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A FUNÇÃO DO INCONSCIENTE / Carl Gustav Jun
A FUNÇÃO DO INCONSCIENTE / Carl Gustav Jun

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

JUNG, Carl Gustav. O Eu e o inconsciente. Tradução de Dra. Dora Maria Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2001, 15ª edição, volume VII/2 das Obras Completas.

NOTA: Os números em colchetes referem-se à numeração original dos parágrafos e serve como referência para citação bibliográfica.

 

 

 

 

[266] Há uma destinação, uma possível meta além das fases ou estádios de que tratamos na primeira parte deste livro: é o caminho da individuação. Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por "individualidade" entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois, traduzir "individuação" como "tornar-se si-mesmo" (Verselbstung) ou "o realizar-se do si-mesmo" (Selbstverwirklichung).

[267] As possibilidades de desenvolvimento comentadas nos capítulos anteriores são, no fundo, alienações do si-mesmo, modos de despojar o si-mesmo de sua realidade, em benefício de um papel exterior ou de um significado imaginário. Em ambos os casos, verifica-se uma preponderância do coletivo. A renúncia do si-mesmo em favor do coletivo corresponde a um ideal social; passa até mesmo por dever social e virtude, embora possa significar às vezes um abuso egoísta. O egoísta ("salbstisch") nada tem a ver com o conceito de si-mesmo, tal como aqui o usamos. Por outro lado, a realização do si-mesmo parece ser o contrário do despojamento do si-mesmo. Este mal-entendido é geral, uma vez que não se distingue corretamente individualismo de individuação. Individualismo significa acentuar e dar ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a considerações e obrigações coletivas. A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de suas componentes, mas sim como uma combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções e faculdades que em si mesma são universais. Cada rosto humano tem um nariz, dois olhos etc., mas tais fatores universais são variáveis e é esta variabilidade que possibilita as peculiaridades individuais. A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isto, não se torna "egoísta", no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, é totalmente diferente do egoísmo ou do individualismo.

[268] Entretanto, na medida em que o indivíduo humano, como unidade viva, é composto de fatores puramente universais, é coletivo e de modo algum oposto à coletividade. A ênfase individualística de sua própria peculiaridade representa, pois, uma contradição frente a este fato básico do ser vivo. A individuação, pelo contrário, tem por meta a cooperação viva de todos os fatores. Mas como os fatores universais sempre se apresentam em forma individual, uma consideração plena dos mesmos também produzirá um efeito individual, que não poderá ser superado por outro e muito menos pelo individualismo.

[269] A meta da individuação não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais. Do que até agora foi dito depreende-se claramente o significado psicológico da persona. Entretanto, quando nos voltamos para o outro lado, isto é, para as influências do inconsciente coletivo, encontramo-nos num obscuro mundo interior, de compreensão muito mais difícil do que a da psicologia da persona, acessível a qualquer um. Não há quem não saiba o que significa "assumir um ar oficial", ou "desempenhar seu papel na sociedade". Através da persona o homem quer parecer isto ou aquilo, ou então se esconde atrás de uma "máscara", ou até mesmo constrói uma persona definida, a modo de muralha protetora. Assim, pois, o problema da persona não apresenta grandes dificuldades intelectuais.

[270] Mas é outra coisa tentar descrever, de um modo que todos possam compreender, os processos interiores sutis que irrompem na consciência com força sugestiva. Talvez o melhor modo de ilustrar tais influências seja o de recorrermos a exemplos de doenças mentais, de inspirações criadoras e de conversões religiosas. Uma excelente representação de tal transformação interna, de certo modo copiada da realidade, encontramo-la no livro de H. G. Wells: Christina Alberta's Father. Transformações da mesma ordem são descritas no excelente livro L’Hérédo de Leon Daudet. Podemos também encontrar um copioso material em William James: Varieties of Religious Experience. Em muitos casos deste tipo, existem fatores externos que produzem diretamente a mudança, ou pelo menos predispõem a ela; mas nem sempre o fator externo explica suficientemente tais mudanças de personalidade. Devemos reconhecer que estas também podem provir de motivos internos e subjetivos, de opiniões e convicções, nos quais os fatores externos desempenham um papel insignificante ou nulo. Nas mudanças patológicas da personalidade, este papel pode ser considerado como o fator geral. Os casos de psicose, que representam uma reação simples e evidente a algum acontecimento externo e irresistível, são exceções. Por isso, no campo da psiquiatria o fator etiológico essencial é a predisposição patológica herdada ou adquirida. O mesmo poderá dizer-se acerca da maioria das intuições criadoras, pois é difícil supor uma relação meramente causal entre a maçã que cai e a teoria da gravitação de Newton. Do mesmo modo, todas as conversões religiosas que não procedem diretamente da sugestão ou do contágio do exemplo são devidas a processos interiores autônomos, que culminam numa transformação da personalidade. Tais processos têm a particularidade de ser inicialmente subliminais, isto é, inconscientes, só alcançando a consciência de modo gradual. O momento da irrupção pode, entretanto, ser repentino, de maneira que a consciência é como que inundada instantaneamente por conteúdos estranhos e inesperados. Os leigos e os que são atingidos pelo fenômeno assim poderão julgar; mas não o perito, que sabe não existirem tais transformações repentinas. Na realidade, a irrupção preparou-se através de muitos anos, às vezes durante a metade da vida: já na infância ter-se-ia podido verificar muitas particularidades que, mais ou menos, já indicariam simbolicamente futuros desenvolvimentos anormais. Lembro-me, por exemplo, de um doente mental que se recusava a comer, criando também uma estranha dificuldade à alimentação por meio de sonda nasal. Era necessário recorrer à anestesia antes de introduzi-la. O paciente sabia engolir a língua, isto é, sabia como empurrá-la garganta abaixo, lato insólito para mim, nessa época. Num intervalo de lucidez contou me a seguinte história: quando menino, tentava imaginar os meios de suicidar-se, vencendo os obstáculos que pudessem opor a esse intento. Primeiro tentou reter a respirarão, mas constatou que ao chegar a um estado de semi-consciêneia recomeçava a respirar. Desistiu dessa tentativa o pensou na possibilidade de recusar o alimento, Tal fantasia o satisfez, ate o momento em que descobriu que poderiam alimentá-lo, introduzindo o alimento pela cavidade nasal. Começou então a imaginar o modo pelo qual conseguiria obstruir esse conduto, ocorrendo-lhe a idéia de empurrar a língua para trás. A principio não o conseguiu, mas com o exercício regular chegou a engolir a língua, tal como ás vezes acontece acidentalmente nos indivíduos anestesiados; quanto a ele, obteve esse resultado pelo relaxamento artificial dos músculos que ficam à base da língua.

[271] Desse modo estranho, o menino preparava-se para uma futura psicose. Depois da segunda crise, enlouqueceu de modo incurável. Este exemplo, entre outros, é suficiente para mostrar como a irrupção posterior e aparentemente súbita de conteúdos desconhecidos na realidade não o é, constituindo o resultado de um processo inconsciente que se desenrola através de muitos anos.

[272] O grande problema propõe-se aqui: em que consistem os processos inconscientes? Como se formam? Naturalmente, na medida em que são inconscientes, nada se pode dizer a respeito. Entretanto, às vezes, manifestam-se parcialmente através de sintomas, ações, opiniões, afetos, fantasias e sonhos. Com o auxílio desses materiais de observação, podemos tirar conclusões indiretas acerca da constituição e do estado momentâneos do processo inconsciente e de seu desenvolvimento. Não devemos, entretanto, iludir-nos, pensando ter descoberto a verdadeira natureza do processo inconsciente. Jamais conseguiremos ultrapassar o hipotético "como se".

[273] “Nenhum espírito criado poderá mergulhar nas profundidades da natureza”, e nem do inconsciente. Sabemos, porém, que o inconsciente nunca está em repouso. Sua atividade parece ser contínua, pois mesmo quando dormimos sonhamos. É verdade que há muitas pessoas que afirmam nunca sonharem; o mais provável é que não se lembrem de seus sonhos. Não deixa de ser significativo o fato de que as pessoas que falam dormindo em geral não se lembram do sonho que as fez falar e nem mesmo se lembram de ter sonhado. É raro passar um dia sem que cometamos algum erro ao falar, sem que desapareça da nossa memória algo de que antes nos lembrávamos ou sem que nos subjugue um estado de ânimo, cuja origem desconhecemos, etc. Todas estas coisas são sintomas da contínua atividade do nosso inconsciente, que à noite se evidencia nos sonhos e, durante o dia, vence ocasionalmente as inibições impostas pela consciência.

[274] Na medida do alcance de nossa experiência atual, podemos dizer que os processos inconscientes se acham numa relação compensatória em relação a consciência. Uso de propósito a expressão "compensatória" e não a palavra "oposta", porque consciente o inconsciente não se acham necessariamente em oposição, mas se complementam mutuamente, para formar uma totalidade: o si-mesmo (Selbst). De acordo com esta definição, o si-mesmo é uma instância que engloba o eu consciente. Abarca não só a psique consciente, como a inconsciente, sendo, portanto, por assim dizer, uma personalidade que também somos. Podemos facilmente imaginar que possuímos almas parciais. Conseguimos, por exemplo, representar nossa persona, sem grande dificuldade. Mas ultrapassa o poder da nossa imaginação a clara imagem do que somos enquanto si-mesmo, pois nesta operação a parte deveria compreender o todo. É impossível chegar a uma consciência aproximada do si-mesmo, porque por mais que ampliemos nosso campo de consciência-, sempre haverá uma quantidade indeterminada e indeterminável de material inconsciente, que pertence à totalidade do si-mesmo. Este é o motivo pelo qual o si-mesmo sempre constituirá uma grandeza que nos ultrapassa.

[275] Os processos inconscientes compensadores do eu consciente contêm todos os elementos necessários para a auto-regulação da psique como um todo. No nível pessoal, tais processos inconscientes são constituídos por motivos pessoais que a consciência não reconhece, mas que afloram nos sonhos, ou são significados de situações cotidianas negligenciadas, de afetos que não nos permitimos e críticas a que nos furtamos. Entretanto, quanto mais conscientes nos tornamos de nós mesmos através do autoconhecimento, atuando conseqüentemente, tanto mais se reduzirá a camada do inconsciente pessoal que recobre o inconsciente coletivo. Desta forma, vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho, susceptível e pessoal do eu, aberta para a livre participação de um mundo mais amplo de interessas objetivos. Essa consciência ampliada não é mais aquele novelo egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições de caráter pessoal, que sempre deve ser compensado ou corrigido por contratendências inconscientes; tornar-se-á uma função de relação com o mundo de objetos, colocando o indivíduo numa comunhão incondicional, obrigatória e indissolúvel com o mundo. As complicações que ocorrem neste estádio já não são conflitos de desejos egoístas, mas dificuldades que concernem à própria pessoa e aos outros. Neste estádio aparecem problemas gerais que ativaram o inconsciente coletivo; eles exigem uma compensação coletiva e não pessoal. É então que podemos constatar que o inconsciente produz conteúdos válidos, não só para o indivíduo, mas para outros: para muitos e, talvez, para todos.

[276] Os elgonyi, que vivem nas florestas virgens do Elgon, me explicaram certa vez que há duas espécies de sonhos: o sonho cotidiano do homem comum e a "grande visão", que só os grandes homens têm, como por exemplo o mago e o cacique. Os pequenos sonhos não têm importância alguma; mas quando alguém sonha um "grande sonho", convoca a tribo para contá-lo a todos.

[277] Mas como se sabe, porém, se o sonho é "grande" ou "pequeno"? Por um sentimento intuitivo de sua importância significativa. Tal impressão é de tal modo avassaladora, que o indivíduo jamais pensaria guardá-lo para si. Tem de contá-lo, supondo, de um modo psicologicamente correto, que o sonho é importante para todos. Mesmo entre nós, o sonho coletivo é carregado de uma importância significativa que nos impele a comunicá-lo. Originando-se de um conflito de relação, deve ser levado à relação consciente, porque compensa esta última e não apenas a um defeito pessoal interior.

[278] Os processos do inconsciente coletivo não dizem respeito somente às relações mais ou menos pessoais de um indivíduo com sua família, ou com um grupo social; dizem respeito à comunidade humana em geral. Quanto mais ampla e impessoal for a condição que desencadeia a reação inconsciente, mais estranha e irresistível será a manifestação compensadora. Esta última não só impele à comunicação particular, como à sua revelação ou confissão; poderá até mesmo pressionar o indivíduo a assumir um papel representativo.

[279] Ilustrarei, com um exemplo, o modo pelo qual o inconsciente compensa as relações. Certa vez um senhor arrogante procurou-me para tratar-se. Ele dirigia um negócio com seu irmão mais jovem. A relação entre ambos era muito tensa e isto constituía um dos motivos da neurose do meu paciente. As razões que este me apresentava para explicar o verdadeiro motivo da tensão entre ele e o irmão não me pareciam de forma alguma claras e convincentes. Criticava esse irmão de todos os modos possíveis e não propunha uma imagem favorável de sua competência, No entanto, este último aparecia freqüentemente em seus sonhos, desempenhando sempre o papel de um Bismarck, de um Napoleão, ou de um Júlio César. Sua casa parecia o Vaticano ou Yildiz Kiosk. Era claro que o inconsciente do senhor em questão necessitava exaltar a categoria do irmão mais jovem. Este fato levou-me a concluir que na vida real, meu paciente se superestimava e depreciava o irmão. O desenrolar posterior desta análise justificou minha conclusão.

[280] Outra paciente, uma jovem que amava apaixonadamente a mãe, sempre sonhava com ela de modo desfavorável. Esta aparecia em seus sonhos como bruxa, como um fantasma ou como uma perseguidora. A mãe a mimara exageradamente e a cegara com sua ternura; a filha não podia, pois, reconhecer conscientemente a influência nociva da mãe sobre ela. Seu inconsciente, no entanto, exerceu uma crítica nitidamente compensadora em relação à mãe.

[281] Aconteceu-me certa vez subestimar em excesso uma paciente, tanto do ponto de vista intelectual, quanto moral. Em seguida tive um sonho: um castelo erguia-se no alto de um penhasco. Na torre mais elevada havia um balcão e nele estava a minha paciente. Não hesitei em contar-lhe o sonho, naturalmente com o melhor resultado.

[282] É fato conhecido que costumamos desempenhar um mau papel diante das pessoas que subestimamos injustamente. Pode, entretanto, suceder o contrário e foi isto que aconteceu com um amigo meu. Era ele ainda um jovem estudante quando decidiu solicitar uma audiência junto ao "excelentíssimo senhor" Virchow. Ao apresentar-se diante dele, tremulo de emoção, balbuciou, tentando dizer o próprio nome: "Eu me chamo Virchow." Ao que sua excelência respondeu, com um sorriso malicioso: "Ah, o senhor também se chama Virchow?" A sensação da própria insignificância fora excessiva para o inconsciente do meu amigo e isto o induziu a apresentar-se a Virchow corno alguém da mesma grandeza.

[283] Nestas relações de caráter preponderantemente pessoal não se trata, é claro, de compensações por assim dizer coletivas; no primeiro caso, pelo contrário, as figuras usadas pelo inconsciente são de natureza coletiva: são heróis mundialmente conhecidos. Pois bem, nos dois últimos casos mencionados há duas possibilidades de interpretação: ou o irmão mais novo do meu paciente devia ser um homem de reconhecido e amplo valor coletivo, ou meu paciente se supervalorizava não só em relação a ele, mas a todos. Não havia razões concretas que confirmassem a primeira hipótese; quanto à segunda foi-se tornando cada vez, mais evidente. Dai, a grande arrogância do meu paciente diante do irmão e do grupo mais amplo da sociedade; assim, pois, a compensação valeu-se de uma imagem coletiva.

[284] Pode se dizer o mesmo do segundo caso. A "bruxa" é uma imagem coletiva. Devemos, portanto, deduzir que o amor cego da jovem não se referia só à mãe, mas a um grupo social mais amplo. Era este o caso, pois ela ainda vivia num mundo exclusivamente infantil, em que identificava tudo com a imagem dos pais. Os exemplos citados referem-se a relações dos limites pessoais. Há, porém, um tipo de relação impessoal que exige às vezes uma compensação consciente. Em tais casos aparecem imagens coletivas de caráter mais ou menos mitológico. Trata-se, em primeiro lugar, de problemas morais, filosóficos e religiosos que, devido à sua validez universal, provocam compensações mitológicas. No livro já citado de H. G. Wells, encontramos uma forma clássica de compensação: Preemby, uma espécie de edição de bolso em termos de personalidade, descobre que é a verdadeira reencarnação de Sargão, o rei dos reis. Mas o gênio do autor soube salvar o pobre Sargão do infortúnio meramente patológico de seu disparate, deixando transparecer o sentido trágico e eterno de tão lamentável absurdo: Mr. Preemby, um zero à esquerda, sente-se como um ponto de interseção de todas as épocas passadas e futuras. Tal revelação custa-lhe uma loucura pacífica, dado que o pequeno Mr. Preemby livra-se do risco iminente de ser engolido por uma proto-imagem.

[285] O problema genérico do mal e do pecado representa outro aspecto de nossas relações impessoais com o mundo. Por isso produz compensações coletivas, mais do que qualquer outro problema. Um paciente que sofria de uma grave neurose obsessiva teve aos dezesseis anos um sonho que, sem dúvida, já representava um sintoma inicial: estava escuro, ele caminhava por uma rua desconhecida, quando ouviu passos que o seguiam. Andou mais depressa, atemorizado. Os passos aproximavam-se cada vez mais. Começou a correr, sentia um medo crescente. Os passos pareciam alcançá-lo. Enfim, olhou para trás e deparou com o diabo. Mortalmente assustado, deu um salto e ficou como que suspenso no ar. Este sonho repetiu-se duas vezes, indicando assim sua especial importância.

[286] Como se sabe, a neurose obsessiva, com seus escrúpulos e obsessões de cunho cerimonial, não tem só a aparência de um problema moral; interiormente é cheia de desumanidade, criminalidade e maldade implacável, contra cuja integração a personalidade resiste desesperadamente; de resto, esta última pode ser suave e bem organizada. O motivo pelo qual tantos atos devem ser realizados de um modo cerimonial e "correto" é a suposição de que representam o contrapeso diante do mal que ameaça de dentro. Depois do sonho citado, manifestou-se a neurose; ela consistia essencialmente no esforço do paciente manter-se, como ele mesmo dizia, num estado "provisório", "in-contaminado" de pureza. Para consegui-lo, evitava ou "anulava" todo contato com o mundo e com as coisas que lembravam sua transitoriedade. Isso era obtido através de incríveis complicações, cerimônias escrupulosas de purificação e a observância estrita de inúmeras regras, extremamente complexas. Antes mesmo que o paciente pressentisse a existência infernal que o aguardava, o sonho mostrara-lhe que devia fazer um pacto com o diabo, se quisesse voltar a pisar a terra firme.

[287] Mencionei em outra parte o sonho de um jovem estudante de teologia, sonho este que ilustra a compensação de seu problema religioso. Tratava-se de um emaranhado de dificuldades de fé, o que não é raro no homem moderno. No sonho, ele era o discípulo de um "mago branco", que só se vestia de negro. Este o ensinou até certo ponto, a partir do qual teria que recorrer ao "mago negro". Este último vestia-se de branco e afirmou ter encontrado as chaves do paraíso; mas precisava recorrer à sabedoria do mago branco para saber usá-las. Tal sonho contém, como é evidente, o problema dos opostos. Este problema, como sabemos, encontrou na filosofia taoísta uma solução bem diversa dos pontos de vista que prevaleceram no Ocidente. As imagens mobilizadas pelo sonho são impessoais, coletivas, e correspondem à natureza impessoal dos problemas religiosos. Em contraste com a visão cristã, o sonho realça a relatividade elo bem e do mal de um modo que lembra imediatamente o conhecido símbolo do Yang e do Yin.

[288] Não devemos, porém, concluir, á base de tais compensações, que quanto mais a consciência se embrenha nos problemas universais, tanto maior deve ser o alcance das compensações produzidas pelo inconsciente. Há, por assim dizer, um interesse legítimo e outro ilegítimo com os problemas impessoais. São legitimas as excursões que surgem de uma profunda e autêntica necessidade individual e ilegítimas as que representam apenas uma curiosidade intelectual, ou a tentativa de evadir-se de uma realidade desagradável. Neste último caso, o inconsciente produz compensações demasiado pessoais e humanas, cuja meta é a de reconduzir a consciência à realidade imediata. As pessoas que se entusiasmam ilegitimamente com o infinito têm muitas vezes sonhos ridículos e banais, que procuram abrandar tal exaltação. Assim é que pela natureza da compensação podemos tirar conclusões acerca da seriedade e da autenticidade das aspirações conscientes.

[289] Não são poucas as pessoas que têm medo de admitir que o inconsciente pode ter, até certo ponto, "grandes" idéias. Certamente, objetarão: "Mas o senhor acredita mesmo que o inconsciente é capaz de formular uma crítica de algum modo construtiva para nossa mentalidade de homens ocidentais?" Isso seria realmente um absurdo se tomássemos o problema do ponto de vista intelectual e atribuíssemos ao inconsciente uma psicologia consciente. Sua mentalidade é de caráter instintivo, não tem funções diferenciadas, nem pensa segundo os moldes daquilo que entendemos por "pensar". Ele somente cria uma imagem que responde à situação da consciência; esta imagem é tão impregnada de idéia como de sentimento e poderá ser tudo, menos o produto de uma reflexão racionalista. Seria mais certo considerarmos tal imagem como uma visão artística. Não devemos esquecer que o problema subjacente ao sonho mencionado é uma profunda questão emocional e não um problema intelectual, formulado na consciência do sonhador. Para um homem de sensibilidade moral, o problema ético constitui uma questão apaixonada que se enraíza tanto nos processos instintivos, mais profundos, como em suas aspirações mais idealistas. Tal problema é profundamente real. Não é de admirar-se, pois, que a ele responda o mais profundo de sua natureza. O psicólogo não deve preocupar-se com o fato do que cada um considere sua psicologia a medida de todas as coisas, nem de que tal observação não lhe passe pela cabeça (no caso de ser um tolo); o psicólogo deverá encarar as coisas objetivamente, sem mutilá-las em benefício de uma hipótese subjetiva. Pois tem, assim como os indivíduos de natureza mais rica o abarcante podem empolgar-se legitimamente com um problema impessoal, assim também seu inconsciente responderá no mesmo registro. E ao consciente, que pode indagar por que existe esse terrível conflito entre o bem e o mal, o inconsciente poderá responder: "Olha bem, os dois necessitam-se mutuamente, pois mesmo no melhor e precisamente no melhor existe o germe do mal. E nada é tão mau que não possa produzir um bem."

[290] O sonhador poderia desconfiar que o conflito, aparentemente insolúvel, fosse um preconceito de uma mentalidade subordinada a um certo tempo e lugar. A imagem do sonho, aparentemente complicada, revelaria um senso comum instintivo e gráfico, uma espécie de embrião de uma idéia racional que teria podido ocorrer conscientemente a um espírito mais maduro. Em todo o caso, a filosofia chinesa concebeu-a há muito tempo. A singular configuração, plástica e acertada do pensamento, é uma prerrogativa desse espírito natural e primitivo que vive em todos nós e que só pode ser obscurecido por uma consciência desenvolvida de modo unilateral. Se observarmos deste ponto de vista as compensações produzidas pelo inconsciente, poder-se-á dizer com razão que julgamos o inconsciente, sublinhando demais o ponto de vista da consciência. De fato, ao formular estas reflexões sempre parti do ponto de vista que o inconsciente não faz mais do que reagir aos conteúdos conscientes; é como se faltasse ao primeiro qualquer iniciativa, apesar de sua reação ser rica de significado. Não pretendo, no entanto, provar que em todos os casos o inconsciente é apenas reativo. Pelo contrário, há muitas experiências que parecem demonstrar a espontaneidade do inconsciente e sua possibilidade de apropriar-se da direção do processo psíquico. São inúmeros os casos de pessoas que permaneceram estagnadas numa inconsciência mesquinha, até que por fim se tornaram neuróticas. A neurose desencadeada pelo inconsciente tira-as da apatia, muitas vezes contrariando sua preguiça e sua desesperada resistência.

[291] Acho, no entanto, que seria um erro supor que em tais casos o inconsciente atua segundo um plano geral e preestabelecido, tendendo para uma determinada meta e sua realização. Jamais encontrei algo que pudesse fundamentar tal hipótese. O motivo propulsor - na medida em que podemos perecbê-Io — parece ser essencialmente um instinto de realização do si-mesmo. Se se tratasse de um plano geral ou ideológico, todos os indivíduos dotados de um inconsciente excessivo deveriam ser impelidos irresistivelmente para um estado superior de consciência. Isto não se dá. Há camadas inteiras da população que, apesar de sua notória inconsciência, não são atingidas pela neurose. Os que sofrem tal destino, a minoria, representa na realidade um tipo humano "superior", que por um motivo qualquer permaneceu muito tempo num estádio primitivo. Com o correr do tempo, sua natureza não resistiu a essa apatia antinatural. A estreiteza de sua esfera consciente e a limitação de sua vida e existência pouparam-lhe a energia; pouco a pouco esta acumulou-se no inconsciente, explodindo afinal sob a forma de uma neurose mais ou menos aguda. Este mecanismo simples não supõe um "plano" básico. Basta, para explicá-lo, o instinto de realização do si-mesmo, perfeitamente compreensível. Poder-se-ia também considerá-lo como um amadurecimento tardio da personalidade.

[292] Provavelmente estamos muito longe ainda de ter alcançado o cume da consciência absoluta. Todo ser humano é capaz de ascender a uma consciência mais ampla, razão pela qual podemos supor que os processos inconscientes, sempre e em toda parte, levam à consciência conteúdos que, uma vez reconhecidos, ampliam o campo desta última. Sob este prisma, o inconsciente se afigura um campo de experiência de extensão indeterminada. Se ele fosse apenas reativo frente à consciência, poderíamos perfeitamente considerá-lo como um mundo-especular do psiquismo. Neste caso, a fonte essencial de todos os conteúdos e atividades estaria na consciência; nada haveria no inconsciente além dos reflexos distorcidos de conteúdos conscientes. O processo criador encontrar-se-ia encerrado na consciência, e toda inovação seria sempre uma descoberta ou habilidade consciente. Os fatos empíricos não confirmam tal suposição. Todo homem criador sabe que o elemento involuntário é a qualidade essencial do pensamento criador. E porque o inconsciente não é apenas um espelhar reativo, mas atividade produtiva e autônoma, seu campo de experiência constitui uma realidade, um mundo próprio. Deste último podemos dizer que atua sobre nós do mesmo modo que atuamos sobre ele, ou seja, o mesmo que podemos dizer acerca do campo empírico do mundo exterior. Mas enquanto no mundo exterior os objetos são os elementos constitutivos, na interioridade os elementos constitutivos são os falores psíquicos.

[293] A idéia da objetividade psíquica não é de forma alguma uma nova descoberta; representa, muito pelo contrário, uma das primeiras e mais amplas "conquistas" da humanidade: a convicção concreta do mundo dos espíritos. O mundo dos espíritos não foi uma descoberta, como por exemplo a do fogo pela fricção, mas sim a experiência ou conscientização de uma realidade tão válida quanto a do mundo material. Duvido que haja primitivos que não conheçam a "influência mágica" ou a "substância mágica". (A palavra "mágica" é outra designação do fator psíquico). Parece também que todos sabem algo acerca da existência dos espíritos. O "espírito" é um fato psíquico. Assim como distinguimos nossa própria corporalidade dos corpos alheios, os primitivos também distinguem entre suas almas (quando possuem alguma representação acerca das mesmas) e os espíritos; estes últimos são sentidos como algo de estranho e alheio ao homem. São objeto da percepção externa, ao passo que a própria alma (ou uma das diversas almas, quando acreditam em sua pluralidade), não o é, apesar de aparentar-se por afinidade aos espíritos. Depois da morte, a alma (ou uma das diversas almas) torna-se um espírito que sobrevive ao morto; manifesta então, muitas vezes, uma deterioração de caráter, o que contradiz parcialmente a idéia de uma imortalidade pessoal. Os batak afirmam que os homens que em vida foram bons tornam-se malévolos e perigosos como espíritos. Quase tudo que os primitivos dizem acerca das travessuras que os espíritos se permitem em relação aos vivos e principalmente a imagem que têm dos "revenants" corresponde, nos mínimos detalhes, aos fenômenos constatados nas experiências dos espíritas. E tal como é possível perceber, nas comunicações dos "espíritos" que comparecem nas seções espíritas, a atividade de fragmentos psíquicos, assim também podemos interpretar os espíritos primitivos como manifestações de complexos inconscientes. A importância atribuída pela psicologia moderna ao "complexo parental" é o prosseguimento imediato da experiência primitiva concernente à eficácia perigosa do espírito dos pais. Os primitivos, em sua suposição (impensada) do que os espíritos são realidades do mundo exterior, cometem um erro de julgamento; este erro, porém, tem seu prolongamento na hipótese (só parcialmente verdadeira) de que nossos pais são os responsáveis pelo complexo parental. Na antiga teoria do trauma da psicanálise freudiana e além dela, tal suposição tinha a validez de uma explicação científica. (Para evitar esta falta de clareza, propus a expressão de "imago parental").

[294] Naturalmente, o homem ingênuo não percebe, ao nível da consciência, que seus parentes mais próximos, cuja influência sobre ele é direta, sei em parte coincidem com a imagem que deles tem; a outra parte dessa imagem é constituída de um material que procede do próprio sujeito. A imago nasce das influências dos pais e das reações específicas do filho; por conseguinte é uma imagem que reproduz o objeto de um modo bem condicional. O homem ingênuo crê, porém, que seus pais são tais como ele os vê. A imagem é projetada inconscientemente e, quando os pais morrem, continua a atuar como se fosse um espírito autônomo. Os primitivos falam do espírito dos pais que voltam à noite ("revenants"); o homem moderno denomina esta mesma realidade de complexo paterno ou materno.

[295] Quanto mais limitado for o campo consciente de um indivíduo, tanto maior será o número de conteúdos psíquicos ("imagines") que se manifestam exteriormente, quer como espíritos, quer como poderes mágicos projetados sobre vivos (magos, bruxas). Num estádio superior de desenvolvimento, quando já existem representações da alma, nem todas as imagens continuam projetadas (quando a projeção continua, até mesmo as árvores e as pedras dialogam); nesse novo estádio, um complexo ou outro pode aproximar-se da consciência, a ponto de não ser percebido como algo estranho, mas sim como algo próprio. Tal sentimento, no entanto, não chega a absorver o referido complexo como um conteúdo subjetivo da consciência. Ele fica, de certo modo, entre o consciente e o inconsciente, numa zona crepuscular: por um lado, pertence ao sujeito da consciência, mas por outro lhe é estranho, mantendo uma existência autônoma que o opõe ao consciente. De qualquer forma, não obedece necessariamente à intenção subjetiva, mas é superior a esta, podendo constituir um manancial de inspiração de advertência, ou de informação “sobrenatural”. Psicologicamente tal conteúdo poderá ser explicado como sendo parcialmente autônomo e não totalmente integrado ao complexo da consciência. Esses complexos são as almas primitivas, as ba e ka  egípcias. Num nível mais alto e particularmente entre os povos civilizados do Ocidente, este complexo é sempre feminino (anima e), certamente devido a motivos profundos e significativos.

 

 

                                                                  C.G.Jung

 

 

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