatados tinham se transformado numa única cena: através de uma notícia de tevê, rádio ou jornal, ela ficava sabendo que a família de John tinha morrido num desastre aéreo. Pensava então na cena, sem parar. Já não agüentava mais aquilo. Mas continuava pensando.

À medida que o tédio e a inquietação aumentaram, ela passou a se interessar muito por pequenas atividades domésticas. Quando se inscreveu no escritório do ashram (e soube, surpresa, que o retiro de dez dias era grátis), notou pequenos pacotes de detergente na lojinha local. No terceiro dia, comprou um pacote e passou um bom tempo lavando e relavando suas roupas, dependurando-as num varal atrás do dormitório (o primeiro varal que via desde a infância) e, nos intervalos, conferindo se estavam secas. Quais os sutiãs e as calcinhas que secavam mais rápido? Quantas horas de secagem à noite correspondiam à secagem durante o dia? Idem em relação a secar na sombra ou no sol. Era melhor torcer a roupa ou não?

No quarto dia, ocorreu o grande evento: Goenka começou a ensinar a Vipassana. A técnica era simples e direta. Os alunos tinham que pensar no couro cabeludo até sentirem alguma coisa, fosse um comichão, um formigamento, uma ardência, até uma leve brisa na cabeça. Assim que notasse isso, o aluno deveria apenas observar, nada mais. Pensar naquela coceirinha. Parecia com o quê? Aonde vai? Quanto tempo dura? Quando ela some (como sempre ocorre), o aluno deve seguir para outra parte do corpo, o rosto, e sentir algo parecido com uma coceira no nariz ou um tremor na pálpebra. Esses estímulos aumentam, diminuem e desaparecem, e o aluno passa para o pescoço, os ombros, até que percorre todas as partes do corpo e chega à sola dos pés, subindo então de volta até o couro cabeludo.

As preleções de Goenka à noite davam os princípios racionais da técnica. O conceito-chave eraanitya, impermanência. Se a pessoa percebe a impermanência de cada estímulo físico, está prestes a extrapolar o conceito deanitya para os eventos de sua vida e seus dissabores: tudo passa e a pessoa vai se sentir equilibrada se ficar como observadora e apenas assistir a vida passar.

Em poucos dias, Pam achou o processo mais fácil, pois aprendeu a técnica e a duração das sensações físicas. No sétimo dia, achou incrível que a técnica se automatizasse e ela começou a varrer a mente, exatamente como Goenka previu. Era como se alguém despejasse um jarro de mel em sua cabeça, o qual ia escorrendo lenta e deliciosamente até a sola dos pés. Sentia um arrepio, quase uma sensação erótica, um zunido de abelhas em volta, enquanto o mel escorria. As horas passavam rápido. Logo ela não precisou mais se sentar na cadeira e se misturou aos outros trezentos alunos sentados em posição de lótus, aos pés de Goenka.

Os outros dois dias de varredura da mente foram iguais e passaram rápido. Na nona noite, ela ficou acordada (dormiu tão mal quanto antes), mas não se preocupou muito, pois uma assistente birmanesa (tinha desistido de Manil) disse que era muito comum os alunos terem insônia na Vipassana. Talvez o prolongado estado de meditação tornasse o sono menos necessário. A assistente também esclareceu o mistério dos apitos do guarda-noturno. No sul da Índia, os guardas costumam apitar quando fazem a ronda. É um aviso para os ladrões, da mesma forma que a luzinha vermelha no painel dos carros avisa os ladrões que o carro tem alarme contra roubo.

Os pensamentos obsessivos são mais notados quando somem, e Pam se surpreendeu ao ver que há dois dias não pensava em John. Tinha sumido. Todas as intermináveis espirais das fantasias foram substituídas pelo zunido agradável de varrer os pensamentos da mente. Era estranho perceber que ela agora tinha sua própria fábrica de prazer e que podia estimular as endorfinas que produziam bem-estar. Entendeu então por que as pessoas se prendiam à meditação, por que faziam longos retiros que duravam às vezes meses e anos.

Mas, já que ela havia finalmente limpado a mente, por que não estava animada? Pelo contrário, desceu uma sombra sobre aquela vitória. Algo toldava seus pensamentos. Enquanto pensava nesse enigma, adormeceu e acordou pouco depois pensando num sonho estranho: uma estrela de perninhas, cartola e bengala sapateava no palco de sua cabeça. Uma estrela bailarina! Sabia exatamente o sentido do sonho. De todos os aforismos literários que ela e John apreciavam, um dos preferidos era a frase de Nietzsche em Zaratustra: "É preciso ter o caos dentro de si para dar origem a uma estrela bailarina".

Claro. Entendeu a ambivalência que sentia em relação à meditação. Goenka cumpriu o que disse. Deu exatamente o que prometeu: calma, tranqüilidade ou, como costumava dizer, contrapeso. Mas a que preço? Se Shakespeare tivesse praticado a meditação Vipassana, teria escrito O rei Lear ou Hamlet? Alguma obra-prima da cultura ocidental teria sido escrita? Lembrou dos versos de Chapman:

Nenhuma pena pode escrever nada de eterno, se não for mergulhada na tinta das trevas.

Mergulhada na tinta das trevas: essa era a tarefa do grande escritor, mergulhar no sentimento das trevas, aproveitar a força da escuridão para criar. Senão, como os sublimes autores malditos (Kafka, Dostoievski, Virginia Woolf, Hardy, Camus, Plath, Poe) teriam iluminado a tragédia da condição humana? Não foi por saírem da vida, nem ficarem assistindo parados a vida passar.

Embora Goenka dissesse que seus ensinamentos não tinham nome, o budismo dele aparecia. Na preleção noturna com toques de promoção, Goenka não se conteve e salientou que Vipassana era o método de meditação usado por Buda, que ele, Goenka, estava agora relançando no mundo. Pam não tinha nada contra. Embora soubesse pouco do budismo, tinha lido um texto básico no avião a caminho da Índia e se impressionado com o poder e a verdade dos quatro grandes ensinamentos de Buda:

  1. A vida é sofrimento.

2 O sofrimento é causado por apegos (a coisas, idéias, pessoas, e à própria vida).

Há um remédio para o sofrimento: a cessação do desejo, do apego, do eu.

Há um caminho para uma vida sem sofrimento: os oito passos da revelação.

Pam pensou de novo. Olhou em volta, para os assistentes em transe, as pessoas tranqüilizadas, os ascetas em suas cavernas na colina, satisfeitos com uma vida dedicada a varrer a mente com a meditação. Pensou se as quatro verdades seriam tão verdadeiras assim. Será que o Buda entendeu direito? Será que o remédio não era pior do que a doença? Na madrugada do dia seguinte, ficou ainda mais em dúvida ao ver o grupinho de mulheres da seita jainista a caminho do banho. Os jainistas levaram a extremos a ordem de não matar: andavam devagar e cuidadosos como caranguejos, pois tinham de afastar o cascalho para não pisar num inseto, e mal conseguiam respirar com as máscaras de gaze que usavam para não inalar qualquer minúsculo inseto.

Para todo canto onde olhava, Pam via renúncia, sacrifício, limitação e resignação. O que foi feito da vida? Da alegria, do entusiasmo e da paixão, do "aproveite cada dia"?

Será que a vida era uma tal angústia que deveria ser sacrificada em nome da calma? Talvez as quatro grandes verdades fossem ligadas à cultura indiana. Talvez fossem verdades adequadas para 2.500 anos antes, num lugar oprimido pela pobreza, a superpopulação, a fome, a doença, a opressão das castas e a falta de qualquer esperança num futuro melhor. Mas seriam verdades para ela agora? Será que Marx não estava certo? Será que todas as religiões fincadas na libertação ou numa vida melhor depois da morte não visavam os pobres, os sofridos, os escravizados?

Após dias de silêncio absoluto, Pam começou a falar muito consigo mesma e a se perguntar se não estaria sendo ingrata. Sejamos justos. A meditação Vipassana não tinha cumprido a função de acalmar a mente e acabar com seus pensamentos obsessivos? Não tinha conseguido fazer o que ela, Julius e o grupo não conseguiram, apesar de todos os esforços? Bom, talvez sim, talvez não. Talvez a comparação não fosse justa. Afinal, Julius tinha feito oito sessões de grupo (doze horas) enquanto a Vipassana exigia centenas de horas (dez dias inteiros, mais as horas e o esforço de viajar meio mundo). O que teria acontecido se Julius e o grupo tivessem usado esse mesmo número de horas?

A descrença cada vez maior de Pam atrapalhava a meditação. A varreção acabou. Aonde foi parar aquele delicioso e melífluo zunido de contentamento? A cada dia, a meditação regredia e a Vipassana não conseguia passar do couro cabeludo. Aquelas coceirinhas, antes tão fugazes, continuaram e ficaram mais fortes, passaram a comichão, depois a uma queimação que meditar algum conseguia afastar.

Nem o primeiro anapana-sati foi feito. Desmoronou o dique da calma construído pela meditação e veio um trambolhão de pensamentos desconexos sobre o marido, John, vingança e desastres aéreos. Bem, que venham. Viu Earl como ele era: uma criança grande, os lábios grossos querendo sugar qualquer bico de peito ao alcance. E John, pobre, fraco, pusilânime John, ainda não admitia que não há sim sem não. E Vijay também, que preferiu sacrificar a vida, a novidade, a aventura, a amizade no altar do grande deus Calma. Vamos usar a palavra certa para essa gente toda, pensou Pam. São covardes. Covardes morais. Nenhum deles a merecia. Vamos puxar a descarga neles. Pensou numa imagem forte: todos eles (John, Earl, Vijay) dentro de uma enorme privada, mãos levantadas, implorando, os gritos de socorro mal sendo ouvidos em meio à água da descarga! Essa era uma imagem que merecia uma boa meditação.

 

A flor respondeu: — Bobo! Acha que abro minhas pétalas para que vejam? Não faço isso para os outros, é para mim mesma, porque gosto. Minha alegria consiste em ser e desabrochar.

Bonnie iniciou a sessão seguinte dizendo: — Peço desculpas a todos por sair da sala na semana passada. Não devia ter feito aquilo, mas, não sei, perdi o controle.

Foi o diabo que fez — disse Tony, rindo irônico.

Engraçado, engraçado, Tony. Sei o que você quer que eu diga: Fiz porque estava puta. Gostou?

Tony sorriu e fez sinal positivo com a mão.

Com a voz suave que ele sempre tinha quando falava com uma das mulheres do grupo, Gill disse para Bonnie: — Na semana passada, depois que você saiu, Julius disse que talvez você se irritou por ser ignorada aqui, pois o grupo repetiu o que você disse que acontecia na sua infância.

Muito certo. Só que eu não fiquei irritada.Magoada seria uma palavra melhor.

Eu sei o que é ficar puta, e você ficou puta comigo — disse Rebecca.

Bonnie virou-se, irritada, para Rebecca. — Na semana passada, você disse que Philip explicou por que você não tem amigas. Mas eu não acredito. Não é porque as mulheres invejam a sua beleza ou, pelo menos, não é por isso que nós não nos aproximamos. O motivo é que você não se interessa pelas mulheres ou, pelo menos, não está interessada em mim. Sempre que diz alguma coisa para mim no grupo é para a discussão voltar para você.

Mostrei como você lida (ou, melhor, não lida) com a raiva e sou acusada de egoísta. Você não quer saber como age? Não é para isso que estamos no grupo? — atacou Rebecca.

Quero que você fale a meu respeito, ou de mim e mais alguém. Mas sempre fala de você, ou de você e eu, e é tão sedutora que as coisas sempre voltam para você, não para mim. Não posso competir com você. A culpa não é só sua, os outros participam, por isso preciso perguntar uma coisa a todos.

Bonnie olhou rapidamente cada umas das pessoas e perguntou: — Por que vocês nunca se interessam por mim?

Os homens olharam para baixo. Sem esperar resposta, Bonnie continuou: — Outra coisa, Rebecca, o que falei sobre amigas não é novidade para você. Lembro bem de você e Pam discutindo a mesma coisa.

Bonnie virou-se para Julius. — Por falar em Pam, tem alguma notícia dela, quando volta? Estou com saudades.

— Que rápido! — respondeu Julius. — Bonnie, você é a rainha de mudar de assunto sem dar um espaço no meio. Por enquanto, vou deixar assim mesmo e falar de Pam, principalmente porque ia contar que ela mandou um e-mail de Bombaim. Terminou a meditação e deve estar aqui na próxima sessão.

Virando-se para Philip, Julius perguntou: — Lembra que falei em Pam, uma integrante do grupo, não?

Philip respondeu com um leve aceno de cabeça.

— E você, Philip, é o rei do sinal com a cabeça — disse Tony. — Incrível como é o centro das discussões sem jamais olhar para ninguém e sem falar muito. Veja o que está acontecendo à sua volta. Bonnie e Rebecca brigam por sua causa. O que acha? O que sente em relação ao grupo?

Philip não respondeu logo e Tony, que parecia sem graça, olhou o grupo e perguntou: — Que merda está havendo? Estou com a impressão de que desrespeitei alguma lei aqui, como se peidasse na igreja. Perguntei para Philip a mesma coisa que todo mundo pergunta para todo mundo.

Philip quebrou o curto silêncio. — Certo, é que preciso de tempo para pensar. Me parece que Bonnie e Rebecca têm aflições parecidas. Bonnie detesta não ser popular, enquanto Rebecca detesta ter deixado de ser popular. As duas ficam presas ao que os outros pensam delas. Em outras palavras, acham que a felicidade está nas mãos e na cabeça dos outros. A solução para as duas é a mesma: quanto mais se tem dentro de si, menos se quer dos outros.

No silêncio que se seguiu, era quase possível ouvir as cabeças mastigando e tentando digerir as palavras de Philip.

Parece que ninguém vai responder a Philip, por isso gostaria de falar num erro que cometi alguns minutos atrás — disse Julius. Bonnie, eu não devia ter deixado você mudar de assunto perguntando sobre Pam. Não quero repetir o que houve na semana passada, quando suas necessidades não foram atendidas. Há alguns minutos você perguntou porque o grupo não se interessa por você e achei que deu um passo corajoso ao perguntar a cada um. Mas veja o que aconteceu então: você mudou o assunto para a volta de Pam e em dois minutos sua pergunta sumiu.

Também notei isso. Dá a impressão, Bonnie, que você dá um jeito de a gente ignorar você — disse Stuart.

Boa informação — disse Bonnie, concordando. — Muito bem, vai ver que faço mesmo isso. Vou pensar no assunto.

Julius insistiu. — Gostei de você concordar, Bonnie, mas continuo achando que fez a mesma coisa agora, como se dissesse agora chega de falar em mim. Eu devia ter um sino aqui e tocá-lo toda vez que não deixa que falem em você.

Então, o que faço? — perguntou Bonnie.

Por que você não pode perguntar se não se interessam por você? — perguntou Julius.

Porque acho que não sou importante.

Mas os outros podem?

Ah, sim.

— Então os outros são mais importantes que você? Bonnie concordou com a cabeça e Julius continuou:

— Então, Bonnie, tente o seguinte: olhe para cada pessoa aqui e responda quem é mais importante do que você? E por quê. — Julius conseguia ouvir a própria satisfação. Estava nadando em águas que conhecia. Pela primeira vez desde que Philip tinha entrado no grupo, sabia exatamente o que fazia. Agiu como o terapeuta de grupo deveria: levou um dos temas principais da paciente para o aqui e agora, onde poderia ser explorado imediatamente. Era sempre mais produtivo focar no aqui e agora do que nas reconstruções de um fato passado ou atual, mas fora do grupo.

Virando-se para olhar cada pessoa, Bonnie disse: — Todos aqui são mais importantes do que eu, bem mais. — Ficou ruborizada, respirando rápido. A medida que recebia atenção dos outros, era óbvio que queria ficar invisível.

— Seja mais direta, Bonnie — pediu Julius. — Quem é mais importante epor quê?

Bonnie olhou em volta. — Todo mundo. Você, Julius, veja como ajudou a todos. Rebecca é linda, advogada de sucesso, com filhos maravilhosos. Gill é chefão de um grande hospital, além de ser um cara bonito. Stuart, bom, é um médico ocupado, cuida das crianças, cuida dos pais das crianças, tem sucesso em tudo. Tony... — Bonnie parou por um instante.

E entããão? Quero saber. — Tony estava vestido como sempre, de jeans, camiseta preta e tênis respingado de tinta, recostado na cadeira.

Primeiro, Tony, você é sincero, não tem pose, não faz jogadas, é totalmente honesto. E fala mal da sua profissão, mas sei que não é um carpinteiro qualquer, deve ser um artista no que faz, vejo pela BMW que pilota por aí. E também é lindo, adoro você de camiseta justa. Que tal o risco que estou assumindo? — Bonnie olhou em volta. — Quem mais? Philip, tem inteligência para jogar fora, sabe tudo, é professor, vai ser terapeuta, suas palavras encantam a todos. E Pam? É uma pessoa incrível, professora universitária, cabeça aberta, chama a atenção, já viajou por todo canto, conhece todo mundo, leu tudo, enfrenta qualquer um.

Alguma reação à explicação de Bonnie para ser menos importante do que os outros? — Julius percorreu o grupo com os olhos.

Para mim, a resposta dela não faz sentido — disse Gill.

Pode dizer isso a ela? — perguntou Julius.

Desculpe, não quero ofender, mas Bonnie, sua resposta parece regressiva.

Regressiva? — Bonnie fez uma careta de surpresa.

Bom, esse grupo pressupõe que somos seres humanos tentando se relacionar com os outros e comparamos nossos papéis, nossos diplomas, nosso dinheiro e nossas BMW — disse Gill.

Certo — disse Julius.

Certo — concordou Tony, acrescentando: — estou com Gill, mas, só para registrar, essa BMW é de segunda mão e mesmo assim, por causa dela, estou sem dinheiro pelos próximos três anos.

Gill continuou:

— E Bonnie, quando você falou nas pessoas, ateve-se exatamente às coisas externas (profissões, dinheiro, filhos lindos). Nada disso tem a ver com o motivo para você ser a pessoa menos importante nesta sala. Acho você muito importante. É uma pessoa-chave, está ligada a todos nós, é afetuosa, generosa, chegou a oferecer para eu dormir na sua casa há duas semanas, quando eu não queria ir para a minha. Você mantém o grupo unido, funciona muito aqui.

Bonnie insistiu. — Sou um fracasso, passei a vida inteira com vergonha dos meus pais alcoólatras, sempre mentindo sobre eles. Convidar você para ir à minha casa, Gill, foi um grande acontecimento para mim; eu jamais poderia convidar colegas de escola, com medo de que meu pai aparecesse bêbado. O pior é que meu ex-marido também era bêbado, minha filha é viciada em heroína.

— Você continua fugindo do assunto, Bonnie — observou Julius.

— Fala no seu passado, na sua filha, seu ex-marido, seus pais, mas você, aonde está?

— Eu sou tudo isso, uma soma, o que mais posso ser? Sou uma bibliotecária entediada, catalogo livros; eu não entendi a sua pergunta. Estou confusa, não sei quem sou e onde estou. — Bonnie começou a chorar, pegou um lenço de papel, assoou alto o nariz, fechou os olhos e ficou fazendo círculos no ar com as mãos. Entre soluços, resmungou: — Para mim, chega, hoje não agüento mais.

Julius mudou de tom e dirigiu-se a todo o grupo: — Vamos avaliar o que aconteceu nos últimos minutos. Alguém tem algo a dizer? — Conseguindo fazer com que o grupo passasse para o aqui e agora, deu o passo seguinte. Para ele, a terapia tinha duas fases: primeira, a interação (em geral, emocional), e segunda, entender essa interação. A terapia devia ter uma seqüência alternada de evocação de emoções e depois compreensão. Por isso, ele tentou passar o grupo para a segunda fase, dizendo: — Vamos recapitular e dar uma olhada imparcial no que houve.

Stuart estava prestes a descrever a seqüência de fatos quando Rebecca se adiantou: — Acho que o importante foi Bonnie dar os motivos para se sentir sem importância e achar que todos nós íamos concordar. Foi então que ficou confusa, chorou e disse que não agüentava mais. Já fez isso antes.

Tony ponderou: — É, concordo. Bonnie, você fica emotiva quando recebe muita atenção. Fica constrangida de estar sob holofotes?

Ainda chorando, Bonnie respondeu: — Eu devia estar agradecida, mas olha a confusão que fiz. Os outros saberiam usar melhor esse tempo.

Outro dia, conversei com um colega a respeito de uma paciente dele — contou Julius. — Ele disse que a paciente costuma usar as agressões contra ela para se açoitar. Posso estar enganado, Bonnie, mas me lembrei desse colega quando você usou o que foi dito e se castigou.

Vocês estão impacientes comigo. Acho que ainda não sei usar o grupo.

Bom, sabe o que vou dizer, Bonnie? Quem estava impaciente? Olhe para o grupo. — O grupo tinha certeza de que Julius ia perguntar isso. Sempre que ouvia uma afirmação assim, aproveitava e pedia para a pessoa dar nomes.

Bom, acho que Rebecca queria que eu parasse de falar.

O queeeê? Eu...

Espera um instante, Rebecca. — Julius estava sendo muito direto naquele dia, o que não era comum. — Bonnie, no que você se baseou para tirar essa conclusão?

Sobre Rebecca? Bern, ela ficou calada. Não disse nada.

Não consigo acertar. Estava me esforçando para ficar quieta e assim não ser acusada de tirar a atenção de você. Não é capaz de receber um presente?

Bonnie ia responder, porém Julius pediu para ela continuar dizendo quem estava impaciente.

— Bem, não posso garantir, mas a gente nota quando as pessoas não estão gostando. Eu notei. Philip não olhava para mim, embora ele nunca olhe para ninguém. Sei que o grupo estava esperando ouvir alguma coisa dele. O que ele disse sobre popularidade foi muito mais interessante para o grupo do que a minha reclamação.

Eu não estava me aborrecendo com o que você dizia — declarou Tony. — Nem vi ninguém que estivesse. E o que Philip disse não foi mais interessante, é tão centrado nele mesmo que os comentários não me interessam muito. Nem lembro.

Eu lembro — disse Stuart. — Tony, depois que você comentou que ele está sempre no centro das coisas, apesar de falar tão pouco, ele disse que Bonnie e Rebecca têm um problema parecido, dão importância demais à opinião dos outros: Rebecca infla e Bonnie murcha. Foi mais ou menos o que ele disse.

Você está de novo fotografando os fatos — disse Tony, fingindo usar uma máquina.

Certo. Não me deixe sair da linha. Eu sei, preciso menos observações e mais sentimentos. Bom, concordo que Philip fica meio no centro, embora não fale muito. E parece que é contra a lei discordar dele em qualquer coisa.

Essa é uma observação e uma opinião, Stuart. Pode falar nos sentimentos? — perguntou Julius.

Acho que invejo um pouco o interesse de Rebecca por Philip. Estranhei ninguém perguntar a Philip como se sentia em relação a isso. Bem, tudo isso não chega a ser um sentimento, não?

Quase, trata-se de um parente em primeiro grau do sentimento. Continue.

Me sinto ameaçado por Philip. Ele é inteligente demais. Também me sinto ignorado por ele. Não gosto de ser ignorado.

Muito bem, Stuart, agora está chegando perto — disse Julius. — Alguém quer perguntar alguma coisa a Philip? — Julius se esforçou para manter um tom suave e delicado. A função dele era ajudar o grupo a incluir e não a ameaçar e excluir Philip, insistindo para se comportar de um jeito que ele ainda não conseguia. Foi por isso que Julius chamou Stuart e não Tony, que era mais agressivo.

Mas é difícil fazer perguntas para Philip.

Philip está aqui na sala, Stuart. — Essa era outra regra fundamental para Julius: não deixar que uma pessoa se referisse a outra sem falar diretamente com ela.

— Bem, é esse o problema. É difícil falar com ele. — Stuart virou-se para Philip: — Quer dizer, Philip, é difícil falar com você porque você não olha para mim. Como agora. Por quê?

— Prefiro não mostrar minhas intenções — respondeu Philip, continuando a olhar para o teto.

Se fosse necessário, Julius estava pronto a entrar na discussão, mas Stuart não se irritou com a resposta.

Não entendi.

Se você me pergunta uma coisa, vou procurar dentro de mim, sem me distrair com nada e responder o melhor possível.

Mas se você não me olha, dá a impressão de que não estamos nos falando.

Minhas palavras devem lhe mostrar que não é assim.

Você tem algum problema em andar e mascar chicletes ao mesmo tempo? — interrompeu Tony.

Como? — confuso, Philip virou a cabeça, mas sem olhar para Tony.

Perguntei por que você não pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo, olhar para ele e responder.

Prefiro procurar na minha cabeça. Se olho para o outro, me distraio da procura da resposta que o outro quer ouvir.

Fez-se um silêncio, enquanto Tony e os outros pensavam na resposta de Philip. Stuart então perguntou outra coisa: — Bom, Philip, o que achou daquela discussão toda de Rebecca estar se exibindo para você? — Os olhos de Rebecca fuzilavam e ela disse:

— Isso realmente começa a me aborrecer, Stuart. É como se a fantasia de Bonnie tivesse virado lei.

Stuart não quis sair do assunto. — Certo, certo. Esqueça essa pergunta, Philip. Então, o que achou de toda aquela discussão sobre você na sessão passada?

A discussão foi muito interessante e prestei toda a atenção — Philip olhou para Stuart e continuou: — Mas não tenho nada de emocional a dizer, se é o que quer saber.

Nada? Não é possível — discordou Stuart.

Antes de entrar no grupo, li o livro de Julius sobre terapia de grupo e estava bem preparado para as situações que enfrentaria aqui. Sabia que certas coisas iam acontecer: que ficariam curiosos em relação a mim, que alguns gostariam de mim e outros não, que minha entrada iria balançar a hierarquia de poder, que as mulheres poderiam me ver com bons olhos e os homens não, que os membros mais centrais poderiam se incomodar com minha aparência, enquanto os menos influentes poderiam querer me proteger. O fato de prever tudo isso fez com que eu tivesse uma visão desapaixonada dos fatos.

Como Tony antes, Stuart ficou pasmo com a resposta de Philip e calou-se enquanto digeria as palavras dele.

Julius disse: — Estou num dilema — e esperou um instante. — Por um lado, acho importante acompanhar essa discussão com Philip, mas também estou preocupado com Rebecca. Onde está você, Rebecca? Parece distraída e sei que gosta de participar.

Hoje estou um pouco ofendida e excluída, ignorada. Por Bonnie, por Stuart.

Continue.

Estão falando muita coisa ruim de mim, acham que sou centrada em mim mesma, não quero ter amigas, quero me exibir para Philip. Isso dói.

Sei como é — disse Julius. — Tenho essa mesma reação automática às críticas. Mas vou contar o que aprendi. O verdadeiro segredo é considerar uma opinião como um presente, mas, primeiro, ver se está certa. Confiro em mim e vejo se combina com minha própria opinião. Será que um pouco do que foi dito é verdade, mesmo que bem pouco, cinco por cento? Penso se alguém já me deu esse toque antes, no passado. E nas pessoas com quem posso conferir. Penso se a pessoa está atingindo um dos meus pontos cegos, algo que ela vê e eu não. Você consegue fazer isso?

Não é fácil, Julius. Sinto uma coisa dura bem aqui — Rebecca colocou a mão no tórax.

Deixe essa dureza falar. O que ela diz?

Está dizendo: "Com que cara eu fico?" É vergonha. É ser descoberta. Esse negócio de as pessoas perceberem que brinco com os cabelos faz com que eu me encolha e tenha vontade de dizer: "Isso não é da sua conta, porra, o cabelo é meu, faço o que quiser."

Com sua voz mais professoral, Julius disse: — Anos atrás, um terapeuta chamado Fritz Perls criou a escola chamada terapiagestáltica. Hoje não se fala muito nela, mas dava muita importância ao corpo, e Perls dizia: "Olha o que a sua mão esquerda está fazendo agora" ou "Noto que você coca muito a barba". Pedia para os pacientes exagerarem algum movimento: "Cerre mais os punhos da sua mão esquerda" ou "Coce a barba com mais força e mais rápido e pense no que lembra".

Sempre achei muito interessante o enfoque de Perls porque nosso inconsciente se mostra muito nos gestos que fazemos sem perceber. Mas nunca usei muito a terapiagestáltica. Por quê? Exatamente pelo que está acontecendo agora, Rebecca. Costumamos ficar na defensiva quando alguém percebe que fizemos algo sem perceber. Por isso, sei como você está desconfortável; mesmo assim, pergunto: consegue ver alguma coisa boa nessa opinião?

Em outras palavras, você está dizendo: "Seja madura". Vou tentar. — Rebecca se empertigou na cadeira, respirou fundo e começou: — Primeiro, é verdade que gosto de atenção e que comecei na terapia porque estava preocupada com o envelhecimento e os homens deixarem de olhar para mim. Assim, pode ser que eu tenha me exibido para Philip, mas não foi consciente. — Voltou-se para o grupo: — Portanto, concordo que gosto de ser admirada, amada e adorada, gosto do amor.

Platão observou que oamor está em quem ama e não em quem é amado — disse Philip.

O amor está em quem ama e não em quem é amado. Grande frase, Philip — disse Rebecca, sorrindo de leve. — Olha, é isso que gosto em você, desses comentários. Abrem meus olhos. Acho você interessante, além de atraente.

Rebecca virou-se para o grupo. — Isso quer dizer que quero ter um caso com ele? Nã-nã-nã-não! O último caso que tive acabou com meu casamento e não quero comprar aborrecimento.

Então, Philip, o que acha do que Rebecca acabou de dizer?

Eu disse antes que minha meta na vida é desejar o menos possível e saber o mais possível. Amor, paixão, sedução são sentimentos fortes, servem para perpetuarmos a espécie e, como Rebecca mostrou, podem agir de forma inconsciente. Mas no final das contas, todos eles servem para atrapalhar a razão e interferir nos meus interesses culturais, por isso não quero nada com eles.

Toda vez que pergunto uma coisa, você dá uma resposta difícil de discutir. E nunca responde a pergunta — reclamou Tony.

Acho que ele respondeu — disse Rebecca. — Deixou claroque não quer qualquer envolvimento emocional, prefere continuar livre e solto. Acho que Julius disse a mesma coisa, por isso existe um tabu contra envolvimento afetivo no grupo.

Que tabu? Nunca soube dessa proibição aqui — disse Tony, dirigindo-se a Julius.

Eu não disse isso. A única regra que vocês ouviram de mim sobre relacionamentos fora da sessão é não haver segredo e, se houver algum encontro, as pessoas devem contar no grupo. Se não, se fizerem segredo, isso quase sempre atrapalha o grupo e sabota a terapia de cada um. Essa é a única regra sobre encontros fora daqui. Mas, Rebecca, não vamos perder o fio do que havia entre você e Bonnie. Veja o que sente em relação a ela.

— Bonnie levantou um problema grave. Ê verdade que eu não me relaciono com mulheres? Não é. Tenho minha irmã, de quem sou muito próxima, e duas amigas advogadas no escritório, mas, Bonnie, você está certa, sem dúvida me interesso pelos homens.

Na faculdade, lembro que tive poucos namorados e me sentia rejeitada se uma amiga cancelava na última hora um programa comigo porque tinha um encontro com um cara — disse Bonnie.

É, eu certamente faria isso — disse Rebecca. — Você tem razão: antes, eu queria rapazes e programas. Na época, fazia sentido, mas hoje não faz mais.

Tony continuou prestando atenção em Philip e dirigiu-se a ele novamente. — De certa forma, Philip, você é parecido com Rebecca. Também chama a atenção, mas com frases curtas e de grande efeito.

— Acho que você quer dizer — disse Philip, de olhos fechados, muito concentrado — que minhas observações não são o que parecem, são do meu interesse para chamar a atenção e a admiração de Rebecca e dos outros. Entendi certo?

Julius ficou nervoso. Por mais que fizesse, a atenção continuava a voltar para Phi''o. Pelo menos três desejos conflitantes buscavam a atenção do terapeuta: primeiro, proteger Philip de muita discussão; segundo, evitar que a impessoalidade de Philip atrapalhasse a fala pessoal; e terceiro, incentivar Tony a chutar o traseiro de Philip. Julius acabou resolvendo ficar à margem, pois o grupo estava controlando a situação. Na verdade, tinha acabado de acontecer uma coisa importante: pela primeira vez, Philip respondia diretamente, até pessoalmente, a alguém.

Tony concordou. — É mais ou menos o que eu disse, Philip, porém mais do que buscar a atenção ou a admiração. Experimente a palavra sedução.

— É, boa correção. Está implícita em chamar a atenção e assim você dá a entender que meu motivo é parecido com o de Rebeca, ou seja, quero seduzi-la. Bem, é uma tese razoável e substancial. Veja mos como testá-la.

Silêncio. Ninguém reagiu, mas Philip não parecia estar esperando uma resposta. Após um instante de olhos fechados, ele disse: — Talvez seja melhor fazer o que o Dr. Hertzfeld sugeriu.

Pode me chamar de Julius.

Ah, sim. Então, para seguir a conduta de Julius, preciso antes checar se a tese de Tony combina com a minha. — Philip fez uma pausa, balançou a cabeça. — Não vejo qualquer sinal disso. Há anos deixei de me incomodar com a opinião alheia. Acredito piamente que o homem mais feliz é o que busca apenas a solidão. Refiro-me aos divinos Schopenhauer, Nietzsche e Kant. Eles acreditavam, como eu, que o homem com riqueza interior só quer do exterior a dádiva do lazer despreocupado para desfrutar de sua riqueza, isto é, de seu intelecto.

Resumindo, então, concluo que minhas observações aqui não pretendem seduzir nem me valorizar aos olhos dos outros. Se há resquícios desse desejo, garanto que não são conscientes. Lastimo apenas só ter me tornado mestre de grandes pensamentos, mas de não tê-los criado.

Nas várias décadas em que orientava grupos de terapia, Julius tinha presenciado muitos silêncios, mas o que se seguiu à resposta de Philip foi diferente de todos. Não era o silêncio após uma grande emoção, nem o da dependência, do constrangimento ou do pasmo. Não, aquele silêncio foi como se o grupo tivesse esbarrado numa nova espécie, uma nova forma de vida, talvez uma salamandra de seis olhos e asas emplumadas, e, com muito cuidado c prudência, o grupo estivesse lentamente se aproximando dela.

Rebecca foi a primeira a falar. — Estar satisfeito, precisar tão pouco dos outros, jamais querer a companhia de alguém parece bem solitário, Philip.

Pelo contrário. No passado, quando eu queria a companhia de outros, pedia o que eles não iam dar, ou melhor, não podiam. Aí sim, vi o que era solidão. Vi muito bem. Não precisar de ninguém é nunca estar só. Eu busco a abençoada solidão — disse Philip.

Mesmo assim, você está aqui e pode ter certeza de que este grupo é arquiinimigo da solidão. Por que se expor a isso? — perguntou Stuart.

Todo pensador precisa se sustentar. Alguns têm a sorte de ter um salário da universidade, como Kant ou Hegel; ou renda própria, como Schopenhauer; ou um trabalho durante o dia, como Spinoza, que sobrevivia de fixar lentes em armações de óculos. Escolhi traba lhar com orientação filosófica e preciso dessa experiência no grupo para ter o diploma.

Isso quer dizer que você está aqui, mas sua meta é ajudar outros a jamais precisarem disso — concluiu Stuart.

Philip calou-se e concordou com a cabeça.

Deixa ver se entendi — disse Tony. — Se Rebecca se interessa por você, faz uma sedução, dá seu belo sorriso, você diz que não causa qualquer efeito? Nada?

Eu não disse isso. Concordo com Schopenhauer que escreveu que a beleza é uma carta de recomendação de quem a possui. Acho ótimo ver uma pessoa muito bonita. Mas acho também que a opinião que o outro tem de mim não altera, ou não deve alterar, a opinião que tenho de mim mesmo.

Soa mecânico e desumano — retrucou Tony.

Desumano mesmo era quando eu deixava que minha auto-estima flutuasse como uma cortiça de acordo com o que os outros acha vam de mim.

Julius olhou atento os lábios de Philip. Que maravilha. Como refletiam exatamente a serenidade dele, quão imperturbáveis, quão firmes ao formular cada palavra na mesma e perfeita redondeza de alcance e tom. E era fácil simpatizar com a vontade cada vez maior de Tony irritar Philip. Sabendo que a agressividade dele podia aumentar rápido, Julius resolveu que era hora de levar a discussão para um tema mais calmo. E não de confrontar Philip, que estava apenas na quarta sessão.

Philip, quando você falou com Bonnie, disse que sua intenção era ajudá-la. Deu conselhos também para Gill e Rebecca. Pode falar mais um pouco sobre por que fez isso? Tenho a impressão de que seu desejo de aconselhar tem algo que vai além de um trabalho. Afinal, aqui não há retorno financeiro pela ajuda.

Tenho sempre em mente que somos todos condenados a sofrimentos dos quais não podemos escapar. Nenhum de nós escolheria viver, se soubesse o que tinha pela frente. Nesse sentido, somos, como diz Schopenhauer, companheiros de sofrimento e precisamos da tolerância e amor dos nossos companheiros na vida.

Outra vez, Schopenhauer! Philip, ouço muito falar nele, seja ele quem for, e quase não ouço falar em você — disse Tony calmamente, como se imitasse o tom medido de Philip, mas sua respiração era curta e rápida. Tony gostava de brigar e, quando iniciou a terapia, era rara a semana em que não se envolvesse numa briga de bar, de trânsito, de trabalho ou na quadra de basquete. Ele não era grande, mas era destemido, exceto numa situação: num embate de idéias com um sujeito educado e articulado, exatamente como Philip.

Philip não deu sinal de que iria responder a Tony. Julius quebrou o silêncio. — Tony, você parece imerso em pensamentos. O que passa na sua cabeça?

— Estava pensando no que Bonnie disse antes, de sentir falta de Pam. Também senti falta dela hoje.

Julius não estranhou a resposta. Tony tinha se acostumado à proteção e apoio de Pam. Os dois formaram um estranho relacionamento, da professora de inglês com o homem simples e que usava tatuagem. Numa aproximação por vias tortas, Julius ponderou: — Tony, acho que não deve ser fácil para você dizer: "Schopenhauer, seja lá quem for ele".

Bem, estamos aqui para falar a verdade — disse Tony.

Muito bem, Tony, eu também não sei quem é Schopenhauer — disse Gill.

Só sei que é um filósofo famoso. Alemão, pessimista. Do século XIX? — perguntou Stuart.

— Sim, morreu em 1860, em Frankfurt — respondeu Philip. — Quanto ao pessimismo, prefiro chamar dcreahsmo. E, Tony, deve ser verdade que falo demais em Schopenhauer, mas tenho motivos. — Tony parecia surpreso por Philip falar diretamente com ele. Apesar de não olhar para Tony, Philip não olhava mais para o teto, mas pela janela, como se estivesse intrigado com alguma coisa no jardim.

Philip continuou. — Primeiro, conhecer Schopenhauer é me conhecer. Somos inseparáveis, mentes gêmeas. Segundo, ele foi meu terapeuta e me ajudou demais. Eu o internalizei (claro que estou me referindo às idéias dele) como muitos de vocês fizeram com o Dr. Hertzfeld, quer dizer, com Julius. — Philip sorriu de leve quando olhou para Julius, o primeiro momento em que não foi sério no grupo. — Por último, tenho a esperança de que um pouco do que sinto por Schopenhauer sirva para vocês como serviu para mim.

Julius olhou o relógio e quebrou o silêncio que se seguiu à observação de Philip. — Foi uma sessão rica, do tipo que eu detesto ter de terminar, mas está na hora.

— Rica? O que foi que eu perdi? — resmungou Tony, levantan- do-se e caminhando para a porta.

 

A alegria e despreocupação da nossa juventude deve-se, em parte, ao fato de estarmos subindo a montanha da vida e não vermos a morte que nos aguarda do outro lado.

 

Prenúncios de pessimismo

No início de sua didática, os terapeutas aprendem a se focar na responsabilidade dos pacientes em relação aos dilemas da vida. Terapeutas maduros não aceitam relatos de pacientes afirmando que receberam maus-tratos, pois acreditam que, de certa forma, as pessoas são co-autoras do ambiente onde vivem e que as relações são sempre recíprocas. Mas o que dizer do relacionamento do jovem Arthur Schopenhauer com os pais? Sem dúvida, esse relacionamento foi determinado primeiro pelos pais, que formaram Arthur, e eram, afinal de contas, adultos.

Mas a contribuição dada por Arthur não pode ser desprezada: havia algo original, inseparável e obstinado no temperamento dele que, desde criança, provocava reações em Johanna e em outras pessoas. Arthur não costumava suscitar reações carinhosas, generosas e alegres. Quase todo mundo reagia de forma crítica e defensiva.

Talvez isso tenha sido conseqüência da conturbada gravidez que Johanna teve. Ou talvez a carga genética tenha tido papel principal no desenvolvimento dele. A estirpe Schopenhauer tinha vários casos de distúrbios psicológicos. O pai de Arthur sofreu anos de depressão crônica, ansiedade, obstinação, distanciamento, e não conseguia desfrutar a vida. Até se suicidar. O avô materno era violento, instável e acabou sendo internado. Dos três irmãos do pai, um nasceu com grave retardo mental, e outro, segundo um biógrafo, morreu aos trinta e quatro anos, "meio louco devido a excessos, num canto, com pessoas doentes".

Arthur formou cedo sua personalidade e continuou o mesmo pelo resto da vida. As cartas dos pais para o filho adolescente contêm trechos que mostram uma preocupação crescente com a falta de interesses sociais. A mãe, por exemplo, escreveu: "(...) embora eu não dê qualquer importância à etiqueta rígida, também não aprecio uma pessoa dura, incapaz de se divertir. (...) você tem uma certa tendência a isso". E o pai escreveu: "Gostaria que você tivesse aprendido a agradar as pessoas".

Os diários de viagem do jovem Arthur mostram o adulto que iria ser. Adolescente, tinha uma capacidade precoce de se distanciar e ver as coisas por uma perspectiva cósmica. Ao descrever o retrato a óleo de um almirante holandês, diz: "Ao lado do quadro estão os símbolos de sua vida: a espada, a capa, o colar de honra que ele usou e, finalmente, a bala de revólver que fez tudo isso perder a utilidade para ele".

Como filósofo maduro, Schopenhauer se orgulhava da capacidade de ter uma visão objetiva ou, como ele diz, "de ver o mundo pela outra ponta do telescópio". O prazer de ver o mundo do alto já faz parte de seus primeiros comentários sobre alpinismo. Aos dezesseis anos, escreveu: "A vista do cume de uma montanha ajuda muito a ampliar os conceitos. (...) tudo o que é pequeno some, só fica o que é grande".

Nisso, há muitos prenúncios do Schopenhauer adulto. Ele continuaria desenvolvendo a perspectiva cósmica que, como filósofo maduro, permitiu que visse o mundo de longe, tanto física quanto conceituai e temporalmente. Desde cedo, aceitou a visão sub species aeternitatis de Spinoza, isto é, ver o mundo e os ratos sob a perspectiva da eternidade. Concluiu que se pode compreender melhor a condição humana não sendo parte dela, mas estando à parte.

Quando adolescente, pressentiu o enorme isolamento em que viveria mais tarde.

A filosofia é uma estrada isolada numa grande montanha (...) e quanto mais subimos, mais isolados ficamos. Quem a percorre não deve temer, mas deixar tudo para trás e abrir caminho, confiante, na neve do inverno. (...) ele logo vê o mundo lá embaixo, suas praias e pântanos somem de vista, seus pontos desiguais se aplainam, seus sons estridentes não alcançam mais os ouvidos. E sua redondeza surge para o caminhante, que recebe sempre o ar frio e puro da montanha e desfruta do sol quando tudo lá embaixo está mergulhado na escuridão da noite.

Há mais do que um impulso para as alturas a motivar o jovem Arthur, há impulsos de baixo. Sua personalidade tem mais duas características: uma grande aversão aos outros e um enorme pessimismo. Se, por um lado, Arthur sentia atração pelas alturas, as paisagens distantes e a perspectiva cósmica, era bastante evidente que rejeitava a proximidade com os outros. Um dia, após descer do alto de uma montanha onde viu o amanhecer claro como cristal e voltar ao mundo dos humanos num chalé ao pé da montanha, anotou: "ïLntramos num aposento onde havia criados bêbados. (...) e foi insuportável: o calor animalesco deles exalava uma quentura ardente".

Seus diários de viagem são cheios de desprezo e ironia. Sobre uma cerimônia religiosa protestante, escreveu: "O canto estridente da multidão doeu nos meus ouvidos e ri muito de um sujeito que berrava de boca escancarada". Da cerimônia numa sinagoga: "Dois meninos ao meu lado me fizeram sair do sério com seus trinados de boca aberta e cabeça jogada para trás; pareciam estar gritando comigo". Um grupo de nobres ingleses parecia "rústicas prostitutas disfarçadas". O rei da Inglaterra "é um velho bonito, mas a rainha é insuportavelmente feia". O imperador e a imperatriz da Áustria "usavam trajes excessivamente modestos. Ele é magérrimo, com uma cara tão idiota que dá a impressão de ser alfaiate e não imperador." Um colega de escola, notando a inclinação misantropa de Arthur, escreveu para ele na Inglaterra: "Lastimo que sua estada tenha feito você odiar o país inteiro".

Esse jovem irônico e irreverente iria se tornar o homem amargo e mal-humorado que costumava se referir aos humanos como "bípedes" e iria concordar com a frase de Thomas de Kempis: "Sempre que me misturo aos homens, fico menos humano".

Será que esses traços impediram que Arthur fosse o "olho atento do mundo?". O jovem Arthur previu o problema e escreveu um recado para si mesmo quando velho: "Repare se seus julgamentos objetivos não são, no fundo, subjetivos". Como veremos, apesar da intenção e disciplina, ele nem sempre seguiu seu bom conselho de jovem.

 

Feliz é o homem que consegue evitar a maioria de seus semelhantes.

No início da sessão seguinte, exatamente quando Bonnie perguntava a Julius se Pam tinha voltado da viagem, a porta se escancarou e Pam entrou de braços abertos, gritando: — Tarn, tarn, tarn, tarn! — Todos, com exceção de Philip, se levantaram e a receberam. Do seu jeito carinhoso, ela percorreu a roda, olhou para cada um, abraçou, beijou Rebecca e Bonnie, mexeu nos cabelos de Tony, e, quando chegou em Julius, segurou as mãos dele por um longo tempo e disse, baixo: — Obrigada por ter sido tão franco ao telefone. Estou arrasada, muito triste e muito preocupada com você. —Julius olhou para Pam. O rosto sorridente e familiar transmitia coragem e uma energia radiante. — Seja bem-vinda, Pam. Que bom ver você, sentimos sua falta. Senti sua falta — disse Julius.

Pam então viu Philip e tudo nela mudou. Desapareceram o sorriso e as rugas de alegria em volta dos olhos. Achando que ela estava surpresa com um estranho no grupo, Julius apressou-se a apresentar: Pam, esse é nosso novo colega de grupo, Philip Slate.

— Ah, Slate? — reagiu Pam e começou a trocar o sobrenome, sem olhar para ele: — Não é Philip Sleaze? Ou Philip Slimeball? — Olhando para a porta, disse: Julius, não sei se consigo ficar na mesma sala que este filho da puta!

Surpreso, o grupo olhou da agitada Pam para o totalmente calado Philip. Julius interveio. — Conte para nós, Pam. Sente-se, por favor.

Tony colocou mais uma cadeira no grupo, enquanto Pam dizia: — Não me ponha ao lado dele. — O lugar vazio era ao lado de Philip. Rebecca levantou-se e indicou seu lugar para Pam.

Após um pequeno silêncio, Tony perguntou: — O que está acontecendo, Pam?

Nossa, eu não acredito, será uma piada de mau gosto? E a última coisa que eu queria. Não esperava ver esse sujeito nunca mais.

O que está acontecendo? E você, Philip? Diga alguma coisa, o que está havendo? — repetiu Stuart.

Philip continuou calado e balançou de leve a cabeça. Mas o rosto, ruborizado, dizia muita coisa. Afinal, ele tinha um sistema nervoso funcionando, pensou Julius.

Fale, Pam, você está entre amigos — forçou Tony.

De todos os homens que conheci, esse foi o pior. E voltar para meu grupo de terapia e encontrá-lo sentado aqui, não dá para acreditar. Tenho vontade de berrar, mas não vou, pelo menos enquanto ele estiver aqui. — Quieta, Pam olhou para baixo, balançando lentamente a cabeça.

Julius, estou ficando nervosa, não gostei. Vamos, o que está havendo? — repetiu Rebecca.

Obviamente, houve alguma coisa entre Pam e Philip antes e, garanto, isso é totalmente novo para mim.

Após um breve silêncio, Pam olhou para Julius e disse: — Pensei tanto nesse grupo. Estava ansiosa para voltar e contar da viagem. Mas Julius, desculpe, acho que não consigo. Não quero ficar aqui.

Levantou-se e foi para a porta. Tony levantou-se também e segurou a mão dela.

— Pam, por favor. Você não pode simplesmente ir embora. Você fez tanta coisa por mim. Pronto, sento ao seu lado. Quer que eu ponha ele para fora? — Pam sorriu de leve e deixou que Tony a levasse de volta para seu lugar. Gill mudou de cadeira para dar lugar a Tony.

— Como Tony, eu também quero ajudar — disse Julius. —Todos nós queremos. Mas você tem que permitir, Pam. Obviamente, houve algo antes, uma má história entre você e Philip. Conte, senão não podemos fazer nada.

Pam concordou aos poucos, fechou os olhos e abriu a boca, mas não saiu nenhuma palavra. Levantou-se e foi até a janela, encostou a cabeça na vidraça e fez um gesto para Tony (que tinha se aproximado dela) se afastar. Virou-se, respirou fundo duas vezes e começou a falar com voz neutra: — Há uns quinze anos atrás, minha amiga Molly e eu queríamos morar um tempo em Nova York. Molly era minha vizinha desde pequena e minha melhor amiga. Tínhamos terminado o primeiro ano de faculdade em Amherst e nos matriculamos em dois cursos de verão da Columbia. Um deles, sobre filósofos pré-socráticos, e adivinhem quem era o AP?

AP? — perguntou Tony.

Assistente de professor — explicou Philip, calmo e imediatamente, falando pela primeira vez na sessão. — O AP é um aluno que ajuda o professor coordenando pequenos grupos de discussão, lendo os trabalhos e avaliando as provas.

Pam pareceu surpresa com o comentário inesperado de Philip.

Tony respondeu a pergunta que ela não fez. — Philip é o explicador oficial aqui. O que se pergunta, ele responde. Desculpe, já que você começou a falar, eu devia calar a boca. Continue. Pode sentar conosco na roda?

Pam concordou, voltou para seu lugar, fechou os olhos de novo e continuou: — Então, quinze anos atrás, eu estava no curso de verão da Columbia, com Molly e esse homem, esse sujeito sentado aí era nosso AP. Minha amiga Molly estava numa fase ruim, tinha terminado um namoro longo e, assim que o curso começou, esse arremedo de homem (fez sinal indicando Philip) começou a dar em cima dela. Olha que nós tínhamos só dezoito anos e ele era o professor, quer dizer, um professor dava as duas palestras da semana, mas esse aí era o assistente que cuidava do curso, inclusive das notas. Ele era esperto e Molly estava frágil. Ela se apaixonou, passou uma semana em completa felicidade. Até que numa tarde de sábado, ele me ligou e pediu para encontrá-lo por causa de uma prova que fiz. Ele foi gentil e sério e eu era bastante idiota para ser manipulada, acabei nua no sofá do escritório dele. Era uma virgem de dezoito anos. E ele fez sexo com vontade. Dois dias depois aconteceu a mesma coisa, e depois o porco me largou, nem me olhava, parecia não me conhecer, e pior de tudo, não explicou por que sumiu. Fiquei com medo de perguntar, pois ele tinha poder, dava as notas das provas. Foi assim minha estréia no maravilhoso mundo do sexo. Fiquei arrasada, com ódio, com vergonha e, pior de tudo, muito culpada por trair Molly. E eu, que me achava uma mulher atraente, mergulhei de cabeça na negação.

Ah, Pam, não é de estranhar que você tenha levado um susto agora — disse Bonnie, balançando a cabeça.

Esperem, esperem, ainda não ouviram o pior desse monstro — disse Pam, transtornada. Julius olhou em volta na sala. Estavam todos inclinados para frente, olhos fixos em Pam, menos Philip, claro, que, de olhos fechados, parecia em transe.

Ele e Molly continuaram juntos mais umas semanas, até que ele a largou dizendo apenas que não estava mais achando graça nela e ia procurar outra. Só isso. Desumano. Acreditam que um professor possa dizer isso para uma jovem aluna? Ele não disse mais nada, nem ajudou a tirar as coisas dela que estavam no apartamento. A despedida dele foi dar a ela a lista das treze mulheres com quem tinha transado naquele mês, muitas da nossa classe. Meu nome era o primeiro da lista.

Ele não deu a lista a ela. Molly achou a lista mexendo na casa dele — disse Philip, ainda de olhos fechados.

Que tipo de sujeito depravado seria capaz de fazer uma lista dessas? — devolveu Pam.

De novo com voz neutra, Philip respondeu: — A constituição do macho faz com que ele espalhe seu sêmen. Não foi o primeiro nem o último a fazer uma avaliação dos campos onde semeou e plantou.

Pam virou a palma das mãos para o grupo, balançou a cabeça e resmungou: — Vocês estão vendo — como se quisesse mostrar o bizarro daquele estilo de vida. Sem dar atenção a Philip, ela continuou:

— Foi um sofrimento. Molly sofreu demais e demorou muito a voltar a confiar num homem. Nunca mais confiou em mim. Nossa amizade acabou. Ela jamais perdoou minha traição. Foi uma enorme perda para mim e acho que para ela também. Tentamos nos reencontrar, até hoje trocamos e-mails de vez em quando, contando as coisas mais importantes, mas ela jamais quis comentar aquele verão.

Após um longo silêncio, talvez o maior que o grupo já teve, Julius falou: — Pam, que coisa horrível ser largada assim, aos dezoito anos. O fato de você nunca ter comentado isso comigo na terapia individual nem com o grupo mostra como o trauma foi grande. E perder assim uma amiga da vida inteira! Horrível mesmo. Mas quero dizer outra coisa. Foi bom você ter ficado hoje. Bom você ter falado nisso. Sei que você não vai gostar que eu diga, mas talvez seja bom para você o fato de Philip estar aqui. Talvez possamos trabalhar isso, possa haver uma cura. Para os dois.

— Tem razão, Julius, detestei você dizer isso, e mais, detesto ter que olhar para esse inseto outra vez. E ele está aqui, no meu querido grupo. Estou muito mal.

Julius olhou em volta. Muita coisa chamava a atenção dele. Até que ponto Philip iria agüentar? Ele também devia ter um ponto de saturação. Quando iria sair da sala e nunca mais voltar? Ao pensar na saída de Philip, pensou também nas conseqüências para Philip, mas, principalmente, para Pam. Ela era bem mais importante para Julius, uma ótima pessoa e queria ajudá-la a encontrar um futuro melhor. Seria bom para ela se Philip fosse embora do grupo? Talvez ela sentisse uma espécie de vingança, mas que vitória de Pirro! Se eu conseguisse achar um jeito, pensou Julius, de ajudar Pam a perdoar Philip, seria bom para ela e talvez para ele também.

Julius quase se encolheu ao pensar na palavra perdoar. De todos os recentes movimentos na área da terapia, o buchicho em torno de "perdoar" era o que mais o incomodava. Como todo terapeuta experiente, ele sempre teve pacientes que não conseguiam largar as coisas, que alimentavam rancores, que não encontravam paz. Nesses casos, Julius sempre usou muitos métodos para ajudá-los a perdoar, isto é, a largar a raiva e o ressentimento. Na verdade, todo terapeuta experiente tinha um arsenal de "técnicas de largar" para usar na terapia. Mas a indústria simplista e esperta do perdão tinha crescido, promovido e comercializado esse aspecto da terapia e apresentado como se fosse algo totalmente novo. A enganação havia ganho respeitabilidade por se misturar ao atual clima social e político mundial de perdão para afrontas como genocídio, escravidão e exploração. Até o Papa tinha pedido perdão para os cruzados que saquearam Constantinopla no século XIII.

E como ele, Julius, se sentiria como terapeuta do grupo, se Philip saísse? Julius tinha decidido não abandonar Philip, mas era difícil ter qualquer tipo de compaixão por ele. Quarenta anos antes, quando era um jovem estudante, assistiu uma palestra em que Erich Fromm citou a frase de Terêncio, escrita cerca de dois mil anos antes: "Sou humano e nada do que é humano me é estranho". Fromm defendia que o bom terapeuta mergulhasse em suas próprias trevas e se identificasse com todas as fantasias e impulsos do paciente. Julius tentou. Quer dizer que Philip tinha feito uma lista das mulheres que levou para a cama? Mas ele, Julius, não fez isso quando era bem jovem? Claro que fez. Muitos homens com quem Julius comentou também fizeram.

Julius lembrou a si mesmo que era responsável por Philip e pelos futuros clientes dele. Ele o convidara para ser paciente e aluno. Quisesse ou não, Philip uma dia teria muitos clientes e desistir dele agora era uma má terapia, má lição e mau exemplo. Além de profundamente contra o moral.

Pensando nisso, Julius pensou também no que dizer. Imaginou algo que começava com sua conhecida frase: "Estou numa dúvida, por um lado há isso e por outro, aquilo". Mas o momento era muito pesado para usar qualquer tática de reserva. Finalmente, disse: — Philip, ao responder a Pam, você se referiu a si mesmo na terceira pessoa. Não disse "eu", mas "ele". Você disse: "Ele não deu a lista para ela". Fiquei pensando: "Será que você está dando a entender que hoje é uma pessoa diferente da que era naquela época?".

Philip abriu os olhos e encarou Julius. Um raro cruzar de olhares. Será que havia gratidão naquele olhar? Philip respondeu:

Há muito se sabe que as células do corpo envelhecem, morrem e são substituídas a intervalos reguläres. Até alguns anos atrás, achava-se que só as células do cérebro se mantinham por toda a vida e, claro, nas mulheres, os óvulos também. Mas as pesquisas mostram que as células nervosas também morrem e novos neurônios surgem sem parar, inclusive as células que formam o córtex cerebral, minha mente. Acho que se pode dizer muito bem que não tenho uma só célula hoje que existisse no homem com meu nome, há quinze anos.

Portanto, Meritíssimo Juiz, não era eu aquele homem — zombou Tony. — Sinceramente, não tenho culpa. Quem fez aquilo foi outro homem, outras células mentais, não eu.

Bem, isso não é justo, Tony. Nós queremos dar apoio a Pam, mas não precisamos acabar com o Philip. O que quer que ele faça? — perguntou Rebecca.

Porra, para quem não sabe, que tal apenas se desculpar? — Tony virou-se para Philip. — Será muito difícil? Será que sua língua cairia se falasse isso?

Tenho algo a dizer para vocês dois — disse Stuart. — Primeiro para você, Philip. Acompanho as pesquisas sobre o cérebro, e as informações que você deu sobre regeneração das células estão ultrapassadas. Pesquisas recentes mostram que as células-tronco da medula óssea, transplantadas para outra pessoa, podem se transformar em neurônios em determinadas áreas do cérebro, por exemplo, no hipocampo, e nas células de Purkinje do cerebelo. Mas não há comprovação da formação de novos neurônios no córtex cerebral.

Agradeço a correção. Gostaria que me indicasse uma literatura sobre o tema, por favor. Pode mandar por e-mail? — perguntou Philip, que tirou um cartão de visitas da carteira e entregou a Stuart, que guardou o cartão sem olhar.

Tony — continuou Stuart —, sabe que não sou contra você. Gosto da sua objetividade e irreverência, mas concordo com Rebecca: você está sendo muito duro e um pouco fora do real. Quando entrei nesse grupo, nos fins de semana você cumpria pena por ataque sexual, tirando lixo das rodovias expressas.

Não, a pena foi por agressão física. O ataque sexual era besteira e Lizzy retirou a queixa. A queixa de agressão também era falsa, mas como explicar? Mas eu nunca ouvi, nem ninguém ouviu, você dizer que lastimava essa condenação. Na verdade, vi o contrário, você receber muito apoio. Porra, mais do que apoio, todas as mulheres, inclusive você — Stuart mostrou Pam — ficaram tocadas pelo seu, como dizer, desrespeito à lei! Lembro de Pam e Bonnie levando sanduíches quando estava recolhendo lixo na Highway 101. Lembro de Gill e eu falando que não conseguíamos competir com o seu..., como dizer?

Seu estilo selvagem — disse Gill.

Isso mesmo. Estilo selvagem. Homem da selva. Homem primitivo. Isso é ótimo — ironizou Tony.

— Então, que tal dar um refresco para Philip? Homem da selva

serve para você, mas não para ele. Vamos ouvir o que tem a dizer. Acho horrível o que Pam sofreu, mas vamos devagar, sem correr para linchar. Quinze anos é muito tempo.

Bom, não estou há quinze anos atrás, estou no dia de hoje — disse Tony. E, virando-se para Philip: — Na semana passada, você, Philip, merda, é difícil falar quando a pessoa não olha. Fico puto! Você disse que não fazia diferença se Rebecca estava interessada em você (ela estava, hum, flertando, não lembro a bendita palavra).

Se exibindo! — disse Bonnie.

Rebecca segurou a cabeça com as mãos. — Não acredito, não posso acreditar que ainda vamos falar nisso. Não há uma prescrição para o terrível crime de soltar os cabelos? Quanto tempo isso vai durar?

— O tempo que durar — respondeu Tony e virou-se para Philip.

— E a pergunta que fiz, Philip? Você se faz de monge, de alguém que está acima de tudo, puro demais para se interessar por mulheres, mesmo as muito atraentes.

Philip virou-se para Julius e perguntou: — Vê por que eu não queria entrar no grupo?

Você sabia que isso ia acontecer?

É uma equação comprovada: quanto menos me relacionar com as pessoas, mais feliz fico. Quando tentei viver no mundo, estava sempre inquieto. Meu único caminho para a paz é ficar fora do mundo, não querer nada, não esperar nada, fazer conquistas contemplativas e superiores.

Certo, Philip — disse Julius —, mas se você está num grupo, vai orientar grupos ou ajudar pacientes em seus relacionamentos, precisa se relacionar com eles.

Julius percebeu que Pam balançava a cabeça lentamente, surpresa.

— O que é isso? Que loucura. O Philip está no grupo? Rebecca está flertando com ele? Philip orienta grupos, tem pacientes? O que há?

Muito bem, vamos contar tudo a Pam — disse Julius.

Stuart, é a sua deixa para entrar — completou Bonnie.

Vou tentar — respondeu Stuart. — Bom, nos dois meses em que você esteve fora, Pam...

Julius interrompeu. — Desta vez, deixa que nós continuemos, Stuart. Não é justo você ficar sempre com o trabalho de lembrar tudo.

— Certo. Mas isso para mim não é trabalho, gosto de dar um panorama. — Vendo que Julius ia interromper, ele acrescentou logo:

— Está bem, vou dizer só uma coisa. Quando você viajou, Pam, fiquei muito triste. Achei que fracassamos com você, que não conseguimos, não tivemos condições de ajudar na sua crise. Não gostei de você ir para outro lugar, à Índia, em busca de ajuda. Próximo a falar.

Bonnie disse logo: — A maior notícia foi Julius contar que está doente. Já sabe de tudo, Pam?

Já — ela concordou, séria. — Julius contou quando telefonei no fim de semana para avisar que tinha chegado.

Na verdade, tenho que acrescentar que Julius não nos contou, desculpe, Bonnie — disse Gill. — Fomos tomar um café com Philip depois da primeira sessão dele aqui ceie nos contou, pois tinha sabido por Julius, numa sessão individual. Julius ficou bem irritado por Philip se adiantar. Próximo a falar.

Philip está aqui há cinco sessões, treinando para ser terapeuta — disse Rebecca. —- E, se entendi direito, Julius foi analista dele anos atrás.

Tony acrescentou: — Falamos sobre a, hum, situação de Julius e...

Você está querendo dizer câncer. É uma palavra chocante, eu sei — disse Julius —, mas é melhor enfrentá-la e falar.

Sobre o câncer de Julius. Você é um bicho forte, Julius, tenho que admitir. — Tony prosseguiu. — Então, falamos no câncer de Julius e como ficou difícil falar em outras coisas que, comparadas com o câncer, eram pequenas.

Todos tinham falado, menos Philip, que disse então: — Julius, pode contar para o grupo por que eu o procurei.

— Eu ajudo, Philip, mas seria melhor você contar quando puder. Philip concordou com a cabeça.

Quando ficou claro que Philip não iria continuar, Stuart disse: Certo, minha vez de novo, querem uma segunda rodada?

Ao ver que todas as cabeças concordavam, Stuart continuou: Numa sessão, Bonnie reclamou um pouco por Rebecca querer chamar a atenção de Philip — Stuart parou, olhou para Rebecca e acrescentou: — Supostamente, ela queria chamar a atenção dele. Bonnie falou nos problemas que tinha com o corpo, a impressão de que não é atraente.

— Falei também na minha falta de jeito, na incapacidade de competir com mulheres como Rebecca e você, Pam — acrescentou Bonnie.

Rebecca disse: — Enquanto você não estava, Philip fez vários comentários muito enriquecedores.

Mas nada sobre ele mesmo — disse Tony.

Ultima coisa: Gill teve uma briga séria com a mulher, chegou a pensar em sair de casa — disse Stuart.

Não acredite muito em mim, perdi a coragem. A decisão de sair de casa durou umas quatro horas — disse Gill.

Eis um bom resumo do que aconteceu — disse Julius, olhando para o relógio. — Antes de sairmos, quero perguntar a Pam como ela está, sente-se mais dentro do barco?

Ainda está parecendo irreal. Tento entrar, mas acho bom a sessão terminar. Por hoje, não dá para agüentar mais — disse Pam, juntando seus pertences.

Tenho que dizer que estou assustada — anunciou Bonnie. — Vocês sabem que adoro esse grupo, mas sinto que ele está prestes a explodir. Será que vamos voltar na próxima semana? Você, Pam? Você, Philip? Vocês, rapazes, voltam?

Uma pergunta direta — respondeu Philip logo. — Vou responder da mesma forma. Julius me convidou para integrar o grupo por seis meses e concordei. E se comprometeu a me dar crédito de supervisão. Vou pagar as sessões e cumprir o combinado, não saio antes.

E você, Pam? — perguntou Bonnie.

Pam ficou parada. — É só o que agüento por hoje.

As pessoas saíram, Julius ouviu que iam tomar café. — Como iria ser? — pensou ele. — Será que iam convidar Philip? Ele sempre disse ao grupo que encontros fora da sessão poderiam criar divisões, a menos que ninguém fosse excluído. Notou então que Philip e Pam estavam se encaminhando para a porta ao mesmo tempo, não ia dar passagem. Essa situação vai ser interessante, pensou Julius. Philip de repente percebeu e, como a porta era muito pequena para os dois, parou e, gentilmente, disse: — Por favor — e cedeu o lugar para Pam. Ela passou como se Philip fosse invisível.

 

O sexo se intromete com seu lixo e interfere nas negociações dos estadistas e nas pesquisas dos eruditos. Destrói os relacionamentos mais preciosos e tira os escrúpulos dos que antes eram honestos e direitos.

Mulheres, paixão e sexo

Depois da mãe, a mulher mais presente na vida de Arthur foi uma costureira reclamona chamada Caroline Marquet. Quase todas as biografias de Schopenhauer assinalam o encontro dos dois em 1823, numa escada mal iluminada do prédio em Berlim onde moravam. Ele tinha trinta e cinco anos e ela, quarenta e cinco.

Caroline estava conversando com três amigas em seu apartamento. Irritado com a tagarelice barulhenta das mulheres, o vizinho Arthur escancarou a porta de seu apartamento e acusou-as de invadir a privacidade dele, já que aquela ante-sala era, tecnicamente, parte do apartamento dele. Mandou, ríspido, que saíssem dali. Caroline se recusou e Arthur empurrou-a, chutando e gritando, escada abaixo. Ela subiu de novo a escada, desafiadora, e ele a expulsou outra vez, com mais força.

Caroline processou-o, acusando-o de empurrá-la na escada, causando ferimentos graves que resultaram em tremores e paralisia pardal. Arthur ficou muito assustado com o processo, pois sabia que nã   ia ganhar dinheiro com suas atividades intelectuais e guardava cuidadosamente a herança do pai. Quando seu dinheiro corria perigo, ele ficava, como disse seu editor, "um cachorro preso".

Certo de que Caroline Marquet era uma enganadora oportunista, empenhou-se em lutar contra a acusação usando todos os recursos cabíveis. O amargo processo levou seis anos, e Arthur foi condenado a pagar sessenta talers por ano até Caroline se restabelecer. (Na época, uma criada ou cozinheira recebia vinte talers por ano, mais casa e comida.) Arthur achava que Caroline era esperta o suficiente para sofrer de tremores enquanto recebesse o dinheiro. E assim foi, ele continuou a pagar até ela morrer, vinte e seis anos depois. Quando recebeu a cópia do atestado de óbito, rabiscou no papel, em latim: "Obit anus, abit onus" (a velha morre, o peso acaba).

Outras mulheres na vida de Arthur? Ele jamais se casou, mas estava longe de ser casto: na primeira metade da vida, teve intensa atividade sexual, talvez até exagerada. Anthime, o amigo de infância que conheceu no Havre, esteve em Hamburgo durante o aprendizado comercial de Arthur e os dois passavam as noites à procura de aventuras amorosas, sempre com mulheres de classes inferiores (criadas, atrizes, coristas de teatro). Se não tinham sucesso, terminavam se consolando nos braços de uma "puta prestimosa".

Arthur não tinha tato, sedução nem alegria; era um conquistador incompetente e precisou de muitos conselhos de Anthime. As inúmeras vezes em que foi rejeitado fizeram com que ligasse o desejo sexual à humilhação. Detestava sentir desejo e em anos posteriores comentou muito a degradação que era mergulhar na vida animalesca. Não é que ele não desejasse as mulheres, e foi claro: "Eu gostava muito delas, se elas tivessem apenas me aceitado".

Sua história de amor mais triste ocorreu aos quarenta e três anos, quando tentou cortejar Flora Weiss, uma linda jovem de dezessete. Uma tarde, numa festa num barco, aproximou-se de Flora com um cacho de uvas, anunciou que sentia atração por ela e que ia pedi-la em casamento aos pais. O pai de Flora ficou pasmo cora a proposta e disse: — Ela não passa de uma criança — e deixou a decisão por conta da filha. A história terminou quando Flora mostrou a todos os envolvidos que não tinha qualquer interesse no candidato.

Décadas mais tarde, a sobrinha de Flora Weiss perguntou à tia sobre o encontro com o famoso filósofo e anotou a resposta em seu diário: — Ah, me deixa em paz com esse velho Schopenhauer. — Por insistência da sobrinha, Flora contou das uvas que ganhou dele e disse: — Mas eu não queria as uvas. Fiquei irritada porque o velho Schopenhauer tinha tocado nelas e joguei-as na água.

Não há qualquer prova de que Arthur tenha tido um caso com uma mulher que respeitasse. Certa vez, a irmã Adele recebeu uma carta em que ele anunciava "dois casos de amor sem amor" e respondeu, numa das poucas vezes em que fizeram comentários pessoais: "Espero que você não perca a capacidade de estimar uma mulher quando lidar com as vulgares e simples do meu sexo. E que o céu faça com que um dia encontre uma pela qual consiga sentir algo mais profundo do que essas paixões".

Aos trinta e três anos, Arthur iniciou um relacionamento intermitente, que durou uma década, com uma jovem corista de Berlim chamada Caroline Richter-Medon, que costumava ter casos com vários homens ao mesmo tempo. Arthur não se opunha a isso e escreveu: "E contra a natureza da mulher limitar-se a um só homem no curto período de seu florescer. Esperam que ela guarde para um homem o que ele não pode usar e que vários outros desejam. " Arthur era contra a monogamia também para os homens: "Numa certa fase da vida, os homens têm demais, e no fim, muito pouco. (...) passam a metade da vida lidando com putas e a outra metade sendo cornos".

Quando Arthur mudou-se de Berlim para Frankfurt, convidou Caroline para ir, mas ela não quis deixar o filho natural, que ele insistia não ser dele. Após uma curta troca de cartas, a relação terminou para sempre. Quase trinta anos depois, quando fez seu testamento aos sessenta e um anos, Arthur incluiu uma cláusula deixando cinco mil talers para Caroline Richter-Medon.

Embora desprezasse as mulheres e zombasse do casamento, ele não sabia se devia se casar. Preveniu-se, pensando: "Todos os grandes poetas foram infelizes no casamento e nenhum grande filósofo se casou: Demócrito, Descartes, Platão, Spinoza, Leibniz e Kant. A única exceção foi Sócrates, mas pagou por isso, pois sua esposa era a briguenta Xântipa. (...) a maioria dos homens é atraída pela aparência das mulheres, que esconde os defeitos. Eles se casam quando jovens e pagam caro quando envelhecem, pois suas mulheres ficam histéricas e teimosas."

Com a idade, ficou desanimando com a idéia do casamento até desistir completamente aos quarenta anos. Casar-se em idade avançada, disse ele, era como percorrer a pé três quartos de estrada, depois comprar uma passagem muito cara pelo trajeto completo.

Todos os temas principais da vida passam pela ousada análise filosófica de Schopenhauer, inclusive o desejo sexual, assunto que os filósofos anteriores evitaram.

Ele iniciou a discussão com uma afirmação surpreendente sobre a força e onipresença desse desejo.

Depois do amor à vida, o sexo é a maior e mais ativa força e ocupa quase todas as vontades e pensamentos da porção mais jovem da humanidade. Ele é a meta final de praticamente todos os esforços humanos. Exerce uma influência desfavorável nos assuntos mais importantes, interrompe a toda hora as ocupações mais sérias e às vezes inquieta por algum tempo as maiores mentes humanas. (...) o sexo é realmente o alvo invisível de toda ação e conduta e surge em toda parte, apesar dos panos que são jogados em cima dele. Motivo de guerra e objeto da paz, (...) fonte inesgotável da razão, chave de todas as insinuações e sentido de todas as pistas misteriosas, de todas as ofertas silenciosas e olhares roubados, é nele que pensam os jovens e, com freqüência, os velhos também; no que pensam os impudicos todas as horas e a fantasia recorrente e constante dos pudicos, mesmo contra a vontade deles.

Meta final de praticamente todos os esforços humanos? O alvo invisível de toda ação e conduta? Motivo de guerra e objeto da paz? Por que tanto exagero? Quantas vezes Schopenhauer conclui a partir de sua própria preocupação com o sexo? Ou será que o exagero é só um disfarce para chamar a atenção do leitor para o que vai dizer?

Se considerarmos tudo isso, somos levados a perguntar: por que tanto barulho e confusão? Por que tanta pressa, tanto tumulto, angústia e empenho? Trata-se apenas de cada João encontrar sua Maria. Por que tal ninharia é tão importante e costuma trazer distúrbio e confusão na vida do homem?

A resposta de Arthur para a pergunta que ele mesmo fez antecipa em um século e meio muito do que iria tratar a psicologia evolu-cionária e a psicanálise. Ele afirma que não somos guiados pela nossa necessidade, maspela necessidade da nossa espécie. "Embora os dois envolvidos ignorem, o verdadeiro fim de toda história de amor é gerar uma criança", continua ele. "Portanto, o que realmente dirige o homem é um instinto dirigido para o que é melhor para a espécie, embora o homem pense que procura apenas a intensificação do próprio prazer".

Schopenhauer discute em detalhe os princípios que regem a escolha do parceiro sexual ("todos amam o que lhes falta") e enfatiza sempre que a escolha é feita pela força da espécie. "O homem é possuído pelo espírito da espécie, fica dominado por ele e não se pertence mais, (...) pois busca não o seu interesse, mas o de uma terceira pessoa que ainda não foi concebida."

Ele insiste que a força do sexo é irresistível. "Pois está sob influência de um impulso similar ao dos insetos, que o leva a atingir suas metas de qualquer maneira, apesar de todos os argumentos dados pela razão. (...) Ele não consegue desistir." E a razão tem pouco a ver com isso. Com freqüência, o homem deseja alguém que a voz da razão manda evitar, mas ela nada pode contra a paixão sexual. Schopenhauer cita o teatrólogo romano Terêncio: "O que não é concedido pela razão não dever ser dominado com a razão".

Muito já se comentou que as três maiores revoluções do pensamento ameaçaram a noção do homem como centro de tudo. Primeiro, Copérnico demonstrou que a Terra não era o centro de todos os corpos celestes. Depois, Darwin mostrou que não somos o centro na cadeia da vida e, como todas as demais criaturas, evoluímos a partir de outras formas de vida. Finalmente, Freud descobriu que não mandamos em nossa própria casa, pois grande parte do nosso comportamento é governado por forças inconscientes. Sem dúvida, o co-revo-lucionário que Freud não reconheceu foi Arthur Schopenhauer. Muito antes de Freud nascer, Schopenhauer afirmou que somos dominados por grandes forças biológicas e nos iludimos achando que escolhemos conscientemente o que fazemos.

 

Se não conto meu segredo, ele é meu prisioneiro. Se o deixo escapar, sou prisioneiro dele. A árvore do silêncio dá os frutos da paz.

A preocupação de Bonnie em relação ao número de pessoas presentes na sessão seguinte foi infundada: não só todos compareceram como chegaram antes da hora, com exceção de Philip, que, apressado, sentou-se às quatro e meia em ponto.

É comum haver um pequeno silêncio no começo da sessão. A pessoa aprende logo a não ser a primeira a falar, porque receberia muito tempo e atenção. Mas Philip, ousado como sempre, não esperou. Sem olhar para ninguém, começou com sua voz neutra e sem expressão.

O relato feito pela integrante do grupo que voltou na semana passada...

Que se chama Pam — acrescentou Tony.

Philip concordou, sem olhar. — Pam não revelou tudo sobre a minha lista, que era mais que uma simples seqüência de nomes de mulheres com as quais fiz sexo naquele mês. A lista tinha também os telefones...

Pam interrompeu. — Ah, os telefones ! Bom, desculpe, agora está tudo certo!

Sem se alterar, Philip prosseguiu: — E um resumo das preferências sexuais de cada mulher.

Preferências sexuais? — perguntou Tony.

Isso mesmo, o que cada uma preferia. Por exemplo: sexo anal, sexo oral, jogos preliminares, massagem nas costas, massagem com óleos, apanhar, ser chupada nos seios, algemada, amarrada na cabe ceira da cama.

Julius piscou. Deus do céu! Até onde Philip vai, será que contará as preferências de Pam? Lá vinha um grande problema.

Antes que ele conseguisse intervir, Pam gritou: — Você é realmente nojento. Asqueroso. — Pam inclinou-se para frente como se fosse levantar e sair.

Bonnie segurou o braço dela e disse para Philip: — Dessa vez, concordo com Pam. Você ficou louco, Philip? Para que contar essas coisas?

É, não estou entendendo — acrescentou Gill. — Olha, você está sob ataque cerrado. Não sei o que vai ser de você, cara. Eu não seria capaz de enfrentar isso. Mas o que você faz? Joga um balde de gasolina no fogo e diz "ra<? queimem mais um pouco". Não quero ofender, Philip, mas, porra, como pode fazer isso?

É, também acho — disse Stuart. — No seu lugar, eu iria me colocar numa luz mais favorável e não dar mais munição para o inimigo me atacar.

Julius tentou acalmar a situação. — Philip, o que você sentiu nos últimos minutos ?

— Bem, eu tinha uma coisa importante a dizer sobre essa lista e disse, com tanta naturalidade que estou satisfeito com o desenrolar dos fatos.

Julius insistiu e, com voz mais calma, repetiu: — Várias pessoas reagiram: o que você sentiu, Philip?

— Não vou por aí, Julius. Isso me complica. É melhor eu fazer o que acho.

Julius tirou outra ferramenta de sua caixa: a antiga, mas segura, estratégia do verbo na voz condicional: — Philip, experimente fazer uma suposição, como os filósofos fazem todos os dias. Compreendo sua vontade de manter o equilíbrio, mas, por favor, se você fosse sentir alguma coisa depois do que disseram hoje aqui, o que seria?

Philip pensou, sorriu de leve e concordou com a cabeça, talvez como prêmio pela ingenuidade da estratégia de Julius.

— Uma suposição? Muito bem. Se eu fosse sentir alguma coisa, seria susto pela agressividade de Pam. Sei que ela quer me magoar fundo.

Pam ia dizer alguma coisa, mas Julius fez sinal para se calar e deixar Philip continuar.

Bonnie então perguntou por que eu estava contando tanta vantagem, e Gill e Stuart perguntaram por que eu queria me imolar.

Imo o quê? — perguntou Tony.

Pam abriu a boca para responder, mas na mesma hora Philip explicou: —Imolar é sacrificar-se no fogo.

Certo, você descreveu bem o que houve, o que Bonnie, Gill e Stuart disseram. Agora, continue o expenmento: se fosse sentir alguma coisa com o comentário deles.

Certo, eu saí do assunto. Você deve estar achando que o meu inconsciente está emergindo.

Julius concordou com a cabeça: — Continue, Philip.

Eu me sentiria totalmente incompreendido. Diria a Pam que não estava querendo consertar o que fiz. Para Bonnie, que contar vantagem era a última coisa que eu pretendia. E, para Gill e Stuart, agradeceria o aviso, mas não quero me imolar.

Certo, agora sabemos o que você não queria. Então diga o que queria, não entendi — pediu Bonnie.

Estava apenas esclarecendo, seguindo os ditames da razão. Nada mais, nada menos.

O grupo entrou naquele estado comum após uma interação com Philip. Ele era tão racional, tão acima das pequenas rixas do cotidiano. Todos olharam para baixo, confusos, desorientados. Tony balançou a cabeça.

— Compreendo tudo o que você colocou, exceto a frase final "nada mais, nada menos", que não consigo aceitar — disse Julius. — Por que escolher esse prisma da verdade agora, hoje, nessa altura do seu relacionamento conosco? Você estava ansioso para falar. Não conseguia esperar, senti que queria pôr para fora. Apesar das óbvias conseqüências negativas mostradas pelo grupo, você hoje se adiantou logo. Vamos tentar ver por quê. Qual a vantagem disso?

— E simples, sei exatamente por que falei — respondeu Philip. Silêncio. Todos aguardavam.

Isso já está me enchendo o saco — disse Tony. — Philip, você está fazendo suspense, como sempre. Será que temos de implorar pela próxima frase?

Desculpe, o que você disse? — perguntou Philip, com cara de quem não entendeu.

Você está nos deixando esperar para saber por que disse aquilo. A espera é proposital? — perguntou Bonnie.

Talvez você ache que não queremos saber, não temos curiosidade pelo que vai dizer? — sugeriu Rebecca.

Não é nada disso — respondeu Philip. — Não tem nada a ver com vocês. É que meu interesse diminuiu e me voltei para dentro.

Isso parece importante — disse Julius. — Acho que há um motivo, ligado à sua interação no grupo. Se acha mesmo que seu comportamento é instável como a chuva que cai e pronto, então está assumindo uma posição indefesa. Há um motivo para você de vez em quando nos evitar e se voltar para dentro, acho que é por uma ansiedade. Então, sua perda de interesse tem a ver com a forma como iniciou a sessão. Percebe?

Philip ficou calado, pensando no que Julius disse.

Julius tinha uma forma de agir quando tratava com outro terapeuta. — Mais uma coisa, Philip, se você pretende um dia ter pacientes ou orientar um grupo, vai ser um problema grave perder o interesse no tema e se voltar para dentro.

Funcionou. Philip imediatamente respondeu: — Quis contar o que fiz para me proteger. Pam sabia da lista de mulheres e eu estava preocupado porque ela podia jogar aquela bomba a qualquer momento. Era menos ruim se eu contasse. — Philip estava indeciso, respirou fundo e continuou: — Tenho mais a dizer: ainda não respondi a acusação de Bonnie de que estava contando vantagem. Fiz a lista porque minha vida sexual foi muito intensa naquele ano. Meu relacionamento de três semanas com Molly, amiga de Pam, não era o normal. Eu preferia encontrar uma mulher uma vez e nunca mais, só procurava de novo quando tinha uma grande necessidade sexual e não conseguia outra mulher. Nesse caso, precisava das notas para fazer a mulher pensar que eu lembrava dela. Se soubesse a verdade, isto é, que era apenas mais uma entre muitas, eu podia ficar mal. Não havia qualquer fanfarronice na lista. Era para meu uso particular. Molly tinha a chave do meu apartamento, invadiu minha privacidade, arrombou uma gaveta da escrivaninha e pegou a lista.

— Você está dizendo que fez sexo com tantas mulheres que precisava anotar para não misturá-las? Bem, você calcula umas quantas?

— perguntou Tony.

Julius resmungou para si mesmo. As coisas já estavam tão complicadas sem a pergunta em tom invejoso de Tony. A tensão entre Pam e Philip também já estava insuportável. Era preciso diminuir a tensão, mas Julius não sabia como. De repente, Rebecca deu uma ajuda inesperada e mudou o rumo da sessão.

— Desculpem interromper, mas preciso de um tempo hoje. Passei a semana toda pensando em contar algo que jamais contei a ninguém, nem mesmo a você, Julius. Acho que é o meu maior segredo.

Rebecca parou e olhou o grupo. Todos olhavam para ela. — Posso falar?

Julius virou-se para Pam e Philip. — O que acham? Estamos deixando vocês muito irritados?

Comigo não tem problema, preciso de um tempo — disse Pam.

E você, Philip?

Philip concordou com a cabeça.

Concordo plenamente, mas primeiro quero que diga por que resolveu contar isso hoje — disse Julius.

Não, melhor eu falar enquanto estou com coragem. É o seguinte: uns quinze anos atrás, duas semanas antes do meu casamento, a empresa onde eu trabalhava me mandou apresentar um novo produto numa feira de informática em Las Vegas. Eu já tinha entregue o pedido de demissão e aquele seria meu último compromisso; na época, eu achava que o último até na minha vida profissional. Já estava grávida de dois meses, Jack e eu planejamos uma lua-de-mel de um mês, e depois eu cuidaria da casa e do bebê. Foi bem antes da faculdade de Direito, eu não imaginava que voltaria a trabalhar.

Bom, chegando em Las Vegas, fiquei meio estranha. Uma noite, me vi sentada no bar do Caesar Palace. Pedi um drinque e logo estava de conversa com um homem muito bem-vestido. Ele perguntou se eu estava de serviço e, sem conhecer a expressão, respondi que sim. Antes que eu pudesse falar no meu trabalho, ele perguntou quanto eu cobrava. Engoli em seco, olhei para ele (era bonito) e respondi: — Cento e cinqüenta dólares. — Ele concordou, subimos para o apartamento dele. Na noite seguinte mudei para o hotel Tropicana e fiz a mesma coisa. Mesmo preço. Na última noite, fui de graça.

Rebecca respirou fundo e expirou alto. — É isso. Jamais contei para ninguém. Pensei em contar para Jack, mas desisti. Para quê? Só ia aborrecê-lo conseguir um pequeno e precioso perdão para mim e... Tony, seu filho da puta, isso não tem graça!

Tony estava com a carteira de dinheiro na mão, contando as notas. Parou e, com um sorriso humilde, disse: — Eu só queria aliviar o clima fazendo piada.

— Não quero aliviar nada. Isso para mim é coisa séria — disse Rebecca, com um de seus maravilhosos sorrisos. — É isso, confissões.

— Virou-se para Stuart, que muitas vezes chamou-a de boneca de porcelana. — Então, o que acha? Talvez eu não seja a linda boneca que pareço.

Stuart respondeu: — Eu não estava pensando nisso. Sabe o que pensei, enquanto você falava? Lembrei de um filme que aluguei noites atrás, The Green Mile. Tinha uma cena inesquecível de um condenado fazendo a última refeição. Acho que em Las Vegas você se deu a última liberdade antes do casamento.

Julius concordou e disse: — Também acho. Parece uma coisa que conversamos há muito tempo, Rebecca. — E explicou para o grupo:

— Anos atrás, Rebecca e eu trabalhamos cerca de um ano na terapia sobre sua decisão de se casar. — Virando-se para Rebecca, disse: — Lembro que falamos semanas no seu medo de perder a liberdade, de ter menos oportunidades. Concordo com Stuart, foi isso que aconteceu em Las Vegas.

— Lembro de uma sessão, Julius, em que você citou um romance onde alguém procura um sábio e ele diz que as escolhas excluem, ou seja, que para todo sim existe um não.

Pam interrompeu: — Sei qual é o livro, é Grendel, de John Gardner. O demônio Grendel procura o sábio.

— Há várias conexões aqui — disse Julius. — Pam me indicou esse romance quando já estava em terapia individual há alguns meses. Então, Rebecca, se meu comentário ajudou você, tem que agradecer a ela.

Rebecca deu um grande sorriso agradecido para Pam. — Você, indiretamente, me tratou. Colei um papel com essa frase no meu espelho: Escolhas excluem. Por isso aceitei me casar com Jack, além de saber que ele era o homem certo para mim. — Acrescentou, para Julius: — Lembro que você disse que para envelhecer bem era preciso aceitar que as oportunidades diminuem.

Muito antes de Gardner, Heiddeger — interrompeu Philip, explicando para Tony: — importante filósofo alemão da primeira metade do século passado...

Um grande nazista, também — interrompeu Pam.

Philip não deu ouvidos e continuou. — Heidegger falou de enfrentar o limite da possibilidade. Na verdade, ele ligava esse limite ao medo da morte. Para ele, "a morte é a impossibilidade de qualquer possibilidade."

— Morte como impossibilidade de qualquer possibilidade—Julius repetiu. — Grande frase, acho que vou colar no meu espelho. Obrigado, Philip. Há tanta coisa para vermos, inclusive seus sentimentos, Pam. Mas antes quero comentar mais uma coisa sobre você, Rebecca. Esse fato em Las Vegas deve ter sido durante a terapia individual e você jamais o mencionou. Mostra como deve tê-la envergonhado.

Rebecca concordou. — É, resolvi colocar uma pá de cal na história. — Depois de uma pausa e de pensar se falava, acrescentou: — Tem mais, Julius. Eu fiquei com vergonha e além disso foi uma situação arriscada, fiquei mais envergonhada quando fantasiei a situação, foi um grande barato, não um barato de sexo, não apenas um barato de sexo, mas de ficar fora da lei, de agir de forma inconsciente. — Vi-rando-se para Tony, acrescentou: — Por isso sempre tive uma certa atração por você, por ter sido preso, por suas brigas de bar, seu desrespeito às leis. Mas agora você exagerou, conferir o dinheiro foi agressivo.

Antes que Tony pudesse responder, Stuart se adiantou: — Você é muito corajosa, Rebecca. Admiro. E me liberou para contar algo que não falei nem para Julius, nem para meu terapeuta anterior, nem para ninguém. — Ficou indeciso, olhou para cada pessoa: — Antes, vou conferir o fator segurança. Esse assunto é de alto risco. Confio em todos aqui, exceto em você, Philip, porque ainda não o conheço direito. Certamente Julius falou com você sobre discrição, não?

Silêncio.

— Philip, seu silêncio me irrita. Eu fiz uma pergunta — disse Stuart, que ficou de frente para Philip. — Por que não responde?

Philip levantou os olhos. — Não sabia que era preciso responder.

Eu disse que certamente Julius falou na discrição e levantei a voz no final da frase. Isso mostra que é uma pergunta, não? E falar em confiança não indicava que eu queria uma resposta sua?

Compreendo — disse Philip. — Julius falou na discrição e me comprometi a respeitar todas as regras do grupo, inclusive essa.

Certo — disse Stuart. — Sabe, Philip, estou mudando de idéia, achava você arrogante, mas começo a achar que é só um bicho-do-mato que não gosta de sair de casa, nem gosta de gente. Pode responder ou não, como quiser.

Boa, Stuart! — disse Tony, rindo. — Está aparecendo, cara. Gostei.

Stuart concordou. — Minha crítica não foi negativa, Philip, mas vou contar uma coisa e preciso ter certeza, da discrição de todos. Então, vamos lá. — Respirou fundo. — Cerca de treze ou catorze anos atrás, quando terminava a residência e ia começar na clínica, fui a uma convenção de pediatras na Jamaica. Esses eventos são para os profissionais se atualizarem com as últimas pesquisas, mas todo mundo sabe que muitos vão por outros motivos também: procurar uma oportunidade de emprego, ou um cargo acadêmico, ou apenas descansar e não fazer nada. Eu fui por todos esses motivos, e, para piorar, meu avião para Miami atrasou e perdi o vôo para a Califórnia. Tive de dormir no hotel do aeroporto e fiquei bem irritado.

O grupo estava totalmente atento ao que Stuart dizia; era um novo prisma dele que estavam conhecendo.

Hospedei-me no hotel umas onze e meia da noite, tomei o elevador para o sétimo andar (engraçado como os detalhes estão nítidos), entrei num comprido e silencioso corredor para o quarto. Nisso, uma porta se abriu e uma mulher de roupão, desarrumada e descabelada, saiu. Era atraente, com um lindo corpo, uns dez ou quinze anos mais velha que eu. Segurou no meu braço (ela cheirava a bebida) e perguntou se eu tinha visto alguém no corredor.

Ninguém, por quê? — perguntei. — Ela então me contou uma história comprida e confusa de um entregador que tinha acabado de roubar seis mil dólares dela. Sugeri que ligasse para a portaria do hotel ou para a polícia, mas, estranhamente, ela não parecia com vontade de fazer nada. Depois, fez sinal para eu entrar no quarto, falamos e tentei acalmá-la por ter sido roubada (obviamente, a história era uma fantasia dela). Uma coisa leva a outra e acabamos na cama. Perguntei várias vezes se ela queria que eu ficasse, se queria fazer sexo. Ela queria, nós queríamos, e duas horas depois ela estava dormindo. Fui para o meu quarto, dormi algumas horas e peguei um vôo cedo. Antes de embarcar, liguei sem dar meu nome para o hotel e disse que havia uma hóspede no quarto setecentos e doze que podia precisar de atendimento médico.

Após alguns minutos de silêncio, Stuart disse: — É isso aí.

Éisso aí? — perguntou Tony. — Uma mulher bonita convida você para o quarto dela e você dá o que ela pede? Cara, essa eu não perdia.

Não, não é isso! — disse Stuart. — O problema é que sou médico, encontro uma mulher mal, talvez com uma leve ou enorme alucinação alcoólica, vou e transo com ela. É um desrespeito ao Juramento de Hipocrates, um erro grave do qual jamais me perdoei. Não consigo esquecer aquela noite, está marcada a fogo na minha cabeça.

Você é muito duro consigo mesmo, Stuart — disse Bonnie. — A mulher sozinha, bêbada, sai no corredor, vê um homem atraente, mais jovem, convida-o para a cama. Ela conseguiu o que queria, talvez o que precisava. Vai ver que você fez muito bem a ela. Ela deve achar que foi uma noite ótima.

Os outros (Gill, Rebecca, Pam) queriam falar, mas Stuart adiantou-se: — Agradeço o que vocês disseram, muitas vezes eu disse coisas parecidas para mim mesmo, mas sinceramente não estou pedindo apoio. Eu só queria falar nisso, tirar esse ato sórdido que ocorreu há anos e trazê-lo das trevas para a luz, só isso.

Bonnie reagiu. — Muito bom, fez bem em nos contar, Stuart, mas isso mostra uma coisa que já comentamos antes: a sua relutância em aceitar nossa ajuda. Você é ótimo para dar, mas não tanto para receber.

Podem ser reflexos de médico. Não fiz medicina para ser paciente e sim para atender pacientes — retrucou Stuart.

Você nunca tem um dia de folga? — perguntou Tony. — Pensei que estivesse de folga naquela noite no hotel de Miami. Meia-noite com uma mulher de porre, com vontade de transar, ora, cara, vai nessa.

Stuart balançou a cabeça. — Um tempo atrás ouvi uma fita do Dalai Lama conversando com mestres budistas. Um deles perguntou sobre cansaço e se eles não deviam ter uma folga de vez em quando. A resposta do Dalai foi excelente: — Folga? O Buda diz: "Desculpem, hoje estou de folga!". — Jesus se aproxima de um doente e diz: "Desculpe, estou de folga hoje!". — O Dalai está sempre rindo, achou essa idéia muito engraçada e não parou de rir.

Discordo. Acho que você está usando sua profissão como desculpa para evitar a vida — disse Tony.

O que fiz naquele hotel foi errado. Ninguém me convence do contrário.

Julius disse: — Foi há catorze anos e você não esquece. Que conseqüência teve o fato?

— Além de eu me depreciar e ter nojo de mim? — perguntou Stuart.

Julius concordou.

Tenho sido um ótimo médico, nunca mais, nem por um instante, violei a ética da profissão.

Stuart, decreto que você pagou sua dívida. Caso encerrado — disse Julius.

Assim seja — disseram várias pessoas.

Stuart sorriu e se benzeu. — Isso me faz lembrar a missa de domingo na infância. Tenho a impressão de que acabei de ser absolvido no confessionário.

— Vou contar uma coisa — disse Julius. — Anos atrás, em Xangai, estive numa catedral deserta. Sou ateu, mas gosto de conhecer lugares religiosos. Bem, dei uma volta na catedral, sentei no confessionário vazio e fiquei invejando o padre-confessor. Que poder ele tinha! Tentei dizer: "Você está perdoado meu filho, você está perdoada, minha filha". Imaginei a enorme segurança dele por se considerar o elo do perdão que vinha direto do homem lá de cima. E como as minhas técnicas careciam insignificantes em comparação com as dele. Mas depois que saí da catedral, conclui que pelo menos eu vivia de acordo com as normas da razão, e não tratava meus pacientes como crianças, transformando mitologia em realidade.

Após um curto silêncio, Pam disse: — Sabe de uma coisa, Julius? Alguma coisa mudou. Você está diferente de quando eu fui viajar. Conta histórias da sua vida e opina sobre religiões, o que sempre evitou. Acho que é efeito da sua doença, mas, mesmo assim, gostei. Acho muito bom você estar mais pessoal.

Julius concordou. — Obrigado. O silêncio que houve aqui me deu a desagradável impressão de que ofendi a religião de alguém.

— A minha não, Julius, se está preocupado comigo — disse Stuart.

— Essas pesquisas que dizem que noventa por cento dos norte-americanos acreditam em Deus me deixam estupefato. Larguei a Igreja na adolescência e, se não tivesse largado nessa época, largaria quando soube dos padres católicos pedófilos.

— Também não me ofendeu — disse Philip. — Você e Schopenhauer têm algo em comum quanto à religião. Ele achava que os líderes religiosos exploram a eterna necessidade que o homem tem do sobrenatural e tratam as pessoas como crianças, deixando-as numa eterna ilusão, e não contam que escondem a verdade em alegorias.

O comentário de Philip interessava a Julius, mas, notando que faltavam poucos minutos para o fim da sessão, ele foi direto: — Hoje, aconteceu muita coisa aqui. Muita gente se expôs. O que sentiram? Alguns estiveram muito calados. Pam, Philip, o que têm a dizer?

Philip respondeu logo: — Na minha opinião, o que foi mostrado hoje aqui, o que causou tanto tormento inútil para mim e para outros, vem do supremo e universal poder do sexo, que meu outro terapeuta, Schopenhauer, me ensinou que é totalmente intrínseco a nós ou, como se diz hoje, faz parte da nossa constituição.

Conheço bem a opinião dele sobre o assunto, já que o cito sempre nas palestras. Eis algumas: "O sexo é o mais forte e mais ativo de todos os motivos. (...) a meta final de quase todos os esforços humanos. (...) Interrompe a toda hora as ocupações mais sérias e às vezes desorienta (...) as mentes mais brilhantes. O sexo se intromete com seu lixo e interfere (...) nas pesquisas dos eruditos."

Philip, isso é importante, mas, antes de terminarmos a sessão de hoje, tente falar dosseus sentimentos, em vez dos de Schopenhauer — interrompeu Julius.

— Vou tentar, mas só mais uma frase: "Todos os dias, o sexo destrói as relações mais valiosas. Na verdade, tira todo o escrúpulo dos que antes eram honrados e corretos". — Philip parou — Era o que eu tinha a dizer, pronto.

— Não ouvi nada sobre seus sentimentos, Philip — disse Tony, satisfeito com a chance de enfrentá-lo.

Philip concordou. — Mostra como nós, pobres mortais sofredores, somos tão vítimas do corpo que ficamos cheios de culpa por coisas que são naturais, como ficaram Stuart e Rebecca. E que temos a obrigação de nos livrarmos da escravidão do sexo.

Após alguns instantes do habitual silêncio após uma opinião de Philip, Stuart virou-se para Pam e perguntou: — Eu queria muito saber o que você acha do que falei. Pensei em você ao contar aquela história. Acho que a coloquei numa situação difícil porque, de certa forma, não pode me perdoar sem perdoar Philip também.

Tenho o mesmo respeito de sempre por você, Stuart. E lembre que esse assunto me toca; fui usada por um médico, meu ex-marido, que foi também meu ginecologista.

Exatamente. Mas pode me perdoar sem perdoar também Philip e Earl? — insistiu Stuart.

São assuntos diferentes, Stuart. Você tem moral, tenho mais certeza ainda depois que ouvi seu arrependimento hoje. E o que aconteceu no hotel em Miami não me assusta. Você nunca leu Medo de voar?

Stuart negou, e Pam prosseguiu: — Dê uma olhada nesse livro. A autora, Érica Jong, diria que você deu uma simples "trepada sem zíper", foi uma transa natural para as duas partes, você foi gentil, ninguém se magoou, você se preocupou em ver se ela ficou bem. Mas depois usou o fato como um termômetro moral. E Philip? O que dizer de um sujeito que tem como modelo Heidegger e Schopenhauer? De todos os filósofos que já existiram, eles foram os maiores e mais desprezíveis fracassos como seres humanos. Philip fez algo imperdoável, destruidor, sem remorso.

Bonnie interrompeu. — Calma, Pam, você notou uma coisa? Quando Julius tentou interromper Philip, ele insistiu em mais uma frase, definindo o sexo como algo que tira os escrúpulos das pessoas e destrói relacionamentos. Será que não foi uma espécie de remorso? E não foi dito para você?

— Philip tem alguma coisa a dizer? Vamos deixar ele dizer e não Schopenhauer.


Vou me intrometer no assunto — disse Rebecca. — Saí da última sessão com pena de você e de todos nós, inclusive de Philip, que, vamos ser sinceros, foi sacaneado aqui. Em casa, pensei na frase de Cristo sobre aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra, que em muito a ver com o que falei hoje.

Vamos terminar a sessão, mas, Philip, era exatamente isso o que eu queria quando pedi para manifestar seus sentimentos — disse Julius.

Philip balançou a cabeça, intrigado.

— Você percebeu que hoje ganhou um presente de Rebecca e Stuart?

Philip continuou balançando a cabeça — Não entendi.

— Pois esse fica sendo o seu dever de casa, Philip: pensar nos presentes que recebeu hoje.

 

A primeira regra para não ser um brinquedo nas mãos de qualquer velhaco, nem ridicularizado por qualquer imbecil, é manter-se reservado e distante.

Após a sessão, Philip andou horas, passou pelo Palácio de Belas Artes, aquela colunata decadente erguida para a Exposição Internacional de 1915, contornou o lago duas vezes, viu os cisnes vigiando o território deles, depois caminhou pela marina e o Chrissy Field, na baía de San Francisco, até chegar à ponte Golden Gate. O que Julius pediu para ele? Lembrava da recomendação de pensar no presente que Stuart e Rebecca deram, mas, antes mesmo de conseguir se concentrar, já havia esquecido qual era a tarefa. Afastou várias vezes os pensamentos da cabeça e tentou se fixar em imagens calmantes e arquetípicas: o rastro que os cisnes deixavam nas águas do lago, as ondas do Pacífico dando piruetas embaixo da ponte Golden Gate. Mas continuava estranhamente distraído.

Passou pelo presídio, antiga base militar no alto da baía, e pela Element Street, com seus vinte quarteirões de restaurantes asiáticos colados uns aos outros. Escolheu um modesto restaurante vietnamita so de sopas, e quando trouxeram seu caldo de carne com macarrão, «cou alguns minutos sentindo a fumaça de erva-cidreira que vinha da sopa e olhando a montanha de macarrão de arroz. Comeu poucas colheradas e pediu para embalarem o resto para o seu cachorro.

Philip não dava muita importância à comida e tinha padronizado seus hábitos alimentares: café da manhã com torrada, geléia e café, almoço ao meio-dia na lanchonete dos alunos da faculdade e uma pequena refeição barata à noite, sopa ou salada. Preferia fazer todas elas sozinho. Ficava satisfeito, às vezes chegava a sorrir, quando lembrava do hábito de Schopenhauer: pagar mais um lugar na mesa do clube onde almoçava, para garantir que ninguém se sentaria com ele.

Foi para sua casa de um quarto, tão pouco mobiliada quanto o escritório, e que ficava nos fundos de um palacete em Pacific Heights, não muito distante do endereço de Julius. A proprietária viúva morava sozinha no casarão e alugava barato os cômodos para Philip. Ela precisava daquela renda extra e gostava de viver só, mas queria alguém perto que não incomodasse. Philip era a pessoa perfeita e os dois viviam há anos numa proximidade isolada.

Philip costumava se animar com a calorosa recepção de ganidos, latidos, rabo abanando e saltos acrobáticos de Rugby, o cachorro, mas naquela noite, não. Também não se acalmou com a caminhada com o cachorro no fim do dia, nem com qualquer outra ocupação de rotina. Acendeu o cachimbo, ouviu a Quarta Sinfonia de Beethoven, leu distraído Schopenhauer e Epícteto. Deu atenção, por alguns instantes, a um trecho de Epícteto.

Se você se interessa muito por filosofia, prepare-se para ser motivo do riso e escárnio de todos. Se persistir em seu interesse, saiba que essas mesmas pessoas depois irão admirar você. (...) E que, se por acaso der atenção a fatos externos, para agradar a quem quer que seja, fique certo de que arruinará seu estilo de vida.

Mas Philip continuou inquieto como não ficava há algum tempo, inquietude que, anos antes, fazia com que saísse como um animal no cio. Entrou na pequena cozinha, tirou da mesa a louça do café, ligou o computador e dedicou-se ao seu único vício: entrar no clube de xadrez da Internet e jogar cinco minutos no ataque, em silêncio e anônimo, por três horas. Em geral, vencia. Quando perdia, costumava ser por descuido, mas não se irritava por muito tempo, teclava logo em acessar jogo" e seus olhos brilhavam com alegria pueril ao iniciar outra partida.

 

Quando eu tinha trinta anos, estava cansado e aborrecido por ter de considerar iguais a mim pessoas que nada tinham a ver comigo. Como um gato que, quando pequeno, brinca com bolinhas de papel porque acha que são vivas e parecem com ele, assim me sinto em relação aos bípedes.

PORCOS-ESPINHOS, GÊNIOS E O GUIA DO MISANTROPO NAS RELAÇÕES HUMANAS

A fábula do porco-espinho é um dos textos mais conhecidos de Schopenhauer e mostra sua fria visão dos relacionamentos humanos.

Num dia frio de inverno, alguns porcos-espinhos se juntaram para se aquecerem com o calor de seus corpos. Mas logo viram que estavam se espetando e se afastaram. Ficaram com frio de novo e se juntaram, ficando entre dois males até descobrirem a distância adequada. Assim é na sociedade, onde o vazio e a monotonia fazem com que os homens se aproximem, mas seus muitos defeitos, desagradáveis e repelentes, fazem com que se afastem.

Em outras palavras, devemos tolerar a proximidade dos outros só quando necessária à sobrevivência, evitando-a sempre que possível. A maioria dos terapeutas hoje não teria dúvida em recomendar tratamento para essa postura tão radical. A terapia trata relações interpessoais complicadas, não só a fuga do convívio social, mas os desajustes em todas as suas gamas e nuances: o autismo, a fobia social, a personalidade esquizóide e anti-social, o narcisismo, a incapacidade de amar, de se valorizar, a autodepreciação.

Será que Schopenhauer concordaria que seus sentimentos em relação aos outros eram desajustados? Dificilmente. Seu comportamento estava tão entranhado, tão profundamente arraigado, que jamais o considerou uma deficiência. Pelo contrário, julgava que sua aversão às pessoas e seu isolamento eram uma qualidade. Note, por exemplo, a moral de sua fábula do porco-espinho: "Quem tem muito calor interno prefere se manter afastado da sociedade para não dar nem receber problemas e aborrecimentos".

Schopenhauer acreditava que o homem de força e valor não precisa dos outros; ele se basta. Essa teoria, ligada à certeza absoluta do próprio gênio, serviu de racionalização para que ele evitasse, a vida inteira, aproximar-se dos outros. Costumava dizer que o fato de pertencer à "mais alta classe do gênero humano" obrigava-o a não desperdiçar seus dons em nenhum relacionamento social, mas manter-se a serviço da humanidade. Escreveu: "Minha inteligência não pertence a mim, mas ao mundo".

Muito do que escreveu sobre sua fantástica inteligência é tão exagerado que ele poderia ser considerado convencido, caso não fosse realmente brilhante. Quando decidiu ser erudito, seus notáveis dons intelectuais ficaram evidentes para todos os próximos: os tutores, por exemplo, que o prepararam para a universidade, ficaram perplexos com seu desenvolvimento precoce.

O único homem do século XIX a quem Schopenhauer se comparava intelectualmente era Goethe, que acabou respeitando a capacidade dele. Goethe havia ignorado o jovem Arthur quando freqüentava os salões literários da mãe e se preparava para a universidade. Mais tarde, Johanna pediu ao poeta uma carta de recomendação para o filho se matricular na universidade e Goethe manteve a reserva no bilhete que escreveu para um velho amigo, professor de grego: "O jovem Schopenhauer parece ter mudado algumas vezes de estudos e interesses. Você poderá avaliar o quanto ele conseguiu em cada disciplina se, a despeito de sua amizade por mim, lhe conceder uma hora de seu tempo."

Anos depois, ao ler a dissertação de doutorado de Arthur, então com 26 anos, Goethe ficou tão impressionado que, quando o rapaz voltou a Weimar, mandou várias vezes seu criado buscá-lo para longas discussões. Queria ouvir a opinião de alguém sobre sua teoria das cores, trabalho que lhe custou muito esforço. Embora Schopenhauer não conhecesse nada do tema, Goethe achava que valeria a pena discutir, por sua rara inteligência. Recebeu mais do que pediu.

A princípio, Schopenhauer ficou muito honrado, gostou do elogio e escreveu para seu professor em Berlim: "Seu amigo, nosso grande Goethe, é bom, calmo e simpático: que seu nome seja louvado para sempre". Semanas depois, porém, os dois discordaram. Arthur disse que Goethe fez observações curiosas sobre a visão, mas errou em vários pontos importantes e não conseguiu criar uma teoria ampla da cor. Arthur interrompeu seus escritos e desenvolveu sua própria teoria, divergindo de Goethe em partes importantes, e publicou-a em 1816. A ousadia de Schopenhauer dilapidou a relação com Goethe, que comentou o fim da amizade em seu diário: "Concordamos em vários pontos, mas a separação era inevitável, como dois amigos que percorrem juntos um bom pedaço e se despedem porque um vai para o norte e outro para o sul, e logo se perdem de vista".

Schopenhauer ficou magoado e irritado com o afastamento, mas lembrou que Goethe respeitava sua inteligência e continuou a respeitar o nome e citar as obras dele pelo resto da vida.

O filósofo tinha muito a dizer da diferença entre o homem de gênio e o de talento. Além de comentar que o homem de talento atinge um alvo que os outros não conseguem, enquanto o gênio atinge um alvo que os outros não conseguem ver, disse que o homem de talento é moldado conforme as necessidades da época e capaz de atender tais necessidades, mas a geração seguinte de leitores já não conhece sua obra. (Estaria se referindo aos livros da mãe?) "O homem de gênio brilha no seu tempo como um cometa entre os planetas. (...) não pode seguir lado a lado da cultura, mas bem à frente dela."

Assim, uma das afirmações na fábula do porco-espinho é que o homem de verdadeiro valor, sobretudo o gênio, não precisa do calor dos outros. Há uma afirmação mais sombria: que nossos semelhantes são desagradáveis, repulsivos e, portanto, devem ser evitados. Essa Postura misantropa está em todos os escritos de Schopenhauer, que são cheios de escárnio e ironia. Vejamos o início de seu criterioso ensaio Da doutrina da indestrutibilidadepela morte de nossa verdadeira natureza: "Numa discussão, se um dos muitos que querem saber tudo, mas não aprendem nada, pergunta da continuação da vida após a morte, a resposta mais adequada e, principalmente, mais correta é: 'Depois da morte, você vai ser como era antes de nascer'".

O ensaio segue com uma fascinante e incisiva análise da impossibilidade de dois tipos de nada e oferece conclusões para todos que algum dia pensaram na morte. Mas por que começar o ensaio com uma agressão gratuita, a "um dos muitos que querem saber tudo, mas não aprendem nada?". Por que manchar pensamentos sublimes com críticas mesquinhas? Esse contraste dissonante existe em toda a obra de Schopenhauer. Que desapontamento encontrar um pensador tão importante, mas tão agressivo; com tanta visão e, ao mesmo tempo, tão cego.

Em seus escritos, Schopenhauer lamenta qualquer hora desperdiçada no convívio ou em conversa com outros. Diz: "É melhor não dizer nada do que ter um diálogo estéril e burro em conversas com os bípedes".

Lamenta também ter procurado a vida inteira "um verdadeiro ser humano, mas encontrado apenas miseráveis canalhas, de inteligência limitada, mau coração e espírito mesquinho". (Exceto Goethe, a quem sempre poupou de tais ataques.)

Numa nota autobiográfica, afirma: "Quase todo contato com os homens é uma contaminação, uma violação. Chegamos a um mundo habitado por uma classe de criaturas lastimáveis à qual não pertencemos. Devemos estimar e honrar os poucos que são melhores, nascemos para instruir o resto, não para nos associarmos a eles."

Ao ler seus escritos, podemos fazer um manifesto da misantropia com regras de conduta pelas quais deveríamos nos pautar. Imagine como Schopenhauer, apoiando esse manifesto, se sentiria num grupo de terapia hoje!

Não conte a um amigo o que seu inimigo não pode saber.

Considere todos os assuntos pessoais como secretos, e mantenha-se distante até de amigos próximos. (...) Se os fatos mudarem, saber de algo, por mais inofensivo, a seu respeito será desvantagem para você.

Metade da sabedoria consiste em não gostar nem odiar. Ficar calado e não acreditar em nada é a outra metade.

A segurança é mãe da desconfiança (provérbio francês, que ele endossava).

Esquecer os defeitos de um homem é como jogar fora dinheiro que se custou a ganhar. Devemos nos proteger da familiaridade e da amizade idiotas.

A única forma de um homem se manter superior aos demais é mostrar que não depende deles.

Desconsiderar é ganhar consideração.

Se temos alguém em alta consideração, devemos esconder tal fato como se fosse um crime.

Melhor deixar que os homens sejam como são do que acreditar no que não são.

Jamais devemos demonstrar raiva e ódio a não ser nas ações. (...) os animais de sangue frio são os mais venenosos.

Sendo simpático e gentil, pode-se fazer com que as pessoas fiquem dóceis e maleáveis: a gentileza nos humanos tem o mesmo efeito do calor na cera.

 

Poucas coisas deixam as pessoas tão satisfeitas quanto ouvir algum problema ou constatar alguma fraqueza em você.

Na sessão seguinte, Gill jogou-se na cadeira, testando com o corpanzil a capacidade de suportar seu peso. Esperou todos se acomodarem e começou. — Se ninguém tem nada a dizer, quero continuar o exercício de "revelar" segredos.

Gostaria de dar um pequeno aviso — disse Julius. — Acho que isso não deve ser uma obrigação. As pessoas funcionam melhor no grupo quando não escondem nada, mas é importante ter o próprio ritmo e não se sentir obrigado a fazer revelações.

Entendi, mas não estou me forçando. Eu quero falar nisso e também não quero deixar Rebecca e Stuart sozinhos nessa história, certo? —disse Gill.

Depois de conferir que todos concordaram, continuou: — Meu segredo remonta aos treze anos de idade. Eu era virgem, mal tinha chegado à puberdade, era cheio de cravos e espinhas e tinha uma tia chamada Valérie, irmã caçula do meu pai, de vinte e tantos ou trinta e poucos anos, que às vezes se hospedava na nossa casa e estava sempre mudando de empregos. A gente se dava muito bem, brincávamos muito quando meus pais saíam de casa, lutávamos, fazíamos cócegas, jogávamos baralho. Uma vez, eu a enganei no pôquer tira-roupa e a situação ficou bem erótica, não estávamos mais fazendo cócegas, era uma outra coisa. Eu não tinha experiência sexual, estava com os hormônios a toda e não entendi a situação, mas quando ela disse para "enfiar", eu respondi "pois não, madame" e segui as instruções. Depois, passamos uns meses fazendo aquilo sempre que podíamos, até que um dia meus pais chegaram cedo e nos pegaram com a mão na massa, deitados, no ato, como se diz ... em flagrante?

Gill olhou para Philip que abriu a boca para responder, mas Pam falou antes: — "Flagrante delito."

— Puxa, que rápido, esqueci que temos aqui dois professores — murmurou Gill, e continuou: — Bem, foi um rolo na família. Meu pai não criou muito caso, mas minha mãe ficou furiosa, tia Val não se hospedou mais lá em casa e mamãe ainda ficou brava com papai por continuar amigo da minha tia.

Gill parou, olhou em volta e acrescentou: — Entendo por que minha mãe ficou zangada, embora a culpa fosse tanto minha quanto da tia Val.

— Culpa sua, com treze anos? Alto lá! — disse Bonnie. Stuart, Tony e Rebecca concordaram.

Antes que Gill pudesse responder, Pam disse: — Gill, talvez eu não diga o que você espera, mas estou para falar isso desde antes de viajar. Impossível não ser agressiva, por isso não vou tentar, vou em frente. O fato é que sua história não me emociona em nada e,em geral, você não me toca. Mesmo dizendo que vai fazer uma revelação como Rebecca e Stuart fizeram, não dá a sensação de algo pessoal.

— Sei que você confia no grupo — continuou Pam. — Além disso, trabalha muito, é muita responsabilidade cuidar dos outros e, quando alguém sai dessa sala, é você quem costuma ir atrás. Parece estar fazendo uma revelação, mas é engano, continua escondido. Isso mesmo, você se esconde o tempo todo. Sua história com a tia mostra bem o que quero dizer: parece pessoal, mas não é. É um truque por que não é uma história sua, mas da sua tia, e é claro que todo mundo vai se apressar em dizer: "Mas você era uma criança, tinha treze anos, foi vítima". O que podiam dizer? E suas histórias do casamento são sempre sobre Rose, nunca sobre você. Causam sempre a mesma reação em nós: "Por que você agüenta essa situação de merda?".

— Na Índia, quando eu ficava com o saco na lua de tanto meditar, pensava muito no grupo. Não imaginam como pensei em cada um de vocês. Menos em você, Gill. Lastimo dizer, mas não pensei em você. Quando você fala, nunca sei com quem está falando, talvez com as paredes, com o chão, mas nunca senti que falava comigo.

Silêncio. As pessoas pareciam não saber o que dizer. Tony então assobiou e disse: — Bem-vinda de volta ao grupo, Pam.

Não vale a pena estar aqui, se não for sincera — disse Pam.

O que está sentindo, Gill? — perguntou Julius.

Ah, como se levasse um chute na barriga e cuspisse alguns pedaços de pancreas. Isso é pessoal, Pam? Espera aí, não responde a sua pergunta. Não quis ofender, sei que você está querendo ajudar e, no fundo, tem razão.

Fale mais sobre isso Gill, sobre ela ter razão — pediu Julius.

Ela tem razão. Eu podia dizer mais, podia dizer umas coisas para as pessoas aqui.

Para quem, por exemplo? — perguntou Bonnie.

Bem, para você. Gosto muito de você.

Bom saber disso, Gill, mas continua meio impessoal.

Gostei de você me telefonar umas semanas atrás e não acho que você seja tão sem graça; não entre na Banda da Beleza de Rebecca. Sempre tive uma queda, vai ver que desde a tia Val, por mulheres mais velhas. E vou ser sincero, fiz umas boas fantasias quando você me convidou para ficar na sua casa quando eu não queria voltar para Rose.

Por isso não aceitou o convite? — perguntou Tony.

Não, foi por outro motivo.

Quando ficou evidente que Gill não ia entrar em detalhes, Tony perguntou: — Pode falar sobre o outro motivo?

Gill parou um instante, a careca brilhando de suor, tomou coragem e disse: — Olha, vou falar no que sinto por cada um do grupo. — Começou por Stuart, que estava sentado ao lado de Bonnie. — Admiro muito você, Stuart. Se eu tivesse filhos, gostaria que você fosse o pediatra deles. E o que contou na semana passada não altera nada do que sinto.

— Quanto a você, Rebecca, para ser sincero, você me intimida, parece perfeita demais, bonita demais, arrumada demais. Aquela história em Las Vegas que você contou não muda nada, continua sendo a mesma mulher, com toneladas de segurança. Talvez por eu agora estar nervoso, não lembro por que você começou a terapia. Stuart comparou você a uma boneca de porcelana, está certo, talvez você seja um pouco frágil demais, vai ver que tem umas arestas, não sei.

Você, Pam, é firme, dura, a pessoa mais inteligente que já vi, até Philip entrar aqui, porque ele ainda é mais. Não quero brigar com nenhum dos dois, mas Pam, você tem que resolver seu problema com os homens. Eles não foram legais com você, mas, repito, você tem raiva da gente, dos homens. De todos os homens. Difícil separar o joio do trigo.

Philip, você está no alto como se estivesse num outro astral ou num outro mundo. Mas fico pensando se alguma vez teve um amigo, não consigo imaginar você saindo de casa, tomando uma cerveja, comentando um jogo do Giants. Não consigo ver você se divertindo ou gostando de alguém. E vou dizer, duvido muito que não se sinta só.

Gill continuou: — Tony, acho você fascinante, trabalha com as mãos, cria coisas realmente, não fica lidando com números como eu. Gostaria que não tivesse tanta vergonha do seu trabalho. Bem, falei de todos.

Não, não falou — disse Rebecca, olhando para Julius.

Ah, faltou Julius? Ele é do grupo, mas não está no grupo.

O que quer dizer do grupo? — perguntou Rebecca.

Ah, não sei, é só uma frase bonitinha que ouvi e estava querendo usar. Julius está aí para mim e para todos, bem acima de nós. O jeito como ele...

Ele? — perguntou Julius, fingindo que procurava alguém no grupo. — Onde está ele?

Certo, eu queria dizer você, Julius, o jeito como você está lidando com a sua doença é incrível, nunca vou esquecer.

Gill parou. A atenção de todos estava concentrada nele, que fez Uuuufa" como se não agüentasse mais. Encostou-se na cadeira, cansado, e passou um lenço no rosto e na cabeça.

Rebecca, Stuart, Tony e Bonnie disseram coisas do gênero muito bem, você assumiu o risco de se revelar. Pam e Philip ficaram calados.

— Então, Gill? Gostou? — perguntou Julius.

Gill concordou. — Acho que dei mais um passo. Espero não ter ofendido ninguém.

E você, Pam? Gostou?

Eu já usei meu tempo hoje como a puta do grupo.

Gill, vou lhe pedir uma coisa — disse Julius. — Imagine uma escala de revelações. Num extremo, que vamos chamar de um, fica a revelação inócua, que se faz num coquetel. No outro, que vamos chamar de dez, está a revelação maior, que você imagina ser a mais arriscada, entendeu?

Gill concordou.

— Então, considerando tudo o que você disse agora, que nota se daria?

Ainda concordando, Gill respondeu rápido: — Quatro, talvez cinco. Querendo evitar a racionalização ou qualquer outra defesa do arsenal de resistência de Gill, Julius perguntou: — Como você aumentaria um ou dois pontos na escala?

— Para isso, eu contaria ao grupo que sou alcoólatra e que bebo todas as noites até ficar inconsciente — respondeu Gill, sem hesitar.

O grupo ficou perplexo, inclusive Julius. Antes de entrar no grupo, Gill fez dois anos de terapia individual com Julius e jamais contou que tinha problema de bebida. Como era possível? Julius tinha total confiança em seus pacientes. Era uma dessas almas otimistas que se desequilibrava com a duplicidade, ficava indeciso, precisava de tempo para formular uma nova idéia sobre Gill. Enquanto considerava em silêncio a própria ingenuidade e a fragilidade do real, o grupo passou de incrédulo para agitado.

Você está brincando!

Não acredito. Como conseguiu vir aqui toda semana e não dizer isso?

Você nunca tomou nem uma cerveja comigo, como pode?

Porra! Fico pensando em todas as pistas erradas que você nos deu, pensando no tempo que perdemos aqui.

O que você pretende? Era tudo mentira, quer dizer, aquela história dos problemas de Rose, a sacanagem dela em não querer transar com você, não querer ter filho e você não falava no verdadeiro problema, a bebida.

Depois que Julius se recompôs, viu o que devia fazer. Um princípio básico que ele ensinava aos alunos de terapia de grupo era: "Ninguém jamais deve ser censurado por se revelar. Pelo contrário, o risco assumido pela pessoa deve ser sempre apoiado e reforçado".

Pensando nisso, disse ao grupo: — Entendo a frustração de vocês por Gill nunca ter nos contado isso. Mas vamos lembrar uma coisa importante: hoje Gill fez essa revelação, confiou em nós. — Enquanto Julius falava, olhava de esguelha para Philip, desejando que aprendesse alguma coisa sobre terapia com aquela situação. Depois, perguntou a Gill: — Eu estava aqui pensando: por que você só conseguiu falar hoje?

Gill, muito constrangido para olhar alguém, concentrou-se em Julius e respondeu apenas: — Acho que foi por causa das duas últimas sessões, pelas revelações de Pam e Philip, depois Rebecca e Stuart, tenho certeza que foi por isso que eu...

Há quanto tempo você é alcoólatra? — interrompeu Rebecca.

A bebida pega, sem que você perceba. Então não sei há quanto tempo. Sempre gostei de beber, mas acho que perdi o controle há uns cinco anos.

Que tipo de alcoólatra você é? — perguntou Tony.

Meus venenos preferidos são uísque, vinho e vodca com licor de café. Mas aceito também vodca, gím. Topo tudo.

Perguntei quando e quanto você bebe — disse Tony.

Gill não ficou na defensiva e parecia preparado para responder a qualquer coisa: — Bebo mais no fim da noite, começo com uísque quando chego em casa, ou antes de ir para casa, se Rose estiver me patrulhando na bebida. Depois, passo para um bom vinho pelo resto da noite, pelo menos uma garrafa, às vezes duas, até desmaiar na frente da tevê.

E o que Rose faz? — perguntou Pam.

Bom, costumávamos beber ótimos vinhos, tínhamos uma adega com duas mil garrafas, freqüentávamos leilões. Mas hoje ela não me anima a beber (raramente toma uma taça no jantar e não entra em nada ligado à bebida, exceto as grandes degustações de vinho que participa).

Julius tentou de novo ir contra a corrente e trazer o grupo de volta ao aqui e agora. — Tento imaginar como você deve ter se sentido ao vir aqui toda semana e não falar nisso.

— Não foi fácil — admitiu Gill, balançando a cabeça.

Julius sempre ensinou seus alunos na faculdade a diferença entre revelação vertical e horizontal. Como era de esperar, o grupo ali estava pressionando pela revelação vertical (detalhes do passado, inclusive o tipo de bebida que tomava e há quanto tempo), enquanto a revelação horizontal, ou seja, a revelação sobre a revelação, era sempre muito mais produtiva.

Aquela sessão estava ótima para ilustrar as aulas, pensou Julius, e tentou guardar a seqüência dela para citar em futuras palestras e artigos. Então, num baque, lembrou que ele não tinha futuro. Embora a venenosa mancha negra tivesse sido extirpada do ombro, ele sabia que em algum lugar do corpo continuavam a existir colônias mortais do melanoma, com células vorazes que precisavam de mais vida que as fatigadas células dele. Estavam lá, pulsando, engolindo oxigênio e nutrientes, crescendo e ganhando força. E seus pensamentos sombrios também estavam lá, se infiltrando sob a camada da consciência. Felizmente, ele tinha um método de acalmar o pavor: entrar na vida com o maior ímpeto que pudesse. A vida intensamente vivida naquele grupo era um ótimo remédio para ele. Pressionou Gill:

Fale mais sobre o que passou por sua cabeça em todos esses meses de sessão.

Como assim? — perguntou Gill.

Bem, você disse que não foi fácil. Fale mais sobre as sessões e por que não foi fácil.

Eu vinha para cá bêbado, mas não conseguia desabafar; alguma coisa sempre me impedia.

Procure pensar no que impedia. — Raramente Julius intervinha tanto no grupo, mas estava convencido de que saberia encaminhar a discussão para um rumo mais proveitoso, que o grupo não saberia tomar sozinho.

Gosto do grupo — disse Gill. — São as pessoas mais importantes da minha vida. Nunca fiz parte de nenhum tipo de grupo antes. Tinha medo de perder o lugar, perder a credibilidade, exatamente como está acontecendo agora. As pessoas detestam os bêbados, o grupo agora vai querer me expulsar, vão dizer para eu procurar os Alcoólicos Anônimos. Vão me julgar e não me ajudar.

Era exatamente essa deixa que Julius estava esperando. Agiu rápido.

Gill, olhe em volta e me diga: quem são os juizes aqui?

Todo mundo.

Todos? Duvido. Tente diferençar. Olhe o grupo: quem são os principais juizes?

Gill ficou olhando para Julius. — Bom, Tony pode cair em cima de mim com vontade, mas não nessa área, pois ele também gosta de beber. É isso que você quer que eu faça?

Julius concordou, incentivando-o a prosseguir.

— Bonnie ? — Gill continuou falando diretamente para Julius.

Não, só é juíza dela mesma e, de vez em quando, de Rebecca. Ela é sempre simpática comigo. Stuart, bem, é um dos juizes; ele tende a achar que está com razão e às vezes é careta. Rebecca, sem dúvida, me dá muitas ordens: faça como eu, seja seguro, seja firme, vista-se direito, se lave, se arrume. Por isso, quando Rebecca e Stuart se mostraram tão vulneráveis nos depoimentos, me senti liberado, consegui me abrir. Quanto a Pam, é a juíza. "Juíza do supremo tribunal", sem dúvida. Sei que me acha fraco, ruim para Rose e tudo o mais que você quiser; comigo está tudo errado. Não tenho muita esperança de agradá-la, aliás, não tenho a menor esperança. — Ele parou e disse, olhando o grupo: — Acho que é só. Ah, sim, tem o Philip — falou direto para ele, ao contrário do que fez com os outros. — Bem, acho que você não me julga, mas isso não chega a ser um elogio. É que não se envolveria comigo ou se aproximaria de mim a ponto de me julgar.

Julius estava satisfeito. Tinha desativado em Gill o lamento de traição e o sofrimento pelo castigo. Era questão de tempo: mais cedo ou mais tarde, os detalhes do alcoolismo seriam comentados, mas não naquele momento, nem daquela maneira.

Além disso, o fato de enfocar a revelação horizontal tinha rendido um bônus: os dez minutos de falação de Gill trouxeram uma fartura de informações que renderia algumas sessões.

Dirigindo-se ao grupo, Julius perguntou: — Alguma reação?

As pessoas ficaram indecisas, o que Julius imaginou não ser por ralta, mas por excesso do que dizer. A agenda do grupo vergava com o próprio peso: devia ter comentários sobre a confissão de Gill, o alcoolismo e a súbita dureza dele no final. Julius esperou, ansioso. Boas novas à vista.

Notou que Philip olhava para ele e, por um segundo, os olhares se cruzaram, o que não era comum. Talvez, pensou Julius, Philip demonstrasse aprovação pela delicadeza com que dirigiu a sessão. Ou avaliasse a reação de Gill. Resolveu perguntar e fez sinal para Philip. Nenhuma resposta. Disse, então: — Philip, o que sente em relação ao que houve até agora na sessão?

Estava pensando se você vai participar.

Participar? Eu estava refletindo se não estou ativo demais, dirigindo demais. — Julius ficou pasmo.

Eu quis dizer participar na revelação de segredos — disse Philip.

Será que algum dia, pensou Julius, Philip vai dizer algo vagamente previsível? — Philip, não fujo da sua pergunta, mas há coisas mais prementes a tratar. — Virou-se para Gill: — Estou preocupado em saber como você está agora.

Estou mal, pesado. Quero saber se você vai me deixar ficar no grupo sendo alcoólatra — disse Gill, com a testa brilhando de suor.

Agora é que você mais precisa de nós. Mas me pergunto se trazer o fato para cá hoje indica que quer fazer alguma coisa. Talvez queira entrar num programa de recuperação.

É. Depois dessa sessão, não posso continuar fazendo a mesma coisa. Acho que vou ligar para você e marcar uma sessão individual, pode ser?

Claro, quantas você precisar. — Julius tinha por orientação atender o pedido de sessões individuais com a condição de o grupo saber depois do que foi tratado.

Voltou-se para Philip. — Com relação à sua pergunta. Existe um velho truque de terapia que dá uma saída para perguntas embaraçosas fazendo outra pergunta: "Estou aqui pensando: por que você perguntou isso? ". Bem, pergunto, mas não vou fugir da sua pergunta. E faço uma proposta: antes de responder, quero que examine os motivos da pergunta. Combinado?

Philip ficou indeciso, depois respondeu. — Muito bem. O motivo é simples. Quero entender a sua forma de orientação e, se possível, assimilar alguma coisa que possa melhorar meu trabalho como orientador. Trabalho de forma muito diferente da sua. Não ofereço um relacionamento emocional, não estou no consultório para amar o meu cliente. Sou um guia intelectual. Ofereço ferramentas para pensar de forma mais clara e viver conforme a razão. Agora, talvez com atraso, começo a entender o que você quer, um encontro no estilo do eu-tu de Buber.

Buber? Quem é? — perguntou Tony. — Detesto parecer idiota, mas vou quebrar a cara se ficar sentado aqui sem saber o que está acontecendo.

Certo, Tony — disse Rebecca. — Toda vez que você pergunta uma coisa, é por mim também. Não sei quem é Buber.

Outros concordaram. Stuart disse — Já ouvi esse nome, tem algo a ver com eu-tu, mas só.

Pam se adiantou: — Buber é um filósofo judeu alemão que morreu há uns cinqüenta anos, cuja obra trata do verdadeiro encontro entre dois seres, o relacionamento eu-tu, total e afetuoso, em oposição ao encontro eu-isso, que não valoriza o outro, usa-o mais do que interage com ele. Pensei bastante nisso aqui (o que Philip fez comigo anos atrás foi me usar como isso).

— Obrigado, Pam, entendi — disse Tony, e virando-se para Philip: — Pronto, estamos todos na mesma página?

Philip olhou intrigado para Tony.

Não sabe o que a minha pergunta quer dizer? Vou lhe arrumar um dicionário de conversa do século XX. Você nunca assiste tevê?

Não tenho televisão — disse Philip, com voz calma e não-defensiva. — Mas se quer saber se concordo com o que Pam disse sobre Buber, sim, concordo, eu não conseguiria definir tão bem.

Julius estava encantado: Philip pronunciou o nome de Tony e de Pam? Elogiou Pam? Seriam fatos evanescentes ou marcariam uma mudança importante? Como ele gostava de estar vivo, pensou Julius, vivo naquele grupo.

— Ainda está na sua vez, Philip. Eu interrompi o que você estava dizendo — disse Tony.

Philip continuou: — Pois eu estava dizendo a Julius, quer dizer, estava dizendo a você — virou-se para Julius e perguntou: — Certo?

— Certo, Philip, acho que você vai aprender rápido — disse Julius.

Philip falou usando o tom medido de um matemático: — Primeira proposição: você deseja ter um encontro eu-tu com cada cliente. Segunda proposição: eu-tu consiste numa relação completa e recíproca e, por definição, não pode ser unilateral. Terceira: nas últimas sessões aqui, as pessoas revelaram muita coisa sobre elas mesmas. Minha pergunta bastante pertinente é: você não deve retribuir?

Após um instante de silêncio, Philip acrescentou: — Essa é a dúvida. Eu queria apenas ver como um orientador de grupo como você lida com o pedido de um paciente para que haja igualdade.

Portanto, é um teste para conferir minha coerência?

Sim, não um teste para você, mas para o seu método.

Certo. Agradeço a explicação de que quer saber para compreender. Agora só mais uma pergunta e respondo: por que quis saber isso agora? Por que essa exata pergunta nessa exata hora?

Foi a primeira oportunidade que tive. O primeiro breve intervalo.

Não creio. Acho que há mais motivos. Repito: por que agora? — perguntou Julius.

Philip balançou a cabeça, confuso. — Pode não ser o que você perguntou, mas pensei numa observação de Schopenhauer de que poucas coisas deixam as pessoas tão satisfeitas quanto ouvir a desgraça alheia. Schopenhauer cita um poema de Lucrécio (poeta romano do século I a.C, informou Philip para Tony) em que alguém se diverte na praia olhando pessoas lutando numa tempestade do mar. "É uma alegria para nós ver males que não nos atingem", diz ele. Essa não é uma das grandes forças que atuam num grupo de terapia?

— Interessante, Philip, mas totalmente fora do tema. Vamos focar na pergunta: por que agora? Philip ainda parecia confuso.

— Vou ajudar, Philip. Insisto, pois isso vai ilustrar bem as diferenças no nosso estilo de trabalhar. Suponho que a resposta para o por que agora esteja muito ligada à nossa relação pessoal. Vou dar um exemplo: pode resumir o que sentiu nas duas últimas sessões?

Silêncio. Philip parecia perplexo.

Tony disse: — Para mim, é bem óbvio, professor.

Philip olhou para Tony levantando as sobrancelhas: — Óbvio?

— Bem, se você quer mastigado, eis: você entra nesse grupo e faz uma série de sonoras declarações. Tira algumas coisas da sua sacola de filosofia e todos nós aprovamos. Algumas pessoas acham você muito inteligente, como Rebecca e Bonnie, por exemplo. Eu também. Você tem todas as respostas. Você também é orientador e parece que está competindo com Julius. Estamos na mesma página?

Tony fez uma cara interrogativa para Philip, que balançou a cabeça de leve, concordando e indicando para continuar.

— E aí volta a nossa Pam e o que ela faz? Desmascara você! Mostra que você tem um passado bem complicado. Complicado à beça. Afinal de contas, você não é o Sr. Barra Limpa. Na verdade, você fodeu com a Pam. E caiu do pedestal. Você tem que estar irritado com isso. Então, o que faz? Vem aqui hoje e diz para Julius: qual é o seu segredo? Você quer derrubá-lo do pedestal dele, ficar no mesmo nível seu. Mesma página?

Philip concordou de leve.

— É assim que vejo a situação. Porra, podia ser diferente? Philip olhou bem para Tony e respondeu. — Suas observações

são boas. — Virou-se para Julius: — Talvez eu deva me desculpar com você; Schopenhauer sempre preveniu para não deixarmos que nossa experiência subjetiva influencie nossa observação objetiva.

— E que tal pedir desculpas a Pam? — perguntou Bonnie.

— É, acho que para ela também — disse, olhando rápido para Pam, que desviou o olhar.

Quando ficou claro que Pam não tinha a intenção de responder, Julius disse: — Vou deixar Pam falar na hora que ela quiser, Philip, mas quanto a mim, não é preciso se desculpar. O motivo para você estar aqui é exatamente entender o que diz e por que diz. Quanto às observações de Tony, acho que atingiram o alvo.

Philip, quero perguntar uma coisa — disse Bonnie. — É uma pergunta que Julius me fez muitas vezes: como se sentiu ao sair das duas últimas sessões?

Não estava bem. Fiquei confuso, até agitado.

Foi o que imaginei. Percebi. Pensou alguma coisa sobre o comentário final de Julius na semana passada, de ter ganho um presente de Stuart e Rebecca?

Não pensei. Tentei, mas fiquei tenso. Às vezes, acho que a discussão e o barulho daqui são destrutivos e me afastam do que eu realmente valorizo. Todo esse enfoque no passado e nos nossos desejos de mudança no futuro só nos faz esquecer o detalhe fundamental de que a vida é apenas o presente, que está sempre sumindo. De que adianta toda essa agitação, sabendo como tudo vai terminar?

Entendo o que Tony disse de você nunca se divertir. É bem desanimador — disse Bonnie.

Eu chamo isso de ser realista.

Bom, volte ao pedaço sobre a vida ser apenas o presente — insistiu Bonnie. — Pergunto apenas sobre o tempo presente e sua resposta no presente por ter recebido um presente. Também tenho uma pergunta sobre nossas reuniões após as sessões. Você foi embora rápido nas duas últimas. Achou que não tinha sido convidado? Não, vou dizer de outra forma: o que acha agora de um café depois dessa sessão?

Não, não estou acostumado com muita conversa, preciso me recuperar. No final dessa sessão, não quero fazer mais nada.

Julius olhou o relógio. — Temos de interromper, passamos da hora. Philip, não vou esquecer nossa combinação. Você cumpriu a sua parte, vou cumprir a minha na próxima sessão.

 

Deveríamos limitar nossos desejos, controlar nossas vontades e dominar nossa raiva, sabendo que só conseguimos o mínimo do que vale a pena ter.

Depois da sessão, o grupo passou uma meia hora na lanchonete de sempre, na Union Street. Como Philip não estava, não se falou nele. Nem continuaram a discutir os temas abordados naquela tarde. Mas ouviram com interesse o animado relato de Pam sobre sua viagem à Índia. Bonnie e Rebecca ficaram curiosas em relação a Vijay, o maravilhoso e misterioso passageiro com cheiro de canela, e recomendaram que Pam respondesse as mensagens que ele enviava sempre pelo correio eletrônico. Gill estava otimista, agradeceu o apoio de todos e disse que ia marcar consulta com Julius, encarar a abstinência a sério e entrar para os Alcoólicos Anônimos. Agradeceu a Pam pelo que disse sobre ele.

— Vá em frente, Pam, a durona no amor — disse Tony.

Depois da lanchonete, Pam voltou para seu condomínio, que ficava nas colinas de Berkeley, logo após a Universidade. Ela costumava se cumprimentar pelo bom senso de manter o apartamento mesmo depois de se casar com Earl. Talvez, inconscientemente, soubesse que podia precisar dele outra vez. Ela adorava o piso claro dos aposentos, os tapetes tibetanos espalhados por todo canto e a luz cálida entrando na sala no final da tarde. Sentou-se na varanda, bebendo uma taça de espumante e assistindo ao sol mergulhar no horizonte de San Francisco.

Pensou no grupo. Pensou em Tony e seu hábito de puxar a orelha das pessoas e, com precisão cirúrgica, mostrar a Philip como ele não tinha noção das coisas que fazia. Aquilo foi muito bom. Gostaria de ter gravado em vídeo aquela seqüência. Tony era uma pedra bruta que, aos poucos, ia mostrando seu brilho. E o comentário sobre ela ser durona no amor? Será que ele ou alguém percebeu como a palavra durona pesava mais do queamor na resposta dela para Gill? Descarregar a raiva em Gill foi ótimo, só não foi perfeito por ter sido útil a ele. Ele a chamou de "juíza do supremo". Bom, pelo menos ele teve a coragem de falar, mas depois tentou desdizer cumprimentan-do-a, pegajoso.

Lembrou da primeira vez que viu Gill e como ficou fisicamente atraída por ele, com aqueles músculos saltando da camiseta e da jaqueta. E como logo se desapontou com os covardes esforços para agradar a todos e as infinitas reclamações sobre Rose (a frígida, enérgica Rose, que pesava apenas cinqüenta quilos), que, agora sabia-se, teve o bom senso de não engravidar de um alcoólatra.

Em poucas sessões no grupo, Gill logo assumiu seu lugar na longa fila de perdedores que Pam conhecia, a começar pelo pai, que desperdiçou o diploma de Direito porque não agüentava a vida competitiva que um advogado precisava ter, preferiu um cargo seguro, ensinando secretárias a escrever cartas comerciais, e depois não teve forças para resistir à pneumonia que o matou antes de conseguir a aposentadoria. O próximo na fila era Aaron, o namorado bobão da adolescência, de cara cheia de espinhas, que deixou Swarthmore para morar na casa dos pais e freqüentar a Universidade de Maryland, a mais próxima. Logo depois, vinha Vladimir, que queria casar com ela apesar de jamais ter sido contratado. Ele seria sempre professor-subs-tituto de redação. E Earl, seu futuro ex-marido, falso desde os cabelos pintados com tinta de fórmula grega até o também falso conhecimento de autores clássicos, e cujas pacientes eram uma chance de conquistas fáceis (inclusive ela mesma). Mais John, o amante covarde demais para ficar com ela e largar um casamento que já tinha acabado. E o último na fila, seria Vijay? Bonnie e Rebecca podiam ficar com ele! Não conseguia se entusiasmar muito por um sujeito que precisava de um dia inteiro de meditação para se recuperar do estresse de pedir o café da manhã.

Pensar em todos aqueles homens foi mero acaso. A pessoa que atraía mesmo a atenção dela era Philip, aquele arrogante clone de Schopenhauer, o pateta sentado lá no grupo falando absurdos, fingindo ser uma pessoa humana.

Após jantar, Pam foi até a estante e olhou onde ficavam os livros de Schopenhauer. Durante algum tempo, ela foi especialista em filosofia e pensou em ter como tema de dissertação a influência de Schopenhauer na obra de Becket e Gide. Tinha adorado o texto dele, era o filósofo de mais estilo, depois de Nietzsche. E admirava a inteligência dele, a amplidão de seus temas e a coragem de opor-se a qualquer crença sobrenatural. Mas, quanto mais soube sobre a pessoa dele, mais o rejeitou. Pegou um velho exemplar de ensaios completos e leu alto trechos marcados no texto intitulado "Nossa relação com os outros":

A única forma de ser superior ao lidar com os homens é mostrar que não depende deles.

Desconsiderar é ganhar consideração.

Se você for educado e simpático, as pessoas ficam dóceis e obedientes. Assim, a polidez faz com a natureza humana o mesmo que o calor faz com a cera.

Foi nesse momento que ela percebeu por que detestava Schopenhauer. E o que dizer de Philip ser orientador? E tendo Schopenhauer por modelo? E Julius ensinando a Philip? Não dava para acreditar em tudo aquilo.

Releu o último aforismo: "A polidez faz com a natureza humana o mesmo que o calor faz com a cera". Ah, então Philip acha que pode me usar como cera, anular o que me fez apenas fazendo um cumprimento gratuito por meu comentário sobre Buber ou cedendo a vez para eu passar por uma porta. Ora, foda-se!

Mais tarde, tentou se acalmar mergulhando na banheira e ouvindo uma fita de Goenka que costumava fazer efeito com seu canto de ritmo hipnótico, interrupções e começos repentinos, mudanças de cadência e timbre. Tentou até alguns minutos de meditação Vipassana, não conseguiu a mesma calma. Saiu da banheira e se olhou no espelho. Encolheu a barriga, empinou o ombro, examinou-se de perfil, abaixou os pêlos púbicos, cruzou as pernas com pose. Estava ótima para trinta e três anos.

Lembrou cenas de Philip quinze anos antes. Sentado à mesa, entregando, casual, o horário dos cursos para os alunos que entravam na sala e dando um grande sorriso para ela. Na época, ele era um homem interessante, bonito, inteligente, em outras palavras, imune a dispersões. Que diabo tinha acontecido com aquele homem? E com aquele jeito de fazer sexo, aquele tesão, fazendo o que queria, arrancando minhas calcinhas, me sufocando com aquele corpo. Fala sério, Pam, você adorou. Um intelectual com vasto conhecimento da história do pensamento ocidental, além de ótimo professor, talvez o melhor que ela teve. Daí ter pensado em se especializar em filosofia. Mas ele jamais saberia disso.

Quando parou de pensar em tudo aquilo e em coisas desagradáveis, passou para uma realidade mais dura e mais triste: o fato de Julius estar morrendo. Aquele era um homem para se amar. Estava morrendo, mas trabalhava como sempre. Como ele consegue? Como se mantém ligado? Como continua cuidando das pessoas? E Philip, aquele puto, desafiando Julius a fazer revelações. E a paciência de Julius com ele, o esforço de ensinar Philip. Será que Julius não percebe que o outro é um jarro vazio?

Fantasiou cuidar de Julius quando ele estivesse mais fraco, levar comida para ele, lavar o corpo dele com uma toalha morna, passar talco, mudar a roupa de cama, entrar de mansinho na cama dele e abraçá-lo durante a noite. Tinha uma coisa surreal no grupo agora, todos aqueles pequenos dramas tendo ao fundo o horizonte negro da morte de Julius. Que injusto que fosse ele a morrer. Sentiu muita raiva, mas para quem direcioná-la?

Desligou a lâmpada de leitura da cama, esperou que o comprimido para dormir fizesse efeito e lembrou da única vantagem que tinha aquele novo tumulto em sua vida. A mania de pensar em John, que sumiu durante a meditação e voltou assim que ela chegou da Índia, agora tinha sumido de novo, talvez para sempre.


 

Não há rosa sem espinhos. Mas há muitos espinhos sem rosa.

O PESSIMISMO COMO ESTILO DE VIDA

A maior obra de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que escreveu aos vinte e poucos anos, foi publicado em 1818 e teve um volume complementar em 1844. É um livro de incrível amplitude e profundidade, com observações argutas sobre lógica, ética, epistemologia, critério, ciência, matemática, beleza, arte, poesia, música, necessidade do sobrenatural, relacionamento do homem com os outros e consigo mesmo. A condição humana é apresentada em todos os seus aspectos mais sombrios: a morte, a solidão, a falta de sentido da vida e o sofrimento inerente a ela. Muitos eruditos afirmam que a obra de Schopenhauer tem mais boas idéias do que a de qualquer outro filósofo, exceto Platão.

Schopenhauer mostrou desejo e esperança de ser sempre lembrado por essa grande obra. No fim da vida, publicou seu outro trabaho importante, dois volumes de ensaios filosóficos e aforismos, mtitulados Parerga e paralipomena, palavras gregas que significam sobras e obras complementares.

Os escritos de Schopenhauer têm muita ligação com a psicanálise, embora ela ainda não existisse na época. Sua maior obra começa com uma crítica e um adendo a Kant, que havia revolucionado a filosofia com a conclusão de que nós fazemos parte, em vez de percebermos a realidade. Kant afirmou que todos os nossos sentidos são filtrados pelo sistema nervoso, que nos fornece um retrato do que chamamos realidade. Na verdade, essa realidade não passa de uma quimera, uma ficção que surge dos conceitos e catalogações feitos pela mente. Conceitos são também a causa e o efeito, seqüência, quantidade, espaço e tempo; são construções e não entidades, isto é, coisas ou fatos que possam existir lá, na natureza.

Além disso, não podemos ver uma versão do que está lá, não temos como saber o que está realmente lá, ou seja, o que existe antes do nosso processo perceptivo e conceituai. Essa primeira entidade, que em alemão Kant chama de ding an sich (a coisa em si), está e precisa estar para sempre desconhecida por nós.

Embora Schopenhauer concorde que não podemos conhecer a coisa em si, acredita que podemos chegar mais perto dela do que acha Kant. E que Kant menosprezou uma grande fonte de informação do mundo perceptível (o mundo fenomenal): nosso próprio corpo! O corpo é um objeto material. Existe no tempo e no espaço. E nós temos um enorme e rico conhecimento do corpo que não vem através da percepção e da conceituação, mas de dentro, dos sentimentos.

Adquirimos um conhecimento através do corpo que não podemos conceituar e comunicar porque a maior parte de nossa vida interior é desconhecida para nós. A vida interior é reprimida e não pode ser conscientizada porque conhecer nossa natureza mais profunda (nossa crueldade, medo, inveja, desejo sexual, agressividade, egoísmo) seria um peso maior do que poderíamos agüentar.

O tema parece conhecido? Lembra aquela velha teoria freudiana do inconsciente, do processo primitivo, do id, repressão, auto-ilusão? Não é essa a base da psicanálise? Lembre-se de que o principal livro de Schopenhauer foi publicado quarenta anos antes do nascimento de Freud. Em meados do século XIX, quando Freud (e Nietzsche) ainda estavam no primário, Schopenhauer era o filósofo alemão mais lido.

Como compreendemos essas forças inconscientes? Como fazemos com que elas se comuniquem entre si? Embora não possam ser conceituadas, podem ser sentidas e, segundo Schopenhauer, propagadas diretamente, sem palavras, através das artes. Por isso ele deu mais atenção às artes (principalmente à música) do que qualquer outro filósofo.

E o sexo? Ele não tinha dúvidas da importância do sexo no comportamento. Nesse ponto, também, Schopenhauer foi um ousado pioneiro, pois nenhum filósofo antes teve a idéia (ou a coragem) de escrever sobre a importância fundamental do sexo para nossa vida interior.

E a religião? Schopenhauer foi o primeiro grande filósofo a construir seu pensamento com base no ateísmo. Ele negava o sobrenatural com clareza e veemência, afirmando que vivemos apenas no tempo e no espaço e que todo o imaterial é falso e inútil. Filósofos como Hobbes, Hume e até Kant demonstraram tendências agnósticas, mas não ousaram afirmar sua descrença. No mínimo, porque viviam do salário das empresas públicas e universidades aonde trabalhavam e, portanto, eram proibidos de expressar qualquer sentimento anti-religioso. Schopenhauer jamais foi nem precisou ser empregado de nada nem de ninguém, tendo assim liberdade para escrever o que quisesse. Exatamente pelo mesmo motivo, um século e meio depois, Spinoza recusou convites para assumir altos cargos em universidades, continuando a trabalhar como polidor de lentes.

Qual a conclusão de Schopenhauer sobre o conhecimento do corpo? Foi que nós e toda a natureza temos uma força primai incansável, insaciável que ele chamou àcvontade. Escreveu: "Para todo lugar que olhamos, vemos um esforço que representa o cerne de tudo. E em que consiste o sofrimento? É a luta para vencer o obstáculo que fica entre a vontade e a meta. O que é felicidade? É atingir a meta."

Nós queremos, queremos e queremos. Para cada desejo consciente há dez aguardando no inconsciente. A vontade não cessa de nos dirigir, pois assim que um desejo é alcançado, há outro e mais outro pela vida afora.

Às vezes, Schopenhauer lembra os mitos gregos de Ixião na roda, ou o de Tântalo, para explicar o dilema da existência humana. Ixião foi o rei que traiu Júpiter, sendo por isso condenado a ficar preso para sempre numa roda de fogo que girava no ar. Tântalo ousou desafiar Júpiter e, por seu orgulho, foi obrigado a sofrer tentações, mas jamais se satisfazer. Schopenhauer acreditava que a vida é uma roda de carência seguida de saciedade. Ficamos satisfeitos quando saciados? Por pouco tempo. Quase em seguida somos invadidos pelo tédio e obrigados a agir para escapar do horror do tédio.

Trabalho, preocupação, cansaço, problemas é o que enfrentamos quase a vida inteira. Mas se todos os desejos fossem satisfeitos de imediato, com o que as pessoas se ocupariam e como passariam o tempo? Suponhamos que a raça humana fosse transferida para Utopia, lugar onde tudo cresce sem precisar ser plantado e os pombos voam assados ao ponto, onde todo homem encontra sua amada na hora e não tem dificuldade em continuar com ela: as pessoas então morreriam de tédio, se enforcariam, se estrangulariam ou se matariam e assim sofreriam mais do que já sofrem por natureza.

Por que o tédio é ruim? Por que lutamos para afastá-lo? Porque é um estado do qual não conseguimos nos livrar e que vem logo mostrar verdades subjacentes e desagradáveis sobre a vida: a nossa insignificância, a falta de sentido da vida, nossa inexorável caminhada rumo à velhice e à morte.

Portanto, o que é a vida senão um ciclo infinito de querer, satisfazer, entediar-se e depois querer de novo? Essa seqüência vale para todas as formas de vida? É pior para os humanos, diz Schopenhauer, pois à medida que a inteligência aumenta, cresce também a intensidade do sofrimento.

Existe alguém feliz? É possível ser feliz algum dia? Schopenhauer acredita que não.

Em primeiro lugar, o homem nunca é feliz, porém passa a vida lutando por algo, pensando que vai fazê-lo feliz, não consegue, e, quando consegue, se desaponta: é um náufrago e chega ao porto sem mastros nem cordâmes. Portanto, não se trata de ser feliz ou infeliz, pois a vida não é senão o momento presente, que está sempre sumindo e, finalmente, se acaba.

A vida, que consiste numa descida trágica e inevitável, não só é brutal, mas inteiramente excêntrica.


Somos como cordeiros brincando no campo, enquanto o açougueiro nos olha e escolhe um, depois outro, pois quando jovens não sabemos que desgraça nos reserva o destino. Doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, perda da visão, loucura e morte.

Será que as conclusões pessimistas de Schopenhauer sobre a condição humana são tão insuportáveis que ele acabou mergulhando na depressão? Ou foi o contrário: era tão infeliz que acabou concluindo que a vida é um fato triste que nem deveria ter ocorrido? Ciente desse enigma, ele nos lembrou (e a si mesmo) que a emoção tem o poder de toldar e falsificar o conhecimento: o mundo assume um aspecto sorridente quando temos motivo para nos alegrar e um ar sombrio quando pesa sobre nós a tristeza.

 

Não escrevi para a multidão. (...) Minha obra é para os que pensam e que, no decorrer do tempo, vão ser a exceção. Sentirão o que eu senti como um marinheiro náufrago numa ilha deserta, para quem a pegada de um ex-companheiro de sofrimento dá mais consolo do que todas as cacatuas e micos nas árvores.

— Gostaria de continuar do ponto em que paramos — disse Julius, iniciando a sessão seguinte. Falando firme, como se fosse um texto preparado, continuou: — A maioria dos terapeutas que conheço é muito aberta com os amigos íntimos. Eu também sou. Mas não é fácil para mim fazer uma revelação tão nua e crua como alguns de vocês fizeram nas últimas semanas. Mas há um fato que só contei uma vez na vida, há anos, para um amigo muito próximo.

Sentada ao lado de Julius, Pam segurou no braço dele e pediu: — Espera, espera, Julius. Não precisa fazer isso. Você foi forçado a falar e depois que Tony mostrou os motivos de merda para Philip pedir isso, até ele se desculpou. Não quero que você se meta nessa história de revelações.

Outros concordaram, dizendo que Julius sempre demonstrava seus sentimentos no grupo e que Philip quis se exibir falando no contrato eu-tu. Gill acrescentou:

— As coisas estão ficando confusas. Todos nós estamos aqui em busca de ajuda. Minha vida está uma merda, como vocês viram na semana passada. Mas, pelo que sei, Julius, você não está com problemas íntimos. Então, para que fazer uma revelação?

— Na semana passada — disse Rebecca, do seu jeito direto e conciso —, você, Julius, disse que me revelei para presentear Philip. Tinha razão em parte, pois agora vejo que eu também queria proteger Philip da raiva de Pam. Mas o que quero dizer é, ora, o que é mesmo que eu quero dizer? Ah, que contar o que fiz em Las Vegas foi bom, tirei um peso de cima de mim. Mas você, Julius, está aqui para me ajudar e não vai ajudar em nada fazer uma revelação.

Julius ficou pasmo, era difícil aquele grupo concordar com tal unanimidade. Mas ele achava que sabia o motivo: — Sinto que estão muito preocupados com minha doença, todos querendo cuidar de mim, fazer com que não me estresse. Não é?

— Pode ser — disse Pam. — Mas acho que há mais: alguma coisa em mim não quer que você conte um fato ruim do seu passado.

Quando Julius viu que os outros concordaram, disse, dirigindo-se a ninguém em especial: — Que paradoxo. Desde que comecei a dar consultas, ouço os pacientes reclamarem em coro que os terapeutas são muito distantes e não contam nada da vida pessoal. Eis-me aqui, pronto a fazer justamente isso e sou recebido por uma frente unida que diz: "Não queremos ouvir, não faça isso. O que há?"

Silêncio.

— Vocês querem me considerar um sujeito sem mácula? — perguntou Julius.

Ninguém respondeu. Ele então continuou: — Parecemos confusos, então eu hoje vou ser teimoso, falar e veremos o que acontece. Minha história foi há dez anos, depois que minha mulher faleceu. Casei com Míriam, minha namorada de adolescência, quando estava na Faculdade de Medicina e dez anos depois ela morreu num acidente de carro no México. Fiquei arrasado. Para ser sincero, acho que não me recuperei daquele horror. Mas me surpreendi ao ver que minha tristeza teve uma virada estranha: um enorme impulso sexual. Na época, eu não sabia que o aumento da sexualidade é uma reação comum ao se enfrentar uma morte. Desde então, vi muitas pessoas atingidas por algum grande sofrimento ficarem cheias de energia sexual. Falei com homens que tinham coronárias péssimas e eles me contaram que passavam a mão nas assistentes da ambulância quando eram levados para o pronto-socorro. Na minha tristeza, fiquei obcecado por sexo, precisava de sexo, muito sexo, e quando as amigas, minhas e de Míriam, casadas ou não, procuraram me confortar, me aproveitei de algumas, inclusive de uma parente de Míriam.

O grupo ficou parado. Todos estavam constrangidos, evitavam se olhar, alguns escutavam o chilreio de um pássaro num galho de bordo lá fora. De vez em quando, por muitos anos, Julius teve vontade de ter um assistente no grupo. Essa foi uma das vezes.

Finalmente, Tony se obrigou a dizer alguma coisa: — E o que foi feito dessas amigas?

Elas foram sumindo, evaporaram. Vi algumas por acaso, nesses anos todos, mas nunca tocamos no assunto. A situação era de muito embaraço. E vergonha.

Lastimo, Julius — disse Pam. — Lastimo também pela morte de sua mulher; eu não sabia, também não sabia dessas, dessas relações.

Não sei o que dizer para você, Julius. É bem estranho — disse Bonnie.

Fale mais sobre a estranheza, Bonnie — pediu Julius, sentindo o peso de ser seu próprio terapeuta no grupo.

Bom, isso é bem novo. Ë a primeira vez que você se mostra assim no grupo.

Continue. E quais são os sentimentos?

Me sinto muito tensa. Acho que é por ser uma situação tão ambígua. Se um de nós traz um tema sofrido para o grupo, sabemos o que fazer. Quer dizer, vamos trabalhar o caso, embora possamos não saber exatamente como. Mas com você, não sei.

Não está claro por que você está nos contando — disse Tony, inclinando-se para a frente, os olhos apertados sob as sobrancelhas espessas. — Vou perguntar uma coisa que aprendi com você na semana passada: por que agora? Foi porque prometeu para Philip? A maioria das pessoas aqui disse que você não precisava falar, que aquela troca não tinha sentido. Ou você quer uma ajuda em relação ao sentimento que ficou desse fato? Quer dizer, não está claro quais são seus motivos para contar isso. Se quer saber, não vejo problema no que você fez. Vou ser direto: sinto a mesma coisa que em relação a Stuart, Gill e Rebecca. Não vejo problema. Eu faria a mesma coisa. Você está sozinho, sem sexo, algumas mulheres oferecem consolo, você aceita e todo mundo fica legal. Provavelmente, elas também gostaram. Quer dizer, costumamos falar nas mulheres como se elas só fossem usadas ou exploradas. Eu fico irritado, muito irritado, com essa história de homens implorando por um pouco de sexo enquanto as mulheres, sentadas em seus tronos de rainha, resolvem se aceitam ou não nos concederem esse favor. Como se elas também não gostassem de sexo.

Tony virou-se para Pam ao ouvir o som que ela fez dando um tapa na própria testa e cobrindo o rosto com as mãos. Notou que Rebecca também estava com as mãos na cabeça. — Certo, certo, eu vou retirar essa parte sobre as mulheres e deixar só a pergunta:por que agora?

— Boa pergunta essa, Tony. Obrigado por me fazer falar. Minutos atrás, eu estava desejando ter um terapeuta assistente para me ajudar e você aparece. Você é bom nisso. Podia ser um bom terapeuta. Vejamos. Por que agora? Perguntei isso tantas vezes, mas pode ser a primeira vez que respondo. Primeiro, acho que todos têm razão ao dizer que não falei só por causa do trato feito com Philip. Mas foi por isso também, pois ele tem certa razão sobre o relacionamento eu-tu. Para usar uma expressão dele, a idéia tem seu mérito. — Julius sorriu para Philip, que não retribuiu.

Julius continuou: — Quero dizer que a falta de reciprocidade na relação terapêutica é um problema, uma questão difícil. Então, reconhecer esse problema faz parte do motivo para aceitar o pedido de Philip.

Julius queria uma reação. Tinha a impressão de estar falando muito. Virou-se para Philip: — O que você sente com o que eu disse até agora ?

Philip sacudiu a cabeça, surpreso com a pergunta. Pensou um pouco e disse: — As pessoas aqui costumam achar que sou um dos que quiseram revelar muitas coisas. Não é verdade. Alguém no grupo contou uma experiência que teve comigo, então falei apenas por uma questão de exatidão histórica.

Pode me dizer o que isso tem a ver com o resto? — perguntou Tony.

Exatamente, fale sobre exatidão, Philip — pediu Stuart. — Antes, quero registrar que você não fez qualquer revelação. E, principalmente, que sua resposta está longe do assunto. Não tem nada a ver com a pergunta que Julius fez sobre seus sentimentos.

Philip pareceu não se ofender. — Certo. Voltando à pergunta de Julius, acho que não entendi o que ele queria saber porque não senti nada. Não havia nada no que ele disse para causar uma reação emocional.

Pelo menos, essa resposta é pertinente — disse Stuart. — A anterior fugia do assunto.

Estou cheia dessa sua brincadeira de pseudodemência ! — disse Pam, irritada, para Philip, dando um tapa na perna. — E fico puta de você não dizer meu nome! Referir-se a mim como "alguém no grupo" é ofensivo e imbecil.

Você diz pseudodemência porque eu finjo ignorar as coisas?

— perguntou Philip, sem olhar para Pam.

— Aleluia, finalmente vocês se falam — disse Bonnie, levantando as mãos para o alto. — Os dois se enxergam, chegam a se falar.

Pam não fez caso da observação e continuou se dirigindo a Philip.

— Pseudodemência é elogio, comparado com o que eu poderia dizer. Você acha que nada do que Julius disse causa uma reação emocional. Como alguém pode não reagir a Julius? — perguntou ela, com os olhos brilhando de raiva.

Pode dar um exemplo? Você deve saber de um sentimento que eu poderia ter — disse Philip.

Sei. Por exemplo: gratidão por Julius levar a sério você e sua pergunta impensada e insensível. Pode ser também respeito por ele cumprir a promessa do eu-tu com você. Ou, quem sabe, tristeza pelo que ele sofreu com a viuvez. Ou interesse e até identificação pelo descontrole sexual dele. Ou admiração por ele aceitar trabalhar com você, com todos nós, apesar de estar com câncer. Isso, só para começar. — Pam falou mais alto: — Como pode não ter sentimentos? — Desviou o olhar de Philip, cortando o contato visual.

Philip não respondeu. Ficou estático como um Buda, inclinado para frente, olhando o chão.

No profundo silêncio que se seguiu ao rompante, Julius pensou qual seria a melhor forma de continuar a sessão. Em geral, o melhor era esperar; uma de suas frases preferidas era "malhe em ferro frio".

Ele costumava considerar a terapia como uma seqüência de ativação emocional seguida de integração, e pensou na fartura de demonstrações emocionais daquela sessão. Talvez até, sentimentos demais. Era hora de passar à compreensão e integração. Preferiu uma via torta, virou-se para Bonnie e perguntou: — Pode falar no seu comentário "aleluia"?

Está lendo meus pensamentos de novo, Julius? Como consegue? Eu estava me arrependendo de ter dito aquilo. Acho que saiu errado, com um tom de zombaria. Não? — perguntou ela, olhando para Pam e Philip.

Na hora, não achei, mas agora vejo que tinha um toque de zombaria — disse Pam.

Desculpe. Mas esse caldeirão quente, você e Philip trocando tiros, todas essas jogadas duplas, deu um alívio os dois se falarem diretamente. E você, Philip, não gostou do meu comentário? — perguntou Bonnie.

Desculpe, não registrei. Só notei o brilho nos olhos dela — disse Philip, ainda olhando para baixo.

Dela quem? — perguntou Tony.

Olhos de Pam — respondeu Philip, e, virando-se para Pam, acrescentou: — Nos seus olhos, Pam.

Certo, cara, agora estamos indo — disse Tony.

Você ficou assustado, Philip? Não é fácil receber um olhar daqueles, não? — perguntou Gill.

Não fiquei. Eu estava preocupado em evitar que o olhar, as palavras e a opinião dela me atingissem. Quer dizer, suas palavras, Pam ,sua opinião.

Parece que você e eu temos algo em comum, Philip: problemas com Pam — disse Gill.

Philip olhou para Gill e concordou, talvez um cumprimento de gratidão, pensou Julius. Quando ficou claro que Philip não ia dizer mais nada, Julius percorreu o grupo com o olhar para buscar mais participantes. Nunca perdia a oportunidade de ampliar a rede de interação: com a fé de um apóstolo, ele achava que quanto mais pessoas envolvidas, mais eficiente ficava o grupo. Queria incluir Pam, sua explosão com Philip ainda ecoava na sala. Para isso, ele se dirigiu a Gill: — Você diz que não é fácil ser alvo dos comentários de Pam, e na semana passada se referiu a ela como sendo Juíza do Supremo. Pode falar mais sobre isso?

— Ah, é bobagem minha, não sei direito, não sei avaliar bem isso, mas...

Julius interrompeu: — Pare! Vamos congelar a ação nesse ponto. Nesse momento. — Virou-se para Pam: — Olhe o que Gill acaba de dizer. Está relacionado com você não ouvir ou não conseguir ouvir o que ele diz?

Totalmente — disse Pam. — O que ele disse foi o mais puro Gill. Olha, Gill, o que você acabou de dizer foi: "Não prestem atenção no que eu vou falar. Não é importante, eu não sou importante, é bobagem minha. Não quero agredir. Não me escutem". Você não só se rebaixa, mas é chato. Muito chato. Porra, Gill! Tem algo a dizer? Pois abra a boca e fale!

Então, Gill — pediu Julius —, se você fosse falar sem meias palavras, o que diria? — Ah, pensou, nada como aquele velho e bom verbo no condicional.

Eu diria a ela, a você, Pam, que você é a juíza que me dá medo aqui. Você me julga. Fico sem jeito, ou melhor, fico apavorado na sua frente.

Isso é sincero, Gill. Agora estou ouvindo — disse Pam.

Então, Pam, dois homens aqui (Philip e Gill) dizem ter medo de você. Tem alguma reação a isso? — perguntou Julius.

Tenho uma grande reação: isso éproblema deles.

Tem alguma chance de ser problema seu também? Talvez outros homens na sua vida tenham sentido isso — disse Rebecca.

Vou pensar no assunto.

Alguém tem algo a dizer sobre essa última discussão? — perguntou Julius.

Acho que Pam está fugindo um pouco — disse Stuart.

Concordo. Acho que você não vai pensar muito no assunto, Pam — disse Bonnie.

É, tem toda razão. Ainda estou irritada por Rebecca dizer que ela queria proteger Philip da minha raiva.

É um dilema, não, Pam? — perguntou Julius. — Como você acabou de dizer a Gill, você não merece uma droga de um comentário. Mas quando merece, ai, como dói.

Ê verdade, então talvez eu não seja tão dura quanto pareço. E olhe, Rebecca, doeu o que você disse.

— Desculpe. Não tive a intenção. Apoiar Philip não é a mesma coisa que atacar você — disse Rebecca.

Julius aguardou, pensando para onde encaminhar o grupo. Havia várias possibilidades. A raiva e a mania de julgar de Pam estavam na mesa. E os outros homens, Tony e Stuart, onde estavam ? A competição entre Pam e Rebecca também estava na mesa. Ou será que o grupo deveria tratar da história que Bonnie não terminou e da ironia dela? Ou falar na explosão de Pam com Philip? Ele sabia que era melhor ter paciência, seria um erro apressar. Em poucas sessões, o grupo teve um bom progresso em direção à calma. Talvez já tivessem feito bastante por aquele dia. Era difícil avaliar. Philip falou pouco. Mas então, para surpresa de Julius, o grupo tomou um caminho totalmente inesperado.

Julius, gostou da reação das pessoas à sua revelação? — perguntou Tony.

Bom, não fomos muito longe. Deixa eu lembrar: você me disse o que achava e Pam também, depois ela e Philip discutiram por ele não sentir nada com o que revelei. Tony, acabei não respondendo à sua pergunta depor que agora. Voltarei a ela. — Julius tentou organizar as idéias, consciente de que sua revelação, como a de qualquer terapeuta, tinha sempre duas implicações: primeira, o que ele ganhava com aquilo e, segunda, o modelo que dava para o grupo.

Não desisti de contar. Quase todo mundo aqui tentou me impedir, mas teimei, tinha decidido contar. Isso não é comum em mim e não sei se entendi bem, mas há algo importante. Tony, você perguntou se ao contar eu estaria pedindo ajuda ou, talvez, perdão. Não, não estava. Há muito tempo eu me perdoei, depois de passar anos trabalhando o fato com meus amigos e com um psicanalista. Só garanto uma coisa: antes, quer dizer, antes do melanoma, eu jamais, nem em mil anos, contaria o que contei hoje aqui.

Antes do melanoma — continuou Julius. — Essa é a chave. Todos nós temos uma sentença de morte. Sei que vocês me pagam bem para em troca ouvirem uma frase tão animadora, mas o fato de ter a sentença confirmada, selada e até datada, sem dúvida chamou minha atenção. O melanoma está me dando uma estranha liberação que tem muito a ver com eu contar hoje aqui. Talvez por isso eu tenha pensado num terapeuta assistente, alguém objetivo, que garanta que eu continue a agir no melhor interesse de vocês.

Julius parou. Depois, acrescentou: — Notei que ninguém reagiu quando comentei que estavam cuidando de mim hoje.

Após mais alguns segundos de silêncio, Julius acrescentou: — E ainda não estão reagindo. Viram? Por isso eu preciso de um assistente. Sempre achei que, se deixamos de falar uma coisa importante, também não vamos falar em nada que seja importante. Minha função é afastar os obstáculos; a última coisa que quero é ser o obstáculo. É difícil eu sair de dentro de mim, mas sinto que vocês estão me evitando ou, dizendo de outra forma, estão evitando minha doença mortal.

Bonnie disse: — Quero discutir o que está acontecendo com você, mas não quero magoá-lo.

Outras pessoas concordaram.

Bem, vocês agora puseram o dedo na ferida. Ouçam bem o que vou dizer: o único jeito de me magoarem é se afastarem de mim. Sei que é difícil falar com um doente mortal. As pessoas ficam cuidadosas, não sabem direito o que dizer.

Esse é exatamente o meu caso — disse Tony. — Não sei o que dizer. Mas vou tentar ficar do seu lado.

Percebo isso, Tony.

As pessoas têm medo dos doentes, pois não querem encarar a morte que existe dentro de cada um de nós, não é? — perguntou Philip.

Julius concordou. — Interessante, Philip. Vamos discutir. — Se não fosse Philip quem disse aquilo, Julius perguntaria se era o que ele sentia realmente. Mas, naquela altura, queria apenas apoiar a adequação do que Philip disse. Olhou o grupo, esperando uma resposta.

Talvez — disse Bonnie — Philip esteja certo porque tive dois pesadelos recentes, uma coisa quer me matar e depois o pesadelo que já contei, em que tento pegar o trem todo arrebentado.

Sei que, no fundo, estou com mais medo do que o normal — disse Stuart. — Um dos meus parceiros de tênis é dermatologista e esse mês pedi duas vezes para ele olhar um arranhão na minha pele. Penso sempre em melanoma.

Julius — disse Pam —, penso em você desde que me contou do melanoma. Está certo dizerem que sou dura com os homens, mas você é a grande exceção: é o homem mais querido da minha vida. E sou mesmo protetora com você. Senti isso na mesma hora em que Philip mandou você se revelar. Achei, e ainda acho, que foi duro e insensível da parte dele. Quanto a estar mais consciente da minha própria morte, bom, poder ser, mas não percebo. Só digo que estou sempre querendo dizer coisas confortadoras para você. Na noite passada, li uma coisa interessante, um trecho das memórias de Nabokov, Fala, memória, em que ele define a vida como uma centelha de luz entre duas trevas, a de antes do nascimento e a de depois da morte. E que estranho nos preocuparmos tanto com a morte e tão pouco com o nascimento. Eu achei muito confortador e imediatamente copiei para lhe dar.

Obrigado pelo presente, Pam. E um belo pensamento. E é confortador, embora eu não saiba direito por quê. Sinto-me mais à vontade com aquela primeira idéia, de antes do nascimento, parece mais agradável; talvez eu a encha de promessa, do que está por vir.

Esse pensamento também foi confortador para Schopenhauer, de quem, sem dúvida, Nabokov tirou a frase — informou Philip. — Schopenhauer disse que depois da morte seremos o que éramos antes de nascer e tentou provar que só pode haver um nada.

Julius nunca tinha chance de responder. Pam olhou fixo para Philip e vociferou: — Isso mostra porque é uma piada de mau gosto você querer ser orientador psicológico. Estamos falando em sentimentos ternos, e o que interessa a você, a única coisa que interessa, é identificar o verdadeiro autor da frase. Você acha que Schopenhauer um dia disse algo vagamente parecido com Nabokov. Grande coisa!

Philip fechou os olhos e disse, decorado: — "De repente, o homem, surpreso, se vê existindo após centenas e centenas de anos de não-existência. Ele passa um período vivendo, depois vem outro período igualmente longo em que vai deixar de existir". Sei de memória grande parte da obra de Schopenhauer; esse é o terceiro parágrafo do ensaio Observações adicionais à doutrina do vazio da existência. Você acha isso muito vago?

— Crianças, crianças, parem com isso — disse Bonnie, com voz estridente.

— Deixa, Bonnie, eu gosto dessa briga — disse Tony.

Alguém mais tem algo a declarar? — perguntou Julius.

Não quero entrar nesse fogo cruzado. É artilharia pesada — disse Gill.

É — concordou Stuart. — Eles não perdem oportunidade de atacar. Philip foi comentar de alguém que usou a frase de Schopenhauer e Pam aproveitou para chamar Philip de piada de mau gosto.

Não disse que ele é uma piada de mau gosto. Eu disse...

— Deixa disso, Pam, é ninharia. Você sabe o que eu quis dizer

— insistiu Stuart. — De todo jeito, essa história de Nabokov foi fora do contexto. Você critica o herói dele, depois elogia quem copia a frase de Schopenhauer. Qual é o problema de Philip provar que estava certo? É crime mostrar que foi Schopenhauer quem disse?

Quero falar uma coisa — disse Tony. — Como sempre, não sei quem são esses caras, pelo menos não o Nabo, Nobo?

Nabokov — corrigiu Pam, com a voz suave que reservava para Tony. — Um grande escritor russo. Você deve ter ouvido falar no romance Lolita.

Ah, sei. Bom, esse tipo de conversa faz um círculo vicioso, me sinto idiota por não saber quem é, fico quieto e aí me sinto mais idiota ainda. Vou parar com isso e falar. — Virou-se para Julius: — Então, respondendo à sua pergunta sobre sentimentos, esse é um: sentir-se idiota. Outro sentimento é que, quando Philip perguntou você acha isso muito vago, vi os dentes dele, são bem afiados, afiados à beca. E a respeito de Pam — Tony virou-se para ela —, olha, Pam, você é minha queridinha, mas vou avisar uma coisa: quero ser sempre seu amigo.

Certo — disse Pam.

E esqueci o mais importante; essa discussão toda nos fez sair do assunto. Estávamos falando se estaríamos protegendo ou evitando você, Julius. Depois, com Pam e Philip, mudamos de assunto. Será que não estamos evitando você outra vez?

Olha, não sinto isso agora. Quando trabalhamos de uma forma tão íntima, tão próxima quanto agora, nunca ficamos num tema só. A corrente do pensamento entra por novos canais. Aliás — disse Julius, virando-se para Philip —, usei de propósito a palavra íntima. Acho que sua raiva, que aparece aqui pela primeira vez, é um sinal de proximidade. Você se importa com Pam a ponto de se irritar com ela.

Julius sabia que Philip não iria responder espontaneamente, por isso provocou-o: — O que diz, Philip?

Balançando a cabeça, Philip respondeu: — Não sei como explicar a sua hipótese. Mas quero dizer outra coisa. Confesso que, como Pam, eu também fiquei procurando coisas confortadoras ou, pelo menos, importantes para dizer a você. Sigo o hábito de Schopenhauer de terminar cada dia lendo alguma coisa de Epícteto ou dos Upanishads. — Philip olhou na direção de Tony. — Epícteto foi um filósofo romano do século II e os Upanishads são um antigo texto sagrado hinduísta. Uma noite dessas, li um trecho de Epícteto que achei interessante e tirei algumas cópias. Fiz uma tradução livre do latim. — Philip pegou as cópias na pasta, deu uma para cada pessoa e disse, de cor:

Numa viagem, quando o navio ancora num porto, você sai para pisar n’água e colher raízes e conchas na praia. Mas precisa estar sempre atento ao navio, pois o capitão pode chamar para embarque e você precisa juntar suas coisas, não pode ser como a ovelha que amarram e jogam no porão.

O mesmo acontece na vida. E se você tem esposa e filhos, em vez de conchas e raízes, precisa reuni-los. Quando o capitão chamar, corra para o navio, esqueça tudo e não olhe para trás. Se já é idoso, fique perto do navio, assim estará pronto para o embarque.

Philip terminou de falar e soltou os braços como se dissesse: — É isso.

O grupo lia, atento, o texto. Estavam espantados. Stuart quebrou o silêncio: — Quero entender, Philip, mas não consigo. O que isso adianta para Julius? Ou para nós?

Julius mostrou o relógio: — Lastimo dizer que passamos da hora. Mas me permitam ser professoral e mostrar uma coisa. Costumo ver um texto ou urna ação sob dois aspectos: o do conteúdo e o do benefício. Benefício aqui significa o que o texto nos ensina a respeito do relacionamento dos envolvidos. Como você, Stuart, eu também não entendi imediatamente o conteúdo da mensagem de Philip: tenho de estudá-la e talvez o conteúdo possa ser tema de outra sessão. Mas vi um benefício: você, Philip, como Pam, pensou em mim, quis me dar uma coisa e chegou a decorar o texto e fazer cópias. Qual o sentido disso? Mostra o carinho de vocês por mim. E o que sinto? Fico emocionado, agradeço e espero que um dia consigam demonstrar seu afeto com suas próprias palavras.


 

A vida pode ser comparada a um bordado que no começo da vida vemos pelo lado direito e, no final, pelo avesso. O avesso não é tão bonito, mas é mais esclarecedor, pois deixa ver como são dados os pontos.

O grupo saiu da sala e Julius ficou olhando as pessoas descerem a escada para a rua. Em vez de cada um ir para seu carro, eles continuaram juntos, sem dúvida iam para a lanchonete. Ah, como ele gostaria de pegar a jaqueta e descer correndo a escada atrás deles. Mas ficava para outro dia, outra vida, outras pernas, pensou, indo para o escritório colocar no computador suas notas da sessão. Súbito, mudou de idéia, voltou para a sala do grupo, acendeu seu cachimbo e ficou desfrutando o cheiro forte do tabaco turco. Com a única intenção de aproveitar mais um pouco o calor daquela sessão.

Aquela sessão, como as três ou quatro últimas, tinha sido empolgante. Lembrou dos grupos de pacientes com câncer que ele tinha orientado há anos. Era freqüente as pessoas falarem numa fase de ouro, passado o pânico de constatar que iam morrer. Alguns disseram que o câncer os tinha deixado mais sensatos, mais realizados, enquanto outros mudaram suas prioridades na vida, ficaram mais fortes, aprenderam a recusar atividades que há muito tempo não apreciavam mais e fazer coisas que realmente importavam, como amar a família e os amigos, observar a beleza de coisas em volta, sentir a mudança das estações. Mas muitos pacientes lastimaram que só tivessem aprendido a viver depois de seus corpos terem sido corroídos pelo câncer.

As mudanças foram tão grandes (um paciente chegou a dizer que o câncer cura a neurose) que, por duas vezes, Julius fez uma maldade com seus alunos na faculdade. Descreveu apenas as mudanças psicológicas de determinados pacientes e pediu que os alunos dissessem o tipo de tratamento que estavam recebendo. Todos ficaram surpresos ao saber que nenhuma terapia ou remédio tinha mudado tanto aqueles pacientes, apenas o fato de enfrentarem a morte. Ele devia muito àqueles pacientes. Serviam muito de modelo naquele momento. Pena ele não poder lhes dizer. Viva bem, lembrou a si mesmo, e tenha certeza de que vão sair boas coisas de você, mesmo que não perceba.

E como estou encarando o meu câncer?, ele se perguntou. Sei um bocado sobre a fase de pânico da qual, felizmente, estou saindo, embora ainda tenha aquelas crises às três da manhã, em que o pânico me agarra com um medo desconhecido e não adianta racionalizar nem argumentar, só tomar um Valium, ver a luz do dia surgindo ou mergulhar numa banheira de água morna.

Mas será que mudei ou fiquei mais sensato?, pensou ele. Tive minha época de ouro? Talvez eu esteja sentindo melhor as coisas como elas são, talvez isso seja crescimento. Acho (aliás, tenho certeza) que me tornei um terapeuta melhor, de ouvido mais apurado. Sim, sem dúvida, sou outro terapeuta. Antes do melanoma, eu jamais diria que estou apaixonado pelo grupo. Jamais sonharia em contar detalhes tão íntimos da minha vida (a morte de Míriam e o meu oportunismo sexual). E a vontade irresistível de fazer a revelação ao grupo hoje, isso sim é de estranhar, pensou, balançando a cabeça, surpreso. Tenho uma vontade de ir contra a corrente, contra o que sei, contra o que eu mesmo ensino.

Uma coisa é certa: o grupo não queria ouvir o que eu tinha a dizer. Que resistência! Não queriam saber de nada dos meus problemas ou dúvidas. Mas, depois que falei, houve um fato interessante. Tony foi ótimo! Falou como se fosse um terapeuta experiente, perguntando se eu estava satisfeito com a reação do grupo, tentando equacionar meu comportamento, insistindo no "por que agora". Ótimo. Cheguei a imaginá-lo orientando o grupo depois que eu me for (seria uma coisa incrível!), um terapeuta que largou a escola e que passou um tempo na cadeia. E outros (Gill, Stuart, Pam) se aproximaram, cuidaram de mim e mantiveram o grupo interessado. Jung estava se referindo a outra coisa quando disse que só quem foi ferido pode realmente curar. Mas, talvez, incentivar a capacidade terapêutica dos pacientes seja um motivo bastante bom para os terapeutas mostrarem suas feridas.

Julius andou da sala do grupo para o escritório, sem parar de pensar na sessão. E Gill, como ele se destacou hoje! Chamar Pam de Juíza do Supremo foi ótimo, além de adequado. Preciso ajudar Pam a assimilar esse comentário. No caso, a visão de Gill foi mais incisiva do que a minha. Fiquei tanto tempo gostando muito de Pam que deixei passar a patologia dela. Talvez por isso não tenha conseguido ajudá-la na obsessão por John.

Julius ligou o computador e abriu o arquivo "Enredos para contos", que continha o maior projeto não-realizado de sua vida: ser escritor. Ele escrevia bem, tinha lançado dois livros e escrito centenas de artigos nas publicações especializadas, mas queria escrever ficção e, durante décadas, juntou enredos para contos, tirados da imaginação ou do cotidiano. Tinha começado a desenvolver vários, mas nunca teve tempo nem coragem para terminá-los e oferecer para alguma editora.

Percorreu a lista de enredos, clicou em "Vítimas enfrentam o inimigo" e leu duas idéias. A primeira tinha por cenário um cruzeiro pelo litoral da Turquia. Um psiquiatra entra no cassino do navio e vê no salão enfumaçado um ex-paciente, vigarista que ficou lhe devendo sete mil e quinhentos dólares. O segundo confronto era de uma advogada designada para a defesa gratuita de um acusado de estupro. Na primeira entrevista na prisão, ela desconfia que aquele é o mesmo homem que a violentou há dez anos.

Abriu mais um arquivo: "Num grupo de terapia, uma mulher encontra o homem que, anos antes, foi seu professor e se aproveitou sexualmente dela". Nada mal. Dava para desenvolver bem o tema em literatura, pensou Julius, embora soubesse que jamais o escreveria. Havia problemas éticos, precisava da autorização de Pam e Philip. Precisava também dar o espaço de dez anos entre o fato e o livro, tempo do qual não dispunha. Mas dava para uma boa terapia, pensou Julius. Tinha certeza de que alguma coisa positiva podia sair dali, se ele conseguisse manter os dois no grupo e agüentasse a dor de abrir velhas feridas.

Pegou a tradução de Philip, do texto do navio de passageiros. Releu várias vezes, tentando entender o sentido ou a importância. Mas continuou balançando a cabeça. Philip deu aquilo como um consolo. Mas qual era o consolo?


 

Mesmo sem motivo, sinto sempre uma ansiedade que me faz ver e procurar perigo onde não existe. Isso aumenta infinitamente qualquer aflição e faz com que a ligação com os outros seja muito difícil.

Como viveu Arthur

Após fazer o doutorado, Arthur morou em Berlim, depois algum tempo em Dresden, em Munique e Mannheim, até que, fugindo de uma epidemia de cólera, foi para Frankfurt, onde passou os últimos trinta anos de vida, só saindo de lá para fazer excursões e caminhadas de um dia. Ele nunca teve um emprego, morou sempre em cômodos alugados, nunca teve casa, lareira, mulher e filhos, nem amigos íntimos. Não tinha um círculo social, conhecidos próximos, nem senso de comunidade; na verdade, costumava ser motivo de ridículo na cidade. Até os últimos anos de vida, ele jamais ocupou cargo público, nem ganhou dinheiro com seus escritos. Como tinha tão poucos relacionamentos, sua parca correspondência trata principalmente de assuntos comerciais.

Apesar da falta de amigos, sabemos mais de sua vida do que da maioria dos filósofos, pois ele foi incrivelmente pessoal em seus escritos filosóficos. Nos primeiros parágrafos de sua obra mais importante, O mundo como vontade e representação, ele usa uma rara nota íntima num tratado filosófico. Sua prosa clara mostra logo que ele quer falar diretamente com o leitor. Primeiro, ensina como ser lido e pede que a leitura seja feita duas vezes e com muita paciência. A seguir, recomenda que o leitor conheça antes seu primeiro livro, Da quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, que serve de introdução para esse, e garante que o leitor ficará muito grato pelo aviso. E que aproveitará ainda mais se conhecer bem a magnífica obra de Kant e do divino Platão. Mas que ele, Schopenhauer, encontrou erros graves em Kant, discutidos num apêndice (que também deve ser lido antes do livro) e observa que quem conhecer os Upanishads estará mais preparado ainda para entender o livro dele. Por fim, observa (muito corretamente) que o leitor deve estar ficando cada vez mais irritado e impaciente com seus pedidos arrogantes, insolentes e demorados. É estranho que o filósofo que foi o mais pessoal na escrita tenha sido tão impessoal na vida.

Além das referências em sua obra, Schopenhauer mostra muito de si mesmo num texto autobiográfico com título em grego, Ειζεαυτου, que significai meu respeito, manuscrito envolto em mistério e controvérsia cuja estranha história é a seguinte:

Já idoso, Schopenhauer teve um pequeno círculo de entusiastas, os apóstolos, aos quais suportava, mas não respeitava nem gostava. Essas pessoas ouviram-no falar com freqüência de A meu respeito, diário autobiográfico onde anotou fatos sobre si mesmo nos últimos trinta anos. Mas, quando ele morreu, ninguém encontrou o diário. Depois de muito procurar, os seguidores perguntaram ao testamenteiro Wilhelm Gwinner sobre o documento perdido e foram informados que o filósofo mandou queimá-lo assim que morresse.

Pouco tempo depois, Gwinner lançou a primeira biografia de Schopenhauer, onde os apóstolos reconheceram trechos do diário em citações literais ou em paráfrases. Teria Gwinner copiado o manuscrito antes de queimá-lo? Ou teria apenas roubado para usar na biografia? A controvérsia durou décadas até que outro conhecedor da obra do filósofo reconstituiu o manuscrito juntando trechos da biografia e de outros escritos de Schopenhauer. Publicou então quarenta e sete páginas com o título em grego Ειζεαυτου (A meu respeito) no fim dos quatro volumes que em alemão se intitularam Nachschlass (Remanescentes dos manuscritos). Trata-se de uma estranha leitura, porque cada parágrafo do texto tem a descrição de sua complicada origem, em geral, mais longa que o próprio texto.

Por que Schopenhauer nunca teve um emprego? A história da estratégia suicida para obter um cargo na universidade é outro caso ardiloso que está em todas as biografias dele. Em 1820, aos trinta e dois anos, ele recebeu o primeiro convite para assumir um cargo temporário (em alemão, Privatdozent) e muito mal remunerado para dar aulas de filosofia na Universidade de Berlim. Então, o que ele fez? Imediatamente, marcou seu curso (intitulado essência do mundo) na mesma hora do curso dado por Georg Wilhelm Hegel, chefe do departamento e mais famoso filósofo da época.

Duzentos alunos atentos se acotovelavam no curso de Hegel, enquanto apenas cinco ouviram Schopenhauer se definir como um vingador que veio liberar a filosofia pós-kantiana dos paradoxos vazios e da linguagem obscura e deturpada da filosofia contemporânea. Não era segredo que o alvo de Schopenhauer era Hegel e seu antecessor Fichte (aquele filósofo que cuidou de gansos e percorreu a Europa inteira para encontrar Kant). Obviamente, isso não fez com que Hegel e os demais docentes estimassem o jovem Schopenhauer. No semestre seguinte, quando nenhum aluno apareceu no curso de Schopenhauer, terminou sua curta e temerária carreira acadêmica e ele nunca mais deu aulas.

Nos trinta anos em que morou em Frankfurt, até morrer em 1860, sua vida teve uma agenda rígida, quase tão definida quanto a rotina diária de Kant. Começava escrevendo durante três horas, depois tocava flauta uma hora, às vezes duas. Mesmo no meio do inverno, raro era o dia em que não nadava no frio rio Main. Almoçava sempre no mesmo clube, o Englisher Hof, de fraque com plastrom branco, traje que era alta moda na juventude dele, mas estava completamente ultrapassado em Frankfurt, no meio do século XIX. Quem quisesse ver o estranho e irritado filósofo, bastava ir ao Hof no almoço.

Há inúmeras histórias sobre ele no Hof: de seu apetite voraz, costumando comer por dois e, se alguém notava isso, ele respondia que também pensava por dois; de pagar dois almoços para garantir que ninguém sentasse na mesma mesa; de seu jeito agressivo, mas da conversa interessante; de suas constantes explosões de raiva; da lista de pessoas com as quais se recusava a falar; da mania de discutir assuntos impróprios e chocantes como, por exemplo, elogiar a nova descoberta científica que impedia que ele adquirisse uma infecção venérea bastando, após o coito, mergulhar o pênis em água com pó alvejante.

Embora apreciasse a conversa séria, ele raramente encontrava companheiros de refeição que merecessem desperdiçar seu tempo. Houve época em que colocava um objeto de ouro na mesa ao se sentar e o tirava ao ir embora. Uma vez, um dos oficiais militares que costumavam almoçar na mesma e comprida mesa perguntou por que fazia aquilo. Schopenhauer respondeu que doaria o objeto de ouro aos pobres no dia em que ouvisse os oficiais falarem de outra coisa que não fosse seus cavalos, cachorros e mulheres. Costumava levar seu poodle Atman, a quem tratava de Sir, e se o cachorro se comportasse mal, chamava-o de Humano.

Contam-se muitas histórias de seu humor afiado. Num jantar, um jovem perguntou algo ao filósofo e teve como resposta apenas "Não sei". O jovem então comentou: — Ora, pensei que o senhor, um grande sábio, soubesse tudo. — Schopenhauer disse então: — Não, o conhecimento é limitado, só a estupidez é ilimitada. — Qualquer pergunta sobre mulheres ou casamento teria, certamente, uma resposta azeda. Uma vez, teve de agüentar a companhia de uma mulher muito falante, que contou em detalhes como sofria no casamento. O filósofo ouviu paciente e quando a mulher perguntou se ele a entendia, respondeu: — Não, mas entendo seu marido.

Em outra conversa, perguntaram se ele pretendia se casar.

Não, pois só me traria aborrecimentos.

Aborrecimentos por quê?

Porque teria ciúme por minha mulher me trair.

Como tem tanta certeza?

Porque eu ia merecer.

Por quê ?

Por ter me casado.

Também tinha palavras incisivas para os médicos que, segundo ele, usam duas letras diferentes: uma quase ilegível, nas receitas, e outra, clara e bonita, nas contas.

Um escritor que esteve num almoço com Schopenhauer, então com cinqüenta e cinco anos, em 1846, descreveu-o assim:

Boa constituição física (...) sempre bem vestido, mas em estilo antiquado (...) altura mediana, cabelos curtos, grisalhos (...) distraído e de inteligência brilhante, olhos garços (...) introvertido, e, quando fala, é quase barroco, o que colabora para ser diariamente motivo de pilhérias dos companheiros de almoço. Assim, esse senhor áspero, sempre comicamente mal-humorado, mas no fundo indefeso e de boa índole, se tornou objeto de piada de homens insignificantes que sempre riam dele, embora sem más intenções.

Depois do almoço, Schopenhauer costumava dar uma longa caminhada, sempre falando alto, sozinho ou conversando com o cachorro, o que fazia as crianças zombarem dele. Passava as tardes lendo, sem jamais receber visitas. Não há prova de nenhuma ligação romântica nos anos em que viveu em Frankfurt e, em 1831, aos quarenta e três anos, escreveu em A meu respeito: "Só como celibatário pode-se assumir o risco de viver sem trabalho e com pouca renda".

Depois da briga de mãe e filho, quando ele tinha vinte e nove anos, os dois só se viram vinte anos depois, em 1813, trocando algumas cartas de negócios até 1835, quando ela faleceu. Uma vez, quando ele esteve doente, a mãe fez um raro comentário pessoal: "Dois meses no quarto sem ver uma só pessoa, meu filho, isso não é bom e me deixa triste. Ninguém pode, nem deve, se isolar assim".

Ele e Adele trocaram cartas ocasionais e a irmã tentou várias vezes se aproximar, garantindo que não ia pedir nada. Mas Arthur sempre recuava. Adele, que também nunca se casou, vivia muito angustiada. Quando Arthur disse-lhe para mudar de Berlim para escapar da cólera, ela respondeu que gostaria de ter a doença e assim acabar com seu desespero. Arthur se afastou ainda mais, não querendo participar da vida e da depressão dela. Depois que ele saiu da casa da mãe, viu a irmã apenas uma vez, em 1840, num encontro curto e desagradável. Adele morreu nove anos depois.

O dinheiro foi uma preocupação constante na vida de Schopenhauer. A mãe deixou seus poucos bens para Adele, que morreu sem nada. Ele tentou, em vão, trabalhar como tradutor, e até o fim da vida seus livros jamais venderam, nem foram comentados na imprensa.

Em resumo, Arthur viveu sem qualquer dos confortos e compensações para manter um equilíbrio, até para sobreviver. Como ele conseguiu? Que preço pagou? Esses, como veremos, foram os segredos que ele revelou em A meu respeito.

 

Os escritos e idéias deixados em livro por homens como eu são meu maior prazer na vida. Sem livros, teria me desesperado há muito tempo.

Ao entrar na sala na semana seguinte, Julius encontrou uma cena estranha. Sentadas à vontade, as pessoas liam, atentas, a parábola trazida por Philip. Stuart tinha colocado o texto numa prancheta e sublinhava trechos. Tony tinha esquecido de trazer sua folha e lia por cima do ombro de Pam.

Rebecca, com a voz meio ansiosa, iniciou a sessão. — Li com a devida atenção. — Mostrou o papel, dobrou e enfiou na bolsa. — Gastei muito tempo, Philip, tempo demais, e agora gostaria que você mostrasse a importância disso para mim, para o grupo e para Julius.

Acho que seria mais rico se a classe antes discutisse o texto — respondeu Philip.

Classe? Isso parece mesmo um trabalho de classe. E assim que você dá orientação, Philip? — perguntou Rebecca, fechando a bolsa com raiva. — Como um professor na sala de aula? Não foi para isso que vim aqui, vim me tratar e não fazer curso para adultos.

Philip não deu atenção à agressão de Rebecca. — Na melhor das hipóteses, não há muita distinção entre educação e terapia. Os gregos (Sócrates, Platão, Aristóteles, os estóicos e epicuristas) acreditavam que a educação e a razão são ferramentas para combater o sofrimento humano. A maioria dos orientadores filosóficos considera a educação como base da terapia. Quase todos acatam o lema de Leibnitz, Caritas sapientis, que significa "sabedoria e afeto". Philip virou-se para Tony: — Leibnitz foi um filósofo alemão do século XVII.

Estou achando isso chato e arrogante — disse Pam. — Com a desculpa de ajudar Julius, você — ela aumentou a voz uma oitava e chamou — Philip, estou falando com você. — Philip, que olhava tranqüilamente para cima, endireitou-se e virou-se para ela. — Primeiro, você distribui esse trabalho de calouro e agora tenta controlar o grupo dando modestamente a sua interpretação do texto.

Lá vem você querendo derrubar o Philip — disse Gill. — Pelo amor de Deus, Pam, ele é orientador profissional. Não precisa ser um grande cientista para ver que tenta ajudar o grupo com a experiência que tem. Por que cismar com tudo o que ele faz?

Pam abriu a boca para falar, mas fechou, parecendo sem palavras. Olhou fixo para Gill, que acrescentou: — Você estava pedindo uma crítica dura, Pam. Conseguiu. Não, não estou bêbado, se é o que está pensando. Hoje faz duas semanas que não bebo, tenho tido duas consultas semanais com Julius, ele insistiu, me apertou e me fez ir a um encontro diário dos AA, sete dias por semana, catorze reuniões em catorze dias. Não comentei na semana passada porque não tinha certeza se conseguiria continuar.

Todos, exceto Philip, reagiram com cumprimentos efusivos. Bonnie disse a Gill que estava orgulhosa dele. Até Pam conseguiu dar um "muito bem". Tony comentou: — Talvez eu deva ir junto com você. — Quando bebo, acabo me machucando — e mostrou o rosto ferido.

— Philip, e você? Tem algo a dizer para Gill? — perguntou Julius.

Philip negou com a cabeça. — Ele já recebeu um grande apoio dos outros. Está sem beber, fala no assunto, está se fortalecendo. Às vezes, mais apoio é menos.

— Gosto do lema de Leibnitz que você mencionou, Caritas sapientis, sabedoria e afeto — disse Julius. — Mas recomendo que não esqueça a parte do afeto. Se Gill merece apoio, por que você ésempre o último da fila a dar} Além disso, você tem uma informação exclusiva, quem mais pode dizer o que sentiu quando ele defendeu você e enfrentou Pam por sua causa?

— Tem razão — disse Philip. — Estou confuso, gostei de receber o apoio de Gill, ao mesmo tempo estou me cuidando para não gostar. Se você deixa que outros lutem no seu lugar, os músculos acabam se atrofiando.

Bom, vou confessar um pouco mais da minha ignorância — disse Tony, mostrando o texto. — Eu realmente não entendi essa história do navio, Philip. Na semana passada, você disse que trouxe para Julius algo que seria um conforto. Mas esse navio com passageiros, quer dizer, para ser franco, não sei que porra é essa.

Não precisa se desculpar por não saber uma coisa, Tony — disse Bonnie. — Eu já falei que você costuma falar por mim também, não entendi nada desse navio e dessa história de pegar conchas na praia.

Eu também não — disse Stuart.

Deixa eu ajudar — disse Pam. — Afinal, eu vivo de interpretar textos literários. A primeira coisa a fazer é partir do concreto, isto é, o navio, as conchas, as ovelhas etc. para o abstrato. Ou seja, pergunte a você mesmo: o que esse navio, essa viagem e esse porto representam ?

Acho que o navio é a morte, ou a viagem rumo à morte — disse Stuart, olhando para sua prancheta.

Certo, então o que conclui a partir daí? — perguntou Pam.

Acho que o principal é não dar muita atenção aos detalhes da praia, senão você perde o navio — respondeu Stuart.

Então, se você fica muito ligado às coisas da praia, mesmo se for a mulher e os filhos, o navio pode sair sem você, ou seja, você perde sua morte. Grande coisa, perder a morte é alguma catástrofe? — disse Tony.

Isso mesmo, tem razão, Tony — concordou Rebecca. — Também achei que o navio representa a morte, mas depois do que você disse, vejo que não fazia sentido.

Também não entendo, mas não diz que você vai perder a morte, diz que você vai para a morte como as ovelhas — disse Gill.

Seja como for, isso ainda não me parece terapêutico — disse Rebecca. Virando-se para Julius, perguntou: — Já que o texto era para você, encontrou algum consolo nele ?

Repito o que disse para você na semana passada, Philip. Vi que queria me dar alguma coisa para amenizar meu sofrimento. E também que perdeu a coragem e não conseguiu fazer isso diretamente. Preferiu uma aproximação menos pessoal. Isso serve, acho, para você refletir depois sobre como demonstrar seu afeto de forma mais pessoal.

— Quanto ao conteúdo — continuou Julius — também estou confuso, mas acho que, como o navio pode partir a qualquer momento, ou seja, como a morte não tem hora para chegar, deveríamos evitar nos apegar demais às coisas terrenas. Talvez o texto nos avise que um apego muito grande pode fazer a morte ainda mais dolorosa. É essa a mensagem de consolo que você tenta me dar, Philip?

Pam interrompeu antes de Philip responder: — Acho que encaixa melhor se você pensar que o navio e a viagem não representam a morte, mas o que podemos chamar de a vida autêntica. Em outras palavras, vivemos de forma mais autêntica se pensamos no simples fato de existir, no milagre da vida. Se focamos em ser, não vamos nos prender tanto às digressões da vida, isto é, aos objetos materiais da ilha, não vamos perder de vista a existência em si.

Breve silêncio. Cabeças viraram na direção de Philip.

— Exatamente — disse ele, com um toque de entusiasmo na voz. — Também vejo o texto assim. A idéia é cuidar para não nos perdermos na agitação da vida. Heidegger chamava isso ser absorvido pelacoíidianice da vida. Sei que você, Pam, detesta Heidegger, mas não é por ele ter tido opiniões políticas equivocadas que vamos nos privar da dádiva de suas conclusões filosóficas. Então, para parafraseá-lo, cair na cotidianice faz com que fiquemos presos como as ovelhas.

Philip continuou: — Como Pam, acho que essa parábola nos pre-vine contra o apego e sugere que nos liguemos ao milagre de ser. Não devemos nos preocupar em como as coisas são, mas nos maravilharmos por elasserem, por existirem.

Agora entendo o que você quis dizer — disse Bonnie. — Mas é frio, abstrato. Que conforto traz isso? Para Julius e para qualquer pessoa?

Para mim, há consolo na idéia de que minha morte dá sentido à minha vida. — Philip continuou, com um entusiasmo que não era comum nele: — Há um consolo na idéia de não deixar que minha essência seja devorada por trivialidades, por sucessos ou fracassos insignificantes, pelo que eu possuo, por preocupações em ser popular, quem gosta de mim, quem não gosta. Para mim, há consolo no fato de ser livre para apreciar o milagre de ser.

— Sua voz está cheia de energia — notou Stuart —, mas acho também que isso é duro e frio. É um consolo gélido, me arrepia.

O grupo estava intrigado. Sentia que Philip oferecia uma coisa de valor, mas, como sempre, as pessoas estavam confusas com o jeito estranho dele.

Após um pequeno silêncio, Tony perguntou a Julius: — Esse texto teve algum efeito em você? Ofereceu alguma coisa, ajudou de alguma forma?

— Não funciona para mim, Tony. Mas, como já disse, vocês estão tentando me dar algo que vale para vocês — disse, virando-se para Philip. — Percebo também que é a segunda vez que me dá uma coisa que não posso usar, o que deve ser frustrante para você.

Philip concordou em silêncio.

— Segunda vez? Não me lembro da primeira, foi quando eu estava viajando? — perguntou Pam.

Várias pessoas balançaram a cabeça, negando. Ninguém lembrava da primeira vez e Pam perguntou a Julius: — Há alguma lacuna a ser preenchida?

Philip e eu temos uma velha história — disse Julius. — Grande parte do embaraço de hoje acabaria se soubessem dessa história, mas compete a você contar, Philip. Quando quiser.

Acho que tudo deve ser discutido. Dou carta branca a você — disse Philip.

Não, não sou eu quem deve falar. Para parafrasear você, o exercício seria mais rico se você mesmo contasse. Acho que é sua obrigação e responsabilidade.

Philip esticou a cabeça, fechou os olhos e, no tom e no jeito de quem recita um texto decorado, começou: — Uns vinte e cinco anos atrás, marquei uma consulta com Julius devido ao que hoje se chama vício em sexo. Eu atacava as mulheres, era insaciável, quase só pensava em sexo. Estava totalmente envolvido em conquistar mais uma, sempre mais uma, porque depois que eu transava, perdia o interessa na mulher. Era como se o centro da minha vida fosse o instante de ejacular numa mulher. Depois disso, sentia uma breve trégua da compulsão e logo (às vezes, horas depois) precisava atacar outra vez.

Cheguei a ter duas ou três mulheres no mesmo dia. Estava desesperado. Queria tirar aquilo da minha cabeça, pensar em outras coisas, me ocupar de alguns grandes pensadores do passado. Eu era formado em química, mas queria ter uma cultura ampla. Busquei ajuda, a melhor e mais cara que havia, e fiz análise semanal com Julius, às vezes duas vezes por semana, durante três anos, sem melhora.

Philip parou. O grupo estava agitado. Julius perguntou: — Como está, Philip? Quer falar mais ou basta por hoje?

Estou ótimo — respondeu ele.

De olhos fechados fica difícil, não sei se você faz isso por medo de ver desaprovação na cara dos outros — disse Bonnie.

Não, fico assim para olhar para dentro e juntar meus pensamentos. E já disse que só a minha aprovação me interessa.

O grupo teve de novo aquela estranha sensação de Philip ser inatingível. Tony tentou afastar essa impressão dando um assobio e acrescentando: — Gostei do seu toque, Bonnie.

Ainda de olhos fechados, Philip continuou: — Pouco depois de desistir da terapia com Julius, recebi um bom dinheiro de uma apólice que meu pai fez para mim. Com isso, pude largar a química e me dedicar à leitura de toda a filosofia ocidental. Em parte, devido ao meu antigo interesse pelo tema, mas principalmente por acreditar que a sabedoria dos maiores pensadores era a cura para o meu problema. Gostava de filosofia e logo vi que tinha encontrado minha verdadeira vocação. Candidatei-me e fui aprovado para o doutorado em filosofia na Columbia. Foi nessa época que Pam teve a infelicidade de me conhecer.

Ainda de olhos fechados, Philip parou e respirou fundo. Todos olhavam para ele e, de vez em quando, de esguelha para Pam, que, por sua vez, olhava para o chão.

Com o tempo, escolhi me concentrar na trindade dos verdadeiros grandes filósofos, Platão, Kant e Schopenhauer. Mas, no final, só ele me ajudou. O que dizia era ouro puro e, além disso, eu tinha uma grande afinidade pessoal. Como um ser racional que sou, rejeito a idéia de reencarnação da forma como é considerada, mas, se eu tivesse vivido antes, teria sido Arthur Schopenhauer. Só de saber que ele existiu já diminuiu a dor do meu isolamento.

Depois de ler e reler a obra dele por vários anos, vi que tinha vencido meus problemas sexuais. Quando terminei o doutorado, o dinheiro que herdei de meu pai tinha acabado e precisei trabalhar. Ensinei em alguns lugares pelo país e, anos atrás, voltei para San Francisco a convite da Coastal University. Acabei me desinteressando pelas aulas porque nunca tive alunos à altura do tema ou de mim. Até que, há uns três anos, concluí que, como eu tinha sido curado pela filosofia, poderia usá-la para curar outras pessoas. Matriculei-me e fiz um curso de orientação, depois comecei um rápido treinamento clínico. Até este momento.

Se Julius foi inútil para você, por que o procurou de novo? — perguntou Pam.

Eu não o procurei, foi ele que me ligou.

Pam resmungou. — Quer dizer que Julius saiu do nada e telefonou para você?

Não, não, Pam — disse Bonnie. — Isso é verdade: Julius contou quando você estava viajando. Não repito porque não entendi direito.

Certo, então eu continuo — disse Julius. — Tentarei lembrar. Depois que meu médico deu a má notícia, passei alguns dias atordoado e procurei uma forma de aceitar um câncer incurável. Uma tarde, fiquei muito desanimado ao pensar no sentido da minha vida. Fiquei pensando que ia sumir no nada e ficar lá para sempre. E que diferença fiz para alguém ou para qualquer coisa?

Não lembro de todos os elos de meus pensamentos mórbidos, mas sabia que tinha de arrumar algum sentido de vida, ou ia ficar muito mal. Pensei em como tinha vivido e que eu tinha uma saída, que era sair de dentro de mim, ajudar os outros a viver e a se completar. Com mais clareza que nunca, percebi a centralidade de meu trabalho de terapeuta e pensei horas nas pessoas às quais tinha ajudado. Todos os meus pacientes, antigos e novos, desfilaram pela minha cabeça.

Eu sabia que tinha ajudado muitos, mas será que tive um impacto duradouro na vida deles? Era a pergunta que me perseguia. Acho que contei para o grupo, antes de Pam voltar, que eu precisava saber essa resposta e resolvi procurar alguns antigos pacientes e saber se fiz alguma diferença na vida deles. Sei que isso parece maluquice.

Então, mexendo nas pastas dos pacientes bem antigos, pensei também nos que não consegui ajudar. Que fim teriam levado, pensei. Será que eu poderia ter feito mais por eles? Então, tive a esperança de que alguns de meus fracassos tivessem tido um amadurecimento tardio, talvez tivessem obtido depois algum benefício de nosso trabalho conjunto. Achei a pasta de Philip e lembro que na hora pensei: "Se quero um fracasso, essa foi uma pessoa que realmente não ajudei, não cheguei nem a arranhar os problemas dele". Daí, tive uma enorme vontade de falar com ele e saber como estava, se eu tinha sido útil a ele, afinal.

Foi assim que você ligou para ele, mas como veio parar no grupo? — perguntou Pam.

Você quer falar a partir desse ponto, Philip? — perguntou Julius.

Acho que seria um exercício mais rico se você continuasse — disse Philip, sem qualquer sinal de sorriso.

Julius contou rapidamente os fatos que se seguiram: Philip disse que a terapia não teve qualquer valor e que seu verdadeiro analista tinha sido Schopenhauer, depois o convite por e-mail para a palestra, o pedido de Philip para uma supervisão...

Não entendi, Philip — interrompeu Tony. — Se você não conseguiu nada na terapia com Julius, porra, por que quis a supervisão dele?

Julius perguntou isso várias vezes — disse Philip. — A resposta é que, apesar de ele não ter me ajudado, reconheço que tem uma técnica excelente. Talvez eu tenha sido um paciente rebelde, resistente, ou talvez meu problema não cedesse com o, digamos, método que ele usou.

Certo, entendi. Mas interrompi você, Julius — disse Tony.

Estou terminando. Aceitei ser o supervisor com uma condição: que ele passasse seis meses no meu grupo de terapia.

Você não explicou por que fez essa exigência — disse Rebecca.

Notei a forma como ele se relacionou comigo e com os alunos e disse que seu jeito impessoal e frio impediria que fosse um bom terapeuta. Não foi isso, Philip?

Sua frase exata foi: "Como você pode ser terapeuta, se não sabe que merda existe entre você e os outros?".

Muito bem — disse Pam.

É bem o Julius — disse Bonnie.

É bem o Julius quando alguém está incomodando — disse Stuart. — Você estava incomodando, Philip?

— Não tive a intenção — respondeu Philip.

— Ainda não entendi tudo, Julius — disse Rebecca. — Sei porque chamou Philip e por que sugeriu que fizesse terapia de grupo. Mas por que o colocou no seu grupo e concordou em fazer a supervisão dele? Você já tinha um prato cheio, por que assumir mais esse encargo?

Hoje vocês estão duros. Essa é a grande pergunta e não sei como respondê-la, mas tem algo a ver com redenção e acertar as coisas.

Grande parte da conversa foi para me deixar a par dos fatos e agradeço — disse Pam. — Só mais uma pergunta: você disse que Philip lhe deu consolo duas vezes, ou tentou dar. Ainda não sei qual foi a primeira vez.

É, começamos a falar e não acabamos — disse Julius. — Assisti a uma palestra de Philip e aos poucos entendi que ela havia sido preparada especialmente para me ajudar. Ele discutiu bastante um trecho de um romance onde um homem à morte encontrava muito consolo num trecho de Schopenhauer.

Qual é o romance? — perguntou Pam.

Os Buddenbrooks — respondeu Julius.

E por que não foi útil? — perguntou Bonnie.

Por vários motivos. Primeiro, a forma de Philip me oferecer esse consolo foi muito indireta, parecida com o texto de Epícteto.

Julius, não quero ser chato, mas não é melhor falar direto com Philip? Adivinha quem me ensinou isso? — perguntou Tony.

Obrigado, Tony, você tem toda razão. — Julius virou-se de frente para Philip. — Sua forma de me oferecer ajuda com uma palestra foi distante, tão indireta e tão pública. E muito inesperada porque tínhamos acabado de conversar por uma hora e você parecia totalmente indiferente ao que estava acontecendo comigo. Essa foi uma coisa. A outra foi o conteúdo do texto. Não sou capaz de repetir, não tenho sua memória fotográfica, mas o texto era sobre um patriarca morrendo e tendo uma revelação que acabava com a distância entre ele e os outros. Assim, ele ficou consolado pela unidade da vida e pela idéia de que, após a morte, voltaria à força vital de onde veio e assim manteria a ligação com tudo o que está vivo. É mais ou menos isso? — perguntou Julius para Philip, que concordou.

— Bem, Philip, como já tentei dizer antes, essa idéia não me deu qualquer consolo. Se minha consciência acaba, então pouco importa que minha energia vital ou as moléculas do meu corpo ou o meu DNA continue existindo no espaço infinito. E se vai haver uma ligação, então eu prefiro que seja em pessoa, na carne. — Olhou para cada uma das pessoas do grupo e, por fim, para Pam — Então, esse foi o primeiro consolo que Philip me ofereceu; o segundo foi a parábola que vocês receberam.

Após um pequeno silêncio, Julius acrescentou: — Hoje falei muito. O que vocês estão achando?

Acho interessante — disse Rebecca.

Eu também — disse Bonnie.

São altas conversas, mas estou gostando — disse Tony.

Sinto uma tensão aqui — observou Stuart.

Tensão onde? — perguntou Tony.

Entre Pam e Philip, claro.

E muita entre Julius e Philip — acrescentou Gill, outra vez defendendo Philip. — Você se sente ouvido, Philip? Acha que o que diz recebe a consideração que merece?

Eu acho que, que, bem... — Philip estava indeciso, o que não era comum, mas logo recuperou a fluência de sempre. — Não é precipitado anular tão depressa...

Você está falando com quem? — perguntou Tony.

Certo — respondeu Philip. — Julius, não é precipitado anular tão depressa um texto que ofereceu consolo para grande parte da humanidade durante séculos? Epícteto, assim como Schopenhauer, achava que o apego excessivo aos bens materiais, às pessoas, ou até a si mesmo é a maior causa de sofrimento. E o sofrimento não pode ser reduzido se evitarmos o apego? Aliás, essa é a base do ensinamento de Buda.

Boa pergunta, Philip, vou pensar bem nisso. Você diz que está me dando uma coisa boa que eu rejeito, o que faz você se sentir desvalorizado. Certo?

Não falei em desvalorização.

Não disse alto. Estou deduzindo, seria uma reação bastante humana. Desconfio que, se você olhar dentro de você, vai encontrar esse sentimento.

— Pam, você revirou os olhos como quem não está gostando — disse Rebecca. — Essa conversa sobre apego faz lembrar a meditação na Índia? Julius e Philip, vocês não estavam depois da sessão, quando Pam contou do ashram.

— É mesmo — disse Pam. — Eu não agüentava mais me desapegar de tudo, inclusive da idéia doida de que podemos separar nosso apego do nosso eu. Acabei achando que era tudo uma grande negação da vida. E aquele texto que Philip deu, qual é a mensagem? Quer dizer, que tipo de viagem, que tipo de vida você leva se está tão preocupado com a partida do navio que não pode aproveitar o que há em volta, nem desfrutar das outras pessoas? Acho que você, Philip, tem como solução para os seus problemas renunciar à vida — disse ela, virando-se para Philip. — Você não vive, não ouve os outros e, quando fala, não parece que estou ouvindo alguém vivo, respirando.

Gill pulou em defesa de Philip: — Pam, você fala em ouvir, mas não sei se ouve muito os outros. Ouviu que anos atrás Philip esteve muito mal? Que venceu problemas e compulsões? Que não melhorou com três anos inteiros de terapia com Julius? Que fez o que você fez no mês passado e que qualquer um de nós faria, isto é, procurou outro tipo de tratamento? E que finalmente recebeu ajuda de um enfoque diferente, que não é uma falsa solução da moda da Nova Era? E que agora está tentando oferecer a Julius algo parecido com o que o ajudou?

O grupo ficou calado com a explosão de Gill. Alguns instantes depois, Tony disse: — Gill, você hoje está demais! Pegando no pé da Pam. Não gostei, cara. Mas gosto do jeito que você tem falado aqui; espero que isso melhore sua vida com Rose.

Philip — disse Rebecca —, desculpe eu ter sido tão agressiva. Estou mudando de idéia sobre esse texto do... do Epíreto.

Epícteto — corrigiu Philip com uma voz mais suave.

Epícteto, obrigada — e continuou: — Fiquei pensando, essa história de apego ajuda a entender umas coisas minhas. Acho que estou com excesso de apego, não a bens, mas à aparência. Meu rosto bonito sempre facilitou as coisas para mim, tive muito apoio, fui rainha da formatura, rainha da volta para casa, ganhei concursos de beleza e agora que a beleza está acabando...

Acabando? — disse Bonnie. — Pode passar as sobras para mim.

Troco você por mim a qualquer hora, com todas as minhas jóias e filhos, se tivesse — disse Pam.

Obrigada. Muito obrigada. Mas tudo é muito relativo. Sou apegada à minha aparência, eu sou a minha cara e agora que ela está ficando menos, eu também estou menos. Está sendo muito difícil dispensar as vantagens que a beleza me proporcionava.

Uma das idéias de Schopenhauer que me ajudou — disse Philip — foi que a relativa felicidade tem três origens: o que se é, o que se tem e o que se é para os outros. Ele sugere que nos fixemos apenas no primeiro item, não em ter e no que os outros pensam de nós, porque não podemos controlar essas coisas, elas podem e serão tiradas de nós, da mesma forma que o envelhecimento vai levando a beleza. Na verdade, diz ele, possuir tem um outro lado, pois o que possuímos acaba nos possuindo.

Interessante, Philip — cumprimentou Rebecca. — As três coisas (o que somos, o que temos e o que somos para os outros) têm a ver comigo. Passei a maior parte da minha vida presa a essa terceira parte, o que os outros pensam de mim. Confesso outro segredo: meu perfume mágico. Nunca disse a ninguém, mas sempre sonhei em fabricar um perfume chamado Rebecca, feito com a minha essência que não evapora; quem sentisse esse perfume pensaria na minha beleza.

Rebecca, você está tendo coragem de falar. Gostei — disse Pam.

Eu também — disse Stuart. — Vou contar uma coisa inédita: gosto de olhar para você, mas percebo agora que a sua beleza é um obstáculo para ver ou conhecer você, da mesma forma que talvez haja um obstáculo quando a mulher é feia ou infeliz.

Puxa, isso é chocante. Obrigada, Stuart.

Rebecca, saiba que também estou emocionado por nos confiar o sonho do perfume — disse Julius. — Mostra o círculo vicioso que você criou. Confunde a sua beleza com a sua essência. O que acontece então, como notou Stuart, é que as pessoas não relacionam você com a sua essência, mas com a sua beleza.

Esse círculo vicioso me deixa sem saber se existe alguma coisa dentro. Ainda estou impressionada com a sua frase outro dia, Julius, a bela mulher vazia sou exatamente eu".

— Só que o círculo vicioso pode estar se rompendo — disse Gill. Nas últimas semanas, aprendi mais sobre você, quer dizer, mais profundamente, do que no ano passado inteiro.

— Eu também e, falando sério, peço desculpas por contar dinheiro quando você falou naquela história em Las Vegas. Fui idiota — disse Tony.

Desculpas recebidas e aceitas — disse Rebecca.

Hoje você teve bastante retorno, Rebecca — disse Julius. — Como se sente?

Ótima, é bom isso. As pessoas estão me tratando de outro jeito.

Não somos nós, é você — disse Tony. — Se manda coisa boa, recebe coisa boa.

Manda coisa boa, recebe coisa boa. Gostei, Tony — disse Rebecca. — Olha, você está ficando bom nesse negócio de terapia, talvez eu comece a juntar dinheiro. Quanto você cobra?

Tony abriu um largo sorriso. — Já que estou na berlinda, vou dizer o que acho, Julius, de você aceitar Philip outra vez. Talvez, quando você o conheceu, anos atrás, estivesse mais próximo daquela situação que nos contou na semana passada, de muito desejo de sexo com várias mulheres.

Julius concordou: — Continue.

— Olha o que pensei: se você estava numa situação parecida com a de Philip, não igual, mas do mesmo tipo, será que não atrapalhou a terapia com ele?

Julius se aprumou na cadeira. Philip também. — Você me faz ver isso, Tony. Começo a entender por que os terapeutas não gostam de fazer revelações pessoais, quer dizer, as coisas não somem, o que você conta volta para assustar você outra vez e mais outra.

Desculpe, Julius, eu não queria colocar holofotes em você.

Não, não tem problema. Falei sério, não é reclamação, talvez esteja apenas me esquivando. Sua observação é muito boa, talvez boa demais, certa demais, estou resistindo um pouco. — Julius parou e pensou um instante. — Bom, acho o seguinte: lembro que, naquela época, fiquei surpreso e aborrecido por não ter ajudado Philip. Eu devia ajudá-lo. Quando começamos a terapia, achava que iria ajudá-lo bastante. Achava que eu tinha uma boa pista para ajudá-lo. E tinha certeza de que minha experiência pessoal iria facilitar.

Talvez por isso você convidou Philip para o grupo, para tentar de novo, ter outra oportunidade, não? — perguntou Tony.

Tirou as palavras da minha boca — disse Julius. — Ia dizer isso, talvez seja o motivo para meses atrás, quando pensava em quem ajudei e quem não ajudei, eu ficar tão fixado em Philip. Na verdade, quando pensei nele, perdi o interesse em procurar outros pacientes.

Olha a hora. Detesto ter de terminar a sessão, mas precisamos parar. Foi uma boa sessão, tenho muita coisa para pensar. Tony, você me abriu algumas portas. Agradeço.

Então hoje não preciso pagar? — perguntou Tony.

Bem-aventurado o que dá — disse Julius. — Mas, quem sabe ? Continue assim que esse dia chegará.

Após sair da sala, o grupo ficou conversando na escada da casa e se dispersou. Só Tony e Pam foram à lanchonete.

Pam estava fixada em Philip. Não adiantou ele dizer que foi uma infelicidade terem se encontrado. Além disso, detestou ser cumprimentada pela interpretação da parábola e detestou mais ainda ter merecido. Achava que o grupo estava se aproximando de Philip e se afastando dela e de Julius.

Tony estava orgulhoso e se elegeu o MSG (o melhor sujeito do grupo). Talvez não fosse ao bar naquela noite e ficasse em casa lendo um dos livros que Pam emprestou.

Gill olhou Pam e Tony descendo a rua juntos. Gill (e Philip, claro) foram os únicos que ela não abraçou no final da sessão. Será que tinha sido muito agressivo com ela? Lembrou da degustação de vinho da noite seguinte, um dos grandes eventos promovidos por Rose. Os amigos dela sempre se reuniam nessa época do ano para degustar os melhores vinhos da safra. Como resolver aquela situação? Dava um gole e cuspia? Não seria fácil. Ou, simplesmente, contava a verdade? Pensou em seu padrinho nos AA; sabia exatamente como seria a conversa com ele:

Padrinho: O que é mais importante para você? Não vá à degustação, vá a uma reunião.

Gill: Mas os amigos dela só se reúnem para degustar vinhos.

Padrinho: É? Sugira outro motivo para se reunirem.

Gill: Não adianta. Eles não vão aceitar.

Padrinho: Então, arrume outros amigos.

Gill: Rose não vai gostar.

Padrinho: E daí?

Rebecca pensou: Manda coisa boa, recebe coisa boa. Manda boa, recebe boa. Tenho de lembrar disso. Sorriu ao lembrar de Tony contando dinheiro quando ela disse que quis virar prostituta. No fundo, tinha gostado da brincadeira. Será que foi má-fé aceitar o pedido de desculpas?

Como sempre, Bonnie detestava que a sessão terminasse. Ela se sentia viva naqueles noventa minutos. Fora dali, a vida era tão morna. Por quê? Por que a maioria das bibliotecárias tinha que ter vida chata? Pensou no que Philip disse sobre o que somos, o que temos e o que representamos para os outros. Curioso!

Stuart gostou da sessão. Estava entrando de cabeça no grupo. Pensou no que disse para Rebecca, da aparência dela ser um obstáculo para conhecê-la e que nos últimos tempos tinha encontrado mais profundidade nela. Aquilo foi bom. Foi bom mesmo. E dizer a Philip que sentiu um arrepio com aquele consolo gélido que ele deu. Isso foi mais do que tirar uma foto. E também o fato de indicar a tensão que havia entre Pam e Philip. Não, não, isso foi só foto.

A caminho de casa, Philip se esforçou para não pensar na sessão, mas as coisas tinham sido muito fortes, era impossível não pensar nelas. Não agüentou e começou a lembrar de tudo. O velho Epícteto tinha agradado o pessoal. Sempre agrada. Depois, pensou em mãos estendidas e rostos virados para ele. Gill tinha virado seu defensor, mas não era para levar a sério. Não é que Gill fosse a favor dele, era contra Pam, tentava aprender a se defender dela, de Rose e de todas as mulheres. Rebecca tinha gostado do que ele disse. Pensou um instante naquele rosto bonito. E pensou em Tony, as tatuagens, o rosto machucado. Jamais conheceu uma pessoa assim, um verdadeiro primitivo, mas que começa a entender o mundo além do dia-a-dia. E Julius, será que estava perdendo a perspicácia? Como podia defender o apego enquanto admitia seus problemas de investir demais em Philip como paciente?

Philip se sentiu inquieto, mal na própria pele. Corria perigo de desmontar. Por que foi dizer a Pam que tinha sido falta de sorte conhecê-lo? Por isso ela falou tanto nele na sessão e exigiu que olhasse para ela? Seu antigo e depreciado eu pairava acima dele como um fantasma. Sentiu a presença dele, sedenta de vida. Philip acalmou-se e seguiu pensando para casa.

 

Eruditos e filósofos europeus: vocês acham que um saco de vento como Fitche é igual a Kant, o maior pensador de todos os tempos, e um charlatão descarado e imprestável como Hegel é um grande pensador. Portanto, não foi para vocês que escrevi.

Sofrimento, raiva, perseverança

Se Arthur Schopenhauer fosse vivo hoje, seria candidato a uma psicoterapia? Claro! Ele tinha muitos sintomas. Em A meu respeito, lamenta que a natureza tivesse lhe dado um temperamento ansioso e uma "desconfiança, sensibilidade, impetuosidade e orgulho incompatíveis com a serenidade de um filósofo". Descreve bem seus sintomas.

Herdei de meu pai a ansiedade que abomino e combato com todas as forças. (...) quando jovem, me torturava com doenças imaginárias. (...) na época em que estudava em Berlim, achei que estava tuberculoso. (...) tinha pavor de ser obrigado a fazer o serviço militar. (...) saí de Nápoles por medo de varíola e de Berlim por medo da cólera. (...) em Verona, fiquei obcecado com a idéia de ter cheirado rape envenenado. (...) em Manheim, senti um medo enorme, sem qualquer motivo concreto. (...) durante anos, tive medo de cometer um crime. (...) se ouvia um ruído à noite, pulava da cama e pegava a espada e as pistolas, que estavam sempre carregadas. (...) sinto uma ansiedade que me faz ver perigos onde não há e isso aumenta qualquer aborrecimento e faz com que eu tenha enorme dificuldade em me comunicar com as pessoas.

Para amenizar sua desconfiança e seu medo crônicos, Arthur dispunha de um arsenal de precauções e rituais: escondia moedas de ouro e apólices dentro de cartas antigas e outros lugares secretos para usar em alguma emergência; disfarçava seus escritos pessoais com títulos enganosos para confundir os bisbilhoteiros; era extremamente arrumado e limpo; exigia ser atendido sempre pelo mesmo caixa no banco; não deixava que ninguém tocasse em sua estátua de Buda.

Tinha uma sexualidade muito intensa e, mesmo quando jovem, lastimava ser dominado por sentimentos animalescos. Aos trinta e seis anos, uma misteriosa doença o obrigou a ficar sem sair de casa um ano inteiro. Em 1906, um médico e historiador de medicina concluiu que ele teve sífílis, com base nos remédios que foram receitados e no histórico de grande atividade sexual do paciente.

Arthur queria se livrar do sexo. Gostava dos momentos de serenidade, quando podia observar o mundo com calma, e abominava o anseio sexual que atormentava seu corpo. Comparava o desejo à luz do dia, que esconde as estrelas. A medida que envelheceu, apreciou o declínio do desejo e a tranqüilidade advinda.

Como seu maior prazer era trabalhar, teve sempre muito medo de perder a segurança financeira que lhe permitia viver só do intelecto. Mesmo depois de velho, abençoava o pai que lhe permitiu levar aquela vida e despendia muito tempo e energia guardando o dinheiro e avaliando os investimentos. Por isso, assustava-se com qualquer distúrbio que ameaçasse seus investimentos, e passou a ser ultracon-servador em política. Ficou apavorado com a revolta de 1848, que atingiu a Alemanha e o resto da Europa. Soldados entraram no prédio onde ele morava para atirar do alto no povo rebelado na rua; ele então ofereceu seu binóculo de teatro para garantir que os tiros fossem mais certeiros. Vinte anos depois, ao fazer o testamento, deixou quase todos os bens para um fundo de ajuda aos soldados prussianos mutilados ou aleijados ao conter essa revolta.

Suas preocupadas cartas de negócios costumavam ser agressivas e cheias de ameaças. O banqueiro que cuidava das finanças dos Schopenhauer (mãe e filhos) sofreu um revés financeiro e, para não falir, ofereceu a seus investidores só uma parte do que deveriam receber. Mas Schopenhauer fez ameaças legais tão duras que o banqueiro devolveu ao filósofo setenta por cento do que devia e pagou aos demais investidores (inclusive à mãe e à irmã) menos ainda do que havia prometido. As cartas agressivas que escrevia para seu editor acabaram causando um rompimento definitivo. O editor escreveu: "Não lerei mais suas cartas, sua enorme rudeza e grosseria fazem crer que seja um cocheiro e não um filósofo. (...) Só espero que não se confirmem meus temores de que, imprimindo sua obra, eu esteja imprimindo apenas rebotalhos".

A ira de Schopenhauer era famosa: contra os financistas que lidavam com os investimentos dele; contra os editores que não vendiam seus livros; os idiotas que tentavam conversar com ele; os bípedes que se consideravam iguais a ele; os que tossiam durante os concertos; a imprensa que o ignorava. Mas sua maior raiva, a ira furibunda cuja veemência impressiona até hoje e fez dele um pária em sua comunidade intelectual, era contra os pensadores da época, principalmente os dois filósofos do século XX: Fichte e Hegel.

Num livro publicado vinte anos depois de Hegel ter morrido de cólera na epidemia que atingiu Berlim, ele se refere ao filósofo como "um banal, oco, asqueroso, repulsivo e ignorante charlatão, que cometeu a afronta inigualável de escrever um conjunto de absurdos loucos, que foi trombeteado por seus seguidores mercenários no exterior como sendo uma sabedoria eterna".

Pagou caro por esses rompantes destemperados contra outros filósofos. Em 1837, ele ganhou o primeiro lugar pelo ensaio A autonomia da vontade, num concurso patrocinado pela Real Sociedade Norueguesa de Ciências. Schopenhauer demonstrou uma alegria infantil com o prêmio (o primeiro que recebeu) e deixou o cônsul norueguês em Frankfurt muito constrangido por exigir impacientemente que a medalha lhe fosse entregue logo. No ano seguinte, seu ensaio sobre a base da moralidade, num concurso da Real Sociedade Dinamarquesa de Ciências, teve outro resultado. Embora o ensaio fosse excelente, além de o único inscrito, não foi premiado pelo júri devido às observações descabidas sobre Hegel. Os jurados observaram que "não podemos deixar sem resposta o fato de grandes filósofos da era moderna serem tratados de forma tão imprópria, causando séria e compreensível ofensa".

Com o tempo, muitos concordaram com Schopenhauer que a prosa de Hegel não precisava ser tão confusa. Na verdade, os textos dele são tão difíceis que circula uma velha piada nos departamentos de filosofia das faculdades. Lá, a maior e mais terrível dúvida filosófica não é "Qual o sentido da vida?" ou "O que é consciência?", mas "Quem vai ensinar Hegel esse ano?". Mesmo assim, a veemência de Schopenhauer vai muito além de todos os outros críticos.

Quanto menos atenção sua obra dele recebia, mais irritado ficava, causando mais desatenção e transformando-se em motivo de piada para muitos. Mas, apesar de sua ansiedade e solidão, Schopenhauer sobreviveu e continuou a demonstrar todos os sinais exteriores de prepotência. Continuou sendo um intelectual produtivo até morrer. Nunca perdeu a confiança em si mesmo. Comparava-se a um rebento de carvalho que parecia tão simples e comum quanto as outras plantas. "Mas deixe-o em paz, ele não morrerá. Chegará o dia em que haverá quem o valorize." Previu que seu talento teria grande influência nos pensadores do futuro. Estava certo.

 

Visto da juventude, a vida é um longo futuro; a partir da velhice, parece um curto passado. Quando partimos num navio, as coisas na praia vão diminuindo e ficando mais difíceis de distinguir; o mesmo ocorre com todos os fatos e atividades de nosso passado.

Julius foi ficando cada vez mais ansioso pela sessão semanal do grupo. Talvez suas experiências no grupo fossem mais dolorosas porque as semanas de seu ano "saudável" estavam acabando. Não apenas os acontecimentos no grupo, mas tudo na vida dele, as pequenas e as grandes coisas, pareciam mais ternas e intensas. Claro, a quantidade de semanas que ele viveria sempre foi a mesma, mas parecia grande e tão esticada num futuro eterno que ele jamais enxergou o final.

Quando estamos perto do fim, sempre damos uma parada. Os leitores percorrem rápido as centenas de páginas de Os irmãos Karamazov até chegarem às últimas e então diminuem o ritmo, saboreando lentamente cada parágrafo, sugando o néctar de cada frase, cada palavra. O fato de não ter muitos dias pela frente fez com que Julius valorizasse o tempo e contemplasse cada vez mais, pasmo, a milagrosa seqüência de fatos de cada dia.

Pouco antes, tinha lido o artigo de um entomologista que explorou o universo de vida dentro de quatro metros quadrados de gramado isolados por cordas. Depois de cavar bastante, ele ficou surpreso com o dinâmico e fervilhante mundo de predadores e presas, nematóides, miriápodes, insetos saltadores, besouros-encouraçados e aranhas minúsculas. Se tiramos a perspectiva e, além disso, prestamos atenção e temos bastante conhecimento, entramos na cotidianice num perpétuo estado de encantamento.

O mesmo ocorreu com ele no grupo. Diminuíram seus temores do melanoma piorar, passou a ter menos ataques de pânico. Talvez seu maior consolo fosse porque levava ao pé da letra, quase como uma garantia, a avaliação do médico de "um ano bom". Era mais provável que sua vida fosse ativo-leve. Seguindo o mesmo caminho de Zaratustra, ele tinha compartilhado seu amadurecimento, conseguido se aproximar dos outros e vivia de um jeito que gostaria de repetir pela eternidade.

Sempre gostou de imaginar o caminho que os grupos de terapia tomariam na semana seguinte. Naquele momento, com seu último ano bom visivelmente no fim, todos os sentimentos tinham se intensificado: sua curiosidade passou a ser uma expectativa pueril pela próxima sessão. Lembrava que, anos antes, quando dava aulas sobre terapia de grupo, os alunos iniciantes reclamavam do tédio de observar pacientes falando durante noventa minutos nas sessões. Mais tarde, quando aprenderam a ouvir o drama de cada paciente e a admirar a estranha e complexa interação entre eles, o tédio acabou e bem antes da hora os alunos já estavam à espera do próximo grupo.

O fato de saber que o grupo ia terminar fazia com que as pessoas tratassem seus assuntos mais importantes com ardor cada vez maior. Era conseqüência do prazo marcado da terapia, daí pioneiros como Otto Rank e Carl Rogers sempre darem a data de término já no início do tratamento.

Stuart trabalhou mais naqueles meses do que nos três anos anteriores da terapia. Talvez Philip o tivesse apressado, servindo de espelho para ele. Ele se via um pouco na misantropia de Philip e percebeu que todo o grupo (menos eles dois) tinha prazer nas sessões e as considerava um refúgio, um lugar de apoio e afeto. Só os dois participavam por obrigação: Philip, para ter a supervisão, e Stuart, porque a mulher exigiu.

Numa sessão, Pam comentou que o grupo nunca foi um círculo completo porque Stuart estava sempre com a cadeira um pouco para trás, às vezes poucos centímetros; em outras, muitos. Os demais concordaram, tinham percebido aquela assimetria, mas nunca a associaram à dificuldade de Stuart de se aproximar.

Em outra sessão, Stuart reclamou como sempre, contando do apego que a mulher tinha com o pai dela, um médico que passou de chefe de departamento de cirurgia a reitor de faculdade de medicina e presidente de universidade. Stuart continuou falando, como tinha feito nas sessões anteriores, da impossibilidade de merecer a admiração da mulher, pois ela sempre o comparava com o pai. Julius interrompeu para perguntar se ele notava que já havia contado aquilo várias vezes.

Stuart respondeu: — Mas não devemos tratar coisas que continuam incomodando? Ou não? — Julius então fez uma pergunta forte: — O que achou que sentiríamos com a repetição?

Que iam achar um tédio, uma coisa chata.

Pense nisso, Stuart. Qual é a vantagem de você ser um tédio ou um chato? Depois, pense porque as pessoas não se interessam em ouvi-lo.

Durante a semana, Stuart refletiu bastante e depois relatou que estava surpreso de ver que tinha dado pouca importância ao assunto. — Minha mulher acha que sou chato, o adjetivo preferido dela para me definir é "ausente" e acho que o grupo está dizendo a mesma coisa. Sabem, acho que guardei a empatia no fundo do baú.

Pouco depois, Stuart falou num problema importante: sua raiva inexplicável e crescente em relação ao filho de doze anos. Tony abriu uma caixa de Pandora ao perguntar: — Como você era quando tinha a idade de seu filho?

Stuart contou que foi pobre, o pai morreu quando tinha oito anos, a mãe trabalhava em dois lugares e jamais estava em casa quando ele chegava da escola. Assim, foi uma criança largada, que fazia a própria comida e usava as mesmas roupas velhas todo dia para ir à escola. Ele tinha conseguido quase não lembrar da infância, mas o filho fez com que voltassem coisas muito ruins, esquecidas há tempos.

— Culpar meu filho é loucura, mas sinto inveja e mágoa da vida privilegiada que ele tem — confessou Stuart. Tony ajudou a romper a raiva mostrando a situação por outro ângulo: — Que tal ter orgulho da vida melhor que você pode dar ao seu filho?

Quase todo o grupo tinha melhorado com a terapia. Julius já havia percebido há tempos que, quando os grupos atingem um amadurecimento, todos parecem melhorar ao mesmo tempo. Bonnie lutava para aceitar um grande paradoxo: a raiva que tinha do ex-marido por tê-la deixado e o alívio por se livrar de uma relação com um homem a quem desprezava.

Gill freqüentava os A.A. diariamente, foram setenta reuniões em setenta dias, mas a abstinência aumentou suas dificuldades conjugais, em vez de diminuí-las. Isso não era novidade para Julius, claro: sempre que um cônjuge melhora na terapia, altera o equilíbrio do relacionamento que, para se manter, precisa que o outro também mude. Gill e Rose tinham feito terapia conjugai, mas ele achava que ela não podia mudar. Mas não estava mais apavorado com a idéia de o casamento acabar; entendeu pela primeira vez uma das frases preferidas de Julius: "O único jeito de salvar o casamento é conseguir (e ser capaz) de largá-lo".

Tony continuava numa velocidade incrível, como se a força que se exauria de Julius fosse canalizada direto para ele. Incentivado por Pam e reforçado por todo o resto do grupo, parou de reclamar de ser ignorante e tentou resolver, ou seja, tratou de estudar. Matriculou-se em três cursos noturnos na faculdade próxima.

Por mais emocionantes e gratificantes que fossem essas amplas mudanças, a atenção de Julius continuava em Philip e Pam. Não sabia por que o relacionamento dos dois ficou tão importante para ele, mas tinha certeza de que os motivos iam além do pessoal. Às vezes, quando pensava nos dois, lembrava da frase do Talmude: "Salvar uma pessoa é salvar o mundo todo". A importância de salvar o relacionamento deles aumentou muito; aliás, tornou-se sua razão de viver. Era como se salvasse a própria vida, salvando alguma coisa humana nos destroços daquele horrível encontro de anos. Pensando na frase do Talmude, pensou em Carlos, um jovem que foi paciente dele alguns anos antes. Não, tinha sido há muitos anos, pelo menos dez, já que lembrava de comentar sobre ele com Míriam. Era um rapaz muito desagradável, grosseiro, egoísta, sem graça, com mania de sexo, que procurou a terapia quando soube que estava com um linfoma mortal. Julius ajudou-o a mudar algumas coisas importantes, sobretudo na área dos relacionamentos, o que permitiu que ele desse um sentido a todo o seu passado. Horas antes de morrer, Carlos disse a Julius: — Obrigado por salvar minha vida. — Julius pensou muitas vezes em Carlos, mas naquele momento a vida assumia um novo e grave sentido não só para Philip e Pam, mas para salvar a vida dele próprio também.

Philip parecia menos arrogante e mais próximo do grupo, chegava a olhar para quase todas as pessoas, menos para Pam. Os seis meses de terapia que haviam combinado se passaram e Philip não falou em sair por ter cumprido o prazo. Julius tocou no assunto, e ele respondeu: — Para minha surpresa, a terapia de grupo é um fenômeno bem mais complexo do que eu pensava. Preferia que você supervisionasse meu trabalho com pacientes enquanto ainda estivesse no grupo, mas você não quis devido aos problemas do "duplo relacionamento". Prefiro continuar no grupo por um ano e depois pedir supervisão.

— Aceito seu plano, mas tudo depende da minha saúde, claro — disse Julius. — O grupo termina daqui a quatro meses e depois disso veremos. Minha garantia de saúde foi só por um ano.

Era comum ocorrer aquela impressão diferente que Philip teve ao participar de um grupo. As pessoas costumam entrar com uma finalidade definida, como, por exemplo, dormir melhor, não ter mais pesadelos, perder uma fobia. Mas, em poucos meses de grupo, assumem novas e mais amplas metas, como, por exemplo, aprender a amar, a recuperar o prazer de viver, a vencer a solidão, a gostar de si mesmas.

De vez em quando, o grupo insistia para Philip contar melhor como Schopenhauer o ajudou tanto, já que a psicoterapia com Julius não conseguiu. Philip tinha dificuldade de falar em Schopenhauer sem informar um pouco sobre filosofia, por isso sugeriu ao grupo dar uma palestra de meia hora sobre o filósofo. O grupo reclamou e Julius então propôs informar o mais importante de forma resumida e simples.

Na sessão seguinte, Philip fez uma breve exposição que, prometeu, mostraria logo como Schopenhauer o havia ajudado.

Ele segurava uma notas, mas falou sem consultá-las. Olhando para o teto, começou: — Não é possível falar em Schopenhauer sem começar por Kant, o filósofo que, junto com Platão, respeitava os outros acima de tudo. Kant morreu em 1804, quando Schopenhauer tinha dezesseis anos, e revolucionou a filosofia com a conclusão de que é impossível sentirmos a realidade em qualquer sentido verdadeiro porque todas as nossas percepções, nossas informações sensoriais, são filtradas e processadas pelo nosso mecanismo neuroanatômico. Todas as informações são conceituadas por elaborações arbitrárias como es-paço e tempo e...

— Anda, Philip, vai contar como esse sujeito o ajudou? — perguntou Tony.

— Espere, já chego lá. Falei só três minutos, isso não é o jornal da tevê. Não posso explicar num segundo as conclusões de um dos maiores pensadores do mundo.

— Muito bem, Philip, gostei da resposta — disse Rebecca. Tony sorriu e aceitou a crítica.

A descoberta de Kant foi que, em vez de percebermos o mundo como ele é, temos nossa versão pessoal do que é. Propriedades como espaço, tempo, quantidade, causalidade estão em nós e não no mundo, nós as impomos à realidade. Mas, então, qual é a realidade pura? O que está no mundo, aquela entidade pura, antes de nós a processar mos? Kant disse que jamais saberemos.

Mas como Schopenhauer ajudou você? Lembra que ia contar? Estamos chegando lá? — insistiu Tony.

Daqui a noventa segundos. Em sua obra, Kant e outros filósofos deram atenção às formas em que processamos a realidade.

Mas Schopenhauer (pronto, chegamos a ele!) fez outro caminho. Ele viu que Kant tinha omitido uma informação fundamental e imediata sobre nós mesmos: o corpo e os sentimentos. Insistia que podemos nos conhecer a partir de dentro. Temos um conhecimento direto e imediato, que não depende de nossas percepções. Assim, foi o primeiro filósofo a olhar impulsos e sentimentos a partir de dentro, e pelo resto da vida escreveu muito sobre as preocupações interiores: sexo, amor, morte, sonhos, sofrimento, religião, suicídio, relações com os outros, vaidade, auto-estima. Mais que qualquer outro filósofo, ele tratou daqueles impulsos sombrios que ficam lá no fundo, que não suportamos encarar e por isso precisamos reprimir.

Parece meio freudiano — disse Bonnie.

Pelo contrário, é mais certo dizer que Freud é Schopenhauer, tal a quantidade de psicanálise freudiana existente em Schopenhauer. Embora Freud quase não tenha reconhecido essa influência, não há dúvida que conhecia bem os escritos do filósofo. Nas décadas de 1860 e 1870, quando Freud estudava em Viena, todo mundo falava em Schopenhauer. Na minha opinião, sem Schopenhauer não haveria Freud, como, aliás, não existiria Nietzsche da forma como conhecemos. Aliás, a influência de Schopenhauer sobre Freud, principalmente na teoria dos sonhos, no inconsciente e nos mecanismos de repressão, foi tema da minha dissertação de doutorado.

Schopenhauer — continuou Philip, olhando de esguelha para Tony e falando rápido para não ser interrompido — resolveu minha sexualidade. Fez com que eu visse que o sexo está em tudo e que, em nível mais profundo, é o centro de tudo o que fazemos, permeando todas as relações humanas, influenciando até questões de estado. Citei há uns meses o que ele disse sobre o tema.

Para confirmar o que você diz — atalhou Tony. — Li outro dia no jornal que a indústria da pornografia fatura mais do que a da música e do cinema. É incrível.

Philip, já dá para supor, mas ainda não ouvi você dizer exatamente como Schopenhauer ajudou você a se curar da compulsão se xual ou, hum, do seu vício em sexo, posso usar essa palavra? — perguntou Rebecca.

Tenho que pensar, não sei se vício seria a palavra adequada — respondeu Philip.

— Por quê? Para mim, do jeito que você contou, parecia um vício.

Bom, desdobrando a informação que Tony deu, você sabe quantos homens acessam«'/é^ de pornografia na Internet?

Você acessa? — perguntou Rebecca.

Não, mas poderia, no passado, como fazem quase todos os homens.

Confesso que acesso duas ou três vezes por semana. Aliás, não conheço homem que não faça isso — disse Tony.

Nem eu — disse Gill. — Mais uma coisa para irritar minha mulher.

Todos olharam para Stuart: — Sim, sim, confesso que também vejo muita pornografia na Internet.

É isso. Então todo mundo é viciado? — perguntou Philip.

Bom, entendi o que você quer dizer — disse Rebecca. — Não é só a pornografia, existe também a epidemia de processos judiciais por assédio sexual. Já atuei em vários. Outro dia, li no jornal que o reitor de uma grande faculdade de Direito renunciou ao cargo por acusação de assédio. E, claro, há o caso Monica Lewinsky e como a grande voz de Bill Clinton foi quase silenciada. Mas quantos perseguidores de Clinton fizeram a mesma coisa?

— Todo mundo tem uma vida sexual sombria — disse Tony.

— Quem não tem? Talvez os machos estejam apenas sendo machos.

Olha, passei um tempo na cadeia, só por exagerar um pouco, querendo que Lizzie me chupasse. Conheço muitos caras que fizeram pior e não sofreram nada, pensa no Schwarzenegger.

Tony, você está sendo agressivo com as mulheres presentes ou pelo menos com essa que vos fala — disse Rebecca. — Mas não quero sair do assunto. Philip, continue, você ainda não contou.

Primeiro — prosseguiu Philip, sem titubear —, em vez de criticar esse comportamento perverso, há duzentos anos Schopenhauer entendeu a realidade que estava por trás: a simples e enorme força do sexo. O sexo é nosso maior impulso (o de viver e se reproduzir), não pode ser reprimido. Não pode ser afastado com argumentos. Já falei como Schopenhauer observa que o sexo se infiltra em tudo. Vejam o escândalo dos padres católicos pedófilos, pensem em todas as áreas de atuação humana, todas as profissões, todas as culturas, todas as épocas. Perceber isso foi muito importante para mim, assim que conheci a obra de Schopenhauer: ele, uma das grandes inteligências do mundo fez com que, pela primeira vez na vida, eu me sentisse totalmente compreendido.

Então? — perguntou Pam, que esteve calada.

Então o quê? — devolveu Philip, sensivelmente nervoso, como sempre que Pam se dirigia a ele.

O que mais? Foi só isso? Melhorou porque Schopenhauer lhe compreendeu?

Philip pareceu não entender a ironia de Pam e respondeu com calma e sinceridade. — Foi muito mais. Schopenhauer me fez ver que estamos condenados a girar sempre na roda da vontade: desejamos uma coisa, conseguimos, desfrutamos um instante de satisfação que logo passa a tédio e seguimos para o próximo "eu quero". O desejo não acaba, seria preciso pular da roda da vontade. Foi o que fez Schopenhauer e o que eu fiz.

Pular da roda? O que quer dizer isso? — perguntou Pam.

Quer dizer anular completamente a vontade. Aceitar que nossa natureza mais íntima é uma luta implacável, que esse sofrimento está em nós desde o começo, e que somos condenados por nossa própria na tureza. Quer dizer que precisamos primeiro entender o nada essencial desse mundo de ilusão e depois procurar uma forma de negar a vontade. Como todos os grandes artistas, temos que procurar viver no mundo das idéias platônicas. Algumas pessoas fazem isso através da arte; outras, do ascetismo religioso. Schopenhauer fez evitando o mundo do desejo, comungando com os grandes pensadores e praticando a contemplação estética; tocava flauta uma ou duas horas por dia. Quer dizer que, além de atores, precisamos ser platéia. Precisamos admitir a força vital que existe na natureza e que se manifesta na vida de cada um e que acabará sendo recuperada quando a pessoa deixar de existir.

— É o modelo que sigo. Minha maior relação é com os grandes pensadores, que leio diariamente. Procuro não encher minha cabeça com coisas corriqueiras e pratico a contemplação jogando xadrez ou ouvindo música, também diariamente. Ao contrário de Schopenhauer, não tenho talento para tocar um instrumento.

Julius ficou encantado com o diálogo. Será que Philip não percebia o rancor de Pam? Nem tinha medo da raiva dela? E o que dizer da solução que ele encontrou para seu vício? Julius se encantou com aquilo e também achou graça. O comentário de Philip de que, ao ler Schopenhauer, sentiu-se compreendido pela primeira vez na vida, foi como um tapa na cara de Julius. "Será que eu não sou nada?", pensou. Trabalhei três anos com ele, tentei compreendê-lo e ter empatia por ele. Mas Julius não disse nada. Aos poucos, Philip mudava. Às vezes, é melhor guardar as coisas e voltar a elas na hora certa, um dia.

Semanas depois, o grupo tocou nesses assuntos por ele, na sessão que começou com Rebecca e Bonnie dizendo a Pam que ela havia mudado (para pior) desde que Philip chegou. Bonnie reclamou que Pam tinha perdido a gentileza, o afeto e a generosidade, e, embora tivesse menos raiva dele que nas primeiras discussões, o ódio continuava, congelado de forma dura e implacável.

— Acho que Philip mudou muito nos últimos meses — consta tou Rebecca. — Mas você é tão dura com ele quanto foi com seu ex-marido e com seu ex-amante. Quer odiar pelo resto da vida?

Outros observaram que Philip tinha sido gentil, respondeu a tudo que Pam quis saber, mesmo quando foi muito irônica.

— Seja gentil, assim poderá manipular os outros, como se aquece a cera para depois usá-la — disse Pam.

— O quê? — perguntou Stuart. Outras pessoas também pareceram não entender o que ela disse.

Estou só citando o guru de Philip. Esse é um dos conselhos de Schopenhauer e é também o que acho da gentileza de Philip. Nunca falei isso aqui, mas pensei em me especializar em Schopenhauer, de sisti depois de estudar semanas a vida e a obra dele. Passei a desprezar tanto a pessoa que mudei de idéia.

Então, você identifica Philip com Schopenhauer? — perguntou Bonnie.

Identificar? Philip é Schopenhauer, uma alma gêmea, encarnação viva daquele maldito homem. Posso contar coisas da filosofia e da vida dele que gelará o sangue de vocês. E acho que Philip manipula as pessoas, ao invés de relatar. Digo mais: me arrepia pensar nele doutrinando outras pessoas com o mesmo ódio à vida que tinha Schopenhauer.

Você não consegue ver Philip como é hoje? — perguntou Stuart. — Não é a mesma pessoa que você conheceu há quinze anos. O que houve entre vocês muda tudo, você não consegue esquecer nem perdoar.

Você chama de fato, como se fosse uma cutícula de unha? É mais que um fato. Quanto a perdoar, não acha que há coisas que não se perdoam ?

Se você não consegue perdoar, não significa que as coisas não possam ser perdoadas — disse Philip numa voz emocionada, que não era comum nele. — Anos atrás, você e eu fizemos um contrato social de curta duração. Nós nos oferecemos excitação sexual e alívio. Cumpri minha parte. Garanti que você ficasse sexualmente satisfeita e não achei que tivesse outras obrigações. A verdade é que obtive algo e você também: alívio sexual. Não devo nada a você. Quando conversamos depois, avisei que a noite tinha sido agradável, mas eu não queria continuar o relacionamento. Podia ser mais claro?

Não estou falando de clareza, estou falando de afeto, isto é, amor, caritas, preocupação com os outros.

Você quer que eu tenha a mesma visão que você das coisas, que viva como você.

Só queria que tivesse sofrido o que eu sofri.

Se é assim, tenho uma boa notícia para você. Vai gostar de saber que depois do que houve entre nós, sua amiga Molly escreveu uma carta acusatória para todos os membros do departamento de filosofia, o diretor da universidade, o reitor e o conselho das outras faculdades. Apesar de eu ter recebido o doutorado com distinção e ter excelentes avaliações dos alunos, inclusive de você, nenhum membro do conselho quis me dar uma carta de apoio ou me ajudar a conseguir um emprego. Assim, nunca mais tive um lugar digno como professor, e nos últimos anos tenho feito palestras itinérantes numa série de faculdades de terceira classe.

Stuart, esforçando-se para ser empático, observou: — Você deve achar que pagou um alto preço à sociedade.

Surpreso, Philip olhou para Stuart e concordou. — Não tão alto quanto o que paguei para mim mesmo.

Exausto, Philip desmontou na cadeira. Instantes depois, todos olharam Pam que, implacável, se dirigiu ao grupo: — Não pensem que estou falando de um único fato que ficou no passado. Refiro-me a algo que continua. Vocês não ficaram gelados agora mesmo, quando Philip classificou a participação dele em nossa relação amorosa como uma obrigação num contrato social? E o que dizer do comentário que, depois de fazer três anos de análise com Julius, ele só se sentiu compreendido ao ler Schopenhauer? Vocês conhecem Julius, conseguem acreditar que em três anos ele não entendeu Philip?

O grupo ficou calado. Vários instantes depois, Pam dirigiu-se a Philip. — Quer saber por que se sentiu compreendido por Schopenhauer e não por Julius? Porque Schopenhauer morreu há cento e quarenta anos e Julius está vivo. Você não sabe se relacionar com os vivos.

Não parecia que Philip fosse responder e Rebecca apressou-se: — Pam, você está muito agressiva. Posso fazer alguma coisa para se acalmar?

— Philip não é o demônio, Pam — disse Bonnie. — Ele está arrasado. Você não consegue ver? Não sabe a diferença?

Pam balançou a cabeça e disse: — Por hoje, não consigo ir mais adiante.

Após um silêncio concreto e incômodo, Tony, que ao contrário do normal esteve calado, interveio: — Philip, não vim socorrer, mas estava pensando. Você sentiu alguma coisa quando Julius contou há alguns meses do desejo sexual que teve depois que a mulher dele morreu?

Philip pareceu grato pela mudança de assunto. — O que eu deveria sentir?

— Não sei o que deveria, estou perguntando o que sentiu. Pensei o seguinte: quando fez análise com ele, acha que Julius teria mais capacidade de entender você se tivesse contado que também sentiu uma pressão sexual?

Philip concordou. — Boa pergunta. A resposta é: sim, talvez. Podia ter ajudado. Não tenho prova, mas os escritos de Schopenhauer mostram que ele tinha desejos sexuais parecidos com os meus em intensidade e freqüência. Acho que por isso me senti tão compreendido por ele.

Mas omiti uma coisa ao falar na minha análise com Julius e quero deixar claro agora. Quando contei que o tratamento não teve qualquer valor para mim, ele perguntou a mesma coisa que alguém aqui do grupo, há pouco tempo: por que fui querer um analista tão inútil para meu supervisor? A pergunta me fez lembrar de duas coisas da análise que funcionaram e foram úteis.

Quais? — perguntou Tony.

Quando contei qual era a seqüência de minhas noites de sexo (flertar com uma mulher, levá-la para jantar, depois transar), perguntei a Julius se ele estava chocado ou enojado. Ele respondeu apenas que parecia uma noite muito chata. Fiquei surpreso e percebi como tinha dourado a minha fórmula com excitação.

E qual foi a outra coisa? — perguntou Tony.

Julius uma vez perguntou qual a frase que eu mandaria colocar no meu túmulo. Não consegui dar nenhuma e ele então sugeriu: "Ele gostava de foder". E acrescentou que o mesmo epitáfio podia servir para o meu cachorro.

Algumas pessoas do grupo assobiaram, surpresas, outras sorriram. Bonnie disse: — Foi mal, Julius.

Ele não disse com maldade, queria me chocar, me acordar. E funcionou, foi importante para eu querer mudar de vida. Mas acho que eu queria esquecer essas coisas. Claro que não gosto de admitir que ele foi útil.

Sabe por quê ? — perguntou Tony.

Estive pensando, talvez porque fico competindo com ele. Se ele ganhar, eu perco. Talvez porque não queira admitir que o estilo de orientação dele, tão diferente do meu, funciona. Talvez porque eu não queira me aproximar muito dele. Talvez Pam esteja certa, não consigo me relacionar com vivos — disse, fazendo sinal na direção dela.

Pelo menos, não consegue com facilidade. Mas está se aproximando — disse Julius.

E assim o grupo continuou por várias semanas: ninguém faltou às sessões, o trabalho foi muito produtivo e, afora as perguntas repetidas e ansiosas sobre a saúde de Julius e a permanente tensão entre Pam e Philip, o grupo estava seguro, próximo, otimista, até sereno. Ninguém estava preparado para a bomba que iria atingi-los.

 

Quando nasce um homem como eu, só se pode desejar uma coisa: que consiga ser sempre ele mesmo e viver para seus dons intelectuais.

AUTO-ANÁLISE

Mais que qualquer coisa, a autobiografia A meu respeito é um impressionante resumo das estratégias que ajudaram Schopenhauer a não afundar psicologicamente. Embora algumas estratégias, criadas em crises de ansiedade às três da madrugada e deixadas de lado ao amanhecer, sejam fugazes e ineficientes, outras provaram ser duradouros bastiões de apoio. Dentre essas, a mais forte era sua certeza de ser um gênio.

Desde jovem, percebi que os outros lutavam por bens exteriores, o que não me interessava, pois eu tinha dentro de mim um tesouro muito mais valioso do que todas as posses materiais. O mais importante era aumentar esse tesouro, bastando desenvolver a mente e ser totalmente livre. (...) Contra a natureza e os direitos do homem, tive de renunciar ao meu próprio bem-estar para me dedicar a servir à humanidade. Meu intelecto não pertencia a mim, mas ao mundo.

O peso do talento, disse ele, fez com que ficasse mais ansioso e desajeitado do que já era por herança genética. A sensibilidade dos gênios faz com que sofram mais e sejam mais ansiosos. Schopenhauer se convence de que existe uma ligação direta entre ansiedade e inteligência. Assim, os gênios têm obrigação de usar seu dom pela humanidade, mas como devem se dedicar apenas a cumprir sua missão, são levados a se privar das muitas alegrias (mulher, filhos, amigos, casa, acúmulo de bens) disponíveis para os outros humanos.

Ele se acalmava repetindo os mantras da constatação da sua genialidade: "Minha vida é heróica e não deve ser medida pelos padrões dos fariseus, dos comerciantes e dos homens comuns. (...) Não devo, portanto, ficar deprimido por não ter as coisas que fazem parte do curso normal da vida de um indivíduo. (...) assim, não devo me surpreender se minha vida parece incoerente e sem qualquer meta". A certeza de que era um gênio serviu também para ter um duradouro sentido de vida: ele se considerou sempre um missionário da verdade a serviço da raça humana.

O demônio que mais o perseguiu foi a solidão, e Schopenhauer se especializou em construir defesas contra ela. De todas, a mais valiosa era a certeza de ter, por ser o senhor do próprio destino, escolhido a solidão, em vez de ser escolhido por ela. "Quando mais jovem", dizia, "minha tendência era ser sociável, mas depois, aos poucos, adquiri um gosto pela solidão, fui ficando pouco sociável e resolvi me dedicar inteiramente a mim pelo resto dessa vida fugaz." Dizia sempre para si mesmo: "Não estou no lugar que me é devido, nem entre meus iguais".

Portanto, as defesas contra o isolamento eram fortes e profundas: ele escolheu se isolar, os outros não mereciam sua companhia, sua missão exigia solidão; a vida dos gênios deve ser um "monodrama", a vida pessoal de um gênio deve servir a um propósito: facilitar a vida intelectual (portanto, "quanto menos vida pessoal, mais segura e melhor será a vida intelectual").

De vez em quando, Schopenhauer reclamava do peso do isolamento. "Sempre fui muito só e desejei, no fundo do meu coração, encontrar um ser humano, em vão. Continuei na solidão e posso, honesta e sinceramente, dizer que não foi por culpa minha, pois não afastei nem dispensei ninguém que fosse um ser humano."

Além disso, ele dizia que não estava totalmente só, pois (e eis outra poderosa estratégia de auto-analise) tinha seu círculo de amigos íntimos: os grandes pensadores da humanidade.

Só um desses pensadores foi contemporâneo: Goethe. A maioria dos demais era da Antigüidade, principalmente os filósofos estóicos, que citava sempre. Quase todas as páginas de A meu respeito têm algum aforismo de um grande nome para confirmar o que ele achava. Exemplos típicos:

A melhor ajuda para a mente é romper para sempre com os grilhões que iludem o coração.

— Ovídio

Quem quer silêncio e calma deve evitar as mulheres, que são uma fonte permanente de problemas e discussão.

Petrarca

Qualquer um pode ser completamente feliz, se depender apenas de si e tiver em si mesmo tudo o que chamar de seu.

— Cícero

A técnica do "quem sou eu?" é usada por alguns especialistas em grupos de crescimento pessoal. Os integrantes escrevem sete respostas à pergunta, cada uma num cartão, e colocam por ordem de importância. A seguir, a pessoa pega um cartão com a resposta mais distante e pensa como ela seria se não fosse como é (ou seja., desidentifica-se com a resposta). Faz o mesmo com cada cartão até ficar só com suas qualidades essenciais.

Da mesma forma, Schopenhauer atribuía e rejeitava diversas qualidades até chegar ao que ele considerava ser seu verdadeiro eu.

Às vezes, se me sinto infeliz, é por achar que sou outra pessoa e lastimar a infelicidade e perturbação dessa pessoa. Por exemplo: considerei-me um assistente que nunca chega a professor e que não tem ninguém para ouvir suas palestras. Ou ser alguém de quem os fariseus falam mal ou é motivo de boatos escandalosos. Ou ser o amante cuja amada não ouve o que ele diz. Ou ser o doente que não pode sair de casa, ou outras pessoas afligidas por dramas parecidos. Não fui nenhum desses; isso é o casaco que usei por pouco tempo e depois troquei por outro.

Mas então, quem sou eu? Sou o homem que escreveu O mundo como vontade e representação, que solucionou o grande problema da existência que talvez torne obsoletas todas as soluções anteriores. (...) Sou esse homem, e o que poderia perturbá-lo nos poucos anos que ainda lhe restam viver.

Outra estratégia consoladora era a certeza de que mais cedo ou mais tarde, provavelmente após sua morte, teria sua obra conhecida e mudaria completamente o rumo da indagação filosófica. Ele declarou isso cedo, mas a certeza de um sucesso tardio nunca se realizou. Nesse ponto, foi como Nietzsche e Kierkegaard, dois pensadores independentes e desvalorizados, que tinham certeza de que alcançariam fama póstuma (e acertaram).

Ele desprezava qualquer consolo sobrenatural, adotava apenas aqueles que tinham por base uma visão naturalista do mundo. Dizia, por exemplo, que a dor vem do erro de pensar que muitas necessidades da vida são acidentais e, portanto, evitáveis. É melhor perceber a verdade: que a dor e o sofrimento são inevitáveis, irreprimíveis e essenciais à vida — "a única coisa que varia no sofrimento é a forma com que se manifestar, e nosso atual sofrimento preenche um espaço (...) que, na falta desse, seria ocupado por outro qualquer. Se essa reflexão se tornar uma certeza de vida, pode provocar um grau considerável de tranqüilidade estóica".

Ele nos incentivava a viver agora, em vez de viver na esperança de um futuro bom. Duas gerações mais tarde, receberia o apoio de Nietzsche, que considerava a esperança nosso maior flagelo e culpava Platão, Sócrates e o cristianismo por desviarem nossa atenção da única vida que temos para nos ligarmos a uma ilusória vida futura.

 

Quem são os verdadeiros monógamos? Todos nós vivemos por algum tempo na poligamia, e, uma grande maioria, para sempre.

Como todo homem precisa de muitas mulheres, é muito justo que ele sustente várias. Com isso, a mulher ficará restrita à sua condição verdadeira e natural de dependente.

Pam iniciou a sessão seguinte. — Preciso contar uma coisa. Todos olharam para ela.

— Hoje é dia de confissão. Fala, Tony.

Tony se empertigou, olhou fixo para ela um bom tempo, depois recostou-se na cadeira, cruzou os braços e fechou os olhos. Se estivesse de chapéu, teria dobrado a aba para baixo.

Pam concluiu que Tony não pretendia comentar nada e continuou com sua voz clara e ousada. — Tony e eu estamos há algum tempo tendo relações sexuais e acho difícil não comentar isso aqui.

Após um pequeno e pesado silêncio, vieram as perguntas em série: — Por quê? Como começou? Há quanto tempo? Como é isso? Aonde vai parar?

Rápida, calma, Pam respondeu: — Há várias semanas. Não sei o que vai ser, não sei como começou, foi por acaso, aconteceu um dia depois de uma sessão.

— Vai participar da discussão, Tony? — perguntou Rebecca, gentil.

Tony abriu os olhos devagar. — Isso é novidade para mim.

— Novidade? Quer dizer que estou mentindo?

Não, me refiro a hoje ser dia de confissão e à frase "fala, Tony". Isso é novidade.

Você parece não estar gostando — disse Stuart.

Tony virou-se para Pam. — Quer dizer, eu exagerei na sua casa na noite passada. Na intimidade, entende. Intimidade, quantas vezes ouvi dizerem aqui que as mulheres são mais sensíveis e querem mais do que a velha e simples intimidade sexual? Então, por que não ter intimidade para começar essa confissão comigo?

Desculpe — disse Pam, sem parecer aborrecida. — As coisas não estavam batendo direito para mim. Depois que você saiu da minha casa, pensei no grupo quase a noite inteira e vi que temos pouco tempo, só mais seis sessões. Não é isso, Julius?

É, mais seis sessões.

Fiquei chateada de pensar que estava traindo você, Julius. E que traí o contrato com todos aqui. Traí a mim, também.

Eu não sabia o que era, mas senti que tinha algo errado nas últimas sessões — disse Bonnie. — Você estava diferente, Pam. Lembro que Rebecca percebeu várias vezes. Você quase não falou nos seus problemas, não sei como estão as coisas entre você e John, nem se o seu ex-marido tem aparecido ou não. Você quase só atacou Philip.

Tony também estava diferente — acrescentou Gill. — Vejo agora que estava muito diferente. Ficou se escondendo, senti falta do velho Tony cheio de jogo de cintura.

Pensei umas coisas — disse Julius. — Primeiro, algo que Pam tocou ao usar a palavra contrato. Sei que é uma repetição, mas é preciso repetir para quem estiver num grupo no futuro (Julius olhou de relance para Philip) ou até orientando um. O único contrato que temos é nos esforçarmos para explorar nosso relacionamento com todos aqui. O mal de uma relação fora do grupo é ameaçar o trabalho na terapia. Por quê? Porque o casal que se relaciona vai valorizar mais o relacionamento do que a terapia. Foi exatamente o que aconteceu aqui: não só Pam e Tony esconderam a relação (o que é compreensível), mas por isso recuaram da terapia aqui.

Até o dia de hoje — disse Pam.

Exato, até hoje, e aplaudo sua decisão de contar ao grupo. Vocês já sabem o que vou perguntar aos dois: por que agora? Vocês se conheceram aqui há uns dois anos e meio. E só agora as coisas mudam. Por quê? O que aconteceu algumas semanas atrás para resolverem ter relações sexuais?

Pam virou-se para Tony, sobrancelhas arqueadas, sugerindo que ele respondesse. Sugestão aceita. — Primeiro os cavalheiros? Minha vez de novo? Está certo, eu sei exatamente o que mudou: Pam sinalizou "pode vir". Sempre tive uma queda por ela e se o sinal fosse há seis meses ou há dois anos, eu teria ido. Podem me chamar de "senhor solto na área".

Olha, esse é o Tony que eu conheço e gosto. Bem-vindo de volta — disse Gill.

É fácil ver por que você estava diferente, Tony — disse Rebecca. — Conseguiu ficar com Pam e não quer que nada atrapalhe. É compreensível. Então, se esconde, não querendo mostrar as partes que não são muito lindas.

A parte selvagem, você quer dizer? Talvez sim, talvez não, não é tão simples assim — disse Tony.

O que quer dizer cora isso? — perguntou Rebecca.

Significa que as partes não tão lindas é a deixa para Pam. Mas não quero falar nisso.

Por quê ?

Ora, Rebecca, é óbvio. Por que você está me colocando nos holofotes? Se eu continuar falando, posso acabar com minha história com Pam.

Tem certeza? — insistiu Rebecca.

O que você acha? Para mim, o fato de ela contar aqui mostra que está decidido, ela já resolveu. A coisa está quente.

Julius perguntou de novo a Pam por que começou o caso com Tony. Ela ficou indecisa, o que não era comum. — Não consigo ter uma perspectiva da situação, estou muito perto dela. Só sei que não foi nada premeditado, foi um impulso. Estávamos os dois tomando café depois de uma sessão, os outros tinham ido embora. Como sempre, ele perguntou se eu não gostaria de comer alguma coisa e sugeri que fosse ao meu apartamento e tomasse uma sopa feita em casa. Ele foi e as coisas ficaram fora de controle. Por que foi naquele dia e não antes? Não sei. Já tínhamos saído juntos, conversamos sobre literatura, emprestei-lhe alguns livros, incentivei a voltar a estudar, e ele me ensinou carpintaria e me ajudou a fazer uma mesinha de tevê. Vocês sabem disso. Por que a relação passou a ter sexo agora? Não sei.

Você gostaria de tentar saber? Não é fácil falar de uma coisa tão íntima na presença da pessoa — disse Julius.

Hoje vim para cá decidida a tratar desse assunto.

Bem, então o caminho é: pense no grupo, quais os fatos importantes que estavam sendo tratados quando essa relação começou?

Depois que voltei da Índia, aconteceram dois fatos importantes. O primeiro, a sua doença. Uma vez li um artigo maluco dizendo que um casal se forma num grupo pelo desejo inconsciente de que o filho seja um novo líder, mas não é isso. Julius, não sei o quanto a sua doença fez com que eu ficasse mais envolvida com Tony. Talvez o medo de o grupo acabar me fez procurar uma ligação pessoal permanente. Talvez eu tenha pensado, inconscientemente, que isso possa manter o grupo por mais um ano. Estou apenas tentando adivinhar.

Os grupos são como as pessoas: não querem morrer — disse Julius. — Talvez o seu relacionamento com Tony tenha sido uma forma torta de manter o grupo. Todos os grupos de terapia tentam continuar, manter encontros periódicos, mas raramente conseguem. Como eu já disse aqui muitas vezes, o grupo não é a vida, é um ensaio geral para ela. Todos temos que achar um jeito de passar o que aprendemos aqui para nossa vida no mundo real. Fim da palestra.

Mas Pam, você falou em dois fatos importantes: um, a minha saúde e o outro...

Foi Philip. Penso muito nele, detesto a presença dele aqui. Você disse que essa presença pode acabar sendo boa para mim e confio em você, mas até agora foi uma droga, exceto por uma coisa, talvez. Tenho tanta raiva dele que parei de me preocupar com Earl e John. E acho que não vou mais pensar neles.

Então, Philip é importante. Talvez a presença dele tenha um papel na sua relação com Tony? — insistiu Julius.

Pode ser.

Tem alguma pista ?

Pam negou com a cabeça. — Não sei, acho que foi simples tesão. Há vários meses não transo, o que é raro acontecer comigo. Acho que foi só isso.

— Alguma reação aqui? — perguntou Julius, escaneando a sala.

Stuart se apresentou, com sua mente arguta e organizada. — Há mais do que conflito entre Pam e Philip, há muita competição. Talvez seja exagero meu, mas minha tese é que o professor, o erudito, pegou Tony pela mão para educá-lo, e o que acontece? Pam se ausentou do grupo algumas semanas e ao voltar constata que Philip invadiu a seara dela. Acho que ficou desorientada. — Stuart virou-se para Pam. — Todas as mágoas que você tinha dele há quinze anos aumentaram.

E a ligação com Tony? — perguntou Julius.

Bem, pode ter sido uma forma de competir. Se bem me lembro, foi nessa época que Pam e Philip tentaram confortar você compresentes. Philip trouxe aquela história do navio fazendo escala numa ilha e lembro que Tony se envolveu bastante na discussão. — Virou-se para Pam. — Talvez isso lhe parecesse uma ameaça, talvez não quisesse perder a influência sobre Tony.

Obrigado, Stuart, ajudou muito — disse Pam. — Você acha que, para competir com esse zumbi, tenho de trepar com todos os caras do grupo! É assim que julga as mulheres?

Isso exige resposta — disse Gill —, porque essa história de zumbi está fora do contexto. Prefiro o desligamento de Philip do que ser rotulado de forma histérica! Pam, você é uma senhora irritada. Consegue parar de ser doida?

Gill, você está agressivo. O que há? — perguntou Julius.

Acho que vejo muito da minha mulher nessa nova Pam irritada e decidi não engolir nada de nenhuma das duas.

Tem mais: fico irritado de continuar invisível para Pam — acrescentou Gill, virando-se para ela. — Estou sendo direto e sincero, disse o que acho de você, disse que considero você "juíza do supremo", mas nada adianta, continuo sem fazer diferença. Você só enxerga Philip... e Tony. E acho que estou ajudando bastante; eis mais uma ajuda: eu sei por que o seu ex-namorado John pulou fora da relação: não foi por ser covarde, mas por causa da sua raiva.

Pam, imersa em pensamentos, continuou calada.

Muitas emoções fortes se manifestando. Vamos continuar tentando entendê-las. Alguém tem alguma contribuição? —perguntou Julius.

Admiro a honestidade de Pam hoje — disse Bonnie. — E entendo como deve estar magoada. Gostei também de Gill enfrentá-la, uma incrível mudança, Gill, parabéns. Mas às vezes acho que devia deixar Philip se defender, não entendo por que ele fica quieto. — Virou-se para Philip: — Por que não se defende?

Philip negou com a cabeça e continuou calado.

— Se ele não fala, eu falo por ele — disse Pam. — Ele obedece a orientação de Schopenhauer. — Pegou um papel na bolsa e leu:

Fale sem emoção.

Não seja espontâneo.

Mantenha-se independente de todos.

Considere-se a única pessoa na cidade com um relógio para saber as horas. Isso vai lhe ser útil.

Desconsiderar é ganhar consideração.

Philip aprovou com a cabeça e disse: — Gostei do que leu. Parece um bom conselho para mim.

O que está acontecendo? — perguntou Stuart.

Estamos dando uma folheada na obra de Schopenhauer —- disse Pam, mostrando as anotações.

Após um silêncio, Rebecca rompeu o impasse. — Tony, onde você está? O que há com você?

— Hoje não estou conseguindo falar, parece que estou amarrado, uma pedra de gelo — disse ele, balançando a cabeça.

Para surpresa de todos, Philip reagiu: — Acho que entendo esse seu amarrado, Tony. Como disse Julius, você está entre duas exigências conflitantes: espera-se que participe do grupo e ao mesmo tempo tenta manter seu compromisso com Pam.

Entendo, mas entender não basta, não me solta. Mesmo assim, obrigado. E eis uma observação minha para você. O que disse há pouco, na primeira vez em que apoia a opinião de Julius sem desafiá-lo, é uma grande mudança, cara.

Você diz que entender não basta. O que é preciso, então? — perguntou Philip.

Tony balançou a cabeça. — Hoje não está fácil.

— Acho que posso ajudar — disse Julius, virando-se para Tony: — Você e Pam estão se evitando, sem demonstrar o que sentem. Talvez você esteja guardando para dizer depois. Sei que é estranho, mas podem começar a falar aqui? Tentem se falar, não para nós.

Tony respirou fundo e virou-se para Pam. — Não me sinto bem com isso, fico inseguro. Estou chateado com o rumo que as coisas tomaram. Não consigo entender por que não me ligou antes e avisou que ia comentar nosso caso hoje.

Desculpe, mas nós dois sabíamos que uma hora isso ia acontecer. Tocamos no assunto.

É só o que você tem a dizer? E nosso encontro de hoje à noite? Ainda está valendo?

Seria muito esquisito encontrar com você. A regra aqui é falar de todos os relacionamentos e quero cumprir o contrato com o grupo. Não posso continuar com você, talvez depois que o grupo terminar...

Sua relação com contratos é a mais conveniente e flexível — interrompeu Philip, dando sinais de agitação, o que não era comum nele. — Você cumpre um contrato quando lhe convém. Falei em honrar o contrato social que fiz com você no passado, você se irritou comigo. Mas não respeita as regras do grupo, faz jogadas secretas, usa Tony como quer.

Quem é você para falar em contratos? — perguntou Pam, alto. — O que diz da relação entre professor e aluna?

Philip olhou para o relógio, levantou-se e anunciou: — Seis horas. Cumpri meu tempo obrigatório. — Saiu da sala resmungando: — Por hoje basta de chafurdar na lama.

Foi a primeira vez que alguém encerrou a sessão no lugar de Julius.

 

Quem ama sente uma enorme desilusão depois de finalmente chegar ao prazer. E, surpreso, vê que aquilo que tanto desejou traz o mesmo que qualquer outra satisfação sexual, e assim não encontrará muita vantagem em amar.

O fato de se retirar da sala não ajudou a tirar a lama da cabeça de Philip. Ele andou, ansioso, pela Fillmore Street. O que tinha acontecido com seu arsenal de técnicas de segurança? Tudo o que há tanto tempo lhe dava força e calma estava revirado: a disciplina mental, a perspectiva cósmica. Lutando para acalmar-se, ordenou a si mesmo: não lute, não resista, fique calmo, apenas assista ao espetáculo de seus pensamentos passando pela mente. Deixe que eles entrem e saiam.

Os pensamentos entravam, mas não estavam saindo. As imagens desfaziam as malas, dependuravam as roupas no armário e se instalavam na cabeça dele. O rosto de Pam apareceu. Que surpresa, o rosto se transformou ao escorrerem as lágrimas pelo rosto dele: rejuvenesceu, estava na frente dele a Pam que conheceu há anos. Que estranho ver a mulher jovem na de agora. Ele costumava fazer o inverso: imaginar o futuro no presente, os ossos marcando a pele lisa da juventude.

Que rosto bonito! E que nitidez incrível! As centenas de mulheres cujos corpos ele tinha penetrado, e cujos rostos tinha esquecido há muito, ficavam misturadas num rosto arquetípico; como era possível o rosto de Pam continuar tão nítido?

Depois, ele se surpreendeu com lembranças da Pam jovem: a beleza, a alegre agitação quando amarrou os pulsos dela com o cinto, a cascata de orgasmos que ela teve. A excitação sexual dele permaneceu como uma vaga memória do corpo, uma sensação muda e pesada de penetrar e encher-se de júbilo. Lembrou também de ficar abraçado com ela muito tempo. Foi por esse exato motivo que ele a considerou perigosa e resolveu na mesma hora não a encontrar mais. Ela era uma ameaça à liberdade dele. Buscava um alívio sexual rápido, uma credencial para obter a abençoada paz e solidão. Ele nunca desejava a carne. Desejava a liberdade, livrar-se da escravidão do desejo para entrar, embora por pouco tempo, no não-desejo dos verdadeiros filósofos. Só após o alívio do prazer ele podia ter pensamentos elevados e apreciar seus amigos, os grandes pensadores cujos livros eram como cartas dirigidas a ele.

Surgiram mais fantasias; ele foi tomado pela excitação que, numa grande onda, arrastou-o para longe do mirante de observação dos filósofos. Ele queria, ele desejava. Mais que tudo, queria segurar o rosto de Pam. Os pensamentos deixaram de ter uma ligação forte e ordenada. Imaginou um leão-marinho cercado por um harém de fêmeas, depois um macho uivando e se jogando contra uma cerca de aço que o separava de uma fêmea no cio. Sentiu-se um brutamontes, um homem da caverna empunhando a clava, rosnando, afastando os rivais. Queria possuí-la, lambê-la, cheirá-la. Pensou nos braços musculosos de Tony, no marinheiro Popeye engolindo seu espinafre e jogando a lata vazia para trás. Viu Tony montando nela, ela com as pernas abertas, abraçada nele. Aquela buceta era dele, só dele. Ela não tinha o direito de sujá-la oferecendo-a para Tony. Tudo o que fez com Tony maculava a lembrança que tinha dela, vulgarizava-a. Teve vontade de vomitar. Ele era um bípede.

Philip virou a esquina e andou pela marina, depois passou pelo Chrissy Field rumo à baía e à orla do Pacífico, onde se tranqüilizou com o mar calmo e o cheiro salgado da maresia. Sentiu um arrepio e fechou a jaqueta. O dia estava chegando ao fim, o vento frio do Pacífico passava pela ponte Golden Gate e batia nele como a vida que sempre passaria por ele sem calor nem alegria. O vento prenunciava os muitos dias de neve por vir, frio gelado, de acordar de manhã sem qualquer esperança de lar, amor, carinho, alegria. Sua mansão de pensamentos não tinha calor. Que estranho ele nunca ter percebido. Continuou a andar, mas com a vaga impressão de que sua casa e sua vida foram construídas sob alicerces falsos e frágeis.

 

Devemos encarar com tolerância toda loucura, fracasso e vício dos outros, sabendo que encaramos apenas nossas próprias loucuras, fracassos e vícios.

Na sessão seguinte, Philip não comunicou ao grupo as alarmantes conclusões a que tinha chegado, nem os motivos para ter se retirado de repente. Embora agora participasse mais das discussões, era sempre por iniciativa própria e as pessoas já tinham aprendido que era desperdício de energia insistir para ele se abrir. Assim, deram atenção a Julius e perguntaram se ele se sentiu usurpado por Philip terminar a sessão anterior.

— Foi uma sensação agridoce — respondeu Julius. — A parte amarga está sendo compreendida. Todos os finais e renúncias têm por símbolo perder a influência e o papel. Dormi mal depois daquela sessão. Tudo piora às três da manhã. Tive um ataque de tristeza por todos os finais que se aproximam: do grupo, da análise com meus pacientes individuais, do meu último ano bom. Portanto, esse é o lado amargo. A parte doce é o orgulho que tenho de vocês. Inclusive de você, Philip. Orgulho da crescente autonomia de vocês. Os terapeutas são como pais. Um bom pai ou uma boa mãe dá condições para que o filho ou filha tenha capacidade de sair de casa e ser adulto, como o bom terapeuta quer que seus pacientes saiam no final do tratamento.

Quero explicar um provável mal-entendido — avisou Philip. — Na semana passada, não tive a intenção de tomar o seu lugar. Fiz aquilo para me proteger, pois aquela discussão me deixou muito agitado. Obriguei-me a ficar até o final da sessão e tive que sair.

Compreendo, Philip, mas minha preocupação com os finais agora é tão forte que sou capaz de ver sinais de fim e substituição até em situações positivas. Vejo também que sua explicação tem um afeto por mim. E agradeço.

Philip meneou de leve a cabeça.

Julius prosseguiu: — A agitação que você citou parece importante. Podemos falar nela? Temos só mais cinco sessões. Recomendo que vocês aproveitem esse grupo enquanto há tempo.

Philip negou com a cabeça, como se quisesse dizer que ainda não podia falar naquele assunto. Mas não ia ficar quieto para sempre e nas sessões seguintes foi muito participante.

Pam inicou a sessão se dirigindo a Gill, ousada: — Hora de pedir desculpas! Fiquei pensando em você e acho, ou melhor, tenho certeza de que preciso me desculpar.

Explique melhor. — Gill estava atento e curioso.

Meses atrás, agredi você dizendo que nunca está presente, é tão distraído e impessoal que eu não agüentava ouvir o que diz. Lembra? Fui muito dura...

— Dura, é verdade, mas acertada — interrompeu Gill. — Foi bom, me fez parar de beber. Sabe que não tomei uma gota desde aquele dia?

— Obrigada, mas não é disso que estou falando, é do que aconteceu a partir daquele dia. Você mudou: tem estado presente, tem estado mais aberto e mais firme comigo do que qualquer outra pessoa aqui. Apesar disso, eu estava muito centrada em mim para reconhecer. Por isso peço desculpas.

Gill aceitou o pedido. — E o que falei para você, serviu de alguma coisa?

— Bom, fiquei balançada vários dias por você me chamar de "juízado supremo". Acertou no alvo, me fez pensar. Porém, o que mais me atingiu foi você dizer que John não quis largar o casamento dele para não enfrentar a minha raiva e não por ser covarde. Isso me pegou, me fez pensar. Não consegui esquecer. Sabe do que mais? Vi que você tinha toda razão e John estava certo de se afastar de mim. Não foi por causa dos problemas dele que eu o perdi, mas dos meus problemas; ele não me agüentava mais. Dias atrás, telefonei para ele e disse isso.

O que ele achou?

Depois que conseguiu se recuperar do susto, foi ótimo. Tive mos uma conversa boa e amistosa: contamos novidades, falamos nos cursos que damos, nos alunos que temos em comum, na possibilidade de dar aulas em dupla. Foi bom. Ele disse que eu parecia diferente.

Ótima notícia, Pam — comentou Julius. — Largar a raiva é um enorme progresso. Concordo que você fica muito ligada nas suas raivas. Gostaria que déssemos uma olhada nesse processo de deixar coisas de lado para termos uma referência, entender como você conseguiu.

Foi sem querer. Acho que está ligado à sua frase "malhe com ferro frio". Meus sentimentos em relação a John esfriaram o suficiente para dar distância e eu pensar racionalmente.

E o que você tem a dizer da sua raiva de Philip? — perguntou Rebecca.

Você não deve ter pesado a monstruosidade que ele me fez.

Não é verdade, eu tive pena de você, me doeu quando você contou. Foi horrível o que você passou, mas não tem quinze anos? As coisas costumam esfriar depois de quinze anos. Por que esse ferro continua em brasa?

Na noite passada, eu estava cochilando e pensei no meu caso com Philip; ele entrou na minha cabeça, invadiu meus pensamentos e se espatifou no chão. Então eu me vi olhando para o chão e examinando os cacos. Vi a cara dele, seu apartamento sem graça, minha juventude estragada, minha desilusão com a vida universitária, a amizade de Molly que perdi e, enquanto olhava aquela pilha de destroços, vi que tudo aquilo era... imperdoável.

Lembro de Philip dizer que não perdoar e imperdoável são duas coisas diferentes, não é, Philip? — perguntou Stuart.

Philip concordou com a cabeça.

Não sei se entendi — disse Tony.

Imperdoável deixa a responsabilidade fora de você, enquanto não perdoar coloca a responsabilidade em quem não quer perdoar — explicou Philip.

Tony fez sinal de entender. — É a diferença entre assumir a responsabilidade pelo que faz ou culpar o outro?

Exatamente. E, como disse Julius, a análise termina quando acaba a culpa e surge a responsabilidade — disse Philip.

Só para citar Julius de novo, Philip, gostei do que você disse — acrescentou Tony.

Você melhora o que eu digo. E mais uma vez, sinto que você se aproxima, Philip. E gosto — disse Julius.

Philip sorriu de forma quase imperceptível. Quando ficou claro que não ia dizer mais nada, Julius se dirigiu a Pam: — Como está se sentindo?

— Para ser sincera, fico pasma como as pessoas se esforçam para ver mudanças em Philip. Ele empina o nariz e todo mundo faz oooh! e aaah! A arrogância dele é ridícula e como as observações bobas que faz causam uma tal comoção. — Imitando Philip, ela repetiu em ritmo monótono — A análise termina quando acaba a culpa. — Depois, mais alto: — E a sua responsabilidade, onde está, Philip? Não disse uma porra sobre isso, só besteira sobre alteração de células cerebrais e, portanto, que não foi você quem fez aquilo. Não, você não esteve lá.

Após um silêncio estranho, Rebecca disse, gentil: —Pam, quero deixar claro que você pode perdoar. Perdoou uma série de coisas, disse que perdoou meu passeio pela prostituição.

— A única vítima foi você — respondeu Pam, rápido. Rebecca continuou: — Todos nós vimos como perdoou Julius na hora, sem nem perguntar se prejudicou alguma amiga por transar com ela.

Pam suavizou a voz. — Julius tinha acabado de ficar viúvo. Estava chocado. Imagine o que é perder uma pessoa que ele amava desde o colégio. Dá um tempo para ele.

Bonnie alfinetou: — Você perdoou Stuart pela transa com a mulher bêbada, perdoou até Gill por esconder de nós o alcoolismo tanto tempo. Perdoou à beça. Por que não perdoa Philip?

Pam balançou a cabeça. — É diferente perdoar alguém pelo que fez com outro e perdoar pelo que fez com você.

O grupo ouviu, solidário, mas insistiu: — Pam — disse Rebecca —, eu a perdôo por querer que John largasse os dois filhos pequenos.

Eu também — disse Gill. — E perdôo pelo que fez com Tony aqui. Você também se perdoa por atirar na cara dele aquele dia de confissão e terminar o caso com ele em público? Aquilo foi humilhante.

Já pedi desculpas aqui por não falar com ele antes da confissão. Foi imprudência minha.

Gill insistiu: — Tem mais: você se perdoa por usar Tony?

Usar Tony? Eu usei Tony? O que você está dizendo?

Parece que o caso foi uma coisa para ele (bem mais importante) e outra para você. Parece que você não estava se incomodando muito com Tony, mas com os outros, talvez até com Philip através de Tony.

Ah, essa idéia ridícula de Stuart, nunca fiz isso — disse Pam.

Usado? Você acha que fui usado? — perguntou Tony. — Não tenho nada a reclamar, podem me usar assim quando quiserem.

Calma, Tony, chega de brincadeiras. Pare de pensar com a cabecinha — disse Rebecca.

Cabecinha?

Isso, a cabeça do pau.

Tony deu uma risada lasciva e Rebecca atacou: — Filho da puta, você entendeu o que eu disse! Só queria que eu falasse. Não brinque, Tony, temos pouco tempo. Você não pode dizer que não se incomodou com o que Pam disse.

Tony parou de rir. — Bom, levar o fora de repente fez, sabe, que me sentisse jogado. Mas ainda tenho esperanças.

Tony, você ainda tem muito a aprender sobre mulher. Pare de implorar, é humilhante. Disse que as mulheres podem usar você como quiserem porque só quer uma coisa delas: transar. Isso deprecia você e elas também.

Não achei que estivesse usando Tony — disse Pam. — Tudo me pareceu recíproco. Mas, para ser sincera, quando falei aqui, não pensei muito. Liguei o piloto automático.

Como eu faço há muito tempo. Piloto automático — disse Philip, baixo.

Pam ficou pasma. Olhou um instante para Philip e baixou o olhar.

— Quero perguntar-lhe uma coisa — disse Philip.

Como Pam não olhou, ele repetiu: — Uma pergunta para você, Pam. Pam levantou a cabeça e encarou-o. Os outros se entreolharam.

Há vinte minutos, você disse que se desiludiu com a vida universitária. Mas há poucas semanas disse também que quando quis se especializar, pensou muito em fazer filosofia, até numa tese sobre Schopenhauer. Sendo assim, pergunto: será que fui um professor tão ruim?

Eu jamais disse que foi um mau professor. Você foi um dos melhores professores que já tive — respondeu Pam.

Surpreso, Philip olhou sério para ela.

— Diga o que está sentindo, Philip — pediu Julius.

Philip não quis responder e Julius disse: — Você lembra tudo, de cada palavra que Pam diz. Acho que ela é bem importante para você.

Philip continuou calado.

Julius virou-se para Pam. — Estou pensando nas suas palavras, que Philip foi um dos melhores professores que teve. Por isso deve ter se desapontado e se sentido mais enganada.

— Acertou. Obrigada, Julius, você está sempre atento.

Stuart repetiu o que ela disse. — Um dos melhores professores que teve Estou totalmente pasmo por você dizer algo tão... generoso para Philip. Um grande progresso.

— Não aumente as coisas — disse Pam. — Julius acertou na mosca. Por Philip ser um bom professor, o que ele fez foi, no mínimo, pior ainda.

Tony considerou o que Gill disse a respeito de sua relação com Pam e abriu a sessão seguinte dirigindo-se a ela: — Olha, é meio estranho, mas fiquei guardando meus sentimentos. Quer dizer, o que aconteceu conosco me deixou mais chateado do que admiti. Não fiz nada de errado com você, nós dois fomos para a cama e agora eu sou a person non grata...

Persona non grata — corrigiu Philip, baixo.

Persona non grata — repetiu Tony e continuou: — E parece que estou sendo castigado. A gente se separou e eu não entendi. Éramos amigos, depois namorados, e agora estou numa espécie de purgatório, você foge de mim. Gill tem razão: levar o fora em público foi humilhante à beça. Fiquei sem nada: nem cama, nem amizade.

Ah, Tony, me perdoa. Eu errei, eu, nós nunca devíamos ter feito isso. Para mim também está esquisito.

Que tal a gente voltar ao começo?

Voltar para onde?

Sermos amigos, mais nada. Sair depois da sessão, como todo mundo faz, exceto meu companheiro Philip que está se aproximando. — Tony esticou a mão e deu um aperto carinhoso no ombro de Philip. — Sabe, voltarmos a conversar sobre o grupo, comentar de livros, essas coisas.

Parece uma atitude adulta — respondeu Pam. — E seria a primeira vez, porque depois que tenho um caso, sempre dou uma cortada no cara.

Bonnie se ofereceu para falar. — Fico pensando, Pam, se mantém distância de Tony por medo de ele interpretar uma proposta de amizade como um convite para sexo.

É, isso mesmo, tem muito disso. Tony só pensa numa coisa.

Bom, a solução é óbvia: explique. Seja clara, a indefinição piora tudo. Algumas semanas atrás, ouvi você dizer que pode ser que fiquem juntos depois que o grupo terminar. E isso mesmo ou só uma forma de amenizar o tranco? Aquela promessa só serve para atrapalhar a situação, deixa Tony perdido.

Isso mesmo — disse Tony. — Foi ótimo você dizer há umas semanas que podemos continuar um dia. Tento deixar as coisas como estão para manter essa possibilidade.

Com isso, você perde a oportunidade de trabalhar seus problemas enquanto esse grupo e eu ainda estamos aqui — disse Julius.

Sabe, Tony, transar não é a coisa mais importante do mundo, não é a única coisa — disse Rebecca.

— Eu sei, eu sei, por isso estou falando agora. Me dá um tempo. Após um pequeno silêncio, Julius disse: — Tony, então continue trabalhando nisso.

Tony olhou para Pam. — Vamos fazer o que Gill sugeriu e esclarecer as coisas. O que você quer, Pam?

— Quero voltar ao começo. Quero que me perdoe pelo constrangimento de forçar você a contar uma coisa. Você é um sujeito ótimo, Tony, gosto de você. Outro dia ouvi meus alunos da faculdade usarem essa nova gíúaficarcom alguém, acho que foi o que fizemos e foi bom na hora, mas agora não é mais, nem no futuro, pois o grupo é mais importante. Vamos nos concentrar em resolver nossos problemas.

Por mim, tudo bem, aceito.

Então, Tony, você está liberado, pode falar tudo o que tem deixado de dizer sobre você, Pam ou o grupo — sugeriu Julius.

Nas sessões restantes, o liberado Tony voltou ter seu papel no grupo. Instigou Pam a lidar com seus sentimentos em relação a Philip. Havia uma possibilidade de ela brigar com Philip depois de elogiá-lo como professor, mas isso não ocorreu. Tony então insistiu para ela pensar por que continuava com tanta raiva de Philip, embora conseguisse perdoar outras pessoas do grupo.

Pam respondeu: — Já falei que é mais fácil perdoar gente como Rebecca, Stuart ou Gill porque não fui vítima deles. O que fizeram não alterou minha vida. E mais: posso perdoar outros aqui porque eles se mostraram arrependidos e, acima de tudo, porque mudaram.

— Eu mudei, hoje acredito que é possível perdoar a pessoa, mas não o que ela fez. Acho que poderia perdoar Philip se ele tivesse mudado. Só que não mudou. Perguntaram como pude perdoar Julius. Bom, pois olhem para ele: é uma pessoa que não pára de dar. E tenho certeza que vocês todos já perceberam que ele está nos dando uma última dádiva de amor: está nos ensinando a morrer. Conheci o Philip de antes e posso garantir que é o mesmo que está aqui. No máximo, está só mais frio e mais arrogante.

Após uma breve pausa, ela acrescentou: — E não faria mal algum se ele me pedisse desculpas.

— Philip não mudou? — perguntou Tony. — Acho que você está vendo o que quer. Ele não corre mais atrás de mulheres, isso mudou. — Tony então virou-se para Philip: — Você não disse, mas mudou, não?

Philip concordou. — Mudei muito, há doze anos não transo.

Isso não é mudança? — perguntou Tony para Pam.

Ou reforma? — perguntou Gill.

Antes que Pam pudesse responder, Philip interrompeu. — Reforma? Não, é incorreto. Não houve a intenção de reformar. Explico: não mudei minha vida ou, como foi dito aqui, meu vício em sexo, por alguma decisão moral. Mudei porque minha vida estava um desespero que não dava mais para agüentar.

— Como deu esse passo? Houve alguma gota d’água? — perguntou Julius.

Philip ficou sem saber se respondia. Depois, respirou fundo e começou a falar mecanicamente como se fosse movido à corda: — Uma noite, eu estava voltando para casa de carro após uma longa orgia com uma mulher lindíssima e concluí que tinha conseguido o que queria. Estava saciado. O carro, eu, tudo cheirava a sexo: minhas mãos, meus cabelos, minhas roupas, meu hálito. Era como se eu tivesse entrado numa banheira de sais aromáticos de mulher. E aí, no fundo da minha cabeça, percebi que o desejo estava voltando, pronto para atacar de novo. Foi essa a gota d’água. De repente, fiquei enjoado da minha vida e vomitei. Então — Philip virou-se para Julius — lembrei do que você disse do epitáfio. E vi que Schopenhauer tinha razão: a vida é um sofrimento eterno e o desejo é insaciável. A roda do sofrimento não pára de girar, eu tinha de dar um jeito de sair dela e foi aí que resolvi pautar minha vida pela de Schopenhauer.

E deu certo durante todos esses anos? — perguntou Julius.

Até agora, até eu vir para o grupo.

Você melhorou tanto, Philip — disse Bonnie. — Está tão mais acessível, tão mais afável. Vou ser sincera, do jeito que você era quando começou aqui, eu não via ninguém consultando você como terapeuta, nem mesmo eu.

Infelizmente — respondeu Philip —, estar acessível aqui significa que preciso saber das desgraças de todo mundo, o que só aumenta a minha. Diga, como esse acessível pode ser útil? Quando eu estava na vida, estava péssimo. Nos últimos doze anos fui um visitante, um observador da vida que se passava na minha frente e vivi num mar de tranqüilidade. — Philip levantou e abaixou as mãos abertas para ilustrar o mar. — Agora que este grupo me obrigou a voltar à vida, estou de novo angustiado. Contei da agitação que tive depois do grupo, algumas semanas atrás. Ainda não voltei à calma de antes.

Acho que há um erro no que você falou, Philip — disse Stuart. — Tem a ver com estar na vida.

Bonnie se adiantou. — Eu ia dizer isso. Acho que você nunca esteve na vida realmente. Você nunca falou num verdadeiro relacionamento. Não ouvi nada sobre amigos e, quanto a mulheres, você disse que era um destruidor.

— E mesmo, Philip? Nunca teve um relacionamento para valer? — perguntou Gill.

Philip balançou a cabeça. — Todas as pessoas com as quais me relacionei me magoaram.

Seus pais? — perguntou Stuart.

Meu pai era uma pessoa distante e, acho, com depressão crônica. Suicidou-se quando eu tinha treze anos. Minha mãe morreu há poucos anos, mas eu estava afastado dela há vinte. Não fui ao enterro.

— Não tem irmãos? — perguntou Tony. Philip balançou a cabeça. — Sou filho único.

— Sabe o que pensei? — interrompeu Tony. — Quando eu era pequeno, quase não comia o que minha mãe fazia. Só dizia: "Não gosto disso" e ela sempre perguntava: "Como pode não gostar, se não provou?". A sua vida me lembra isso.

Philip respondeu: — Podemos conhecer muitas coisas apenas através da razão. A geometria, por exemplo. Ou alguém pode ter uma experiência dolorosa e concluir a partir dela, ou pode olhar, ler, observar os outros.

Mas o seu amado Schopenhauer não disse que conseguiu muita coisa ouvindo o próprio corpo, sentindo, como foi que você disse? A experiência do momento?

A experiência imediata.

Isso, a experiência imediata. Não acha que você está decidindo uma coisa importante com base em informações de segunda mão, quer dizer, informações que não são sua experiência imediata?

A pergunta é pertinente, Tony, mas tive uma experiência direta depois daquele dia da confissão aqui.

Você se refere àquela sessão outra vez, Philip. Parece que ela foi um ponto de mutação — disse Julius. — Talvez seja hora de contar o que houve com você naquele dia.

Como antes, Philip parou, respirou fundo e passou a contar de maneira metódica o que ocorreu após aquela sessão. Quando falou na agitação que sentiu, sem conseguir dominar suas técnicas para se tranqüilizar, ficou bastante nervoso. E ao falar que o assunto não lhe saía da cabeça, ficou grudado, gotas de suor brilharam na sua testa. Ao falar no ressurgimento de seu "eu" predador e agressivo, a camisa ver-melho-claro ficou manchada nas axilas e o suor escorreu pelo queixo, o nariz e o pescoço. A sala ficou parada, estavam todos impressionados com a torrente de palavras e a transpiração.

Ele parou de falar, respirou fundo outra vez e continuou: — Fiquei pensando coisas sem sentido, as imagens surgiam confusas na minha cabeça, coisas esquecidas há muito tempo. Lembrei de meus dois encontros com Pam. E vi o rosto dela, não o de agora, mas o de quinze anos atrás, como uma nitidez enorme. Era um rosto radiante, eu queria segurar aquele rosto e... — Philip não conseguia segurar mais nada, seu ciúme, o desejo de homem das cavernas de possuir Pam, nem a imagem de Tony com músculos de Popeye. Ele transpirava sem parar e ficou totalmente molhado de suor. Levantou-se e saiu da sala dizendo: — Estou encharcado, preciso sair.

Tony foi atrás dele. Dois ou três minutos depois, os dois voltaram, Philip usando a camisa do San Francisco Giants de Tony e este só com sua camiseta preta e justa.

Philip não olhou para ninguém; desmontou na cadeira exausto, sem dúvida.

Ressuscita ele — disse Tony.

Se eu não fosse casada, me apaixonava pelos dois, pelo que acabaram de fazer.

Eu estou solto na área — disse Tony.

Sem comentários — disse Philip. — Para mim, chega por hoje. Não tenho mais uma gota a dizer.

Uma gota? Essa é sua primeira piada aqui. Adorei — disse Rebecca.

 

Alguns não conseguem se libertar dos seus próprios grilhões, mas conseguem libertar os amigos.

— Nietzsche

A FAMA, ENFIM

Poucas coisas foram tão menosprezadas por Schopenhauer quanto o desejo de fama. Mesmo assim, ah, como ele a desejava!

A fama tem papel importante em seu último livro, Parerga e Paralipomena, dois volumes de observações esparsas, ensaios e aforismos, completado em 1851, nove anos antes de sua morte. Com uma enorme sensação de missão cumprida e alívio, ele terminou o livro e declarou: — Vou enxugar a pena da minha caneta e dizer "o resto é silêncio".

Mas encontrar um editor era um desafio e nenhum dos que teve antes aceitou a proposta, pois perderam muito dinheiro nos outros livros, que encalharam. Mesmo sua obra máxima, O mundo como vontade e representação, vendeu pouco e teve uma única e opaca resenha. Até que um de seus fiéis apóstolos convenceu um livreiro de Berlim a imprimir 750 exemplares, em 1853. Schopenhauer receberia dez exemplares de graça, mas nenhum direito autoral.

O primeiro volume de Parerga e Paraliponema contém uma notável trinca de ensaios sobre como ganhar e manter a auto-estima.

O primeiro ensaio, O que é o homem, mostra como o pensamento criativo proporciona uma riqueza interior, que por sua vez confere auto-estima e permite que se vença o vazio e o tédio da vida, causadores de seguidas conquistas sexuais, viagens sem fim e jogos de azar, diz o autor.

O segundo ensaio, O que o homem tem, analisa uma das maiores compensações para a pobreza interior: o acúmulo de bens que acabam fazendo com que a pessoa seja possuída por suas posses.

O terceiro ensaio, O que o homem representa, mostra melhor a sua visão a respeito da fama. A auto-estima ou mérito interior é o que importa, daí a fama ser algo secundário, mera sombra do mérito. "Não é a fama, mas o que merecemos que realmente vale. (...) a maior felicidade do homem não é que a posteridade vá saber alguma coisa sobre ele, mas se ele vai ter idéias que merecem ser consideradas e mantidas por séculos". A auto-estima baseada no mérito interior resulta numa autonomia que não pode ser tirada de nós (fica em nosso poder), enquanto a fama jamais está em nosso poder.

Ele sabia que não querer a fama é difícil; comparava essa negação a "extrair um doloroso espinho de nossa carne" e concordava com Tácito, que escreveu: "O homem sensato deve deixar por último a sede de fama". E ele jamais conseguiu deixar de lado essa sede. Seus escritos são cheios de amargura por ele não ter alcançado o sucesso. Costumava ler jornais e publicações em busca de alguma citação ou menção a ele e sua obra. Sempre que viajava, deixava a tarefa a cargo de Julius Frauenstädt, seu apóstolo mais fiel. Embora não parasse de reclamar de ser ignorado, acabou se conformando com o anonimato. No prefácio de seus últimos livros, ele se dirigiu às futuras gerações que o descobririam.

Então, o inesperado aconteceu. O livro Parerga e Paralipomena, que falava na insensatez de perseguir a fama, deu fama ao autor. Nessa obra derradeira, ele abrandou o pessimismo, diminuiu as lamentações e deu conselhos sensatos de como viver. Embora continuasse acreditando que "a vida é apenas um camada fina de mofo sobre a superfície da Terra" e "uma alteração na ditosa calma do nada", seguiu um rumo mais prático em sua última obra. Como somos obrigados a viver, escreveu ele, devemos sofrer o menos possível. (Schopenhauer sempre viu a felicidade como um fato negativo — era a falta do sofrimento — e valorizava a máxima de Aristóteles: "O homem prudente não aspira ao prazer, mas à ausência da dor".)

Assim, Parerga e Paralipotnena ensina como pensar com independência, como manter o ceticismo e a razão, como evitar buscar emolientes sobrenaturais, como pensar bem de nós mesmos, ter ambições pequenas e evitar se apegar ao que se pode perder. Embora "todo mundo deva atuar no teatro de marionetes da vida e sentir o arame que nos mantém em movimento", há certo consolo na perspectiva sublime do filósofo de que, em relação à eternidade, nada importa. Tudo passa.

Parerga e Paralipomena traz um outro tom. Embora continue a destacar o trágico e lamentável sofrimento da vida, traz a idéia da ligação, isto é, de que através do sofrimento nos ligamos aos outros. Num importante trecho, o grande misantropo mostra uma visão mais suave e indulgente de seus companheiros bípedes.

O tratamento mais adequado entre dois homens não deveria ser "Senhor, Sir, Monsieur, masmeu companheiro sofredor". Por estranho que pareça, estaria de acordo com os fatos, pondo o outro na luz adequada e nos lembrando do que é mais necessário: a tolerância, a paciência e o amor pelo próximo que todos precisam e, portanto, todos se devem.

Poucas frases depois, ele acrescenta uma idéia que poderia servir também na abertura de um livro de psicoterapia hoje.

Devemos encarar com tolerância toda loucura, fracasso e vício dos outros, sabendo que encaramos apenas nossa própria loucura, fracasso e vício. Pois eles são os fracassos da humanidade à qual também pertencemos e assim temos os mesmos fracassos em nós. Não devemos nos indignar com os outros por esses vícios apenas por não aparecerem em nós naquele momento.

Parerga e Paralipomena foi um grande sucesso e foram feitas inúmeras seleções de textos, publicadas separadamente com títulos mais populares (Aforismos de sabedoria prática, Conselhos e máximas, Sabedoria de vida, Pensamento vivo de Schopenhauer, A arte da literatura, Religião: um diálogo). Em pouco tempo, Schopenhauer estava na boca de todo alemão instruído. Até na vizinha Dinamarca, o filósofo Kierkegaard escreveu em seu diário, em 1854, que "o assunto literário do momento é S., jornalistas e escritorzinhos começam a se interessar por ele.

Começam também a aparecer elogios na imprensa. A Inglaterra, onde ele quase nasceu, foi a primeira a dedicar-lhe uma ótima resenha de sua obra completa com o título de Iconoclasta na filosofia alemã, publicada no respeitado Westminster Review. Pouco depois, a resenha foi traduzida e muito lida na Alemanha. Artigos parecidos logo apareceram na França e Itália, e a vida de Schopenhauer mudou por completo.

Curiosos entravam aos bandos no restaurante Englisher Hof para ver o filósofo almoçar. Richard Wagner mandou-lhe o libreto original da ópera Anel dos Nibelungos com dedicatória. As universidades começaram a ensinar sua obra, ele recebia convites para participar de sociedades culturais e cartas elogiosas chegavam pelo correio; seus livros anteriores ressurgiram nas livrarias, os habitantes de Frankfurt o cumprimentavam na rua e as lojas de animais de estimação tiveram enorme procura depoodles iguais ao de Schopenhauer.

Era óbvio o enlevo e alegria do filósofo. "Quando alguém passa a mão no pêlo de um gato, ele ronrona. Da mesma forma, quando se elogia um homem, seu rosto reflete um doce enlevo e alegria." Schopenhauer esperava que "o sol matinal de minha fama doure com seus raios o entardecer da minha vida e dissipe sua melancolia". A famosa escultora Elisabeth Ney passou quatro semanas em Frankfurt para fazer um busto dele, e Schopenhauer ronronou: — Ela trabalha o dia todo na minha casa. Quando chego, tomamos café juntos, sentamos no sofá e me sinto como se fosse casado.

Desde a melhor época de sua vida (os dois anos passados no Havre, com os Blesimaire), Arthur não falava com tanta ternura e satisfação na vida doméstica.

 

Ao chegar ao fim da vida, nenhum homem sincero e de posse de suas faculdades vai desejar viver de novo. Preferirá morrer para sempre.

Na penúltima sessão, as pessoas entraram na sala com sentimentos diversos: algumas estavam tristes porque o grupo ia acabar logo; outras, pensavam nos problemas pessoais que deixaram de abordar; outras, ainda, olhavam para Julius como se fossem gravar o rosto dele na memória. E todas estavam muito curiosas para ver como Pam reagiria às revelações de Philip na sessão anterior.

Mas, em vez de satisfazer essa curiosidade, Pam tirou um papel da bolsa, desdobrou-o devagar e leu alto:

Um carpinteiro não vai me dizer: "Ouça o discurso que escrevi sobre a arte da carpintaria". Ele se compromete a construir uma casa e constrói. (...) Seja assim você também: coma como um homem, beba como um homem. (...) case-se, tenha filhos, participe da comunidade, saiba como suportar as afrontas e os outros.

Depois, virando-se para Philip, perguntou: — Adivinhe quem escreveu isso?

Philip deu de ombros.

— O seu filósofo Epícteto, por isso eu trouxe. Sei que você o adora, essa é uma parábola dele. Por que citei? Estou tratando do tema levantado por Tony, Stuart e outras pessoas na semana passada ao dizerem que você nunca viveu. Acho que os textos de filósofos que você escolheu foram para confirmar a sua opinião e...

Gill interrompeu. — Pam, essa é nossa penúltima sessão. Se você vai fazer mais um dos seus ataques a Philip, não tenho tempo para isso. Faça o que está mandando: seja objetiva e diga o que sente. Deve ter muito a comentar do que Philip falou na sessão passada.

Não, não, escute — respondeu Pam, rápido. — Não é um ataque a Philip. Minha intenção é outra. O ferro está esfriando, quero dizer alguma coisa que seja útil para Philip. Acho que ele foge da vida apoiando-se na filosofia. Usa Epícteto conforme lhe convém ou não.

Boa observação, Pam — disse Rebecca. — Tocou numa coisa importante. Comprei num sebo um livrinho chamado A sabedoria de Schopenhauer, que leio há duas noites. Tem de tudo, coisas ótimas e péssimas. Li ontem um trecho que me arrasou, onde ele diz que, se entrarmos num cemitério, batermos nas lápides e perguntarmos aos espíritos lá dentro se gostariam de voltar a viver, todos diriam enfaticamente que não. — Virou-se para Philip e perguntou: — Você acha que seria assim? — Sem esperar a resposta, Rebecca continuou: —- Bem, eu não. Não é o meu caso, mas queria conferir com vocês. Vamos votar?

Eu gostaria de viver de novo. A vida é uma merda, mas também é ótima — disse Tony. O grupo concordou em coro e Julius atalhou: — Só fico em dúvida numa coisa: passar de novo pela dor da morte de minha mulher. Mesmo assim, eu aceitaria, gosto muito de viver. — Só Philip continuou calado.

Desculpem, mas concordo com Schopenhauer — disse ele. — A vida é um sofrimento do princípio ao fim. Seria melhor não haver nenhuma forma de vida.

Melhor para quem? — perguntou Pam. — Para Schopenhauer, você quer dizer? Parece que para as pessoas dessa sala, não.

Não é só Schopenhauer quem acha. Pense nos milhões de budistas para os quais a primeira das quatro grandes verdades é "a vida é sofrimento."

Fala sério, Philip? O que houve com você? Quando fui sua aluna, você discorria com entusiasmo sobre métodos de discussão filosófica. Que método é esse? A verdade por decreto? Por uso da autoridade? É como a religião faz, mas você sem dúvida segue Schopenhauer no ateísmo. Será que lembrou que Schopenhauer tinha depressão crônica e que Buda viveu num tempo e num lugar em que havia muito sofrimento causado pela peste e a fome? E que, para a maioria das pessoas, a vida era realmente um sofrimento sem-fim? Será que pensou...

Que método de discussão filosófica é esse? — reagiu Philip.

— Qualquer aluno mediano sabe a diferença entre síntese e eficácia de discussão.

— Um momento, um momento — pediu Julius. — Vamos parar um instante e conferir. — Olhou cada uma das pessoas no grupo.

— Como os outros estão se sentindo com isso?

Boa idéia. Eles estavam se esmurrando, mas com luvas de pelica — disse Tony.

É melhor do que lançar olhares fulminantes — disse Gill.

É, eu também prefiro — concordou Bonnie. — Voavam faíscas entre Pam e Philip, mas eram menos incandescentes.

Concordo, mas só até dois minutos atrás, quando a coisa mudou — disse Stuart.

Stuart, na sua primeira sessão aqui, você disse que sua mulher o acusava de falar frases telegráficas — disse Julius.

É, você hoje está de poucas palavras, se usar mais algumas não vai lhe custar nada — disse Bonnie.

Está bem, pode ser que eu esteja regredindo porque... esta é a penúltima sessão. Não sei, não estou triste; como sempre, tenho de supor meus sentimentos. Só sei, Julius, que gosto de você cuidar de mim, me cobrar, tratar do meu caso. Fui claro?

Foi ótimo e eu vou continuar cuidando. Você disse que gostou da conversa de Pam com Philip até dois minutos atrás. Por quê?

No começo, parecia uma boa discussão, como aquelas brigas de família. Mas o último comentário de Philip foi desagradável: qualquer estudante mediano sabe disso. Não gostei, Philip. Foi estúpido e, se você me dissesse isso, eu ficaria ofendido. E ameaçado, pois não sei nem o que quer dizer discussão filosófica.

— Concordo com Stuart — disse Rebecca. — Escute, Philip, o que você estava sentindo? Queria ofender Pam?

Ofender? Não, nem um pouco. Era a última coisa que eu pretendia — respondeu Philip. — Fiquei... hum... aliviado (não sei bem que palavra usar), quando ela disse que o ferro não estava mais em brasa. O que mais senti? Sabia que uma das razões para ela trazer um texto de Epícteto era me confundir. Óbvio. Mas lembrei do que Julius disse quando eu trouxe aquela fábula para ele: que estava contente com meu esforço e com o afeto que havia por trás do gesto.

Bom, vou falar como Julius costuma dizer — disse Tony. — Parece que você queria dizer uma coisa, mas disse outra.

Philip fez cara de não ter entendido. Tony explicou:

— Você disse que ofender Pam era a última coisa que pretendia, mas ofendeu, não?

Relutante, Philip concordou.

Então — continuou Tony, parecendo um advogado triunfante comparando provas —, você precisa colocar a intenção e a ação no mesmo nível. É preciso que sejamcongruentes, será essa a palavra? — Tony olhou para Julius, que concordou. — E talvezpor isso você devia fazer terapia. A terapia trata de congruência.

Bem argumentado — disse Philip. — Não tenho nenhum contra-argumento. Você está certo, é por isso que preciso de terapia.

O quê? — perguntou Tony, sem acreditar no que ouviu. Olhou para Julius, que fez cara de quem diz "esse sujeito é um espanto".

Me segurem, vou desmaiar — disse Rebecca, desmontando na cadeira.

Eu também — disseram Bonnie e Gill, desmontando também.

Philip deu uma olhada na metade do grupo que fingia estar desmaiado e, pela primeira vez desde que entrou lá, sorriu. Depois, acabou com a brincadeira voltando ao tema tipo de orientação. — A discussão de Rebecca a respeito da lápide de Schopenhauer mostra que a minha visão ou de qualquer outra pessoa sobre o que ele disse é inválida. Lembrem que eu passei anos sofrendo muito com algo que Julius não pôde curar e só consegui seguindo os conselhos de Schopenhauer.

Na mesma hora, Julius concordou com Philip. — Não nego que você fez um bom trabalho. A maioria dos terapeutas hoje acredita ser impossível vencer sozinho uma grave obsessão por sexo. O tratamento é bem longo, ou seja, dura anos, e o programa de recuperação consiste em análise individual e de grupo várias vezes por semana, em geral similares ao "princípio dos doze passos", dos A.A. Mas naquela época ainda não existia um programa de recuperação e, sinceramente, não acredito que você fosse aceitá-lo.

Portanto, quero registrar que foi um grande feito seu: as técnicas que você usou para controlar seus impulsos funcionaram melhor do que tudo que ofereci, por mais que me esforçasse.

Tenho certeza de que se esforçou ao máximo — disse Philip.

Uma pergunta, Philip: será que seus métodos não estão obsoletos?

Ob... o quê? — perguntou Tony.

Obsoleto, do latim obsoleo, estar fora de uso — cochichou Philip, que estava sentado ao lado de Tony.

Tony agradeceu com um aceno de cabeça.

Outro dia — continuou Julius —, fiquei pensando como dizer isso a você; imaginei então uma cidade antiga que construiu uma muralha para se proteger das inundações de um rio. Séculos depois, o rio já estava seco há muito tempo, mas a cidade ainda gastava muito dinheiro na conservação da muralha.

Você fala de continuar usando uma solução, apesar de o problema ter acabado — disse Tony. — Como colocar um curativo num machucado que já sarou.

Exatamente, talvez o curativo seja uma metáfora melhor — disse Julius.

Discordo — disse Philip para Julius e Tony. — Meu machucado não está curado, ainda exige cuidados. A prova é que fico pouco à vontade no grupo.

Esse não é um bom exemplo. Você não tinha experiência em ficar próximo, em demonstrar sentimentos, em ter retorno do que fala ou faz e em se abrir com os outros. Isso é novo para você, que viveu ensimesmado anos e eu joguei você no meio desse grupo forte. Claro que tinha de ficar pouco à vontade. Mas quero falar do seu problema manifesto, a obsessão sexual que talvez tenha acabado. Você está mais velho, passou por muita coisa, deve ter chegado à terra da calmaria se xual. É um lugar ótimo, clima bom, ensolarado. Estou nele há anos.

— Eu diria que Schopenhauer curou você, mas agora você precisa se curar dele — disse Tony.

Philip abriu a boca para responder, mas fechou e refletiu sobre o que Tony disse.

— Outra coisa: quando pensar no seu mal-estar no grupo — continuou Julius —, lembre da dor e da culpa que você enfrentou aqui por causa de um encontro casual no passado.

— Não ouvi nada sobre culpa da parte dele — disse Pam. Philip respondeu na hora, encarando Pam. — Se eu tivesse sabido

na época dos anos que você ficou sofrendo, não faria o que fiz. Como já disse, foi falta de sorte você cruzar o meu caminho. A pessoa que eu era não pensava nas conseqüências. Eu vivia no piloto-automático.

Pam concordou e ficou olhando para ele. Philip encarou-a um instante e depois voltou a atenção para Julius. — Entendo o que diz do enorme estresse nesse grupo, mas insisto que isso é só parte da história. É aí que discordamos na orientação. Concordo que o relacionamento com os outros é difícil e, provavelmente, gratificante também, embora eu não tenha essa experiência. Mesmo assim, tenho certeza que viver é difícil e sofrido. Permita que eu cite Schopenhauer um minuto.

Sem esperar resposta, Philip olhou para cima e começou a declamar:

O homem nunca é feliz, passa a vida inteira lutando por algo que acha que vai fazê-lo feliz. Não consegue e, quando consegue, fica desapontado: ele é um náufrago e chega ao porto de destino sem mastros nem cordâmes. Não interessa mais se ele foi feliz ou infeliz, pois a vida foi sempre apenas o presente, que estava sempre sumindo e agora terminou.

Após um longo silêncio, Rebecca disse: — Senti um frio na espinha.

— Entendi — disse Bonnie.

— Pareço uma nervosa professora de inglês — disse Pam, falando para todos. — Mas peço que não se iludam com a retórica. Aquele texto não acrescenta nada ao que Philip vem dizendo, só enfatiza. Schopenhauer tinha muito estilo e o melhor texto de todos os filósofos, depois de Nietzsche, claro. Ninguém escreveu melhor que Nietzsche.

Philip, quero responder seu comentário sobre a orientação que você e eu temos — disse Julius. — Não creio que estejamos tão distantes quanto você acha. Concordo bastante com o que você e Schopenhauer disseram sobre o drama da condição humana. Nossa discordância está no que fazer. Como viver? Como encarar o fato de sermos mortais? Como viver, sabendo que somos apenas formas de vida, jogadas num universo indiferente, sem qualquer finalidade definida?

Como você sabe — continuou Julius —, embora eu tenha mais interesse por filosofia do que a maioria dos terapeutas, não sou especialista. Mas sei de outros grandes pensadores que enfrentaram esses duros fatos e encontraram soluções bem diferentes das de Schopenhauer. Falo especialmente de Camus, Sartre e Nietzsche, que defendem a ação, em vez da resignação de Schopenhauer. O filósofo que conheço melhor é Nietzsche. Como você sabe, assim que soube da minha doença e entrei em pânico, abri Assim falou Zaratustra e fiquei ao mesmo tempo calmo e inspirado, sobretudo pelo comentário que celebra a vida, dizendo que devemos viver de forma que possamos aceitar, se nos oferecerem viver outra vez e mais outra, exatamente do mesmo jeito.

Por que essa idéia lhe deu alívio? — perguntou Philip.

Pensei na minha vida e senti que tinha vivido direito, não tinha arrependimentos, embora, claro, detestasse o fato de minha mulher ter morrido. O livro me ajudou a resolver como eu deveria viver o tempo que me restava: continuando a fazer exatamente o que sempre deu prazer e teve sentido para mim.

Não sabia desse fato entre você e o livro de Nietzsche, Julius — disse Pam. — Fico ainda mais próxima de você porque Zaratustra, melodramático como é, continua sendo um dos meus livros preferidos. A frase que mais gosto é ele dizendo: "É isso a vida? Então, de novo ela!" Gosto de gente que abraça a vida e me irrito com quem se encolhe frente a ela. Estou me referindo a Vijay, na Índia. Acho que na próxima vez que eu colocar anúncio num consultório sentimental de revista feminina, vou citar a frase de Nietzsche e a da lápide de Schopenhauer e pedir para os candidatos escolherem. Assim fico sabendo quais são os derrotistas e quais os lutadores.

— Tenho outra frase que gostaria de mostrar. — Pam virou-se

para Philip. — É claro que, após a última sessão, pensei muito em você. Estou dando um curso de biografia e nas leituras da semana passada encontrei um trecho ótimo da biografia de Erik Erikson sobre Lutero. Diz mais ou menos o seguinte: "Lutero considerou a própria neurose como se fosse a de um paciente universal e depois tentou resolver em escala mundial o que não conseguiu resolver nele". Acho que Schopenhauer também cometeu esse grande erro e você foi atrás.

—Talvez — disse Philip, de forma conciliadora — a neurose seja uma construção social e precisemos de um tipo de terapia e de filosofia para cada tipo de pessoa: um, para os que apreciam a proximidade com os demais; outro, para os que preferem a vida intelectual. Pense, por exemplo, quanta gente vai a centros de meditação budista.

Queria comentar uma coisa com você, Philip — disse Bonnie. — Acho que sua visão do budismo é equivocada. Participei de retiros budistas cujo foco estava no exterior, isto é, valorizavam a bondade e a ligação com os outros, e não para dentro, a solidão. Um bom budista pode ser uma pessoa ativa, que está no mundo, até politicamente ativa, só por amor aos outros.

Então, está ficando mais claro — disse Julius — que seu erro de avaliação envolve também os relacionamentos humanos. Outro exemplo: você citou a visão de vários filósofos a respeito da vida e da morte, mas não o que eles (estou me referindo aos gregos) falaram sobre as alegrias àaphilia, a amizade. Lembro de um dos meus supervisores citar um trecho de Epicuro onde diz que a amizade é o ingrediente mais importante para uma vida feliz, e que fazer uma refeição sem a presença de um amigo era viver como um leão ou um lobo. E a definição de Aristóteles para amigo (aquele que incentiva e destaca o que o outro tem de melhor) é parecida com a idéia que faço do terapeuta ideal.

Philip, como está se sentindo? Será que estamos jogando muita coisa para cima de você de uma vez? — perguntou Julius.

Rebato dizendo que nenhum dos grandes filósofos jamais se casou, exceto Montaigne, que era tão desinteressado da família que não sabia direito quantos filhos tinha. Mas, como só temos uma sessão, de que adianta dizer isso? É difícil gostar de ouvir ataques ao meu curso e a tudo o que planejo oferecer como orientador.

Acho que isso não é verdade. Você pode ajudar em muita coisa, da mesma forma que ajudou as pessoas aqui. Não é? — perguntou Julius, olhando o grupo.

Depois que muitas cabeças concordaram com firmeza, Julius continuou: — Mas, se você quer ser orientador, precisa entrar no mundo social. Gostaria de dizer que muitos, até a maioria dos que vão procurá-lo, precisarão de ajuda nos relacionamentos pessoais, e, se você quer viver desse trabalho, tem que entender muito do assunto, não há outro jeito. Dê uma olhada no grupo: todos entraram aqui devido a relacionamentos complicados. Pam, por problemas com os homens, Rebecca porque sua aparência influenciava sua relação com os outros, Tony por causa de uma relação destrutiva com Lizzy e brigas com outros homens. O mesmo motivo para todos os demais integrantes do grupo.

Julius pensou e resolveu incluir os que faltavam. — Gill veio por causa de conflitos conjugais. Stuart, porque a mulher ameaçava deixá-lo, Bonnie por solidão, problemas com a filha e o ex-marido. Como você vê, não se pode ignorar os relacionamentos. E lembre-se, foi por isso também que insisti para você entrar no grupo, antes de fazer sua supervisão.

Talvez eu não tenha jeito. Não tenho relacionamentos passados nem presentes. Não tenho família, amigos, nem namorada. Gosto da minha solidão, mas você se surpreenderia com o tamanho dela.

Algumas vezes, depois da sessão, convidei você para ir comigo à lanchonete, mas não aceitou. Pensei que tinha outro programa — disse Tony.

Há doze anos almoço e janto sozinho. Talvez tenha comido um sanduíche junto com alguém, não um almoço de verdade. Você tem razão, Julius. Epicuro devia achar que vivo como um lobo. Algumas semanas atrás, depois daquela sessão que me deixou tão transtornado, uma das coisas que pensei foi que a mansão de idéias que construí não tem aquecimento. O grupo é caloroso. Esta sala é quente, mas o lugar onde moro é um gelo. Quanto a amor, é coisa que desconheço.

Aquelas mulheres todas, centenas, que você comentou conosco — disse Tony. — Deve ter havido algum amor, você deve ter gostado de algumas, ou elas de você.

— Isso foi há muito tempo. Se alguma gostou de mim, tratei de evitá-la. E se me amaram, não gostaram de mim, do meu verdadeiro eu, mas da minha técnica.

— Qual é o seu verdadeiro eu? — perguntou Julius.

Philip respondeu, cada vez mais sério. — Lembra no que eu trabalhava quando nos conhecemos? Eu era um exterminador, um químico inteligente que descobriu como matar insetos usando os hormônios deles para impedir que se reproduzissem. Que tal essa ironia? O matador com a arma de hormônio.

— E qual é o seu verdadeiro eu? — insistiu Julius.

Philip olhou bem nos olhos de Julius. — É um monstro, um predador. Solitário. Matador de insetos. — Seus olhos lacrimejaram. — Cheio de ódio. Intocável. Ninguém que me conheceu gostou de mim. Jamais. Nem podia.

De repente, Pam levantou-se e foi até Philip. Fez sinal para Tony trocar de lugar, sentou-se ao lado de Philip e segurou na mão dele. Disse, carinhosa: — Eu podia ter gostado de você, foi o homem mais bonito e interessante que conheci. Liguei e escrevi semanas para você, depois que não quis me encontrar mais. Podia ter amado você, mas você estragou...

Psssiu — Julius tocou no ombro de Pam para ela se calar. — Não, Pam, não vá por aí, fique na primeira parte, repita.

Eu podia ter gostado de você.

Você foi o homem mais... — ajudou Julius.

O homem mais bonito que eu conheci.

De novo — cochichou Julius.

Pam continuou segurando a mão de Philip, que chorava, e repetindo: — Podia ter gostado de você, você foi o homem mais bonito...

Philip então escondeu o rosto com as mãos e saiu da sala.

Tony imediatamente encaminhou-se para a porta. — Essa é a minha deixa.

Julius também se levantou e segurou Tony: — Não, Tony, essa deixa é minha. — Saiu da sala e viu Philip no final do corredor, encostado na parede, soluçando. Julius abraçou-o e disse: — É bom colocar tudo para fora, mas temos de voltar para a sala.

Philip soluçou mais alto e negou com a cabeça, tentando retomar o fôlego.

— Tem que voltar, amigo. Foi por isso que veio para cá, exatamente para isso e não pode desperdiçar. Você trabalhou bem hoje, do jeito que deve fazer para se tornar um terapeuta. Temos só mais dois minutos de sessão. Volte comigo e sente-se lá com os outros. Fique calmo.

Philip pôs a mão, apenas um instante, sobre a mão de Julius, aprumou-se e voltou com ele para a sala. Sentou-se. Pam tocou no braço dele e Gill, sentado do outro lado, deu um tapinha no ombro dele.

Como está você, Julius? Parece cansado — disse Bonnie.

De cabeça, estou ótimo, satisfeito com o trabalho do grupo. Muito contente de ter participado disso tudo. De corpo, confesso que estou indisposto e cansado. Mas tenho energia para nossa última sessão na semana que vem.

Julius, posso trazer um bolo para comemorar nossa última sessão? — perguntou Bonnie.

Claro, pode trazer qualquer bolo de cenoura que quiser.

Mas não houve despedida. No dia seguinte à sessão, Julius teve uma dor de cabeça fortíssima. Horas depois, entrou em coma e morreu três dias depois. Na segunda-feira, à mesma hora de sempre, o grupo se reuniu na lanchonete e dividiu o bolo de cenoura em silenciosa tristeza.

 

Consigo suportar a idéia de que poucas horas depois que eu morrer, os vermes comerão meu corpo, mas estremeço ao imaginar professores criticando minha filosofia.

a morte chega para Arthur Schopenhauer

Schopenhauer enfrentou a morte como tudo na vida: com extrema lucidez. Sem esquivar-se, sem entregar-se a fáceis crenças espirituais, continuou racional até o fim. E pela razão, disse ele, que descobrimos a morte: vemos os outros morrerem e, por analogia, concluímos que também morreremos. E é pela razão que chegamos à conclusão óbvia de que a morte é o fim da consciência e a destruição irreversível do eu.

Disse também que há duas formas de encarar a morte: pela razão ou pela ilusão e a religião, com sua esperança de que existe consciência e vida após a morte. Assim, a existência da morte e o medo dela são o pai do pensamento e a mãe da filosofia e da religião.

Por toda a vida, Schopenhauer lidou com a onipresença da morte. Em seu primeiro livro, escrito aos vinte e poucos anos, afirmou: "A vida é apenas a morte sendo evitada e adiada. (...) Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça e assim lutamos com ela a cada segundo".

Como ele descreveu a morte? Sua obra traz muitas metáforas sobre o tema: somos ovelhas pastando e a morte é o açougueiro que escolhe com cuidado uma ovelha e depois outra; ou somos como crianças num teatro ansiosas para a peça começar e, felizmente, sem saber o que vai nos acontecer; ou, ainda, somos marinheiros evitando os rochedos e remoinhos do mar, seguindo para o grande e catastrófico naufrágio final.

As descrições que faz do ciclo da vida mostram sempre uma viagem inexorável e desesperada.

Como o nosso começo é diferente do fim! No começo, temos o delírio do desejo e o êxtase do prazer sensual; no fim, a destruição de todos os órgãos e o cheiro do cadáver em decomposição. O caminho, do nascimento à morte, é sempre um déclive no bem-estar e na alegria. Infância sonhadora, juventude alegre, vida adulta difícil, velhice frágil e em geral lastimável, a tortura da última doença e, finalmente, a agonia da morte. Não parece que a vida é um tropeço cujas conseqüências aos poucos ficam mais óbvias?

Será que Schopenhauer temia a morte? Em seus últimos anos, demonstrou muita calma em relação a ela. De onde vinha essa calma? Se o medo da morte é onipresente, se a morte nos ameaça a vida inteira, se é tão temida que muitas religiões surgiram para diminuir esse medo, então como o isolado e leigo filósofo conteve tal medo?

Seus métodos se baseavam em analisar as origens da angústia da morte. Tememos a morte porque ela é estranha e desconhecida? Então, diz ele, estamos enganados, pois a morte é muito mais conhecida do que pensamos. Não só sentimos o que ela é todos os dias, no sono ou em estados de inconsciência, mas todos nós passamos por um estado de não-ser antes de sermos concebidos.

Tememos a morte porque ela é má? (Pense nos horríveis desenhos e ilustrações que costumam representar a morte.) Nesse ponto, também, ele insiste que estamos enganados: "É absurdo considerar a não-existência como ruim: cada mal, como cada bem pressupõe existência e consciência. (...) e claro que não é ruim perder o que não se pode ter". O filósofo pede para lembrarmos que a vida é sofrimento, um mal em si. Então, será ruim perder uma coisa ruim ? A morte, diz ele, deveria ser considerada uma benção, um alívio da inexorável angústia da existência bípede. "Deveríamos saudar a morte como um fato feliz e desejado, em vez de, como costuma ser, com medo e tremor. Deveríamos insultar a vida por interromper nossa agradável não-existência", e ele faz sua polêmica afirmação: "Se batermos nas lápides e perguntarmos aos mortos se querem voltar à vida, balançarão a cabeça dizendo que não". E cita frases parecidas de Platão, Sócrates e Voltaire.

Além de seus argumentos racionais, Schopenhauer tem mais um, que beira o misticismo. Ele namora (mas não se casa) com a idéia de uma espécie de imortalidade. Acredita que nossa natureza interior é indestrutível porque somos apenas uma manifestação da força da vida, a vontade, a coisa em si que continua existindo eternamente. Assim, a morte não é o fim, pois, quando nossa insignificante vida acaba, nós nos reintegramos com a força vital primai e atemporal.

A idéia de reintegrar-se a essa força vital após a morte dava um alívio a Schopenhauer e a muitos leitores dele (como, por exemplo, Thomas Mann e seu protagonista Thomas Buddenbrooks), mas, como não implica um eu contínuo, muitos acham que é apenas um pequeno consolo. (O consolo que Thomas Buddenbrooks sente também é passageiro e acaba poucas páginas depois.) Schopenhauer criou um diálogo entre dois filósofos gregos em que a idéia da imortalidade não é muito confortadora. Na conversa, Filaleto tenta convencer Trasímaco (um grande céptico) que a morte não assusta, pois a essência humana é indestrutível. Os argumentos de ambos são tão lúcidos e firmes que o leitor fica sem saber o que pensa o autor. O céptico Trasímaco não se convence e dá a palavra final.

Filaleto: — Quando você diz eu, eu, eu quero existir, não é só você quem diz. Tudo diz, tudo o que tiver o menor traço de consciência. É o grito não do indivíduo, mas da própria existência. (...) ele apenas admite o que você e sua vida são realmente, ou seja, a vontade universal de viver. A questão vai lhe parecer pueril e muito ridícula.

Trasímaco: — Você é pueril e ridículo como todos os filósofos, e se um homem da minha idade perde quinze minutos de conversa com um tolo desses, é apenas porque me diverte e passa o tempo. Tenho mais o que fazer, adeus.

Schopenhauer tinha outro método para afastar a angústia da morte: quanto mais realização pessoal houver, menor será a angústia da morte. Se alguns acham que sua idéia de unidade universal é fraca, esse outro argumento é, sem dúvida, forte. Médicos que tratam de pacientes terminais já notaram que a angústia é maior nos que acham que tiveram uma vida mal realizada. A sensação de completude, de ter "consumado a vida", como diz Nietzsche, reduz a angústia da morte.

E o que diz Schopenhauer? Será que ele viveu bem e bastante? Cumpriu sua missão? Ele tinha certeza que sim. Veja o final de suas notas autobiográficas.

Sempre quis morrer rápido, pois quem viveu só a vida inteira saberá avaliar melhor esse tema solitário. Em vez de sumir em meio às tolices e bufonerias preparadas para os lastimáveis bípedes humanos, vou terminar feliz, consciente de estar voltando para onde vim (...) e de ter cumprido minha missão.

O mesmo sentimento (orgulho de ter percorrido seu talentoso caminho) aparece em versos curtos que fecham seu último livro.

Estou cansado, no final da estrada,

A fronte exausta mal consegue suportar os louros.

Mesmo assim, vejo com alegria o que fiz,

Sem me intimidar com a opinião dos outros.

Quando foi lançado seu último livro, Parerga e Paralipomena, ele constatou: — Estou muito satisfeito de ver o nascimento de meu último filho. É como se tirassem de meus ombros um peso que carrego desde os vinte e quatro anos. Ninguém imagina o que seja.

Na manhã do dia vinte e um de setembro de 1860, a criada preparou o café da manhã de Schopenhauer, limpou a cozinha, abriu as janelas da casa e saiu. O filósofo já havia tomado seu banho frio e estava lendo no sofá na sala, que era um cômodo grande e arejado, mobiliado com simplicidade. Ao lado do sofá, no tapete preto de pele de urso estava deitado Atman, seu querido poodle. Na parede do sofá havia um grande retrato a óleo de Goethe, vários desenhos mostrando cães, Shakespeare e o imperador romano Cláudio. Em outras partes da sala havia daguerreótipos de Schopenhauer; na escrivaninha, um busto de Kant e, num canto da mesa, um busto de Christoph Wieland, filósofo que incentivou o jovem Schopenhauer a estudar filosofia. Num canto, ficava a estimada estátua dourada de Buda.

Pouco depois de a criada sair, o médico que lhe fazia visitas periódicas, entrou na sala e encontrou seu cliente caído no canto do sofá. Um "ataque do pulmão" (embolia pulmonar) o levara desse mundo, sem dor. Seu rosto não estava alterado nem mostrava a agonia da morte.

O funeral num dia chuvoso foi mais desagradável do que o normal, devido ao cheiro de carne putrefata no pequeno e fechado necrotério. Dez anos antes, Schopenhauer tinha dado instruções claras para ser enterrado pelo menos cinco dias após a morte, até a decomposição começar. Talvez esse tenha sido um último gesto de misantropia, ou talvez de medo de sofrer uma catalepsia, interrupção temporária das funções vitais e ser enterrado vivo. O necrotério ficou tão cheio e o cheiro tão forte, que várias pessoas tiveram de sair durante o longo e empolado obituário feito por seu testamenteiro Wilhelm Gwinner, que começou dizendo:

Este homem que viveu entre nós, mas se manteve um estranho, era possuidor de raros sentimentos. Ninguém aqui presente está ligado a ele por laços de sangue. Morreu isolado como viveu.

Sobre o túmulo de Schopenhauer foi colocada uma pesada lápide de granito belga. O testamento pedia que dela constasse apenas seu nome, mais nada — nem data, nem ano ou palavra.

O homem enterrado naquele modesto túmulo queria que sua obra falasse por ele.

 

O ser humano aprendeu comigo algumas coisas que jamais esquecerá.

Três anos depois

O sol do entardecer entrava pelas grandes janelas abertas do Café Florio. A antiga jukebox tocava árias do Barbeiro de Sevilha acompanhadas pelo zunido de uma máquina de café expresso aquecendo o leite para os cappuccinos.

Pam, Philip e Tony estavam na mesma mesa à janela onde, desde a morte de Julius, se reuniam para um café toda semana. Outras pessoas do grupo tinham participado no primeiro ano, mas nos dois últimos anos só eles se encontravam. Philip parou a conversa para ouvir uma ária e cantarolar junto. — Uma voce poco fa, essa é uma das minhas árias preferidas — disse ele, quando retomavam a conversa. Tony mostrou o diploma da faculdade. Philip informou que estava jogando xadrez duas noites por semana no Clube de Xadrez de San Francisco (primeira vez que jogava com parceiros desde a morte do pai). Pam falou de sua boa relação com o novo namorado, especialista na obra de Milton, e também de suas idas aos domingos às cerimônias budistas em Green Gulch, em Marin.

Ela olhou o relógio. — Está na hora de vocês entrarem em cena, rapazes. — Olhou para os dois. — Vocês são dois fofos, estão ótimos, mas Philip, essa jaqueta — Pam balançou a cabeça — não dá mais, veludo cotelê não se usa há vinte anos, nem esses falsos remendos nos cotovelos. Na semana que vem vamos fazer compras. — Olhou a cara deles. — Vocês vão fazer bonito. Se na hora você ficar nervoso, Philip, lembre das cadeiras que ganhou de Julius e que ele gostava dos dois. E eu também. — Deu um beijo na testa de cada um, deixou uma nota de vinte dólares na mesa e disse: — Hoje é um dia especial, vocês são meus convidados — e foi embora.

Uma hora depois, sete pessoas entraram no consultório de Philip para a primeira sessão do grupo e sentaram-se, sem jeito, nas cadeiras que foram da sala de Julius. Depois de adulto, Philip tinha chorado duas vezes na vida: uma, na última sessão do grupo, e outra, ao saber que tinha herdado aquelas nove cadeiras.

Sejam bem-vindos ao nosso grupo. Tentamos dar as regras na sessão individual que tivemos com cada um de vocês. Agora, vamos começar.

Certo, só isso? Não há mais instruções? — perguntou Jason, um homem baixo e magro, de meia idade, que usava uma camiseta Nike preta e justa.

Lembro do medo que tive na minha primeira sessão de grupo — disse Tony, que se inclinou para a frente na cadeira. Estava bem vestido, de camisa branca de mangas curtas, calças caqui e mocassins marrons.

Não estou falando em medo, mas na falta de orientação sobre o funcionamento do grupo — replicou Jason.

Bom, do que você precisa para começar? — perguntou Tony.

Informação, que é a mola do mundo hoje. Isso aqui é para ser um grupo de orientação filosófica. Vocês dois são filósofos?

Eu sou, com doutorado na Columbia. Tony, meu assistente, é um aluno de orientação — disse Philip.

Aluno? Não entendi. Como vocês vão atuar aqui? — devolveu Jason.

Philip vai trazer idéias da filosofia que possam ajudar, e eu, bem, estou aqui para aprender e dar uma ajuda onde puder. Sou mais especialista em facilitação emocional. Certo, companheiro? — perguntou Tony a Philip. Philip concordou.

Facilitação emocional ? Dá para saber o que isso significa ? — perguntou Jason.

Jason, eu me chamo Marsha — interrompeu outra participante do grupo — e gostaria de dizer que essa é a quinta agressão sua em cinco minutos no grupo.

E daí?

E que você é o tipo do sujeito machão exibicionista com o qual eu tenho problema à beça.

E você é o tipo da patricinha que eu acho um pé no saco.

Parem, parem, vamos congelar a ação um instante — disse Tony — e ter um retorno dos outros a respeito de nossos primeiros cinco minutos aqui. Primeiro, quero lhe dizer uma coisa, Jason, e a você, Marsha, algo que Philip e eu aprendemos com Julius, nosso professor. Tenho certeza de que vocês dois estão achando um começo tempestuoso, mas tenho a impressão, a forte impressão de que, quando este grupo terminar, vocês terão grande importância um para o outro. Certo, Philip?

Certo, companheiro. 

 

                                                                  Irvin D. Yalom

 

 

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