Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FLOR DE VIDRO / George R. R. Martin
A FLOR DE VIDRO / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

UM DIA, QUANDO EU ERA APENAS UMA MENINA no primeiro auge de minha verdadeira juventude, um rapaz me deu uma flor de vidro como símbolo de seu amor.
Ele era um rapaz raro e precioso, embora, confesso, há muito tenha esquecido seu nome. Rara e preciosa também era a flor que ele me deu. Nos mundos de plástico e aço onde passei minhas vidas, a antiga arte de soprar vidro se perdeu, mas o artesão desconhecido que fez a minha flor lembrava-se bem dela. Minha flor tem uma haste longa e delicada, curva e graciosa, toda de vidro fino de excelente qualidade, e daquele frágil suporte desabrocha o botão, grande como meu punho fechado, impossivelmente exato. Cada detalhe está captado ali, congelado em cristal por toda a eternidade; pétalas grandes e pequenas se aglomeram, explodindo para fora do centro da flor num lento e transparente turbilhão, cercadas por uma coroa de seis folhas largas, caídas, cada uma com seu traçado de veias intacto, cada uma única. Era como se um alquimista tivesse um dia passado por um jardim, e num momento de diversão ociosa tivesse transmutado uma flor especialmente grande e bonita em vidro.
A única coisa que lhe falta é vida.
Guardei essa flor comigo por quase duzentos anos, muito depois que deixei o rapaz que a deu para mim e o mundo onde isso aconteceu. Por todos os variados capítulos de minhas vidas, a flor de vidro sempre esteve ao alcance de minha mão. Eu gostava de deixá- la num vaso de madeira envernizada e colocá-la no alpendre de uma janela. Às vezes as folhas e as pétalas captavam o sol e explodiam em brilho por um instante incandescente; em outros momentos elas filtravam e fragmentavam a luz, espalhando arco-íris borrados no piso. Com freqüência antes do crepúsculo, quando o mundo ficava mais pálido, a flor parecia desvanecer de vista inteiramente, e eu poderia ficar sentada olhando um vaso vazio. Mas, quando a manhã chegava, a flor estaria novamente lá. Ela nunca me faltou.
A flor de vidro era terrivelmente frágil, mas jamais aconteceu algo com ela. Eu cuidava dela muito bem; melhor, talvez, do que jamais cuidei de qualquer coisa ou pessoa. Sobreviveu a vários amantes, mais de uma dúzia de profissões, e mais mundos e amigos do que posso me lembrar. Estava comigo na minha juventude em Ash e Erikan e Shamdizar, e depois em Esperança Errante e Vagabundo, e ainda depois quando envelheci em Dam Tullian e Lilith e Gulliver. E quando finalmente deixei de vez o espaço humano, coloquei todas as minhas vidas e todos os mundos dos homens atrás de mim, e novamente me tornei jovem, a flor de vidro ainda estava ao meu lado.
E, por muito tempo, em meu castelo construído sobre pilares, em minha casa de dor e renascimento onde se joga o jogo da mente, entre os pântanos e fedores de Croan'dhenni, longe de toda a humanidade com exceção das poucas almas perdidas que nos procuram... também estava lá, a minha flor de vidro.
No dia em que Kleronomas chegou.
— Joachim Kleronomas —- eu disse. — Sim.
Há ciborgues e ciborgues. Tantos mundos, tantas culturas diferentes, tantos conjuntos de valores e níveis de tecnologia. Alguns são metade orgânicos, uns mais, outros menos; alguns exibem apenas uma única mão metálica, o resto de seus cibercorpos inteligentemente ocultos por baixo da carne. Alguns ciborgues usam sintacarne, que é indistinguível da pele humana, embora isso não seja grande feito, devido à variedade de peles que se podem ver entre os mil mundos. Alguns escondem o metal e exibem a carne; com outros, a recíproca é verdadeira.

.
.
.

.
.
.

O homem que se chamava Kleronomas não tinha carne para esconder ou exibir. Um ciborgue ele se dizia, mas, em pé à minha frente, parecia mais um robô, insuficientemente orgânico para passar até mesmo por um andróide.
Ele estava nu, se é que uma coisa de metal e plástico pode estar nua. Seu peito era pintado; alguma liga de metal ou plástico preto reluzente, eu não sabia dizer. Os braços e pernas eram de plastaço transparente. Por baixo daquela pele falsa, eu via o metal escuro de seus ossos de duralloy, as barras e flexores que eram os músculos e tendões, os micromotores e computadores-sensores, o intrincado padrão de luzes que corria para cima e para baixo de seu neurossistema supercondutor. Seus dedos eram de aço. Na mão direita, longas garras de prata saltavam dos nós dos dedos quando os fechava num punho.
Olhava para mim. Seus olhos eram lentes cristalinas embutidas em soquetes de metal, movendo-se para a frente e para trás em algum tipo de gel translúcido verde. Não havia pupilas visíveis; por trás de cada implacável íris rubra queimava uma fraca luz que dava ao seu olhar um brilho vermelho de algo maligno.
— Sou assim tão fascinante? — perguntou ele. Sua voz era surpreendentemente natural; profunda e ressonante, sem ecos metálicos para corroer a humanidade de suas inflexões.
— Kleronomas — falei. — Seu nome é fascinante, certamente. Há muito tempo, houve outro homem com esse nome, um ciborgue, uma lenda. É claro que você sabe disso. O da Pesquisa Kleronomas. O fundador da Academia do Conhecimento Humano, em Avalon. Seu ancestral? Talvez corra metal em sua família.
— Não — respondeu o ciborgue. — Eu mesmo. Eu sou Joachim Kleronomas.
Sorri.
— E eu sou Jesus Cristo. Gostaria de conhecer meus apóstolos?
— Você duvida de mim, Sábia?
— Kleronomas morreu em Avalon há mil anos.
— Não. Ele está aqui na sua frente.
— Ciborgue, estamos em Croan'dhenni. Você não teria vindo aqui a não ser que procurasse renascimento, a não ser que procurasse ganhar vida nova no jogo da mente. Então esteja avisado. No jogo da mente, suas mentiras serão arrancadas de você. Sua carne e seu metal e suas ilusões, nós tomaremos tudo, e no fim só haverá você, mais nu e sozinho do que jamais poderá imaginar. Portanto, não desperdice meu tempo. Tempo é a coisa mais preciosa que possuo. A coisa mais preciosa que qualquer um de nós tem. Quem é você, ciborgue?
—- Kleronomas — respondeu ele. Com zombaria na voz? Não soube dizer. Seu rosto não foi feito para sorrir.
— Você tem nome? — perguntou-me.
— Vários.
— Qual você usa?
— Meus jogadores me chamam Sábia.
— Isso é um título, não um nome. Sorri.
— Você é viajado, então. Como o verdadeiro Kleronomas. Bom. Meu nome de nascimento era Cyrain. Suponho que esse, de todos os meus nomes, é o que estou mais acostumada a utilizar. Usei-o pelos primeiros cinqüenta anos de minha vida, até ir para Dam Tullian e estudar para ser uma sábia e assumir um novo nome com o título.
— Cyrain — repetiu. — Só isso?
— Só.
— Em que mundo você nasceu? .
— Ash.
— Cyrain de Ash. Quantos anos você tem?
— Em contagem padrão?
— Claro.
Dei de ombros.
— Quase duzentos. Perdi a conta.
— Você parece uma criança, uma menina perto da puberdade, não mais que isso.
— Sou mais velha que meu corpo.
— Assim como eu. A maldição do ciborgue, Sábia, é que as partes podem ser substituídas.
— Então você é imortal? — desafiei.
— Grosso modo, sim.
— Interessante. Contraditório. Você vem aqui mim, para Croan'dhenni e seu Artefato, para o jogo da mente. Por quê? Este é um lugar para onde vêm os moribundos, ciborgue, na esperança de ganhar vida. Não recebemos muitos imortais.
— Busco um prêmio diferente — respondeu o ciborgue.
— Sim?
— Morte. Vida. Morte. Vida.
— Duas coisas diferentes — retruquei. — Opostas. Inimigas.
— Não — respondeu o ciborgue. — Elas são a mesma coisa.
Há seiscentos anos, uma criatura conhecida em lenda como o Branco desceu entre os Croan'dhennis na primeira nave espacial que jamais haviam visto. Se as descrições no folclore croan'dhique podem ser confiáveis, então o Branco não era de nenhuma raça que já encontrei, nem ouvi falar, embora eu seja muito viajada. Isso não me surpreende. O reino do homem e seus mil mundos (talvez haja o dobro desse número, talvez menos, mas quem pode contar?), os impérios espalhados de Fyndii e Damush e Cvhern e N'or Talush, e todos os outros sencientes que nos são conhecidos por contatos ou rumores, todos estes juntos, todas aquelas terras e estrelas e vidas coloridas pela paixão e sangue e história, vencendo orgulhosos os anos-luz, através dos golfos negros que só os volcryn conheceram de fato, tudo isso, todo o nosso pequeno universo... é apenas uma ilha de luz cercada por uma área muitíssimo mais vasta de sombra e mito que acaba caindo na escuridão da ignorância. E isto apenas em uma pequena galáxia, cujos limites verdadeiros não deveremos alcançar jamais, ainda que existamos por mais um bilhão de anos. No fim das contas, o simples tamanho das coisas nos vencerá, não importa se lutemos ou corramos de medo; estou consciente disso.
Mas não me deixo vencer facilmente. Este é meu orgulho, meu último e único orgulho; não é muita coisa para se enfrentar as trevas, mas já é alguma coisa. Quando o fim chegar, eu o enfrentarei com luta.
O Branco era parecido comigo nesse ponto. Ele era um sapo que vinha de uma lagoa além da nossa, um lugar perdido na neblina onde nossas pequenas luzes ainda não brilharam nas águas escuras. Seja qual for o tipo de criatura que possa ter sido, seja qual for o fardo de história e evolução que carregava em seus genes, era sem dúvida do meu tipo. Nós dois éramos mariposas furiosas, voando sem descanso de estrela a estrela porque, sozinhos entre nossos companheiros, sabíamos como era curto o nosso dia. Nós dois encontramos nosso destino nestes pântanos de Croan'dhenni.
O Branco veio totalmente só a este lugar, pousou sua pequena nave (vi os restos: um brinquedo aquela nave, mas com linhas profundamente alienígenas para mim, e deliciosamente arrepiante), e, explorando, descobriu uma coisa.
Uma coisa mais velha do que ele, e mais estranha. O Artefato.
Qualquer instrumento estranho que ele possuísse, qualquer conhecimento secreto alienígena que tivesse, qualquer instinto que o tivesse comandado; tudo está perdido agora, e nada disso importa. O Branco sabia, sabia alguma coisa que os sencientes nativos jamais haviam imaginado, ele sabia o propósito do Artefato, sabia como ativá-lo. Pela primeira vez em... mil anos? Um milhão? Pela primeira vez em muito tempo, o jogo da mente foi jogado. E o Branco mudou, emergiu do Artefato como outra coisa, como o primeiro. O primeiro senhor da mente. O primeiro senhor da vida e da morte. O primeiro mestre da dor. O primeiro senhor da vida. Os títulos nascem, se desgastam, são descartados e esquecidos, e nenhum deles importa.
Independente do que eu seja, o Branco foi o primeiro.
Tivesse o ciborgue pedido para conhecer meus Apóstolos, eu não o desapontaria. Quando ele foi embora, eu os reuni.
— O novo jogador — disse-lhes — chama a si mesmo de Kleronomas. Quero saber quem é ele, o que é ele e o que espera ganhar. Descubram isso para mim.
Eu podia sentir a fome e o medo deles. Os Apóstolos são uma ferramenta útil, mas lealdade não é para eles. Reuni ao meu lado doze Judas Iscariotes, cada um deles ansioso por aquele beijo.
— Vou providenciar uma varredura completa — sugeriu o dr. Lyman, olhos pálidos me considerando, o sorriso bajulador tremendo na boca.
— Será que ele consente numa interface? — perguntou Verde Deidade-9, meu próprio cibernético. Sua mão direita, de carne vermelha e preta queimada de sol, estava fechada num punho; a esquerda era uma bola de prata com uma fenda por onde saía um ninho de tentáculos que se contorciam. Por baixo das sobrancelhas grossas, onde ele deveria ter os olhos, uma faixa lisa de vidro escuro espelhado estava embutida no crânio. Os dentes eram cromados. Seu sorriso era muito brilhante.
— Vamos descobrir — respondi.
Sebastian Cayle flutuava em seu tanque, um embrião distorcido com uma cabeça monstruosa, nadadeiras movendo-se devagar, grandes olhos cegos voltados em minha direção através de fluidos esverdeados, túrgidos, enquanto bolhas subiam por sua pele nua rosada. Ele mente, disse a voz na minha cabeça. Vou descobrir a verdade para você, Sábia.
— Ótimo — respondi.
Tr'k'nn'r, meu telepata Fyndii, cantou para mim numa voz agudíssima, nos limites da audição humana. Sobrepujava todos eles como um desses bonecos de desenho de criança, um boneco de três metros de altura, com articulações demais, dobras em todos os lugares errados, em todos os ângulos errados, juntado por ossos velhos acinzentados como se queimados por algum fogo antigo. Mas os olhos cristalinos sob as sobrancelhas protuberantes ferviam enquanto cantava, e fluidos negros cheirosos escorriam do fundo de sua boca vertical sem lábios. Sua canção era de dor e gritos e de nervos em chamas, de segredos revelados, da verdade arrancada fumegante e crua de todos os seus recantos ocultos.
— Não — falei. — Ele é um ciborgue. Só sente dor se quiser. Fecharia seus receptores e deixaria você sozinho, e sua canção encontraria o silêncio.
A neuroputa Shayalla Loethen sorria resignada.
— Então não há nada para eu trabalhar também, Sábia?
— Não estou certa — admiti. — Ele não possui genitália aparente, mas se ainda tiver algo de orgânico, seus centros de prazer deverão estar intactos. Ele afirma ter sido macho. Os instintos ainda podem estar passíveis de funcionamento. Descubra.
Ela assentiu. Seu corpo era macio e branco como a neve, e às vezes frio, quando ela queria frio, e às vezes incandescente, quando era seu desejo. Os lábios que agora mordiscava de antecipação eram vermelhos-vivos. Os trajes que dançavam ao seu redor mudavam de forma e cor a todo instante, e em seus dedos brincavam fagulhas, fazendo arcos entre suas longas unhas pintadas.
— Drogas? — perguntou Braje, biomédica, genengenheira, envenenadora. Estava sentada pensando, mascando algum tranqüilizante elaborado por ela própria, o corpo inchado tão úmido e macio quanto os pântanos lá de fora. — Verdadex? Agonina? Esperon?
— Duvido — retruquei.
— Doenças — sugeriu ela. — Mantrax ou gangrena. A praga lenta, e nós oferecemos a cura? —- Ela riu.
— Não — respondi seca.
E o restante, um por vez. Todos tinham sua sugestão, suas formas de descobrir coisas que eu queria saber, de se mostrarem úteis para mim, de merecer minha gratidão. Assim são meus Apóstolos. Eu os ouvi, me deixei ser levada pelo burburinho de vozes, pesei, considerei, dei ordens e finalmente mandei todos embora, todos menos um.
Khar Dorian será aquele que me beijará quando o dia finalmente chegar. Não preciso ser uma Sábia para estar ciente disso.
O resto deles quer alguma coisa de mim. Quando conseguirem, irão embora. Khar conseguiu seu desejo há muito tempo, e mesmo assim ele volta e volta e volta, ao meu mundo e à minha cama. Não é amor por mim que o traz de volta, nem a beleza do corpo jovem que uso, nem nada tão simples quanto as riquezas que ele ganha. Tem coisas mais grandiosas em mente.
— Ele veio com você — falei. —- Desde Lilith. Quem é ele?
— Um jogador — respondeu Dorian, sorrindo torto para mim, me tentando. Ele é surpreendentemente bonito. Esbelto e rústico e bonito, com a arrogância e a sexualidade masculina fresca de um homem na casa dos trinta, cheio de saúde e poder e hormônios. Seu cabelo é louro e longo e solto. Seu maxilar é forte e o rosto liso, o nariz reto sem defeitos, os olhos um halo de azul vibrante. Mas existe algo de velho vivendo por trás daqueles olhos, algo de velho e cínico e sinistro.
— Dorian, não tente brincar comigo. Ele é mais do que um simples jogador. Quem é ele?
Khar Dorian levantou-se, esticou-se preguiçoso, bocejou e sorriu.
— Quem ele diz que é — retrucou meu feitor de escravos. — Kleronomas.
Moralidade é uma roupa justa que, quando chega a apertar, aperta mesmo, mas a vastidão entre as estrelas logo a descostura, separando-a em muitos fios, cada um de colorido brilhante, mas sem formar padrão discernível. O vagabundo modernoso é um rústico espetacular em Cathaday, os imirianos derretem em Vess, os vessanos congelam em Imir, e as luzes móveis que os felaneis vestem em lugar da roupa provocam estupros, tumultos e assassinatos em alguns mundos. O mesmo ocorre com a moral. O Bem não é mais constante que o corte de uma lapela; a decisão de tomar uma vida senciente não pesa mais do que a decisão de deixar os seios de fora, ou escondê-los.
Há mundos em que sou um monstro. Parei de me importar com isso há muito tempo. Vim para Croan'dhenni com meu próprio senso de moda, e nenhuma preocupação com os julgamentos estéticos dos outros.
Khar Dorian se considera um feitor de escravos, e me diz que o que fazemos é realmente negociar a carne humana. Ele pode se chamar do que quiser. Não sou feitora; a acusação me ofende. Um feitor vende seus clientes em servidão, os priva de liberdade, mobilidade e tempo, preciosas comodidades. Eu não faço tal coisa. Sou apenas uma ladra. Khar e seus subordinados os trazem para mim das cidades superlotadas de Lilith, das montanhas difíceis e das vastidões geladas de Dam Tullian, de palafitas podres ao longo dos canais de Vess, de bares nos espaçoportos de Fellanora e Cymeranth e Shrike, de onde quer que possa encontrá-los, ele os apanha e os traz para mim, e eu roubo deles e os liberto.
Muitos se recusam a ir.
Eles se aglomeram do lado de fora das muralhas de meu castelo na cidade que construíram, atiram presentes para mim quando passo, chamam meu nome, me pedem favores. Eu lhes dei liberdade, mobilidade e tempo, e eles desperdiçam isso tudo com futilidades, esperando ganhar de volta a única coisa que roubei.
Roubo seus corpos, mas quem perde as almas são eles mesmos.
E talvez eu seja muito dura comigo mesma me chamando de ladra. Essas vítimas que Khar me traz são jogadores involuntários do jogo da mente, mas jogadores mesmo assim. Outros pagam tanto e arriscam tanta coisa pelo mesmo privilégio. Alguns, nós chamamos de jogadores, e outros, chamamos de prêmios, mas quando a dor começa e o jogo da mente se inicia, somos todos a mesma coisa, todos nus e sozinhos, sem riquezas ou saúde ou status, armados apenas com a força que mora dentro de nós. Ganhar ou perder, viver ou morrer, nós decidimos, apenas nós.
Eu lhes dou uma chance. Alguns até venceram. Muito poucos, na verdade, mas quantos ladrões dão qualquer chance às suas vítimas?
Os Anjos de Aço, cujos mundos ficam longe de Croan'dhenni, do outro lado do espaço humano, ensinam a seus filhos que a única virtude é a força e a fraqueza, o único pecado, e pregam que a verdade de sua fé está escrita com todas as letras no próprio universo. Difícil argumentar esse ponto. Pelo seu credo, tenho todo direito moral sobre os corpos que tomo, porque sou mais forte e portanto melhor e mais sagrada do que os que nasceram com aquela carne.
Infelizmente a garotinha nascida no meu presente corpo não era um Anjo de Aço.
— Com o bebê são três, mesmo que o bebê seja feito de metal e plástico e se considere uma lenda — comentei.
— Ahn? — Rannar olhou para mim sem entender. Ele não é tão viajado quanto eu, e a referência, algo que desenterrei de minha juventude esquecida em algum mundo por onde ele jamais andou, escapou-lhe inteiramente. Seu rosto longo e amargo tinha um ar de inquietação paciente.
— Agora temos três jogadores — disse-lhe com cuidado. — Podemos jogar o jogo da mente.
Isto Rannar entendeu.
— Ah, sim, claro. Vou providenciar imediatamente, Sábia.
Craimur Delhune era o primeiro. Uma coisa antiga, quase tão velha quanto eu, embora tivesse vivido toda a vida no mesmo corpo miúdo. Por isso estava tão acabado. Não tinha cabelos e estava todo enrugado, uma caricatura arquejante meio cega, a carne cheia de liga de metal plástico e implantes de metal que trabalhavam dia e noite só para mantê-lo vivo. Não era algo que pudessem continuar a fazer por muito tempo, mas Craimur Delhune ainda não tinha vivido o bastante, e então viera a Croan'dhenni para pagar pela carne e começar tudo novamente. Estava esperando havia quase meio ano padrão.
Rieseen Jay era um caso estranho. Tinha menos de cinqüenta e estava com uma saúde decente, embora a carne tivesse suas próprias cicatrizes. Rieseen estava entediada. Havia experimentado todos os prazeres que Lilith oferecia, e Lilith oferece muitos prazeres. Provara cada comida, viajara em cada droga, fizera sexo com homens, mulheres, alienígenas e animais, arriscou a vida esquiando nas geleiras, atiçando dragões-das-profundezas, lutando nas guerras aéreas para o deleite dos holofãs em toda parte. Achava que um novo corpo seria justamente o que acrescentaria gosto à vida. Talvez um corpo de homem, ela pensava, ou uma carne descorada alienígena. Temos poucos como ela.
E com Joachim Kleronomas, eram três.
No jogo da mente, há lugar para sete. Três jogadores, três prêmios, e eu.
Rannar me ofereceu um porta-fólio grosso, cheio de fotografias e relatórios sobre os novos prêmios que chegaram nas naves de Khar Dorian, a Fênix Brilhante, a Segunda Chance, a New Deal e a Caldeirão de Carne (Khar sempre teve um certo senso de humor negro). O mordomo não saía de perto de mim, solícito e prestimoso, enquanto eu virava as páginas e fazia minhas escolhas. Ela é deliciosa, disse ele quando passei pela foto de uma vessana magra com olhos amarelos assustados que deixavam entrever uma mistura de genes híbridos. Muito forte e saudável este, disse depois, quando me detive considerando um rapaz bastante musculoso de olhos verdes e cabelos negros que batiam na cintura. Ignorei-o. Eu sempre o ignoro.
— Ele — escolhi, pegando a ficha de um rapaz magro como um estilete, a pele grossa coberta de tatuagens.
Khar o adquirira das autoridades de Shrike, onde fora condenado por matar outro jovem de dezesseis anos. Em muitos mundos, Khar Dorian, o infame traficante, contrabandista, guerreiro e feitor, tinha um nome que era sinônimo do mal; os pais assustavam as crianças com ele. Em Shrike, ele era um cidadão correto que prestava grande serviço à comunidade comprando o lixo das prisões.
— Ela — escolhi, pondo de lado uma segunda fotografia, de uma garota gordinha de mais ou menos trinta anos padrão cujos olhos verdes traíam uma certa alienação. De Cymeranth, dizia a ficha. Khar transformou uma de suas naves numa instalação criogênica para os mentalmente afetados e se servia de alguns corpos jovens, saudáveis e atraentes. Este era macio e gordo, mas isso mudaria assim que uma mente ativa usasse a carne novamente. A proprietária original havia consumido muito pó-do-sonho.
— E este — terminei. A terceira ficha era a de um filhote g'vhern, um indivíduo de aspecto sombrio, de cavidades visuais magenta e enormes asas de morcego coriáceas que brilhavam com óleos iridescentes. Era para Rieseen Jay, que achava que poderia tentar um corpo não-humano. Se pudesse ganhá-lo.
— Muito bem, Sábia — Rannar disse com aprovação. Ele sempre aprovava. Quando viera para Croan'dhenni, seu corpo era grotesco; ele havia sido apanhado na cama com a filha de seu empregador, um cavaleiro do sangue de Vlador, e a punição foi a de mutilação ritual extensa. Não tinha o preço de um jogo. Mas eu tinha dois jogadores esperando há quase um ano, um dos quais morrendo de mantrax, então quando Rannar me ofereceu dez anos de serviço fiel para compensar a diferença, aceitei.
Às vezes eu me arrependia. Sentia seus olhos em meu corpo, sentia sua mente tirando a leve armadura de minhas roupas para agarrar, como uma sanguessuga, meus pequenos e crescentes seios. A garota com quem havia sido apanhado não era muito mais jovem do que a carne que agora visto.
Meu castelo é feito de obsidiana.
Ao norte daqui, muito ao norte, nas vastidões geladas nebulosas onde fogos eternos queimam contra um céu púrpura, o vidro vulcânico preto se acumula no chão como pedras comuns. Foram necessários milhares de mineiros croan'dhiques e nove anos padrão para encontrar o bastante para meus propósitos e arrastar tudo até os pântanos, por todos aqueles quilômetros desolados. Foram necessárias centenas de artesãos e mais seis anos para cortar e polir e encaixar tudo no mosaico negro brilhante que é meu lar. Achei que o esforço valeu a pena.
Meu castelo se ergue sobre quatro grandes pilares tortos, bem acima dos cheiros e da umidade dos pântanos croan'dhiques, fervilhando de luzes coloridas cujos fantasmas brilham dentro do vidro negro. Meu castelo brilha; uma coisa de beleza, austera e proibida, suprema e afastada da favela que cresceu ao seu redor, onde os perdedores e dispensados e despossuídos se aglomeram sem esperança em cabanas flutuantes, casas em árvores e buracos em árvores semi-apodrecidas. A obsidiana apela ao meu senso estético, e descubro que seu simbolismo é adequado a esta casa de dor e renascimento. A vida nasce no calor da paixão sexual assim como a obsidiana nasce no calor de um vulcão. A clara luz da verdade pode às vezes fluir pela sua escuridão, beleza vista muito mal através das trevas, e, como a vida, é terrivelmente frágil, com bordas que podem ser perigosamente afiadas.
Dentro de meu castelo existem quartos e mais quartos, alguns revestidos com fragrantes madeiras nativas e cobertos com peles e tapetes espessos, alguns sem nada, negros, câmaras cerimoniais onde reflexos negros se movem pelas paredes de vidro e pegadas soam ruidosas contra pisos de vidro. No centro, no exato ápice, ergue-se uma torre de obsidiana em forma de cebola, sustentada por aço. Dentro da cúpula, uma única câmara.
Ordenei a construção do castelo, substituindo uma estrutura mais antiga e muito modesta; e, para aquela câmara única na torre, mandei levarem o Artefato.
É lá que se joga o jogo da mente.
Minha própria suíte é na base da torre. As razões para isso também são simbólicas. Ninguém consegue renascer senão passando antes por mim.
Eu tomava meu desjejum na cama, frutas-manteiga e peixe cru e café preto forte, com Khar Dorian lânguido e insolente ao meu lado, quando meu Apóstolo sábio, Alta-k-Nahr, veio a mim com seu relatório.
Ela ficou ao pé da cama, as costas curvadas como um grande ponto de interrogação pela doença, as feições compridas permanentemente marcadas numa careta de desagrado, a pele cheia de veias estofadas como grandes vermes azuis, e ela me contou de suas pesquisas sobre o Kleronomas histórico numa voz desnecessariamente suave.
— Seu nome completo era Joachim Charle Kleronomas — ela começou — e era nativo da Nova Alexandria, uma colônia de primeira geração a menos de setenta anos-luz da velha Terra. Registros de sua data de nascimento, infância e adolescência são fragmentários e contraditórios. As lendas mais populares indicam que sua mãe era oficial de alto posto de uma nave de guerra da 13ª Frota Humana, sob o comando de Stephen Cobalt Northstar, e que Kleronomas só a viu duas vezes. Foi gestado numa mãe-hospedeira de aluguel e criado pelo pai, um estudioso menor de uma biblioteca em Nova Alexandria. Minha opinião é que esta história de sua origem explica, um pouco perfeitamente demais, como Kleronomas veio a combinar tanto a tradição escolástica quanto a militar; portanto, questiono sua confiabilidade.
"Mais certo é o fato de que entrou para as forças militares em tenra idade, nos últimos dias da Guerra dos Mil Anos. Serviu inicialmente como técnico de sistemas num caça classe relâmpago da 17ª Frota Humana, distinguiu-se em ações no espaço profundo na área de El Dorado e Arturius e nos ataques em Hrag Druun, após o que foi promovido a cadete e recebeu treinamento de comando. Quando a 17ª foi transferida de sua base original em Fenris para a capital de um setor menor chamada Avalon, Kleronomas havia ganhado mais distinções, e era o terceiro-em-comando do bombardeiro Aníbal. Mas nos ataques em Hruun-Quatorze, o Aníbal sofreu pesados danos dos defensores hrangans, e foi finalmente abandonado. O caça em que Kleronomas fugia foi atingido pelo fogo inimigo e caiu no planeta, matando todos a bordo. Ele foi o único sobrevivente. Outro caça resgatou o que sobrou dele, mas estava tão perto da morte e tão horrivelmente mutilado que o colocaram em criostocagem imediatamente. Foi levado de volta a Avalon, mas os recursos eram poucos e a procura muita, e não tinham tempo de se preocupar em revivê-lo. Mantiveram-no dormindo por anos.
"Enquanto isso, o Colapso estava em pleno curso. Havia estado em pleno curso toda a sua vida, na verdade, mas as comunicações pela extensão do velho Império Federal eram tão lentas que ninguém sabia disso. Mas uma única década assistiu à revolta em Thor, a desintegração total da 15ª Frota Humana e a tentativa, da parte da Velha Terra, de remover Stephen Cobalt Northstar do comando da 13ª, o que levou inevitavelmente à secessão de Newholme e da maioria das outras colônias de primeira geração, à obliteração de Wellington por Northstar, à guerra civil, às colônias rebeldes, aos mundos perdidos, à quarta grande extensão, à lenda da frota do inferno, e por último ao fechamento da Velha Terra e o término efetivo do comércio estelar por uma geração. Mais do que isso, muito, muito mais, em alguns mundos mais remotos, muitos dos quais involuíram para a quase-selvageria ou desenvolveram estranhas culturas variantes.
"No front, Avalon teve sua própria experiência pessoal com o Colapso quando Rajeen Tober, comandante da 17ª Frota, recusou-se a submeter-se às autoridades civis e levou suas naves para dentro do Véu da Tentação, para fundar seu próprio império, longe da retaliação hrangan e humana. A partida da 17ª deixou Avalon essencialmente indefesa. As únicas naves de guerra ainda no setor eram os antigos monstros da 5ª Frota Humana, que presenciara combate pela última vez havia quase sete séculos, quando Avalon era uma base de ataque muito distante contra os hrangans. Cerca de doze naves classe
 capital e trinta e tantas menores da 5ª permaneciam em órbita de Avalon, a maioria precisando de reparos extensos, todas funcionalmente obsoletas. Mas eram os únicos defensores de um mundo amedrontado, por isso Avalon determinou que fossem restauradas. Para tripular aquelas peças de museu, Avalon voltou-se para suas alas criogênicas, e começou a descongelar cada veterano de combate disponível, incluindo Joachim Kleronomas. Os danos que sofrera eram extensos, mas Avalon precisava de todo corpo possível. Kleronomas retornou mais máquina do que homem. Um ciborgue.
Inclinei-me para a frente, a fim de interromper o recital de Alta.
— Existe algum retrato dele como era então?
— Sim. Antes e depois. Kleronomas era um homem grande, com pele negro-azulada, maxilar forte e protuberante, olhos cinzentos, cabelo longo, totalmente branco. Depois da operação, o maxilar e a metade inferior do rosto desapareceram completamente, substituídos por metal inteiriço. Nem nariz nem boca. Alimentava-se por via intravenosa. Perdeu um olho, que foi substituído por um sensor cristalino com alcance de espectros infravermelho/ultravioleta. Seu braço direito e toda a metade direita do torso foram mecanizados, placa de aço, fiação de duralloy, plástico. Um terço dos órgãos internos era sintético. E lhe deram um plugue, claro, e embutiram nele um pequeno computador. Desde o começo Kleronomas recusou cosméticos. Ele se parecia exatamente com o que era.
Sorri.
— Mas o que ele era, era ainda bem mais carnudo do que nosso novo convidado, não era?
— É verdade — respondeu minha estudiosa. — O resto da história é mais bem conhecido. Não havia muitos oficiais entre os revividos. Kleronomas recebeu seu próprio comando, uma pequena nave classe portadora. Serviu por uma década, conseguindo os estudos em história e antropologia que eram suas paixões íntimas, e subindo cada vez mais alto em posto enquanto Avalon esperava por naves que nunca vinham e construía cada vez mais naves. Não havia comércio, não havia ataques; o interregno havia chegado.
"Finalmente, uma liderança civil mais ousada decidiu arriscar algumas de suas naves e descobrir como estava o resto da civilização. Seis couraçados antigos da 5ª Frota foram remodelados como naves de pesquisa científica e enviados para fora. Kleronomas recebeu o comando de uma delas. Dessas naves de pesquisa, duas se perderam em suas missões e três outras retornaram em dois anos, trazendo informações mínimas sobre um punhado de sistemas mais próximos, animando os avalonianos a reiniciar as viagens espaciais numa base local muito limitada. Julgava-se que Kleronomas estivesse perdido.
"Ele não estava perdido. Quando os pequenos e limitados objetivos da pesquisa original estavam completos, ele decidiu continuar, em vez de voltar a Avalon. Ficou obcecado com a próxima estrela, e a próxima depois dela, e assim por diante. Levou sua nave cada vez para mais longe. Houve motins, deserções, perigos para serem enfrentados, e Kleronomas lidou com tudo isso. Como um ciborgue, tinha uma vida imensamente longa. Segundo as lendas, ele foi se tornando mais metálico à medida que a viagem prosseguia, e em Eris ele descobriu o cristal-matriz e expandiu suas habilidades intelectuais por ordens de magnitude através da adição do primeiro computador de cristal-matriz. Esta história particular se encaixa com seu caráter; ele era obcecado não apenas com a aquisição de conhecimentos, mas com sua retenção. Alterado assim, ele jamais esqueceria.
"Quando finalmente retornou a Avalon, mais de cem anos padrão haviam-se passado. Dos homens e mulheres que deixaram Avalon com ele, apenas Kleronomas sobreviveu; sua nave era pilotada pelos descendentes de sua tripulação original, mais aqueles recrutas que juntou nos mundos que visitou. Mas havia pesquisado 449 planetas, e mais asteróides, cometas e satélites que qualquer um jamais teria imaginado possível. As informações que ele levou se tornaram a pedra fundamental sobre a qual a Academia do Conhecimento Humano foi construída, e as amostras de cristal, incorporadas nos sistemas existentes, se tornaram o meio no qual o conhecimento foi armazenado, eventualmente evoluindo para as vastas Inteligências Artificiais da academia e as lendárias torres de cristal de Avalon. A retomada das viagens estelares de larga escala logo depois foram o verdadeiro fim do interregno. O próprio Kleronomas serviu como o primeiro administrador da academia até a sua morte, que supostamente ocorreu em Avalon em ai-42, ou seja, 42 anos padrão após o dia de sua volta.
Eu gargalhei.
— Excelente. Então ele é uma fraude. Morto há pelo menos setecentos anos. — Olhei para Khar Dorian, cujo longo cabelo fino estava espalhado pelo travesseiro enquanto mordiscava um canto de pão de hidromel. — Você está tropeçando, Khar. Ele tapeou você.
Khar engoliu e sorriu.
— Como quiser, Sábia — respondeu, num tom de voz que me dizia que ele podia estar tudo, menos contrito. — Devo matá-lo para você?
— Não. Ele é um jogador. No jogo da mente, não há impostores.
Deixe-o jogar. Deixe que jogue.
Dias depois, quando o jogo havia sido marcado, chamei o ciborgue à minha presença. Encontrei-o em meu escritório, um grande salão com grossos carpetes escarlates, onde minha flor de vidro descansa à beira da grande janela que sobrepuja minhas ameias e os alagados abaixo.
Seu rosto não tinha expressão. Claro, claro.
— Você mandou me chamar, Cyrain de Ash.
— O jogo está marcado. De hoje a quatro dias.
— Estou satisfeito.
— Gostaria de ver os prêmios? — indaguei, e ofereci-lhe as fichas; o rapaz, a moça, o filhote.
Deu uma breve olhada, sem interesse.
— Me disseram que você passa uma boa parte do tempo vagando nestes últimos dias. Dentro do castelo, e lá fora na cidade e nos pântanos.
— É verdade. Eu não durmo. Conhecimento é minha diversão, meu vício. Estava curioso para saber que espécie de lugar era esse.
— E que espécie de lugar é este, ciborgue? — retruquei, sorrindo.
Ele não podia sorrir nem franzir a testa. Mas mesmo assim o tom de voz era educado.
— Um lugar vil. Um lugar de desespero e degradação.
— Um lugar de eterna, imorredoura esperança — retruquei.
— Um lugar de doença, do corpo e da alma.
— Um lugar onde os doentes se curam.
— E onde os sãos adoecem — argumentou ele. — Um lugar de morte.
— Um lugar de vida. Não é para isso que você veio? Para a vida?
— E morte. Já lhe disse que elas são a mesma coisa. Inclinei-me para a frente.
— E já lhe disse que elas são muito diferentes. Você faz julgamentos severos. Espera-se rigidez de uma máquina, mas esta refinada e preciosa sensibilidade moral, não.
— Só meu corpo é máquina — retorquiu ele. Apanhei sua ficha.
— Não vejo assim. Onde fica sua moralidade com relação a mentiras? Especialmente uma mentira tão transparente? — Abri a ficha na minha mesa. — Consegui alguns relatórios interessantes de meus Apóstolos. Você tem sido extraordinariamente cooperativo.
— Se se quer jogar o jogo da mente, não se pode ofender o mestre da dor.
Sorri.
— Não me ofendo tão facilmente quanto você poderia pensar.
— Fiz uma pesquisa rápida nos relatórios. — O dr. Lyman fez uma varredura completa em você. Descobriu que você é uma máquina engenhosa. E feito inteiramente de plástico e metal. Não sobrou nada orgânico dentro de você, ciborgue. Ou deveria chamá-lo de robô? Será que computadores podem jogar o jogo da mente? Certamente descobriremos. Você possui três deles, pelo que vejo. Um pequeno, onde deveria ser sua caixa craniana, que comanda as funções motoras, entrada de dados sensoriais e monitoramento interno, uma unidade-biblioteca muito maior ocupando a maior parte do torso inferior e uma matriz de cristal no seu peito, — Levantei os olhos, — Seu coração, ciborgue?
— Minha mente — respondeu. — Pergunte ao seu dr. Lyman, e ele contará outros casos como o meu. O que é uma mente humana? Memórias. Memórias são dados. Caráter, personalidade, vontade individual. Isso tudo é programável. É possível imprimir a totalidade de uma mente humana num computador de cristal-matriz.
— E capturar a alma no cristal? Você acredita em almas? — indaguei.
— Você acredita?
— Preciso acreditar. Sou a senhora do jogo da mente. Parece que isso seria essencial para mim. — Voltei-me para os outros relatórios que meus Apóstolos fizeram em torno deste constructo que se chama Kleronomas. — Verde-deidade 9 entrou em fase com você. Diz que você tem um sistema de incrível sofisticação, que a velocidade de seus circuitos excede em muito o pensamento humano, que a sua biblioteca contém muito mais informações acessíveis do que qualquer cérebro orgânico simples poderia reter, mesmo que fosse capaz de trabalhar com toda a capacidade, e que a mente e as memórias encerradas nesse cristal-matriz são de um certo Joachim Kleronomas. Isso ele jura.
O ciborgue nada respondeu. Talvez tivesse sorrido nesse instante, se tivesse a capacidade.
— Por outro lado, minha estudiosa Alta-k-Nahr me assegura que Kleronomas está morto há setecentos anos. Em quem vou acreditar?
— Em quem você quiser — retrucou com indiferença.
— Eu poderia deter você aqui e enviar pedido de confirmação a Avalon — sorri. — Uma viagem de trinta anos para ir, outros trinta para voltar. Digamos um ano para resolver a questão. Você pode esperar 61 anos para jogar, ciborgue?
— Tanto quanto necessário.
— Shayalla diz que você é completamente assexuado.
— Esta capacidade foi perdida no dia em que me refizeram. Meu interesse no assunto permaneceu por mais alguns séculos, mas finalmente isso também acabou. Se quiser, tenho acesso a um espectro completo de memórias eróticas dos dias em que eu vestia carne orgânica. Elas permanecem tão frescas quanto no dia em que entraram no meu computador. Uma vez encerradas em cristal, as memórias não desaparecem, como ocorre num cérebro humano. Estão lá, esperando serem chamadas. Mas há séculos que não tenho inclinação para chamá-las.
Fiquei intrigada.
— Você não pode esquecer.
— Posso apagar. Posso escolher não lembrar.
— Se estiver entre os vencedores de nosso joguinho mental, irá recuperar a sexualidade,
— Estou ciente disso. Será uma experiência interessante. Talvez aí eu resolva invocar essas memórias antigas.
— Sim — respondi deliciada. — Você vai começar a usá-las, e precisamente no mesmo instante começará a esquecê-las. Há uma perda aqui, ciborgue, tão grande quanto o ganho.
— Ganho e perda. Vida e morte. Eu lhe disse, Cyrain, que elas não podem ser separadas.
— Isso eu não aceito — eu disse. Entrava em conflito com tudo em que acredito, tudo que sou; sua repetição da mentira me enojava.
— Segundo Braje, você não pode ser afetado por drogas ou doenças. Óbvio. Mas poderia ser desmantelado. Vários de meus Apóstolos se ofereceram para dispor de você ao meu sinal. Meus alienígenas são especialmente sedentos de sangue, ao que parece.
— Não tenho sangue — retrucou. Sardônico? Ou era tudo aquilo força da sugestão?
— Seus lubrificantes bastariam — respondi secamente. — Tr'k'nn'r testaria sua capacidade de sentir dor. AanTerg caçador-da- lua, meu acrobata g'vhern, se ofereceu para jogar você de uma grande altura.
— Isso seria um crime terrível para os padrões do ninho.
— Sim e não. Um g'vhern do ninho ficaria horrorizado com a sugestão de que o vôo seria assim pervertido. Meu Apóstolo, por outro lado, ficaria mais horrorizado ainda com a sugestão do controle da natalidade. Batendo aquelas asas de couro oleosas você vai encontrar a mente de um aleijado semi-louco de Nova Roma. Aqui é Croan'dhenni. Não somos o que parecemos ser.
— É o que parece.
— Jonas também se ofereceu para destruir você, de uma forma menos dramática mas igualmente eficaz. É o meu maior Apóstolo. Deformado por glândulas hiperativas. O santo padroeiro da artilharia automática avançada, e meu chefe de segurança.
— Obviamente você declinou essas ofertas — disse o ciborgue.
Reclinei-me.
— Obviamente. Embora eu sempre reserve o direito de mudar de idéia.
— Eu sou um jogador. Paguei a Khar Dorian, subornei os guardas portuários croan'dhiques, paguei a seu mordomo e a você. Em Lilith e Cymeranth e Shrike e outros mundos onde falam deste palácio negro e sua senhora meio mítica, dizem que seus jogadores são tratados com honestidade.
— Errado. Nunca sou honesta, ciborgue. Às vezes sou justa. Quando me dá vontade.
— Você ameaça todos os seus jogadores assim?
— Não. Estou fazendo uma exceção especial no seu caso.
— Por quê?
— Porque você é perigoso — respondi, sorrindo. Finalmente havíamos chegado ao cerne da questão. Folheei as fichas que meus Apóstolos me deram e extraí a última, a mais importante. — Pelo menos um de meus Apóstolos você nunca encontrou, mas ele conhece você, ciborgue, conhece melhor do que você jamais sonharia. O ciborgue não disse nada.
— Meu telepata de estimação. Sebastian Cayle. Ele é cego e deformado, e o guardo numa enorme jarra, mas tem sua utilidade. Pode sondar através das paredes. Ele tocou os cristais da sua mente, amigo, e viajou nas sinapses binárias de seu id. Seu relatório é um pouco críptico, mas admiravelmente verdadeiro. — Deslizei-o pela mesa para que o ciborgue pudesse ler.
Um labirinto assombrado do pensamento. O fantasma de aço. A verdade dentro da mentira, vida em morte e morte em vida. Ele tomará tudo de você se puder. Mate-o agora.
— Você está ignorando o aviso dele — disse o ciborgue.
— Estou.
— Por quê?
— Porque você é um mistério que pretendo resolver quando jogarmos o jogo da mente. Porque você é um desafio, e já faz muito tempo desde a última vez em que fui desafiada. Porque você ousa me julgar e sonha em me destruir, e já faz eras desde que alguém conseguiu coragem para fazer essas duas coisas.
Obsidiana dá um espelho negro e distorcido, mas que me cai bem. Confiamos em nossos reflexos a vida inteira, até que chega a hora em que nossos olhos buscam os traços familiares e descobrem, em vez disso, a imagem de um estranho. Você não pode saber o significado do horror ou do fascínio até receber aquele longo olhar de um estranho, e erguer uma mão que você não conhece para tocar a face do outro, e sentir aqueles dedos, suaves e frios e temerosos, encostarem em sua pele.
Eu já era uma estranha quando vim para Croan'dhenni, há mais de um século. Conhecia meu rosto, pelo menos eu deveria, uma vez que o vestia há quase noventa anos. Era o rosto de uma mulher que era dura e forte, com linhas fundas ao redor dos olhos cinzentos de tanto olhar sóis alienígenas, uma boca larga que não deixava de ter sua generosidade, um nariz outrora quebrado que não se consertou direito, cabelo castanho curto em perpétuo desalinho. Um rosto confortável, pelo qual eu tinha um certo afeto. Mas o perdi em algum lugar, talvez durante meus anos em Gulliver, o perdi quando estava ocupada demais para perceber. Quando cheguei a Lilith, o primeiro estranho havia começado a assombrar meus espelhos. Ela era uma mulher velha, velha e enrugada. Seus olhos eram cinzentos e remelentos e começavam a falhar, o cabelo era branco e fino, com pedaços de crânio rosado começando a aparecer por baixo; os cantos da boca tremiam, havia capilares rompidos no nariz, e embaixo do queixo várias camadas de pele se acumulavam como a papada de uma galinha. Sua pele era macia e fraca, onde a minha fora sempre dura e corada de vida, e havia outra coisa, uma coisa que você não podia ver no espelho: um cheiro de doença que a envolvia como o perfume barato de uma cortesã velha, um feromônio de morte.
Eu não conhecia essa coisa velha e doente, nem queria a sua companhia. Dizem que a idade e a doença aparecem lentamente em mundos como Avalon e Newholme e Prometeu; segundo as lendas, a morte não ronda mais a Velha Terra atrás de suas muralhas brilhantes. Mas Avalon e Newholme e Prometeu estavam muito longe, e a Velha Terra está fechada e perdida para nós, e eu estava sozinha em Lilith com uma estranha em meu espelho. E então me deixei levar para além do reino dos homens, além do alcance mais distante de braços humanos, para a escuridão molhada de Croan'dhenni, onde dizia-se em sussurros que uma nova vida podia ser encontrada. Eu queria olhar num espelho uma vez mais, e descobrir a velha amiga que eu perdera.
Em vez disso, encontrei mais estranhos.
O primeiro foi o próprio mestre da dor; senhor da mente, senhor da vida, senhor da vida e da morte. Antes de minha chegada, ele havia governado aqui por quarenta e tantos anos padrão. Era croan'dhique, um nativo, uma grande coisa bulbosa com olhos estofados e pele verde-azulada pintalgada, paródia grotesca de um saco com braços finos e de articulação dupla e três longos estômagos verticais que apareciam na pele odorosa como feridas pretas molhadas. Quando olhei para isso, pude sentir sua fraqueza; era enormemente gordo, um mar de gordura espalhada com cheiro de ovos podres, enquanto os guardas e servos croan'dhiques são rígidos e musculosos. Mas para vencer o senhor da mente, você deve se tornar o senhor da mente. Quando jogamos o jogo da mente, eu tomei a sua vida, e acordei naquele corpo vil.
Não é coisa fácil para uma mente humana vestir uma pele alienígena; por um dia e uma noite eu me perdi dentro daquela odiosa carne, passando através de visões e cheiros e sons que não faziam mais sentido do que as imagens num pesadelo, gritando, lutando pelo controle e pela sanidade. Sobrevivi. Um triunfo do espírito sobre a carne. Quando fiquei pronta, foi convocado outro jogo da mente, e desta vez emergi com o corpo de minha escolha.
Ela era uma humana. Trinta e nove anos de idade pelo cálculo dela, saudável, rosto feio mas corpo forte, uma jogadora profissional que viera a Croan'dhenni para o último jogo. Tinha cabelo ruivo e olhos cuja cor verde-azulada me lembrava dos mares de Gulliver. Tinha alguma força, mas não muita. Naqueles dias distantes, antes da vinda de Khar Dorian e sua frota de feitores, poucos humanos vinham a Croan'dhenni. Minha escolha era limitada. Eu a peguei.
Naquela noite tornei a me olhar no espelho. Ainda era o rosto de uma estranha, cabelo muito grande, olhos da cor errada, nariz tão reto quanto o fio de uma lâmina, boca muito preservada, que havia sorrido muito pouco na vida.
Anos depois, quando esse corpo começou a escarrar sangue devido a alguma pestilência infernal adquirida nos pântanos croan'dhiques, construí uma sala de espelhos de obsidiana para conhecer cada novo estranho. Os anos se passam com mais rapidez do que me importo de pensar enquanto essa sala permanece selada e inviolável, mas sempre, finalmente, chega o dia em que sei que a visitarei uma vez mais, e então meus servos sobem as escadas e polem os espelhos negros até obterem um bom brilho negro, e quando o jogo da mente termina eu subo sozinha e tiro minha roupa, fico em pé e giro sobre meu corpo solitária, dançando lentamente com as imagens dos outros:
Maçãs do rosto altas e afiladas, e olhos escuros afundados em profundos ocos abaixo de sua testa. Um rosto em forma de coração, cercado por um nimbo de cabelos negros selvagens, grandes seios brancos com mamilos marrons.
Músculos rijos e esguios movendo-se sob uma pele morena oleosa, unhas longas, afiadas como garras, queixo pontudo, cabelo castanho como arame farpado cortado numa tira fina sobre a cabeça e descendo até a cintura, o cheiro forte de cio entre suas coxas. Minhas coxas? Em mil mundos, a humanidade muda de mil maneiras diferentes.
Uma cabeça ossuda maciça olhando para o mundo do alto de quase três metros de altura, barba e cabelo confundindo-se numa juba de leão brilhante como ouro derretido, a força escrita em letras grandes em cada osso e músculo, o peito achatado com seus mamilos vermelhos inúteis, a estranheza do longo e mole pênis entre minhas pernas. Muita estranheza para mim; o pênis permaneceu mole por todos os meses em que vesti aquele corpo, e naquele ano minha sala de espelhos foi aberta duas vezes.
Um rosto muito parecido com aquele de que me lembro. Mas até que ponto me lembro dele? Um século já se tornou pó, e não mantenho imagens dos rostos que vesti. Desde minha primeira juventude, há muito tempo, somente a flor de vidro permaneceu. Mas ela tinha cabelo castanho curto, um sorriso, olhos verde- acinzentados. Seu pescoço era longo demais, os seios talvez muito pequenos. Mas ela chegou perto, perto, até que envelheceu, e chegou o dia em que vi outro estranho andando ao meu lado dentro das paredes do castelo.
E agora a criança assombrada. Nos espelhos ela parece uma filha de sonhos, a filha que eu poderia ter tido se fosse bem mais amável do que sou. Khar foi quem a trouxe para mim, um presente, disse ele, um belíssimo presente, para me retribuir em espécie depois que eu o descobrira velho e impotente, voz rouca e rosto coberto de cicatrizes, e o tornei jovem e belo.
Ela tem talvez onze anos, talvez doze. Seu corpo é magro e estranho, mas a beleza está lá, talvez encerrada por dentro, apenas esperando para desabrochar. Seus peitos estão despontando agora, e seu primeiro sangue veio há menos de meio ano. Seu cabelo é de um louro prateado, longo e reto, uma cascata brilhante que cai quase até os calcanhares. Seus olhos são grandes para seu rosto pequeno, e são do mais profundo e puro violeta. Seu rosto é alguma coisa escultural. Foi gerada para ser assim, não há dúvida; engenharia genética tornou os lordes mercantes de Shrike e a nobreza de Lilith e Fellanora um povo extraordinariamente belo.
Quando Khar a trouxe para mim, ela tinha apenas sete, a mente já morta, um animalzinho que gritava trancado num quarto escuro em seu crânio. Khar diz que ela era assim quando a comprou, a filha despossuída de um barão do crime fellanei preso e executado por crimes políticos, a família e os amigos e servos mortos com ele ou transformados em brinquedos sexuais sem mente para seus inimigos vitoriosos. Isto é o que Khar diz. Na maioria das vezes, até acredito nele.
Ela é mais jovem e bonita do que eu jamais poderia me lembrar de ter sido, mesmo em minha primeira juventude já perdida de Ash, onde um rapaz sem nome me deu uma flor de vidro. Espero vestir esta carne macia por tantos anos quantos vesti o corpo com que nasci. Se eu continuar aqui por muito tempo, talvez chegue o dia em que possa olhar num espelho escuro e reencontrar meu próprio rosto.
Um por um, eles ascenderam a mim; através da Sábia para o renascimento, ou assim esperavam que fosse.
Muito acima dos pântanos, trancada dentro de minha torre, me preparei para eles na câmara de mudança, rígida em meu trono simples. O Artefato não é prepotente: uma taça irregular de liga metálica alienígena, cinza-grafite em cor e morna ao toque, com seis nichos circundando sua borda a intervalos iguais. São lugares de sentar; irregulares, duros e desconfortáveis, projetados obviamente para fisiognomias não-humanas, mas ainda assim feitos para sentar. Do piso da taça ergue-se uma coluna fina que desabrocha em outro banco, a cúpula estranha que entroniza... escolha o título que mais lhe agradar. Mestre da dor, senhor da mente, senhor da vida, aquele que dá e que toma, operador, gatilho, senhor. Todos estes sou eu. E outros antes de mim, a cadeia remontando ao Branco e talvez a antes, aos criadores, os desconhecidos que construíram esta máquina na obscuridade de eras distantes.
Se a câmara tem seu drama, isto se deve a mim. As paredes e o teto são curvos, e trabalhados laboriosamente em mil pedaços individuais de obsidiana polida. Alguns fragmentos são cortados muito finos, de forma que a luz embaciada do sol croan'dhique possa forçar seu caminho através deles. Outros são tão grossos que chegam a ser opacos. A sala tem apenas uma cor, mas mil tons, e para aqueles que têm a capacidade de ver isso, eles formam um grande mosaico de vida e morte, sonhos e pesadelos, dor e êxtase, excesso e carência, tudo e nada, misturando-se um no outro, vezes e vezes sem fim, um círculo, um ciclo, o verme que devora a própria cauda para sempre, cada pedaço individual e frágil e afiado e cada um parte de um quadro maior que é vasto e negro e terrível.
Despi-me e entreguei minhas roupas a Rannar, que dobrou cuidadosamente cada peça. A cúpula tem forma de ovo, e não tem topo. Subi para seu interior e dobrei minhas pernas abaixo de mim em posição de lótus, a melhor correspondência possível entre as linhas do Artefato e o físico humano. As paredes internas da máquina começaram a sangrar; fluidos vermelho-escuros brilhantes pingando no metal cinzento do ovo, cada glóbulo inchando até estourar. Torrentes desciam pelas paredes curvas lisas, e o líquido começou a se juntar no fundo. Minha pele nua queimava onde o fluido me tocava. O fluxo se tornou mais rápido e mais forte, o fogo subindo pelo meu corpo até imergir metade do meu corpo.
— Mande-os entrar — ordenei a Rannar. Quantas vezes eu já disse estas palavras? Perdi a conta.
Os prêmios entraram primeiro. Khar Dorian veio com o rapaz tatuado. Lá, disse Khar em tom impessoal, apontando para um nicho enquanto me sorria lascivo, e o rapaz duro, aquele assassino, aquele selvagem sedento de sangue, soltou-se de sua escolta e tomou o lugar que lhe foi indicado. Braje, minha biomédica, trouxe a mulher. Elas também são parecidas, pálidas, gordas, macilentas. Braje dava risinhos enquanto apertava as presilhas sobre sua carga choramingona. O filhote alienígena lutava, seus músculos rijos se contorcendo, suas grandes asas batendo num trovão sonoro que era tão dramático como inútil; o brilhante Jonas e seus homens o forçaram a entrar em seu nicho. Quando terminaram de prendê-lo, Khar Dorian sorriu zombeteiro, e o g'vhern fez um som alto e estridente que doeu os ouvidos.
Craimur Delhune teve de ser carregado por seus criados pessoais e de aluguel. Ali, eu disse, apontando, e eles o colocaram desajeitado em um dos nichos. Seu rosto enrugado e retorcido olhava para mim, olhos meio cegos percorrendo a câmara como pequenas bestas selvagens, a boca sugando com fome, como se seu renascimento estivesse terminado e ele procurasse um seio materno. Ele estava cego para o mosaico; para ele, era apenas uma sala escura com paredes de vidro negro.
Rieseen Jay surgiu, entediada com minha câmara antes mesmo de entrar nela. Ela viu o mosaico, mas lhe deu apenas um olhar superficial, como se fosse alguma coisa além de sua atenção, cansativa demais para estudar. Em vez disso, fez um lento circuito dos nichos, inspecionando cada um dos prêmios como um açougueiro examinando carne. Parou por mais tempo em frente ao filhote alienígena, e parecia se deliciar com sua luta, seu medo óbvio, a maneira como ele sibilava e assobiava para ela e olhava daqueles olhos fortes e brilhantes. Ela estendeu a mão para tocar uma asa, e recuou rindo quando o filhote a mordeu. Finalmente se sentou, espreguiçando-se lânguida, esperando o jogo começar.
Finalmente Kleronomas.
Ele percebeu o mosaico imediatamente, olhou para ele, os olhos cristalinos perscrutando lentamente a sala, parando aqui e ali novamente para estudar algum detalhe sutil. Ficou tanto tempo parado que Rieseen Jay ficou impaciente, e estalou os dedos, para que procurasse seu lugar. O ciborgue a estudou, o rosto de metal impossível de perscrutar. Ordenei silêncio.
Ele terminou seu estudo do domo, levando o tempo que quis, e só então se sentou no último nicho vazio. A maneira como ele ocupou seu lugar foi como se todos os lugares estivessem vagos e aquela fosse a sua escolha, selecionada por ele e ninguém mais.
— Evacuem a sala — ordenei.
Rannar curvou-se e fez sinal para que todos saíssem, Jonas e Braje e os outros. Khar Dorian foi o último, e fez um gesto para mim quando se retirou. O que queria dizer? Boa sorte? Talvez. Ouvi Rannar fechar a porta.
— E então? — perguntou Rieseen Jay. Lancei-lhe um olhar que a calou.
— Vocês todos estão sentados no Cerco Perigoso — falei. Sempre começo com estas palavras. Ninguém jamais entendeu. Desta vez... Kleronomas, talvez. Observei a máscara que era seu rosto. Dentro do cristal de seus olhos, percebi um leve movimento, e tentei descobrir um sentido para isso.
"Não há regras para o jogo da mente. Mas tenho regras para quando ele terminar, quando vocês retornarem ao meu domínio.
"Aqueles de vocês que estão aqui contra a vontade, se forem fortes o bastante para segurar a carne que vestem, ela será sua para sempre. Dou-lhes de graça. Nenhum prêmio joga mais do que uma vez. Segurem firme sua carne de nascimento e, quando estiver terminado, Khar Dorian os levará de volta ao mundo em que encontrou vocês e os libertará com mil padrões e sua liberdade.
"Os jogadores que encontrarem o renascimento neste dia, que acordarem em carne estranha quando este jogo estiver terminado, lembrem-se de que o ganharem ou perderem foi por conta de vocês próprios, e poupem-me de seus lamentos e recriminações. Se estiverem insatisfeitos com o resultado deste jogo, podem jogar de novo, é claro. Se tiverem o preço.
"Um último aviso. Para todos vocês. Isto vai doer. Vai doer mais do que qualquer coisa que vocês jamais imaginaram. — Dito isso, iniciei o jogo da mente.
Uma vez mais.
O que você pode dizer a respeito da dor?
Palavras podem apenas descrever a sombra da coisa propriamente dita. A realidade da dor física dura e aguda não se compara a nada, e está além da linguagem. O mundo está cheio demais junto a nós, dia e noite, mas quando nos machucamos, quando realmente nos machucamos, o mundo se desvanece e se funde e se torna um fantasma, uma memória apagada, uma coisinha sem importância. Quaisquer ideais, sonhos, amores, medos e pensamentos que possamos ter se tornam totalmente insignificantes. Estamos com a nossa dor, ela é a única força no cosmo, a única coisa de substância, a única coisa que importa, e se a dor for grande o bastante e durar tempo suficiente, se for o tipo de agonia que permanece indefinidamente, então todas as coisas que são nossa humanidade se fundem à nossa frente e o computador orgulhoso e sofisticado que é o cérebro humano se torna capaz apenas de um único pensamento:
Pare, pare, PARE!
E se a dor parar no fim das contas, depois, com a passagem do tempo, até mesmo a mente que a experimentou se torna incapaz de compreendê-la, incapaz de recordar-se de como foi verdadeiramente ruim, incapaz de descrevê-la como também de sequer se aproximar da terrível verdade de como era no instante em que aconteceu.
No jogo da mente, a agonia do campo de dor não tem igual, não se compara a nada que já experimentei.
O campo de dor não faz mal ao corpo, não deixa marcas nem cicatrizes nem machucados, não deixa sinais de sua passagem. Toca a mente direto, com uma agonia além de meu poder de expressá-lo. Por quanto tempo dura? Uma questão para relativistas. Dura apenas a menor parte de um microssegundo, e dura para sempre.
Os Sábios de Dam Tullian são mestres de cem diferentes disciplinas do corpo e da mente, e ensinam a seus acólitos uma técnica para isolar a dor, dissociar-se dela, afastar-se dela e assim a transcenderem. Eu havia sido uma Sábia por metade de minha vida quando participei do jogo da mente pela primeira vez. Usei tudo o que me ensinaram, todos os truques e verdades que dominei e em que aprendi a confiar. Foram totalmente inúteis. Era uma dor que não tocava o corpo, uma dor que não corria pelos nervos, era uma dor que preenchia a mente tão completa e devastadoramente que nem mesmo a menor parte de você ficava livre para pensar ou planejar ou meditar. A dor era você, e você era a dor. Não havia de que se dissociar, nenhum frio santuário do pensamento para onde pudesse se recolher.
O campo de dor era infinito e eterno, e dessa agonia incessante e inimaginável só havia um refúgio seguro. Era o velho, o verdadeiro, o mesmo bálsamo que serviu de socorro a bilhões de homens e mulheres, e até mesmo menor das bestas do campo desde o começo dos tempos. O senhor negro a dor. Meu inimigo, meu amante. Mais uma vez, mais uma vez, desejando apenas um fim para o sofrimento, corri de encontro a seu abraço negro.
A morte me possuiu, e a dor terminou.
Numa vasta e deserta planície num lugar além da vida, eu esperei pelos outros.
 
Sombras difusas se formando das neblinas. Quatro, cinco, sim. Perdemos alguém? Não me surpreenderia. Em três jogos a cada quatro, um jogador encontra sua verdade na morte e não segue adiante. Desta vez? Não. Vejo a sexta forma saindo do fog tremulante, estamos todos aqui, olho ao meu redor uma vez mais, conto três, quatro, cinco, seis, sete e eu, comigo são oito.
Oito?
Está errado, muito errado. Estou confusa, desorientada. Alguém por perto está gritando. Uma garotinha, de rosto suave e inocente, vestida em tons pastel e usando bonitas jóias. Ela não sabe como chegou aqui, não entende, seus olhos estão perdidos e são infantis e nem um pouco confiantes, e a dor a acordou de um langor de pó-dos- sonhos para uma terra estranha cheia de terror.
Eu levanto a mão pequena e forte, olho os dedos marrons esguios, o calo em meu polegar, as unhas largas cortadas até o sabugo. Faço um punho, um gesto familiar, e em minha mão um espelho se forja do aço de minha vontade e do mercúrio de meu desejo. Em suas profundezas brilhantes eu vejo um rosto. É o rosto de uma mulher que é dura e forte, com linhas profundas ao redor dos olhos cinzentos de tanto olhar sóis alienígenas, uma boca larga que não deixava de ter sua generosidade, um nariz outrora quebrado que não se consertou direito, cabelo castanho curto em perpétuo desalinho. Um rosto confortável. Isso me dá conforto agora.
O espelho se dissolve em fumaça. A terra, o céu, tudo é vacilante e incerto. A doce garotinha ainda grita por seu papai. Alguns dos demais estão olhando perdidos para mim. Há um jovem, de rosto neutro, o cabelo preto penteado para trás e enfeitado com plumas coloridas de um estilo que não é moda em Gulliver há mais de um século. Seu corpo parece macilento, mas em seus olhos eu vejo uma dureza que me lembra de Khar Dorian. Rieseen Jay parece atordoada, fraca, amedrontada, mas ainda se pode reconhecer Rieseen Jay; o que quer que digam a seu respeito, ela tem um senso muito forte de si mesma. Talvez isso até seja o bastante. O g'vhern voa próximo a ela, muito maior aqui do que parecia antes, seu corpo brilhando com óleos, enquanto espalha asas demoníacas e começa a afastar a neblina em grandes fitas cinzentas. No jogo da mente, ele não tem amarras; Rieseen Jay olha longamente, e foge disso. Da mesma forma outro jogador, uma forma cinzenta fugidia coberta por uma explosão de tatuagens, o rosto uma pálida mancha sem propósito nem definição. A garotinha grita sem parar. Eu dou as costas a ela, deixo- os por conta própria e encaro o último jogador.
Um homem grande, a pele da cor do ébano polido com um tom sutil de azul-escuro onde os longos músculos se flexionam. Está nu. O maxilar é quadrado e pesado, e se projeta para a frente. Longos cabelos cercam seu rosto e caem pelos ombros, cabelos tão brancos e crespos quanto lençóis novos, brancos como a neve intocada de um mundo em que os homens nunca caminharam. Enquanto o observo, seu grande pênis negro se inquieta entre as pernas, incha, fica ereto. Ele sorri para mim.
— Sábia — diz ele.
De repente também estou nua.
Minha testa se franze, e agora visto uma armadura enfeitada, placas superpostas de duralloy fundido, filigranadas com runas proibidas, e debaixo do braço um antigo capacete que completa o conjunto, enfeitado com uma pluma de penas brilhantes.
— Joachim Kleronomas — digo.
Seu pênis cresce e endurece até se tornar uma coisa enorme absurda que pressiona forte seu estômago reto. Eu o cubro, e a ele, com um uniforme de um livro de história, todo preto e prata, com o globo verde-azulado da Velha Terra costurado em sua manga direita e duas galáxias prateadas gêmeas girando em seu colarinho.
— Não — responde ele, divertido. — Jamais alcancei esse posto.
— E as galáxias somem, substituídas por um círculo de seis estrelas prateadas. — E, a maior parte do meu tempo, Sábia, prestei obediência a Avalon, não à Terra. — Seu uniforme é menos marcial, mais funcional, um simples traje de infantaria verde-acinzentado com um cinto preto e um bolso cheio de canetas. Apenas o círculo prateado de estrelas permanece. — Pronto — diz ele.
— Errado — digo-lhe. — Ainda está errado. — E quando termino de falar, apenas o uniforme permanece. Dentro da roupa a carne sumiu, substituída por um simulacro de metal, uma coisa brilhante vazia com uma torradeira na cabeça. Mas só por um instante. Então o homem está de volta, o rosto sério, infeliz.
— Cruel — diz ele. A dureza de seu pênis força o material de sua roupa.
Atrás dele, o oitavo homem, o fantasma que não deveria estar aqui, o espectro perdido, faz um sussurro suave, um som como o de folhas secas mortas farfalhando num vento gelado de outono.
Ele é uma coisa fina e sombria, esse intruso. Preciso olhar muito firme para poder enxergá-lo. É muito menor do que Kleronomas, e dá á impressão de ser velho e frágil, embora sua carne seja tão etérea, tão insubstancial, que é difícil ter certeza. Ele é uma visão sugerida pelos movimentos randômicos da neblina, talvez, um eco vestido de branco, mas seus olhos brilham e tremem e estão presos e com medo. Ele tenta me alcançar. A carne de sua mão é translúcida, esticada sobre ossos antigos cinzentos.
Recuo incerta. No jogo da mente, o menor toque pode ter uma terrível realidade.
Por trás de mim, ouço mais gritos, o terrível som selvagem de alguém num êxtase de medo. Eu me viro para ver.
Agora começou de vez. Os jogadores estão buscando suas presas. Craimur Delhune, jovem, vigoroso e muito mais musculoso do que era há um momento atrás, segura nas mãos uma espada flamejante, brandindo-a com facilidade para o rapaz tatuado. O rapaz está de joelhos, gritando, tentando se encobrir com os braços levantados, mas a lâmina brilhante de Delhune passa pela carne cinzenta sem impedimentos e corta as tatuagens resplandecentes. Ele as remove cirurgicamente do rapaz, corte a corte, e elas flutuam no ar enevoado, brilhantes imagens de vida libertadas da pele cinzenta onde estavam aprisionadas. Delhune as agarra à medida que passam por ele e as engole todas. Suas narinas começam a exalar fumaça, e também sua boca aberta. O rapaz grita e range os dentes. Logo não haverá mais nada senão sombra.
O filhote alienígena ocupa os ares. Circula ao nosso redor, nos observando com sua voz alta e estridente enquanto suas asas trovejam.
Rieseen Jay teve suas segundas intenções, ao que parece. Ela está em frente à menininha que grita, que encolhe a cada instante que passa. Jay a está modificando. Agora ela está mais velha, mais gorda, os olhos igualmente aterrorizados mas muito mais vagos. Para onde quer que ela vire a cabeça, espelhos surgem e cantam tentadores para ela com lábios grandes e molhados. Sua carne incha e incha, rasgando sua roupa pobre e se libertando dela; linhas finas de baba escorrem pelo queixo. Ela a limpa, chorando, mas só para esta correr com mais rapidez, e agora se torna vermelha de sangue. Ela está enorme, feia, revoltante.
— Isto é você — dizem os espelhos. — Não vire a cara. Olhe para você. Já não é uma menininha. Olhe, olhe, olhe. Você não é bonita? Não é uma graça? Olhe para você, olhe para você.
Rieseen Jay cruza os braços, sorrindo com satisfação.
Kleronomas olha para mim com um juízo frio no rosto. Uma tira de tecido preto se enrola em meus olhos. Eu pisco, ela desaparece, olho para ele novamente.
— Não sou cega — respondo. — Eu os vejo. Não é minha luta. A gorda está imensa como um caminhão, pálida e macilenta como uma larva. Está nua e imensa, e a cada piscadela dos olhos de Jay ela fica mais monstruosa. Seios brancos enormes explodem de seu rosto, mãos, coxas e os bicos marrons das mamas abrem bocas sedentas e começam a cantar. Um pênis verde grosso aparece sobre sua vagina, dobra-se e a penetra. Cânceres florescem em sua pele como um campo de flores escuras. E em toda parte os espelhos, surgindo e sumindo, refletindo e distorcendo e aumentando, mostrando impiedosos tudo o que ela é, documentando cada coisa grotesca que Jay inflige sobre ela. A mulher gorda não parece mais humana. De uma boca do tamanho de sua cabeça, sem dentes e sangrando, ela fabrica um som que lembra os gemidos dos danados. Sua carne começa a fumegar e tremer.
O ciborgue aponta o dedo. Todos os espelhos explodem.
A neblina está coberta de adagas, fragmentos de metal prateado voando em todas as direções. Um me alcança, e eu o faço desaparecer. Mas os outros, os outros... eles se curvam como mísseis inteligentes, tornam-se uma flotilha aérea, atacam. Rieseen Jay é rasgada em mil pedaços, e o sangue corre de seus olhos, seus seios, sua boca aberta. O monstro é novamente uma menininha que chora.
— Moralista — digo para Kleronomas.
Ele me ignora, volta-se para olhar Craimur Delhune e o rapaz- sombra. Tatuagens se inflamam redivivas na pele do jovem, e em sua mão surge uma espada e se inflama. Delhune dá um passo para trás, sem se abalar. O rapaz toca sua carne, murmura algum juramento silencioso e se levanta cambaleante.
— Altruísta — digo. — Dando socorro aos fracos. Kleronomas se vira para mim.
— Não sou partidário da carnificina.
Rio em sua cara.
— Talvez você esteja simplesmente os poupando para você, ciborgue. Senão, é melhor criar asas rápido, antes que seu prêmio escape.
Seu rosto está frio.
— Meu prêmio está à minha frente.
— De alguma forma eu sabia — respondi, colocando meu capacete emplumado. Minha armadura está viva com fogos de artifício dourados, minha espada é uma lança de luz.
Minha armadura é negra como o abismo, e os desenhos trabalhados sobre ela, preto sobre preto, são de aranhas e serpentes e caveiras humanas e rostos deformados de dor. Minha longa espada prateada torna-se de obsidiana, e se contorce num espetáculo grotesco de arames farpados e ganchos e estacas rígidas. Ele tem um senso de drama, este maldito ciborgue.
— Não — eu lhe digo. — Não serei rotulada como o mal. Torno- me dourada e prateada uma vez mais, brilhando, e minhas plumas são vermelhas e azuis.
— Use a armadura você mesmo, se gosta tanto dela.
Ela fica pendurada à minha frente, negra e sombria, o capacete aberto num sorriso de caveira. Kleronomas a despacha.
— Não preciso de apoios.
Seu fantasma cinza e branco flutua a seu lado, como se o sugasse. Quem é ele?, eu me pergunto.
— Bom — respondo. — Então vamos dispensar os símbolos. Minha armadura desaparece.
Estendo minha mão nua aberta.
— Toque em mim — eu digo. — Toque em mim, ciborgue.
Quando sua mão alcança a minha, o metal crispa seus longos dedos negros.
 
No jogo da mente, mais até do que na vida, imagem e metáfora são tudo.
O lugar além do tempo, a interminável planície cercada pela névoa, o céu frio e a terra incerta sob nós, até mesmo isso é ilusão. É meu, tudo isso, um cenário — ainda que extraterreno, ainda que surreal — contra o qual os jogadores podem interpretar seus espalhafatosos dramas de dominação e submissão, conquista e desespero, morte e renascimento, estupro do corpo e estupro da mente. Sem minha formação, minha visualização e as visões de todos os outros mestres da dor através das eras, eles não teriam chão abaixo deles, nem céu acima, nenhum lugar para colocar os pés, nem pés para colocar sobre algum lugar. A realidade não oferece nem mesmo o escasso conforto da paisagem desolada que lhes dou. A realidade é caos, insuportável, fora do tempo e do espaço, despida de matéria ou energia, sem medidas e portanto assustadoramente infinita e sufocantemente claustrofóbica, terrivelmente eterna e dolorosamente breve. Nessa realidade, os jogadores são apanhados; sete mentes aprisionadas num gestalt telepático, num congresso tão íntimo que não pode ser suportado pela maioria. E portanto eles se recolhem, e as primeiras coisas que criamos, num lugar onde somos deuses (ou demônios, ou ambos), são os corpos que deixamos para trás. Dentro dessas paredes de carne encontramos refúgio e tentamos ordenar o caos.
O sangue tem gosto de sal; mas não há sangue, somente ilusão. A xícara contém uma bebida preta e amarga; mas não há xícara, apenas uma imagem. As feridas estão abertas e frescas, pingando angústia; mas não há feridas, nenhum corpo para ser ferido, apenas metáforas, símbolos, conjurações. Nada é real, e tudo pode machucar, pode matar, pode evocar uma loucura permanente.
Para sobreviver, os jogadores devem ser resilientes, disciplinados, estáveis e impiedosos; devem possuir uma imaginação vivida, um extenso vocabulário de símbolos, uma certa porção de insight psicológico. Eles devem encontrar a fraqueza de seu oponente, e ocultar completamente suas próprias fobias. As regras são simples. Acredite em tudo; não acredite em nada. Agarre-se firme a você e sua sanidade.
Mesmo quando matam você, não tem importância, a não ser que você acredite que está morto.
Sobre esta planície de ilusão, onde todos esses corpos mutantes demais giram e rodopiam numa sinistra pavana a que já assisti mil vezes antes, apanhando espadas e espelhos e monstros do ar para atirar ao outro como marionetes enlouquecidas, a coisa mais aterrorizante de todas é um simples toque.
O simbolismo é direto, o significado claro. Carne sobre carne. Despida de metáforas, despida de proteção, despida de máscaras. Mente sobre mente. Quando nos tocamos, as paredes caem.
Mesmo o tempo é ilusório no jogo da mente; ele corre tão rápido — ou tão lento — quanto desejarmos.
Eu sou Cyrain, digo a mim mesma, nascida em Ash, muito viajada, uma Sábia de Dam Tullian, mestre do jogo da mente, senhor do castelo de obsidiana, governante de Croan'dhenni, senhor da mente, mestre da dor, completa e imortal e invulnerável. Penetre-me.
Seus dedos são frios e duros.
 
Eu joguei o jogo da mente antes, dei as mãos a outros que se achavam fortes. Em suas mentes, em suas almas, nelas vi coisas. Em túneis escuros e cinzentos eu tracei as inscrições de suas antigas cicatrizes. A areia movediça de suas inseguranças prendeu-se em minhas botas. Senti o cheiro fétido de seus temores, grandes bestas gordas que rastejam numa escuridão viva e palpável. Queimei meus dedos na carne quente de desejos que não dirão um nome. Rasguei os mantos de seus segredos silenciosos e inertes. E então tomei tudo, fui eles, vivi suas vidas, bebi a bebida gelada de seu conhecimento, caminhei por suas memórias. Nasci uma dúzia de vezes, suguei uma dúzia de tetas, perdi uma dúzia de virgindades, de machos e fêmeas.
Kleronomas era diferente.
Eu estava numa grande caverna, toda iluminada. As paredes e o chão e o teto eram de cristal translúcido, e ao meu redor espirais e cones e fitas retorcidas se elevavam brilhantes, vermelhas e duras, frias ao toque porém vivas, as fagulhas das almas movendo-se por elas em toda parte. Uma cidade de fadas cristalina dentro de uma caverna. Toquei a formação rochosa mais próxima, e a memória fluiu para dentro de mim, o conhecimento tão claro e vívido e certo como no dia em que foi gravado lá. Virei-me e olhei ao meu redor com novos olhos, agora discernindo a ordem rígida onde inicialmente havia percebido apenas a beleza caótica. Estava limpa. Estava fria e eficiente e eterna e incrivelmente limpa. Perdi o fôlego. Olhei em toda parte procurando a vulnerabilidade, a porta de carne gangrenada, a poça de sangue, o lugar das lamentações, a coisa impura que deve viver dentro dele, e não encontrei nada, nada, nada, apenas perfeição, apenas o cristal limpo e perfeito, tão vermelho, brilhando de seu interior, crescendo, mudando, e ainda assim eterno. Eu o toquei uma vez embrulhando minha mão em uma formação que se elevava à minha frente como uma estalagmite. O conhecimento era meu. Comecei a andar, tocando, tocando, bebendo em toda parte. Flores de vidro floresciam em toda parte, fantásticas sementes escarlates, frágeis e lindas. Colhi uma e a cheirei, mas não tinha perfume. A perfeição era estonteante. Onde estava sua fraqueza? Onde estava a falha oculta neste diamante que me tornaria capaz de quebrá-lo com um simples golpe seco?
Aqui, dentro dele, não havia decadência. Aqui não era lugar para a morte.
Aqui nada vivia.
Eu me sentia em casa.
E então, à minha frente, o fantasma tomou forma, cinzento e sombrio e instável. Seus pés descalços criavam finos cordões de fumaça, arrastando-se suavemente pelos cristais brilhantes no chão, e senti o cheiro de carne queimada. E sorri. O espectro assustava o labirinto de cristal, mas cada toque significava dor e destruição. Venha cá, falei. Ele olhou para mim. Eu podia ver as luzes no fundo da caverna através das névoas de sua carne incerta. Ele se moveu, e lhe abri meus braços, o penetrei, o possuí.
Eu estava sentada num balcão na torre mais alta de meu castelo, e bebia de uma pequena xícara de café com conhaque. Os pântanos sumiram; em vez disso eu olhava montanhas, duras e frias e limpas. Erguiam-se azuis e brancas ao meu redor, e do pico mais alto erguia-se um penacho de cristais de neve apanhados num vento firme sem fim. O vento me cortava, mas eu quase não sentia. Estava sozinha e em paz, o café era gostoso, a morte estava muito longe.
Ele caminhava sobre o parapeito do balcão, e sentou-se sobre um deles. Sua pose era casual, insolente, confiante.
— Eu conheço você — ele disse. Era a ameaça definitiva. Eu não estava com medo.
— Eu conheço você — retruquei. — Devo conjurar seu fantasma?
— Ele logo estará aqui. Nunca está longe de mim.
— Nunca — concordei. Tomei um gole de café, e deixei-o esperando. — Sou mais forte que você — respondi finalmente. — Posso ganhar o jogo, ciborgue. Você estava errado em me desafiar.
Ele não disse nada.
Coloquei de lado minha xícara, seca e vazia, passei minha mão por ela, sorri quando minha flor de vidro cresceu e espalhou suas pétalas transparentes sem cor. Um arco-íris quebrado arrastou-se por sobre a mesa.
Ele franziu a testa. Minha flor se coloriu. Ficou macia e caída, o arco-íris foi banido.
— A outra não era real — comentou. — Uma flor de vidro não é viva.
Segurei sua rosa, apontei o caule quebrado.
— Esta flor está morrendo — eu disse. Em minhas mãos, voltou a virar vidro. — Uma flor de vidro dura para sempre.
Ele transmutou o vidro de volta a tecido vivo. Era teimoso, isso tenho que reconhecer.
— Mesmo morrendo, ela vive.
— Olhe suas imperfeições — observei. Apontei-as uma por uma.
— Aqui um inseto a mordeu. Aqui uma pétala cresceu malformada, aqui estas manchas pretas estão com praga, aqui o vento a curvou. E olhe o que posso fazer. — Peguei a pétala maior e mais bela entre o polegar e o indicador, rasguei-a, dei de comer ao vento. — Beleza não é proteção. A vida é terrivelmente vulnerável. E, no fim das contas, tudo termina assim. — Em minha mão, a flor ficou marrom e retorceu- se e começou a apodrecer. Vermes festejaram rapidamente sobre ela, e fluidos pretos de mau cheiro escorreram dela, e então virou pó. Catei tudo, soprei, e por trás de sua orelha tirei outra flor. De vidro.
— Vidro é duro — ele disse — e frio.
— Calor é produto da decadência, enteado da entropia — retruquei.
Talvez ele tivesse respondido, mas não estávamos mais sozinhos. Sobre a borda irregular dos parapeitos o fantasma vinha se arrastando, se arrastando com frágeis dedos cinzentos e brancos que deixavam manchas de sangue sobre a pureza de minha pedra. Ele olhava para nós sem dizer nada, um sussurro semitransparente de branco. Kleronomas desviou o olhar.
— Quem é ele? — perguntei.
O ciborgue não conseguia responder.
— Você se lembra de seu nome? — perguntei-lhe. Respondeu com silêncio, e ri dos dois. — Ciborgue, você me julgou, achou meu moralismo suspeito, minhas ações injustas, mas o que quer que eu seja, não sou nada para você. Eu roubo os corpos deles. Você roubou a mente dele. Não foi? Não foi?
— Eu não pretendia isso jamais — respondeu.
— Joachim Kleronomas morreu em Avalon há setecentos anos, justamente como disseram que morreu, Podia vestir metal e plástico, mas por dentro ele ainda era de carne em decomposição, mesmo até o fim, e como toda carne chega um dia em que as células morrem. Uma fina linha reta na máquina, brilhando na escuridão, e uma casca vazia de metal. O fim de uma lenda. O que eles fizeram, então? Guardaram o cérebro e o enterraram sob algum monumento gigantesco? Sem dúvida.
O café era doce e forte; aqui ele não esfriava porque minha vontade não permitia.
— Mas não enterraram a máquina, enterraram? Aquele organismo cibernético caro e sofisticado, o computador-biblioteca com sua riqueza de conhecimento, a matriz-cristal com todas as suas memórias congeladas. Tudo isso era valioso demais para ser descartado. Os bons cientistas de Avalon o mantiveram numa interface com o sistema principal da Academia, correto? Quantos séculos se passaram até que um deles decidiu reviver novamente aquele ciborgue e evitar sua própria morte?
— Menos que um — respondeu o ciborgue. — Menos de cinqüenta nos padrão.
— Ele deveria ter apagado você — retruquei. — Mas por quê? Seu cérebro, afinal de contas, comandaria a máquina. Por que negar a si mesmo acesso a todo aquele maravilhoso conhecimento? Por que, quando poderia saboreá-lo em vez disso? Como seria muito melhor ter uma vida inteira à sua disposição em um segundo, ter acesso a uma sabedoria que nunca havia feito por merecer, relembrar-se de lugares em que jamais estivera e de pessoas que jamais conhecera.
Dei de ombros e olhei para o fantasma.
— Pobre estúpido. Se você tivesse jogado antes o jogo da mente, poderia ter entendido.
Do que pode a mente ser feita senão de memórias? Quem somos nós, final de contas? Apenas quem pensamos que somos, nem mais nem menos.
Gravar suas memórias em diamante ou num bloco de carne rançosa, estas são as escolhas. Pouco a pouco a carne deve morrer, e dar passagem ao aço e ao metal. Somente as memórias de diamante sobrevivem para dirigir o corpo. No fim não resta carne, e os ecos de memórias perdidas são ranhões espectrais no cristal.
— Ele se esqueceu de quem era — respondeu o ciborgue. — Ou melhor, eu me esqueci de quem era. Comecei a pensar... ele começou a pensar que era eu.
Olhou para mim, seus olhos presos aos meus. Eram de cristal vermelho, aqueles olhos, e por trás deles eu podia ver um brilho. Sua pele estava adquirindo a cada instante um brilho polido, prateado. E desta vez ele estava fazendo isso por conta própria.
— Você tem suas próprias fraquezas — observou.
Na parte em que segurava a alça da xícara de café, minha mão começou a escurecer e se corromper. Senti o cheiro de decomposição. A carne começou a cair, e por baixo eu via o osso ensangüentado, deixando ver a brancura. A morte subia pelo meu braço inexoravelmente. Suponho que isso deveria me encher de horror. Só me encheu de repulsa.
— Não — respondi.
Meu braço estava inteiro e saudável.
— Não — repeti, e agora eu era metal, prateada e imortal, olhos como opalas, flores de vidro entrançadas num cabelo de platina. Eu podia ver meu reflexo brilhando sobre a placa polida de seu peito; eu estava bonita. Talvez ele também pudesse se enxergar, espelhado no meu cromo, pois nesse momento ele virou a cabeça.
Ele parecia tão forte, mas em Croan'dhenni, em meu castelo de obsidiana, nesta casa de dor e renascimento onde se joga o jogo da mente, as coisas não são sempre o que parecem.
— Ciborgue, você perdeu — avisei.
— Os outros jogadores... — começou ele a observar.
— Não. Ele ficará entre você e qualquer vítima que você possa escolher. Seu fantasma. Sua culpa. Ele não permitirá isso, Você não permitirá isso.
O ciborgue não conseguia olhar para mim.
— Sim — numa voz distorcida pelo metal e corroída pelo desespero.
— Você viverá para sempre.
— Não. Continuarei para sempre. É diferente, Sábia. Posso lhe dizer a temperatura exata de qualquer ambiente, mas não posso sentir calor ou frio. Posso ver até o infravermelho e o ultravioleta, posso magnificar meus sensores para contar cada poro de sua pele, mas sou cego ao que penso que deve ser sua beleza. Eu desejo vida, vida verdadeira, com a semente da morte crescendo inexoravelmente dentro dela, e portanto lhe dando sentido.
— Bom — falei, satisfeita.
Ele finalmente olhou para mim. Aprisionado naquele rosto de metal estavam dois pálidos e perdidos olhos humanos.
—Bom?
— Eu faço meu próprio sentido, ciborgue, e a vida é a inimiga da morte, não sua mãe. Parabéns. Você venceu. E eu também.
Levantei-me e estendi a mão por sobre a mesa, enfiando minha mão dentro do peito negro e frio; arranquei o coração de cristal dele. Eu o segurava e ele brilhava, cada vez mais, seus raios escarlates dançando sobre as montanhas frias e escuras de minha mente.
Abri os olhos.
Não, incorreto; ativei os sensores mais uma vez, e o cenário da câmara da mudança surgiu com uma clareza e uma agudeza que eu jamais havia experimentado. Meu mosaico de obsidiana, preto sobre preto, agora tinha cem tonalidades diferentes, cada uma distinta das demais, o padrão exato e claro. Eu estava sentada num nicho ao longo da borda; na cúpula central, a criança-mulher moveu-se e piscou grandes olhos violeta. A porta se abriu e eles foram em sua direção, Rannar solícito, Khar Dorian indiferente, tentando esconder sua curiosidade, Braje com risinhos enquanto aplicava suas injeções.
— Não — anunciei a eles. Minha voz era muito grave, muito masculina. Ajustei-a. — Não, aqui — repeti, agora soando mais parecido comigo mesma.
Seus olhares eram de choque.
No jogo da mente, há vencedores e perdedores.
A interferência do ciborgue teve seus efeitos, talvez. Ou talvez não, talvez antes do jogo terminar o padrão já estivesse traçado e fosse o mesmo. Craimur Delhune está morto; entregaram seu corpo aos pântanos na noite passada. Mas o vazio sumiu dos olhos da viciada gordinha, e ela está se submetendo a dieta e exercícios neste exato instante, e quando Khar Dorian partir, a levará de volta às propriedades de Delhune em Gulliver.
Rieseen Jay reclama que foi tapeada. Acredito que ela vai ficar por aqui, do lado de fora, na cidade dos danados. Sem dúvida, isso vai curar seu tédio. O g'hvern luta para falar, e pintou símbolos elaborados nas asas. O rapaz tatuado pulou das torres do castelo poucas horas após seu retorno, e se empalou nas estacas de obsidiana lá embaixo, batendo os braços até o último instante. Asas e olhos firmes não se igualam a força.
Um novo senhor da mente iniciou seu reinado. Ela ordenou que construíssem um novo castelo, uma estrutura feita de madeiras vivas, com fundações enraizadas profundamente nos pântanos, seu exterior coberto de videiras e flores e outras coisas vivas.
— Você terá insetos — avisei —, parasitas e mosquitos, cupins na madeira, podridão nas fundações, umidade nas paredes. Você terá de dormir com redes sobre a cama. Você terá de matar, constantemente, dia e noite. Seu castelo de madeira mergulhará num miasma de pequenas mortes, e em poucos anos os fantasmas de um milhão de insetos assombrarão seus salões à noite.
— Mesmo assim —- replicou ela —, minha casa será quente e viva, enquanto a sua era fria e insensível.
Todos temos nossos símbolos, suponho. E nossos medos.
— Apague-o — ela me avisou. — Limpe o cristal, ou com o passar do tempo ele consumirá você, e você se tornará outro fantasma na máquina.
— Apagá-lo?
Eu poderia ter rido, se o mecanismo permitisse rir. Posso ver bem através dela. Sua alma está espalhada sobre aquele rosto macio e frágil. Posso contar seus poros e anotar cada sombra de dúvida nas pupilas daqueles olhos violeta.
— Apagar-me, você quer dizer. O cristal é o lar de nós duas, criança.
Além do mais, não tenho medo dele. Você não entende. Kleronomas era cristal, a carne orgânica fantasma, a saída inevitável. Meu caso é diferente. Sou tão cristalina quanto ele, e tão eterna quanto.
— Sábia... — começou ela.
— Errado.
— Cyrain, se você prefere...
— Errado mais uma vez. Chame-me de Kleronomas.
Fui muitas coisas em minhas longas e variadas vidas, mas nunca uma lenda. Tem um certo status.
A garotinha olhou para mim.
— Eu sou Kleronomas — disse ela em voz alta e suave, os olhos arregalados.
— Sim — respondi — e não. Hoje ambas somos Kleronomas. Vivemos as mesmas vidas, fizemos as mesmas coisas, armazenamos as mesmas memórias. Mas, deste dia em diante, percorreremos caminhos diferentes. Eu sou aço e cristal, e você é carne, e criança. Você queria vida. Abrace-a, é sua, e tudo o que vem com ela. Seu corpo é jovem e saudável, apenas começando à desabrochar, seus anos serão longos e cheios. Hoje você pensa que ainda é Kleronomas. E amanhã?
"Amanhã você aprenderá novamente acerca do desejo, e abrirá suas pequenas pernas para Khar Dorian, e tremerá e gritará quando ele levar você ao orgasmo. Amanhã você terá filhos com sangue e dor, e os observará crescer e envelhecer e ter seus próprios filhos, e morrer. Amanhã você andará pelos pântanos e os despossuídos lhe jogarão presentes, e amaldiçoarão você, e elogiarão você, e rezarão para você. Amanhã novos jogadores chegarão, pedindo corpos, renascimento, outra chance, e amanhã as naves de Khar chegarão com uma nova carga de prêmios, e todas as suas certezas morais serão testadas e retestadas, e sofrerão alterações em suas formas. Amanhã Khar ou Jonas ou Sebastian Cayle chegarão à conclusão de que já esperaram demais, e você sentirá o gosto doce do beijo da traição, e talvez você vença, talvez perca. Não há certeza. Mas há uma coisa que eu posso prometer. No dia seguinte a esse amanhã, muitos anos depois de agora, embora não parecerão muitos depois de vividos, a morte começará a crescer dentro de você. A semente já está plantada. Talvez seja alguma doença desabrochando num desses peitinhos que Rannar adoraria tanto sugar, talvez uma finíssima corda metálica a lhe apertar a garganta em seu sono, talvez uma repentina explosão solar que dizimará o planeta. Mas virá, e mais cedo do que pensa.
—- Eu aceito isso — respondeu ela. Sorria enquanto falava; acho que era o que realmente queria dizer. — Tudo isso, todas as partes. Vida e morte. Há muito tempo não tenho isso, Sá... Kleronomas.
— Você já está esquecendo as coisas — observei. — A cada dia você perderá mais. Hoje ambas nos lembramos. Lembramo-nos das cavernas de cristal de Eris, a primeira nave em que servimos, os traços do rosto de nosso pai. Lembramo-nos do que Tomas Chung disse quando decidimos não retornar a Avalon, e as outras palavras que ele disse na hora da morte. Lembramo-nos da última mulher com quem fizemos amor, as formas e o cheiro dela, os ruídos que ela fez quando a satisfizemos. Ela já morreu há oitocentos anos, mas vive em nossas memórias. Mas está morrendo na sua, não está? Hoje você é Kleronomas. E também eu o sou. E sou Cyrain de Ash, e uma pequena parte de mim é ainda o nosso fantasma, pobre homem triste. Mas quando o amanhã chegar, vou me segurar a tudo o que sou, e você, você será o senhor da mente, ou talvez apenas uma escrava sexual
 em algum bordel perfumado de Cymeranth, ou um sábio em Avalon, mas em qualquer caso uma pessoa diferente do que é agora.
Ela entendia; ela aceitava.
— Então você jogará o jogo da mente para sempre — falou —, e eu jamais morrerei.
— Você morrerá — ressaltei. — Certamente que sim.
Kleronomas é imortal.
— E Cyrain de Ash.
— Ela também.
— O que você vai fazer? — perguntou.
Fui até a janela. A flor de vidro estava lá, em seu vaso simples de madeira, suas pétalas refletindo a luz. Olhei para a fonte daquela luz, o sol brilhante de Croan'dhenni queimando no céu claro do meio- dia. Agora eu podia olhar direto para ele, focalizar as manchas solares e as torres flamejantes de onde procediam. Fiz um pequeno ajuste consciente nas lentes de cristal de meus olhos, e o céu vazio ficou cheio de estrelas, mais estrelas do que jamais havia imaginado, mais estrelas do que eu jamais poderia imaginar.
— Fazer? — perguntei, ainda olhando para aqueles campos secretos de estrelas, visíveis apenas para mim. Eles traziam à minha mente meu mosaico de obsidiana. — Existem mundos em que nunca estive — falei para minha irmã gêmea, pai, filha, inimiga, espelho, o que quer que ela fosse. — Existem coisas que ainda não conheço, estrelas que mesmo agora não posso ver. O que vou fazer? Tudo. Para começar, tudo.
Enquanto eu falava, um inseto listrado grande entrou voando pela janela aberta movido por seis asas que batiam rápido demais para a visão humana, embora eu pudesse contar cada batida lânguida se assim o quisesse. Ele pousou despreocupado em minha flor de vidro, não encontrou nem perfume nem pólen, e voltou por onde veio. Observei-o partir, ficando cada vez menor, sumindo na distância, até que finalmente aumentei minha visão ao máximo, e o pequeno besouro moribundo se perdeu entre os pântanos e as estrelas.

 

 

                                                                  George R. R. Martin

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades