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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ENSEADA DO FRANCES / Daphne Du Maurier
A ENSEADA DO FRANCES / Daphne Du Maurier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando o vento leste sopra sobre o rio Helford, as águas cintilantes perturbam-se e agitam-se, e as pequenas ondas lançam-se, iradas, sobre as margens arenosas. Na maré alta, o mar encrespado invade a barra, as aves pernaltas voam para o interior, para as terras pantanosas, com as asas a rasarem a superfície e chamando umas pelas outras. Só ficam as gaivotas, rodopiando e gritando por cima da espuma, mergulhando de vez em quando em busca de comida, com as penas cinzentas brilhantes de salpicos de água salgada.
Os compridos vagalhões do canal, vindos de para lá da ponta Lizard, embatem com força sobre os íngremes fundos marinhos da embocadura do rio, onde a maré castanha, inchada pelas últimas chuvas e arrastando lama, ostentando à superfície ramos mortos, palhas, e estranhas coisas esquecidas, folhas que caíram cedo de mais, aves jovens e botões de flores, se mistura com o fluir e refluir das profundas águas do mar.
A baía aberta ao mar fica deserta, porque o vento leste torna a ancoragem difícil, e se não fosse a meia dúzia de casas espalhadas por aqui e por acolá, por cima da passagem do Helford, e o grupo de habitações em volta de Port Navas, o rio seria o mesmo que fora num século já esquecido, num tempo que deixou muito poucas recordações.

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Nesses dias, as colinas e vales existiam num esplendor solitário, não se viam construções a profanar os campos em estado bruto e as falésias, não havia canos de chaminés a espreitar por cima das copas das altas árvores. Viam-se algumas casas na aldeia de Helford, mas que não causavam qualquer impressão sobre a vida do rio, que pertencia às aves: maçaricos e patas-vermelhas, gaivotas e papagaios-do-mar. Não havia iates a entrarem com a maré, como acontece hoje, e aquela faixa de águas plácidas onde o rio se divide para Constantine e Gweek mantinha-se calma e imperturbada.
O rio era mal conhecido, salvo de alguns poucos marinheiros que tinham ali encontrado abrigo quando as tempestades de sudoeste os haviam empurrado para terra, afastando-os das rotas de subida do canal. Achavam que o local era solitário e austero, um pouco assustador por causa do silêncio, e ficavam muito felizes por poderem levantar a âncora e içar as velas logo que o vento se mostrava de feição.
A aldeia de Helford não tinha qualquer atractivo que levasse os marinheiros a terra, os reduzidos habitantes eram obtusos e pouco comunicativos, e um homem afastado durante muito tempo do calor e das mulheres não demonstrava qualquer desejo de ir vaguear para os bosques ou de chapinhar no meio das pernaltas na lama da maré baixa. Assim, o rio serpenteante permanecia sem ser visitado, ninguém caminhava pelos bosques ou pelas colinas, e toda aquela beleza do pico do Verão, que dá um estranho encanto ao rio Helford, não era vista nem conhecida.
Hoje, são muitas as vozes que estragam o silêncio. Os vapores de cruzeiro entram e saem, deixando uma esteira de águas revoltas, os tripulantes dos iates visitam-se uns aos outros, e até o excursionista de um só dia, de olhos saciados de uma beleza não digerida, avança por aqui e por ali nas águas baixas, com um camaroeiro nas mãos. Por vezes, no seu carrinho pequeno e soluçante, segue aos saltos pelo caminho irregular e lamacento que descreve uma curva repentina para a direita na aldeia de Helford, e vai tomar chá com os outros excursionistas na cozinha de pedra da velha casa agrícola que foi outrora conhecida por Navron House. É uma casa que ainda tem algo de grandioso. Parte do rectângulo original continua de pé, envolvendo a horta dos nossos dias, e os dois pilares que outrora marcavam a entrada da casa, demasiado cobertos de heras e incrustados de líquenes, servem de acessórios ao celeiro moderno, com o seu telhado ondulado.
A cozinha, onde o excursionista vai tomar o chá, fazia parte do antigo salão de jantar, e a pequena meia-escada, que termina agora numa parede de tijolos, dava para a galeria. O resto da casa ou caiu aos bocados ou foi demolido, pois o edifícioquadrado, apesar de bonito, tem muito poucas semelhanças com a Navron das velhas gravuras, com a forma de uma letra E, e já não se vêem vestígios nem dos jardins formais nem do parque.
O excursionista come qualquer coisa e bebe o chá, sorrindo para a paisagem, sem nada saber da mulher que uma vez, há muito tempo e num outro Verão, esteve ali de pé e, tal como ele, avistou o brilho do rio por entre as árvores, levantou a cabeça para o céu e sentiu o sol.
O excursionista ouve os ruídos domésticos da quinta, o tilintar de baldes, o mugir do gado, as vozes ásperas do agricultor e do filho que se chamam através do pátio, mas as suas orelhas estão surdas para os ecos desse outro tempo, quando alguém assobiava baixinho da escuridão da cintura de árvores, com as mãos em taça em volta da boca, e recebia uma rápida resposta da figura delgada e encurvada, agachada por debaixo das paredes da casa silenciosa, enquanto lá em cima a janela se abria, e Dona via e escutava, com as mãos a tamborilar uma pequena melodia sem nome no peitoril, e os caracóis a cair-lhe para o rosto.
O rio continua a correr, as árvores murmuram sob a brisa do Verão, e lá em baixo, nas terras pantanosas, os papa-ostras permanecem junto à linha da maré, sondando as águas baixas em busca de comida, os maçaricos gritam, mas os homens e mulheres de outros tempos estão esquecidos, com as pedras tumulares incrustadas de líquenes e musgos, e os nomes indecifráveis.
Hoje, o gado pisa e revolve a terra no local do desaparecido pórtico de Navron House, onde outrora se encontrava um homem ao bater da meia- noite, com o rosto sorridente sob a fraca luz da vela e a espada desembainhada na mão.
Na Primavera, os filhos do agricultor colhem primaveras e galantos nas margens, por cima do ribeiro, com as botas enlameadas a esmagarem os ramos mortos e as folhas caídas de um Verão já gasto, e o próprio ribeiro, inchado com as chuvas de um longo Inverno, tem um ar desolado e cinzento.
As árvores ainda se amontoam, espessas e escuras, até à beira da água, e o musgo é suculento e verde no pequeno cais onde Dona acendeu a sua fogueira, olhou por cima das chamas e se riu para o seu amante, mas hoje não há ali nenhum navio ancorado, de mastros inclinados a apontarem para os céus, não se ouve o chocalhar da corrente na boca do escovém, não paira no ar o rico cheiro a tabaco, e por cima das águas não há ecos de uma ritmada língua estrangeira.
O marinheiro solitário que deixa o seu iate na baía de Helford, e que uma noite, em pleno Verão, quando os noitibós chamam, vai explorar o rio no seu barco a remos, hesita quando se aproxima da embocadura da ribeira, pois mesmo agora há à sua volta um ar de mistério, de encantamento. Como é um estranho, o marinheiro olha para trás, por cima do ombro, para a segurança do iate na baía, e para as largas águas do rio, e faz uma pausa. Apoia-se sobre os remos, subitamente consciente do profundo silêncio da ribeira, do seu estreito e contorcido leito, e sente - por uma razão que desconhece - que é um invasor, um intruso no tempo. Aventura-se um pouco ao longo da margem esquerda da ribeira, com o som das pás dos remos a baterem na água, parecendo-lhe demasiado fortes, provocando estranhos ecos por entre as árvores e na outra margem. Enquanto avança, a ribeira faz-se mais estreita, as árvores apertam-se ainda mais à beira das águas, e sente cair sobre ele um feitiço, fascinante, estranho, feito de pura excitação mas não inteiramente compreendido.
Está sozinho, e no entanto... aquilo teria sido um murmúrio, na água, junto à margem? Estará ali uma figura de pé, com o luar a brilhar nas fivelas dos sapatos e no alfange que tem na mão? Estará uma mulher a seu lado, com uma capa em volta dos ombros e os caracóis negros puxados para trás das orelhas? Enganou-se, é claro, são apenas as sombras das árvores, e o murmúrio não foi mais do que folhas a agitarem-se, do que os movimentos de uma ave adormecida, mas de repente fica intrigado e um pouco assustado, pressente que não deve continuar, e que o resto da ribeira, para lá da margem mais distante, lhe está proibido e não deve ser visitado. É por isso que dá meia volta, aponta a proa do bote para a baía. Enquanto se afasta, os sons e murmúrios são mais insistentes nos seus ouvidos, ali vem um tropel de pés, um chamamento, um grito na noite, um assobio muito mais fraco e uma curiosa canção ritmada. Esforça os olhos para perfurar a escuridão, e as sombras amassadas na sua frente elevam-se, duras e nítidas como os contornos de um navio. É uma coisa de graça e beleza, nascida num outro tempo, um navio fantasma pintado. O coração bate-Lhe com mais força, faz força nos remos, e o pequeno bote avança rapidamente por cima das águas escuras, fugindo ao feitiço, porque aquilo que viu não é deste mundo, e o que ouviu está para além do que consegue entender.
Procura mais uma vez a segurança do seu próprio barco, e ao olhar para trás pela última vez, na direcção da boca da ribeira, avista a lua cheia muito branca e brilhante, em todo o seu esplendor de Verão, erguendo-se por cima das altas árvores e banhando a ribeira de luz e encanto.
Nas colinas, um noitibó solta o seu grito do meio dos fetos, um peixe perfura a superfície da água com um pequeno estalo. Lentamente, o seu barco vira-se para enfrentar a maré que se aproxima, e a ribeira fica oculta.
O marinheiro desce à segurança aconchegada da sua cabina, remexe entre os livros e encontra finalmente o que procurava. É um mapa da Cornualha, mal desenhado e pouco preciso, adquirido, num momento de lazer, numa livraria de Truro. O pergaminho está desmaiado e amarelado, as marcas são indistintas. A escrita pertence a um outro século. O rio Helford está relativamente bem traçado, tal como as aldeias de Constantine e Gweek. No entanto, o marinheiro afasta os olhos delas, para o local onde está assinalada uma estreita abertura, um braço do grande rio, com um curso breve e serpenteante correndo em direcção a um vale. Alguém escreveu ali um nome com letras finas e descoradas: Enseada do Francês".
Por instantes, o marinheiro interroga-se sobre um tal nome, encolhe os ombros e enrola o pergaminho. Depois, dorme. O ancoradouro está calmo, não há vento a soprar sobre as águas e os noitibós permanecem em silêncio. O marinheiro sonha... e enquanto a maré sobe com suavidade em volta do seu iate e a Lua brilha sobre o rio tranquilo, os murmúrios baixos envolvem-no e o passado faz- se presente.
Um século já esquecido espreita para lá da poeira e das teias de aranha, e ei-lo que caminha num outro tempo. Escuta o som de cascos galopando pela alameda de Navron House, vê as grandes portas a abrirem-se e o rosto branco e assustado do servo que olha para cima, para o cavaleiro envolvido na capa. Vê Dona surgir no alto das escadas, vestida com um velho roupão e um lenço em volta da cabeça, enquanto na enseada, oculta e silenciosa, um homem caminha sobre o convés do seu navio, de mãos atrás das costas, com um curioso e secreto sorriso nos lábios. A cozinha de Navron House é mais uma vez um salão de jantar, e há alguém agachado nas escadas, com uma faca na mão, quando lá em cima se ouve repentinamente o grito assustado de uma criança. Das paredes da galeria cai um escudo sobre a figura agachada, e dois pequenos spaniels king-charles, perfumados e encaracolados, correm, latindo e chiando, para o corpo caído no chão.
Na véspera do solstício do Verão, um fogo de lenha arde num cais deserto, uma mulher e um homem olham um para o outro, sorriem, partilhando um segredo, e de madrugada um navio faz-se ao mar com a maré, enquanto o Sol brilha ferozmente sob um céu azul e as gaivotas gritam.
Todos os sussurros e ecos de um passado desaparecido penetram no cérebro do adormecido, e este está com eles, é parte deles. Faz parte do mar, do navio, das paredes de Navron House, faz parte de uma carruagem que estremece e oscila nas rudimentares estradas da Cornualha, e até faz parte, também, da perdida e esquecida Londres, artificial, pintada, onde os pajens transportam archotes, e galãs meio embriagados se riem à esquina de uma rua empedrada e salpicada de lama. Vê Harry no seu casaco de cetim, com os spaniels atrás dele, entrando no quarto de Dona quando esta põe os rubis nas orelhas. Vê William com a boca cerrada e o pequeno rosto inescrutável. Por fim, vê o La Mouette ancorado numa estreita enseada, vê as árvores à beira da água, escuta o grito da garça e do maçarico. Deitado de costas, adormecido, respira e vive a encantadora loucura daquele Verão perdido em que a enseada foi pela primeira vez um refúgio e um símbolo de evasão.
Capítulo segundo
O relógio da igreja batia a meia hora quando a carruagem entrou com estrépito em Launceston e parou junto da estalagem. O cocheiro resmungou enquanto o companheiro saltava para o chão e corria para as cabeças dos cavalos. O cocheiro meteu dois dedos na boca e assobiou. Um moço de estrebaria saiu da estalagem para o largo, espantado, esfregando os olhos ensonados.
- Não há tempo a perder! Traze água, imediatamente, e dá de comer aos cavalos - disse o cocheiro, levantando-se, espreguiçando-se, e olhando em volta com uma expressão ácida, enquanto o companheiro batia no chão com os pés entorpecidos e lhe lançava um sorriso de simpatia.
- Ainda não têm os costados partidos, valha-nos isso - disse baixinho. - No fim de contas, talvez até valham todos os guinéus que Sir Harry pagou por eles.
O cocheiro encolheu os ombros. Estava demasiado cansado e rígido para discussões. As estradas eram terríveis; e se as rodas se partissem ou os cavalos se fossem abaixo, a culpa cairia toda em cima dele e não do companheiro. Se pudessem viajar tranquilamente, fazendo o percurso numa semana... Mas não, tinha de ser àquela diabólica velocidade, que ainda Lhes quebrava os pescoços, tudo por causa do mau humor da ama. Graças a Deus, de momento estava a dormir e tudo permanecia em silêncio no interior da carruagem. Teria gostado que assim fosse, mas enganara-se, pois quando o moço da estrebaria voltou com um balde de água em cada mão, e os cavalos começaram a beber, ansiosos, a janela da carruagem abriu-se e a patroa inclinou-se para fora, sem qualquer vestígio de sono, de olhos muito abertos e claros, com a voz fria e imperiosa que aprendera a temer nos últimos dias, tão dominadora como sempre.
- Por que diabo é este atraso? - perguntou. - Não parámos para dar água aos cavalos há apenas três horas?
O cocheiro murmurou uma oração, pedindo paciência, desceu do seu lugar e aproximou-se da janela.
- Os cavalos não estão acostumados a este andamento, senhora - disse. - Esquece-se de que cobrimos quase sessenta e cinco léguas nos últimos dois dias. Além disso, estas estradas não são apropriadas para animais de tão boa raça como os seus.
- Que estupidez! - foi a resposta. - Quanto melhor a raça, maior a resistência. De futuro, só deterás os cavalos quando eu to ordenar. Paga o que devemos e continuemos a jornada.
- Sim, minha senhora. - O homem virou-se, com a boca contraída em linhas de fatigada obstinação. Fez um aceno para o companheiro, murmurou qualquer coisa por entre os dentes e voltou a trepar para o seu lugar.
Os baldes de água foram retirados, o moço de estrebaria ficou de boca aberta, sem compreender, e mais uma vez os cavalos escarvaram o chão e resfolegaram, com vapor a erguer-se das suas carnes quentes, abandonando a praça empedrada e a pequena aldeola adormecida, de novo lançados na estrada irregular que sacudia a carruagem.
Dona olhava pela janela, de mau humor, com o queixo apoiado nas mãos. As crianças ainda estavam, felizmente, a dormir, e até Prue, a ama, de boca aberta e rosto corado, não se mexia havia duas horas, ou mais. A pobre Henrietta estivera enjoada pela quarta vez e agora jazia, pálida e abatida, como uma minúscula cópia de Harry, com a cabeça dourada encostada ao ombro da ama. James nunca se agitava. O seu sono era o sono verdadeiro dos bebés, e provavelmente não acordaria até chegarem ao destino. E nesse momento... que triste anticlímax os aguardava! Camas húmidas, janelas fechadas, sem dúvida, a atmosfera abafada de quartos fechados a cheirarem a mofo, a irritação da surpresa, o descontentamento dos criados. Tudo por causa de um impulso a que obedecera cegamente, de um súbito a fervilhar de ressentimento contra a futilidade da sua vida, os infindáveis jantares, ceias, jogos de cartas, aquelas brincadeiras estúpidas só próprias de um rapaz aprendiz a gozar um feriado, o estúpido namoriscar com Rockingham... E até o Harry... Tão preguiçoso, sem se ralar, cumprindo com tolerância o seu papel de marido perfeito, os seus bocejos antes da meia-noite, a adoração plácida e sonolenta. Essa sensação de futilidade crescia nela havia vários meses, irritando-a de vez em quando como uma dor de dentes semiadormecida, mas fora preciso chegar a sexta-feira à noite para despertar nela todo o sentimento de ódio por si mesma, toda a exasperação, e fora por causa da noite de sexta-feira que ia agora aos saltos, para a frente e para trás, naquela amaldiçoada carruagem, lançada numa viagem ridícula em direcção a uma casa que só vira uma vez na vida e de que nada sabia, levando consigo, por ira e irritação, as duas surpreendidas crianças e a ama relutante.
Obedecia a um impulso, é claro, como sempre fizera desde o princípio, toda a sua vida, seguindo um sussurro, uma sugestão que surgia não se sabia de onde e que depois troçava dela. Casara-se com Harry por impulso, por causa do seu riso
- e daquela preguiça curiosa que a atraíra - e porque pensara que a expressão dos seus olhos azuis significava muito mais do que verificara mais tarde. Agora apercebia-se de que, no fim de contas... Bom, mas essas eram coisas que não se admitiam, nem para ela própria, e para que serviriam? O que estava feito, feito estava, tinha as suas duas belas crianças e no mês seguinte faria trinta anos.
Não, a culpa não era do pobre Harry, nem sequer da vida que levavam, sem sentido, nem das loucas escapadas, nem dos amigos, nem da abafada atmosfera de um Verão que caíra demasiado cedo sobre a lama cozida e a poeira de Londres, nem das conversas parvas no teatro, nem das estúpidas ousadias que Rockingham lhe murmurava ao ouvido. A culpa era dela própria.
Desempenhara, durante demasiado tempo, um papel indigno dela. Consentira em ser a Dona que o seu mundo exigira: uma criatura superficial e encantadora, que andava, falava e ria, aceitando os louvores e admirações com um encolher de ombros, como sendo uma homenagem natural à sua beleza, descuidada, insolente, deliberadamente indiferente, e enquanto isso a outra Dona, uma estranha e fantasmagórica Dona, espreitava-a de um espelho muito escuro e envergonhava-se.
Esse outro eu sabia que a vida não precisava de ser amarga, nem inútil, nem limitada por um estreito enquadramento, e que podia ser ilimitada, infinita, e que significava sofrimento, amor, perigo, doçura, e talvez até mais do que isso, mesmo muito mais. Sim, naquela sexta-feira caíra sobre ela toda a força do ódio para consigo própria, pelo que mesmo agora, com o fresco ar do campo a soprar-lhe no rosto, conseguia conjurar mais uma vez o cheiro quente das ruas, que se soltava das sarjetas de Londres, um cheiro de exaustão e decomposição, e que se misturara de um modo inexplicável com o céu pesado e opressivo, com o bocejo de Harry enquanto sacudia a poeira da capa, com o sorriso mordaz de Rockingham, como se todos eles tipificassem um mundo fatigado e moribundo de que tivesse de se libertar e fugir antes que o céu se precipitasse sobre ela e ficasse presa na armadilha. Recordava-se do pedinte cego, à esquina, de ouvidos atentos ao tilintar de uma moeda, e do aprendiz de Haymarket, caminhando com passos miudinhos, de tabuleiro na cabeça, gritando os seus produtos com uma voz aguda e desconsolada, e como tropeçara num lixo qualquer que se encontrava na sarjeta e espalhara o conteúdo do tabuleiro sobre o sujo empedrado. E além disso, oh, céus, o teatro atulhado, o pivete dos perfumes em cima de corpos quentes, as gargalhadas parvas e a algazarra, a festa no camarote real, a que o próprio rei estivera presente, a multidão impaciente nos lugares mais baratos, gritando e pateando, exigindo que a representação começasse enquanto atiravam cascas de laranjas para o palco. A seguir, Harry, que se ria sem saber de quê, como era seu costume, ficara confuso ante as astúcias da peça, ou que se calhar bebera de mais ainda antes de saírem de casa. Fosse como fosse, começara a ressonar no seu assento, e Rockingham, aproveitando a oportunidade para uma diversão, tocara-lhe com o pé e murmurara-Lhe ao ouvido. Maldita fosse a sua impudência, o seu ar de posse, de familiaridade, tudo porque uma vez lhe permitira que a beijasse num momento de aborrecimento e porque estava uma linda noite. A seguir tinham ido cear ao Swan, que começara a detestar porque a novidade se esgotara e já não se divertia, pois deixara de ser estimulante ser a única esposa no meio daquela multidão de amantes.
Outrora sentira uma certa atracção pelas ceias com Harry em lugares como aquele, onde nenhum marido levava a esposa, onde se sentavam lado a lado com as mulheres da cidade, para ver os amigos de Harry inicialmente escandalizados, e depois fascinados, para acabarem por se deixar levar por uma verdadeira febre, como se fossem meninos de escola curiosos a penetrarem em terrenos proibidos. Todavia, mesmo então, mesmo no princípio, sentira umas bicadas de vergonha, uma curiosa sensação de degradação, como se se tivesse vestido para um baile de máscaras e as roupas não lhe assentassem bem.
Apesar da gargalhada encantadora e ligeiramente estúpida  de Harry, o seu comentário Sabes, andas nas bocas da cidade, os homens falam a teu respeito nas tabernas" não funcionara como censura, mas sim como elemento irritante. Preferia que se tivesse zangado, que lhe gritasse, até que a insultasse... mas não, limitara-se a rir, encolhendo os ombros, e acariciara-a à sua maneira pesada e desajeitada, para que ficasse a saber que as suas loucuras não o tinham afectado, e que por dentro estava satisfeito por os homens fazerem comentários a respeito da sua mulher e a admirassem, porque isso o fazia uma pessoa importante aos seus olhos. A carruagem deu um salto sobre um sulco profundo, no meio da estrada, e James agitou-se, no seu sono. O rosto pequenino contraiu-se como se fosse chorar, e Dona estendeu a mão para o brinquedo que a criança largara. James levou-o à boca e continuou a dormir. Parecia-se com Harry quando ela pretendia tranquilizar-se a respeito do seu afecto por ele, e perguntava a si mesma por que motivo uma qualidade que em James era tão atraente e tocante em Harry lhe parecia mais do que um pouco absurda e constituía uma fonte secreta de irritação.
Naquela sexta-feira à noite, ao vestir-se, ao colocar os rubis nas orelhas, para condizerem com o pendente em volta da garganta, recordara-se de repente de James a agarrar o pendente e a enfiá-lo na boca, e sorrira para si mesma. Harry, de pé a seu lado, sacudindo o pó das rendas dos pulsos, apercebera-se do sorriso e considerara-o como um convite.
- Maldição, Dona - dissera -, porque olhas assim para mim? Olha, não vamos ao teatro, mandamos passear o Rockingham, mandamos passear o mundo, por que diabo não fi camos em casa?
Pobre Harry, que fútil, que típico, levado a uma adoração instantânea por um sorriso que não fora para ele. Respondera:
- Oh, como és ridículo - e afastara-se, para que lhe não tocasse nos ombros nus com as mãos desajeitadas. A sua boca contraíra-se imediatamente na expressão resmungona e obstinada que conhecia tão bem, e haviam saído para o teatro, tal como tinham feito vezes sem conta para outros teatros e ou tras ceias, com estados de espírito discordantes e temperamentos irritadiços, dando cabo da noite ainda antes de esta ter começado.
A seguir Harry chamara os seus dois spaniels, o Duque, e a Duquesa", e estes tinham-lhe ladrado, pedindo doces, enchendo o quarto com os latidos agudos, saltando e pulando para as suas mãos.
- Eh, Duque", eh, Duquesa" - dissera - tomem, vão buscar - e atirara um doce para o outro lado do quarto, para cima da cama dela, pelo que os cães se tinham lançado para as cortinas, tentando trepar, ladrando horrivelmente durante todo o tempo, e Dona, de dedos nos ouvidos para impedir a passagem dos sons, saíra precipitadamente do quarto e descera, indo sentar-se numa cadeira, à espera, branca, fria e irada, para depois ter de enfrentar os cheiros fortes da rua e o céu pesado e opressivo.
A carruagem voltou a estremecer e a oscilar nas profundas irregularidades da estrada campestre, e desta vez foi a ama quem se agitou - a pobre e infeliz Prue, com um rosto tolo, pesado e inchado de fadiga, como deveria amaldiçoar a sua patroa por causa daquela súbita e inexplicável viagem -, e Dona perguntou a si própria se a mulher deixara algum jovem esquecido em Londres, que, de acordo com todas as probabilidades, se revelaria falso e casaria com outra qualquer, estragando a vida de Prue, tudo por causa dela, Dona, dos seus impulsos e caprichos, do seu violento mau humor. Que iia Prue fazer em Navron House, excepto acompanhar as crianças para cima e para baixo ao longo da alameda e nos jardins, suspirando pelas ruas de Londres, a centenas de quilómetros de distância? Haveria jardins, em Navron? Não conseguia recordar-se. Parecera-Lhe que a breve visita, logo depois do casamento, acontecera há muito tempo. Sim, de certeza que havia árvores, um rio brilhante, altas janelas espreitando de uma comprida sala, mas esquecera-se de tudo o resto porque se sentira muito mal naqueles dias, com Henrietta a meter-se no seu caminho e uma vida que fora uma infindável canseira de sofás, má disposição e frascos de sais. De súbito, Dona sentiu fome, a carruagem acabara de passar por um pomar onde as macieiras estavam em flor, e sabia que tinha de comer agora, imediatamente, sem mais delongas, ao sol, ao lado da estrada, que tinham todos de comer. Por isso, meteu a cabeça fora da janela e gritou para o cocheiro:
- Vamos parar aqui um bocado, para comermos. Venha ajudar-me a abrir os tapetes por debaixo da sebe.
O homem olhou para ela com um ar de espanto.
- Mas, senhora, o chão pode estar húmido, irá apanhar frio.
- Ora, Thomas, tenho fome, todos nós temos fome, precisamos de comer.
O cocheiro desceu do assento, de rosto vermelho de embaraço, enquanto o companheiro virava a cara, tossindo atrás da mão.
- Há uma estalagem em Bodmin, minha senhora - arriscou-se o cocheiro a dizer -, onde poderá comer com conforto, e talvez até descansar. Será mais apropriado. Se alguém passar por aqui e a vir ao lado da estrada... Não me parece que Sir Harry irá gostar...
- Maldição, Thomas, não sabes obedecer a ordens? - exclamou Dona, abrindo ela própria a porta da carruagem, descendo para a estrada enlameada e puxando a orla do vestido acima dos tornozelos de um modo descarado. Pobre Sir Harry", pensou o cocheiro, é este o tipo de coisas que tem de aturar todos os dias. " Dona precisou de menos de cinco minutos para os reunir a todos sobre as ervas, ao lado da estrada, com a ama ainda mal acordada, pestanejando os olhos redondos, e as crianças a olharem, surpreendidas.
- Vamos todos beber cerveja - disse Dona. - Temos alguma no cesto por debaixo do banco. Estou com um desejo louco de cerveja. Sim, James, também vais beber um pouco.
Sentou-se com as saias dobradas debaixo dela e o capuz a cair-lhe da cabeça, engolindo a cerveja como se fosse uma cigana mendiga, colocando umas gotas na ponta de um dedo para que o bebé a provasse, sorrindo durante todo o tempo para o cocheiro, demonstrando que não lhe desejava mal pela condução violenta e pela obstinação.
- Vocês também têm de beber, há o suficiente para todos -, afirmou, e os homens foram obrigados a beber com ela, evitando os olhos da ama das crianças. Esta pensava, tal como os homens, que tudo aquilo era pouco próprio, e desejava encontrar- se na tranquila sala de uma hospedaria, com água morna onde pudesse lavar as mãos e a cara das crianças.
- Para onde vamos? - perguntou Henrietta pela décima segunda vez, olhando-a com desagrado e apertando o vestido contra o corpo para não o sujar na lama. - A viagem está quase a acabar e em breve estaremos em casa?
- Vamos para outra casa - respondeu Dona -, uma nova casa, uma casa muito mais agradável. Poderão correr à vontade nos bosques, poderão sujar as roupas e a Prue não se zangará convosco porque não fará diferença.
- Não quero sujar as minhas roupas. Quero ir para casa - declarou Henrietta com o lábio a tremer. Olhou para Dona, numa censura, e depois, talvez cansada, pois tudo aquilo era estranho, a viagem, o estarem sentados ao lado da estrada, as saudades da rotina monótona, começou a chorar. James, plácido e feliz até essa altura, abriu a boca e começou a berrar, por solidariedade.
- Pronto, meus pequenos! Pronto, meus tesouros, não gostam desta feia vala nem das ervas que picam... - disse Prue, segurando os dois nos braços, com um mundo de significados na voz, dirigida à sua patroa, a culpada de todas as inquietações, pelo que Dona, picada na sua consciência, levantou-se e pontapeou o que restava do festim.
- Então vamos, continuemos a nossa jornada, mas sem lágrimas, pelo amor de Deus.
Ficou parada por momentos, enquanto a ama, a comida e as crianças voltavam a acomodar-se na carruagem. Sim, havia no ar um cheiro a flores de macieira, e também a tojo, bem como um travo a musgos e turfa, vindo das charnecas que via à distância. De algures, não muito longe, do outro lado das colinas mais afastadas, chegava-lhe o cheiro húmido do mar.
Esquece as lágrimas das crianças, esquece os desgostos de Prue, esquece a boca obstinada do cocheiro, esquece Harry e os seus olhos incomodados e preocupados quando lhe anunciara a sua decisão. Mas, Dona, que foi que eu fiz, que foi que eu disse? Não sabes que te adoro? " Esquece todas essas coisas porque a liberdade era isto, estar parada um minuto com o rosto ao sol e ao vento, viver era isto, sorrir e estar sozinha.
Tentara explicá-lo a Harry, na sexta-feira à noite, depois da idiótica travessura em Hampton Court; tentara fazê-lo ver o que queria dizer, mostrar-lhe que a ridícula partida feita à condessa não passara de uma noção de divertimento contorcida e abastardada, uma traição ao seu verdadeiro estado de espírito; o que na realidade queria era fugir, fugir dela própria, da vida que levavam em conjunto. Atingira um ponto de crise no seu período de vida e existência, e tinha de passar para além dessa crise, mas sozinha.
- Vai para Navron, se é isso o que desejas - respondera, amuado. - Vou imediatamente mandar um recado, para que preparem as coisas para a tua chegada, para que abram a casa e os criados estejam prontos. No entanto, não compreendo. Porquê assim de repente, porque é que nunca antes demonstraste esse desejo, e não queres que vá contigo?
- Porque quero estar sozinha, porque a minha disposição é tal que te farei enlouquecer se não ficar sozinha, e porque enlouquecerei também - respondeu.
- Não percebo - insistiu Harry, de boca contraída, olhos afundados, e Dona, desesperada, tentara pintar uma imagem do seu humor.
- Recordas-te do aviário do meu pai, no Hampshire? perguntou. - E de como os pássaros eram bem alimentados e podiam voar de um lado para o outro na gaiola? Lembras-te do dia em que soltei um pintarroxo, que voou das minhas mãos, direito ao Sol?
- E então? - inquirira, juntando as mãos atrás das costas.
- Pois é assim que me sinto... como o pintarroxo antes de voar - respondeu, e depois virou-se, sorrindo, apesar de toda a sua sinceridade, por causa do seu ar intrigado, tão impotente e desnorteado, olhando-a, vestido com a camisa de dormir branca, e encolhera os ombros. Pobre querido, compreendia-o tão bem... Encolhera os ombros, trepara para a cama e virara a cara para a parede, para longe dela, e dissera:
- Oh, que diabo, Dona, porque é que és tão complicada?
Capitulo terceiro
Debateu-se com o fecho por instantes, era claro que se encravara por falta de uso, provavelmente ninguém lhe tocava havia meses, e depois abriu as janelas de par em par e deixou entrar o ar fresco e o sol.
- Pfff! Este quarto cheira a túmulo! - disse, e quando uma faixa de luz bateu no vidro viu o reflexo do criado que a olhava, e seria capaz de jurar que o homem sorria, mas virou-se e descobriu-o quieto e solene como estivera desde o primeiro momento da sua chegada. Era um homem seco e magro, com uma boca de botão e um rosto curiosamente branco.
- Não me recordo de si - disse-lhe. - Não estava aqui quando cá vim antes.
- Não, minha senhora - respondeu.
- Havia um velho... - esqueci-me do nome - que tinha reumatismo em todas as articulações e mal podia andar. Onde está ele?
- No seu túmulo, minha senhora.
- Compreendo... - Mordeu o lábio e voltou a virar-se para a janela. O homem estaria a rir-se dela, ou não?
- E foi você quem o substituiu na altura? - perguntou por cima do ombro, olhando para as árvores.
- Sim, minha senhora.
- Como se chama?
- William, minha senhora.
Esquecera-se de que os habitantes da Cornualha falavam de uma maneira estranha, quase como se fossem estrangeiros, com um curioso sotaque, ou, pelo menos, supunha que se tratava do sotaque local. Quando se virou para o encarar outra vez, viu-lhe o mesmo sorriso lento que notara reflectido no vidro.
- Receio que tenhamos causado uma grande complicaçãodeclarou - com a nossa chegada súbita, e com a abertura da casa. Tem estado fechada há muito tempo, é claro. Há pó por todo o lado e pergunto a mim mesma se já terá reparado.
- Reparei, minha senhora - retorquiu -, mas como vossa senhoria nunca veio a Navron, não parecia valer a pena verificar se os quartos estavam limpos. É difícil ter orgulho num trabalho que não é visto nem apreciado.
- De facto... - disse Dona, já divertida - a patroa preguiçosa faz o servo preguiçoso?
- Naturalmente, minha senhora - respondeu, num tom sério.
Dona andou de um lado para o outro ao longo da comprida sala, apalpando o tecido das cadeiras, desbotado e sem brilho. Tocou na escultura da pedra da lareira e olhou para os retratos nas paredes: o pai de Harry, pintado por Van Dyck - que rosto mais aborrecido que tivera -, e de certeza que aquele era o próprio Harry, a miniatura num estojo, feita no ano em que se tinham casado. Sim, já se recordava. Que jovem que lhe parecia, e que pomposo. Colocou-a de lado, consciente dos olhos do criado pousados sobre si - que estranha criatura -, e depois recompôs-se. Nunca nenhum servo levara a melhor com ela.
- Quer fazer o favor de providenciar para que todos os quartos sejam varridos e limpos do pó? - disse. - E também que todas as pratas sejam limpas, que sejam colocadas flores nos quartos, e que tudo esteja, em resumo, como se a dona da casa não tivesse sido preguiçosa e vivesse aqui há muitos anos?
- Será um prazer pessoal, minha senhora - respondeu o homem, fazendo uma vénia e saindo. Dona, vexada, compreendeu que o criado se rira dela mais uma vez, não de modo aberto, não com familiaridade, mas sim em segredo, no fundo dos olhos.
Saiu pela grande janela e passou para os relvados em frente da casa. Pelo menos os jardineiros haviam feito o seu trabalho, a relva estava cortada de fresco, as sebes formais haviam sido aparadas, talvez tudo à pressa, ontem mesmo, ou no dia anterior, quando tinham recebido a notícia de que a dona da casa ia voltar. Pobres diabos, compreendia o seu desleixo, que peste Lhes devia parecer, alterando a tranquila essência das suas vidas, quebrando-lhes a rotina preguiçosa, incomodando aquele estranho fulano, William - seria mesmo da Cornualha, aquela pronúncia? -, e dando cabo da desordem desleixada em que ele se instalara.
Algures, de uma janela aberta noutra parte da casa, ouvia a voz zangada de Prue, exigindo água quente para as crianças, e escutava o tremendo berreiro de James. Pobre querido, porque é que tinham de o lavar, de lhe dar banho, de o despir, e não o atiravam, tal qual estava, para cima de um cobertor num canto escuro, para o deixarem dormir? Caminhou através da relva em direcção à abertura entre as árvores, de que se recordava da última vez, e, sim, tivera razão, avistava o rio lá em baixo, brilhando, imóvel e silencioso.
O Sol ainda o iluminava, salpicando-o de verde e ouro, e havia uma pequena brisa que lhe agitava a superfície. Devia haver um barco em qualquer lado - precisava de se lembrar de perguntar a William se havia um barco - e iria entrar nele e deixar que a levasse para o mar. Que absurdo, que aventura. O James também tem de vir, molharemos as mãos e a cara na água, ficaremos encharcados com a espuma, os peixes saltarão para fora da água e as gaivotas gritar-lhes-ão. Oh, céus, ter finalmente conseguido fugir, ter-se escapado, ter-se libertado! Não era possível... Saber que estava a pelo menos noventa e cinco léguas de St. James Street, da obrigação de se vestir para o jantar, do Swan, dos cheiros de Haymarket, do odioso sorriso significativo de Rockingham, dos bocejos de Harry e dos seus olhos azuis carregados de censuras! Estava também a centenas de quilómetros da Dona que desprezava, da Dona que, por maldade ou por aborrecimento, ou por um pouco de cada uma dessas coisas, pregara aquela estúpida partida à condessa, em Hampton Court, se vestira com os calções de Rockingham, se envolvera numa capa e mascarara, cavalgara com ele e com os outros, deixando Harry no Swan (suficientemente bêbado para não perceber o que se estava a passar), para irem brincar aos salteadores, rodeando a carruagem da condessa e obrigando-a a parar no meio da estrada.
- Quem são vocês, e o que querem? - gritara a pobre velhota, tremendo de medo, enquanto Rockingham era forçado a enterrar o rosto no pescoço do cavalo, engasgado com gargalhadas silenciosas, e fora ela, Dona, quem fizera de chefe, gri tando numa voz alta e clara:
- Cem guinéus ou a tua honra!
A condessa, pobre desgraçada, com mais de sessenta anos, e com o marido no túmulo há alguns vinte, atrapalhara-se e remexera na bolsa, em busca de soberanos, e ficara aterrorizada com a possibilidade de aquele jovem ladrão da cidade acabar por a atirar para o fosso... Quando entregara o dinheiro e olhara para o rosto mascarado de Dona, revelara um deplorável tremor nos cantos da sua boca, e dissera:
- Por amor de Deus, poupem- me, sou velha e estou muito cansada.
Dona, invadida por instantes por uma onda de vergonha e degradação, devolvera a bolsa, virara o cavalo e cavalgara de volta à cidade, fervendo de ódio para consigo mesma, cega por lágrimas de aviltamento, enquanto Rockingham a perseguia com berros e gritos de Que é isto agora, que diabo aconteceu? ", e Harry, a quem tinham dito que a aventura não seria mais do que uma cavalgada até Hampton Court sob o luar, ia a pé para casa, não muito seguro do caminho, para encontrar a mulher à entrada, vestida com os calções do seu melhor amigo.
- Esqueci-me... Houve uma mascarada... O rei esteve presente? - perguntara, olhando-a com um ar estúpido e esfregando os olhos.
- Não, maldito sejas - respondera Dona -, a mascarada que havia já terminou, acabou agora mesmo, e de uma vez para sempre. Vou-me embora.
Tinham subido, tivera lugar a interminável discussão no quarto de dormir, seguida por uma noite de insónias, por ainda mais discussões de manhã, por Rockingham a bater à porta e ela a recusar-se a recebê-lo, pela partida de alguém para Navron para avisar. Depois haviam-se seguido os preparativos para a viagem, a viagem propriamente dita, e ali estava ela  finalmente, no silêncio, na tranquilidade, e numa ainda inacreditável liberdade.
O Sol punha-se por detrás das árvores, lançando um clarão vermelho e baço sobre o rio lá em baixo. As gralhas erguiam-se no ar e amontoavam-se por cima dos ninhos, o fumo das chaminés encaracolava-se para o alto em finas linhas azuis, e William acendia as velas no salão. Ceou tarde, sem pressasgraças aos céus, os jantares muito cedo eram agora uma coisa do passado -, e comeu com um prazer novo, que a fazia sentir-se culpada, sentada sozinha na extremidade da comprida mesa, enquanto William permanecia por detrás da sua cadeira e esperava em silêncio.
Faziam um estranho contraste, com ele envergando roupas escuras e sóbrias, de rosto pequeno e inescrutável, olhos minúsculos e uma boca de botão, e ela de vestido branco, com o pendente de rubi em volta do pescoço, e o cabelo puxado para trás das orelhas, com os caracóis da moda.
Havia velas altas sobre a mesa, e uma corrente de ar da janela aberta provocava um tremor nas suas chamas, e as chamas jogavam com as sombras nas suas feições. Sim", pensou o criado, a minha patroa é muito bela, mas também petulante, e com um pouco de tristeza. " Havia vestígios de descontentamento em volta da boca, e ligeiros indícios de um sulco entre as sobrancelhas. Encheu-lhe o copo uma vez mais, comparando a realidade que se encontrava na sua frente com a imagem pendurada nas paredes do quarto, lá em cima. Fora apenas na semana anterior que lá estivera, com alguém a seu lado, e esse alguém dissera, a brincar, olhando para o quadro: Será que a voltaremos a ver, William, ou permanecerá para sempre como um símbolo do desconhecido? " Olhando mais de perto, com um pequeno sorriso, acrescentara: Os olhos são grandes e encantadores, William, mas também têm sombras. Há manchas por baixo das pálpebras, como se alguém Lhes tocasse com um dedo sujo. "
- Há uvas? - perguntou a ama subitamente, quebrando o silêncio. - Apetecem-me uvas, pretas e suculentas, com todo o seu aveludado e cobertas de poeira.
- Sim, minha senhora - respondeu o servo, arrastado de volta ao presente, e foi buscar-lhe as uvas, cortando um cacho com a tesoura de prata e colocando-lho no prato, com a boca de botão contorcida enquanto pensava na notícia que teria de lhe transmitir amanhã, ou no dia seguinte, quando as marés da Primavera surgissem de novo e o navio regressasse.
- William - disse Dona.
- Minha senhora?
- A ama das crianças disse- me que as criadas lá de cima são novas na casa, que as mandou chamar quando soube da minha chegada. Disse-me que uma é de Constantine, outra de Gweek, e que até o próprio cozinheiro é novo, um homem de Penzance.
- É perfeitamente verdade, minha senhora.
- Qual foi a razão, William? Sempre pensei, e creio que Sir Harry também o pensava, que Navron tinha o pessoal completo.
- Pareceu-me, senhora, mas talvez me enganasse, cabe a si dizê-lo, que um criado preguiçoso era mais do que suficiente para esta casa. Vivi inteiramente sozinho durante este último ano.
Olhou-o por cima do ombro, mordendo o cacho de uvas.
- Podia despedi-lo por isso, William.
- Sim, minha senhora.
- Provavelmente é o que farei, logo pela manhã.
- Sim, minha senhora.
Continuou a comer as uvas, estudando-o, um pouco intrigada e irritada por um servo poder ser uma pessoa tão desconcertante. No entanto, sabia muito bem que não o iria despedir.
- Vamos supor que não o despeço, William. Que faria?
- Servi-la-ia com fidelidade, minha senhora.
- Como pode ter a certeza disso?
- Sempre servi fielmente as pessoas de quem gosto, minha senhora.
Não podia dar uma resposta àquilo, porque a pequena boca de botão continuava tão impassível como antes, e os olhos nada exprimiam, mas sentiu, no fundo do coração, que o homem não se ria dela, que estava a dizer a verdade.
- Então devo aceitar essa declaração como um  cumprimento, William? - respondeu finalmente, levantando-se e deixando que o criado lhe puxasse a cadeira para trás.
- Foi essa a ideia, minha senhora - declarou, e Dona abandonou a sala sem uma palavra, sabendo que encontrara um amigo e um aliado naquele estranho homenzinho com modos curiosos, meio corteses meio familiares.
Riu-se em segredo, para dentro, pensando em Harry e em como ele ficaria a olhar sem compreender: Que maldita impertinência, o fulano precisa de ser chicoteado. "
Tudo aquilo estava errado, é claro. William comportara-se de uma maneira muito imprópria, não tinha nada que viver sozinho na casa, não admirava que houvesse pó por todo o lado e que cheirasse a túmulo. No entanto, compreendia-o. Não fora ali para fazer precisamente o mesmo? Talvez William tivesse uma mulher maçadora e uma existência cheia de preocupações numa qualquer outra parte da Cornualha. Talvez também tivesse desejado fugir. Interrogava-se, descansando no salão, olhando para a lareira que ele avivara, com um livro pousado no colo, mas que não lia, sobre se William se teria sentado ali antes da sua chegada, por entre os lençóis e panos de cobertura, e sobre se estaria irritado por ser ela a servir-se da sala. Oh, a encantadora luxúria do sossego, de viver sozinha assim, com uma almofada por detrás da cabeça, uma corrente de ar da janela a agitar-lhe os cabelos, certa de que ninguém a iria incomodar com gargalhadas demasiado altas e vozes ásperas. Isso eram coisas que pertenciam a um outro mundo, um mundo de calçadas empoeiradas, de cheiros das ruas, de rapazes aprendizes, de música feia, de tabernas, de falsas amizades e de futilidades. Pobre Harry, provavelmente estava a cear com Rockingham no Swan, lamentando o seu destino, dormitando sobre as cartas, excedendo-se na bebida e dizendo: Maldição, não parava de falar de um pássaro, dizendo que se sentia como um pássaro! Que diabo queria ela dizer? " Rockingham, com o seu sorriso mordaz e os olhos estreitos que compreendiam, ou que pensavam que compreendiam, as suas qualidades básicas, murmuraria: Pergunto a mim mesmo... Sim, pergunto a mim mesmo... "
Por fim, quando o fogo se apagou e a sala arrefeceu, subiu para o quarto, passando primeiro pelos quartos das crianças para ver se tudo estava bem. Henrietta parecia uma boneca de cera, com os cabelos louros a enquadrarem-lhe a face, a boca a fazer um ligeiro beicinho, enquanto James, na sua cama, fazia caretas durante o sono, rechonchudo e corpulento como um pequeno buldogue. Meteu-lhe o punho debaixo das roupas, aproveitando para o beijar, e o garoto abriu um dos olhos e sorriu. Afastou-se logo, envergonhada por aquela furtiva ternura por ele. Era tão primitivo, tão desprezível, comover-se até à insensatez só porque se tratava de um macho. Sem dúvida cresceria, ficaria gordo e grosseiro, e provocaria a infelicidade de uma mulher qualquer.
Alguém - supunha que William - cortara um lilás e colocara-o no quarto, na pedra da lareira, por debaixo do seu próprio retrato. Enchia o quarto com um perfume estonteante e doce. Graças a Deus, pensou, despindo-se, não ouvirei as correrias dos spaniels, não escutarei patas a arranhar nem haverá cheiro a cães, e a grande e profunda cama vai ser só minha.
O seu próprio retrato olhava para baixo, para ela, com interesse. Terei aquela boca rabugenta", pensou, aquele ar petulante? Era aquele o meu aspecto, há seis ou sete anos? Ainda terei a mesma cara?
Vestiu a camisa de dormir, sedosa, branca e fresca, esticou os braços acima da cabeça e inclinou-se na janela. Os ramos agitavam-se de encontro ao céu. Por baixo ficava o jardim, e mais distante, no vale, o rio corria ao encontro da maré. Imaginou as águas doces e borbulhantes das chuvas da Primavera, a atirarem- se contra as ondas salgadas, e o modo como elas se misturariam e tornariam numa coisa só, para se desfazerem nas praias. Abriu as cortinas, para que a luz lhe pudesse inundar o quarto, e encaminhou-se para a cama, colocando o castiçal sobre a mesa ao ladio.
Ensonada, meio a dormir, vendo a lua a criar padrões no soalho, perguntou a si mesma qual seria aquele outro cheiro que se misturava com o do lilás, um cheiro mais forte e áspero, a algo cujo nome lhe escapava. Picava-lhe nas narinas naquele momento, quando virou a cabeça sobre a almofada. Parecia vir da gaveta por debaixo da mesa. Estendeu um braço, abriu a gaveta e espreitou para o interior. Estava ali um livro e um boião de tabaco. Notara o cheiro do tabaco, é claro. Pegou no frasco e verificou que o tabaco era castanho, forte, e que fora cortado havia pouco tempo. William teria tido a audácia de dormir na sua cama, de jazer ali, a fumar, olhando para o seu retrato? Era de mais, era realmente imperdoável. Havia qualquer coisa de tão pessoal em torno daquele tabaco, qualquer coisa que não condizia com William, que deveria estar enganada... Mas mesmo assim, se William vivera um ano inteiro, sozinho, em Navron...
Abriu o livro. O homem também gostava de ler? Ficou ainda mais intrigada do que antes, pois o livro era um volume de poesia, poesia francesa do poeta Ronsard, e na primeira folha alguém escrevinhara as iniciais KJ. B. A. - Finistère", e por baixo desenhara a minúscula imagem de uma gaivota.
Capítulo Quarto
Na manhã seguinte, quando acordou, a sua primeira ideia foi a de mandar chamar William, confrontá-lo com o boião de tabaco e com o volume de poesia, perguntar-lhe se dormira mal no seu novo colchão e se dera pela falta do conforto da cama dela. Brincou com a ideia, divertindo-se ante a imagem do pequeno rosto inescrutável a ganhar finalmente alguma cor, com a boca de botão a descair de desânimo, mas depois, quando apareceu a criada de pés pesados com o pequeno almoço, rude rapariga do campo tropeçando e corando por falta de jeito, decidiu ganhar tempo, esperar uns dias, pois parecia-lhe que havia qualquer coisa a avisá-la de que seria prematuro, e despropositado, admitir imediatamente a descoberta que fizera.
Deixou o boião de tabaco e a poesia na gaveta da mesa ao lado da cama, e quando se levantou, se vestiu e desceu, descobriu que a casa de jantar e o salão haviam sido varridos e limpos do pó, tal como mandara, que havia flores frescas em todos os quartos, que as janelas estavam abertas de par em par, e que era o próprio William quem dava brilho aos altos castiçais da parede.
O homem perguntou-lhe imediatamente se dormira bem, e ela respondeu:
- Sim - disse, pensando que era aquele o momento indicado, e não foi capaz de evitar acrescentar: - E o senhor, espero, não ficou demasiado fatigado com a nossa chegada?
William permitiu-se um sorriso, respondendo:
- É muita amabilidade sua, senhora. Não, dormi bem, como sempre. Ouvi o menino James a chorar durante a noite, mas a ama acalmou-o. Depois de um tão longo silêncio, é estranho ouvir uma criança a chorar nesta casa.
- E não se importa? - inquiriu.
- Não, minha senhora. Foi um som que me levou de volta aos tempos de infância. Era o mais velho de uma família de treze. Estavam sempre a aparecer novos bebés.
- A sua casa é perto daqui, William?
- Não, minha senhora. - Havia uma nova qualidade na sua voz, uma nota de decisão. Era como se tivesse dito A vida de um criado é só dele e de mais ninguém. Não se meta nela. " E Dona teve a compreensão suficiente para não insistir, para não o interrogar mais. Olhou-lhe para as mãos. Estavam limpas e de um branco ceroso, sem manchas de tabaco, e todo ele tinha uma textura impessoal e mole, que não condizia com o masculino cheiro do tabaco, tão forte e castanho, que se encontrava no frasco, no seu quarto.
Talvez estivesse a ser malévola, talvez o boião lá se encontrasse há três anos, desde a última visita de Harry à propriedade, em que não o acompanhara. Todavia, Harry não fumava tabaco forte. Vagueou até às estantes onde se viam fileiras de grandes livros encadernados a couro, livros que nunca ninguém lia, e serviu-se do pretexto de pegar num dos volumes e dar-lhe uma vista de olhos, enquanto o criado continuava a polir os castiçais.
- Gosta de ler, William? - perguntou de repente.
-Já deve ter percebido que não, minha senhora - respondeu -, porque os livros, nessas estantes, estão cobertos de pó. Não, nunca lhes toquei. Tratarei disso amanhã. Tiro-os a todos e limpo-os bem.
- Então não tem nenhum passatempo?
- As borboletas interessam- me, minha senhora. Tenho uma bela colecção no meu quarto. Os bosques em volta de Navron são excelentes para as borboletas.
Depois daquela resposta, Dona deixou-o. Encaminhou-se para o jardim, ouvindo as vozes das crianças. Não havia dúvidas de que o homenzinho era estranho, não o conseguia entender, e se fosse ele quem lia Ronsard, sem dúvida que nas noites de vigília teria remexido naqueles livros, pelo menos uma ou duas vezes, por simples curiosidade.
As crianças chamaram-na, felizes, com Henrietta a dançar como uma fada e James, ainda muito inseguro, a oscilar atrás dela como um marinheiro bêbado, e foram os três para os  bosques para colherem campainhas. As flores começavam a aparecer na verdura nova, pequenas, espetadas e azuis. Na semana seguinte, ou uma semana depois, teriam um tapete de flores onde se poderiam deitar.
Assim passou o primeiro dia, e o seguinte, e o outro, e Dona exultava com a sua recém-descoberta liberdade. Agora podia viver sem um plano, sem uma decisão, aceitando os dias tais como estes surgiam, levantando- se ao meio-dia se era isso o que lhe apetecia, ou às seis da manhã - não fazia diferença -, comendo quando tinha fome, dormindo quando queria, de dia ou de noite. O seu estado de espírito era de encantadora preguiça. Jazia no jardim hora após hora, com as mãos atrás da cabeça, vendo as borboletas a esvoaçarem ao sol, a perseguirem-se umas às outras, a terem o seu momento; escutava as aves entre os ramos, entretidas com a vida doméstica, tão atarefadas, tão ardentes, como casais recém-casados orgulhosos da casa nova, limpa e polida como uma moeda nova. O Sol brilhava permanentemente sobre ela, e as nuvens encarneiradas atravessavam o céu, e lá em baixo no vale, para lá dos bosques, encontrava-se o rio, o rio que ainda não descobrira, porque a preguiça era muita, porque tinha muito tempo. Um dia, muito em breve, desceria até ele logo pela manhã, andaria descalça nas águas baixas e deixaria que a água a salpicasse, e sentiria o cheiro enlameado do rio, doce e pungente.
Os dias eram luminosos e longos, as crianças ficavam bronzeadas como pequenos ciganos. Até Henrietta perdia os modos citadinos e corria sobre a relva de pés nus, para jogar ao eixo, e para rebolar no chão como James, como um cachorrinho.
Brincavam assim, uma tarde, rebolando e caindo sobre Dona, que se encontrava deitada de costas com o vestido de qualquer maneira e os caracóis numa desordem louca (enquanto a desaprovadora Prue se mantinha na segurança do interior da casa), atingindo-se uns aos outros com cabeças de margaridas e madressilvas, quando Dona, quente e estonteada, estupidificada de sol, ouviu o agoirento som de cascos de cavalo na alameda, o matraquear no pátio em frente da casa, e o tilintar da grande sineta. E, horror dos horrores, ali estava William a avançar para ela sobre a relva, seguido por um estranho, uma grande e robusta criatura de face rubicunda e olhos bulbosos, com uma cabeleira demasiado encaracolada, que enquanto caminhava ia batendo nas botas com uma bengala de castão de ouro.
- Está aqui Lord Godolphin para a visitar, minha senhora - disse William com um ar grave, nada chocado com a sua aparência, tão desalinhada, tão desgraçada. Pôs-se imediatamente de pé, alisando o vestido, dando um jeito aos caracóis: que irritação, que embaraço e que maldita intrusão.
A criatura olhou para ela, chocada, o que não era para admirar. Pois bem, teria de suportar o seu aspecto, e talvez assim se fosse embora mais depressa. Então, fez-lhe uma mesura e disse:
- Estou encantada por o ver.
O homem retorquiu com uma vénia solene e não respondeu. Seguiu à frente, em direcção à casa, vendo-se de relance no espelho existente na parede. Tinha madressilvas por detrás da orelha e deixou-as ficar, obstinada. Não se importava. Sentaram-se em cadeiras rígidas e olharam um para o outro, enquanto Lord Godolphin remexia a bengala de castão de ouro.
- Ouvi dizer que estava a residir aqui - acabou finalmente por dizer -, e considerei um dever, ou antes, um prazer, vir apresentar-lhe os meus cumprimentos tão depressa quanto possível. Há muitos anos que a senhora e o seu marido não condescendiam em visitar Navron. De facto, até posso afirmar que se tornaram em estranhos. Conheci Harry muito bem, quando vivia aqui, ainda rapaz.
- Ah, sim? - respondeu Dona, subitamente impressionada com a intumescência que acabara de lhe ver num dos lados do nariz. Que infelicidade, pobre homem. Afastou os olhos rapidamente, com medo de que se apercebesse que estava a olhar.
- Sim - prosseguiu -, posso afirmar que contava Harry entre os meus melhores amigos. Porém, desde que se casou vejo-o muito pouco, pois passa quase todo o seu tempo na cidade.
Era uma censura para ela, pensou, muito natural, claro.
- Lamento dizer que Harry não está comigo - disse-Lhe.
- Estou aqui sozinha, com as crianças.
- É uma grande pena - respondeu.
Dona não fez comentários, pois que poderia dizer?
- A minha mulher gostaria de ter vindo comigo - continuou, mas neste momento não goza de muito boa saúde. Em resumo... - Deteve-se, incerto sobre como prosseguir, e Dona sorriu.
-Compreendo perfeitamente. Eu própria tenho duas crianças pequenas - ao que o homem pareceu um pouco embaraçado e fez uma vénia.
- Estamos com esperanças num herdeiro - afirmou.
- Claro - disse Dona, mais uma vez impressionada com aquela excrescência no nariz. Que coisa aborrecida para a mulher que tinha de o suportar.
Porém, Godolphin estava outra vez a falar, dizendo qualquer coisa a respeito de a mulher ter muito prazer em lhe dar as boas-vindas em qualquer altura, os vizinhos eram tão poucos, e assim por diante, sem se calar. Que aborrecido e cansativo que era, pensou Dona, não haveria um meio termo entre aquele pretensiosismo pomposo e a frivolidade viciosa de Rockingham? Harry acabaria por ficar assim se vivesse em Navron? Um grande nabo, com olhos que nada diziam e uma boca que parecia uma fenda numa bola de sebo?
- Tinha a esperança - dizia Godolphin - de que Harry nos desse alguma assistência no condado. Sem dúvida que já deve ter ouvido falar nos nossos problemas.
- Não ouvi nada a esse respeito - afirmou Dona.
- Não? Pois é, talvez estejamos aqui demasiado remotos para que as notícias lá cheguem, apesar de não se falar noutra coisa muitos quilómetros em redor. Temos sido vexados e incomodados, na verdade até quase não podermos mais, por actos de pirataria. Em Penryn e ao longo da costa, têm sido perdidos bens de um valor considerável. A propriedade de um meu vizinho foi saqueada há cerca de uma semana.
- Ah, que aborrecimento! - exclamou Dona.
- É mais do que um aborrecimento, é positivamente um ultraje! - declarou Godolphin com um rosto que se avermelhava e com os olhos mais bulbosos do que nunca. - E ninguém sabe como resolver o assunto. Enviei queixas para Londres e não recebi qualquer resposta. Mandaram-nos meia dúzia de soldados da guarnição de Bristol, mas são mais do que inúteis. Não, é fácil de ver que eu e os restantes proprietários do condado teremos de nos unir para enfrentar essa ameaça. É uma infelicidade que Harry não esteja em Navron. Uma infelicidade.
- Poderei fazer alguma coisa para ajudar? - perguntou Dona, cravando as unhas nas mãos para evitar sorrir. Parecia sentir-se tão provocado, tão altamente indignado, quase como se estivesse a culpá-la daqueles actos de pirataria.
- Minha querida senhora - retorquiu -, não há nada que possa fazer, excepto pedir ao seu marido para cá vir e reunir-se aos amigos, para que possamos lutar contra esse maldito francês.
- Francês?
- Oh, sim, e isso é o pior de tudo - respondeu, quase gritando de ira. - O homem é um verme estrangeiro, que por qualquer motivo parece conhecer a nossa costa como as palmas das suas mãos, e que se escapa para o outro lado, para a Bretanha, antes de termos tempo para o agarrar. O seu navio é rápido e escorregadio como o mercúrio, e nenhum de nós o consegue alcançar. Desliza para as nossas baías à noite, desembarca silenciosamente como rato que é, apodera-se dos nossos bens, arromba os nossos armazéns, rouba as mercadorias, e vai-se embora com a maré da manhã, quando os nossos ainda estão a afastar o sono dos olhos.
- De facto, é demasiado esperto para todos vós - disse Dona.
- Ora, sim, minha senhora... se prefere pôr as coisas desse modo - retorquiu à pressa, imediatamente ofendido.
- Receio bem que Harry nunca o conseguissse apanhar. É muito preguiçoso.
- Não sugeri, nem por um momento, que fosse capaz de o fazer - disse Godolphin. - Precisamos de muitas cabeças para tratar do assunto, e quantas mais melhor. Temos de apanhar esse fulano nem que isso signifique despender todo o nosso tempo e dinheiro. Talvez não consiga entender até que ponto a coisa é grave. Estamos constantemente a ser roubados, e as nossas mulheres nem dormem, temendo pelas suas vidas, e não apenas pelas vidas.
- Ah, então é um pirata desse tipo? - murmurou Dona.
- Até ao momento não se perdeu qualquer vida, nem foi tomada nenhuma mulher - declarou Godolphin, rígido -, mas, como se trata de um francês, todos compreendemos que é uma questão de tempo até vir a ocorrer qualquer coisa de desagradável.
- Oh, claro... - comentou Dona. Invadida por repentinas gargalhadas, levantou-se e caminhou até às janelas, pois toda aquela seriedade e pomposidade eram quase insuportáveis; já não as aguentava e tinha de controlar o riso. Porém, graças aos céus, o homem encarou o gesto como uma despedida, pois fez uma vénia solene e beijou a mão que Dona Lhe estendeu.
- Da próxima vez que escrever ao seu marido, espero que o recorde de mim e que lhe faça um relato dos nossos problemas - disse.
- Sim, é claro - respondeu Dona, decidida a que, acontecesse o que acontecesse, não queria que Harry aparecesse à pressa em Navron para enfrentar piratas que ninguém conseguia apanhar, dando-Lhe cabo da privacidade e da sua adorável liberdade. Depois de lhe prometer que visitaria a mulher, e de o deixar balbuciar mais algumas formalidades, Dona chamou William e o homem retirou-se. Escutou o trote firme do cavalo a desaparecer ao longo do caminho.
Esperava que fosse o último visitante, pois aquele tipo de coisas era precisamente o que não desejava. Ficar solenemente sentada numa cadeira, numa conversa sem interesse com uma cabeça de nabo, era ainda pior do que os jantares no Swan. William precisava de ser avisado. De futuro, não estaria em casa para as visitas. Que arranjasse uma desculpa; saíra para passear, estava a dormir, estava doente ou até louca, encerrada no quarto e presa com correntes. Tudo isso era preferível a ter de enfrentar os Godolphins do condado, com toda a sua imponência e pomposidade.
Que estúpidos que aqueles cavalheiros locais deveriam ser, para se deixarem roubar assim, permitindo que os seus bens e mercadorias desaparecessem no meio da noite, incapazes de o evitar mesmo com a ajuda de soldados. Que lentos deveriam ser, que ineficientes. Sem dúvida que se mantivessem uma vigilância, se conservassem permanentemente alerta, seria possível montar uma armadilha ao estrangeiro que deslizava sorrateiramente para as suas baías. Um navio não era um fantasma, dependia do vento e da maré, os homens não eram silenciosos, os pés deveriam fazer barulho quando desembarcassem, as vozes deveriam ouvir-se no ar. Nessa noite ceou mais cedo, às seis, e conversou com William, enquanto este permanecia por detrás da sua cadeira, pedindo-lhe que, para o futuro, fechasse as portas aos visitantes.
- Sabe, William - disse -, vim para Navron para evitar as pessoas, para estar sozinha. Estou disposta a ser uma eremita enquanto aqui permanecer.
- Sim, minha senhora - respondeu. - Cometi um erro esta tarde. Não acontecerá segunda vez. Poderá gozar a sua solidão e saborear a fuga.
- Fuga? - perguntou Dona.
- Sim, minha senhora - retorquiu. - Já tinha compreendido que é por isso que está aqui. Fugiu ao que a senhora é em Londres, e Navron é o seu santuário.
Ficou silenciosa por um minuto, espantada, um pouco incomodada, e só depois respondeu:
- Tem uma intuição invulgar, William. Onde a foi buscar?
- O meu último amo conversava muito comigo, e com frequência, minha senhora. Pedi-lhe emprestadas muitas das minhas ideias e da minha filosofia. Habituei-me, tal como ele, a observar as pessoas. Penso que ele consideraria o seu aparecimento aqui como sendo uma fuga.
- Porque abandonou o seu amo, William?
- Porque de momento, minha senhora, a sua vida é tal que os meus serviços de pouco Lhe serviriam. Decidimos que eu estaria melhor em qualquer outro lado.
- E foi assim que veio para Navron?
- Sim, minha senhora.
- E viveu sozinho, e caçou borboletas?
- Exactamente, minha senhora.
- Então, nesse caso, Navron talvez seja também uma fuga para si...
- É possível, minha senhora.
- E que faz o seu antigo amo?
- Viaja, minha senhora.
- Faz viagens, de um lado para o outro?
- Sim, minha senhora.
- Então, William, também ele é um fugitivo. As pessoas que viajam são sempre fugitivas.
- O meu amo fez muitas vezes essa mesma observação, minha senhora. De facto, poderia afirmar que a sua vida é uma contínua fuga.
- Que agradável que deve ser para ele - disse Dona, descascando a fruta. - O resto de nós só consegue fugir de tempos a tempos, e por muito que pretendamos ser livres sabemos que é apenas por algum tempo. Temos as mãos e os pés amarrados.
- É verdade, minha senhora.
- E o seu amo... não tem laços de nenhuma espécie?
- Nenhum, minha senhora.
- Gostaria de conhecer o seu antigo amo, William.
- Creio que teriam muito em comum, minha senhora.
- Talvez um dia passe por aqui, durante uma das suas viagens...
- Talvez, minha senhora.
- De facto, vou alterar as minhas instruções a respeito de visitantes, William. Se o seu antigo amo aparecer, não fingirei que estou doente, ou louca, ou que tenho qualquer outra coisa, e recebê-lo-ei.
- Muito bem, minha senhora.
Olhando em volta, porque agora estava de pé e William lhe puxara a cadeira, Dona viu que o homem sorria, mas o sorriso desapareceu instantaneamente quando os olhos se encontraram, e a boca cerrou-se no habitual botão. Dona deslizou para o jardim. O ar estava suave, lânguido e quente, e ao longe, para oeste, o Sol desenhava grandes padrões no céu. Ouvia as vozes das crianças, que Prue metia na cama. Era um momento em que podia continuar sozinha, a oportunidade para um passeio. Pegando num xaile e colocando-o sobre os ombros, saiu do jardim, atravessou o parque, uma cancela, um campo e um caminho enlameado. O caminho conduziu-a às marcas da passagem de um carro, e as marcas conduziram-na até uma grande área de terra coberta de ervas, uma faixa de terreno não cultivado, que ia até às falésias e ao mar.
Sentiu dentro dela um impulso para caminhar até ao mar, ao verdadeiro mar aberto, e não ao rio, e quando a tarde já arrefecia e o Sol se afundava no horizonte atingiu finalmente uma saliência de terra inclinada, onde as gaivotas gritaram, furiosas, ao verem-na aproximar-se, pois estavam na época da nidificação. Descendo a terra coberta de tufos e as pedras espalhadas por todo o lado, olhou para o mar. Ali estava o rio, ao longe, para a esquerda, largo e brilhante no ponto em que encontrava o mar, enquanto este se mantinha parado e muito calmo, e o sol-poente o pintava de tons de cobre e púrpura. Em baixo, muito ao fundo, as pequenas ondas salpicavam as rochas.
Na sua frente, o Sol que se punha marcava um caminho para o mar, que se estendia até ao distante horizonte. Dona deixou-se ficar, a olhar, de mente estonteada e satisfeita, de coração em paz. Avistou uma mancha no horizonte, que por fim ganhou contornos e forma. Viu as velas brancas de um navio. Este não avançou durante algum tempo, uma vez que nada respirava sobre a água, e pareceu ficar a pairar entre o mar e o céu, como se fosse um brinquedo pintado. Via-lhe o alto castelo da popa, a extremidade da proa e os curiosos mastros inclinados, e os homens que iam a bordo deveriam ter tido muita sorte com a pesca porque as gaivotas se amontoavam em volta do navio, remoinhando e gritando, mergulhando na água. Por fim, na ponta de terra em que Dona se encontrava, nasceu o ligeiro tremor de uma brisa. Viu a brisa agitar a superfície da água por debaixo dela e viajar pelo mar em direcção ao navio que a aguardava. De súbito, as velas captaram a brisa e encheram- se, arredondaram-se ao vento, encantadoras, brancas e livres, com as gaivotas a erguerem-se em bando, gritando por cima dos mastros, o sol- poente prendeu o barco pintado no meio de um clarão dourado, e em silêncio, com firmeza, deixando atrás de si uma longa esteira negra, o navio avançou em direcção a terra. Dona sentiu um pressentimento. Era como se um dedo lhe houvesse tocado no coração e uma voz lhe dissesse no cérebro: Vou recordar-me disto. " Uma premonição de maravilha, de medo, uma excitação súbita e estranha. Virou-se rapidamente, sorriu para si mesma sem razão aparente, cantarolando uma pequena melodia, e caminhou de volta pelas colinas, em direcção a Navron House, evitando a lama e saltando por cima das poças de água como uma criança, enquanto o céu escurecia, a Lua se levantava e o vento da noite começava a sussurrar por entre as altas árvores.
Capítulo Quinto
Foi para a cama logo que chegou a casa, porque o passeio a cansara, e adormeceu quase imediatamente apesar das cortinas abertas e do brilhante luar. Então, um pouco depois da meia-noite, e devia ser essa a hora, pois o seu subconsciente ouvira o badalar do relógio de parede, acordou com os passos que esmagavam a gravilha por debaixo da sua janela. Ficou instantaneamente alerta - a uma hora daquelas o pessoal devia estar a dormir e desconfiava de passos na noite. Levantou-se da cama, foi até à janela e olhou para o jardim.
A casa estava nas sombras, não via nada por debaixo dela, e quem quer que ali tivesse estado, por debaixo da janela, deveria ter prosseguido o seu caminho. Esperou, e observou, e de súbito, da cintura de árvores para lá do relvado, uma figura avançou para um clarão de luar e olhou para cima, para a casa. Viu-a colocar as mãos em taça em volta da boca e soltar um assobio baixo e suave. Imediatamente, houve uma outra figura que deslizou das sombras da casa, que deveria ter estado abrigada mesmo no interior da janela do salão, e essa segunda figura correu rapidamente pela relva para o homem junto da cintura de árvores, com uma das mãos levantadas, numa espécie de aviso, e Dona verificou que a figura que corria era a de William. Inclinou-se para a frente, protegida pela cortina, com os caracóis a caírem-lhe sobre o rosto, respirando mais depressa do que o costume, com o coração a bater mais rápido porque havia excitação naquilo que via, havia perigo, e os seus dedos martelavam no peitoril, tamborilando uma pequena melodia sem nome. Os dois homens ficaram juntos na mancha de luar, e Dona viu William gesticular com as mãos, e apontar para a cása, o que a levou a recuar para as sombras com medo que a vissem. Os dois continuaram a conversar, com o estranho a olhar também para cima, para a casa, e acabando por encolher os ombros, de mãos abertas, como se o assunto estivesse para lá dos seus poderes de resolução, e depois retiraram-se ambos para a cintura de árvores e desapareceram. Dona esperou e escutou, mas não regressaram. Estremeceu, porque a brisa fresca soprava sobre a sua fina camisa de dormir, e voltou para a cama, mas não conseguiu adormecer, pois aquela nova saída de William era um mistério que tinha de ser resolvido.
Se o tivesse visto a andar ao luar, junto às árvores, não teria pensado mais no assunto, pois junto ao rio poderia estar uma mulher da aldeia de Hamlet, que não lhe desagradasse, ou então aquela sua expedição silenciosa poderia ser ainda mais inocente, uma simples caçada às borboletas, à meia-noite. Porém, os passos sorrateiros, como se estivesse à espera de um sinal, a figura escura com as mãos em volta da boca e o assobio suave, William a correr pela relva fazendo um sinal de aviso com a mão, constituíam problemas mais graves e que davam azo a preocupações.
Interrogou-se se teria sido estúpida ao confiar em William. Outra pessoa que não ela tê-lo-ia despedido logo na primeira noite, ao ter conhecimento das suas funções e do modo como vivera na casa sozinho, sem ordens para isso. E aquelas suas maneiras, tão impróprias num vulgar criado, as maneiras que a intrigavam e divertiam, teriam sem dúvida sido uma ofensa para a maior parte das senhoras, para uma Lady Godolphin. Harry tê-lo-ia mandado embora imediatamente, excepto que, e sentia-o por instinto, as maneiras do homem teriam sido diferentes para com Harry. Depois havia também o boião do tabaco, o volume de poesia... Eram mistificadores, para lá da sua capacidade de compreensão, mas de manhã tinha de fazer qualquer coisa, de tomar o assunto em mãos, e assim, sem ter decidido nada de concreto, e com os pensamentos em desordem, acabou finalmente por adormecer, quando a luz cinzenta da madrugada começava a penetrar no quarto.
O dia estava quente e brilhante, como o anterior, com um alto Sol dourado num céu sem nuvens, e quando Dona desceu o seu primeiro movimento foi em direcção à cintura de árvores, ao local onde William conversara com o estranho, e onde tinham desaparecido na noite anterior. Sim, era como esperara, os passos tinham aberto um pequeno trilho por entre as  campainhas azuis, fácil de seguir, que ia direito ao trilho existente no meio do bosque e seguia por entre o mais profundo das árvores. Continuou durante um bocado, com o trilho sempre a descer, contorcendo-se, irregular, difícil de seguir, e de repente compreendeu que com tempo o caminho a levaria ao rio, ou a um afluente do rio, porque avistou à distância um brilho de água, que não esperava que se encontrasse tão perto, pois o rio propriamente dito deveria encontrar-se longe, por detrás dela, para a esquerda, e aquele curso de água para onde se dirigia era uma coisa desconhecida, era uma descoberta. Hesitou por um momento, incerta sobre se deveria prosseguir, e depois recordou-se das horas e de que as crianças deveriam estar à sua procura, bem como, talvez, até o próprio William, à espera de instruções, pelo que deu meia volta e voltou a trepar por entre os bosques, até aos relvados de Navron House. O assunto teria de ser adiado para uma altura melhor, talvez para a tarde.
Assim, brincou com as crianças e escreveu a obrigatória carta para Harry, pois o palafreneiro partiria para Londres dentro de um ou dois dias, para levar notícias. Sentou-se no salão, junto da grande janela aberta, mordiscando a ponta da pena, pois o que haveria para dizer, excepto que se sentia feliz com a sua liberdade, absurdamente feliz, e uma coisa dessas iria magoá-lo. Pobre Harry, nunca seria capaz de compreender.
Recebi a visita de um teu amigo de infância, um tal Godolphin", escreveu, que achei desagradável e pomposo, e não vos consegui imaginar aos dois a correrem pelos campos quando ainda eram rapazes. Porém, talvez não corressem e se sentassem em cadeiras douradas e brincassem à cama-de-gato. Tem uma coisa a crescer-lhe na ponta do nariz e a mulher espera um bebé, o que me levou a expressar-lhe a minha simpatia. Estava muito agitado e inquieto por causa dos piratas, ou antes, por causa de um pirata, um francês, que aparece à noite e lhe assalta a casa, e as casas dos vizinhos, e nem com todos os soldados o conseguem apanhar, o que me faz pensar que não devem ser muito inteligentes. Por isso propus- me avançar eu própria, com um alfange entre os dentes, e quando conseguir apanhar o patife, que de acordo com Godolphin é um indivíduo extremamente feroz, um matador de homens e um encantador de mulheres, amarro-o com fortes cordas e envio-to de presente. " Dona bocejou e bateu na folha de papel com a pena. Era fácil escrever uma carta daquelas, troçando de tudo, e precisava ter o cuidado de não se mostrar terna, porque nesse caso Harry saltava logo para um cavalo e cavalgava para ela, nem demasiado fria, porque isso o incomodaria e também o faria aparecer. Por isso escreveu: Continua a divertir-te como quiseres, mas pensa na tua figura quando beberes aquele quinto copo, e conversa, se te apetecer, com qualquer bela dama em que pouses os teus olhos ensonados, pois não fingirei estar zangada quando te vir outra vez.
Os teus filhos estão bem e mandam-te todo o seu amor, e eu envio-te... o que quer que seja que queiras que te envie.
A tua afectuosa esposa,
Dona. "
Dobrou a folha e selou-a. Agora estava mais uma vez livre e começou a pensar em como poderia afastar William durante a tarde, pois desejava-o bem longe quando iniciasse a sua expedição. À uma hora, depois das carnes frias, soube como o conseguir.
- William - disse.
- Minha senhora?
Mirou-o e não lhe viu nenhum ar de pássaro nocturno, era o mesmo de sempre, atento às suas ordens.
- William - repetiu -, quero que sele um cavalo e vá esta tarde até à mansão de Lord Godolphin, levando flores para a esposa, que não se encontra bem.
Teria visto um clarão de aborrecimento nos olhos, uma má vontade momentânea, uma hesitação?
- Quer que leve as flores hoje, minha senhora?
- Se fizer esse favor, William.
- Creio que o moço da cavalariça está sem fazer nada, minha senhora.
- O moço irá levar a menina Henrietta, o menino James e a ama a um piquenique, na carruagem.
- Muito bem, minha senhora.
- Dirá ao jardineiro para cortar as flores?
- Sim, minha senhora.
Dona nada mais disse e também ele ficou em silêncio. Sorriu para si própria, pois adivinhava que William não queria ir. Talvez tivesse um outro compromisso com o amigo, no meio dos bosques. Pois bem, iria ela ao encontro.
- Diga a uma das criadas para abrir a minha cama e fechar as cortinas. Esta tarde, quero descansar - disse, enquanto saía da sala, e William fez uma vénia, sem responder.
Era um ardil para afastar quaisquer receios que o homem pudesse ter, mas estava segura de que ele não desconfiava. Assim, desempenhando o seu papel, subiu ao andar superior e deitou-se na cama. Mais tarde, ouviu a carruagem entrar no pátio, as vozes das crianças a palrarem excitadas ante a perspectiva de um piquenique inesperado, e depois escutou a carruagem a afastar-se na alameda. Passado mais algum tempo, ouviu o matraquear dos cascos de um único cavalo sobre o empedrado. Saiu do quarto, foi ao corredor onde a janela dava para o pátio e viu William montar um dos cavalos, com um grande ramo de flores pousado à sua frente, na sela, e viu-o partir.
Que grande êxito tivera a sua estratégia, pensou, rindo-se sozinha como uma criança tonta a preparar-se para uma aventura. Envergou um vestido já sem cor, que não se importaria de rasgar, colocou um lenço de seda em volta da cabeça, e saiu sorrateiramente da sua própria casa, como um ladrão.
Seguiu o trilho que descobrira naquela manhã, mas desta vez mergulhou até ao mais profundo dos bosques sem qualquer hesitação. As aves voltavam a agitar-se depois do silêncio do meio do dia, as silenciosas borboletas dançavam e flutuavam enquanto os sonolentos abelhões zumbiam no ar quente, batendo as asas a caminho dos ramos mais altos das árvores. Sim, lá estava outra vez o brilho de água que a surpreendera, as árvores tornavam-se mais escassas, estava a chegar à margem... e ali, de repente, na frente dela, pela primeira vez, estava a ribeira, calma e silenciosa, envolta pelas árvores, oculta dos olhos dos homens. Olhou- a, maravilhada, pois não tinha conhecimento da sua existência, daquele largo braço do rio que avançava para o interior da sua propriedade, tão abrigado, tão escondido pelos bosques. A maré descia, a água fugia dos fundos enlameados, e o sítio onde se encontrava era a nascente, pois a ribeira terminava num fio de água, e o fio de água tornava-se numa fonte. A ribeira contorcia-se em volta de uma cintura de árvores, e Dona começou a caminhar ao longo da margem, feliz, fascinada, esquecida da sua missão, porque aquela descoberta era um prazer completamente inesperado, a ribeira era uma fonte de encantamento, uma nova fuga, ainda melhor do que a de Navron, um lugar para sonhar e dormir, uma terra de lótus. Avistou uma garça, de pé nas águas baixas, solene e cinzenta, com a cabeça mergulhada na protecção dos ombros, e para lá dela um pequeno ostraceiro patinhava na lama, e então, estranho e encantador, um maçarico soltou o seu grito, ergueu-se da margem e voou ao longo da ribeira, fugindo. Qualquer coisa que não ela perturbara as aves, porque a garça também se ergueu devagar, agitando as lentas asas, e foi atrás do maçarico. Dona parou por um momento, pois também ouvira um som, pancadas, um barulho de martelar.
Continuou a avançar, atingindo o ponto em que a ribeira virava, e parou, retirando-se instintivamente para a cobertura das árvores, porque na sua frente, onde a ribeira se alargava de repente, formando uma espécie de enseada, estava um navio ancorado... tão perto que poderia ter atirado um biscoito para o convés. Reconheceu-o imediatamente. Era o navio que vira na noite anterior, o navio pintado no horizonte, vermelho e dourado sob o sol-poente. Havia dois homens pendurados num dos lados, picando a pintura, e fora esse o som de marteladas que escutara. A água deveria ser profunda onde o navio se encontrava. Era o ancoradouro perfeito, pois de um lado os bancos de lama erguiam-se íngremes e a água escoava- se com a maré, fervilhando e borbulhante, enquanto a própria ribeira se contorcia e dava nova curva, correndo para o rio seu progenitor, fora das vistas. A uns metros de Dona via-se um pequeno cais. Havia aí apetrechos, cabos; deviam estar a fazer reparações. Estava um bote atracado, mas sem ninguém.
Tudo permanecia tranquilo se não fossem os dois homens a rasparem o casco. Era a pesada sonolência de uma tarde de Verão. Ninguém sabia, pensou Dona, ninguém poderia dizer, a não ser que caminhassem para ali como ela fizera, pelo carreiro que descia de Navron House, que se encontrava um navio ancorado naquela enseada, protegido pelas árvores e fora das vistas do rio.
Um outro homem atravessou o convés e olhou para baixo, para os companheiros. Era um homem pequeno e sorridente, que se parecia com um macaco e tinha um alaúde nas mãos. Rodou, trepou para cima da amurada e sentou-se de pernas cruzadas, começando a tanger as cordas. Os dois homens olharam para ele, riram-se, e o homem dedilhou uma ária descuidada e saltitante, e começou a cantar, primeiro baixinho, depois um pouco mais alto, enquanto Dona, esforçando-se para apanhar as palavras, se apercebeu, com uma súbita vaga de compreensão, que o homem estava a cantar em francês.
Então soube, então percebeu... As mãos agarraram-se-lhe uma à outra, a boca pareceu-lhe seca e gretada, e sentiu, pela primeira vez na sua vida, um curioso e estranho espasmo de medo.
Aquele era o esconderijo do francês... Aquele era o seu navio.
Precisava de pensar rapidamente, de fazer um plano, de usar os seus conhecimentos. que óbvio que tudo era agora, a enseada silenciosa, o esconderijo perfeito, nunca ninguém saberia, tão remoto, tão silencioso, tão tranquilo... Precisava de fazer qualquer coisa, precisava de dizer qualquer coisa, de falar com alguém.
Ou não precisava? Poderia ir-se embora, fingindo que não vira o navio, esquecendo-se dele, ou fingir esquecê-lo... tudo para não se ver envolvida, pois isso seria uma quebra na sua paz, uma perturbação, soldados a marcharem pelos bosques, pessoas a chegarem, Harry vindo de Londres... Complicações infindáveis, e Navron deixaria de ser um santuário. Não, não iria dizer nada, ia escapulir-se dali, regressar aos bosques e a casa, agarrando-se à culpa do conhecimento, sem dizer a ninguém, permitindo que os roubos continuassem... Que interessava? Godolphin e os trouxas dos seus amigos teriam de aguentar, o condado teria de os aguentar, o condado teria de os sofrer, não se ralava.
Então, no momento em que se virava para deslizar por entre as árvores, uma figura avançou por detrás dela, dos bosques, colocou-lhe o casaco sobre a cabeça, cegando-a, segurando-lhe as mãos ao lado do corpo para que não se pudesse mover, para que não pudesse debater-se, e caiu aos seus pés, sufocada, impotente, sabendo que estava perdida.
Capitulo sexto
A sua primeira sensação foi de ira, uma ira cega e irracional. Como era que alguém ousava tratá-la assim, pensou, embrulhá-la como a uma peça de caça, e transportá-la para o cais. Foi atirada com violência contra as tábuas do fundo do bote, e o homem que a derrubara pegou nos remos e rumou para o navio. Soltou um grito - um grito de gaivota - e disse qualquer coisa aos companheiros do navio servindo-se de um dialecto que Dona não conseguiu compreender. Ouviu-os rirem-se em resposta, e o homem do alaúde atacou uma jiga alegre, como que a troçar.
Libertara-se do casaco que lhe tolhia os movimentos e olhou para cima, para o homem que a agarrara. Este falou-Lhe em francês e sorriu. Tinha um brilho alegre nos olhos, e parecia que a sua captura era um jogo, um gesto divertido numa tarde de Verão, e quando franziu a cara e o olhou com altivez, decidida a manter-se digna, o homem ostentou um rosto solene, fazendo de conta que tinha medo e fingindo que tremia.
Perguntou a si mesma o que aconteceria se levantasse a voz e gritasse por ajuda. Alguém a ouviria, ou seria inútil?
Sabia, de algum modo, que não o podia fazer, que mulheres como ela não gritavam. Esperavam, planeavam a fuga. Sabia nadar, talvez mais tarde lhe fosse possível escapar-se do navio, descer por um dos lados, provavelmente quando escurecesse. Que louca fora, pensou, deixar-se ficar ali por mais do que um instante, quando já sabia que se tratava do navio do francês. No fim de contas, merecera ser capturada, e estava furiosa por ter sido colocada naquela situação - absurda, ridícula -, quando uma retirada tranquila para o meio das árvores e para Navron teria sido tão fácil. Passavam agora por baixo da popa do navio, por baixo do alto castelo e das janelas ornamentadas, e lá estava o nome do navio, escrito com um floreado, La Nlouette. Perguntou a si mesma o que significaria, pois não era capaz de se recordar, de repente o seu francês ficara enevoado, o homem apontava para a escada no costado do navio, os outros amontoavam-se no convés, rindo-se com familiaridade - malditos fossem os seus olhos - para a verem subir. Conseguiu trepar bem a escada, decidida a não lhes dar razões para troça, e saltou para o convés, abanando a cabeça, recusando as ofertas de auxílio.
Começaram a falar com ela no dialecto que não conseguia compreender - e que devia ser bretão, pois Godolphin não dissera qualquer coisa a respeito de se escaparem para a costa, do outro lado? - e continuaram a sorrir e a rir-se para ela de uma maneira familiar e idiota que a enfurecia, porque não ficava bem com o papel heróico e digno que pretendia desempenhar. Cruzou os braços e olhou para outro lado sem proferir uma palavra. Nesse momento, o primeiro homem apareceu outra vez - Dona supunha que ele fora avisar o chefe, o capitão daquele navio fantástico - e fez-lhe sinal para que o seguisse.
Era tudo muito diferente do que esperara. Aqueles homens eram como crianças, encantados com o seu aparecimento, sorridentes e a assobiar, e ela pensara nos piratas como criaturas desesperadas, com argolas nas orelhas e facas entre os dentes.
O navio estava limpo - imaginara um navio sujo, manchado e malcheiroso -, não havia desordem, a pintura brilhava, fresca e alegre, com o convés esfregado como num navio de guerra, e da parte da frente, onde supunha que os homens vi viam, vinha-lhe um bom cheiro a sopa de vegetais que lhe despertava a fome. Agora o homem conduzia-a através de uma porta oscilante, levou-a a descer uns degraus, bateu a outra porta, de onde uma voz tranquila lhes disse para entrarem. Dona parou no limiar, pestanejando um pouco, pois o Sol entrava a jorros pelas janelas da popa, provocando desenhos aquáticos no apainelado a madeiras claras. Sentiu-se outra vez estúpida, desconcertada, pois a cabina não era o buraco negro que imaginara, cheio de garrafas vazias e de alfanges, mas sim uma sala, como uma sala de uma casa - com cadeiras, uma mesa polida e pequenas pinturas de aves suspensas nas anteparas. Havia ali um ar de tranquilidade, uma tranquilidade austera, era o quarto de alguém que se bastava a si mesmo. O homem que a levara para a cabina já se retirara, fechando a porta devagar, e a figura sentada à mesa continuou a escrever, sem prestar atenção à sua entrada. Olhou-o furtivamente, consciente de uma súbita timidez, odiando-se por isso mesmo, ela, Dona, que nunca era tímida, que não se deixava incomodar por nada nem por ninguém. Perguntou a si mesma quanto tempo o homem a deixaria ficar ali de pé; era impróprio, grosseiro, e no entanto sabia que não podia ser a primeira a falar. Lembrou-se repentinamente de Godolphin, o Godolphin de olhos bulbosos e uma coisa a crescer na ponta do nariz, e dos seus receios a respeito das mulheres do condado. Que diria se a visse agora, sozinha, na cabina do terrível francês?
O francês continuava a escrever e Dona permanecia de pé junto à porta. Compreendia agora o que o tornava diferente dos outros homens. Usava o seu próprio cabelo, como os homens costumavam fazer, em vez das ridículas cabeleiras encaracoladas que estavam na moda, e verificou imediatamente que era aquele o cabelo mais apropriado, e que seria impossível usá-lo de qualquer outra maneira.
Que remoto, que distante, como um estudante universitário a estudar para um exame! Nem sequer se dera ao trabalho de levantar a cabeça quando a tinham levado à sua presença, e afinal que estaria a escrevinhar que era assim tão importante? Aventurou-se a dar um passo para mais perto da mesa, para poder ver, e compreendeu que o homem não estava a escrever, estava a desenhar - esboçava, com traços finos e muito cuidado, uma garça de pé na lama, tal como ela própria vira uma, dez minutos antes.
Ficou desconcertada, sem palavras, até sem pensamentos, pois os piratas não eram assim, pelo menos os piratas da sua imaginação não eram assim. E por que motivo não desempenhava o homem o papel que ela lhe distribuíra, o de uma figura má e ameaçadora, cheia de estranhas juras, de mãos gordurosas, e não aquela personagem sentada na mesa polida, desprezando-a?
Por fim o homem falou, com a voz marcada apenas pelo mais leve dos sotaques, continuando todavia sem olhar para ela, continuando debruçado sobre o seu desenho de uma garça.
- Ao que parece, andou a espiar o meu navio - declarou. Ficou imediatamente irada. A espiar, ela? Bom Deus, que acusação!
- Pelo contrário - retorquiu, falando com uma voz fria e clara, a voz arrapazada que utilizava para os criados. - Pelo contrário, parece que os seus homens têm andado a invadir a minha propriedade.
Olhou para cima imediatamente, pôs-se de pé - era alto, muito mais alto do que imaginara -, e nos olhos escuros surgiu-Lhe o clarão do reconhecimento, como uma chama súbita. Sorriu lentamente, como que em segredo.
- As minhas humildes desculpas - declarou. - Não me tinha apercebido que a senhora da mansão me viera visitar pessoalmente.
Foi-lhe buscar uma cadeira e Dona sentou-se sem uma palavra. Continuou a olhá-la, exibindo nos olhos o ar de reconhecimento, de divertimento secreto, e recostou-se na sua cadeira, cruzando as pernas e mordendo a ponta da pena.
- Foi por sua ordem que me agarraram e trouxeram para aqui? - perguntou Dona, porque sem dúvida que era preciso dizer qualquer coisa, e o homem nada mais faria do que olhá- la de cima a baixo com a sua maneira singular.
- Os meus homens têm ordens para apanhar quem quer que se aventure na ribeira - respondeu. - Por norma, não temos problemas. A senhora foi mais ousada do que os habi tantes locais, e infelizmente sofreu por causa dessa ousadia. Não está magoada ou ferida?
- Não - retorquiu com secura.
- Então porque se queixa?
- Não estou habituada a ser tratada desta maneira - disse,
novamente zangada por estar mais uma vez a sentir-se
estúpida.
- Não, é claro que não - concordou o homem tranquilamente -, mas isso não lhe fará mal.
Deus do céu, que insolência, que maldita impertinência.
Todavia, a sua ira só servia para o divertir, pois ele continuou
a balouçar a cadeira e a sorrir, mordendo a ponta da pena.
- O que se propõe fazer comigo? - perguntou.
- Ah, agora apanhou-me! - replicou, pousando a pena.
- Preciso de consultar o meu livro de regulamentos. - Abriu
uma gaveta da mesa e tirou de lá um volume, cujas páginas começou a desfolhar lentamente, com grande seriedade.
- Prisioneiros... Métodos de captura... Interrogatórios...
Detenção... Tratamento... Etc. etc. etc. - leu, em voz alta.
- Sim, está tudo aqui, mas infelizmente estes apontamentos
dizem respeito à captura e tratamento de prisioneiros homens. Aparentemente, não me preparei para lidar com damas.
Uma grande falha minha.
Pensou outra vez em Godolphin e nos seus medos, e apesar de todo o seu aborrecimento descobriu-se a sorrir, recordando-se das palavras como se trata de um francês, é uma
questão de tempo".
A voz do francês interrompeu-lhe os pensamentos.
- Assim é melhor - disse. - A ira não lhe fica bem, sabe? Agora, começa a ficar mais parecida consigo própria.
- Que pode saber a meu respeito? - inquiriu.
Sorriu outra vez, inclinando a cadeira para a frente.
- A senhora de St. Columb - retorquiu -, a menina
querida e mimada da corte. A senhora Dona, que bebe nas tavernas de Londres com os amigos do marido. É uma verdadeira celebridade, sabia?
Descobriu que o seu rosto se avermelhava, picada pela ironia das palavras e pelo tranquilo desprezo.
- Isso acabou - declarou. - Acabou de uma vez para
sempre.
- De momento, não é verdade?
- Não, para sempre.
Começou a assobiar baixinho para ele próprio, puxou o desenho para si e continuou a brincar com ele, esboçando o fundo.
- Quando passar mais algum tempo em Navron, acabará por se cansar - murmurou -, e os cheiros e sons de Londres voltarão a chamar por si. Recordará esse seu estado de espírito como uma coisa passageira.
- Não - replicou.
O francês não respondeu e continuou a trabalhar no desenho.
Dona observou-o, espicaçada pela curiosidade, pois desenhava bem, e começou a esquecer-se que era uma prisioneira e que deveriam ser inimigos um do outro.
- A garça estava de pé na lama, na embocadura da ribeira - afirmou. - Vi-a, ainda há pouco, antes de se me deparar o navio.
- Sim, está sempre lá quando a maré baixa. É um dos seus territórios de alimentação. Todavia, o ninho fica a alguma distância, perto de Gweek, subindo o canal principal. Que mais viu?
- Um ostraceiro e uma outra ave, que me pareceu um maçarico.
- Ah, sim - confirmou -, também costumam lá estar. Suponho que as marteladas os fizeram fugir.
- Sim, fugiram.
Continuou com o pequeno assobio sem melodia, sempre desenhando, e Dona observou-o, pensando em como era natural, tão fácil e tão sem esforço estar ali sentada, na cabina, no navio, lado a lado com o francês, enquanto o sol entrava pelas janelas e a maré borbulhava em volta da popa. Era divertido, como um sonho, como qualquer coisa que sempre soubera que aconteceria um dia, como se fosse uma cena de uma peça em que tivesse de representar um papel. O pano acabara de subir e alguém sussurrara: Agora... É agora que entras.
- Os noitibós já começaram a cantar, à noite - disse o francês. - Escondem-se na vertente da colina, um pouco mais para baixo, na ribeira. No entanto, são muito desconfiados, é quase impossível chegar perto deles.
- Sim - assentiu Dona.
- A enseada é o meu refúgio, sabe? - declarou, olhando para cima, para ela, e afastando imediatamente os olhos.
- Venho para aqui, para passar o tempo sem fazer nada. Depois, antes que a preguiça me domine, tenho a força de espírito suficiente para me afastar, para navegar outra vez.
- E para cometer actos de pirataria contra os meus compatriotas.
- E para cometer actos de pirataria contra os seus compatriotas - ecoou.
- Um dia acabarão por o apanhar.
- Um dia... talvez - retorquiu, afastando-se para a janela da popa e olhando para fora, de costas voltadas para ela.
- Venha ver - disse, e Dona levantou-se da cadeira e aproximou-se, parando a seu lado, olhando para a água, por cima da qual pairava um grande bando de gaivotas que procurava restos.
- Aparecem sempre às dúzias - explicou. - Parecem saber sempre o momento exacto em que volto, e vêm para aqui vindas dos promontórios. Os meus homens alimentam-nas, não o posso impedir. Porto-me tão mal como eles, estou sempre a atirar-lhes migalhas pelas janelas. - Riu-se, agarrou numa côdea de pão e atirou-a às gaivotas, que saltaram sobre ela, gritando e lutando.
- Talvez tenham um sentimento de amizade para com o navio - comentou. - A culpa é minha, pois baptizei-o La Mouette.
- La Mouette... A Gaivota, .. oh, é claro - disse Dona.
- Esquecera-me do significado da palavra - acrescentou, e continuaram a observar as gaivotas, encostados à janela.
Isto é absurdo", pensou Dona. Porque é que o estou a fazer, se não era o que queria, não era o que pretendia. Neste momento já devia estar amarrada com cordas e ter sido atirada para o escuro porão do navio, amordaçada e magoada, e aqui estamos nós a atirar bocados de pão a gaivotas, e já me esqueci de continuar zangada. "
- Por que motivo é um pirata? - perguntou Dona finalmente, quebrando o silêncio.
- E por que motivo monta cavalos cheios de fogosidade? - retorquiu.
- Por causa do perigo, por causa da velocidade, porque posso cair...
- É também por isso que sou pirata.
- Sim, mas...
- Não há mas" nem meio mas". Na realidade é tudo muito simples e não envolve nenhum motivo obscuro. Não tenho queixas contra a sociedade, não tenho um ódio amargo pelos outros homens. Acontece que o problema da pirataria me interessa, e que se adapta à minha maneira, muito particular, de pensar. Não se trata apenas de brutalidade e sangue derramado, sabe? A organização ocupa-me muitas horas de muitos dias, é preciso pensar, e preparar, todos os pormenores de um desembarque. Odeio a desordem e todos os métodos de ataque improvisados. É tudo muito parecido com um problema de geometria, é alimento para o cérebro. Depois... Bom, depois divirto-me, aprecio a excitação, gosto de ser melhor do que os outros. É muito satisfatório e absorvente.
- Sim - disse Dona. - Sim, compreendo.
- Está intrigada, não está? - perguntou o francês, rindo-se para ela. - Esperava encontrar-me caído de bêbado aqui, no chão, rodeado por sangue, facas, garrafas e mulheres aos gritos.
Devolveu-lhe o sorriso, mas não lhe respondeu. Alguém bateu à porta, e quando o francês gritou Entre, apareceu um dos seus homens com uma grande terrina de sopa, numa bandeja. Tinha um cheiro rico e bom. O vapor quente erguia-se no ar. O homem tratou de pôr a mesa, estendendo uma toalha branca sobre a ponta mais afastada. Foi a um armário na antepara e tirou de lá uma garrafa de vinho. Dona observava. O cheiro da sopa era muito tentador e tinha fome. O vinho tinha um ar fresco, na estreita garrafa. O homem retirou-se e, ao olhar para cima, Dona viu que o capitão do navio a observava com um riso nos olhos.
- Quer um pouco de sopa? - perguntou.
Dona acenou que sim, e voltou a sentir-se como uma tola: porque era que ele lhe lia os pensamentos? O francês foi ao armário buscar outro prato e outra colher e mais um copo. Depois puxou duas cadeiras para a mesa. Dona verificou que também havia pão recente, cozido havia pouco tempo, à maneira francesa, com uma crosta escura, bem como pequenas rodelas de uma manteiga muito amarela.
Comeram a refeição em silêncio e a seguir o francês serviu-lhe o vinho. Era fresco e transparente, não muito doce. Durante todo aquele tempo, não deixou de pensar que era como um sonho, um sonho recordado que tivera outrora; uma coisa tranquila e familiar, um sonho que reconhecia.
Já anteriormente fiz isto, pensou, não é a primeira vez. Todavia era absurdo, porque era claro que se tratava da primeira vez e porque o homem era um estranho. Perguntou a si própria que horas seriam. As crianças já deveriam ter regressado do piquenique, Prue estaria a metê- las na cama. Iriam correr e bater-lhe na porta do quarto e ela não responderia. Não faz mal", pensou, não me ralo", e continuou a beber o seu vinho, olhando para os quadros de pássaros nas anteparas e mirando o francês às ocultas de vez em quando, quando sabia que ele tinha a cabeça virada.
No fim, o homem estendeu a mão para um boião com tabaco, numa prateleira, e começou a agitar a mistura na mão. De repente, a verdade atingiu-a com a violência de uma pancada, viu o boião de tabaco no quarto, e o volume de poesia francesa, com o desenho de uma gaivota na página do título... Viu William a correr para a cintura de árvores... William, o seu amo, o que viajava de um lugar para outro, e cuja vida era uma fuga contínua. Levantou-se da cadeira, olhando para o homem.
- Bom Deus! - exclamou.
- Que se passa? - perguntou o francês, olhando para ela.
- Foi o senhor... - disse - quem deixou o boião de tabaco no meu quarto, bem como o volume de Ronsard. Esteve a dormir na minha cama.
Sorriu para ela, divertido com a escolha das palavras, sorrindo ante o seu espanto, confusão e embaraço.
- Deixei-os lá? - perguntou. - Tinha-me esquecido. Que descuido e incúria da parte de William. Devia tê-los visto.
- Foi por sua causa que William ficou em Navroncontinuou Dona - e foi por isso que mandou embora os criados. Durante todos os meses que passámos em Londres, o senhor esteve em Navron.
- Não - retorquiu. - Não estive lá sempre. Apenas de tempos a tempos, quando dava jeito para os meus planos. No Inverno, sabe, a enseada torna-se demasiado húmida. Fiz uma mudança, uma mudança de luxo, para procurar o conforto do seu quarto. Não sei bem porquê, mas sempre me pareceu que não se iria importar.
Continuou a olhar para ela, sempre com os olhos a exibirem um brilho de divertimento secreto.
- Consultei o seu retrato, sabe? - prosseguiu. - Dirigi-me a ele várias vezes. Minha senhora, disse-lhe (porque sempre o tratei com educação), quer conceder a cortesia da sua cama a um francês muito cansado? " Pareceu-me vê-la fazer uma vénia graciosa e dar-me a autorização. Por vezes até chegou a sorrir.
- Foi muito mal feito da sua parte - afirmou Dona. - Muito impróprio.
- Eu sei.
- Para além de ser perigoso.
- Isso foi o mais divertido.
- E se eu tivesse sabido, apenas por um instante...
- O que teria feito?
- Teria vindo imediatamente a Navron.
- E depois?
- Fechava a casa. Despedia William e punha guardas na propriedade.
- Tudo isso?
- Sim.
- Não acredito.
- Porquê?
- Porque enquanto jazia na sua cama, olhando para o seu retrato na parede, não foi assim que se comportou.
- E como foi que me comportei?
- De uma maneira muito diferente.
- Que foi que fiz?
- Muitas coisas.
- Que espécie de coisas?
- Juntou-se à tripulação do meu barco, por exemplo. Colocou o seu nome entre os dos mais fiéis. Foi a primeira e última mulher a fazê-lo.
Ao dizê-lo, o francês levantou-se da mesa, foi a uma gaveta e retirou de lá um livro. Abriu-o e Dona viu as palavras La Mouette seguidas por uma fila de nomes. Edmond Vacquier... Jules Thomas... Pierre Blanc... Luc Dumont... e assim por diante. O capitão pegou na pena, molhou-a na tinta e estendeu-lha.
- Então? - perguntou. - Como é que vai ser? Dona tirou-lhe a pena, equilibrou-a na mão por instantes como se pesasse a questão, e ficou sem saber se teria sido a ideia de Harry em Londres, a bocejar por cima das cartas, ou a de Godolphin com os seus olhos bulbosos, ou a boa sopa que comera e o vinho que bebera, que a haviam deixado ensonada e quente, ou o simples facto de o ter ali de pé a seu lado, mas o certo é que olhou para cima, riu-se de repente, e assinou o seu nome no centro da página, por debaixo dos outros: Dona St. Columb.
- Agora tem de voltar para casa, pois os seus filhos vão interrogar- se sobre o que lhe terá acontecido - disse o francês.
- Sim - confirmou Dona.
Conduziu-a para fora da cabina até ao convés. Debruçou-se sobre a amurada e chamou os homens que se encontravam no costado do navio.
- Em primeiro lugar, tenho de a apresentar - disse, dando uma ordem no dialecto bretão que Dona não conseguia compreender, e instantes depois toda a tripulação se encontra va reunida, olhando-a com curiosidade.
- Vou dizer-lhes que daqui em diante pode vir à enseada sem que ninguém a impeça - declarou - e que é livre de entrar e sair quando lhe apetecer. A enseada é sua. O navio é seu. Agora, é um de nós. - Falou com brevidade para os homens, e estes avançaram até ela um a um, fizeram uma vénia e beijaram-lhe a mão, e Dona riu-se, dizendo Obrigada", e havia em tudo aquilo uma loucura, uma frivolidade, era como que um sonho sob a luz do Sol. Em baixo, na água, um dos homens aguardava-a no bote. Dona trepou a amurada e passou para o outro lado, para a escada. O francês não a ajudou. Encostou-se à amurada e observou-a.
- E Navron House? - perguntou. - Vai ficar aferrolhada e William será despedido?
- Não - respondeu Dona.
- Tenho de retribuir a visita, por uma questão de cortesia.
- É claro.
- Qual será a hora mais adequada? De tarde, penso, entre as três e as quatro, e oferece-me uma chávena de chá?
Dona olhou-o, riu-se e abanou a cabeça.
- Não - retorquiu. - Isso é para Lord Godolphin e os outros cavalheiros. Os piratas não visitam damas à tarde. Aparecem pela calada, à noite, e batem na janela... e a senhora da mansão, receosa pela sua segurança pessoal, dá-lhes de jantar à luz das velas.
- Será como deseja. Amanhã, às dez horas?
- Sim.
- Boa noite.
- Boa noite.
Continuou encostado à amurada, observando-a enquanto era conduzida a terra no pequeno bote. O Sol desaparecera por detrás das árvores e a ribeira encontrava-se nas sombras. O resto da maré desaparecera dos lamaçais e a água mantinha-se imóvel. Um maçarico soltou um único grito, fora das vistas, para lá da curva da ribeira. O navio, com as suas cores ousadas, os altos mastros, parecia uma coisa remota, irreal, um objecto de fantasia. Dona virou-se e apressou-se por entre as árvores, em direcção à casa, sorrindo para si mesma. Era um sorriso de culpa, como o de uma criança que tem um segredo.
Capitulo sétimo
Quando chegou a casa verificou que William se encontrava junto da janela do salão, fingindo que o arrumava, mas percebeu logo que o homem estava de vigia, à sua espera.
Não lho disse imediatamente, apenas para se divertir com a provocação, e ao entrar na sala, tirando o lenço da cabeça, afirmou:
- Fui dar um passeio, William, e a minha cabeça já está melhor.
- Sim, estou a ver, minha senhora - respondeu William, com os olhos postos nela.
- Fui passear para o rio, onde o ar é fresco e há tranquilidade.
- É verdade, minha senhora.
- Não sabia que havia ali uma enseada. É encantadora, como um conto de fadas. Um bom esconderijo, William, para fugitivos como eu.
- Muito provavelmente, minha senhora.
- E Lord Godolphin? Viu-o?
- Não estava em casa, minha senhora. Pedi a um criado que entregasse as flores e o recado à sua senhora.
- Obrigado, William. - Fez uma pausa momentânea, fingindo arranjar os lírios da jarra, e depois prosseguiu. - Ah, William, antes que me esqueça... Amanhã à noite vou dar um pequeno jantar de festa. É para bastante tarde, para as dez horas.
-Muito bem, minha senhora. Quantas pessoas serão?
-Apenas duas, William. Eu e outra... Um cavalheiro.
- Sim, minha senhora.
- O cavalheiro virá a pé, pelo que o moço não precisará de ficar acordado para tratar do cavalo.
- Pois não, minha senhora.
- Sabe cozinhar, William?
- Não sou inteiramente ignorante da arte, minha senhora.
- Então faça-me o favor de enviar os criados para a cama, e de cozinhar o jantar para mim e para o cavalheiro, William.
- Sim, minha senhora.
- Não precisa de mencionar essa visita a mais ninguém desta casa, William.
- Não, minha senhora.
- De facto, William, proponho-me proceder de uma maneira escandalosa.
- Assim parece, minha senhora.
- E o senhor está terrivelmente chocado, William?
- Não, minha senhora.
- Então porque não?
- Porque nada do que a senhora ou o meu amo possam fazer será capaz de me chocar, minha senhora.
Dona rebentou em gargalhadas e juntou as mãos em frente do corpo.
- Oh, William, meu solene William, soube-o durante todo o tempo! Como foi que soube? Como pôde adivinhar?
- Porque quando aqui entrou, minha senhora, havia qualquer coisa de diferente na sua maneira de andar. Além disso, os seus olhos (e se me permite que o diga, sem a ofender) estavam muito animados. Como veio da direcção da ribeira, somei dois e dois e disse para mim mesmo: Já aconteceu. Finalmente, encontraram-se.
- Porquê, finalmente, William?
- Porque, minha senhora, sou um fatalista por natureza, e sempre soube que esse encontro iria acontecer, mais tarde ou mais cedo.
- Apesar de eu ser a senhora desta casa, casada e respeitável, com dois filhos, e o seu amo ser um francês fora da lei e um pirata?
- Apesar de todas essas coisas, minha senhora.
- É um procedimento muito mau, William. Estou a agir contra os interesses do meu país. Posso ser presa por causa disso.
- Sim, minha senhora.
Desta vez William já não escondeu o seu sorriso, a pequena boca de botão descontraiu-se, e Dona soube que o homem nunca mais seria inescrutável e silencioso, mas sim um amigo, um aliado, e que podia confiar nele até ao fim.
- Aprova a profissão do seu amo, William?
- Aprovar e desaprovar são duas palavras que não se encontram no meu vocabulário, minha senhora. A pirataria é apropriada para o meu amo, e é tudo. O navio é o seu reino, vai e vem quando lhe apetece, e nenhum homem Lhe dá ordens. A lei... é ele próprio.
- Não será possível ser livre, e fazer o que nos apetece, sem no entanto se ser um pirata?
- O meu amo pensa que não, minha senhora. É da opinião que os que vivem uma vida normal, neste nosso mundo, são obrigados a hábitos, a costumes, a regras de vida que acabam por matar toda a capacidade de iniciativa, toda a espontaneidade. Um homem torna-se em mais um dente da roda, em parte de um sistema. Porém, como um pirata é um rebelde, um exilado, foge ao mundo. Não tem laços, não tem de obedecer aos princípios inventados pelo homem.
- Sim, de facto tem tempo para ser ele mesmo.
- Sim, minha senhora.
-E a ideia de que a pirataria é má não o incomoda?
- Rouba os que se podem permitir ser roubados, minha senhora. Entrega a maior parte daquilo de que se apodera. Os pobres da Bretanha são os mais frequentemente beneficiados. Não, a questão moral não o preocupa.
- Não é casado, suponho?
- Não, minha senhora. O casamento e a pirataria não se dão bem.
- E se a mulher gostasse do mar?
- As mulheres têm tendência para obedecerem às leis da natureza, minha senhora, e a produzirem filhos.
- Ah, é verdade, William.
- E as mulheres que dão ao mundo bebés têm um certo gosto por uma lareira e já não querem vaguear de um lado para o outro. Por isso, um homem tem imediatamente de enfrentar uma escolha. Ou fica em casa e aborrece-se, ou vai-se embora e sente-se infeliz. Em qualquer dos casos, está perdido. Não... Para ser verdadeiramente livre, um homem tem de navegar sozinho.
- É essa a filosofia do seu amo, William?
- Sim, minha senhora.
- Quem me dera ser homem, William.
- Porquê, minha senhora?
- Porque também eu encontraria o meu navio e seguiria em frente, e seria eu própria a lei.
Enquanto falava ouviu-se um grande grito vindo de cima, seguido por um lamento e pela voz repreensiva de Prue. Dona sorriu e abanou a cabeça.
- O seu amo tem razão, William - disse. - Todos nós somos dentes de uma roda, e muito em particular as mães. Só os piratas são livres.
Subiu ao andar superior, para junto das crianças, para as acalmar e para lhes limpar as lágrimas. Nessa noite, jazendo na cama, pegou no volume de Ronsard que se encontrava na mesa a seu lado, e pensou em como era estranho que o francês tivesse jazido ali, com a cabeça na almofada dela, com o mesmo livro nas mãos e o cachimbo na boca. Imaginou-o a pôr o livro de lado quando já lera o suficiente, tal como ela própria fazia agora, soprando a vela e deitando-se de lado, para dormir. Interrogou-se sobre se o francês estaria a dormir na fresca e tranquila cabina do seu barco, com a água a lamber o casco, e a enseada silenciosa e envolta em mistério. Ou estaria deitado de costas como ela, de olhos abertos na escuridão e o sono distante, meditando sobre o futuro, com as mãos atrás da cabeça?
Na manhã seguinte, quando se debruçou da janela, sentiu o sol no rosto e viu o céu claro e brilhante, lustroso por causa do vento leste, o seu primeiro pensamento foi para o navio na enseada. A seguir recordou-se de como o ancoradouro era confortável, escondido no meio do vale, envolto pelas árvores, e de como nem notavam a turbulenta maré que invadia o grande rio, com as suas ondas curtas e encaracoladas, quando as águas profundas da boca do estuário se erguiam e rebentavam em espuma.
Recordou-se da noite que viria, e do jantar de festa. Começou a sorrir, com toda a culpada excitação de um conspirador.
O próprio dia parecia-Lhe um prelúdio, uma antevisão de coisas que aconteceriam, e vagueou até ao jardim para cortar flores, apesar de as que se encontravam na casa ainda não estarem murchas.
O apanhar das flores foi uma actividade pacífica e calmante para a sua mente agitada, e a própria sensação de tocar nas pétalas, de apalpar os longos pés verdes, de os ajeitar no cesto e de, mais tarde, os dispor um a um nas jarras que William enchera de água, baniram as inquietações iniciais. Também William agia como um conspirador. Observara-o na casa de jantar, limpando as pratas, e o homem levantara para ela uns olhos cheios de compreensão, pois Dona sabia por que motivo se encontrava a trabalhar com tanto ardor.
- Temos de fazer justiça a Navron - disse Dona. - Ponha à vistatodas as pratas, William, e acenda todas as velas. Usaremos o serviço de jantar de rebordo rosado, que está reservado para os banquetes.
Era excitante, era divertido. Foi ela própria buscar o serviço de jantar e lavou os pratos, empoeirados pela falta de uso, e serviu-se de botões de rosa recentemente cortados para fazer um pequeno e decorativo centro de mesa. A seguir, Dona e William desceram à cave, e espreitaram, à luz das velas, para as garrafas cobertas de teias de aranha. William descobriu um vinho muito apreciado pelo seu amo, que nenhum deles sabia que existia ali. Trocaram sorrisos e murmúrios furtivos, e Dona sentiu a encantadora malevolência de uma criança que faz uma coisa mal feita, uma coisa proibida, e que quase se engasga com gargalhadas secretas, nas costas dos pais.
- O que vamos comer? - perguntou, e William abanou a cabeça, pois não Lho iria dizer.
- Descanse, minha senhora - retorquiu -, porque não a deixarei desapontada.
Dona foi mais uma vez para o jardim, cantando, com o coração absolutamente cheio de alegria. O calor do meio-dia ficou para trás, meio enevoado pelo vento leste, passaram-se as longas horas da tarde, o chá com as crianças por debaixo da amoreira, e assim se chegou outra vez ao princípio da noite, à hora de os filhos irem para a cama, ao amainar do vento quando o Sol se pôs, quando o céu ganhou cor e brilharam as primeiras estrelas.
A casa estava mais uma vez silenciosa, e os criados, convencidos de que se sentia fatigada, que iria para a cama sem jantar, congratularam-se com o trato fácil da sua ama e retiraram-se para os respectivos quartos. Algures, sem dúvida sozinho no seu quarto, William preparava o jantar. Dona não Lhe fez perguntas. Não era preciso.
Dirigiu-se ao seu próprio quarto e parou em frente do guarda-roupa, pensando no que iria vestir. Escolheu um vestido de cor creme, que já usara muitas vezes e que sabia que lhe ficava bem, e pendurou nas orelhas os brincos de rubis que haviam sido da mãe de Harry, bem como o colar também de rubis em volta do pescoço.
Não irá notar, pensou, não é esse tipo de pessoa, não se preocupa com mulheres, com as suas roupas ou jóias. Mas mesmo assim descobriu-se a vestir-se com grande cuidado, enrolando os caracóis nos dedos e puxando-os para detrás das orelhas. De súbito ouviu o relógio de pé bater as dez horas. Em pânico, pôs de lado o pente e desceu as escadas. A escadaria conduzia directamente à casa de jantar, e verificou que William acendera todas as velas, exactamente como lhe dissera, e que as pratas brilhavam sobre a comprida mesa. O próprio William encontrava-se presente, dispondo os pratos no aparador, e Dona aproximou-se para ver o que fora que ele preparara. A seguir sorriu:
- Oh, William, agora já sei porque se deslocou a Helford esta tarde e voltou de lá com um cesto.
Ali, no aparador, viam-se caranguejos, ornamentados e preparados à maneira francesa, e havia também pequenas batatas novas, cozidas com casca, uma fresca salada salpicada com alho e minúsculos rabanetes vermelhos. Até arranjara tempo para fazer doçaria. Finas e estreitas Weafers entremeadas com creme, enquanto ao lado, sozinhos numa taça de vidro, se podiam ver os primeiros morangos do ano.
- William, o senhor é um génio - declarou, e o homem fez-lhe uma vénia, permitindo-se um sorriso.
- Fico contente por a ver satisfeita, minha senhora.
- Que tal estou? Acha que o seu amo me aprovará? perguntou-lhe Dona, dando uma volta sobre os calcanhares.
- Não fará comentários, minha senhora - replicou o criado -, mas penso que não ficará inteiramente indiferente à sua aparência.
- Obrigada, William - respondeu com gravidade, dirigindo-se para o salão a fim de aguardar o convidado. William correra os reposteiros, para maior segurança, mas Dona voltou a abri-los, deixando entrar a noite de Verão, e quando o fez viu o francês dirigir-se para ela através do relvado, uma figura alta e escura que caminhava silenciosamente.
Verificou imediatamente que o convidado se apercebera da sua disposição e que, ao saber que ela iria desempenhar o papel de senhora da mansão, se vestira, tal como Dona, para uma festa. O luar tocou-lhe as meias brancas e brilhou nas fivelas de prata dos sapatos. Usava uma longa capa cor de vinho e uma faixa da mesma cor, mas num tom mais escuro, e exibia rendas na garganta e nos pulsos. Continuava a desdenhar das cabeleiras encaracoladas à moda, e usava o seu próprio cabelo, como um cavaleiro. Dona estendeu-lhe a mão, e desta vez debruçou-se sobre ela, tal como era próprio de um convidado, tocando-lha com os lábios, e depois parou à entrada do salão, junto da grande porta envidraçada, olhando-a de cima com um sorriso.
- O jantar está pronto - disse Dona, subitamente tímida, sem motivo, mas o francês não respondeu e seguiu-a para a casa de jantar, onde William se encontrava à espera por detrás da cadeira da dona da casa.
O convidado deteve-se por um instante, olhando à sua volta, sob o clarão das velas, para as pratas resplandecentes, para os pratos brilhantes, com o seu rebordo cor-de-rosa, e depois virou-se para a anfitriã com aquele sorriso lento e trocista a que ela já se habituara:
- Será sensato da sua parte pôr tantas tentações à frente de um pirata?
- A culpa foi de William - disse Dona. - Foi ele quem tratou de tudo.
- Não acredito - declarou. - William nunca antes fez tantos preparativos por minha causa. Não é verdade, William? Cozinhaste-me uma costeleta e serviste-ma num prato estalado, empurraste para o lado a coberta de uma cadeira e disseste-me que teria de me contentar com o que havia.
- Sim, senhor - respondeu William, com os olhos a brilharem no pequeno rosto redondo, e Dona sentou-se. Já não se sentia tímida, porque a presença de William quebrava o embaraço existente entre eles.
O criado compreendia o seu papel de alvo e desempenhava-o na perfeição, prestando-se de boa vontade às setas espirituosas da sua senhora, aceitando as troças do amo com um sorriso e um encolher de ombros. Os caranguejos estavam óptimos, a salada era excelente, os doces eram leves como o ar, os morangos eram néctar e o vinho uma perfeição.
- Mesmo assim, sou melhor cozinheiro do que Williamafirmou o francês -, e um dia irá ter a oportunidade de provar a minha galinha da Primavera, assada no espeto.
- Não acredito... - retorquiu Dona - que alguma vez assasse galinhas naquela sua cabina, que parece a cela de um eremita. Os cozinhados e a filosofia não se dão bem.
- Pelo contrário, dão-se muito bem, mas não irei assar a galinha na minha cela. Acenderemos uma fogueira ao ar livre, nas margens do ribeiro, e será aí que a assarei. Todavia, terá de a comer à mão... e não haverá luz de velas, mas apenas o clarão da fogueira.
- E talvez o noitibó de que me falou não se conserve silencioso - comentou Dona.
- Talvez.
Sorriu para ela através da mesa e Dona teve uma visão súbita da fogueira que acenderiam na margem, mesmo junto à água, e de como as chamas silvariam e estalariam no ar, e como lhe chegaria às narinas o bom cheiro da galinha a assar. O cozinhado iria absorvê-lo, tal como o desenho da garça o absorvera no dia anterior e tal como se deixaria absorver no dia seguinte, quando fizesse planos de pirataria. Reparou, pela primeira vez, que William se retirara. Levantando-se da mesa, soprou as velas e conduziu-o para o salão.
- Fume, se o desejar - disse, e o francês reconheceu o boião de tabaco, colocado sobre a pedra da lareira que se encontrava na sua frente.
- A perfeita anfitriã - retorquiu.
Dona sentou-se, mas o francês continuou de pé junto à lareira, enchendo o cachimbo e olhando à sua volta.
- Está muito diferente do que era no Inverno - afirmou.
- Quando vim aqui, havia cobertas sobre os móveis e não existiam flores. Havia um toque de austeridade nesta sala. Modificou tudo isso.
- Todas as casas vazias são como sepulcros.
- Ah, sim... mas não me referia a isso. Navron teria continuado a ser um sepulcro mesmo que uma outra pessoa lhe quebrasse o silêncio.
Dona não respondeu. Não sabia bem o que ele pretendera dizer.
Por momentos fez-se o silêncio entre os dois, e por fim o francês perguntou:
- No fim de contas, o que foi que a trouxe a Navron? Dona brincou com um folho da almofada que tinha por detrás da cabeça.
- Ontem disse-me que a senhora de St. Columb era uma espécie de celebridade - respondeu Dona - e que ouvira boatos a respeito das suas escapadelas. Talvez eu estivesse cansada da senhora de St. Columb e quisesse ser alguém diferente.
- Por outras palavras... quis fugir?
- Foi o que William afirmou que o seu amo diria.
- William tem experiência. Já me viu fazer a mesma coisa. Outrora existiu um homem chamado Jean-Benoit Aubéry, que tinha propriedades na Bretanha, dinheiro, amigos, responsabilidades, e William servia-o. Porém, o amo de William cansou-se de Jean- Benoit Aubéry, transformou-se num pirata e construiu La Mouette.
-Será realmente possível ser-se uma pessoa diferente?
- Descobri que sim.
- E sente-se feliz?
- Sinto-me satisfeito.
- Qual é a diferença?
- Entre felicidade e satisfação? Aí apanhou-me! Não é fácil de o explicar em palavras. A satisfação é um estado de espírito e de corpo, quando os dois funcionam em harmonia e não há fricções. A mente está em paz e o corpo também. Os dois bastam-se a si mesmos. A felicidade... é fugaz. Surge talvez uma vez na vida, e está muito perto do êxtase.
- Não é uma coisa contínua, como a satisfação?
- Não, não é contínua. Porém, no fim de contas, também há graus de felicidade. Por exemplo, recordo-me de um momento particular, depois de me ter feito pirata e de ter combatido na minha primeira acção, contra um dos vossos navios mercantes. Tive êxito e reboquei a minha presa para o porto. Foi um momento bom, excitante, feliz. Conseguira aquilo que me decidira fazer, e de que estivera incerto.
- Sim - respondeu Dona. - Sim, compreendo.
-Já se verificaram outros momentos semelhantes. Como o do prazer sentido ao fazer um desenho, olhar para ele e verificar que saiu com o contorno e forma que pretendia. Esse é outro grau de felicidade.
- Então, para um homem é mais fácil - murmurou Dona. - O homem é um criador, e obtém a felicidade das coisas que realiza, daquilo que faz com as mãos, com o cérebro, com os seus talentos.
- É possível - retorquiu o francês. - Porém, as mulheres também não estão paradas. As mulheres dão à luz filhos. É uma realização muito maior do que um desenho, ou do que o planeamento de uma acção.
- Acha que sim?
- Sem dúvida.
- Nunca tinha pensado nisso.
-Tem filhos, não tem?
- Sim... Dois.
- E não teve consciência dessa realização quando lhes pegou pela primeira vez? Não disse para si mesma: Aqui está uma coisa que eu fiz... Eu própria. " Isso não será estar muito perto da felicidade?
Dona pensou por instantes e depois sorriu-lhe:
- Talvez - respondeu.
O francês virou-se e começou a tocar nas coisas que se encontravam sobre a lareira.
- Não se deve esquecer de que sou um pirata - declarou - e que não pode deixar os seus tesouros por aí, de uma maneira tão descuidada. Esta pequena caixa, por exemplo, vale várias centenas de libras.
- Ah, mas eu confio em si.
- Isso não é sensato.
- Então, apelo à sua piedade.
- Sou conhecido por ser impiedoso.
Voltou a colocar a caixa no seu lugar e pegou na miniatura de Harry. Examinou-a por instantes, assobiando baixinho.
- É o seu marido? - perguntou.
- Sim.
Não fez comentários e pousou a miniatura no seu lugar, mas a maneira como o fez, sem dizer nada a respeito de Harry, ou da parecença ou da própria miniatura, provocou em Dona uma curiosa sensação de embaraço. Sentiu, instintivamente, que o francês não tinha grande opinião de Harry, que o considerava um tolo, e repentinamente desejou que a miniatura não se encontrasse ali ou que Harry fosse diferente.
- Foi feita há muitos anos - descobriu-se a dizer, como que a defender-se. - Ainda antes de se casar.
- Ah, sim - comentou. Fez uma pausa e depois prosseguiu: - E aquele seu retrato, lá em cima no quarto, foi feito na mesma altura?
- Sim - respondeu Dona -, foi feito pouco depois de ficar noiva de Harry.
- Há quanto tempo estão casados?
- Há seis anos. Henrietta tem cinco.
- E o que foi que a decidiu a casar-se?
Dona devolveu-lhe o olhar, momentaneamente desorientada. A pergunta fora inesperada. Depois, como o homem falara de uma maneira tão tranquila, com tanta compostura, como se estivesse a perguntar por que motivo escolhera um certo prato para o jantar e sem se preocupar grandemente com a resposta, contou-lhe a verdade, sem sequer se aperceber que nunca antes a admitira.
- Harry era divertido... e gostei dos seus olhos. Quando falou, pareceu-lhe que a sua voz soava muito distante, como se não tivesse sido ela quem falara, mas sim uma outra pessoa.
O francês não respondeu. Afastara-se da lareira, sentara-se numa cadeira e tirava um bocado de papel do grande bolso do casaco. Dona continuou a olhar em frente, numa repentina meditação a respeito de Harry e do passado, pensando no casamento em Londres, na vasta assembleia de gente, e em como o pobre Harry, muito jovem, talvez assustado com as responsabilidades que tinha pela frente, bebera de mais na noite do casamento, para parecer mais ousado do que realmente era, e só conseguira fazer um papel de estúpido tolo. Tinham viajado por toda a Inglaterra, ao encontro dos seus amigos, sempre metidos em casas de outras pessoas, numa atmosfera artificial e de tensão, e ela - que gerara Henrietta quase imediatamente - tornara-se irritável, rabugenta, completamente diferente do que era, pois nunca estivera habituada a incómodos de saúde de qualquer espécie. A impossibilidade de andar a cavalo, de caminhar, de fazer todas as coisas que lhe apeteciam fazer, ainda Lhe tinham aumentado ainda mais a irritação. Teria sido uma ajuda se pudesse falar com Harry, pedir a sua compreensão, mas para ele a compreensão não significava silêncio, nem
ternura, nem tranquilidade mas sim um tumulto barulhento uma jovialidade forçada, a produção de ruídos que eram uma tentativa para a alegrar, e ainda por cima, para cúmulo, um excesso de carícias que de maneira nenhuma a ajudavam.
Olhou para cima repentinamente e verificou que o convidado a desenhava.
- Importa-se? - perguntou.
- Não - respondeu Dona -, é claro que não. - Todavia, perguntava a si mesma que género de desenho iria fazer, e ficou a olhar-lhe para as mãos, hábeis e rápidas, mas não podia ver o papel, que se mantinha encostado ao joelho.
- Como foi que William se tornou num seu criado? perguntou.
- A mãe era bretã... Já o sabia, suponho?
- Não - respondeu.
- O pai era um mercenário, um soldado de fortuna, que encontrou o caminho para França sem saber bem como e se casou. Já deve ter notado o sotaque de William.
- Pensei que era da Cornualha.
- Os homens da Bretanha e da Cornualha são muito parecidos. São celtas. Descobri William a correr nas ruas de Quimper, de pés descalços e calças rotas. Estava metido num problema qualquer, de que o consegui libertar. A partir daí passou a ser um dos meus fiéis. Aprendeu o inglês, é claro, com o pai. Creio que tinha vivido muitos anos em Paris antes de eu dar com ele. Nunca aprofundei a história de William. O seu passado só a ele pertence.
- E porque foi que William se recusou a ser pirata?
- Ah! Por uma razão das mais prosaicas, e nada romântica. William tem um estômago fraco. O canal que separa a costa da Cornualha da costa da Bretanha já é de mais para ele.
- E assim veio parar a Navron, que constituía um excelente esconderijo para o seu amo?
- Precisamente.
- E os homens da Cornualha são roubados, as mulheres da Cornualha receiam pelas suas vidas, ou por mais do que as suas vidas, tal como me disse Lord Godolphin...
-As mulheres da Cornualha estão a lisonjear-se a si
mesmas.
- Foi o que pretendi dizer a Lord Godolphin.
- Porque não o disse?
- Não tive coragem para o deixar tão chocado.
- Os franceses têm uma reputação de galanteria que não possui qualquer fundamento. Somos muito mais tímidos do que dizem. Pronto, acabei o seu retrato.
Entregou-lhe o desenho e recostou-se na cadeira, com as mãos metidas nos bolsos do casaco. Dona olhou para o desenho, em silêncio. Verificou que o rosto que olhava para ela daquele bocado de papel rasgado pertencia à outra Dona, a Dona que não queria admitir, nem para ela própria. As feições não se tinham modificado, nem os olhos ou a textura do cabelo, mas a expressão nos olhos era a que vira algumas vezes reflectida no espelho quando se encontrava sozinha. Ali estava alguém com todas as ilusões perdidas, alguém que olhava para o mundo por uma fresta demasiado estreita e o descobria diferente daquilo que desejara, amargo e sem valor.
- Não é muito lisonjeiro - acabou finalmente por comentar
- Não foi essa a intenção - replicou.
- Fez-me parecer mais velha do que sou.
- É possível.
- E tem qualquer coisa de petulante na boca.
- Ouso dizê-lo.
- E... um curioso franzido entre as sobrancelhas.
- Sim.
- Não me parece que goste muito dele.
- Pois não, foi o que pensei. É pena. Podia deixar de ser pirata para passar a retratista.
Dona devolveu-lhe o desenho e viu que o francês sorria.
- As mulheres não gostam de ouvir a verdade a respeito delas mesmas - comentou.
- Há alguém que goste? - inquiriu Dona. Não queria continuar com aquela discussão. - Agora percebo porque é um pirata com tanto êxito - disse-lhe. - É muito perfeito no seu trabalho. Essa qualidade é visível nos desenhos. Vai até ao fundo do assunto.
- Talvez tenha sido injusto - replicou. - Apanhei este modelo desprevenido, quando o seu rosto reflectia uma certa disposição. Se a desenhasse numa outra altura, quando estivesse a brincar com as crianças, ou pura e simplesmente quando cedesse à delícia de se ter conseguido escapar, o desenho seria inteiramente diferente. Então poderia acusar-me de estar a lisonjeá-la.
- Sou assim tão mutável?
- Não diria que é mutável. Acontece apenas que o seu rosto reflecte o que se está a passar na mente, o que é exactamente o que um artista deseja.
- É uma falta de sensibilidade da parte do artista.
- Então porquê?
- Porque faz uma cópia das emoções, à custa do modelo. Porque capta uma disposição e a passa para o papel, envergonhando a possuidora dessa emoção.
- É possível, mas, por outro lado, o possuidor da emoção pode decidir, ao ver-se representado pela primeira vez, pôr essa emoção de lado de uma vez para sempre, por não valer a pena e ser um desperdício de tempo. - Quando acabou de falar, rasgou o papel ao meio e depois em pequenos pedaços.
- Pronto - disse -, agora irá esquecer-se do assunto. De qualquer modo, foi uma atitude imperdoável da minha parte. Ontem, disse-me que tenho andado a invadir a sua propriedade. É um dos meus defeitos... sob mais do que um aspecto. A pirataria conduz-nos a maus hábitos.
Levantou-se, e Dona notou que o francês se preparava para se ir embora.
- Perdoe-me - pediu. - Devo ter-lhe parecido impertinente e mimada. A verdade (quando olhei para o seu desenho) está no facto de me ter sentido envergonhada porque, pela primeira vez, houve uma outra pessoa que me viu tal como eu me vejo com demasiada frequência. Foi como se tivesse um defeito no corpo, e me tivesse desenhado nua.
- Sim... mas supondo que o artista tem um defeito semelhante, só que ainda o desfigura mais... Nesse caso, o retratado deverá sentir-se envergonhado?
- Quer dizer que haveria um elo entre eles?
- Exactamente. - Sorriu mais uma vez e virou-se, encaminhando-se para a janela. - Nesta costa, quando o vento leste começa a soprar, fá-lo durante vários dias. O meu navio fica imobilizado, permite-me ser preguiçoso e fazer muitos desenhos. Será que me pode deixar tentar outra vez?
- Com uma expressão diferente?
- Essa decisão será sua. Não se esqueça que assinou o seu nome no meu livro, e que quando sentir disposição para uma fuga ainda mais completa, a enseada está acostumada a fugitivos.
- Não esquecerei.
- Há aves para ver, peixes para apanhar e riachos para explorar. Tudo isto são métodos de fuga.
- Métodos que tem usado com êxito?
- Métodos que tenho usado com êxito. Obrigado pelo seu jantar. Boa noite.
- Boa noite.
Daquela vez o francês não lhe tocou na mão e saiu sem olhar para trás, e Dona viu-o desaparecer entre as árvores com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco.
Capítulo oitavo
O ar estava abafado no interior da casa, e, por causa da condição em que se encontrava a sua senhora, Lord Godolphin ordenara que as janelas fossem fechadas e as cortinas corridas, para a proteger do Sol. O brilho do Verão poderia fatigá-la e o ar suave poderia tornar ainda mais pálidas as suas faces já suficientemente lânguidas. Todavia, jazer no sofá, apoiada em almofadas, trocando pequenas frases de circunstância com os amigos, com o quarto meio obscurecido zumbindo com as conversas e repleto do quente cheiro a pessoas que comiam fatias de bolo, não era coisa que cansasse ninguém. Era a ideia de descontracção defendida tanto por Lord Godolphin como pela sua senhora.
Nunca mais, pensou Dona, nunca mais me convencerão, seja por Harry, ou apenas para tranquilizar a consciência, a visitar os vizinhos. " Dobrando-se, fingindo mostrar-se interessada no pequeno cão de colo deitado sobre o seu vestido, deu-lhe o húmido bocado de bolo que Godolphin a forçara a aceitar. Verificou, pelo canto do olho, que o seu gesto fora observado e que, horror dos horrores, ali estava o anfitrião a debruçar-se sobre ela, com mais bolo nas mãos, obrigando-a a exibir o seu mais falso e mais brilhante sorriso, e a levar outro bocado, a escorrer líquido, aos lábios relutantes.
- Se conseguisse persuadir Harry a esquecer os prazeres da cidade - observou Godolphin -, poderíamos ter muitas destas pequenas reuniões informais. Com a minha mulher no seu presente estado, uma grande reunião seria prejudicial para a sua saúde, mas alguns amigos, como temos aqui hoje, só lhe poderão fazer bem. Tenho muita pena que Harry não esteja connosco.
Olhou em volta, satisfeito com a sua hospitalidade, e Dona, curvada na cadeira, contou mais uma vez as quinze ou dezasseis pessoas que se encontravam na sala, as quais, cansadas da companhia umas das outras ao longo de um exagerado número de anos, a observavam com um interesse apático. As senhoras olhavam-lhe para o vestido, para as novas luvas compridas com que brincava em cima do regaço e para o chapéu com a pena inclinada, que lhe escondia a face direita. Os homens permaneciam de olhos vazios, como se estivessem na primeira fila de um teatro, e um ou dois, com um pesado humor jovial, interrogavam-na a respeito da vida na corte, sobre os prazeres do rei, como se o facto de ela ser proveniente de Londres lhe desse um perfeito conhecimento da vida e hábitos do monarca. Odiava os mexericos sem finalidade, e, apesar de lhe ser possível contar-lhes muitas coisas, se para isso tivesse vontade, sobre as futilidades e frivolidades a que escapara, sobre a Londres artificial, sobre os pajens com archotes caminhando em bicos de pés nas ruas calcetadas, sobre os galãs cambaleantes às portas das tabernas, rindo-se em tons demasiado altos e cantando, sobre a atmosfera barulhenta e entontecedora presidida por alguém que tinha um cérebro que não utilizava, uns olhos escuros e um sorriso sardónico. No entanto, manteve-se silenciosa a esse respeito, preferindo dizer que adorava o campo.
- É uma pena que Navron esteja tão isolada - disse alguém. - Deve achar-se muito solitária depois de ter estado na cidade. Se estivéssemos mais perto, poderíamos reunir-nos mais vezes.
- É muita amabilidade vossa - respondeu Dona. - Harry ficaria muito grato com essa ideia. Porém, infelizmente, a estrada para Navron é excepcionalmente má. Tive muita dificuldade para chegar aqui. E depois, sabem, sou uma mãe dedicada, passo quase todo o tempo com os meus filhos.
Sorriu para o grupo com os seus olhos grandes e inocentes, e no preciso instante em que falou teve uma visão do barco que estaria à sua espera em Gweek, das linhas de pesca enroladas sobre as tábuas do fundo, e do homem que lá se encontraria a preguiçar, de casaco atirado para um lado e mangas arregaçadas até aos cotovelos.
- Considero que demonstra uma grande coragem - disse a dona da casa - ao viver ali sozinha, com o seu marido ausente. Fico inquieta quando o meu se afasta apenas por algumas horas, durante o dia.
- O que talvez seja justificável, atendendo às circunstâncias - murmurou Dona, dominando um desejo louco de rir, de dizer qualquer coisa monstruosa, pois a ideia de uma Lady Godolphin a jazer no sofá, ansiando pelo seu Lord (que exibia uma tão desagradável e visível excrescência na ponta do nariz) incitava-a a comentários maldosos.
- E está bem protegida em Navron? - perguntou Godolphin, virando-se para ela com toda a sua solenidade. - Nos nossos dias, há muita libertinagem e muito desrespeito pela lei. Tem criados em quem possa confiar?
- Implicitamente.
- Ainda bem. Caso contrário, basear-me-ia nas minhas velhas relações de amizade com Harry para Lhe enviar dois ou três dos meus homens.
- Garanto-lhe que seria inteiramente desnecessário.
- Pode ser essa a sua ideia... mas alguns de nós pensam de uma maneira diferente.
Olhou para o outro lado, para o seu vizinho mais próximo, Thomas Eustick - um homem de lábios finos e olhos estreitos -, que possuía uma grande propriedade para lá de Penryn, e que se mantivera a observar Dona da outra ponta da sala. Avançou, acompanhado por Robert Penrose, de Tregony.
- Godolphin disse-lhe, creio, que somos ameaçados dos lados do mar - declarou de um modo abrupto.
- Por um francês muito escorregadio - sorriu Dona.
- Mas que não continuará a ser escorregadio durante muito mais tempo - replicou Eustick.
- Ah, sim? Mandaram vir mais soldados de Bristol?
O homem corou, olhando para Godolphin com um ar irritado.
- Desta vez não se trata de mercenários contratados - declarou. - Fui contra essa ideia desde o princípio, mas, como é hábito, não me ligaram. Não, agora propomo-nos lidar nós próprios com esse estrangeiro, e considero que os nossos métodos serão eficientes.
- Desde que, entre nós, consigamos juntar o número suficiente de pessoas - declarou Godolphin num tom seco.
- E que os mais capazes de nós assumam a liderançadisse Penrose. Houve uma pausa, com os três homens a olharem-se uns aos outros, desconfiados. Teria a atmosfera ficado tensa, por uma ou outra razão?
- Uma casa dividida dentro de si mesma não se sustentará - murmurou Dona.
- Como? - perguntou Thomas Eustick.
- Nada. De repente, lembrei- me de uma frase das Escrituras. Estavam a falar do pirata. Um homem sozinho contra tantos. Será apanhado, claro. Qual é o plano de captura?
- Ainda é embrionário, senhora, e como é natural não podemos revelar muita coisa. No entanto, gostaria de a avisar (e creio que era a isso que Godolphin se referia quando a interrogou a respeito dos criados) de que desconfiamos que algumas pessoas da região estão ao serviço do francês.
- Deixam-me espantada!
- É imperdoável, claro, e se as nossas desconfianças se confirmarem, serão todas enforcadas, tal como o pirata. De facto, pensamos que o francês tem um esconderijo ao longo da costa, e pensamos que um ou dois habitantes devem estar a par disso e mantêm as bocas fechadas.
- Não fizeram uma busca completa?
- Minha querida senhora de St. Columb, estamos sempre a revistar o condado. Porém, como deve ter ouvido, o homem é escorregadio como uma enguia, como todos os franceses, e parece conhecer a nossa costa melhor do que nós próprios. Suponho que a senhora não terá visto nada de suspeito em volta de Navron.
- Nada.
- A mansão tem uma boa vista para o rio, não tem?
- Sim, uma vista esplêndida.
- Então, daria por isso se algum navio estranho penetrasse no estuário.
- Sem dúvida.
- Não desejo alarmá-la, mas é possível, sabe, que o francês já se tenha servido de Helford no passado, e que o volte a fazer.
- Está a aterrorizar-me.
- Além disso, devo avisá-la que se trata do tipo de homem que não teria grande respeito pela sua pessoa.
- Quer dizer... que não tem escrúpulos?
- Receio que não.
- E os seus homens são desesperados e selvagens?
- São piratas, senhora, e ainda por cima franceses.
- Então terei o máximo cuidado com a minha casa. Acha que também serão canibais? O mei filho ainda não fez dois anos.
Lady Godolphin soltou um pequeno e esganiçado grito de horror e começou a abanar-se muito depressa, com o leque. O marido deu um estalo de aborrecimento com a língua.
- Acalme-se, Lucy, a senhora de St. Columb estava a brincar, é claro. - De qualquer modo, garanto-lhe - prosseguiu, virando-se novamente para Dona - que o assunto não é para brincadeiras, nem para ser tratado com leviandade. Eu próprio me sinto responsável pelas gentes do condado que vivem aqui à volta, e, como Harry não se encontra em Navron, admito que me sinto preocupado consigo.
Dona pôs-se de pé e estendeu-lhe a mão.
- É uma grande consideração da sua parte - disse, brindando-o com o seu sorriso especial, o que reservava para os momentos difíceis. - Não me esquecerei da sua amabilidade, mas garanto-lhe que não há motivos para ansiedades. Posso, se necessário, trancar e aferrolhar a minha casa... e com vizinhos como os senhores - fez saltar os olhos de Godolphin para Eustick e Penrose - estou certa de que nada de mal me poderá acontecer. São de tanta confiança, tão firmes, tão... se assim o posso dizer, ingleses!
Os três homens fizeram, um de cada vez, vénias sobre a mão estendida, e Dona sorriu para todos eles.
- Talvez - acrescentou - esse francês já tenha abandonado de vez as nossas costas, e não precisem de se preocupar mais com ele.
- Gostaria de poder pensar desse modo - afirmou  Eustick -, mas creio que nos podemos gabar de já compreendermos um pouco esse patife. É sempre mais perigoso quando se conserva tranquilo. Voltaremos a ouvir falar dele, provavelmente dentro de pouco tempo.
- Atacará - acrescentou Penrose - onde menos o esperarmos, mesmo debaixo dos nossos narizes. Porém, será a última vez que o fará.
- Terei um prazer muito especial - disse Eustick lentamente - em enforcá-lo na árvore mais alta do parque de Godolphin, um pouco antes do nascer do Sol. Convido todos os que aqui estão presentes a assistirem à cerimónia.
- Senhor, que disposição sanguinária! - exclamou Dona.
- Também a teria, senhora, se lhe roubassem as suas posses. Quadros, pratas, louças... Tudo de um valor considerável.
- Ah, mas pense na alegria que irá ter ao substituir todas essas coisas.
- Receio que encare esse assunto sob uma luz diferente. Fez uma vénia e afastou-se, com as faces de novo a corarem de aborrecimento.
Godolphin acompanhou Dona até à carruagem.
- O seu comentário foi algo infeliz - disse. - Eustick é muito agarrado ao dinheiro.
- Sou conhecida - respondeu Dona - por fazer comentários infelizes.
- Não duvido que em Londres sejam melhor compreendidos.
-Não creio. Foi essa uma das razões que me fizeram afastar de Londres.
Olhou-a sem perceber e ajudou-a a subir para a carruagem.
- O cocheiro é competente? - perguntou, olhando para cima, para William, que segurava nas rédeas sozinho e não tinha um ajudante.
- Muito competente - confirmou Dona. - Seria capaz de lhe confiar a minha vida.
- Tem um rosto obstinado.
- Sim... mas também é divertido, e adoro aquela sua boca.
Godolphin ficou rígido e afastou-se da porta da carruagem.
- Esta semana, enviarei cartas para a cidade - disse, com frieza. - Quer algum recado para Harry?
-Apenas que me encontro bem e perfeitamente feliz.
- Considerarei como uma obrigação informá-lo da minha ansiedade a seu respeito.
- Por favor, não se incomode.
- Considero-o como um dever. Por outro lado, a presença de Harry nas vizinhanças seria uma grande ajuda.
- Custa-me a crer.
- Eustick pode ser obstrutivo, e Penrose é ditatorial, e tenho de estar constantemente a fazer as pazes entre eles.
- Está a ver Harry no papel de moderador?
- Vejo Harry a perder o seu tempo em Londres, quando deveria tomar conta da sua propriedade na Cornualha.
- A propriedade tomou bem conta de si ao longo de vários anos.
- Não é essa a questão. De facto, precisamos de toda a ajuda que pudermos conseguir. E quando Harry souber que há um pirata à solta na costa...
-Já Lhe mencionei esse facto.
- Estou convicto de que não o fez com a força suficiente. Se Harry pensasse, por um momento, que Navron House pudesse estar ameaçada, que as suas posses podem ser roubadas, e a esposa ameaçada... de certeza não teria permanecido na cidade. Se estivesse no lugar dele...
- Sim, mas não está.
- Se estivesse no lugar dele, nunca lhe teria permitido que viajasse sozinha para o Oeste. As mulheres, longe dos seus maridos, por vezes perdem a cabeça.
- Apenas a cabeça?
- Repito, as mulheres por vezes perdem a cabeça em momentos de crise. Neste momento considera-se muito corajosa, sem dúvida, mas quando se vir frente a frente com um pirata, garanto-lhe que tremerá e cambaleará, tal como os restantes membros do seu sexo.
- Ah, sim, tremia com certeza.
- Não posso falar muito em frente da minha mulher, pois de momento os seus nervos estão em mau estado, mas tanto eu como Eustick já ouvimos dois ou três boatos desagradáveis.
- Que espécie de boatos?
- Sobre mulheres... incomodadas, e outras coisas do género.
- Incomodadas... como?
- As pessoas do campo são estúpidas, não se abrem, mas parece-nos que algumas das mulheres das aldeias em volta sofreram às mãos desses malditos patifes.
- Não será insensato tentar saber mais?
- Então porquê?
- Porque poderão vir a descobrir que essas mulheres não sofreram, e sim que se divertiram imensamente. Vamos, William, sim?
Fazendo uma vénia e sorrindo do alto da sua carruagem aberta, a senhora de St. Columb acenou uma despedida a Lord Godolphin, com a mão enluvada.
Seguiram ao longo da comprida alameda, passaram pelos pavões que se exibiam sobre os relvados e pelos veados do parque, até atingirem a estrada. Dona, tirando o chapéu e abanando-se com ele, olhou para as costas rígidas de William e riu-se em silêncio.
- William, portei-me muito mal.
- Assim me pareceu, minha senhora.
- Estava muito calor em casa de Lord Godolphin, e a sua senhora tinha todas as janelas fechadas.
- Uma coisa difícil de suportar, minha senhora.
- Descobri que nenhuma daquelas pessoas me agradava.
- Pois não, minha senhora.
- Por pouco não disse qualquer coisa de verdadeiramente terrível.
- Ainda bem que não o fez, minha senhora.
- Estava lá um homem chamado Eustick, e um outro chamado Penrose.
- Sim, minha senhora.
- Detestei-os aos dois.
- Sim, minha senhora.
- A questão é esta, William: aquela gente está a começar a acordar. Falou-se muito de pirataria.
- Ouvi o que disse Sua Senhoria agora mesmo, minha senhora.
- Também se falou em planos de captura, em juntarem-se todos, e em enforcamentos na árvore mais alta. Além disso, têm desconfianças em relação ao rio.
- Sabia que era apenas uma questão de tempo, minha senhora.
- Acha que o seu amo tem consciência do perigo?
- Creio que sim, minha senhora.
- E, no entanto, continua ancorado na enseada.
- Sim, minha senhora.
- Permanece lá há quase um mês. Costuma ficar assim tanto tempo?
- Não, minha senhora.
- De quanto tempo é uma visita normal?
- Cinco ou seis dias, minha senhora.
- O tempo passou muito depressa. Talvez não se aperceba que se encontra lá há muito...
- Talvez não, minha senhora.
- Começo a saber muito a respeito de aves, William.
-Já tinha reparado, minha senhora.
- Reconheço muitas diferenças nos cantos e nas variações
dos voos.
- Sim, minha senhora.
- Além disso, tornei-me numa especialista da cana e da linha.
- Também já o observei, minha senhora.
- O seu amo é um excelente instrutor.
- Assim parece, minha senhora.
- É estranho, não é, William? Antes de vir para Navron, pensava muito pouco em aves e ainda menos na pesca.
- Sim, é estranho, minha senhora.
- Suponho que... que o desejo de saber dessas coisas esteve sempre presente, mas adormecido, se é que compreende o que quero dizer.
- Compreendo perfeitamente, minha senhora.
- Sozinha, uma mulher tem grande dificuldade em adquirir conhecimentos sobre aves e pesca, não acha, William?
- É quase impossível, minha senhora.
- É realmente necessário ter um instrutor.
- É imperativo, minha senhora.
- Porém, é claro que o instrutor tem de ser compreensivo.
- Isso é importante, minha senhora.
- E amigo de... partilhar os conhecimentos com a aluna.
- Escusado será dizê-lo, minha senhora.
- É possível que, através da aluna, os conhecimentos do instrutor se tornem mais perfeitos. Ganha qualquer coisa que não possuía anteriormente. Em certo sentido, aprendem um com o outro.
- Expôs a questão com grande clareza, minha senhora. Querido William, era um grande companheiro. Compreendia tudo. Era como ter um confessor que nem censurava nem condenava.
- Que história contou em Navron, William?
- Disse que a senhora ficaria para o jantar em casa de Sua Senhoria, e que chegaria tarde, minha senhora.
- E onde guardará os cavalos?
- Está tudo combinado. Tenho amigos em Gweek, minha senhora.
- A quem também contará uma história?
- Sim, minha senhora.
- Onde irei mudar de vestido?
- Pensei que a senhora não se importaria de o fazer por detrás de uma árvore.
- Que consideração da sua parte, William. Já escolheu a árvore?
- Cheguei ao extremo de a marcar para si, minha senhora. A estrada virou repentinamente para a direita, e estavam de novo ao lado do rio. O brilho da água tremeluzia por entre as árvores. William obrigou os cavalos a deterem-se. Parou por um instante, e depois levou a mão à boca e emitiu o grito de uma gaivota. Foi respondido imediatamente da margem do rio, fora das vistas, e o criado virou-se para a sua patroa.
- Está à sua espera, minha senhora.
Dona retirou um vestido velho de detrás do banco da carruagem e colocou-o sobre o braço.
- Qual foi a árvore que marcou, William?
- Aquela mais larga, minha senhora, o carvalho com os ramos baixos.
- Acha que sou louca, William?
- Digamos que... não inteiramente boa da cabeça, minha senhora...
- É uma sensação adorável, William.
- Foi o que sempre ouvi dizer, minha senhora.
- Uma pessoa sente-se absurdamente feliz sem motivo... Como uma borboleta!
- Exactamente, minha senhora.
- Que sabe William dos hábitos das borboletas? Dona virou-se e deparou-se-lhe o amo de William mesmo na sua frente, com as mãos ocupadas a enrolar uma linha na patilha de um anzol, amarrando-a e cortando-lhe a ponta solta com os dentes.
- Caminha muito silenciosamente.
- Um hábito ganho com uma longa prática.
- Estava a fazer um comentário para William.
- Sobre borboletas, segundo me pareceu. O que a faz ter a certeza de que são felizes?
- Basta olhar para elas.
- Refere-se à maneira como dançam ao sol?
- Sim.
- E apetece-lhe fazer o mesmo?
- Sim.
- Então é melhor mudar de vestido. As donas de mansões que tomam chá com Lord Godolphin nada sabem de borboletas. Esperarei por si no barco. O rio está a fervilhar de peixes.
Virou-lhe as costas e desceu em direcção à margem do rio, e Dona, abrigada por detrás do carvalho, despiu o vestido de seda e envergou o outro, rindo-se sozinha, enquanto os caracóis se escapavam ao gancho que os segurava e lhe caíam para a frente, sobre a cara. Quando ficou pronta, entregou o vestido de seda a William, que se encontrava de pé junto dos cavalos, com o rosto virado para o outro lado.
- Desceremos o rio com a maré, William, e irei a pé para Navron, a partir da enseada.
- Muito bem, minha senhora.
- Estarei na alameda pouco depois das dez horas, William.
- Sim, minha senhora.
- Poderá levar-me para casa como se acabasse de regressar da mansão de Lord Godolphin.
- Sim, minha senhora.
- Porque está a sorrir dessa maneira?
- Não tinha a consciência, minha senhora, de que as minhas feições se tivessem descontraído.
- É um mentiroso. Adeus.
- Adeus, minha senhora.
Levantou o velho vestido de musselina até acima dos tornozelos, apertou a faixa da cintura para o manter no seu lugar, e correu descalça por entre as árvores, até ao bote que a aguardava na margem.
Capitulo nono
O francês colocava a minhoca no anzol e olhou para cima com um sorriso.
- Não se demorou.
- Não havia espelho para me fazer perder tempo.
- Agora compreende - disse - como a vida pode ser simples quando se esquecem coisas como os espelhos. - Dona desceu para o bote, para o lado do francês.
Entregou-lhe a linha, pegou nos longos remos e seguiu a corrente do rio, vendo-a sentar-se na popa do bote. Dona franziu a testa, concentrando-se na sua tarefa, e como a minhoca se debatia acabou por picar um dedo com o anzol. Praguejou entre dentes e ao olhar para cima viu que o francês se ria dela.
- Não sou capaz - queixou-se. - Porque será que as mulheres são tão inúteis para estas coisas?
- Eu trato disso quando já estivermos mais para baixo - respondeu o francês.
- Não é essa a questão - retorquiu Dona. - Quero fazê-lo sozinha. Não me dou por vencida.
Não lhe respondeu, mas começou a assobiar baixinho para si mesmo. E como ele tirou os olhos de Dona, sem Lhe dizer nada, para observar um pássaro que passou por cima deles, entregou-se novamente à tarefa, acabando por soltar um grito de triunfo.
-Já consegui! Olhe, consegui! - exclamou, levantando a linha para lha mostrar.
- Muito bem - confirmou o francês -, está a fazer progressos. - Pousou os remos e deixou que o bote fosse arrastado pela corrente provocada pela maré.
Por fim, depois de percorrerem alguma distância, estendeu a mão para uma grande pedra que se encontrava a seus pés, amarrou-a a um longo cabo e atirou-a por cima da borda. Ficaram ancorados, juntos, com Dona sentada na popa e ele no banco central, cada um deles com a sua linha de pesca. Havia uma fraca agitação na água, e a maré levava consigo pequenos montinhos de ervas e uma ou outra folha caída. Estava tudo muito tranquilo, A fina linha molhada que se encontrava entre os dedos de Dona era suavemente puxada pela maré, e de vez em quando, impaciente, tirava-a para fora para examinar o anzol, mas a minhoca permanecia inteira e a única alteração era a tira escura de uma alga, presa à ponta da linha.
- Está a deixá-la tocar no fundo.
Dona puxou um bocado da linha para cima, observando-o pelo canto dos olhos, e quando verificou que o francês não criticava o seu método de pesca nem se intrometia de qualquer outra maneira, continuando com a sua própria pesca, tranquilamente satisfeito, deixou escorregar novamente a linha por entre os dedos e começou a analisar-lhe a linha do queixo, a posição dos ombros, a forma das mãos. Supunha que, como de costume, o francês estivera a desenhar enquanto a esperara, pois na proa do barco, debaixo de alguns apetrechos de pesca, via-se uma folha de papel agora amachucada e húmida, com o esboço de um pilrito a levantar voo da lama.
Pensou no desenho que fizera dela, havia um ou dois dias, e como fora diferente do primeiro, aquele que rasgara em bocados, pois o novo desenho captara-a bem-disposta, debruçada sobre a amurada do navio, vendo o cómico Pierre Blanc a cantar uma das suas canções satíricas. Mais tarde o francês pregara o desenho na antepara da cabina, por cima da lareira, e escrevinhara a data no fundo do papel.
- Porque não o rasga, como fez com o primeiro? - perguntara.
- Porque é esta a emoção que queria captar e recordar - respondera.
- Por ser mais apropriado para um membro da tripulação do La Mouette?
- Talvez - retorquiu, sem dizer mais nada. Ali estava ele agora, esquecido do desenho, atento apenas à pesca, enquanto a poucas léguas de distância havia homens que planeavam a sua captura e morte, e era possível que naquele mesmo instante os servos de Eustick, Penrose e Godolphin andassem a fazer perguntas ao longo da costa, e nas aldeias espalhadas pelo interior.
- Que se passa? - perguntou o francês num tom baixo, quebrando-lhe a linha dos pensamentos. - Não quer continuar a pescar?
- Pensava no que se passou esta tarde - respondeu.
- Sim, eu sei, via-se na sua cara. Conte-me.
- Não devia permanecer aqui mais tempo. Estão a começar a desconfiar. Falaram no assunto, gabando-se da possibilidade da sua captura.
- Isso não me preocupa.
- Creio que falavam a sério. Eustick tinha um ar duro e obstinado. Não é um tolo pomposo como Godolphin. Quer enforcá-lo na árvore mais alta do parque de Godolphin.
- Bem vistas as coisas, trata-se de uma espécie de cumprimento.
- Está a fazer troça de mim. Pensa que, como todas as mulheres, tenho a cabeça cheia de boatos e má-língua.
- Como todas as mulheres, gosta de dramatizar os acontecimentos.
- E como todos os outros, ignora o que elas lhe dizem.
- Então, que acha que deveria fazer?
- Em primeiro lugar, pedia-lhe para ser cauteloso. Eustick diz que as pessoas do campo sabem que tem um esconderijo.
- É possível.
- E que um dia alguém o trairá e a enseada será cercada.
- Estou preparado para isso.
- Preparado? Como?
- Eustick e Godolphin disseram-lhe como pretendiam capturar-me?
- Não.
- Pois também não lhe direi como tenciono escapar-me.
- Passa-lhe pela cabeça, por um instante que seja, que eu...
- Não penso nada... mas parece-me que tem um peixe na linha.
- Está a provocar-me deliberadamente.
- De maneira nenhuma. Se não quer apanhar o peixe, passe-me a linha.
- Quero apanhá-lo.
- Muito bem, puxe a linha.
Começou a fazê-lo, relutante, um pouco amuada, mas de repente - ao sentir os puxões do anzol - começou a puxar depressa, com a linha molhada a cair-lhe sobre o colo e os pés nus. Rindo-se para ele por cima do ombro, disse:
- Está aqui, consigo senti- lo na ponta do anzol!
- Não puxe tão depressa, ou acabará por o perder - respondeu o francês tranquilamente. - Devagar, e traga-o até ao
lado do bote.
Dona não queria ouvir. Levantou-se, excitada, deixou escorregar a linha por instantes, e depois puxou ainda com mais força do que antes, e, no preciso momento em que tinha um relance do clarão branco que trazia para a superfície, o peixe deu um safanão lateral e libertou-se.
Dona soltou um grito de desapontamento, virando-se para o francês com os olhos carregados de censuras.
- Perdi-o - disse. - Escapou-se-me.
O francês olhou para ela, rindo-se e sacudindo os cabelos que lhe tinham caído para os olhos.
- Estava demasiado excitada.
- Não o pude impedir. O puxão da linha... £oi uma sensação tão agradável... Queria tanto apanhá- lo...
- Não se preocupe, talvez apanhe outro.
- Tenho a linha toda embaraçada.
- Dê-ma.
- Não... eu trato disso.
O francês pegou de novo na sua linha enquanto Dona se dobrava sobre o barco, juntando no colo a confusão de linha molhada. Enrolara-se num número incontável de laços e nós, e, enquanto se debatia para a endireitar com os dedos, só conseguia embaraçá-la ainda mais. Olhou para o homem, com a cara franzida de humilhação, e o francês estendeu a mão sem a olhar e tirou-lhe a linha. Dona pensou que iria ser sujeita a troças, mas o francês não pronunciou uma palavra e Dona reclinou-se na popa do barco e ficou a ver as suas mãos a desfazerem os laços e as reviravoltas da comprida linha molhada.
O Sol, já muito para oeste, atirava fitas de cor através do céu, e sobre a água viam-se pequenas manchas de luz dourada. A maré regressava depressa, borbulhando em volta do barco.
No rio, um pouco mais abaixo, um maçarico solitário patinhava na lama. Ergueu-se no ar, soltou um assobio suave e desapareceu.
- Quando é que acendemos a fogueira? - perguntou Dona.
- Quando apanharmos o jantar - retorquiu.
- E se não conseguirmos apanhar o jantar?
- Então não podemos acender a fogueira.
Continuou a observar-lhe as mãos. Miraculosamente, pareceu-lhe, a linha ficou desembaraçada, enrolada em arcos soltos. O francês voltou a atirá-la por cima da borda e entregou-lhe a ponta.
- Obrigada - disse Dona, numa voz baixa e abafada, e ao olhar para o homem viu que os seus olhos sorriam daquela maneira secreta que se habituara a ver nele, e soube, de modo estranho, que aquele sorriso estava intimamente ligado a ela, apesar de o francês não dizer nada, e sentiu-se de coração leve e curiosamente feliz.
Continuaram a pescar enquanto um melro solitário, escondido nos bosques, do outro lado do rio, soltava o seu canto intermitente, meditativo e doce.
Parecia-lhe, ali sentados lado a lado, sem dizerem uma palavra, que nunca antes, até àquele momento, soubera o que era a paz, e que todos os irrequietos diabos existentes no seu íntimo, que lutavam e se debatiam constantemente para se libertarem, estavam agora tranquilos por causa do silêncio e da presença do francês. De certo modo, sentia-se - como alguém sujeita a um encantamento - sob uma espécie de curiosa magia, uma vez que aquela sensação de tranquilidade Lhe era estranha e até ali sempre vivera mergulhada num torvelinho de sons e movimento. No entanto, e ao mesmo tempo, a magia acordava dentro dela ecos que conseguia reconhecer, como se tivesse chegado a um lugar que sempre lhe fora conhecido e muito desejado, mas que fora perdido por causa da sua própria incúria, em resultado das circunstâncias, ou pelo entorpecimento das percepções.
Sabia que era aquela a paz que desejava quando se escapara de Londres para a ir procurar em Navron, mas também sabia que, sozinha, conseguira encontrar apenas parte dessa paz, graças aos bosques, ao céu e ao rio. A paz só se tornava total e completa quando estava com ele, como naquele momento, ou quando o tinha no pensamento.
Podia estar a brincar com as crianças em Navron, ou a vaguear pelo jardim, ou a colocar flores nas jarras, mas como sabia que o francês se encontrava no seu navio, na enseada, a sua mente e corpo enchiam-se de vida e calor, uma sensação que nunca antes conhecera e que a deixava confusa.
Como somos ambos fugitivos, pensou, há um laço entre nós. " E recordou-se do que ele lhe dissera na primeira noite, quando jantara em Navron, a respeito de terem as mesmas imperfeições. Subitamente viu-o a puxar a linha, e inclinou-se para a frente, no bote, com o ombro a tocar no dele, e perguntou, excitada:
- Apanhou alguma coisa?
- Sim - respondeu. - Quer puxá-lo para fora?
- Não seria justo - declarou, desejando fazê-lo. - É o seu peixe.
Rindo-se, o francês entregou-lhe a linha e Dona puxou o peixe, que se debatia, até à borda do barco, para depois o pousar nas tábuas do fundo, onde deu saltos e abanou a cauda, enrolando a linha em volta do corpo. Ajoelhou-se e segurou-o entre as mãos, com o vestido molhado e enlameado do rio, e os caracóis a caírem-lhe para a cara.
- Não é tão grande como o que deixei escapar - comentou.
- Nunca são - retorquiu ele.
- Mas apanhei-o, puxei-o bem, não é verdade?
- Sim, fê-lo muito bem.
Ainda permanecia de joelhos, tentando tirar o anzol da boca do peixe.
- Oh, pobrezinho, está a morrer! Estou a fazer-lhe mal. O que devo fazer? - exclamou, virando-se para o francês com uma expressão de grande desgosto.
O francês aproximou-se e ajoelhou-se a seu lado, tirou-lhe o peixe das mãos e libertou o anzol com um puxão repentino. Depois meteu-lhe os dedos na boca e puxou-lhe a cabeça para trás. O peixe debateu-se por um instante e ficou morto.
- Matou-o - disse Dona, com tristeza.
- Sim - respondeu. - Não era o que queria que fizesse? Não respondeu, pois tinha consciência, pela primeira vez e agora que a excitação passara, da proximidade do homem, dos ombros que se tocavam, das suas mãos ao lado das dela, e de ele estar outra vez a sorrir com aquele seu jeito muito próprio. De súbito sentia-se invadida por uma chama que até aí desconhecera, um desejo ardente e sem vergonha de se sentir ainda mais perto, com os lábios dele a tocar nos dela e as mãos do homem nas suas costas. Afastou a cara, virando-a para o outro lado do rio, entorpecida e assustada com aquela nova chama que se acendera no seu interior, receando que o francês lesse a mensagem dos seus olhos e a desprezasse, tal como Harry e Rockingham desprezavam as mulheres do Swan, e começou a colocar os caracóis no devido sítio e a alisar o vestido, o que não passavam de pequenos gestos tolos e mecânicos que pressentia que não o enganariam, mas que lhe davam alguma protecção contra o seu próprio eu posto a nu.
Quando voltou a sentir-se calma lançou-lhe uma olhadela por cima do ombro e viu que o francês enrolara as linhas e pegava nos remos.
- Tem fome? - perguntou.
- Sim - respondeu Dona, com uma voz um pouco incerta e que nem parecia a sua.
- Então vamos acender a fogueira e cozinhar o nosso jantar.
O Sol já se pusera e as sombras começavam a rastejar sobre a água. A maré corria com força e o francês empurrou o barco para o canal, para que a corrente os ajudasse a descer o rio. Dona encolheu-se na proa e sentou-se com as pernas cruzadas debaixo do corpo, de queixo apoiado nas mãos.
As luzes douradas haviam desaparecido e o céu estava agora mais pálido, misterioso e suave, enquanto a água parecia mais escura do que anteriormente. Havia no ar um cheiro a musgos e às folhas novas e verdes do bosque, misturado com o perfume amargo das campainhas azuis. Uma vez no meio da corrente, parou de remar e ficou à escuta. Virando a cabeça para a costa, Dona ouviu, pela primeira vez, um som curioso, baixo e bastante áspero, de uma monotonia tranquila e fascinante.
- Noitibó - disse o francês, olhando-a por um instante e virando a cara, e Dona soube, nesse momento, que lhe lera a mensagem que os seus olhos haviam transmitido instantes antes, que não a desprezava por isso, que sabia e compreendia, porque se sentia tal como ela, com a mesma chama, com o mesmo desejo. Todavia, como era uma mulher e ele um homem, essas coisas nunca poderiam ser admitidas, ditas um ao outro, pois estavam ambos limitados por uma estranha reserva até que o momento surgisse, o que poderia ser amanhã, ou no dia seguinte, ou nunca. Era uma questão que já não dependia deles.
O francês continuou a remar rio abaixo, sem uma palavra, e acabaram por chegar à entrada da ribeira, onde as árvores se amontoavam até à beira da água. Entraram no estreito canal e aproximaram-se de terra, até alcançarem uma pequena clareira no meio da floresta, onde existira um cais, e o francês pousou os remos e perguntou:
- Aqui?
- Sim - respondeu, e ele empurrou a proa do barco para cima da lama macia e saltaram para terra.
O francês pôs o barco em seco, procurou a faca, ajoelhou-se junto à água e limpou o peixe, pedindo a Dona, por cima do ombro, que preparasse a fogueira.
Encontrou alguns raminhos secos por debaixo das árvores e partiu-os sobre o joelho. Tinha o vestido rasgado e amachucado, já sem remédio, e pensou, rindo-se para si mesma, em Lord Godolphin e na sua dama, no espanto que demonstrariam se a vissem agora, com um aspecto pouco melhor do que o das ciganas nómadas, e também com todos os sentimentos primitivos das ciganas, e sendo, ainda por cima, uma traidora ao seu país.
Amontoou os paus, encostados uns aos outros. O francês aproximou-se, vindo da borda da água com o peixe já limpo, ajoelhou-se junto da lenha com o sílex e o ferro, acarinhando lentamente a chama que surgiu inicialmente como um pequeno clarão, mas que depois se tornou mais brilhante. Os longos paus estalaram e incendiaram-se. Olharam-se por cima das chamas e riram-se um para o outro.
- Alguma vez cozinhou peixe ao ar livre? - perguntou o francês.
Dona abanou a cabeça e viu-o abrir um espaço nas cinzas, por debaixo dos troncos, colocar uma pedra achatada no seu centro e pousar o peixe sobre a pedra. Limpou a faca nos calções, e depois, baixando-se junto ao fogo, esperou alguns minutos até o peixe começar a ficar dourado e virou-o com a faca, para que o calor o atingisse com mais facilidade.
Ali, junto à enseada, estava mais escuro do que estivera no rio aberto, e as árvores projectavam longas sombras para o cais. O céu, num tom cada vez mais profundo, emitia uma radiação breve e encantadora, que sussurra num instante de tempo e desaparece para sempre, e que só é possível ver nalgumas noites de Verão. Dona observou-lhe as mãos, atarefadas com o peixe, e depois levantou os olhos para o rosto do homem, atento ao cozinhado, de sobrancelhas um pouco franzidas com a concentração e a pele avermelhada pelo clarão do fogo. O bom cheiro a comida atingiu as narinas dela e as dele ao mesmo tempo, e o francês olhou-a e sorriu, sem dizer uma palavra, tornando a virar o peixe para o expor às chamas que estalavam.
Então, quando o julgou bem assado, levantou-o com a faca e pousou-o numa folha, com o peixe a silvar e a borbulhar do calor, cortou-o ao meio, empurrou metade do peixe para a borda da folha e estendeu-lhe a faca. Pegou na outra metade do peixe com os dedos e começou a comer, rindo-se para Dona.
- É uma pena - disse Dona, espetando o peixe com a faca - que não tenhamos nada para beber.
Em resposta, o homem levantou-se e foi até ao bote, à beira da água, regressando momentos depois com uma garrafa comprida e delgada nas mãos.
- Tinha-me esquecido - afirmou - que está habituada a jantar no Swan.
Dona não respondeu logo, momentaneamente espantada com aquelas palavras, e depois, enquanto o francês lhe servia o vinho no copo que trouxera para ela, perguntou:
- O que sabe dos meus jantares no Swan?
- A senhora de St. Columb janta ao lado das mulheres da cidade - respondeu - e depois vagueia pelas ruas e estradas como um rapaz que se apanha em liberdade, e só regressa a casa quando o guarda-nocturno vai para a cama.
Dona segurava o copo entre os dedos, sem beber, olhando para as águas escuras, e de súbito surgiu- lhe na mente a ideia de que ele a considerava dissoluta, promíscua, como as mulheres das tabernas, e deveria pensar que o comportamento que tinha naquele momento, sentada a seu lado ao ar livre, à noite, de pernas cruzadas, como uma cigana, não passava de um outro breve interlúdio numa série de escapadas, e que se comportara de uma maneira semelhante com incontáveis outros, com Rockingham, com todos os amigos e conhecidos de Harry, que não era mais do que uma prostituta mimada, sempre à procura de novas sensações, e sem sequer ter a desculpa habitual para as prostitutas, a da pobreza. Perguntou a si mesma por que motivo a ideia de que o francês pudesse pensar isso a seu respeito lhe causava uma dor tão intolerável, e pareceu-Lhe que a luz desaparecera da noite e que todo o encantador prazer se sumira. Repentinamente, desejou estar de volta a  Navron, à sua casa, ao seu quarto, com james a ir ter com ela, cambaleando sobre os pés gorduchos e pouco firmes, para que pudesse levantá-lo nos braços e apertá-lo com força, enterrar o rosto nas suas faces macias e cheias, e esquecer a nova e estranha angústia que lhe enchia o coração, o sentimento de pena, de perplexidade perdida.
- Então, já não tem sede? - perguntou o homem, e Dona virou-se para ele, de olhos atormentados.
- Não - disse. - Não, creio que não. - Ficou novamente em silêncio, brincando com as pontas do cinto.
Sentia-se como se a paz de estarem juntos se tivesse quebrado e entre eles se houvesse levantado um súbito constrangimento. As palavras do francês tinham-na magoado e ele sabia-o, e enquanto olhavam para o fogo, sem uma palavra, todas as coisas ocultas e não pronunciadas flamejavam no ar, criando uma quebradiça atmosfera de inquietação.
Por fim, o homem quebrou o silêncio, com uma voz muito baixa e tranquila.
- No Inverno - disse -, quando ficava no seu quarto em Navron e olhava para o seu retrato, criava na mente as minhas próprias imagens de si. Por vezes imaginava-a à pesca, por exemplo, tal como fizemos esta tarde, ou a olhar para o mar a partir do convés do La Mouette. Sem saber porquê, essas imagens não se ajustavam à má-língua dos criados, que ou via de vez em quando. As duas coisas não estavam de acordo.
- Que insensatez a sua - respondeu Dona lentamente - a de criar imagens de alguém que não conhecia.
- É possível - retorquiu -, mas também foi pouco sensato da sua parte deixar o retrato no quarto, abandonado e sem vigilância, enquanto piratas como eu desembarcavam na costa inglesa.
- Podia tê-lo virado - disse Dona - com a cara para a parede, ou até pôr outro no seu lugar, o da verdadeira Dona St. Columb a divertir-se no Swan e a vestir os calções dos amigos do marido, para ir cavalgar à meia-noite com uma máscara no rosto, para poder assustar mulheres velhas e solitárias.
- Era esse um dos seus passatempos?
- Foi o último, antes de me tornar uma fugitiva. Admira-me que não o tenha ouvido contar, no meio da má-língua dos criados.
De súbito, o francês riu-se, estendeu a mão para a pequena pilha de madeira que se encontrava por detrás dele, atirou novo combustível para a fogueira e as chamas crepitaram e ergueram-se no ar.
- É pena que não tenha nascido rapaz, pois já teria descoberto o significado do perigo. Tal como eu, é um fora-da-lei do fundo do coração, e vestir calções de homem para assustar mulheres idosas foi a coisa mais parecida com pirataria que conseguiu imaginar.
- Sim - confirmou Dona -, mas quando captura a sua presa ou desembarca em qualquer lado, vai-se embora com uma sensação de realização, ao passo que eu, depois da deplorável tentativa de pirataria, fiquei repleta de ódio por mim mesma e tive uma sensação de degradação.
- É uma mulher que nem sequer gosta de matar peixes - retorquiu o francês.
Desta vez, olhando por cima da fogueira, Dona viu que o homem sorria para ela de uma maneira trocista, e pareceu-lhe que o constrangimento desaparecera, que eram outra vez eles próprios, e que podia apoiar-se num cotovelo e descontrair-se.
- Quando eu era rapaz - continuou o francês - costumava brincar aos soldados e combater pelo meu rei. Depois, durante as tempestades, quando caíam os raios e rebentavam os trovões, escondia a cabeça no colo da minha mãe e tapava os ouvidos com os dedos. Para tornar mais realista a minha brincadeira aos soldados, pintava as mãos de vermelho e fingia que estava ferido... mas quando vi sangue pela primeira vez, num cão que estava a morrer, fugi e fiquei doente.
- Foi o que aconteceu a mim - disse Dona - e o que senti depois da minha mascarada.
- Sim, foi por isso que lho contei.
- Agora já não se preocupa com o sangue, é um pirata e luta pela vida, roubando, matando e magoando. Todas as coisas que fingia fazer e tinha medo de fazer já deixaram de o incomodar.
- Pelo contrário - retorquiu o homem -, é frequente sentir muito medo.
- Sim, mas não da mesma maneira. Não tem medo de si. Não tem medo de ter medo.
- Não. Isso desapareceu para sempre quando me transformei num pirata.
Na fogueira, os compridos ramos começaram a partir-se e a cair e a desfazerem-se em fragmentos. As chamas ardiam lentamente e as cinzas eram brancas.
- Amanhã, tenho de começar novos planos.
Dona olhou para o homem, por cima das chamas, mas estas eram baixas e já não o iluminavam. Tinha o rosto nas sombras.
- Quer dizer... que tem de se ir embora?
- Estou há demasiado tempo sem fazer nada - respondeu - e a culpa é da enseada. Permiti-lhe que me dominasse. Não, os seus amigos Eustick e Godolphin terão de se esforçar muito, e vou ver se os consigo trazer para campo aberto.
- Vai fazer alguma coisa perigosa?
- Claro.
- Outro desembarque ao longo da costa?
- É muito possível.
- E arrisca-se à captura e talvez à morte.
- Sim.
- Porquê... e por que razão?
- Porque quero ter a satisfação de provar a mim mesmo que o meu cérebro é melhor do que o deles.
- É uma razão ridícula!
- Seja como for, é a minha razão.
- Aí está uma declaração egoísta... uma sublime forma de presunção.
- Eu sei.
- Seria mais sensato voltar à Bretanha.
- Muito mais sensato.
- E, em vez disso, vai conduzir os seus homens para algo muito desesperado.
- Eles não se importam.
- O La Mouette pode ser destruído, em vez de permanecer pacificamente ancorado num porto do outro lado do canal.
- O La Mouette não foi construído para permanecer pacificamente num porto.
Olharam um para o outro por cima das chamas. Os olhos do francês fixaram os dela durante longos instantes, e havia neles uma luz que era como a chama que se consumira na fogueira. Por fim, espreguiçou-se, bocejou e declarou:
- É na verdade uma pena que não seja um rapaz, pois poderia vir comigo.
- Por que motivo é preciso ser um rapaz para o fazer?
- Porque as mulheres que têm medo de matar peixes são demasiado delicadas e preciosas para navios piratas.
Dona observou-o por momentos, mordendo a ponta de um dedo, e depois perguntou:
- Acredita mesmo nisso?
- Claro que sim.
- Deixa-me ir consigo desta vez, para lhe provar que está enganado?
- Enjoava logo que saíssemos para o mar.
- Não.
- Ia ter frio, sentir-se desconfortável e assustada.
- Não.
- Pedia-me para a pôr em terra no momento em que os meus planos começassem a dar resultado.
- Não.
Dona fitou-o, discordante, zangada, e o pirata levantou-se de repente e riu-se, pontapeando as últimas brasas da fogueira, pelo que o seu brilho desapareceu e a noite tornou-se escura.
- Quanto quer apostar - disse Dona - em como não terei frio, não enjoarei, nem ficarei assustada?
- Isso depende... - retorquiu - do que temos para oferecer um ao outro.
- Os meus brincos... Pode ficar com os meus brincos de rubis, aqueles que usava quando jantou comigo em Navron.
- Sim - concordou o francês -, seriam na verdade um belo prémio. Se os possuísse, deixaria de ter desculpas para ser um pirata. E que exige de mim, no caso de ganhar a aposta?
- Espere... - disse Dona - deixe-me pensar. - Levantou-se, ficou ao lado dele, em silêncio, a olhar para a água, e depois prosseguiu, divertida e endiabrada: - Um caracol da cabeleira de Godolphin.
- Pois bem, terá a própria cabeleira - replicou o pirata.
- Está certo... - concordou Dona, virando-se e encaminhando-se para o bote - e não precisamos de discutir mais o assunto. Está combinado. Quando partimos?
- Depois de completar os meus planos.
- E começa a trabalhar amanhã?
- Começo amanhã.
- Procurarei não o incomodar, e também tenho de fazer planos. Creio que me sentirei indisposta, e que vou precisar de ficar na cama. A minha doença incluirá um estado febril, para que a ama e as crianças não entrem no quarto. Todos os dias, o velho e fiel William irá levar comida e bebida a uma paciente... que não vai lá estar.
- Tem uma mente engenhosa.
Dona saltou para o barco, o francês pegou nos remos e começou a subir a ribeira até o volume do casco do navio aparecer na frente deles sob a suave luz cinzenta. Uma voz desafiou-os, vinda de bordo. O francês respondeu em bretão e levou o bote até à margem, na embocadura da ribeira.
Caminharam através dos bosques sem uma palavra, e quando atingiram os jardins ouviram o relógio do pátio a bater a meia hora. William deveria aguardá-la um pouco mais para diante, na alameda, para a poder conduzir até casa, como fora planeado.
- Espero que tenha gostado do seu jantar com Lord Godolphin - disse o francês.
- Gostei muito - respondeu Dona.
- O peixe não estaria mal cozinhado?
- O peixe estava delicioso.
- Logo perde o apetite... quando sair para o mar.
- Pelo contrário, o ar do mar vai deixar-me esfomeada.
- Compreende que teremos de partir com o vento e com a maré? Isso quer dizer que será antes da madrugada.
- É o melhor momento do dia.
- Posso ter de a mandar chamar de repente, sem qualquer aviso prévio.
- Estarei pronta.
Caminharam por entre as árvores, e ao chegarem à alameda viram a carruagem que a aguardava, com William junto dos cavalos.
- Agora, vou ter de a deixar - disse o francês, parando por instantes sob a sombra das árvores e olhando para baixo, para Dona. - Quer mesmo vir?
- Sim.
Sorriram um para o outro, repentinamente conscientes da nova intensidade de sentimentos que existia entre eles, de uma nova excitação, como se o futuro, que era ainda desconhecido para ambos, guardasse em si um segredo e uma promessa. O francês virou-se e afastou-se através da floresta, enquanto Dona avançava para a alameda de acesso à casa, por debaixo das altas faias que se erguiam, lúgubres e nuas sob a noite de Verão, com os ramos a agitarem-se suavemente, como um murmúrio das coisas que estavam para vir.
Capitulo décimo
Foi William quem a acordou, sacudindo-a por um braço e murmurando-lhe junto ao ouvido:
-Perdoe-me, minha senhora, mas monsieur mandou-a chamar, o navio vai partir.
Dona sentou-se imediatamente na cama, com o seu desejo de dormir logo afastado por aquelas palavras.
- Obrigada, William - disse -, estarei pronta dentro de vinte minutos. Que horas são?
- Um quarto para as quatro, minha senhora. William saiu do quarto e Dona, puxando os reposteiros para o lado, verificou que fazia escuro e que o clarão da madrugada ainda não aparecera. Vestiu-se apressadamente, com o coração a bater de excitação e as mãos desajeitadas de um modo que não lhe era habitual, sentindo-se como uma criança mal comportada que se preparava para uma aventura proibida. Tinham-se passado cinco dias desde que jantara com o francês, na margem da enseada, e não voltara a vê-lo. O instinto dissera-lhe que quando ele trabalhava preferia ficar sozinho, e deixara passar os dias sem caminhar pelos bosques até ao rio, sem sequer lhe enviar recados por William, porque sabia que a mandaria chamar quando os planos estivessem prontos. A aposta não era uma loucura momentânea nascida numa noite de Verão e esquecida antes do nascer do dia, era um pacto que o homem respeitaria, um teste às suas próprias forças e um desafio à coragem. Por vezes pensava em Harry, que prosseguia com a sua vida em Londres, com as cavalgadas, os jogos, as visitas às tabernas, aos teatros, os jogos de cartas com Rockingham, e as imagens que evocava pareciam-lhe ser de um outro mundo, um mundo que não lhe dizia respeito. Pertenciam, de um modo estranho, a um passado morto e desaparecido, enquanto o próprio Harry se tornara numa espécie de fantasma, uma figura imaterial que caminhava num outro tempo.
A outra Dona também estava morta e a mulher que lhe ocupara o lugar era alguém que vivia com mais intensidade, com mais profundidade, e que dava a todos os pensamentos e acções uma maior riqueza de sentimentos e apreciava - com uma qualidade meio sensual - todas as pequenas coisas de que os dias eram feitos.
O Verão era uma alegria e uma glória por si só, com brilhantes manhãs a apanhar flores com as crianças, e a vaguear com elas pelos campos e bosques, com longas tardes, preguiçosas e completas, em que se deitava de costas por debaixo das árvores, consciente do cheiro a tojo, a giesta, a campainhas azuis. Até as coisas simples, os actos básicos de comer, beber, dormir, se tinham transformado desde que se encontrava em Navron, em fontes de prazer e numa alegria tranquila e preguiçosa.
Não, a Dona de Londres fora-se embora para sempre, a mulher que jazia ao lado do marido na grande cama de dossel, na casa da Rua de St. James, com os dois spaniels a esgravatarem nos cestos pousados no chão, com a janela aberta para o ar abafado e carregado e para os agudos pregões dos reparadores de cadeiras e aprendizes... essa Dona pertencia a uma outra existência.
O relógio do pátio bateu as quatro e a nova Dona, envergando um velho vestido já posto de lado para ser dado a uma aldeã, com um xaile sobre os ombros e transportando uma trouxa, deslizou pelas escadas até à casa de jantar, onde William a aguardava com uma vela na mão.
- Pierre Blanc está lá fora, nos bosques, minha senhora.
- Sim, William.
- Tomarei conta da casa na sua ausência, minha senhora, e certificar-me-ei de que Prue não descura as crianças.
- Tenho toda a confiança em si, William.
- A minha intenção é a de anunciar às pessoas, esta manhã, que Vossa Senhoria está indisposta, com uma ponta de febre, e que por receio de contágio prefere que as crianças não entrem no seu quarto, nem as criadas, e que me pediu que tomasse conta de si.
- Excelente, William. O seu rosto, tão solene, será exactamente o apropriado para a ocasião. O senhor é, se assim o posso dizer, um impostor nato.
- Ocasionalmente, algumas mulheres já mo têm dito, minha senhora.
- Afinal, William, parece-me que o senhor não tem coração. Tem a certeza de que posso confiar em si, sozinho no meio de um bando de mulheres desmioladas?
- Serei como que um pai para elas, minha senhora.
- Pode repreender a Prue, se for necessário, pois tem tendência para ser preguiçosa.
- Assim farei.
- E zangue-se com a menina Henrietta se ela falar de mais.
- Sim, minha senhora.
- E se o menino James mostrar um grande desejo por uma segunda dose de morangos...
- Tratarei de lha dar, minha senhora.
- Sim, William, mas não enquanto Prue estiver a ver. Mais tarde, na copa...
- Compreendo perfeitamente a situação, minha senhora.
- Agora, tenho de ir. Não tem pena de não ir comigo?
- Infelizmente, minha senhora, o meu interior não aceita os movimentos de um navio em cima da água. Vossa Senhoria compreende o que quero dizer?
- Por outras palavras, William, fica terrivelmente enjoado.
- Vossa Senhoria explicou-se muito bem. De facto, uma vez que discutimos o assunto, tomo a liberdade de lhe sugerir, minha senhora, que leve consigo esta pequena caixa de comprimidos, que achei de grande utilidade no passado, e que a poderão ajudar se se sentir atingida por alguma sensação desagradável.
- É muita amabilidade sua, William. Dê-ma, e metê-la-ei na minha trouxa. Apostei com o seu amo que não me deixarei sucumbir. Acha que ganho?
- Depende daquilo a que se refere, minha senhora.
- Que não sucumbirei aos movimentos do navio, claro. A que pensava que me referia?
115
- Perdoe-me, minha senhora. Por instantes, a minha mente desviou-se para outras coisas. Sim, creio que ganhará essa aposta.
- É a nossa única aposta, William.
- Com certeza, minha senhora.
- Parece estar com dúvidas.
- Minha senhora, quando duas pessoas fazem uma viagem, e uma delas é um homem como o meu amo e outra uma senhora como a minha patroa, considero que a situação está repleta de possibilidades.
- William, o senhor tem muita tendência para presumir!
- As minhas desculpas, minha senhora.
- E com ideias muito... francesas.
- A culpa foi da minha mãe, minha senhora.
- Está a esquecer-se que estou casada com Sir Harry há seis anos, que sou mãe de dois filhos e que para o mês que vem faço trinta anos.
- Pelo contrário, minha senhora, estava a recordar-me principalmente dessas três coisas.
- Então sinto-me indescritivelmente chocada consigo. Abra-me a porta e deixe-me sair para o jardim.
- Sim, minha senhora.
William puxou para o lado os compridos e pesados reposteiros e abriu as portadas. Houve qualquer coisa que se agitou contra as janelas, procurando uma saída, e quando William abriu a porta, uma borboleta que estivera aprisionada nas dobras dos reposteiros escapuliu-se para o exterior.
- Mais um fugitivo que procura escapar-se, minha senhora.
- Sim, William. - Sorriu para ele, parou à entrada e cheirou o frio ar da manhã, e ao olhar para cima viu o primeiro e pálido clarão do dia, que trepava pelo céu.
-Au revoir, minha senhora.
Dona atravessou a relva, agarrada à trouxa, com o xaile por cima da cabeça, e ao olhar para trás, uma única vez, viu o contorno cinzento da casa, sólida, segura e adormecida, com William de sentinela à janela. Fez-Lhe um aceno de despedida e seguiu Pierre Blanc, com os seus olhos alegres, as escuras feições de macaco e os brincos nas orelhas, metendo pelos bosques em direcção ao navio pirata.
Sem saber porquê, estivera à espera de se Lhe deparar agitação e barulho, com a confusão de uma partida, mas quando chegaram ao La Mouette encontraram o silêncio habitual. Foi apenas quando trepou a escada para o convés e olhou em volta que se apercebeu de que o navio estava pronto para sair para o mar, que os conveses se mostravam arrumados e os homens se mantinham nos devidos postos.
Um dos homens avançou e fez-Lhe uma pronunciada vénia.
- Monsieur deseja que a senhora suba ao castelo da popa. Trepou a escada para a alta popa, e ao fazê-lo ouviu o barulho do cabo da âncora, o matraquear do cabrestante e pés a correrem. Pierre Blanc, o inventor de canções, iniciou o seu canto e as vozes dos homens, baixas e suaves, ergueram-se no ar, levando Dona a virar-se e debruçar-se da amurada para os observar. Percorriam o convés de um modo regular, puxando o cabo, fazendo estalar o cabrestante, e a monotonia do canto deixava uma espécie de poesia no ar, um ritmo de encanto. Tudo aquilo parecia fazer parte da fresca manhã e da aventura.
De súbito ouviu uma ordem gritada por detrás dela, clara e decisiva, e viu o francês pela primeira vez, de pé junto do timoneiro, ao leme, com um rosto tenso e alerta e as mãos atrás das costas. Era um ser diferente do companheiro no rio, que se sentara a seu lado no pequeno bote e lhe preparara a linha, e que mais tarde fizera um fogo de lenha no cais e cozinhara o peixe, com as mangas enroladas até acima dos cotovelos e os cabelos a caírem-lhe para os olhos.
Sentiu-se uma intrusa, uma tola mulher no meio de muitos homens que tinham um trabalho para fazer. Sem uma palavra, afastou-se e parou junto da amurada, à distância, onde não os poderia incomodar, enquanto o francês continuava a dar as suas ordens, olhando para o céu, para a água e para as margens do rio.
Devagar, o navio foi avançando, e o vento da manhã, vindo do lado das colinas, encheu as grandes velas. Avançou ao longo da ribeira como um fantasma sobre as águas paradas, quase tocando, de vez em quando, as árvores que rodeavam o canal. Durante todo esse tempo, o francês manteve-se junto do timoneiro, indicando o rumo, observando as curvas das margens. O grande rio abriu-se na frente deles, o vento soprou de oeste com toda a sua força, provocando rugas na superfície. La Mouette inclinou-se um pouco quando lhe experimentou a força, os conveses oscilaram e saltou um pouco de espuma por cima da amurada. A madrugada nascia a leste e o céu exibia uma neblina ligeira e um brilho que prometiam bom tempo. Havia um odor salgado no ar, uma frescura que vinha do mar aberto, para lá do estuário, e quando o navio entrou em pleno estuário as gaivotas ergueram-se no ar e seguiram-no.
Os homens tinham terminado o canto e estavam agora parados, olhando na direcção do mar, com um ambiente de expectativa à sua volta, como se fossem homens que tivessem estado inactivos, a preguiçar durante demasiado tempo, e se mostrassem repentinamente sequiosos e inflamados. Quando o barco atravessou a barra do estuário do rio, a espuma levantou-se mais uma vez de um mar que exibia altas cristas, e Dona, sorrindo, saboreou-a nos lábios. Ao olhar para cima verificou que o francês deixara o timoneiro e estava agora ao seu lado, e que a espuma também o deveria ter atingido porque tinha sal nos lábios e o cabelo húmido.
- Gosta? - perguntou, e Dona acenou, rindo-se para ele, provocando-lhe um sorriso breve enquanto olhava para o mar. Dona sentiu-se invadida por um grande triunfo e por um súbito êxtase, pois foi nesse instante que soube que ele lhe pertencia, que o amava, e que tudo isso era algo que soubera desde o princípio, desde o primeiro momento em que entrara na cabina e o descobrira sentado à mesa a desenhar uma garça. Ou até antes disso, quando vira o navio no horizonte, avançando para terra, e soubera que todas aquelas coisas iriam acontecer, que nada as poderia evitar. Fazia parte do seu corpo e da sua mente, pertenciam um ao outro, eram dois vagabundos, dois fugitivos, fundidos num mesmo molde.

Capítulo décimo primeiro
Eram cerca de sete horas da noite quando Dona, subindo ao convés, verificou que o navio mudara mais uma vez de rota e se dirigia para a costa.
A terra ainda não passava de uma mancha no horizonte, pouco mais nítida do que uma nuvem. Tinham passado todo o dia no mar e a meio do canal, sem avistarem qualquer outro navio, enquanto a brisa forte soprara consecutivamente durante doze horas, fazendo o La Mouette dançar e pular como uma coisa viva. Dona compreendia que o plano era manterem-se fora das vistas de terra até ao crepúsculo para, quando a noite chegasse, avançarem para o interior a coberto da escuridão. Assim, o dia não fora mais do que navegar para passar o tempo, com a hipótese, é claro, de vir a deparar-se-Lhes um navio mercante transportando uma carga pelo canal, navio que pudesse ser atacado e saqueado. Tal não acontecera, e a tripulação, estimulada pelo longo dia no mar, tinha o apetite despertado para a aventura em perspectiva e para os desconhecidos perigos da noite. Todos os homens pareciam invadidos por uma espécie de excitação, um espírito de travessura, e eram como rapazes a prepararem-se para uma qualquer ousadia louca. Dona, debruçada da balaustrada do castelo da popa para os observar, ouvia-os a rirem-se, a cantarem, a atirarem piadas uns aos outros e a olharem de vez em quando para cima, na sua direcção, lançando-lhe um sorriso, um olhar, tudo com um perfeito ar de galanteria, intensamente conscientes de uma mulher a bordo, uma mulher que nunca antes navegara com eles.
Até o próprio dia ajudava ao contágio, com um sol quente, uma fresca brisa de oeste, as águas azuis, e Dona sentia um desejo ridículo de ser um homem entre eles, de lidar com cabos e moitões, de trepar aos altos mastros para manobrar as velas, de segurar na grande roda do leme. De vez em quando a espuma saltava para o convés, salpicando-lhe as mãos, encharcando-lhe o vestido, mas não se importava, pois o sol em breve lhe secaria as roupas, e encontrou uma pequena zona de convés seco ao lado da roda do leme, onde se sentou de pernas cruzadas como uma cigana, com as pontas do xaile presas por debaixo do cinto e o vento a despentear-Lhe os cabelos. Ao meio-dia já sentia uma fome prodigiosa e chegou-lhe, da proa do navio, o cheiro a pão quente e a café amargo. Momentos depois via Pierre Blanc trepar as escadas para o castelo da popa, transportando uma bandeja.
Tirou-lha das mãos, quase envergonhada com a ansiedade com que o fez, e o homem, piscando-Lhe o olho com uma familiaridade absurda que a fez rir, levantou os olhos para o céu e esfregou o estômago.
- Monsieur virá ter consigo - disse, sorrindo de cumplicidade, e Dona pensou que eram todos muito parecidos com William, pois viam-nos unidos, coisa que aceitavam com ligeireza, de um modo natural e encantador.
Atirou-se à fatia de pão como uma criatura desesperada por comida, arrancando um bocado da crosta escura, e havia também manteiga, queijo e o coração de uma alface. De repente ouviu passos atrás de si, olhou para cima e viu o capitão de La Mouette a olhar para baixo, para ela.
Sentou-se a seu lado e estendeu a mão para o pão.
- O navio toma conta de si mesmo - declarou. - O tempo é o ideal, manter-se-ia no rumo certo durante todo o dia, apenas com um ligeiro toque no leme de vez em quando. Dê-me um pouco de café.
Dona despejou o líquido fumegante nas duas chávenas e beberam-no, ansiosos, olhando-se um ao outro por cima dos rebordos.
-Que pensa do meu navio? - perguntou o homem.
- Parece enfeitiçado, como se não fosse um navio, e faz com que nunca antes me tivesse sentido tão viva.
- Também foi esse o efeito que me provocou quando me comecei a dedicar à pirataria. Que tal é o queijo?
- O queijo também é enfeitiçado.
- E não se sente incomodada com a ondulação?
- Nunca me senti tão bem na minha vida.
- Coma tudo o que puder, pois esta noite iremos ter muito pouco tempo para comer. Quer outra fatia de pão?
- Sim, por favor.
- Este vento vai manter-se todo o dia, mas à noite cairá, ficará mais fraco, e teremos de avançar ao longo da costa, aproveitando a maré. Sente-se feliz?
- Sim... Porque pergunta?
- Porque eu também me sinto feliz. Dê-me mais café.
- Hoje, os homens estão muito alegres - disse Dona, estendendo a mão para a cafeteira. - É por causa da noite, ou por terem voltado ao mar?
- Uma mistura das duas coisas. E também estão alegres por sua causa.
- Que importância tem a minha presença?
- Constitui mais um estímulo. Esta noite trabalharão melhor, graças a si.
- Porque é que nunca tiveram uma mulher a bordo?
Sorriu, com a boca cheia de pão e queijo, mas não respondeu.
- Esqueci-me de lhe dizer - continuou Dona - o que Godolphin afirmou no outro dia.
- Que foi?
- Disse que corriam boatos desagradáveis por causa dos homens pertencentes ao seu navio. Declarou que ouvira falar de mulheres incomodadas.
- Incomodadas, porquê?
- Foi o que lhe perguntei. Respondeu, para meu deliciado espanto, que temia que algumas mulheres do campo tivessem sofrido às mãos dos seus terríveis piratas.
- Duvido que tivessem sofrido.
- Também eu.
O francês continuou a mastigar o pão e o queijo, olhando de vez em quando para cima, para verificar o estado das velas.
- Os meus homens nunca impõem as suas atenções sobre as vossas mulheres - disse. - Em geral, o problema maior está em que elas não os deixam em paz. Se descobrem que o La Mouette está ancorado perto da costa, escapam-se de casa e dirigem-se para as colinas. Segundo sei, até o nosso fiel William já teve problemas desses.
- William é muito... gaulês.
-Tal como eu, tal como todos nós, mas essas perseguições por vezes são demasiado embaraçosas.
- Está a esquecer-se - interveio Dona - que as mulheres do campo acham que os seus maridos são muito aborrecidos.
- Então deviam ensinar-lhes melhores maneiras.
- O campónio inglês não é grande coisa quando faz amor.
-Já ouvi dizer. No entanto, se o ensinarem, deve poder melhorar.
- Como é que uma mulher pode ensinar o marido a respeito de coisas que ela própria não sabe porque ninguém Lhas ensinou?
- Ora, sem dúvida que tem o instinto?
- O instinto nem sempre é suficiente.
- Nesse caso, tenho muita pena das suas compatriotas. Apoiou-se sobre o cotovelo, apalpando os bolsos do comprido casaco, à procura de um cachimbo, e Dona viu-o a en chê-lo com o tabaco escuro e forte que outrora se encontrara no boião, no seu quarto. Começou a fumar um ou dois minutos depois, segurando o pipo na mão.
- Já uma vez Lhe disse - afirmou, com os olhos levantados para as vergas - que os franceses têm uma reputação de galanteria que não é merecida. Não é possível que sejamos todos brilhantes do nosso lado do canal, e que todos os incapazes tenham ficado do vosso lado.
- Talvez o clima inglês tenha qualquer coisa que arrefeça a imaginação...
- O clima não tem nada a ver com isso, nem as diferenças raciais. Um homem, ou uma mulher, tanto faz, ou nasce com uma compreensão natural para essas coisas ou não a tem.
- Supondo, no caso do casamento, por exemplo, que um tem essa compreensão e o outro não a tem?
- Então o casamento será sem dúvida muito monótono, e penso que é o que acontece na maior parte dos casos.
Farrapos do fumo do cachimbo passaram-lhe pela cara, e Dona olhou para cima e verificou que o francês se ria.
- Porque está a rir-se? - perguntou.
- Por ver que está com uma cara tão séria, como se estivesse a pensar em escrever um tratado sobre incompatibilidades.
- Talvez o faça, quando for velha.
- A senhora de St. Columb terá de escrever com conhecimento de causa, pois isso é essencial para todos os tratados.
- Talvez tenha esse conhecimento.
- Talvez... mas para que o tratado seja completo, terá de acrescentar algumas palavras finais a respeito da compatibilidade. Sabe, de tempos a tempos acontece que um homem encontra uma mulher que é a resposta aos seus mais exigentes sonhos... e nesse caso os dois compreendem-se perfeitamente, tanto nos momentos de maior alegria como nos mais difíceis.
- Ah, mas isso não acontece com frequência!
- Não, não é muito frequente!
- Então o meu tratado terá de ficar incompleto.
- O que será uma infelicidade para os leitores... e uma infelicidade ainda maior para si.
- No entanto, em vez de algumas palavras sobre compatibilidade, como se lhe referiu, poderei acrescentar uma ou duas páginas sobre maternidade. Sou uma excelente mãe.
- Ah, sim?
-Sim. Pergunte a William. Sabe tudo a esse respeito.
- Se é assim tão excelente como mãe, que está a fazer a bordo do La Mouette, com as pernas dobradas debaixo do corpo e o vento a soprar-lhe os cabelos para a cara, discutindo as intimidades do casamento com um pirata?
Desta vez foi Dona quem se riu. Levou as mãos ao cabelo e tentou dar alguma ordem aos caracóis, amarrando-os atrás das orelhas com uma fita do corpete.
- Sabe o que a senhora de St. Columb está a fazer neste momento? - perguntou Dona.
- Adoraria saber.
- Está deitada na cama com uma dor de cabeça febril e um frio no estômago, e não deixa ninguém entrar no quarto, excepto William, o seu servidor leal, que de vez em quando lhe leva uvas para lhe acalmarem a febre.
- Tenho muita pena da senhora, em particular se meditar sobre incompatibilidades enquanto permanecer na cama.
- Não fará tal coisa, é demasiado sensata.
- Se a senhora de St. Columb é assim tão sensata, porque foi que se mascarou de ladrão das estradas, em Londres, e se vestiu com calções de homem?
- Porque estava zangada.
- Quais os motivos para a zanga?
- Porque não conseguira êxito na vida.
- Tentou fugir, ao descobrir que a sua vida não era um êxito?
- Sim.
- Se a senhora de St. Columb se agita neste momento na cama, atacada pela febre e lamentando o passado, quem é a mulher sentada neste convés, a meu lado?
- Um grumete, o mais insignificante membro da tripulação.
- O grumete tem um apetite monstruoso, comeu o queijo quase todo e três quartos do pão.
- Lamento muito. Pensei que já tinha terminado.
- Sim, já tinha.
Sorriu para ela, e Dona virou a cara, não fosse o francês ler-lhe os olhos e considerá-la leviana, o que Dona sabia que era e não se importava. Depois, esvaziando o cachimbo sobre o convés, o homem perguntou-lhe:
- Quer conduzir o navio?
Olhou imediatamente para ele, de olhos a brilharem.
- Posso? Não irá ao fundo?
O francês riu-se e levantou- se, ajudando-a a pôr-se de pé. Dirigiram-se juntos para o leme, onde ele falou com o timoneiro.
- O que tenho de fazer? - perguntou Dona.
- Segure as malaguetas com as duas mãos... assim. Mantenha o navio firme no seu curso. Não o deixe desviar-se muito, ou fará com que a vela do traquete se vire de repente. Sente o vento na parte de trás da cabeça?
- Sim.
- Conserve-o aí e não deixe que lhe sopre sobre a face direita.
Dona ficou de pé ao leme, segurando as malaguetas, e depois de alguns momentos começou a sentir a força do navio, os movimentos do casco, que parecia vivo, e o seu avanço sobre o vasto mar. O vento cantava no cordame e nas vergas, e havia também um zumbido proveniente das estreitas velas triangulares por cima dela, enquanto a grande vela de traquete forçava os cabos que a seguravam como se fosse uma coisa viva.
No convés principal os homens aperceberam-se da mudança de timoneiro, acotovelaram-se uns aos outros e apontaram, rindo-se, chamando-se no dialecto bretão, que Dona não conseguia compreender, enquanto o capitão permanecia a seu lado, com as mãos nos fundos bolsos do casaco, os lábios contraídos num assobio e os olhos a investigarem os mares que tinha pela frente.
- Afinal, sempre há uma coisa - acabou por dizer - que o meu grumete é capaz de fazer por instinto.
- O que é? - perguntou Dona, com os cabelos caídos para a cara.
- Consegue conduzir um navio.
Rindo-se, foi-se embora, deixando-a sozinha ao leme do La Mouette.
Dona permaneceu ao leme durante uma hora, feliz - dizia para si mesma - como James estaria com um brinquedo novo, e por fim, de braços cansados, olhou por cima do ombro para o timoneiro, a quem tirara o lugar e que se mantivera por perto, observando-a com um sorriso. O homem avançou para Lhe retirar o leme das mãos. Dona desceu para a cabina do capitão, deitou-se no seu beliche e adormeceu.
Uma vez, abrindo apenas um olho, viu-o entrar e inclinar-se sobre os mapas que se encontravam sobre a mesa e fazer cálculos num bocado de papel, mas devia ter adormecido novamente porque quando acordou a cabina estava vazia. Levantou-se, espreguiçou-se e subiu ao convés, consciente, com uma certa vergonha, de estar outra vez com fome.
Eram sete horas e o navio estava perto da costa com o próprio francês a segurar o leme. Não lhe disse nada, mas aproximou-se e parou junto dele, olhando a mancha da costa, no horizonte.
Deu uma ordem aos homens, que começaram a subir pelo cordame como pequenas figuras graciosas, mão após mão, como macacos, e depois viu a grande vela de mezena ficar frouxa e enrolar-se na verga.
- Quando um navio fica à vista de terra - explicou-lhe o francês -, a mezena é a primeira coisa que pode ser avistada por alguém em terra. Ainda faltam duas horas para o crepúsculo e não queremos ser vistos.
Dona olhou para a costa distante, com o coração a bater, invadido por uma estranha excitação, e sentiu-se capturada, tal como o francês e os seus homens, pelo espírito daquela soberba aventura.
- Suponho que irá fazer qualquer coisa muito louca e ousada - comentou.
- Disse-me que queria a cabeleira de Godolphin - retorquiu o francês.
Dona observou-o pelo canto dos olhos, intrigada com a sua calma, com a voz firme e tranquila, igual à que tivera quando andavam à pesca no rio.
- Que vai acontecer? - perguntou. - Que vamos fazer? Não respondeu imediatamente. Lançou nova ordem aos homens e foi recolhida uma segunda vela.
- Conhece Philip Rashleigh? - inquiriu, instantes depois.
-Já ouvi Harry falar dele.
- Casou com a irmã de Godolphin... mas isso é secundário. Philip Rashleigh espera um navio vindo das Índias, facto que só me chegou aos ouvidos demasiado tarde, pois de outro modo teria tomado medidas para o interceptar. Assim, presumo que o navio chegou ao seu destino nos últimos dois dias. A minha intenção é capturá-lo enquanto permanecer ancorado, meter uma tripulação a bordo e mandá-lo para a outra costa do canal.
- Mas... e se o navio tiver mais homens do que os seus?
- É um risco que corro constantemente. O essencial é o elemento surpresa, que até agora não me deixou ficar mal.
Olhou para baixo, para ela, divertido com a sua expressão de perplexidade e o encolher de ombros, como se na realidade o considerasse louco.
- Que supõe que faço - prosseguiu - quando me fecho na minha cabina a preparar planos? Que arrisco tudo, na esperança de um golpe de sorte? Sabe, os meus homens não ficam a preguiçar quando procuramos o abrigo da enseada. Alguns deles percorrem a região, tal como Godolphin lhe disse, mas não com a intenção de incomodar as mulheres. Esses incómodos são um pormenor secundário.
- Os homens falam inglês?
- Claro que sim. É por isso que os escolho para essa missão especial.
- É extremamente precavido.
- Não gosto da ineficiência - contrapôs o pirata. Pouco a pouco, a linha da costa tornou-se mais distinta e começaram a entrar numa ampla baía. Ao longe, para oeste, Dona conseguia ver faixas de areia branca, que se tornavam cinzentas sob as sombras do crepúsculo. O navio seguia para norte, na direcção de um escuro promontório, mas parecia não existir um rio ou abrigo onde uma embarcação pudesse largar a âncora.
- Não sabe para onde vamos? - perguntou-lhe o francês.
- Não - respondeu.
Sorriu-se, sem acrescentar mais nada, e começou a assobiar baixinho, observando-a até a fazer desviar a cara, sabedor de que os olhos de Dona a haviam traído, e os seus também.
Falavam um com o outro sem usarem palavras. Dona olhou para o mar plano, em direcção à terra, cujo cheiro lhe chegava com a brisa da tarde, o cheiro das ervas quentes das falésias, de musgos e árvores, de areias quentes onde o sol batera durante todo o dia, e soube que a felicidade era aquilo, que era aquela a vida que sempre desejara viver. Muito em breve haveria perigo, excitação e talvez a realidade da luta, e estariam juntos através de tudo isso, e também depois, construindo o seu próprio mundo, onde nada mais interessava do que as coisas que podiam dar um ao outro, o encanto, o silêncio e a paz. Então, esticando os braços acima da cabeça e sorrindo, olhando para o francês por cima do ombro, Dona perguntou-lhe:
- Afinal, para onde vamos?
- Vamos para Fowey Haven - respondeu.
Capitulo décimo segundo
A noite estava escura e muito silenciosa. A fraca brisa existente soprava do norte, mas ali, protegidos pelo promontório, não havia nenhuma. Só os súbitos assobios do cordame que se ouviam de vez em quando e as rugas sobre a superfície das águas negras lhes diziam que a brisa continuava a soprar a uma ou duas milhas da costa. O La Mouette encontrava-se ancorado à beira de uma pequena baía, e perto - tão perto que era possível atirar uma pedra contra as rochas - erguiam-se as grandes falésias, sombrias e indistintas na escuridão. O navio dirigira- se directamente ao local pretendido, sem que as vozes se levantassem, sem ser preciso dar ordens quando se protegera do vento para largar a âncora, e o cabo que escorregara pelo escovém almofadado não produzira mais do que um som abafado. Por um momento ou dois, a colónia de gaivotas, que se aninhavam às centenas nas falésias por cima deles, mostrou-se inquieta e perturbada, e os gritos das aves incomodadas ecoaram nas falésias e deslocaram-se por sobre a água, mas depois, como não se verificaram mais movimentos, as gaivotas acalmaram-se e o silêncio voltara. Dona mantinha-se à amurada do castelo da popa, olhando para o promontório, e parecia-lhe existir qualquer coisa de fantasmagórico naquele silêncio e tranquilidade, algo de estranho, como se fossem desembarcar numa terra adormecida, com os habitantes a jazerem sob um encantamento, e aquelas gaivotas fossem as sentinelas ali colocadas para darem o alarme. Recordou-se então que aquela terra e aquelas falésias, que eram outra parte da sua costa, eram para ela, pelo menos naquela noite, um lugar hostil. Chegara a território inimigo e as gentes de Fowey Haven, que naquele momento dormiam nas suas camas, eram estrangeiras.
Os tripulantes do La Mouette estavam reunidos no centro do navio, e Dona podia vê-los ombro com ombro, imóveis e silenciosos, e teve consciência, pela primeira vez desde que iniciara aquela aventura, de uma ligeira sensação de apreensão, de um arrepio de medo, muito feminino... Ela era Dona St. Columb, esposa de um proprietário de terras e baronete inglês, e por causa de um impulso louco unira a sua sorte à de uma matilha de bretões, de quem nada sabia excepto que se tratava de piratas e de fora-da-lei, sem escrúpulos e perigosos, comandados por um homem que nunca dissera nada a respeito de si mesmo, a quem amava de um modo ridículo, sem pés nem cabeça, coisa que - se pensasse nela a sangue-frio - a deixaria vermelha de vergonha. Podia acontecer que o plano falhasse, que o francês e os seus homens fossem capturados, e ela com eles, e todo o bando seria levado ignominiosamente perante a justiça. Nesse caso não seria preciso muito tempo para a identificarem e para que Harry regressasse precipitadamente de Londres. Via, num clarão, como toda aquela história se espalharia pelo país, e o horror e escândalo que provocaria. A sua aventura ganharia um ar sórdido e sujo, haveria gargalhadas em Londres entre os amigos de Harry. Era provável que este rebentasse com os miolos, as crianças ficariam órfãs e proibidas de lhe pronunciar o nome, o nome da mãe que correra atrás de um pirata tal como uma criada da cozinha poderia correr atrás de um criado. Essas ideias davam-lhe voltas à ca beça enquanto olhava para a silenciosa tripulação do La Nlouette, vendo, na sua mente, a cama confortável em Navron, a paz do jardim, a segurança e a normalidade da vida com os filhos. Então, olhando para cima, viu que o francês se encontrava a seu lado, e perguntou a si mesma até que ponto seria ele capaz de lhe ler as expressões do rosto.
- Venha para baixo - ordenou-lhe tranquilamente. Dona seguiu-o, sentindo-se subitamente dominada como um aluno que vai ser castigado pelo mestre, sem saber o que lhe dizer se a censurasse por ter medo. Estava escuro na cabina, onde duas velas lançavam um clarão fraco, e o francês sentou-se na borda da mesa, observando-a, deixando Dona de pé na sua frente, de mãos atrás das costas.
- Recordou-se de que é Dona St. Columb - disse.
- Sim - respondeu Dona.
- E desejou, enquanto se encontrava lá em cima no convés, estar de volta à segurança da sua casa e nunca ter posto os olhos no La Mouette.
Não havia resposta para aquilo. A primeira parte da frase poderia vir a ser verdadeira, mas nunca a segunda. Houve silêncio entre eles, por instantes, e Dona interrogou-se sobre se todas as mulheres, quando apaixonadas, se sentiriam divididas por dois impulsos diferentes: o desejo de se libertarem de toda a modéstia e reserva, e de confessarem tudo, e uma decisão, de igual força, de esconderem para sempre o seu amor, de se mostrarem frias, desprendidas, preferindo morrer a terem de admitir uma coisa tão pessoal e tão íntima.
Desejou encontrar-se noutro sítio que não ali, assobiando despreocupadamente, de mãos metidas nos bolsos dos calções, discutindo com o capitão do navio os planos e as possibilidades para a noite que se aproximava, ou então que ele fosse uma pessoa diferente, outra personalidade, alguém por quem não sentisse qualquer preocupação, em vez de ser o único homem do mundo que amava e desejava.
De súbito sentiu uma chama de ira, pelo facto de ela, que se rira do amor e troçara de sentimentalismos, pudesse ter sido levada, em tão poucas semanas, a uma tão vergonhosa degradação, a uma tão desprezível fraqueza. O francês levantou-se da mesa e abriu o armário da antepara, tirando de lá uma garrafa e dois copos.
- É sempre pouco sensato - declarou - partir para uma aventura com o coração frio e o estômago vazio, muito em especial para quem não tem treino de aventuras. - Despejou o vinho para um copo, deixando o outro vazio, e entregou-lho.
- Bebo depois - acrescentou -, quando regressarmos. Dona notou, pela primeira vez, que havia uma bandeja coberta com um guardanapo sobre o aparador ao lado da porta, que o homem foi buscar e pousou em cima da mesa. Tinha carnes frias, pão e uma fatia de queijo.
- Isto é para si - disse. - Coma depressa porque temos pouco tempo.
Virou-lhe as costas, atarefando-se com o mapa colocado sobre a mesa lateral, e Dona começou a comer e a beber, censurando-se por causa da relutância que a invadira momentos antes, no convés, e depois de comer parte da carne, ter cortado uma fatia de pão e de queijo e ter bebido o copo de vinho que o francês lhe servira, sentiu que as dúvidas e os medos não voltariam a aparecer, que afinal tinham sido o resultado de pés frios e um estômago vazio, e que ele se apercebera disso desde o princípio, pois compreendia os seus estados de espírito de uma maneira estranha e inimaginável.
Puxou o cabelo para trás e o francês virou-se ao ouvir os sons, sorrindo-se para ela, que lhe respondeu com risos, corando de culpa como uma criança mimada.
- Está melhor, não está? - perguntou.
- Sim - respondeu. - Como foi que soube?
- O capitão de um navio tem a obrigação de saber essas coisas - retorquiu o francês - e um grumete tem de ser empurrado para a pirataria com um pouco mais de gentileza do que o resto da tripulação. Agora, ao trabalho. - Pegou no mapa que estivera a estudar e Dona verificou que era um plano de Fowey Haven, que o pirata estendeu na mesa à sua frente.
- O ancoradouro principal é aqui, em águas profundas, do outro lado da povoação - declarou, pousando um dedo no mapa. - O navio de Rashleigh deverá estar mais ou menos por aqui, onde sempre fica, amarrado a uma bóia à entrada deste rio.
Havia uma cruz vermelha no mapa, para indicar a bóia.
- Vou deixar parte da tripulação a bordo do La Mouette - continuou - e, se o desejar, pode ficar com ela.
- Não - retorquiu Dona. - Há um quarto de hora diria que sim, mas agora já não.
- Tem a certeza?
- Nunca estive tão certa de uma coisa em toda a minha vida.
O francês olhou-a, sob a trémula luz da vela, e de repente Dona sentiu-se alegre, com um coração absurdamente leve, como se já nada tivesse importância, mesmo nada, segura de que, mesmo que os apanhassem e os enforcassem a ambos na árvore mais alta do parque de Godolphin, teria valido a pena porque já teriam vivido juntos toda aquela aventura.
- Então, a senhora de St. Columb voltou para a sua cama de enferma?
- Sim - afirmou Dona, desviando a cara e olhando para o mapa de Fowey Haven.
- De notar - continuou o francês - que há um forte à entrada do ancoradouro, com uma guarnição, e dois castelos, um de cada lado do canal de entrada, mas que não estarão guardados. Apesar da escuridão da noite, não seria sensato tentar passar com um barco. Apesar de neste momento já conhecer bem os hábitos dos homens da Cornualha, que gostam muito de dormir, não posso garantir que todos os homens desse forte tenham os olhos fechados apenas para meu benefício. Assim, a solução é ir por terra.
Fez uma pausa e começou a assobiar baixinho, analisando o mapa.
- É aqui que estamos - declarou, apontando para uma pequena baía a cerca de uma milha para leste do ancoradouro - e proponho-me desembarcar neste ponto, na praia. Há um caminho rudimentar até ao alto da falésia. Avançamos por terra até se nos deparar um rio (talvez semelhante ao que abandonámos em Helford, mas menos encantador) e é na foz desse rio, em frente de Fowey, que encontraremos o navio de Rashleigh.
- Está muito seguro de si - comentou Dona.
- Não poderia ser um pirata se não o estivesse. É capaz de trepar uma falésia?
- Se me emprestar uns calções, poderei trepar melhor.
- Foi o que pensei. Estão uns calções de Pierre Blanc ali no seu beliche. Só os usa nos dias santos e para se confessar, pelo que devem estar razoavelmente limpos. Pode experimentá-los. Pierre também lhe pode emprestar uma camisa, meias e sapatos. Não precisará de casaco, porque a noite está demasiado quente.
- Deverei cortar o cabelo à tesoura? - perguntou Dona.
- Talvez ficasse com mais aspecto de grumete, mas preferia arriscar-me a ser capturado a deixar que o fizesse.
Dona não respondeu imediatamente, porque o francês estava a olhar para ela, mas depois disse:
- Quando chegarmos ao rio, como é que vamos para o navio?
- Primeiro chegamos lá, e depois logo lho digo - respondeu o pirata.
Pegou no mapa, enrolou-o e atirou-o para dentro do armário, e Dona viu-o a sorrir para si mesmo, com o seu jeito secreto.
- De quanto tempo precisará para mudar de roupas? inquiriu.
- Cinco minutos, ou talvez um pouco mais - disse Dona.
- Então, vou deixá-la sozinha. Suba ao convés quando estiver pronta. Vai precisar de qualquer coisa para prender esses caracóis. - O francês abriu uma gaveta, remexeu no seu interior por instantes e surgiu com a faixa vermelha que usara à cintura na noite em que jantara em Navron. - A senhora de St. Columb vai transformar-se num ladrão de estrada e num charlatão pela segunda vez na sua vida, mas desta vez não terá velhotas para assustar.
O francês saiu da cabina, fechando a porta atrás de si. Quando Dona se lhe juntou, alguns minutos mais tarde, encontrou-o junto da escada que fora lançada sobre o costado do navio. O primeiro grupo já partira para terra, e os homens que restavam encontravam-se reunidos no bote. Dona aproximou-se, um pouco nervosa, sentindo-se pequena e confusa nos calções de Pierre Blanc, enquanto os sapatos a magoavam nos calcanhares, um segredo que deveria guardar. O francês percorreu-a com os olhos e acenou.
- Serve - disse -, mas não enganará ninguém à luz do luar.
Dona riu-se para ele e desceu para o bote com o resto dos homens. Pierre Blanc estava agachado à proa da embarcação, como se fosse um macaco, e quando a viu fechou um dos olhos e pousou a mão sobre o coração. Ouviram-se algumas gargalhadas, e todos, sem excepção, sorriram para ela com uma mistura de admiração e familiaridade que não era ofensiva. Devolveu-lhes o sorriso, recostando-se na popa e passando os braços em volta dos joelhos com uma adorável liberdade, não embaraçada por saiotes e fitas.
O capitão do La Mouette foi o último a descer e sentou-se a seu lado, segurando na cana do leme. Os homens dobraram-se sobre os remos e o bote avançou na pequena baía em direcção à faixa clara da praia. Durante alguns instantes, Dona deixou ir a mão mergulhada na água, que estava quente e tinha uma espécie de suavidade de veludo, com a fosforescência a brilhar como uma chuva de estrelas, e pensou, sorrindo para si mesma na escuridão, que desempenhava finalmente o papel de um rapaz, coisa que em criança tanto desejara ao ver os irmãos a cavalgarem com o pai, seguindo-os com olhos ressentidos, e com a boneca atirada para o chão com desprezo. A proa do barco tocou na praia e o primeiro grupo de homens, que já aí os aguardava, lançou as mãos às bordas do bote e puxou-o para fora da água. Tinham mais uma vez perturbado as gaivotas, e houve dois ou três pares que se ergueram, soltando lamentos e agitando as asas.
Dona sentiu a areia a estalar debaixo dos pesados sapatos e chegava- lhe o cheiro a turfa vindo do alto da falésia. Os homens dirigiram-se para o estreito trilho que serpenteava ao longo da face da falésia como uma cobra e começaram a subir. Dona cerrou os dentes, porque a subida iria ser difícil naqueles sapatos que não lhe serviam, e então viu o francês a seu lado, que lhe deu a mão. Subiram juntos, com Dona agarrada a ele todo o caminho, como um rapazinho agarrado à mão do pai. Pararam uma vez, para respirarem, e ao olhar por cima do ombro Dona conseguiu ver o contorno escuro do La Mouette ancorado na baía e escutar o som abafado dos remos do bote, que regressava ao navio depois de os deixar em terra. As gaivotas tinham-se acalmado e não se ouvia um som excepto o raspar dos pés dos homens que trepavam e o murmúrio das ondas que se quebravam de encontro à costa.
- Está em condições de continuar? - perguntou o francês, e Dona acenou que sim. O homem segurou-lhe a mão com mais força, para que fizesse um menor esforço com as costas e os ombros, enquanto Dona pensava, feliz, impudente, que era a primeira vez que ele lhe tocava e que era bom sentir a força daquela mão. Depois de escalada a falésia, ainda tinham muito que subir, e o avanço era difícil, com os fetos já à altura dos joelhos. O francês continuou a guiá-la enquanto os seus homens se dispunham em leque pelos campos, impedindo-a de ter uma noção de quantos eram. O francês estudara o mapa com cuidado, claro, e Dona supunha que os outros também o haviam feito, pois os seus passos não demonstravam hesitações, nem havia pausas para reconhecimento do caminho. Entretanto, os sapatos desajeitados esfolavam-Lhe os lados dos pés e sabia que no calcanhar direito tinha uma bolha do tamanho de uma moeda de ouro.
Estavam outra vez a descer, depois de terem atravessado um trilho de carros que sem dúvida servia de estrada, e o francês largou-lhe finalmente a mão e tomou a dianteira, com Dona a segui-lo como uma sombra. Uma vez, ao longe, para a direita, pareceu-lhe ter visto o brilho das águas de um rio, mas logo o perdeu porque avançavam protegidos por uma sebe. Seguiu-se nova descida, no meio de fetos, ervas e tojo - cujo cheiro se sentia no ar, quente como mel -, e por fim atingiram árvores de grossos troncos, acachapadas junto à água. Na frente deles estava uma estreita faixa de praia e o rio, que se abria para uma baía, com uma pequena cidade do outro lado.
Sentaram-se a coberto das árvores e esperaram. Os tripulantes do La Mouette começaram a surgir, isolados, como figuras silenciosas que, vindas da escuridão, deslizavam para eles.
O capitão chamou-os baixinho pelos nomes, e depois de terem respondido um a um e de se certificarem que se encontravam todos, começou a falar-lhes no dialecto bretão, que Dona não conseguia compreender. O francês olhou uma vez para o outro lado do rio e apontou, e Dona viu o fraco contorno de um navio ancorado. Balouçava, com a proa virada para o rio e para eles, enquanto as águas da maré começavam a recuar ao longo do canal.
Tinha uma única luz na mastreação, mas tirando isso não se via qualquer sinal de vida, e de vez em quando ouvia-se um estalido oco que se deslocava por sobre a água quando o navio oscilava preso à bóia. Havia algo de desolador naquele som, como se o navio se encontrasse abandonado e fosse uma coisa perdida, e depois, com o som, vindo da baía e subindo o rio, soprou um pouco de vento, que fez o francês levantar a cabeça de repente e olhar para oeste, na direcção da pequena cidade, franzindo a cara por instantes e virando-a para a brisa.
- O que foi? - perguntou Dona, sentindo instintivamente que, por qualquer razão, nem tudo estava bem, mas o homem aguardou um ou dois segundos antes de lhe responder, ainda a farejar o ar como um animal, e disse, com brevidade:
- O vento rodou para sudoeste.
Dona virou a cara para a direcção do vento, e também ela pôde verificar que a brisa que soprara do lado de terra durante as últimas vinte e quatro horas vinha agora do lado do mar, e que havia nela um odor diferente, um húmido cheiro a sal, às golfadas. Pensou no La Mouette, ancorado na pequena baía, e também naquele outro navio, fundeado à entrada do rio, e em como a maré era agora o único aliado, porque o vento mudara e se tornara numa força hostil.
- Que vai fazer? - perguntou, mas não obteve resposta, porque o francês se pusera de pé e descia por cima das rochas escorregadias e das algas húmidas para a faixa de praia, logo seguido pelos seus homens, que não pronunciaram uma palavra, mas olharam, um a um, para o céu e para sudoeste, de onde soprava o vento.
Detiveram-se na praia, olhando através do rio para o navio silencioso. Havia agora uma forte e bem visível agitação sobre a água, porque o vento soprava sobre a maré, e o som oco do cabo a forçar a bóia ouvia-se mais alto do que nunca. O capitão do La Mouette afastou-se um pouco e fez sinal a Pierre Blanc, que se aproximou dele e ficou a ouvir o seu amo, abanando de vez em quando a cabeça de macaco, num sinal de compreensão. Quando terminaram, o francês dirigiu-se para Dona, parou junto dela e disse:
- Acabei de dizer a Pierre Blanc para a levar de volta ao La Mouette.
Dona sentiu o coração a bater-Lhe repentinamente no peito e um arrepio a percorrer-lhe o corpo, e perguntou:
- Porquê? Porque quer que me vá embora?
O francês olhou de novo para o céu e dessa vez caiu-Lhe um pingo de chuva sobre o rosto.
- O tempo vai virar-se contra nós - disse. - La Mouette está agora a sotavento, e os homens que deixei a bordo deverão estar a preparar-se para sair da baía. Se for com Pierre Blanc, deverá ter tempo para lá chegar e embarcar, antes de porem o navio a navegar.
- Compreendo - respondeu Dona - o problema do tempo. Vai ser-lhe mais difícil sair com o navio. Não me refiro a La Mouette, mas sim a este navio. Já não tem o vento e a maré a seu favor. É por isso que quer que regresse ao La Mouette, não é? Podem surgir dificuldades.
- Sim - declarou o francês.
- Não, não irei - afirmou Dona.
O pirata não respondeu e Dona não lhe pôde ver a expressão do rosto, mais uma vez virado para a baía.
- Porque quer ficar? - perguntou finalmente. Contudo, havia qualquer coisa na voz do homem que lhe pôs o coração a bater mais depressa, mas por razões diferentes, e que a fez recordar o fim de tarde em que tinham ido à pesca no rio e o francês pronunciara a palavra noitibó" com o mesmo tom, com a mesma suavidade.
Uma onda íntima sobrepôs-se a toda a prudência e Dona pensou: Que interessa? Porque é que continuamos a fingir, se podemos morrer esta noite, ou amanhã, e haverá tanta coisa que não partilharemos? " Cravando as unhas nas palmas das mãos e olhando também para o outro lado da baía, declarou, com uma paixão súbita:
- Oh, inferno e danação, sabe muito bem porque quero ficar.
Sentiu que o francês se virava para a olhar, desviava novamente os olhos para a baía; e ouviu-o dizer:
- Queria que fosse, por essa mesma razão.
Fez-se de novo o silêncio entre eles, enquanto procuravam palavras, e se se encontrassem sozinhos não teria havido necessidade de falar porque a timidez que formara uma barreira entre eles se dissolvera subitamente, como se nunca tivesse existido. O francês riu-se, pegou-lhe na mão, beijou-lhe a palma e afirmou:
- Fique, então, e lutaremos, ou seremos os dois pendurados na mesma árvore!
Afastou-se e voltou a fazer um sinal a Pierre Blanc, que exibiu um sorriso que lhe cobriu todo o rosto, porque as ordens se tinham modificado. Os pingos de chuva aumentavam de frequência, as nuvens amontoavam-se no céu, e o vento de sudoeste soprava em rajadas da baía para o rio.
- Dona! - chamou o pirata, utilizando o seu nome pela primeira vez, mas com um tom descuidado e fácil, como se sempre a tivesse tratado assim.
Dona respondeu:
- Sim? O que é? Que quer que faça?
- Não há tempo a perder, temos de sair daqui com o navio antes que o vento se torne mais forte. Porém, antes disso, é preciso que o seu proprietário venha a bordo.
Dona olhou-o como se o considerasse louco.
- Que quer dizer?
- Quando o vento soprava do lado da terra - explicou-lhe rapidamente - podíamos ter içado velas e partido de Fowey antes de os preguiçosos que estão em terra terem tempo para afastar o sono dos olhos. Agora teremos ou de desistir, ou de o rebocar através do estreito canal entre os castelos. Será muito mais seguro ter Philip Rashleigh a bordo do seu próprio navio do que a armar confusão em terra, ordenando que nos metam uma bala de canhão na proa quando passarmos pelo forte.
- Não serão medidas demasiado desesperadas? - perguntou Dona.
- Não mais desesperadas do que todo o empreendimento. - Sorria-se para baixo, para ela, como se nada importasse e não se ralasse. - Quer levar a cabo uma acção com um certo toque de perigo?
- Sim - respondeu. - Diga-me o que tenho de fazer.
- Quero que vá com Pierre Blanc e que procurem um bote. Se caminharem um pouco ao longo das margens do rio, em direcção à baía, encontrarão algumas cabanas, numa colina, e um cais. Deve haver botes amarrados no cais. Levem o que es tiver mais perto, atravessem a baía até Fowey, vão a terra e chamem Philip Rashleigh.
- Está bem.
- Não há engano possível quanto à casa. Fica mesmo em frente da igreja, virada para o cais. O cais pode avistar-se daqui: é onde se vê aquela luz.
- Sim.
- Quero que lhe diga que é urgente a sua presença a bordo do navio. Invente uma história qualquer, desempenhe o papel que lhe apetecer, mas mantenha-se nas sombras. Na escuridão ainda poderá passar por grumete, mas sob a luz todos verão que é uma mulher.
- E se ele se recusar a vir?
- Não recusará se for suficientemente esperta.
- E se suspeitar de mim e não me deixar partir?
- Nesse caso, tratarei eu próprio de lidar com ele. Encaminhou-se para a beira da água e os homens seguiram-no. De repente Dona percebeu por que motivo nenhum deles usava casaco, por que motivo estavam todos sem chapéu e se descalçavam, amarrando os sapatos em volta do pescoço, com um cordão passado pelas fivelas. Olhou na direcção do rio, para o navio que forçava o cabo de amarração, com a luz de presença a oscilar sob a força do vento cada vez mais fresco, enquanto os homens a bordo dormiam profundamente. Pensou nos invasores silenciosos que cairiam sobre eles, saídos da escuridão. Não se ouviria o estalido de remos na noite, não haveria sombras de barcos, mas sim mãos molhadas que se ergueriam das águas para a corrente, pegadas húmidas sobre o castelo da proa, pequenas figuras a escorrer água e a saltarem para os conveses, um sussurro, um assobio, e um grito estra nhamente abafado.
Estremeceu sem motivo, excepto o de ser mulher. Virando-se para ela, da água, o francês sorriu-lhe e disse-lhe:
- Vá, vire-nos as costas e vá!
Dona obedeceu, cambaleando de novo sobre as rochas e as algas, com o pequeno Pierre Blanc a trotar atrás como um cão. Não olhou para trás, por cima do ombro, uma única vez, mas sabia que estavam todos a nadar para o navio, que o vento ganhava força de instante para instante, e que a maré era forte. Levantou o rosto e nesse preciso instante a chuva começou a cair, forte, violenta, de sudoeste.
Capitulo décimo terceiro
Dona agachou-se na popa do pequeno bote com a chuva a bater-lhe nos ombros, enquanto Pierre Blanc se agitava na escuridão à procura dos remos. Já havia um escoamento de águas no sítio em que o bote se encontrava ancorado, e uma espuma branca que se quebrava de encontro aos degraus do cais. Não se via sinal de vida nas casas da vertente da colina e tinham-se apoderado do primeiro barco sem qualquer dificuldade. Pierre Blanc impulsionou-o para o meio do canal, mas logo que chegaram à entrada do ancoradouro tiveram de enfrentar toda a força do vento, cada vez mais forte, o qual, em conjunto com a maré, provocava uma agitação nas águas, que saltavam por cima do rebordo do bote. A chuva caía com violência, ocultando as colinas, e Dona, tremendo na fina camisa, sentia uma espécie de desespero no fundo do coração. Perguntava a si mesma se a culpa não fora dela, se não tinha quebrado a sorte e aquela não viria a ser a última aventura do La Mouette, que nunca antes navegara com uma mulher a bordo.
Olhou para Pierre Blanc, que se esforçava nos remos e já não sorria, olhando constantemente para a boca do ancoradouro, por cima do ombro. Aproximavam-se de Fowey, e Dona já podia ver o grupo de casas ao lado do cais e distinguir a torre de uma igreja.
Subitamente, toda aquela aventura parecia-lhe ser um sonho diabólico, do qual não seria possível acordar, e de que fazia parte o pequeno Pierre Blanc, com a sua cara de macaco.
Inclinou-se para a frente, para ele, que descansou os remos por instantes, deixando o barco a baloiçar na água encrespada.
- Encontrarei a casa sozinha - disse-lhe -, enquanto espera por mim no barco, ao lado do cais.
Pierre olhou-a com um ar duvidoso, mas Dona insistiu com um tom de urgência, pousando-lhe a mão sobre o joelho.
- É a única maneira - afirmou - e, se não voltar dentro de meia hora, deve regressar imediatamente ao navio.
O homem pareceu revolver aquelas palavras na cabeça, e depois acenou uma confirmação, mas ainda sem sorrir. Pobre
Pierre Blanc, que nunca antes tivera uma cara séria, e Dona calculou que também ele pressentia que não havia esperanças para aquela aventura. Aproximaram-se do cais, e a pálida lanterna iluminou-lhes os rostos. A água remoinhava em volta da escada e Dona pôs-se de pé na popa do bote para se agarrar aos degraus.
- Lembre-se, Pierre Blanc - declarou -, que não deve esperar por mim. Dê-me apenas meia hora - acrescentou, virando-se rapidamente, para não poder ver o seu rosto ansioso e preocupado. Passou pelas poucas casas, em direcção à igreja, e parou em frente do edifício que se erguia junto à rua, num dos lados da colina.
Havia uma luz nas janelas de baixo, pois via-se brilhar por entre os reposteiros corridos, mas a rua estava deserta. Parou por debaixo da janela, insegura, bafejando os dedos gelados, e pareceu-lhe, o que não acontecia pela primeira vez, que aquele plano para convocar Philip Rashleigh era o mais louco de toda a aventura, pois de certeza que o homem já deveria encontrar- se na cama, a dormir, e não lhes causaria qualquer problema. A chuva continuava a cair-lhe em cima, e nunca na vida se sentira mais solitária, mais impotente e mais incapaz para empreender uma acção.
De súbito escutou o som da janela a abrir-se por cima da sua cabeça. Em pânico, apertou-se de encontro à parede. Ouviu alguém pousar os cotovelos no parapeito, o som de uma respiração pesada, o sacudir de cinzas de um cachimbo, que lhe caíram em cima do ombro, um bocejo e um suspiro. Houve o arrastar de uma cadeira no interior da casa, e quem quer que o provocara fez uma pergunta, respondida pelo homem que estava à janela, com uma voz que sobressaltou Dona por ser muito familiar.
- Há um vento forte a soprar de sudoeste - disse Godolphin. - Afinal, é uma pena que não tenhas fundeado o teu navio mais para o interior do rio. Se o tempo se mantiver assim, podem ter dificuldades quando surgir a manhã.
Fez-se o silêncio e Dona conseguiu sentir o coração a bater-lhe no peito. Esquecera-se de Godolphin, e de que este era
cunhado de Philip Rashleigh. O Godolphin em casa de quem tomara chá ainda não havia uma semana. Ali estava ele, a menos de um metro de distância, largando-lhe as cinzas do cachimbo em cima do ombro.
Recordou-se da estúpida aposta em relação à cabeleira e compreendeu que o francês deveria ter sabido que Godolphin ia ficar nessa noite em Fowey, com Philip Rashleigh, e que planeara apoderar-se da cabeleira juntamente com a captura do navio.
Sorriu para si mesma, apesar do medo e da ansiedade. Se alguma coisa poderia ser de uma ousadia sublime, então aquela era-o, sem dúvida. Um homem ia arriscar a vida por causa de uma estúpida aposta. A ideia fê-la amá-lo ainda mais, pois, para além das qualidades de silêncio e de compreensão que a haviam atraído logo no princípio, tinha também aquela total indiferença pelos valores do mundo, aquela loucura irreprimível.
Godolphin estava ainda apoiado na janela aberta. Dona ouvia-lhe a respiração pesada e os bocejos, e as palavras que ele acabara de pronunciar pairavam-lhe na mente. Referira-se ao navio e a deslocá-lo mais para o interior do rio. No seu cérebro começou a formar-se uma ideia que faria com que a convocação do proprietário a bordo parecesse legítima, mas a outra voz falou abruptamente, dentro da casa, e a janela fechou-se. Dona pensou rapidamente, já sem se preocupar com a possível captura, com toda a loucura daquela noite e despertar nela a velha e dominadora sensação de delícia que tivera meses atrás, quando, com uma soberba indiferença para com as más-línguas e mais do que apenas um pouco bêbada, se divertira nas ruas de Londres.
Só que desta vez a aventura era real e não apenas uma brincadeira imaginada para aliviar o aborrecimento das primeiras horas da madrugada, quando a atmosfera de Londres era abafadora e Harry se demonstrara demasiado insistente com as suas pretensões. Dona afastou-se da janela e dirigiu-se para a porta, tocando, sem hesitar, a grande campainha suspensa no exterior.
O som foi imediatamente saudado pelo ladrar de cães, e a seguir por passadas e pelo deslizar de trancas. Para sua consternação, foi Godolphin quem apareceu, com uma vela na mão e o grande corpanzil a preencher a entrada.
- Que queres - perguntou, zangado. - Não sabes que horas são? É quase meia-noite e toda a gente está na cama.
Dona recuou, para se afastar da luz, como se se sentisse tímida ante o modo como fora recebida.
- Mandaram-me chamar Mister Rashleigh - respondeu.
- O mestre está ansioso por mudar o ancoradouro do navio, antes que a tempestade piore.
- Quem é? - perguntou Philip Rashleigh do interior, enquanto os cães se agitavam e ladravam junto das pernas de Dona, com Godolphin a dar-lhes pontapés para os afastar.
- Para baixo, Ranger", maldito sejas. Para trás, Tancred"! - exclamou, acrescentando: - Entra, rapaz, ou não podes?
- Não, senhor, estou encharcado até aos ossos. Faça favor de dizer a Mister Rashleigh que o mandaram chamar do navio - respondeu Dona, começando imediatamente a afastar-se, pois o homem mirava-a com as sobrancelhas contraídas de perplexidade, como se a sua aparência tivesse qualquer coisa que não conseguisse compreender, que não estivesse certa. Irritado, Philip Rashleigh voltou a gritar do interior:
- Quem diabo é esse? É o jovem Jim, o rapaz do Dan Thomas, de Polruan?
- Mais devagar... - ordenou Godolphin, pousando uma das mãos no ombro de Dona. - Mister Rashleigh quer falar contigo. Chamas-te Jim Thomas?
- Sim, senhor... - declarou Dona, agarrando-se com fúria à gorjeta que ele lhe estendia - e o caso é urgente, o mestre diz para Mister Rashleigh ir imediatamente para bordo, e que não há tempo a perder porque o navio está em perigo.
Largue-me senhor, tenho outro recado para dar, a minha mãe está muito doente e tenho de ir chamar o físico.
Todavia Godolphin continuou a segurar-lhe o ombro, e levantou a vela para mais perto da cara de Dona.
- Que tens em volta da cabeça? - perguntou. - Também estás doente, como a tua mãe?
- Mas que conversa vem a ser essa? - gritou Rashleigh aparecendo à entrada. - A mãe do Jim Thomas está no túmulo há dez anos. Quem é? O que se passa com o navio?
Dona libertou-se da mão que a segurava, gritou para trás, por cima do ombro, que se apressassem porque a tempestade estava cada vez mais forte, e correu através da praça em direcção ao cais, com gargalhadas histéricas a erguerem-se-lhe da garganta e um dos cães de Rashleigh a ladrar-lhe aos calcanhares.
Repentinamente, desviou-se um pouco antes do cais e refugiou-se na entrada de uma casa, porque junto à escada encontrava-se alguém que lá não estivera antes, um homem que olhava para a baía, na direcção do rio. Transportava uma lanterna nas mãos e Dona calculou que fosse o guarda- nocturno da cidade, que dava as suas voltas e que agora, por perversidade, assim lhe pareceu, tomara posição no cais. Não ousava avançar enquanto o homem não se fosse embora, e de qualquer modo Pierre Blanc deveria ter levado o bote para um pouco mais longe logo que avistara o guarda-nocturno.
Abrigou-se na porta, observando o homem e mordendo as unhas de ansiedade, enquanto o guarda-nocturno continuava a olhar para a baía, como se houvesse ali algum movimento ou outra coisa que lhe chamasse a atenção. Dona sentiu-se enfraquecer, porque, no fim de contas, o assalto ao navio podia não ter corrido de acordo com o plano e naquele preciso momento a tripulação do La Mouette poderia estar a debater-se nas águas com o seu capitão, ou talvez a resistência fosse mais forte do que esperavam e lutassem nos conveses do navio de Rashleigh, e fossem esses os sons que o guarda-nocturno ouvia, esforçando os olhos para o outro lado das águas. Dona nada podia fazer para os ajudar. Tal como a situação se apresentava, talvez tivesse levantado suspeitas sobre a sua pessoa.
Enquanto permanecia ali na entrada, impotente, começou a ouvir o som de vozes e de passos, e viu Rashleigh e Godolphin virarem a esquina, envergando grandes capas para se protegerem do tempo. Rashleigh trazia uma lanterna na mão.
- Eh, tu aí! - gritou, e o guarda-nocturno virou-se ao ouvir-lhe a voz e apressou-se ao seu encontro.
- Viste um rapaz a fugir para este lado? - perguntou Rashleigh, mas o homem sacudiu a cabeça.
- Não vi ninguém, senhor... - retorquiu - mas passa-se qualquer coisa. Parece que o seu navio se soltou da bóia.
- O quê? - exclamou Rashleigh, avançando para o cais. Godolphin, que o seguiu, comentou:
- Afinal, o rapaz não estava a mentir.
Dona encolheu-se ainda mais na entrada. Já tinham passado por ela, para o cais, sem sequer olharem na direcção da casa. Observou-os, da protecção da porta, e viu-os de costas, olhando para a baía tal como fizera o guarda-nocturno, com a capa de Godolphin a agitar-se sob as rajadas do vento enquanto a chuva lhes caía em cima da cabeça.
- Olhe, senhor - disse o guarda-nocturno -, estão a içar uma vela. O mestre deve querer levar o navio para o rio.
- O homem é louco - gritou Rashleigh. - Não há nem uma dúzia de homens a bordo, três quartos da tripulação dorme em terra, e acabará por encalhar antes de o conseguir. Temos de acordar alguns deles, Joe, precisamos de mais gente a bordo. Maldito Dan Thomas, louco incompetente, em nome de Deus, que pensará que está a fazer?
Colocou as mãos em volta da boca e gritou para a baía:
- Ó de bordo! Nlerry Fortune, ó de bordo! O guarda-nocturno correu através do cais, agarrou na corda de uma sineta de navio, pendurada ao lado da lanterna, e começou a puxá-la. As badaladas reverberaram no ar, altas e insistentes, com um som suficientemente forte para ser capaz de acordar toda a gente em Fowey. Quase imediatamente abriu-se uma janela de uma casa, uma cabeça espreitou e gritou
- Que é isso, Joe, passa-se alguma coisa?
Rashleigh, andando de um lado para o outro numa fúria cega, devolveu o grito:
- Veste os teus calções, maldito sejas, e acorda o teu irmão. O Merry Fortune está à deriva na baía!
Uma figura surgiu à porta de outra casa, debatendo-se para vestir um casaco, e apareceu um homem a correr pela rua. Entretanto, o sino tocava, Rashleigh gritava, com a chuva e o vento a agitarem-lhe a capa e a fazerem balançar a lanterna que tinha na mão.
Apareceram luzes nas casas por debaixo da igreja, ouviram-se vozes a gritar e a chamar, os homens foram aparecendo não se sabia de onde, correndo para o cais.
-Arranjem-me um bote! - berrou Rashleigh. - Ponham-me a bordo, ponham-me a bordo!
Alguém acordara na casa onde Dona se ocultara. Ouviu passos nas escadas, escapuliu-se da entrada e dirigiu-se para o cais. No meio da escuridão e da confusão, do vento que assobiava e das torrentes de chuva, era apenas mais uma figura a misturar-se com as restantes, olhando para o navio com velas içadas nas vergas e que se dirigia agora para o centro do canal, com a proa apontada para a boca da baía.
- Olhem, está desgovernado - gritou uma voz. - A maré está a levá-lo para as rochas, a bordo devem estar loucos, ou a cair de bêbados, todos eles!
- Porque é que não viram de roda e saem dali? - perguntou outra.
- Olhem, a maré apanhou-o! - foi a resposta, e logo a seguir houve mais alguém que guinchou junto aos ouvidos de Dona:
- A maré ainda está mais forte que o vento. Já não o larga!
Alguns dos homens debatiam-se com os botes amarrados por debaixo do cais. Dona ouvia-os a praguejarem, lutando contra as amarras, e Rashleigh e Godolphin, espreitando para baixo, amaldiçoavam-se por demorarem tanto tempo.
- Alguém mexeu nas amarras - gritou um dos homens.
- A corda está a partir-se, cortaram-na com uma faca! De súbito, Dona teve uma visão do pequeno Pierre Blanc, sorrindo para si mesmo na escuridão enquanto o grande sino continuava a oscilar e a badalar no cais.
- Um de vocês que nade e me traga um barco! - explodiu Rashleigh. - Por Deus, vou chicotear o responsável por isto! Quero vê-lo enforcado!
O navio aproximava-se e Dona conseguia ver os homens nas vergas e a vela da mezena a sacudir-se. Estava alguém ao leme a gritar ordens, alguém com a cabeça atirada para trás, vendo a vela a enfunar- se.
- Ó de bordo! - gritou Rashleigh. Godolphin juntou-se à gritaria: - Vira de bordo, homem, vira de bordo enquanto podes!
Todavia, o Merry Fortune prosseguia o seu caminho, descendo o canal e atravessando a baía, com a maré a borbulhar por debaixo da proa.
- Está louco - gritou alguém. - Dirige-se para a boca da baía, olhem para aquilo, olhem todos!
Agora que o navio estava ao alcance da voz, Dona podia ver que havia uma fileira de três botes à sua frente, cada um deles ligado por um cabo, com homens dobrados sobre os re mos. O vento continuava a enfunar a mezena, os homens esforçavam-se, e o navio inclinou-se sob uma súbita rajada de vento vinda das colinas por detrás da cidade.
- Vai para o mar! - gritou Rashleigh. - Por Deus, está a levá-lo para o mar!
De súbito Godolphin virou-se e os seus grandes olhos bul bosos caíram sobre Dona, que fora empurrada pela excitação e se aproximara da borda do cais.
- Ali está o rapaz! - exclamou. - A culpa é toda dele. Agarrem-no! Um de vocês agarre esse rapaz!
Dona virou-se, baixando-se rapidamente para passar por debaixo do braço de um velho que a mirava de olhos vazios, e começou a correr às cegas, para longe do cais, passando para lá da casa de Rashleigh, para lá da igreja e da povoação, para o abrigo das colinas, enquanto atrás de si ouvia um homem gritar, o som de pés que corriam e uma voz a chamá-la:
- Anda cá, volta para aqui!
Havia um trilho à sua esquerda, serpenteando por entre o tojo e os fetos novos, e Dona meteu por ele, cambaleando no chão irregular com os seus sapatos desajeitados e a chuva a escorrer-lhe pelo rosto. Por debaixo dela avistou o brilho da água da baía e o barulho das ondas a embaterem na falésia.
A sua única ideia era fugir, esconder-se dos olhos interrogativos e salientes de Godolphin, pois Pierre Blanc já não se encontrava ao seu alcance e o Merry Fortune travava a sua própria batalha no meio da baía.
Correu para o vento e para a escuridão, com o caminho a conduzi-la ao longo das colinas em direcção à boca da baía, e ainda lhe parecia poder escutar o odioso som do sino do cais, acordando as pessoas da povoação, e ver a figura irada de Philip Rashleigh lançando pragas contra os homens que se debatiam com as amarras dos botes. O caminho começou finalmente a descer, e, parando por instantes e limpando a chuva da cara, Dona viu que dava para uma gruta à entrada da baía, e que depois voltava a subir em direcção ao forte do promontório. Olhou em frente, escutando as vagas a quebrarem-se lá em baixo, esforçando os olhos para conseguir ver o Merry Fortune. A seguir, olhando para trás, por cima do ombro, avistou o ponto de luz de uma lanterna que avançava pelo caminho, na sua direcção, e ouviu o arrastar de pés.
Atirou-se para o meio dos fetos. Os passos aproximaram-se e Dona viu o homem que segurava a lanterna na mão. Avançava depressa, sem olhar para a direita ou para a esquerda, e passou por ela em direcção à gruta, continuando para o promontório. Dona podia ver o brilho da lanterna do homem que subia. Sabia que se dirigia para o forte, que Rashleigh o enviara para avisar os soldados de serviço. Quer tivesse finalmente desconfiado de qualquer coisa, quer continuasse a pen sar que o mestre do Merry Fortune perdera o juízo e conduzia o navio para um desastre certo, Dona não o sabia, mas tam bém não importava. O resultado seria o mesmo. Os homens que guardavam a entrada da baía iam disparar contra o Merry Fortune.
Correu pelo caminho em direcção à gruta, mas, em vez de trepar para o promontório, tal como fazia o homem da lanterna, virou para a esquerda ao longo da praia, saltando por cima das rochas molhadas e das algas, para a própria boca da baía. Parecia-lhe estar a ver o mapa de Fowey Haven. Via a estreita
entrada, o forte, o espigão de rochas que saía de junto da gruta onde se encontrava, e tinha em mente que devia alcançar essas rochas antes de o navio chegar à boca da baía, para avisar o francês, sem saber bem como, que fora dado o alarme para o forte.
Estava momentaneamente abrigada pela saliência do promontório e já não tinha de lutar contra o vento e contra a chuva, mas os seus pés deslizavam e tropeçavam nas rochas escorregadias, ainda molhadas da maré, e caiu várias vezes, provocando cortes nas mãos e no queixo, enquanto o cabelo se soltara da faixa que o prendera e se lhe enrolava no rosto.
Algures, uma gaivota gritava. O grito persistente ecoava nas falésias do promontório, por cima da sua cabeça, e Dona começou a amaldiçoá-la de uma maneira selvagem e inútil, pois parecia-lhe que cada gaivota era agora uma sentinela, hos til para com ela e para com os companheiros, e que a ave que gritava na escuridão estava a troçar, dizendo-lhe que eram inúteis todas as tentativas para atingir o navio.
Dentro de instantes, o espigão de rochas deveria ficar ao seu alcance, uma vez que conseguia ouvir as ondas a embaterem nele. Depois, içando-se com a ajuda das mãos e olhando em frente, viu o Merry Fortune aproximar-se da entrada da baía, quebrando as ondas com a proa. Os botes que o haviam rebocado já tinham sido içados para bordo e os homens que remavam amontoavam- se na amurada, porque súbita e  miraculosamente o vento rodara um ou dois graus, e o navio avançava rapidamente, com a forte maré a ajudá-lo. Havia outros botes na água, pequenas embarcações que o perseguiam, com homens que gritavam e homens que praguejavam, e de certeza que aquele, num dos botes, era o próprio Godolphin, com Rashleigh a seu lado. Dona riu-se, afastando os cabelos dos olhos, porque agora já nada interessava, nem a ira de Rashleigh, nem a possibilidade de Godolphin a reconhecer, porque o Merry Fortune escapava-se-lhes alegremente e sem medo, no meio da tempestade de Verão. A gaivota voltou a gritar, agora mais perto dela. Dona olhou em volta, à procura de uma pedra que lhe pudesse atirar, mas em vez disso viu um pequeno bote passar a saliência de rochas à frente dela, e ali estava Pierre Blanc, com o pequeno rosto virado para a falésia, emitindo uma vez mais o seu grito de gaivota.
Dona levantou-se, ainda a rir-se, ergueu os braços acima da cabeça e gritou-lhe. O homem viu-a e conduziu o bote para as rochas, e Dona saltou para o lado dele, sem nada dizer, tal como Pierre, pois remava contra as ondas em direcção ao navio. Dona tinha sangue a correr do corte do queixo, e estava encharcada até à cintura, mas não se importava. A pequena embarcação ressaltava entre as ondas, e o vento soprava-lhe para a cara a espuma salgada e a chuva. Houve um clarão de luz e o estrondo de um canhão, e algo caiu na água uns dez metros à frente, mas Pierre Blanc, sorrindo como um macaco, remou para o meio do canal, para onde o Merry Fortune quebrava o mar na direcção deles, com o vento a ressoar nas velas enfunadas.
Outro clarão, outro estrondo ensurdecedor, e dessa vez escutaram o som da madeira a estilhaçar-se, mas Dona nada viu, pois notava apenas que alguém lançara uma corda para dentro do bote e os puxava para junto do navio e que havia rostos a rirem-se para ela, mãos que a ajudavam a subir, e que por debaixo dela ficava a negra água remoinhante e o bote virado de quilha para o ar, desaparecendo na escuridão.
O francês estava ao leme do Merry Fortune, e também ele
tinha um corte no queixo, os cabelos soprados para a cara e a
camisa a escorrer água, mas por instantes fitou os olhos de
Dona, e sorriram um para o outro. Depois, disse-lhe:
- Deite-se de barriga para baixo, Dona, pois vão voltar a
disparar. - E Dona deitou-se ao lado dele sobre o convés,
 exausta, dorida, tremendo por causa da chuva e da espuma do
mar, mas nada disso fazia diferença e não a incomodava.
Desta vez o tiro foi curto.
- Poupem a pólvora, rapazes! Não é desta vez que nos
apanham! - gritou o francês, rindo-se, enquanto o pequeno
Pierre Blanc, a escorrer água e a sacudir-se como um cão, se
debruçava da amurada com um dedo no nariz.
O Merry Fortune empinava-se e caía por entre as ondas,
as velas estrondeavam e abanavam, e havia alguém que gritava qualquer coisa de um dos barcos perseguidores, enquanto
um homem que tinha um mosquete na mão disparava contra
as velas.
- Ali tem o seu amigo, Dona - gritou o francês. - Sabe
se ele dispara bem?
Dona gatinhou pelo convés, espreitou por cima da amurada da popa e avistou o primeiro barco perseguidor quase por
baixo deles, com o rosto de Rashleigh a olhar para cima e Godolphin a levantar o mosquete ao ombro.
- Está uma mulher a bordo! - exclamou Rashleigh. - Ali, olhem!
Godolphin disparou outra vez, no momento em que o
companheiro falava, e a bala passou a assobiar, inofensiva, por
cima da cabeça de Dona. Quando o Merry Fortune se inclinou
por instantes, sob uma rajada de vento, Dona viu o francês entregar o leme a Pierre Blanc, que se encontrava a seu lado.
Rindo-se, passou por cima da amurada da popa quando o navio mergulhou, e Dona viu que levava uma espada na mão.
- Cumprimentos, cavalheiros - gritou - e um bom regresso ao cais de Fowey, mas em primeiro lugar gostava de ficar com uma recordação vossa!
Estendendo a espada, atirou o chapéu de Godolphin para a água, espetou a grande cabeleira encaracolada de Godolphin, e ergueu-a em triunfo, agitando-a no ar.
Godolphin, calvo como um melão, com os olhos ainda mais salientes no seu rosto vermelho, caiu para trás, para a popa do barco, com o mosquete a ressaltar a seu lado.
Nesse momento surgiu um súbito golpe de chuva que os ocultou, e o mar saltou por cima da amurada do navio, atirando Dona para os embornais. Quando conseguiu levantar-se e recuperar o fôlego, afastando os cabelos da cara, o forte do promontório estava muito para trás deles, as embarcações perseguidoras já não se viam e o francês mantinha-se na roda do leme do Merry Fortune, rindo-se para ela, com a cabeleira de Godolphin pendurada nas malaguetas.
Capítulo décimo quarto
Havia dois navios no meio do canal, navegando a cerca de três milhas um do outro, e o que seguia à frente tinha um aspecto curioso, com os mastros inclinados e uma pintura berrante, parecendo querer levar para águas desconhecidas, para lá do horizonte, o sóbrio navio mercante que o seguia.
A tempestade de Verão que agitara o mar durante vinte e quatro horas, sem um momento de descanso, extinguira-se por si mesma e o céu tinha agora um aspecto duro e azul, sem uma única nuvem. A ondulação também morrera, deixando atrás de si um mar tranquilo e curiosamente parado, pelo que os dois navios, empurrados apenas por uma ligeira brisa do norte, permaneciam quase imóveis no canal, com as velas inúteis, pendendo sobre as vergas. Da cozinha do Merry Fortune vinha um cheiro a cozinhados, o quente cheiro de galinha a assar, que penetrou pela vigia aberta da cabina e se misturou com o fresco ar salgado e o calor do Sol. Dona abriu os olhos e ganhou consciência, pela primeira vez, de que o navio já não saltava e pulava sobre a ondulação do Atlântico, que desaparecera o enjoo que a dominara, e acima de tudo que se encontrava esfomeada, como nunca estivera em toda a sua vida. Bocejou, esticou os braços por cima da cabeça, sorrindo para si mesma por já não se sentir enjoada, e depois praguejou baixinho, servindo-se de uma das mais ordinárias pragas de Harry, pois recordou-se, de repente, que o enjoo a fizera perder uma aposta. Levou as mãos às orelhas, apalpando os brincos de rubis com relutância, e ao fazê-lo apercebeu-se de que estava completamente nua sob os cobertores e que não se viam vestígios das suas roupas no chão da cabina.
Parecia-Lhe que se passara uma eternidade desde que descera as escadas a cambalear, no escuro, encharcada, exausta, enjoada, que se libertara dos calções e da camisa, bem como dos sapatos, que lhe haviam provocado bolhas, deslizando para o calor dos reconfortantes cobertores, ansiando apenas por um pouco de sossego e de sono.
Alguém deve ter entrado na cabina enquanto dormia, pois
a vigia, que estivera fechada por causa da tempestade, estava
agora aberta, tinham-lhe levado as roupas e no seu lugar via-se
um jarro com água fumegante e uma toalha.
Desceu do espaçoso beliche em que dormira durante um
dia e uma noit pensando, enquanto permanecia nua no meio
da cabina e se lavava, que quem quer que comandara o Merry
Fortune pusera o conforto à frente da vigilância. Espreitando
pela vigia enquanto penteava os cabelos, avistou, para estibordo, as vergas de La Mouette, com um brilho vermelho sob o
sol. Chegou-Lhe mais uma vez o cheiro a galinha assada, mas
nesse momento ouviu passos no exterior. Voltou a trepar para
 o beliche e puxou o cobertor até ao queixo.
-Já está acordada? - perguntou o francês. Respondeu-lhe que entrasse, recostando-se na almofada e com o coração
a bater de uma maneira louca. Ali estava ele à porta, sorrindo-lhe, com uma bandeja nas mãos.
- Afinal, sempre perdi os meus brincos - disse Dona.
- Sim, eu sei.
- Como sabe?
- Porque vim aqui abaixo uma vez, para ver como estava,
e atirou-me uma almofada à cabeça e mandou-me para o inferno! - retorquiu.
Dona riu-se e abanou a cabeça.
- Está a mentir - retorquiu -, não veio cá abaixo, não
me lembro de ver ninguém.
- Encontrava-se demasiado longe deste mundo para se recordar - disse o francês -, mas não vale a pena discutir. Tem
fome?
- Sim.
- Também eu. Pensei que poderíamos comer juntos.
Começou a pôr a mesa e Dona observou-o de sob a protecção do cobertor.
- Que horas são? - inquiriu.
- Cerca de três da tarde - respondeu.
- De que dia?
- Domingo. O seu amigo Godolphin deve ter faltado à missa, a não ser que exista um bom barbeiro em Fowey.
Olhou para a antepara, e Dona, seguindo-lhe o olhar, viu a cabeleira encaracolada pendurada num prego por cima da sua cabeça.
- Quando foi que a pôs aqui? - perguntou, com uma gargalhada.
- Quando estava enjoada.
Ficou em silêncio, odiando a ideia de o francês a ter visto naquele estado, tão vergonhoso, tão pouco digno, e apertou o cobertor ainda mais à sua volta, vendo-lhe as mãos que se ocupavam da galinha.
- Come uma asa? - perguntou.
- Sim - acenou Dona, interrogando-se sobre como se iria sentar sem ter nada vestido, e quando o viu virar as costas para abrir a garrafa do vinho, sentou-se rapidamente, enrolando o cobertor por cima dos ombros.
O pirata levou-lhe um prato de galinha, olhando-a de cima a baixo.
- Podemos arranjar-lhe melhor do que isso - declarou.
- Esquece-se de que o Merry Fortune esteve nas Índias. Saiu por instantes, deteve-se junto de uma grande caixa de madeira que se encontrava ao pé da escada, levantou-lhe a tampa e extraiu dele um xaile alegremente colorido, todo em vermelho e ouro, com uma franja de seda.
- Talvez Godolphin tivesse pensado nisto para a mulher - disse. - Há muitos mais no porão, se estiver interessada.
Sentou-se à mesa, arrancou uma coxa à galinha e começou a comê-la à mão. Dona bebeu um pouco de vinho, observando-o por cima do copo.
- Poderíamos estar pendurados na tal árvore do parque de Godolphin - comentou.
- Podíamos, sim, se não fosse aquela rajada de vento de oeste - respondeu o pirata.
- Que vamos fazer agora?
- Nunca faço planos ao domingo - retorquiu.
Dona continuou a comer a galinha, segurando a asa nas mãos tal como ele fazia, e do exterior do navio chegou- lhe o som do alaúde de Pierre Blanc e das vozes dos homens, que
cantavam suavemente.
- Tem sempre esta sorte diabólica, francês? - perguntou.
- Sempre - respondeu ele, atirando com o osso da perna
da galinha pela vigia e pegando na outra.
O sol caía a jorros sobre a mesa, enquanto o mar preguiçoso lambia o costado do navio. Continuaram a comer, cada um
deles com perfeita consciência do outro e das longas horas que
tinham pela frente.
 - Rashleigh gosta de dar conforto aos seus marinheiros comentou o francês, olhando em volta. - Talvez fosse por isso que estavam todos a dormir quando trepámos para bordo.
- Quantos eram?
- Apenas meia dúzia, nem mais um.
- Que fizeram com eles?
- Oh, amarrámo-los costas com costas, amordaçámo-los e
deixámo-los à deriva num bote. Devem ter sido recolhidos pelo próprio Rashleigh.
- O mar vai voltar a ficar bravo?
- Não, isso acabou.
Dona recostou-se na almofada, observando os desenhos
que o sol fazia na antepara.
- Ainda bem que passei por tudo aquilo, pelo perigo e
pela excitação - declarou -, mas por outro lado também estou satisfeita por tudo ter acabado. Não quero voltar a fazer
nada como aquela espera no exterior da casa de Rashleigh, ou
como ter de me esconder no cais e correr pelas colinas para a
gruta, já a pensar que o coração iria rebentar.
- Para grumete, não se comportou muito mal.
Olhou para ela, do outro lado da cabina, e desviou os olhos.
Dona começou a alisar as franjas de seda do xaile que o francês
lhe dera. Pierre Blanc continuava a tocar o alaúde, dedilhando
a melodia que Dona escutara quando, pela primeira vez, vira o
La Mouette ancorado na enseada abaixo de Navron.
- Quanto tempo vamos ficar no Merry Fortune? - perguntou.
- Porquê, quer ir para casa? - retorquiu o homem.
- Não... não, perguntei por perguntar.
O francês levantou-se da mesa, aproximou-se da vigia e olhou para o La Mouette, que continuava, quase numa calmaria, a cerca de duas milhas de distância.
- O mar é assim: ou há demasiado vento, ou há muito pouco - comentou. - Com uma pequena brisa, já estaríamos na costa de França. Talvez a venhamos a ter lá para a noite.
Ficou parado, com as mãos metidas nos bolsos dos calções e os lábios a acompanharem o som do alaúde de Pierre Blanc.
- Que vai fazer quando voltar o vento? - inquiriu Dona.
- Navegar à vista de terra, e depois deixar a bordo meia dúzia de homens que levem o Merry Fortune para o porto. Quanto a nós, regressaremos ao La Mouette.
Dona continuou a brincar com as franjas do xaile.
- E depois, para onde vamos?
- Voltamos para Helford, claro. Não quer ver os seus filhos?
Dona não respondeu. Observava-lhe a nuca e a posição dos ombros.
- Talvez o noitibó ainda cante na enseada, à meia-noite - prosseguiu o francês. - Podemos ir procurá-lo, e à garça. Nunca cheguei a terminar o desenho da garça, pois não?
- Não sei.
- Além disso, há muitos peixes no rio à espera de serem apanhados.
A música de Pierre Blanc tornou-se incerta e morreu, e não se ouvia qualquer som excepto o bater da água contra o casco. A sineta do Merry Fortune bateu a meia hora, som que foi repetido pelo La Mouette, à distância. O sol ardia sob o mar plácido. Estava tudo tranquilo e em paz.
O francês afastou-se da vigia, aproximou-se e sentou-se no beliche ao lado dela, ainda a assobiar a música, baixinho.
- Este é o melhor momento para um pirata - afirmou.
- O projecto foi levado a cabo e terminado, o jogo foi ganho. Olhando para trás, só nos recordamos dos bons momentos, e os maus são esquecidos até à próxima vez. Por outro lado, como o vento não soprará antes do cair da noite, podemos fazer o que nos apetecer.
Dona escutava o ruído do mar a lamber o casco.
- Podemos nadar - disse - no fresco da tarde, antes de o Sol se pôr.
- Podemos - concordou o francês.
Fez-se o silêncio entre eles, e Dona continuou a observar os reflexos do sol em cima da sua cabeça.
- Não posso levantar-me enquanto as roupas não secarem.
- Pois não, eu sei.
- De quanto tempo precisarão, lá fora, ao sol?
- Diria que pelo menos mais três horas.
Dona suspirou e voltou a recostar-se na almofada.
- Talvez pudesse descer um bote... - murmurou - e pedir
a Pierre Blanc que fosse ao La Mouette buscar o meu vestido.
- Está a dormir - disse o capitão do navio. - Neste momento, estão todos a dormir. Não sabia que os franceses gostam de preguiçar entre a uma e as cinco da tarde?
-Não... Não sabia.
Dona colocou os braços por detrás da cabeça e fechou os
olhos.
- Em Inglaterra - afirmou - as pessoas nunca dormem
de tarde. Deve ser um costume peculiar dos seus compatriotas.
Entretanto, que vamos fazer até as minhas roupas secarem?
O francês observava-a com um vestígio de sorriso nos lábios.
- Em França - respondeu - dir-lhe-iam que só podemos fazer uma coisa. Todavia, talvez seja também um costume
peculiar dos meus compatriotas.
Dona não respondeu. Então, inclinando-se para a frente, o
francês estendeu a mão e começou a retirar-lhe o brinco da
orelha esquerda, com toda a suavidade.
Capitulo décimo quinto
Dona encontrava-se ao leme de La Mouette e o navio mergulhava de proa nos vastos mares verdes, lançando a espuma das ondas para o convés, na sua direcção. As velas brancas esticavam-se e cantavam por cima dela, e todos os sons que aprendera a amar chegavam-lhe aos ouvidos, cheios de beleza e força. Ouvia o estalar dos grandes blocos de madeira, o retesar dos cabos, o zumbido do vento no cordame. De baixo chegavam-lhe as vozes dos homens, rindo-se e conversando uns com os outros, olhando de vez em quando para cima para verem se Dona os observava, exibindo-se como crianças para conseguirem uma mirada dos seus olhos. O Sol quente brilhava-lhe sobre a cabeça e quando a espuma saltava para o convés sentia-lhe o sabor nos lábios. O próprio convés tinha um odor quente e pungente, um odor a alcatrão, a cordas e água salgada.
Tudo isto", pensou, é apenas momentâneo, é apenas um fragmento de tempo que não voltará mais, pois o dia de ontem já pertence ao passado e deixou de ser nosso, e o amanhã é uma coisa desconhecida que pode ser hostil. Este é o nosso dia, o nosso momento, o sol pertence-nos, o vento, o mar, os homens que estão lá à frente a cantar no convés. Este dia é para sempre, para ser recordado e acarinhado, porque teremos vivi do e amado nele e nada mais interessa para além disso, neste mundo que nós próprios construímos e para onde fugimos. " Olhou para baixo, para o francês, deitado no convés de encontro à amurada, com as mãos atrás da cabeça e o cachimbo na boca. De vez em quando sorria para si mesmo, dormitando ao sol, e Dona recordava-se da sensação das suas costas encostadas às dela durante toda a noite, e pensou, cheia de piedade, em todos os homens e mulheres que não eram alegres quando se amavam, que eram frios, relutantes, tímidos, que imaginavam que paixão e ternura eram duas coisas separadas uma da outra e não uma única, onde se misturassem gloriosamente, de um modo em que o que era violento era também suave, e em que o silêncio era falar sem palavras. O amor, como sabia agora, era qualquer coisa sem vergonhas e sem reservas, a posse
de duas pessoas que não tinham barreiras entre elas, e nenhum
orgulho: o que acontecia a ele acontecer-lhe-ia a ela, todas as
emoções, todos os movimentos, todas as sensações do corpo e
do espírito.
A roda do leme do La Mouette levantou-se debaixo das
suas mãos, e o navio adernou sob a brisa que refrescava. Tudo isto", pensou Dona, é parte do que sentimos um pelo outro, é parte do encanto da vida, a força que jaz no casco de um
navio, o fluxo da água, o sabor do mar, o toque do vento nos
nossos rostos, e até os pequenos e simples prazeres da comida
e da bebida, e do sono, que partilhamos com delícia e compreensão graças à felicidade que encontrámos um no outro.
O francês abriu os olhos e fitou-a, tirou o cachimbo da boca e sacudiu as cinzas sobre o convés, e estas dispersaram-se,
espalhadas pelo vento. Levantou-se e espreguiçou-se, bocejando de preguiça, de paz e de contentamento, aproximou-se e
parou ao lado dela, pousando as mãos nas malaguetas, por cima das dela, e ficaram os dois assim, observando o céu, o mar
e as velas, sem nunca falarem.
A costa da Cornualha era uma fina linha no horizonte distante quando surgiram as primeiras gaivotas para os saudarem,
girando e gritando por cima dos mastros, e souberam que dentro em pouco lhes chegaria o cheiro da terra, vindo das ainda
longínquas colinas, que o Sol iria perder a sua força e que,
mais tarde, o largo estuário do Helford se abriria para eles
com o Sol a pôr-se, vermelho e dourado, sobre as águas.
As praias estariam quentes onde o Sol brilhara todo o dia,
e o próprio rio estaria cheio e límpido, com a maré. Haveria
maçaricos por cima das rochas, ostraceiros meditando em cima
de uma única perna, junto às pequenas poças de água, enquanto
mais acima, já na enseada, a garça permaneceria imóvel, como
uma coisa adormecida, para se levantar apenas quando se aproximassem e para deslizar por cima das árvores com as grandes
asas silenciosas.
A própria enseada iria parecer-lhes tranquila e silenciosa depois do brilho do Sol e da agitação do mar, e as árvores, amontoadas até à margem, seriam suaves e amáveis. O noitibó chamaria, tal como o francês dissera, os peixes saltariam na água, e ver-se-iam rodeados por todos os cheiros e sons do Verão enquanto caminhassem ao crepúsculo por debaixo das árvores, por entre o verde dos pequenos fetos e do musgo.
- Vamos acender uma nova fogueira e cozinhar o jantar na enseada? - perguntou o francês, lendo-Lhe os pensamentos.
- Sim - respondeu Dona -, naquele cais, tal como fizemos da outra vez.
Encostou-se a ele, observando a fina linha da costa, que se tornava mais forte e distinta, pensando na outra refeição que tinham preparado juntos e na timidez e nas barreiras que tinham existido entre eles e não voltariam a surgir porque o amor era uma coisa de grande simplicidade depois de partilhado, admitido e feito, que intensificava todas as alegrias e fazia desaparecer todas as febres.
La Mouette esgueirava-se uma vez mais para terra, tal como fizera naquela primeira tarde, que lhe parecia ter sido há tanto tempo, quando Dona se detivera no alto da falésia e a observara já com premonições no coração. O Sol desceu, as gaivotas surgiram para os saudar. A maré a encher e o fraco vento da tarde levaram o navio, suavemente e em silêncio, a subir o canal do estuário. Apesar de terem estado ausentes poucos dias, as árvores haviam ganho uma certa profundidade de cor que não existira antes, havia uma nova riqueza no verde das colinas e a ainda quente fragância do Verão continuava a pairar no ar como o toque de leves dedos. Quando o La Mouette se deixou empurrar pela maré, um maçarico levantou voo com um assobio e escapou-se rio acima, e quando entraram na enseada e o navio deixou de se deslocar, por causa da falta de vento, baixaram os botes, lançaram cabos de reboque e puxaram-no para o seu ancoradouro secreto quando as primeiras sombras desciam já sobre as águas.
O cabo da âncora provocou um som oco no profundo pego
por debaixo das árvores, o navio rodou para enfrentar os
restos da maré que subia, e de repente, vindos de lado nenhum,
surgiu um cisne e a sua companheira, semelhantes a barcas brancas navegando a par, seguidos por três cisnes jovens, macios e
acastanhados. Seguiram ao longo da ribeira, deixando para trás
uma esteira, tal como faria um navio, e quando tudo estava
preparado para a noite e os conveses desertos, surgiu o cheiro
a comida, vindo da cozinha do navio, e o murmúrio baixo dos
 homens que conversavam à proa.
O bote do capitão aguardava-os por debaixo das escadas.
O francês saiu da cabina e chamou Dona, que estava encostada
à amurada do castelo da popa vendo o aparecimento da primeira estrela por cima do negrume de uma árvore, e seguiram
os dois ao longo da ribeira, para onde os cisnes tinham desaparecido, com o pequeno bote a ondular na água.
Pouco depois, já a fogueira ardia na clareira, com os ramos
secos a estalarem e a quebrarem-se. Naquela noite cozinharam
bacon, fresco, entremeado e encaracolado, acompanhado com
pão também aquecido nas chamas, torrado e escuro. Comeram
com as mãos e fizeram café, forte e amargo, numa frigideira de
cabo comprido, e pouco depois o francês procurou o cachimbo e o tabaco e Dona encostou-se a uma árvore, com as mãos
atrás da cabeça.
- Isto... - disse - podia ser assim para sempre, se o desejássemos. Podia ser amanhã, e no dia seguinte, e daqui a um
ano. Não só aqui, mas também noutros países, noutros rios,
noutras terras da nossa escolha.
- Sim - respondeu o francês -, se o desejássemos. Porém, Dona St. Columb não é Dona, o grumete. É uma pessoa
que tem uma vida num outro mundo, e que neste preciso momento está a acordar no seu quarto em Navron, já sem febre,
recordando, mas de uma maneira muito vaga, o sonho que teve. Levanta-se, veste-se e vai tratar da casa e dos filhos.
- Não - declarou Dona -, ainda não acordou e a febre
continua forte, e os seus sonhos são de um encanto que nunca
conheceu em toda a sua vida.
- De qualquer modo, não deixam de ser sonhos. De manhã, irá acordar.
- Não - retorquiu Dona. - Não, não. Isto, assim e sempre. Sempre a fogueira, a noite escura, o jantar que cozinhámos, e a sua mão aqui, em cima do meu coração.
- Esquece - insistiu o francês - que as mulheres são mais primitivas do que os homens. Sim, são capazes de vagabundear durante algum tempo, de jogar ao amor e à aventura... mas depois, tal como as aves, têm de fazer um ninho. O instinto é demasiado forte. As aves constroem o ninho que ambicionam, instalam-se neles, quentes e seguras, e têm filhos.
- Porém, os filhos crescem - disse Dona - e voam para longe, e depois os seus pais também voam e voltam a ser livres.
O francês riu-se dela, virado para o fogo, observando as chamas.
- Não há solução, Dona - declarou -, porque eu podia partir agora no La Mouette, para voltar dentro de vinte anos, e que encontraria? Uma mulher plácida e acomodada, em vez do meu grumete, e com os seus sonhos há muito esquecidos, enquanto eu seria um marinheiro curtido pelo tempo, de articulações perras, rosto barbudo, e com o apetite pela pirataria já gasto pelos anos.
- O meu francês pinta um triste retrato do futuro.
- O seu francês é um realista.
- E se partisse agora consigo e nunca mais voltasse a Navron? - perguntou Dona.
- Quem sabe o que aconteceria? Talvez o arrependimento, a desilusão, e muitos olhares por cima dos ombros.
- Não convosco. Nunca convosco.
- Bom, então talvez não houvesse arrependimento... mas haveria mais ninhos a construir, mais crias a cuidar, e eu voltaria a navegar sozinho, e lá se iam as aventuras. Sabe, Dona, as mulheres não podem escapar-se... excepto apenas por uma noite e um dia.
- Sim, tem razão, as mulheres não têm para onde fugir. Por isso mesmo, voltarei a navegar consigo, serei o grumete,
pedirei os calções a Pierre Blanc de uma vez para sempre. Não se verificarão as complicações de uma natureza primitiva, os nossos corações e as nossas mentes estarão à vontade, poderá capturar navios e fazer desembarques, enquanto eu, humilde grumete, cozinharei o jantar na cabina, não farei perguntas e não conversarei consigo.
- E durante quanto tempo aguentaríamos isso?
- Tanto quanto nos apetecesse.
-Quer dizer... Tanto quanto me apetecesse? Não seria por uma noite e uma hora, e de qualquer modo não seria esta noite e esta hora, minha Dona.
A fogueira ardia lentamente, acabando por desaparecer no nada. Mais tarde, Dona disse-lhe.
- Sabe que dia é hoje?
- Sim, o do solstício de Verão, o dia mais longo do ano.
- Por isso, esta noite dormiremos aqui, em vez de no navio, porque este dia nunca mais se repetirá, pelo menos para nós, deste modo e nesta enseada.
- Eu sei - respondeu o francês. - Foi por isso que trouxe os cobertores e uma almofada para a sua cabeça. Não os viu?
Dona olhou para ele, mas já não lhe conseguia distinguir o rosto. A fogueira apagara-se e o francês estava na sombra. Sem uma palavra, levantou-se, desceu até junto do bote, regressando com os cobertores e uma almofada debaixo do braço, que instalou na clareira, sob as árvores que ficavam junto à água.
A maré baixara e os fundos de lama encontravam-se à vista. As árvores estremeceram sob um ligeiro vento, mas depois ficou tudo tranquilo. Os noitibós permaneciam em silêncio e as aves marinhas dormiam. Não havia lua, e por cima da cabeça tinham apenas os céus negros, enquanto ao lado corriam as águas escuras.
- Amanhã, muito cedo, irei a Navron - disse Dona.
- Quando nascer o Sol e ainda estiver a dormir.
- Está bem.
- Chamarei William antes que o resto da casa acorde, e se
tudo estiver bem com as crianças e não for necessário lá ficar, voltarei para a enseada.
- E depois?
- Depois... não sei. Será consigo. Não é sensato fazer planos. É frequente correrem mal.
- Então, fingiremos que planeamos - retorquiu o francês. - Faremos de conta que voltará para tomar o pequeno almoço comigo, que depois nos metemos no barco e descemos o rio, e que voltará a pescar, mas desta vez com mais êxito do que da primeira.
- Vamos apanhar muitos peixes?
- Essa decisão não será para esta noite. Deixaremos isso para quando chegar o momento.
- Depois de nos fartarmos da pesca - continuou Dona
- iremos nadar. Ao meio-dia, quando o sol está mais quente sobre a água. A seguir comeremos e dormiremos de costas numa pequena praia. A garça aparecerá quando a maré virar, e poderá acabar de a desenhar.
- Não, não irei desenhar a garça - declarou o francês.
- Chegou a altura de fazer um novo desenho do grumete do La Mouette.
- E passar-se-á outro dia, e outro, e outro. Sem passado nem futuro, apenas o presente.
- Mas hoje é o dia mais longo. O dia do solstício. Já se esqueceu?
- Não, não me esqueci - respondeu Dona. Algures", pensou Dona antes de adormecer, algures jazia uma outra Dona sobre a grande cama de dossel de Londres, inquieta, solitária, sem nada saber daquela noite junto da enseada, ou do La Mouette ancorado, ou das costas dele contra as minhas aqui na escuridão. Essa outra Dona pertence ao ontem. Não tem lugar aqui. Também algures, há uma Dona do amanhã, uma Dona do futuro, a dez anos de distância, para quem tudo isto será uma memória querida, algo para não esquecer. Todavia, nessa altura, talvez muita coisa tenha sido esquecida, tal como o ruído da maré nos bancos de lama, o céu negro, as águas escuras, o estremecer das árvores por detrás de nós, as sombras que lançam para a frente, o cheiro a fetos novos e a musgos. Esqueceremos também as coisas que dissemos, o toque das mãos, o calor, o encanto, mas nunca a paz que demos um ao outro, nunca a tranquilidade e o silêncio. Quando acordou havia uma luz cinzenta sobre as árvores, um nevoeiro sobre a água, e os dois cisnes desciam a ribeira como fantasmas da madrugada. As cinzas da fogueira estavam brancas como pó. Olhou para o homem a seu lado, deitado a dormir, e perguntou a si mesma porque seria que os homens pareciam crianças quando dormiam. Todos os seus traços se mostravam amaciados, e os conhecimentos também, e voltavam a ser os rapazinhos que haviam sido tanto tempo antes. Estremeceu um pouco sob o fresco da manhã e depois, atirando o cobertor para o lado, levantou-se com os pés nus sobre as cinzas da fogueira e ficou a ver os cisnes a desaparecerem no nevoeiro.
A seguir inclinou-se para a sua capa, enrolou-se nela e afastou-se do cais em direcção às árvores e ao estreito e contorcido trilho que a levaria a Navron.
Tentava recuperar os fios soltos da sua vida normal. Os filhos na cama. James no berço, de faces coradas e punhos cerrados. Henrietta deitada de barriga para baixo, como sempre, com os caracóis louros espalhados sobre a almofada. Prue, de boca aberta, a dormir ao lado deles, enquanto William, o fiel William, tomava conta da casa e mentia, por causa dela e do seu amo.
O nevoeiro iria levantar-se em breve e o Sol surgiria por cima das árvores para lá do rio, e naquele preciso momento, quando saiu dos bosques e entrou no relvado, parando para olhar, a luz da manhã lançou um dedo sobre Navron, que dormia tranquila e fechada. Atravessou o relvado, prateado do orvalho, e experimentou a porta. Estava fechada, claro. Aguardou um momento e depois deu a volta na direcção do pátio das traseiras, pois a janela de William dava para esse lado e talvez a conseguisse ouvir se o chamasse baixinho. Dona ficou à escuta por debaixo da janela. Estava aberta, e os reposteiros não tinham sido corridos.
- William? - chamou. - William, está aí?
Não houve resposta. Baixando-se, Dona pegou numa pedra e atirou-a à janela. Instantes depois surgia o rosto de William, que a olhou como se se tratasse de um fantasma, levou um dedo aos lábios e desapareceu. Dona esperou, com a ansiedade no coração, porque William tinha o rosto pálido e cansado, o rosto de um homem que não dormira. James está doente", pensou Dona. James morreu. Vai dizer-me que James morreu. " Ouviu-o puxar com suavidade as trancas da grande porta, e viu esta abrir-se o suficiente para a deixar passar.
- As crianças? - perguntou, pousando-lhe a mão na manga. - As crianças estão doentes?
William abanou a cabeça, voltando a fazer-lhe sinal de silêncio, e olhando por cima do ombro para a escadaria que se erguia do vestíbulo.
Dona entrou em casa e olhou em volta, e então, com o coração a dar um súbito salto de compreensão, viu o grande sobretudo na cadeira, o chicote de montar, a habitual desordem de uma chegada, e havia um chapéu atirado descuidadamente para o chão, bem como um segundo chicote e uma espessa
manta escocesa.
- Sir Harry chegou, minha senhora - disse William. - Apareceu pouco depois do sol-posto, e veio a cavalo desde Londres. Lord Rockingham veio com ele.
Dona não respondeu. Continuava a olhar para o sobretudo na cadeira. Então, subitamente, vindo do alto, ouviu os latidos agudos de um pequeno cão spaniel.
Capítulo décimo sexto
William virou-se mais uma vez para a escadaria, com os olhos pequenos a brilharem no rosto pálido, mas Dona sacudiu a cabeça em silêncio, atravessou o vestíbulo em bicos de pés e encaminhou-se para o salão. William acendeu duas velas e parou na frente de Dona, à espera que esta falasse.
- Que razão deram? - perguntou. - Porque foi que vieram?
- Segundo compreendi, o facto de a senhora estar ausente de Londres começou a deixar Sir Harry muito inquieto, minha senhora - disse William -, e algumas palavras de Lord Rockingham bastaram para o decidir. Ao que parece, Sua Senhoria encontrou um parente de Lord Godolphin em Whitehall, que lhe disse que a presença de Sir Harry na Cornualha era urgentemente necessária neste momento. Foi tudo o que consegui saber pela conversa que tiveram ao jantar, minha senhora.
- Sim... - respondeu Dona, como se não o tivesse ouvido. - Tinha de ser Rockingham. Harry é demasiado preguiçoso para vir sem ser persuadido.
William permanecia imóvel na sua frente, de vela na mão.
- Que disse a Sir Harry? - perguntou. - Como o conseguiu manter afastado do meu quarto?
Pela primeira vez surgiu um vestígio de sorriso no rosto de William, que a olhou com um ar de compreensão.
- Sir Harry não entraria no seu quarto, minha senhora - retorquiu -, a não ser que me abatesse primeiro. Expliquei aos cavalheiros, logo que desmontaram, que a senhora estava de cama há vários dias, com uma febre elevada, e que só agora conseguia dormir um pouco, e que seria extremamente prejudicial para a sua saúde se Sir Harry se aventurasse no quarto. A tranquilidade absoluta era essencial.
- Aceitou a história?
- Como um cordeirinho, minha senhora. De início praguejou um pouco, e amaldiçoou-me por não o ter mandado chamar, mas expliquei-Lhe que tinha estritas ordens suas para não o fazer. A seguir, a menina Henrietta e o menino James apareceram a correr para saudarem Sir Harry. Contaram-lhe a mesma história, dizendo que a senhora estava mal e recolhida à cama, e Prue afirmou o mesmo, com um rosto muito desgostoso, queixando-se de que a senhora nem sequer a queria receber para que pudesse ocupar-se de si. Assim, depois de terem brincado com as crianças e jantado, e de darem uma volta pelo jardim, Sir Harry e Lord Rockingham retiraram-se para os seus aposentos. Sir Harry está no quarto azul, minha senhora.
Dona sorriu-lhe e pousou- Lhe a mão no braço.
- Meu fiel amigo - disse. - E depois o senhor não conseguiu dormir, a pensar na manhã que se aproximava. Se eu não tivesse regressado a tempo?
- Sem dúvida que teria tomado uma qualquer decisão, minha senhora, apesar de o problema ser um pouco complicado.
- E Lord Rockingham? Que disse ele?
- Pareceu desapontado, minha senhora, por não vos ser possível recebê-los, mas falou muito pouco. Mostrou-se interessado quando Prue disse a Sir Harry que só eu estava autorizado a ocupar-me de si. Reparei que Sua Senhoria olhou para mim com curiosidade, ou, se assim o posso dizer, com novos olhos.
- Era de esperar, William. Lord Rockingham tem essa espécie de mentalidade. É uma pessoa a vigiar, porque tem um nariz tão comprido como o focinho de um terrier.
- Sim, minha senhora.
-São estranhas, William, as fatalidades que acontecem quando se fazem planos. Pensei em ir à enseada, para tomar o pequeno almoço com o seu amo, para ir à pesca e nadar, e para cozinharmos uma refeição sob as estrelas, como fizemos ontem à noite... e agora está tudo acabado.
- Não será por muito tempo, minha senhora.
- Não sabemos. É preciso, custe o que custar, enviar um recado ao La Mouette, que deve abandonar a enseada com a primeira maré.
- Seria mais prudente esperar até ao cair da noite, minha senhora.
- Será o seu amo a decidir, é claro. Ah, William...
- Minha senhora...
Porém, Dona abanou a cabeça, encolhendo os ombros, dizendo-Lhe com os olhos todas as coisas que nunca lhe diria em palavras, e subitamente William aproximou-se e deu-lhe pancadinhas no ombro como se estivesse a lidar com Henrietta, contorcendo a curiosa boca de botão.
- Eu sei, minha senhora - disse -, mas as coisas acabarão por se resolver e voltarão a estar juntos.
Por causa do anticlímax da chegada a casa, porque estava cansada, porque William lhe dera palmadinhas no ombro daquela maneira amável e ridícula, Dona sentiu as lágrimas a correrem-Lhe pelo rosto e não foi capaz de as suster.
- Perdoe-me, William - pediu.
- Minha senhora...
- É tão estúpido. É um tão grande sinal de fraqueza... mas tem qualquer coisa a ver com o facto de ter sido tão feliz.
- Eu sei, minha senhora.
- Sim, William, fomos felizes. Havia o sol, o vento, o mar... e um encanto como nunca vi.
- Imagino, minha senhora.
- Não acontece muitas vezes, pois não?
- Uma vez num milhão de anos, minha senhora.
- Então não deixarei correr mais lágrimas como uma criança mimada. Aconteça o que acontecer, já vivemos o que vivemos. Ninguém nos pode tirar o que tivemos. E eu, que nunca antes me senti viva, estive viva. Agora, William, irei para o meu quarto, despir-me-ei e meter-me-ei na cama. De manhã, mais tarde, irá acordar-me com o pequeno almoço. Verei Sir Harry quando me sentir suficientemente preparada para a provação, e tentarei descobrir por quanto tempo deseja ficar.
- Muito bem, minha senhora.
- Não sei como, mas é preciso mandar um recado ao seu amo, à enseada.
- Sim, minha senhora.
Assim, com a luz do dia a romper por entre as frestas das portadas das janelas, abandonaram a sala. Dona, com os sapatos na mão e a capa sobre os ombros, deslizou pela escada que descera cinco dias antes, parecendo-lhe que já se passara um ano e uma vida. Escutou por instantes no exterior do quarto de Harry, e, sim, lá estavam as respirações familiares do Duque" e da Duquesa", bem como a pesada e lenta respiração do próprio Harry. Eram coisas, pensou, que faziam parte dos padrões que anteriormente a irritavam, que a levavam a actos absurdos, mas que agora deixaram de ter poder
para a tocarem, porque já não eram do seu mundo, do mundo a que escapou.
Dirigiu-se para o seu próprio quarto e fechou a porta. Tinha um cheiro fresco e doce porque a janela estava aberta para o jardim, e porque William pusera lírios ao lado da cama. Correu as cortinas e despiu-se, deitando-se com as mãos em cima dos olhos. Agora, pensou, é agora que ele está a acordar junto à enseada, estendendo a mão para o lado para me encontrar e descobrindo que não estou lá. A seguir vai recordar-se, vai sorrir, espreguiçar-se e bocejar, e ver o sol a tocar no cimo das árvores. Depois, mais tarde, levanta-se e cheira o dia, como já o tenho visto fazer, assobia baixinho, coça-se sob a orelha esquerda e vai nadar para a enseada. A seguir chama os homens do La Mouette, quando estes estão a esfregar o convés, e um deles baixará a escada de corda para que possa subir a bordo, e outro descerá um barco para ir buscar o pe queno bote, as coisas do jantar e os cobertores. Irá para a cabina, secar-se-á com uma toalha, olhando para fora, para a água, e no fim, depois de vestido, Pierre Blanc levar-lhe-á o pequeno almoço. Esperará um pouco, mas como irá ter fome acabará por comer sem mim. Mais tarde subirá ao convés e observará o trilho por entre as árvores. " Dona via- o a encher o cachimbo, encostado à amurada da popa, olhando para baixo, para a água. Talvez os cisnes regressassem e ele lhes atirasse migalhas de pão, contente, sem nada para fazer, cheio de
uma quente preguiça depois do banho da manhã, talvez pensando no dia de pesca que iria ter, no sol quente e no mar. Sabia como o francês levantaria a cara para ela se a visse aparecer
entre as árvores, ao longo da ribeira, como sorriria, sem dizer
nada, sem nunca se afastar da amurada, continuando a atirar
pão aos cisnes como se não a tivesse visto. E para que serve",
pensou Dona, dar voltas à cabeça, uma vez que tudo terminou, está arrumado e nunca mais voltará a acontecer, porque o
navio tem de se ir embora antes que seja descoberto. Aqui estou eu, deitada na minha cama, em Navron, e ali está ele, lá
em baixo, na ribeira. Não voltaremos a estar juntos, e isto que
estou a sentir agora é, portanto, o sofrimento que vem junto
com o amor, o inferno, a danação, a agonia insuportáveis, porque depois da beleza e do encanto vem a tristeza e a dor. " Dona continuou deitada de costas, com os braços em cima dos
olhos, sem conseguir dormir, e o Sol levantou-se e inundou de
luz o quarto.
Já passava das nove horas quando William entrou com o
pequeno almoço, pousando o tabuleiro na mesa ao lado da cama e perguntando:
- Descansou, minha senhora.
- Sim, William - respondeu, mentindo, arrancando uma
uva do cacho que o homem lhe levara.
- Os cavalheiros estão lá em baixo a tomarem o pequeno
almoço, minha senhora - disse-lhe. - Sir Harry mandou-me
perguntar se estará suficientemente recuperada para o receber. - Sim, terei de o receber, William.
- Se me permite uma sugestão, minha senhora, talvez seja
bom fechar um pouco os reposteiros, para que o seu rosto fique na sombra. Sir Harry pode achar estranho que esteja com
um aspecto tão bom.
- Tenho assim tão bom aspecto, William?
- Demasiado bom, minha senhora.
- No entanto, tenho uma dor de cabeça intolerável.
- Provocada por outras causas, minha senhora.
- E tenho sombras debaixo dos olhos e estou imensamente fatigada.
- É verdade, minha senhora.
- Acho que é melhor que saia do quarto, William, antes que eu lhe atire com alguma coisa.
- Muito bem, minha senhora.
Foi-se embora, fechando a porta com cuidado atrás de si, e Dona, levantando-se, lavou-se e arranjou o cabelo. Regressou à cama depois de fechar os reposteiros, tal como William sugerira. Ouviu os agudos ganidos dos spaniels, que esgravatavam na porta, seguidos por passos pesados, e momentos depois Harry entrava no quarto, enquanto os cães, latindo deliciados, se atiravam para cima da cama.
- Desçam daí, malvados - gritou Harry. - Duque", Duquesa", não vêem que a vossa dona está doente? Venham cá, patifes!
Fazia mais barulho do que os próprios cães, e depois sentou-se pesadamente na cama, em substituição dos animais, limpando-lhes as marcas das patas com o lenço perfumado, bufando e soprando durante todo o tempo.
- Inferno, a manhã está quente! - protestou. - Ainda nem são dez horas e já tenho a camisa encharcada em suor. Como estás? Estás melhor? Onde foste buscar essa maldita febre? Tens um beijo para mim?
Debruçou-se sobre Dona, envolto num forte odor a perfume, e a cabeleira encaracolada arranhou- Lhe o queixo enquanto lhe afagava a face com dedos desajeitados.
- Não me pareces muito doente, minha beleza, nem sequer a esta luz. Estava à espera de te encontrar às portas da morte, segundo o que aquele tipo me disse. Que espécie de criado é aquele? Despeço-o se não gostares dele, sabes?
- William é um tesouro - respondeu Dona. - É o melhor criado que jamais tive.
- Ah, bom, desde que te satisfaça, é tudo o que interessa. Então, estiveste doente, não foi? Nunca devias ter saído de Londres. Sempre te sentiste lá bem. Tenho de admitir que é extremamente aborrecida sem ti. Não há uma peça que valha a pena ver, e uma noite destas quase perdi uma fortuna ao piquete. Dizem que Sua Majestade arranjou uma nova amante, mas ainda não a vi. É uma actriz, ou coisa do género. Rockingham está aqui, sabes, e ansioso por te ver. Diabo", disse-me, lá na cidade, vamos até Navron ver o que anda Dona a fazer. Por isso aqui estamos, e estás inválida, na cama.
- Estou muito melhor, Harry. Foi apenas uma coisa passageira.
- Bom, fico satisfeito por o ouvir. Como já disse, pareces bastante bem. Estás bronzeada, não estás? Tão morena como uma cigana.
- A doença deve ter-me deixado amarela.
- E tens os olhos maiores do que nunca!
- É o resultado da febre, Harry.
- Que febre tão esquisita... Deve ter a ver com o clima local. Queres os cães em cima da cama?
- Não, é melhor não.
- Duque, dá um beijo à tua dona e sai daí. Duquesa", aqui está a tua dona. A Duquesa, tem uma ferida no lombo, coçou-se quase até deitar sangue. Olha para isto! O que lhe fazias? Pus-lhe pomada mas não melhorou. A propósito, comprei um novo cavalo, está lá em baixo no estábulo. É castanho, com um pouco de temperamento, mas é rápido. Dou-te mil por ele", disse Rockingham. Respondi-lhe Dá-me cinco mil e talvez me convenças", mas não entrou no jogo. Então, o condado está infestado de piratas, não é, roubos, violações e violência a criarem a confusão entre as pessoas?
- Onde foi que ouviste isso?
- Rockingham contou-me um dia destes essa história na cidade. Encontrou um primo de George Godolphin. Como
está Godolphin?
- Estava um pouco furioso quando o vi pela última vez.
- Também me pareceu. Escreveu-me uma carta, a que me esqueci de responder. Agora, segundo parece, o cunhado perdeu um navio. Conheces Philip Rashleigh?
- Nunca falei com ele, Harry.
- Bom, irás conhecê-lo em breve. Convidei-o a vir aqui.
Encontrámo-lo ontem em Helston. Estava muito maldisposto, tal como Eustick, que o acompanhava. Parece que esse infernal francês saiu com o navio da baía de Fowey, mesmo debaixo dos narizes de Rashleigh e Godolphin. Que impudência diabólica, hem? Depois fugiu para a costa francesa, é claro, sem um único navio a persegui-lo. Deus sabe quanto valia o navio, que acabara de chegar das Índias.
- Porque convidaste Philip Rashleigh para aqui?
- Bom, na realidade a ideia foi de Rockingham. Vamos entrar no jogo", disse-me. És autoridade nesta parte do mundo, e ainda nos podemos divertir um bocado! " - Diver tir? ", disse Rashleigh. Se tivesse perdido uma fortuna como eu, já não diria que se trata de um divertimento! " - Ah! ", comentou Rockingham, vocês andam todos a dormir. Vamos apanhar esse fulano e depois teremos o divertimento! " Por isso pensei em organizar uma reunião, chamando Godolphin e alguns outros, e montar uma armadilha ao francês. Quando o apanharmos, enforcamo-lo em qualquer lado e poderás soltar umas gargalhadas.
- Harry, queres dizer que pensas vir a ter êxito, quando todos os outros falharam?
- Oh, Rockingham acabará por pensar em qualquer coisa. É a pessoa indicada para resolver o assunto. Sei que não sirvo para nada, não tenho cérebro dentro da cabeça, graças a Deus... Olha, Dona, quando é que vais levantar-te?
- Assim que saíres do quarto.
- Sempre distante e metida contigo própria, não é? Não me divirto muito com a minha mulher, pois não, Duque"? Bom, vai buscar os chinelos, rapaz! Procura-os, anda!
Harry atirou um dos chinelos para o outro lado do quarto e mandou os cães apanhá-lo. Os animais lutaram por ele, pulando e latindo, e regressaram, lançando-se para cima da cama.
- Muito bem, vamo-nos embora. Não somos desejados, cachorros, e estamos a atrapalhar. Vou dizer a Rockingham que te vais levantar, ficará tão feliz como um peixe na água. Mando as crianças virem ter contigo, está bem?
Saiu pesadamente do quarto, cantando alto, com os cães a
ladrarem-lhe aos calcanhares.
Então... Philip Rashleigh estivera em Helston no dia anterior, e Eustick acompanhava-o. Godolphin também já deveria
ter regressado. Lembrou-se do rosto de Rashleigh tal como o
vira pela última vez, vermelho de raiva e de impotência, e do
seu grito Está uma mulher a bordo! " enquanto olhava para
ela do barco, na baía de Fowey, e em como ela, já sem a faixa
na cabeça e com os caracóis soprados pelo vento, se rira dele e
lhe acenara.
Não a iria reconhecer. Era impossível, porque na altura
usava uma camisa e calções de homem, e tinha o rosto e os cabelos a escorrerem a água da chuva. Levantou-se e começou a
vestir-se, com a mente sempre ocupada com as novidades que
Harry lhe comunicara. A ideia de ter Rockingham ali em Navron, sempre malicioso, era uma irritação contínua, porque
Rockingham não era estúpido. Além disso, o homem pertencia
a Londres, às ruas empedradas, aos teatros, à atmosfera demasiado aquecida e demasiado perfumada de St. James, e ali em
Navron, na Navron de Dona, era um intruso, um perturbador
da paz. A serenidade do lugar já estava perdida, ouvia-lhe a
voz no jardim, por debaixo da janela, bem como a de Harry.
Riam-se os dois, atirando pedras para os cães as irem buscar.
Terminara tudo. A sua escapada era uma coisa do passado. No
fim de contas, La Mouette poderia nunca ter regressado e permanecer ainda numa tranquila calmaria ao largo da costa de
França, enquanto a sua tripulação levava o Merry Fortune para
o porto. As ondas a quebrarem-se na praia branca e sossegada,
o mar verde, dourado sob o Sol, a água fria e limpa em volta
do seu corpo nu, o calor do convés seco sob as costas, depois
de nadar, enquanto olhava para cima, para os altos e inclinados
mastros de La Mouette, que perfuravam o céu... tudo isso terminara.
Ouviu batidas na porta e as crianças entraram. Henrietta
tinha uma nova boneca, que Harry lhe trouxera, e James enfiava um coelho na boca. Atiraram-se para cima dela com pequenas e quentes mãos e com beijos generosos, com Prue a fazer cortesias atrás deles, perguntando-lhe ansiosamente pela saúde. Algures", pensou Dona, abraçando os filhos, algures está uma mulher que não se interessa por nada disto, que está deitada no convés de um navio e se ri com o seu amante, com o gosto do sal nos lábios, com o calor do Sol e com o mar.
- A minha boneca é mais bonita que o coelho de Jamesdisse Henrietta, e James, a pular para cima e para baixo sobre o joelho de Dona, com a face bolachuda encostada à dela, gritou
- Não, não, o meu, o meu - e tirou o coelho da boca, atirando-o à cara da irmã.
Assim surgiram as lágrimas, as repreensões, as reconciliações, e mais beijos, a descoberta de um chocolate, muita agitação e conversa, e já não havia navio, e não havia mar, mas a senhora de St. Columb, com o cabelo penteado e bem levantado por cima da testa, envergando um macio vestido azul, desceu as escadas até ao jardim, com uma criança em cada mão.
- Então esteve com febre, Dona? - disse Rockingham, avançando, e beijando-lhe a mão que ela lhe estendeu. - De qualquer modo - acrescentou, recuando para a observar -, foi uma febre encantadora!
- Foi o que lhe disse - afirmou Harry. - Disse-lhe lá em cima que está queimada como uma cigana. - Baixando-se, pegou nos filhos e levantou-os até aos ombros, levando-os a gritar de delícia, com os cães a juntarem-se ao clamor.
Dona sentou-se no terraço, e Rockingham, de pé na sua frente, brincava com as rendas dos punhos.
- Não parece estar muito satisfeita por me ver - comentou.
- Por que motivo deveria estar?
- Já lá vão várias semanas desde que a vi - continuou - e foi-se embora de uma maneira tão extraordinária, depois da escapada em Hampton Court... Suponho que fiz qualquer coisa que a ofendeu.
- Não fez nada - respondeu Dona.
Rockingham olhou-a pelo canto dos olhos e encolheu os
ombros.
- Que tem feito aqui sozinha? - perguntou.
Dona bocejou, olhando para Harry e para as crianças, que
brincavam no relvado, com os cães.
- Tenho-me sentido muito feliz, só com os meus filhos. Quando saí de Londres, disse a Harry que queria estar sozinha. Estou zangada com os dois por me terem interrompido a
paz e o sossego.
- Não viemos apenas por prazer - retorquiu Rockingham -, porque também temos um assunto para resolver. Propomo-nos apanhar o pirata, que, aparentemente, tem dado
muito que fazer a toda a gente.
- E como é que se propõem consegui-lo?
-Ah, bem... veremos. Harry está muito entusiasmado com a ideia. Aborrecia-se, sem nada para fazer, e Londres, no Verão, cheira demasiado mal, até para mim. O campo vai fazer-nos bem.
- Quanto tempo pensam ficar?
- Até apanharmos o francês.
Dona riu-se, apanhou um malmequer no meio das ervas e
começou a desfolhá-lo.
-Já se foi embora para França.
- Não me parece - respondeu Rockingham.
- Então porquê?
- Por causa de uma coisa que aquele Eustick disse ontem.
- O intratável Thomas Eustick? Que disse ele? - inquiriu Dona.
- Ora, apenas que um tripulante de um barco de pesca de St. Michael's Mount afirmou ter visto um navio, às primeiras
horas de ontem, que se dirigia para a costa inglesa.
- Isso não significa nada. Algum navio mercante que voltava para casa.
- O pescador não pensa desse modo.
- A costa de Inglaterra é muito comprida, meu caro Rockingham. De Land's End até às Wight, há muitas milhas para vigiar.
- Sim, mas o francês deixa as Wight em paz. Aparentemente, deixa toda a gente em paz, excepto nesta estreita faixa da Cornualha. Rashleigh afirma que o pirata até já visitou o vosso rio Helford...
- Então deve fazê-lo à noite, quando estou na cama e a dormir.
- É possível. De qualquer modo, não ousará fazê-lo durante muito mais tempo. Será divertido acabar com o seu joguinho. Suponho que há muitos rios e abrigos naturais na costa aqui em volta...
- Sem dúvida, mas o Harry sabe mais disso do que eu.
- E os campos em volta são pouco habitados. Segundo suponho, Navron é a única grande casa do distrito.
- Sim, suponho que é.
- O ideal para um fora-da- lei. Quase desejava ser um pirata... e se soubesse que a casa não tinha protecção masculina, e que a sua proprietária era uma mulher tão bela...
- Sim, Rockingham?
- Se eu fosse um pirata, repito, e soubesse todas essas coisas, sentir-me-ia tentado a voltar repetidamente a esta zona.
Dona voltou a bocejar, e atirou fora a flor mutilada.
- Pois é, mas o senhor não é um pirata, meu caro Rockingham, é apenas um membro decadente da aristocracia, demasiado mimado, demasiado bem vestido, e demasiado apreciador de mulheres e de álcool. Portanto, porque não mudamos de assunto? Estou a ficar aborrecida.
Dona levantou-se e começou a caminhar para a casa.
- Houve tempos - disse Rockingham, casualmente - em que não se aborrecia com a minha presença nem com a minha conversa.
- Está a lisonjear-se a si mesmo.
- Recorda-se de uma certa noite em Vauxhall?
- Recordo-me de muitas noites em Vauxhall, e de uma em particular, em que, por eu ter bebido dois copos de vinho e me sentir intoleravelmente ensonada, o senhor teve a audácia de me beijar e eu não tive forças para protestar. Deixei de gostar de si a partir desse momento, e fiquei zangada comigo mesma.
Pararam junto da grande janela e Rockingham mirou-a, com um tom rosado nas faces.
- Que belo discurso - declarou. - O ar da Cornualha já quase a fez venenosa. Ou então, talvez tenha sido da febre.
- Talvez.
- Também se mostrou assim desabrida para com aquele curioso criado que a tem servido?
- O melhor é perguntar-lhe.
- Creio que o farei. Se estivesse no lugar de Harry, far-lhe-ia muitas perguntas, e todas de uma natureza extremamente pessoal.
- Que é isso, de quem estão a falar? - perguntou Harry, juntando-se-lhes e atirando-se para uma cadeira do salão enquanto limpava a testa com um lenço bordado. - Porque é que estão a discutir?
- Estávamos a discutir o vosso criado - respondeu Rockingham com um sorriso brilhante. - Se fosse a si, Dona, não confiaria muito nele. Que foi que viu no homem?
- É sossegado, é discreto, caminha em silêncio, tudo coisas que não se encontram em mais ninguém desta casa. Por isso decidi que seria tratada por ele e por nenhum outro.
- Uma decisão extremamente agradável para o criado - disse Rockingham, polindo as unhas.
- Sim, maldito seja! - barafustou Harry. - Rock tem razão, sabes, Dona? O fulano podia ter-se permitido liberdades infernais. Correste um grande risco. Fraca e impotente, na cama, com o homem à tua volta... Ainda por cima é um criado novo e sei muito pouco a seu respeito.
- Oh, Não está há muito tempo ao teu serviço - perguntou Rockingham.
- Não, não costumamos vir a Navron, como sabes, e eu sou tão preguiçoso que a maior parte do tempo nem sequer sei quem são os meus criados. Estou com vontade de o despedir.
- Não farás nada desse género - declarou Dona. - William continuará ao meu serviço enquanto me apetecer.
- Pronto, pronto, não precisas de te irritar - emendou Harry, pegando na Duquesa" e afagando-a -, mas parece-me um pouco estranho teres aquele fulano à tua volta, no quarto. Olha, aí vem ele, traz uma carta de alguém. Parece estar a ficar doente, também com alguma espécie de febre... Dona olhou para a porta e viu William, com uma carta na mão e um rosto mais pálido do que de costume, e com uma certa tensão nos olhos.
- O que é? - perguntou Harry.
- Uma carta de Lord Godolphin, Sir Harry - respondeu William. - Trouxe-a um dos seus homens, que está à espera da resposta.
Harry abriu a carta e depois atirou-a a Rockingham, soltando uma gargalhada.
- Os cães de caça reúnem- se, Rock - disse. - Ainda nos vamos divertir com isto.
Rockingham leu o papel com um sorriso e depois rasgou-o em bocados.
- Que resposta lhe vais dar? - inquiriu.
Harry examinou o lombo do spaniel, afastando os pêlos do cão.
- Tem aqui outra zona de eczema, maldito seja. A pomada que experimentei não serve para nada. Que me dizem? Ah, sim, uma resposta para Godolphin. William, faça-me o favor de dizer ao homem que a senhora e eu ficaremos encantados por termos Sua Senhoria e os outros cavalheiros a jantarem connosco esta noite.
- Muito bem, senhor - respondeu William.
- Que convite vem a ser esse? - perguntou Dona, vendo-se ao espelho e acertando os caracóis. - Quem é que ficaremos encantados por receber?
- George Godolphin, Tommy Eustick, Philip Rashleigh e meia dúzia de outros - explicou Harry, expulsando o cão dos joelhos. - Vamos finalmente apanhar o francês, não é, Duquesa", e tomaremos parte na matança.
Dona não fez comentários, mas ao olhar para a sala, pelo espelho, viu que Rockingham a observava.
- Vai ser uma festa divertida, não acham? - perguntou.
- Duvido - disse Dona. - Sabendo como é Harry como anfitrião, à meia- noite já estarão todos debaixo da mesa.
Saiu da sala, fechou a porta atrás de si e chamou William baixinho. O homem apareceu imediatamente, de olhos perturbados.
- Que se passa, William? - perguntou. - Está tão preocupado porquê? Lord Godolphin e os amigos não poderão fazer nada. Será demasiado tarde, porque o La Mouette já se terá feito ao mar.
- Não, minha senhora - respondeu William -, não se terá feito ao mar. Desci à ribeira para avisar o meu amo. Descobri que o navio encalhou durante a maré da manhã e que uma pedra lhe furou as tábuas do fundo. Estavam a trabalhar nele quando lá cheguei. Não poderá navegar senão daqui a vinte e quatro horas.
William desviou os olhos da cara de Dona e afastou-se, e esta, olhando por cima do ombro, verificou que a porta que acabara de fechar se abrira outra vez e que Rockingham se encontrava à entrada, brincando com as rendas dos punhos.
Capitulo décimo sétimo
O longo dia arrastou-se em direcção à noite. Os ponteiros do relógio de sala pareciam ter relutância em mover-se, e os toques, a cada meia hora, tinham um tom sombrio. A tarde foi abafada e cinzenta, com aquele céu pesado que surge quando se prepara uma trovoada que não chega a rebentar.
Harry jazera nos relvados com um lenço sobre o rosto, ressonando ruidosamente, com os dois cães a fungar a seu lado, e Rockingham sentara-se com um livro na mão, cujas páginas raramente virava. Quando Dona, de tempos a tempos, o mirava, tinha consciência de que o homem a observava, curioso e irado.
Nada sabia, era claro, mas com a sua estranha intuição, com uma qualidade quase feminina, notara as mudanças que se tinham verificado nela e estava desconfiado. Desconfiava das semanas que Dona passara em Navron, da sua familiaridade com o criado William e do seu invulgar desinteresse por Harry e por ele próprio, que seria capaz de jurar que não provinha do aborrecimento, mas sim de qualquer coisa mais vital e mais perigosa. Mantinha-se mais silenciosa do que anteriormente, não estava sempre a falar, não provocava Harry nem troçava dele como costumava fazer, e limitava-se a ficar sentada, com um caule de relva na mão, de olhos semicerrados como alguém que sonha em segredo. Rockingham observava tudo isto, e Dona sabia que ele a vigiava, pelo que a tensão entre os dois se tornou mais marcada com a passagem das horas. Para Dona, parecia-lhe que o homem tinha a atenção meditativa de um gato, agachado por detrás de uma árvore, e que ela era a ave, silenciosa entre as ervas altas, à espera de uma oportunidade para fugir.
Harry, sem dar por nada daquela atmosfera, dormia e suspirava.
Dona sabia que os homens deviam estar a trabalhar nas tábuas do navio. Imaginava-os na maré baixa, de pés descalços, nus da cintura para cima, com o suor a escorrer-lhes pelas costas, e via La Mouette expondo o seu casco ferido, ligeiramente inclinado, com as madeiras acinzentadas pela lama.
Estaria a trabalhar com eles, de testa franzida, lábios apertados, com aquela expressão concentrada que aprendera a amar e a respeitar, uma vez que a reparação do navio seria uma questão de vida ou de morte e agora não havia tempo nem para preguiçar nem para sonhar.
Antes que a noite caísse, Dona tinha, de algum modo, de conseguir descer até à enseada para lhe implorar que partisse com a próxima maré, mesmo que o La Mouette ainda estivesse a meter água, pois o cerco apertava-se em volta do navio, e permanecer nem que fosse por apenas mais uma única noite poderia ser fatal para ele e para a tripulação.
O navio fora visto a aproximar-se da costa, assim a informara Rockingham, e já se haviam passado quase vinte e quatro horas, período que os seus inimigos podiam ter aproveitado para concretizar muita coisa e para inúmeras previsões e planeamentos. Era possível que se encontrassem homens de vigia sobre os promontórios, bem como espiões nas colinas e nos bosques, e naquela noite Rashleigh, Godolphin e Eustick iam instalar-se em Navron, e só Deus sabia o que tinham em mente.
- Está pensativa, Dona - disse Rockingham, levando-a a levantar os olhos para o olhar. Verificou que o homem pousara o livro e a estudava com a cabeça um pouco de esguelha e olhos que não sorriam. - A febre deve tê-la modificado muito. Quando estava na cidade, nunca se mantinha em silêncio por mais de cinco minutos.
- Estou a ficar velha - respondeu, num tom ligeiro e mastigando um caule de erva. - Dentro de poucas semanas terei trinta anos.
- Que estranha febre - prosseguiu Rockingham, ignorando-lhe as palavras - que deixa o enfermo com o bronzeado dos ciganos e uns olhos tão grandes! Não chamou um mé dico, segundo creio...
- Tratei-me a mim mesma.
- Com os conselhos do excelente William, que, a propósito, tem um sotaque muito curioso. Soa a estrangeiro.
- Todos os habitantes da Cornualha falam da mesma maneira.
- Ah, mas segundo sei, William não é da Cornualha. Foi o que me disse o moço da estrebaria, esta manhã.
- Então talvez seja do Devon. Nunca o interroguei a respeito das suas origens.
- Por outro lado, parece que a casa esteve completamente vazia até à sua chegada, não é verdade? Esse extraordinário William carregou sobre os seus ombros todas as responsabilidades de Navron, sem outros criados para o ajudarem.
- Não sabia que se metia na má-língua das estrebarias, Rockingham.
- Ah, não, Dona? Todavia, é um dos meus passatempos favoritos. É através dos criados dos meus amigos que estou sempre a par dos últimos escândalos que se dão na cidade. Os boatos da porta das traseiras são invariavelmente verdadeiros e muito interessantes.
- E que foi que descobriu na porta das traseiras de Navron?
- O suficiente, minha querida Dona, para me despertar a curiosidade.
- Ah, sim?
- Sua Senhoria, ao que soube, tem uma verdadeira paixão por longos passeios nas horas de maior calor. Gosta de vestir as suas roupas mais velhas, e por vezes, quando regressa, vem salpicada de lama e de água do rio.
- É verdade.
- O apetite de Sua Senhoria é aparentemente irregular. Umas vezes dorme até quase ao meio-dia e pede o pequeno almoço. Outras vezes não toca em comida desde o meio-dia até às dez da noite, e só então, quando os criados já estão na cama, é o fiel William quem lhe leva a ceia.
- Também é verdade.
- Depois, após ter exibido a mais perfeita das saúdes, cai inesperadamente de cama e fecha as portas do quarto a toda a gente, até aos filhos, porque parece que está a sofrer de uma febre (apesar de nenhum médico ter sido chamado) e a única pessoa admitida é mais uma vez o extraordinário William.
- E que mais, Rockingham?
- Oh, mais nada, minha querida Dona... excepto ter recuperado muito repentinamente da febre, e não ter mostrado o menor prazer pela chegada do marido e do amigo mais chegado.
Ouviu-se um suspiro, um bocejo, um espreguiçar de membros, e Harry tirou o lenço que tinha sobre a cara e coçou a cabeleira.
- Só Deus sabe até que ponto esse teu último comentário é verdadeiro - declarou -, mas Dona foi sempre um bloco de gelo, Rock, meu velho amigo. Descobri-o ao longo dos quase seis anos do nosso casamento. Malditas moscas! Eh, Duquesa, apanha as moscas! Não és capaz de impedir que incomodem o teu dono?
Harry sentou-se e agitou o lenço no ar, os cães acordaram, pularam e ladraram, e logo depois as crianças apareceram à esquina do terraço, para a habitual meia hora de brincadeira antes de irem para a cama.
Passava um pouco das seis quando uma súbita chuvada os fez fugir para o interior, e Harry, ainda a bocejar e a resmungar por causa do calor, sentou-se com Rockingham para jogarem ao piquete. Ainda faltavam três horas e meia para o jantar e o La Mouette continuava ancorado na enseada.
Dona ficou junto à janela, tamborilando com os dedos nas portadas de madeira, vendo cair a pesada e rápida chuva de Verão. A sala estava fechada e já cheirava aos cães e ao perfume com que Harry salpicava as roupas. De vez em quando soltava uma gargalhada, troçando de um ou outro erro cometido por Rockingham. Os ponteiros do relógio avançavam mais depressa do que Dona desejava, compensando a lentidão do resto do dia, e Dona começou a andar de um lado para o outro, incapaz de controlar a crescente premonição de derrota.
- A nossa Dona parece inquieta - comentou Rockingham, levantando os olhos das cartas e olhando-a. - Talvez a tal febre misteriosa ainda não a tenha abandonado completamente...
Não Lhe respondeu e voltou a parar junto da janela.
- Consegues bater o valete? - perguntou Harry, rindo-se e atirando uma carta para cima da mesa. - Ou já perdeste outra vez? Deixa a minha mulher em paz, Rock, e presta atenção ao jogo. Olha, lá vem mais um soberano para o meu bolso. Vem sentar-te, Dona, estás a inquietar os cães com esses teus infernais passeios de um lado para o outro.
- Espreite por cima do ombro de Harry e veja se ele está a fazer batota - disse Rockingham -, pois já houve tempos em que nos conseguiu vencer aos dois, ao piquete!
Dona olhou para baixo, para os dois homens. Harry estava barulhento e alegre, já um pouco corado das bebidas que tomara, esquecido de tudo o que o rodeava, excepto o jogo, e Rockingham fazia-lhe a vontade, tal como lhe era exigido, mas sempre vigilante como um gato, com os olhos estreitos virados para Dona, repletos de cupidez e curiosidade.
Dona conhecia Harry bem e sabia que os dois homens iam ali ficar pelo menos mais uma hora. Bocejou, virou as costas à janela e encaminhou-se para a porta.
- Vou deitar-me um bocado até ao jantar - declarou.
- Dói-me a cabeça, deve haver uma trovoada no ar.
- Vamos, Rock, meu velho - disse Harry, recostando-se na cadeira. - Aposto que não tens copas nas mãos. Aumentas a aposta? Ah, assim é que é! Enche-me o copo, Dona, já que estás de pé. Tenho uma sede tremenda...
-Não te esqueças... - comentou Rockingham - que podemos vir a ter que fazer antes da meia-noite.
- Por Deus, claro que não me esqueci. Vamos apanhar o franciu", não é? Porque estás a olhar assim para mim, minha bela?
Olhou para a mulher, com a cabeleira um pouco de lado e os olhos cobertos por uma película húmida, num rosto simpático e avermelhado.
- Pensava, Harry, que dentro de dez anos é provável que fiques muito parecido com Godolphin.
- Ah, sim? Bom, e então? George Godolphin é boa pessoa e é um dos meus mais velhos amigos. Isso que meteste em frente do meu nariz era um ás? És um maldito batoteiro e roubas um homem inocente.
Dona escapuliu-se da sala, subiu ao quarto, fechou a porta e puxou o pesado cordão pendente ao lado da lareira. Alguns minutos depois ouviu bater à porta e entrou uma criada.
- Fazes o favor de me enviar William? - pediu Dona.
- Lamento, minha senhora - respondeu a rapariga -, mas William não está na casa. Saiu pouco depois das cinco horas e ainda não voltou.
- Aonde foi?
- Não faço ideia, minha senhora.
- Então, não interessa, obrigada.
A rapariga saiu do quarto e Dona atirou-se para cima da cama, com as mãos atrás da cabeça. William devia ter tido a mesma ideia que ela. Fora verificar os progressos feitos na reparação do navio e avisar o capitão que os seus inimigos iriam jantar a Navron naquela noite. Mas porque se demorava tanto? Saíra de casa às cinco e eram quase sete!
Fechou os olhos, consciente, na tranquilidade do quarto, de que o seu coração martelava tanto quanto martelara no convés do La Mouette quando esperara pelo desembarque na baía de Lantic. Recordava-se de se ter sentido gelada, e de como, depois de ter descido à cabina e de comer e beber um pouco, o medo e a ansiedade a tinham deixado e se sentira cheia do entusiasmo da aventura. Contudo, esta noite era diferente. Esta noite estava sozinha, não tinha a mão dele na dela, nem os seus olhos falavam para os dela. Estava só e tinha de desempenhar o papel de anfitriã dos seus inimigos.
Continuou deitada na cama, enquanto lá fora a chuva se transformava em chuviscos e parava. As aves começaram a cantar e William continuava sem aparecer. Levantou-se, aproximou-se da porta e escutou. Ouvia o murmúrio baixo das vozes  dos homens, vindo do salão, e houve uma vez em que Harry e Rockingham se riram, mas deviam ter continuado a jogar o piquete porque o murmúrio continuou. De súbito, Harry praguejou por causa de um cão que arranhava o soalho. Dona não foi capaz de esperar mais tempo. Enrolou-se numa capa, esgueirou-se em bicos de pés para o grande vestíbulo, e saiu para o jardim pela porta lateral.
A relva estava molhada da chuva e exibia um brilho prateado, e no ar havia um cheiro quente e húmido como o dos nevoeiros de Outono.
Na floresta, as árvores pingavam e o trilho que levava à enseada estava enlameado e remexido. Na floresta fazia escuro, porque o Sol não regressara depois da chuva e a pesada folhagem do Verão formava uma cobertura sobre a sua cabeça. Chegou ao ponto em que o trilho se dividia e descia rapidamente, e preparava-se para virar para a esquerda, como de costume, em direcção à ribeira, quando um som a fez parar repentinamente e hesitar. Aguardou, com a mão a tocar no ramo mais baixo de uma árvore. O som era o de um ramo a partir-se debaixo de um pé e de alguém a mover- se por entre os fetos. Parou, sem se mexer, e quando tudo voltou a ficar silencioso Dona espreitou por cima do ramo que a ocultava, e ali, a uns vinte metros de distância, estava um homem de pé, de costas para uma árvore, com um mosquete nas mãos.
Via-lhe o perfil por debaixo do chapéu de três bicos. Era um rosto que não reconhecia, que não conhecia, mas o homem lá estava, esperando, espreitando para a enseada.
As folhas da árvore despejaram pesados pingos de água. O homem tirou o chapéu e limpou a cara com um lenço, virando-lhe as costas enquanto o fazia. Dona aproveitou para se afastar imediatamente, e correu para casa ao longo do caminho que seguira até ali. Tinha as mãos geladas e apertou a capa em volta dos ombros, com mais força. Fora por isso, pensou, que William não regressara, pois ou fora apanhado e preso ou escondia-se nos bosques tal como ela acabara de fazer. Se estava ali um homem, era provável que houvesse outros, e aquele que acabara de ver não era natural de Helford e devia pertencer a Godolphin, a Rashleigh ou a Eustick. Assim, o que me resta fazer", concluiu é subir ao meu quarto, vestir-me, pôr os brincos, os colares e as pulseiras, descer para a casa de jantar com um sorriso, e sentar-me à cabeceira da mesa com Godolphin à minha direita e Rashleigh à esquerda, enquanto os seus homens montam guarda nos bosques. "
Apressou-se pelo trilho, em direcção à casa, com as gotas de água a caírem-lhe em cima, evitando o amontoado de folhas. Os melros tinham-se calado e aquele fim de tarde parecia-lhe estranhamente silencioso.
Quando chegou à clareira aberta nas árvores, em frente dos relvados verdes, e olhou para a casa, viu que a grande janela do salão estava aberta para o terraço e que Rockingham se encontrava no exterior, a olhar para o céu, e que os cães, Duque e Duquesa", rodopiavam a seus pés. Dona recuou para a protecção das árvores, e nesse momento um dos cães, que farejava o solo, descobriu as suas pegadas na relva molhada e seguiu-as, abanando a cauda. Dona viu Rockingham a observar o cão e depois a olhar para a janela por cima da sua cabeça. Passados instantes, avançou com cuidado, até à beira do relvado, e observou as reveladoras pegadas no sítio onde estas atravessavam a relva e desapareciam por entre as árvores.
Dona deslizou para o interior do bosque e ouviu Rockingham a chamar a cadela, baixinho, Duquesa, .. Duquesa. Um pouco para a sua esquerda, escutava o animal a farejar por entre os fetos. Deu meia volta no meio das árvores e seguiu em direcção à alameda que dava para a entrada principal. A Duquesa" deveria ter continuado a seguir o seu rasto por entre as árvores, em direcção à ribeira, uma vez que já não a conseguia ouvir. Dona conseguiu chegar a casa sem ser vista.
Entrou pela grande porta, e por sorte a casa de jantar ainda se encontrava na sombra, pois ninguém acendera as velas. Na outra ponta da casa de jantar avistou uma criada que transportava pratos e os empilhava num aparador, ajudada pelo criado que Harry trouxera consigo de Londres. Continuava a não haver sinais de William.
Dona aguardou nas sombras. Passado um minuto, os criados retiraram- se pela porta que dava para a cozinha, nas traseiras, e Dona trepou rapidamente as escadas e correu pelo corredor em direcção ao quarto.
-Quem está aí? - perguntou Harry, do seu próprio quarto. Dona não respondeu e deslizou para o interior, fechando a porta. Instantes depois, ouviu passos no corredor e só teve tempo para atirar a capa para um lado, deitar-se em cima da cama e cobrir-se até aos joelhos, porque Harry entrou sem bater, como era seu costume, vestido apenas de camisa e calções.
- Para onde diabo foi aquele tal William? - perguntou.
- Tem a chave da adega escondida em qualquer lado, e Thomas veio ter comigo por causa dos vinhos. Disse-me que não consegue encontrar William em lado nenhum.
Dona continuou deitada, de olhos fechados, mas depois virou-se e olhou, a bocejar, para Harry, como se este tivesse acabado de a acordar.
- Como queres que saiba onde está William? - retorquiu. - Talvez esteja a conversar com os moços dos estábulos. Porque não o procuram?
- Já procurámos - declarou Harry, furioso. - Pura e simplesmente desapareceu, e dentro em pouco teremos cá George Godolphin e os outros, para o jantar, e não há vinho. Digo-te, Dona, que não suporto isto. Vou despedi-lo, sabes?
- Vais ver que acaba por aparecer - disse Dona, com um ar aborrecido. - Ainda temos muito tempo.
- Que maldito descaramento! - prosseguiu Harry. - É o que acontece a um criado, quando não há um homem em casa. Deixaste-o proceder como mais lhe agradou.
- Pelo contrário, sempre procedeu como mais me agradou.
- Pois olha, não gosto dele. Rock tem razão. O homem tem uns ares impudentes. O Rock tem sempre razão a respeito dessas coisas.
Parou no meio do quarto, mal-humorado, olhando para ela de rosto corado e coléricos olhos azuis, e Dona reconheceu imediatamente as suas maneiras habituais quando já estava um pouco bêbado. Dentro de momentos tornar-se-ia abusador.
- Ganhaste ao piquete? - perguntou, tentando distraí-lo. Harry encolheu os ombros, dirigiu-se para o espelho e ficou a ver-se, alisando com as pontas dos dedos as bolsas escuras por baixo dos olhos.
- Alguma vez consigo ganhar durante dez minutos, quando jogo com o Rock? - resmungou. - Não, acabo sempre por perder vinte ou trinta soberanos, que me fazem diferença. Olha, Dona, esta noite também não me vais permitir a entrada aqui?
- Pensei que te ias entreter a caçar piratas.
- Oh, isso vai ser perto da meia-noite, ou pouco depois. Se o fulano estiver escondido algures no rio, tal como Godolphin e Eustick parecem pensar, não irá ter grandes hipóteses. Irão ser colocados homens em todo o lado, desde aqui até ao promontório e dos dois lados do rio. Desta vez não se escapará do cerco.
- E qual é o papel que pretendes desempenhar?
- Serei apenas um espectador, e só intervirei quando o liquidarmos. A seguir beberemos uns copos e faremos uma festa. Não respondeste à minha pergunta, Dona.
- Podemos deixar isso para depois? Sei qual é o teu estado habitual depois da meia-noite, e muito provavelmente ser-te-á indiferente dormires no meu quarto ou debaixo da mesa.
- Isso é por seres tão difícil para comigo, Dona. É de mais, teres fugido para aqui, para Navron, deixando-me sozinho na cidade... e depois apanhas uma febre esquisita quando venho à tua procura.
- Fecha a porta, Harry, quero dormir.
- A desculpa habitual. Estás sempre a querer dormir. Sabe Deus há quanto tempo me dás essa resposta, nas mais diversas circunstâncias! - protestou Harry, furioso. Saiu e bateu com a porta.
Dona ouviu-o parar por instantes na escadaria e gritar para o criado que se encontrava em baixo, perguntando-lhe se o patife do William já voltara.
Dona, levantando-se da cama e espreitando pela janela, viu Rockingham de regresso, atravessando o relvado, com a cadela, a Duquesa", a seguir-lhe os calcanhares.
Começou a vestir-se, devagar e com muito cuidado, encaracolando os cabelos escuros em volta dos dedos e puxando-os para trás das orelhas, colocando os brincos de rubis e o colar com um pendente de rubi. Dona St. Columb, no seu vestido de cetim creme, com os seus caracóis e as jóias, não podia ter qualquer semelhança com o desalinhado grumete de La Mouette, que apenas cinco dias antes estivera debaixo da janela de Philip Rashleigh, com a chuva a escorrer-lhe pela camisa. Olhou para a sua imagem no espelho, e depois para o retrato que se encontrava na parede, e verificou até que ponto se modificara durante o curto período que permanecera em Navron. O rosto estava mais cheio, o contorno da boca perdera a expressão mal-humorada, e tinha qualquer coisa de diferente nos olhos, tal como dissera Rockingham. Quanto ao bronzeado de cigana, não tinha maneira de o esconder, pois até as mãos e a garganta se mostravam queimadas pelo Sol. Quem poderia acreditar, pensou para si mesma, que aquilo fora o resultado de uma febre, que o bronzeado era na verdade um amarelado? Talvez apenas Harry, que tinha tão pouca imaginação, mas nunca Rockingham.
De súbito ouviu tocar a sineta da estrebaria, no pátio, anunciando a chegada dos primeiros hóspedes, cuja carruagem se aproximava da porta principal. Então, depois dos últimos minutos de tranquilidade, ouviu o matraquear de cascos de cavalo e um novo toque da sineta, e passou a ouvir o som de vozes vindo da casa de jantar, lá em baixo, com a voz de Harry a sobressair no meio de todas as outras, bem como o ladrar do Duque" e da Duquesa". Era quase noite, o jardim mergulhava nas sombras no exterior da janela e as árvores mantinham-se imóveis. Lá mais para baixo, pensou Dona, encontra-se aquela sentinela a espreitar para a enseada, talvez já acompanhada por outros, todos à espera, com as costas encostadas a árvores, em silêncio, até terminar o jantar aqui em casa, até ao momento em que Eustick olhar para Godolphin, Godolphin para Harry, e Harry para Rockingham, e todos eles empurrarem as cadeiras para trás e sorrirem uns aos outros, e partirem para os bosques com as mãos a apalparem as espadas. Se fosse há cem anos", pensou, talvez estivesse preparada para isso, teria um sonífero que lhes misturaria no vinho, ou então vendia a alma ao diabo e lançava-lhes um feitiço. Todavia, não vivo há cem anos atrás, vivo no meu tempo, e tudo o que posso fazer é sentar-me à mesa, sorrir para eles e encorajá-los a beber. "
Abriu a porta e escutou as vozes vindas da casa de jantar. Lá estavam os tons pomposos de Godolphin, a tosse lamurienta e áspera de Philip Rashleigh, e uma pergunta de Rockingham num tom sedoso e suave. Passou para o corredor, e antes de descer encaminhou-se para o quarto das crianças. Beijou-as enquanto dormiam e puxou os reposteiros para que o ar fresco da noite pudesse entrar pela janela aberta. A seguir, quando regressava uma vez mais ao alto das escadas, ouviu um som por detrás dela, lento e arrastado, como se alguém, pouco seguro de qual o caminho na escuridão, avançasse pelo corredor.
- Quem está aí? - murmurou, mas não obteve resposta. Aguardou um momento, estremecendo de medo, escutando as vozes altas que lhe chegavam de baixo, mas logo a seguir voltou a ouvir o barulho de algo a arrastar-se no corredor, um murmúrio e um suspiro.
Foi buscar uma vela ao quarto das crianças, segurou-a por cima da cabeça e espreitou para o comprido corredor de onde lhe vinha o som. Avistou William, meio agachado, meio caído contra a parede, de rosto cor de cinza e com o braço esquerdo pendente ao lado do corpo, inutilizado. Ajoelhou-se a seu lado, mas William afastou-a, com a pequena boca de botão a contorcer-se de dor.
- Não me toque, minha senhora - sussurrou. - Tenho sangue na manga, sujará o seu vestido.
- William, meu caro William, está muito ferido? - perguntou Dona, e o homem sacudiu a cabeça, segurando o ombro com a mão direita.
- Não é nada, minha senhora... - respondeu - mas foi uma infelicidade ter acontecido precisamente esta noite. - Fechou os olhos, enfraquecido pela dor, e Dona percebeu que William estava a mentir.
- Como foi que isso aconteceu? - inquiriu.
- Foi ao regressar através dos bosques, minha senhora - explicou. - Deparou-se-me um dos homens de Lord Godolphin, que me desafiou. Consegui escapar-lhe, mas recebi este arranhão.
- Venha ao meu quarto, que eu lavo-lhe a ferida e ponho-lhe uma ligadura - murmurou.
William não protestou, por já se encontrar quase inconsciente, e deixou que ela o conduzisse ao longo do corredor, até ao quarto, e que o ajudasse a deitar-se. A seguir, Dona foi buscar água e uma toalha, limpou-lhe o corte no ombro e amarrou-lho. William levantou os olhos para ela e disse:
- Minha senhora, não devia estar a fazer isto por mim...
- Fique quieto - murmurou Dona. - Fique quieto e descanse.
O homem tinha o rosto pálido de morte, e Dona, desconhecendo a profundidade da ferida e o que poderia fazer para Lhe aliviar as dores, sentiu-se subitamente impotente e desesperada. William devia tê-lo pressentido, porque afirmou:
- Não se preocupe, minha senhora, ficarei bem. Pelo menos tive êxito na minha missão, fui ao La Mouette e falei com o meu amo.
- Disse-Lhe? - perguntou Dona. - Avisou-o de que Godolphin, Eustick e os outros jantam aqui esta noite?
- Sim, minha senhora, e ele sorriu daquela sua maneira especial e respondeu-me: Diz à tua senhora que não estou nada preocupado e que o La Mouette precisa de um grumete. "
Enquanto William falava, ouviram-se passos no corredor e uma batida na porta.
- Quem é? - perguntou Dona. Respondeu-Lhe a voz da criada mais nova:
- Sir Harry mandou avisar Vossa Senhoria de que ele e os cavalheiros estão à espera para jantar.
- Diga a Sir Harry que comece, porque vou já para baixo - respondeu Dona, que se debruçou mais uma vez para William e murmurou: - E o navio? Corre tudo bem com o navio? Conseguirá sair esta noite?
Porém, William olhou-a sem a reconhecer e fechou os olhos. Dona verificou que o homem desmaiara.
Tapou-o com os cobertores, mal sabendo o que fazia, lavou o sangue das mãos, lançou uma olhadela ao espelho e verificou que também ela perdera a cor das faces. Com os dedos a tremer, pôs um pouco de rouge. A seguir saiu do quarto, deixando William na cama, inconsciente, e ao descer as escadas para a casa de jantar ouviu o barulho das cadeiras a arrastarem no chão de pedra, dos homens que se levantavam para a receberem. Levantou a cabeça bem alta e estampou um sorriso nos lábios, mas não via nada, nem o brilho das velas, nem a longa mesa coberta de pratos, nem Godolphin no seu casaco cor de ameixa, nem Rashleigh com a grande cabeleira cinzenta, nem Eustick a afagar a espada, nem os olhos de todos aqueles homens que a fitavam e lhe faziam vénias. Via apenas um homem, de pé no convés do seu navio, na enseada silenciosa, que lhe dizia adeus em pensamento enquanto esperava pela maré.
Capitulo décimo oitavo
Assim, pela primeira vez em muitos anos, realizou-se um banquete na grande casa de jantar de Navron House. As velas brilhavam sobre os convidados sentados ombro com ombro, seis de cada lado, e a própria mesa estava esplêndida, com os seus serviços de prata e de porcelana de rebordo rosado, e grandes taças com amontoados de frutas. Numa das extremidades ficava o anfitrião, de olhos azuis e corado, com a cabeleira loura um pouco de esguelha, rindo-se talvez demasiado alto e demasiado tempo a cada graçola que era trocada. Na outra extremidade, a anfitriã entretinha-se com os pratos que tinha na frente, fria, imperturbável, lançando de vez em quando olhares aos convidados que tinha a seu lado, como se este, o da esquerda, e o outro, o da direita, fossem os únicos homens que lhe interessavam em todo o mundo, como se lhes pertencesse por aquela noite, ou ainda mais, se o desejassem. Nunca antes, pensou Harry St. Columb, pontapeando um dos cães por debaixo da mesa, nunca antes Dona namoriscara de um modo tão descarado, e fizera olhinhos de um modo tão ultrajante. Se aquilo era uma consequência da tal maldita febre, então que Deus ajudasse todos os que ali estavam presentes. Nunca antes, pensou Rockingham, observando-a do outro lado da mesa, nunca antes Dona se mostrara tão provocadora. O que lhe estaria a passar pela cabeça naquele momento, e porque fora que caminhara pelos bosques em direcção ao rio, às sete daquela tarde, quando a julgava adormecida no quarto?
Então esta, pensavam todos os hóspedes sentados à sua mesa, esta é a famosa senhora St. Columb, sobre quem, de tempos a tempos, ouviam tantos boatos, tantos escândalos, que jantava nas tabernas da cidade com as mulheres da rua, que cavalgava em pêlo, à meia-noite, pelas ruas de Londres, vestida com os calções do marido, e que sem dúvida dera algo de si a todos os galãs de St. James, isto para não mencionar Sua Majestade.
Assim, ao princípio, os convidados mostraram-se desconfiados, inarticulados e tímidos, mas quando ela falou e olhou através da mesa para eles com uma palavra e um sorriso, interrogando-os sobre as suas casas, os passatempos e realizações, perguntando quem era casado e quem não o era, dando-lhes a entender, em troca, que cada palavra que pronunciavam era cheia de encanto e importante para ela, e que se tivesse a oportunidade seria capaz de os compreender como nunca antes haviam sido compreendidos, então descontraíram-se, então abandonaram-se, e que fossem para o diabo, pensou o jovem Penrose, todas as pessoas que haviam dito mal dela, toda a conversa fiada das mulheres invejosas, e - por Deus! - que óptima mulher para se ter e conservar como esposa, pensou Eustick, para manter fechada em casa e nunca perder de vista. Ali estava Tremayne, de para lá de Probus, ali estava Carnethick, de cabeleira postiça ruiva, que era proprietário de todas as terras da costa ocidental, enquanto o primeiro não tinha mulher, não tinha amante, e a olhava com um ar rabugento mas de adoração, e o segundo, que tinha uma mulher dez anos mais velha do que ele e se interrogava, cada vez que Dona lhe lançava um olhar da ponta da mesa, se teria a oportunidade de a encontrar a sós, mais tarde, depois de ter terminado o jantar. Até Godolphin, o pomposo, Godolphin de olhos salientes e nariz bulboso, admitia para si mesmo, algo contrariado, que a esposa de Harry tinha encanto, apesar de, é claro, não a aprovar nem sequer pensar em vir a fazê-lo, e de não conseguir imaginar Lucy a aceitá-la como companheira, pois nos seus olhos havia qualquer coisa de ousado que o incomodava. Philip Rashleigh, sempre taciturno com as mulheres, sempre mal-humorado e silencioso, começou repentinamente a falar-lhe da infância e de como gostara da mãe, que morrera quando ele tinha dez anos.
São quase onze horas", pensou Dona, e ainda estamos a comer, e a beber, e a conversar, e se eu conseguir continuar com isto, nem que seja por apenas um pouco mais, faço com que ganhem tempo lá em baixo no rio, porque entretanto a maré vai subindo, e com buraco no casco ou sem buraco no casco de La Mouette, as reparações que lhe conseguirem fazer terão de aguentar, pois o navio tem de se fazer ao mar.
Fez sinal com os olhos para os criados que estavam à espera, os copos foram mais uma vez cheios, e, enquanto lhe soavam nos ouvidos o zumbido das conversas e Dona olhava para o vizinho da esquerda com um sorriso, perguntava a si mesma se William acordara do desmaio, ou se ainda estaria em cima da cama, com uma palidez cinzenta, os olhos fechados e uma mancha escura no ombro.
- Devíamos ter música - disse Harry. - Devíamos ter música, como costumava fazer o meu avô, ali em cima, na galeria, quando a velha rainha ainda era viva. Maldição, porque é que nos nossos dias já não há trovadores? Suponho que foram os malditos puritanos quem os matou a todos!
Já está bem bebido, pensou Dona, observando-o, reconhecendo os sinais, não dará grande trabalho esta noite. "
- Ainda bem que essas loucuras terminaram - declarou Eustick, de cara franzida, espicaçado pelo comentário aos puritanos, porque o pai lutara pelo Parlamento.
- Dança-se muito na corte? - perguntou o jovem Tremayne, de rosto todo corado e olhando para ela de uma maneira ansiosa.
- Oh, sim - respondeu. - Devia ir até à cidade, sabe. Quando eu e Harry para lá voltarmos, arranjamos-lhe uma esposa.
Porém, o jovem abanou a cabeça e gaguejou uma recusa. Daqui a vinte anos, James será como ele", pensou Dona, e entrará no quarto às três da manhã para me contar a sua última aventura, e tudo isto estará esquecido e posto de lado, mas talvez me recorde de repente ao ver os olhos de James e o seu rosto ansioso. Contar-lhe-ei como mantive doze homens a jantar até quase à meia-noite, para que o único homem que alguma vez amei pudesse fugir, para sempre, para fora da minha vida e para França. "
Que estaria Rockingham a dizer, pelo canto da boca, a Harry?
- Sim, é verdade - berrou Harry -, o patife daquele teu
criado ainda não voltou, sabes, Dona?
Bateu com o punho na mesa, fazendo saltitar os copos. Godolphin fez uma careta porque o vinho lhe salpicara o folho de renda.
- Eu sei - sorriu Dona -, mas não fez qualquer diferença, passámos bem sem ele.
- Que farias tu, George - gritou Harry, decidido a manifestar a sua irritação -, a um criado que tira uma noite de folga quando tens convidados para o jantar?
- Despedia-o, claro, meu caro Harry - retorquiu Go dolphin.
- Mas antes tens de lhe dar uma sova - acrescentou Eustick.
- Pois é, tudo isso é muito bonito - observou Harry, no meio de um soluço -, mas o patife é a mascote de Dona. Quando ela esteve doente, era ele a única pessoa que entrava e saía do quarto a todas as horas do dia ou da noite. Aguentavas uma coisa dessas, George? A tua mulher também tem um criado a entrar e a sair do quarto?
- Claro que não - replicou Godolphin. - Neste momento a minha mulher encontra-se num delicado estado de saúde, e não suporta ninguém, excepto a sua velha ama, e eu, é claro.
- Que encanto! - comentou Rockingham. - Que coisa tão rural e comovedora. A senhora de St. Columb, pelo contrário, parece não gostar de criadas. - Sorriu-se para Dona, erguendo o copo, e perguntou: - Que tal o passeio, Dona? Os bosques não estavam demasiado húmidos?
Dona não respondeu. Godolphin olhou-a desconfiado, pois se fosse verdade que Harry deixava a mulher acamaradar com os criados, em breve seria motivo para má-língua em toda a região. De súbito, recordou-se do impertinente criado que conduzira a carruagem de Dona quando esta fora tomar chá a sua casa.
- A sua esposa tem suportado bem o calor? - perguntou Dona, mas não conseguiu ouvir a resposta porque Philip Rashleigh falava para a sua orelha esquerda.
- Ia jurar que já a vi antes, minha querida senhora - dizia -, mas não consigo lembrar-me nem de quando nem de onde.
O homem baixou os olhos para o prato, contraindo as sobrancelhas, como se um esforço de concentração o pudesse fazer recordar-se da cena.
- Um pouco mais de vinho para Mister Rashleigh - disse Dona, sorrindo graciosamente e empurrando o copo para junto do homem. - Sim, também me parece que já nos encontrámos, mas deve ter sido há seis anos, quando cá vim, como noiva.
- Ah, não, seria capaz de o jurar!... - retorquiu Rashleigh, sacudindo a cabeça. - Creio que a sua voz tem uma certa inflexão que ouvi ainda não há muito tempo.
- Dona provoca sempre esse efeito em todos os homens declarou Rockingham. - Depois de a verem, todos ficam com a sensação de que já a conheceram antes. Vai descobrir, meu caro Rashleigh, que isso o impedirá de dormir toda a noite.
- Será que fala por experiência própria? - inquiriu Carnethick. Os dois homens trocaram olhares e Rockingham sorriu, ajustando as rendas dos punhos.
Como o detesto, pensou Dona. Como detesto aqueles estreitos olhos de gato, aquele sorriso cheio de significados... Quer fazer crer a todos os homens que estão sentados a esta mesa que faz amor comigo.
- Alguma vez esteve em Fowey? - perguntou Philip
Rashleigh.
- Nunca, de certeza - respondeu, e o homem bebeu o vinho, sempre a abanar a cabeça, duvidoso.
- Ouviu dizer como fui roubado?
- Sim, claro - confirmou Dona. - Foi uma coisa muito desagradável para si. Nunca mais teve notícias do seu navio?
- Nem uma palavra - retorquiu, amargo. - Já deve estar num porto francês, e não há nenhuma maneira legal de o recuperar. É resultado de termos uma corte cheia de estrangeiros, e um rei que fala melhor o francês que o inglês. Contudo, espero acertar as contas esta noite, de uma vez por todas.
Dona lançou uma olhadela ao relógio, por cima das escadas. Faltavam vinte minutos para a meia-noite.
- E o senhor... - perguntou, sorrindo para Godolphin
- também esteve envolvido na perda do navio de Mister Rashleigh?
- Também estive, senhora - replicou com secura.
- Espero que nada tenha sofrido...
- Não, felizmente. Os patifes ficaram muito satisfeitos por nos poderem virar as costas. Tal como todos os franceses, preferiram fugir a ter de enfrentar uma luta leal.
- E o chefe dos piratas era assim um homem tão desesperado como me quis fazer crer?
-Vinte vezes pior, senhora. Foi o mais sanguinário, descarado e impudente patife em que jamais pus os olhos. Depois disso já ouvimos dizer que o seu navio transporta todo um carregamento de mulheres em cada viagem, que na sua maior parte, pobres desgraçadas, foram raptadas das nossas aldeias. Escusado será dizer que não falei neste assunto à minha mulher.
- Sim, naturalmente, pois poderia precipitar as coisasmurmurou Dona.
- Vi uma mulher a bordo do Merry Fortune - declarou Philip Rashleigh. - Vi-a no convés por cima de mim, tão claramente como a vejo a si. Descarada como nenhuma, com um corte no queixo e o cabelo todo caído sobre os olhos. Uma qualquer vadia das docas francesas, sem dúvida.
- Havia também um rapaz - acrescentou Godolphin.
- Um rapaz miserável que foi bater à porta de Philip. Aposto que estava metido no caso. Falava a guinchar e tinha um ar efeminado que era muito desagradável.
- Esses franceses são tão decadentes... - comentou Dona.
- Nunca nos teriam escapado se não fosse o vento - resmungou Rashleigh. - Veio uma lufada de ar de Readymoney
Cove que Lhes encheu as velas... como uma intervenção do próprio Diabo. George teve o vilão coberto com o mosquete, mas não lhe acertou.
- Como foi isso, Lord Godolphin?
- Estive temporariamente em desvantagem, senhora - começou Godolphin, com a cor a subir-lhe ao rosto, e Harry, espreitando-o da outra ponta da mesa, deu uma palmada num joelho e gritou:
- Nada receies, George, já todos ouvimos falar no assun to. Perdeste a tua cabeleira, não foi? O patife do francês roubou-te a cabeleira?
Todos os olhos se viraram imediatamente para Godolphin, que ficou rígido como um poste e fitou o copo que tinha na frente.
- Não lhes ligue, meu caro Lord Godolphin - disse Dona com um sorriso - e beba mais qualquer coisa. No fim de contas, que importância tem a perda de uma cabeleira? Podia
ter sido algo muito mais precioso, e nesse caso o que faria a sua esposa?
O convidado à esquerda de Rashleigh, Carnethick, engasgou-se repentinamente com o vinho.
Um quarto para a meia-noite, dez minutos, cinco minutos para a meia- noite. O jovem Tremayne discutia lutas de galos com Penrose de Tregony, um homem de Bodmin cujo nome Dona não ouvira, batia nas costelas de Rockingham, contando-lhe ao ouvido, por detrás da protecção da mão, uma qualquer história picante, Carnethick inclinava- se para ela, do outro lado da mesa, Philip Rashleigh pegava nas uvas com as suas mãos peludas, e Harry, meio a balouçar na sua cadeira, cantarolava qualquer coisa sem melodia, para si mesmo, com uma das mãos a acariciar o copo e outra a fazer festas ao cão que lhe saltara para o colo. Porém, subitamente, Eustick olhou para o relógio, pôs-se em pé de um salto e anunciou com uma voz de trovão:
- Cavalheiros, já perdemos demasiado tempo. Já se terão esquecido que nos reunimos esta noite para tratarmos de um assunto urgente?
O silêncio foi imediato. Tremayne olhou para baixo, para o prato, e corou. Carnethick limpou a boca com um lenço de seda e olhou em frente, para o vazio. Alguém tossiu de embaraço, houve quem arrastasse os pés debaixo da mesa, e só Harry continuou a sorrir, entoando a sua canção de bêbado. Lá fora, no pátio, o relógio bateu a meia-noite. Eustick lançou um olhar significativo para a sua anfitriã. Dona pôs-se imediatamente de pé e perguntou:
- Preferem que saia, não é verdade?
- Que parvoíce - berrou Harry, abrindo um dos olhos.
- Maldição, deixem que a minha mulher fique sentada à sua própria mesa! A festa perderá toda a graça sem ela, como sempre acontece. À tua saúde, minha bela, mesmo apesar de permitires que os criados entrem e saiam do teu quarto.
- Harry, o momento para as brincadeiras já passou - declarou Godolphin, que se virou para Dona: - Falaríamos com mais liberdade se não estivesse presente. Tal como Eus tick acabou de dizer, esquecemo-nos do propósito que aqui nos trouxe.
- Compreendo perfeitamente - declarou Dona. - Não me passaria pela cabeça estorvar-vos.
Quando todos se levantaram para a deixar passar, ouviu-se a grande sineta a tocar lá fora, no pátio.
- Quem diabo será? - estranhou Harry, com um bocejo.
- Alguém que vem para jantar... com duas horas e meia de atraso? É melhor abrir outra garrafa de vinho.
- Estamos todos aqui - interveio Eustick - e não esperamos mais ninguém. E tu, Godolphin?
- Não, também não avisei mais ninguém - respondeu Godolphin, franzindo a testa. - Esta reunião era secreta.
A sineta voltou a tocar.
- Alguém que vá abrir a porta! - gritou Harry. - Onde se meteram os criados?
O cão saltou-lhe dos joelhos para o chão e correu para a porta, a ladrar.
- Thomas, ou outro qualquer, que estão a fazer? - chamou Harry por cima do ombro.
Rockingham, levantando-se, dirigiu-se para a porta das traseiras do vestíbulo, que dava para a cozinha, e abriu-a.
- Eh, estão todos a dormir? - Não obteve resposta e viu que a passagem estava escura e silenciosa.
- Houve alguém que apagou as velas - afirmou. - Está escuro como breu nesta passagem... Thomas, está aí?
- Que instruções deste aos teus criados, Harry? - perguntou Godolphin, empurrando a porta para trás. - Disseste-lhes para irem para a cama?
- Para a cama? Não - retorquiu Harry, levantando-se com gestos pouco firmes. - Devem estar na cozinha, em qualquer lado. Chama-os outra vez, Rock, está bem?
- Já te disse que não respondem - replicou Rockingham
- e que não há luz em lado nenhum. Até a cozinha está escura como um poço.
A sineta tocou pela terceira vez e Eustick soltou uma praga, caminhou para a porta e começou a correr os fechos.
- Deve ser algum dos nossos homens que nos vem informar de qualquer coisa - disse Rashleigh. - Um dos que colocámos nos bosques. Alguém nos denunciou e a luta pode já ter começado.
A porta abriu-se e Eustick parou na soleira, gritando para a escuridão:
- Quem bate à porta de Navron House?
- Jean-Benoit Aubéry, ao vosso dispor, cavalheiros - foi a resposta. O francês avançou para o vestíbulo, com a espada na mão e um sorriso nos lábios. - Não se mexa, Eustick, e os restantes fiquem onde estão. Tenho- os a todos sob mira. O primeiro homem a mexer-se leva um tiro nos miolos.
Dona, olhando para a galeria, no alto da escadaria, avistou Pierre Blanc empunhando uma pistola, com Edmund Vacquier a seu lado, enquanto na porta que dava para a cozinha se via William, branco e inescrutável, com um braço pendendo ao lado do corpo, inútil, e o outro armado com um punhal apontado à garganta de Rockingham.
- Peço-lhes que se mantenham sentados, cavalheiros continuou o francês -, e não os demorarei muito. Quanto a Sua Senhoria, pode fazer o que quiser, mas em primeiro lugar
tem de me entregar os rubis que tem nas orelhas, pois foram motivo para uma aposta com o meu grumete.
Parou na frente dela, fazendo uma vénia, brincando com a espada, enquanto doze homens o miravam com olhos repletos de ódio e de medo.
Capitulo décimo nono
Estavam tão imóveis, tão gelados nos seus assentos em volta da mesa, que até poderiam estar mortos. Ninguém pronunciou uma palavra, mas todos os homens observavam o francês, parado, sorrindo, de mão estendida para as jóias.
Eram cinco contra doze, mas os cinco estavam armados e os doze haviam comido insensatamente, demasiado bem, e as espadas que tinham ao lado mantinham-se embainhadas. Eustick permanecia com as mãos na porta, mas Luc Dumont, do La Mouette, parou a seu lado, apontou-lhe uma pistola às costelas e Eustick fechou a porta devagar e correu os fechos. Pierre Blanc e o seu companheiro desceram a escada da galeria e ocuparam posições a cada extremidade da longa sala, pelo que se qualquer dos outros pegasse numa espada seria um homem abatido logo que o pirata o ordenasse. Rockingham encostou-se à parede, observando a ponta do punhal de William, e passou a língua pelos lábios, mas não falou. Só o anfitrião, que voltara a afundar-se na cadeira, vigiava a cena com um espanto calmo, e com um copo meio cheio de vinho erguido até junto dos lábios.
Dona retirou os brincos de rubis e pousou-os na mão estendida na sua frente.
- É tudo? - perguntou.
O francês apontou com a espada para o pendente que usava em volta da garganta.
- Não quererá fazer-me o favor de me entregar também isso? - disse, com uma sobrancelha levantada. - De outro modo, o meu grumete irá amaldiçoar-me. Já agora, inclua a pulseira que tem no braço.
Dona tirou o pendente e a pulseira e colocou-lhos na mão sem uma palavra nem um sorriso.
- Obrigado - disse o francês. - Espero que esteja recuperada da febre...
- Pensei que estava - retorquiu -, mas sem dúvida que a sua presença aqui a fará voltar.
- Seria lamentável - comentou o pirata com um ar sério.
- A minha consciência ficaria pesada. O meu grumete sofre de febres de tempos a tempos, mas o ar do mar faz-lhe maravilhas. Deveria experimentar um dia. - Fazendo uma vénia, meteu as jóias no bolso e afastou-se.
- Lord Godolphin, suponho - disse, parando em frente de Godolphin. - Na última vez que nos encontrámos, aliviei-o da sua cabeleira. Foi também por causa de uma aposta. Porém, desta vez é possível que o alivie de algo mais substancial. - Estendeu a mão para a condecoração no peito de Godolphin, uma fita com uma estrela, e cortou-a com a espada.
- Lamento dizê-lo - prosseguiu -, mas não o posso deixar ficar com a espada. - A bainha da espada de Godolphin tilintou no chão. O francês fez nova vénia e passou para Philip Rashleigh.
- Boa noite, senhor - disse. - Parece um pouco menos zangado do que quando o vi pela última vez. Tenho a agradecer-lhe a oferta do Merry Fortune. É um esplêndido navio. Neste momento já não o conseguiria reconhecer, garanto-lhe. Levou nova mastreação do meu lado do canal, e uma boa camada de tinta. A sua espada, por favor. O que traz nos bolsos?
As veias incharam na testa de Rashleigh, que começou a respirar de uma maneira rápida e ofegante.
- Pagarás por isto, maldito sejas! - exclamou.
- É possível, mas entretanto é o senhor quem paga - replicou, despejando os soberanos de Rashleigh para o saco que tinha amarrado à cintura.
Lentamente, deu a volta a toda a mesa. Um a um, os convidados perderam as espadas que tinham ao lado, o dinheiro que traziam nos bolsos, os anéis dos dedos e os alfinetes das gravatas. De vez em quando, caminhando em volta da mesa, assobiando baixinho, o francês inclinava-se para uma das taças com fruta e arrancava um bago de uva, e houve uma vez, enquanto esperava que o corpulento convidado de Bodmin se libertasse dos muitos anéis que usava nos dedos inchados pela gota, que se sentou na beira da mesa, por entre as pratas e as louças, e se serviu de um copo de vinho de um jarro.
- Tem uma boa adega, Sir Harry - declarou. - AconseLho-o a guardar este vinho pelo menos mais um ano. É um vinho que melhorará com o tempo. Tinha meia dúzia de garrafas desta mesma colheita na minha casa da Bretanha, mas fui estúpido e bebi-o demasiado cedo.
- Diabos me levem... - gaguejou Harry - Que impudência...
- Não se preocupe - continuou o francês, sorrindo. - Podia pedir a chave da adega a William, mas não quero privá-lo do prazer de beber este vinho dentro de três ou quatro anos. Coçou a orelha e olhou para baixo, para o anel na mão de Harry.
- Tem uma bela esmeralda - declarou.
Em resposta, Harry arrancou o anel do dedo e atirou-o à cara do pirata, que o apanhou em pleno ar e o aproximou da luz.
- Nem um único defeito, o que é muito raro numa esmeralda. Contudo, não ficarei com ele. Pensando bem, Sir Harry, já o roubei o suficiente. - Com uma vénia, devolveu o anel ao marido de Dona. - Agora, cavalheiros, tenho um último pedido a fazer-lhes. Talvez pareça um pouco grosseiro, mas é necessário, atendendo às circunstâncias. Como sabem, quero regressar ao meu navio, pelo que permitir-lhes que se juntassem aos vossos companheiros dos bosques poderia, receio bem, prejudicar um pouco os meus planos. Resumindo, tenho de lhes pedir que dispam os calções e os entreguem aos meus homens. Façam o mesmo com as meias e os sapatos. - Todos o olharam enraivecidos.
- Não, pelos céus! - exclamou Eustick. - Ainda não se divertiu connosco o suficiente?
- Lamento muito - retorquiu o francês -, mas sou obrigado a insistir. A noite está quente, sabem, e o solstício foi ontem. Senhora de St. Columb, quererá fazer o favor de passar ao salão? Estes cavalheiros não gostam de se despir na sua frente em público, por muito que o desejassem fazer em privado.
Segurou a porta para Dona passar, olhou por cima do ombro para os convidados e declarou:
- Dou-lhes cinco minutos, não mais. Pierre Blanc, Jules, Luc, William... vigiem bem esses senhores, pois enquanto eles se despem Sua Senhoria e eu vamos discutir os acontecimentos do dia.
Seguiu-a para o salão e fechou a porta.
- E a si, com o seu sorriso orgulhoso - começou - sentada à cabeceira da mesa... acha que lhe devo fazer o mesmo, meu grumete?
O pirata atirou a espada para cima de uma cadeira, riu-se e estendeu os braços. Dona chegou-se a ele e pousou-lhe as mãos nos ombros.
- Porque é tão descarado? - perguntou. - Tão sem-vergonha e astuto? Não sabe que os bosques e as colinas estão cheios de homens?
- Sei, sim - respondeu.
- Então porque veio?
- Porque, em todas as minhas aventuras, as mais perigosas são em geral as de maior êxito. Para além disso, não a beijo à quase vinte e quatro horas. - Baixou a cabeça e segurou-lhe o rosto entre as mãos.
- Que foi que pensou - inquiriu Dona - quando não apareci para o pequeno almoço?
- Tive pouco tempo para pensar, porque, mal o Sol acabou de nascer, Pierre Blanc me acordou para me dar a notícia de que o La Mouette estava encalhado e a meter água. Tivemos um trabalho infernal, como deve imaginar. Depois, mais tarde, quando estávamos todos despidos até à cintura e a trabalhar, surgiu William com as suas notícias.
- Mas nessa altura não podia saber o que estava a ser planeado...
- Pois não, mas desconfiei. Um dos meus homens viu uma figura na praia, e outra nas colinas em frente. Foi então que soubemos que trabalhávamos contra o tempo. Mesmo assim, não conseguiram descobrir o La Mouette. Vigiavam o rio e os bosques, mas não desceram à enseada.
- E depois, William apareceu uma segunda vez?
- Sim, entre as cinco e as seis da tarde. Avisou-me a respeito do jantar aqui, em Navron, e foi então que decidi o que devia fazer. Disse- lho, claro, mas o ferimento provocado pelo homem escondido nos bosques, quando voltava para casa, não ajudou muito.
- Pensei muito nele, durante o jantar. Jazia na minha cama, desmaiado, sozinho...
- Sim, mas mesmo assim conseguiu arrastar-se até à janela e deixar- nos entrar, tal como tínhamos combinado. A propósito, os vossos criados estão todos encerrados na despensa onde guardam as peças de caça, amarrados costas com costas, tal como fizemos com os homens que encontrámos no Merry Fortune. Quer as suas bugigangas de volta? - Meteu a mão no bolso, para tirar as jóias, mas Dona abanou a cabeça.
- É melhor ficar com elas - disse - para se recordar de mim.
O francês não respondeu, mas olhou por cima da cabeça dela, afagando-lhe os caracóis.
- O La Mouette partirá dentro de duas horas, se tudo correr bem - afirmou. - O remendo no casco é grosseiro, mas deve aguentar até chegarmos às costas francesas.
- E o tempo? - perguntou Dona.
- O vento está bom e sopra com regularidade. Devemos chegar à Bretanha em dezoito horas, ou menos.
Dona permaneceu em silêncio e o homem continuou a tocar-Lhe no cabelo.
- Falta-me um grumete. Sabe de algum rapaz que queira navegar comigo? - Dona olhou-o, mas o francês já não sorria, afastou-se dela e pegou na espada. - Receio ter de levar William comigo. Já desempenhou o seu papel em Navron e deixou de fazer falta nesta casa. Serviu-a bem, não é verdade?
- Muito bem - confirmou Dona.
- Se não tivesse sido forçado a enfrentar aquele Eustick, talvez o deixasse ficar - prosseguiu o francês. - Agora, porém, o reconhecimento seria rápido, e Eustick enforcava-o sem escrúpulos. Para além disso, não me parece que lhe apeteça ficar ao serviço do seu marido.
Observou a sala à sua volta, com os olhos a brilharem-lhe por instantes quando pousaram no retrato de Harry, e depois encaminhou-se até à janela e abriu-a, puxando os reposteiros para o lado.
- Recorda-se da primeira noite em que jantei consigo? perguntou. - Depois ficou a olhar para o fogo na lareira e desenhei o seu retrato. Ficou zangada comigo, não é verdade?
- Não - respondeu Dona. - Não fiquei zangada. Apenas envergonhada, porque se apercebeu de demasiadas coisas.
- Vou dizer-lhe outra coisa - prosseguiu. - Nunca dará uma boa pescadora. É demasiado impaciente... e nunca deixará de se embaraçar na linha.
Ouviu-se uma pancada na porta.
- Sim? - respondeu, em francês. - Os cavalheiros fizeram o que lhes mandei?
- Sim, senhor - respondeu William, através da porta.
- Muito bem. Diz a Pierre Blanc para lhes amarrar as mãos atrás das costas e para os escoltar até aos quartos, lá em cima. Fechem as portas e dêem a volta às chaves. Não nos incomodarão durante duas horas, o que é todo o tempo de que necessitamos.
- Muito bem, senhor.
- William!
- Sim, senhor.
- Como está o teu braço?
- Um pouco dorido, senhor, mas nada de grave.
- Óptimo, porque quero que leves Sua Senhoria na carruagem até à faixa de areia que fica a três milhas de Coverak.
- Sim, senhor.
- Depois aguardas aí pelas minhas ordens.
- Compreendo, senhor.
Dona olhou o francês, intrigada, e este aproximou-se e parou na frente dela, de espada na mão.
- Que vai fazer? - perguntou-lhe.
Esperou um momento antes de responder. Deixara de sorrir e apresentava uns olhos sombrios.
- Lembra-se de como passeámos juntos na última noite, junto ao rio?
- Sim.
- E como concluímos que as mulheres se escapassem, excepto por uma hora e um dia?
- Sim.
- Esta manhã, quando trabalhava no navio e William me levou a notícia de que já não estava sozinha, compreendi que o nosso fazer-de- conta terminara, e que a enseada deixara de ser um santuário. A partir de agora, o La Mouette terá de navegar por outras águas e de descobrir novos esconderijos. Apesar de continuar a ser livre, tal como os homens que se encontram a bordo, o seu capitão permanecerá cativo.
- Que quer dizer? - inquiriu Dona.
- Quero dizer que estou ligado a si, tal como você está ligada a mim. Soube que seria assim desde o primeiro momento. Quando vim aqui, no Inverno, e me deitei lá em cima no seu quarto, com as mãos atrás da cabeça e a olhar para o seu retrato, tão sério, na parede, sorri para mim mesmo e disse: É esta e nenhuma outra. " Esperei, sem fazer nada, porque sabia que o nosso momento chegaria.
- E que mais?
- Também você - continuou -, minha descuidada e indiferente Dona, tão resistente, tão desiludida, brincando aos rapazes em Londres com o seu marido e os amigos, adivinhava que algures, e só os céus sabiam em que país ou sob que disfarce, havia alguém que fazia parte do seu corpo e da sua mente, e que sem ele estaria perdida, seria apenas uma palha soprada pelo vento.
Dona aproximou-se e tapou-lhe os olhos com as mãos.
- Tudo isso... - disse - tudo isso que sente, também eu o sinto. Todos os pensamentos, todos os desejos, todas as mudanças de disposição. Todavia, é demasiado tarde e nada podemos fazer. Já mo disse.
- Disse-lho a noite passada, quando não tínhamos preocupações e estávamos juntos, e quando a manhã se encontrava a muitas horas de distância. Em momentos como esse um homem pode permitir-se encolher os ombros ao futuro porque tem o presente nos braços, e também porque a crueldade da própria ideia faz de algum modo aumentar a delícia do momento. Quando um homem faz amor, Dona, foge ao fardo desse amor e foge dele mesmo.
- Sim, sei disso - respondeu Dona. - Sempre o soube. Mas não acontece com todas as mulheres.
- Não, não com todas. - Tirou a pulseira do bolso e colocou-lha no pulso. - Assim - prosseguiu -, quando surgiu a manhã e vi o nevoeiro na enseada e verifiquei que não se encontrava a meu lado, deparou-se-me também, não a desilusão, mas a compreensão. Fiquei a saber que me era impossível fugir, que me tornara num prisioneiro acorrentado, num calabouço muito profundo.
Dona pegou-lhe na mão e encostou-a ao rosto.
- Depois trabalhou todo o dia no navio - murmurou -, suou, afadigou-se, sem dizer nada, com a testa franzida naquela concentração que já aprendi a compreender, e então... qual foi a resposta?
O francês desviou os olhos para a janela.
- A resposta... - declarou lentamente - continuava a ser a mesma. De um lado estava Dona St. Columb, esposa de um baronete inglês, mãe de dois filhos, e do outro um francês, um fora-da-lei, um ladrão do seu país e um inimigo dos seus amigos. Se há uma resposta, deve ser sua, Dona, e não minha.
Atravessou mais uma vez o salão em direcção à janela e olhou para ela por cima do ombro.
- Foi por isso que pedi a William que a leve à enseada perto de Coverack, para que possa decidir o que deseja fazer. Se eu, Pierre Blanc e os outros regressarmos em segurança ao navio através do cordão de homens que se encontra nos bos ques e içarmos as velas sem demoras, saindo com a maré, estaremos em frente de Coverack ao nascer do Sol. Lançarei um bote à água para saber a sua resposta. Se não vir sinais do La Mouette quando nascer o Sol, saberá que alguma coisa correu mal com o meu plano... e então Godolphin talvez venha a ter a satisfação de enforcar o odiado francês na mais alta árvore do seu parque.
Sorriu e passou para o terraço.
- Amei-a, Dona - declarou -, em quase todos os momentos, mas muito em particular quando se atirou para o chão no convés do Merry Fortune, vestida com os calções de Pierre Blanc, com sangue na cara e a chuva a escorrer-lhe pela camisa rasgada, e olhei para si, ri-me, e uma bala passou a assobiar por cima da sua cabeça.
Virou-lhe as costas e desapareceu na escuridão. Dona ficou parada, imóvel, com as mãos juntas na frente do corpo, enquanto os minutos iam passando. A seguir apercebeu-se finalmente, como alguém que acorda de um sonho, de que se encontrava sozinha, que a casa permanecia silenciosa e que tinha nas mãos os brincos de rubis e o pendente. O vento entrou pela janela aberta e apagou as velas da parede. Quase sem dar pelo que fazia, Dona avançou, fechou e trancou a janela, e depois dirigiu-se para a porta que dava para a casa de jantar e escancarou-a.
Lá estavam os pratos na mesa, as taças de frutas empilhadas, as pratas e os copos. As cadeiras tinham sido puxadas para trás como se os convidados se houvessem levantado depois de acabarem de jantar, e havia um estranho ambiente de abandono em volta da mesa, como se se tratasse de uma natureza-morta desenhada pelo pincel de um amador, em que faltasse realidade à comida, aos frutos e ao vinho entornado. Os dois spaniels estavam deitados no chão, e a Duquesa", erguendo o focinho de entre as patas, olhou para cima, para Dona, e soltou um queixume de incerteza. Um dos homens do La Mouette devia ter apagado as velas, mas partira à pressa antes de as extinguir a todas. Havia três que continuavam a arder, com a cera a pingar para o chão, emitindo uma luz sinistra e misteriosa.
Uma delas apagou-se, e ficaram apenas duas a tremeluzir e a dançar na parede. Os homens do La Mouette tinham feito o seu trabalho e haviam-se retirado. Escapuliam-se agora por entre os bosques para o navio que esperava na enseada, acompanhados pelo seu capitão, de espada em punho. Nos estábulos, o relógio bateu uma hora, soltando uma nota alta e aguda que parecia o eco de um sino. Lá em cima, sem roupas e com os punhos amarrados, os hóspedes de Navron House deviam contorcer-se no chão, impotentes e enraivecidos. Todos excepto Harry, que estaria a dormir, ressonando, de cabeleira à banda e boca aberta, pois nem a maior contrariedade do mundo manteria um St. Columb fora da cama depois de ter jantado tão bem. William deveria estar a tratar da ferida, no seu pró prio quarto, e Dona sentiu uma mordidela na consciência, pois esquecera- se dele. Virou-se para a grande escadaria e agarrou no corrimão quando um som vindo do alto a fez olhar para a galeria. Lá em cima, olhando-a com os seus olhos estreitos, que não sorriam, estava Rockingham com um corte na face e uma faca na mão.
Capítulo vigésimo
O tempo que Rockingham ficou parado a olhá-la pareceu-Lhe uma eternidade. Só depois começou a descer lentamente, sem nunca lhe tirar os olhos do rosto, e Dona recuou na sua frente, procurando a mesa com uma das mãos e sentando-se na sua cadeira, observando-o. Vestia apenas a camisa e os calções, e Dona podia agora ver que tinha sangue na camisa e na faca que empunhava. Percebeu o que se passara. Algures, num dos corredores escuros, jazia um homem mortalmente ferido, ou até morto, e podia tratar-se de um dos tripulantes de La Mouette, ou de William. A luta desenrolara-se em silêncio e na escuridão, enquanto se deixara ficar no salão, sozinha e a sonhar, com os rubis nas mãos. Rockingham parou ao fundo das escadas e continuou sem dizer nada, mas vigiava-a com os estreitos olhos de gato, mas depois acabou por se sentar na cadeira de Harry, na outra extremidade da mesa, e pousou a faca no prato que estava à sua frente.
Por fim, quando falou, a familiaridade da sua voz pareceu estranha quando comparada com o ar alterado, pois o homem que enfrentava não era o Rockingham com quem se divertira em Londres, ao lado de quem cavalgara em Hampton Court, e que desprezara por o considerar um degenerado e um libertino. Este homem tinha algo de muito frio, de diabólico, e dali em diante ia ser um inimigo que lhe desejaria sofrimento e dor.
- Vejo - disse - que lhe devolveram as jóias. Dona encolheu os ombros sem responder, pois aquilo que o homem pudesse ter adivinhado era sem consequências. A única coisa que interessava era saber qual o plano que tinha em mente, e quais as atitudes que tomaria.
- Que foi que deu em troca das jóias?
Dona começou a recolocar os rubis nas orelhas, observando-o por cima do braço enquanto o fazia. Depois, porque o olhar do homem passara a ser uma coisa que odiava, e que até poderia vir a temer, respondeu-lhe:
- Ficou muito sério de repente, Rockingham. Pensei que as brincadeiras desta noite o tivessem divertido.
- Tem razão - confirmou -, divertiram-me bastante. O facto de doze homens poderem ter sido desarmados e despidos, em tão pouco tempo, e por um número tão pequeno de brincalhões, apresenta uma curiosa semelhança com as nossas partidas em Hampton Court. Porém, não acho divertido que Dona St. Columb tivesse olhado para o chefe dos brincalhões de uma determinada maneira... uma maneira que só pode significar uma coisa.
Dona colocou os cotovelos na mesa e pousou o queixo sobre as mãos.
- E então? - perguntou.
- Então... compreendi muita coisa que me andava a intrigar desde que aqui cheguei. Aquele seu criado, que era evidentemente um espião do francês. A camaradagem entre os dois, porque sabia que o homem era um espião. Todos aqueles passeios pelos bosques, o ar esquivo dos seus olhos, que nunca lhe notara antes, sim, é verdade, esquivos para comigo e para com Harry, para com todos os homens menos um, o homem que vimos esta noite. - Falava num tom baixo, pouco mais do que um murmúrio, sempre a olhá-la com ódio. - Então? - perguntou. - Nega-o?
- Não nego nada - retorquiu Dona.
Rockingham pegou na faca que estava sobre o prato e começou a traçar linhas com ela, como se estivesse distraído.
- Sabe - comentou - que podia ser presa por causa disto, e até talvez enforcada, se a verdade se viesse a saber?
Dona voltou a encolher os ombros e a não responder.
- Não seria um fim muito agradável para Dona St. Columb - continuou Rockingham. - Nunca esteve no interior de uma prisão, pois não? Nunca sentiu o cheiro e a porcaria, nunca provou o pão escuro e a desfazer-se, nem bebeu uma água cheia de espuma. Depois... vem a sensação da corda em volta do pescoço, a apertar-se e a asfixiá-la. Gostaria de uma coisa dessas, Dona?
- Meu pobre Rockingham - retorquiu Dona, devagar -, posso imaginar todas essas coisas melhor do que o senhor as consegue descrever. Qual é o seu objectivo? Quer assustar- me? Não está a consegui-lo.
- Pensei que seria sensato recordar-lhe o que pode vir a acontecer.
- Tudo isso... - replicou Dona - só porque Lord Rockingham imaginou que sorri para um pirata quando este me pediu as jóias. Conte essa história a Godolphin, a Eustick, ou até ao próprio Harry... e dir-lhe-ão que enlouqueceu.
- É possível... se o seu francês se encontrasse no mar alto, e a senhora estivesse confortavelmente instalada em Navron House. Porém, supondo que o seu francês não estava no mar alto, supondo que era apanhado, amarrado e trazido perante si, e que nós nos entretivéssemos um pouco com ele, tal como há cem anos se entretinham com os prisioneiros, tendo-a a si, Dona, como espectadora? Creio que acabaria por ceder.
Dona viu-o mais uma vez tal como o imaginara naquela manhã, como um gato agachado entre as ervas, com uma ave presa nas garras, tão macias e acolchoadas. Compreendeu, quando a sua memória reviu o passado, que sempre suspeitara da existência, naquele homem, de uma qualidade de deliberada e cruel depravação que, por causa da imprudente ligeireza dos tempos em que viviam, se encontrava bem disfarçada.
- Gosta de dramatizar... - declarou Dona - mas os dias dos polegares torcidos e do estrado já terminaram. Já não queimamos heréticos na fogueira.
- Talvez não o façamos aos nossos heréticos - respondeu Rockingham -, mas os piratas são enforcados, afogados e esquartejados, e os seus cúmplices sofrem o mesmo destino.
- Muito bem, uma vez que me considera uma cúmplice, faça o que entender. Vá lá acima e desamarre os convidados que jantaram aqui esta noite. Acorde Harry do seu sono de bêbado. Chame os criados. Prepare os cavalos, mande buscar soldados e armas. Depois, quando conseguir capturar o seu pirata, poderá enforcar-nos aos dois, lado a lado, na mesma árvore.
O homem não respondeu. Olhava-a da outra ponta da mesa, equilibrando a faca na mão.
- Sim - disse alguns instantes depois -, acredito que estivesse disposta a passar por tudo isso, com alegria e orgulho.
Não se importaria de morrer neste momento, porque conseguiu finalmente aquilo que queria da vida. Não é verdade?
Dona devolveu-lhe o olhar e soltou uma gargalhada.
- Sim - afirmou -, é verdade.
Rockingham ficou muito branco, e, por contraste, o corte na face tornou-se de um vermelho mais vivo, alterando-lhe a forma da boca, numa estranha careta.
- E poderia ter sido eu... - murmurou. - Poderia ter sido eu.
- Nunca - retorquiu Dona. - Nunca nesta vida, posso jurar-lho.
- Se não tivesse saído de Londres, se não tivesse vindo para aqui, para Navron, teria sido eu. Por aborrecimento, por ociosidade, por indiferença, ou até por desprezo... poderia ter sido eu.
- Não, Rockingham, nunca.
Rockingham levantou-se lentamente, ainda a equilibrar a faca na mão, deu um pontapé no cão que estava debaixo dos seus pés e enrolou as mangas da camisa até acima dos cotovelos.
Dona também se levantou, agarrada aos lados da cadeira, com a tenebrosa luz das velas a brilhar- lhe sobre o rosto.
- Que vai fazer, Rockingham? - perguntou. Pela primeira vez, o homem sorriu, empurrou a cadeira para trás e pousou uma das mãos na esquina da mesa.
- Creio... - sussurrou - que a vou matar.
Nesse mesmo instante Dona atirou-lhe, direito à cara, com o copo de vinho que se encontrava junto da sua mão, cegando-o por meio segundo, enquanto o vidro se estilhaçava no chão. Rockingham saltou para ela, do outro lado da mesa, mas Dona esquivou-se, agarrou numa das pesadas cadeiras a seu lado, levantou-a e atirou-a para cima das pratas e das frutas que se encontravam na mesa. Rockingham foi atingido por uma das pernas da cadeira, ofegou com a dor, empurrou a cadeira para o chão, manteve a faca levantada por um instante, bem acima do ombro, e lançou-a direita à garganta de Dona. A faca atingiu o pendente de rubi que usava em volta do pescoço, partiu-o em dois, e Dona sentiu o aço frio a deslizar, picando-lhe a pele, e a ficar preso nas pregas do vestido. Horrorizada e dorida, tentou apanhar a faca, mas o homem caiu-lhe em cima antes de o conseguir, com uma das mãos a puxar-lhe o pulso para trás das costas e outra a tapar- lhe a boca, sufocando-a.
Sentiu-se a cair de encontro à mesa, com os copos e os pratos a precipitarem-se no chão, e algures por debaixo dela encontrava-se a faca que desejava agarrar. Os cães ladravam, furiosamente excitados, imaginando que se tratava de um qualquer novo jogo inventado para seu divertimento, e saltavam para o homem, arranhando-o com as patas, pelo que Rockingham foi forçado a virar-se por um instante e a pontapeá-los para longe, aliviando a pressão que lhe aplicava na boca.
Dona mordeu-Lhe a palma da mão e atirou-lhe o punho esquerdo contra os olhos. Para poder apertar-lhe a garganta com as duas mãos, Rockingham largou-Lhe o pulso que lhe mantivera dobrado debaixo do corpo, e Dona sentiu-lhe a pressão dos polegares na traqueia, asfixiando-a. A mão direita debatia-se em busca da faca e de repente os seus dedos cerraram- se em torno dela. Segurando o frio punho, atirou a faca para cima, por baixo do sovaco de Rockingham. Ficou horrorizada ao sentir a carne macia a ceder sob a lâmina. Fora surpreendentemente fácil e quente, com um sangue espesso a correr-lhe rapidamente sobre a mão. Rockingham suspirou de um modo prolongado e estranho, deixando de lhe pressionar a garganta, e caiu de lado sobre a mesa, por entre os copos. Dona empurrou-o para o afastar e pôs-se novamente de pé, de joelhos a tremerem e com os cães a ladrarem loucamente em volta das suas pernas. Rockingham também se arrastava sobre a mesa, com os olhos vidrados postos nela, com uma das mãos a carregar no ferimento por baixo do braço e a outra a pegar num grande jarro de prata que ainda permanecia em cima da mesa, com o qual poderia esmagar-lhe o rosto e derrubá-la. Porém, precisamente no momento em que avançava para ela, a última vela tremelicou na parede e apagou- se, deixando-os na escuridão.
Dona apalpou o rebordo da mesa com as mãos e foi  descobrindo o caminho à sua volta, fora do alcance de Rockingham, ouvindo-o a tentar encontrá-la na sala obscurecida e a tropeçar numa cadeira que se encontrava no meio do caminho. Dona encaminhou-se para a escada, pois podia ver uma luz pálida vinda da janela da galeria. Encontrou as escadas, o corrimão, e começou a subir, com os cães a ladrarem-lhe aos calcanhares. De algures, lá de cima, chegavam-lhe o som de gritos e o bater de punhos numa porta, mas tudo aquilo era uma confusão, era um sonho que não tinha qualquer ligação com a batalha que era apenas sua. Olhando para trás, por cima do ombro, viu Rockingham na base das escadas, não de pé como anteriormente, mas sim trepando para ela a quatro patas, como os cães que a seguiam. Atingiu o topo das escadas e os gritos e murros tornaram-se mais altos. Por entre os gritos, ouvia a voz de Godolphin e também a de Harry, enquanto os cães se juntavam ao clamor. Do lado do quarto das crianças chegavam-lhe os guinchos agudos e assustados dos filhos, repentinamente acordados. Foi nesse momento que finalmente sentiu ira e não medo. Foi nesse momento que se tornou resoluta, calma e fria.
A luz cinzenta da janela, onde a Lua se debatia por entre as nuvens, brilhava fraca sobre um escudo pendurado na parede, troféu de um qualquer St. Columb há muito morto. Dona arrancou o escudo, enferrujado pela idade, do seu lugar na parede, e o peso fê-la cair de joelhos. Rockingham continuava a subir. Podia ver-lhe as costas encostadas ao corrimão, numa pausa para respirar, e ouvia-lhe as mãos a rasparem nos degraus e o som rápido da respiração. Quando Rockingham virou a curva da escada e parou por instantes, virando a cabeça para a procurar na escuridão, Dona atirou- lhe com o escudo, acertando-lhe em cheio no rosto, e o homem cambaleou e caiu, rebolando uma e outra vez pela escada abaixo, embatendo no chão de pedra com o escudo em cima do corpo. Os cães precipitaram-se atrás dele, excitados e ladrando, encantados com a brincadeira, e farejaram o corpo que jazia no chão. Dona ficou imóvel. Esgotara todas as suas sensações, tinha uma grande dor por detrás dos olhos, ainda lhe soava nos ouvidos o agudo guinchar de James, e começava a ouvir passos, uma voz que a chamava, aflita e receosa, bem como o ruído de madeira a estalar. Talvez fosse Harry, ou Godolphin, ou Eustick, deitando abaixo a porta do quarto em que se encontravam encerrados. Parecia-lhe que eram coisas de muito pouca importância porque estava demasiado cansada para se preocupar com elas. Queria jazer na escuridão, dormir com o rosto escondido entre as mãos, e recordou-se que algures, ao longo daquele corredor, ficava o seu quarto, a cama, onde se poderia esconder e ser esquecida. Num local qualquer do rio encontrava-se um navio chamado La Mouette, e o homem que amava estava agora ao leme, levando o navio para o alto mar. Prometera dar-lhe uma resposta ao raiar do dia, e esperar por ele na pequena saliência de areia que penetrava no mar. William iria levá-la lá, o fiel William, haveriam de descobrir o caminho através dos campos, na escuridão, e quando lá chegassem o navio lançaria um bote, tal como ele dissera. Pensou na costa da Bretanha como a vira outrora, dourada ao nascer do Sol, com rochas aguçadas e avermelhadas como na costa do Devon. As ondas brancas atiravam-se para a areia e a espuma provocava um ligeiro nevoeiro nas falésias, cujo odor se misturava com o cheiro quente da terra e da vegetação.
Haveria uma casa que nunca vira, a que ele a levaria, e tocaria nas paredes cinzentas com as mãos. Naquele momento queria dormir e sonhar com essas coisas, deixar de pensar nas velas que pingavam na casa de jantar, nos vidros estilhaçados e nas cadeiras partidas, e na cara de Rockingham quando a faca lhe tocara nas carnes. Queria dormir, e de repente pareceu-lhe que já não se encontrava de pé, que ia cair tal como Rockingham fizera, e a escuridão abateu-se sobre ela e cobriu-a, e havia vento a soprar nos seus ouvidos...
De certeza que fora apenas muito tempo depois que as pessoas tinham aparecido, debruçando-se sobre ela, pegando-lhe com as mãos e transportando-a. Alguém lhe molhou o rosto e a garganta e lhe colocou almofadas debaixo da cabeça. Havia muitas vozes à distância, vozes de homens, a chegada e a partida de passos pesados, e talvez cavalos no pátio, no exterior da casa. Ouviu-lhes os cascos sobre o empedrado. Uma vez, também ouviu o relógio bater as três horas.
Muito ao de leve, no fundo da sua mente, havia qualquer coisa a sussurrar: Vai estar à minha espera na faixa de areia, e eu estou aqui deitada, não me posso mexer e não posso ir ter com ele. " Tentou levantar-se da cama mas não tinha forças. Ainda era escuro, e do lado de fora da janela chegava-lhe o fino tamborilar da chuva. A seguir devia ter adormecido, ter passado pelo pesado sono da exaustão, porque quando abriu os olhos já era dia, as cortinas tinham sido puxadas para o lado e Harry estava ajoelhado a seu lado, a mexer-lhe no cabelo com as grandes mãos desajeitadas. Espreitava-lhe para o rosto, com preocupação nos olhos azuis, e gaguejava como uma criança.
- Estás bem, Dona? - perguntou. - Estás melhor, estás boa?
Dona olhou-o sem compreender, ainda com uma dor abafada por detrás dos olhos, e pensou em como era ridículo que Harry se tivesse ajoelhado ali, em como era estúpido, e sentiu uma espécie de vergonha por ele o ter feito.
- Rock morreu - disse Harry. - Encontrámo-lo morto, no chão, com o pescoço partido. Rock... o melhor amigo que jamais tive. - As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto e Dona continuou a olhá-lo. - Salvou-te a vida, sabes... - prosseguiu Harry. - Deve ter lutado sozinho contra aquele diabo, sozinho na escuridão, enquanto fugias cá para cima, para nos avisar. Minha pobre beleza...
Dona já não o ouvia. Sentou- se e olhou para a luz do dia que entrava em torrentes pela janela.
- Que horas são? - perguntou. - Há quanto tempo nasceu o Sol?
- O Sol?... - ecoou Harry, surpreendido. - Oh, é quase meio-dia, suponho. E então? Vais descansar mais, não vais? Tens de o fazer, depois de tudo por que passaste ontem à noite.
Dona pousou as mãos sobre os olhos e tentou pensar. Era meio-dia, o navio tinha-se ido embora, uma vez que não  poderia esperar depois do nascer do Sol. Estivera a dormir na sua cama enquanto o pequeno bote abordava a faixa de areia, para a encontrar vazia...
- Tenta voltar a dormir, minha querida - disse Harry.
- Tenta esquecer esta amaldiçoada noite. Nunca mais voltarei a beber, juro-te. A culpa é minha, já devia ter acabado com tudo isso. No entanto, prometo-te que terás a tua vingança. Apanhámo-lo, sabes, agarrámos aquele maldito!
- Que queres dizer? - perguntou Dona, devagar. - De que estás a falar?
- Ora, do francês, é claro! - respondeu. - Do diabo que matou Rockingham e que também te teria morto a ti. O navio foi-se embora, com o resto da tripulação, mas apanhámos o chefe, o pirata.
Dona continuou a mirá-lo, sem compreender, confusa, como se Lhe tivessem batido, e Harry, ao ver-lhe os olhos, ficou perturbado e começou mais uma vez a afagar-lhe o cabelo e a beijar-lhe os dedos, murmurando:
- Minha pobre querida, que confusão de noite, que coisa terrível! - Calou-se por um instante para a observar, corou, um pouco confundido, sempre a segurar-lhe nos dedos, e porque o desespero que via nos olhos de Dona era algo de sombrio e novo, era uma coisa que não compreendia, perguntou-lhe com as maneiras tímidas e embaraçadas de um rapaz: - O francês, aquele pirata... não te molestou, pois não, Dona?
Capitulo vigésimo primeiro
Passaram-se dois dias, que nasceram e morreram, tempo sem horas nem minutos, em que se vestiu, e comeu, e saiu para o jardim, sempre possuída por uma estranha sensação de irrealidade, como se não fosse ela quem se movesse, mas sim uma outra mulher cujas palavras não compreendia. Os pensamentos não Lhe surgiam na mente, era como se parte dela ainda se encontrasse a dormir e o entorpecimento se espalhasse do cérebro para o corpo, pelo que não sentia calor quando o Sol aparecia entre duas nuvens e brilhava por um instante, nem se sentia arrefecer quando soprava uma brisa fresca.
Houve uma vez em que os filhos correram para ela para a saudarem, com James a trepar-lhe para o joelho e Henrietta a dançar na sua frente e a dizer:
- Apanharam um pirata mau e Prue diz que ele vai ser enforcado.
Teve consciência do rosto de Prue, pálido e abatido, e com algum esforço conseguiu recordar-se que se tinham verificado mortos, claro, em Navron, e que naquele momento Rockingham deveria jazer numa igreja obscurecida, a aguardar o funeral. Havia um nevoeiro cinzento por cima daqueles dias, tal como sobre os domingos de que se recordava da sua infância, quando os puritanos tinham proibido as danças ao ar livre. Houve um momento em que o prior da igreja de Helford apareceu e falou com ela, com um ar muito grave, dando-lhe as condolências pela perda de um tão grande amigo. Mais tarde passeou a cavalo, com Harry a seu lado, assoando-se e falando numa voz contida que não parecia dele. Fazia-lhe uma companhia permanente, humilde e ansioso por agradar, e estava sempre a perguntar-lhe se precisava de alguma coisa, de uma capa, de um cobertor para os joelhos, e quando Dona abanava a cabeça, desejando que a deixasse em paz para se poder sentar e ficar a olhar para o vazio, afirmava uma vez mais até que ponto a amava, e repetia a promessa de não voltar a beber, porque fora por ter bebido de mais na noite fatal que permitira que os surpreendessem daquela maneira. Se não tivesse sido pelo seu descuido e indolência, o pobre Rockingham ainda estaria vivo.
- Também vou deixar de jogar - disse. - Nunca mais tocarei numa carta, venderei a casa na cidade e iremos viver para Hampshire, perto da tua antiga casa, onde nos encontrámos pela primeira vez. Viverei finalmente a vida de um cavalheiro do campo, contigo e com as crianças, e ensinarei James a montar e a caçar com o falcão. Que tal achas a ideia?
Dona não respondeu e continuou a olhar em frente.
- Houve sempre um ar de tristeza em volta de Navronprosseguiu. - Lembra-me de ter pensado nisso quando ainda era rapaz. Nunca me senti bem aqui, o ar é demasiado suave. Não nos faz bem, nem a mim nem a ti, querida. Iremos embora logo que este assunto esteja arrumado. Ah, se conseguíssemos pôr as mãos naquele maldito criado espião, enforcávamos os dois ao mesmo tempo. Meu Deus, quando penso o perigo que correste, sabes, por teres confiado nele! - Assoou-se outra vez, sacudindo a cabeça. Um dos spaniels aproximou-se dela a abanar-se, lambeu-lhe as mãos, e de repente Dona recordou-se dos latidos furiosos em plena noite, da excitação, e então, num clarão repentino, a sua mente obscurecida ganhou vida outra vez, ficou desperta e horrivelmente consciente. O coração começou a martelar-Lhe com força, sem motivo, e a casa, as árvores, a figura de Harry, sentado a seu lado, ganharam contornos e formas. Harry falava e Dona agora já sabia que cada uma das palavras que ele pronunciava podia ser de grande importância, que não deveria deixar escapar nada, pois precisava de fazer planos e o tempo ganhara um valor desesperado.
- O pobre Rock deve ter levado a melhor com o criado desde o primeiro momento - dizia. - Havia sinais de luta no quarto, sabes, e um rasto de sangue ao longo do corredor, onde acabava de repente. Não encontrámos vestígios do homem. Deve ter conseguido escapar e talvez tenha querido juntar-se aos outros patifes do navio, do que duvido. O mais certo é  terem utilizado repetidamente uma zona qualquer do rio, para se esconderem. Por Deus, Dona, se tivéssemos sabido disso!
Dona falou finalmente, com uma voz que soou estranha até para ela própria, porque as palavras eram cuidadosas, como uma lição aprendida de cor.
- Como foi que o apanharam? - perguntou. O cão voltou a lamber-Lhe a mão, mas Dona já não dava por isso.
- Referes-te ao maldito do francês? - inquiriu Harry.
- Bom, estávamos à espera que nos pudesses contar qualquer coisa a respeito da primeira parte, porque estavas com ele, não estavas, no salão. Porém, pareceste tão confusa e estranha quando to perguntei. Disse para Eustick e para os outros: Não, que diabo, deixemo-la, passou por demasiadas coisas. " Se não querias contar nada, pronto, era assim mesmo, não havia nada a fazer.
Dona dobrou as mãos sobre o colo e explicou:
- Devolveu-me os brincos e foi-se embora.
- Ah, bom... se foi só isso. No entanto, sabes, deve ter voltado para trás e tentado seguir-te ao primeiro andar. Talvez não te recordes de ter desmaiado no corredor que dá para o teu quarto. Fosse como fosse, Rockingham deveria encontrar-se aí nessa altura, e atirou-se ao patife quando percebeu o que ele pretendia. Na luta que se seguiu (pela tua segurança, Dona, não te podes esquecer disso), esse querido amigo perdeu a sua própria vida.
Dona aguardou um momento, observando a mão de Harry, que afagava o cão.
- E depois? - perguntou, desviando a cara e olhando para o outro lado do relvado.
- Ah, o resto devemo-lo também a Rock! O plano foi dele, desde o princípio. Sugeriu-o a Eustick e a Godolphin quando os encontrámos em Helston. Coloquem os vossos homens nas praias", disse, com barcos já preparados. Se houver um navio escondido no rio, poderão apanhá-lo quando passar por eles durante a noite, na maré alta. " Porém, em vez de apanharmos o navio, apanhámos o chefe dos piratas.
Riu-se, puxando as orelhas do cão e fazendo-lhe cócegas no lombo.
- Sim, Duquesa", apanhámos o chefe, que vai ser enforcado por pirataria e assassínio, não é verdade? As pessoas voltarão a dormir descansadas.
Dona ouviu-se pronunciar, numa voz clara e nítida:
- Está ferido? Não compreendo...
- Ferido? Por Deus, não! Vai ser enforcado sem um único arranhão, e ficará a saber como é. A luta aqui em cima atrasou-o, sabes, bem como aos outros três. Dirigiram-se para um ponto um pouco abaixo de Helford, para se juntarem ao navio, no meio do rio. Deve ter dito ao resto da tripulação que levantassem o ferro enquanto se encontrava na casa. Deus sabe como o conseguiram, mas a verdade é que o fizeram. Quando Eustick e os outros desceram ao ponto combinado, lá estava o navio no meio do rio e os homens a nadarem para ele, excepto o chefe, que permanecia na praia, frio como uma lâmina de aço, lutando contra dois dos nossos ao mesmo tempo enquanto os dele se escapavam. Gritava-lhes por cima dos ombros, naquela sua língua estranha, e, apesar de os barcos terem sido lançados à água da praia, como tinha sido combinado, fizeram-no demasiado tarde para apanharem os patifes ou o navio. Saiu do Helford com a maré a empurrá-lo e com o vento a favor. O francês ficou a vê-lo afastar-se e, por Deus, ria-se à gargalhada, segundo me contou Eustick.
Enquanto Harry falava, a Dona parecia-lhe estar a ver o rio no ponto em que este se alargava e encontrava com o mar, e conseguia ouvir o vento no cordame de La Mouette, como já o ouvira antes. A fuga seria uma repetição de todas as fugas anteriores, só que desta vez navegavam sem o capitão, desta vez iam sozinhos. Pierre Blanc, Edmond Vacquier e os outros tinham-no deixado ali na praia porque ele lhes pedira que o fizessem, e ela adivinhou quais teriam sido as suas palavras enquanto, de pé, enfrentava os seus inimigos e eles nadavam para o barco. Salvara a tripulação, salvara o navio, e naquele preciso momento, na prisão em que se encontrava, o seu cérebro calmo e despreocupado devia estar a trabalhar e a planear um novo método de fuga. Dona compreendeu que já não se sentia nem confusa nem assustada, porque o modo como o haviam capturado matara todo o medo que existira dentro dela.
- Para onde o levaram? - perguntou, levantando-se e atirando para o chão o agasalho que Harry lhe colocara sobre os ombros. Harry disse-lhe que era George Godolphin quem o tinha, fortemente guardado, e que o iam mandar para Exeter ou para Bristol dentro de quarenta e oito horas, quando chegasse uma escolta.
- E depois?
- Bom, depois enforcam-no, Dona, a não ser que Eustick, George e os restantes poupem esse trabalho aos servidores de Sua Majestade, e o enforquem ao meio-dia, como uma ameaça para a população.
Entraram na casa e Dona parou no ponto em que o francês se despedira dela, e inquiriu:
- Podem fazê-lo, de acordo com a lei?
- Não, talvez não - disse Harry -, mas não me parece que Sua Majestade nos incomode por causa disso.
Então, pensou Dona, não tinha tempo a perder e havia muito que fazer. Recordou-se das palavras que o ouvira dizer sobre como as acções mais audaciosas eram frequentemente as de maior êxito. Era um conselho que iria repetir continuamente para si mesma durante as horas seguintes, pois se havia uma situação aparentemente sem solução e sem esperança, então essa era a da salvação do francês.
- Estás boa outra vez, não estás? - perguntou Harry ansioso, passando-lhe um braço em volta da cintura. - Creio que o que te fez actuar de um modo tão estranho, nestes dois dias, foi o choque da morte do pobre Rock. Foi isso, não foi?
- Talvez - respondeu Dona. - Não sei, e não interessa. Agora já estou bem, não precisas de ficar tão ansioso.
- Quero ver-te bem - repetiu. - É tudo o que me interessa, ver-te bem e feliz. - Olhou para baixo, para ela, com olhos humildes de adoração, e tentou, desajeitadamente, pegar-Lhe na mão. Depois perguntou:
- Então, vamos para o Hampshire?
- Sim - retorquiu Dona. - Sim, Harry, vamos para o Hampshire. - Sentou-se no banco baixo, em frente da lareira, onde as chamas não ardiam, porque se estava em pleno Verão, e ficou a olhar para o lugar onde elas se deveriam encontrar, enquanto Harry, já esquecido que Navron fora uma casa de morte, dizia:
- Olá, Duque", olá Duquesa", a vossa dona diz que irá connosco para o Hampshire. Vamos, busquem, vão buscar!
Era imperativo ver Godolphin, falar com ele e persuadi-lo a permitir-lhe um encontro a sós com o prisioneiro. Essa parte não seria difícil porque Godolphin era estúpido. Podia lisonjeá-lo e depois, durante o encontro, poderia passar uma arma, uma faca ou uma pistola, se a conseguisse arranjar, e era tudo, porque não podia ser ela a escolher o método da fuga.
Dona e Harry jantaram tranquilamente, no salão, em frente da janela aberta, e pouco depois Dona subiu para o quarto, alegando cansaço, e Harry teve o bom senso de não lhe dizer nada e de a deixar sozinha.
Quando se despiu e meteu na cama, com a cabeça repleta de ideias sobre o encontro com Godolphin, ouviu uma ligeira batida na porta. Sentindo o coração a cair-Lhe aos pés, pensou que certamente não seria Harry, com os seus novos modos de penitente. Não esta noite. Porém, como não respondesse, esperando que Harry a julgasse a dormir, a batida soou outra vez. A seguir o fecho girou e surgiu Prue, de camisa de noite, com uma vela na mão, e Dona verificou que a ama das crianças tinha os olhos vermelhos e inchados de chorar.
- O que é? - perguntou, sentando-se imediatamente.
- É James?
- Não, minha senhora, - murmurou Prue. - As crianças estão a dormir. É porque... tenho uma coisa para Lhe contar, minha senhora. - Começou a chorar outra vez, esfregando os olhos com a mão.
- Entre e feche a porta - pediu Dona. - Que se passa, e porque é que está a chorar? Partiu alguma coisa? Não me vou zangar...
A rapariga continuou a chorar, olhando em volta. Como se receasse que Harry ali estivesse e a pudesse ouvir, sussurrou, por entre as lágrimas:
- É a respeito de William, minha senhora. Fiz uma coisa muito má.
Oh, céus", pensou Dona, foi seduzida pelo William enquanto estive a bordo do La Mouette, e agora, como ele se foi, está envergonhada e com medo, pensa que irá ter um filho e que a vou despedir. "
- Não tenha medo, Prue, que não me voú zangar consigo - disse baixinho. - Qué é isso; a respeito do William? Pode contar-me, sabe, que eu compreenderei.
 Foi sempre muito bom para mim - explicou Prue  e muito delicado comigo e com as crianças enquanto a senhora esteve doente. Depois de os meninos adormecerem, costumava fazer-me companhia enquanto eu costurava, contando-me coisas dos países que visitara, e que eu achava muito interessantes.
- Calculo que sim - comentou Dona. - Até eu as acharia interessantes.
- Nunca pensei - continuou a rapariga, de novo entre soluços - que tivesse alguma coisa a ver com estrangeiros, ou com esses terríveis piratas de que ouvimos falar. Não tinha modos grosseiros, pelo menos para comigo.
- Pois não - concordou Dona. - Suponho que não tinha.
- Sei que fiz muito mal, minha senhora, em não ter contado a Sir Harry e aos outros cavalheiros, na noite em que houve toda aquela terrível confusão e se precipitaram para fora dos quartos, e em que Lord Rockingham foi morto, mas... não tive coragem para o entregar, minha senhora. Estava tão fraco com a perda de sangue, e tão branco como um fantasma, que não fui capaz. Se o vierem a descobrir batem-me e mandam-me para a prisão, mas William disse que eu lhe devia contar o que se passou.
Ficou parada, a torcer as mãos e com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
- Prue - disse Dona -, que está a tentar dizer-me?
- Que naquela noite escondi William no quarto das crianças, minha senhora, depois de o encontrar no corredor com uma ferida num braço e outra por detrás da cabeça. Disse-me que Sir Harry e os outros senhores o matariam se o encontrassem, que o pirata francês era o seu amo, e que se lutara em Navron naquela noite. Assim, minha senhora, em vez de o entregar, lavei-lhe as feridas e pus- Lhe ligaduras, e fiz-Lhe uma cama no chão, ao lado das crianças. Depois do pequeno almoço, quando os senhores andavam todos à procura dele e dos outros piratas, deixei-o sair pela porta lateral, e ninguém sabe disso excepto a senhora e eu.
Assoou-se ruidosamente e preparava-se para começar a chorar outra vez, mas Dona sorriu-lhe, inclinou-se para a frente e deu-lhe uma palmadinha num ombro, dizendo:
- Está tudo bem, Prue. Foi uma boa rapariga, ao contar-me isso, e não falarei no assunto a ninguém. Também gosto de William e ficaria muito triste se lhe acontecesse algo de mal. Porém, quero perguntar-te uma coisa. Onde está ele, agora?
- Quando acordou disse qualquer coisa a respeito de Coverack, minha senhora, e perguntou por si. Disse-Lhe que a senhora estava na cama, muito chocada e exausta, porque Lord Rockingham tinha morrido durante a noite. Pareceu ficar a pensar nisso durante um bocado, e depois, quando lhe tratei novamente as feridas, disse-me que tinha amigos em Gweek que lhe dariam abrigo e não o trairiam, e que estaria lá se a senhora desejasse mandar-lhe algum recado.
- Em Gweek? - perguntou Dona. - Muito bem, Prue. Quero que volte para a cama, que não pense mais no assunto, e que não volte a falar nele, nem comigo nem com ninguém. Continue a proceder como sempre, e trate bem das crianças. Está bem, Prue?
- Sim, minha senhora - respondeu a rapariga fazendo uma vénia, com as lágrimas ainda à superfície. Saiu do quarto e regressou para junto das crianças. Dona sorriu para si mesma na escuridão, porque William, o fiel William, continuava à mão, continuava a ser um aliado e um amigo, e a fuga do seu amo ganhara novas possibilidades.
Dona dormiu com a mente mais tranquila do que estivera, e quando acordou viu que o céu deixara de ser apático e se tornara novamente azul, que as nuvens haviam desaparecido, e que existia algo no ar do Verão que não voltaria a aparecer, um calor e um brilho que pertenciam aos dias em que, descuidada e encantada, ia pescar para o rio.
Fez planos enquanto se vestia, e depois do pequeno almoço mandou um recado a Harry pedindo-lhe para ir ter com ela. Este já recuperara um pouco do seu antigo espírito, e quando entrou no quarto chamou os cães com a voz habitual, muito animado e satisfeito consigo mesmo, beijando-a na nuca quando Dona se sentou em frente ao espelho.
- Harry - disse Dona -, quero pedir-te que me faças uma coisa.
- Tudo o que desejares - prometeu, ansioso. - O que é?
- Que partas hoje de Navron - declarou - e que leves Prue e as crianças contigo.
A boa disposição fugiu-lhe do rosto e olhou-a desconcertado.
- E tu? - perguntou. - Não vens connosco?
 Irei depois - declarou Dona. - Vou amanhã. Harry começou a andar de um lado para o outro.
- Julguei que poderíamos viajar juntos, quando esta história terminasse - protestou. - O mais provável é enforcarem aquele fulano amanhã. Pensei em ir hoje falar a Godolphin e Eustick a esse respeito. Gostavas de o ver enforcado, não é verdade? Talvez possa tratar do enforcamento para as nove da manhã, e iniciamos a viagem logo a seguir.
- Já alguma vez viste um homem a ser enforcado? - perguntou Dona.
- Oh, sim, não tem nada de especial, admito-o. Mas neste caso, é diferente. Maldição, Dona, o homem assassinou o pobre Rock e era capaz de também te matar. Estás a querer dizer que não desejas vingança?
Dona não respondeu, e Harry não lhe podia ver o rosto, por estar de costas para ele.
- George Godolphin pensaria que era uma indelicadeza da minha parte - prosseguiu Harry - se me fosse embora sem uma palavra de explicação.
- Eu darei a explicação - afirmou Dona. - Proponho-me visitá-lo esta tarde, depois de partires.
- Ou seja, queres que inicie deliberadamente a viagem, sem ti, levando as crianças e a ama, deixando- te aqui sozinha, com meia dúzia de criados apalermados?
- Isso mesmo, Harry.
- E se eu levar a carruagem, por causa das crianças, e for a cavalo, como podes viajar amanhã?
- Alugo uma carruagem em Helston.
- E vais ter connosco a Okehampton, à noite?
- Sim, vou ter convosco a Okehampton, à noite. Harry parou junto da janela, olhando para o jardim com um ar amuado.
-Maldição. Dona, será que alguma vez te conseguirei compreender?
- Não, Harry - respondeu -, mas isso não é assim tão importante.
- É importante - retorquiu Harry - se torna a vida num inferno para os dois.
Dona olhou para cima, para o marido, que estava parado com as mãos atrás das costas.
- Pensas mesmo isso que disseste? - perguntou.
- Oh... - murmurou Harry, encolhendo os ombros. - Já nem sei o que penso. Só sei que daria tudo no mundo para te fazer feliz, mas o problema está em que não sei como fazê- lo, e tu gostas mais do dedo mindinho de James do que de mim. Que pode um homem fazer quando a mulher não o ama excepto beber e jogar às cartas? Serás capaz de mo dizer?
Dona parou junto dele por um instante e pousou-lhe a mão no ombro.
- Vou fazer trinta anos dentro de três semanas - disse-lhe. - Talvez me torne mais sensata quando for mais velha.
- Não te quero mais sensata - retorquiu, sombrio. - Quero-te como és.
Dona não respondeu. Harry, que brincava com a manga do seu vestido, continuou:
- Recordas-te de que antes de vires para Navron disseste qualquer coisa sem sentido, a propósito de te sentires como aquele pássaro no aviário do teu pai... Não entendi o que querias dizer, e continuo sem entender. Pareceu-me apenas palavreado, sabes? Quem me dera saber qual era a tua ideia.
- Não penses mais no assunto - disse Dona, afagando-Lhe o rosto -, porque o pássaro já descobriu o seu caminho para o céu. E agora, Harry, vais fazer o que te pedi?
- Sim, suponho que sim - respondeu -, mas aviso-te que não me agrada e que ficarei à tua espera em Okehampton. Não vais atrasar a tua partida por qualquer motivo, pois não?
- Não, não a atrasarei.
Harry desceu ao andar rés-do-chão para fazer os preparativos necessários, enquanto Dona chamava Prue e a informava da súbita mudança de planos. De repente, tudo foi agitação e confusão, o desfazer de camas e de arcas, o empacotamento de comida e roupas para a viagem, enquanto as crianças corriam de um lado para o outro, deliciadas com toda aquela movimentação porque era uma alteração na rotina. Não se importam de se irem embora de Navron", pensou Dona. Dentro de um mês, estarão a brincar nos campos de Hampshire e a Cornualha será esquecida. As crianças esquecem os locais com facilidade... e esquecem os rostos ainda mais depressa.
Almoçaram carnes frias à uma hora, com as crianças encantadas por poderem comer com os pais. Henrietta dançou em volta da mesa como uma fada, branca de excitação porque o pai iria cavalgar ao lado da carruagem. James sentou-se no colo de Dona, tentando pôr os pés em cima da mesa, e quando Dona lho permitiu olhou em volta com um ar de triunfo, levando a mãe a beijar-lhe as bochechas gordas e a apertá-lo a si. Harry deixou-se contagiar pela excitação das crianças e começou a falar-lhes do Hampshire, e de que muito provavelmente iriam para lá durante o resto do Verão.
- Irás ter um pónei, Henrietta - disse -, e James também, mas só mais tarde.
Harry começou a atirar pedaços de carne para o chão, para os cães, e as crianças gritaram e bateram as palmas de contentamento.
A carruagem parou à porta e embarcaram no meio de embrulhos, mantas, almofadas e dos cestos para os dois cães, enquanto o cavalo de Harry mordia o freio e escavava o chão.
- Tens de me justificar junto de George Godolphindisse Harry, debruçando-se para Dona e batendo na bota com o chicote. - Sei que não irá compreender por que motivo me vou embora tão de repente.
- Deixa isso comigo - respondeu Dona. - Saberei o que lhe dizer.
- Continuo sem saber porque não vens connosco - insistiu Harry, fitando-a. - De qualquer modo, estaremos à tua espera em Okehampton, amanhã à noite. Hoje, quando pas sarmos por Helston, reservarei uma carruagem para ti, para amanhã de manhã.
- Obrigada, Harry.
Harry continuou a chicotear a biqueira da bota.
- Está quieto, sim, meu bruto? - disse para o cavalo. A seguir virou-se para Dona: - Parece-me que ainda estás com aquela maldita febre, mas que não o queres admitir.
- Não - respondeu Dona. - Não tenho febre.
- Os teus olhos estão esquisitos. Pareceram-me diferentes logo no primeiro momento em que te vi, a jazer na cama, lá em cima no teu quarto. A expressão modificou- se... mas Deus sabe que não consigo perceber como!
- Disse-to esta manhã. Estou a ficar mais velha e faço trinta anos dentro de três semanas. O que vês nos meus olhos é a idade.
- Maldição, não é nada disso! - exclamou Harry. - Bom, creio que sou estúpido como uma pedra e que terei de passar o resto dos meus dias a perguntar a mim mesmo que diabo te terá acontecido.
- Também me parece que sim, Harry.
Harry acenou-lhe com o chicote, fez o cavalo dar meia volta e afastou-se, com a carruagem a segui-lo mais calmamente e as duas crianças, sorridentes, a espreitarem pela janela, soprando beijos, até descreverem a curva da alameda e já não a poderem ver.
Dona atravessou a casa de jantar vazia e passou para o jardim. Parecia-lhe que a casa ganhava já uma aparência estranha e deserta, como se pressentisse que em breve seriam postos panos sobre as cadeiras, que as portadas seriam fechadas, e que nada restaria excepto a sua própria escuridão secreta. Nenhum brilho do Sol, nenhumas vozes, nenhumas gargalhadas, e apenas as tranquilas memórias de coisas acontecidas.
Fora ali, por baixo daquela árvore, que se deitara de costas, ao Sol, e ficara a observar as borboletas, quando Godolphin a visitara pela primeira vez, surpreendendo-a com os caracóis em desordem e flores por detrás das orelhas. Mais além, nos bosques, tinham existido campainhas azuis, que agora já não existiam, e os fetos haviam sido pequenos, mas agora chegavam à altura da cintura e eram de um tom verde-escuro. Tanto encanto, que nascera de repente para logo desaparecer. Dona sabia, no fundo do seu coração, que era a última vez que olhava para tudo aquilo, e que nunca mais regressaria a Navron. Uma parte dela pairaria ali para sempre: pegadas em bicos de pés seguindo até à enseada, o toque da mão numa árvore, a marca do seu corpo nas ervas altas. Talvez um dia, dentro de muitos anos, alguém vagueasse por ali e escutasse o silêncio, tal como ela fizera, e viesse a captar o murmúrio dos sonhos que ali sonhara, em pleno Verão, sob o sol quente e o céu branco.
Dona virou as costas ao jardim, chamou o moço da estrebaria, ordenou- lhe que apanhasse o cavalo de trabalho que andava à solta no prado e lhe pusesse uma sela, porque o ia montar.
Capitulo vigésimo segundo
Quando Dona chegou a Gweek, foi direita à pequena habitação, quase enterrada na floresta e a cerca de uma centena de metros da estrada, que soube instintivamente ser o lugar que procurava. Anteriormente, ao passar por ali, vira uma mulher à entrada, jovem e bonita, a quem William, que conduzia a carruagem, saudara com o chicote.
Correm boatos desagradáveis", dissera Godolphin, a respeito de jovens molestadas", e Dona sorriu para si mesma ao recordar-se de ver a rapariga corar, bem como da expressão de William e da sua vénia galante. Mal sabia ele que a sua patroa o observara.
A habitação parecia deserta, e Dona, desmontando e batendo à porta, por instantes interrogou-se sobre se, afinal, não se teria enganado. Porém, logo a seguir ouviu um movimento na pequena horta das traseiras e avistou, de relance, uma saia que desaparecia por uma porta que se fechou à pressa, ouvindo-se correr um fecho. Bateu com suavidade e, ao não obter resposta, chamou:
- Não tenham medo, sou a senhora de St. Columb, de Navron.
Um minuto ou dois depois, o fecho voltou a correr e a porta abriu-se. Era o próprio William quem se encontrava no limiar, com o rosto corado da jovem a espreitar por detrás do seu ombro.
- Minha senhora - disse, mirando e contorcendo a boca de botão. Por momentos Dona receou que o homem cedesse e começasse a chorar, mas recompôs-se e escancarou a porta: - Vai lá para cima, Grace - disse. - Sua Senhoria quer falar a sós comigo.
A rapariga obedeceu e Dona entrou para a pequena cozinha, sentou-se junto da lareira baixa e olhou para William.
Ainda usava o braço ao peito e tinha uma ligadura na cabeça, mas era o William do costume, de pé na sua frente, como quem aguardava instruções para a ementa do jantar.
- Prue deu-me o seu recado, William - disse Dona, mas como o viu tão rígido, e sem expressão, sorriu-lhe com compreensão.
- Minha senhora... - respondeu, humilde e de olhos baixos - que lhe posso eu dizer? Teria sido capaz de morrer por si naquela noite, mas não o fiz e jazi como uma criança doente, no chão do quarto dos meninos.
- Não o pôde evitar - tranquilizou-o Dona. - Estava enfraquecido pela perda de sangue e o seu prisioneiro revelou ser demasiado rápido e astuto. No entanto, não vim aqui para falar disso, William.
Por momentos os olhos de William foram de súplica, mas Dona abanou a cabeça.
- Nada de perguntas - disse -, porque sei o que me iria perguntar. Estou bem, sinto-me forte, não me aconteceu nada e o que se verificou naquela noite não lhe diz respeito. Está tudo arrumado e posto de lado. Compreende?
- Sim, minha senhora, se insiste.
- Sir Harry, Prue e as crianças partiram hoje de Navron, pouco depois do meio-dia. Agora, a única coisa que interessa é ajudar o seu amo. Sabe o que aconteceu?
- Sei, minha senhora, que o navio teve a sorte suficiente para conseguir escapar com a tripulação em segurança a bordo, e que o meu amo está prisioneiro de Lord Godolphin.
- Temos pouco tempo, William, porque Sua Senhoria e os outros podem tomar a lei nas próprias mãos, e fazerem o que a lei faria... antes da chegada da escolta de Bristol. Podemos ter apenas algumas horas, portanto precisamos de agir esta noite.
Obrigou-o a sentar-se no banco ao lado da lareira, e mostrou-lhe a pistola e a faca que escondera nas roupas.
- A pistola está carregada - declarou -, e quando eu sair daqui irei visitar Lord Godolphin, a quem convencerei a deixar-me falar com o prisioneiro. Não será difícil, porque Sua Senhoria é muito pouco inteligente.
- E depois, minha senhora?
- Depois, parto do princípio de que o seu amo já deve ter um plano preparado, e que agirá de acordo com ele. Compreenderá a desesperada importância do tempo, e poderá desejar que tenhamos cavalos à espera a uma hora a decidir.
- Isso não deverá ser impossível, minha senhora. Há sempre maneiras de arranjar cavalos.
- Acredito, William.
- A jovem que me concede hospitalidade...
- Uma jovem muito encantadora, William.
- Obrigado, minha senhora. A jovem que me concede hospitalidade pode ser útil na questão dos cavalos. Deixe esse assunto nas minhas mãos.
- E também posso deixar a jovem nas suas mãos, tal como deixei Prue, quando parti com o seu amo.
- Minha senhora, juro-lhe solenemente que nunca toquei nem num cabelo da cabeça de Prue.
- Talvez não, William, mas não vamos discutir isso. Muito bem, estamos entendidos quanto ao primeiro movimento da jogada. Voltarei aqui depois da minha visita a Lord Godolphin, para lhe dizer o que ficou combinado.
- Está bem, minha senhora.
Abriu a porta para Dona, que ficou parada por um momento, sorrindo- lhe, antes de passar para a pequena horta.
- Não falharemos, William. Dentro de três dias, ou talvez menos, verá as falésias da Bretanha. Agrada-lhe voltar a ver as terras de França, não é verdade?
William ia fazer-lhe uma pergunta, mas Dona afastou-se rapidamente pelo caminho que dava para a estrada, onde deixara o cavalo amarrado a uma árvore. Agora que tinha um fim em vista e lhe era exigido que actuasse, sentia-se resoluta e forte, e a estranha melancolia que se abatera sobre ela quando se encontrava sozinha no jardim de Navron desaparecera com o momento que a provocara. Pertencia tudo ao passado. Cavalgou rapidamente, com o resistente cavalo a avançar com facilidade pelo caminho enlameado, e em breve atingia os portões do parque de Godolphin. Viu, à distância, os contornos cinzentos da casa, a torre baixa e as fortes muralhas do castelo que fazia parte da mansão. Havia uma estreita fenda na torre, a meio caminho entre as ameias e o chão, e quando passou por baixo dela sentiu o coração a bater com força, com uma excitação súbita: devia ser a prisão, era possível que o francês tivesse escutado o som dos cascos do cavalo, houvesse trepado à fenda e estivesse a vê-la.
Um criado surgiu a correr para Lhe segurar o cavalo, olhando-a surpreendido e perguntando a si mesmo, pensou Dona, o que estaria a senhora de St. Columb, de Navron, a fazer ali na hora mais quente do dia, montada num cavalo de trabalho e sem a escolta do marido ou de um criado.
Entrou para o grande salão, perguntando se Sua Senhoria a poderia receber, e enquanto esperava olhou para o parque pelas altas janelas e viu, no meio do relvado e isolada por uma corda de todas as outras companheiras, uma árvore alta, muito mais alta do que as outras, com um homem empoleirado num ramo grosso, a trabalhar com uma serra e conversando com o pequeno grupo de homens que se encontravam por baixo.
Virou-se, sentindo um frio súbito e uma má disposição repentina, ouviu passos ao longo do salão, e viu Lord Godolphin avançando para ela com a sua habitual compostura algo perturbada.
- As minhas humildes desculpas, senhora - disse, beijando-lhe a mão. - Receio que a tenha feito esperar, mas a verdade é que a sua visita é um pouco inoportuna. Estamos todos muito preocupados com o facto de a minha mulher ter entrado em trabalho de parto, e aguardamos o médico.
- Meu caro Lord Godolphin, terá de me perdoar - respondeu Dona. - Se o soubesse, não o teria incomodado. Trago-lhe um recado de Harry e o seu pedido de desculpas. Houve qualquer coisa em Londres que exigiu o seu regresso imediato à cidade. Partiu hoje ao meio-dia com as crianças e...
- Harry foi-se embora para a cidade? - exclamou Godolphin, espantado. - Mas... estava tudo combinado para que estivesse presente amanhã! Metade da população local irá reunir-se aqui, para a ocasião. Os homens já estão a preparar a árvore, como pode ver. Harry insistiu muito em ver enforcar o francês.
- Mandou-me pedir-lhe, com toda a humildade, o vosso perdão - disse Dona -, mas o assunto era realmente urgente. Segundo creio, até Sua Majestade estava preocupada com o caso...
- Oh, bom, é claro que compreendo, minha senhora, nessas circunstâncias... Todavia, é uma pena, uma grande pena. A ocasião é tão invulgar, e um tão grande triunfo... Do modo como as coisas estão a correr, parece-me que teremos algo mais para celebrar ao mesmo tempo. - Tossiu, radiante de autoconsideração e importância. Desviou os olhos de Dona quando se ouviu o som das rodas de uma carruagem a avançar para a porta. - Deve ser o médico - afirmou rapidamente.
- Vai desculpar-me, por instantes.
- Claro, Lord Godolphin - retorquiu Dona com um sorriso. Virou-se e encaminhou-se para o salão mais pequeno, onde começou a pensar rapidamente, enquanto do vestíbulo lhe chegava o som de vozes, murmúrios e passos pesados.
Está tão agitado, pensou Dona, que nem daria por isso se lhe roubássemos outra vez a cabeleira.
Os passos e as vozes desapareceram na larga escadaria, e Dona, olhando para o exterior, verificou que não havia guardas em volta do castelo nem na alameda. Deveriam encontrar-se no interior das próprias muralhas. Godolphin reapareceu cinco minutos depois, ainda mais corado e preocupado do que antes, se tal era possível.
- O médico já se encontra com a minha mulher - disse -, mas é da opinião que nada ocorrerá antes do fim da tarde. Parece-me espantoso, não fazia ideia... Na verdade pensava que poderia ser de um momento para o outro...
- Espere... - disse-lhe Dona - até ter sido pai uma dúzia de vezes, e então talvez compreenda que os bebés são criaturas preguiçosas que gostam de atrasar a sua entrada no mundo. Meu caro Lord Godolphin, quem me dera poder entretê-lo um pouco. Tenho a certeza de que a sua esposa não corre qualquer perigo. Foi além que prenderam o francês?
- Sim, e passa o seu tempo, segundo me disseram os carcereiros, a desenhar pássaros em folhas de papel. O homem é louco, claro!
- Claro!
- Tenho recebido felicitações de todo o condado. Gabo-me de poder dizer que as mereço. Fui eu, sabe, quem desarmou o patife.
- Ah, que corajoso que foi!
- É verdade que me colocou a espada nas mãos, mas foi a mim que a entregou.
- Prepararei uma grande história para contar na corte, Lord Godolphin, quando voltar a estar em St. James. Vai causar a Sua Majestade uma muito boa impressão a maneira como o senhor tratou do assunto. Foi o génio por detrás de tudo.
- Oh, lisonjeia-me, senhora.
- De modo nenhum. Sei que Harry concordaria comigo. Quem me dera ter uma qualquer recordação do francês, para mostrar a Sua Majestade. Acha que, como se trata de um desenhador, o pirata seria capaz de me oferecer um dos seus desenhos?
- É a coisa mais simples deste mundo. Estão espalhados por toda a cela.
- Céus, esqueci-me de tanta coisa daquela noite assustadora - suspirou Dona - que já nem me lembro da aparência do francês, excepto que era extremamente alto, escuro, feroz, e tremendamente feio.
- Está um pouco enganada: eu não o descreveria desse modo. Não é muito maior do que eu, por exemplo, e o rosto, como o de todos os franceses, é mais delicado do que feio.
- Que pena não poder vê-lo, para transmitir uma descrição precisa a Sua Majestade!
- Então, não estará aqui amanhã?
- Não, infelizmente. Vou juntar-me a Harry e às crianças.
- Suponho... que lhe podia permitir um relance do patife, na sua cela - disse Lord Godolphin. - Porém, segundo soube pelo Harry, depois da tragédia da outra noite nem sequer era capaz de falar dele, de aterrorizada que ficou. Por isso...
- Hoje, Lord Godolphin, as coisas são muito diferentes da outra noite. Está aqui o senhor para me proteger e o francês está desarmado. Gostaria de poder pintar, na frente de Sua Majestade, um retrato do notório pirata, capturado e morto pelo mais fiel dos seus súbditos da Cornualha.
- Então assim será, senhora, assim será. Quando penso no que poderia ter sofrido às mãos do patife, gostaria de o poder enforcar três vezes! Creio que o que precipitou o parto da minha mulher foi a excitação e o alarme provocados por todo este caso.
- É muito provável - respondeu Dona com um ar grave, mas ao ver que o homem queria conversar sobre o assunto e que talvez até mergulhasse nos problemas domésticos, que Dona compreendia melhor do que ele, acrescentou: - Podíamos ir agora, enquanto o médico está com a sua esposa.
Antes de Godolphin poder protestar, Dona passou do salão para o vestíbulo, e depois para os degraus da entrada da casa. O homem foi forçado a acompanhá-la, não sem olhar primeiro para as janelas da casa.
- A minha pobre Lucy - murmurou. - Se a pudesse ter poupado a esta provação...
- Devia ter pensado nisso há nove meses, Lord Godolphin - retorquiu Dona.
Fitou-a, muito embaraçado e chocado, e murmurou qualquer coisa a respeito de desejar, há muitos anos, um filho e um herdeiro.
- Estou certa de que ela Lho dará - disse Dona com um sorriso -, mesmo que antes disso nasçam dez filhas.
Já se encontravam junto do castelo, parados em frente da pequena porta de pedra, onde se postavam dois homens armados de mosquetes. Havia um terceiro sentado num banco, na frente de uma mesa.
- Prometi à senhora de St. Columb que poderia dar uma olhadela ao prisioneiro - disse Godolphin, e o homem à mesa olhou para cima e sorriu-se.
- Sim, meu senhor. Amanhã por estas horas já não se encontrará em condições de ser visto pelos olhos das senhoras - retorquiu o homem, e Godolphin riu-se alto.
Tirando uma chave da corrente, o guarda conduziu-os para a estreita escada de pedra. Não há outra porta nem outra escada", pensou Dona. Lá em baixo, os homens estão sempre de guarda. A chave girou na fechadura e o seu coração começou mais uma vez a bater, de um modo estúpido e ridículo, como sempre fazia quando se preparava para olhar para o francês. O carcereiro abriu a porta e Dona entrou, com Godolphin logo atrás dela. O carcereiro retirou-se e fechou a porta. O francês estava sentado a uma mesa, tal como estivera quando o vira pela primeira vez, e no rosto havia a mesma expressão absorta que exibira na altura, atento ao que fazia, sem pensar no que o rodeava, pelo que Godolphin, desorientado com a indiferença do prisioneiro, deu uma palmada na mesa e declarou com violência:
- Levante-se quando decido vir visitá-lo!
A indiferença não fora fingida, como Dona sabia, pois o francês estivera tão atento ao desenho que não distinguira os passos de Godolphin dos do carcereiro. Empurrou o desenho para o lado - Dona viu que era um maçarico, voando por cima de um estuário, em direcção ao mar -, levantou os olhos e viu-a pela primeira vez. Sem dar qualquer sinal de reconhecimento, levantou-se e fez uma vénia sem proferir palavra.
- Esta é a senhora de St. Columb - declarou Godolphin com rigidez -, que, desapontada por não o poder ver enforcado amanhã, quer levar um dos seus desenhos para a cidade, para que Sua Majestade tenha uma recordação de um dos maiores vilões que já perturbaram os seus súbditos.
- A senhora de St. Columb é muito bem-vinda - declarou o prisioneiro. - Como pouco mais pude fazer nos últimos dias, posso dar-lhe a escolher entre uma boa colecção. Qual é a sua ave favorita, minha senhora?
- Isso... - retorquiu Dona - é uma coisa sobre que nunca me consigo decidir. Por vezes penso que é o noitibó.
- Lamento não lhe poder oferecer um noitibó - respondeu, remexendo nos papéis que tinha sobre a mesa. - Sabe, a última vez que escutei um noitibó estava demasiado ocupado com outra coisa e não pude observar a ave com a atenção devida.
- Quer dizer - declarou Godolphin com frieza - que estava tão ocupado a roubar as posses de um meu amigo, para sua gratificação pessoal, que não pensou em qualquer outra distracção.
- Meu senhor - disse o capitão do La Mouette, fazendo uma vénia -, nunca ouvi descrever a ocupação em questão com tanta delicadeza.
Dona observou os desenhos sobre a mesa.
- Está aqui uma gaivota - disse -, mas parece-me que não lhe desenhou toda a plumagem.
-É um desenho incompleto, senhora - respondeu o francês. - Esta gaivota deixou cair uma das suas penas em voo. Se sabe alguma coisa a respeito da espécie, deverá recordar-se, contudo, que nunca se aventuram muito para o largo. Neste preciso momento, esta está provavelmente a umas dez milhas da costa.
- Sua Senhoria pouco sabe de ornitologia - afirmou Godolphin. - Pela minha parte, nunca ouvi dizer que uma gaivota, ou qualquer outra ave, apanhasse as penas perdidas.
- Quando era criança, tive um colchão de penas - disse Dona, falando bastante depressa e sorrindo para Godolphin.
- Recordo-me que as penas se começaram a soltar, e que uma delas flutuou pela janela do meu quarto e caiu no jardim. Claro que a janela era larga, não como a fenda que dá luz a esta cela.
- Oh, claro - responde Godolphin, um pouco intrigado, olhando para Dona com um ar duvidoso. Perguntava a si mesmo se ainda estaria com febre, pois não lhe parecia muito boa da cabeça.
- Passaram alguma vez por debaixo da porta? - perguntou o prisioneiro.
- Ah, não me recordo... mas creio que até uma pena teria dificuldade em passar por debaixo de uma porta, a não ser que tivesse ajuda, claro, de uma forte corrente de ar ou do sopro do cano de uma pistola. Todavia, ainda não escolhi o desenho. Está aqui o de um pardal. Será que agradaria a Sua Majestade? Lord Godolphin, estarei a ouvir rodas de uma carruagem, lá fora? Talvez seja o médico a ir-se embora.
Aborrecido, Lord Godolphin deu um estalido com a língua e olhou para a porta.
- Decerto que não se ia embora sem falar comigo... declarou. - Tem a certeza de estar a ouvir uma carruagem? Sou um pouco surdo...
- Estou absolutamente certa - respondeu Dona. Godolphin aproximou-se da porta e esmurrou-a.
-Eh, tu aí - gritou -, abre a porta, imediatamente! O carcereiro gritou em resposta e ouviram-lhe os passos a subirem a estreita escada. Num instante, Dona passou a pistola e a faca do seu fato de montar para cima da mesa, e o prisioneiro cobriu as armas com um monte dos seus desenhos. O carcereiro abriu a porta e Godolphin virou-se e olhou para Dona.
- Então, já escolheu o desenho? - perguntou. Dona remexeu nos papéis, incomodada e franzindo a testa.
- É na verdade muito difícil - respondeu. - Não consigo decidir-me entre a gaivota e o pardal. Não espere por mim, Lord Godolphin, já deve saber que as mulheres são muito difíceis de se decidirem. Irei ter consigo dentro de um minuto ou dois.
- É realmente imperativo que eu fale com o médicodisse Godolphin. - Por isso, peço que me desculpe, senhora.
258
Fica aqui com Sua Senhoria - acrescentou para o guarda, saindo da cela.
O guarda voltou a fechar a porta e encostou-se a ela, de braços cruzados, sorrindo para Dona, cheio de compreensão.
- Teremos duas celebrações amanhã, minha senhora - declarou.
- Sim - concordou Dona. - Espero, para seu bem, que se trate de um rapaz. Haverá cerveja para todos.
- Ah, então não sou o único motivo para toda a excitação? - perguntou o prisioneiro.
O guarda riu-se e fez um movimento com a cabeça, na direcção da fenda- da cela.
- Ao meio-dia já terá sido esquecido - afirmou. - Estará pendurado na árvore, enquanto nós beberemos à saúde do futuro Lord Godolphin.
- Parece-me desagradável que nem o prisioneiro nem eu possamos estar aqui para beber à saúde do filho e herdeirodeclarou Dona com um sorriso, enquanto tirava a bolsa da algibeira e a atirava ao carcereiro. - Aposto - prosseguiu - que prefere fazê-lo agora, em vez de estar de guarda lá em baixo, hora após hora. E se nós três bebêssemos qualquer coisa, en quanto Sua Senhoria está com o médico?
O carcereiro riu-se e piscou o olho ao prisioneiro.
- Se o fizer, não seria a primeira vez que bebia cerveja antes de uma execução - declarou. - Digo-vos uma coisa: nunca vi enforcar um francês. Dizem que morrem mais depressa do que nós. Parece que têm os ossos do pescoço mais frágeis. - Com uma nova piscadela, abriu a porta e chamou o seu assistente.
- Traze três copos e um jarro de cerveja.
Enquanto o homem tinha as costas viradas, Dona interrogou o prisioneiro com os olhos, e os lábios deste moveram-se em silêncio.
- Hoje, às onze.
Dona acenou uma confirmação e sussurrou:
- William e eu.
O carcereiro olhou-os por cima do ombro e disse:
- Se Sua Senhoria nos apanha, vai ser o diabo!
- Absolvê-lo-ei de toda a culpa - explicou Dona - dizendo que este é o tipo de gesto que agradará muito a Sua Majestade, quando o vir na corte. Como se chama?
- Zachariah Smith, minha senhora.
- Muito bem, Zachariah, se houver algum problema por causa disto, defendê-lo-ei junto do próprio rei.
O carcereiro riu-se, e como o assistente surgia naquele momento com a cerveja, aceitou-a, fechou a porta e levou a bandeja para a mesa.
- Uma longa vida para Vossa Senhoria - disse -, uma bolsa cheia e um bom apetite para mim. E para si, senhor, uma morte rápida.
Serviu a cerveja nos copos e Dona, tocando com o seu no do carcereiro, respondeu:
- E uma longa vida para o futuro Lord Godolphin. O carcereiro deu um estalo com os lábios e inclinou a cabeça para trás.
O prisioneiro levantou o copo e sorriu para Dona.
- Não deveríamos beber também a Lady Godolphin, que nesta altura, imagino, deve estar a passar por alguns incómodos?
- E ao médico - replicou Dona -, que vai andar muito atarefado. - Enquanto bebia, veio-lhe à cabeça uma ideia. Olhou para o francês e soube instintivamente que este tivera a mesma ideia, pois estava a olhá-la.
-Zachariah Smith, o senhor é casado? - perguntou. O carcereiro riu-se.
- Casado duas vezes e pai de catorze filhos! - respondeu.
- Então sabe o que Lord Godolphin está a passar neste momento - declarou, sorrindo -, mas com a ajuda de um médico tão competente como o doutor Williams não há motivo para ansiedades. Conhece bem o doutor?
- Não, minha senhora. Vim da costa norte, não sou dé Helston.
- O doutor Williams - disse Dona, sonhadora - é um sujeito pequenino e engraçado, com uma cara redonda e solene e uma boca que parece um botão. Ouvi dizer que é um tão bom apreciador de cerveja como qualquer outro homem.
- Então é pena - declarou o prisioneiro, pousando o copo - que não esteja a beber connosco. Talvez o faça mais tarde, quando terminar o trabalho do dia e tiver feito com que Lord Godolphin seja pai.
- O que não acontecerá muito antes da meia-noite. Que acha, Zachariah Smith, pai de catorze filhos?
- A meia-noite é geralmente a hora, Vossa Senhoria - respondeu o carcereiro, rindo-se. - Todos os meus nove rapazes nasceram quando o relógio batia as doze badaladas.
- Muito bem. Então... - prosseguiu Dona - quando eu vir o doutor Williams, dir-lhe-ei que, para honrar a ocasião, Zachariah Smith, que se pode gabar de ter mais filhos do que a dúzia do padeiro, terá muito prazer em beber uma cerveja com ele, antes de entrar de serviço à noite.
- Zachariah, irá recordar-se desta noite durante o resto da sua vida - afirmou o prisioneiro.
O carcereiro voltou a pousar os copos na bandeja.
- Se Lord Godolphin tiver um filho rapaz - disse, piscando o olho -, teremos tantas celebrações na propriedade que até talvez se esqueçam de o enforcar amanhã de manhã.
Dona pegou no desenho da gaivota, que se encontrava em cima da mesa.
- Pois bem - declarou -, já escolhi o meu desenho. Descerei consigo, Zachariah, não vá Sua Senhoria vê-lo com o tabuleiro, e deixamos o vosso prisioneiro entretido com a pena e com os pássaros. Adeus, francês. Espero que, amanhã, a sua alma se liberte tão facilmente como a pena do meu colchão.
O prisioneiro fez uma vénia.
- Isso dependerá - retorquiu - da quantidade de cerveja que o meu carcereiro consumir esta noite, na companhia do doutor Williams.
-Vai precisar de uma grande resistência, se me quiser vencer! - disse o carcereiro, abrindo a porta e segurando-a para Dona passar.
- Adeus, senhora de St. Columb - despediu-se o francês. Dona parou por instantes, olhando-o, compreendendo que o plano que tinham em mente era mais arriscado e ousado que qualquer outro dos que o pirata levara a cabo, e que se falhasse não teria outra oportunidade de fuga, pois no dia seguinte iam enforcá-lo na árvore do parque. O homem sorriu, como que em segredo, e a Dona pareceu-lhe que aquele sorriso era a personificação dele próprio; fora o que começara por amar, era o que sempre guardaria na memória, e conjurava, na sua mente, a imagem do La Mouette e do sol, do vento sobre o mar, das escuras sombras da enseada, da fogueira e do silêncio. Saiu da cela sem olhar mais para ele, de cabeça bem levantada e com o desenho na mão, pensando: Nunca saberá qual foi o momento em que mais o amei. "
Seguiu o carcereiro ao longo da estreita escada, de coração pesado, de corpo subitamente cansado do esforço para suportar a tensão. O carcereiro, sorrindo-se, pôs a bandeja debaixo dos degraus da escada e disse:
- Para quem está prestes a morrer, é um homem de grande sangue-frio, não é verdade? Dizem que estes franceses não têm sentimentos.
Dona conseguiu esboçar um sorriso e estendeu-Lhe a mão.
- O senhor é boa pessoa, Zachariah - disse - e espero que no futuro possa beber muitos copos de cerveja, alguns deles esta mesma noite. Não me esquecerei de dizer ao médico para o visitar. É um homem pequenino, recorde-se, com uma boca que parece um botão.
- E com uma garganta funda como um poço! - riu-se o carcereiro. - Vossa Senhoria pode ficar descansada. Tomarei conta dele e satisfarei a sua sede. Todavia, nem uma palavra a lord Godolphin...
- Nem uma palavra, Zachariah - afirmou Dona solenemente, saindo da escuridão para o brilho do Sol, e avistando Godolphin, que se aproximava ao seu encontro.
- Enganou-se, senhora - disse, limpando a testa. - A carruagem não se moveu e o médico continua junto da minha mulher. Decidiu que talvez fosse melhor ficar, uma vez que a pobre Lucy está com algumas dificuldades. Os seus ouvidos pregaram-lhe uma partida.
- Ah, e fi-lo voltar a casa sem necessidade - comentou Dona. - Foi uma estupidez da minha parte, Lord Godolphin, mas, como sabe, nós, as mulheres, somos umas criaturas estúpidas. Aqui está o desenho da gaivota. Acha que irá agradar a Sua Majestade?
- É melhor juiz do que eu a respeito dos gostos de Sua Majestade - retorquiu Godolphin -, ou pelo menos assim o presumo. Bom, achou o pirata tão brutal como esperava?
- A prisão amaciou-o, Lord Godolphin. Ou então talvez não fosse a prisão, mas a constatação de que, sob a sua guarda, a fuga é impossível. Pareceu-me que, quando olhou para si, soube que encontrara finalmente um cérebro melhor e mais astuto que o dele.
-Ah, deu-Lhe essa impressão, não deu? Que estranho, por vezes penso precisamente o contrário. No entanto, estes estrangeiros são todos meio mulheres, sabe? Nunca se sabe em que estão a pensar.
- É bem verdade, meu senhor. - Pararam em frente dos degraus da entrada da casa, onde ainda se encontrava a carruagem e o criado a segurar no cavalo de Dona.
- Quer tomar um refresco, senhora, antes de partir? perguntou Godolphin.
- Não - respondeu Dona. - Não. Já permaneci aqui demasiado tempo, e tenho muito que fazer esta noite, antes da viagem de amanhã de manhã. Os meus cumprimentos à sua esposa, quando esta estiver em condições para os receber. Espero que o brinde com uma réplica sua antes de a noite termi nar, meu caro Lord Godolphin.
- Isso, senhora - afirmou gravemente -, está nas mãos do Todo- Poderoso.
- Muito em breve - retorquiu Dona - estará também nas mãos capazes do médico. Adeus.
Acenou-lhe e partiu, batendo no cavalo com o chicote e lançando-o a trote. Quando puxou as rédeas em frente do castelo e olhou para cima, para a fenda na torre, assobiou algumas notas da música que Pierre Blanc tocava no seu alaúde. Lentamente, como um floco de neve, uma pena branca desceu pelo ar, na sua direcção. Era um bocado de pena com que desenhava. Apanhou-a, sem se importar em saber se Godolphin a estava a ver dos degraus da estrada, fez novo aceno com a mão e meteu-se à estrada, rindo, com a pena espetada no chapéu.
Capítulo vigésimo terceiro
Dona inclinou-se no peitoril da janela do seu quarto em Navron, e quando olhou para o céu viu, pela primeira vez, o pequeno crescente dourado da lua nova que se elevava bem alto, por cima das árvores.
É para dar sorte", pensou, e deixou-se ficar ali por instantes; observando as sombras do tranquilo jardim, respirando o perfume pesado e doce da magnólia que trepava pela parede, por baixo dela. Aquelas coisas tinham de ser guardadas e recordadas no coração, junto de todas as outras belezas perdidas, pois nunca mais voltaria a olhar para elas.
O próprio quarto mostrava já uma aparência de abandono, tal como o resto da casa, e as malas estavam amarradas, no chão, com as roupas dobradas e guardadas pela criada, de acordo com as suas instruções. Quando regressara, ao fim da tarde, empoeirada e cheia de calor por causa da cavalgada, e o moço da estrebaria levara o cavalo de trabalho, aguardava-a o palafreneiro da estalagem de Helston, para Lhe falar.
- Sir Harry deixou-nos o recado - disse - de que Vossa Senhoria alugaria uma carruagem para amanhã, para o seguir até Okehampton.
- Sim - confirmou Dona.
- O patrão mandou-me dizer a Vossa Senhoria que a carruagem está disponível, e que a esperará aqui, amanhã ao meio-dia.
- Obrigada - respondeu, desviando os olhos do homem e olhando para as árvores da alameda, para os bosques que davam para a enseada, pois tudo o que o palafreneiro Lhe dizia carecia de qualquer espécie de realidade e o futuro era algo com que não se preocupava. Quando o deixou e entrou em casa, o homem olhou-a, intrigado, coçando a cabeça, pois Dona parecera-lhe uma sonâmbula e não estava certo de que tivesse compreendido tudo o que lhe dissera. Dona vagueou até ao quarto das crianças, ficou a olhar para as camas desfeitas e para o soalho nu, porque os tapetes haviam sido guardados. Os reposteiros estavam corridos e o ambiente do quarto era já quente e com falta de uso. Por baixo de uma das camas jazia um braço do coelho empalhado que James mordera, e que depois arrancara num ataque de fúria.
Pegou-lhe e revirou-o nas mãos. Era um objecto com um ar esquecido, como uma relíquia de dias passados. Não podia deixá-lo ali, caído no chão. Abriu o grande guarda- roupa ao canto do quarto e atirou-o lá para dentro, fechou a porta e saiu do quarto, onde nunca mais voltaria a entrar.
Às sete levaram-lhe o jantar numa bandeja. Não tinha fome e comeu pouco. Deu instruções ao criado para não voltarem a incomodá-la durante a noite, porque estava cansada, e para não a chamarem de manhã, pois o mais provável era ficar a dormir até tarde, antes do tédio da viagem.
Quando se viu sozinha, abriu o embrulho que William Lhe dera depois de regressar de Lord Godolphin. Sorrindo para si mesma, calçou as meias ásperas e vestiu os calções usados e a camisa cheia de remendos mas alegremente colorida. Recordava- se do ar de embaraço de William quando lhe entregara o embrulho e das suas palavras:
- Isto é o melhor que Grace conseguiu, minha senhora. São do irmão.
- São perfeitas, William, e o próprio Pierre Blanc não arranjaria melhor.
Tinha, de novo, e pela última vez, de se fazer passar por um rapaz, fugindo às suas roupas de mulher pelo menos por aquela noite.
- Correrei melhor sem saias - dissera a William -, e poderei montar como os homens, tal como fazia quando era criança.
William obtivera os cavalos, tal como prometera, e iria ao seu encontro pouco depois das nove horas, na estrada de Navron a Gweek, levando os animais.
- Não se esqueça, William - dissera-lhe -, que o senhor é um médico e eu sou o seu criado. Por isso, é melhor deixar de me tratar por minha senhora" e chamar-me Tom.
Desviara os olhos, embaraçado.
- Minha senhora - respondera -, os meus lábios não serão capazes de o fazer, será demasiado embaraçoso.
Dona rira-se e dissera-lhe que os médicos não podiam mostrar um ar embaraçado, em particular depois de terem trazido filhos e herdeiros ao mundo.
Agora vestia-se com aquelas roupas de rapaz, que lhe assentavam bem, incluindo os sapatos, ao contrário do que acontecera com o desajeitado calçado de Pierre Blanc. Havia também um lenço, que amarrou em volta da cabeça, e uma faixa de couro para a cintura. Viu-se ao espelho, com os caracóis escuros escondidos debaixo do lenço e a pele no tom acastanhado das ciganas, e pensou: Sou outra vez um grumete, e Dona St. Columb está a dormir e a sonhar. "
Escutou à porta e estava tudo em silêncio. Os criados encontravam-se em segurança nos seus próprios quartos. Ganhou coragem para a provação que seria descer a escadaria até à casa de jantar, pois era isso o que mais receava, a escuridão, as velas apagadas, que lhe traziam à mente, com grande intensidade, as recordações de Godolphin agachado nos degraus, com a faca na mão. Seria mais fácil, pensou, se fechasse os olhos e tacteasse o caminho, uma vez que não poderia ver o contorno do escudo pendurado na parede, nem as próprias escadas. Desceu, com as mãos na frente do corpo, os olhos fechados com força e o coração sempre a bater, porque lhe parecia que Rockingham continuava à sua espera no canto mais escuro do vestíbulo. Sentiu-se invadir por um pânico súbito e lançou-se para a porta, correndo os ferrolhos e precipitando-se para a quase escuridão do exterior, para a segurança e tranquilidade da alameda. Deixou de ter medo logo que se viu fora de casa. O ar estava suave e quente, a gravilha estalava-lhe debaixo dos pés, enquanto que lá em cima, no céu pálido, a lua nova brilhava como uma foice.
Caminhou com a velocidade que lhe permitiam as roupas de rapaz, que eram uma verdadeira liberdade, e o seu estado de espírito melhorou. Começou a assobiar a música de Pierre
Blanc, pensou nele, na sua alegre cara de macaco e nos dentes brancos, que agora aguardavam, algures no meio do canal, o amo que deixara ficar para trás.
Viu uma sombra a avançar para ela, de uma curva do caminho, e ali estava William com os cavalos. Vinha um rapaz com ele, e Dona calculou que se tratasse do irmão de Grace, proprietário das roupas que levava vestidas.
William deixou o rapaz a tomar conta dos cavalos e aproximou-se. Dona verificou, com uma gargalhada a crescer dentro dela, que William pedira emprestadas roupas pretas, meias brancas, e que usava uma cabeleira escura muito encaracolada.
-Foi rapaz ou rapariga, doutor Williams? - inquiriu Dona, e o homem olhou-a, confuso, nada satisfeito com o papel que tinha de desempenhar, pois ter ele de ser o cavalheiro e ela o criado parecia-lhe, para alguém a quem nada chocava, como sendo demasiado chocante.
- Que sabe ele? - sussurrou Dona, apontando para o rapaz.
- Nada, minha senhora. - murmurou William. - Sabe que sou amigo de Grace, e que a senhora é um companheiro que me vai ajudar a fugir.
- Então, sou o Tom - insistiu Dona -, e é assim que me irá tratar.
Continuou a assobiar a música de Pierre Blanc, para embaraçar William ainda mais. Dirigiu-se para os cavalos e saltou para a sela de um deles, sorrindo para o rapaz. Cravou os calcanhares nos flancos da montada e partiu à frente, matraqueando na estrada, rindo-se para os companheiros, por cima do ombro.
Quando atingiram os muros da propriedade de Godolphin, desmontaram e deixaram os cavalos ao cuidado do rapaz, sob a cobertura das árvores. Dona e William iam percorrer a pé os cerca de oitocentos metros até ao portão, pois fora isso o que tinham combinado anteriormente.
Já fazia escuro, brilhavam no céu as primeiras estrelas, e não precisaram de falar um com o outro enquanto caminharam, por terem tudo planeado e pronto. Sentiam-se como actores que tinham de subir ao palco pela primeira vez, com uma audiência que poderia ser hostil. Os portões encontravam-se fechados, pelo que viraram para um dos lados e treparam o muro para o interior do parque, avançando sob a sombra das árvores na direcção do caminho de acesso à casa. Avistavam, à distância, o contorno da mansão, onde ainda havia uma luz na fileira de janelas por cima da porta.
- O filho e herdeiro faz-se esperar - murmurou Dona. Seguia à frente de William, em direcção à casa, e lá estava a carruagem do médico parada no empedrado, em frente dos estábulos, com o cocheiro sentado com um dos moços de estrebaria de Godolphin, jogando às cartas por debaixo de uma lanterna. Ouvia-lhes o murmúrio baixo das vozes e as gargalhadas. Dona voltou para trás e foi para junto de William, parado ao lado do caminho, com o pequeno rosto branco parecendo mais pequeno por causa da cabeleira e do chapéu que pedira emprestados. Via-lhe a coronha da pistola por baixo do casaco, e tinha a boca contraída numa linha fina e firme.
- Está pronto? - perguntou, e William acenou que sim, de olhos postos nela.
Seguiu-a ao longo do caminho, em direcção ao castelo. Dona passou por um momento de dúvidas, pois apercebeu-se de que talvez, tal como outros actores, William não tivesse a confiança necessária para desempenhar o papel e tropeçasse nas palavras por falta de habilidade, e nesse caso o jogo estaria perdido porque havia muita coisa que dependia dele. Dona olhou-o quando pararam em frente da porta fechada do castelo e deu-lhe uma palmada num ombro. O homem sorriu-lhe pela primeira vez naquela noite, com os pequenos olhos a brilharem no rosto redondo. Voltou a ter fé em como não falharia.
William transformara-se num médico, de um momento para o outro, e quando bateu à porta gritou, numa voz forte e de tons cheios que era surpreendentemente diferente da que Dona lhe conhecera em Navron:
- Está aí um tal Zachariah Smith? O doutor Williams, de Helston, poderá trocar umas palavras com ele?
Dona ouviu um grito de resposta do interior do castelo. Momentos depois a porta abriu-se e lá estava o seu amigo, o guarda, de pé à entrada, sem casaco, por causa do calor, com as mangas enroladas acima dos cotovelos e um sorriso de oreLha a orelha.
- Então, Sua Senhoria não se esqueceu da promessa? perguntou. - Muito bem, entre, senhor, é bem-vindo e temos aqui a cerveja suficiente para celebrar o bebé e senhor. É um rapaz?
- É verdade, meu amigo - respondeu William. - Um belo rapaz, a verdadeira imagem de Lord Godolphin. - Esfregou as mãos, como que num gesto de satisfação, e seguiu o carcereiro para o interior. A porta ficou aberta e Dona, agachada ao lado da muralha do castelo, ouvia-os moverem-se junto da entrada, escutou o entrechocar de copos e as gargalhadas do guarda.
- Pois é, doutor - dizia este -, sou pai de catorze filhos e quase posso dizer que sei tanto do assunto como o senhor. Que peso tinha o bebé?
- Ah... - respondeu William - Ah, sim, o peso, deixe-me ver... - Dona, que abafava as gargalhadas, imaginando William de sobrancelhas contraídas de perplexidade, tão ignorante como o próprio bebé sobre como responder a uma tal pergunta. - Aí por volta dos dois quilos, diria, apesar de não me recordar do peso exacto... - começou, mas ouviu-se um assobio de espanto e uma explosão de gargalhadas do assistente.
- E diz que isso é um belo rapaz? - exclamou. - Ora, senhor, não me parece que essa criança consiga sobreviver! O meu mais novo andava por volta dos cinco quilos e parecia um camarão
- Ah, mas eu disse dois? - interveio William apressadamente. - Foi engano, é claro, queria dizer sete. Ah, sim, agora me lembro, tinha cerca de sete ou oito quilos!
O carcereiro voltou a assobiar.
- Deus o ajude, senhor, mas isso é extraordinário! Vai ter de se preocupar com a saúde de Sua Senhoria e não com a da criança! A mãe está bem?
- Muito bem - confirmou William -, e com uma magnífica disposição. Quando a deixei, discutia com Lord Godolphin a respeito do nome que iriam dar ao bebé.
- Então é uma mulher mais resistente do que o que imaginava - retorquiu o carcereiro. - Pois bem, senhor, depois disso, parece que merece pelo menos três copos! Trazer ao mundo uma criança de oito quilos foi uma dura noite de trabalho. À sorte, senhor, à sua e da criança, e à da senhora que bebeu connosco esta tarde, pois se não me engano vale mais do que vinte senhoras Godolphin todas juntas!
Por instantes houve apenas silêncio, o tilintar dos copos, e depois Dona ouviu um grande suspiro do carcereiro e um estalo de lábios.
- Aposto que não têm disto em França - disse. - Só lá há uvas e rãs, caracóis e outras coisas do género, não é verdade? Acabei de levar um copo de cerveja ao prisioneiro, lá em cima. É capaz de não me acreditar, senhor, mas para quem vai morrer, o homem tem o sangue-frio de uma pedra. Engoliu a cerveja toda de uma vez e deu-me uma palmada no ombro, rindo-se.
- É o sangue estrangeiro - interveio o segundo guarda.
- Franceses, espanhóis ou holandeses, são todos iguais. Só pensam em mulheres e bebidas, e quando não estamos a olhar... dão-nos uma punhalada nas costas!
- Sim, e este, o que faz, no seu último dia? - continuou Zachariah. - Cobre folhas de papel com desenhos de pássaros e senta-se a fumar e a sorrir para ele próprio. Seria de pensar que pedisse um padre, pois esses fulanos são todos papistas. Roubam e violam num momento, e no momento seguinte é tudo confissões e crucifixos! Porém, o nosso francês não é  assim. Deve ser um homem com as suas próprias leis. Mais um copo, doutor?
-Obrigado, meu bom homem - respondeu William.
Dona ouviu o som da cerveja a correr para o copo e interrogou-se, pela primeira vez, até que ponto conseguiria William
aguentar e se não teria sido sensato aceitar o convite do carcereiro. William tossiu. Era uma tosse seca e dura, um pequeno sinal para Dona.
- Ah, estou a começar a ficar com interesse em ver o homem - disse - depois de tudo o que tenho ouvido dizer a
seu respeito. Deve ser uma pessoa desesperada, e o condado
faz bem em ver-se livre dele. Está a dormir, claro, se é que um
homem consegue dormir na sua última noite.
- A dormir? Nem pensar, senhor. Já bebeu dois copos
de cerveja e disse que o senhor os pagaria, e que se o doutor
aparecesse aqui antes da meia-noite, o acompanharia noutro
copo, à saúde do filho e herdeiro. - O carcereiro riu-se,
mas depois baixou a voz e acrescentou: - É ir contra as
normas, senhor, é claro, mas quando um homem vai ser enforcado de manhã, mesmo quando se trata de um pirata e de um
francês, não lhe podemos desejar mal, não é verdade? - Dona
não conseguiu ouvir a resposta de William, mas escutou o
tilintar dos copos e pés a arrastarem. O carcereiro riu-se outra vez e disse: - Obrigado, senhor, é um verdadeiro cavalheiro, e quando a minha mulher esperar novo filho lembrar-me-ei de si.
Dona escutou-lhe os passos a subirem as escadas para o
quarto do alto e engoliu em seco, cravando as unhas nas palmas das mãos. Era aquele o momento que mais receava, acima
de todos os outros, pois a mínima falha seria um desastre, podiam reconhecê-la, e tudo estaria perdido. Esperou até pensar
que se encontravam no exterior da cela, aproximou-se da porta
e escutou, ouvindo o som de vozes e a chave a girar na fechadura. Então, quando soou a pancada da pesada porta a fechar-se por detrás dos dois homens, aventurou-se a entrar no castelo e avistou os dois outros guardas de costas para ela. Um
estava sentado num banco, encostado à parede, bocejando e espreguiçando- se, e o outro permanecia de pé a olhar para a escada.
A luz era fraca porque existia apenas uma única lanterna, pendurada numa viga. Mantendo-se nas sombras da porta, Dona bateu e perguntou:
- O doutor Williams está aqui?
Os dois homens viraram-se quando lhe ouviram a voz, e o que se encontrava no banco pestanejou e inquiriu:
- Que queres dele?
- Mandaram-me dizer-lhe para voltar à casa - explicou Dona. - Sua Senhoria está pior.
- Não admira - declarou o homem junto da escada - depois de ter dado à luz um bebé de oito quilos! Muito bem, rapaz, vou chamá-lo. - Começou a subir as escadas, gritando:
- Zachariah, querem o doutor de volta à casa, imediatamente. Dona viu-o virar a curva da escada e ouviu bater à porta da cela. Nesse preciso instante, pontapeou a porta da muralha, fechou-a e correu o trinco, antes de o guarda que se encontrava no banco ter tempo para se pôr de pé e gritar:
- Eh, que diabo estás tu a fazer?
A mesa encontrava-se entre eles, e, quando o homem avançou para ela, Dona encostou-se-lhe com toda a força do corpo e derrubou-a, obrigando o homem a cair para debaixo dela. Nesse momento ouviu um grito abafado no alto da escada e o som de um golpe. A seguir, pegando no jarro de cerveja que se encontrava a seu lado, Dona atirou-o à lanterna e a luz apagou-se. O guarda libertou-se da mesa, gritando por Zachariah, e quando ergueu a voz, praguejando e tropeçando na escuridão, Dona apercebeu-se de que o francês a chamava, da escada.
- Dona, está aí?
- Sim - ofegou, meio tonta de gargalhadas, de excitação e de medo.
Ouviu-o saltar para o chão, por cima do corrimão de pedra da escada, e encontrar o homem na escuridão. Escutou os ruídos
da luta, perto dos degraus. O francês servia-se da coronha da pistola e Dona ouviu o golpe. O guarda caiu sobre a mesa, gemendo, e o francês pediu:
-Dona, dê-me o seu lenço, para fazer uma mordaça. Dona arrancou o lenço da cabeça.
Momentos depois já o pirata terminara a sua tarefa.
- Vigie-o - ordenou rapidamente. - Não se pode mexer. O francês esgueirou-se na escuridão e voltou a subir a escada para a cela.
- Apanhou-o, William? - perguntou. Ouviu-se um soluço estranhamente abafado vindo do alto, o som de qualquer coisa pesada a ser arrastada. O homem amordaçado ofegava a seu lado, enquanto lá em cima continuavam a arrastar um corpo. Teve um súbito desejo de se rir às gargalhadas, uma terrível sensação de histeria, mas sabia que se lhe cedesse nunca mais seria capaz de parar, que a histeria sairia de dentro dela como um grito.
O francês chamou-a do alto:
-Abra a porta, Dona, e veja se o caminho está livre. Apalpou o caminho para a porta, na escuridão, e as suas mãos debateram-se contra os pesados ferrolhos. Abriu-a e es preitou para o exterior. Do lado da casa chegava-Lhe o som de rodas, e quando olhou viu a carruagem do médico avançar ao longo do caminho. Conseguiu ouvir o estalar do chicote do cocheiro, que gritava para o cavalo.
Virou-se para dentro, para os avisar, mas o francês já se encontrava a seu lado. Olhou-lhe para o rosto e viu-lhe nos olhos as gargalhadas descaradas que aí vira quando o pirata arrancara a cabeleira a Godolphin.
- Pelos céus - murmurou o francês. - É o médico, que vai finalmente para casa!
Saltou para o meio do caminho, sem chapéu, erguendo uma das mãos.
- Que está a fazer? - exclamou Dona num murmúrio.
- Enlouqueceu?
Todavia, o francês riu-se e não lhe prestou atenção. O cocheiro fez deter o cavalo à entrada do castelo e o rosto comprido e magro do médico espreitou pela janela da carruagem.
- Quem és tu e o que queres? - perguntou, num tom irritado. O francês pousou as mãos na janela e sorriu.
- Já deu um herdeiro a Sua Senhoria? Ficou satisfeito com o bebé? - inquiriu.
- O diabo é que ficou satisfeito! - praguejou o médico.
- Há filhas gémeas na mansão e agradeço-te que tires as mãos da janela da minha carruagem e me deixes passar, porque tudo o que desejo é jantar e ir para a cama!
- Ah, mas primeiro vai dar-nos uma boleia, não é verdade? - retorquiu o pirata, e instantes depois já derrubara o cocheiro do assento, atirando-o aos trambolhões para o caminho, e pedindo: - Suba para meu lado, Dona. Já que temos de nos lançar numa cavalgada apressada, ao menos podemos fazê-lo com estilo.
Fez o que lhe pediam, estremecendo de gargalhadas. William, com o estranho casaco preto, sem cabeleira e sem chapéu, fechava a porta do castelo por detrás das costas, apontando uma pistola ao espantado médico.
- Vai lá para dentro, William - disse-lhe o francês - e oferece um copo de cerveja ao doutor, se ainda te resta alguma. Pelos céus, a noite foi muito mais difícil para ele do que estes últimos minutos o foram para nós!
A carruagem precipitou-se ao longo do caminho, com o cavalo do médico, que nunca antes tivera de galopar, a ser forçado a fazê-lo, e atingiram os portões do parque, que ainda se encontravam bem fechados.
- Abram os portões - gritou o francês, quando viu aparecer um rosto ensonado na janela da casa do porteiro. - O teu amo teve filhas gémeas, e esta noite eu e o meu grumete bebemos cerveja suficiente para nos durar trinta anos!
Os portões abriram-se, com o porteiro a olhá-los com um ar de espanto, de boca toda aberta, enquanto dentro da carruagem se ouviam os gritos de protesto do médico.
- Para onde vamos, William? - perguntou o pirata, e William meteu a cara redonda de fora da carruagem e respondeu:
- Há cavalos à nossa espera na estrada, senhor - explicou - e vamos para Porthleven, na costa.
- Quanto a mim, até podemos ir a caminho da perdição! - retorquiu, passando um braço em volta de Dona e beijando-a. - Não sei se sabe que esta é a minha última noite neste mundo, e que vou ser enforcado de manhã.
Com o cavalo a galopar como se tivesse enlouquecido e a poeira branca a voar das rodas, a carruagem virou para a estrada.
Capitulo vigésimo quarto
A aventura terminara, bem como a loucura e todas as gargalhadas. Na estrada, algures para trás deles, jazia uma carruagem tombada numa valeta, com um cavalo sem brida nem rédeas que pastava junto de uma sebe. Havia também um médico que caminhava pela estrada, à procura do jantar, e havia três guardas amarrados e amordaçados, deitados no chão de uma cela.
Essas coisas pertenciam ao passado e não tinham lugar no resto da noite, que era escura como nunca. As estrelas amontoavam-se no céu como pequenos pontos de luz e o crescente da Lua desaparecera.
Dona encontrava-se ao lado do cavalo, olhando para baixo, para o lago, e viu que este estava separado do mar por um elevado banco de pedras soltas, e que não obstante as ondas embaterem na costa as águas do lago mantinham-se tranquilas e imperturbadas. Não havia vento, e o céu, apesar de toda a escuridão, tinha aquela estranha claridade e radiação das noites de Verão. De vez em quando, uma onda um pouco maior do que as companheiras ia embater na praia de pedras, murmurava, suspirava, e o lago, captando um tremor vindo do mar, mostrava uma ruga sobre a sua superfície de vidro e estremecia um instante antes de a ruga se sumir entre os juncos das margens. Uma vez por outra ouviam-se ruídos de aves, o grito espantado de uma galinhola que patinhava entre os juncos e se escondia, agitando furtivamente os caules altos, e havia também sussurros e movimentos de todas aquelas coisas desconhecidas e sem nome que só aparecem no mundo silencioso da noite, que vivem por instantes, que respiram, e que passam pelos seus momentos.
Para lá dos bosques e das colinas ficava a aldeia de Porthleven, onde os barcos de pesca se encontravam ancorados no cais. William olhou para o rosto do amo, e depois voltou a espreitar por cima do ombro, na direcção das colinas.
- Seria mais sensato, senhor - disse -, se eu fosse agora, antes de nascer o dia, à procura de um barco. Darei a volta com ele, até ali, à praia, e poderemos partir de madrugada.
- Achas que descobrirás um barco? - perguntou o francês.
- Sim, senhor - respondeu -, está um pequeno barco à entrada da baía. Fiz perguntas, senhor, antes de sair de Gweek.
- William é um homem cheio de recursos - comentou Dona - e nunca se esquece de nada. É por causa dele que não haverá enforcamento esta manhã, mas apenas um pequeno barco a zarpar para o mar.
O francês olhou para o seu servidor, o servidor olhou para Dona, parada ao lado do lago, e de súbito virou-lhes as costas e afastou-se, passando por cima das pedras em direcção às colinas. Com o casaco preto e o grande chapéu de três bicos, era uma figura pequena e curiosa. Desapareceu na escuridão e fi caram sozinhos. Os cavalos pastavam na erva à beira do lago, e as suas bocas macias emitiam um ruído suave de coisas esmagadas. No bosque em frente, as altas árvores agitaram-se, sussurraram e aquietaram-se.
Havia uma cova à beira do lago, com o chão de fina areia branca, e foi aí que prepararam a fogueira. As chamas saltaram para o ar e os ramos secos estalaram e partiram-se.
O francês ajoelhou junto da fogueira, com as chamas a iluminarem-lhe o rosto, a garganta e as mãos, e Dona perguntou:
- Recorda-se de uma vez me ter prometido que prepararia uma galinha no espeto?
- Sim - retorquiu -, mas esta noite não tenho galinha, não tenho espeto, e o meu grumete terá de se contentar com pão torrado.
Franziu a testa, concentrado no seu trabalho, e como o calor da fogueira era grande, sacudiu a cabeça e limpou a testa à manga da camisa, e Dona soube que era aquela a imagem que não poderia esquecer, a fogueira, o lago, o céu negro salpicado de estrelas, e o mar a quebrar-se nas pedras por detrás deles.
-Então... - disse o francês mais tarde, enquanto comiam, com a fogueira já mais baixa e com o acre cheiro a madeira queimada a pairar no ar - lutou contra um homem, Dona, e ele morreu no chão de Navron House.
Dona olhou-o por cima das chamas, mas o francês não a fitava. Esmagava o pão entre os dentes.
- Como soube disso? - inquiriu.
- Porque fui acusado do seu assassínio - retorquiu - e quando me acusaram recordei-me do seu companheiro de Hampton Court e do rosto de um homem que olhou para mim com ódio quando lhe roubei os anéis. Compreendi o que se passou naquela noite, depois de me ter ido embora.
Dona colocou as mãos em volta dos joelhos e olhou para o lago.
- Quando fomos à pesca... - disse - não fui capaz de tirar o anzol do peixe, lembra-se? Porém, o que fiz nessa noite foi diferente. Ao princípio tive medo, depois fiquei zangada, e quando senti a ira da zanga tirei o escudo da parede e... ele morreu.
- O que foi que a fez zangar-se?
Pensou por momentos, tentando recordar-se, e depois respondeu:
- Foi James. James, que acordou e começou a chorar. O francês não fez comentários. Dona, ao olhá-lo, verificou que já acabara de comer e estava sentado tal como ela, com as mãos em volta dos joelhos, e que olhava para o lago.
- Ah... - disse - então foi James, que acordou e chorou, e você e eu, Dona, encontramo-nos no lago de Looe em vez de em Coverack, e a sua resposta é igual à minha.
Atirou uma pedra para o lago, provocando uma ondulação que se espalhou à superfície da água e desapareceu como se nunca tivesse existido. Depois deitou-se na areia e estendeu-Lhe a mão. Dona aproximou-se e deitou-se a seu lado.
- Creio - prosseguiu o francês - que a senhora de St. Columb nunca mais andará em correrias pelas ruas de Londres, porque já teve a sua conta de aventuras.
- A senhora de St. Columb - respondeu Dona - irá tornar-se numa graciosa matrona, sorrirá para os criados, para os rendeiros e para o povo da aldeia, e um dia terá netos nos joelhos e irá contar-lhes a história de um pirata que fugiu...
- E que acontecerá ao grumete?
- O grumete passará algumas noites acordado, de vez em quando, morderá as unhas e baterá na almofada, e depois adormecerá e talvez volte a sonhar.
O lago jazia, negro e silencioso, aos pés de ambos, e para lá dele ouvia-se o mar a quebrar-se nas pedras soltas.
- Há uma casa na Bretanha - disse o francês - onde viveu outrora um homem chamado Jean-Benoit Aubéry. Pode ser que volte para lá um dia, e que cubra as paredes nuas, do chão ao tecto, com desenhos de aves e retratos do seu grumete. Porém, à medida que os anos forem passando, os retratos do grumete tornar-se-ão enevoados e indistintos.
- Em que parte da Bretanha fica a casa desse tal Jean- Benoit Aubéry? - perguntou Dona.
- Em Finistère - disse o francês -, o que quer dizer, minha Dona, o fim da terra.
Parecia-lhe poder ver as falésias ásperas e a superfície escalavrada da terra, ouvir o mar a precipitar-se contra os rochedos, e soube que o sol por vezes queimava as ervas, deixando-as ressequidas e sequiosas, e como, outras vezes, soprava um vento suave do oeste que trazia consigo o nevoeiro e a chuva.
- Há aí um espigão de rochas aguçadas - prosseguiu o pirata - que penetra no Atlântico e a que chamamos Pointe du Raz. Não há árvore que consiga aí viver, nem uma folha de erva, pois é varrida, dia e noite, pelo vento do oeste. No mar, para lá da ponta, chocam-se duas marés que se misturam, pelo que há sempre agitação nas águas e um constante fervilhar de espuma, que se ergue no ar até aos quinze metros de altura.
Uma brisa fria soprou do centro do lago, sobre eles, e de repente as estrelas ficaram enevoadas e esbatidas. Era a hora da noite em que tudo está silencioso e imóvel, sem movimentos de árvores ou animais, sem sussurros de juncos, sem qualquer outro som para lá do mar a quebrar-se no banco de pedras.
- Acha - perguntou Dona - que o La Mouette está à sua espera lá fora, no mar, e que o encontrará de manhã?
- Sim - respondeu.
- Trepará a bordo, e será capitão outra vez, segurando a roda do leme entre as mãos e sentindo o convés debaixo dos pés?
- Sim.
- E William... William que não gosta do mar, vai ficar maldisposto e desejoso de se encontrar de volta em Navron...
- Não. William sentirá o sal nos lábios, e o vento nos cabelos, e talvez antes da noite, se o vento se mantiver firme, esteja de novo a olhar para a terra e a cheirar as ervas quentes do promontório, e isso quererá dizer que estará na Bretanha e em casa.
Dona permanecia deitada de costas, tal como ele, com as mãos atrás da cabeça. Havia agora uma mudança no céu, a palidez da falsa madrugada, e o vento soprava um pouco mais forte.
- Pergunto a mim mesmo - disse o francês - quando foi que o mundo se confundiu pela primeira vez e os homens se esqueceram de como viver, de como amar e serem felizes. Outrora, minha Dona, havia um lago como este na vida de cada homem.
- Talvez existisse uma mulher - respondeu Dona - e a mulher pedisse ao seu homem para lhe construir uma casa de juncos, e depois uma casa de madeira, e depois uma de pedra, e a seguir viessem outros homens e mulheres, pelo que em breve já não havia colinas, nem lagos, mas apenas pequenas casas redondas, de pedra, todas iguais.
- E você e eu - murmurou - temos o nosso lago e as nossas colinas apenas por esta noite, e só faltam três horas para o Sol nascer.
Pareceu-lhes, quando o dia surgiu, que havia nele uma brancura e uma claridade fria que nunca antes haviam conhecido. O céu era duro e brilhante e o lago a seus pés parecia uma folha de prata. Levantaram-se da concavidade da areia e o francês lavou-se na água fria, tão gelada como as águas do norte. Por fim as aves começaram a murmurar e a sussurrar nos bosques. O francês saiu do lago e vestiu-se, e depois caminhou para o banco de pedras, onde a maré estava alta e uma faixa de espuma lambia as pedras. A cem metros da praia de calhaus avistava-se um pequeno barco de pesca, oscilando na âncora. Quando William viu as figuras na praia, pegou nos compridos remos e aproximou-se.
Ficaram juntos, aguardando o barco, e de súbito, no horizonte distante, Dona distinguiu a gávea branca de um navio, que navegava para terra. O navio ganhou contornos e formas, e tinha uns curiosos mastros vermelhos e inclinados, e as velas enfunadas.
O La Mouette estava de volta, em busca do seu capitão, e quando este trepou para o barco de pesca e içou a pequena vela no mastro solitário, a Dona pareceu-lhe que aquele momento fazia parte de um outro momento, quando estivera no alto do promontório e olhara para o mar. O navio deslizava no horizonte como um símbolo de fuga, e parecia ter, sob a luz da manhã, qualquer coisa estranha à sua volta, como se não fizesse parte do nascimento daquele novo dia e pertencesse a uma outra época e a um outro mundo.
Parecia um navio pintado sobre um mar tranquilo e branco, e Dona estremeceu repentinamente porque as pedras estavam geladas sob os seus pés nus, enquanto uma pequena onda os salpicava, suspirava e desaparecia. Então, surgindo do mar como uma bola de fogo, o Sol ergueu-se, vermelho e violento.

 

 

                                                                  Daphne Du Maurier

 

 

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