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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GLORIA DOS TRAIDORES - P.1 / George R. R. Martin
A GLORIA DOS TRAIDORES - P.1 / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

  Os seus batedores dothraki tinham-lhe dito como era, mas Dany queria ver por si mesma. Sor Jorah Mormont atravessou com ela, a cavalo, uma floresta de vidoeiros e subiu uma íngreme crista de arenito.
  — Estamos suficientemente próximos — avisou-a ao chegar ao topo.
  Dany refreou a égua e olhou por sobre os campos, para o local onde a hoste de Yunkai se atravessava no seu caminho. O Barba-Branca tinha andado a ensinar-lhe a melhor forma de estimar os números de um inimigo.
  — Cinco mil — disse passado um momento.
  — Diria que sim. — Sor Jorah apontou. — Aqueles nos flancos são mercenários. Lanceiros e arqueiros a cavalo, com espadas e machados para o trabalho de proximidade. Os Segundos Filhos na ala esquerda, os Corvos Tormentosos na direita. Cerca de quinhentos homens cada. Vedes os estandartes?
  A harpia de Yunkai agarrava com as garras um chicote e uma coleira de ferro em vez de uma corrente. Mas os mercenários hasteavam os seus próprios estandartes por baixo dos da cidade que serviam: do lado direito quatro corvos entre relâmpagos cruzados, do esquerdo, uma espada quebrada.
  — São os próprios yunkaitas que constituem o centro — fez notar Dany. À distância, os seus oficiais eram indistinguíveis dos de Astapor; elmos altos e brilhantes e mantos revestidos de cintilantes discos de cobre. — Os soldados que lideram são escravos?
  — Em grande medida. Mas não se igualam aos Imaculados. Yunkai é conhecida por treinar escravos de cama, não soldados.
  — Que achais? Podemos derrotar este exército?
  — Facilmente — disse Sor Jorah.
  — Mas não sem sangue. — Grande quantidade de sangue empapara os tijolos de Astapor quando a cidade caíra, embora pouco dele lhe pertencesse ou aos seus. — Podemos ganhar aqui uma batalha, mas a um tal custo que não consigamos tomar a cidade.
  — Esse é sempre um risco, Khaleesi. Astapor estava complacente e vulnerável. Yunkai está prevenida.

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  Dany reflectiu. A hoste dos esclavagistas parecia pequena comparada com a sua, mas os mercenários estavam montados. Viajara demasiado tempo com os dothraki para não ter um saudável respeito por aquilo que guerreiros a cavalo podiam fazer à infantaria. Os Imaculados poderiam aguentar a carga deles, mas os meus libertados seriam massacrados.
  — Os esclavagistas gostam de falar — disse. — Enviai uma mensagem dizendo que os receberei esta noite na minha tenda. E convidai também os comandantes das companhias mercenárias para uma visita. Mas não juntos. Os Corvos Tormentosos ao meio-dia, e os Segundos Filhos duas horas mais tarde.
  — Às vossas ordens — disse Sor Jorah. — Mas se não vierem…
  — Virão. Terão curiosidade de ver os dragões e de ouvir o que eu tenho para dizer, e os que forem inteligentes verão aí uma oportunidade para avaliar as minhas forças. — Fez a égua prateada dar meia volta. — Esperá-los-ei no meu pavilhão.
  Céus de um azul carregado e ventos fortes acompanharam Dany de volta à sua hoste. O profundo fosso que iria rodear o acampamento já estava meio cavado, e a floresta encontrava-se cheia de Imaculados que cortavam ramos de vidoeiro para afiar e transformar em estacas. Os eunucos não conseguiam dormir num acampamento que não estivesse fortificado, ou pelo menos isso era o que Verme Cinzento insistia em dizer. Ele lá se encontrava, a vigiar o trabalho. Dany parou um momento para conversar com o eunuco.
  — Yunkai preparou-se para a batalha.
  — Isso é bom, Vossa Graça. Os Imaculados têm sede de sangue.
  Quando ordenara aos Imaculados para seleccionarem oficiais de entre as suas fileiras, Verme Cinzento fora o escolhido da esmagadora maioria para o posto mais elevado. Dany colocara Sor Jorah acima dele a fim de o treinar para o comando, e o cavaleiro exilado dizia que até agora o jovem eunuco era duro mas justo, rápido a aprender, incansável e totalmente inflexível na sua atenção ao detalhe.
  — Os Sábios Mestres reuniram um exército de escravos para nos defrontar.
  — Um escravo em Yunkai aprende a natureza dos sete suspiros e as dezasseis posições do prazer, Vossa Graça. Os Imaculados aprendem a natureza das três lanças. O vosso Verme Cinzento espera mostrar-vos.
  Uma das primeiras coisas que Dany fizera após a queda de Astapor fora abolir o costume de dar aos Imaculados novos nomes de escravo todos os dias. A maioria daqueles que tinham nascido livres regressaram aos nomes com que nasceram; pelo menos os que ainda se lembravam deles. Outros tinham adoptado os nomes de heróis ou deuses, e por vezes armas, pedras preciosas e até flores, o que resultou em soldados com nomes muito peculiares aos ouvidos de Dany. Verme Cinzento permanecera Verme Cinzento. Quando lhe perguntara porquê, ele dissera:
  — É um nome de sorte. O nome com que este nasceu estava amaldiçoado. Era o nome que ele tinha quando foi escravizado. Mas Verme Cinzento foi o nome que lhe calhou no dia em que Daenerys Filha da Tormenta o libertou.
  — Se houver uma batalha, que Verme Cinzento mostre sabedoria além de valor — disse-lhe Dany. — Poupa qualquer escravo que fuja ou que deite fora a sua arma. Quanto menos forem mortos, mais ficam para se nos juntarem depois.
  — Este lembrar-se-á.
  — Eu sei que sim. Vem à minha tenda ao meio-dia. Quero-te lá com os outros oficiais quando tratar com os capitães mercenários. — Dany esporeou a sua prata e dirigiu-se ao acampamento.
  Dentro do perímetro que os Imaculados tinham estabelecido, as tendas estavam a ser erguidas em fileiras ordenadas, com o seu grande pavilhão dourado no centro. Um segundo acampamento erguia-se logo depois do seu; cinco vezes maior, irregular e caótico, este segundo acampamento não tinha fossos, não tinha tendas, não tinha sentinelas, não tinha fileiras de cavalos. Aqueles que possuíam cavalos ou mulas dormiam ao lado dos animais, por temerem que lhos roubassem. Cabras, ovelhas e cães meio famintos vagueavam livremente entre hordas de mulheres, crianças e velhos. Dany deixara Astapor nas mãos de um conselho de antigos escravos liderado por um curandeiro, um erudito e um sacerdote. Todos homens sensatos, pensava, e justos. Mas mesmo assim, dezenas de milhares tinham preferido segui-la para Yunkai em vez de permanecerem em Astapor. Dei-lhes a cidade e a maioria estava demasiado assustada para a aceitar.
  A hoste variegada dos libertados fazia a sua parecer pequena, mas eles eram mais um fardo do que uma vantagem. Talvez um em cem possuísse um burro, um camelo ou um boi; a maior parte trazia armas, obtidas pela pilhagem do armeiro de algum dos negociantes de escravos, mas só um em dez era suficientemente forte para lutar, e nenhum se encontrava treinado. Por onde passavam, deixavam a terra nua, como gafanhotos de sandálias. Mas Dany não se conseguia convencer a abandoná-los, como Sor Jorah e os seus companheiros de sangue sugeriam. Disse-lhes que eram livres. Não posso dizer-lhes agora que não são livres de se juntarem a mim. Olhou para o fumo que se erguia das suas fogueiras e engoliu um suspiro. Podia ter os melhores soldados de infantaria do mundo, mas também tinha os piores.
  Arstan Barba-Branca encontrava-se em pé à porta da sua tenda, enquanto Belwas, o Forte, se sentava de pernas cruzadas nas ervas, ali perto, comendo uma tigela de figos. Durante a marcha, o dever de a guardar caía sobre os ombros daqueles dois. Fizera de Jhogo, Aggo e Rakharo seus kos além de companheiros de sangue, e agora precisava mais deles para comandar os dothraki do que para proteger a sua pessoa. O khalasar era minúsculo, trinta e poucos guerreiros a cavalo, a maior parte dos quais rapazes sem tranças e velhos corcovados. Mas eram toda a cavalaria que possuía, e não se atrevia a passar sem eles. Os Imaculados podiam ser a melhor infantaria do mundo inteiro, como Sor Jorah dizia, mas precisava também de batedores e guardas avançados.
  — Yunkai quer a guerra — disse Dany ao Barba-Branca dentro do pavilhão. Irri e Jhiqui tinham coberto o chão com tapetes, e Missandei acendera um pau de incenso para adoçar o ar poeirento. Drogon e Rhaegal dormiam em cima de um montinho de almofadas, enrolados um no outro, mas Viserion encontrava-se empoleirado na borda da sua banheira vazia. — Missandei, que língua falam estes yunkaitas? Valiriano?
  — Sim, Vossa Graça — disse a rapariga. — Um dialecto diferente do de Astapor, mas suficientemente próximo para ser entendido. Os esclavagistas chamam a si próprios Sábios Mestres.
  — Sábios? — Dany sentou-se de pernas cruzadas numa almofada, e Viserion abriu as suas asas brancas e douradas e esvoaçou para junto dela. — Veremos quão sábios são — disse enquanto coçava a cabeça escamosa do dragão atrás dos cornos.
  Sor Jorah Mormont regressou uma hora mais tarde, acompanhado por três capitães dos Corvos Tormentosos. Os mercenários usavam penas negras nos seus elmos polidos, e diziam ser todos iguais em honra e autoridade. Dany estudou-os enquanto Irri e Jhiqui serviam o vinho. Prendahl na Ghezn era um ghiscari atarracado com uma cara larga e cabelo escuro que começava a encanecer; Sallor, o Calvo, tinha uma retorcida cicatriz na sua cara clara de qarteno; e Daario Naharis era extravagante até mesmo para um tyroshi. Tinha a barba cortada na forma de uma forquilha de três dentes e pintada de azul, da mesma cor dos olhos e do cabelo encaracolado que lhe caía sobre o colarinho. Os bigodes pontiagudos estavam pintados de dourado. A roupa era toda em tons de amarelo; uma nuvem de renda de Myr da cor de manteiga jorrava do colarinho e das mangas, o gibão era decorado com medalhões de latão com a forma de dentes de leão, arabescos ornamentais em ouro subiam-lhe até às coxas pelos canos das botas altas de couro.
Luvas de suave camurça amarela estavam enfiadas num cinto de anéis dourados, e tinha as unhas pintadas de azul.
  Mas foi Prendahl na Ghezn quem falou pelos mercenários.
  — Faríeis bem em levar daqui a vossa gentalha — disse. — Tomastes Astapor à traição, mas Yunkai não cairá com tanta facilidade.
  — Quinhentos dos vossos Corvos Tormentosos contra dez mil dos meus Imaculados — disse Dany. — Sou só uma rapariguinha, e não compreendo as coisas da guerra, mas essas hipóteses não me parecem boas.
  — Os Corvos Tormentosos não resistirão sozinhos — disse Prendahl.
  — Corvos tormentosos não resistem de todo. Fogem ao primeiro sinal de trovões. Talvez devêsseis fugir agora. Ouvi dizer que mercenários são notoriamente pouco confiáveis. De que vos valerá a dedicação quando os Segundos Filhos se passarem para o nosso lado?
  — Isso não acontecerá — insistiu Prendahl, inabalável. — E, se acontecesse, não importaria. Os Segundos Filhos não são nada. Lutamos ao lado dos valentes homens de Yunkai.
  — Lutais ao lado de rapazes de cama armados com lanças. — Quando virou a cabeça, as campainhas gémeas que trazia na trança tiniram com suavidade. — Que não tenhais ideias de pedir quartel depois de a batalha começar. Mas se vos juntardes agora a mim, o ouro que os yunkaitas vos pagaram será vosso, e podereis além disso obter uma parte do saque, com grandes recompensas para mais tarde, quando eu controlar o meu reino. Se lutardes pelos Sábios Mestres, o vosso salário será a morte. Imaginais porventura que Yunkai abrirá os portões quando os meus Imaculados estiverem a massacrar-vos à sombra das muralhas?
  — Mulher, zurras como um burro, e não fazes mais sentido do que ele.
  — Mulher? — Dany soltou um risinho. — Isso pretende insultar-me? Devolveria a provocação se te julgasse um homem. — Dany enfrentou o olhar do mercenário. — Sou Daenerys Filha da Tormenta da Casa Targaryen, a Não-Queimada, Mãe de Dragões, khaleesi dos cavaleiros de Drogo e rainha dos Sete Reinos de Westeros.
  — O que tu és — disse Prendahl na Ghezn — é uma puta de um senhor dos cavalos. Quando te vencermos, dar-te-ei ao meu garanhão para que te cubra.
  Belwas, o Forte, puxou pelo arakh.
  — Belwas, o Forte, dá a feia língua dele à pequena rainha, se ela quiser.
  — Não, Belwas. Dei a estes homens salvo-conduto. — Sorriu. — Diz-me o seguinte: os Corvos Tormentosos são escravos ou homens livres?
  — Somos uma irmandade de homens livres — declarou Sallor.
  — Óptimo. — Dany pôs-se em pé. — Nesse caso regressa e conta aos teus irmãos o que te disse. Pode ser que alguns deles prefiram alimentar-se de ouro e glória do que de morte. Quererei a vossa resposta de manhã.
  Os capitães dos Corvos Tormentosos ergueram-se em simultâneo.
  — A nossa resposta é não — disse Prendahl na Ghezn. Os companheiros seguiram-no para fora da tenda… mas Daario Naharis deitou um relance para trás ao sair e inclinou a cabeça numa despedida educada.
  Duas horas mais tarde o comandante dos Segundos Filhos chegou só. Revelou-se um bravosiano muito alto com olhos verdes-claros e uma espessa barba vermelha e dourada que quase lhe chegava ao cinto. O
seu nome era Mero, mas chamava a si próprio o Bastardo do Titã.
  Mero emborcou imediatamente o vinho, limpou a boca com as costas da mão e olhou de esguelha para Dany.
  — Acho que fodi a tua irmã gémea numa casa do prazer lá na terra. Ou eras tu?
  — Penso que não. Lembrar-me-ia de um homem de tal magnificência, sem dúvida.
  — Sim, é verdade. Nunca nenhuma mulher alguma vez esqueceu o Bastardo do Titã. — O bravosiano estendeu a taça para Jhiqui. — Que achas de tirares essa roupa e te vires sentar ao meu colo? Se me deres
prazer, posso trazer os Segundos Filhos para o teu lado.
  — Se trouxeres os Segundos Filhos para o meu lado, posso não te mandar capar.
  O grandalhão soltou uma gargalhada.
  — Rapariguinha, houve outra mulher, uma vez, que tentou capar-me com os dentes. Agora não tem dentes, mas a minha espada é tão longa e grossa como sempre foi. Queres que a tire para fora e a mostre?
  — Não há necessidade. Depois de os meus eunucos a cortarem, posso examiná-la quando bem entender. — Dany bebeu um gole de vinho. — É verdade que sou só uma rapariguinha, e não conheço as coisas da guerra.
Explica-me como pretendes derrotar dez mil Imaculados com os teus quinhentos homens. Inocente como sou, as tuas hipóteses parecem-me fracas.
  — Os Segundos Filhos enfrentaram piores hipóteses e ganharam.
  — Os Segundos Filhos enfrentaram piores hipóteses e fugiram. Em Qohor, quando os Três Mil defenderam a sua posição. Ou será que o negas?
  — Isso foi há muitos anos e mais ainda, antes de os Segundos Filhos serem liderados pelo Bastardo do Titã.
  — Então é em ti que eles arranjam coragem? — Dany virou-se para Sor Jorah. — Quando a batalha começar, matai este primeiro.
  O cavaleiro exilado sorriu.
  — De bom grado, Vossa Graça.
  — Claro — disse a Mero —, podíeis voltar a fugir. Não vos impediríamos. Pegai no vosso ouro de Yunkai e parti.
  — Se já tivesses visto o Titã de Bravos, rapariga tonta, saberias que não tem rabo para meter entre as pernas.
  — Então fica, e luta por mim.
  — É verdade que valeria a pena lutar por ti — disse o bravosiano — e eu de bom grado te deixaria beijar-me a espada, se fosse livre. Mas aceitei as moedas de Yunkai e dei a minha palavra sagrada.
  — Moedas podem ser devolvidas — disse ela. — Eu pagar-te-ei o mesmo, e mais ainda. Tenho outras cidades a conquistar e um reino inteiro à minha espera a meio mundo de distância. Serve-me fielmente,
e os Segundos Filhos não precisarão de voltar a procurar contratos.
  O bravosiano afagou a sua espessa barba vermelha.
  — O mesmo e mais ainda, e talvez um beijo para rematar, hã? Ou mais do que um beijo? Para um homem tão magnífico como eu?
  — Talvez.
  — Vou gostar do sabor da tua língua, parece-me.
  Dany sentia a ira de Sor Jorah. O meu urso negro não gosta desta conversa sobre beijos.
  — Pensa esta noite no que te disse. Posso ter a tua resposta de manhã?
  — Podes. — O Bastardo do Titã fez um sorriso. — Posso levar um jarro deste belo vinho aos meus capitães?
  — Podes levar um tonel. Vem das caves dos Bons Mestres de Astapor, e tenho carroças cheias dele.
  — Então dá-me uma carroça. Um sinal da tua amizade.
  — Tens uma grande sede.
  — Todo eu sou grande. E tenho muitos irmãos. O Bastardo do Titã não bebe sozinho, Khaleesi.
  — Seja então uma carroça, se prometeres beber à minha saúde.
  — Feito! — trovejou o homem. — E feito, e feito! Far-te-ei três brindes, e trarei uma resposta quando o Sol nascer.
  Mas quando Mero saiu, Arstan Barba-Branca disse:
  — Aquele tem má reputação, até em Westeros. Não vos deixes iludir pelas suas maneiras, Vossa Graça. Ele fará três brindes à vossa saúde esta noite, e amanhã violar-vos-á.
  — O velho tem razão, por uma vez — disse Sor Jorah. — Os Segundos Filhos são uma companhia antiga, que não é desprovida de valor, mas sob a liderança de Mero tornaram-se quase tão maus como os Bravos
Companheiros. O homem é tão perigoso para quem o emprega como para os seus inimigos. É por isso que o encontrais ali. Já nenhuma das Cidades Livres o contrata.
  — Não é a sua reputação que eu quero, são os seus quinhentos homens a cavalo. E os Corvos Tormentosos, há aí alguma esperança?
  — Não — disse Sor Jorah sem rodeios. — Aquele Prendahl é de sangue ghiscari. É provável que tivesse família em Astapor.
  — Pena. Bem, talvez não necessitemos de lutar. Esperemos para ouvir o que os yunkaitas têm a dizer.
  Os enviados de Yunkai chegaram ao pôr-do-sol; cinquenta homens montados em magníficos cavalos negros e um num grande camelo branco. Os seus elmos eram duas vezes mais altos do que as cabeças, para não esmagarem as bizarras torções, torres e silhuetas do cabelo que tinham por baixo. Tingiam as saias e túnicas de linho de um amarelo-vivo, e cosiam discos de cobre aos mantos.
  O homem do camelo branco apresentou-se como Grazdan mo Eraz. Esguio e duro, possuía um sorriso branco semelhante ao que Kraznis ostentara até Drogon lhe queimar a cara. O cabelo estava repuxado para o alto num corno de unicórnio que se lhe projectava da testa, e o tokar era debruado de renda de Myr dourada.
  — Antiga e gloriosa é Yunkai, a rainha das cidades — disse quando Dany lhe deu as boas-vindas à sua tenda. — As nossas muralhas são fortes, os nossos nobres orgulhosos e ferozes, o nosso povo desprovido de medo. Nosso é o sangue da antiga Ghis, cujo império já era antigo quando Valíria não passava de uma criança chorosa. Fostes sensata por vos sentardes a conversar, Khaleesi. Não encontrareis aqui uma conquista fácil.
  — Óptimo. Os meus Imaculados apreciarão um pouco de luta. — Olhou para Verme Cinzento, que confirmou com a cabeça.
  Grazdan fez um largo encolher de ombros.
  — Se o que desejais é sangue, pois que jorre. Diz-se que haveis libertado os vossos eunucos. A liberdade tem tanto significado para um Imaculado como um chapéu para um bacalhau. — Sorriu para Verme Cinzento, mas dir-se-ia que o eunuco era feito de pedra. — Voltaremos a escravizar aqueles que sobreviverem, e usá-los-emos para voltar a arrancar Astapor das mãos da populaça. Também poderemos fazer de vós uma escrava, não duvideis. Há casas do prazer em Lys e Tyrosh onde os homens pagariam belas somas para dormir com a última Targaryen.
  — É bom ver que sabeis quem sou — disse Dany em voz branda.
  — Orgulho-me do meu conhecimento do selvagem e disparatado Ocidente. — Grazdan abriu as mãos, um gesto de conciliação. — E no entanto, porque haveremos de falar tão duramente um ao outro? É verdade que haveis cometido selvajarias em Astapor, mas nós, os yunkaitas, somos um povo muito clemente. A vossa querela não é connosco, Vossa Graça. Porquê malbaratar as vossas forças contra as nossas poderosas muralhas, quando precisais de todos os homens para reconquistar o trono do vosso pai no longínquo Westeros? Yunkai só vos deseja sucesso nessa empreitada. E para provar a verdade destas palavras, trouxe-vos um presente. — Bateu palmas, e dois dos membros da sua escolta avançaram trazendo uma pesada arca de cedro, reforçada a bronze e a ouro. Colocaram-na a seus pés. — Cinquenta mil marcos de ouro — disse Grazdan num tom melífluo. — São vossos, num gesto de amizade dos Sábios Mestres de Yunkai. Ouro dado livremente é decerto melhor do que saque comprado com sangue. Portanto digo-vos, Daenerys Targaryen, aceitai esta arca e parti.
  Dany abriu a tampa da arca com um pequeno pé enfiado num chinelo. Estava cheia de moedas de ouro, tal como o enviado dissera. Agarrou numa mão-cheia e deixou-as correr por entre os dedos. Cintilavam,
brilhantes, ao rodar e cair; a maioria eram recém-cunhadas, com uma pirâmide de degraus numa das faces e a harpia de Ghis na outra.
  — Muito lindo. Pergunto a mim própria quantas arcas como esta encontrarei quando tomar a vossa cidade.
  Ele soltou um risinho.
  — Nenhuma, pois nunca fareis tal coisa.
  — Tenho também um presente para vós. — Fechou a arca com estrondo. — Três dias. Na manhã do terceiro dia, mandai os vossos escravos para fora da cidade. Todos. A cada homem, mulher e criança será dada
uma arma e tanta comida, roupas, moedas e bens que ele ou ela possam transportar. Ser-lhes-á permitido que escolham livremente estes objectos de entre as posses dos seus donos, como pagamento pelos anos
de servidão. Depois de todos os escravos partirem, abrireis os portões e permitireis que os meus Imaculados entrem na cidade e a revistem, para assegurar que ninguém permanece em escravidão. Se fizerdes
isto, Yunkai não será queimada nem saqueada, e nenhum dos membros do vosso povo será molestado. Os Sábios Mestres terão a paz que desejam, e terão demonstrado serem realmente sábios. Que dizeis?
  — Digo que sois louca.
  — Ah sou? — Dany encolheu os ombros e disse: — Dracarys.
  Os dragões responderam. Rhaegal silvou e soltou uma baforada de fumo, Viserion tentou morder, e Drogon cuspiu uma chama rodopiante, vermelha e negra. Esta tocou a prega do tokar de Grazdan e a seda
incendiou-se em meio segundo. Marcos de ouro derramaram-se pelos tapetes quando o enviado tropeçou na arca, gritando pragas e batendo no braço até que o Barba-Branca lhe despejou um jarro de água em cima
para abafar as chamas.
  — Jurastes que eu teria salvo-conduto! — lamentou-se o enviado de Yunkai.
  — Será que todos os yunkaitas se lamuriam tanto por causa de um tokar chamuscado? Comprar-vos-ei um novo… se entregardes os vossos escravos dentro de três dias. Se não, Drogon dar-vos-á um beijo mais
quente. — Torceu o nariz. — Urinastes-vos. Levai o ouro e ide, e assegurai-vos de que os Sábios Mestres ouvem a minha mensagem.
  Grazdan mo Eraz apontou um dedo.
  — Lamentarás esta arrogância, rameira. Esses lagartinhos não te manterão a salvo, garanto. Encheremos o ar de setas se eles chegarem a menos de uma légua de Yunkai. Achas que é muito difícil matar um
dragão?
  — É mais difícil do que matar um esclavagista. Três dias, Grazdan. Dizei-lhes. Ao fim do terceiro dia, eu entrarei em Yunkai, quer me abrais os portões, quer não.
  A noite já caíra por completo quando os yunkaitas partiram do acampamento. Prometia ser uma noite sombria; sem luar, sem estrelas, com um vento gelado e húmido que soprava de oeste. Uma bela noite negra,
pensou Dany. Ardiam fogueiras a toda a volta, pequenas estrelas cor-de-laranja espalhadas por campos e colinas.
  — Sor Jorah — disse —, convocai os meus companheiros de sangue. — Dany sentou-se num monte de almofadas à espera deles, com os dragões à sua volta. Quando se reuniram, disse: — Uma hora depois da meia-noite
deverá dar tempo suficiente.
  — Sim, Khaleesi — disse Rakharo. — Tempo para quê?
  — Para montar o nosso ataque.
  Sor Jorah Mormont franziu o sobrolho.
  — Dissestes aos mercenários…
  — …que queria as suas respostas de manhã. Não fiz nenhuma promessa acerca desta noite. Os Corvos Tormentosos estarão a discutir sobre a minha proposta. Os Segundos Filhos estarão bêbados com o vinho
que dei a Mero. E os yunkaitas julgam que têm três dias. Apanhá-los-emos a coberto desta escuridão.
  — Eles deverão ter batedores a vigiar-nos.
  — E na escuridão, verão centenas de fogueiras a arder — disse Dany. — Se chegarem a ver alguma coisa.
  — Khaleesi — disse Jhogo —, eu tratarei desses batedores. Não são cavaleiros, são só esclavagistas em cima de cavalos.
  — Exactamente — concordou. — Acho que devíamos atacar de três lados. Verme Cinzento, os teus Imaculados atacá-los-ão pela direita e pela esquerda, enquanto os meus kos levam a cavalaria em cunha numa
arremetida através do centro. Soldados escravos nunca resistirão perante dothrakis montados. — Sorriu. — Com certeza, eu sou só uma rapariguinha e pouco sei de guerra. Que achais, senhores?
  — Acho que sois a irmã de Rhaegar Targaryen — disse Sor Jorah com um meio-sorriso tristonho.
  — Sim — disse Arstan Barba-Branca — e também uma rainha.
  Levaram uma hora a congeminar todos os detalhes. Agora começa a altura mais perigosa, pensou Dany quando os seus capitães partiram para junto dos seus homens. Só podia rezar para que as sombras da noite
escondessem do inimigo os preparativos.
  Perto da meia-noite, apanhou um susto quando Sor Jorah passou numa investida por Belwas, o Forte.
  — Os Imaculados apanharam um dos mercenários a tentar entrar no acampamento às escondidas.
  — Um espião? — Aquilo assustou-a. Se tinham apanhado um, quantos mais teriam escapado?
  — Ele diz que veio trazer presentes. É o idiota amarelo com o cabelo azul.
  Daario Naharis.
  — Esse. Então ouvirei o que tem a dizer.
  Quando o cavaleiro exilado o trouxe, Dany perguntou a si própria se já teria havido no mundo dois homens mais diferentes um do outro. O tyroshi era claro onde Sor Jorah era trigueiro; esguio enquanto
o cavaleiro era musculoso; embelezado com abundantes madeixas, ao passo que o outro ia perdendo o cabelo, e no entanto possuía uma pele lisa onde Mormont era peludo. E o seu cavaleiro vestia-se com simplicidade,
enquanto o outro homem fazia com que um pavão parecesse monótono, embora, para aquela visita, tivesse posto um pesado manto negro sobre os seus brilhantes adornos amarelos. Transportava uma pesada saca
de tela atirada sobre um ombro.
  — Khaleesi — gritou —, trago presentes e alegres novas. Os Corvos Tormentosos são vossos. — Um dente de ouro cintilou na sua boca quando sorriu. — E Daario Naharis também!
  Dany tinha dúvidas. Se aquele tyroshi tivesse vindo espiar, aquela declaração podia não passar de uma artimanha desesperada para salvar a cabeça.
  — Que dizem disso Prendahl na Ghezn e Sallor?
  — Pouca coisa. — Daario virou a saca ao contrário e as cabeças de Sallor, o Calvo, e Prendahl na Ghezn derramaram-se sobre os tapetes. — Os meus presentes para a rainha do dragão.
  Viserion farejou o sangue que vazava do pescoço de Prendahl, e soltou um novelo de chamas que atingiu o morto em cheio na cara, enegrecendo e enchendo de bolhas a sua face sem sangue. Drogon e Rhaegal
agitaram-se com o cheiro a carne assada.
  — Fostes vós que fizestes isto? — perguntou Dany, repugnada.
  — Eu e ninguém mais. — Se os dragões desconcertavam Daario Naharis, ele escondia-o bem. Ajuizando pela atenção que lhes prestava, bem podiam ser três gatinhos a brincar com um rato.
  — Porquê?
  — Por serdes tão bela. — As mãos dele eram grandes e fortes, e havia algo nos seus olhos azuis e duros e no grande nariz curvo que sugeria a ferocidade de uma magnífica ave de rapina. — Prendahl falava
demasiado e dizia pouco. — O seu vestuário, apesar de rico, estava muito usado, manchas de sal criavam um padrão nas suas botas, tinha o verniz das unhas lascado, a renda mostrava-se manchada pelo suor,
e Dany via o ponto em que a bainha do manto estava a puir. — E Sallor escarafunchava o nariz como se o seu ranho fosse feito de ouro. — O homem estava em pé, com as mãos cruzadas nos pulsos, descansando
as palmas nos botões das suas armas; um arakh dothraki curvo à anca esquerda, um esguio punhal de Myr à direita. Os cabos eram um par de mulheres douradas, nuas e sensuais.
  — Usais essas belas lâminas com habilidade? — perguntou-lhe Dany.
  — Prendahl e Sallor dir-vos-iam que sim, se os mortos falassem. Não conto um dia como vivido, a não ser que tenha amado uma mulher, morto um inimigo ou comido uma bela refeição… e os dias que vivi são
tão incontáveis como as estrelas no céu. Transformo o massacre num acto de beleza, e muitos acrobatas e dançarinos de fogo suplicaram aos deuses poder ter metade da minha rapidez, um quarto da minha graciosidade.
Dir-vos-ia os nomes de todos os homens que matei, mas antes de conseguir acabar, os vossos dragões tornar-se-iam tão grandes como castelos, as muralhas de Yunkai ruiriam, transformadas em poeira amarela,
e o Inverno chegaria, partiria e voltaria a chegar.
  Dany soltou uma gargalhada. Gostava da bravata que via naquele Daario Naharis.
  — Puxai pela espada e ajuramentai-a ao meu serviço.
  Num piscar de olhos, o arakh de Daario viu-se livre da bainha. A submissão do homem foi tão extravagante como tudo o resto nele, um grande arrebato que levou a sua cara até junto dos dedos dos pés de
Dany.
  — A minha espada é vossa. A minha vida é vossa. O meu amor é vosso. O meu sangue, o meu corpo, as minhas canções, sois dona de tudo. Vivo e morro às vossas ordens, bela rainha.
  — Então vivei — disse Dany — e lutai por mim esta noite.
  — Isso não seria sensato, minha rainha. — Sor Jorah deitou a Daario um olhar frio e duro. — Mantende este homem aqui, guardado, até que a batalha esteja concluída e ganha.
  Dany reflectiu por um momento, e depois abanou a cabeça.
  — Se ele nos puder dar os Corvos Tormentosos, a surpresa é certa.
  — E se nos trair, a surpresa estará perdida.
  Dany voltou a examinar o mercenário. Ele mostrou-lhe um tal sorriso que ela corou e afastou o olhar.
  — Não trairá.
  — Como podeis saber isso?
  Ela apontou para os bocados de carne enegrecida que os dragões estavam a consumir, uma dentada sangrenta após outra.
  — Eu chamaria àquilo uma prova da sua sinceridade. Daario Naharis, tende os vossos Corvos Tormentosos prontos a atacar a retaguarda yunkaita quando o meu ataque começar. Conseguireis regressar em segurança?
  — Se me pararem, dir-lhes-ei que andei a bater o terreno e nada vi. — O tyroshi pôs-se em pé, fez uma vénia, e saiu a passos largos.
  Sor Jorah Mormont deixou-se ficar.
  — Vossa Graça — disse, com demasiada brusquidão —, isto foi um erro. Nada sabemos sobre este homem…
  — Sabemos que é um grande guerreiro.
  — Um grande falador, quereis vós dizer.
  — Ele traz-nos os Corvos Tormentosos. — E tem olhos azuis.
  — Quinhentos mercenários de lealdade incerta.
  — Todas as lealdades são incertas em tempos como estes — recordou-lhe Dany. E eu serei traída mais duas vezes, uma por ouro e uma por amor.
  — Daenerys, tenho o triplo da vossa idade — disse Sor Jorah. — Já vi quão falsos são os homens. Muito poucos são dignos de confiança, e Daario Naharis não é um deles. Até na barba tem cores falsas.
  Aquilo irritou-a.
  — Ao passo que vós tendes uma barba honesta, é isso o que me estais a dizer? Que sois o único homem em que poderei confiar?
  Ele endireitou-se.
  — Não disse isso.
  — É o que dizeis todos os dias. Pyat Pree é um mentiroso, Xaro é um maquinador, Belwas é um fanfarrão, Arstan um assassino… julgais que continuo a ser uma rapariguinha virgem, incapaz de ouvir as palavras
por trás das palavras?
  — Vossa Graça…
  Ela interrompeu-o.
  — Tendes sido o melhor amigo que já conheci, um irmão melhor do que Viserys alguma vez foi. Sois o primeiro membro da minha Guarda Real, o comandante do meu exército, o meu conselheiro mais estimado,
a minha boa mão direita. Honro-vos, respeito-vos e estimo-vos… mas não vos desejo, Jorah Mormont, e estou cansada de vos ver a tentar empurrar todos os outros homens do mundo para longe de mim, para que
tenha de depender de vós e apenas de vós. Isso não pode ser, e não me fará amar-vos mais.
  Mormont corara quando ela começara, mas quando Dany acabou, tinha a cara de novo pálida. Ficou imóvel como pedra.
  — Se a minha rainha ordena — disse, seco e frio.
  Dany estava suficientemente quente para ambos.
  — Ordena — disse. — Ela ordena. E agora ide cuidar dos vossos Imaculados, sor. Tendes uma batalha a travar e vencer.
  Quando o cavaleiro se foi embora, Dany atirou-se para cima das almofadas, para junto dos dragões. Não tencionara ser tão cortante com Sor Jorah, mas a contínua suspeita de Mormont despertara-lhe finalmente
o dragão.
  Ele perdoar-me-á, disse a si própria. Sou a sua suserana. Dany deu por si a interrogar-se sobre se ele teria razão acerca de Daario. De repente sentiu-se muito só. Mirri Maz Duur assegurara que ela
nunca daria à luz um filho vivo. A Casa Targaryen terminará comigo. Aquilo entristeceu-a.
  — Tendes de ser os meus filhos — disse aos dragões —, os meus três ferozes filhos. Arstan diz que os dragões vivem mais tempo do que os homens, portanto sobrevivereis depois de eu morrer.
  Drogon curvou o pescoço para lhe mordiscar a mão. Tinha uns dentes muito afiados, mas nunca lhe rompia a pele quando brincavam assim. Dany riu e fê-lo rolar de um lado para o outro até que ele rugiu,
com a cauda a estalar como um chicote. É mais comprido do que era, viu ela, e amanhã sê-lo-á ainda mais. Eles agora crescem depressa, e quando forem grandes, terei as minhas asas. Montada num dragão,
poderia ir à frente dos seus homens para a batalha, como fizera em Astapor, mas por enquanto eram ainda pequenos de mais para suportar o seu peso.
  Uma quietude caiu sobre o acampamento quando a meia-noite chegou e passou. Dany permaneceu no seu pavilhão com as aias, enquanto Arstan Barba-Branca e Belwas, o Forte, montavam guarda. A espera é a
parte mais dura. Ficar sentada na tenda sem ter onde ocupar as mãos enquanto a batalha estava a ser travada sem si fez com que Dany se sentisse de novo quase uma criança.
  As horas arrastaram-se sobre patas de tartaruga. Mesmo depois de Jhiqui lhe massajar os ombros, desfazendo os nós que neles tinha, Dany permaneceu demasiado desassossegada para dormir. Missandei ofereceu-se
para lhe cantar uma canção de embalar do Povo Pacífico, mas Dany abanou a cabeça.
  — Traz-me Arstan — disse.
  Quando o velho entrou, Dany encontrava-se enrolada dentro da sua pele de hrakkar, cujo cheiro bafiento ainda lhe fazia lembrar Drogo.
  — Não consigo dormir quando há homens a morrer por mim, Barba-Branca — disse. — Falai-me mais acerca do meu irmão Rhaegar, por favor. Gostei da história que me contastes no navio, sobre o modo como
ele decidiu que tinha de ser um guerreiro.
  — Vossa Graça é bondosa por dizê-lo.
  — Viserys dizia que o nosso irmão ganhou muitos torneios.
  Arstan inclinou respeitosamente a sua cabeça branca.
  — Não é próprio da minha parte negar as palavras de Sua Graça…
  — Mas? — disse Dany em tom penetrante. — Contai-me. Eu ordeno-o.
  — A perícia do Príncipe Rhaegar era inquestionável, mas ele raramente entrava nas liças. Nunca gostou da canção das espadas como Robert gostava, ou como Jaime Lannister. Era algo que tinha de fazer,
uma tarefa que o mundo lhe atribuíra. Desempenhava-a bem, visto que fazia tudo bem. Era essa a sua natureza. Mas não tirava dela alegria. Os homens diziam que ele gostava muito mais da harpa do que da
lança.
  — Mas certamente que terá ganho alguns torneios — disse Dany, desapontada.
  — Quando era novo, Sua Graça participou brilhantemente num torneio em Ponta Tempestade, derrotando o Lorde Steffron Baratheon, o Lorde Jason Mallister, a Víbora Vermelha de Dorne, e um cavaleiro misterioso
que se revelou ser o infame Simon Toyne, chefe dos foras-da-lei da Mataderrei. Quebrou doze lanças contra Sor Arthur Dayne nesse dia.
  — Então foi ele o campeão?
  — Não, Vossa Graça. Essa honra foi para outro cavaleiro da Guarda Real, que derrubou o Príncipe Rhaegar na justa final.
  Dany não queria ouvir falar de derrubes a Rhaegar.
  — Mas que torneios ganhou o meu irmão?
  — Vossa Graça. — O velho hesitou. — Ele ganhou o maior torneio de todos.
  — Que torneio foi esse? — quis saber Dany.
  — O torneio que o Lorde Whent montou em Harrenhal ao lado do Olho de Deus, no ano da falsa Primavera. Um evento notável. Além das justas, houve um corpo a corpo ao estilo antigo, lutado entre sete equipas
de cavaleiros, bem como tiro com arco e arremesso de machados, uma corrida de cavalos, um torneio de cantores, um espectáculo de saltimbancos, e muitos banquetes e divertimentos. O Lorde Whent era tão
generoso como rico. As pródigas bolsas que proclamou atraíram centenas de competidores. Até o vosso real pai se deslocou a Harrenhal, ele que não abandonava a Fortaleza Vermelha havia longos anos. Os
maiores senhores e mais poderosos campeões dos Sete Reinos participaram nesse torneio, e o Príncipe de Pedra do Dragão superiorizou-se a todos eles.
  — Mas esse foi o torneio em que coroou Lyanna Stark como rainha do amor e da beleza! — disse Dany. — A Princesa Elia, sua esposa, estava lá, e no entanto o meu irmão deu a coroa à rapariga Stark, e
mais tarde roubou-a ao seu prometido. Como pôde ter feito tal coisa? A mulher dornesa tratava-o assim tão mal?
  — Não cabe a alguém como eu dizer o que poderá ter estado no coração do vosso irmão, Vossa Graça. A Princesa Elia era uma senhora bondosa e graciosa, embora a sua saúde sempre tenha sido delicada.
  Dany enrolou melhor a pele de leão em volta dos ombros.
  — Viserys disse uma vez que a culpa era minha, por ter nascido demasiado tarde. — Lembrava-se de o ter negado acaloradamente, chegando ao ponto de dizer a Viserys que fora culpa dele por não ter nascido
rapariga. Ele espancara-a cruelmente por essa insolência. — Se eu tivesse nascido em altura mais oportuna, disse ele, Rhaegar ter-se-ia casado comigo e não com Elia, e tudo teria sido diferente. Se Rhaegar
tivesse sido feliz com a esposa, não teria necessitado da rapariga Stark.
  — Talvez assim seja, Vossa Graça. — O Barba-Branca fez uma pausa momentânea. — Mas não tenho a certeza de que Rhaegar tivesse a capacidade de ser feliz.
  — Fazeis com que ele pareça tão amargo — protestou Dany.
  — Amargo não, não, mas… havia uma melancolia no Príncipe Rhaegar, um sentido… — O velho voltou a hesitar.
  — Dizei-o — pediu ela. — Um sentido…?
  — … de tragédia. Ele nasceu em desgosto, minha rainha, e essa sombra pairou sobre ele durante toda a vida.
  Viserys só falara uma vez do nascimento de Rhaegar. A história talvez o entristecesse demasiado.
  — Era a sombra de Solarestival que o assombrava, não era?
  — Sim. E no entanto, Solarestival era o lugar que o príncipe mais amava. Ia lá de tempos a tempos, acompanhado apenas da sua harpa. Nem mesmo os cavaleiros da Guarda Real o serviam aí. Gostava de dormir
no salão arruinado, sob a Lua e as estrelas, e sempre que regressava trazia uma canção. Quando se ouvia o príncipe tocar a sua harpa com cordas de prata e cantar acerca de penumbras, lágrimas e a morte
de reis, não era possível evitar sentir que ele estava a cantar sobre si e sobre aqueles que amava.
  — E o Usurpador? Ele também tocava canções tristes?
  Arstan soltou um risinho.
  — Robert? Robert gostava de canções que o fizessem rir, e quanto mais obscenas, melhor. Só cantava quando estava bêbado, e então eram coisas do género de “Um Barril de Cerveja”, “Cinquenta e Quatro
Tonéis” ou “O Urso e a Bela Donzela”. Robert era muito…
  Como um só, os dragões ergueram as cabeças e rugiram.
  — Cavalos! — Dany pôs-se em pé de um salto, apertando-se à pele de leão. Lá fora, ouviu Belwas, o Forte, a berrar qualquer coisa, e depois outras vozes, e o ruído de muitos cavalos. — Irri, vai ver
quem…
  A aba da tenda abriu-se de rompante e Sor Jorah Mormont entrou. Vinha empoeirado e salpicado de sangue, mas além disso não parecia afectado pela batalha. O cavaleiro exilado caiu sobre um joelho perante
Dany e disse:
  — Vossa Graça, trago-vos a vitória. Os Corvos Tormentosos viraram as casacas, os escravos quebraram e os Segundos Filhos estavam demasiado bêbados para lutar, tal como tínheis dito. Duzentos mortos,
na maioria yunkaitas. Os seus escravos deitaram fora as lanças e fugiram, e os seus mercenários renderam-se. Temos vários milhares de cativos.
  — As nossas perdas?
  — Uma dúzia. Se tanto.
  Só então se permitiu um sorriso.
  — Erguei-vos, meu bom e corajoso urso. Grazdan foi capturado? Ou o Bastardo do Titã?
  — Grazdan foi a Yunkai entregar as vossas exigências. — Sor Jorah pôs-se em pé. — Mero fugiu, assim que se apercebeu de que os Corvos Tormentosos se tinham passado para o nosso lado. Tenho homens a
persegui-lo. Não nos deve escapar por muito tempo.
  — Muito bem — disse Dany. — Mercenário ou escravo, poupai todos aqueles que me jurem lealdade. Se um número suficiente dos Segundos Filhos se me juntar, mantende a companhia intacta.
  No dia seguinte marcharam as três últimas léguas até Yunkai. A cidade tinha sido construída de tijolos amarelos em vez de vermelhos; tirando isso era uma cópia perfeita de Astapor, com as mesmas muralhas
a esboroar-se e maciças pirâmides de degraus, e uma grande harpia montada por cima dos portões. A muralha e torres estavam repletas de besteiros e fundibulários. Sor Jorah e o Verme Cinzento posicionaram
os seus homens, Irri e Jhiqui ergueram o pavilhão de Dany, e esta sentou-se, à espera.
  Na manhã do terceiro dia, os portões da cidade abriram-se e uma fileira de escravos começou a sair. Dany montou a prata para ir ao seu encontro. Ao passarem, a pequena Missandei foi-lhes dizendo que
deviam a liberdade a Daenerys Nascida na Tormenta, a Não-Queimada, Rainha dos Sete Reinos de Westeros e Mãe de Dragões.
  — Mhysa! — gritou-lhe um homem de pele castanha. Trazia uma criança ao ombro, uma rapariguinha, e ela gritou a mesma palavra na sua vozinha fina. — Mhysa! Mhysa!
  Dany olhou para Missandei.
  — Que estão eles a gritar?
  — É ghiscari, a antiga língua pura. Quer dizer “Mãe”.
  Dany sentiu uma leveza no peito. Nunca darei à luz um filho vivo, recordou. A mão tremeu-lhe ao erguê-la. Talvez tenha sorrido. Deve ter sorrido, pois o homem também sorriu e voltou a gritar, e outros
acompanharam o seu grito.
  — Mhysa! — gritaram. — Mhysa! MHYSA! — Estavam todos a sorrir-lhe, a estender as mãos para ela, a ajoelhar à sua frente. Alguns chamavam-lhe “Maela”, outros gritavam “Aelalla” ou “Qathei” ou “Tato”,
mas qualquer que fosse a língua, todas as palavras queriam dizer o mesmo. Mãe. Eles estão a chamar-me Mãe.
  O cântico cresceu, espalhou-se, avolumou-se. Avolumou-se tanto que assustou o seu cavalo, e a égua recuou, abanou a cabeça e agitou a cauda cinzenta-prateada. Avolumou-se até parecer abanar as muralhas
amarelas de Yunkai. Mais escravos saíam pelos portões a cada momento, e ao chegarem, juntavam-se ao grito. Agora corriam para ela, empurrando-se, tropeçando, desejando tocar-lhe a mão, afagar a crina
do seu cavalo, beijar-lhe os pés. Os seus pobres companheiros de sangue não conseguiam mantê-los a todos afastados, e até Belwas, o Forte, grunhiu e resmungou de susto.
  Sor Jorah tentou convencê-la a sair dali, mas Dany lembrou-se de um sonho que tivera na Casa dos Imorredouros.
  — Eles não me farão mal — disse-lhe. — Eles são meus filhos, Jorah. — Soltou uma gargalhada, bateu com os calcanhares no cavalo e cavalgou na direcção dos escravos, com as campainhas no cabelo a retinir
em doce vitória. Trotou, depois passou a meio galope e de seguida pôs-se a galope, com a trança a ondular atrás. Os escravos libertados abriram-lhe caminho. “Mãe”, gritaram cem gargantas, mil, dez mil.
“Mãe”, cantaram, com os dedos a afagar-lhe as pernas enquanto voava através deles. “Mãe, Mãe, Mãe!”
 
 ARYA
  Quando Arya viu a forma do grande monte a erguer-se à distância, dourado ao Sol da tarde, reconheceu-o de imediato. Tinham regressado a Coração Alto.
  Ao pôr-do-sol estavam no topo, acampando onde nenhum mal lhes poderia acontecer. Arya percorreu o círculo de tocos de represeiro com o escudeiro de Lorde Beric, Ned, e puseram-se em pé em cima de um
deles a observar a última luz que desaparecia a ocidente. Dali de cima via uma tempestade que se enfurecia para norte, mas Coração Alto erguia-se acima da chuva. Não estava acima do vento, no entanto;
as rajadas sopravam com tanta força que era como se alguém estivesse atrás dela a puxar-lhe pelo manto. Só que quando se virou, não estava lá ninguém.
  Fantasmas, recordou. Coração Alto está assombrado.
  Fizeram uma grande fogueira no cimo do monte, e Thoros de Myr sentou-se de pernas cruzadas na sua frente, a olhar para as profundezas das chamas como se nada mais existisse no mundo inteiro.
  — Que está ele a fazer? — perguntou Arya a Ned.
  — Ele às vezes vê coisas nas chamas — disse-lhe o escudeiro. — O passado. O futuro. Coisas que estão a acontecer muito longe.
  Arya olhou para o fogo com os olhos semicerrados, tentando ver o que o sacerdote vermelho via, mas só conseguiu ficar com os olhos cheios de lágrimas e pouco tempo depois afastou-os da fogueira. Gendry
também estava a observar o sacerdote vermelho.
  — Podeis mesmo ver aí o futuro? — perguntou de súbito.
  Thoros afastou os olhos do fogo, suspirando.
  — Aqui não. Agora não. Mas certos dias, sim, o Senhor da Luz concede-me visões.
  Gendry não parecia convencido.
  — O meu mestre dizia que éreis um bêbado e uma fraude, um sacerdote tão mau como os piores.
  — Isso era pouco amável. — Thoros soltou um risinho. — Verdadeiro, mas pouco amável. Quem era esse teu mestre? Eu conhecia-te, rapaz?
  — Eu era aprendiz do mestre armeiro Tobho Mott, na Rua do Aço. Costumáveis comprar-lhe as espadas.
  — É verdade. Ele cobrava-me o dobro do que elas valiam, e depois repreendia-me por lhes pegar fogo. — Thoros soltou uma gargalhada. — O teu mestre tinha razão. Eu não era um sacerdote lá muito santo.
Fui o mais novo de oito filhos, e por isso o meu pai deu-me ao Templo Vermelho, mas não teria sido esse o caminho que eu escolheria. Orava as orações e proferia os feitiços, mas também liderava ataques
às cozinhas e, de tempos a tempos, encontravam raparigas na minha cama. Umas raparigas tão malvadas… nunca soube como elas iam lá parar.
  »Mas tinha um dom para línguas. E quando olhava para as chamas, bem, de vez em quando via coisas. Mesmo assim eram mais os aborrecimentos que dava do que o valor que tinha, e acabaram por me enviar
para Porto Real a fim de trazer a luz do Senhor ao sete vezes embrutecido Westeros. O Rei Aerys gostava tanto de fogo que se pensou que poderia ser convertido. Infelizmente, os seus piromantes conheciam
melhores truques do que eu.
  »Mas o Rei Robert gostava de mim. Da primeira vez que entrei num corpo a corpo com uma espada flamejante, o cavalo de Kevan Lannister empinou-se e atirou-o ao chão, e Sua Graça riu-se tanto que eu pensei
que explodiria. — A recordação fez o sacerdote vermelho sorrir. — Mas aquilo não era maneira de tratar uma lâmina, o teu mestre também tinha razão quanto a isso.
  — O fogo consome. — O Lorde Beric estava em pé atrás deles, e havia algo na sua voz que silenciou Thoros de imediato. — Ele consome, e quando termina, nada resta. Nada.
  — Beric. Querido amigo. — O sacerdote tocou o senhor do relâmpago no antebraço. — Que estais vós a dizer?
  — Nada que não tenha já dito. Seis vezes, Thoros? Seis vezes são demasiadas. — Afastou-se abruptamente.
  Naquela noite o vento uivava quase como um lobo, e havia alguns lobos verdadeiros a oeste a dar-lhe lições. Notch, Anguy e o Merrit de Vilalua estavam de vigia. Ned, Gendry e muitos dos outros dormiam
profundamente quando Arya vislumbrou a pequena silhueta clara que se movia por trás dos cavalos, com o cabelo fino e branco a esvoaçar loucamente, enquanto se apoiava numa bengala cheia de nós. A mulher
não podia ter mais de noventa centímetros de altura. A luz da fogueira fazia-lhe cintilar os olhos num tom tão vermelho como o dos olhos do lobo de Jon. Ele também era um fantasma. Arya esgueirou-se para
mais perto, e ajoelhou-se para espreitar.
  Thoros e Limo faziam companhia ao Lorde Beric quando a anã se sentou junto da fogueira sem ser convidada. Olhou-os de soslaio com uns olhos que eram como carvões ardentes.
  — A Brasa e o Limão vêm de novo visitar-me, com Sua Graça, o Senhor dos Cadáveres.
  — Um nome de mau agoiro. Já vos pedi que não o usásseis.
  — Sim, pedistes. Mas o fedor da morte é em vós fresco, senhor. — Não lhe restava mais do que um dente. — Dai-me vinho, senão vou-me embora. Os meus ossos estão velhos. As articulações doem-me quando
os ventos sopram, e aqui em cima os ventos não param de soprar.
  — Um veado de prata pelos vossos sonhos, senhora — disse o Lorde Beric, com uma solene cortesia. — E outro se tiverdes notícias para nos dar.
  — Não posso comer um veado de prata, e também não o posso montar. Um odre de vinho pelos meus sonhos, e, pelas notícias, um beijo do grande idiota com o manto amarelo. — A pequena mulher soltou um cacarejo.
— Sim, um beijo molhado, um pouco de língua. Passou-se demasiado tempo, demasiado. A boca dele vai saber a limões e a minha a ossos. Sou velha de mais.
  — Sim — protestou o Limo. — Velha de mais para vinho e beijos. Tudo o que levareis de mim é a parte romba da espada, bruxa.
  — O cabelo cai-me às mãos-cheias e ninguém me beija há mil anos. É duro ser tão velha. Bem, nesse caso aceito uma canção. Uma canção do Tom das Sete, pelas notícias.
  — Obtereis a vossa canção do Tom — prometeu o Lorde Beric. Foi ele próprio a entregar-lhe o odre de vinho.
  A anã bebeu profundamente, deixando escorrer vinho pelo queixo abaixo. Quando baixou o odre, limpou a boca com as costas de uma mão enrugada e disse:
  — Vinho amargo por amargas novas, que haveria de mais adequado? O rei está morto, isso é suficientemente amargo para vós?
  O coração de Arya subiu-lhe à garganta.
  — Qual dos malditos reis está morto, velha? — exigiu saber o Limo.
  — O molhado. O rei da lula gigante, senhores. Sonhei que ele estava morto, e ele morreu, e agora as lulas de ferro viraram-se umas contra as outras. Oh, e o Lorde Hoster Tully também morreu, mas vós
sabeis disso, não é verdade? No salão dos reis o bode está só e febril, enquanto o grande cão cai sobre ele. — A velha bebeu outro longo trago de vinho, espremendo o odre enquanto o levava aos lábios.
  O grande cão. Estaria a velha a falar do Cão de Caça? Ou talvez do irmão, a Montanha Que Cavalga? Arya não tinha a certeza. Ambos usavam as mesmas armas, três cães negros em fundo amarelo. Metade dos
homens por cujas mortes rezava pertenciam a Sor Gregor Clegane; Polliver, Dunsen, Raff, o Querido, o Cócegas e o próprio Sor Gregor. Talvez o Lorde Beric os enforque a todos.
  — Sonhei com um lobo a uivar à chuva, mas ninguém ouvia o seu lamento — estava a anã a dizer. — Sonhei com um tal clangor que julguei que a minha cabeça ia rebentar, com tambores, cornos, flautas e
gritos, mas o som mais triste era o de pequenas campainhas. Sonhei com uma donzela num banquete com serpentes púrpura no cabelo e veneno a pingar dos seus colmilhos. E mais tarde voltei a sonhar com essa
donzela, a matar um gigante selvagem num castelo feito de neve. — Virou vivamente a cabeça e sorriu através das sombras, directamente para Arya. — Não podes esconder-te de mim, filha. Aproxima-te lá.
  Dedos frios desceram pelo pescoço de Arya. O medo corta mais profundamente do que as espadas, lembrou a si própria. Ergueu-se e aproximou-se cautelosamente da fogueira, pisando levemente, nas pontas
dos pés, pronta a fugir.
  A anã estudou-a com os seus sombrios olhos vermelhos.
  — Estou a ver-te — sussurrou. — Estou a ver-te, criança lobo. Criança de sangue. Julgava que era o lorde quem cheirava a morte… — Desatou a soluçar, fazendo estremecer o seu pequeno corpo. — És cruel
por vires ao meu monte, cruel. Empanturrei-me de desgosto em Solarestival, não preciso do teu. Desaparece daqui, coração negro. Desaparece!
  Havia tanto medo na voz dela que Arya deu um passo para trás, perguntando a si própria se a mulher estaria louca.
  — Não assusteis a criança — protestou Thoros. — Não há nenhum mal nela.
  O dedo do Limo Manto Limão dirigiu-se ao seu nariz quebrado.
  — Não tenhais tanta certeza quanto a isso.
  — Ela partirá de manhã, connosco — garantiu o Lorde Beric à pequena mulher. — Vamos levá-la para Correrrio, para junto da mãe.
  — Não — disse a anã. — Não ides. Quem controla os rios é agora o peixe negro. Se quereis a mãe, procurai-a nas Gémeas. Pois irá haver um casamento. — Voltou a soltar um cacarejo. — Olhai para os vossos
fogos, sacerdote cor-de-rosa, e vereis. Mas não agora, e não aqui, aqui não vereis nada. Este lugar ainda pertence aos antigos deuses… permanecem aqui, tal como eu, encolhidos e frágeis mas ainda vivos.
E não gostam das chamas. Pois o carvalho recorda a bolota, a bolota sonha o carvalho, e o toco vive em ambos. E lembram-se de quando os Primeiros Homens chegaram com fogo nos punhos. — Bebeu o resto do
vinho em quatro longos tragos, atirou o odre para o lado, e apontou a bengala ao Lorde Beric. — Quero agora o meu pagamento. Quero a canção que me prometestes.
  E assim o Limo despertou o Tom Sete-Cordas de debaixo das suas peles, e trouxe-o a bocejar até junto da fogueira com a harpa na mão.
  — A mesma canção de sempre? — perguntou.
  — Oh, sim. A canção da minha Jenny. Existe mais alguma?
  E ele assim cantou, e a anã fechou os olhos e pôs-se a balançar lentamente de um lado para o outro, murmurando as palavras e chorando. Thoros pegou firmemente na mão de Arya e afastou-se com ela.
  — Deixa-a saborear a canção em paz — disse. — É tudo o que lhe resta.
  Eu não ia fazer-lhe mal, pensou Arya.
  — Que queria ela dizer com as Gémeas? A minha mãe está em Correrrio, não está?
  — Estava. — O sacerdote vermelho coçou-se por baixo do queixo. — Um casamento, disse ela. Veremos. Mas esteja onde estiver, o Lorde Beric há-de encontrá-la.
  Não muito tempo depois, o céu abriu-se. Estalou o relâmpago, o trovão rolou sobre os montes, e a chuva começou a cair em lençóis que cegavam. A anã desapareceu tão subitamente como surgira, enquanto
os foras-da-lei apanhavam ramos e erguiam abrigos improvisados.
  Choveu toda a noite e, ao chegar a manhã, Ned, o Limo e Watty, o Moleiro, acordaram com arrepios. Watty não conseguiu manter o pequeno-almoço no estômago e o jovem Ned, ora estava febril, ora desatava
a tremer, com a pele fria e húmida ao toque. Notch disse ao Lorde Beric que havia uma aldeia abandonada a meio dia de viagem para norte; encontrariam aí melhor abrigo, um lugar onde esperar que passasse
o pior das chuvas. E assim, arrastaram-se para cima das selas e puseram os cavalos a descer o grande monte.
  As chuvas não abrandavam. Cavalgaram por florestas e campos de cultivo, vadeando ribeiros em cheia, nos quais as rápidas águas chegavam às barrigas dos cavalos. Arya puxou o capuz do manto para cima
da cabeça e encolheu-se, empapada e a tremer, mas determinada a não esmorecer. Merritt e Mudge estavam em breve a tossir tanto como Watty, e o pobre Ned parecia ficar mais infeliz a cada milha.
  — Quando uso o elmo, a chuva bate no aço e deixa-me com dor de cabeça — queixou-se. — Mas quando o tiro, o meu cabelo fica encharcado e cola-se-me à cara e entra-me na boca.
  — Tens uma faca — sugeriu Gendry. — Se o cabelo te aborrece assim tanto, rapa a porcaria da cabeça.
  Ele não gosta de Ned. O escudeiro parecia a Arya bastante simpático; talvez um pouco tímido, mas de boa índole. Sempre ouvira dizer que os dorneses eram baixos e trigueiros, com cabelo negro e pequenos
olhos negros, mas Ned tinha grandes olhos azuis, tão escuros que quase pareciam púrpura. E o cabelo era de um louro-claro, mais cinza do que mel.
  — Há quanto tempo és escudeiro do Lorde Beric? — perguntou, para lhe afastar a mente dos seus problemas.
  — Ele tomou-me como pajem quando desposou a minha tia. — Tossiu. — Tinha sete anos, mas quando fiz dez, promoveu-me a escudeiro. Uma vez ganhei um prémio, a arremeter contra anéis.
  — Nunca aprendi a manejar a lança, mas podia ganhar-te com uma espada — disse Arya. — Já mataste alguém?
  Aquilo pareceu alarmá-lo.
  — Só tenho doze anos.
  Matei um rapaz com oito, quase disse Arya, mas achou que era melhor não o fazer.
  — Mas estiveste em batalhas.
  — Sim. — Não parecia muito orgulhoso do facto. — Estive no Vau do Saltimbanco. Quando o Lorde Beric caiu ao rio, arrastei-o para a margem para que não se afogasse e fiquei por cima dele de espada na
mão. Mas não cheguei a ter de lutar. Ele tinha uma lança espetada, e por isso ninguém nos incomodou. Quando reagrupámos, o Gergen Verde ajudou a pôr sua senhoria a cavalo.
  Arya estava a lembrar-se do moço de estrebaria em Porto Real. Depois dele houvera aquele guarda cuja garganta cortara em Harrenhal, e os homens de Sor Amory naquela fortaleza junto ao lago. Não sabia
se Weese e Chiswyck contavam, ou aqueles que tinham morrido à conta da sopa de doninha… de súbito sentiu-se muito triste.
  — Também chamavam Ned ao meu pai — disse.
  — Eu sei. Vi-o no torneio da Mão. Queria aproximar-me e falar com ele, mas não consegui arranjar o que dizer. — Ned estremeceu sob o manto, um bocado encharcado, de púrpura-claro. — Estáveis no torneio?
Vi lá a vossa irmã. Sor Loras Tyrell deu-lhe uma rosa.
  — Ela contou-me. — Tudo parecia ter acontecido há tanto tempo. — Jeyne Poole, a amiga dela, apaixonou-se pelo teu Lorde Beric.
  — Ele está prometido à minha tia. — Ned fez uma expressão de desconforto. — Mas isso foi antes. Antes de ele…
  …morrer? pensou Arya, enquanto a voz de Ned se reduzia a um silêncio incómodo. Os cascos dos cavalos faziam sons de sucção ao libertarem-se da lama.
  — Senhora? — disse Ned por fim. — Tendes um irmão ilegítimo… Jon Snow?
  — Ele está com a Patrulha da Noite na Muralha. — Talvez devesse ir para a Muralha em vez de Correrrio. O Jon não se importaria com quem matei ou se me penteei ou não… — O Jon parece-se comigo, apesar
de ter nascido bastardo. Costumava despentear-me o cabelo e chamar-me “irmãzinha”. — De todos, era de Jon que Arya sentia mais falta. Bastava dizer o seu nome para entristecer. — Como sabes do Jon?
  — Ele é meu irmão-de-leite.
  — Irmão? — Arya não compreendia. — Mas tu és de Dorne. Como podes ser do sangue de Jon?
  — Irmãos-de-leite. Não de sangue. A senhora minha mãe não tinha leite quando eu era pequeno, e Wylla teve de me amamentar.
  Arya não estava a entender.
  — Quem é Wylla?
  — A mãe de Jon Snow. Ele nunca vos disse? Ela esteve ao nosso serviço durante anos e mais anos. Desde antes de eu nascer.
  — O Jon nunca conheceu a mãe. Nem sequer sabe o seu nome. — Arya deitou a Ned um olhar desconfiado. — Conhece-la? Mesmo? — Estará ele a troçar de mim? — Se mentires, dou-te um murro na cara.
  — Wylla foi a minha ama-de-leite — repetiu o rapaz com solenidade. — Juro-o pela honra da minha Casa.
  — Tu tens uma Casa? — Aquilo era estúpido; ele era um escudeiro, é claro que tinha uma Casa. — Quem és tu?
  — Senhora? — Ned fez uma expressão embaraçada. — Sou Edric Dayne, o… o Senhor de Tombastela.
  Atrás deles, Gendry gemeu.
  — Senhores e senhoras — proclamou, num tom de repugnância. Arya arrancou uma maçã apodrecida de um ramo de passagem e atirou-lha, fazendo-a ressaltar na sua dura cabeça de touro. — Au — disse ele. —
Isso doeu. — Tacteou a pele por cima do olho. — Que tipo de senhora atira maçãs às pessoas?
  — O tipo mau — disse Arya, de súbito contrita. Virou-se de novo para Ned. — Lamento não saber quem tu eras. Senhor.
  — A culpa é minha, senhora. — Ele era muito bem-educado.
  Jon tem uma mãe. Wylla, o nome dela é Wylla. Teria de se lembrar para lhe poder dizer da próxima vez que o visse. Perguntou a si própria se ele ainda lhe chamaria “irmãzinha”. Já não sou assim tão zinha.
Ele vai ter de me chamar outra coisa qualquer. Quando chegasse a Correrrio, talvez pudesse escrever uma carta a Jon e contar-lhe o que Ned dissera.
  — Havia um Arthur Dayne — lembrou-se. — Aquele a quem chamavam Espada da Manhã.
  — O meu pai era o irmão mais velho de Sor Arthur. A Senhora Ashara era minha tia. Mas nunca a conheci. Ela atirou-se ao mar do alto da Espada Branca antes de eu nascer.
  — Porque faria tal coisa? — perguntou Arya, surpreendida.
  Ned fez uma expressão de desconfiança. Talvez tivesse receio que ela lhe atirasse qualquer coisa.
  — O senhor vosso pai nunca falou dela? — disse. — Da Senhora Ashara Dayne, de Tombastela?
  — Não. Conhecia-a?
  — Antes de Robert ser rei. Ela conheceu o vosso pai e os irmãos em Harrenhal, durante o ano da falsa Primavera.
  — Oh. — Arya não sabia o que mais dizer. — Mas porque foi que ela saltou para o mar?
  — Tinha o coração partido.
  Sansa teria suspirado e derramado uma lágrima pelo amor verdadeiro, mas Arya achava simplesmente que era uma estupidez. Mas não podia dizer isso a Ned, não podia dizer tal coisa sobre a tia do rapaz.
  — Alguém lho partiu?
  Ele hesitou.
  — Talvez não me caiba…
  — Conta-me.
  O rapaz olhou-a desconfortavelmente.
  — A minha tia Allyria diz que a Senhora Ashara e o vosso pai se apaixonaram em Harrenhal…
  — Não é verdade. Ele amava a senhora minha mãe.
  — Estou certo de que sim, senhora, mas…
  — Era a única mulher que ele amava.
  — Então deve ter encontrado aquele bastardo debaixo de uma folha de couve — disse Gendry atrás deles.
  Arya quis ter outra maçã para fazer ressaltar na cara dele.
  — O meu pai tinha honra — disse, zangada. — E seja como for, não estávamos a falar contigo. Porque é que não voltas para o Septo de Pedra e fazes tocar os estúpidos sinos daquela rapariga?
  Gendry ignorou-a.
  — Pelo menos o teu pai criou o bastardo dele; o meu não. Nem sequer sei o nome do meu pai. Algum bêbado fedorento, aposto, como os outros que a minha mãe arrastava da cervejaria para casa. Sempre que
se zangava comigo, dizia “Se o teu pai estivesse aqui, batia-te até fazer sangue”. Isso é tudo o que sei dele. — Cuspiu para o chão. — Bem, se estivesse aqui agora, podia ser que eu lhe batesse a ele
até fazer sangue. Mas está morto, parece-me, e o teu pai também está morto, portanto que importa com quem ele se deitou?
  A Arya importava, embora não soubesse dizer porquê. Ned estava a tentar desculpar-se por a ter perturbado, mas ela não quis ouvir. Encostou os calcanhares ao cavalo e deixou-os aos dois para trás. Anguy,
o Arqueiro, seguia alguns metros mais à frente. Quando o apanhou, disse:
  — Os dorneses mentem, não mentem?
  — São famosos por isso. — O arqueiro sorriu. — Mas claro que eles dizem o mesmo de nós, os da Marca, portanto aí tens. O que se passa agora? O Ned é um bom rapaz…
  — Ele é só um estúpido mentiroso. — Arya abandonou o trilho, saltou um tronco apodrecido e vadeou um ribeiro, fazendo saltar água para todos os lados, ignorando os gritos dos foras-da-lei atrás de si.
Só querem contar-me mais mentiras. Pensou em tentar fugir-lhes, mas eles eram muitos e conheciam aquelas terras bem de mais. De que servia fugir se nos apanhassem?
  Por fim, foi Harwin que se pôs a seu lado.
  — Onde julgais que ides, senhora? Não devíeis fugir. Há lobos nesta floresta, e coisas piores.
  — Não tenho medo — disse ela. — Aquele rapaz, o Ned, disse…
  — Sim, ele contou-me. A Senhora Ashara Dayne. É uma história antiga, essa. Ouvi-a uma vez em Winterfell não era ainda mais velho do que vós sois agora. — Agarrou firmemente no seu freio e virou-lhe
o cavalo. — Duvido que haja nela alguma verdade. Mas se houver, qual é o problema? Quando Ned conheceu esta senhora dornesa, o irmão Brandon ainda estava vivo, e era ele o noivo da Senhora Catelyn, portanto
não há nenhuma mancha na honra do vosso pai. Não há como um torneio para aquecer o sangue, e talvez algumas palavras tenham sido murmuradas numa tenda nalguma noite, quem poderá dizê-lo? Palavras ou beijos,
talvez mais, mas onde está o mal? A Primavera tinha chegado, ou pelo menos era o que pensavam, e nenhum dos dois estava comprometido.
  — Mas ela matou-se — disse Arya com incerteza. — O Ned diz que ela saltou de uma torre para o mar.
  — É verdade — admitiu Harwin enquanto a conduzia de volta — mas foi por desgosto, aposto. Ela tinha perdido um irmão, a Espada da Manhã. — Abanou a cabeça. — Deixai isto, senhora. Estão mortos, todos
eles. Deixai o assunto… e por favor, quando chegarmos a Correrrio, não digais nada sobre ele à vossa mãe.
  A aldeia ficava mesmo onde Notch prometera. Abrigaram-se num estábulo de pedra cinzenta. Só restava meio telhado, mas isso era meio telhado a mais do que havia em qualquer outro edifício da aldeia.
Isto não é uma aldeia, são só pedras pretas e ossos velhos.
  — Foram os Lannister que mataram as pessoas que viviam aqui? — perguntou Arya enquanto ajudava Anguy a secar os cavalos.
  — Não. — Ele apontou. — Olha como o musgo cresce alto nas pedras. Ninguém anda por aqui há muito tempo. E há uma árvore a crescer ali da parede, estás a ver? Este sítio foi passado pelo archote há muito
tempo.
  — Então quem foi que o fez? — perguntou Gendry.
  — Hoster Tully. — Notch era um homem curvado, magro e de barba grisalha, nascido naquela zona. — Isto era a aldeia do Lorde Goodbrook. Quando Correrrio declarou o apoio a Robert, Goodbrook manteve-se
fiel ao rei, portanto o Lorde Tully caiu sobre ele com fogo e espada. Depois do Tridente, o filho de Goodbrook fez a paz com Robert e o Lorde Hoster, mas isso não ajudou em nada os mortos.
  Caiu um silêncio. Gendry deitou a Arya um olhar estranho, após o que lhe virou costas para escovar o cavalo. Lá fora, a chuva caía sem parar.
  — Acho que precisamos de uma fogueira — declarou Thoros. — A noite é escura e cheia de terrores. E também molhada, hã? Molhada de mais.
  O Jack Sortudo arrancou alguma madeira de uma cocheira, enquanto Notch e Merritt juntavam palha para servir de acendalha. O próprio Thoros fez saltar a faísca, e o Limo atiçou as chamas com o seu grande
manto amarelo até as deixar a rugir e rodopiar. Em breve ficou quase calor dentro do estábulo. Thoros sentou-se em frente da fogueira de pernas cruzadas, devorando as chamas com os olhos, tal como fizera
no topo de Coração Alto. Arya observava-o de perto, e uma vez os lábios dele moveram-se e ela julgou ouvi-lo murmurar “Correrrio”. O Limo pôs-se a andar de um lado para o outro, tossindo, com uma longa
sombra a acompanhá-lo passo a passo, enquanto o Tom das Sete descalçava as botas e esfregava os pés.
  — Devo estar louco para voltar a Correrrio — protestou o cantor. — Os Tully nunca deram sorte ao velho Tom. Foi aquela Lysa que me mandou pela estrada de altitude, quando os Homens de Lua me roubaram
o ouro e o cavalo e também toda a roupa. Há cavaleiros no Vale que ainda contam a história de como eu cheguei a pé ao Portão Sangrento só com a harpa p’ra manter a modéstia. Eles obrigaram-me a cantar
“O Rapaz do Dia do Seu Nome” e “O Rei Sem Coragem” antes de abrirem aquele portão. O meu único consolo foi que três deles morreram a rir. Nunca mais voltei ao Ninho de Águia, e também não canto “O Rei
Sem Coragem”, nem por todo o ouro do Rochedo…
  — Lannister — disse Thoros. — A rugir em vermelho e dourado. — Pôs-se em pé e foi ter com o Lorde Beric. O Limo e o Tom não perderam tempo a juntar-se-lhes. Arya não conseguiu distinguir o que estavam
a dizer, mas o cantor não parava de lhe lançar olhadelas, e às tantas o Limo irritou-se tanto que esmurrou a parede. Foi então que o Lorde Beric lhe fez um gesto para que se aproximasse. Era a última
coisa que queria fazer, mas Harwyn pôs-lhe uma mão no fundo das costas e empurrou-a para a frente. Arya deu dois passos e hesitou, cheia de terror.
  — Senhor. — Esperou para ouvir o que o Lorde Beric diria.
  — Diz-lhe — ordenou o senhor do relâmpago a Thoros.
  O sacerdote vermelho acocorou-se ao seu lado.
  — Senhora — disse —, o Senhor concedeu-me uma visão de Correrrio. Parecia uma ilha num mar de fogo. As chamas eram leões aos saltos com longas garras carmesim. E como rugiam! Um mar de Lannisters, senhora.
Correrrio será atacado em breve.
  Arya sentiu-se como se ele a tivesse esmurrado na barriga.
  — Não!
  — Querida — disse Thoros —, as chamas não mentem. Por vezes leio-as erradamente, por ser o idiota cego que sou. Mas não desta vez, penso. Os Lannister terão em breve Correrrio sob cerco.
  — Robb vencê-los-á. — Arya pôs uma expressão obstinada. — Ele há-de ganhar-lhes como ganhou da outra vez.
  — O teu irmão pode ter partido — disse Thoros. — E a tua mãe também. Não os vi nas chamas. Este casamento de que a velha falou, um casamento nas Gémeas… ela tem as suas maneiras de saber das coisas.
Os represeiros murmuram-lhe ao ouvido quando dorme. Se ela diz que a tua mãe partiu para as Gémeas…
  Arya virou-se para Tom e Limo.
  — Se não me tivésseis apanhado, podia estar lá. Podia estar em casa.
  O Lorde Beric não prestou atenção àquela explosão.
  — Senhora — disse, com uma cortesia fatigada —, conheceríeis o irmão do vosso avô se o vísseis? Sor Brynden Tully, chamado Peixe Negro? Poderia ele, porventura, conhecer-vos a vós?
  Arya abanou a cabeça, infeliz. Ouvira a mãe falar de Sor Brynden Peixe Negro, mas se alguma vez o conhecera pessoalmente, fora quando era pequena de mais para se lembrar.
  — Não há grandes hipóteses de o Peixe Negro pagar bom dinheiro por uma rapariga que não conhece — disse Tom. — Aqueles Tully são uns tipos amargos e desconfiados, o mais certo é que ele pense que lhe
estamos a vender um artigo falso.
  — Havemos de o convencer — insistiu o Limo Manto Limão. — Ela convencerá, ou então o Harwin. Correrrio fica mais perto. Sugiro que a levemos lá, que recebamos o ouro e que se lixe a rapariga.
  — E se os leões nos apanharem dentro do castelo? — disse Tom. — Não há nada de que gostassem tanto como de pendurar sua senhoria do topo de Rochedo Casterly numa gaiola.
  — Não tenciono ser capturado — disse o Lorde Beric. Uma última palavra pairou, por proferir, no ar. Vivo. Todos a ouviram, até mesmo Arya, embora ela não tivesse chegado a franquear-lhe os lábios. —
Mesmo assim, não nos atrevemos a ir cegamente até lá. Quero saber onde se encontram os exércitos, quer os lobos, quer os leões. Sharna saberá alguma coisa, e o meistre do Lorde Vance saberá mais. O Solar
de Bolotas não é longe daqui. A Senhora Smallwood dar-nos-á abrigo durante algum tempo enquanto enviamos batedores para investigar…
  As palavras dele esbarravam nos seus ouvidos como o bater de um tambor, e de súbito Arya não conseguiu suportar mais. Desejava Correrrio, não Solar de Bolotas; desejava a mãe e o irmão Robb, não a Senhora
Smallwood ou um tio qualquer que nunca chegara a conhecer. Girando sobre si própria, rompeu em corrida para a porta, e quando Harwin tentou agarrar-lhe no braço, esquivou-se-lhe, rápida como uma cobra.
  Fora do estábulo continuava a chover, e um relâmpago distante caiu a ocidente. Arya correu tão depressa como foi capaz. Não sabia para onde ia, sabia apenas que queria ficar sozinha, longe de todas
as vozes, longe das palavras vazias deles e das suas promessas quebradas. Tudo o que queria era ir para Correrrio. A culpa era sua, por ter trazido Gendry e o Tarte Quente quando abandonara Harrenhal.
Teria ficado melhor sozinha. Se estivesse sozinha, os foras-da-lei nunca a teriam apanhado, e por aquela altura já estaria com Robb e a mãe. Eles nunca foram a minha alcateia. Se o tivessem sido, não
me teriam abandonado. Atravessou a chapinhar uma poça de água lamacenta. Alguém estava a gritar o seu nome. Provavelmente Harwin, ou Gendry, mas o trovão submergiu-os ao rolar por sobre os montes, meio
segundo antes do relâmpago. O senhor do relâmpago, pensou, zangada. Talvez não pudesse morrer, mas podia mentir.
  Algures à sua esquerda, um cavalo relinchou. Arya não podia estar a mais de cinquenta metros do estábulo, mas já se encontrava ensopada até aos ossos. Baixou-se junto ao canto de uma das casas em ruínas,
esperando que as paredes cobertas de musgo a protegessem da chuva, e quase colidiu com uma das sentinelas. Uma mão revestida de cota de malha fechou-se com força em volta do seu braço.
  — Estás a magoar-me — disse, torcendo-se sob aquela mão. — Larga-me, eu ia voltar, eu…
  — Voltar? — A gargalhada de Sandor Clegane era ferro a raspar em pedra. — Que se lixe isso, miúda lobo. És minha. — Só precisou de uma mão para a erguer do chão e a levar, esperneando, para o cavalo
que o esperava. A chuva fria vergastava-os a ambos e arrastava os seus gritos, e Arya só conseguia pensar naquilo que ele lhe perguntara. Sabes o que os cães fazem aos lobos?
 
 JAIME
  Embora a febre resistisse teimosamente, o toco estava a sarar bem, e Qyburn dizia que o braço já não corria perigo. Jaime estava ansioso para se ir embora, para pôr Harrenhal, os Saltimbancos Sangrentos
e Brienne de Tarth para trás das costas. Uma mulher a sério esperava por ele na Fortaleza Vermelha.
  — Vou mandar Qyburn convosco, para cuidar de vós durante a viagem até Porto Real — disse Roose Bolton na manhã da partida. — Ele acarinha a esperança de que o vosso pai se mostre suficientemente grato
para forçar a Cidadela a devolver-lhe a corrente.
  — Todos acarinhamos esperanças. Se me fizer crescer uma mão nova, o meu pai fará dele Grande Meistre.
  O Walton Pernas d’Aço comandava a escolta de Jaime; sem papas na língua, brusco, brutal, no íntimo um simples soldado. Jaime servira a vida inteira com aquele tipo de homem. Homens como Walton matariam
às ordens do seu senhor, violariam quando o sangue lhes fervesse após a batalha, e entregar-se-iam ao saque sempre que possível, mas após a guerra terminada, voltariam para suas casas, trocariam as lanças
por enxadas, casariam com as filhas dos vizinhos, e criariam uma matilha de filhos ruidosos. Homens daqueles obedeciam sem questionar, mas a profunda crueldade maligna dos Bravos Companheiros não fazia
parte da sua natureza.
  Ambos os grupos abandonaram Harrenhal na mesma manhã, sob um céu frio e cinzento que prometia chuva. Sor Aenys Frey pusera-se em marcha três dias antes, avançando para nordeste em direcção à Estrada
de Rei. Bolton tencionava segui-lo.
  — O Tridente está em cheia — disse a Jaime. — A travessia será difícil, mesmo no vau rubi. Dareis as minhas cordiais saudações ao vosso pai?
  — Desde que deis as minhas a Robb Stark.
  — Fá-lo-ei.
  Alguns Bravos Companheiros tinham-se reunido no pátio para assistir à partida. Jaime foi a trote até junto deles.
  — Zollo. Que bondade a tua vires despedir-te de mim. Pyg. Timeon. Sentireis saudades minhas? Não há um último gracejo para nos rirmos, Shagwell? Para aligeirar o meu caminho pela estrada fora? E, Rorge,
vieste dar-me um beijo de despedida?
  — Desaparece, aleijado — disse Rorge.
  — Já que tanto insistes. Mas sossega, regressarei. Um Lannister paga sempre as suas dívidas. — Jaime deu meia volta ao cavalo e voltou a juntar-se a Walton Pernas d’Aço e aos seus duzentos homens.
  O Lorde Bolton ataviara-o como um cavaleiro, preferindo ignorar a mão em falta que transformava um tal vestuário guerreiro em caricatura. Jaime seguia com espada e punhal ao cinto, escudo e elmo pendurados
da sela, cota de malha sob um sobretudo castanho-escuro. Não era um idiota tão grande, porém, que exibisse o leão de Lannister nas suas armas, nem o brasão branco puro que era seu de direito como Irmão
Ajuramentado da Guarda Real. Encontrara no armeiro um velho escudo, amolgado e fendido, cuja tinta lascada ainda exibia a maior parte do grande morcego negro da Casa Lothston num campo de prata e ouro.
Os Lothston tinham sido os donos de Harrenhal antes dos Whent e foram uma família poderosa nos seus dias, mas estavam mortos há séculos, portanto não era provável que alguém levantasse objecções a ele
usar as suas armas. Não seria primo de ninguém, inimigo de ninguém, espada ajuramentada a ninguém… em suma, não seria ninguém.
  Saíram através do portão oriental de Harrenhal, mais pequeno, e despediram-se de Roose Bolton e da sua hoste seis milhas adiante, virando para sul a fim de seguir a estrada do lago durante algum tempo.
Walton tencionava evitar a Estrada de Rei enquanto pudesse, preferindo os caminhos de agricultores e os trilhos de caça perto do Olho de Deus.
  — A Estrada de Rei seria mais rápida. — Jaime estava ansioso por regressar a Cersei tão depressa quanto possível. Se se apressassem, até poderia chegar a tempo do casamento de Joffrey.
  — Não quero sarilhos — disse o Pernas d’Aço. — Só os deuses sabem quem íamos encontrar nessa Estrada de Rei.
  — Ninguém que pudésseis temer, certamente? Tendes duzentos homens.
  — Pois tenho. Mas outros podem ter mais. O senhor disse p’ra vos levar a salvo ao senhor vosso pai, e é isso que eu vou fazer.
  Já passei por aqui, reflectiu Jaime algumas milhas mais à frente, quando passaram por um moinho deserto junto ao lago. Agora cresciam ervas daninhas no local de onde a filha do moleiro lhe sorrira timidamente
e o próprio moleiro lhe gritara “O torneio é para o outro lado, sor”. Como se eu não soubesse.
  O Rei Aerys fizera um grande espectáculo da investidura de Jaime. Proferira os votos perante o pavilhão real, ajoelhado na erva verde com a sua armadura branca enquanto metade do reino o observava.
Quando Sor Gerald Hightower o ajudara a erguer-se e colocara o manto branco em torno dos seus ombros, ressoara uma aclamação tal que Jaime ainda a recordava, todos estes anos passados. Mas nessa mesma
noite Aerys amargara, declarando que não precisava de sete membros da Guarda Real ali em Harrenhal. Fora ordenado a Jaime que regressasse a Porto Real para proteger a rainha e o pequeno Príncipe Viserys,
que tinham ficado para trás. Mesmo quando o Touro Branco se oferecera para desempenhar esse dever, a fim de que Jaime pudesse competir no torneio do Lorde Whent, Aerys recusara.
  — Ele não conquistará aqui nenhuma glória — dissera o rei. — Agora é meu, não de Tywin. Servirá como eu bem entender. O rei sou eu. Eu governo, e ele obedecerá.
  Fora então que Jaime compreendera pela primeira vez. Não fora a sua perícia com a espada e a lança que lhe conquistara o manto branco, nem quaisquer feitos de valor que teria realizado contra a Irmandade
da Mataderrei. Aerys escolhera-o para vexar o seu pai, para roubar o herdeiro ao Lorde Tywin.
  Mesmo agora, tantos anos depois, a ideia era amarga. E naquele dia, enquanto cavalgava para Sul com o seu novo manto branco sobre os ombros, a fim de defender um castelo vazio, fora quase intolerável.
Nesse momento teria arrancado o manto se o pudesse fazer, mas era tarde de mais. Proferira as palavras sob os olhares de metade do reino, e um homem da Guarda Real servia para a vida inteira.
  Qyburn pôs-se a seu lado.
  — A mão está a incomodar-vos?
  — A falta da mão está a incomodar-me. — As manhãs eram a pior altura. Nos seus sonhos, Jaime era um homem completo, e todas as madrugadas ficava deitado, meio acordado, e sentia os dedos a mexer. Foi
um pesadelo, sussurrava uma parte de si, recusando-se a acreditar, mesmo agora, só um pesadelo. Mas depois abria os olhos.
  — Ouvi dizer que tivestes uma visita ontem à noite — disse Qyburn. — Espero que tenhais desfrutado dela?
  Jaime deitou-lhe um olhar frio.
  — Ela não disse quem a tinha enviado.
  O Meistre sorriu com modéstia.
  — A vossa febre estava praticamente debelada, e pensei que talvez gostásseis de um pouco de exercício. A Pia é bastante habilidosa, não achais? E tão… solícita.
  Ela certamente que o fora. Deslizara tão depressa pela porta dentro e das roupas para fora que Jaime julgara que ainda estava a sonhar.
  Só despertara depois de a mulher se enfiar debaixo das mantas e lhe colocar a mão boa sobre um seio. E também era uma coisinha bonita.
  — Eu não passava duma miudinha quando viestes ao torneio do Lorde Whent e o rei vos deu o manto — confessara. — Éreis tão bem-parecido todo de branco, e todos elogiavam o bravo cavaleiro que éreis.
Por vezes, quando estou com algum homem, fecho os olhos e finjo que sois vós quem ali está em cima de mim, com a vossa pele lisa e caracóis dourados. Mas nunca pensei realmente que vos teria.
  Depois daquilo, mandá-la embora não fora fácil, mas Jaime fizera-o mesmo assim. Tenho uma mulher, recordara a si próprio.
  — Mandais raparigas a todos os homens que sangrais? — perguntou a Qyburn.
  — É mais frequente que seja o Lorde Vargo que as manda a mim. Gosta que eu as examine antes de… bem, basta que vos diga que uma vez amou insensatamente, e não deseja voltar a fazê-lo. Mas nada temei,
Pia é bastante saudável. Tal como a vossa donzela de Tarth.
  Jaime deitou-lhe um olhar penetrante.
  — Brienne?
  — Sim. Rapariga forte, essa. E ainda tem a virgindade intacta. Até à noite passada, pelo menos. — Qyburn soltou um risinho.
  — Ele mandou-vos examiná-la?
  — Com certeza. É… exigente, digamos.
  — Isto diz respeito ao resgate? — perguntou Jaime. — O pai dela exige uma prova de que a rapariga continua donzela?
  — Não ouvistes as novidades? — Qyburn encolheu os ombros. — Recebemos uma ave do Lorde Selwyn. Em resposta à minha. A Estrela da Tarde oferece trezentos dragões pela devolução da filha em segurança.
Eu tinha dito ao Lorde Vargo que não havia safiras em Tarth, mas ele não quis dar-me ouvidos. Está convencido de que a Estrela da Tarde pretende enganá-lo.
  — Trezentos dragões é um bom resgate por um cavaleiro. O bode devia aceitar o que lhe oferecerem.
  — O bode é Senhor de Harrenhal, e o Senhor de Harrenhal não regateia.
  A novidade irritou-o, se bem que provavelmente devesse ter previsto aquilo. A mentira poupou-te durante algum tempo, rapariga. Fica grata por isso.
  — Se a virgindade dela for tão dura como o resto, o bode vai partir a picha ao tentar entrar — gracejou. Jaime calculava que Brienne fosse suficientemente dura para sobreviver a algumas violações, embora
Vargo Hoat pudesse começar a cortar-lhe mãos e pés se a rapariga resistisse com demasiado vigor. E se o fizer, porque hei-de importar-me? Ainda podia ter a mão se ela me tivesse deixado ficar com a espada
do meu primo sem se pôr estúpida. Ele próprio quase lhe cortara a perna com o seu primeiro golpe, mas depois a rapariga dera-lhe mais do que desejara. O Hoat pode não conhecer a força anormal que ela
tem. É melhor que tenha cuidado, senão ela parte-lhe aquele pescoço magricela. E que agradável que isso seria.
  A companhia de Qyburn estava a fartá-lo. Jaime trotou até à cabeça da coluna. Um carrapatozinho redondo de um nortenho com o nome de Nage ia à frente do Pernas d’Aço com o estandarte de paz; uma bandeira
às riscas arco-íris com sete longas pontas, numa haste encimada por uma estrela de sete pontas.
  — Vós, os nortenhos, não devíeis ter uma espécie diferente de bandeira de paz? — perguntou a Walton. — Que são os Sete para vós?
  — Deuses do Sul — disse o homem — mas aquilo de que precisamos é duma paz do Sul para vos levar a salvo ao vosso pai.
  O meu pai. Jaime gostaria de saber se o Lorde Tywin recebera a exigência de resgate do bode, acompanhada ou não da mão apodrecida. Quanto vale um espadachim sem a sua mão da espada? Metade do ouro de
Rochedo Casterly? Trezentos dragões? Ou nada? O pai nunca se deixara influenciar indevidamente pelo sentimento. O pai de Tywin Lannister, o Lorde Tytos, aprisionara uma vez um vassalo indisciplinado,
o Lorde Tarbeck. A temível Senhora Tarbeck respondera aprisionando três Lannister, incluindo o jovem Stafford, cuja irmã estava prometida ao primo Tywin.
  — Enviai-me o meu senhor e amor, senão estes três responderão por qualquer mal que lhe aconteça — escrevera a mulher para o Rochedo Casterly. O jovem Tywin sugerira que o pai lhe fizesse a vontade mandando
de volta o Lorde Tarbeck em três bocados. Mas o Lorde Tytos era de um tipo mais brando de leão, e a Senhora Tarbeck conquistara mais alguns anos com o seu estúpido senhor, e Stafford casara, gerara prole,
e continuara a disparatar até Cruzaboi. Mas Tywin Lannister perdurara, eterno como o Rochedo Casterly. E agora tendes um filho aleijado a somar ao anão, senhor. Como detestareis esse facto…
  A estrada levou-os a atravessar uma aldeia queimada. Devia ter passado um ano ou mais desde que o sítio fora entregue ao archote. Os casebres estavam enegrecidos e sem telhados, mas as ervas daninhas
que cresciam nos campos em volta davam pela cintura. O Pernas d’Aço fez alto para permitir que dessem água aos cavalos. Também conheço este lugar, pensou Jaime enquanto esperava junto do poço. Houvera
uma pequena estalagem no local onde apenas se erguiam agora algumas pedras de fundações e uma chaminé, e ele entrara para beber uma cerveja. Uma criada de olhos escuros trouxera-lhe queijo e maçãs, mas
o estalajadeiro recusara o seu dinheiro.
  — É uma honra ter um cavaleiro da Guarda Real debaixo do meu tecto, sor — dissera o homem. — É uma história que hei-de contar aos meus netos. — Jaime olhou para a chaminé que se projectava por entre
as ervas daninhas e perguntou a si próprio se o homem teria arranjado esses netos. Ter-lhes-á dito que um dia o Regicida bebeu da sua cerveja e comeu do seu queijo e maçãs, ou terá tido vergonha de admitir
que alimentou um homem como eu? Não que algum dia chegasse a saber; quem quer que tivesse incendiado a estalagem provavelmente matara também os netos.
  Sentiu os dedos fantasma apertar-se. Quando o Pernas d’Aço disse que talvez devessem acender uma fogueira e comer um pouco, Jaime abanou a cabeça.
  — Não gosto deste lugar. Prosseguimos.
  Ao cair da noite tinham deixado o lago para seguir um trilho sulcado através de um bosque de carvalhos e ulmeiros. O coto de Jaime latejava surdamente quando o Pernas d’Aço decidiu acampar. Qyburn trouxera
um odre de vinho de sonhos, felizmente. Enquanto Walton distribuía os turnos de vigia, Jaime estendeu-se junto à fogueira e encostou uma pele de urso enrolada a um toco de árvore para servir de almofada.
A rapariga ter-lhe-ia dito que tinha de comer antes de dormir, para manter as forças, mas ele sentia mais cansaço do que fome. Fechou os olhos e esperou sonhar com Cersei. Os sonhos febris eram todos
tão vívidos…
  Achou-se nu e sozinho, rodeado de inimigos, com uma muralha de pedra a toda a volta, deixando-lhe pouco espaço. O Rochedo, compreendeu. Sentia o seu imenso peso por cima da cabeça. Estava em casa. Estava
em casa e inteiro.
  Ergueu a mão direita e flectiu os dedos para sentir a sua força. Era tão bom como sexo. Tão bom como lutar de espada na mão. Quatro dedos e um polegar. Sonhara que estava estropiado, mas não era verdade.
O alívio entonteceu-o. A minha mão, a minha mão boa. Nada lhe faria mal, desde que estivesse inteiro.
  À sua volta encontrava-se uma dúzia de vultos altos e escuros, vestidos com togas encapuzadas que lhes escondiam os rostos. Nas mãos transportavam lanças.
  — Quem sois vós? — perguntou-lhes em tom de desafio. — Que quereis de Rochedo Casterly?
  As sombras não deram resposta, limitando-se a aguilhoá-lo com as pontas das lanças. Não teve alternativa a descer. Seguiram por uma passagem que se encurvava, com degraus estreitos esculpidos na rocha
viva, para baixo e mais para baixo. Tenho de ir para cima, disse a si próprio. Para cima, não para baixo. Porque estou a descer? Por baixo da terra esperava a sua perdição, soube-o com a certeza do sonho;
algo de escuro e terrível esperava aí, algo que o desejava. Jaime tentou parar, mas as lanças obrigaram-no a prosseguir. Se ao menos tivesse a espada, nada me poderia fazer mal.
  Os degraus terminaram abruptamente numa escuridão cheia de ecos. Jaime teve a sensação de um vasto espaço à sua frente. Parou de súbito, baloiçando na borda do nada. Uma ponta de lança espetou-se-lhe
no fundo das costas, atirando-o para o abismo. Gritou, mas a queda foi curta. Caiu sobre as mãos e joelhos, em areia mole e água pouco profunda. Havia cavernas cheias de água muito por baixo de Rochedo
Casterly, mas aquela era-lhe estranha.
  — O teu lugar. — A voz ecoou; era uma centena de vozes, um milhar, as vozes de todos os Lannister desde Lann, o Esperto, que vivera na aurora dos dias. Mas acima de tudo era a voz do seu pai, e ao lado
do Lorde Tywin encontrava-se a irmã, pálida e bela, com um archote a arder na mão. Joffrey, o filho que tinham feito juntos, também lá se encontrava, e atrás deles havia mais uma dúzia de silhuetas escuras
com cabelo dourado.
  — Irmã, porque foi que o pai nos trouxe para aqui?
  — “Nos”? Este lugar é teu, irmão. Esta escuridão é tua. — O archote dela era a única luz na caverna. O archote dela era a única luz no mundo. Virou-se para se ir embora.
  — Fica comigo — suplicou Jaime. — Não me deixes aqui sozinho. — Mas eles estavam a partir. — Não me deixeis no escuro! — Algo terrível vivia lá em baixo. — Dai-me ao menos uma espada.
  — Eu dei-te uma espada — disse o Lorde Tywin.
  Estava a seus pés. Jaime procurou às apalpadelas por baixo de água até que a mão se lhe fechou em torno do cabo. Nada me pode fazer mal desde que tenha uma espada. Ao erguer a arma, um dedo de uma chama
pálida tremeluziu na ponta e avançou ao longo do gume, parando a uma mão travessa do cabo. O fogo tomara a cor do próprio aço, por isso ardia com uma luz azul-prateada, e as sombras afastaram-se. Inclinando-se,
à escuta, Jaime descreveu um círculo, pronto para qualquer coisa que pudesse saltar das trevas. A água entrou-lhe nas botas até aos tornozelos, terrivelmente fria. Cuidado com a água, disse a si próprio.
Podem haver criaturas a viver nela, poços escondidos…
  De trás veio um grande chapão. Jaime rodopiou para o som… mas a ténua luz revelou apenas Brienne de Tarth, com as mãos presas por pesadas correntes.
  — Jurei manter-vos a salvo — disse teimosamente a rapariga. — Fiz um juramento. — Nua, ergueu as mãos para Jaime. — Sor. Por favor. Se tivésseis a bondade.
  Os elos de aço rasgaram-se como seda.
  — Uma espada — suplicou Brienne, e ali estava ela, com bainha, cinto e tudo. Afivelou-o em torno da sua grossa cintura. A luz era tão ténua que Jaime quase não a conseguia ver, embora não estivessem
afastados mais do que escassas dezenas de centímetros. A esta luz, ela podia quase ser uma beldade, pensou. A esta luz, ela podia quase ser um cavaleiro. A espada de Brienne também se incendiou, ardendo
com um azul-prateado. As trevas recuaram um pouco mais.
  — As chamas arderão enquanto viveres — ouviu ele Cersei gritar. — Quando morrerem, tu também terás de morrer.
  — Irmã! — gritou. — Fica comigo. Fica! — Não houve resposta além do som suave de passos que se afastavam.
  Brienne moveu a sua espada de um lado para o outro, observando as chamas prateadas a tremular e cintilar. Sob os seus pés, um reflexo da lâmina em chamas brilhava na superfície da água negra e lisa.
Ela era tão alta e forte como a recordava, mas pareceu a Jaime que agora tinha mais formas de mulher.
  — Eles têm um urso lá em baixo? — Brienne estava em andamento lento e cuidadoso, de espada na mão; um passo, virar e escutar. Cada passo fazia um pequeno esparrinhar. — Um leão das cavernas? Lobos gigantes?
Um urso? Dizei-me, Jaime. O que vive aqui? O que vive nas trevas?
  — A perdição. — Não é um urso, soube ele. Não é um leão. — Só a perdição.
  À fria luz azul-prateada das espadas, a grande rapariga parecia pálida e feroz.
  — Não gosto deste sítio.
  — Eu próprio não o aprecio. — As lâminas criavam pequenas ilhas de luz, mas em volta estendia-se um mar de escuridão, sem fim. — Tenho os pés molhados.
  — Podíamos regressar pelo caminho por onde nos trouxeram. Se trepásseis para os meus ombros, não teríeis dificuldade em alcançar a abertura do túnel.
  Então poderia encontrar Cersei. Sentiu-se a endurecer com aquele pensamento, e virou-se para que Brienne não reparasse.
  — Escutai. — Ela pousou uma mão no seu ombro e ele estremeceu com o súbito toque. Ela está quente. — Vem aí alguma coisa. — Brienne ergueu a espada para apontar para a esquerda. — Ali.
  Jaime espreitou as sombras até que também ele conseguiu ver. Algo se movia pelas trevas, mas não conseguia distinguir o que seria…
  — Um homem a cavalo. Não, dois. Dois cavaleiros, lado a lado.
  — Aqui, por baixo do Rochedo? — Não fazia sentido. E no entanto ali vinham dois cavaleiros, montados em cavalos de cor clara, tanto os homens como as montadas revestidos de armaduras. Os cavalos de
batalha emergiram do negrume a passo lento. Eles não fizeram nenhum som, apercebeu-se Jaime. Nenhum esparrinhar, nenhum tinir de malha ou ruído de casco. Recordou Eddard Stark, a percorrer a cavalo todo
o comprimento da sala do trono de Aerys, envolto em silêncio. Só os seus olhos tinham falado; uns olhos de senhor, frios, cinzentos e cheios de julgamento.
  — És tu, Stark? — gritou Jaime. — Vem daí. Nunca te temi vivo, não te temo morto.
  Brienne tocou-lhe o braço.
  — Há mais.
  Ele também os viu. Parecia-lhe que estavam todos couraçados de neve, e farrapos de névoa fluíam em torvelinhos dos seus ombros. As viseiras dos seus elmos estavam fechadas, mas Jaime Lannister não precisava
de contemplar os seus rostos para os reconhecer.
  Cinco tinham sido seus irmãos. Oswell Whent e Jon Darry. Lewyn Martell, um príncipe de Dorne. O Touro Branco, Gerold Hightower. Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã. E junto a eles, coroado em névoa
e desgosto com o seu longo cabelo a fluir-lhe pelas costas, seguia Rhaegar Targaryen, Príncipe de Pedra do Dragão e legítimo herdeiro do Trono de Ferro.
  — Não me assustais. — Gritou, girando, quando eles se dividiram e o rodearam por dois lados. Não sabia para que lado se virar. — Lutarei convosco um por um ou todos ao mesmo tempo. Mas com quem há-de
a rapariga duelar? Ela zanga-se quando é posta de lado.
  — Prestei o juramento de o manter em segurança — disse ela à sombra de Rhaegar. — Prestei um juramento sagrado.
  — Todos nós prestámos juramentos — disse Sor Arthur Dayne, num tom tristíssimo.
  As sombras desmontaram dos seus fantasmagóricos cavalos. Quando puxaram pelas espadas, não fizeram um som.
  — Ele ia queimar a cidade — disse Jaime. — Para não deixar a Robert nada além de cinzas.
  — Ele era o vosso rei — disse Darry.
  — Jurastes mantê-lo a salvo — disse Whent.
  — E às crianças, a elas também — disse o Príncipe Lewyn.
  O Príncipe Rhaegar ardia com uma luz fria, ora branca, ora vermelha, ora escura.
  — Eu deixei a minha esposa e filhos nas vossas mãos.
  — Nunca pensei que ele lhes fizesse mal. — A espada de Jaime emitia agora menos luz. — Eu estava com o rei…
  — A matar o rei — disse Sor Arthur.
  — A cortar-lhe a garganta — disse o Príncipe Lewyn.
  — O rei por quem tínheis jurado morrer — disse o Touro Branco.
  Os fogos que corriam ao longo da lâmina estavam a apagar-se, e Jaime lembrou-se daquilo que Cersei dissera. Não. O terror cerrou-lhe uma mão em volta da garganta. Então a sua espada escureceu, e só
a de Brienne continuava a arder enquanto os fantasmas o atacaram.
  — Não — disse —, não, não, não. Nãããããããããão!
  Com o coração aos saltos, acordou de chofre e deu por si no meio da escuridão estrelada, no interior de um grupo de árvores. Sentia o sabor de bílis na boca, e tremia, encharcado em suor, ao mesmo tempo
quente e frio. Quando olhou para a mão da espada, viu que o punho terminava em couro e linho, bem apertado em volta de um coto feio. Sentiu que súbitas lágrimas lhe subiam aos olhos. Senti, senti a força
nos meus dedos e o couro áspero do cabo da espada. A minha mão…
  — Senhor. — Qyburn ajoelhou ao seu lado, com a cara paternal toda enrugada de preocupação. — Que se passa? Ouvi-vos gritar.
  O Walton Pernas d’Aço estava em pé por cima deles, alto e severo.
  — Que se passa? Porque foi que gritastes?
  — Um sonho… só um sonho. — Jaime fitou o acampamento que o rodeava, momentaneamente desorientado. — Estava no escuro, mas tinha a minha mão de volta. — Olhou para o coto e sentiu-se de novo doente.
Não há um lugar como aquele por baixo do Rochedo, pensou. Sentia o estômago dorido e vazio, e a cabeça latejava no local onde a encostara ao toco de árvore.
  Qyburn pôs-lhe a mão na testa.
  — Ainda tendes um pouco de febre.
  — Um sonho febril. — Jaime estendeu a mão para cima. — Ajudai-me. — O Pernas d’Aço pegou-lhe na mão boa e pô-lo em pé.
  — Outra taça de vinho de sonhos? — perguntou Qyburn.
  — Não. Já sonhei quanto baste por esta noite. — Perguntou a si próprio quanto tempo faltaria até à alvorada. De algum modo sabia que se fechasse os olhos, voltaria àquele lugar escuro e húmido.
  — Então leite da papoila? E alguma coisa para a febre? Ainda estais fraco, senhor. Tendes de dormir. De descansar.
  Isso é a última coisa que tenciono fazer. O luar cintilava, pálido, no toco de árvore sobre o qual Jaime descansara a cabeça. O musgo cobria-o de tal forma que antes não notara, mas via agora que a
madeira era branca. Fê-lo pensar em Winterfell, e na árvore-coração de Ned Stark. Não era ele, pensou. Nunca foi ele. Mas o toco estava morto, e o Stark também, bem como todos os outros, o Príncipe Rhaegar,
Sor Arthur e as crianças. E Aerys. Aerys é o mais morto de todos.
  — Acreditais em fantasmas, Meistre? — perguntou a Qyburn.
  A cara do homem adoptou uma expressão estranha.
  — Uma vez, na Cidadela, entrei numa sala vazia e vi uma cadeira vazia. E no entanto sabia que uma mulher tinha aí estado só um momento antes. A almofada estava comprimida onde ela se sentara, o tecido
ainda estava quente e o seu cheiro permanecia no ar. Se deixamos os nossos cheiros atrás de nós quando saímos de uma sala, decerto que parte das nossas almas deve permanecer quando deixamos esta vida?
— Qyburn estendeu as mãos. — Mas os arquimeistres não gostavam da minha forma de pensar. Bem, Marwyn gostava, mas era o único.
  Jaime passou os dedos pelo cabelo.
  — Walton — disse —, sela os cavalos. Quero voltar.
  — Voltar? — O Pernas d’Aço olhou-o com uma expressão de dúvida.
  Ele julga que enlouqueci. E talvez tenha enlouquecido.
  — Deixei uma coisa em Harrenhal.
  — É o Lorde Vargo quem detém agora o castelo. Ele e os seus Saltimbancos Sangrentos.
  — Tens o dobro dos homens que ele tem.
  — Se não vos entregar ao vosso pai conforme ordenado, o Lorde Bolton arranca-me a pele. Continuamos para Porto Real.
  Em tempos, Jaime poderia ter replicado com um sorriso e uma ameaça, mas aleijados manetas não inspiram muito medo. Perguntou a si próprio o que o irmão faria. Tyrion encontraria uma saída.
  — Os Lannister mentem, Pernas d’Aço. O Lorde Bolton não te disse isso?
  O homem franziu o sobrolho, desconfiado.
  — E se tivesse dito?
  — Se não me levares de volta a Harrenhal, a canção que vou cantar ao meu pai poderá não ser aquela que o Senhor do Forte do Pavor gostaria de ouvir. Posso até dizer que foi Bolton quem ordenou que a
minha mão fosse cortada, e o Walton Pernas d’Aço quem manejou a lâmina.
  Walton olhou-o de boca aberta.
  — Isso não é verdade.
  — Pois não, mas o meu pai acreditará em quem? — Jaime obrigou-se a sorrir, da maneira como costumava sorrir quando nada no mundo o podia assustar. — Seria tão mais fácil se voltássemos simplesmente
para trás. Estaríamos bem depressa de novo a caminho, e eu cantaria uma canção tão simpática em Porto Real que nem acreditarias nos teus ouvidos. Ficarias com a rapariga, e uma bela e gorda bolsa de ouro
como agradecimento.
  — Ouro? — Walton gostou bastante dessa ideia. — Quanto ouro?
  É meu.
  — Ora, quanto queres?
  E quando o valor foi acordado, já estavam a meio caminho de Harrenhal.
  Jaime puxou muito mais pelo cavalo do que no dia anterior, e o Pernas d’Aço e os nortenhos foram obrigados a acompanhar-lhe o ritmo. Mesmo assim, passou-se o meio-dia antes de chegarem ao castelo que
se debruçava sobre o lago. Sob um céu que escurecia e ameaçava chuva, as imensas muralhas e as cinco grandes torres mostravam-se negras e sinistras. Parece tão morto. As muralhas estavam vazias, os portões
fechados e trancados. Mas bem alto, acima da barbacã, um único estandarte pendia, enrolado sobre si próprio. A cabra negra de Qohor, soube Jaime. Pôs as mãos em volta da boca para gritar.
  — Vós aí! Abri os portões, senão deito-os abaixo ao pontapé!
  Foi só quando Qyburn e o Pernas d’Aço somaram as vozes à sua que uma cabeça finalmente surgiu nas ameias lá em cima. O homem arregalou-lhe os olhos, e depois desapareceu. Pouco tempo depois, ouviram
a porta levadiça a ser içada. Os portões abriram-se, e Jaime Lannister esporeou o cavalo para atravessar a muralha, quase sem deitar um relance aos alçapões enquanto passava por baixo. Tinha-se vindo
a preocupar com a possibilidade de o bode não os deixar entrar, mas parecia que os Bravos Companheiros ainda pensavam neles como aliados. Idiotas.
  O pátio exterior encontrava-se deserto; só os longos estábulos com telhados de lousa mostravam sinais de vida, e o que interessava a Jaime naquele momento não eram cavalos. Puxou as rédeas e olhou em
volta. Ouvia ruídos vindos de algures atrás da Torre dos Fantasmas, e homens a gritar em meia dúzia de línguas. O Pernas d’Aço e Qyburn aproximaram-se e pararam junto a Jaime, um de cada lado.
  — Ide buscar o que viestes buscar, e vamo-nos de novo embora — disse Walton. — Não quero sarilhos com os Saltimbancos.
  — Diz aos teus homens para manter as mãos nos cabos das espadas, e os Saltimbancos não quererão sarilhos contigo. Dois para um, lembras-te? — A cabeça de Jaime virou-se vivamente ao ouvir um rugido
distante, ténuo mas feroz. Ecoou nas muralhas de Harrenhal, e as gargalhadas subiram como o mar. De súbito, compreendeu o que estava a acontecer. Teremos chegado tarde de mais? O seu estômago deu um solavanco,
e ele espetou com força as esporas no cavalo, atravessando a galope o pátio exterior, passando sob uma ponte de pedra em arco, rodeando a Torre dos Lamentos e cruzando o Pátio das Lâminas.
  Tinham-na na arena dos ursos.
  O Rei Harren, o Negro, quisera fazer até as lutas de ursos em estilo sumptuoso. A arena tinha dez metros de diâmetro e cinco de profundidade, era fechada por muros de pedra, possuía um chão de areia
e era rodeada por seis fileiras de bancos de mármore. Ao desmontar desajeitadamente do cavalo, Jaime viu que os Bravos Companheiros enchiam apenas um quarto dos lugares. Os mercenários estavam tão absorvidos
pelo espectáculo, lá em baixo, que só aqueles que se encontravam do outro lado da arena notaram a sua chegada.
  Brienne usava o mesmo vestido que usara para jantar com Roose Bolton e que tão mal lhe ficava. Nada de escudo, nada de placa de peito, nada de cota de malha, nem mesmo couro fervido, só cetim cor-de-rosa
e renda de Myr. O bode talvez pensasse que era mais divertida quando estava vestida de mulher. Metade do vestido pendia em farrapos, e o braço esquerdo sangrava onde o urso a arranhara.
  Pelo menos deram-lhe uma espada. A rapariga pegava-lhe com uma mão, movendo-se de lado, tentando colocar alguma distância entre si e o urso. Não resultará, a arena é pequena de mais. Ela tinha de atacar,
de pôr rapidamente fim àquilo. Bom aço era adversário à altura para qualquer urso. Mas a rapariga parecia com medo de se aproximar. Os Saltimbancos faziam chover sobre ela insultos e sugestões obscenas.
  — Isto não nos diz respeito — preveniu o Pernas d’Aço a Jaime. — O Lorde Bolton disse que a rapariga era deles para fazerem com ela o que lhes apetecesse.
  — O nome dela é Brienne. — Jaime desceu os degraus, passando por uma dúzia de mercenários surpreendidos. Vargo Hoat ocupara o camarote do senhor, na fila de baixo. — Lorde Vargo — chamou por sobre os
gritos.
  O qohorik quase cuspiu o vinho.
  — Regifida? — Tinha uma ligadura desajeitada no lado esquerdo da cara e o linho que lhe cobria a orelha estava manchado de sangue.
  — Tirai-a dali.
  — Não vof metaif nifto, Regifida, a menof que queiraif outro coto. — Brandiu uma taça de vinho. — O voffo alfe fêmea arrancou-me uma orelha à dentada. Pouco admira que o pai não queira refgatar um monftrengo
deftes.
  Um rugido fez Jaime virar-se. O urso tinha dois metros e quarenta de altura. Gregor Clegane com pelagem, pensou, embora provavelmente mais esperto. O animal não tinha o alcance da Montanha com aquela
sua monstruosa espada, porém.
  Berrando de fúria, o urso mostrou uma boca cheia de grandes dentes amarelos, e depois voltou a cair de quatro e arremeteu directamente contra Brienne. Aí está a tua oportunidade, pensou Jaime. Ataca!
Agora!
  Mas em vez disso, ela picou-o ineficazmente com a ponta da espada. O urso recuou, e avançou logo de seguida, urrando. Brienne deslizou para a esquerda e voltou a lançar uma estocada à cara do urso.
Desta vez, ele ergueu uma pata para afastar a espada com uma pancada.
  Ele está cauteloso, apercebeu-se Jaime. Já foi posto a defrontar outros homens. Sabe que espadas e lanças podem feri-lo. Mas isso não o manterá afastado dela por muito tempo.
  — Mata-o! — gritou, mas a sua voz perdeu-se no meio de todos os outros gritos. Se Brienne ouviu, não deu sinal. Moveu-se em volta da arena, mantendo as costas viradas para o muro. Perto de mais. Se
o urso a encurralar contra o muro…
  O animal virou-se desajeitadamente, demasiado longe e depressa de mais. Rápida como uma gata, Brienne mudou de direcção. Aí está a rapariga de que me lembro. Deu um salto em frente para atirar um golpe
às costas do urso. Rugindo, a fera voltou a erguer-se nas patas traseiras. Brienne afastou-se precipitadamente. Onde está o sangue? Então, de súbito, compreendeu.
  — Deste-lhe uma espada de torneio.
  O bode zurrou uma gargalhada, fazendo chover sobre Jaime vinho e cuspo.
  — Claro que fim.
  — Eu pago o maldito resgate dela. Ouro, safiras, o que quiseres. Tira-a dali.
  — Querei-la? Ide bufcá-la.
  E foi o que ele fez.
  Jaime pôs a mão boa no parapeito de mármore e saltou por cima, rolando ao atingir a areia. O urso virou-se ao ouvir o bonc, farejando, observando este novo intruso com precaução. Jaime apoiou-se num
joelho. Bem, e o que é que, com os sete infernos, eu faço agora? Encheu o punho de areia.
  — Regicida? — ouviu Brienne a dizer, estupefacta.
  — Jaime. — Desdobrou-se, atirando a areia à cara do urso. O animal atirou uma sapatada ao ar e rugiu como brasas.
  — Que estais vós a fazer aqui?
  — Uma estupidez. Põe-te atrás de mim. — Descreveu um círculo na direcção dela, colocando-se entre Brienne e o urso.
  — Ponde-vos vós atrás. Eu tenho a espada.
  — Uma espada sem ponta e sem gume. Põe-te atrás de mim! — Viu uma coisa meio enterrada na areia e apanhou-a com a mão boa. O objecto revelou ser um maxilar humano, ainda com um pouco de carne esverdeada
agarrada ao osso, repleto de larvas. Encantador, pensou, perguntando a si próprio de quem seria a cara que tinha na mão. O urso aproximava-se lentamente, e Jaime deu um sacão com o braço e atirou osso,
carne e larvas à cabeça do urso. Falhou por um bom metro. Devia cortar também a mão esquerda, de tão útil que ela me é.
  Brienne tentou precipitar-se em volta dele, mas Jaime deu-lhe um pontapé nas pernas e fê-la desequilibrar-se. A rapariga caiu na areia, agarrada à espada inútil. Jaime escarrapachou-se em cima dela,
e o urso carregou sobre ambos.
  Ouviu-se um profundo tuang, e uma haste com penas brotou de súbito de sob o olho esquerdo da fera. Sangue e saliva escorreram-lhe da boca aberta, e outro dardo acertou-lhe na pata. O urso rugiu, empinou-se.
Voltou a ver Jaime e Brienne e voltou a arrastar-se na direcção deles. Mais bestas dispararam, rasgando pelagem e carne com os seus dardos. A tão curta distância, os besteiros dificilmente falhariam.
Os dardos atingiam o urso com a força de maças, mas o animal deu outro passo. Pobre, estúpido, corajoso bruto. Quando a fera o tentou atingir com uma sapatada, afastou-se a dançar, gritando, fazendo voar
areia. O urso virou-se para seguir o homem que o atormentava, e apanhou com mais dois dardos no dorso. Deu um último rosnido trovejante, sentou-se sobre os quartos traseiros, estendeu-se na areia manchada
de sangue, e morreu.
  Brienne pôs-se de joelhos, agarrando-se à espada, e respirando rápida e irregularmente. Os besteiros do Pernas d’Aço estavam a esticar as cordas das suas bestas e a recarregá-las enquanto os Saltimbancos
Sangrentos gritavam-lhes pragas e ameaças. Jaime viu que Rorge e o Três Dedos tinham espadas desembainhadas, e Zollo estava a desenrolar o chicote.
  — Mataftef o meu urfo! — guinchou Vargo Hoat.
  — E sirvo-te o mesmo prato se me causares sarilhos — atirou o Pernas d’Aço em resposta. — Vamos levar a rapariga.
  — O nome dela é Brienne — disse Jaime. — Brienne, a donzela de Tarth. Ainda és donzela, espero?
  A larga cara grosseira da rapariga pôs-se vermelha.
  — Sim.
  — Oh, óptimo — disse Jaime. — Só salvo donzelas. — Dirigindo-se a Hoat, disse: — Terás o teu resgate. Por nós ambos. Um Lannister paga as suas dívidas. Agora vai buscar cordas e tira-nos daqui.
  — Foda-se o resgate — rosnou Rorge. — Mata-os, Hoat. Senão hás-de acabar por desejar teres acabado com eles!
  O qohorik hesitou. Metade dos seus homens estavam bêbados, os nortenhos sóbrios como pedras, e eram duas vezes mais. Alguns dos besteiros já tinham recarregado por aquela altura.
  — Pufai-os p’ra fora — disse Hoat e depois, para Jaime: — Defidi fer mifericordiofo. Difei ao fenhor voffo pai.
  — Direi, senhor. — Não que isso te sirva para alguma coisa.
  Foi só depois de estarem a meia légua de Harrenhal e fora do alcance dos arqueiros nas muralhas que Walton Pernas d’Aço mostrou a sua ira.
  — Estais louco, Regicida? Tencionáveis morrer? Nenhum homem pode lutar com um urso de mãos vazias!
  — Uma mão vazia e um coto vazio — corrigiu Jaime. — Mas eu tinha esperança que matasses o animal antes que o animal me matasse a mim. De outra forma, o Lorde Bolton descascar-te-ia como a uma laranja,
não é verdade?
  O Pernas d’Aço amaldiçoou-o e chamou-lhe idiota de Lannister, esporeou o cavalo, e galopou ao longo da coluna.
  — Sor Jaime? — Mesmo com cetim cor-de-rosa e sujo e renda rasgada, Brienne parecia-se mais com um homem de vestido do que com uma mulher. — Sinto-me grata, mas… vós estáveis bem longe. Porque voltastes?
  Veio-lhe à mente uma dúzia de ditos de espírito, cada um mais cruel do que o anterior, mas Jaime limitou-se a encolher os ombros.
  — Sonhei contigo — disse.
 
 CATELYN
  Robb despediu-se três vezes da sua jovem rainha. Uma vez no bosque sagrado perante a árvore-coração, à vista dos deuses e dos homens. A segunda vez por baixo da porta levadiça, onde Jeyne o deixou partir
com um longo abraço e um beijo ainda mais longo. E por fim uma hora depois de atravessar o Pedregoso, quando a rapariga chegou a galope num cavalo coberto de espuma para suplicar ao seu jovem rei que
a levasse consigo.
  Catelyn viu que Robb ficou tocado por aquele gesto, mas também envergonhado. O dia estava húmido e cinzento, começara a cair uma chuva miudinha e a última coisa que queria era interromper a marcha para
ficar no meio da humidade a consolar uma jovem esposa chorosa no meio de metade do seu exército. Ele fala-lhe com gentileza, pensou ao vê-los juntos, mas por baixo existe irritação.
  Todo o tempo que o rei e a rainha passaram a conversar foi passado pelo Vento Cinzento a caminhar em redor deles, parando apenas para sacudir a chuva do pêlo e mostrar os dentes à chuva. Quando Robb
deu por fim um último beijo a Jeyne, despachou uma dúzia de homens para a levar de volta para Correrrio, e voltou a montar a cavalo, o lobo gigante correu em frente com a rapidez de uma seta disparada
de um grande arco.
  — Vejo que a Rainha Jeyne tem um coração amoroso — disse a Catelyn o Lothar Coxo Frey. — Tal como as minhas irmãs. Ora, era capaz de apostar que neste mesmo instante Roslin anda a dançar pelas Gémeas
cantarolando “Senhora Tully, Senhora Tully, Senhora Roslin Tully.” De manhã, passá-la-á a levar ao rosto tecidos do vermelho e azul de Correrrio para imaginar o aspecto que terá com o manto nupcial. —
Virou-se na sela para sorrir a Edmure. — Mas vós estais estranhamente silencioso, Lorde Tully. Pergunto a mim próprio como vós vos sentis.
  — Sinto algo bastante semelhante ao que senti no Moinho de Pedra logo antes de os cornos de guerra soarem — disse Edmure, só em parte brincando.
  Lothar soltou uma gargalhada cheia de bonomia.
  — Rezemos para que o vosso casamento termine de forma igualmente feliz, senhor.
  E que os deuses nos protejam se não terminar. Catelyn encostou os calcanhares ao cavalo, deixando o irmão e o Lothar Coxo na companhia um do outro.
  Fora ela quem insistira para que Jeyne permanecesse em Correrrio, enquanto Robb preferiria mantê-la a seu lado. O Lorde Walder podia perfeitamente interpretar a ausência da rainha no casamento como
outra desfeita, mas a sua presença seria outro tipo de insulto, sal nas feridas do velho.
  — Walder Frey tem uma língua afiada e uma longa memória — prevenira o filho. — Não duvido de que sejas suficientemente forte para aturar as reprimendas do velho como preço a pagar pela sua aliança,
mas tens em ti demasiado do teu pai para ficares simplesmente sentado enquanto ele lança insultos à cara de Jeyne.
  Robb não podia negar a sensatez daquilo. Mas ao mesmo tempo nutre ressentimento contra mim, e parte de si culpa-me pela ausência dela, embora saiba que foi um bom conselho.
  Dos seis Westerling que tinham vindo do Despenhadeiro com o filho, só um permanecia a seu lado; Sor Raynald, irmão de Jeyne, o porta-estandartes real. Robb enviara o tio de Jeyne, Rolph Spicer, para
entregar o jovem Martyn Lannister ao Dente Dourado, no próprio dia em que recebera o acordo de Lorde Tywin relativamente à troca de cativos. Fora um gesto hábil. O filho ficava aliviado dos seus receios
quanto à segurança de Martyn, Galbart Glover ficava aliviado por saber que o irmão Robett fora posto num navio em Valdocaso, Sor Rolph tinha uma tarefa importante e honrosa… e o Vento Cinzento estava
de novo ao lado do rei. Onde é o seu lugar.
  A Senhora Westerling permanecera em Correrrio com os filhos; Jeyne, a irmã mais nova Eleyna, e o jovem Rollam, escudeiro de Robb, que protestou amargamente por ser deixado para trás. E, no entanto,
também isso era sensato. Olyvar Frey fora antes escudeiro de Robb, e estaria sem dúvida presente no casamento da irmã; exibir o seu substituto à sua frente seria tão insensato como grosseiro. Quanto a
Sor Raynald, era um alegre jovem cavaleiro que jurara que nenhum insulto de Walder Frey conseguiria provocá-lo. E rezemos para que só tenhamos de lidar com insultos.
  Mas Catelyn tinha os seus temores a esse respeito. O senhor seu pai nunca voltara a confiar em Walder Frey após o Tridente, e ela tinha isso sempre em mente. A Rainha Jeyne estaria mais segura atrás
das altas e fortes muralhas de Correrrio, com o Peixe Negro a protegê-la. Robb até criara para ele um novo título, Protector das Marcas Meridionais. Se algum homem conseguiria defender o Tridente, esse
homem era Sor Brynden.
  Fosse como fosse, Catelyn teria saudades do rosto escarpado do tio, e Robb sentiria a falta dos seus conselhos. Sor Brynden desempenhara um papel em todas as vitórias que o filho conquistara. Galbart
Glover tomara o seu lugar ao comando dos batedores e da guarda-avançada; um bom homem, leal e firme, mas sem o brilhantismo do Peixe Negro.
  Atrás da grelha de batedores de Glover, a linha de marcha de Robb estendia-se por várias milhas. O Grande-Jon liderava a vanguarda. Catelyn viajava na coluna principal, rodeada por pesados cavalos de
guerra com homens revestidos de aço sobre os dorsos. Atrás, vinha o comboio da bagagem, uma procissão de carroças carregadas de comida, forragem, material para acampar, presentes de casamento e os feridos
que estavam fracos de mais para caminhar, vigiados de perto por Sor Wendel Manderly e os seus cavaleiros de Porto Branco. Manadas de ovelhas, cabras e gado vacum descarnado seguiam atrás, e depois vinha
uma pequena comitiva de seguidoras de acampamentos, de pés doridos. Ainda mais para trás avançava Robin Flint e a retaguarda. Não havia inimigos atrás deles ao longo de centenas de milhas, mas Robb não
queria correr riscos.
  Eram três mil e quinhentos; três mil e quinhentos que tinham tido o baptismo de sangue no Bosque dos Murmúrios, que tinham ruborizado as espadas na Batalha dos Acampamentos, em Cruzaboi, em Cinzamarca,
no Despenhadeiro, e ao longo dos montes ricos em ouro do Ocidente Lannister. À excepção da pequena comitiva de amigos do Lorde Edmure, os senhores do Tridente tinham ficado para trás, a fim de defender
as terras fluviais enquanto o rei recuperava o Norte. Em frente esperavam a noiva de Edmure e a batalha seguinte de Robb… e para mim dois filhos mortos, uma cama vazia, e um castelo cheio de fantasmas.
Era uma perspectiva desprovida de alegria. Brienne, onde estás? Devolve-me as minhas meninas, Brienne. Devolve-as em segurança.
  A chuva miudinha que os tinha acompanhado à partida de Correrrio transformou-se numa chuva suave e constante pelo meio-dia, e prosseguiu até bem depois do ocaso. No dia seguinte, os nortenhos não chegaram
a ver o Sol, avançando sob céus de chumbo com os capuzes erguidos a fim de manter a água afastada dos olhos. Era uma chuva pesada que transformava estradas em lama e campos em atoleiros, enchendo os rios
e desnudando as árvores das suas folhas. O bater constante das gotas tornava a conversa miúda demasiado difícil para aquilo que dela se obtinha, e por isso os homens falavam apenas quando tinham algo
a dizer, o que era bastante raro.
  — Somos mais fortes do que parecemos, senhora — disse a Senhora Maege Mormont enquanto avançavam. Catelyn começara a nutrir amizade pela Senhora Maege e pela sua filha mais velha, Dacey; descobrira
que eram mais compreensivas do que a maioria no que dizia respeito a Jaime Lannister. A filha era alta e esguia, a mãe baixa e robusta, mas vestiam-se de forma semelhante, com cota de malha e couro, com
o urso negro da Casa Mormont desenhado nos escudos e nos sobretudos. Aos olhos de Catelyn, era um vestuário bizarro para uma senhora, mas Dacey e a Senhora Maege pareciam mais confortáveis, como guerreiras
e como mulheres, do que a rapariga de Tarth alguma vez estivera.
  — Lutei ao lado do Jovem Lobo em todas as batalhas — disse alegremente Dacey Mormont. — Ainda não perdeu nenhuma.
  Não, mas perdeu tudo o mais, pensou Catelyn, mas não seria bom dizê-lo em voz alta. Aos nortenhos não faltava coragem, mas estavam longe de casa, com pouco que os sustentasse além da fé no seu jovem
rei. Essa fé tinha de ser protegida, a todo o custo. Tenho de ser mais forte, disse a si própria. Tenho de ser forte por Robb. Se desesperar, a dor consumir-me-á. Tudo dependia daquele casamento. Se Edmure
e Roslin estivessem felizes um com o outro, se o Atrasado Lorde Frey pudesse ser apaziguado e o seu poderio de novo casado com o de Robb… Mesmo assim, que hipótese teremos, encurralados entre os Lannister
e os Greyjoy? Era uma questão em que Catelyn não se atrevia a mergulhar, embora Robb em pouco mais pensasse. Ela via como ele estudava os seus mapas sempre que montavam o acampamento, em busca de um plano
que lhe pudesse reconquistar o Norte.
  O irmão Edmure tinha outras preocupações.
  — Não vos parece que todas as filhas do Lorde Walder se parecem com ele, pois não? — perguntou, ao sentar-se no seu grande pavilhão às riscas, com Catelyn e os amigos.
  — Com tantas mães diferentes, algumas das donzelas têm necessariamente de sair agradáveis à vista — disse o Sor Marq Piper — mas porque haveria o velho patife de vos dar uma das bonitas?
  — Por absolutamente nada — disse Edmure, deprimido.
  Aquilo foi mais do que Catelyn podia suportar.
  — Cersei Lannister é agradável à vista — disse, num tom penetrante. — Serias mais sensato em rezar para que Roslin seja forte e saudável, com uma boa cabeça e um coração leal. — E com aquilo, deixou-os.
  Edmure não acolheu bem aquela atitude. Na marcha do dia seguinte evitou-a por completo, preferindo a companhia de Marq Piper, Lymond Goodbrook, Patrek Mallister e dos jovens Vance. Eles só o repreendem
a brincar, disse Catelyn a si própria quando passaram por si a grande velocidade, naquela tarde, quase sem uma palavra. Sempre fui dura de mais com Edmure, e agora o desgosto aguça todas as minhas palavras.
Arrependeu-se da censura. Já havia chuva suficiente a cair do céu sem que ela fizesse mais. E seria mesmo assim tão terrível desejar uma esposa bonita? Lembrava-se do desapontamento infantil que sofrera
da primeira vez que pousara os olhos em Eddard Stark. Imaginara-o como uma versão mais nova do irmão Brandon, mas enganara-se. Ned era mais baixo e tinha uma cara mais simples, e era muito melancólico.
Falava de forma bastante cortês, mas por baixo das palavras, Catelyn sentia uma frieza que não ligava bem com Brandon, cujos júbilos tinham sido tão violentos como as iras. Mesmo quando lhe tomou a virgindade,
o amor tivera mais de dever do que de paixão. Mas fizemos Robb naquela noite, fizemos juntos um rei. E depois da guerra, em Winterfell, tive amor suficiente para qualquer mulher, depois de encontrar o
coração bom e doce que batia por baixo da cara solene de Ned. Não há motivo para que Edmure não encontre a mesma coisa, com a sua Roslin.
  Segundo a vontade dos deuses, o caminho levou-os a atravessar o Bosque dos Murmúrios, onde Robb conquistara a sua primeira grande vitória. Seguiram o leito do ribeiro serpenteante no fundo daquele vale
apertado e estreito, tal como os homens de Jaime Lannister tinham feito naquela noite fatídica. Nessa época estava mais calor, recordou Catelyn, as árvores ainda se mantinham verdes, e o ribeiro não tinha
transbordado das margens. Folhas caídas afogavam agora o curso de água e estendiam-se em emaranhados encharcados por entre as pedras e raízes, e as árvores que tinham escondido o exército de Robb haviam
trocado os seus trajos verdes por folhas de ouro baço, salpicadas de castanho e de um vermelho que lhe fazia lembrar ferrugem e sangue seco. Só os abetos e os pinheiros marciais ainda mostravam verde,
espetando-se na barriga das nuvens como grandes lanças escuras.
  Foi mais do que árvores o que morreu desde então, reflectiu. Na noite do Bosque dos Murmúrios, Ned ainda estava vivo na sua cela por baixo da Colina de Aegon, Bran e Rickon encontravam-se a salvo atrás
das muralhas de Winterfell. E Theon Greyjoy lutava ao lado de Robb, e gabava-se de como quase cruzara espadas com o Regicida. Seria bom que o tivesse feito. Se Theon tivesse morrido em vez dos filhos
do Lorde Karstark, quanto mal teria sido desfeito?
  Ao passarem pelo campo de batalha, Catelyn viu sinais da carnificina que ali tivera lugar; um elmo virado ao contrário que se enchia de chuva, uma lança estilhaçada, os ossos de um cavalo. Mamoas de
pedra tinham sido erguidas sobre alguns dos homens que ali tinham tombado, mas os assaltantes de túmulos já tinham caído sobre elas. Por entre os montes de pedra, vislumbrou tecidos brilhantemente coloridos
e bocados de metal brilhante. Uma vez viu uma cara a olhá-la, com o contorno do crânio a emergir de debaixo da carne castanha em putrefacção.
  Isso fê-la interrogar-se sobre o local onde Ned acabara por descansar. As irmãs silenciosas tinham levado os seus ossos para Norte, escoltados por Hallis Mollen e por uma pequena guarda de honra. Teria
Ned conseguido chegar a Winterfell, para ser enterrado ao lado do irmão Brandon nas criptas escuras por baixo do castelo? Ou ter-se-ia a porta fechado em Fosso Cailin antes de Hal e das irmãs conseguirem
passar?
  Três mil e quinhentos cavaleiros seguiam o seu caminho sinuoso pelo fundo do vale, através do coração do Bosque dos Murmúrios, mas Catelyn Stark raramente se sentira mais só. Cada légua que vencia levava-a
para mais longe de Correrrio, e deu por si a perguntar-se se alguma vez voltaria a ver o castelo. Ou estaria perdido para sempre, como tantas outras coisas?
  Cinco dias mais tarde, os batedores regressaram para os prevenir de que as águas da enchente tinham arrastado a ponte de madeira em Feirajusta. Galbart Glover e dois dos seus homens mais ousados tentaram
levar as montadas a passar a nado o turbulento Ramo Azul em Vaucarneiro. Dois dos cavalos tinham sido arrastados e afogados, juntamente com um dos cavaleiros; o próprio Glover conseguira agarrar-se a
um rochedo até que o puxassem para a margem.
  — O rio não corre tão alto desde a Primavera — disse Edmure. — E se esta chuva continuar a cair, ainda subirá mais.
  — Há uma ponte mais para montante, perto de Pedravelhas — recordou Catelyn, que atravessara aquelas terras com frequência com o pai. — É mais antiga e mais pequena, mas se ainda estiver em pé…
  — Desapareceu, senhora — disse Galbart Glover. — Foi levada antes mesmo da de Feirajusta.
  Robb olhou para Catelyn.
  — Há mais alguma ponte?
  — Não. E os vaus estarão intransitáveis. — Tentou vasculhar a memória. — Se não conseguirmos atravessar o Ramo Azul, teremos de o rodear, por Seterrios e pelo Atoleiro da Bruxa.
  — Pauis e más estradas, quando existem de todo — preveniu Edmure. — O avanço será lento, mas suponho que acabaremos por chegar.
  — Estou certo de que o Lorde Walder esperará — disse Robb. — Lothar enviou-lhe uma ave de Correrrio, ele sabe que vamos a caminho.
  — Sim, mas o homem é susceptível e desconfiado por natureza — disse Catelyn. — Pode tomar este atraso como um insulto deliberado.
  — Muito bem, pedir-lhe-ei perdão também pela nossa indolência. Serei um rei desolado, desculpando-me a cada duas inspirações. — Robb torceu a cara. — Espero que Bolton tenha atravessado o Tridente antes
de as chuvas começarem. A Estrada de Rei segue directamente para norte, deverá ter uma marcha fácil. Mesmo a pé, deve chegar às Gémeas antes de nós.
  — E quando tiveres juntado os teus homens aos dele e casado o meu irmão, segue-se o quê? — perguntou-lhe Catelyn.
  — Para norte. — Robb coçou o Vento Cinzento atrás de uma orelha.
  — Pelo talude? Contra Fosso Cailin?
  Ele fez-lhe um sorriso enigmático.
  — Essa é uma forma de ir — disse, e ela compreendeu pelo seu tom de voz que nada mais diria. Um rei sensato guarda coisas para si, lembrou a si própria.
  Chegaram a Pedravelhas depois de mais oito dias de chuva contínua, e acamparam sobre a colina com vista para o Ramo Azul, dentro de um forte arruinado dos antigos cavaleiros do rio. As suas fundações
resistiam entre as ervas daninhas, para mostrar onde se tinham erguido as muralhas e as fortalezas, mas o povo local tinha-se há muito apropriado da maior parte das pedras para erguer os seus celeiros,
septos e castros. No entanto, no centro daquilo que em tempos teria sido o pátio do castelo, ainda se erguia um grande sepulcro esculpido, meio escondido por ervas castanhas que chegavam à cintura, no
meio de um grupo de freixos.
  A tampa do sepulcro tinha sido esculpida para retratar o homem cujos ossos jaziam lá dentro, mas as chuvas e os ventos tinham desempenhado o seu papel. Conseguiam ver que o rei usara uma barba, mas,
fora isso, a sua cara era lisa e sem traços, com apenas vagas sugestões de uma boca, um nariz, olhos e da coroa em volta das têmporas. As suas mãos fechavam-se no cabo de um martelo de guerra em pedra
que lhe jazia sobre o peito. Em tempos, o machado de guerra teria tido gravadas runas que revelavam o nome e a história do morto, mas os séculos tinham-nas levado por completo. A própria pedra estava
rachada e a desagregar-se nos cantos, descolorida aqui e ali por nódoas brancas de líquenes em crescimento, ao passo que rosas selvagens trepavam pelos pés do rei e lhe chegavam quase ao peito.
  Foi ali que Catelyn encontrou Robb, em pé e melancólico no crepúsculo que se aprofundava, acompanhado apenas por Vento Cinzento. A chuva parara, para variar, e ele trazia a cabeça destapada.
  — Este castelo tem um nome? — perguntou em voz baixa quando Catelyn se aproximou.
  — Todo o povo lhe chamava Pedravelhas quando eu era rapariga, mas sem dúvida que teve outro nome quando ainda era uma sede de reis. — Acampara ali uma vez com o pai, a caminho de Guardamar. Petyr também
estava connosco…
  — Há uma canção — recordou Robb. — “Jenny de Pedravelhas, com as flores no cabelo”.
  — No fim somos todos só canções. Se tivermos sorte. — Naquele dia brincara a ser Jenny, chegara até a entrançar flores no cabelo. E Petyr fingira ser o seu Príncipe das Libélulas. Catelyn não podia
ter tido mais de doze anos, Petyr era apenas um rapazinho.
  Robb estudou o sepulcro.
  — De quem é esta sepultura?
  — Aqui jaz Tristifer, o Quarto do Seu Nome, Rei dos Rios e dos Montes. — O pai contara-lhe em tempos a sua história. — Governou do Tridente ao Gargalo, milhares de anos antes de Jenny e do seu príncipe,
nos dias em que os reinos dos Primeiros Homens caíam um atrás do outro perante o avanço dos ândalos. Chamavam-lhe o Martelo da Justiça. Lutou uma centena de batalhas e venceu noventa e nove, ou pelo menos
é isso que os cantores dizem, e quando ergueu este castelo, era o mais forte de Westeros. — Pousou uma mão no ombro do filho. — Morreu na sua centésima batalha, quando sete reis ândalos juntaram forças
contra si. O quinto Tristifer não se lhe comparava, e em breve o reino estava perdido, e depois o castelo, e por fim a linhagem. Com Tristifer Quinto morreu a Casa Mudd, que governara as terras fluviais
durante os mil anos anteriores à chegada dos ândalos.
  — O herdeiro falhou-lhe. — Robb fez correr uma mão sobre a pedra áspera e desgastada. — Tive esperança de deixar Jeyne à espera de bebé… tentámos com bastante frequência, mas não tenho a certeza…
  — Nem sempre acontece à primeira vez. — Embora tenha acontecido contigo. — Nem mesmo à centésima. És muito novo.
  — Novo, e um rei — disse ele. — Um rei tem de ter um herdeiro. Se morrer na minha próxima batalha, o reino não pode morrer comigo. Pela lei, Sansa é a seguinte na linha de sucessão, portanto Winterfell
e o Norte devem passar para ela. — A boca dele apertou-se. — Para ela, e para o senhor seu esposo. Tyrion Lannister. Não posso permitir que tal coisa aconteça. Não o permitirei. Esse anão não pode nunca
possuir o Norte.
  — Pois não — concordou Catelyn. — Tens de nomear outro herdeiro, até ao momento em que Jeyne te dê um filho. — Reflectiu por um momento. — O pai do teu pai não tinha irmãos, mas o pai dele tinha uma
irmã que casou com um filho mais novo do Lorde Raymar Royce, do ramo menor da Casa. Eles tiveram três filhas, tendo todas casado com fidalgos do Vale. Um Waynwood e um Corbray de certeza. A mais nova…
pode ter sido um Templeton, mas…
  — Mãe. — Havia um certo gume no tom de Robb. — Estais a esquecer-vos. O meu pai teve quatro filhos.
  Catelyn não se esquecera; Não quisera ver o facto, mas ali estava.
  — Um Snow não é um Stark.
  — Jon é mais Stark do que uns fidalgos quaisquer do Vale que nunca sequer puseram os olhos em Winterfell.
  — Jon é um irmão da Patrulha da Noite, e jurou não tomar esposa nem deter terras. Aqueles que vestem o negro servem para a vida.
  — O mesmo acontece com os cavaleiros da Guarda Real. Isso não impediu os Lannister de arrancar os mantos brancos a Sor Barristan Selmy e Sor Boros Blount quando deixaram de ter utilidade para eles.
Se eu enviar à patrulha uma centena de homens para o lugar de Jon, aposto que hão-de encontrar alguma maneira de o libertar dos seus votos.
  Ele está decidido a fazer isto. Catelyn sabia como o filho podia ser teimoso.
  — Um bastardo não pode herdar.
  — É verdade, a menos que seja legitimado por decreto real — disse Robb. — Há mais precedentes para isso do que para libertar um Irmão Ajuramentado dos seus votos.
  — Precedentes — disse ela com amargura. — Sim, Aegon IV legitimou todos os seus bastardos no leito de morte. E quanta dor, desgosto, guerra e assassínio nasceram daí? Sei que confias em Jon. Mas podes
confiar nos seus filhos? Ou nos filhos deles? Os pretendentes Blackfyre atormentaram os Targaryen ao longo de cinco gerações, até que Barristan, o Ousado, matou os últimos nos Degraus. Se legitimares
Jon, não há maneira de voltar a torná-lo bastardo. Se ele se casar e tiver filhos, os filhos que tiveres com Jeyne nunca estarão a salvo.
  — Jon nunca faria mal a um filho meu.
  — Tal como Theon Greyjoy nunca faria mal a Bran e Rickon?
  Vento Cinzento saltou para cima da cripta do Rei Tristifer, com os dentes à mostra. A cara de Robb estava fria.
  — Isso é tão cruel como injusto. Jon não é nenhum Theon.
  — Rezas para que não o seja. Já pensaste nas tuas irmãs? E os direitos delas? Concordo que não podemos permitir que o Norte passe para o Duende, mas e Arya? Por lei, ela vem a seguir a Sansa… a tua
própria irmã, legítima…
  — …e morta. Ninguém viu ou ouviu falar de Arya desde que cortaram a cabeça ao pai. Porque mentis a vós própria? Arya partiu, tal como Bran e Rickon, e matarão também Sansa assim que o anão consiga dela
um filho. Jon é o único irmão que me resta. Se eu morrer sem descendência, quero que ele me suceda como Rei no Norte. Tive a esperança de que apoiásseis a minha escolha.
  — Não posso — disse ela. — Em tudo o mais, Robb. Em tudo. Mas não nesta… nesta loucura. Não mo peças.
  — Não tenho de pedir. Sou o rei. — Robb virou-se e afastou-se, com o Vento Cinzento a saltar de cima da tumba e a pular atrás dele.
  Que fiz?, pensou Catelyn, fatigadamente, quando ficou só junto do sepulcro de pedra de Tristifer. Primeiro irrito Edmure, e agora Robb, mas tudo o que fiz foi dizer a verdade. Serão os homens tão frágeis
que não consigam suportar ouvi-la? Podia ter chorado nesse momento, se o céu não estivesse a fazê-lo por ela. Tudo o que pôde fazer foi regressar à tenda e sentar-se aí em silêncio.
  Nos dias que se seguiram, Robb esteve por todo o lado; a cavalgar à cabeça da vanguarda com o Grande-Jon, a bater terreno com Vento Cinzento, correndo para trás para se juntar a Robin Flint e à retaguarda.
Os homens diziam com orgulho que o Jovem Lobo era o primeiro a levantar-se todas as madrugadas e o último a adormecer à noite, mas Catelyn perguntava a si própria se ele dormia de todo. Está a tornar-se
tão magro e esfomeado como o seu lobo selvagem.
  — Senhora — disse-lhe Maege Mormont uma manhã enquanto atravessavam uma chuva constante — pareceis tão triste. Há algo de errado?
  O senhor meu esposo está morto e o meu pai também. Dois dos meus filhos foram assassinados, a minha filha foi dada a um anão sem fé para lhe dar à luz filhos nojentos, a minha outra filha anda desaparecida
e é provável que esteja morta, e o meu último filho e o meu único irmão estão ambos zangados comigo. O que é que pode haver de errado? No entanto aquilo era mais verdade do que a Senhora Maege quereria
ouvir.
  — Isto é uma chuva maligna — disse, em vez da verdade. — Sofremos muito, e há mais perigos e desgostos adiante. Precisamos de enfrentá-los com ousadia, com cornos a soar e estandartes a adejar cheios
de bravura. Mas esta chuva abate-nos. Os estandartes pendem, encharcados, e os homens aconchegam-se debaixo dos seus mantos e quase não conversam uns com os outros. Só uma chuva maligna nos enregelaria
os corações quando mais precisamos que eles ardam bem quentes.
  Dacey Mormont olhou para o céu.
  — Gosto mais de ter água a chover sobre mim do que setas.
  Catelyn sorriu a contragosto.
  — Temo que sejais mais brava do que eu. Todas as mulheres da Ilha dos Ursos são assim guerreiras?
  — Ursas, sim — disse a Senhora Maege. — Temos necessitado de o ser. Nos dias de antanho, os homens de ferro faziam incursões com os seus dracares, ou se não eram eles, eram os selvagens vindos da Costa
Gelada. Os homens o mais provável era estarem longe, na pesca. As esposas que eles deixavam para trás tinham de se defender e aos filhos para não serem levadas.
  — Há uma imagem esculpida no nosso portão — disse Dacey. — Uma mulher vestida com uma pele de urso, com um bebé sobre um braço, a mamar. Na outra mão tem um machado de batalha. Não é uma senhora como
deve ser, essa, mas sempre gostei dela.
  — Uma vez, o meu sobrinho Jorah trouxe para casa uma senhora como deve ser — disse a Senhora Maege. — Conquistou-a num torneio. Como ela odiava aquela imagem.
  — Pois, e tudo o resto também — disse Dacey. — Tinha um cabelo que era como fio de ouro, aquela Lynesse. A pele era como creme. Mas as suas mãos suaves não tinham sido feitas para machados.
  — Nem as tetas para dar de mamar — disse a mãe, sem rodeios.
  Catelyn sabia de quem falavam; Jorah Mormont trouxera a sua segunda esposa a Winterfell para festas, e uma vez tinham ficado durante uma quinzena. Lembrava-se de como a Senhora Lynesse era jovem, bela
e infeliz. Uma noite, após várias taças de vinho, confessara a Catelyn que o Norte não era lugar para uma Hightower de Vilavelha.
  — Houve uma Tully de Correrrio que sentiu o mesmo em tempos — respondera-lhe com gentileza, tentando consolá-la — mas, com o tempo, encontrou aqui muitas coisas que podia amar.
  Tudo agora perdido, reflectiu. Winterfell e Ned, Bran e Rickon, Sansa, Arya, tudo perdido. Só resta Robb. Teria havido nela demasiado de Lynesse Hightower, no fim de contas, e pouco dos Stark? Gostaria
de ter sabido como manejar um machado, talvez tivesse sido capaz de os proteger melhor.
  Os dias seguiram-se aos dias, e a chuva continuava a cair. Cavalgaram ao longo de toda a extensão do Ramo Azul, passando por Seterrios onde o rio se desdobrava numa confusão de ribeiros e riachos, e
depois atravessando o Atoleiro da Bruxa, onde lagoas de um verde reluzente esperavam para engolir os incautos e o terreno mole sugava os cascos dos cavalos como um bebé faminto ao peito da mãe. O avanço
era mais do que lento. Metade das carroças tiveram de ser abandonadas ao lodaçal, e as suas cargas distribuídas por mulas e cavalos de tracção.
  O Lorde Jason Mallister apanhou-os nos pauis do Atoleiro da Bruxa. Restava ainda mais de uma hora de luz do dia quando ele se aproximou com a sua coluna, mas Robb fez alto de imediato, e Sor Raynald
Westerling veio escoltar Catelyn à tenda do rei. Encontrou o filho sentado ao lado de um braseiro, com um mapa sobre as pernas. Vento Cinzento dormia a seus pés. O Grande-Jon acompanhava-o, bem como Galbart
Glover, Maege Mormont, Edmure, e um homem que Catelyn não reconheceu, um homem carnudo e a perder o cabelo, de aspecto servil. Este não é fidalgo nenhum, compreendeu no momento em que pousou os olhos
no estranho. Nem sequer é um guerreiro.
  Jason Mallister ergueu-se para oferecer a Catelyn a cadeira. No cabelo, tinha quase tanto branco como castanho, mas o Senhor de Guardamar ainda era um homem bem-parecido; alto e esguio, com uma cara
bem cinzelada e escanhoada, malares salientes e uns ferozes olhos azuis-acinzentados.
  — Senhora Stark, é sempre um prazer. Trago boas novas, espero.
  — Temos grande falta de um pouco de boas novas, senhor. — Sentou-se, ouvindo a chuva a tamborilar ruidosamente na tela por cima da sua cabeça.
  Robb esperou que Sor Raynald fechasse a aba da tenda.
  — Os deuses ouviram as nossas preces, senhores. O Lorde Jason trouxe-nos o capitão do Myraham, um navio mercante de Vilavelha. Capitão, contai-lhes o que me haveis dito.
  — Sim, Vossa Graça. — O homem lambeu nervosamente os lábios. — O último porto a que aportei antes de Guardamar foi Fidalporto, em Pyke. Os homens de ferro não me deixaram sair daí durante mais de meio
ano, ah pois não. Ordens do Rei Balon. Só que, bom, p’ra despachar uma história comprida, ele ‘tá morto.
  — Balon Greyjoy? — O coração de Catelyn falhou uma batida. — Estais a dizer-nos que Balon Greyjoy está morto?
  O pequeno capitão maltrapilho confirmou com a cabeça.
  — Sabeis como Pyke ‘tá construída num promontório, e parte do castelo ‘tá em rochedos e ilhas ao largo, com pontes entre elas? Pois, segundo me contaram em Fidalporto, veio um golpe de vento de oeste,
com chuva e trovões, e o velho Rei Balon ‘tava a atravessar uma das pontes quando o vento a agarrou e fez a coisa em pedaços. Deu à costa dois dias depois, todo inchado e partido. Ouvi dizer que os caranguejos
comeram-lhe os olhos.
  O Grande-Jon soltou uma gargalhada.
  — Caranguejos reais, espero eu, para jantar essa geleia real, hã?
  O capitão balançou afirmativamente a cabeça.
  — Pois, mas isso não é tudo, ah não! — Inclinou-se para a frente. — O irmão voltou.
  — Victarion? — perguntou Galbart Glover, surpreendido.
  — Euron. Chamam-lhe Olho de Corvo, um pirata tão negro como qualquer outro que tenha içado uma vela. Desapareceu há anos, mas ainda mal o Lorde Balon tinha arrefecido, aí ‘tava ele, a entrar em Fidalporto
com o seu Silêncio. Velas pretas e um casco vermelho, e tripulado por mudos. Ouvi dizer que foi a Asshai e voltou. Mas onde quer que ‘tivesse, agora ‘tá em casa, e marchou direitinho p’ra Pyke e sentou
o rabo na Cadeira de Pedra do Mar, e afogou o Lorde Botley numa barrica de água do mar quando ele protestou. Foi nessa altura que eu fugi de volta p’ró Myraham e icei a âncora, esperando conseguir ir-me
embora enquanto as coisas ‘tivessem confusas. E foi o que fiz, e aqui ‘tou.
  — Capitão — disse Robb quando o homem terminou —, tendes os meus agradecimentos, e não partireis sem uma recompensa. O Lorde Jason levar-vos-á de volta ao vosso navio quando nos despacharmos. Por obséquio,
esperai lá fora.
  — Lá isso espero, Vossa Graça. Lá isso espero.
  Assim que o homem saiu do pavilhão real, o Grande-Jon desatou a rir, mas Robb silenciou-o com um olhar.
  — Euron Greyjoy não é a ideia de ninguém para um rei, se metade daquilo que Theon disse dele for verdade. Theon é o legítimo herdeiro, a menos que esteja morto… mas Victarion comanda a Frota de Ferro.
Não posso crer que permaneça em Fosso Cailin enquanto Euron Olho de Corvo chama sua à Cadeira de Pedra do Mar. Ele tem de regressar.
  — Também há uma filha — relembrou-lhe Galbart Glover. — Aquela que tem em seu poder Bosque Profundo, e a esposa e filho de Robett.
  — Se ficar em Bosque Profundo, isso é tudo o que pode esperar manter — disse Robb. — O que é verdade para os irmãos ainda é mais verdade para ela. Terá de zarpar para casa para expulsar Euron e promover
a sua pretensão. — O filho de Catelyn virou-se para o Lorde Jason Mallister. — Tendes uma frota em Guardamar?
  — Uma frota, Vossa Graça? Meia dúzia de dracares e duas galés de guerra. O suficiente para defender as minhas costas contra corsários, mas não posso ter esperança de enfrentar a Frota de Ferro em batalha.
  — Nem vo-lo pediria. Os homens de ferro irão rumar a Pyke, espero. Theon disse-me como a sua gente pensa. Cada capitão é um rei no seu convés. Todos quererão ter voz na sucessão. Senhor, preciso que
dois dos vossos dracares contornem o Cabo das Águias e subam o Gargalo até à Atalaia da Água Cinzenta.
  O Lorde Jason hesitou.
  — A floresta húmida é drenada por uma dúzia de cursos de água, todos eles pouco profundos, sedimentosos e por mapear. Nem lhes chamaria rios. Os canais andam sempre a derivar e a alterar-se. Há um sem-fim
de bancos de areia, troncos caídos e emaranhados de árvores em putrefacção. E a Atalaia da Água Cinzenta desloca-se. Como irão os meus navios encontrá-la?
  — Subi o rio exibindo o meu estandarte. Os cranogmanos encontrar-vos-ão a vós. Quero dois navios para duplicar as hipóteses de a minha mensagem chegar a Howland Reed. A Senhora Maege irá num deles,
Galbart no segundo. — Virou-se para os dois que indicara. — Levareis cartas para os meus senhores que permanecem no Norte, mas todas as ordens nelas contidas serão falsas, para o caso de terdes o azar
de serdes capturados. Se isso acontecer, devereis dizer-lhes que vos dirigíeis ao norte. De volta à Ilha dos Ursos, ou na direcção da Costa Pedregosa. — Bateu com um dedo no mapa. — A chave é Fosso Cailin.
O Lorde Balon sabia-o, e foi por sabê-lo que enviou para lá o irmão Victarion com o coração endurecido das forças Greyjoy.
  — Com disputas de sucessão ou sem elas, os homens de ferro não são estúpidos ao ponto de abandonarem Fosso Cailin — disse a Senhora Maege.
  — Pois não — admitiu Robb. — Victarion deixará para trás a melhor parte da sua guarnição, suponho. No entanto, cada homem que leve consigo será um homem a menos com que teremos de lutar. E ele irá levar
muitos dos seus capitães, contai com isso. Os líderes. Precisará desses homens para falarem por ele se quiser ter esperança de se sentar na Cadeira da Pedra do Mar.
  — Não podeis querer atacar pelo talude, Vossa Graça — disse Galbart Glover. — As aproximações são demasiado estreitas. Não há maneira de desdobrar em linha. Nunca ninguém tomou o Fosso.
  — A partir do Sul — disse Robb. — Mas se pudermos atacar ao mesmo tempo a partir de norte e de oeste, e apanhar os homens de ferro pela retaguarda enquanto eles afastam aquilo que julgam ser o ataque
principal ao longo do talude, então temos uma hipótese. Depois de me unir ao Lorde Bolton e aos Frey, terei mais de doze mil homens. Tenciono dividi-los em três batalhões e fazê-los avançar pelo talude
com meio dia de intervalo. Se os Greyjoy têm olhos a Sul do Gargalo, verão todas as minhas forças a correr precipitadamente contra Fosso Cailin.
  »Roose Bolton ficará ao comando da retaguarda, enquanto eu comandarei o centro. Grande-Jon, vós liderareis a vanguarda contra Fosso Cailin. O vosso ataque deverá ser tão violento que os homens de ferro
não tenham tempo para se interrogar sobre se alguém estará a aproximar-se deles à socapa, a partir do norte.
  O Grande-Jon soltou um risinho.
  — É melhor que os vossos homens à socapa cheguem depressa, senão os meus homens assaltam aquelas muralhas e conquistam Fosso Cailin antes que mostreis a cara. Dar-vos-ei o castelo de presente quando
chegardes do passeio.
  — Esse é um presente que ficarei feliz por aceitar — disse Robb.
  Edmure estava a franzir o sobrolho.
  — Falais de atacar os homens de ferro pela retaguarda, senhor, mas como planeais passar para norte deles?
  — Há caminhos através do Gargalo que não se encontram em nenhum mapa, tio. Caminhos que só os cranogmanos conhecem… estreitos trilhos entre os pauis e estradas aquáticas através dos juncos que só barcos
podem seguir. — Virou-se para os dois mensageiros. — Dizei a Howland Reed que deve enviar-me guias, dois dias depois de eu começar a subir o talude. Que os envie para o batalhão central, onde flutua o
meu estandarte. Três hostes partirão das Gémeas, mas só duas chegarão a Fosso Cailin. O meu batalhão dissolver-se-á no Gargalo, para voltar a emergir no Febre. Se formos rápidos depois do casamento do
meu tio, poderemos estar todos em posição por alturas do fim do ano. Cairemos sobre o Fosso de três lados no primeiro dia do novo século, no momento em que os homens de ferro acordam com martelos a bater
nas cabeças do hidromel que hão-de emborcar na noite anterior.
  — Gosto deste plano — disse o Grande-Jon. — Gosto bastante dele.
  Galbart Glover esfregou a boca.
  — Há riscos. Se os cranogmanos vos falharem…
  — Não ficaremos pior do que antes. Mas eles não falharão. O meu pai conhecia o valor de Howland Reed. — Robb enrolou o mapa, e só então olhou para Catelyn. — Mãe.
  Ficou tensa.
  — Tendes algum papel nisto para mim?
  — O vosso papel é ficar a salvo. A nossa viagem através do Gargalo será perigosa, e nada nos espera no Norte a não ser batalhas. Mas o Lorde Mallister teve a bondade de se oferecer para vos manter em
segurança em Guardamar até a guerra acabar. Sei que lá estareis confortável.
  Será esta a minha punição por me opor a ele no assunto de Jon Snow? Ou por ser uma mulher, e, pior, uma mãe? Precisou de um momento para se aperceber de que todos a observavam. Eles já sabiam, compreendeu.
Catelyn não se devia ter sentido surpreendida. Não conquistara amigos ao libertar o Regicida, e mais de uma vez ouvira o Grande-Jon dizer que um campo de batalha não era lugar para mulheres.
  A fúria deve ter relampejado no seu rosto, porque Galbart Glover interveio antes que dissesse uma palavra.
  — Senhora, Sua Graça é sensato. É melhor que não venhais connosco.
  — Guardamar será iluminada pela vossa presença, Senhora Catelyn — disse o Lorde Jason Mallister.
  — Quereis fazer de mim uma prisioneira — disse ela.
  — Uma hóspede de honra — insistiu o Lorde Jason.
  Catelyn virou-se para o filho.
  — Não pretendo ofender o Lorde Jason — disse, rigidamente — mas se não puder prosseguir convosco, preferia regressar a Correrrio.
  — Deixei a minha esposa em Correrrio. Quero a minha mãe noutro sítio. Se guardardes todos os vossos tesouros numa bolsa, só estareis a tornar a vida mais fácil para aqueles que vos querem assaltar.
Após o casamento, ireis para Guardamar, e isto é a minha ordem régia. — Robb levantou-se, e com igual rapidez o seu destino ficou decidido. Pegou numa folha de pergaminho. — Mais uma coisa. O Lorde Balon
deixou o caos atrás de si, esperamos nós. Eu não farei o mesmo. Mas ainda não tenho um filho, os meus irmãos Bran e Rickon estão mortos, e a minha irmã encontra-se casada com um Lannister. Reflecti longa
e duramente sobre quem poderá seguir-se a mim. Ordeno-vos agora, como meus senhores legítimos e leais, que aponhais os vossos selos a este documento como testemunhas da minha decisão.
  Deveras um rei, pensou Catelyn, derrotada. Só podia esperar que a armadilha que planeara para Fosso Cailin funcionasse tão bem como aquela em que acabara de prendê-la.
 
 SAMWELL
  Brancarbor, pensou Sam. Por favor, que isto seja Brancarbor. Lembrava-se de Brancarbor. Brancarbor ficava nos mapas que desenhara, a caminho para norte. Se aquela aldeia fosse Brancarbor, sabia onde
se encontravam. Por favor, tem de ser. Desejava-o tanto que se esqueceu dos pés por um bocadinho, esqueceu-se das dores nas barrigas das pernas e nos rins e dos dedos rígidos e gelados que quase não sentia.
Até se esqueceu do Lorde Mormont e de Craster e das criaturas e dos Outros. Brancarbor, rezou Sam, a qualquer deus que pudesse estar à escuta.
  Mas todas as aldeias selvagens se pareciam muito umas com as outras. Um enorme represeiro crescia no centro daquela… mas uma árvore branca não queria necessariamente dizer Brancarbor. O represeiro em
Brancarbor não era maior do que aquele? Talvez estivesse a lembrar-se mal. A cara esculpida no tronco branco como osso era longa e triste; lágrimas vermelhas de seiva seca derramavam-se dos seus olhos.
Era esse o seu aspecto quando viemos para norte? Sam não se conseguia lembrar.
  Em volta da árvore erguia-se uma mão-cheia de cabanas de divisão única com telhados de turfa, um edifício comprido feito de troncos e coberto de musgo, um poço de pedra, um curral de ovelhas… mas sem
ovelhas, e sem pessoas. Os selvagens tinham partido para se juntarem a Mance Rayder nos Colmilhos de Gelo, levando tudo o que possuíam excepto as suas casas. Sam sentia-se grato por isso. A noite estava
a chegar, e seria bom dormir sob um tecto, para variar. Estava tão cansado. Parecia-lhe ter passado metade da vida a caminhar. As suas botas estavam a desagregar-se, e todas as bolhas que tivera nos pés
tinham rebentado e transformado em calos, mas agora tinha bolhas novas debaixo dos calos e os dedos dos pés estavam a ficar queimados pelo frio.
  Mas era caminhar ou morrer, e Sam sabia-o. Gilly ainda estava fraca do parto e além disso transportava o bebé; precisava mais do cavalo do que ele. O segundo cavalo morrera três dias depois de partirem
da Fortaleza de Craster. Era um milagre que tivesse durado tanto, pobre animal meio esfaimado. O peso de Sam tinha provavelmente acabado com ele. Podiam ter tentado montar ambos no mesmo cavalo, mas Sam
temia que a mesma coisa pudesse voltar a acontecer. É melhor que eu caminhe.
  Sam deixou Gilly no edifício comprido a fazer uma fogueira, enquanto ele enfiava a cabeça nas cabanas. Ela era melhor a fazer fogueiras; ele nunca parecia ser capaz de incendiar as acendalhas, e da
última vez que tentara fazer saltar uma faísca de pederneira e aço, conseguira cortar-se na faca. Gilly ligara-lhe o golpe, mas tinha a mão rígida e dorida, ainda mais desajeitada do que fora antes. Sabia
que devia lavar o ferimento e mudar a ligadura, mas tinha medo de olhar para ele. Além disso, estava tanto frio que detestava descalçar as luvas.
  Sam não sabia o que esperava encontrar nas casas vazias. Os selvagens talvez tivessem deixado para trás alguma comida. Tinha de ir ver. Jon passara uma busca às choupanas em Brancarbor, a caminho do
Norte. Dentro de uma das cabanas, Sam ouviu uma restolhada de ratazanas vinda de um canto escuro, mas fora isso nada havia em nenhuma delas além de poalha velha, cheiros antigos, e algumas cinzas sob
os buracos para o fumo.
  Virou-se para o represeiro e estudou por um momento a cara nele esculpida. Não é a cara que vimos, admitiu para si próprio. A árvore não tem nem metade do tamanho daquela de Brancarbor. Os olhos vermelhos
choravam sangue, e também não se lembrava disso. Desajeitadamente, Sam afundou-se nos joelhos.
  — Deuses antigos, escutai as minhas preces. Os Sete eram os deuses do meu pai mas eu proferi as palavras perante vós quando me juntei à Patrulha. Ajudai-nos agora. Temo que possamos estar perdidos.
Também temos fome, e tanto frio. Não sei em que deuses acredito agora, mas… por favor, se estiverdes aí, ajudai-nos. Gilly tem um filhinho. — Aquilo foi tudo em que conseguiu pensar para dizer. O ocaso
aprofundava-se, as folhas do represeiro restolhavam suavemente, ondulando como mil mãos vermelhas de sangue. Se os deuses de Jon o tinham ouvido ou não, não saberia dizer.
  Quando regressou ao salão, Gilly tinha o fogo a arder. Estava sentada junto a ele, com as peles abertas e o bebé ao peito. Tem tanta fome como nós, pensou Sam. A velha dera-lhes à socapa alguma da comida
de Craster, mas já tinham comido a maior parte. Sam fora incapaz como caçador até em Monte Chifre, onde a caça era abundante e tinha cães de caça e caçadores para o ajudar; ali, naquela floresta vazia
sem fim, as hipóteses de apanhar alguma coisa eram remotas. As suas tentativas de pescar em lagos e ribeiros meio congelados também tinham resultado em tristes falhanços.
  — Quanto tempo mais, Sam? — perguntou Gilly. — Ainda é longe?
  — Não muito. Não tanto como era. — Sam encolheu-se para fora das alças da mochila, deixou-se cair desajeitadamente no chão e tentou cruzar as pernas. Tinha uma dor tão abominável nas costas devido à
caminhada que teria gostado de se encostar a um dos pilares esculpidos de madeira que suportavam o telhado, mas a fogueira estava no centro da sala sob o buraco para o fumo e ansiava ainda mais por calor
do que por conforto. — Mais alguns dias e devemos chegar lá.
  Sam tinha os seus mapas, mas se aquilo não era Brancarbor, então os mapas não lhe iam servir de muito. Fomos demasiado para leste para rodear aquele lago, afligiu-se, ou talvez demasiado para oeste
quando tentei voltar para trás. Começava a odiar lagos e rios. Ali nunca havia botes ou pontes, o que implicava fazer a pé o percurso inteiro em volta dos lagos e procurar locais onde fosse possível passar
os rios a vau. Era mais fácil seguir um trilho de caça do que lutar por abrir caminho através da vegetação rasteira, era mais fácil rodear uma serrania do que subi-la. Se Bannen ou Dywen estivessem connosco,
estaríamos em Castelo Negro por esta altura, aquecendo os pés na sala comum. Mas Bannen estava morto, e Dywen fora-se embora com Grenn, Edd Doloroso e os outros.
  A Muralha tem trezentas milhas de comprimento e duzentos metros de altura, lembrou Sam a si próprio. Se continuassem a seguir para Sul, tinham de a encontrar, mais tarde ou mais cedo. E ele estava certo
de que se dirigiam para Sul. De dia orientava-se pelo Sol, e nas noites limpas podiam seguir a cauda do Dragão de Gelo, se bem que não tivessem viajado muito de noite desde que o segundo cavalo morrera.
Até quando a Lua estava cheia, a escuridão era demasiada debaixo das árvores, e teria sido muito fácil que Sam ou o último garrano partissem uma perna. Temos de estar bem para Sul por esta altura, temos
mesmo.
  Aquilo de que não tinha grande certeza era quanto poderiam ter derivado para leste ou oeste. Sim, chegariam à Muralha… dentro de um dia ou de uma quinzena, decerto não poderia estar mais longe do que
isso, decerto que não… mas onde? Aquilo que tinham de encontrar era o portão em Castelo Negro; a única passagem através da Muralha ao longo de uma centena de léguas.
  — A Muralha é tão grande como Craster dizia? — perguntou Gilly.
  — Maior. — Sam tentou parecer alegre. — É tão grande que nem sequer se conseguem ver os castelos que estão escondidos por detrás. A Muralha é toda feita de gelo, mas os castelos são de pedra e madeira.
Há torres altas e caves fundas e um salão enorme com um grande fogo a arder na lareira, de noite e de dia. Faz tanto calor lá dentro, Gilly, que nem vais acreditar.
  — Podia ficar junto do fogo? Eu e o rapaz? Não por muito tempo, só até ficarmos bem quentinhos?
  — Poderás ficar junto do fogo todo o tempo que quiseres. Vais ter também o que comer e beber. Vinho aquecido com açúcar, canela e outras coisas e uma tigela de veado guisado com cebolas, e o pão do
Hobb, acabado de sair do forno, tão quente que te queimará os dedos. — Sam descalçou uma luva para agitar os seus perto das chamas, e rapidamente se arrependeu. Tinham estado adormecidos devido ao frio,
mas quando as sensações regressaram, doeram-lhe tanto que quase gritou. — Às vezes um dos irmãos canta — disse, para afastar a mente da dor. — Daeron era quem cantava melhor, mas mandaram-no para Atalaialeste.
Mas ainda temos o Halder. E o Sapo. O nome verdadeiro dele é Todder, mas parece-se com um sapo, e chamamos-lhe assim. Ele gosta de cantar, mas tem uma voz horrível.
  — Tu cantas? — Gilly mudou a posição das suas peles, e passou o bebé de um seio para o outro.
  Sam corou.
  — Eu… eu conheço algumas canções. Quando era pequeno, gostava de cantar. E também dançava, mas o senhor meu pai nunca gostou que o fizesse. Ele dizia que se eu queria fazer cabriolas, devia fazê-las
no pátio com uma espada na mão.
  — Podes cantar uma canção do Sul? Para o bebé?
  — Se quiseres. — Sam pensou por um momento. — Há uma canção que o nosso septão costumava cantar para mim e para as minhas irmãs, quando éramos pequenos e era tempo de irmos para a cama. Chama-se “A
Canção dos Sete”. — Limpou a garganta e cantou em voz baixa:
  A face do Pai é severa e forte,
  entre o bem e o mal determina um corte.
  Pesa a vida, do nascimento à morte,
  e adora os seus filhinhos.
  A Mãe concede a dádiva da vida,
  p’rás esposas é apoio e guarida.
  Um sorriso e p’ra tudo há saída,
  e ela ama os seus filhinhos.
  O Guerreiro enfrenta o inimigo,
  e é sempre para todos um abrigo.
  Com espada e lança e com arco e espigo,
  protege os seus filhinhos.
  A Velha é tão sabedora e antiga,
  que de todos o destino lobriga.
  Uma candeia de ouro ergue e liga,
  orienta os seus filhinhos.
  O Ferreiro trabalha noite e dia,
  p’ra devolver ao mundo a harmonia.
  Com martelo, arado, fogo e mestria,
  constrói para os filhinhos.
  A Donzela anda p’lo céu a dançar,
  vive quando um amante suspirar.
  Sorri e as aves aprendem a voar,
  e dá sonhos aos filhinhos.
  Os Sete Deuses que a todos criaram,
  sempre ouviram aqueles que os chamaram.
  Podeis adormecer, não caireis,
  eles vigiam-vos, filhinhos.
  Fechai só os olhos, não caireis,
  eles vigiam-vos, filhinhos.
  Sam lembrou-se da última vez que cantara a canção com a mãe, para embalar o bebé Dickon. O pai ouvira-lhes as vozes e arremetera pelo quarto adentro, furioso.
  — Não quero voltar a ver isto — dissera o Lorde Randyll à mulher num tom duro. — Estragastes um rapaz com essas canções moles de septão, quereis fazer o mesmo a este bebé? — Depois olhara para Sam e
dissera: — Vai cantar com as tuas irmãs, se tens mesmo de cantar. Não te quero perto do meu filho.
  O bebé de Gilly adormecera. Era uma coisinha tão minúscula e estava tão quieto que Sam temeu por ele. Nem sequer tinha nome. Interrogara Gilly acerca disso, mas ela dissera que dava azar dar nome a
uma criança antes de ela fazer dois anos. Eram muitas as que morriam.
  Voltou a aconchegar o mamilo dentro das peles.
  — Isso foi bonito, Sam. Cantas bem.
  — Devias ouvir o Dareon. Tem uma voz doce como hidromel.
  — Bebemos o hidromel mais doce que já provei no dia em que Craster fez de mim uma esposa. Nessa altura era Verão, e não estava tanto frio. — Gilly deitou-lhe um olhar de dúvida. — Só cantaste sobre
seis deuses? O Craster sempre nos disse que vós, no Sul, tínheis sete.
  — Sete — concordou ele — mas ninguém canta sobre o Estranho. — O rosto do Estranho era o rosto da morte. Até falar dele deixava Sam desconfortável. — Devíamos comer qualquer coisa. Uma dentada ou duas.
  Nada restava além de algumas morcelas, duras como madeira. Sam serrou algumas fatias finas para ambos. O esforço fez-lhe doer o pulso, mas tinha fome suficiente para persistir. Se se mastigasse as fatias
o suficiente, elas amoleciam e sabiam bem. As esposas de Craster condimentavam-nas com alho.
  Depois de terminarem, Sam desculpou-se e saiu para se aliviar e cuidar do cavalo. Soprava um vento mordente de norte, e as folhas das árvores crepitaram-lhe ao passar. Teve de quebrar a fina película
de gelo que cobria o ribeiro para que o cavalo pudesse beber. Era melhor que o levasse para dentro. Não queria acordar ao romper da aurora e descobrir que o cavalo tinha morrido congelado durante a noite.
Gilly prosseguiria mesmo se isso acontecesse. A rapariga era muito corajosa, ao contrário dele. Desejou saber o que faria com ela quando regressasse a Castelo Negro. A rapariga andava sempre a dizer que
seria sua esposa se ele quisesse, mas os irmãos negros não tinham esposas; e além disso, ele era um Tarly de Monte Chifre, nunca poderia casar com uma selvagem. Terei de pensar em algo. Desde que cheguemos
vivos à Muralha, o resto não importa, não importa nem um bocadinho.
  Levar o cavalo até ao casarão foi bastante simples. Fazê-lo atravessar a porta não foi, mas Sam persistiu. Gilly já dormitava quando conseguiu obrigar o garrano a entrar. Prendeu o cavalo a um canto,
deitou um pouco de lenha na fogueira, tirou o seu manto pesado e torceu-se para baixo das peles, ao lado da selvagem. O seu manto era suficientemente grande para os cobrir aos três e manter o calor dos
seus corpos.
  Gilly cheirava a leite, alho e pêlo velho e bolorento, mas já se tinha acostumado a isso. Para Sam, eram cheiros bons. Gostava de dormir ao lado dela. Fazia-o lembrar-se de tempos passados há muito,
quando partilhara uma enorme cama em Monte Chifre com duas das irmãs. Aquilo terminara quando o Lorde Randyll decidira que o estava a tornar mole como uma rapariga. Mas dormir sozinho na minha cela fria
não me tornou mais duro ou corajoso. Perguntou a si próprio o que diria o pai se o visse agora. Matei um dos Outros, senhor, imaginava-se a dizer. Apunhalei-o com um punhal de obsidiana, e os meus Irmãos
Ajuramentados chamam-me agora Sam, o Matador. Mas mesmo em imaginação, o Lorde Tarly limitava-se a franzir o sobrolho, descrente.
  Os sonhos que teve nessa noite foram estranhos. Estava de volta a Monte Chifre, ao castelo, mas o pai não se encontrava presente. O castelo era agora de Sam. Jon Snow estava com ele. O Lorde Mormont,
o Velho Urso, também, bem como Grenn, o Edd Doloroso, Pyp e o Sapo e todos os outros Irmãos da Patrulha, mas usavam cores vivas em vez de negro. Sam sentou-se à mesa e banqueteou-os a todos, cortando
grossas fatias de um assado com a espada longa do pai, Veneno do Coração. Havia bolos doces para comer e vinho com mel para beber, havia canto e dança, e toda a gente estava aquecida. Quando o banquete
terminou, subiu para dormir; não até ao quarto do senhor onde a mãe e o pai viviam, mas para o quarto que outrora partilhara com as irmãs. Só que em vez das irmãs era Gilly quem esperava na enorme cama
mole, sem nada vestido a não ser uma grande pele hirsuta, com leite a escorrer-lhe dos seios.
  Acordou de súbito, cheio de frio e de terror.
  A fogueira reduzira-se a brasas rubras. O próprio ar parecia congelado, de tal maneira o frio era intenso. Ao canto, o garrano relinchava e escoiceava as vigas. Gilly estava sentada ao lado da fogueira,
abraçada ao bebé. Sam sentou-se, atordoado, com o hálito a sair em nuvens brancas da sua boca. O salão encontrava-se escuro, cheio de sombras, negras e mais negras ainda. Tinha os pêlos dos braços em
pé.
  Não é nada, disse a si próprio. Tenho frio, é só isso.
  Então, junto à porta, uma das sombras moveu-se. Uma sombra grande.
  Isto é ainda um sonho, rezou Sam. Oh, fazei com que eu continue a dormir, fazei com que isto seja um pesadelo. Ele está morto, ele está morto, eu vi-o morrer.
  — Ele veio buscar o bebé — chorou Gilly. — Sente-lhe o cheiro. Um bebé recém-nascido fede a vida. Ele veio buscar a vida.
  A enorme silhueta escura curvou-se sob o lintel, entrou no salão e aproximou-se deles arrastando os pés. À luz ténua da fogueira, a sombra transformou-se no Paul Pequeno.
  — Vai-te embora — coaxou Sam. — Não te queremos aqui.
  As mãos de Paul eram carvão, o seu rosto leite, os olhos brilhavam com um azul amargo. Geada encanecia-lhe a barba, e sobre um ombro empoleirava-se um corvo, debicando-lhe o rosto, comendo a carne morta
e branca. A bexiga de Sam largou-se, e sentiu o calor que lhe corria pelas pernas abaixo.
  — Gilly, acalma o cavalo e leva-o lá para fora. Faz o que te digo.
  — Tu… — começou ela.
  — Eu tenho a faca. O punhal de vidro de dragão. — Puxou por ele às apalpadelas enquanto se punha em pé. Dera a primeira faca a Grenn, mas felizmente lembrara-se de trazer o punhal do Lorde Mormont antes
de fugir da Fortaleza de Craster. Agarrou-o bem, afastando-se da fogueira, afastando-se de Gilly e do bebé. — Paul? — Pretendera soar bravo, mas a palavra saíra como um guincho. — Paul Pequeno. Reconheces-me?
Sou o Sam, o gordo Sam, Sam o Assustado, salvaste-me na floresta. Transportaste-me quando não consegui dar nem mais um passo. Ninguém mais poderia ter feito isso, mas tu fizeste. — Sam recuou, de faca
na mão, fungando. Sou um cobarde tão grande. — Não nos faças mal, Paul. Por favor. Porque haverias de nos querer fazer mal?
  Gilly pôs-se a gatinhar, de costas, pelo chão de terra batida. A criatura virou a cabeça para a ver, mas Sam gritou “NÃO!”, e o outro voltou a virar-se. O corvo no seu ombro arrancou-lhe uma tira de
carne da bochecha pálida e arruinada. Sam ergueu o punhal à sua frente, respirando como um fole de ferreiro. Do outro lado do salão, Gilly chegou junto do garrano. Deuses, dai-me coragem, rezou Sam. Por
uma vez, dai-me um pouco de coragem. Só durante tempo suficiente para ela sair.
  O Paul Pequeno dirigiu-se a ele. Sam recuou até se encostar a uma rude parede de troncos. Agarrou o punhal com ambas as mãos para o manter firme. A criatura não pareceu temer o vidro de dragão. Talvez
não soubesse o que era. Movia-se lentamente, mas o Paul Pequeno nunca fora rápido, mesmo em vida. Atrás dele, Gilly murmurou para acalmar o garrano e tentar levá-lo a dirigir-se para a porta. Mas o cavalo
deve ter sentido um pouco do odor estranho e frio da criatura. De súbito recuou, empinando-se, golpeando com os cascos o ar glacial. Paul girou na direcção do som, e pareceu perder todo o interesse em
Sam.
  Não houve tempo para pensar, rezar ou ter medo. Samwell Tarly atirou-se em frente e mergulhou o punhal nas costas do Paul Pequeno. Meio virada, a criatura não chegou a vê-lo. O corvo soltou um guincho
e levantou voo.
  — Estás morto! — gritou Sam enquanto apunhalava. — Estás morto, estás morto. — Apunhalava e gritava, uma vez, e outra, e outra, rasgando enormes buracos no pesado manto negro de Paul. Cacos de vidro
de dragão voaram por todo o lado quando a lâmina se estilhaçou na malha de ferro por baixo da lã.
  O gemido de Sam criou uma névoa branca no ar negro. Deixou cair o cabo agora inútil e deu um passo apressado para trás enquanto o Paul Pequeno se virava. Antes de conseguir puxar pela outra faca, a
faca de aço que todos os Irmãos usavam, as mãos negras da criatura fecharam-se sob os seus queixos. Os dedos de Paul estavam tão frios que pareciam queimar. Enterraram-se profundamente na carne mole da
garganta de Sam. Foge, Gilly, foge, quis gritar, mas quando abriu a boca, apenas surgiu um ruído afogado.
  Os seus dedos atrapalhados finalmente encontraram o punhal, mas quando o empurrou contra a barriga da criatura, a ponta resvalou nos elos de ferro, e a lâmina saltou a rodopiar da mão de Sam. Os dedos
de Paul apertaram inexoravelmente, e começaram a torcer. Ele vai arrancar-me a cabeça, pensou Sam em desespero. Sentia a garganta gelada, tinha os pulmões em fogo. Esmurrou e puxou os pulsos da criatura,
inutilmente. O mundo reduziu-se a duas estrelas azuis, a uma terrível dor esmagadora e a um frio tão forte que as lágrimas congelaram sobre os seus olhos. Sam torceu-se e puxou-se, desesperado… e então
inclinou-se para a frente.
  O Paul Pequeno era grande e poderoso, mas Sam ainda pesava mais do que ele, e as criaturas eram desajeitadas, ele vira-o no Punho. A súbita mudança de equilíbrio levou Paul a dar um passo cambaleante
para trás, e o homem vivo e o morto estatelaram-se juntos. O impacto arrancou uma mão da garganta de Sam, e este conseguiu encher rapidamente os pulmões de ar antes que os dedos gelados e negros regressassem.
O sabor do sangue encheu-lhe a boca. Torceu o pescoço, em busca da faca, e viu um ténuo clarão cor-de-laranja. A fogueira! Só restavam brasas e cinzas, mas mesmo assim… não conseguia respirar, nem pensar…
Sam contorceu-se para o lado, puxando Paul consigo… os seus braços malharam no chão de terra, às apalpadelas, esticando-se, espalhando as cinzas, até por fim encontrarem algo quente… um bocado de madeira
carbonizada, em brasa vermelha e cor-de-laranja dentro da parte negra… os dedos fecharam-se em volta dela e enfiou-a na boca de Paul, com tanta força que sentiu os dentes a partir-se.
  Mas mesmo assim, o apertar da criatura não fraquejou. Os últimos pensamentos de Sam dirigiram-se à mãe que o amara e ao pai que desiludira. O salão já girava à sua volta quando viu o fio de fumo que
se erguia de entre os dentes quebrados de Paul. Então a cara do morto rebentou em chamas, e as mãos afastaram-se.
  Sam bebeu o ar, e rolou debilmente para longe. A criatura ardia, com geada a escorrer, pingando, da sua barba enquanto a pele, por baixo, enegrecia. Sam ouviu o corvo guinchar, mas Paul não soltou um
som. Quando a boca se abriu, só saíram chamas. E os seus olhos… Desapareceu, o brilho azul desapareceu.
  Arrastou-se para a porta. O ar estava tão frio que respirar doía, mas era uma dor tão boa e doce. Baixou-se para sair do salão.
  — Gilly? — chamou. — Gilly, matei-o. Gil…
  Ela estava em pé, de costas encostadas ao represeiro, com o menino nos braços. As criaturas rodeavam-na. Eram uma dúzia, uma vintena, mais… algumas tinham em tempos sido selvagens, e ainda usavam peles…
mas eram mais as que tinham sido Irmãos de Sam. Viu Lark, o homem das Irmãs, o Pé-Leve, Ryles. O quisto no pescoço de Chett estava negro, e as borbulhas estavam cobertas por uma fina película de gelo.
E aquele parecia-se com Hake, embora fosse difícil ter a certeza com metade da cabeça em falta. Tinham desfeito o pobre garrano, e estavam a arrancar-lhe as entranhas com mãos que pingavam vermelho. Vapor
esbranquiçado erguia-se-lhe da barriga.
  Sam soltou um gemido.
  — Não é justo…
  “Justo.” O corvo pousou no seu ombro. “Justo, justo, justo.” Bateu as asas e acompanhou o grito de Gilly. As criaturas estavam quase em cima dela. Sam ouviu as folhas vermelhas-escuras do represeiro
a restolhar, sussurrando umas para as outras numa língua que não conhecia. A própria luz das estrelas parecia agitar-se, e a toda a volta deles as árvores gemiam e estalavam. Sam Tarly tomou a cor do
leite coalhado, e os seus olhos esbugalharam-se. Corvos! Estavam no represeiro, às centenas, aos milhares, empoleirados em ramos brancos como ossos, espreitando através das folhas. Viu os seus bicos abrirem-se
quando gritaram, viu-os abrirem as suas asas negras. Guinchando, batendo as asas, caíram sobre as criaturas em nuvens furiosas. Um enxame deles rodeou a cara de Chett e lançou-lhe bicadas aos olhos azuis,
cobriram o homem das Irmãs como moscas, arrancaram bocados de carne crua de dentro da cabeça desfeita de Hake. Havia tantos que, quando Sam olhou para cima, não conseguiu ver a Lua.
  “Vai”, disse a ave que se empoleirava no seu ombro. “Vai, vai, vai.”
  Sam correu, com nuvenzinhas de geada a explodir da sua boca. A toda a volta, as criaturas brandiam os braços contra as asas negras e bicos aguçados que as atacavam, caindo num silêncio arrepiante sem
soltar um grunhido ou um grito. Mas os corvos ignoravam Sam. Pegou na mão de Gilly e puxou-a para longe do represeiro.
  — Temos de ir.
  — Mas para onde? — Gilly apressou-se a segui-lo, trazendo o bebé. — Eles mataram o cavalo, como vamos nós…
  — Irmão! — O grito trespassou a noite, trespassou os guinchos de um milhar de corvos. Sob as árvores, um homem, envolto da cabeça aos pés numa confusão de negros e cinzentos, montava um alce. — Aqui
— gritou o cavaleiro. Um capuz engolia-lhe o rosto.
  Ele veste negro. Sam empurrou Gilly na direcção do homem. O alce era enorme, um alce gigante, com três metros de altura no garrote, e com um par de hastes que tinham quase outros tantos metros de largura.
O animal caiu de joelhos para lhes permitir montar.
  — Agarra — disse o cavaleiro, estendendo para baixo uma mão enluvada para puxar Gilly para trás de si. Então foi a vez de Sam.
  — Muito obrigado — bufou. Só quando agarrou a mão que lhe era oferecida se apercebeu de que o cavaleiro não usava luvas. A mão era negra e fria, com dedos duros como pedra.
 
 ARYA
  Quando atingiram o topo do espinhaço e viram o rio, Sandor Clegane puxou as rédeas com força e praguejou.
  A chuva caía de um céu negro de ferro, espicaçando a torrente verde e castanha com dez mil espadas. Deve ter uma milha de largura, pensou Arya. As copas de meia centena de árvores projectavam-se das
águas rodopiantes, com ramos que se tentavam agarrar ao céu como os braços de homens arrastados pela corrente. Espessos tapetes de folhas encharcadas afogavam a margem, e mais para o interior do canal
vislumbrou algo de claro e inchado, um veado ou talvez um cavalo morto, deslocando-se rapidamente para jusante. E também se ouvia um som, um rumor surdo no limite da audição, como o som que um cão solta
logo antes de rosnar.
  Arya contorceu-se na sela e sentiu os elos da cota de malha do Cão de Caça a enterrar-se nas suas costas. Os braços dele rodeavam-na; no esquerdo, no braço queimado, colocara um braçal de aço para o
proteger, mas vira-o a mudar as ligaduras e o braço por baixo continuava em carne viva e cheio de pus. Mas se as queimaduras o magoavam, Sandor Clegane não o mostrava.
  — Isto é a Torrente da Água Negra? — Tinham cavalgado tanto pela chuva e na escuridão, através de bosques sem trilhos e aldeias sem nome, que Arya perdera toda a noção de onde se encontravam.
  — É um rio que temos de atravessar, isso é tudo o que tu precisas de saber. — Clegane respondia-lhe de vez em quando, mas prevenira-a para não lhe dar troco. Dera-lhe um monte de conselhos naquele primeiro
dia. — Da próxima vez que me bateres, ato-te as mãos atrás das costas — dissera. — Da próxima vez que tentes fugir, ato-te os pés um ao outro. Chora, grita ou volta a morder-me, e amordaço-te. Podemos
seguir montados atrás um do outro, ou posso-te atirar para a garupa do cavalo, enfeixada como uma porca a caminho da matança. Quem escolhe és tu.
  Ela escolhera ir montada, mas da primeira vez que tinham acampado esperara até julgar que ele dormia e arranjara uma grande pedra irregular para lhe esmagar a cabeça. Silenciosa como uma sombra, dissera
a si própria enquanto se aproximava dele, pé ante pé, mas o silêncio não fora suficiente. Afinal, o Cão de Caça não estava a dormir. Ou talvez tivesse acordado. Fosse como fosse, os olhos abriram-se-lhe,
a boca torceu-se e tirou-lhe a pedra como se ela fosse um bebé. A única coisa que conseguiu fazer foi pontapeá-lo.
  — Por esta passa — dissera ele quando atirara a pedra para o meio dos arbustos. — Mas se fores suficientemente estúpida para voltar a tentar, magoo-te.
  — Porque é que não me matas, como fizeste com o Mycah? — gritara-lhe Arya. Nessa altura ainda estava desafiadora, mais zangada do que assustada.
  Ele respondera-lhe agarrando na parte da frente da sua túnica e puxando-a até ficar encostada à sua cara queimada.
  — Da próxima vez que disseres esse nome, dou-te uma sova tão grande que vais desejar que te tivesse matado.
  Depois disso enrolava-a na manta do cavalo todas as noites quando ia dormir, e atava-lhe cordas em volta da parte de cima e da parte de baixo do corpo, deixando-a tão bem atada como se fosse um bebé
enfaixado.
  Tem de ser a Água Negra, decidiu Arya enquanto observava a chuva a vergastar o rio. O Cão de Caça era o cão de Joffrey; estava a levá-la de volta para a Fortaleza Vermelha, para a entregar a Joffrey
e à rainha. Desejou que o Sol surgisse para poder ver em que direcção seguiam. Quanto mais olhava para o musgo nas árvores, mais confusa ficava. A Água Negra não era tão larga em Porto Real, mas isso
foi antes das chuvas.
  — Os vaus vão estar todos impossíveis — disse Sandor Clegane — e também não me apetece tentar atravessar a nado.
  Não há maneira de atravessar, pensou ela. O Lorde Beric vai apanhar-nos de certeza. Clegane forçara bastante o seu grande garanhão negro, voltando três vezes para trás, a fim de despistar os perseguidores,
chegando até uma vez a avançar ao longo de meia milha pelo centro de um ribeiro em cheia… mas Arya ainda esperava ver os foras-da-lei sempre que olhava para trás. Tentara ajudá-los arranhando o nome nos
troncos de árvores quando ia para o meio dos arbustos verter águas, mas da quarta vez que o fizera, ele apanhara-a, e pusera fim à tentativa. Não importa, dissera Arya a si própria, Thoros encontrar-me-á
nas suas chamas. Só que não o tinha feito. Ainda não, pelo menos, e depois de atravessarem o rio…
  — A vila de Harroway não deve estar longe — disse o Cão de Caça. — Onde o Lorde Roote alberga o cavalo de água de duas cabeças do Velho Rei Andahar. Talvez atravessemos nele.
  Arya nunca ouvira falar do Velho Rei Andahar. Também nunca vira um cavalo com duas cabeças, particularmente um que fosse capaz de correr sobre água, mas sabia que não era boa ideia fazer perguntas.
Controlou a língua e ficou rígida sobre a sela enquanto o Cão de Caça virava a cabeça do garanhão e trotava ao longo do espinhaço, seguindo o rio para jusante. Pelo menos, naquela direcção tinham a chuva
nas costas. Já se fartara de ter a chuva a picar-lhe os olhos, deixando-a quase cega, e a correr-lhe pelo rosto como se estivesse a chorar. Os lobos nunca choram, voltou a lembrar a si própria.
  Não podia passar muito do meio-dia, mas o céu estava escuro como no ocaso. Arya já perdera a conta aos dias em que não viam o Sol. Estava ensopada até aos ossos, esfolada pela sela, tinha o nariz entupido
e sentia-se dorida. Também tinha febre, e por vezes tremia descontroladamente, mas quando dissera ao Cão de Caça que estava doente, ele limitara-se a rosnar-lhe.
  — Limpa o nariz e fecha a boca — dissera-lhe. Ele passava agora metade do tempo a dormir na sela, confiando que o garanhão seguisse o caminho rural sulcado ou o trilho de caça em que se encontrassem.
O cavalo era um corcel pesado, quase tão grande como um cavalo de batalha mas muito mais rápido. O Cão de Caça chamava-lhe Estranho. Arya tentara roubá-lo uma vez, no momento em que Clegane urinava contra
uma árvore, pensando que talvez conseguisse afastar-se antes de ele a apanhar. O Estranho quase lhe arrancara a cara à dentada. Era gentil como um velho castrado com o dono, mas com outras pessoas tinha
um temperamento tão negro como o pêlo. Nunca vira um cavalo tão lesto a morder ou a escoicear.
  Seguiram ao lado do rio durante horas, passando a vau dois afluentes lamacentos antes de chegaram ao lugar de que Sandor Clegane falara.
  — A Vila de Lorde Harroway — dissera, e depois, quando a vira: — Sete infernos! — A vila estava submersa e desolada. As águas da enchente tinham galgado as margens do rio. Tudo o que restava da vila
de Harroway era o andar superior de uma estalagem de taipa, a cúpula de sete lados de um septo afundado, dois terços de uma torre redonda de pedra, alguns telhados de colmo bolorentos e uma floresta de
chaminés.
  Mas Arya viu que saía fumo da torre, e um barco largo de fundo achatado encontrava-se bem amarrado por baixo de uma janela em arco. O barco tinha uma dúzia de toletes e um par de grandes esculturas
de cabeças de cavalo, montadas à proa e à popa. O cavalo de duas cabeças, compreendeu. Havia uma casa de madeira com telhado de turfa mesmo no meio do convés, e quando o Cão de Caça pôs as mãos à volta
da boca e gritou, dois homens precipitaram-se para fora. Um terceiro surgiu na janela da torre, trazendo uma besta engatilhada.
  — Que quereis? — gritou por sobre as rodopiantes águas castanhas.
  — Leva-nos para o outro lado — gritou o Cão de Caça em resposta.
  Os homens no barco conferenciaram um com o outro. Um deles, um homem grisalho com braços fortes e costas arqueadas, aproximou-se da amurada.
  — Vai custar-vos dinheiro.
  — Então pagarei.
  Com o quê?, perguntou Arya a si própria. Os foras-da-lei tinham levado o ouro de Clegane, mas talvez o Lorde Beric lhe tivesse deixado alguma prata e cobre. Uma travessia de barco não devia custar mais
do que alguns cobres…
  Os barqueiros estavam de novo a conversar. Por fim, o das costas arqueadas virou-se e soltou um grito. Surgiram mais seis homens, puxando capuzes para cima das cabeças para se protegerem da chuva. Mais
ainda torceram-se para fora da janela da torre e saltaram para o convés. Metade deles eram suficientemente parecidos com o homem corcovado para serem da sua família. Alguns desataram as correntes e pegaram
em longas varas, enquanto os outros encaixaram pesados remos de lâmina larga nos toletes. O barco girou sobre si próprio e começou a aproximar-se lentamente dos baixios, com os remos a bater regularmente
na água de ambos os lados. Sandor Clegane desceu a colina para ir ao seu encontro.
  Quando a ré do barco colidiu com a encosta da colina, os barqueiros abriram uma porta larga que havia por baixo da cabeça esculpida do cavalo, e estenderam uma pesada prancha de carvalho. O Estranho
fez uma negaça à borda de água, mas o Cão de Caça enterrou os calcanhares no flanco do corcel e incitou-o a subir a prancha. O homem corcovado esperava-os no convés.
  — Está suficiente humidade para vós, sor? — perguntou, sorrindo.
  A boca do Cão de Caça torceu-se.
  — Preciso do teu barco, não das tuas gracinhas. — Desmontou, e puxou Arya para baixo. Um dos barqueiros estendeu a mão para o freio do Estranho. — Eu não fazia isso — disse Clegane, no momento em que
o cavalo escoiceava. O homem saltou para trás, escorregou no convés tornado traiçoeiro pela chuva, e estatelou-se sobre o traseiro, praguejando.
  O barqueiro com as costas arqueadas já não estava a sorrir.
  — Podemos levar-vos para o outro lado — disse ele num tom irritado. — Irá custar-vos uma peça de ouro. Outra pelo cavalo. Uma terceira pelo rapaz.
  — Três dragões? — Clegane latiu uma gargalhada. — Por três dragões devia tornar-me dono da porcaria do barco.
  — No ano passado, talvez vos tornásseis. Mas com este rio, vou precisar de mãos extra nas varas e nos remos só para tratar de não sermos arrastados cem milhas até ao mar. As vossas opções são estas.
Três dragões, ou então ensinar esse vosso cavalo infernal a caminhar sobre a água.
  — Gosto de um salteador honesto. Que seja como pretendes. Três dragões… quando nos puseres a salvo na margem norte.
  — Quero-os agora, senão não vamos. — O homem apresentou uma mão grossa e cheia de calos, com a palma para cima.
  Clegane sacudiu a espada para que a lâmina se soltasse dentro da bainha.
  — Aqui tens as tuas opções. Ouro na margem norte, ou aço na margem Sul.
  O barqueiro ergueu os olhos para a cara do Cão de Caça. Arya observou que o homem não gostou do que aí viu. Tinha uma dúzia de homens atrás de si, homens fortes com remos e varas de madeira dura nas
mãos, mas nenhum deles estava a acorrer para o ajudar. Juntos, poderiam dominar Sandor Clegane, embora ele provavelmente matasse três ou quatro antes de o derrubarem.
  — Como é que eu sei que tendes o dinheiro? — perguntou o corcovado após um momento.
  Não tem, quis ela gritar. Em vez disso, mordeu o lábio.
  — Honra de cavaleiro — disse o Cão de Caça, sem sorrir.
  Ele nem sequer é um cavaleiro. Também não o disse.
  — Serve. — O barqueiro cuspiu. — Então vinde, podemos levar-vos para a outra margem antes de escurecer. Amarrai o cavalo, não o quero espantado quando estivermos a caminho. Há um braseiro na cabina
se vós e o vosso filho vos quiserdes aquecer.
  — Não sou o estúpido filho dele! — disse Arya, furiosa. Aquilo ainda era pior do que ser confundida com um rapaz. Estava tão zangada que lhes poderia ter dito quem realmente era, mas Sandor Clegane
agarrou-lhe pela parte de trás do colarinho e ergueu-a do convés só com uma mão.
  — Quantas vezes tenho de te dizer para fechares a merda dessa boca? — Abanou-a com tanta força que os dentes castanholaram, e depois deixou-a cair. — Vai lá para dentro e seca-te, como o homem disse.
  Arya fez o que lhe foi ordenado. O grande braseiro de ferro brilhava, vermelho, enchendo a sala com um calor carregado e sufocante. Era agradável estar junto a ele, aquecer as mãos e secar um pouco,
mas assim que sentiu o convés mover-se debaixo dos pés, voltou a deslizar pela porta da frente.
  O cavalo de duas cabeças deslocava-se lentamente pelos baixios, abrindo caminho por entre as chaminés e os telhados da submersa Harroway. Uma dúzia de homens afadigava-se aos remos, enquanto outros
quatro usavam as longas varas para empurrar o barco sempre que se aproximassem de uma pedra, uma árvore ou uma casa afundada. O homem corcovado manejava o leme. A chuva tamborilava nas tábuas lisas do
convés e ressaltava nas grandes cabeças de cavalo esculpidas da proa e da popa. Arya estava de novo a ficar ensopada, mas não se importava. Queria ver. Viu que o homem com a besta ainda se encontrava
à janela da torre. Os seus olhos seguiram-na enquanto o barco deslizava por baixo. Perguntou a si própria se seria ele o tal Lorde Roote que o Cão de Caça mencionara. Não se parece muito com um senhor.
Mas a verdade era que ela também não se parecia muito com uma senhora.
  Depois de estarem fora da vila e no rio propriamente dito, a corrente ficou muito mais forte. Através da neblina cinzenta da chuva, Arya conseguiu distinguir um alto pilar de pedra na outra margem,
que certamente assinalava o cais para o barco, mas assim que o vira, compreendeu que estavam a ser empurrados para longe dele, para jusante. Os remadores estavam agora a remar com mais vigor, lutando
contra a fúria do rio. Folhas e ramos partidos passaram pelo barco a rodopiar, tão depressa como se tivessem sido disparados de uma balista. Os homens das varas inclinavam-se para fora e empurravam para
longe qualquer coisa que se aproximasse demasiado. Ali também fazia mais vento. Sempre que se virava para olhar para montante, Arya ficava com a cara cheia de chuva soprada pelo vento. O Estranho relinchava
e escoiceava enquanto o convés se movia por baixo das suas patas.
  Se eu saltasse borda fora, o rio levar-me-ia antes mesmo de o Cão de Caça dar pela minha falta. Olhou para trás por sobre um ombro, e viu Sandor Clegane a lutar com o cavalo assustado, tentando acalmá-lo.
Nunca teria uma oportunidade melhor de se ver livre dele. Mas podia afogar-me. Jon costumava dizer que ela nadava como um peixe, mas até um peixe podia sentir problemas naquele rio. Mesmo assim, o afogamento
podia ser melhor do que Porto Real. Pensou em Joffrey e aproximou-se lentamente da proa. O rio estava de um castanho-escuro devido à lama e era açoitado pela chuva, parecendo-se mais com sopa do que com
água. Arya perguntou a si própria se a água estaria muito fria. Não posso ficar muito mais molhada do que estou agora. Pousou uma mão na amurada.
  Mas um súbito grito fê-la voltar a cabeça antes de ter tempo de saltar. Os barqueiros corriam em frente, de varas na mão. Por um momento, não compreendeu o que estava a acontecer. Então viu: uma árvore
desenraizada, enorme e escura, que vinha direita a eles. Um emaranhado de raízes e ramos projectava-se da água como os braços estendidos de uma grande lula gigante. Os remadores remavam freneticamente
para trás, tentando evitar uma colisão que poderia voltar o barco ou abrir-lhes um rombo no casco. O velho virara o leme por completo, e o cavalo da proa estava a virar para jusante, mas muito devagar.
Cintilando em castanho e negro, a árvore corria para eles como um aríete.
  Não podia estar a mais de três metros da proa quando dois dos barqueiros lograram encostar-lhe as suas longas varas. Uma partiu-se, e o longo craaac do estilhaçamento fez com que parecesse que o barco
se estava a desfazer por baixo deles. Mas o segundo homem conseguiu dar um forte empurrão ao tronco, apenas o suficiente para o afastar. A árvore passou a grande velocidade pelo barco, separada apenas
por centímetros, com os ramos a arranhar a cabeça de cavalo como se fossem garras. No momento em que pareciam estar a salvo, um dos ramos superiores do monstro deu-lhes uma pancada de raspão. O barco
pareceu estremecer, e Arya escorregou, aterrando dolorosamente sobre um joelho. O homem com a vara partida não teve tanta sorte. Arya ouviu-o gritar quando tropeçou na amurada. Depois, as furiosas águas
castanhas fecharam-se sobre ele, e o barqueiro desapareceu no tempo que Arya demorou a voltar a pôr-se em pé. Um dos outros homens pegou num rolo de corda, mas não havia ninguém a quem atirá-la.
  Talvez vá dar a algum sítio, mais abaixo, tentou Arya dizer a si própria, mas o pensamento soava a oco. Perdera todo o desejo de ir nadar. Quando Sandor Clegane lhe gritou para voltar para dentro antes
que lhe desse uma surra, obedeceu docilmente. Nessa altura, o barco lutava por voltar à rota, contra um rio que só desejava levá-lo para o mar.
  Quando por fim acostaram, foi a um bom par de milhas a jusante do embarcadouro habitual. O barco bateu com tanta força na margem que outra vara se partiu, e Arya quase se desequilibrou mais uma vez.
Sandor Clegane pô-la ao dorso do Estranho como se não fosse mais pesada do que uma boneca. Os barqueiros fitaram-nos com olhos baços e exaustos, todos menos o corcovado, que estendeu a mão.
  — Seis dragões — exigiu. — Três pela passagem, e três pelo homem que perdi.
  Sandor Clegane esquadrinhou a bolsa e atirou para a palma da mão do homem um maço amarrotado de pergaminho.
  — Toma. Fica com dez.
  — Dez? — O barqueiro estava confuso. — O que é isto agora?
  — Uma nota de um morto, que vale nove mil dragões, ou por aí. — O Cão de Caça saltou para a sela atrás de Arya e fez um sorriso desagradável ao homem. — Dez são teus. Um dia voltarei para vir buscar
o resto, por isso vê lá se não te pões a gastá-lo.
  O homem semicerrou os olhos para o pergaminho.
  — Escrita. De que vale a escrita? Prometestes ouro. Honra de cavaleiro, dissestes.
  — Os cavaleiros não têm honra nenhuma. Já é tempo que aprendas isso, velho. — O Cão de Caça esporeou o Estranho e afastou-se a galope através da chuva. Os barqueiros atiraram pragas às suas costas,
e um ou dois arremessaram pedras. Clegane ignorou quer as pedras quer as palavras, e pouco tempo depois estavam perdidos na sombra das árvores, com o rio reduzido a um rugido minguante atrás deles. —
O barco não voltará a atravessar até amanhã — disse — e aqueles tipos não aceitarão promessas de papel dos próximos palermas que aparecerem. Se os teus amigos vierem atrás de nós, vão ter de ser uns nadadores
fortes como o raio.
  Arya encolheu-se e ficou calada. Valar morghulis, pensou, de mau humor. Sor Ilyn, Sor Meryn, Rei Joffrey, Rainha Cersei. Dunsen, Polliver, Raff, o Querido, Sor Gregor e o Cócegas. E o Cão de Caça, o
Cão de Caça, o Cão de Caça.
  Quando a chuva parou e as nuvens se abriram, estava a tremer e a espirrar tanto que Clegane fez alto para a noite e até tentou acender uma fogueira. Mas a madeira que reuniram revelou-se demasiado molhada.
Nada que fizesse era suficiente para que a centelha pegasse. Por fim, desfez o monte de lenha ao pontapé, irritado.
  — Sete malditos infernos — praguejou. — Detesto fogueiras.
  Sentaram-se em pedras molhadas por baixo de um carvalho, escutando o lento bater de água que pingava das folhas enquanto comiam um jantar frio de pão duro, queijo bolorento e salsicha fumada. O Cão
de Caça cortava a carne com o punhal, e semicerrou os olhos quando apanhou Arya a olhar para a faca.
  — Nem penses nisso.
  — Não estava a pensar — mentiu ela.
  Ele fungou, para mostrar o que pensava daquilo, mas deu-lhe uma grossa fatia de salsicha. Arya pôs-se a roê-la, observando-o enquanto comia.
  — Nunca bati na tua irmã — disse o Cão de Caça. — Mas a ti bato, se me levares a isso. Pára de tentar pensar em maneiras de me matar. Nenhuma te servirá de alguma coisa.
  Ela nada tinha a responder àquilo. Continuou a roer a salsicha e fitou-o friamente. Dura como pedra, pensou.
  — Ao menos olhas para a minha cara. Lá isso admito, pequena loba. Gostas dela?
  — Não. Está toda queimada e é feia.
  Clegane ofereceu-lhe um bocado de queijo com a ponta do punhal.
  — És uma palerminha. De que te servia se conseguisses fugir? Acabavas só por ser apanhada por alguém pior.
  — Não acabava nada — insistiu ela. — Não há ninguém pior.
  — Não conheceste o meu irmão. Gregor uma vez matou um homem por ressonar. Um dos seus próprios homens. — Quando sorriu, o lado queimado da cara retesou-se, torcendo-lhe a boca de uma maneira estranha
e desagradável. Ele não tinha lábios desse lado, e a orelha não passava de um resto.
  — Conheci o teu irmão, sim senhor. — A Montanha talvez fosse pior, agora que Arya pensava nisso. — Conheci-o a ele e a Dunsen, Polliver, Raff, o Querido, e ao Cócegas.
  O Cão de Caça pareceu surpreendido.
  — E como é que a preciosa filhinha de Ned Stark se arranjou para conhecer gente como essa? Gregor nunca traz as suas ratazanas de estimação à corte.
  — Conheço-os da aldeia. — Comeu o queijo, e estendeu a mão para um naco de pão duro. — A aldeia junto ao lago onde nos apanharam, ao Gendry, a mim e ao Tarte Quente. Também apanharam o Lommy Mãos-Verdes,
mas Raff, o Querido, matou-o porque tinha a perna ferida.
  A boca de Clegane torceu-se.
  — Apanhou-te? O meu irmão apanhou-te? — Isso fê-lo rir, um som amargo, em parte trovão, em parte rosnido. — O Gregor nunca soube o que tinha nas mãos, pois não? Não podia ter sabido, senão tinha-te
arrastado, a espernear e aos gritos, para Porto Real, e tinha-te despejado no colo de Cersei. Oh, que maravilha. Não me posso esquecer de lhe dizer, antes de lhe arrancar o coração.
  Não era a primeira vez que ele falava de matar a Montanha.
  — Mas ele é teu irmão — disse Arya, num tom hesitante.
  — Nunca tiveste um irmão que quisesses matar? — Voltou a rir-se. — Ou talvez uma irmã? — Então deve ter visto qualquer coisa na sua cara, porque se debruçou para mais perto. — Sansa. É isso, não é?
A loba quer matar o passarinho.
  — Não — cuspiu-lhe Arya em resposta. — Quero matar-te a ti.
  — Porque cortei ao meio o teu amiguinho? Matei muitos mais do que ele, garanto. Achas que isso faz de mim um monstro qualquer. Bem, se calhar faz, mas também salvei a vida da tua irmã. No dia em que
a turba a puxou de cima do cavalo, abri caminho pelo meio deles à espadeirada e trouxe-a de volta ao castelo. Se não, tinham-lhe dado o mesmo que deram à Lollys Stokeworth. E cantou para mim. Não sabias
disso, pois não? A tua irmã cantou-me uma cançãozinha doce.
  — Estás a mentir — disse ela de imediato.
  — Não sabes nem metade do que julgas que sabes. A Água Negra? Onde, com os sete infernos, julgas tu que nós estamos? Para onde achas tu que vamos?
  O escárnio na voz dele fê-la hesitar.
  — De volta a Porto Real — disse. — Vais levar-me a Joffrey e à rainha. — De repente, só pelo modo como ele colocava as questões, compreendeu que se enganava. Mas tinha de dizer qualquer coisa.
  — Lobinha estúpida e cega. — A voz dele era áspera e dura como um raspar de ferro. — Que se lixe o Joffrey, que se lixe a rainha, e que se lixe aquela gargulazinha retorcida a que ela chama irmão. Estou
farto da cidade deles, farto da sua Guarda Real, farto de Lannisters. O que faz um cão com leões, pergunto-te? — Estendeu a mão para o odre da água e bebeu um longo trago. Enquanto limpava a boca, ofereceu
o odre a Arya e disse: — O rio era o Tridente, rapariga. O Tridente, não a Água Negra. Faz o mapa na cabeça, se fores capaz. Amanhã devemos chegar à Estrada de Rei. Havemos de avançar a bom ritmo depois
disso, direitinhos às Gémeas. Vou ser eu quem te há-de entregar àquela tua mãe. Não o nobre senhor do relâmpago ou a fraude flamejante daquele sacerdote, o monstro. — Sorriu ao ver a expressão do seu
rosto. — Achas que os teus amigos fora-da-lei são os únicos capazes de farejar um resgate? O Dondarrion ficou-me com o ouro, portanto eu fiquei contigo. Diria que vales o dobro daquilo que me roubaram.
Talvez até valesses mais se te vendesse de volta aos Lannister, como temes, mas não o farei. Até um cão se farta de levar pontapés. Se este Jovem Lobo tiver a esperteza que os deuses concederam a um sapo,
há-de fazer de mim fidalgo e há-de suplicar-me para entrar ao seu serviço. Ele precisa de mim, embora possa não o saber ainda. Talvez chegue mesmo a matar Gregor em seu nome, ele havia de gostar.
  — Ele nunca te aceitará — cuspiu ela em resposta. — A ti não.
  — Nesse caso, aceito tanto ouro quanto consiga carregar, rio-me na sua cara e vou-me embora. Se ele não me aceitar, seria esperto se me matasse, mas não o fará. É demasiado filho do seu pai, segundo
tenho ouvido dizer. Por mim tudo bem. Seja como for, quem ganha sou eu. E tu também, loba. Portanto pára de choramingar e de me responder torto, que eu estou farto. Mantém a boca fechada e faz o que te
disser, e talvez até cheguemos a tempo do maldito casamento do teu tio.
 
 JON
  A égua estava estoirada, mas Jon não podia dar-lhe descanso. Tinha de chegar à Muralha antes do Magnar. Teria dormido na sela se tivesse uma sela; à falta de tal coisa, já era suficientemente difícil
manter-se montado enquanto desperto. A perna ferida doía-lhe cada vez mais. Não se atrevia a descansar o tempo suficiente para permitir que sarasse. Em vez disso, reabria a ferida sempre que montava.
  Quando chegou ao topo de uma elevação e viu os sulcos castanhos da Estrada de Rei à sua frente, abrindo o seu caminho sinuoso para norte através de montes e planícies, deu palmadinhas no pescoço da
égua e disse:
  — Agora tudo o que temos de fazer é seguir a estrada, rapariga. Em breve chegaremos à Muralha. — Por essa altura, a perna já se lhe tornara rígida como madeira, e a febre pusera-lhe a cabeça tão leve
que dera por si por duas vezes a cavalgar na direcção errada.
  Em breve chegaremos à Muralha. Imaginava os amigos a beber vinho temperado na sala comum. Hobb andaria de volta das suas panelas, Donal Noye estaria na sua forja, o Meistre Aemon nos seus aposentos
sob a colónia dos corvos. E o Velho Urso? Sam, Grenn, o Edd Doloroso, Dywen com os seus dentes de madeira… Jon só podia rezar para que alguns deles tivessem escapado do Punho.
  Ygritte também andava muito nos seus pensamentos. Recordava o cheiro do seu cabelo, o calor do seu corpo… e a expressão no seu rosto no momento em que cortava a garganta ao velho. Fizeste mal em amá-la,
sussurrava uma voz. Fizeste mal em deixá-la, insistia uma voz diferente. Perguntava a si próprio se o pai também se sentira assim dilacerado, quando deixara a mãe de Jon para regressar para junto da Senhora
Catelyn. Estava ajuramentado à Senhora Stark, e eu estou ajuramentado à Patrulha da Noite.
  Quando atravessou a Vila Toupeira, estava a tal ponto febril que quase não se apercebeu de onde se encontrava. A maior parte da aldeia escondia-se no subsolo, com não mais de uma mão-cheia de pequenas
cabanas à vista, à luz do quarto minguante. O bordel era um casinhoto não maior do que uma latrina, com uma lanterna vermelha a ranger ao vento, um olho injectado de sangue a espreitar o negrume. Jon
desmontou no estábulo anexo, quase caindo do cavalo enquanto acordava dois rapazes com um grito.
  — Preciso de uma montada fresca, com sela e arreios — disse-lhes, num tom que não admitia discussões. Trouxeram-lhe o que pediu; e também um odre de vinho e meia fatia de pão castanho. — Acordai a aldeia
— disse-lhes. — Preveni-os. Há selvagens a Sul da Muralha. Juntai os vossos bens e dirigi-vos para Castelo Negro. — Içou-se para o dorso do castrado negro que lhe deram, cerrando os dentes devido às dores
que a perna lhe causava, e cavalgou rapidamente para norte.
  À medida que as estrelas começavam a desvanecer-se no céu oriental, a Muralha foi surgindo à sua frente, erguendo-se acima das árvores e nas névoas da manhã. O luar cintilava, pálido, no gelo. Incentivou
o castrado a avançar, seguindo a estrada lamacenta e escorregadia até ver as torres de pedra e edifícios de madeira de Castelo Negro, aninhados como brinquedos partidos sob a grande falésia de gelo. Nessa
altura a Muralha brilhava em tons de rosa e púrpura com a primeira luz da alvorada.
  Nenhuma sentinela o desafiou ao passar pelos edifícios exteriores. Ninguém surgiu para lhe barrar o caminho. Castelo Negro parecia tanto uma ruína como Guardagris. Ervas daninhas, castanhas e quebradiças,
cresciam entre fendas nas pedras dos pátios. Neve antiga cobria o telhado da Caserna de Pederneira, e encostava-se, em montículos empurrados pelo vento, ao lado norte da Torre de Hardin, onde Jon costumara
dormir antes de ser nomeado intendente do Velho Urso. Dedos de fuligem manchavam a Torre do Senhor Comandante, nos locais onde o fumo jorrara das janelas. Mormont mudara-se para a Torre do Rei após o
incêndio, mas Jon também não viu luzes aí. Do chão não podia dizer se haveria sentinelas a patrulhar a Muralha duzentos metros mais acima, mas não viu ninguém na enorme escada em ziguezague que trepava
a face sul do gelo como se fosse um enorme relâmpago de madeira.
  Mas erguia-se fumo da chaminé do armeiro; só um fiapo, quase invisível contra o céu cinzento do Norte, mas era o bastante. Jon desmontou e coxeou para lá. Jorrava calor da porta aberta como se fosse
o hálito quente do Verão. Lá dentro, Donal Noye manejava só com um braço os seus foles junto ao fogo. Ergueu o olhar ao ouvir barulho.
  — Jon Snow?
  — Ele próprio. — Apesar da febre, da exaustão, da perna, do Magnar, do velho, de Ygritte, de Mance, apesar de tudo, Jon sorriu. Era bom estar de volta, era bom ver Noye com a sua grande barriga e a
manga arregaçada, com o queixo eriçado de curtos pêlos negros.
  O ferreiro largou os foles.
  — A tua cara…
  Quase se esquecera da cara.
  — Um troca-peles tentou arrancar-me o olho.
  Noye franziu o sobrolho.
  — Marcada ou lisa, é uma cara que eu pensava não voltar a ver. Ouvimos dizer que te tinhas passado para Mance Rayder.
  Jon agarrou-se à porta para se manter em pé.
  — Quem vos disse isso?
  — Jarman Buckwell. Ele regressou há uma quinzena. Os seus batedores dizem que te viram com os seus próprios olhos, a acompanhar a coluna dos selvagens com um manto de pele de ovelha sobre os ombros.
— Noye observou-o. — Vejo que a última parte é verdade.
  — É tudo verdade — confessou Jon. — Até aí, pelo menos.
  — Nesse caso devia pegar numa espada para te esventrar?
  — Não. Estava a agir sob ordens. A última ordem de Qhorin Meia-Mão. Noye, onde está a guarnição?
  — A defender a Muralha contra os teus amigos selvagens.
  — Sim, mas onde?
  — Por todo o lado. Harma Cabeça-de-Cão foi visto em Atalaiabosque da Lagoa, o Lorigão de Chocalho no Monte Longo, o Chorão perto de Marcagelo. Ao longo de toda a Muralha… estão aqui, estão ali, estão
a escalar perto do Portão da Rainha, estão a atacar os portões de Guardagris, estão a reunir-se para atacar Atalaialeste… mas um vislumbre de um manto negro e desaparecem. No dia seguinte, estão noutro
sítio qualquer.
  Jon engoliu um gemido.
  — Simulações. Mance quer-nos muito espalhados, não vês? — E Bowen Marsh fez-lhe a vontade. — O portão está aqui. O ataque será aqui.
  Noye atravessou a sala.
  — Tens a perna ensopada de sangue.
  Jon olhou para baixo, entorpecido. Era verdade. A ferida voltara a abrir.
  — Um ferimento de seta…
  — Uma seta de selvagem. — Não era uma pergunta. Noye só tinha um braço, mas o que tinha era grosso e cheio de músculo. Enfiou-o sob o de Jon para ajudar a suportá-lo. — Estás branco como leite, e a
ferver. Vou levar-te a Aemon.
  — Não há tempo para isso. Há selvagens a Sul da Muralha, subindo de Corodarrainha para abrir o portão.
  — Quantos? — Noye quase carregou Jon pela porta fora.
  — Cento e vinte, e bem armados para selvagens. Armaduras de bronze, alguns bocados de aço. Quantos homens restam aqui?
  — Quarenta e tal — disse Donal Noye. — Os aleijados e os enfermos, e alguns rapazes verdes ainda em treino.
  — Se Marsh partiu, quem foi que nomeou como castelão?
  O armeiro soltou uma gargalhada.
  — Sor Wynton, que os deuses o protejam. O último cavaleiro no castelo, e tal. O problema é que o Stout parece ter-se esquecido e ninguém parece ter pressa de lho lembrar. Suponho que eu sou o melhor
que temos agora como comandante. O mais feroz dos aleijados.
  Pelo menos isso era bom. O armeiro maneta era obstinado, duro e bem experimentado na guerra. Sor Wynton Stout, por outro lado… bem, ele fora em tempos um bom homem, todos concordavam, mas passara oitenta
anos como patrulheiro e tanto as forças como os miolos tinham-lhe fugido. Uma vez adormecera ao jantar e quase se afogara numa tigela de sopa de ervilhas.
  — Onde está o teu lobo? — perguntou Noye enquanto atravessavam o pátio.
  — O Fantasma. Tive de o abandonar quando escalei a Muralha. Tinha esperança que ele tivesse conseguido chegar cá.
  — Lamento, moço. Não houve sinal dele. — Coxearam até à porta do Meistre, no longo edifício de madeira sob a colónia de corvos. O armeiro deu-lhe um pontapé. — Clydas!
  Após um momento, um homenzinho curvado, de ombros redondos e vestido de negro espreitou para fora. Os seus pequenos olhos cor-de-rosa esbugalharam-se ao ver Jon.
  — Deita o moço, eu vou buscar o Meistre.
  Ardia um fogo na lareira, e a sala estava quase abafada. O calor deixou Jon sonolento. Assim que Noye o deitou de costas, fechou os olhos para fazer com que o mundo parasse de girar. Ouvia os corvos
a quorcar e a protestar, na colónia, por cima da sua cabeça. “Snow”, estava uma ave a dizer. “Snow, snow, snow”. Jon lembrou-se que aquilo fora obra de Sam. Perguntou a si próprio se Samwell Tarly teria
chegado a casa em segurança, ou se tinham sido apenas as aves a fazê-lo.
  O Meistre Aemon não demorou a chegar. Deslocava-se lentamente, com uma mão manchada apoiada ao braço de Clydas, enquanto avançava com pequenos passos cautelosos. Em volta do seu pescoço fino, a corrente
pendia pesadamente, com os elos de ouro e prata a cintilar entre o ferro, chumbo, estanho e outros metais menos nobres.
  — Jon Snow — disse ele —, tens de me contar tudo o que viste e fizeste quando estiveres mais forte. Donal, põe uma chaleira de vinho ao lume e os meus ferros também. Vou querê-los em brasa. Clydas,
vou precisar daquela tua faca boa e afiada. — O Meistre tinha mais de cem anos; era minguado, frágil, calvo e bem cego. Mas se os seus olhos leitosos nada viam, a sua mente era ainda tão aguçada como
sempre fora.
  — Há selvagens a caminho — disse-lhe Jon, enquanto Clydas lhe abria as bragas com uma faca, cortando o pesado pano negro, incrustado de sangue velho e empapado de novo. — Vindos do Sul. Nós escalámos
a Muralha…
  O Meistre Aemon cheirou a ligadura improvisada de Jon quando Clydas a cortou.
  — Nós?
  — Eu acompanhava-os. Qhorin Meia-Mão ordenou-me que me juntasse a eles. — Jon estremeceu quando o dedo do Meistre explorou o seu ferimento, espetando e aguilhoando. — O Magnar de Thenn… aaaaaah, isso
dói. — Cerrou os dentes. — Onde está o Velho Urso?
  — Jon… dói-me dizê-lo, mas o Senhor Comandante Mormont foi assassinado na Fortaleza de Craster, às mãos dos seus Irmãos Ajuramentados.
  — Irm… os nossos próprios homens? — As palavras de Aemon doeram cem vezes mais do que os seus dedos. Jon recordou o Velho Urso como o vira pela última vez, em pé perante a sua tenda com o corvo no braço
a crocitar, pedindo milho. Mormont desaparecido? Temera-o desde que vira o resultado da batalha no Punho, mas o golpe não era menor por isso. — Quem foi? Quem é que se virou contra ele?
  — O Garth de Vilavelha, o Ollo Mão-Cortada, o Adaga… ladrões, cobardes e assassinos, todos eles. Devíamos ter previsto que isso iria acontecer. A Patrulha não é o que já foi. Há homens honestos a menos
para manter os patifes na linha. — Donal Noye virou as lâminas do Meistre no fogo. — Uma dúzia de homens leais conseguiu voltar. O Edd Doloroso, o Gigante, o teu amigo Auroque. Soubemos da história por
eles.
  Só uma dúzia? Tinham saído duzentos homens de Castelo Negro com o Senhor Comandante Mormont, duzentos dos melhores homens da Patrulha.
  — Isso quer então dizer que Marsh é o Senhor Comandante? — A Velha Romã era amigável, e um diligente Primeiro Intendente, mas era completamente desadequado para enfrentar uma hoste de selvagens.
  — Por enquanto, até organizarmos uma eleição — disse o Meistre Aemon. — Clydas, traz-me o frasco.
  Uma eleição. Com Qhorin Meia-Mão e Sor Jaremy Rykker mortos e Ben Stark ainda desaparecido, quem restava? Nem Bowen Marsh, nem Sor Wynton Stout, isso era certo. Teria Thoren Smallwood sobrevivido ao
Punho, ou Sor Ottyn Wythers? Não, será Cotter Pyke ou Sor Denys Mallister. Mas qual? Os comandantes da Torre das Sombras e de Atalaialeste eram bons homens, mas muito diferentes; Sor Denys era cortês
e cauteloso, tão cavalheiresco como idoso, Pyke era mais jovem, de nascimento bastardo, de língua rude e excessivamente ousado. Pior, os dois homens desprezavam-se mutuamente. O Velho Urso sempre os mantivera
afastados, nas extremidades opostas da Muralha. Jon sabia que os Mallister possuíam uma desconfiança congénita relativamente aos homens de ferro.
  Uma punhalada de dor fez-lhe lembrar os seus próprios infortúnios. O Meistre apertou-lhe a mão.
  — Clydas foi buscar leite da papoila.
  Jon tentou erguer-se.
  — Não preciso…
  — Precisas — disse Aemon com firmeza. — Isto vai doer.
  Donal Noye atravessou a sala e obrigou Jon a voltar a deitar-se.
  — Fica quieto, senão amarro-te. — Mesmo só com um braço, o ferreiro controlava-o como se fosse uma criança. Clydas regressou com um frasco verde e uma taça arredondada de pedra. O Meistre Aemon encheu-a.
  — Bebe isto.
  Jon mordera o lábio. Sentiu o sabor do sangue misturado com o da grossa poção branca. Quase vomitou.
  Clydas trouxe uma bacia de água quente, e o Meistre Aemon lavou-lhe o pus e sangue do ferimento. Por gentil que fosse, até o toque mais leve fazia com que Jon quisesse gritar.
  — Os homens do Magnar são disciplinados, e têm armaduras de bronze — disse-lhes. Falar ajudava a manter a mente afastada da perna.
  — O Magnar é um senhor em Skagos — disse Noye. — Havia skagositas em Atalaialeste quando cheguei à Muralha, lembro-me de os ouvir a falar dele.
  — O Jon está a usar a palavra no seu sentido mais antigo, julgo eu — disse o Meistre Aemon — não como nome de família mas como título. Deriva do Idioma Antigo.
  — Significa senhor — concordou Jon. — Styr é o Magnar de um sítio qualquer chamado Thenn, na extremidade norte dos Colmilhos de Gelo. Tem uma centena dos seus homens, e uma vintena de corsários que
conhecem a Dádiva quase tão bem como nós. Mas Mance nunca chegou a encontrar o corno, isso vale de alguma coisa. O Corno do Inverno. Era disso que ele andava à procura nas escavações que fez nas nascentes
do Guadeleite.
  O Meistre Aemon fez uma pausa, com o pano da lavagem na mão.
  — O Corno do Inverno é uma lenda antiga. O Rei-para-lá-da-Muralha realmente acredita que tal coisa existe?
  — Todos acreditam — disse Jon. — A Ygritte disse que abriram uma centena de tumbas… tumbas de reis e heróis, ao longo de todo o vale do Guadeleite, mas não chegaram…
  — Quem é a Ygritte? — perguntou Donal Noye sem rodeios.
  — Uma mulher do povo livre. — Como poderia explicar-lhes Ygritte? Ela é quente, esperta e engraçada, e tanto pode beijar um homem como rasgar-lhe a goela. — Ela está com Styr, mas não é… é jovem, só
uma rapariga, na verdade, selvagem, mas ela… — Ela matou um velho por fazer uma fogueira. Sentiu a língua inchada e desajeitada. O leite da papoila estava a enublar-lhe os pensamentos. — Quebrei os meus
votos com ela. Não o queria fazer, mas… — Foi errado. Foi errado amá-la, foi errado deixá-la… — Não fui suficientemente forte. O Meia-Mão ordenou-me, cavalga com eles, observa, não posso vacilar, eu…
— Sentia a cabeça como se estivesse recheada de lã molhada.
  O Meistre Aemon voltou a cheirar o ferimento de Jon. Então voltou a pôr o pano ensanguentado na bacia e disse:
  — Donal, a faca quente, por favor. Vou precisar que o mantenhas imóvel.
  Não gritarei, disse Jon a si próprio quando viu a lâmina a brilhar, rubra. Mas também quebrou esse voto. Donal Noye segurou-o enquanto Clydas ajudava a guiar a mão do Meistre. Jon não se mexeu, salvo
para esmurrar a mesa, uma e outra e outra vez. A dor foi tão enormemente violenta que se sentiu pequeno, fraco e impotente dentro dela, uma criança a choramingar no escuro. Ygritte, pensou, quando o fedor
da carne queimada lhe subiu ao nariz e o som do seu próprio berro lhe ecoou nos ouvidos. Ygritte, tive de o fazer. Durante meio segundo, a agonia começou a diminuir. Mas então o ferro voltou a tocá-lo
e ele desmaiou.
  Quando as pálpebras se lhe abriram, estremecendo, estava envolto em lãs espessas e flutuava. Parecia não ser capaz de se mover, mas não importava. Durante algum tempo, sonhou que Ygritte se encontrava
consigo, a cuidar dele com mãos suaves. Por fim, fechou os olhos e adormeceu.
  A segunda vez que acordou não foi tão branda. O quarto estava escuro, mas sob as mantas a dor regressara, um latejar na perna que se transformava numa faca quente ao menor movimento. Jon ficou a sabê-lo
da pior maneira quando tentou ver se ainda tinha a perna. Arquejando, engoliu um grito e voltou a cerrar o punho.
  — Jon? — Uma vela surgiu, e uma cara de que se recordava bem estava a olhá-lo, com orelhas grandes e tudo. — Não devias mexer-te.
  — Pyp? — Jon estendeu a mão para cima, e o outro rapaz apertou-lha. — Pensava que tinhas ido…
  — …com a Velha Romã? Não, ele acha que eu sou demasiado pequeno e verde. O Grenn também está aqui.
  — Também estou aqui. — Grenn aproximou-se do outro lado da cama. — Deixei-me dormir.
  Jon tinha a garganta seca.
  — Água — arquejou. Grenn trouxe-lha, e levou-lha aos lábios. — Eu vi o Punho — disse depois de beber um longo trago. — O sangue, e os cavalos mortos… Noye disse que uma dúzia de homens conseguiu voltar…
quem?
  — O Dywen conseguiu. O Gigante, o Edd Doloroso, o Doce Donnel Hill, Ulmer, o Lew Mão Esquerda, o Garth Pena-Cinza. Mais quatro ou cinco. Eu.
  — Sam?
  Grenn afastou o olhar.
  — Ele matou um dos Outros, Jon. Eu vi. Apunhalou-o com aquela faca de vidro de dragão que lhe fizeste, e começámos a chamar-lhe Sam, o Matador. Ele detestava.
  Sam, o Matador. Jon dificilmente conseguiria imaginar um guerreiro menos provável do que Sam Tarly.
  — Que lhe aconteceu?
  — Abandonámo-lo. — Grenn soava infeliz. — Abanei-o e gritei-lhe, até lhe dei um estalo na cara. O Gigante tentou puxar por ele para o pôr em pé, mas ele era demasiado pesado. Lembras-te como ele se
costumava enrolar no chão durante o treino, e ficar ali a choramingar? Na Fortaleza de Craster nem sequer choramingava. O Adaga e o Ollo andavam a desfazer as paredes à procura de comida, o Garth e o
Garth lutavam, alguns dos outros violavam as mulheres de Craster. O Edd Doloroso achou que o grupo do Adaga ia matar todos os homens leais para evitar que contassem o que eles tinham feito, e eram dois
para cada um de nós. Abandonámos Sam com o Velho Urso. Ele não se queria mexer, Jon.
  Eras seu irmão, quase disse. Como pudeste abandoná-lo no meio de selvagens e assassinos?
  — Ele pode ainda estar vivo — disse Pyp. — Pode pregar-nos a todos uma surpresa e chegar aí amanhã a cavalo.
  — Com a cabeça do Mance Rayder, pois. — Jon via que Grenn estava a tentar parecer alegre. — Sam, o Matador!
  Jon voltou a tentar sentar-se. Foi um erro tão grande como da primeira vez. Gritou, praguejando.
  — Grenn, vai acordar o Meistre Aemon — disse Pyp. — Diz-lhe que o Jon precisa de mais leite da papoila.
  Sim, pensou Jon.
  — Não — disse. — O Magnar…
  — Nós sabemos — disse Pyp. — As sentinelas na Muralha receberam ordens para manter um olho virado para Sul, e Donal Noye despachou alguns homens para o Espinhaço do Tempo, para vigiar a Estrada de Rei.
O Meistre Aemon também enviou aves para Atalaialeste e a Torre Sombria.
  O Meistre Aemon aproximou-se da cama, com uma mão no ombro de Grenn.
  — Jon, sê brando contigo. É bom que tenhas acordado, mas tens de dar a ti próprio tempo para sarar. Afogámos o ferimento em vinho a ferver, e fechámo-lo com um cataplasma de urtigas, sementes de mostarda
e pão bolorento, mas se não descansares…
  — Não posso. — Jon lutou contra a dor para se sentar. — Mance estará aqui em breve… milhares de homens, gigantes, mamutes… já foi enviada a notícia a Winterfell? Ao rei? — Suor pingou-lhe da testa.
Fechou os olhos por um momento.
  Grenn dirigiu a Pyp um olhar estranho.
  — Ele não sabe.
  — Jon — disse o Meistre Aemon —, aconteceram muitas coisas enquanto estiveste longe, e poucas foram boas. Balon Greyjoy voltou a coroar-se e mandou os seus dracares contra o Norte. Brotam reis de todos
os lados como ervas daninhas, e enviámos apelos a todos eles, mas nenhum virá. Têm usos mais prementes para as suas espadas, e nós estamos longe e esquecidos. E Winterfell… Jon, sê forte… Winterfell já
não existe.
  — Não existe? — Jon fitou os olhos brancos e a cara enrugada de Aemon. — Os meus irmãos estão em Winterfell. Bran e Rickon…
  O Meistre tocou-lhe a testa.
  — Lamento tanto, Jon. Os teus irmãos morreram às ordens de Theon Greyjoy, depois de tomar Winterfell em nome do pai. Quando os vassalos do teu pai ameaçaram retomar o castelo, ele entregou-o às chamas.
  — Os teus irmãos foram vingados — disse Grenn. — O filho de Bolton matou todos os homens de ferro, e diz-se que está a esfolar Theon Greyjoy centímetro a centímetro pelo que fez.
  — Lamento, Jon. — Pyp apertou-lhe o ombro. — Todos lamentamos.
  Jon nunca gostara de Theon Greyjoy, mas ele fora protegido do pai. Outro espasmo de dor atacou-lhe a perna e sem saber como viu-se de novo deitado sobre as costas.
  — Há algum engano — insistiu. — Em Corodarrainha vi um lobo gigante, um lobo gigante cinzento… cinzento… ele reconheceu-me. — Se Bran estava morto, poderia uma parte dele sobreviver no seu lobo, tal
como Orell vivia no interior da sua águia?
  — Bebe isto. — Grenn levou-lhe uma taça aos lábios. Jon bebeu. Tinha a cabeça cheia de lobos e águias e do som dos risos dos irmãos. As caras em volta dele começaram a misturar-se e a desvanecer-se.
Eles não podem estar mortos. Theon nunca faria isso. E Winterfell… granito cinzento, carvalho e ferro, corvos a voar em volta das torres, vapor a erguer-se das lagoas quentes no bosque sagrado, os reis
de pedra sentados nos seus tronos… como podia Winterfell ter desaparecido?
  Quando os sonhos o dominaram, deu por si de novo de volta a casa, a chapinhar nas lagoas quentes sob um enorme represeiro branco que tinha a cara do pai. Ygritte acompanhava-o, rindo-se dele, desembaraçando-se
das peles até ficar nua como no dia do seu nome, tentando beijá-lo, mas ele não podia fazê-lo, com o pai a observar, não. Ele era do sangue de Winterfell, um homem da Patrulha da Noite. Não gerarei um
bastardo, disse-lhe. Não o farei. Não o farei.
  — Não sabes nada, Jon Snow — sussurrou ela, com a pele a dissolver-se na água quente, e a carne a desprender-se dos ossos até que só restaram o crânio e o esqueleto, e a lagoa borbulhava, espessa e
rubra.
 
 CATELYN
  Ouviram o Ramo Verde antes de o verem, um sussurro incessante, como o rugido de um grande animal qualquer. O rio era uma torrente fervente, com uma largura vez e meia superior à que tivera no ano anterior,
quando Robb dividira o exército ali e jurara tomar uma Frey como noiva, como preço a pagar pela travessia. Precisava então de Lorde Walder e da sua ponte, e precisa ainda mais deles agora. O coração de
Catelyn estava cheio de desconfianças enquanto observava as escuras águas verdes que passavam por ela a rodopiar. Não há maneira de vadearmos isto, ou de atravessarmos a nado, e pode passar-se uma volta
de Lua até que estas águas voltem a baixar.
  Quando se aproximaram das Gémeas, Robb colocou a coroa e chamou Catelyn e Edmure para cavalgarem a seu lado. Sor Raynald Westerling levava o seu estandarte, o lobo gigante de Stark sobre o seu fundo
branco de gelo.
  As torres da casa do portão emergiram da chuva como fantasmas, aparições cinzentas e brumosas que iam ficando mais sólidas à medida que se aproximavam. A fortaleza Frey não era um castelo mas sim dois;
imagens ao espelho de pedra húmida, erguidas dos lados opostos da água, ligadas por uma grande ponte em arco. No centro dessa ponte erguia-se a Torre da Água, com o rio a correr por baixo, a direito e
rápido. Tinham sido abertos canais nas margens, para formar fossos que transformavam cada uma das gémeas numa ilha. As chuvas tinham transformado os fossos em lagos pouco profundos.
  Do outro lado das águas turbulentas, Catelyn conseguia ver vários milhares de homens acampados em volta do castelo oriental, com estandartes que pendiam, como outros tantos gatos afogados, das lanças
à porta das suas tendas. A chuva tornava impossível distinguir cores e símbolos. A maioria era cinzenta, parecia-lhe, se bem que sob aquele tipo de céu, todo o mundo parecesse cinzento.
  — Pisa aqui com cautela, Robb — disse, acautelando o filho. — O Lorde Walder tem uma pele fina e uma língua aguçada, e alguns destes seus filhos deverão sem dúvida ter saído ao pai. Não podes deixar
que te provoquem.
  — Eu conheço os Frey, mãe. Sei o quanto os desfeiteei, e até que ponto necessito deles. Serei doce como um septão.
  Catelyn mexeu-se desconfortavelmente na sela.
  — Se nos forem oferecidos refrescos à chegada, não recuses sob nenhum pretexto. Aceita o que for oferecido, e come e bebe onde todos possam ver. Se nada for oferecido, pede pão, queijo e uma taça de
vinho.
  — Estou mais molhado do que faminto…
  — Robb, escuta-me. Depois de comeres do seu pão e sal, tens os direitos do hóspede, e as leis da hospitalidade protegem-te sob o telhado dele.
  Robb pareceu mais divertido do que assustado.
  — Tenho um exército para me proteger, mãe, não preciso de confiar em pão e sal. Mas se aprouver ao Lorde Walder servir-me corvo guisado recheado de larvas, comê-lo-ei e pedirei uma segunda tigela.
  Quatro Frey saíram a cavalo da casa do portão ocidental, envoltos em pesados mantos e espessa lã cinzenta. Catelyn reconheceu Sor Ryman, filho do falecido Sor Stevron, o primogénito do Lorde Walder.
Com o pai morto, Ryman era herdeiro das Gémeas. O rosto que viu por baixo do seu capuz era carnudo, largo e estúpido. Os outros três eram provavelmente filhos dele, bisnetos do Lorde Walder.
  Edmure confirmou essa suposição.
  — Edwyn é o mais velho, o homem pálido e esguio com cara de prisão de ventre. O duro com a barba é o Walder Negro, um tipo bem desagradável. Petyr vem no baio, é o rapaz com a cara destroçada. Os irmãos
chamam-lhe Petyr Borbulha. Só é um ano ou dois mais velho do que Robb, mas o Lorde Walder casou-o aos dez anos com uma mulher com o triplo da sua idade. Deuses, espero que Roslin não se pareça com ele.
  Pararam para permitir que os anfitriões viessem ter com eles. O estandarte de Robb pendia do seu mastro, e o som constante da chuva misturava-se com o estrondo do Ramo Verde em enchente, à direita.
Vento Cinzento avançou ligeiramente, de cauda rígida, a observar através de olhos rasgados de um dourado-escuro. Quando os Frey se aproximaram até meia dúzia de metros, Catelyn ouviu-o rosnar, um ribombar
profundo que parecia quase unir-se à fúria do rio. Robb pareceu alarmado.
  — Vento Cinzento, a mim. A mim!
  Mas o lobo gigante saltou em frente, rosnando.
  O palafrém de Sor Ryman recuou com um relincho de medo, e o de Petyr Borbulha empinou-se e derrubou-o. Só o Walder Negro manteve a montada sob controlo. Estendeu a mão para o cabo da espada.
  — Não! — estava Robb a gritar. — Vento Cinzento, aqui. Aqui. — Catelyn esporeou e interpôs-se entre o lobo gigante e os outros cavalos. Lama jorrou dos cascos da sua égua quando cortou o caminho ao
Vento Cinzento. O lobo desviou-se, e só então pareceu ouvir os chamamentos de Robb.
  — É assim que um Stark faz as pazes? — gritou o Walder Negro, com aço nu na mão. — Parece-me pobre saudação mandar o vosso lobo contra nós. Foi para isto que viestes?
  Sor Ryman desmontara para ajudar o Petyr Borbulha a pôr-se em pé. O rapaz estava enlameado, mas não se ferira.
  — Vim pedir perdão pela desfeita que fiz à vossa Casa, e para assistir ao casamento do meu tio. — Robb saltou da sua sela. — Petyr, levai o meu cavalo. O vosso já quase que chegou ao estábulo.
  Petyr olhou para o pai e disse:
  — Posso seguir atrás de um dos meus irmãos.
  Os Frey não mostraram qualquer sinal de reverência.
  — Chegais tarde — declarou Sor Ryman.
  — As chuvas atrasaram-nos — disse Robb. — Enviei uma ave.
  — Não vejo a mulher.
  Por a mulher, Sor Ryman referia-se a Jeyne Westerling, e todos o sabiam. A Senhora Catelyn sorriu com uma expressão apologética.
  — A Rainha Jeyne estava fatigada após tantas viagens, senhores. Sem dúvida que ficará feliz por vir de visita quando os tempos estiverem mais estáveis.
  — O meu avô ficará descontente. — Embora o Walder Negro tivesse embainhado a espada, o tom de voz não era mais amigável. — Falei-lhe muito da senhora, e ele desejava contemplá-la com os seus próprios
olhos.
  Edwyn limpou a garganta.
  — Temos aposentos preparados para vós na Torre da Água, Vossa Graça — disse a Robb com uma cortesia cuidadosa — bem como para o Lorde Tully e a Senhora Stark. Os senhores vossos vassalos também são
convidados a abrigar-se sob o nosso tecto e a participar no banquete de casamento.
  — E os meus homens? — perguntou Robb.
  — O senhor meu avô lamenta não poder alimentar ou albergar uma hoste tão grande. Temos sentido grandes dificuldades para encontrar forragem e mantimentos para os nossos próprios recrutas. Apesar disso,
os vossos homens não serão negligenciados. Se atravessarem e montarem o acampamento junto do nosso, levaremos barris de vinho e cerveja em quantidade suficiente para que todos bebam à saúde do Lorde Edmure
e da sua noiva. Erguemos três grandes tendas para banquetes na outra margem, para lhes dar algum abrigo das chuvas.
  — O senhor vosso pai é muito gentil. Os meus homens agradecer-lhe-ão. Tiveram uma longa e húmida viagem.
  Edmure Tully fez avançar o cavalo.
  — Quando conhecerei a minha prometida?
  — Ela espera-vos lá dentro — prometeu Edwyn Frey. — Eu sei que lhe ireis perdoar se parecer tímida. Tem esperado este dia quase com ansiedade, pobre donzela. Mas talvez devamos prosseguir a conversa
fora desta chuva?
  — Certamente. — Sor Ryman voltou a montar, puxando Petyr Borbulha para trás de si. — Se quiserdes seguir-me, o meu pai espera. — Virou a cabeça do palafrém na direcção das Gémeas.
  Edmure pôs-se ao lado de Catelyn.
  — O Atrasado Lorde Frey podia ter achado por bem ter-nos vindo receber em pessoa — protestou. — Eu sou o seu suserano e o seu futuro genro, e Robb é o seu rei.
  — Quando tiveres noventa e um anos, irmão, verás a vontade que tens de andar a cavalo pela chuva. — Mas perguntou a si própria se aquilo seria a verdade inteira. O Lorde Walder deslocava-se normalmente
numa liteira coberta, que teria mantido a maior parte da chuva afastada. Uma desfeita deliberada? Se fosse, podia ser a primeira de muitas outras ainda por vir.
  Houve mais problemas na casa do portão. Vento Cinzento recusou-se a avançar a meio da ponte levadiça, sacudiu a chuva do pêlo e uivou à porta levadiça. Robb assobiou impacientemente.
  — Vento Cinzento. Que se passa? Vento Cinzento, comigo. — Mas o lobo gigante limitou-se a descobrir os dentes. Ele não gosta deste lugar, pensou Catelyn. Robb teve de se agachar e falar calmamente ao
lobo antes de o animal consentir em passar sob a porta levadiça. Por essa altura já o Lothar Coxo e Walder Rivers se tinham aproximado.
  — O que ele teme é o som da água — disse Rivers. — Os animais sabem que devem evitar o rio em cheia.
  — Um canil seco e uma perna de carneiro vão pô-lo de novo bom — disse alegremente Lothar. — Deverei chamar o nosso mestre dos cães?
  — Ele é um lobo gigante, não um cão — disse Robb — e é perigoso para os homens que não conhece. Sor Raynald, ficai com ele. Não o levarei neste estado para o salão do Lorde Walder.
  Foi hábil, decidiu Catelyn. Robb mantém também o Westerling longe da vista do Lorde Walder.
  A gota e os ossos quebradiços tinham cobrado o seu preço ao velho Walder Frey. Foram encontrá-lo apoiado no seu cadeirão com uma almofada por baixo e uma veste de arminho sobre as pernas. A cadeira
era de carvalho negro, com o espaldar esculpido por forma a assemelhar-se a duas robustas torres, unidas por uma ponte em arco, tão maciças que o seu abraço transformava o velho numa grotesca criança.
Havia algo de abutre no Lorde Walder, e bastante mais de doninha. A sua cabeça calva, manchada pela idade, projectava-se dos ombros descarnados no topo de um longo pescoço cor-de-rosa. Pele solta pendia
sob o seu queixo recuado, os olhos eram remelosos e enevoados, e a boca desdentada movia-se constantemente, sugando o ar vazio como um bebé suga o seio da mãe.
  A oitava Senhora Frey estava em pé ao lado do cadeirão do Lorde Walder. Aos seus pés sentava-se uma versão algo mais nova de si próprio, um homem corcovado e magro de cinquenta anos, cujo trajo dispendioso
de lã azul e cetim cinzento era estranhamente realçado por uma coroa e colar ornamentados por minúsculos guizos de latão. A semelhança entre ele e o seu senhor era notável, excepto nos olhos; os do Lorde
Walder eram pequenos, sombrios e suspicazes, os do outro grandes, amigáveis e vagos. Catelyn lembrou-se de que um dos filhos do Lorde Walder fora pai de um idiota muitos anos antes. Durante visitas anteriores,
o Senhor da Travessia tivera sempre o cuidado de esconder aquele neto. Terá ele usado sempre uma coroa de bobo, ou terá sido isto pensado como forma de troçar de Robb? Era uma pergunta que não se atrevia
a fazer.
  Filhos, filhas, netos, maridos, esposas e criados Frey atulhavam o resto do salão. Mas foi o velho que falou.
  — Perdoar-me-eis por não me ajoelhar, eu sei. As minhas pernas já não funcionam como outrora, embora aquilo que pende entre elas trabalhe bastante bem, heh. — A boca abriu-se-lhe num sorriso desdentado
enquanto examinava a coroa de Robb. — Alguns diriam que o rei que se coroa com bronze é um pobre rei, Vossa Graça.
  — O bronze e o ferro são mais fortes do que o ouro e a prata — respondeu Robb. — Os antigos Reis do Inverno usavam uma coroa de espadas como esta.
  — De pouco lhes serviu quando os dragões chegaram. Heh. — Aquele heh pareceu agradar ao idiota, que balançou a cabeça de um lado para o outro, fazendo tilintar a coroa e o colar. — Senhor — disse o
Lorde Walder —, perdoai o barulho do meu Aegon. Ele tem menos miolos do que um cranogmano, e nunca tinha conhecido um rei. É um dos rapazes de Stevron. Chamamos-lhe Guizo.
  — O Sor Stevron falou dele, senhor. — Robb sorriu para o idiota. — Prazer em conhecer-vos Aegon. O vosso pai era um homem corajoso.
  O Guizo fez soar os guizos. Uma fina linha de cuspo escorreu-lhe de um canto da boca quando sorriu.
  — Poupai o vosso real fôlego. Falar com ele é como falar com um penico. — O Lorde Walder transferiu o olhar para os outros. — Bem, Senhora Catelyn, vejo que regressastes até nós. E o jovem Sor Edmure,
o vencedor do Moinho de Pedra. Agora o Lorde Tully, terei de me lembrar disso. Sois o quinto Lorde Tully que conheço. Sobrevivi aos outros quatro, heh. A vossa noiva anda por aqui, algures. Suponho que
quereis dar-lhe uma vista de olhos.
  — Gostaria, senhor.
  — Então dareis. Mas vestida. Ela é uma rapariga modesta, e donzela. Não a vereis nua até à noite de núpcias. — O Lorde Walder cacarejou. — Heh. Em breve, em breve. — Virou a cabeça. — Benfrey, vai buscar
a tua irmã. E despacha-te, o Lorde Tully percorreu todo o caminho desde Correrrio. — Um jovem cavaleiro com um sobretudo esquartelado fez uma vénia e retirou-se, e o velho voltou a virar-se para Robb.
— E onde está a vossa noiva, Vossa Graça? A bela Rainha Jeyne. Uma Westerling do Despenhadeiro, segundo me dizem, heh.
  — Deixei-a em Correrrio, senhor. Ela estava demasiado cansada para mais viagens, conforme expliquei a Sor Ryman.
  — Isso deixa-me muito triste. Queria contemplá-la com os meus próprios e fracos olhos. Todos queríamos, heh. Não é verdade, minha senhora?
  A pálida e delgada Senhora Frey pareceu sobressaltada por lhe ter sido solicitado que falasse.
  — S-sim, senhor. Todos nós desejávamos muito prestar homenagem à Rainha Jeyne. Deve ser bela.
  — É muito bela, senhora. — Havia uma quietude gelada na voz de Robb que recordou a Catelyn o pai.
  Ou o velho não a ouviu ou recusou-se a prestar-lhe atenção.
  — Mais bela do que a minha descendência, heh? De outro modo, como teria o seu rosto e formas levado a Graça Real a esquecer a sua promessa solene?
  Robb suportou a censura com dignidade.
  — Não há palavras que possam compensar esse facto, bem sei, mas vim dar satisfações pela desfeita que fiz à vossa Casa, e suplicar o vosso perdão, senhor.
  — Satisfações, heh. Sim, jurastes dar satisfação, eu lembro-me. Sou velho, mas não me esqueço dessas coisas. Ao contrário de certos reis, ao que parece. Os jovens não se lembram de nada quando vêem
uma cara bonita e um belo e firme par de mamas, não é? Eu era igual. Alguns poderão dizer que ainda sou, heh heh. Estariam errados, porém, tão errados como vós. Mas agora aqui estais para fazer as pazes.
No entanto, foram as minhas raparigas que desprezastes. Talvez sejam elas quem deve ouvir-vos a suplicar perdão, Vossa Graça. As minhas donzelas. Olhai para elas. — Quando sacudiu os dedos, uma chuva
de feminilidade abandonou os seus lugares junto das paredes para se alinhar sob o estrado. O Guizo também começou a erguer-se, com os guizos a cantar alegremente, mas a Senhora Frey agarrou na manga do
idiota e puxou-o para baixo.
  O Lorde Walder foi-as nomeando.
  — A minha filha Arwyn — disse ele duma rapariga de catorze anos. — Shirei, a mais nova das minhas filhas legítimas. Ami e Marianne são netas. Casei Ami com Sor Pate de Seterrios, mas a Montanha matou
esse palerma, e por isso cá a tenho de volta. Aquela é uma Cersei, mas chamamos-lhe Pequena Abelha, a mãe é uma Beesbury. Mais netas. Uma é uma Walda, e as outras… bem, têm nomes, sejam eles quais forem…
  — Eu sou a Merry, Senhor Avô — disse uma rapariga.
  — És barulhenta, isso é certo. Ao lado da Barulhenta está a minha filha Tyta. Depois outra Walda. Alyx, Marissa… és tu, Marissa? Bem me parecia. Ela não é sempre careca. O Meistre rapou-lhe o cabelo,
mas jura que em breve voltará a crescer. As gémeas são Serra e Sarra. — Semicerrou os olhos na direcção de uma das raparigas mais novas. — Heh, tu és outra Walda?
  A rapariga não podia ter mais de quatro anos.
  — Eu sou a Walda de Sor Aemon Rivers, Senhor Bisavô. — Fez uma vénia.
  — Há quanto tempo falas? Não que tenhas alguma coisa sensata a dizer, o teu pai nunca teve. E além do mais é filho de um bastardo, heh. Vai-te embora, só queria Freys aqui em cima. O Rei no Norte não
se interessa por material ilegítimo. — O Lorde Walder olhou de soslaio para Robb, enquanto o Guizo sacudia a cabeça e tilintava. — Aqui estão elas, todas donzelas. Bem, e uma viúva, mas há quem goste
de uma mulher já domada. Podíeis ter escolhido qualquer uma.
  — Teria sido uma escolha impossível, senhor — disse Robb com uma cortesia cuidadosa. — São todas demasiado adoráveis.
  O Lorde Walder fungou.
  — E ainda dizem que os meus olhos são maus. Algumas serviriam bastante bem, suponho. Outras… bem, não importa. Não eram suficientemente boas para o Rei no Norte, heh. Que tendes agora a dizer?
  — Minhas senhoras — Robb parecia desesperadamente desconfortável, mas sabia que aquele momento chegaria e enfrentou-o sem vacilar. — Todos os homens devem cumprir com a palavra dada, e os reis mais
do que ninguém. Eu prometi casar-me com uma de vós e quebrei esse juramento. A culpa não vos cabe. Fiz o que fiz não para vos desfeitear, mas sim porque amava outra. Não há palavras que possam corrigir
o que foi feito, bem sei, mas venho perante vós para vos pedir perdão, e que os Frey da Travessia e os Stark de Winterfell possam voltar a ser amigos.
  As raparigas mais pequenas agitaram-se ansiosamente. As irmãs mais velhas esperaram pelo Lorde Walder, no seu trono negro de carvalho. O Guizo abanou-se de um lado para o outro, com os guizos a tilintar
no colar e na coroa.
  — Óptimo — disse o Senhor da Travessia. — Isso foi muito bom, Vossa Graça. “Não há palavras que possam corrigir o que foi feito”, heh. Bem dito, bem dito. Espero que não vos recuseis a dançar com as
minhas filhas no banquete de casamento. Isso satisfaria o coração de um velho, heh. — Abanou a sua cabeça enrugada e rosada para cima e para baixo, de uma forma muito semelhante ao que o neto idiota fizera,
embora o Lorde Walder não usasse guizos. — E ali está ela, Lorde Edmure. A minha filha Roslin, o meu botãozinho mais precioso, heh.
  Sor Benfrey introduziu-a no salão. Pareciam-se o suficiente para serem irmãos verdadeiros. Julgando pelas idades, ambos eram filhos da sexta Senhora Frey; uma Rosby, segundo Catelyn julgava recordar.
  Roslin era pequena para a idade, com uma pele tão branca como se tivesse acabado de sair de um banho de leite. Tinha um rosto agradável, com um queixo pequeno, nariz delicado e grandes olhos castanhos.
Espesso cabelo castanho caía-lhe em ondas soltas até uma cintura tão minúscula que Edmure seria capaz de rodeá-la com as mãos. Por baixo do corpete rendado do seu vestido azul-claro, os seios pareciam
pequenos mas bem formados.
  — Vossa Graça. — A rapariga caiu de joelhos. — Lorde Edmure, espero não ser um desapontamento para vós.
  Longe disso, pensou Catelyn. A cara do irmão iluminara-se ao vê-la.
  — Sois para mim um deleite, senhora — disse Edmure. — E sei que o sereis sempre.
  Roslin tinha uma pequena fenda entre dois dos seus dentes da frente que a deixava tímida com os sorrisos, mas a falha era quase cativante. Bastante bonita, pensou Catelyn, mas tão pequena, e tem sangue
Rosby. Os Rosby nunca tinham sido robustos. Preferia de longe as constituições de algumas das raparigas mais velhas presentes no salão; filhas ou netas, não podia ter a certeza. Pareciam-se com os Crakehall,
e a terceira esposa do Lorde Frey pertencera a essa Casa. Ancas largas para dar à luz crianças, grandes seios para as criar, braços fortes para as transportar. Os Crakehall sempre foram uma família de
ossos grandes e fortes.
  — O senhor é gentil — disse a Senhora Roslin a Edmure.
  — A senhora é bela. — Edmure tomou-lhe a mão e ergueu-a. — Mas porque estais a chorar?
  — De alegria — disse Roslin. — Choro de alegria, senhor.
  — Basta — interrompeu o Lorde Walder. — Podes chorar e sussurrar depois de estares casada, heh. Benfrey, leva a tua irmã de volta aos seus aposentos, ela tem de se preparar para um casamento. E umas
núpcias, heh, a melhor parte. Para todos, para todos. — A boca moveu-se para dentro e para fora. — Teremos música, uma música tão doce, e vinho, heh, o tinto correrá, e vamos endireitar algumas coisas
tortas. Mas agora estais cansados, e também molhados, a pingar para o meu chão. Há lareiras à vossa espera, e vinho quente com especiarias, e banhos, se os quiserdes. Lothar, leva os nossos hóspedes às
suas acomodações.
  — Tenho de tratar da travessia dos meus homens para a outra margem, senhor — disse Robb.
  — Eles não se perderão — objectou o Lorde Walder. — Já atravessaram uma vez, não foi? Quando viestes do norte. Quisestes atravessar, e eu concedi-vos passagem, e não haveis dito talvez, heh. Mas fazei
o que quiserdes. Levai todos os homens pela mão, se assim entenderdes, por mim tanto faz.
  — Senhor! — Catelyn quase esquecera. — Alguns alimentos seriam muito bem-vindos. Percorremos muitas léguas à chuva.
  A boca de Walder Frey moveu-se para dentro e para fora.
  — Alimentos, heh. Um pão, um pouco de queijo, talvez uma salsicha.
  — Algum vinho para empurrar para baixo — disse Robb. — E sal.
  — Pão e sal. Heh. Certamente, certamente. — O velho bateu palmas, e criados entraram no salão, trazendo jarros de vinho e bandejas com pão, queijo e manteiga. O próprio Lorde Walder pegou numa taça
de tinto, e ergueu-a com uma mão pintalgada. — Meus hóspedes — disse. — Meus hóspedes de honra. Sede bem-vindos sob o meu tecto e à minha mesa.
  — Agradecemo-vos pela vossa hospitalidade, senhor — respondeu Robb. Edmure ecoou as suas palavras, e o mesmo fez o Grande-Jon, Sor Marq Piper e os outros. Beberam do vinho dele, comeram do seu pão e
manteiga. Catelyn provou o vinho e mordiscou um pouco de pão, e sentiu-se muito melhor por causa disso. Agora devemos estar a salvo, pensou.
  Sabendo como o velho podia ser mesquinho, esperara que os aposentos que lhes seriam dados fossem desolados e tristonhos. Mas os Frey pareciam ter feito mais do que amplos preparativos para eles. A câmara
nupcial era grande e estava ricamente mobilada, dominada por uma grande cama com colchão de penas e colunas nos cantos, esculpidas como torres de castelos. As colgaduras eram do vermelho e azul Tully,
uma cortesia simpática. Tapetes perfumados cobriam um chão de tabuado, e uma janela alta e provida de persianas abria-se para Sul. O quarto de Catelyn era pequeno, mas tinha uma mobília bonita e era confortável,
com um fogo a arder na lareira. O Lothar Coxo assegurou-lhes que Robb teria uma suite inteira, como era próprio de um rei.
  — Se houver algo que vos faça falta, basta que o digais a um dos guardas. — Fez uma vénia e retirou-se, coxeando pesadamente enquanto descia os degraus em espiral.
  — Devíamos colocar os nossos próprios guardas — disse Catelyn ao irmão. Descansaria mais facilmente com homens Stark e Tully à sua porta. A audiência com o Lorde Walder não fora tão penosa como temera,
mas mesmo assim ficaria feliz quando aquilo terminasse. Alguns dias mais, e Robb partirá para a batalha, e eu para um cativeiro confortável em Guardamar. Não tinha dúvidas de que o Lorde Jason lhe mostraria
todas as cortesias, mas a ideia ainda a deprimia.
  Ouvia o som dos cavalos, em baixo, vindo da longa coluna de homens montados que abria caminho através da ponte, de castelo a castelo. As pedras trovejavam com a passagem de carroças muito carregadas.
Catelyn foi até à janela e olhou para fora, a fim de ver a hoste de Robb emergir da gémea oriental.
  — A chuva parece estar a abrandar.
  — Agora que estamos cá dentro. — Edmure estava em pé junto do fogo, deixando-se banhar pelo calor. — Que achaste de Roslin?
  Demasiado pequena e delicada. Dar à luz ser-lhe-á duro. Mas o irmão parecia bastante satisfeito com a rapariga, e por isso tudo o que disse foi:
  — Doce.
  — Creio que ela gostou de mim. Porque estava a chorar?
  — É uma donzela na véspera do casamento. São de esperar algumas lágrimas. — Lysa chorara lagos na manhã do casamento de ambas, embora tivesse conseguido estar de olhos secos e radiante quando Jon Arryn
lhe pusera o seu manto creme e azul sobre os ombros.
  — Ela é mais bonita do que me atrevia a esperar. — Edmure ergueu uma mão antes de Catelyn poder falar. — Eu sei que há coisas mais importantes, poupa-me ao sermão, septã. Mas mesmo assim… viste algumas
das outras donzelas que o Frey exibiu? A que tinha o tique? Seria aquilo a doença dos tremores? E aquelas gémeas tinham mais crateras e bicos nas caras do que o Petyr Borbulha. Quando vi aquele bando,
soube que Roslin seria careca e zarolha, com a inteligência do Guizo e o temperamento do Walder Negro. Mas ela parece tão gentil como bela. — Fez uma expressão perplexa. — Porque haveria a velha doninha
de recusar que eu escolhesse se não tencionava impingir-me qualquer coisa hedionda?
  — A tua queda por uma cara bonita é bem conhecida — relembrou-lhe Catelyn. — Talvez o Lorde Walder realmente queira que sejas feliz com a tua noiva. — Ou, o que é mais provável, talvez não tenha querido
que tu recuasses perante um furúnculo e lhe dificultasses os planos. — Ou pode ser que Roslin seja a favorita do velho. O Senhor de Correrrio é uma união muito melhor do que a maior parte das suas filhas
podem esperar.
  — Isso é verdade. — Mas o irmão ainda parecia incerto. — Será possível que a rapariga seja estéril?
  — O Lorde Walder quer que o neto herde Correrrio. Que objectivo teria em dar-te uma esposa estéril?
  — Livra-se de uma filha que ninguém mais aceitaria.
  — De pouco lhe serviria. Walder Frey é mesquinho, mas não é estúpido.
  — Mesmo assim… será possível?
  — Sim — concedeu Catelyn com relutância. — Há doenças que uma rapariga pode ter durante a infância que a deixam incapaz de conceber. No entanto, não existe motivo para crer que a Senhora Roslin tenha
delas sofrido. — Percorreu o quarto com os olhos. — Os Frey receberam-nos com maior amabilidade do que eu esperava, em boa verdade.
  Edmure soltou uma gargalhada.
  — Umas quantas palavras espinhosas e um pouco de regozijo indecoroso. Vindo dele, é cortesia. Esperava que a velha doninha nos urinasse no vinho e nos obrigasse a elogiar a colheita.
  O gracejo deixou Catelyn estranhamente inquieta.
  — Se me deres licença, devia ir vestir roupa seca.
  — Como queiras. — Edmure bocejou. — Eu talvez vá dormir uma hora.
  Ela retirou-se para o seu quarto. A arca de roupa que trouxera de Correrrio tinha sido trazida para cima e posta aos pés da cama. Depois de se despir e de pendurar a roupa molhada perto da lareira,
pôs um vestido quente de lã no vermelho e azul dos Tully, lavou e escovou o cabelo, deixou-o secar, e foi em busca dos Frey.
  O trono negro de carvalho do Lorde Walder estava vazio quando entrou no salão, mas alguns dos seus filhos estavam a beber perto do fogo. O Lothar Coxo ergueu-se desajeitadamente quando a viu.
  — Senhora Catelyn, julguei que estivésseis a descansar. Como posso ser-vos útil?
  — Estes são os vossos irmãos? — perguntou ela.
  — Irmãos, meios-irmãos, cunhados e sobrinhos. Raymund e eu partilhámos uma mãe. O Lorde Lucias Vypren é esposo da minha meia-irmã Lythene, e Sor Damon é filho deles. Creio que conheceis o meu meio-irmão
Sor Hosteen. E este é Sor Leslyn Haigh e os filhos, Sor Harys e Sor Donnel.
  — Muito prazer, senhores. Sor Perwyn está no castelo? Ele ajudou a escoltar-me a Ponta Tempestade e de volta a Correrrio, quando Robb me enviou para falar com o Lorde Renly. Estava com vontade de o
rever.
  — Perwyn não se encontra nas Gémeas — disse o Lothar Coxo. — Dar-lhe-ei os vossos cumprimentos. Sei que ele terá pena de não se encontrar convosco.
  — Decerto regressará a tempo do casamento da Senhora Roslin?
  — Ele tinha essa esperança — disse o Lothar Coxo — mas com esta chuva… vistes como correm os rios, senhora.
  — De facto, vi — disse Catelyn. — Posso pedir-vos que me digais como posso falar com o vosso Meistre?
  — Não estais bem, senhora? — perguntou Sor Hosteen, um homem poderoso com um forte maxilar quadrado.
  — É uma coisa de mulher. Nada que vos deva preocupar, sor.
  Lothar, sempre atencioso, saiu com ela do salão, acompanhou-a por alguns degraus acima e ao longo de uma ponte coberta até outra escada.
  — Devereis encontrar o Meistre Brenett no torreão lá em cima, senhora.
  Catelyn quase esperara que o Meistre fosse mais um dos filhos de Walder Frey, mas Brenett não tinha parecenças. Era um homem grande e gordo, calvo, com um queixo duplo e não muito asseado, ajuizando
pelos excrementos de corvo que manchavam as mangas das suas vestes, mas mostrou-se bastante amigável. Quando lhe falou das preocupações de Edmure a respeito da fertilidade da Senhora Roslin, soltou um
risinho.
  — O senhor vosso irmão nada tem a temer, Senhora Catelyn. Ela é pequena, admito, e estreita de ancas, mas a mãe era igual, e a Senhora Bethany deu ao Lorde Walder um filho todos os anos.
  — Quantos sobreviveram à infância? — perguntou ela sem rodeios.
  — Cinco. — Contou-os por dedos gordos como salsichas. — Sor Perwyn. Sor Benfrey. Meistre Willamen, que proferiu os votos no ano passado e agora serve o Lorde Hunter no Vale. Olyvar, que foi escudeiro
do vosso filho. E a Senhora Roslin, a mais nova. Quatro rapazes e uma menina. O Lorde Edmure terá tantos filhos que não saberá o que fazer com eles.
  — Estou certa de que isso lhe agradará. — Então a rapariga era provavelmente tão fértil como agradável de se ver. Isso deve descansar a mente de Edmure. O Lorde Walder não dera ao irmão razões de queixa,
tanto quanto Catelyn conseguisse ver.
  Não regressou ao seu quarto depois de deixar o Meistre; em vez disso, foi ter com Robb. Encontrou Robin Flint e o Sor Wendel Manderly com ele, bem como o Grande-Jon e o filho, a quem ainda chamavam
Pequeno-Jon embora ameaçasse tornar-se mais alto do que o pai. Estavam todos molhados. Outro homem, ainda mais molhado, encontrava-se em pé junto ao fogo com um manto rosa-claro forrado de pele branca.
  — Lorde Bolton — disse ela.
  — Senhora Catelyn — respondeu ele, com uma voz ténua —, é um prazer voltar a ver-vos, mesmo em tempos tão exigentes.
  — É bondade vossa dizê-lo. — Catelyn conseguia sentir sombras sobre o aposento. Até o Grande-Jon parecia melancólico e vencido. Olhou para os rostos carregados dos homens e perguntou: — O que aconteceu?
  — Lannisters no Tridente — disse Sor Wendel num tom infeliz. — O meu irmão voltou a ser capturado.
  — E o Lorde Bolton trouxe-nos mais novidades de Winterfell — acrescentou Robb. — Sor Rodrik não foi o único bom homem a morrer. Cley Cerwyn e Leobald Tallhart foram também mortos.
  — Cley Cerwyn não passava de um rapaz — disse ela, entristecida. — Então é verdade? Todos mortos e Winterfell destruído?
  Os olhos claros de Bolton encontraram-se com os seus.
  — Os homens de ferro queimaram tanto o castelo como a Vila de Inverno. Parte do vosso povo foi levado para o Forte do Pavor pelo meu filho, Ramsay.
  — O vosso bastardo foi acusado de graves crimes — relembrou-lhe Catelyn em tom penetrante. — Assassínio, violação e coisas piores.
  — Sim — disse Roose Bolton. — O seu sangue está manchado, isso não é possível negar. Mas é um bom guerreiro, tão astucioso como destemido. Quando os homens de ferro abateram Sor Rodrik, e Leobald Tallhard
pouco tempo depois, coube a Ramsay liderar a batalha, e foi o que ele fez. Jura que não embainhará a espada enquanto um único Greyjoy permanecer no Norte. Talvez esse serviço possa servir como um pouco
de compensação pelos crimes que o seu sangue bastardo o levou a cometer. — Encolheu os ombros. — Ou não. Quando a guerra terminar, Sua Graça deverá avaliar os factos e julgar. Por essa altura, espero
que a Senhora Walda já me tenha dado um filho legítimo.
  Este homem é frio, compreendeu Catelyn, e não era a primeira vez.
  — Ramsay mencionou Theon Greyjoy? — quis saber Robb. — Foi também morto, ou conseguiu fugir?
  Roose Bolton tirou uma tira rasgada de couro da bolsa que trazia à cintura.
  — O meu filho mandou isto com a carta.
  Sor Wendel virou a sua cara gorda para longe. Robin Flint e o Pequeno-Jon Umber trocaram um olhar, e o Grande-Jon resfolegou como um touro.
  — Isso é… pele? — disse Robb.
  — A pele do mindinho da mão direita de Theon Greyjoy. O meu filho é cruel, confesso. E no entanto… o que é um pouco de pele comparado com as vidas de dois jovens príncipes? Éreis mãe deles, senhora.
Posso oferecer-vos este… pequeno penhor de vingança?
  Parte de Catelyn desejou levar o macabro troféu ao coração, mas obrigou-se a resistir.
  — Guardai-o. Por favor.
  — Esfolar Theon não trará os meus irmãos de volta — disse Robb. — Quero a sua cabeça, não a sua pele.
  — Ele é o único filho sobrevivente de Balon Greyjoy — disse suavemente o Lorde Bolton, como se eles o tivessem esquecido — e agora o legítimo Rei das Ilhas de Ferro. Um rei cativo tem grande valor como
refém.
  — Refém? — A palavra irritou Catelyn. Reféns eram frequentemente trocados. — Lorde Bolton, espero que não estejais a sugerir que libertemos o homem que matou os meus filhos.
  — Quem quer que conquiste a Cadeira de Pedra do Mar quererá Theon Greyjoy morto — fez notar Bolton. — Até agrilhoado tem uma pretensão superior à de qualquer um dos seus tios. Sugiro que o mantenhamos
prisioneiro e que exijamos concessões por parte dos homens de ferro como preço a pagar pela sua execução.
  Robb pesou relutantemente a ideia, mas por fim anuiu.
  — Sim. Muito bem. Assim sendo, mantende-o vivo. Por agora. Mantende-o bem preso no Forte do Pavor até retomarmos o Norte.
  Catelyn voltou a virar-se para Roose Bolton.
  — Sor Wendel disse algo sobre Lannisters no Tridente?
  — Disse, senhora. Culpo-me pelo facto. Atrasei demasiado a partida de Harrenhal. Aenys Frey partiu vários dias antes de mim e atravessou o vau rubi, embora não sem dificuldade. Mas quando nós lá chegámos,
o rio era uma torrente. Não tive alternativa a fazer atravessar os meus homens em pequenos barcos, os quais possuíamos em quantidade insuficiente. Dois terços das minhas forças encontravam-se na margem
norte quando os Lannister atacaram aqueles que ainda esperavam para atravessar. Homens de Norrey, Locke e Burley, principalmente, com Sor Wylis Manderly e os seus cavaleiros de Porto Branco na retaguarda.
Eu estava do lado errado do Tridente, impotente para lhes prestar assistência. Sor Wylis reagrupou os nossos homens o melhor que pôde, mas Gregor Clegane atacou com cavalaria pesada e empurrou-os para
o rio. Foram tantos os que se afogaram como os que foram abatidos. A maior parte fugiu, mas os outros foram capturados.
  Gregor Clegane era sempre más notícias, pensou Catelyn. Teria Robb de voltar a marchar para Sul para lidar com ele? Ou viria a Montanha a caminho dali?
  — Então Clegane atravessou o rio?
  — Não. — A voz de Bolton era baixa, mas segura. — Deixei seiscentos homens no vau. Lanceiros dos regatos, das montanhas e da Faca Branca, um cento de arqueiros Hornwood, alguns cavaleiros livres e cavaleiros
menores, e uma poderosa força de homens Stout e Cerwyn para lhes dar apoio. Ronnel Stout e Sor Kyle Condon têm o comando. Sor Kyle era o braço-direito do falecido Lorde Cerwyn, como decerto sabeis, senhora.
Os leões não nadam melhor do que os lobos. Enquanto os rios permanecerem em cheia, Sor Gregor não atravessará.
  — A última coisa de que necessitamos é a Montanha nas nossas costas quando avançarmos pelo talude — disse Robb. — Fizestes bem, senhor.
  — É muita bondade de Vossa Graça. Sofri pesadas perdas no Ramo Verde, e Glover e Tallhart mais ainda em Valdocaso.
  — Valdocaso. — Robb fez da palavra uma praga. — Robett Glover responderá por isso quando o voltar a ver, garanto.
  — Uma loucura — concordou o Lorde Bolton — mas Glover tornou-se imprudente depois de saber que o Bosque Profundo caíra. O desgosto e o medo fazem isso aos homens.
  Valdocaso estava feito e era passado; eram as batalhas ainda a travar que preocupavam Catelyn.
  — Quantos homens trouxestes ao meu filho? — perguntou a Roose Bolton num tom contundente.
  Os estranhos olhos sem cor do homem estudaram-lhe o rosto por um instante antes de responder.
  — Cerca de quinhentos homens de cavalaria e três mil de infantaria, senhora. Homens do Forte do Pavor, na sua maior parte, e alguns de Karhold. Com a lealdade dos Karstark agora tão duvidosa, achei
melhor mantê-los por perto. Lamento que não sejam mais.
  — Deverá bastar — disse Robb. — Ficareis com o comando da minha retaguarda, Lorde Bolton. Pretendo dirigir-me ao Gargalo assim que o meu tio esteja casado. Vamos para casa.
 
 ARYA
  Os batedores aproximaram-se deles a uma hora do Ramo Verde, quando a carroça se arrastava ao longo de uma estrada lamacenta.
  — Fica com a cabeça baixa e a boca fechada — avisou-a o Cão de Caça quando os três esporearam os cavalos na direcção deles; um cavaleiro e dois escudeiros, com armaduras ligeiras e montados em palafréns
rápidos. Clegane chicoteou a parelha, um par de velhos cavalos de tracção que já tinham conhecido melhores dias. A carroça rangia e oscilava, as suas duas enormes rodas de madeira faziam esguichar lama
dos profundos sulcos da estrada a cada curva. O Estranho seguia atrás, atado ao veículo.
  O grande corcel de mau temperamento não usava armadura, jaezes ou arnês, e o próprio Cão de Caça seguia vestido de tecido grosseiro, verde e sujo, e uma capa de um cinzento-fuliginoso com um capuz que
lhe engolia a cabeça. Desde que mantivesse os olhos em baixo não era possível ver-lhe a cara, via-se apenas o branco dos seus olhos a espreitar para fora. Parecia um agricultor empobrecido. Mas um agricultor
grande. E Arya sabia que sob o tecido grosseiro havia couro fervido e cota de malha oleada. Ela parecia um filho de agricultor, ou talvez de um criador de porcos. E atrás deles seguiam quatro barris atafulhados
de porco salgado e um de pés de porco em salmoura.
  Os homens a cavalo dispersaram-se e rodearam-nos para os observar antes de se aproximarem. Clegane fez parar a carroça e esperou pacientemente. O cavaleiro trazia lança e espada, ao passo que os seus
escudeiros usavam arcos. Os símbolos nos seus gibões eram versões mais pequenas daquele que o seu chefe trazia cosido ao sobretudo; uma forquilha negra sobre barra dextra dourada em campo castanho-avermelhado.
Arya pensara revelar-se aos primeiros batedores que encontrassem, mas sempre imaginara homens de mantos cinzentos com o lobo gigante ao peito. Até poderia ter arriscado caso tivessem exibido o gigante
de Umber ou o punho de Glover, mas não conhecia o cavaleiro da forquilha nem sabia quem ele servia. A coisa mais parecida com uma forquilha que vira em Winterfell fora o tridente na mão do tritão do Lorde
Manderly.
  — Tendes negócios nas Gémeas? — perguntou o cavaleiro.
  — Porco salgado para o banquete de casamento, pela vossa mercê, sor. — O Cão de Caça resmoneou a resposta, de olhos baixos e rosto escondido.
  — Porco salgado nunca me agradou. — O cavaleiro da forquilha não deitou a Clegane mais do que o mais apressado dos relances, e não prestou qualquer atenção a Arya, mas olhou longa e duramente para o
Estranho. O garanhão não era nenhum cavalo de tracção, isso era claro à primeira vista. Um dos escudeiros quase acabou na lama quando o grande corcel negro deu uma dentada na sua montada. — Como arranjaste
este animal? — exigiu saber o cavaleiro da forquilha.
  — A senhora disse-me para o trazer, sor — disse humildemente Clegane. — É um presente de casamento para o jovem Lorde Tully.
  — Que senhora? A quem serves?
  — À velha Senhora Whent, sor.
  — Será que ela pensa que pode comprar Harrenhal de volta com um cavalo? — perguntou o cavaleiro. — Deuses, haverá algum tolo maior do que um velho tolo? — Mas fez-lhes sinal para avançar. — Ide-vos
lá embora.
  — Sim, senhor. — O Cão de Caça voltou a fazer estalar o chicote, e os velhos cavalos de carga reataram o seu cansativo rumo. As rodas tinham-se enterrado profundamente na lama durante a pausa, e foi
preciso algum tempo para que a parelha voltasse a libertá-los. Por essa altura já os batedores se afastavam. Clegane deitou-lhes um último olhar e fungou. — Sor Donnel Haigh — disse. — Tirei-lhe mais
cavalos do que os que sou capaz de contar. E armaduras também. Uma vez quase o matei num corpo a corpo.
  — Então como é que ele não te reconheceu? — perguntou Arya.
  — Porque os cavaleiros são estúpidos, e olhar duas vezes para um camponês bexigoso qualquer estaria abaixo do nível dele. — Deu aos cavalos um toque com o chicote. — Mantém os olhos baixos e o tom respeitoso,
e diz muitas vezes sor, que a maior parte dos cavaleiros nem sequer te verão. Prestam mais atenção aos cavalos do que aos plebeus. Ele podia ter reconhecido o Estranho, se me tivesse visto alguma vez
montado nele.
  Mas teria reconhecido a tua cara. Arya não tinha dúvidas quanto a isso. Não era fácil esquecer as queimaduras de Sandor Clegane depois de as ver. E ele também não podia esconder as cicatrizes atrás
de um elmo; pelo menos desde que o elmo tivesse a forma de um cão a rosnar.
  Fora por isso que tinham necessitado da carroça e dos pés de porco em salmoura.
  — Não vou ser arrastado acorrentado até à presença do teu irmão — dissera-lhe o Cão de Caça — e prefiro não ter de abrir caminho através dos seus homens à espadeirada para chegar até ele. Portanto vamos
jogar um pequeno jogo.
  Um agricultor encontrado por acaso na Estrada de Rei fornecera-lhes a carroça, os cavalos, o vestuário e os barris, embora não de boa vontade. O Cão de Caça roubara-lhos na ponta da espada. Quando o
agricultor o amaldiçoara chamando-lhe ladrão, ele dissera:
  — Não, sou um forrageiro. Fica agradecido por ficares com a roupa de baixo. Agora tira essas botas. Senão corto-te as pernas. A escolha é tua. — O agricultor era tão grande como Clegane, mas mesmo assim
preferiu ceder as botas e ficar com as pernas.
  O anoitecer foi encontrá-los ainda a arrastar-se na direcção do Ramo Verde e dos castelos gémeos do Lorde Frey. Estou quase lá, pensou Arya. Sabia que devia sentir-se excitada, mas tinha um nó apertado
na barriga. Talvez fosse só da febre com que tinha vindo a lutar, mas talvez não. Na noite anterior tivera um pesadelo, um pesadelo terrível. Agora não se conseguia lembrar do sonho, mas a sensação permanecera
ao longo de todo o dia. Se alguma alteração houvera, fora apenas para se tornar mais forte. O medo golpeia mais profundamente do que as espadas. Tinha agora de ser forte, como o pai lhe dissera. Nada
havia entre ela e a mãe além de um portão de castelo, um rio e um exército… mas era o exército de Robb, portanto não havia ali nenhum perigo real. Pois não?
  Roose Bolton era um deles, no entanto. O Senhor Sanguessuga, como os foras-da-lei lhe chamavam. Isso deixava-a inquieta. Fugira de Harrenhal tanto para se livrar de Bolton como dos Saltimbancos Sangrentos,
e tivera de cortar a garganta de um dos seus guardas para fugir. Saberia ele que ela o fizera? Ou teria culpado Gendry ou o Tarte Quente? Teria contado à mãe? O que faria se a visse? Provavelmente nem
sequer me reconhecerá. Por aqueles dias, parecia-se mais com uma ratazana afogada do que com a copeira de um senhor. Uma ratazana afogada macho. O Cão de Caça cortara-lhe mãos-cheias de cabelo apenas
dois dias antes. Era um barbeiro ainda pior do que Yoren, e deixara-a meio careca de um lado. Robb também não me reconhecerá, aposto. Ou até a mãe. Era uma rapariguinha da última vez que os vira, no dia
em que o Lorde Eddard Stark partira de Winterfell.
  Ouviram a música antes de verem o castelo; o matraquear distante de tambores, o estrondo brônzeo de trombetas, os guinchos finos das gaitas soando ténuos sob o rugido do rio e do som da chuva a bater-lhes
nas cabeças.
  — Perdemos a boda — disse o Cão de Caça — mas parece que a festa ainda dura. Em breve, ver-me-ei livre de ti.
  Não, eu é que me verei livre de ti, pensou Arya.
  A estrada viera correndo principalmente para noroeste, mas agora virava para oeste por entre um pomar de macieiras e um milheiral submerso e derrubado pela chuva. Passaram pela última das macieiras
e ultrapassaram uma elevação; e os castelos, rio e acampamentos surgiram de repente. Havia centenas de cavalos e milhares de homens, a maioria dos quais andando de um lado para o outro em volta das três
enormes tendas para banquetes que se erguiam lado a lado, viradas para os portões do castelo, como três grandes salões feitos de tela. Robb montara o seu acampamento bem afastado das muralhas, em terreno
mais alto e mais seco, mas o Ramo Verde galgara as margens e até se apoderara de algumas tendas posicionadas de forma descuidada.
  A música que vinha dos castelos era ali mais alta. O som dos tambores e trombetas rolava pelo acampamento. Mas os músicos no castelo mais próximo não estavam a tocar a mesma canção dos do castelo da
margem oposta, e aquilo parecia mais uma batalha do que uma canção.
  — Eles não são lá muito bons — observou Arya.
  O Cão de Caça fez um ruído que podia ter sido uma gargalhada.
  — Há velhas surdas em Lannisporto a queixar-se da barulheira, aposto. Tinha ouvido dizer que os olhos de Walder Frey andavam a fraquejar, mas ninguém falou da porcaria dos seus ouvidos.
  Arya deu por si a desejar que fosse dia. Se o Sol estivesse no céu e soprasse vento, podia ter sido capaz de ver melhor os estandartes. Teria procurado o lobo gigante dos Stark, ou talvez o machado
de batalha dos Cerwyn ou o punho dos Glover. Mas nas sombras da noite, todas as cores pareciam cinzento. A chuva intensa reduzira-se a uma chuva miudinha, quase uma névoa, mas uma chuvada anterior deixara
os estandartes tão molhados como panos de loiça, encharcados e ilegíveis.
  Uma sebe de carros e carroças fora disposta ao longo do perímetro para formar uma muralha rudimentar de madeira contra qualquer ataque que pudesse surgir. Foi aí que os guardas os pararam. A lanterna
que o sargento transportava dava luz suficiente para que Arya visse que o seu manto era rosa-claro, pintalgado com lágrimas vermelhas. Os homens sob o seu comando tinham o símbolo do Senhor Sanguessuga
cosido sobre os corações, o homem esfolado do Forte do Pavor. Sandor Clegane contou-lhes a mesma história que usara com os batedores, mas o sargento Bolton era uma noz mais dura de quebrar do que Sor
Donnel Haigh.
  — Porco salgado não é carne própria para o banquete de casamento de um lorde — disse ele com um ar escarninho.
  — Também tenho pé de porco em salmoura, sor.
  — Para o banquete? Não tens, não. O banquete já está quase no fim. E eu sou um nortenho, não um cavaleiro qualquer do Sul cheio de leite.
  — Disseram-me para ir ter com o intendente ou o cozinheiro…
  — O castelo está fechado. Os fidalgos não devem ser incomodados. — O sargento pensou por um momento. — Podes descarregar ali, junto das tendas para banquetes. — Apontou com uma mão revestida de cota
de malha. — A cerveja deixa um homem com fome, e o velho Frey não há-de sentir a falta de uns quantos pés de porco. Seja como for, não tem dentes para eles. Pergunta pelo Sedgekins, ele há-de saber o
que se faz convosco. — Ladrou uma ordem, e os seus homens empurraram uma das carroças para o lado, para os deixar entrar.
  O chicote do Cão de Caça incitou a parelha a aproximar-se das tendas. Ninguém pareceu prestar-lhes nenhuma atenção. Passaram a chapinhar por fileiras de pavilhões brilhantemente coloridos, com paredes
de seda molhada que eram iluminadas como lanternas mágicas por lâmpadas e braseiros que ardiam lá dentro; brilhavam em tons de rosa, ouro e verde, faixadas, fretadas, xadrezadas, ornamentadas com aves
e feras, asnas e estrelas, rodas e armas. Arya vislumbrou uma tenda amarela com seis bolotas nas paredes, três sobre duas sobre uma. O Lorde Smallwood, compreendeu, lembrando-se de Solar de Bolotas, tão
distante, e da senhora que lhe dissera que era bonita.
  Mas por cada cintilante pavilhão de seda havia duas dúzias de feltro ou tela, opacos e escuros. Havia também tendas-casernas, suficientemente grandes para abrigar duas vintenas de soldados de infantaria,
embora até essas parecessem anãs ao lado das três grandes tendas para banquetes. Já se bebia havia horas, segundo parecia. Arya ouviu brindes gritados e o bater de taças, misturados com os sons habituais
dos acampamentos, cavalos a relinchar e cães a ladrar, carroças a trovejar pela escuridão, risos e pragas, o tinir e ressoar do aço e da madeira. A música ficou ainda mais alta quando se aproximaram do
castelo, mas por baixo dela havia um som mais profundo e escuro: o rio, o Ramo Verde em cheia, rugindo como um leão na sua toca.
  Arya torceu-se e virou-se, tentando olhar para todos os lados ao mesmo tempo, na esperança de um vislumbre de um lobo gigante, de uma tenda decorada em cinzento e branco, de uma cara que conhecesse
de Winterfell. Mas apenas viu estranhos. Fitou um homem que se aliviava nos juncos, mas não era o Alebelly. Viu uma rapariga seminua fugir de uma tenda a rir, mas a tenda era azul-clara, e não cinzenta
como a princípio julgara, e o homem que se pôs a correr atrás dela usava no gibão um gato das árvores, e não um lobo. Por baixo de uma árvore, quatro arqueiros enfiavam cordas enceradas nos entalhes dos
seus arcos, mas não eram arqueiros do pai. Um meistre atravessou-se-lhes no caminho, mas era demasiado novo e magro para ser o Meistre Luwin. Arya fitou as Gémeas, em cujas torres as janelas altas brilhavam
onde quer que houvesse uma vela a arder. Através da neblina da chuva, os castelos pareciam assustadores e misteriosos, como algo saído de uma das histórias da Velha Ama, mas não eram Winterfell.
  A aglomeração era maior junto das tendas para banquetes. As largas abas estavam atadas, abertas, e os homens entravam e saíam com cornos e canecas nas mãos, alguns com seguidoras de acampamentos. Arya
deitou uma olhadela para dentro quando o Cão de Caça passou pela primeira das três tendas, e viu centenas de homens aglomerados nos bancos e acotovelando-se em volta dos barris de hidromel, cerveja e
vinho. Lá dentro quase não havia espaço para as pessoas se moverem, mas ninguém parecia importar-se. Pelo menos estavam quentes e secos. A Arya fria e molhada invejou-os. Alguns até cantavam. A chuvinha
fina e brumosa fumegava em volta da porta devido ao calor que se escapava do interior.
  — Ao Lorde Edmure e à Senhora Roslin — ouviu uma voz gritar. Todos beberam, e alguém gritou:
  — Ao Jovem Lobo e à Rainha Jeyne.
  Quem é a Rainha Jeyne?, interrogou-se Arya por um breve momento. A única rainha que conhecia era Cersei.
  Covas para fogueiras tinham sido escavadas fora das tendas para banquetes, abrigadas sob rudes dosséis de madeira entretecida e peles que mantinham a chuva afastada, desde que caísse na vertical. Mas
o vento soprava do rio, e entrava chuva suficiente para fazer as fogueiras silvar e rodopiar. Criados viravam quartos de carne montados em espetos por cima das chamas. Os cheiros encheram a boca de Arya
de água.
  — Não devíamos parar? — perguntou a Sandor Clegane. — Há nortenhos nas tendas. — Reconhecia-os pelas barbas, pelas caras, pelos mantos de pele de urso e de foca, pelos brindes parcialmente escutados
e pelas canções que cantavam; homens Karstark, Umber e dos clãs de montanha. — Aposto que também há homens de Winterfell. — Homens do pai, homens do Jovem Lobo, os lobos gigantes de Stark.
  — O teu irmão está no castelo — disse ele. — A tua mãe também. Queres ir ter com eles ou não?
  — Sim — disse ela. — Mas e o Sedgekins? — O sargento dissera-lhes para perguntarem por Sedgekins.
  — O Sedgekins pode foder-se com um atiçador quente. — Clegane sacudiu o chicote, e fê-lo assobiar através da chuva suave até ir morder o flanco de um cavalo. — É o teu maldito irmão que eu procuro.
 
 CATELYN
  Os tambores retumbavam, retumbavam, retumbavam, e a cabeça de Catelyn retumbava com eles. As gaitas gemiam e as flautas soltavam trinados na galeria dos músicos na extremidade do salão; rabecas guinchavam,
trombetas soavam, as gaitas-de-foles gritavam uma melodia animada, mas era a batida dos tambores que dominava tudo. Os sons ecoavam nas vigas, enquanto os convidados comiam, bebiam e gritavam uns aos
outros em baixo. Walder Frey deve ser surdo como uma porta para chamar música a isto. Catelyn beberricou uma taça de vinho e viu o Guizo pavonear-se ao som de “Alysanne”. Pelo menos julgava que se pretendia
que fosse “Alysanne”. Com aqueles músicos, podia perfeitamente ter sido “O Urso e a Bela Donzela”.
  Lá fora ainda chovia, mas dentro das Gémeas o ar estava pesado e quente. Um fogo rugia na lareira, e filas de archotes ardiam, fumegando, em arandelas de ferro presas às paredes. Mas a maior parte do
calor vinha dos corpos dos convidados do casamento, tão apertados ao longo dos bancos que cada homem que tentava erguer a sua taça acotovelava as costelas do vizinho.
  Até no estrado estavam mais próximos do que Catelyn teria desejado. Fora colocada entre Sor Ryman Frey e Roose Bolton, e ficara com o nariz cheio de ambos. Sor Ryman bebia como se o vinho estivesse
prestes a acabar-se em Westeros, e suava-o todo pelos sovacos. O homem tomara banho em água de limão, parecia-lhe, mas nenhum limão era capaz de disfarçar tanto suor acre. Roose Bolton tinha um cheiro
mais doce, mas que não era mais agradável. Preferia beberricar hipocraz a vinho ou hidromel, e pouco comia.
  Catelyn não podia censurá-lo pela falta de apetite. O banquete de casamento começara com uma sopa aguada de alho-porro, seguida por uma salada de feijão-verde, cebola e beterraba, lúcio fervido em leite
de amêndoa, montículos de puré de nabo que já estava frio antes de chegar à mesa, geleia de miolos de vitela, e de carne de vaca fibrosa cozinhada em leite. Era um pobre repasto para um rei, e os miolos
de vitela deram uma volta ao estômago de Catelyn. Mas Robb comeu sem protestar, e o irmão de Catelyn estava demasiado embevecido pela noiva para prestar muita atenção à comida.
  Nunca se imaginaria que Edmure passou todo o caminho de Correrrio até às Gémeas a queixar-se de Roslin. Marido e mulher comiam do mesmo prato, bebiam da mesma taça e trocavam castos beijos entre goles.
Edmure mandava embora a maior parte dos pratos. Não o podia censurar por isso. Pouco recordava da comida servida no seu banquete de casamento. Terei chegado a prová-la? Ou será que passei o tempo todo
a fitar o rosto de Ned, tentando perceber quem ele era?
  O sorriso da pobre Roslin tinha uma certa fixidez, como se alguém lho tivesse cosido ao rosto. Bem, é uma donzela casada, mas a noite de núpcias ainda não aconteceu. Sem dúvida que está tão aterrorizada
como eu estava. Robb encontrava-se sentado entre Alyx Frey e a Bela Walda, duas das mais núbeis donzelas Frey.
  — Espero que não vos recuseis a dançar com as minhas filhas no banquete de casamento — dissera Walder Frey. — Isso satisfaria o coração de um velho. — Se assim era, o seu coração devia estar bem satisfeito;
Robb desempenhara o seu dever como um rei. Dançara com cada uma das raparigas, com a noiva de Edmure e com a oitava Senhora Frey, com a viúva Ami e com a esposa de Roose Bolton, a Walda Gorda, com as
gémeas borbulhentas Serra e Sarra, e até com Shirei, a mais nova das filhas do Lorde Walder, que devia ter uns seis anos. Catelyn perguntou a si própria se o Senhor da Travessia estaria satisfeito, ou
se encontraria motivos de queixa em todas as outras filhas e netas que não tiveram a sua vez com o rei.
  — As vossas irmãs dançam muito bem — disse a Sor Ryman Frey, tentando ser agradável.
  — São tias e primas. — Sor Ryman bebeu um trago de vinho, com o suor a escorrer-lhe pela cara, desaparecendo na barba.
  Um homem amargo, e com os copos, pensou Catelyn. O Atrasado Lorde Frey podia ser avaro no que tocava a alimentar os seus convidados, mas não pusera limites à bebida. A cerveja, vinho e hidromel fluíam
tão depressa como o rio, lá fora. O Grande-Jon já estava bêbado que nem um cacho. O filho de Lorde Walder, Merrett, estava a competir com ele, taça atrás de taça, mas o Sor Whalen Frey desmaiara tentando
manter-se a par dos dois. Catelyn teria preferido que o Lorde Umber tivesse achado por bem permanecer sóbrio, mas dizer ao Grande-Jon para não beber era como dizer-lhe para não respirar durante algumas
horas.
  O Pequeno-Jon Umber e Robin Flint estavam sentados perto de Robb, depois da Bela Walda e de Alyx, respectivamente. Nenhum dos dois estava a beber; com Patrek Mallister e Dacey Mormont eram naquela noite
os guardas do filho de Catelyn. Um banquete de casamento não era uma batalha, mas havia sempre perigo quando os homens se metiam nos copos, e um rei não devia estar nunca sem uma guarda. Catelyn sentia-se
satisfeita com isso, e ainda mais com os cintos de espadas que pendiam de cabides ao longo das paredes. Nenhum homem precisa de uma espada para lidar com geleia de miolos de vitela.
  — Todos julgavam que o meu senhor escolheria a Bela Walda — disse a Senhora Walda Bolton a Sor Wendel, gritando para ser ouvida por sobre a música. A Walda Gorda era uma rapariga que mais parecia uma
bola de sebo redonda e cor-de-rosa, com olhos azuis lacrimejantes, um cabelo louro e sem força e um enorme busto, mas a voz era um chiado palpitante. Era difícil imaginá-la no Forte do Pavor, com a sua
renda cor-de-rosa e capa de veiro. — Mas o senhor meu avô ofereceu a Roose o peso da noiva em prata como dote, e o meu senhor de Bolton escolheu-me a mim. — Os queixos da rapariga estremeceram quando
se riu. — Peso mais quarenta quilos do que a Bela Walda, mas foi esta a primeira vez que fiquei feliz por isso. Agora sou a Senhora Bolton, e a minha prima ainda é donzela, e em breve fará dezanove anos,
pobrezinha.
  Catelyn viu que o Senhor do Forte do Pavor não prestava qualquer atenção à tagarelice. Por vezes provava um pouco disto, uma colher daquilo, arrancando bocados de pão com dedos curtos e fortes, mas
a refeição não era capaz de o distrair. Bolton fizera um brinde aos netos do Lorde Walder quando o banquete de casamento começara, fazendo questão de mencionar que Walder e Walder se encontravam ao cuidado
do seu filho bastardo. Pelo modo como o velho o olhara de viés, com a boca a chupar o ar, Catelyn compreendeu que ele ouvira a ameaça subjacente.
  Terá alguma vez havido uma boda menos alegre?, perguntou a si própria até se lembrar da sua pobre Sansa e do casamento com o Duende. Mãe, apiedai-vos dela. Tem uma alma gentil. O calor, fumo e barulho
estavam a deixá-la doente. Os músicos na galeria podiam ser numerosos e ruidosos, mas não eram particularmente dotados. Catelyn bebeu outro gole de vinho e deixou que um pajem lhe enchesse a taça. Mais
algumas horas, e o pior terá chegado ao fim. Amanhã por aquela hora, Robb teria partido para outra batalha, desta vez contra os homens de ferro em Fosso Cailin. Era estranho como essa perspectiva parecia
quase um alívio. Ele ganhará a sua batalha. Ele ganha todas as suas batalhas, e os homens de ferro estão sem rei. Além disso, Ned ensinou-o bem. Os tambores retumbavam. O Guizo voltou a passar por si
aos saltos, mas a música era tão alta que quase não conseguiu ouvir os seus guizos.
  Por sobre o ruído ouviu-se de súbito um rosnido, quando dois cães se lançaram um contra o outro, lutando por um resto de carne. Rolaram pelo chão, atirando dentadas, enquanto um uivo de divertimento
soava. Alguém lhes deu um banho com um jarro de cerveja, e eles separaram-se. Um dos cães dirigiu-se a coxear para o estrado. A boca desdentada do Lorde Walder abriu-se numa gargalhada quando o cão encharcado
sacudiu cerveja e pêlos por cima de três dos seus netos.
  Ver os cães fez Catelyn desejar uma vez mais que Vento Cinzento ali estivesse, mas o lobo gigante de Robb não se via em parte alguma. O Lorde Walder recusara-se a deixá-lo entrar no salão.
  — O vosso animal selvagem tem gosto por carne humana, segundo ouvi dizer, heh — dissera o velho. — Rasga-nos as gargantas, pois. Não quero uma tal criatura no banquete da minha Roslin, no meio das mulheres
e dos pequenos, todos os meus queridos inocentes.
  — O Vento Cinzento não constitui qualquer perigo para eles, senhor — protestara Robb. — Desde que eu esteja presente.
  — Mas vós estáveis lá, no meu portão, não estáveis? Quando o lobo atacou os netos que enviei para vos receber? Contaram-me tudo acerca disso, que não julgueis que não, heh.
  — Nenhum mal foi feito…
  — Nenhum mal, diz o rei? Nenhum mal? Petyr caiu do cavalo, caiu. Perdi uma esposa da mesma forma, numa queda. — A sua boca movera-se para dentro e para fora. — Ou teria sido só uma rameira qualquer?
A mãe do Walder Bastardo, sim, agora me lembro. Caiu do cavalo e rachou a cabeça. O que faria Vossa Graça se Petyr tivesse partido o pescoço, heh? Dar-me-ia desculpas no lugar de um neto? Não, não, não.
Pode ser que sejais rei, não direi que não, o Rei no Norte, heh, mas sob o meu tecto as regras são minhas. O lobo ou a boda, senhor. Ambos, não.
  Catelyn vira como Robb estava furioso, mas ele cedera com tanta cortesia quanta conseguira arranjar. Se aprouver ao Lorde Walder servir-me corvo guisado recheado de larvas, dissera-lhe, comê-lo-ei e
pedirei uma segunda tigela. E assim fizera.
  O Grande-Jon atirara com mais um dos descendentes do Lorde Walder para baixo da mesa, vencendo-o na bebida. Daquela vez fora o Petyr Borbulha. O rapaz tinha um terço da capacidade dele, que esperava?
O Lorde Umber limpou a boca, ergueu-se e pôs-se a cantar. Havia um urso, um urso, um URSO! Preto e castanho e coberto de pêlo! A voz dele não era má de todo, embora estivesse um pouco pesada da bebida.
Infelizmente, os rabequistas, tambores e flautistas lá em cima estavam a tocar “Flores da Primavera”, que combinava tão bem com as palavras de “O Urso e a Bela Donzela” como caracóis combinavam com uma
tigela de papas de aveia. Até o pobre do Guizo tapou os ouvidos com aquela cacofonia.
  Roose Bolton murmurou algumas palavras numa voz demasiado fraca para ser entendida, e afastou-se em busca de uma latrina. O salão repleto de gente estava em constante ebulição com as idas e vindas de
convidados e criados. Catelyn sabia que um segundo banquete, para cavaleiros e senhores de um nível algo inferior, trovejava no outro castelo. O Lorde Walder exilara os seus filhos ilegítimos e os descendentes
destes para esse lado do rio, e os nortenhos de Robb tinham começado a referir-se-lhe como “o banquete bastardo”. Alguns dos convidados estavam sem dúvida a escapulir-se para ver se os bastardos estavam
mais divertidos do que eles. Alguns talvez se aventurassem até aos acampamentos. Os Frey tinham fornecido carroças cheias de vinho, cerveja e hidromel, por forma a que os soldados comuns pudessem beber
ao casamento de Correrrio e das Gémeas.
  Robb sentou-se no lugar deixado vago por Bolton.
  — Mais algumas horas e esta farsa terminou, mãe — disse em voz baixa, enquanto o Grande-Jon cantava sobre a donzela com mel no cabelo. — O Walder Negro tem-se mostrado brando como um cordeiro, para
variar. E o tio Edmure parece bastante contente com a sua noiva. — Inclinou-se para lá dela. — Sor Ryman?
  Sor Ryman Frey pestanejou e disse:
  — Senhor. Sim?
  — Trazia a esperança de pedir a Olyvar para me servir como escudeiro quando marchássemos para norte — disse Robb — mas não o vejo aqui. Estará no outro banquete?
  — Olyvar? — Sor Ryman abanou a cabeça. — Não. Olyvar não. Partiu… partiu dos castelos. Dever.
  — Compreendo. — O tom de Robb sugeria o contrário. Quando Sor Ryman nada mais disse, o rei voltou a pôr-se em pé. — Quereis dançar, mãe?
  — Obrigada, mas não. — Dançar era a última coisa de que precisava, com a cabeça a latejar como estava. — Sem dúvida que uma das filhas do Lorde Walder ficará contente por ser o vosso par.
  — Oh, sem dúvida que sim. — O sorriso dele era resignado.
  Os músicos estavam a tocar “Lanças de Ferro” por essa altura, enquanto o Grande-Jon cantava “O Robusto Rapaz”. Alguém devia apresentá-los uns aos outros, talvez melhorasse a harmonia. Catelyn voltou
a virar-se para Sor Ryman.
  — Tinha ouvido dizer que um dos vossos primos era cantor.
  — Alesander. Filho de Symond. Alyx é irmã dele. — Ergueu uma taça na direcção do local onde ela dançava com Robin Flint.
  — Alesander tocará para nós, esta noite?
  Sor Ryman olhou-a de soslaio.
  — Ele não. Está longe. — Limpou suor da testa e pôs-se em pé com dificuldade. — Perdão, minha senhora. Perdão. — Catelyn viu-o cambalear para a porta.
  Edmure estava a beijar Roslin e a apertar-lhe a mão. Noutros pontos do salão, Sor Marq Piper e Sor Danwell Frey competiam para ver quem bebia mais, o Lothar Coxo dizia qualquer coisa divertida a Sor
Hosteen, um dos Frey mais jovens fazia malabarismo com três punhais perante um grupo de raparigas risonhas, e o Guizo estava sentado no chão, chupando vinho dos dedos. Os serventes traziam enormes bandejas
de prata repletas de quartos de cordeiro rosado e sumarento, o prato mais apetitoso que tinham visto toda a noite. E Robb dançava com Dacey Mormont.
  Quando usava um vestido em vez de um lorigão, a filha mais velha da Senhora Maege era bastante bonita; alta e esbelta, com um sorriso recatado que lhe iluminava a longa cara. Era agradável ver que sabia
ser tão graciosa num salão de dança como no pátio de treinos. Catelyn perguntou a si própria se a Senhora Maege teria já chegado ao Gargalo. Levara consigo as outras filhas, mas, sendo uma das companheiras
de batalha de Robb, Dacey preferira permanecer a seu lado. Ele tem o dom que Ned tinha para inspirar lealdade. Olyvar Frey também fora devotado ao filho. Não tinha Robb dito que Olyvar quisera permanecer
com ele mesmo depois do casamento com Jeyne?
  Sentado no meio das suas torres negras de carvalho, o Senhor da Travessia bateu as mãos sarapintadas. O ruído que fizeram foi tão ténuo que até aqueles que se encontravam no estrado quase não ouviram,
mas o Sor Aenys e o Sor Hosteen viram-no e começaram a bater na mesa com as taças. O Lothar Coxo juntou-se-lhes, seguido por Marq Piper, Sor Danwell e Sor Raymund. Em breve metade dos convidados estavam
a fazer barulho com as taças. E por fim, até a turba de músicos na galeria reparou. As flautas, tambores e rabecas foram parando de tocar até que se fez silêncio.
  — Vossa Graça — disse o Lorde Walder —, o septão rezou as suas preces, algumas palavras foram ditas, e o Lorde Edmure envolveu a minha querida num manto com um peixe, mas eles não são ainda marido e
mulher. Uma espada precisa de uma bainha, heh, e um casamento precisa de uma noite de núpcias. O que diz o meu senhor? Será próprio que os levemos para a cama?
  Uma vintena ou mais dos filhos e netos de Walder Frey desatou a bater de novo com as taças, gritando “Para a cama! Para a cama! Para a cama com eles!” Roslin pusera-se branca. Catelyn perguntou a si
própria se seria a perspectiva de perder a virgindade que assustava a rapariga, ou a própria tradição das núpcias. Com tantos irmãos, o costume não lhe devia ser estranho, mas era diferente quando se
era quem era levado. Na noite de casamento de Catelyn, Jory Cassell rasgara-lhe o vestido na pressa de lho despir, e Desmond Grell, bêbado, não parava de pedir desculpa pelos gracejos lascivos, apenas
para fazer outro logo a seguir. Quando o Lorde Dustin a vira nua, dissera a Ned que os seios dela o faziam desejar nunca ter sido desmamado. Pobre homem, pensou. Fora para Sul com Ned e não regressara.
Catelyn perguntou a si própria quantos dos homens que ali estavam naquela noite estariam mortos antes de o ano chegar ao fim. Demasiados, temo bem.
  Robb ergueu uma mão.
  — Se achais que a altura é própria, Lorde Walder, com certeza, levemo-los para a cama.
  Um rugido de aprovação saudou aquela proclamação. Na galeria os músicos voltaram a pegar nas flautas, trombetas e rabecas e começaram a tocar “A Rainha Tirou a Sandália, O Rei Tirou a Coroa”. O Guizo
pôs-se a saltitar ora sobre um pé, ora sobre o outro, fazendo tilintar a coroa. “Ouvi dizer que os homens Tully têm trutas entre as pernas no lugar das pichas,” gritou audaciosamente Alyx Frey. “Será
que precisam de uma minhoca para se porem em pé?” Ao que Sor Marq Piper retorquiu “Eu ouvi dizer que as mulheres Frey têm dois portões em vez de um!”, e Alyx disse, “Sim, mas estão os dois fechados e
trancados para coisinhas pequenas como vós!” Seguiu-se uma rajada de gargalhadas, até que Patrek Mallister trepou para cima de uma mesa para propor um brinde ao peixe zarolho de Edmure. “E que poderoso
lúcio ele é!”, proclamou. “Ná, aposto que é um saramugo”, gritou a Walda Gorda Bolton do lado de Catelyn. Então, o grito geral de “Para a cama com eles! Para a cama com eles!” voltou a soar.
  Os convidados invadiram o estrado, com os mais bêbados na frente, como sempre. Os homens e rapazes rodearam Roslin e ergueram-na ao ar enquanto as donzelas e mães presentes no salão puseram Edmure em
pé e começaram a puxar-lhe pela roupa. Ele ria e gritava-lhes gracejos lascivos em resposta, embora a música estivesse demasiado alta para que Catelyn os ouvisse. Mas ouvia o Grande-Jon.
  — Dai-me esta noivinha a mim — berrou enquanto abria caminho pelos outros homens e punha Roslin ao ombro. — Olhai-me esta coisinha! Não tem carne nenhuma!
  Catelyn sentiu pena da rapariga. A maior parte das noivas tentavam devolver os gracejos, ou pelo menos fingiam divertir-se, mas Roslin estava hirta de terror, agarrando-se ao Grande-Jon, como se temesse
que ele a deixasse cair. E também está a chorar, reparou Catelyn enquanto observava Sor Marq Piper que descalçava um dos sapatos da noiva. Espero que Edmure seja gentil com a pobre criança. Música alegre
e lasciva ainda jorrava da galeria; a rainha estava agora a tirar a combinação e o rei a túnica.
  Sabia que se devia juntar ao aglomerado de mulheres que rodeava o irmão, mas acabaria apenas por lhes estragar o divertimento. A última coisa que se sentia agora era lasciva. Edmure perdoar-lhe-ia a
ausência, disso não duvidava; era muito mais divertido ser despido e deitado por uma vintena de voluptuosas e risonhas Frey do que por uma irmã amarga e magoada.
  Enquanto o homem e a donzela eram levados do salão, deixando atrás de si um rasto de roupa, Catelyn viu que Robb também ficara. Walder Frey era suficientemente susceptível para ver nisso algum insulto
à filha. Ele devia juntar-se aos que levam Roslin para a cama, mas caber-me-á dizer-lhe isso? Sentiu-se invadir pela tensão até reparar que outros tinham também ficado para trás. O Petyr Borbulha e Sor
Whalen Frey continuavam a dormir, com as cabeças pousadas na mesa. Merrett Frey servia-se de outra taça de vinho, enquanto o Guizo vagueava pelo salão, roubando bocados de comida dos pratos daqueles que
tinham saído. Sor Wendel Manderly atacava com volúpia uma perna de cordeiro. E, claro, o Lorde Walder era fraco de mais para sair do seu lugar sem ajuda. Mas ele espera que Robb vá. Quase conseguia ouvir
o velho a perguntar por que motivo Sua Graça não queria ver a filha nua. Os tambores estavam de novo a retumbar, a retumbar, retumbar e retumbar.
  Dacey Mormont, que parecia ter sido a única mulher a ficar no salão além de Catelyn, aproximou-se por trás de Edwyn Frey e tocou-lhe levemente no braço enquanto lhe dizia qualquer coisa ao ouvido. Edwyn
afastou-se dela com uma violência imprópria.
  — Não — disse, alto de mais. — Estou farto de danças por agora. — Dacey empalideceu e afastou-se. Catelyn pôs-se lentamente em pé. O que acabou de acontecer aqui? A dúvida tomou-lhe o coração, onde
um instante antes estivera apenas a fadiga. Não é nada, tentou dizer a si própria, estás a ver gramequins na lenha, transformaste-te numa velha pateta, doente de desgosto e medo. Mas algo deve ter transparecido
no seu rosto. Até Sor Wendel Manderly reparou.
  — Há algum problema? — perguntou, com a perna de cordeiro nas mãos.
  Catelyn não lhe respondeu. Em vez disso, foi atrás de Edwyn Frey. Os músicos na galeria tinham finalmente vestido tanto o rei como a rainha com os fatos dos dias dos seus nomes. Quase sem um momento
de pausa, começaram a tocar um tipo muito diferente de canção. Ninguém cantou a letra, mas Catelyn conhecia “As Chuvas de Castamere” quando a ouvia. Edwyn dirigia-se apressadamente para uma porta. Catelyn
apressou-se mais, levada pela música. Seis passos rápidos e apanhou-o. E quem sois vós, disse o altivo senhor, p’ra que a vénia seja profunda? Agarrou Edwyn pelo braço para o virar e ficou gelada quando
sentiu os anéis de ferro sob a sua manga de seda.
  Catelyn esbofeteou-o com tanta força que lhe abriu o lábio. Olyvar, pensou, e Perwyn, Alesander, todos ausentes. E Roslin chorou…
  Edwyn Frey afastou-a com um empurrão. A música afogava todos os outros sons, ecoando nas paredes, como se as próprias pedras estivessem a tocar. Robb deitou a Edwyn um olhar furioso e foi bloquear-lhe
o caminho… e cambaleou de súbito quando um dardo brotou do seu flanco, logo abaixo do ombro. Se nesse momento gritou, o som foi engolido pelas flautas, trompas e rabecas. Catelyn viu um segundo dardo
perfurar a sua perna, viu-o cair. Lá em cima, na galeria, metade dos músicos tinham nas mãos bestas em vez de tambores ou alaúdes. Correu para o filho, até que algo lhe acertou no fundo das costas e o
duro chão de pedra a atingiu com força.
  — Robb! — gritou. Viu o Pequeno-Jon Umber a libertar uma mesa da armação. Dardos de bestas cravaram-se na madeira, um, dois, três, quando ele a atirou para cima do seu rei. Robin Flint estava rodeado
por um anel de Freys, cujos punhais subiam e desciam. Sor Wendel Manderly pôs-se imponentemente em pé, agarrado à perna de cordeiro. Um dardo entrou-lhe pela boca aberta e saiu pela parte de trás do pescoço.
Sor Wendel estatelou-se para a frente, soltando a mesa da armação e fazendo saltar, derramar e deslizar taças, jarros, bandejas, pratos, nabos, beterrabas e vinho.
  Catelyn tinha as costas em fogo. Tenho de chegar até ele. O Pequeno-Jon deu uma mocada na cara de Sor Raymund Frey com uma perna de carneiro. Mas quando estendeu a mão para o cinto da espada, um dardo
de besta fê-lo cair de joelhos. Num manto de ouro ou num manto vermelho, suas garras um leão mantém. Catelyn viu Lucas Blackwood a ser abatido por Sor Hosteen Frey. Um dos Vance foi jarretado pelo Walder
Negro enquanto lutava com Sor Harys Haigh. E as minhas são longas e afiadas, senhor, como vós as tendes também. As bestas apanharam Donnel Locke, Owen Norrey e mais meia dúzia. O jovem Sor Benfrey tinha
apanhado Dacey Mormont pelo braço, mas Catelyn viu-a pegar num jarro de vinho com a outra mão, acertar-lhe com ele em cheio na cara e correr para a porta. Esta escancarou-se antes de ela lograr atingi-la.
Sor Ryman Frey entrou no salão, vestido de aço do elmo aos escarpes. Uma dúzia de homens de armas Frey apinharam-se na porta atrás dele. Estavam armados com pesados machados longos.
  — Misericórdia! — gritou Catelyn, mas trombetas, tambores e o tinir do aço abafaram-lhe o apelo. Sor Ryman enterrou a cabeça do seu machado no estômago de Dacey. Por essa altura, jorravam também homens
das outras portas, homens revestidos de cota de malha com hirsutos mantos de peles e com aço nas mãos. Nortenhos! Durante meio segundo tomou-os por salvadores, até que um deles cortou a cabeça ao Pequeno-Jon
com dois violentíssimos golpes de machado. A esperança apagou-se como uma vela na tempestade.
  No meio do massacre, o Senhor da Travessia permanecia sentado no seu trono de carvalho esculpido, observando avidamente.
  Havia um punhal no chão a alguns centímetros de distância. Talvez tivesse escorregado até ali quando o Pequeno-Jon arrancara a mesa da armação, ou talvez tivesse caído da mão de algum moribundo. Catelyn
rastejou para ele. As pernas e os braços pareciam chumbo e a boca sabia-lhe a sangue. Matarei o Walder Frey, disse a si própria. O Guizo estava mais perto da faca, escondido por baixo de uma mesa, mas
limitou-se a encolher-se com medo quando ela pegou na lâmina. Matarei o velho, isso, pelo menos, posso fazer.
  Então o tampo de mesa que o Pequeno-Jon atirara sobre Robb moveu-se, e o filho apoiou-se com dificuldade nos joelhos. Tinha uma seta espetada no flanco, uma segunda na perna, uma terceira no peito.
O Lorde Walder ergueu uma mão, e a música parou, toda menos um tambor. Catelyn ouviu o estrondo da batalha distante, e, mais perto, os uivos selvagens de um lobo. Vento Cinzento, lembrou-se, tarde de
mais.
  — Heh — cacarejou o Lorde Walder para Robb — o Rei no Norte ergue-se. Parece que matámos alguns dos vossos homens, Vossa Graça. Oh, mas eu dou-vos uma satisfação que deixará tudo bem uma vez mais, heh.
  Catelyn agarrou numa mão-cheia do longo cabelo grisalho do Guizo Frey e arrastou-o para fora do seu esconderijo.
  — Lorde Walder! — gritou. — LORDE WALDER! — O tambor batia lento e sonoro, fim bum fim. — Basta — disse Catelyn. — Basta, disse eu. Haveis pago traição com traição, que fique por aqui. — Quando encostou
o punhal à garganta do Guizo, a memória do quarto de doente de Bran regressou, com o toque do aço na sua própria garganta. O tambor continuava bum fim bum fim bum fim bum. — Por favor — disse. — Ele é
meu filho. O meu primeiro filho, e o último. Deixai-o ir. Deixai-o ir, e eu juro que esqueceremos isto… esqueceremos tudo o que haveis feito aqui. Juro pelos deuses antigos e modernos, nós… nós não exerceremos
vingança…
  O Lorde Walder espreitou-a desconfiado.
  — Só um tolo acreditaria nesse paleio. Tomais-me por um tolo, senhora?
  — Tomo-vos por um pai. Ficai comigo como refém, e a Edmure também, caso não o tenhais morto. Mas deixai Robb ir.
  — Não. — A voz de Robb era ténua como um suspiro. — Mãe, não…
  — Sim. Robb, levanta-te. Levanta-te e sai, por favor, por favor. Salva-te… se não por mim, então por Jeyne.
  — Jeyne? — Robb agarrou a borda da mesa e forçou-se a pôr-se em pé. — Mãe — disse —, o Vento Cinzento…
  — Vai ter com ele. Já. Robb, sai daqui.
  O Lorde Walder resfolegou.
  — E porque é que eu permitiria que ele fizesse isso?
  Ela encostou mais a lâmina à garganta do Guizo. O idiota rolou os olhos para ela num apelo mudo. Um forte fedor assaltou-lhe o nariz, mas não lhe prestou mais atenção do que ao soturno e incessante
retumbar daquele tambor, bum fim bum fim bum fim bum. Sor Ryman e o Walder Negro estavam a rodeá-la pelas costas, mas Catelyn não se importava. Podiam fazer com ela o que quisessem; aprisioná-la, violá-la,
matá-la, não interessava. Vivera tempo de mais e tinha Ned à espera. Era por Robb que temia.
  — Pela minha honra como Tully — disse a Lorde Walder —, pela minha honra como Stark, trocarei a vida do vosso rapaz pela de Robb. Um filho por um filho. — A mão tremia-lhe tanto que estava a fazer tilintar
a cabeça do Guizo.
  Bum, soou o tambor, bum, fim, bum, fim. Os lábios do velho projectaram-se e retraíram-se. A faca tremeu na mão de Catelyn, escorregadia de suor.
  — Um filho por um filho, heh — repetiu ele. — Mas esse é um neto… e nunca teve grande utilidade.
  Um homem com uma armadura escura e um manto rosa-claro manchado de sangue aproximou-se de Robb.
  — Jaime Lannister manda cumprimentos. — E espetou a espada no coração do filho de Catelyn, e torceu.
  Robb faltara à palavra, mas Catelyn manteve a sua. Puxou com força o cabelo de Aegon e serrou-lhe o pescoço até a faca começar a raspar em osso. Correu-lhe sangue sobre os dedos. Os pequenos guizos
tilintavam, tilintavam, tilintavam, e o tambor retumbava, bum fim bum.
  Por fim, alguém lhe tirou a faca. As lágrimas ardiam como vinagre ao correrem-lhe pelo rosto. Dez corvos ferozes devastavam-lhe a cara com garras afiadas, rasgando fitas de carne, deixando profundos
regos que escorriam, vermelhos de sangue. Sentia o sabor nos lábios.
  Dói tanto, pensou. Os nossos filhos, Ned, todos os nossos queridos bebés. Rickon, Bran, Arya, Sansa, Robb… Robb… por favor, Ned, por favor, faz com que pare, faz com que pare de doer… As lágrimas brancas
e as vermelhas correram juntas até que o seu rosto ficou rasgado e em farrapos, o rosto que Ned amara. Catelyn Stark ergueu as mãos e viu o sangue correr pelos seus longos dedos, pelos pulsos, por baixo
das mangas do vestido. Lentos vermes vermelhos rastejavam ao longo dos seus braços e sob a roupa. Faz cócegas. Aquilo fê-la rir até gritar.
  — Louca — disse alguém —, perdeu o juízo — e outra pessoa disse:
  — Dai-lhe um fim — e uma mão agarrou-lhe o cabelo tal como ela fizera com o Guizo, e Catelyn pensou, Não, isso não, não me corteis o cabelo, Ned adora o meu cabelo. E então o aço chegou-lhe à garganta,
e a sua mordedura era rubra e fria.
 
 ARYA
  As tendas para banquetes estavam agora atrás deles. Chapinharam por sobre barro molhado e erva arrancada, para longe da luz e de regresso às sombras. Em frente erguia-se a casa do portão do castelo.
Arya via archotes em movimento nas muralhas, com as chamas a dançar, sopradas pelo vento. A luz brilhava, baça, sobre cota de malha e elmos molhados. Mais archotes moviam-se pela ponte escura de pedra
que unia as Gémeas, uma coluna de archotes que corria da margem ocidental para a oriental.
  — O castelo não está fechado — disse Arya de súbito. O sargento dissera que estaria, mas enganara-se. A porta levadiça estava a ser içada naquele preciso instante, e a ponte levadiça já tinha sido baixada
por sobre o fosso a transbordar de água. Tivera receio de que os guardas do Lorde Frey se recusassem a deixá-los entrar. Durante meio segundo mordeu o lábio, ansiosa de mais para sorrir.
  O Cão de Caça refreou os animais tão de repente que ela quase caiu da carroça.
  — Sete malditos infernos de merda — ouviu-o praguejar, enquanto a roda esquerda começava a enterrar-se na lama mole. A carroça foi-se inclinando lentamente. — Para o chão — rugiu-lhe Clegane, batendo-lhe
no ombro com o pulso, fazendo-a cair de lado. Aterrou ligeira, como Syrio lhe ensinara, e pôs-se imediatamente em pé com a cara cheia de lama.
  — Porque é que fizeste isto? — gritou. O Cão de Caça também saltara para o chão. Arrancou o assento da parte da frente da carroça e estendeu a mão para o cinto da espada que escondera por baixo dele.
  Foi só então que Arya ouviu os cavaleiros a jorrar do portão do castelo num rio de aço e fogo, com o trovão que os seus corcéis de batalha faziam ao atravessar a ponte levadiça quase perdido sob os
tambores que soavam nos castelos. Homens e montadas usavam armaduras de aço, e um em cada dez trazia um archote. Os outros tinham machados, alabardas e pesadas lâminas capazes de esmagar ossos e rasgar
armaduras.
  Algures, longe, ouviu um lobo a uivar. Não era um som muito alto, comparado com o ruído do acampamento, a música e o rosnar baixo e ameaçador do rio que corria rápido, mas mesmo assim ouviu-o. Só que
talvez não tivessem sido os ouvidos a ouvi-lo. O som estremeceu através de Arya como uma faca, aguçada de fúria e desgosto. Mais e mais cavaleiros emergiam do castelo, uma coluna com a largura de quatro
homens e sem fim à vista, cavaleiros, escudeiros e cavaleiros livres, archotes e machados de cabo longo. E também havia barulho vindo de trás.
  Quando Arya olhou em volta, viu que só restavam duas das enormes tendas para banquetes onde tinham havido três. A do meio caíra. Por um momento, não compreendeu o que estava a ver. Então, as chamas
começaram a lamber a tenda caída, e agora as outras duas caíam também, com o pesado tecido oleado a assentar sobre os homens que se encontravam por baixo. Um bando de setas incendiárias rasgou o ar. A
segunda tenda pegou fogo, e logo a terceira. Os gritos tornaram-se tão ruidosos que conseguia ouvir palavras através da música. Silhuetas escuras moviam-se à frente das chamas, com o aço das suas armaduras
a brilhar em tons de laranja, visto de longe.
  Uma batalha, compreendeu Arya. É uma batalha. E os cavaleiros…
  Então ficou sem tempo para observar as tendas. Com o rio a galgar as margens, as águas escuras e rodopiantes na extremidade da ponte levadiça chegavam à barriga dos cavalos, mas os cavaleiros avançaram
através delas mesmo assim, incentivados pela música. Por uma vez, a mesma canção vinha de ambos os castelos. Eu conheço esta canção, compreendeu Arya de súbito. O Tom das Sete cantara-a, naquela noite
chuvosa em que os foras-da-lei se tinham abrigado na cervejaria com os irmãos castanhos. E quem sois vós, disse o altivo senhor, p’ra que a vénia seja profunda?
  Os cavaleiros Frey atravessavam com dificuldade a lama e os juncos, mas alguns deles tinham visto a carroça. Arya viu três abandonar a coluna principal, cruzando em tropel os baixios. Só um gato com
um manto diferente, essa é a verdade fecunda.
  Clegane cortou a corda que prendia o Estranho com um único golpe da espada e saltou-lhe para o dorso. O corcel sabia o que se queria dele. Espetou as orelhas e virou na direcção dos corcéis de batalha
em carga. Num manto de ouro ou num manto vermelho, suas garras um leão mantém. E as minhas são longas e afiadas, senhor, como vós as tendes também. Arya rezara centenas e centenas de vezes para que o
Cão de Caça morresse, mas agora… havia uma pedra na sua mão, escorregadia de lama, e nem sequer se lembrava de lhe ter pegado. Contra quem a atiro?
  Saltou ao ouvir o estrondo do metal, quando Clegane afastou o primeiro machado. Enquanto lutava com o primeiro homem, o segundo deu-lhe a volta por trás e atirou um golpe contra o fundo das suas costas.
O Estranho girava, e o Cão de Caça foi atingido por não mais que um golpe de raspão, o bastante para fazer um grande rasgão na sua blusa larga de camponês e expor a cota de malha que tinha por baixo.
É um contra três. Arya continuava agarrada à sua pedra. Vão matá-lo com certeza. Pensou em Mycah, no filho do carniceiro que fora seu amigo durante tão pouco tempo.
  Então viu o terceiro cavaleiro a vir na sua direcção. Arya pôs-se atrás da carroça. O medo golpeia mais profundamente do que as espadas. Ouvia tambores, cornos de guerra e flautas, garanhões a berrar,
o guincho do aço a bater em aço, mas todos os sons pareciam muito distantes. A única coisa que existia era o cavaleiro que se aproximava e o machado que ele tinha na mão. Usava um sobretudo sobre a armadura
e ela viu as duas torres que o identificavam como um Frey. Não compreendeu. O tio ia casar com uma filha do Lorde Frey, os Frey eram amigos do seu irmão.
  — Não! — gritou enquanto ele rodeava a carroça, mas o homem não lhe prestou atenção.
  Quando ele carregou, Arya atirou a pedra, da mesma maneira que atirara uma maçã apodrecida a Gendry. Então acertara em Gendry mesmo no meio da testa, mas agora falhou a pontaria, e a pedra carambolou,
de lado, na têmpora do homem. Foi o suficiente para lhe interromper a arremetida, mas apenas isso. Arya retirou, correndo nos bicos dos pés pelo terreno lamacento, voltando a pôr a carroça entre ambos.
O cavaleiro seguiu-a a trote, sem nada a não ser trevas atrás da fenda para os olhos. Nem sequer lhe amolgara o elmo. Giraram uma, duas vezes, uma terceira. O cavaleiro amaldiçoou-a.
  — Não podes fugir para…
  A cabeça do machado acertou-lhe em cheio na nuca, rasgando-lhe o elmo e o crânio, por baixo, e fazendo-o voar da sela e aterrar de cara no chão. Atrás dele encontrava-se o Cão de Caça, ainda montado
no Estranho. Como foi que arranjaste um machado?, quase perguntou, antes de compreender. Um dos outros Frey estava encurralado debaixo do seu cavalo moribundo, afogando-se em trinta centímetros de água.
O terceiro homem estava estatelado de costas, imóvel. Não usara gorjal, e trinta centímetros de espada partida projectavam-se de debaixo do seu queixo.
  — Vai buscar o meu elmo — rosnou-lhe Clegane.
  O elmo estava enfiado no fundo de uma saca de maçãs secas, na parte de trás da carroça, escondida por trás dos pés de porco em salmoura. Arya virou a saca ao contrário e atirou-lhe o elmo. Ele apanhou-o
no ar só com uma mão e enfiou-o na cabeça, e no local onde estivera o homem, estava apenas um cão de aço, rosnando aos incêndios.
  — O meu irmão…
  — Morto — gritou-lhe em resposta. — Achas que lhe massacravam os homens e o deixavam vivo? — Virou-lhe a cabeça para o acampamento. — Olha. Olha, raios te partam.
  O acampamento transformara-se num campo de batalha. Não, num antro de magarefe. As chamas vindas das tendas para banquetes chegavam a meio caminho do céu. Algumas das tendas-casernas estavam também
a arder, bem como meia centena de pavilhões de seda. Por todo o lado as espadas cantavam. Mas agora a chuva chora no seu salão, e ninguém lá está para a ver. Viu dois cavaleiros a perseguir e abater um
homem que fugia a pé. Um barril de madeira esmagou-se numa das tendas incendiadas e rebentou, e as chamas saltaram, duas vezes mais altas. Uma catapulta, compreendeu. O castelo estava a arremessar azeite,
ou pez, ou uma coisa dessas.
  — Vem comigo. — Sandor Clegane estendeu uma mão para baixo. — Temos de sair daqui, e já. — O Estranho sacudiu impacientemente a cabeça, com as ventas a abrir-se ao sentir o cheiro de sangue. A canção
terminara. Restava apenas um tambor solitário, cujos batimentos lentos e monótonos ecoavam por sobre o rio como o bater de um coração monstruoso. O céu negro chorava, o rio resmungava, homens praguejavam
e morriam. Arya tinha lama nos dentes e a cara estava molhada. Chuva. É só chuva. Não passa disso.
  — Estamos aqui — gritou. A sua voz soava fina e assustada, uma voz de rapariguinha. — O Robb está ali no castelo, e a minha mãe também. O portão está aberto e tudo. — Não havia mais Freys a sair. Vim
até tão longe. — Temos de ir buscar a minha mãe.
  — Cadelinha estúpida. — Os incêndios reflectiam-se no focinho do seu elmo, e faziam brilhar os dentes de aço. — Se entrares ali, não voltas a sair. O Frey talvez te deixe beijar o cadáver da tua mãe.
  — Talvez possamos salvá-la…
  — Tu talvez possas. Eu não estou ainda farto de viver. — Avançou na sua direcção, empurrando-a contra a carroça. — Fica ou parte, loba. Sobrevive ou morre. A escolha…
  Arya virou-lhe as costas e precipitou-se para o portão. A porta levadiça estava a descer, mas lentamente. Tenho de correr mais depressa. Mas a lama retardou-a, e depois foi a água a fazê-lo. Corre,
rápida como um lobo. A ponte levadiça tinha começado a erguer-se, com a água a escorrer dela em cascata e a lama a cair em pesados aglomerados. Mais depressa. Ouviu um chapinhar forte e quando olhou para
trás viu o Estranho a trovejar em sua perseguição, fazendo voar nuvens de água a cada passo. E viu também o machado, ainda molhado de sangue e miolos. E Arya correu. Agora já não pelo irmão, nem mesmo
pela mãe, mas por si própria. Correu mais depressa do que alguma vez correra, de cabeça baixa e com os pés a fazer espumar o rio, fugiu dele como Mycah devia ter fugido.
  E o machado atingiu-a na nuca.
 
 TYRION
  Jantaram sós, como faziam tantas vezes.
  — As ervilhas estão cozidas de mais — ousou a sua esposa dizer a dada altura.
  — Não importa — disse. — O carneiro também está.
  Era um gracejo, mas Sansa tomou-o como crítica.
  — Lamento, senhor.
  — Porquê? Quem deve lamentar é um cozinheiro qualquer. Vós não. As ervilhas não são da vossa jurisdição, Sansa.
  — Eu… eu lamento que o senhor meu esposo esteja descontente.
  — Qualquer descontentamento que eu possa estar a sentir nada tem a ver com ervilhas. Tenho Joffrey e a minha irmã para me descontentar, e também o senhor meu pai, e trezentos malditos dorneses. — Tinha
instalado o Príncipe Oberyn e os seus senhores numa torre de canto com vista para a cidade, tão longe dos Tyrell como podia sem os expulsar por inteiro da Fortaleza Vermelha. Não era, nem por sombras,
suficientemente longe. Já houvera um distúrbio numa casa de pasto do Fundo das Pulgas que deixara um homem de armas Tyrell morto e dois dos homens do Lorde Gargalen escaldados, e uma feia confrontação
no pátio quando a encarquilhada e minúscula mãe de Mace Tyrell chamara a Ellaria Sand “a rameira da serpente”. Sempre que calhava encontrar-se com Oberyn Martell, o príncipe perguntava quando seria feita
justiça. Ervilhas cozidas de mais eram o último dos problemas de Tyrion, mas não via utilidade em sobrecarregar a sua jovem esposa com eles. Sansa tinha mágoas bastantes sem precisar das suas.
  — As ervilhas estão suficientemente boas — disse-lhe com concisão. — São verdes e redondas, que mais podemos esperar de ervilhas? Vede, vou repetir, se aprouver à senhora. — Chamou, e Podrick Payne
despejou-lhe tantas ervilhas no prato que deixou de conseguir ver o carneiro. Isto foi estúpido, disse a si próprio. Agora tenho de as comer a todas, caso contrário ela vai começar de novo a lamentar-se.
  O jantar terminou num silêncio tenso, como acontecia com tantos dos seus jantares. Depois, enquanto Pod recolhia as taças e bandejas, Sansa pediu a Tyrion licença para visitar o bosque sagrado.
  — Como quiserdes. — Habituara-se às devoções nocturnas da esposa. Ela também rezava no septo real, e acendia frequentes velas à Mãe, à Donzela e à Velha. Tyrion achava toda aquela piedade excessiva,
em boa verdade, mas se estivesse no lugar dela, talvez também quisesse a ajuda dos deuses. — Confesso pouco saber dos deuses antigos — disse, tentando ser agradável. — Talvez algum dia me possais esclarecer.
Até podia acompanhar-vos.
  — Não — disse Sansa de imediato. — Vós… vós sois gentil em sugeri-lo, mas… não há devoções, senhor. Não há sacerdotes, canções ou velas. Só árvores e preces silenciosas. Aborrecer-vos-íeis.
  — Tendes certamente razão. — Ela conhece-me melhor do que eu pensava. — Se bem que o som do restolhar de folhas possa ser uma mudança agradável de um septão qualquer a cantarolar acerca dos sete aspectos
da graça. — Tyrion mandou-a embora com um gesto. — Não me intrometerei. Abafai-vos, senhora, o vento lá fora é fresco. — Sentiu-se tentado a perguntar o que pedia ela ao rezar, mas Sansa era tão obediente
que podia realmente dizer-lhe, e ele suspeitava de que não gostaria de saber.
  Voltou ao trabalho depois de ela sair, tentando seguir alguns dragões de ouro pelo labirinto dos livros-mestres do Mindinho. Petyr Baelish não acreditara em deixar o ouro guardado e a apanhar pó, isso
era certo, mas quanto mais Tyrion procurava compreender as suas contas, mais lhe doía a cabeça. Falar da reprodução de dragões em vez de os trancar no tesouro estava muito bem, mas alguns daqueles empreendimentos
cheiravam pior do que peixe apanhado há uma semana. Não teria deixado tão prontamente Joffrey atirar os Homens Chifrudos por cima das muralhas se soubesse quantos dos malditos bastardos tinham recebido
empréstimos da coroa. Teria de mandar Bronn encontrar os seus herdeiros, mas temia que isso se revelasse tão infrutífero como tentar espremer prata de um peixinho-de-prata.
  Quando a convocatória do senhor seu pai chegou, foi a primeira vez, que Tyrion se lembrasse, em que se sentira contente por ver Sor Boros Blount. Fechou os livros-mestres com um sentimento de gratidão,
apagou a candeia de azeite com um sopro, atou um manto em volta dos ombros, e bamboleou através do castelo até à Torre da Mão. O vento era fresco, tal como prevenira Sansa, e havia cheiro a chuva no ar.
Quando o Lorde Tywin o libertasse, talvez devesse ir ao bosque sagrado para a trazer para casa antes que ficasse encharcada.
  Mas tudo isso varreu-se-lhe da cabeça quando entrou no aposento privado da Mão e deparou com Cersei, Sor Kevan e o Grande Meistre Pycelle reunidos em volta do Lorde Tywin e do rei. Joffrey estava quase
aos saltos, e Cersei saboreava um sorrisinho cheio de si, embora o Lorde Tywin parecesse tão sombrio como sempre. Pergunto a mim próprio se ele seria capaz de sorrir, mesmo se quisesse.
  — Que aconteceu? — perguntou Tyrion.
  O pai estendeu-lhe um rolo de pergaminho. Alguém o alisara, mas ainda tentava enrolar-se. “A Roslin apanhou uma bela truta gorda”, dizia a mensagem. “Os irmãos ofereceram-lhe um par de peles de lobo
como presente de casamento.” Tyrion virou o pergaminho para inspeccionar o selo quebrado. A cera era cinzenta-prateada, e impressas nela encontravam-se as torres gémeas da Casa Frey.
  — O Senhor da Travessia imagina que está a ser poético? Ou será que isto pretende confundir-nos? — Tyrion fungou. — A truta deve ser Edmure Tully, as peles…
  — Ele está morto! — Joffrey soava tão orgulhoso e feliz que se julgaria que tinha sido ele a esfolar Robb Stark em pessoa.
  Primeiro o Greyjoy, e agora o Stark. Tyrion pensou na criança sua esposa, que estava naquele momento a rezar no bosque sagrado. A rezar aos deuses do pai para que concedam ao irmão a vitória e mantenham
a mãe a salvo, sem dúvida. Os deuses antigos não ligavam mais às preces do que os novos, aparentemente. Talvez devesse sentir-se reconfortado por isso.
  — Os reis estão a cair como folhas, neste Outono — disse. — Aparentemente, a nossa guerrinha está a ganhar-se sozinha.
  — As guerras não se ganham sozinhas, Tyrion — disse Cersei com uma doçura venenosa. — O senhor nosso pai ganhou esta guerra.
  — Nada está ganho enquanto tivermos inimigos em campo — preveniu-os o Lorde Tywin.
  — Os senhores do rio não são tolos nenhuns — concordou a rainha. — Sem os nortenhos não podem esperar resistir ao poderio combinado de Jardim de Cima, Rochedo Casterly e Dorne. Certamente que preferirão
a submissão à destruição.
  — A maioria, sim — concordou o Lorde Tywin. — Resta Correrrio, mas enquanto Walder Frey tiver Edmure Tully como refém, o Peixe Negro não se atreverá a constituir uma ameaça. Jason Mallister e Tytos
Blackwood continuarão a lutar em nome da honra, mas os Frey podem manter os Mallister encurralados em Guardamar, e com o incitamento certo, Jonos Bracken pode ser persuadido a mudar de alianças e atacar
os Blackwood. No fim dobrarão os joelhos, sim. Tenciono oferecer termos generosos. Qualquer castelo que se nos renda será poupado, à excepção de um.
  — Harrenhal? — disse Tyrion, que conhecia o pai.
  — É melhor que o reino se livre desses Bravos Companheiros. Ordenei a Sor Gregor para passar o castelo pela espada.
  Gregor Clegane. Parecia que o pai pretendia minar a Montanha até à última pepita de minério antes de a entregar à justiça de Dorne. Os Bravos Companheiros acabariam como cabeças montadas em espigões,
e o Mindinho entraria de passeio em Harrenhal, sem uma única mancha de sangue naquelas suas belas roupas. Perguntou a si próprio se Petyr Baelish já teria chegado ao Vale. Se os deuses forem bons, deparou
com uma tempestade no mar e afundou-se. Mas quando tinham sido os deuses razoavelmente bons?
  — Deviam ser todos passados pela espada — declarou de súbito Joffrey. — Os Mallister, os Blackwood e os Bracken… todos. São traidores. Quero-os mortos, avô. Não quero termos generosos nenhuns. — O rei
virou-se para o Grande Meistre Pycelle. — E também quero a cabeça de Robb Stark. Escrevei ao Lorde Frey e dizei-lhe. O rei ordena. Vou servi-la a Sansa no meu banquete de casamento.
  — Senhor — disse Sor Kevan numa voz chocada —, a senhora é agora vossa tia pelo casamento.
  — Um gracejo. — Cersei sorriu. — Joff não falava a sério.
  — Falava, sim — insistiu Joffrey. — Ele era um traidor, e quero a sua estúpida cabeça. Vou obrigar Sansa a beijá-la.
  — Não. — A voz de Tyrion estava enrouquecida. — Sansa já não é vossa para atormentar. Vede se percebeis isso, monstro.
  Joffrey fez um sorriso escarninho.
  — O monstro sois vós, tio.
  — Ah sou? — Tyrion inclinou a cabeça. — Então talvez devêsseis falar comigo mais de mansinho. Os monstros são animais perigosos, e os reis parecem andar agora a morrer como moscas.
  — Podia cortar-vos a língua por dizerdes isso — disse o jovem rei, corando. — Sou o rei.
  Cersei pousou uma mão protectora no ombro do filho.
  — Deixa o anão fazer todas as ameaças que quiser, Joff. Quero que o senhor meu pai e o meu tio vejam aquilo que ele é.
  O Lorde Tywin ignorou aquilo; foi a Joffrey que se dirigiu.
  — Aerys também achava que tinha de lembrar aos homens que era o rei. E também era muito amigo de arrancar línguas. Podes interrogar o Sor Ilyn Payne a esse respeito, embora não obtenhas resposta.
  — O Sor Ilyn nunca se atreveu a provocar Aerys como o vosso Duende provoca Joff — disse Cersei. — Ouviste-lo. “Monstro”, disse ele. À Graça Real. E ameaçou-o…
  — Está calada, Cersei. Joffrey, quando os teus inimigos te desafiarem, tens de lhes servir aço e fogo. Mas quando caem de joelhos, tens de os ajudar a pôr-se em pé. De outro modo nunca ninguém dobrará
o joelho. E qualquer homem que tenha de dizer “sou o rei” não é rei de verdade. Aerys nunca compreendeu isso, mas tu compreenderás. Depois de ganhar a tua guerra, restauraremos a paz régia e a justiça
real. A única cabeça que tem de te preocupar é o cabaço de Margaery Tyrell.
  Joffrey ostentava aquela sua expressão carrancuda e amuada. Cersei tinha-o firmemente preso pelo ombro, mas talvez o devesse ter agarrado pela garganta. O rapaz surpreendeu-os a todos. Em vez de fugir
e de se ir enfiar debaixo de uma pedra, Joff ergueu-se com um ar desafiador e disse:
  — Falais de Aerys, avô, mas tínheis medo dele.
  Ora esta, e não é que isto ficou interessante?, pensou Tyrion.
  O Lorde Tywin estudou o neto em silêncio, com salpicos de ouro a brilhar nos seus olhos verdes-claros.
  — Joffrey, pede perdão ao teu avô — disse Cersei.
  Ele libertou-se das mãos dela.
  — Porque hei-de pedir perdão? Toda a gente sabe que é verdade. O meu pai ganhou as batalhas todas. Matou o Príncipe Rhaegar e capturou a coroa, enquanto o vosso pai estava escondido por baixo do Rochedo
Casterly. — O rapaz deitou ao avô um olhar de desafio. — Um rei forte age com ousadia, não se limita a conversar.
  — Obrigado por esse bocado de sabedoria, Vossa Graça — disse o Lorde Tywin, com uma cortesia tão fria que era coisa de lhes fazer cair as orelhas, congeladas. — Sor Kevan, vejo que o rei está cansado.
Por favor, acompanhai-o em segurança de regresso ao seu quarto. Pycelle, talvez uma poção suave para ajudar Sua Graça a ter um sono descansado?
  — Vinho de sonhos, senhor?
  — Não quero vinho de sonhos nenhum — insistiu Joffrey.
  O Lorde Tywin teria dado mais ouvidos a um rato a guinchar no canto.
  — Vinho de sonhos servirá. Cersei, Tyrion, ficai.
  Sor Kevan pegou firmemente no braço de Joffrey e levou-o porta fora, atrás da qual dois dos homens da Guarda Real esperavam. O Grande Meistre Pycelle apressou-se a segui-los o mais depressa que as suas
velhas pernas trémulas conseguiam levá-lo. Tyrion ficou onde estava.
  — Pai, lamento — disse Cersei quando a porta foi fechada. — O Joff sempre foi teimoso, eu preveni-vos…
  — Há léguas e léguas de diferença entre teimoso e estúpido. “Um rei forte age com ousadia?” Quem lhe disse isso?
  — Eu não, garanto — disse Cersei. — O mais provável é que tenha sido algo que ouviu Robert dizer…
  — A parte sobre vós vos esconderdes por baixo do Rochedo Casterly realmente soa a Robert. — Tyrion não queria que o Lorde Tywin se esquecesse desse bocado da conversa.
  — Sim, agora me lembro — disse Cersei —, Robert disse com frequência a Joff que um rei tem de ser ousado.
  — E o que lhe andas tu a dizer, se não te importas? Não travei uma guerra para pôr Robert II no Trono de Ferro. Levaste-me a crer que o rapaz não gostava nada do pai.
  — E porque haveria de gostar? Robert ignorava-o. Tê-lo-ia espancado, se eu o tivesse permitido. Aquele bruto com que me obrigastes a casar bateu uma vez no rapaz com tanta força que lhe fez saltar dois
dentes de leite, por causa de uma travessura qualquer com um gato. Eu disse-lhe que o mataria durante o sono se voltasse a fazer o mesmo, e ele não fez, mas por vezes dizia coisas…
  — Aparentemente, havia coisas que precisavam de ser ditas. — O Lorde Tywin acenou-lhe com dois dedos, uma brusca despedida. — Sai.
  E ela saiu, a ferver.
  — Não é Robert II — disse Tyrion. — É Aerys III.
  — O rapaz tem treze anos. Ainda há tempo. — O Lorde Tywin dirigiu-se à janela. Não era característico dele, mas estava mais perturbado do que queria mostrar. — Precisa de uma boa lição.
  Tyrion recebera a sua boa lição aos treze anos. Quase sentiu pena do sobrinho. Por outro lado, ninguém a merecia mais do que ele.
  — Basta de falar de Joffrey — disse. — As guerras são ganhas com penas e corvos, não foi o que dissestes? Tenho de vos dar os parabéns. Há quanto tempo andáveis a conspirar isto com Walder Frey?
  — Essa palavra desagrada-me — disse rigidamente o Lorde Tywin.
  — E a mim desagrada ser deixado no escuro.
  — Não havia motivo para te contar. Não tinhas participação nenhuma no assunto.
  — Cersei foi informada? — quis saber Tyrion.
  — Ninguém foi informado, excepto aqueles que tinham um papel a desempenhar. E esses só foram informados daquilo que precisavam de saber. Devias saber que não há outra maneira de manter um segredo… especialmente
aqui. O meu objectivo era livrar-nos de um inimigo perigoso da forma menos dispendiosa possível, não satisfazer a tua curiosidade ou fazer com que a tua irmã se sentisse importante. — Fechou as portadas,
franzindo o sobrolho. — Tens uma certa astúcia, Tyrion, mas a verdade é que falas demasiado. Essa tua língua solta ainda será o teu fim.
  — Devíeis ter deixado que Joffrey a arrancasse — sugeriu Tyrion.
  — Farias bem em não me tentar — disse o Lorde Tyrion. — Não quero mais conversas sobre isto. Tenho andado a reflectir em como melhor apaziguar Oberyn Martell e a sua comitiva.
  — Oh? E é alguma coisa que seja autorizado a saber, ou será que vos devo deixar só para que possais discutir o assunto convosco?
  O pai ignorou o gracejo.
  — A presença do Príncipe Oberyn na cidade é um infortúnio. O irmão é um homem cauteloso, um homem racional, subtil, ponderado, até algo indolente. É um homem que pesa as consequências de cada palavra
e de cada acto. Mas Oberyn sempre foi meio louco.
  — É verdade que tentou mobilizar Dorne em favor de Viserys?
  — Ninguém fala disso, mas sim. Voaram corvos e galoparam mensageiros, com mensagens secretas que nunca soube o que diziam. Jon Arryn velejou até Lançasolar para devolver os ossos do Príncipe Lewyn,
sentou-se com o Príncipe Doran e pôs fim a todo o falatório sobre guerra. Mas depois disso, Robert nunca foi a Dorne, e o Príncipe Oberyn raramente de lá saiu.
  — Bem, agora está aqui, com metade da nobreza de Dorne atrás, e fica mais impaciente todos os dias — disse Tyrion. — Talvez devesse mostrar-lhe os bordéis de Porto Real, isso talvez o distraia. Uma
ferramenta para cada tarefa, não é assim que as coisas são? A minha ferramenta é vossa, pai. Que nunca se diga que a Casa Lannister fez soar as trombetas e eu não respondi.
  A boca do Lorde Tywin apertou-se.
  — Muito divertido. Deverei mandar fazer um fato de retalhos para ti, e um chapéuzinho cheio de campainhas?
  — Se o usar, terei licença para dizer tudo o que me apeteça acerca de Sua Graça, o Rei Joffrey?
  O Lorde Tywin voltou a sentar-se e disse:
  — Fui obrigado a aguentar as loucuras do meu pai. Não aguentarei as tuas. Basta.
  — Muito bem, já que o pedis de um modo tão simpático. Temo que o Víbora Vermelha não vá ser simpático… e tampouco se contente apenas com a cabeça de Sor Gregor.
  — Mais um motivo para não lha dar.
  — Não lha…? — Tyrion estava chocado. — Julguei que estávamos de acordo em que a floresta estava cheia de animais.
  — Animais menores. — Os dedos do Lorde Tywin entrelaçaram-se sob o seu queixo. — Sor Gregor serviu-nos bem. Nenhum outro cavaleiro no reino inspira tanto terror aos nossos inimigos.
  — Oberyn sabe que foi Gregor quem…
  — Ele não sabe nada. Ouviu histórias. Mexericos de estábulo e calúnias de cozinha. Não tem nem uma migalha de provas. Sor Gregor certamente que não se apresta para lhe fazer uma confissão. Tenciono
mantê-lo bem afastado enquanto os dorneses estiverem em Porto Real.
  — E quando Oberyn exigir a justiça que veio obter?
  — Dir-lhe-ei que foi Sor Amory Lorch que matou Elia e os filhos — disse calmamente o Lorde Tywin. — E tu também, se ele perguntar.
  — Sor Amory Lorch está morto — disse Tyrion numa voz sem expressão.
  — Precisamente. Vargo Hoat ordenou que Sor Amory fosse desmembrado por um urso após a queda de Harrenhal. Isso deve ser suficientemente macabro para apaziguar até Oberyn Martell.
  — Podeis chamar a isso justiça…
  — É justiça. Foi Sor Amory quem me trouxe o corpo da rapariga, já que tens de saber. Encontrou-a escondida debaixo da cama do pai, como se acreditasse que Rhaegar ainda a podia proteger. A princesa
Elia e o bebé estavam no quarto das crianças, no andar de baixo.
  — Bem, é uma história, e não é provável que Sor Amory a negue. O que direis a Oberyn quando ele perguntar quem deu a Lorch as suas ordens?
  — Sor Amory actuou autonomamente, na esperança de conquistar o favor do novo rei. O ódio de Robert por Rhaegar não era propriamente segredo.
  Pode servir, teve Tyrion de admitir, mas a serpente não ficará contente.
  — Longe de mim questionar a vossa astúcia, pai, mas no vosso lugar creio que teria deixado Robert Baratheon ensanguentar as próprias mãos.
  O Lorde Tywin fitou-o como se ele tivesse perdido o juízo.
  — Então mereces aquele fato de retalhos. Tínhamos chegado tarde à causa de Robert. Era necessário demonstrar a nossa lealdade. Quando depus aqueles cadáveres perante o trono, ninguém pôde duvidar de
que eu tinha abandonado para sempre a Casa Targaryen. E o alívio de Robert foi palpável. Por estúpido que fosse, até ele sabia que os filhos de Rhaegar tinham de morrer, se queria que o trono alguma vez
estivesse seguro. Mas via-se como um herói, e os heróis não matam crianças. — O pai de Tyrion encolheu os ombros. — Admito que houve demasiada brutalidade. Elia não precisava de ter sido ferida de todo,
isso foi pura loucura. Em si mesma nada era.
  — Então porque foi que a Montanha a matou?
  — Porque não lhe disse para a poupar. Duvido que tenha chegado a mencioná-la. Tinha maiores preocupações. A vanguarda de Ned Stark corria para Sul vinda do Tridente, e temi que se pudesse chegar ao
ponto de cruzarmos espadas. E Aerys tinha feitio para assassinar Jaime, sem nenhum motivo além do rancor. Era isso que eu mais temia. Isso e o que o próprio Jaime poderia fazer. — Fechou a mão num punho.
— E ainda não tinha compreendido bem o que tinha em Gregor Clegane, sabia apenas que ele era enorme e terrível em batalha. A violação… nem tu poderás acusar-me de ter dado essa ordem, espero eu. Sor Amory
mostrou quase selvajaria idêntica com Rhaenys. Mais tarde perguntei-lhe porque tinham sido necessárias meia centena de estocadas para matar uma rapariga de… dois anos? Três? Ele disse que ela o pontapeara
e não parava de gritar. Se Lorch tivesse metade dos miolos que os deuses deram a um nabo, tê-la-ia acalmado com algumas palavras doces e usado uma almofada suave de seda. — A boca torceu-se-lhe de repugnância.
— Tinha nele o sangue.
  Mas tu não, pai. Não há sangue em Tywin Lannister.
  — Foi uma almofada suave de seda que matou Robb Stark?
  — Era suposto ser uma seta, no banquete de casamento de Edmure Tully. O rapaz era demasiado cauteloso no campo de batalha. Mantinha os seus homens em boa ordem, e rodeava-se de batedores e guarda-costas.
  — Então o Lorde Walder matou-o sob o seu próprio tecto, à sua própria mesa? — Tyrion fez um punho. — E a Senhora Catelyn?
  — Diria que também foi morta. Um par de peles de lobo. O Frey tencionara mantê-la cativa, mas talvez algo tenha falhado.
  — E lá se foi o direito de hóspede.
  — O sangue está nas mãos de Walder Frey, não nas minhas.
  — Walder Frey é um velho rabugento que vive para acariciar a sua jovem esposa e matutar sobre todas as desfeitas que sofreu. Não duvido que tenha chocado esta feia galinha, mas nunca se teria atrevido
a tal coisa sem uma promessa de protecção.
  — Suponho que terias poupado o rapaz e dito ao Lorde Frey que a sua fidelidade não te fazia falta. Isso teria atirado o velho idiota para os braços dos Stark, e terias conquistado mais um ano de guerra.
Explica-me como é que é mais nobre matar dez mil homens em batalha do que uma dúzia ao jantar. — Quando Tyrion não teve resposta para aquilo, o pai prosseguiu. — O preço foi barato, olhe-se para as coisas
como se olhar. A coroa atribuirá Correrrio a Sor Emmon Frey depois de o Peixe Negro se render. Lancel e Daven deverão casar com raparigas Frey, Joy deverá casar com um dos filhos ilegítimos do Lorde Walder
quando tiver idade para isso, e Roose Bolton torna-se Protector do Norte e leva para casa Arya Stark.
  — Arya Stark? — Tyrion inclinou a cabeça. — Bolton também? Devia ter compreendido que o Frey não teria estômago para agir sozinho. Mas Arya… Varys e Sor Jacelyn procuraram-na durante mais de meio ano.
Arya Stark está morta de certeza.
  — Renly também estava, até à Água Negra.
  — Que quer isso dizer?
  — Talvez o Mindinho tenha obtido sucesso onde tu e Varys falharam. O Lorde Bolton casará a rapariga com o seu filho bastardo. Permitiremos que o Forte do Pavor lute contra os homens de ferro durante
alguns anos, a ver se consegue levar os outros vassalos dos Stark a ajoelhar. Ao chegar a Primavera, todos eles deverão estar no fim das suas forças e prontos a dobrar o joelho. O Norte passará para o
teu filho e de Sansa Stark… se alguma vez arranjares suficiente virilidade para gerar um. Para que não te esqueças de que não é só Joffrey quem tem de pôr fim a uma virgindade.
  Não me tinha esquecido, embora tenha tido esperança de que tu te esquecesses.
  — E quando julgais vós que Sansa estará mais fértil? — perguntou Tyrion ao pai num tom que pingava ácido. — Antes ou depois de eu lhe contar como lhe assassinámos a mãe e o irmão?
 
 DAVOS
  Por um momento, pareceu que o rei não tinha ouvido. Stannis não mostrou qualquer prazer com a notícia, nem ira, nem incredulidade, nem mesmo alívio. Fitou a sua Mesa Pintada com os dentes cerrados com
força.
  — Tendes a certeza? — perguntou.
  — Não estou vendo o corpo, não, Vossa Realdade — disse Salladhor Saan. — Mas na cidade, os leões pavoneiam-se e dançam. O povo está chamando-lhe O Casamento Vermelho. Juram que o Lorde Frey cortou a
cabeça ao rapaz, coseu-lhe a cabeça do seu lobo gigante ao pescoço e pregou uma coroa em volta das orelhas. A senhora sua mãe também foi morta e atirada nua ao rio.
  Num casamento, pensou Davos. Estando sentado à mesa do seu assassino, um hóspede sob o seu tecto. Aqueles Frey estão amaldiçoados. Sentia de novo o cheiro do sangue a arder, e ouvia a sanguessuga a
silvar e a cuspir nas brasas quentes do braseiro.
  — Foi a ira do Senhor que o matou — declarou Sor Axell Florent. — Isto tem a mão de R’hllor!
  — Louvai o Senhor da Luz! — entoou a Rainha Selyse, uma mulher magra e macilenta, com grandes orelhas e um lábio superior peludo.
  — Será que a mão de R’hllor é pintalgada e entrevada? — perguntou Stannis. — Isto parece mais obra de Walder Frey do que de um qualquer deus.
  — R’hllor escolhe os instrumentos de que necessita. — O rubi na garganta de Melisandre brilhava, rubro. — Os seus caminhos são misteriosos, mas nenhum homem pode resistir à sua vontade ardente.
  — Nenhum homem pode resistir-lhe! — gritou a rainha.
  — Está calada, mulher. Agora não estás numa fogueira nocturna. — Stannis examinou a Mesa Pintada. — O lobo não deixa herdeiros, a lula gigante deixa demasiados. Os leões devorá-los-ão, a menos que…
Saan, vou precisar dos vossos navios mais rápidos para levar enviados às Ilhas de Ferro e a Porto Branco. Oferecerei indultos. — O modo como cerrou os dentes mostrou o pouco que gostava da palavra. —
Indultos totais, para todos aqueles que se arrependam da traição e jurem lealdade ao seu legítimo rei. Têm de compreender…
  — Não compreenderão. — A voz de Melisandre era suave. — Lamento, Vossa Graça. Isto não é um fim. Mais falsos reis irão erguer-se em breve para tomar as coroas daqueles que morreram.
  — Mais? — Stannis parecia com vontade de a esganar. — Mais usurpadores? Mais traidores?
  — Vi-o nas chamas.
  A Rainha Selyse aproximou-se do rei.
  — O Senhor da Luz enviou Melisandre para vos guiar até à glória. Dai-lhe ouvidos, suplico-vos. As chamas sagradas de R’hllor não mentem.
  — Há mentiras e mentiras, mulher. Mesmo quando essas chamas falam verdade, estão cheias de truques, parece-me.
  — Uma formiga que escute as palavras de um rei pode não compreender o que ele está a dizer — disse Melisandre — e todos os homens são formigas perante o rosto ardente de deus. Se por vezes confundi
um aviso com uma profecia ou uma profecia com um aviso, a falha cabe ao leitor, não ao livro. Mas sei isto com certeza: enviados e indultos não vos serão agora mais úteis do que sanguessugas. Tendes de
mostrar ao reino um sinal. Um sinal que prove o vosso poder!
  — Poder? — O rei fungou. — Tenho mil e trezentos homens em Pedra do Dragão, mais trezentos em Ponta Tempestade. — A mão varreu a Mesa Pintada. — O resto de Westeros está nas mãos dos meus inimigos.
Não tenho frota além da de Salladhor Saan. Não tenho moeda para contratar mercenários. Não tenho expectativas de saque ou glória para atrair cavaleiros livres à minha causa.
  — Senhor esposo — disse a Rainha Selyse —, tendes mais homens do que Aegon tinha há trezentos anos. Tudo o que vos falta são dragões.
  O olhar que Stannis lhe deitou era escuro.
  — Nove magos cruzaram o mar para chocar os ovos de Aegon III. Baelor, o Abençoado, rezou sobre o seu durante meio ano. Aegon, o IV construiu dragões de madeira e ferro. Aerion Chamaviva bebeu fogovivo
para se transformar. Os magos falharam, as preces do Rei Baelor não obtiveram resposta, os dragões de madeira arderam, e o Príncipe Aerion morreu aos gritos.
  A Rainha Selyse mostrou-se inflexível.
  — Nenhum desses homens era o escolhido de R’hllor. Nenhum cometa vermelho ardeu nos céus para anunciar a sua chegada. Nenhum brandia a Luminífera, a espada vermelha dos heróis. E nenhum deles pagou
o preço. A Senhora Melisandre dir-vos-á, senhor. Só a morte pode pagar pela vida.
  — O rapaz? — O rei quase cuspiu as palavras.
  — O rapaz — concordou a rainha.
  — O rapaz — ecoou Sor Axell.
  — Já estava farto de morte deste maldito rapaz antes mesmo de ele nascer — protestou o rei. — Até o seu nome é um rugido aos meus ouvidos e uma nuvem negra que paira sobre a minha alma.
  — Dai-me o rapaz e nunca mais tereis de voltar a ouvir pronunciar o seu nome — prometeu Melisandre.
  Não, mas ouvi-lo-eis gritar quando ela o queimar. Davos dominou a língua. Era mais sensato não falar até que o rei o ordenasse.
  — Dai-me o rapaz para R’hllor — disse a mulher vermelha — e a antiga profecia será cumprida. O vosso dragão acordará e estenderá as suas asas de pedra. O reino será vosso.
  Sor Axell caiu sobre um joelho.
  — Sobre um joelho dobrado vos suplico, senhor. Acordai o dragão de pedra e fazei os traidores tremer. Tal como Aegon, começais como Senhor de Pedra do Dragão. Tal como Aegon, conquistareis. Que os falsos
e os inconstantes sintam as vossas chamas.
  — A vossa própria esposa suplica também, senhor esposo. — A Rainha Selyse caiu sobre ambos os joelhos perante o rei, com as mãos juntas como que em prece. — Robert e Delena profanaram a nossa cama e
fizeram cair uma maldição sobre a nossa união. Este rapaz é o sujo fruto da sua fornicação. Levantai esta sombra do meu ventre, e eu dar-vos-ei muitos filhos legítimos, eu sei que sim. — Envolveu as pernas
dele com os braços. — Ele é apenas um rapaz, nascido da luxúria do vosso irmão e da vergonha da minha prima.
  — Ele é do meu sangue. Pára de me agarrar, mulher. — O Rei Stannis pôs uma mão no ombro dela, soltando-se desajeitadamente do seu abraço. — Robert talvez tenha amaldiçoado a nossa cama de casamento.
Jurou-me que nunca pretendeu envergonhar-me, que estava bêbado e não chegou a saber de quem era o quarto em que entrou naquela noite. Mas será que importa? O rapaz não tem culpa, seja qual for a verdade.
  Melisandre pousou a mão no braço do rei.
  — O Senhor da Luz acarinha os inocentes. Não há sacrifício mais precioso. Do seu sangue de rei e do seu fogo sem mácula nascerá um dragão.
  Stannis não se afastou do toque de Melisandre como se afastara do da rainha. A mulher vermelha era tudo o que Selyse não era; jovem, de corpo cheio, e estranhamente bela, com o seu rosto em forma de
coração, cabelo acobreado, e olhos sobrenaturalmente vermelhos.
  — Seria uma coisa maravilhosa ver a pedra ganhar vida — admitiu de má vontade. — E montar um dragão… lembro-me da primeira vez que o meu pai me levou à corte, Robert teve de ir de mãos dadas comigo.
Eu não podia ter mais de quatro anos, o que quer dizer que ele teria cinco ou seis. Depois concordámos que o rei tinha sido tão nobre como os dragões eram temíveis. — Stannis fungou. — Anos mais tarde,
o nosso pai disse-nos que Aerys se tinha cortado no trono naquela manhã, e por isso a sua Mão tomara-lhe o lugar. O homem que tanto nos impressionou foi Tywin Lannister. — Os dedos do rei tocaram a superfície
da mesa, traçando levemente um caminho através dos montes envernizados. — Robert tirou os crânios das paredes quando colocou a coroa, mas não suportou a ideia de os mandar destruir. Asas de dragão sobre
Westeros… isso seria uma…
  — Vossa Graça! — Davos inclinou-se para a frente. — Posso falar?
  Stannis fechou a boca com tanta força que os dentes soltaram um estalido.
  — Senhor da Mata de Chuva. Porque julgais que fiz de vós Mão, se não para falar? — O rei fez um gesto com a mão. — Dizei o que quiserdes.
  Guerreiro, dai-me coragem.
  — Pouco sei de dragões e menos ainda de deuses… mas a rainha falou de maldições. Ninguém é tão amaldiçoado aos olhos dos deuses e dos homens como quem mata a família.
  — Não há deuses além de R’hllor e do Outro, cujo nome não pode ser pronunciado. — A boca de Melisandre era uma linha dura e vermelha. — E os homens pequenos amaldiçoam aquilo que não são capazes de
compreender.
  — Eu sou um homem pequeno — admitiu Davos — portanto explicai-me porque necessitais deste rapaz, Edric Storm, para acordar o vosso grande dragão de pedra, senhora. — Estava determinado a proferir o
nome do rapaz tantas vezes quantas pudesse.
  — Só a morte pode pagar pela vida, senhor. Uma grande dádiva requer um grande sacrifício.
  — Onde está a grandeza numa criança ilegítima?
  — Ele tem o sangue de um rei nas veias. Já vistes o que até um pouco desse sangue pode fazer…
  — Vi-vos queimar umas quantas sanguessugas.
  — E dois falsos reis estão mortos.
  — Robb Stark foi assassinado pelo Lorde Walder da Travessia, e ouvimos dizer que Balon Greyjoy caiu de uma ponte. Quem foi que as vossas sanguessugas mataram?
  — Duvidais do poder de R’hllor?
  Não. Davos lembrava-se bem de mais da sombra viva que saíra a contorcer-se do ventre da mulher naquela noite sob Ponta Tempestade, das mãos negras a empurrar as suas coxas. Aqui tenho de pisar com cuidado,
senão uma sombra pode vir também procurar-me.
  — Até um contrabandista de cebolas sabe distinguir duas cebolas de três. Falta-vos um rei, senhora.
  Stannis resfolegou uma gargalhada.
  — Ele apanhou-vos, senhora. Dois não é igual a três.
  — Com certeza, Vossa Graça. Um rei pode morrer por acaso, até dois… mas três? Se Joffrey morrer, no meio de todo o seu poder, rodeado pelos seus exércitos e pela sua Guarda Real, não mostraria isso
o poder do Senhor em acção?
  — Talvez mostre. — O rei falou como se se ressentisse de cada palavra.
  — Ou talvez não. — Davos fez o melhor que pôde para esconder o medo.
  — Joffrey morrerá — declarou a Rainha Selyse, serena na sua confiança.
  — Até pode já estar morto — acrescentou Sor Axell.
  Stannis olhou-os com um ar aborrecido.
  — Sois corvos treinados, para crocitardes comigo um de cada vez? Basta.
  — Esposo, escutai-me… — rogou a rainha.
  — Porquê? Dois é diferente de três. Os reis sabem contar tão bem como os contrabandistas. Podeis ir. — Stannis virou-lhes as costas.
  Melisandre ajudou a rainha a pôr-se em pé. Selyse saiu do aposento, hirta, com a mulher vermelha atrás. Sor Axell deixou-se ficar o tempo suficiente para deitar a Davos um último olhar. Um olhar feio
num rosto feio, pensou o contrabandista ao encará-lo.
  Depois de os outros saírem, Davos pigarreou. O rei ergueu os olhos.
  — Ainda estais aqui?
  — Senhor, a propósito de Edric Storm…
  Stannis fez um gesto vivo.
  — Poupai-me.
  Davos persistiu.
  — A vossa filha tem aulas com ele, e brinca todos os dias com ele no Jardim de Aegon.
  — Eu sei disso.
  — O coração dela quebrar-se-ia se algo de mal…
  — Também sei disso.
  — Se ao menos o vísseis…
  — Já o vi. Parece-se com Robert. Sim, e venera-o. Deverei falar-lhe da frequência com que o seu querido pai lhe dirigia um pensamento? O meu irmão gostava bastante do fabrico de crianças, mas depois
do nascimento eram um aborrecimento.
  — Ele pergunta por vós todos os dias, ele…
  — Estais a irritar-me, Davos. Não quero ouvir falar mais desse bastardo.
  — O seu nome é Edric Storm, senhor.
  — Eu sei o seu nome. Terá alguma vez existido um nome mais adequado? Proclama a sua bastardia, o seu elevado nascimento, e o tumulto que traz consigo. Edric Storm. Aí tendes, disse-o. Estais satisfeito,
senhor Mão?
  — Edric… — começou.
  — …é um rapaz! Poderia ser o melhor rapaz que alguma vez respirou, que não teria importância. O meu dever é para com o reino. — A mão varreu a Mesa Pintada. — Quantos rapazes vivem em Westeros? Quantas
raparigas? Quantos homens, quantas mulheres? A escuridão devorá-los-á a todos, diz ela. A noite que não tem fim. Fala de profecias… um herói renascido no mar, dragões vivos chocados a partir de pedra
morta… fala de sinais e jura que apontam para mim. Nunca pedi isto, tal como não pedi ser rei. Mas atrever-me-ei a não lhe dar ouvidos? — Fez ranger os dentes. — Não escolhemos os nossos destinos. Mas
temos… temos de cumprir o nosso dever, não é? Grande ou pequeno, temos de cumprir o nosso dever. Melisandre jura que me viu nas suas chamas, a enfrentar a escuridão com a Luminífera erguida bem alto.
Luminífera! — Stannis soltou uma fungadela de irrisão. — Cintila lindamente, admito, mas na Água Negra esta espada mágica não me serviu melhor do que qualquer aço vulgar. Um dragão teria virado essa batalha.
Aegon esteve em tempos onde estou agora, olhando para esta mesa. Julgais que lhe chamaríamos hoje Aegon, o Conquistador, se não tivesse tido dragões?
  — Vossa Graça — disse Davos —, o preço…
  — Eu conheço o preço! Na noite passada, olhando para aquela lareira, também vi coisas nas chamas. Vi um rei, com uma coroa de fogo na testa, a arder… a arder, Davos. A sua própria coroa consumiu-lhe
a carne e transformou-o em cinzas. Julgais que preciso que Melisandre me diga o que isso significa? Ou vós? — O rei mudou de posição, e a sua sombra caiu sobre Porto Real. — Se Joffrey morrer… o que é
a vida de um rapaz bastardo perante um reino?
  — Tudo — disse Davos em voz baixa.
  Stannis olhou-o, com as mandíbulas cerradas.
  — Ide — disse o rei por fim — antes que consigais levar-vos de volta à masmorra.
  Por vezes os ventos de tempestade sopram com tanta força que um homem não tem alternativa que não seja enrolar as velas.
  — Sim, Vossa Graça. — Davos fez uma vénia, mas, aparentemente, Stannis já o tinha esquecido.
  Quando saiu do Tambor de Pedra fazia frio no pátio. Um vento fresco soprava de leste, fazendo os estandartes bater ruidosamente ao longo das muralhas. Davos sentia o cheiro do sal no ar. O mar. Adorava
aquele cheiro. Fazia-o desejar voltar a caminhar por um convés, içar a sua tela e velejar para Sul, para ir ter com Marya e os seus dois filhos pequenos. Agora pensava neles quase todos os dias, e ainda
mais durante a noite. Parte de si nada desejava mais ardentemente do que pegar em Devan e ir para casa. Não posso. Ainda não. Agora sou um senhor e Mão do Rei, não lhe posso falhar.
  Ergueu os olhos e fitou as muralhas. Em vez de merlões, um milhar de ornamentos grotescos e de gárgulas olhavam-no lá de cima, cada uma diferente de todas as outras; serpes, grifos, demónios, mantícoras,
minotauros, basiliscos, mastins do inferno, cocatrices, e um milhar de criaturas mais estranhas que brotavam das ameias do castelo como se tivessem aí nascido. E havia dragões por todo o lado. O Grande
Salão era um dragão deitado sobre a barriga. Entrava-se pela sua boca aberta. As cozinhas eram um dragão enrolado numa bola, com o fumo e vapor dos fornos a sair através das suas narinas. As torres eram
dragões empoleirados nas muralhas, ou preparados para levantar voo; o Dragão de Vento parecia gritar em desafio, ao passo que a Torre do Dragão Marinho olhava serenamente por sobre as águas. Dragões mais
pequenos enquadravam os portões. Garras de dragão emergiam das paredes para agarrar archotes, grandes asas de pedra abraçavam o ferreiro e o armeiro, e caudas formavam arcos, pontes e escadas exteriores.
  Davos ouvira dizer com frequência que os feiticeiros de Valíria não cortavam e cinzelavam como os pedreiros vulgares, mas trabalhavam a pedra com fogo e magia como um oleiro trabalharia o barro. Mas
agora duvidava. E se fossem dragões verdadeiros, de algum modo transformados em pedra?
  — Se a mulher vermelha os trouxer à vida, o castelo ruirá, estou pensando. Que espécie de dragões está cheia de quartos, escadas e mobília? E de janelas. E de chaminés. E de poços de latrina.
  Davos virou-se para deparar com Salladhor Saan a seu lado.
  — Isto quer dizer que perdoaste a minha traição, Salla?
  O velho pirata brandiu um dedo na sua direcção.
  — Perdoando, sim. Esquecendo, não. Todo esse bom ouro na Ilha da Garra que podia ter sido meu, deixa-me velho e cansado só de pensar nele. Quando morrer empobrecido, as minhas esposas e concubinas amaldiçoar-te-ão,
Senhor da Cebola. O Lorde Celtigar tinha muitos belos vinhos que não estou saboreando, uma águia do mar que tinha treinado para lhe levantar voo do pulso, e um corno mágico para fazer sair lulas gigantes
das profundezas. Muito útil seria esse corno, para puxar para baixo os tyroshi e outras criaturas incómodas. Mas posso soprar nesse corno? Não, porque o rei fez do meu velho amigo sua Mão. — Deu o braço
a Davos e disse: — Os homens da rainha não simpatizam contigo, velho amigo. Estou ouvindo dizer que uma certa Mão tem andado a fazer amigos seus. Isto é verdade, sim?
  Ouves coisas a mais, velho pirata. Era bom que um contrabandista conhecesse tão bem os homens como as marés, caso contrário não sobreviveria muito tempo a contrabandear. Os homens da rainha podiam continuar
a ser fervorosos seguidores do Senhor da Luz, mas o povo de Pedra do Dragão estava a regressar aos deuses que tinha conhecido a vida inteira. Diziam que Stannis estava enfeitiçado, que Melisandre o afastara
dos Sete para se curvar perante um demónio qualquer feito de sombras, e que… o pior de todos os pecados… ela e o seu deus lhe tinham falhado. E havia cavaleiros e fidalgos que tinham os mesmos sentimentos.
Davos procurara-os, escolhendo-os com o mesmo cuidado como em tempos escolhera as suas tripulações. Sor Gerald Gower lutara intrepidamente na Água Negra, mas depois fora ouvido a dizer que R’hllor devia
ser um fraco deus, se permitia que os seus seguidores fossem escorraçados por um anão e um morto. Sor Andrew Estermont era primo do rei, e servira como seu escudeiro anos antes. O Bastardo de Nocticantiga
comandara a retaguarda que permitira que Stannis chegasse à segurança das galés de Salladhor Saan, mas adorava o Guerreiro com uma fé tão feroz como ele próprio. Homens do rei, não homens da rainha. Mas
não seria boa ideia gabar-se deles.
  — Um certo pirata liseno disse-me uma vez que um bom contrabandista fica longe da vista — respondeu cuidadosamente Davos. — Velas negras, remos abafados, e uma tripulação que saiba controlar a língua.
  O liseno riu-se.
  — Uma tripulação sem língua é ainda melhor. Mudos grandes e fortes que não saibam ler nem escrever. — Mas depois pôs-se mais sombrio. — Mas agrada-me saber que alguém te vigia a retaguarda, velho amigo.
Achas que o rei vai dar o rapaz à sacerdotisa vermelha? Um pequeno dragão poderá acabar com esta grande guerra.
  O hábito antigo fê-lo levar a mão à sua sorte, mas os ossos dos dedos já não lhe pendiam do pescoço, e nada encontrou.
  — Ele não o fará — disse Davos. — Não poderia fazer mal ao seu próprio sangue.
  — O Lorde Renly ficará feliz por saber disso.
  — Renly era um traidor em armas. Edric Storm é inocente de qualquer crime. Sua Graça é um homem justo.
  Salla encolheu os ombros.
  — Estaremos vendo. Ou tu estarás. Quanto a mim, regresso ao mar. Neste mesmo instante, pode haver contrabandistas patifórios a velejar pela Baía da Água Negra, esperando evitar o pagamento das obrigações
legais para com o seu senhor. — Deu uma palmada nas costas de Davos. — Cuida-te. Tu e os teus amigos mudos. Tornaste-te muito grande, mas quanto mais alto um homem sobe, maior é a queda.
  Davos reflectiu sobre aquelas palavras enquanto subia os degraus da Torre do Dragão Marinho que levavam aos aposentos do Meistre, sob a colónia dos corvos. Não precisava que Salla lhe dissesse que subira
demasiado alto. Não sei ler, não sei escrever, os lordes desprezam-me, nada sei de governar, como posso ser Mão do Rei? O meu lugar é no convés de um navio, não numa torre de castelo.
  Dissera isso mesmo ao Meistre Pylos.
  — Sois um capitão notável — respondera o Meistre. — Um capitão governa o seu navio, não é verdade? Tem de navegar por águas traiçoeiras, içar as velas para apanhar o vento que se levanta, saber quando
uma tempestade se aproxima e como melhor a ultrapassar. Isto é muito semelhante.
  Pylos pretendera ser amável, mas a sua confiança soava a oco.
  — Não é, nem de longe, a mesma coisa! — protestara Davos. — Um reino não é um navio… e ainda bem, caso contrário este reino estaria a afundar-se. Eu tenho conhecimentos de madeira, cordas e água, sim,
mas como me será isso agora útil? Onde vou encontrar o vento que empurrará o Rei Stannis até ao seu trono?
  O Meistre rira-se daquilo.
  — E aí tendes, senhor. As palavras são vento, entendeis?, e vós soprastes as minhas para longe com o vosso bom senso. Sua Graça sabe o que tem em vós, parece-me.
  — Cebolas — dissera Davos em tom sombrio. — É isso que ele tem em mim. A Mão do Rei devia ser um senhor bem-nascido, alguém sábio e instruído, um comandante de batalha ou um grande cavaleiro…
  — Sor Ryam Redwyne foi o maior cavaleiro do seu tempo, e um dos piores Mãos que já serviu um rei. As preces do Septão Murmison faziam milagres, mas como Mão rapidamente conseguiu pôr o reino em peso
a rezar pela sua morte. O Lorde Butterwell era famoso pela inteligência, Myles Smallwood pela coragem, Sor Otto Hightower pela instrução, e no entanto falharam como Mãos, todos eles. Quanto ao nascimento,
era frequente os reis do dragão escolherem Mãos do seu próprio sangue, com resultados tão variados como Baelor Lança-Quebrada e Baelor, o Cruel. Em contraponto a isto, tendes o Septão Barth, o filho de
ferreiro que o Velho Rei arrancou à biblioteca da Fortaleza Vermelha, que deu ao reino quarenta anos de paz e abundância. — Pylos sorrira. — Lede a história, Lorde Davos, e vereis que as vossas dúvidas
são infundadas.
  — Como poderei ler a história, se não sou capaz de ler?
  — Qualquer homem é capaz de ler, senhor — dissera o Meistre Pylos. — Não são necessários nem magia nem elevado nascimento. Eu estou a ensinar a arte ao vosso filho, por ordem do rei. Deixai que vos
ensine também.
  Era uma oferta amável, que Davos não podia recusar. E assim, todos os dias se dirigia aos aposentos do Meistre, no topo da Torre do Dragão Marinho, para franzir a testa perante rolos, pergaminhos e
grandes volumes em couro e tentar encaixar as peças em mais algumas palavras. O esforço dava-lhe frequentes dores de cabeça, e além disso fazia-o sentir-se um idiota tão grande como o Cara-Malhada. O
filho Devan ainda não tinha doze anos, e no entanto estava bem à frente do pai, e para a Princesa Shireen e Edric Storm, a leitura parecia tão natural como a respiração. No que tocava aos livros, Davos
era mais criança do que qualquer um deles. Mas persistiu. Era agora Mão do Rei, e uma Mão do Rei devia ler.
  Os degraus estreitos e sinuosos da Torre do Dragão Marinho tinham passado a ser uma dolorosa provação para o Meistre Cressen depois de partir a anca. Davos ainda dava por si a sentir falta do velho.
Pensava que Stannis devia partilhar esse sentimento. Pylos parecia esperto, diligente e bem-intencionado, mas era muito jovem, e o rei não se apoiava nele como se apoiara em Cressen. O velho acompanhara
Stannis durante tanto tempo… Até que entrou em colisão com Melisandre, e morreu por isso.
  No topo dos degraus, Davos ouviu um ténuo tinir de campainhas que só podia anunciar o Cara-Malhada. O bobo da princesa estava à espera dela à porta do Meistre como um cão fiel. Mole como massa de pão
e de ombros descaídos, tinha uma face larga, tatuada com um padrão de quadrados vermelhos e verdes. O Cara-Malhada usava um elmo feito de um par de hastes de veado atadas a um balde de estanho. Uma dúzia
de campainhas pendiam dos galhos e tilintavam quando ele se movia… o que era o mesmo que dizer constantemente, pois o bobo raramente parava quieto. Tinia e retinia para onde quer que fosse; pouco admirava
que Pylos o tivesse exilado das aulas de Shireen.
  — Debaixo do mar, o peixe velho come o peixe novo — murmurou o bobo a Davos. Balançou a cabeça e as suas campainhas tiniram, tilintaram e cantaram. — Eu sei, eu sei, hei hei hei.
  — Cá em cima os peixes novos ensinam os peixes velhos — disse Davos, que nunca se sentia tão antigo como quando se sentava a tentar ler. Podia ser diferente se tivesse sido o idoso Meistre Cressen a
ensiná-lo, mas Pylos era suficientemente novo para ser seu filho.
  Foi encontrar o Meistre sentado à sua longa mesa de madeira coberta com livros e pergaminhos, em frente de três crianças. A Princesa Shireen sentava-se entre os dois rapazes. Até agora, Davos conseguia
retirar grande prazer de ver o seu próprio sangue na companhia de uma princesa e de um bastardo real. Devan será agora um senhor, e não apenas um cavaleiro. O Senhor da Mata de Chuva. Davos sentia mais
orgulho nisso do que em ostentar o título. E também sabe ler. Sabe ler e escrever, como se tivesse nascido para isso. Pylos nada tinha a dizer sobre a sua diligência senão elogios, e o mestre-de-armas
dizia que Devan também se mostrava prometedor com a espada e a lança. E é também um rapaz devoto.
  — Os meus irmãos ascenderam ao Salão da Luz, para ocupar os seus lugares junto do Senhor — dissera Devan quando o pai lhe contara como os quatro irmãos mais velhos tinham morrido. — Rezarei por eles
nas fogueiras nocturnas, e por vós também, pai, para que possais caminhar à Luz do Senhor até ao fim dos vossos dias.
  — Um bom-dia para vós, pai — saudou-o o rapaz. Ele é tão parecido com Dale na sua idade, pensou Davos. Era certo que o filho mais velho nunca se vestira tão bem como Devan, com os seus trajos de escudeiro,
mas partilhavam a mesma cara quadrada e simples, os mesmos olhos castanhos e francos, o mesmo cabelo fino, castanho e solto. As bochechas e queixo de Devan estavam salpicados de pêlos louros, uma penugem
que teria envergonhado um pêssego respeitável, embora o rapaz se orgulhasse ferozmente da sua “barba”. Tal como Dale se orgulhou em tempos da sua. Devan era a mais velha das três crianças que se encontravam
à mesa.
  Mas Edric Storm era três centímetros mais alto e mais largo de peito e ombros. Nisso era filho de seu pai; e também nunca perdia uma manhã de trabalho com a espada e o escudo. Aqueles que eram suficientemente
velhos para terem conhecido Robert e Renly em crianças diziam que o bastardo se assemelhava mais a eles do que Stannis alguma vez assemelhara; o cabelo negro de carvão, os profundos olhos azuis, a boca,
o queixo, os malares. Só as orelhas faziam lembrar que a mãe fora uma Florent.
  — Sim, bom-dia, senhor — ecoou Edric. O rapaz podia ser feroz e orgulhoso, mas os meistres, castelões e mestres-de-armas que o tinham educado tinham-no instruído bem no que tocava à cortesia. — Vindes
de junto do meu tio? Como passa Sua Graça?
  — Bem — mentiu Davos. Em boa verdade, o rei tinha um ar descomposto, assombrado, mas Davos não viu nenhum motivo para sobrecarregar o rapaz com os seus receios. — Espero que não tenha perturbado as
vossas lições.
  — Tínhamos acabado de terminar, senhor — disse o Meistre Pylos.
  — Estávamos a ler acerca do Rei Daeron I. — A Princesa Shireen era uma criança triste, doce e gentil, longe de ser bonita. Stannis dera-lhe o maxilar quadrado e Selyse as orelhas Florent, e os deuses
na sua cruel sabedoria tinham achado por bem compor a sua falta de graça afligindo-a de escamagris no berço. A doença deixara-lhe um lado da cara e metade do pescoço cinzento, fendido e duro, embora lhe
tivesse poupado quer a vida, quer a visão. — Partiu para a guerra e conquistou Dorne. Chamavam-lhe o Jovem Dragão.
  — Ele adorava falsos deuses— disse Devan — mas para além disso era um grande rei, e muito corajoso em batalha.
  — Pois era — concordou Edric Storm — mas o meu pai era mais. O Jovem Dragão nunca venceu três batalhas num só dia.
  A princesa olhou-o de olhos esbugalhados.
  — O tio Robert venceu três batalhas num só dia?
  O bastardo confirmou com a cabeça.
  — Foi logo depois de vir a casa convocar os vassalos. Os Lordes Grandison, Cafferen e Fell planearam juntar forças em Solarestival e marchar sobre Ponta Tempestade, mas ele soube dos seus planos através
de um informador e avançou imediatamente com todos os seus cavaleiros e escudeiros. Quando os conspiradores chegaram a Solarestival, um por um, derrotou-os um de cada vez antes de conseguirem juntar forças
com os outros. Matou o Lorde Fell em combate singular e capturou o seu filho, o Machado de Prata.
  Devan olhou para Pylos.
  — Foi assim que as coisas se passaram?
  — Foi o que eu disse, não foi? — disse Edric Storm antes de o Meistre ter tempo de responder. — Esmagou-os aos três, e lutou com tanta bravura que o Lorde Grandison e o Lorde Cafferen se tornaram depois
seus homens, e o Machado de Prata também. Nunca ninguém venceu o meu pai.
  — Edric, não devíeis vangloriar-vos — disse o Meistre Pylos. — O Rei Robert sofreu derrotas, como qualquer outro homem. O Lorde Tyrell sobrepôs-se-lhe em Cinzamarca, e perdeu também muitas justas em
torneios.
  — Mas ganhou mais do que perdeu. E matou o príncipe Rhaegar no Tridente.
  — Isso é verdade — concordou o Meistre. — Mas agora tenho de dar a minha atenção ao Lorde Davos, que espera com tanta paciência. Amanhã leremos mais da Conquista de Dorne do Rei Daeron.
  A Princesa Shireen e os rapazes despediram-se com cortesia. Depois de se retirarem, o Meistre Pylos aproximou-se de Davos.
  — Senhor, talvez quisésseis experimentar um pouco da Conquista de Dorne? — Empurrou o estreito livro encadernado a couro para a sua frente. — O Rei Daeron escrevia com uma simplicidade elegante, e a
sua história é rica em sangue, batalhas e bravura. O vosso filho está bastante cativado.
  — O meu filho ainda não tem bem doze anos. Eu sou a Mão do Rei. Dai-me outra carta, por favor.
  — Às vossas ordens, senhor. — O Meistre Pylos esquadrinhou a mesa, desenrolando e depois pondo de lado vários bocados de pergaminho. — Não há cartas novas. Talvez uma antiga…
  Davos gostava tanto de uma boa história como qualquer homem, mas achava que Stannis não o nomeara Mão para se divertir. O seu primeiro dever era ajudar o rei a governar, e para isso tinha de compreender
as palavras que os corvos traziam. Descobrira que a melhor forma de aprender algo era fazendo; velas ou pergaminhos, não fazia diferença.
  — Isto pode servir para o que queremos. — Pylos passou-lhe uma carta para a mão.
  Davos achatou o pequeno quadrado de pergaminho enrugado e semicerrou os olhos para as letras, minúsculas e difíceis de decifrar. Ler era pesado para os olhos, pelo menos isso aprendera depressa. Por
vezes perguntava a si próprio se a Cidadela ofereceria uma bolsa de campeão ao meistre que escrevesse numa letra mais pequena. Pylos rira-se da ideia, mas…
  — Aos… cinco reis — leu Davos, com uma breve hesitação em cinco, palavra que não via frequentemente escrita por extenso. — O rei… pa… o rei… para cá?
  — Para lá — corrigiu o Meistre.
  Davos fez uma careta.
  — O Rei-para-lá-da-Muralha vem… vem para Sul. Lidera uma… uma… basta…
  — Vasta.
  — … uma vasta hoste de sel… selv… selvagens. O Lorde M… Mmmor… Mormont enviou um… corvo da… flo… flo…
  — Floresta. A floresta assombrada. — Pylos sublinhou as palavras com a ponta do dedo.
  — …a floresta assombrada. Está… sob a… ataque?
  — Sim.
  Satisfeito, continuou a abrir caminho através da mensagem.
  — Out… outras aves chegaram depois, sem notícias. Nós… tememos… que Mormont tenha sido morto com toda… com todas as suas… forcas… não, forças. Nós tememos que Mormont tenha sido morto com todas as suas
forças… — Davos compreendeu de súbito o que estava a ler. Virou a carta e viu que a cera que a selara fora negra. — Isto vem da Patrulha da Noite. Meistre, o Rei Stannis viu esta carta?
  — Eu levei-a ao Lorde Alester quando ela chegou. Nessa altura era ele a Mão. Creio que a discutiu com a rainha. Quando lhe perguntei se desejava enviar uma resposta, disse-me para não ser parvo. “Sua
Graça não tem homens suficientes para travar as suas próprias batalhas, também não os tem para desperdiçar em selvagens”, disse-me ele.
  Aquilo era bem verdade. E esta conversa de cinco reis teria sem dúvida enfurecido Stannis.
  — Só um homem esfomeado suplica pão a um pedinte — murmurou.
  — Perdão, senhor?
  — Uma coisa que a minha mulher disse um dia. — Davos tamborilou no tampo da mesa com os seus dedos encurtados. Da primeira vez que vira a Muralha era mais novo do que Devan e servia a bordo do Gato
da Calçada às ordens de Roro Uhoris, um tyroshi conhecido de cima a baixo do Mar Estreito como Bastardo Cego, embora nem fosse cego nem filho ilegítimo. Roro passara por Skagos e entrara no Mar Tremente,
visitando uma centena de pequenas angras que nunca antes tinham visto um navio mercante. Trouxera aço; espadas, machados, elmos, bons lorigões de cota de malha, para trocar por peles, marfim, âmbar e
obsidiana. Quando o Gato da Calçada regressara para Sul, trazia os porões repletos, mas na Baía das Focas surgiram três galés negras e pastorearam-no até Atalaialeste. Perderam a carga e o Bastardo perdera
a cabeça, pelo crime de vender armas aos selvagens.
  Davos comerciara em Atalaialeste nos seus dias de contrabandista. Os irmãos negros eram inimigos duros mas bons clientes, para um navio com o tipo certo de carga. Mas apesar de ter aceitado o seu dinheiro,
nunca esquecera o modo como a cabeça do Bastardo Cego rolara pelo convés do Gato da Calçada.
  — Conheci alguns selvagens quando era rapaz — disse ao Meistre Pylos. — Eram ladrões razoáveis mas maus no regateio. Um deles desapareceu com a nossa rapariga de cabina. Tudo somado, pareceram-me homens
como os outros, uns bons, outros maus.
  — Homens são homens — concordou o Meistre Pylos. — Regressamos à leitura, senhor Mão?
  Sou a Mão do Rei, pois. Stannis podia ser o Rei de Westeros em nome, mas na realidade era o Rei da Mesa Pintada. Controlava Pedra do Dragão e Ponta Tempestade, e tinha uma aliança cada vez mais incómoda
com Salladhor Saan, mas era só. Como podia a Patrulha ter voltado os olhos para ele em busca de ajuda? Podem não saber como ele é fraco, como a sua causa está perdida.
  — O Rei Stannis nunca viu esta carta, tendes a certeza absoluta? E Melisandre também não?
  — Não. Deverei levar-lha? Tão tarde?
  — Não — disse Davos de imediato. — Cumpristes o vosso dever quando a levastes ao Lorde Alester. — Se Melisandre soubesse desta carta… O que fora que ela dissera? Aquele cujo nome não pode ser proferido
está a reunir o seu poder, Davos Seaworth. Em breve chegará o frio, e a noite que nunca termina… E Stannis tivera uma visão nas chamas, um anel de archotes na neve, rodeados de terror.
  — Senhor, sentis-vos mal? — perguntou Pylos.
  Estou assustado, Meistre, podia ter Davos respondido. Recordava uma história que Salladhor Saan lhe contara, sobre o modo como Azor Ahai temperara a Luminífera mergulhando-a no coração da mulher que
amara. Ele matou a mulher para combater a escuridão. Se Stannis for Azor Ahai regressado, quererá isso dizer que Edric Storm tem de desempenhar o papel de Nissa Nissa?
  — Estava a pensar, Meistre. As minhas desculpas. — Onde está o mal em um rei selvagem qualquer conquistar o Norte? Afinal não se dava o caso de Stannis controlar o Norte. Sua Graça dificilmente podia
ser acusada de não proteger pessoas que se recusavam a reconhecê-lo como rei. — Dai-me outra carta — disse abruptamente. — Esta é demasiado…
  — …difícil? — sugeriu Pylos.
  Em breve chegará o frio, sussurrara Melisandre, e a noite que nunca termina.
  — Perturbadora — disse Davos. — Demasiado… perturbadora. Outra carta, por favor.
 
 JON
  Quando acordaram, viram o fumo de Vila Toupeira a arder.
  No topo da Torre do Rei, Jon Snow apoiou-se à muleta almofadada que o Meistre Aemon lhe dera e observou a pluma cinzenta a erguer-se. Styr perdera toda a esperança de apanhar Castelo Negro desprevenido
quando Jon lhe escapara, mas mesmo assim não teria sido necessário avisar tão claramente que estava a chegar. Podes matar-nos, reflectiu, mas ninguém será massacrado na sua cama. Pelo menos isso consegui.
  A perna ainda lhe doía como brasas quando se apoiava nela. Naquela manhã precisara que Clydas o ajudasse a vestir a roupa negra lavada de fresco e a atar as botas, e quando terminaram, desejara afogar-se
em leite da papoila. Em vez disso, satisfizera-se com meia taça de vinho de sonhos, um pouco de casca de salgueiro para mascar e a muleta. O sinal ardia no Espinhaço do Tempo, e a Patrulha da Noite tinha
necessidade de todos os homens.
  — Posso lutar — insistira quando tentaram impedi-lo.
  — Tens a perna sarada, é? — Noye soltara uma fungadela. — Então não te vais importar que lhe dê um pontapezinho?
  — Preferia que não o fizesses. Está perra, mas posso coxear por aí suficientemente bem, e ficar em pé a lutar, se te fizer falta.
  — Fazem-me falta todos os homens que saibam qual das pontas de uma lança se espeta nos selvagens.
  — A ponta pontiaguda. — Jon recordara que um dia dissera à irmã mais nova qualquer coisa parecida.
  Noye esfregara os pêlos que tinha no queixo.
  — Pode ser que sirvas. Pomos-te numa torre com um arco, mas se caíres, é melhor que não venhas choramingar para junto de mim.
  Via a Estrada de Rei a abrir o seu caminho sinuoso para Sul, através de campos pedregosos e castanhos e por cima de colinas varridas pelo vento. O Magnar chegaria por aquela estrada antes de o dia terminar,
com os seus Thenn a marchar atrás dele com machados e lanças nas mãos, e os seus escudos de bronze e couro às costas. Grigg, o Bode, Quort, o Grande Furúnculo e os outros virão também. E Ygritte. Os selvagens
nunca tinham sido seus amigos, ele não lhes permitira que fossem seus amigos, mas ela…
  Sentia a dor a latejar no local onde a seta dela atravessara a carne e músculo da sua coxa. Lembrava-se também dos olhos do velho, e do sangue negro a correr da sua garganta enquanto a tempestade estalava
no céu. Mas lembrava-se melhor da gruta, de como ela era, nua, à luz do archote, do sabor da sua boca quando a abria sob a dele. Ygritte, fica por longe. Vai para Sul e pilha, vai-te esconder numa dessas
torres redondas de que tanto gostaste. Aqui não encontrarás nada a não ser a morte.
  Do outro lado do pátio, um dos arqueiros no telhado das velhas Casernas de Sílex tinha desatado as bragas e estava a urinar por uma ameia. Mully. Jon reconheceu-o pelo cabelo oleoso e alaranjado. Viam-se
também homens com mantos negros noutros telhados e cimos de torres, embora nove em dez fossem na verdade feitos de palha. Donal Noye chamava-lhes “as sentinelas-espantalho”. Só que os corvos somos nós,
reflectiu Jon, e já estamos quase todos bem espantados.
  Fosse qual fosse o nome que lhes era dado, os soldados de palha tinham sido ideia do Meistre Aemon. A Patrulha possuía, nos armazéns, mais bragas, justilhos e túnicas do que homens para as encher, portanto
porque não rechear algumas dessas roupas com palha, envolver-lhes os ombros com mantos e colocá-los em todas as torres e em metade das janelas? Alguns dos espantalhos até seguravam em lanças, ou tinham
bestas enfiadas debaixo dos braços. A esperança era que os Thenn os vissem de longe e decidissem que Castelo Negro se encontrava demasiado bem defendido para ser atacado.
  Jon partilhava o topo da Torre do Rei com seis espantalhos, além de dois irmãos verdadeiros, dos que respiravam. O Dick Surdo Follard estava sentado numa ameia, a limpar e olear metodicamente o mecanismo
da sua besta, assegurando-se de que a roda girava suavemente, enquanto o rapaz de Vilavelha vagueava desassossegadamente ao longo dos parapeitos, remexendo a roupa dos homens de palha. Ele se calhar pensa
que lutarão melhor se estiverem na posição certa. Ou talvez a espera lhe esteja a bulir com os nervos, como está a bulir com os meus.
  O rapaz dizia ter dezoito anos, o que era mais do que Jon tinha, mas apesar disso estava verde como a relva do Verão. Chamavam-lhe Cetim, mesmo vestido com a lã, a cota de malha e o couro fervido da
Patrulha da Noite; era o nome que obtivera no bordel onde nascera e fora criado. Era bonito como uma menina, com os seus olhos escuros, pele suave e caracóis negros como um corvo. Mas meio ano passado
em Castelo Negro enrijecera-lhe as mãos, e Noye dizia que não era mau com uma besta. Agora, se tinha ou não coragem para enfrentar o que aí vinha…
  Jon usou a muleta para atravessar o topo da torre a coxear. A Torre do Rei não era a mais alta do castelo — a Lança, alta, esguia e arruinada, detinha esse título, embora Othell Yarwyck tivesse sido
ouvido a afirmar que poderia desabar a qualquer momento. A Torre do Rei tampouco era a mais forte das torres — a Torre dos Guardas, junto à Estrada de Rei, seria uma noz mais dura de quebrar. Mas era
suficientemente alta, suficientemente forte, e bem colocada ao lado da Muralha, dominando o portão e a base da escada de madeira.
  Da primeira vez que vira Castelo Negro com os seus próprios olhos, Jon perguntara a si próprio por que motivo alguém seria tão tolo ao ponto de construir um castelo sem muralhas. Como poderia ser defendido?
  — Não pode — dissera-lhe o tio. — É precisamente essa a ideia. A Patrulha da Noite jura não participar nas querelas do reino. Mas ao longo dos séculos, certos Senhores Comandantes, mais orgulhosos do
que sensatos, esqueceram os votos e quase nos destruíram a todos com as suas ambições. O Senhor Comandante Runcel Hightower tentou ceder a Patrulha ao seu filho bastardo. O Senhor Comandante Rodrik Flint
decidiu fazer de si próprio Rei-para-lá-da-Muralha. Tristan Mudd, o Louco Marq Rankenfell, Robin Hill… sabias que há seiscentos anos os comandantes do Portão da Neve e de Fortenoite partiram para a guerra
um contra o outro? E que quando o Senhor Comandante tentou impedi-los, juntaram forças para o assassinar? O Stark de Winterfell teve de dar uma mão… e cortar-lhes as cabeças. Coisa que fez com facilidade,
porque os fortes deles não eram defensáveis. A Patrulha da Noite teve novecentos e noventa e seis Senhores Comandantes antes de Jeor Mormont, e a maioria foram homens de coragem e honra… mas também tivemos
cobardes e idiotas, os nossos tiranos e os nossos loucos. Sobrevivemos porque os senhores e reis dos Sete Reinos sabem que não constituímos ameaça para eles, independentemente de quem nos lidere. Os nossos
únicos inimigos estão a norte, e a norte temos a Muralha.
  Só que agora esses inimigos passaram pela Muralha e chegam do Sul, reflectiu Jon, e os senhores e reis dos Sete Reinos esqueceram-nos. Estamos encurralados entre o martelo e a bigorna. Sem uma muralha,
Castelo Negro não podia ser mantido; Donal Noye sabia-o tão bem como todos os outros.
  — O castelo não lhes serve para nada — dissera o armeiro à sua pequena guarnição. — Cozinhas, sala comum, estábulos, até as torres… que capturem tudo. Vamos esvaziar o armeiro, deslocar todos os abastecimentos
que pudermos para o topo da Muralha, e resistir em volta do portão.
  E assim, Castelo Negro tinha finalmente uma espécie de muralha, uma barricada em forma de crescente, com três metros de altura, feita de material em armazém; barris de pregos e de carneiro salgado,
caixotes, fardos de pano preto, troncos empilhados, tábuas, estacas endurecidas pelo fogo, e sacos e mais sacos de cereais. O baluarte improvisado rodeava as duas coisas que mais valia a pena defender:
o portão para o norte, e a base da grande escada de madeira em ziguezague que arranhava e trepava a face da Muralha como um relâmpago bêbado, suportada por vigas de madeira do tamanho de troncos de árvore,
profundamente enterradas no gelo.
  Jon viu que o último punhado de toupeiras estava ainda a fazer a longa ascensão, incentivado pelos irmãos. Grenn levava um rapazinho nos braços, enquanto Pyp, dois lanços mais abaixo, deixava que um
velho se apoiasse ao seu ombro. Os aldeões mais velhos esperavam em baixo que a gaiola acabasse de fazer o caminho de volta desde o topo da Muralha. Pousou os olhos numa mãe que puxava por duas crianças,
uma em cada mão, no momento em que um rapaz mais velho passava por eles, correndo pelos degraus. Sessenta metros mais acima, a Su Azul-Celeste e a Senhora Meliana (que todos os amigos eram unânimes em
dizer que não era senhora nenhuma) estavam paradas num patamar, a olhar para Sul. Tinham uma vista melhor do fumo do que ele, sem dúvida. Jon perguntou a si próprio o que acontecera aos aldeões que tinham
decidido não fugir. Havia sempre alguns, demasiado teimosos, estúpidos ou corajosos para se refugiarem, alguns que preferiam lutar, esconder-se ou render-se. Os Thenn talvez os poupassem.
  O que devíamos ter feito era levar o ataque até eles, pensou. Com cinquenta patrulheiros bem montados, podíamos desbaratá-los na estrada. Mas não tinham cinquenta patrulheiros, e nem metade dos cavalos
necessários. A guarnição não regressara, e não havia maneira de saber onde estava, ou até se os correios que Noye enviara a teriam alcançado.
  A guarnição somos nós, disse Jon a si próprio, e olhem para nós. Os irmãos que Bowen Marsh deixara para trás eram velhos, aleijados e rapazes ainda verdes, tal como Donal Noye avisara que seriam. Via
alguns a carregar barris pelos degraus acima, e outros na barricada; o velho e robusto Barricas, tão lento como sempre, o Bota Extra, a saltitar vivamente sobre a sua perna de madeira esculpida, o meio
louco do Calma, que se achava Florian, o Bobo, renascido, o Dilly Dornês, o Alyn Vermelho da Mata de Rosas, o Jovem Henly (bem para lá dos cinquenta anos), o Velho Henly (bem para lá dos setenta), o Hal
Peludo, o Pate Malhado da Lagoa da Donzela. Um par deles viram Jon a olhar do topo da Torre do Rei e acenaram-lhe. Outros afastaram o olhar. Ainda me julgam um vira-casacas. Isso era uma bebida amarga,
mas Jon não podia censurá-los. Afinal, ele era um bastardo. Todos sabiam que os bastardos eram desonestos e traiçoeiros por natureza, visto terem nascido da luxúria e do engano. E ele fizera tantos inimigos
como amigos em Castelo Negro… Rast, para começar. Jon uma vez ameaçara ordenar ao Fantasma para lhe rasgar a goela a menos que parasse de atormentar Samwell Tarly, e Rast não se esquecia de coisas desse
género. Estava naquele momento a empilhar folhas secas debaixo das escadas, mas de vez em quando parava tempo suficiente para deitar a Jon um olhar maldoso.
  — Não — rugiu Donal Noye para três dos homens de Vila Toupeira, lá em baixo. — O pez vai para o guincho, o azeite para as escadas, dardos para bestas para o quarto, quinto e sexto patamares, lanças
para o primeiro e segundo. Enfiai a banha de porco debaixo das escadas, sim, aí, entre as tábuas. Os barris de carne são para a barricada. Já, seus piolhentos empurradores de charruas, JÁ!
  Ele tem uma voz de senhor, pensou Jon. O pai sempre dissera que em batalha os pulmões de um comandante eram tão importantes como o braço com que empunhava a espada.
  — Se as suas ordens não se conseguirem ouvir, não importa quão corajoso ou brilhante um homem seja — dizia o Lorde Eddard aos filhos, e por isso Robb e Jon costumavam subir às torres de Winterfell para
gritar um ao outro por cima do pátio. Donal Noye tê-los-ia submergido a ambos. Os toupeiras andavam todos aterrorizados por ele, e com razão, pois o homem passava a vida a ameaçar arrancar-lhes as cabeças.
  Três quartos da aldeia tinham levado a sério o aviso de Jon e tinham vindo para Castelo Negro em busca de refúgio. Noye decretara que qualquer homem suficientemente vivo para pegar numa lança ou brandir
um machado ajudaria a defender a barricada, caso contrário podiam perfeitamente voltar para casa e correr os seus riscos com os Thenn. Esvaziara o armeiro para lhes pôr bom aço nas mãos, grandes machados
de lâmina dupla, punhais afiados como navalhas, espadas longas, mocas, maças de armas com espigões. Vestidos com justilhos de couro tachonado e pequenos lorigões, com grevas nas pernas e gorjais para
manter as cabeças sobre os ombros, alguns até se pareciam com soldados. Com pouca luz. Se se olhar de través.
  Noye também pusera as mulheres e crianças a trabalhar. Aqueles que eram novos de mais para lutar transportariam água e cuidariam das fogueiras, a parteira de Vila Toupeira ajudaria Clydas e o Meistre
Aemon com os feridos que houvesse, e o Hobb Três-Dedos, tinha de súbito tantos assadores, mexedores de panelas e cortadores de cebolas que não sabia o que fazer com eles. Duas das prostitutas tinham-se
oferecido para lutar, e mostraram suficiente habilidade com a besta para lhes ser atribuído um lugar nos degraus a doze metros de altura.
  — Está frio. — O Cetim tinha enfiado as mãos nos sovacos por baixo do manto. Tinha as bochechas de um vermelho-vivo.
  Jon obrigou-se a sorrir.
  — Nos Colmilhos de Gelo está frio. Isto é um dia fresco de Outono.
  — Nesse caso, espero nunca ver os Colmilhos de Gelo. Conheci uma rapariga em Vilavelha que gostava de gelar o vinho. Esse é o melhor sítio para o gelo, parece-me. No vinho. — O Cetim deitou um relance
para sul e franziu o sobrolho. — Achais que as sentinelas-espantalhos os assustaram, senhor?
  — Podemos ter essa esperança. — Jon supunha que era possível… mas o mais certo era que os selvagens tivessem simplesmente feito uma pausa para se dedicarem a um pouco de violação e saque em Vila Toupeira.
Ou talvez Styr estivesse à espera do cair da noite, para se aproximar a coberto da escuridão.
  O meio do dia chegou e partiu, ainda sem sinal de Thenns na Estrada de Rei. Mas Jon ouviu passos dentro da torre, e o Owen Idiota saltou do alçapão, vermelho da subida. Trazia um cesto de bolos de leite
com passas debaixo de um braço, uma rodela de queijo debaixo do outro, um saco de cebolas pendurado de uma mão.
  — O Hobb disse para vos dar de comer, para o caso de ficarem aqui presos algum tempo.
  Ou isso, ou para a nossa última refeição.
  — Agradece-lhe por nós, Owen.
  Dick Follard era surdo como uma pedra, mas o nariz funcionava bastante bem. Os bolos de leite ainda estavam quentes do forno quando ele enfiou a mão no cesto e tirou um. Encontrou também um boião de
manteiga e espalhou um pouco no bolo com o punhal.
  — Passas — anunciou em tom feliz. — E também frutos secos. — Tinha uma pronúncia carregada, mas era bastante fácil compreendê-lo depois de nos habituarmos a ela.
  — Podes ficar com os meus — disse o Cetim. — Não tenho fome.
  — Come — disse-lhe Jon. — Não podemos saber quando terás outra oportunidade. — Escolheu dois bolos para si. Os frutos secos eram pinhões, e além das passas havia também bocados de maçã.
  — Os selvagens vêm hoje, Lorde Snow? — perguntou Owen.
  — Se vierem, saberás — disse Jon. — Fica à escuta dos cornos.
  — Dois. Dois é para os selvagens. — Owen era alto, de cabelos muito louros e amigável, um trabalhador incansável, e surpreendentemente hábil quando se tratava de trabalhar a madeira, arranjar catapultas
e coisas do género. Mas, tal como ele alegremente afirmava, a mãe deixara-o cair de cabeça quando era bebé, e metade dos miolos tinham-se-lhe derramado através da orelha.
  — Lembras-te para onde deves ir? — perguntou-lhe Jon.
  — O Donal Noye diz que devo ir para as escadas. Devo subir até ao terceiro patamar e disparar a besta contra os selvagens se tentarem trepar a barreira. O terceiro patamar, um dois três. — Sacudiu a
cabeça para cima e para baixo. — Se os selvagens atacarem, o rei vem e ajuda-nos, não é verdade? Ele é um grande guerreiro, o Rei Robert. Com certeza que vem. O Meistre Aemon enviou-lhe um pássaro.
  Não valia a pena dizer-lhe que Robert Baratheon estava morto. Esquecer-se-ia disso uma vez mais.
  — O Meistre Aemon enviou-lhe um pássaro — concordou Jon. Aquilo pareceu deixar Owen feliz.
  O Meistre Aemon enviara um monte de pássaros… não a um rei, mas a quatro. Selvagens ao portão, dizia a mensagem. O reino está em perigo. Enviai toda a ajuda que puderdes para Castelo Negro. Os corvos
voaram até sítios tão distantes como Vilavelha e a Cidadela, e para meia centena de castelos de senhores poderosos. Os senhores do Norte constituíam a melhor esperança, por isso Aemon enviara-lhes duas
aves. As aves negras levaram o seu apelo aos Umber e aos Bolton, ao Castelo Cerwyn e a Praça de Torrhen, a Karhold e ao Bosque Profundo, à Ilha dos Ursos, a Castelovelho, à Atalaia da Viúva, a Porto Branco,
à Vila Acidentada e aos Regatos, às fortalezas de montanha dos Liddle, dos Burley, dos Norrey, dos Harclay e dos Will. Selvagens ao portão. O Norte em perigo. Vinde com todas as vossas forças.
  Bem, os corvos podiam ter asas, mas lordes e reis não as tinham. Se vinha ajuda a caminho, não chegaria hoje.
  À medida que a manhã se foi transformando em tarde, o fumo de Vila Toupeira foi soprado para longe e o céu do Sul ficou de novo limpo. Não há nuvens, pensou Jon. Isso era bom. A chuva ou a neve poderiam
condená-los a todos.
  Clydas e o Meistre Aemon subiram na gaiola do guincho até à segurança no topo da Muralha, e a maior parte das esposas de Vila Toupeira também. Homens com mantos negros patrulhavam desassossegadamente
os topos das torres e gritavam uns aos outros por cima dos pátios. O Septão Cellador liderou os homens da barricada numa prece suplicando ao Guerreiro que lhes desse forças. O Dick Surdo Follard enrolou-se
sob o seu manto e adormeceu. O Cetim percorreu uma centena de léguas aos círculos, em redor das ameias. A Muralha chorou e o Sol atravessou lentamente um céu de um azul forte. Perto do cair da noite,
o Owen Idiota regressou com um pão preto e um balde do melhor carneiro de Hobb, cozinhado num espesso caldo de cerveja e cebolas. Até o Dick acordou para comer. E comeram até à última migalha, usando
bocados de pão para limpar o fundo do balde. Quando terminaram, o Sol encontrava-se baixo a oeste, e as sombras estendiam-se, negras e bem definidas, por todo o castelo.
  — Acende a fogueira — disse Jon ao Cetim — e enche a panela de azeite.
  Desceu ele próprio as escadas para trancar a porta e tentar afastar alguma da rigidez da sua perna. Isso foi um erro, e Jon compreendeu-o rapidamente, mas agarrou-se à muleta e avançou mesmo assim.
A porta da Torre do Rei era de carvalho reforçado com ferro. Poderia atrasar os Thenn, mas não os impediria de entrar se quisessem fazê-lo. Jon enfiou a tranca nos seus encaixes, fez uma visita à latrina
— podia bem ser a sua última oportunidade — e regressou a coxear ao topo, fazendo caretas de dor.
  O ocidente tomara a cor de uma nódoa negra, mas o céu por cima da sua cabeça mostrava-se azul-cobalto, aprofundando-se até ao púrpura, e a estrelas começavam a surgir. Jon sentou-se entre dois merlões,
apenas com um espantalho por companhia, e observou o Garanhão a galopar pelo céu acima. Ou seria o Senhor Chifrudo? Perguntou a si próprio onde estaria agora o Fantasma. Também se interrogou sobre Ygritte,
e disse a si próprio que esse caminho levava à loucura.
  Eles chegaram de noite, claro. Como ladrões, pensou Jon. Como assassinos.
  O Cetim urinou-se quando os cornos soaram, mas Jon fingiu não reparar.
  — Vai abanar o Dick pelo ombro — disse ao rapaz de Vilavelha — senão ele é capaz de passar a luta toda a dormir.
  — Estou assustado. — A cara do Cetim estava pálida de morte.
  — Eles também. — Jon encostou a muleta a um merlão e pegou no arco, vergando o liso e grosso teixo de Dorne para enfiar uma corda nos entalhes. — Não desperdices dardos, a menos que saibas que tens
uma boa hipótese de acertar — disse quando o Cetim regressou depois de acordar o Dick. — Estamos amplamente abastecidos cá em cima, mas amplo não quer dizer inesgotável. E põe-te atrás de um merlão para
recarregar, não tentes esconder-te atrás de um espantalho. Eles são feitos de palha, uma seta atravessá-los-á. — Não se incomodou a dizer fosse o que fosse a Dick Follard. Dick sabia ler os lábios se
houvesse luz suficiente e ele tivesse algum interesse no que lhe estava a ser dito, mas já sabia tudo aquilo.
  Os três ocuparam posições de três lados da torre redonda. Jon pendurou uma aljava do cinto e puxou por uma seta. A haste era negra, as penas cinzentas. Ao encaixá-la na corda, lembrou-se de uma coisa
que Theon Greyjoy dissera uma vez após uma caçada.
  — O javali pode ficar com as suas presas e o urso com as suas garras — declarara, sorrindo daquele seu jeito habitual. — Não há nada que seja nem de longe tão mortífero como uma pena cinzenta de ganso.
  Jon nunca fora nem metade do caçador que Theon era, mas tampouco era estranho ao arco. Havia silhuetas escuras a deslizar em volta do armeiro, com as costas encostadas à pedra, mas não as via suficientemente
bem para desperdiçar uma seta. Ouviu gritos distantes, e viu os arqueiros na Torre dos Guardas a disparar setas contra o chão. Isso ficava longe de mais para interessar a Jon. Mas quando vislumbrou três
sombras a separar-se dos velhos estábulos, a cinquenta metros de distância, aproximou-se da ameia, ergueu o arco e puxou. Os homens corriam, portanto seguiu-os, à espera, à espera…
  A seta soltou um silvo suave quando abandonou a corda. Um momento depois ouviu-se um gemido, e de súbito eram apenas duas as sombras que atravessavam o pátio aos saltos. Corriam o mais depressa que
conseguiam, mas Jon tinha já tirado uma segunda seta da aljava. Daquela vez apressou-se demasiado e falhou. Os selvagens tinham desaparecido quando voltou a encaixar outra seta. Procurou outro alvo, e
encontrou quatro, correndo em volta da casca vazia da Fortaleza do Senhor Comandante. O luar cintilou nos seus machados e lanças, e nos pavorosos símbolos que traziam nos escudos redondos de couro; crânios
e ossos, serpentes, garras de ursos, retorcidas caras demoníacas. Povo livre, compreendeu. Os Thenn usavam escudos de couro fervido negro com bojos e bordas de bronze, mas os deles eram simples e sem
adornos. Aqueles eram os escudos mais leves, de vime, dos corsários.
  Jon puxou a pena de ganso até à orelha, apontou, e largou a seta, e depois encaixou, puxou e largou de novo. A primeira seta perfurou o escudo da garra de urso, a segunda uma garganta. O selvagem gritou
ao cair. Ouviu o profundo trum da besta do Dick Surdo à sua esquerda, e o do Cetim um momento mais tarde.
  — Apanhei um! — gritou o rapaz em voz rouca. — Acertei no peito de um.
  — Acerta noutro — gritou Jon.
  Agora não tinha de procurar alvos; só precisava de os escolher. Abateu um arqueiro selvagem no momento em que o homem encaixava uma seta na corda, e depois enviou uma seta contra o corsário que atacava
com um machado a porta da Torre de Hardin. Daquela vez falhou, mas a seta a estremecer no carvalho fez o selvagem pensar duas vezes. Foi só quando o homem fugiu que reconheceu o Grande Furúnculo. Meio
segundo depois, o velho Mully disparou do telhado das Casernas de Sílex e espetou-lhe uma seta na perna, e o homem afastou-se a gatinhar, sangrando. Aquilo irá fazer com que deixe de choramingar por causa
do furúnculo, pensou Jon.
  Quando a aljava se esvaziou, foi buscar outra, e instalou-se numa ameia diferente, lado a lado com o Dick Surdo Follard. Jon largava três setas por cada dardo que o Dick Surdo disparava, mas era essa
a vantagem do arco. Havia quem insistisse em dizer que a besta penetrava melhor, mas recarregá-la era um processo lento e incómodo. Ouvia os selvagens a gritarem uns para os outros, e algures a oeste
ouviu-se o sopro de um corno de guerra. O mundo era feito de luar e sombras, e o tempo transformou-se num ciclo sem fim de encaixar, puxar e largar. Uma seta selvagem rasgou a garganta da sentinela de
palha que estava a seu lado, mas Jon Snow quase nem reparou. Dai-me uma mira limpa sobre o Magnar de Thenn, suplicou aos deuses do pai. Ao menos o Magnar era um adversário que era capaz de odiar. Dai-me
Styr.
  Os dedos estavam a ficar rígidos e o polegar sangrava, mas Jon continuava a encaixar, puxar e largar. Uma mancha de fogo chamou-lhe a atenção, e virou-se para ver a porta da sala comum em chamas. Passaram-se
apenas alguns momentos até todo o grande edifício de madeira estar a arder. Sabia que o Hobb Três-Dedos e os seus ajudantes de Vila Toupeira estavam a salvo no topo da Muralha, mas sentiu na mesma como
que um murro na barriga.
  — JON — berrou o Dick Surdo na sua voz pesada —, o armeiro. — Viu que havia gente no telhado. Um dos homens levava um archote. Dick saltou para a ameia para ganhar uma posição melhor para o tiro, encostou
a besta ao ombro e disparou um dardo, com um ruído surdo, contra o homem do archote. Falhou.
  Mas o arqueiro, lá em baixo, não.
  Follard não soltou um som, limitou-se a tombar para a frente, de cabeça, por cima do parapeito. A queda até ao pátio era de trinta metros. Jon ouviu o baque no momento em que espreitava de trás de um
soldado de palha, tentando ver de onde a seta teria vindo. A menos de três metros do corpo do Dick Surdo, vislumbrou um escudo de couro, um manto esfarrapado, um matagal de espesso cabelo ruivo. Beijada
pelo fogo, pensou, afortunada. Ergueu o arco, mas os dedos recusaram-se a abrir, e ela desapareceu tão subitamente como aparecera. Girou sobre si próprio, praguejando, e disparou uma seta contra os homens
que se encontravam no telhado do armeiro, mas também falhou.
  Por essa altura os estábulos orientais também já ardiam, com fumo negro e bocados de feno em chamas a jorrar das cocheiras. Quando o telhado ruiu, chamas ergueram-se, rugindo tão alto que quase subjugaram
os cornos de guerra dos Thenn. Cinquenta deles surgiram em marcha pela Estrada de Rei, em coluna apertada, com os escudos erguidos por cima das cabeças. Outros aproximavam-se aos grupos através da horta,
através do pátio das lajes, em volta do velho poço seco. Três tinham atravessado à machadada as portas dos aposentos do Meistre Aemon na fortaleza de madeira sob a colónia dos corvos, e uma luta desesperada
desenrolava-se no topo da Torre Silenciosa, com espadas a opor-se a machados de bronze. Nada disso importava. A dança avançou, pensou.
  Jon atravessou a coxear até junto do Cetim e agarrou-o pelo ombro.
  — Comigo — gritou. Juntos, dirigiram-se ao parapeito norte, onde a Torre do Rei dava para o portão e a muralha que Donal Noye improvisara com vigas, barris e sacas de cereais. Os Thenn chegaram lá antes
deles. Usavam meios-elmos, e tinham discos finos de bronze cosidos às suas longas camisas de couro. Muitos brandiam machados de bronze, embora alguns fossem de pedra lascada. Eram mais os que manejavam
lanças curtas e penetrantes, com pontas em forma de folha que cintilavam, rubras, à luz vinda dos estábulos incendiados. Gritavam no Idioma Antigo enquanto assaltavam a barricada, lançando estocadas com
as lanças, brandindo machados de bronze, fazendo derramar milho e sangue com igual abandono, enquanto dardos e setas choviam sobre eles vindos dos arqueiros que Donal Noye posicionara na escada.
  — O que é que fazemos? — gritou o Cetim.
  — Matamo-los — gritou Jon em resposta, com uma seta negra na mão.
  Nenhum arqueiro poderia pedir alvos mais fáceis. Os Thenn tinham as costas voltadas para a Torre do Rei enquanto carregavam sobre o crescente, escalando os sacos e os barris para chegar junto dos homens
de negro. Tanto Jon como o Cetim escolheram por casualidade o mesmo alvo. Este tinha acabado de atingir o topo da barricada quando uma seta se lhe projectou do pescoço e um dardo o atingiu entre as omoplatas.
Meio segundo depois, uma espada atingiu-o na barriga e ele caiu sobre o homem que vinha atrás. Jon estendeu a mão para a aljava e achou-a de novo vazia. O Cetim recarregava a besta. Deixou-o a tratar
disso e foi buscar mais setas, mas não dera mais de três passos quando o alçapão se abriu com estrondo a um metro dele. Maldito inferno, nem sequer ouvi a porta a quebrar-se.
  Não houve tempo para pensar, fazer planos ou gritar por ajuda. Jon deixou cair o arco, estendeu a mão por sobre o ombro, arrancou a Garralonga à sua bainha e enterrou a lâmina no centro da primeira
cabeça a erguer-se da torre. O bronze não era adversário à altura do aço valiriano. O golpe cortou através do elmo do Thenn e mergulhou profundamente no seu crânio, e o homem tombou de volta para o lugar
de onde viera. Jon compreendeu pelos gritos que havia mais atrás dele. Recuou e chamou por Cetim. O homem que subiu a seguir apanhou com um dardo na cara. Também desapareceu.
  — O azeite — disse Jon. O Cetim anuiu. Juntos agarraram nas grossas pegas acolchoadas que tinham deixado junto da fogueira, ergueram a pesada panela de azeite a ferver e despejaram-na pelo buraco, sobre
os Thenn que se encontravam em baixo. Os guinchos foram tão maus como qualquer outra coisa que tivesse ouvido, e o Cetim pareceu prestes a deitar tudo para fora. Jon fechou o alçapão com um pontapé, pôs
a pesada panela de ferro em cima dele, e deu uma forte sacudidela ao rapaz da cara bonita. — Vomita mais tarde — gritou. — Vem.
  Tinham estado afastados das ameias apenas por alguns momentos, mas em baixo tudo mudara. Uma dúzia de irmãos negros e alguns dos homens de Vila Toupeira ainda resistiam em cima dos caixotes e barris,
mas os selvagens estavam a trepar a barricada ao longo de todo o crescente, empurrando-os para trás. Jon viu um deles espetar a lança na barriga de Rast, de baixo para cima e com tanta força que o ergueu
no ar. O Jovem Henly estava morto, e o Velho Henly moribundo, rodeado de inimigos. Jon viu o Calma a rodopiar e a desferir golpes em todas as direcções, rindo como um louco, fazendo o manto esvoaçar ao
saltar de barril em barril. Um machado de bronze atingiu-o logo abaixo do joelho, e o riso transformou-se num grito borbulhante.
  — Eles estão a quebrar — disse o Cetim.
  — Não — disse Jon —, já quebraram.
  Aconteceu rapidamente. Um dos toupeiras fugiu e depois houve outro a fugir, e de súbito todos os aldeões estavam a deitar fora as armas e a abandonar a barricada. Os Irmãos não eram em número suficiente
para aguentar sozinhos. Jon viu-os tentar formar uma linha para retirar ordeiramente, mas os Thenn submergiram-nos com lanças e machados, e então também eles se puseram em fuga. O Dilly Dornês escorregou
e caiu de cabeça, e um selvagem plantou-lhe uma lança entre as omoplatas. O Barricas, lento e sem fôlego, tinha já quase chegado ao degrau inferior quando um Thenn agarrou na extremidade do seu manto
e o obrigou a virar-se com um puxão… mas um dardo de besta abateu o homem antes de lhe dar tempo para fazer cair o machado.
  — Apanhei-o — exultou o Cetim, enquanto o Barricas cambaleava na direcção da escada e começava a trepar os degraus, sobre os joelhos e as mãos.
  O portão está perdido. Donal Noye fechara-o e acorrentara-o, mas estava pronto a ser tomado, com as barras de ferro a cintilar, vermelhas, com a luz reflectida dos incêndios, e o túnel frio e negro
por trás. Ninguém retirara para o defender, e o único local seguro era o topo da Muralha, depois de se subir duzentos metros ao longo da ziguezagueante escada de madeira.
  — A que deuses rezas? — perguntou Jon ao Cetim.
  — Aos Sete — disse o rapaz de Vilavelha.
  — Então reza — disse-lhe Jon. — Reza aos teus deuses modernos, que eu rezo aos meus antigos. — Tudo mudava ali.
  Com a confusão junto ao alçapão, Jon esquecera-se de encher a aljava. Voltou a atravessar o topo da torre, coxeando, e encheu-a, pegando também no arco. A panela não se movera de onde a deixara, portanto
parecia que de momento se encontravam suficientemente seguros. A dança avançou, e nós estamos a observá-la da galeria, pensou enquanto coxeava de volta. O Cetim disparava dardos contra os selvagens que
subiam os degraus, e escondia-se atrás de um merlão para recarregar a besta. Ele pode ser bonito, mas é rápido.
  A verdadeira batalha desenrolava-se nos degraus. Noye posicionara lanceiros nos dois patamares inferiores, mas a fuga precipitada dos aldeões deixara-os em pânico e tinham-se juntado à debandada, correndo
na direcção do terceiro patamar com os Thenn a matar todos os que ficassem para trás. Os arqueiros e besteiros nos patamares superiores estavam a tentar disparar contra as cabeças dos selvagens. Jon encaixou
uma seta, puxou e largou, e sentiu-se satisfeito quando um dos Thenn caiu a rebolar pelos degraus. O calor dos incêndios fazia a Muralha chorar, e as chamas dançavam e cintilavam contra o gelo. Os degraus
abanavam com os passos dos homens que tentavam salvar-se.
  Jon voltou a encaixar, puxar e largar, mas só havia um Jon e um Cetim, contra uns bons sessenta ou setenta Thenn que arremetiam pelas escadas acima, matando enquanto avançavam, bêbados de vitória. No
quarto patamar, três irmãos de mantos negros resistiram, ombro com ombro, de espadas na mão, e a batalha passou de novo, brevemente, a um corpo a corpo. Mas eles eram só três, e em breve a maré de selvagens
os submergia, e o seu sangue pingava pelos degraus abaixo.
  — Um homem nunca está tão vulnerável numa batalha como quando foge — dissera um dia o Lorde Eddard a Jon. — Um homem em fuga é para um soldado como um animal ferido. Alimenta-lhe a sede de sangue. —
Os arqueiros no quinto patamar fugiram antes mesmo de a batalha chegar até eles. Era um tropel, um rubro tropel.
  — Vai buscar os archotes — disse Jon ao Cetim. Havia quatro empilhados junto à fogueira, com as pontas enroladas em trapos empapados em azeite. Havia também uma dúzia de setas incendiárias. O rapaz
de Vilavelha enfiou um archote na fogueira até o deixar a arder bem, e trouxe os outros debaixo do braço, por acender. Parecia de novo assustado, e tinha motivos para isso. Jon também estava assustado.
  Foi então que viu Styr. O Magnar estava a subir a barricada, trepando por cima das sacas de cereais rasgadas, barris quebrados e dos corpos de amigos e inimigos. A sua armadura de escamas em bronze
cintilava, escura, à luz das chamas. Styr tirara o elmo para estudar a cena do seu triunfo, e o filho da puta careca e sem orelhas estava a sorrir. Na mão, trazia uma longa lança de represeiro com uma
ornamentada ponta de bronze. Quando viu o portão, apontou para ele com a lança e ladrou qualquer coisa no Idioma Antigo para a meia dúzia de Thenns que o rodeavam. Tarde de mais, pensou Jon. Devias ter
saltado a barricada à frente dos teus homens, podias ter sido capaz de salvar alguns.
  Lá em cima soou um corno de guerra, um sopro longo e grave. Não no topo da Muralha, mas sim no nono patamar, a cerca de sessenta metros de altura, onde Donal Noye se encontrava.
  Jon encaixou uma seta incendiária no arco, e o Cetim acendeu-a com o archote. Aproximou-se do parapeito, puxou, apontou, largou. Fitas de chamas perseguiram a haste, que ganhou velocidade enquanto caía
e atingiu o alvo com um baque surdo, crepitando.
  Não era Styr. Eram os degraus. Ou, mais precisamente, os barris, barricas e sacas que Donal Noye empilhara por baixo dos degraus, até à altura do primeiro patamar; os barris de pez e azeite para lâmpadas,
os sacos de folhas e os trapos embebidos em óleo, os troncos lascados, a casca de árvore e as aparas de madeira. “Outra vez”, disse Jon, e, “Outra vez”, e “Outra vez”. Outros arqueiros estavam também
a disparar, do topo de todas as torres dentro de alcance, alguns lançando as suas setas em grandes arcos para caírem à frente da Muralha. Quando Jon ficou sem setas incendiárias, ele e Cetim puseram-se
a acender os archotes e a atirá-los das ameias.
  Lá em cima, outro incêndio desabrochava. Os velhos degraus de madeira bebiam o óleo como esponjas e Donal Noye empapara-os, do nono patamar até ao sétimo. Jon só podia ter esperança de que a maior parte
da sua gente tivesse subido até à segurança antes de Noye arremessar os archotes. Os irmãos negros, pelo menos, sabiam do plano, mas os aldeões não.
  O vento e o fogo fizeram o resto. Tudo o que Jon teve de fazer foi observar. Com chamas por baixo e chamas por cima, os selvagens não tinham para onde ir. Alguns continuaram a subir, e morreram. Alguns
desceram, e morreram. Alguns ficaram onde estavam. Também morreram. Muitos saltaram dos degraus antes de se incendiarem, e morreram da queda. Vinte e poucos Thenn ainda se apertavam uns contra os outros
entre os incêndios quando o gelo rachou devido ao calor e todo o terço inferior da escada se desprendeu, conjuntamente com várias toneladas de gelo. Esse foi o último momento em que Jon viu Styr, o Magnar
de Thenn. A Muralha defende-se, pensou.
  Jon pediu ao Cetim para o ajudar a descer ao pátio. A perna ferida doía tanto que quase não conseguia andar, mesmo com a muleta.
  — Traz o archote — disse ao rapaz de Vilavelha. — Preciso de procurar uma pessoa. — Nos degraus estavam principalmente Thenns. Certamente que alguns dos membros do povo livre tinham escapado. Gente
de Mance, não do Magnar. Ela podia ter sido um deles. Portanto desceram, passando pelos corpos dos homens que tinham testado o alçapão, e Jon pôs-se a vaguear pela escuridão com a muleta debaixo de um
braço e o outro em volta dos ombros de um rapaz que fora prostituto em Vilavelha.
  Os estábulos e a sala comum já estavam por essa altura reduzidos a brasas fumegantes, mas o fogo ainda ardia furiosamente ao longo da Muralha, trepando degrau a degrau e um patamar após outro. De tempos
a tempos ouviam um gemido e logo um craaaac, e outro bocado de Muralha tombava com estrondo. O ar estava cheio de cinzas e cristais de gelo.
  Encontrou Quort morto, e o Polegares de Pedra moribundo. Encontrou alguns Thenn mortos e moribundos que nunca chegara realmente a conhecer. Encontrou o Grande Furúnculo, fraco de todo o sangue que perdera
mas ainda vivo.
  Encontrou Ygritte estatelada numa extensão de neve velha por baixo da Torre do Senhor Comandante, com uma seta entre os seios. Os cristais de gelo tinham pousado no seu rosto, e, ao luar, parecia que
estava a usar uma máscara cintilante de prata.
  Jon viu que a seta era negra, mas tinha penas brancas de pato. Não é minha, disse a si próprio, não é uma das minhas. Mas sentiu-se como se fosse.
  Quando ajoelhou na neve ao lado dela, Ygritte abriu os olhos.
  — Jon Snow — disse ela, muito baixo. Parecia que a seta tinha atingido um pulmão. — Isto agora já é um verdadeiro castelo? Não é só uma torre?
  — Sim. — Jon pegou-lhe na mão.
  — Bom — sussurrou ela. — Queria ver um castelo a sério antes… antes de…
  — Vais ver uma centena de castelos — prometeu-lhe ele. — A batalha acabou. O Meistre Aemon vai tratar de ti. — Tocou-lhe o cabelo. — És beijada pelo fogo, lembras-te? Sortuda. Há-de ser preciso mais
do que uma seta para te matar. Aemon vai puxá-la para fora e fazer-te um penso, e depois arranjamos-te um pouco de leite da papoila para as dores.
  Ela limitou-se a sorrir.
  — Lembras-te daquela gruta? Devíamos ter ficado naquela gruta. Eu disse-te.
  — Vamos voltar à gruta — disse ele. — Não vais morrer, Ygritte. Não vais.
  — Oh. — Ygritte envolveu-lhe a cara com a mão. — Não sabes nada, Jon Snow — suspirou, morrendo.
 
 BRAN
  —É só mais um castelo vazio — disse Meera Reed ao olhar para a desolação de detritos, ruínas e ervas daninhas.
  Não, pensou Bran, é Fortenoite, e isto é o fim do mundo. Nas montanhas, só conseguia pensar em chegar à Muralha e encontrar o corvo de três olhos, mas agora que estavam ali sentia-se cheio de temores.
O sonho que tivera… o sonho que o Verão tivera… Não, não devo pensar no sonho. Nem sequer o contara aos Reed, embora pelo menos Meera parecesse sentir que havia algo de errado. Se nunca falasse dele,
talvez pudesse esquecer que o sonhara, e então não teria acontecido, e Robb e o Vento Cinzento ainda estariam…
  — Hodor. — Hodor deslocou o peso de uma perna para a outra, levando Bran atrás. Estava cansado. Tinham caminhado durante horas. Pelo menos não está assustado. Bran tinha medo daquele lugar, e quase
outro tanto de o admitir perante os Reed. Sou um príncipe do Norte, um Stark de Winterfell, quase um homem feito, tenho de ser tão bravo como Robb.
  Jojen fitou-o com os seus olhos verdes-escuros.
  — Não há nada aqui que nos faça mal, Vossa Graça.
  Bran não tinha tanta certeza. Fortenoite surgia em algumas das histórias mais assustadoras da Velha Ama. Tinha sido ali que o Rei da Noite reinara, antes de o seu nome ter sido varrido da memória dos
homens. Fora ali que o Cozinheiro Ratazana servira ao rei ândalo o seu empadão de príncipe e bacon, que as setenta e nove sentinelas estiveram de vigia, que o bravo jovem Danny Flint fora violado e assassinado.
Era aquele o castelo onde o Rei Sherrit rogara a sua praga sobre os ândalos de outrora, onde os jovens aprendizes tinham enfrentado a coisa saída da noite, onde o cego Symeon Olhos-de-Estrela vira os
mastins do inferno a lutar. O Machado Louco caminhara em tempos por aqueles pátios e subira àquelas torres, assassinando os seus irmãos a coberto da escuridão.
  Tudo aquilo acontecera havia centenas e milhares de anos, com certeza, e algumas daquelas coisas talvez nem tivessem acontecido de todo. O Meistre Luwin dizia sempre que as histórias da Velha Ama não
deviam ser engolidas inteiras. Mas uma vez o tio viera visitar o pai, e Bran interrogara-o a respeito de Fortenoite. Benjen Stark não chegara a dizer que as histórias eram verdadeiras, mas também não
dissera que não o eram; limitara-se a encolher os ombros e a dizer:
  — Abandonámos Fortenoite há duzentos anos. — Como se isso fosse resposta.
  Bran forçou-se a olhar em volta. A manhã estava fria mas luminosa, com o Sol a brilhar num céu de um azul duro, mas os ruídos não lhe agradavam. O vento gerava um assobio nervoso ao estremecer por entre
as torres quebradas, os baluartes gemiam e aquietavam-se, e ouviam-se ratazanas a esgravatar sob o chão do grande salão. Os filhos do Cozinheiro Ratazana, a fugir do pai. Os pátios eram pequenas florestas
onde árvores esguias esfregavam os seus ramos nus uns nos outros e folhas mortas se esgueiravam como baratas por cima de montículos de neve antiga. Havia árvores a crescer onde os estábulos tinham estado,
e um represeiro branco e retorcido assomava por um buraco escancarado no telhado em cúpula da cozinha. Até Verão se sentia desconfortável naquele local. Bran esgueirou-se para dentro da sua pele, só por
um instante, para obter o cheiro do sítio. Também não gostou dele.
  E não havia maneira de atravessar.
  Bran dissera-lhes que não haveria. Dissera-lhes e voltara a dizer-lhes, mas Jojen Reed insistira em ver com os seus olhos. Dizia que tivera um sonho verde, e que os seus sonhos verdes não mentiam. Também
não abrem portões, pensou Bran.
  O portão que Fortenoite defendia estava selado desde o dia em que os irmãos negros tinham carregado as mulas e garranos e partido para Lago Profundo; a sua porta levadiça de ferro encontrava-se descida,
as correntes que a içavam tinham sido levadas, e o túnel fora enchido de pedras e detritos, tudo congelado até se tornar tão impenetrável como a própria Muralha.
  — Devíamos ter seguido Jon — disse Bran quando o viu. Pensava frequentemente no irmão bastardo, desde a noite em que Verão o vira a afastar-se na tempestade. — Devíamos ter procurado a Estrada de Rei
e seguido para Castelo Negro.
  — Não nos atrevemos, meu príncipe — disse Jojen. — Já vos disse porquê.
  — Mas há selvagens. Eles mataram um homem qualquer e queriam também matar o Jon. Jojen, eram uma centena.
  — Foi o que dissestes. Nós somos quatro. Ajudastes o vosso irmão, se é que era realmente ele, mas isso quase vos custou o Verão.
  — Eu sei — disse Bran com um ar infeliz. O lobo gigante matara três deles, talvez mais, mas eram demasiados. Depois de formarem um anel apertado em volta do homem alto sem orelhas, tentara esgueirar-se
através da chuva, mas uma das setas viera num relâmpago atrás dele e a súbita punhalada de dor expulsara Bran da pele do lobo e fizera-o regressar à sua. Depois de a tempestade finalmente passar, tinham-se
aninhado no escuro sem uma fogueira, falando em murmúrios quando falavam de todo, escutando a respiração pesada de Hodor e perguntando a si próprios se os selvagens iriam tentar atravessar o lago de manhã.
Bran tentara várias vezes alcançar o Verão, mas a dor que encontrara afastara-o, da mesma forma que uma chaleira em brasa nos faz afastar a mão quando tentamos pegar-lhe. Só Hodor dormira naquela noite,
murmurando “Hodor, Hodor”, enquanto se debatia e virava. Bran estava aterrorizado pela possibilidade de Verão estar a morrer na escuridão. Por favor, oh deuses antigos, rezara, levastes Winterfell, o
meu pai e as minhas pernas, não leveis também o Verão. E protegei também Jon Snow, e fazei com que os selvagens se vão embora.
  Não cresciam represeiros naquela ilha pedregosa no lago, mas de algum modo os deuses antigos deviam tê-lo ouvido. Os selvagens levaram o seu tempo até partirem na manhã seguinte, despindo os corpos
dos seus mortos e do velho que tinham matado, e até pescando uns quantos peixes do lago, e houvera um momento assustador quando três deles encontraram o caminho elevado e começaram a entrar no lago… mas
o caminho virara e eles não, e dois quase se afogaram antes de os outros os puxarem para terra. O homem alto e careca berrara-lhes, com palavras que ecoaram sobre as águas numa língua qualquer que nem
mesmo Jojen conhecia, e pouco depois pegaram nos escudos e lanças e marcharam para nordeste, a mesma direcção que Jon seguira. Bran queria também partir, para ir à procura do Verão, mas os Reed disseram
que não.
  — Vamos ficar mais uma noite — dissera Jojen —, colocar algumas léguas entre nós e os selvagens. Não quereis voltar a encontrá-los, pois não? — Mais tarde nessa noite, Verão regressara de onde quer
que estivera escondido, arrastando a pata traseira. Comera partes dos cadáveres na estalagem, afastando os corvos, e depois nadara até à ilha. Meera arrancara-lhe a seta quebrada da pata e esfregara a
ferida com o sumo de umas plantas quaisquer que encontrara a crescer em volta da base da torre. O lobo gigante ainda coxeava, mas parecia a Bran que o fazia um pouco menos todos os dias. Os deuses tinham
escutado.
  — Talvez devêssemos tentar outro castelo — disse Meera ao irmão. — Talvez consigamos atravessar o portão noutro sítio qualquer. Podia ir bater terreno, se quisesses, seria mais rápida sozinha.
  Bran abanou a cabeça.
  — Se fores para leste, tens primeiro o Lago Profundo e depois o Portão da Rainha. Para oeste fica Marcagelo. Mas serão a mesma coisa, só que mais pequenos. Todos os portões estão selados, excepto os
de Castelo Negro, Atalaialeste e Torre Sombria.
  Hodor respondeu “Hodor” àquilo, e os Reed trocaram um olhar.
  — Pelo menos podia subir até ao topo da Muralha — decidiu Meera. — Talvez visse alguma coisa lá em cima.
  — O que esperas ver? — perguntou Jojen.
  — Alguma coisa — disse Meera, e para variar mostrou-se inflexível.
  Devia ser eu. Bran ergueu a cabeça para ver a Muralha e imaginou-se a trepar centímetro a centímetro, enfiando os dedos em fendas no gelo e abrindo apoios para os pés ao pontapé. A ideia fê-lo sorrir,
apesar de tudo, dos sonhos, dos selvagens, de Jon e de tudo. Trepara as muralhas de Winterfell quando era pequeno, e todas as torres também, mas nenhuma fora tão alta, e eram apenas de pedra. A Muralha
podia parecer pedra, toda cinzenta e esburacada, mas depois as nuvens abriam-se, o Sol brilhava sobre ela de uma forma diferente, e de repente transformava-se e ali surgia, branca, azul e cintilante.
Era o fim do mundo, dizia sempre a Velha Ama. Do outro lado havia monstros, gigantes e vampiros, mas não podiam passar enquanto a Muralha se mantivesse em pé. Quero ir lá acima com a Meera, pensou Bran.
Quero ir lá acima e ver.
  Mas era um rapaz quebrado com pernas inúteis, por isso tudo o que podia fazer era ficar em baixo a ver enquanto Meera subia no seu lugar.
  Ela não estava realmente a escalar, como ele costumava escalar. Estava só a subir uns degraus que a Patrulha da Noite talhara há centenas e milhares de anos. Lembrava-se de o Meistre Luwin dizer que
Fortenoite era o único castelo onde os degraus tinham sido cortados no gelo da própria Muralha. Ou talvez tivesse sido o tio Benjen. Os castelos mais novos tinham degraus de madeira, ou de pedra, ou longas
rampas de terra e cascalho. O gelo é demasiado traiçoeiro. Fora o tio que lhe dissera aquilo. Dissera que a superfície exterior da Muralha chorava por vezes lágrimas geladas, embora o núcleo, lá dentro,
permanecesse congelado e duro como pedra. Os degraus deviam ter derretido e voltado a congelar mil vezes desde que os últimos irmãos negros tinham abandonado o castelo, e de todas as vezes que o faziam
encolhiam um pouco e tornavam-se mais lisos, mais arredondados e mais traiçoeiros.
  E mais pequenos. É quase como se a Muralha estivesse a engoli-los de volta. Meera Reed tinha uns pés muito seguros, mas mesmo assim avançava lentamente, deslocando-se de protuberância em protuberância.
Em dois locais, onde os degraus praticamente já não existiam, pôs-se de gatas. Será pior quando descer, pensou Bran, observando. Mesmo assim, desejou ser ele a estar lá em cima. Quando chegou ao topo,
gatinhando pelas saliências geladas que eram tudo o que restava dos degraus superiores, Meera desapareceu da sua vista.
  — Quando é que ela desce? — perguntou Bran a Jojen.
  — Quando estiver pronta. Ela vai querer dar uma boa olhadela… sobre a Muralha e sobre o que está para lá dela. Devíamos fazer o mesmo cá em baixo.
  — Hodor? — disse Hodor, com ar de dúvida.
  — Podíamos encontrar qualquer coisa — insistiu Jojen.
  Ou pode ser que alguma coisa nos encontre a nós. Mas Bran não o podia dizer; não queria que Jojen o julgasse cobarde.
  E assim foram explorar, com Jojen Reed na liderança, Bran no seu cesto às costas de Hodor e Verão a caminhar a seu lado. Uma vez, o lobo gigante enfiou-se de súbito numa porta escura e regressou um
momento depois com uma ratazana cinzenta entre os dentes. O Cozinheiro Ratazana, pensou Bran, mas o animal era da cor errada, e só tinha o tamanho de um gato. O Cozinheiro Ratazana era branco, e quase
tão gigantesco como uma porca.
  Havia montes de portas escuras em Fortenoite, e montes de ratazanas. Bran ouvia as suas correrias pelas caves e adegas e pelo labirinto de túneis negros como breu que as ligava. Jojen queria ir espreitar
lá em baixo, mas a essa ideia Hodor disse “Hodor”, e Bran disse “Não”. Havia coisas piores do que ratazanas na escuridão por baixo de Fortenoite.
  — Isto parece um lugar antigo — disse Jojen enquanto atravessavam uma galeria onde a luz do Sol caía em pilares poeirentos através de janelas vazias.
  — É duas vezes mais velho do que Castelo Negro — disse Bran, recordando. — Foi o primeiro castelo da Muralha, e também o maior. — Mas também foi o primeiro a ser abandonado, ainda no tempo do Velho
Rei. Mesmo então, três quartos dele já se encontravam vazios, e era demasiado dispendioso mantê-lo. A Boa Rainha Alysanne sugeriu que a Patrulha o substituísse por um castelo mais pequeno e mais novo,
num local que distava apenas sete milhas para leste, onde a Muralha se curvava ao longo da margem de um belo lago verde. Lago Profundo foi pago pelas jóias da rainha e construído pelos homens que o Velho
Rei enviou para norte, e os irmãos negros entregaram Fortenoite às ratazanas.
  Mas isso fora há dois séculos. Agora, Lago Profundo estava tão vazio como o castelo que substituíra, e Fortenoite…
  — Há aqui fantasmas — disse Bran. Hodor já ouvira todas as histórias, mas Jojen talvez não. — Fantasmas velhos, de antes do Velho Rei, até de antes de Aegon, o Dragão, setenta e nove desertores que
foram para Sul para se tornarem foras-da-lei. Um deles era o filho mais novo do Lorde Ryswell, e por isso, quando chegaram às terras acidentadas, procuraram refúgio no seu castelo, mas o Lorde Ryswell
aprisionou-os e devolveu-os a Fortenoite. O Senhor Comandante mandou cortar buracos no topo da Muralha, enfiou neles os desertores e selou-os no gelo, vivos. Têm lanças e cornos e estão todos virados
para norte. Chamam-se as setenta e nove sentinelas. Abandonaram os seus postos em vida, portanto na morte as suas vigílias duram para sempre. Anos mais tarde, quando o Lorde Ryswell já estava velho e
moribundo, fez-se trazer para Fortenoite para poder vestir o negro e ficar junto do filho. Enviara-o de volta para a Muralha por uma questão de honra, mas ainda o amava, por isso veio acompanhá-lo na
vigília.
  Passaram metade do dia a esquadrinhar o castelo. Algumas das torres tinham ruído, e outras pareciam pouco seguras, mas subiram à torre sineira (não havia sinos) e à colónia dos corvos (não havia corvos).
Sob a cervejaria, encontraram uma adega de enormes cascos de carvalho que trovejavam a oco quando Hodor lhes batia com os nós dos dedos. Encontraram uma biblioteca (as prateleiras e arcas tinham caído,
não havia livros, mas havia ratazanas por todo o lado). Encontraram uma masmorra húmida e fracamente iluminada com celas suficientes para quinhentos cativos, mas quando Bran pegou numa das barras ferrugentas,
ela partiu-se-lhe na mão. Só restava uma parede em ruínas no grande salão, a casa de banhos parecia estar a afundar-se no chão, e um enorme espinheiro conquistara o pátio de treinos à porta do armeiro,
onde irmãos negros tinham em tempos trabalhado com lanças, escudos e espadas. No entanto, o armeiro e a forja ainda se mantinham em pé, embora as teias de aranha, as ratazanas e a poeira tivessem ocupado
o lugar das lâminas, dos foles e da bigorna. Por vezes, Verão ouvia sons a que Bran parecia surdo, ou mostrava os dentes a coisa nenhuma, com o pêlo do cachaço eriçado… mas o Cozinheiro Ratazana não chegou
a aparecer, e as setenta e nova sentinelas e o Machado Louco também não. Bran sentiu-se muito aliviado. Talvez seja apenas um castelo vazio em ruínas.
  Quando Meera regressou, o Sol estava somente uma espada travessa acima dos montes ocidentais.
  — Que foi que viste? — perguntou-lhe o irmão Jojen.
  — Vi a floresta assombrada — disse ela num tom pensativo. — Montes selvagens que se erguem até perder de vista, cobertos de árvores nunca tocadas por um machado. Vi a luz do Sol a cintilar num lago,
e nuvens que se aproximam vindas do oeste. Vi manchas de neve velha e pingentes do tamanho de piques. Até vi uma águia a pairar no céu. Acho que ela também me viu. Fiz-lhe adeus.
  — Viste algum caminho para baixo? — perguntou Jojen.
  Ela abanou a cabeça.
  — Não. É uma queda a pique, e o gelo é tão liso… eu talvez fosse capaz de descer se tivesse uma boa corda e um machado para abrir apoios para as mãos, mas…
  — …mas nós não — terminou Jojen.
  — Pois não — concordou a irmã. — Tens a certeza de que este é o lugar que viste no teu sonho? Talvez estejamos no castelo errado.
  — Não. O castelo é este. Há aqui um portão.
  Sim, pensou Bran, mas está bloqueado por pedra e gelo.
  Quando o Sol começou a pôr-se, as sombras das torres cresceram e o vento soprou com mais força, fazendo rajadas de folhas secas e mortas crepitar nos pátios. As sombras que se reuniam lembraram a Bran
outra das histórias da Velha Ama, a história do Rei da Noite. Tinha sido o décimo terceiro homem a liderar a Patrulha da Noite, dizia ela; um guerreiro que não conhecia o medo.
  — E esse era o seu defeito — acrescentava — pois todos os homens devem conhecer o medo. — A sua perdição fora uma mulher; uma mulher vislumbrada do topo da Muralha, com uma pele branca como a Lua e
olhos que eram como estrelas azuis. Sem nada temer, ele perseguira-a, apanhara-a e amara-a, embora a sua pele fosse fria como gelo, e quando lhe entregara a sua semente, entregara-lhe também a alma.
  Trouxera-a de volta para Fortenoite e proclamara-a rainha e a si o seu rei, e com estranhas feitiçarias prendera os Irmãos Ajuramentados à sua vontade. Governaram durante treze anos, o Rei da Noite
e a sua rainha cadáver, até que por fim o Stark de Winterfell e Joramun dos selvagens se aliaram para libertar a Patrulha da servidão. Após a sua queda, quando se descobrira que o Rei da Noite tinha andado
a fazer sacrifícios aos Outros, todos os registos que o referiam foram destruídos e até o seu nome fora proibido.
  — Alguns dizem que era um Bolton — concluía sempre a Velha Ama. — Alguns falam de um Magnar de Skagos, outros dizem Umber, Flint ou Norrey. Alguns querem convencer-nos de que era um Woodfoot, membro
da família que governava a Ilha dos Ursos antes da chegada dos homens de ferro. Mas não era. Era um Stark, o irmão do homem que o derrubou. — Então dava sempre um beliscão no nariz de Bran, ele nunca
o esqueceria. — Era um Stark de Winterfell, e quem sabe? Talvez o seu nome fosse Brandon. Talvez dormisse nesta mesma cama, neste mesmo quarto.
  Não, pensou Bran. Mas caminhou por este castelo, onde vamos dormir esta noite. Não gostava nada daquela ideia. O Rei da Noite era apenas um homem à luz do dia, dizia sempre a Velha Ama, mas a noite
era por si governada. E está a ficar escuro.
  Os Reed decidiram que iriam dormir nas cozinhas, um octógono de pedra com uma cúpula quebrada. Parecia oferecer melhor abrigo do que a maior parte dos outros edifícios, mesmo apesar de um represeiro
retorcido ter aberto caminho através do chão de lousa ao lado do gigantesco poço central, e se estender, inclinado, para o buraco no telhado, com os ramos brancos como ossos a esticar-se para o Sol. Era
uma árvore estranha, mais esguia do que qualquer outro represeiro que Bran tivesse visto e desprovida de rosto, mas pelo menos fazia-o sentir que os deuses estavam ali com ele.
  Era a única coisa de que gostava nas cozinhas, porém. O telhado estava lá, na maior parte, mas não lhe parecia que conseguissem ficar quentes ali dentro. Era possível sentir o frio a infiltrar-se através
do chão de lousa. Bran também não gostava das sombras, ou dos enormes fornos de tijolo que os rodeavam como bocas abertas, ou dos ferrugentos ganchos para carne, ou das cicatrizes e manchas que via na
mesa de magarefe, junto à parede. Foi ali que o Cozinheiro Ratazana cortou o príncipe aos bocados, compreendeu, e fez o empadão num daqueles fornos.
  Mas o poço era aquilo de que menos gostava. Tinha uns bons três metros e meio de diâmetro, era todo em pedra, com degraus esculpidos nas paredes, descendo aos círculos, cada vez mais para baixo, até
se perderem nas trevas. As paredes eram húmidas e estavam cobertas de salitre, mas nenhum deles conseguiu ver a água no fundo, nem mesmo Meera com os seus penetrantes olhos de caçadora.
  — Talvez não tenha fundo — disse Bran com incerteza.
  Hodor espreitou por sobre a borda do poço, que lhe dava pelos joelhos, e disse:
  — HODOR! — A palavra ecoou pelo poço abaixo, “Hodorhodorhodorhodor”, cada vez mais ténua, “hodorhodorhodorhodor” até se tornar em menos do que um murmúrio. Hodor pareceu surpreendido. Então riu, e dobrou-se
para apanhar um bocado quebrado de lousa.
  — Hodor, não! — disse Bran, mas tarde de mais. Hodor atirou a lousa por sobre a borda. — Não devias ter feito isso. Não sabes o que está lá em baixo. Podias ter aleijado alguma coisa ou… ou acordado
alguma coisa.
  Hodor olhou-o com uma expressão inocente.
  — Hodor?
  Muito, muito, muito em baixo, ouviram o som da pedra a encontrar água. Não foi um chape, não propriamente. Foi mais um glup, como se o que quer que estivesse lá em baixo tivesse aberto uma trémula boca
gélida para engolir a pedra de Hodor. Ténuos ecos viajaram pelo poço acima, e por um momento Bran pensou ouvir algo a mover-se, a sacudir-se de um lado para o outro, na água.
  — Talvez não devêssemos ficar aqui — disse, inquieto.
  — Junto ao poço? — perguntou Meera. — Ou em Fortenoite?
  — Sim — disse Bran.
  Ela soltou uma gargalhada, e mandou Hodor ir buscar lenha. Verão também foi. Por essa altura já era quase noite, e o lobo gigante queria caçar.
  Hodor regressou sozinho com ambos os braços cheios de madeira morta e ramos quebrados. Jojen Reed pegou na sua pederneira e na faca e tratou de acender uma fogueira enquanto Meera amanhava o peixe que
apanhara no último ribeiro por onde passara. Bran perguntou a si próprio quantos anos teriam transcorrido desde que houvera um jantar cozinhado nas cozinhas de Fortenoite. Também perguntou a si próprio
quem o teria cozinhado, embora talvez fosse melhor não saber.
  Quando as chamas já ardiam bem, Meera pôs o peixe ao lume. Pelo menos não é um empadão de carne. O Cozinheiro Ratazana tinha feito com o filho do rei ândalo um grande empadão com cebolas, cenouras,
cogumelos, montes de pimenta e sal, uma fatia de bacon e um escuro vinho tinto de Dorne. Depois, servira-o ao pai, que elogiara o sabor e pedira para repetir. Mais tarde, os deuses transformaram o cozinheiro
numa monstruosa ratazana branca que só podia comer os próprios filhos. Vagueara desde então por Fortenoite, devorando os filhos, mas a sua fome ainda não estava saciada.
  — Não foi por assassínio que os deuses o amaldiçoaram — dizia a Velha Ama — nem por servir ao rei ândalo o filho num empadão. Um homem tem direito à vingança. Mas matou um hóspede sob o seu tecto, e
isso os deuses não podem perdoar.
  — Devíamos dormir — disse solenemente Jojen, depois de encherem as barrigas. A fogueira ardia baixa. Avivou-a com um pau. — Talvez tenha outro sonho verde para nos mostrar o caminho.
  Hodor já estava enrolado e a ressonar ligeiramente. De tempos a tempos agitava-se sob o seu manto, e choramingava qualquer coisa que podia ser “Hodor”. Bran serpeou para mais perto da fogueira. O calor
era agradável, e o suave crepitar das chamas acalmou-o, mas o sono não queria vir. Lá fora, o vento punha exércitos de folhas mortas a marchar pelos pátios e fazia-os arranhar tenuamente as portas e janelas.
Os sons fizeram-no pensar nas histórias da Velha Ama. Quase conseguia ouvir as fantasmagóricas sentinelas a chamar umas pelas outras no topo da Muralha e a soprar os seus fantasmagóricos cornos de guerra.
O pálido luar entrava de viés pelo buraco na cúpula, pintando os ramos do represeiro que se esticavam para o tecto. Parecia que a árvore estava a tentar apanhar a Lua e atirá-la ao poço. Deuses antigos,
orou Bran, se me escutais, não envieis um sonho esta noite. Ou se o fizerdes, fazei com que seja um sonho bom. Os deuses não responderam.
  Bran obrigou-se a fechar os olhos. Talvez até tivesse dormido um pouco, ou talvez estivesse apenas a dormitar, flutuando daquela maneira característica de quando se está meio acordado e meio a dormir,
tentando não pensar no Machado Louco, no Cozinheiro Ratazana, ou na coisa que chegava na noite.
  Então ouviu o ruído.
  Os olhos abriram-se-lhe. O que foi aquilo? Susteve a respiração. Tê-lo-ei sonhado? Estaria a ter um estúpido pesadelo? Não queria acordar Meera e Jojen por causa de um pesadelo, mas… ali… um ténuo som
de arrastamento, distante… Folhas, são folhas a restolhar nas paredes lá fora e a raspar umas nas outras… ou o vento, podia ser o vento… Mas o som não vinha lá de fora. Bran sentiu que os pêlos dos braços
começavam a eriçar-se. O som está cá dentro, está aqui connosco, e está a ficar mais alto. Apoiou-se num cotovelo, à escuta. Havia vento, e também folhas por ele sopradas, mas isto era outra coisa. Passos.
Alguém vem nesta direcção. Algo vem nesta direcção.
  Sabia que não eram as sentinelas. As sentinelas nunca abandonavam a Muralha. Mas podia haver outros fantasmas em Fortenoite, fantasmas ainda mais terríveis. Lembrou-se do que a Velha Ama dissera do
Machado Louco, de como ele tirara as botas e percorrera os salões do castelo de pés nus, na escuridão, sem soltar um som que indicasse onde estava excepto as gotas de sangue que caíam do machado, dos
cotovelos e da ponta da sua barba vermelha e húmida. Ou talvez não fosse o Machado Louco, talvez fosse a coisa que chegava na noite. Todos os aprendizes a tinham visto, dizia a Velha Ama, mas depois,
quando contaram ao seu Senhor Comandante, todas as descrições tinham sido diferentes. E três morreram naquele ano, e o quarto enlouqueceu, e cem anos mais tarde, quando a coisa regressou, os aprendizes
foram vistos aos tropeções atrás dela, agrilhoados.
  Mas isso era apenas uma história. Estava só a assustar-se a si próprio. Não existia coisa alguma que chegava na noite, fora o Meistre Luwin que o dissera. Se algo assim tivesse existido, tinha agora
desaparecido do mundo, como os gigantes e os dragões. Não é nada, pensou Bran.
  Mas os sons eram agora mais altos.
  Vem do poço, compreendeu. Isso deixou-o ainda mais assustado. Algo vinha a subir de debaixo do chão, vinha a subir da escuridão. Hodor acordou-o. Acordou-o com aquele estúpido bocado de lousa, e agora
vem aí. Era difícil ouvir por sobre os roncos de Hodor e o trovejar do seu coração. Seria o som que o sangue fazia a pingar de um machado? Ou seria o ténuo e distante retinir de grilhetas fantasmagóricas?
Bran escutou com mais força. Passos. Era passos de certeza, cada um ligeiramente mais alto do que o anterior. Mas não conseguia identificar quantos eram. O poço fazia os sons ecoar. Não ouvia nada a pingar,
e também não ouvia correntes, mas havia algo mais… um som agudo, frágil e lamuriento, como que emitido por alguém com dores, e uma respiração pesada e abafada. Mas eram os passos que melhor se ouviam.
Os passos que se aproximavam.
  Bran estava demasiado assustado para gritar. A fogueira reduzira-se a algumas brasas ténuas e todos os seus amigos se encontravam adormecidos. Quase despiu a pele e foi em busca do lobo, mas Verão podia
estar a milhas de distância. Não podia deixar os amigos na escuridão, impotentes para enfrentar o que quer que viesse a subir o poço. Eu disse-lhes para não virmos para aqui, pensou, infeliz. Eu disse-lhes
que havia fantasmas. Eu disse-lhes que devíamos ir para Castelo Negro.
  Os passos pareciam-lhe pesados, lentos, imponentes, raspando contra a pedra. Deve ser enorme. O Machado Louco fora um homem grande na história da Velha Ama, e a coisa que chegava na noite fora monstruosa.
Em Winterfell, Sansa dissera-lhe que os demónios da escuridão não lhe podiam tocar se se escondesse por baixo da manta. Quase o fez naquela altura, antes de se lembrar de que era um príncipe, e quase
um homem feito.
  Bran contorceu-se pelo chão fora, arrastando as pernas mortas atrás de si, até conseguir estender a mão e tocar Meera no pé. Ela acordou de imediato. Nunca conhecera alguém que acordasse tão depressa
como Meera Reed, ou que ficasse alerta tão rapidamente. Bran pôs um dedo em frente da boca para que ela soubesse que não devia falar. Meera ouviu o som de imediato, Bran viu-o no seu rosto; os passos
cheios de ecos, a ténua lamúria, a respiração pesada.
  Meera pôs-se em pé sem uma palavra e recolheu as armas. Com a lança para rãs de três dentes na mão direita e as dobras da rede a pender da esquerda, deslizou descalça para junto do poço. Jojen continuava
a dormir, sem se aperceber de nada, enquanto Hodor resmungava e se movia num sono inquieto. Ela manteve-se nas sombras ao mover-se, rodeou o pilar de luar tão silenciosa como uma gata. Bran passou todo
o tempo a observá-la, e até ele quase não conseguia ver o ténuo reflexo da sua lança. Não posso deixar que ela combata a coisa sozinha, pensou. O Verão estava distante, mas…
  …deslizou para fora da sua pele e procurou Hodor.
  Não era como enfiar-se em Verão. Isso era agora tão fácil que Bran quase nem pensava no que estava a fazer. Com Hodor era mais difícil, como tentar enfiar uma bota esquerda no pé direito. Servia mal,
e além disso a bota estava assustada, a bota não sabia o que estava a acontecer, a bota estava a tentar afastar o pé. Sentiu o sabor de vómito no fundo da garganta de Hodor, e isso foi quase o bastante
para o levar a fugir. Mas em vez disso, contorceu-se e empurrou, sentou-se, pôs as pernas por baixo de si — as suas enormes e fortes pernas — e ergueu-se. Estou em pé. Deu um passo. Estou a andar. Era
uma sensação tão estranha que quase caiu. Conseguia ver-se no frio chão de pedra, uma coisinha quebrada, mas agora não estava quebrado. Pegou na espada longa de Hodor. A respiração era tão ruidosa como
o fole de um ferreiro.
  Do poço veio um queixume, um crich penetrante que o atravessou como uma faca. Uma enorme silhueta negra içou-se das trevas e cambaleou na direcção do luar, e o medo ergueu-se tão denso em Bran que antes
mesmo de conseguir pensar em puxar pela espada de Hodor como tencionara fazer, deu por si de volta ao chão, com Hodor a rugir “Hodor Hodor HODOR” como fizera na torre do lago sempre que um relâmpago caía.
Mas a coisa que chegara na noite estava também a gritar, e a agitar-se violentamente nas dobras da rede de Meera. Bran viu a lança da rapariga saltar das trevas para lhe morder, e a coisa cambaleou e
caiu, lutando com a rede. O lamento continuava a sair do poço, agora ainda mais ruidoso. No chão, a coisa negra saltou e lutou, guinchando:
  — Não, não, não, por favor, NÃO…
  Meera pôs-se por cima dele, com o luar a brilhar, prateado, nos dentes da sua lança para rãs.
  — Quem és tu? — exigiu saber.
  — Sou o SAM — soluçou a coisa negra. — Sam, Sam, sou o Sam, deixa-me sair, picaste-me… — Passou a rolar pela poça de luar, esbracejando e esperneando, enredado na rede de Meera. Hodor continuava a gritar
“Hodor Hodor Hodor.”
  Foi Jojen quem alimentou a fogueira com paus e a soprou até que as chamas saltaram, a crepitar. Então houve luz, e Bran viu a pálida rapariga de cara magra junto à borda do poço, toda entrouxada em
peles sob um enorme manto negro, tentando calar o bebé que chorava nos seus braços. A coisa no chão estava a tentar atravessar a rede com um braço para pegar na faca, mas as voltas não lho permitiam.
Não era nenhuma fera monstruosa, nem o Machado Negro ensopado em sangue; era apenas um homem muito gordo vestido de lã negra, peles negras, couro negro e cota de malha negra.
  — Ele é um irmão negro — disse Bran. — Meera, ele é da Patrulha da Noite.
  — Hodor? — Hodor acocorou-se para examinar o homem na rede. — Hodor — repetiu, gritando.
  — A Patrulha da Noite, sim. — O gordo continuava a respirar como um fole. — Sou um irmão da Patrulha. — Tinha uma corda sob os queixos, forçando-lhe a cabeça para trás, e outras profundamente enterradas
no rosto. — Sou um corvo, por favor. Tirai-me isto de cima.
  Bran ficou de súbito incerto.
  — És o corvo de três olhos? — Ele não pode ser o corvo de três olhos.
  — Acho que não. — O gordo rolou os olhos, mas só havia dois. — Sou só o Sam. Samwell Tarly. Deixai-me sair, a rede está a magoar-me. — Recomeçou a lutar.
  Meera fez um ruído de repugnância.
  — Pára de esbracejar. Se me rasgares a rede, volto a atirar-te ao poço. Fica quieto que eu te desenredo.
  — Quem és tu? — perguntou Jojen à rapariga com o bebé.
  — Gilly — disse ela. — Como a flor de goivo. Ele é o Sam. Não queríamos assustar-vos. — Embalou o bebé e murmurou para ele, e por fim a criança parou de chorar.
  Meera estava a desemaranhar o irmão gordo. Jojen dirigiu-se ao poço e espreitou para dentro.
  — De onde viestes?
  — Da Fortaleza de Craster — disse a rapariga. — És tu o certo?
  Jojen virou-se para olhá-la.
  — O certo?
  — Ele disse que Sam não era o certo — explicou ela. — Que havia mais alguém, disse ele. Aquele que o tinham enviado para encontrar.
  — Quem foi que disse isso? — quis saber Bran.
  — O Mãos-Frias — respondeu Gilly em voz baixa.
  Meera puxou por uma ponta da rede e o gordo conseguiu sentar-se. Bran viu que estava a tremer, e ainda a lutar por recuperar o fôlego.
  — Ele disse que haveria gente — arquejou. — Gente no castelo. Mas eu não sabia que vos ia encontrar mesmo no topo dos degraus. Não sabia que me iríeis atirar uma rede para cima e picar-me no estômago.
— Tocou a barrica com uma mão enluvada de negro. — Estou a sangrar? Não consigo ver.
  — Foi só uma picadela para te derrubar — disse Meera. — Vem cá, deixa-me ver. — Ajoelhou e tacteou em volta do umbigo do gordo. — Estás a usar cota de malha. Nem cheguei perto da tua pele.
  — Bem, doeu na mesma — lamentou-se Sam.
  — És mesmo um irmão da Patrulha da Noite? — perguntou Bran.
  Os queixos do gordo balançaram quando confirmou com a cabeça. A sua pele parecia pálida e solta.
  — Só um intendente. Cuidava dos corvos do Lorde Mormont. — Por um momento pareceu prestes a chorar. — Mas perdi-os a todos no Punho. A culpa foi minha. E também nos perdi a nós. Nem sequer consegui
encontrar a Muralha. Tem cem léguas de comprimento e duzentos metros de altura, e não consegui encontrá-la!
  — Bem, agora encontraste — disse Meera. — Levanta o traseiro do chão, quero a minha rede de volta.
  — Como foi que atravessaste a Muralha? — Quis saber Jojen enquanto Sam lutava por se pôr em pé. — O poço leva a um rio subterrâneo, foi daí que vieste? Nem sequer estás húmido…
  — Há um portão — disse o gordo Sam. — Um portão escondido, tão velho como a própria Muralha. Ele chamou-lhe o Portão Negro.
  Os Reed trocaram um olhar.
  — Encontramos esse portão no fundo do poço? — perguntou Jojen.
  Sam abanou a cabeça.
  — Vós não. Eu vou ter de vos levar.
  — Porquê? — quis saber Meera. — Se há um portão…
  — Não o encontrareis. Se o encontrásseis, ele não se abriria. Para vós não. É o Portão Negro. — Sam repuxou a desbotada lã negra da sua manga. — Só pode ser aberto por um homem da Patrulha da Noite,
disse ele. Um Irmão Ajuramentado que tenha proferido as suas palavras.
  — Disse ele. — Jojen franziu o sobrolho. — Este… Mãos-Frias?
  — Esse não é o seu nome verdadeiro — disse Gilly, balouçando-se. — Era só um nome que lhe chamávamos, o Sam e eu. As mãos dele eram frias como gelo, mas salvou-nos dos mortos, ele e os seus corvos,
e trouxe-nos para aqui no seu alce.
  — O seu alce? — disse Bran, pasmado.
  — O seu alce? — disse Meera, sobressaltada.
  — Os seus corvos? — disse Jojen.
  — Hodor? — disse Hodor.
  — Ele era verde? — quis Bran saber. — Tinha hastes?
  O gordo mostrou-se confuso.
  — O alce?
  — O Mãos-Frias — disse Bran com impaciência. — Os homens verdes montam alces, costumava dizer a Velha Ama. Por vezes também têm hastes.
  — Ele não era um homem verde. Usava panos negros, como um irmão da Patrulha, mas era pálido como uma criatura, com mãos tão frias que a princípio tive medo. Mas as criaturas têm olhos azuis, e não têm
línguas, ou então esqueceram-se de como as usar. — O gordo virou-se para Jojen. — Ele deve estar à espera. Devíamos ir. Tendes alguma coisa mais quente para vestir? O Portão Negro é frio, e o outro lado
da Muralha é ainda mais frio. Vós…
  — Porque foi que ele não veio contigo? — Meera fez um gesto na direcção de Gilly e do bebé. — Eles vieram contigo, porque é que ele não veio? Porque foi que não o trouxeste também por esse Portão Negro?
  — Ele… ele não pode.
  — Porquê?
  — A Muralha. Disse-nos que a Muralha é mais do que simples gelo e pedra. Tem feitiços nela urdidos… feitiços velhos, e fortes. Não pode passar para lá da Muralha.
  Então caiu um silêncio muito grande na cozinha do castelo. Bran ouvia o suave crepitar das chamas, o vento a agitar as folhas na noite, os rangidos do magro represeiro que se estendia para a Lua. Para
lá dos portões vivem os monstros, e também os gigantes e os vampiros, lembrou-se de ouvir a Velha Ama dizer, mas não podem passar enquanto a Muralha se mantiver forte. Portanto vai dormir, meu pequeno
Brandon, meu rapazinho. Não tens nada a temer. Aqui não há monstros.
  — Não sou eu quem te disseram para trazer — disse Jojen Reed ao gordo Sam vestido com os seus trajos negros, manchados e largos. — É ele.
  — Oh. — Sam olhou-o com incerteza. Podia ser que só então se tivesse apercebido de que Bran era aleijado. — Eu não… não sou suficientemente forte para te levar, eu…
  — O Hodor pode levar-me. — Bran apontou para o cesto. — Eu ando naquilo, às costas dele.
  Sam estava a fitá-lo.
  — És o irmão de Jon Snow. Aquele que caiu…
  — Não — disse Jojen. — Esse rapaz está morto.
  — Não contes — avisou Bran. — Por favor.
  Sam pareceu confuso por um momento, mas por fim disse:
  — Eu… eu sei guardar um segredo. A Gilly também. — Quando olhou para ela, a rapariga confirmou com a cabeça. — O Jon… o Jon era também meu irmão. Foi o melhor amigo que já tive, mas partiu com Qhorin
Meia-Mão para bater os Colmilhos de Gelo e não regressou. Estávamos à espera dele no Punho quando… quando…
  — O Jon está aqui — disse Bran. — Verão viu-o. Estava com um grupo de selvagens, mas eles mataram um homem e Jon roubou o cavalo dele e fugiu. Aposto que foi para Castelo Negro.
  Sam virou uns olhos grandes para Meera.
  — Tendes a certeza de que era Jon? Viste-lo?
  — Sou a Meera — disse Meera com um sorriso. — Verão é…
  Uma sombra desprendeu-se da cúpula quebrada lá em cima e saltou através do luar. Mesmo apesar da pata ferida, o lobo aterrou ligeiro e silencioso como um floco de neve. A rapariga chamada Gilly soltou
um ruído assustado e apertou o bebé com tanta força contra si que a criança recomeçou a chorar.
  — Ele não te faz mal — disse Bran. — Este é o Verão.
  — Jon disse que todos vós tínheis lobos. — Sam descalçou uma luva. — Eu conheço o Fantasma. — Estendeu uma mão trémula, com dedos brancos, moles e gordos como pequenas salsichas. Verão aproximou-se,
farejou-os e deu uma lambedela à mão.
  Foi então que Bran se decidiu.
  — Vamos contigo.
  — Todos vós? — Sam pareceu surpreendido com a ideia.
  Meera despenteou o cabelo de Bran.
  — Ele é o nosso príncipe.
  Verão deu a volta ao poço, farejando. Fez uma pausa no degrau superior e olhou para Bran. Ele quer ir.
  — Ficará Gilly a salvo se a deixar aqui até regressar? — perguntou-lhes Sam.
  — Deve ficar — disse Meera. — É bem-vinda à nossa fogueira.
  Jojen disse:
  — O castelo está vazio.
  Gilly olhou em volta.
  — O Craster costumava contar-nos histórias de castelos, mas não sabia que eram tão grandes.
  Isto são só as cozinhas. Bran perguntou a si próprio o que ela pensaria quando visse Winterfell, se chegasse a fazê-lo.
  Demoraram alguns minutos a reunir as suas coisas e a içar Bran para a cadeira de vime às costas de Hodor. Quando ficaram prontos a partir, Gilly sentou-se junto à fogueira a dar de mamar ao bebé.
  — Vais voltar para mim — disse a Sam.
  — Assim que possa — prometeu aquele — e depois vamos para um sítio quente. — Quando ouviu aquilo, parte de Bran perguntou a si próprio o que estava a fazer. Será que voltarei a ir para um sítio quente?
  — Eu vou à frente, conheço o caminho. — Sam hesitou no topo. — Mas há tantos degraus — suspirou, antes de começar a descer. Jojen seguiu-o, depois ia o Verão, depois Hodor com Bran às cavalitas. Meera
colocou-se na retaguarda, com a lança e a rede na mão.
  Foi uma longa descida. O topo do poço estava banhado em luar, mas ele tornava-se mais estreito e mais sombrio em cada volta que davam. Os passos ecoavam nas pedras húmidas, e os sons de água foram ficando
mais sonoros.
  — Devíamos ter trazido archotes? — perguntou Jojen.
  — Os vossos olhos ajustar-se-ão — disse Sam. — Mantende uma mão na parede, e não caireis.
  O poço tornava-se mais escuro e mais frio a cada volta. Quando Bran finalmente ergueu a cabeça para olhar para cima, a boca do poço já não parecia maior do que meia Lua. “Hodor”, sussurrou Hodor, “Hodorhodorhodorhodorhodorhodor”,
murmurou o poço em resposta. Os sons de água estavam próximos, mas quando Bran espreitou para baixo, viu apenas negrume.
  Uma volta ou duas mais tarde, Sam parou de súbito. Estava a um quarto de volta de Bran e Hodor, e dois metros mais abaixo, mas Bran quase não o via. Mas via a porta. O Portão Negro, chamara-lhe Sam,
mas não era nada negro.
  Era represeiro branco, e havia nele um rosto.
  Um clarão saía da madeira, como leite e luar, tão ténuo que quase não parecia tocar em nada além da porta propriamente dita, nem sequer em Sam, que estava mesmo à sua frente. A cara era velha e pálida,
enrugada e encolhida. Parece morta. A boca estava fechada e os olhos também; as faces eram encovadas, a testa mirrada, o queixo descaído. Se um homem pudesse viver durante mil anos, e não morrer, mas
apenas tornar-se mais velho, a sua cara podia acabar parecida com aquilo.
  A porta abriu os olhos.
  Também eram brancos, e cegos.
  — Quem sois? — perguntou a porta, e o poço sussurrou, “Quem-quem -quem-quem-quem-quem-quem.”
  — Sou a espada na escuridão — disse Samwell Tarly. — Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem. Sou o escudo
que defende os reinos dos homens.
  — Então passai — disse a porta. Os seus lábios abriram-se, abriram-se, abriram-se e ainda se abriram mais, até que nada restou a não ser uma grande boca escancarada rodeada por um anel de rugas. Sam
desviou-se e fez sinal para que Jojen entrasse à sua frente. Seguiu-se o Verão, farejando enquanto passava, e depois foi a vez de Bran. Hodor baixou-se, mas não o suficiente. O lábio superior da porta
raspou suavemente no topo da cabeça de Bran, e um pingo de água caiu sobre ele e escorreu-lhe lentamente pelo nariz. Estava estranhamente quente, e era salgada como uma lágrima.
 
 DAENERYS
  Meereen era tão grande como Astapor e Yunkai juntas. Tal como as suas cidades-irmãs, fora construída de tijolos, mas enquanto Astapor era vermelha e Yunkai amarela, Meereen era composta por tijolos
de muitas cores. As suas muralhas eram mais altas do que as de Yunkai e estavam em melhor estado, salpicadas de bastiões e ancoradas em grandes torres defensivas erguidas em todos os ângulos. Por trás
delas via-se o topo da Grande Pirâmide, enorme contra o céu, uma coisa monstruosa com duzentos e cinquenta metros de altura e uma altaneira harpia de bronze no cume.
  — A harpia é uma coisa cobarde — disse Daario Naharis quando a viu. — Tem coração de mulher e pernas de galinha. Pouco admira que os seus filhos se escondam atrás de muralhas.
  Mas o herói não se escondia. Atravessou os portões da cidade, revestido de escamas de cobre e jade e montado num corcel branco, cujos jaezes de rosa e branco combinavam com o manto de seda que flutuava
dos ombros do homem. A lança que trazia tinha quatro metros e vinte de comprimento, pintada numa espiral de rosa e branco e o seu cabelo fora esculpido, penteado e preso com laca, tomando a forma de dois
cornos recurvos de carneiro. Cavalgou de um lado para o outro à sombra das muralhas de tijolos multicoloridos, desafiando os sitiantes a enviar um campeão que o defrontasse em combate singular.
  Os companheiros de sangue de Dany estavam numa tal febre de ir ao seu encontro que quase começaram a lutar uns com os outros.
  — Sangue do meu sangue — disse-lhes —, o vosso lugar é aqui a meu lado. Este homem é uma mosca zumbidora, nada mais. Ignorai-o, depressa se irá embora. — Aggo, Jhogo e Rakharo eram bravos guerreiros,
mas eram jovens e demasiado valiosos para arriscar. Mantinham-lhe o khalasar unido, e também eram os seus melhores batedores.
  — Isso foi sensato — disse Sor Jorah enquanto observavam o homem da porta do seu pavilhão. — Que o palerma ande de um lado para o outro aos gritos até que o cavalo fique coxo. Não nos faz nenhum mal.
  — Faz — insistiu Arstan Barba-Branca. — As guerras não se ganham só com espadas e lanças, sor. Duas hostes de igual força podem enfrentar-se, mas uma quebrará e fugirá enquanto a outra resiste. Este
herói fortalece a coragem nos corações dos seus homens e planta as sementes da dúvida nos nossos.
  Sor Jorah fungou.
  — E se o nosso campeão perdesse, que tipo de semente plantaria isso?
  — Um homem que teme a batalha não conquista vitórias, sor.
  — Não estamos a falar de batalhas. Os portões de Meereen não se abrirão se aquele palerma cair. Porquê arriscar uma vida para nada?
  — Pela honra, diria eu.
  — Já ouvi o suficiente. — Dany não precisava de somar as discussões daqueles dois a todos os outros problemas que a afligiam. Meereen colocava perigos bem mais sérios do que um herói cor-de-rosa e branco
a gritar insultos, e não podia permitir-se distracções. Após Yunkai, a sua hoste era constituída por mais de oitenta mil pessoas, mas menos de um quarto eram soldados. O resto… bem, Sor Jorah chamava-lhes
bocas com pés, e em breve estariam a passar fome.
  Os Grandes Mestres de Meereen tinham retirado perante o avanço de Dany, colhendo tudo o que podiam e queimando o que não conseguiam colher. Por todo o lado a hoste de Dany fora acolhida por campos carbonizados
e poços envenenados. E o pior era que os meereeneses tinham pregado uma criança escrava em cada marco quilométrico ao longo da estrada costeira que vinha de Yunkai, tinham-nas pregado ainda vivas com
as entranhas penduradas das barrigas e sempre um braço estendido a apontar o caminho para Meereen. À frente da sua vanguarda, Daario distribuíra ordens para que as crianças fossem tiradas dos marcos antes
que Dany fosse obrigada a vê-las, mas ela anulara as ordens assim que fora delas informada.
  — Eu quero vê-las — dissera. — Quero ver cada uma delas, contá-las, e olhar os seus rostos. E quero lembrar-me.
  Quando chegaram a Meereen, erguida na costa salgada ao lado do seu rio, a contagem somava cento e sessenta e três. Eu terei esta cidade, jurou Dany para si mesma uma vez mais.
  O herói cor-de-rosa e branco levou uma hora a provocar os sitiantes, troçando da sua virilidade, das mães, esposas e deuses. Os defensores de Meereen incentivavam-no a partir das muralhas da cidade.
  — O nome dele é Oznak zo Pahl — disse-lhe o Ben Castanho Plumm quando chegou para o conselho de guerra. Era o novo comandante dos Segundos Filhos, escolhido pelo voto dos seus mercenários. — Em tempos
fui guarda-costas do seu tio, antes de me juntar aos Segundos Filhos. Os Grandes Mestres… que maduro monte de vermes. Mas as mulheres não eram muito más, apesar de olhar para a mulher errada da maneira
errada valer a vida. Conheci um homem, o Scarb, este Oznak arrancou-lhe o fígado. Disse que estava a defender a honra duma senhora, ah pois, disse que o Scarb a tinha violado com os olhos. Como é que
se viola uma rapariga com olhos, pergunto? Mas o tio dele é o homem mais rico de Meereen e o pai comanda a guarda da cidade, portanto tive de fugir como uma ratazana antes que me matasse também a mim.
  Viram Oznak zo Pahl desmontar do seu corcel branco, desatar a túnica, puxar o membro viril para fora e dirigir um jacto de urina na direcção genérica do bosque de oliveiras onde o pavilhão de Dany se
erguia no meio das árvores queimadas. Ainda estava a urinar quando Daario Naharis chegou a cavalo, de arakh na mão.
  — Posso cortar aquilo em vosso nome e enfiar-lho pela goela abaixo, Vossa Graça? — O seu dente brilhava, dourado, no meio do azul da sua barba bifurcada.
  — É a cidade que eu quero, não o seu pequeno membro. — Mas estava a irritar-se. Se continuar a ignorar isto, o meu próprio povo julgar-me-á fraca. Mas quem podia enviar? Precisava tanto de Daario como
dos seus companheiros de sangue. Sem o extravagante tyroshi, não tinha controlo sobre os Corvos Tormentosos, muitos dos quais tinham sido seguidores de Prendahl na Ghezn e Sallor, o Calvo.
  No alto das muralhas de Meereen, as zombarias tinham-se tornado mais ruidosas, e agora centenas dos defensores estavam a seguir o exemplo do herói e urinavam de cima das muralhas para demonstrar o desprezo
que sentiam pelos sitiantes. Estão a urinar sobre escravos, para mostrar o pouco que nos temem, pensou. Nunca se atreveriam a tal coisa se o que estivesse em volta das suas muralhas fosse um khalasar
dothraki.
  — Este desafio tem de ser enfrentado — voltou a dizer Arstan.
  — E será — disse Dany, enquanto o herói voltava a guardar o pénis. — Dizei a Belwas, o Forte, que preciso dele.
  Foram encontrar o enorme eunuco castanho sentado à sombra do pavilhão de Dany, a comer uma salsicha. Terminou-a em três dentadas, limpou as mãos engorduradas nas calças, e ordenou a Arstan Barba-Branca
que lhe fosse buscar as armas. O idoso escudeiro afiava o arakh de Belwas todas as noites e esfregava-o com óleo vermelho-vivo.
  Quando o Barba-Branca trouxe a espada, Belwas, o Forte, examinou o gume, soltou um grunhido, voltou a enfiar a lâmina na sua bainha de couro, e atou o cinto da espada em volta da sua vasta cintura.
Arstan trouxera-lhe também o escudo: um disco redondo de aço não maior do que um prato, que o eunuco segurava com a mão de fora em vez de atar ao braço à maneira de Westeros.
  — Arranja fígado e cebolas, Barba-Branca — disse Belwas. — Para agora não; para depois. Matar deixa Belwas, o Forte, com fome. — Não esperou resposta, e saiu pesadamente do bosque de oliveiras na direcção
de Oznak zo Pahl.
  — Porquê aquele, Khaleesi? — perguntou-lhe Rakharo. — Ele é gordo e estúpido.
  — Belwas, o Forte, foi aqui escravo nas arenas de luta. Se este Oznak bem-nascido cair perante um homem como ele, os Grandes Mestres ficarão cobertos de vergonha, ao passo que se vencer… bem, seria
uma fraca vitória para alguém tão nobre, uma vitória da qual Meereen não poderá obter orgulho. — E ao contrário de Sor Jorah, Daario, o Ben Castanho e os seus três companheiros de sangue, o eunuco não
liderava tropas, não planeava batalhas e não lhe dava conselhos. Ele nada faz além de comer, gabar-se e berrar para Arstan. Belwas era o homem que mais facilmente podia dispensar. E era altura de saber
que tipo de protector lhe tinha enviado o Magíster Illyrio.
  Um clamor de excitação percorreu as linhas de sítio quando Belwas foi visto a deslocar-se pesadamente na direcção da cidade, e das muralhas e torres de Meereen vieram gritos e zombarias. Oznak zo Pahl
voltou a montar, e esperou, com a lança listada erguida. O corcel sacudiu impacientemente a cabeça e escarvou a terra arenosa. Apesar de tão maciço, o eunuco parecia pequeno ao lado do herói no seu cavalo.
  — Um homem cavalheiresco desmontaria — disse Arstan.
  Oznak zo Pahl baixou a lança e carregou.
  Belwas parou com as pernas bem afastadas. Numa mão tinha o pequeno escudo redondo, na outra o arakh curvo de que Arstan cuidava com tanto cuidado. A sua grande barriga castanha e o peito curvo estavam
nus por cima da faixa de seda amarela atada em volta da cintura, e não usava armadura além do colete tachonado de couro, tão absurdamente pequeno que nem sequer lhe cobria os mamilos.
  — Devíamos ter-lhe dado cota de malha — disse Dany, de súbito ansiosa.
  — A cota de malha só o atrasaria — disse Sor Jorah. — Nas arenas de luta não usam armaduras. O que a multidão vai ver é sangue.
  Voou poeira dos cascos do corcel branco. Oznak trovejou na direcção de Belwas, o Forte, com o manto listado a escorrer-lhe dos ombros. A cidade de Meereen parecia estar, inteira, a incentivá-lo com
gritos. As aclamações dos sitiantes pareciam poucas e frágeis por comparação; os Imaculados de Dany mantinham-se em pé, em fileiras silenciosas, observando com rostos de pedra. Belwas podia ter também
sido feito de pedra. Permaneceu imóvel no caminho do cavalo, com o trajo bem apertado nas costas largas. A lança de Oznak foi apontada ao centro do seu peito. A brilhante ponta de aço da arma piscava
à luz do Sol. Ele vai ser trespassado, pensou Dany… no momento em que o eunuco girou para o lado. E, tão rápido como um piscar de olhos, o cavaleiro ficou atrás dele, virando, erguendo a lança. Belwas
não fez qualquer movimento para o atacar. Os meereneses nas muralhas gritaram ainda mais alto.
  — Que está ele a fazer? — quis saber Dany.
  — Está a dar espectáculo à multidão — disse Sor Jorah.
  Oznak fez com que o cavalo rodeasse Belwas num largo círculo, após o que lhe enterrou as esporas no flanco e voltou a carregar. De novo Belwas esperou, e depois girou e afastou a ponta da lança. Dany
ouviu a gargalhada trovejante do eunuco a ecoar na planície quando o herói passou por ele.
  — A lança é longa de mais — disse Sor Jorah. — Tudo o que Belwas tem de fazer é evitar a ponta. Em vez de tentar trespassá-lo tão esteticamente, o palerma devia simplesmente atropelá-lo.
  Oznak zo Pahl carregou uma terceira vez, e agora Dany via claramente que ele estava a passar por Belwas, como um cavaleiro de Westeros investiria sobre um adversário numa justa, em vez de carregar sobre
ele, como um dothraki atacaria um inimigo. O terreno plano e liso permitia que o corcel ganhasse uma boa velocidade, mas também tornava mais fácil para o eunuco esquivar-se à pesada lança de quatro metros.
  Da vez seguinte, o herói rosa e branco de Meereen tentou agir por antecipação, e virou a lança para o lado no último segundo para apanhar Belwas, o Forte, quando ele se esquivasse. Mas o eunuco tinha
também antecipado essa táctica e daquela vez baixou-se em vez de girar para o lado. A lança passou inofensivamente por cima da sua cabeça. E de súbito Belwas estava a rolar, e a brandir o arakh afiado
como uma navalha num arco de prata. Ouviram o corcel gritar quando a lâmina lhe mordeu as patas, e então o cavalo caiu, e o herói tombou da sela.
  Um súbito silêncio varreu os parapeitos de tijolo de Meereen. Agora era o povo de Dany que gritava e a aclamava.
  Oznak saltou para longe do cavalo e conseguiu puxar pela espada antes que Belwas, o Forte, caísse sobre si. Aço cantou contra aço, com demasiada rapidez e fúria para Dany seguir os golpes. Não podiam
ter-se passado uma dúzia de segundos antes de o peito de Belwas ficar lavado em sangue, de um corte sofrido abaixo dos peitorais, de Oznak zo Pahl ter um arakh enfiado mesmo no meio dos seus cornos de
carneiro. O eunuco soltou a lâmina e separou a cabeça do herói do seu corpo com três violentos golpes no pescoço. Ergueu-a bem alto para que os meereeneses vissem, após o que a atirou na direcção dos
portões da cidade, fazendo-a saltar e rolar pela areia.
  — E lá se foi o herói de Meereen — disse Daario, rindo.
  — Uma vitória sem significado — acautelou Sor Jorah. — Não conquistaremos Meereen matando os seus defensores um de cada vez.
  — Pois não — concordou Dany — mas estou satisfeita por termos matado este.
  Os defensores nas muralhas puseram-se a disparar as suas bestas contra Belwas, mas os dardos não chegavam ao eunuco ou deslizavam inofensivamente pelo chão. Belwas virou as costas à chuva com pontas
de aço, baixou as calças, acocorou-se, e cagou na direcção da cidade. Limpou-se com o manto listado de Oznak, e teve tempo para saquear o cadáver do herói e abater o cavalo moribundo antes de caminhar
pesadamente de regresso ao bosque de oliveiras.
  Os sitiantes deram-lhe sonoras boas-vindas assim que chegou ao acampamento. Os dothraki riram e gritaram, e os Imaculados produziram um grande clangor batendo com as lanças nos escudos.
  — Muito bem — disse-lhe Sor Jorah, e o Ben Castanho atirou ao eunuco uma ameixa madura e disse:
  — Um fruto doce por uma doce luta. — Até as aias dothraki de Dany tiveram palavras de elogio.
  — Queríamos entrançar o vosso cabelo e pendurar nele uma campainha, Belwas, o Forte — disse Jhiqui — mas não tendes cabelo para entrançar.
  — Belwas, o Forte, não precisa de campainhas tilintantes. — O eunuco comeu a ameixa do Ben Castanho com quatro grandes dentadas e deitou fora o caroço. — Belwas, o Forte, precisa de fígado e cebolas.
  — Tê-los-eis — disse Dany. — Belwas, o Forte, está ferido. — O eunuco tinha a barriga vermelha do sangue que brotava do golpe carnudo sob o peito.
  — Não é nada. Deixo sempre que me cortem uma vez, antes de os matar. — Deu uma palmada na barriga ensanguentada. — Contai os cortes e sabereis quantos homens Belwas, o Forte, matou.
  Mas Dany perdera Khal Drogo devido a um ferimento semelhante, e não estava disposta a deixar aquele por tratar. Ordenou a Missandei que fosse buscar um certo liberto yunkaita, famoso pelos seus conhecimentos
nas artes curativas. Belwas lamentou-se e protestou, mas Dany repreendeu-o e chamou-lhe grande bebé careca até que ele permitiu que o curandeiro estancasse a ferida com vinagre, a cosesse e lhe ligasse
o peito com faixas de linho ensopadas em vinho ardente. Só depois levou os seus capitães e comandantes para dentro do pavilhão para um conselho.
  — Tenho de conquistar esta cidade — disse-lhes, sentando-se de pernas cruzadas numa pilha de almofadas, rodeada pelos dragões. Irri e Jhiqui serviram vinho. — Tem os celeiros cheios a transbordar. Há
figos, tâmaras e azeitonas a crescer nos terraços das suas pirâmides, e barris de peixe salgado e carne fumada enterrados nas suas caves.
  — E também gordas arcas de ouro, prata e pedras preciosas — lembrou-lhes Daario. — Não nos esqueçamos das pedras preciosas.
  — Eu examinei as muralhas viradas para terra e não vi nenhum ponto fraco — disse Sor Jorah Mormont. — Com tempo, podíamos conseguir minar por baixo duma torre e abrir uma brecha, mas comemos o quê enquanto
escavamos? As nossas reservas estão praticamente exauridas.
  — Não há pontos fracos nas muralhas viradas para terra? — perguntou Dany. Meereen erguia-se numa saliência de areia e pedra onde o lento e castanho Skahazadhan desembocava na Baía dos Escravos. A muralha
norte da cidade corria ao longo da margem do rio, a muralha leste ao longo da costa da baía. — Isso quer dizer que podíamos atacar a partir do rio ou do mar?
  — Com três navios? Queremos que o Capitão Groleo examine bem a muralha ao longo do rio, mas a menos que esteja em ruínas, isso é apenas uma maneira mais molhada de morrer.
  — E se construíssemos torres de cerco? O meu irmão Viserys contava histórias de coisas assim, sei que podem ser construídas.
  — De madeira, Vossa Graça — disse Sor Jorah. — Os esclavagistas queimaram todas as árvores vinte léguas em volta. Sem madeira, não temos trabucos para esmagar as muralhas, não temos escadas para as
subirmos, não temos torres de cerco, não temos tartarugas e não temos aríetes. Podemos atacar os portões com machados, certamente, mas…
  — Vistes aquelas cabeças de bronze por cima dos portões? — perguntou o Ben Castanho Plumm. — Fileiras de cabeças de harpia de boca aberta? Os meereeneses podem fazer esguichar azeite a ferver por essas
bocas, e cozer os vossos homens ali mesmo.
  Daario Naharis dirigiu a Verme Cinzento um sorriso.
  — Talvez devessem ser os Imaculados a manejar os machados. Azeite a ferver para vós não é mais do que um banho quente, segundo ouvi dizer.
  — Isso é falso. — Verme Cinzento não devolveu o sorriso. — Estes não sentem as queimaduras como os homens sentem, mas azeite assim cega e mata. Contudo, os Imaculados não temem morrer. Dai a estes aríetes,
e ou derrubamos aqueles portões ou morremos a tentar.
  — Morreríeis — disse o Ben Castanho. Em Yunkai, quando recebera o comando dos Segundos Filhos, afirmara ser um veterano de uma centena de batalhas. “Embora não possa dizer que tenha lutado com bravura
em todas elas. Existem mercenários velhos e mercenários ousados, mas não há mercenários velhos e ousados.” Ela via que isso era verdade.
  Dany suspirou.
  — Não desperdiçarei vidas de Imaculados, Verme Cinzento. Talvez possamos derrotar a cidade pela fome.
  Sor Jorah fez uma expressão infeliz.
  — Nós passaremos fome muito antes deles, Vossa Graça. Aqui não há alimentos, não há forragem para as mulas e cavalos. Também não gosto da água deste rio. Meereen evacua no Skahazadhan mas retira a sua
água de beber de poços profundos. Já temos relatos de doença nos acampamentos, febre, castanheira e três casos de diarreia sanguínea. Haverá mais se ficarmos aqui. Os escravos estão enfraquecidos pela
marcha.
  — Libertos — corrigiu Dany. — Eles já não são escravos.
  — Escravos ou livres, têm fome e em breve estarão doentes. A cidade está mais bem aprovisionada do que nós, e pode ser reabastecida por via aquática. Os vossos três navios não são suficientes para lhes
negar acesso quer ao rio, quer ao mar.
  — Então o que aconselhais, Sor Jorah?
  — Não gostareis de o ouvir.
  — Quero ouvir na mesma.
  — Como quiserdes. Digo que deixemos esta cidade em paz. Não podeis libertar todos os escravos do mundo, Khaleesi. A vossa guerra é em Westeros.
  — Não me esqueci de Westeros. — Certas noites Dany sonhava com aquela terra legendária que nunca vira. — Mas se deixar que as velhas muralhas de tijolo de Meereen me derrotem tão facilmente, como poderei
alguma vez conquistar os grandes castelos de pedra de Westeros?
  — Como Aegon o fez — disse Sor Jorah —, com fogo. Quando chegarmos aos Sete Reinos, os vossos dragões já terão crescido. E teremos também torres de cerco e trabucos, tudo aquilo de que não dispomos
aqui… mas o caminho através das Terras do Longo Verão é longo e duro, e há perigos que não podemos conhecer. Parastes em Astapor para comprar um exército, não para começar uma guerra. Guardai as lanças
e espadas para os Sete Reinos, minha rainha. Deixai Meereen para os meereeneses e marchai para oeste em direcção a Pentos.
  — Derrotada? — disse Dany, irritando-se.
  — Quando os cobardes se escondem atrás de grandes muralhas, são eles os derrotados, Khaleesi — disse Ko Jhogo.
  Os outros companheiros de sangue concordaram.
  — Sangue do meu sangue — disse Rakharo —, quando os cobardes se escondem e queimam a comida e a forragem, os grandes khals têm de procurar inimigos mais corajosos. É sabido.
  — É sabido — concordou Jhiqui, enquanto servia o vinho.
  — Não por mim. — Dany prezava grandemente os conselhos de Sor Jorah, mas deixar Meereen intacta era mais do que conseguia suportar. Não era capaz de se esquecer das crianças nos seus postes, com as
aves a devorar-lhes as entranhas, apontando para a estrada costeira com os seus braços magros. — Sor Jorah, dizeis que não nos resta comida. Se marchar para oeste, como conseguirei alimentar os meus libertos?
  — Não conseguireis. Lamento, Khaleesi. Eles terão de arranjar alimentos para si próprios, ou passarão fome. Muitos e mais ainda morrerão ao longo da marcha, é verdade. Será duro, mas não há maneira
de os salvar. Precisamos de pôr esta terra calcinada bem para trás de nós.
  Dany deixara um trilho de cadáveres atrás de si quando atravessara o deserto vermelho. Era algo que não queria voltar a ver.
  — Não — disse. — Não levarei o meu povo para a morte. — Os meus filhos. — Tem de haver alguma maneira de entrar nesta cidade.
  — Eu conheço uma maneira. — O Ben Castanho Plumm afagou a sua barba pintalgada de cinzento e branco. — Esgotos.
  — Esgotos? Que quereis dizer?
  — Grandes esgotos de tijolo desembocam no Skahazadhan, despejando os dejectos da cidade. Podem ser uma maneira de entrar, para alguns homens. Foi assim que fugi de Meereen, depois de Scarb ficar sem
cabeça. — O Ben Castanho fez uma careta. — O cheiro nunca me abandonou. Às vezes sonho com ele.
  Sor Jorah fez uma expressão de dúvida.
  — É mais fácil sair do que entrar, parece-me. Esses esgotos desembocam no rio, dizeis? Isso quererá dizer que as desembocaduras estão logo por baixo das muralhas.
  — E fechadas com grades de ferro — admitiu o Ben Castanho — se bem que algumas tenham sido comidas pela ferrugem, senão eu tinha-me afogado em merda. Uma vez lá dentro, é uma longa subida malcheirosa
numa escuridão de breu através de um labirinto de tijolo onde um homem se pode perder para sempre. A porcaria nunca baixa da cintura, e pode subir acima da cabeça, julgando pelas manchas que vi nas paredes.
E também há coisas lá em baixo. As maiores ratazanas que já se viram, e coisas piores. Nojentas.
  Daario Naharis soltou uma gargalhada.
  — Tão nojentas como tu, quando de lá saísses? Se algum homem fosse suficientemente tolo para tentar uma coisa destas, todos os esclavagistas de Meereen conseguiriam cheirá-lo no momento em que emergisse.
  O Ben Castanho encolheu os ombros.
  — Sua Graça perguntou se havia maneira de entrar, e eu disse-lhe… mas o Ben Castanho não volta àqueles esgotos, nem por todo o ouro dos Sete Reinos. No entanto, se houver outros que queiram tentar,
força.
  Aggo, Jhogo e Verme Cinzento tentaram todos falar ao mesmo tempo, mas Dany ergueu uma mão a pedir silêncio.
  — Esses esgotos não parecem prometedores. — Sabia que Verme Cinzento levaria os seus Imaculados pelos esgotos se ela o ordenasse; os companheiros de sangue não fariam menos. Mas nenhum deles era adequado
para a tarefa. Os dothraki eram cavaleiros, e a força dos Imaculados residia na sua disciplina no campo de batalha. Poderei enviar homens para morrer no meio das trevas com base numa esperança tão ténua?
— Tenho de pensar um pouco mais sobre isto. Regressai aos vossos deveres.
  Os seus capitães fizeram vénias e deixaram-na só com as aias e os dragões. Mas no momento em que o Ben Castanho saía, Viserion abriu as suas asas brancas e esvoaçou indolentemente na direcção da sua
cabeça. Uma das asas esbofeteou o mercenário no rosto. O dragão branco aterrou desajeitadamente com uma pata sobre a cabeça do homem e a outra no seu ombro, guinchou e voltou a levantar voo.
  — Ele gosta de vós, Ben — disse Dany.
  — E tem razões para isso. — O Ben Castanho soltou uma gargalhada. — Eu tenho cá uma gotinha de sangue de dragão, sabíeis?
  — Vós? — Dany estava surpreendida. Plumm era uma criatura das companhias livres, um amigável mestiço. Tinha uma larga cara castanha com um nariz partido e uma cabeça cheia de forte cabelo grisalho,
e a sua mãe dothraki legara-lhe olhos grandes, escuros e amendoados. Dizia ser em parte bravosiano, em parte ilhéu do Verão, em parte ibbenês, em parte qohorik, em parte dothraki, em parte dornês e em
parte westerosi, mas aquela era a primeira vez que Dany ouvia falar de sangue Targaryen. Dirigiu-lhe um olhar perscrutador e disse: — Como pode isso ser?
  — Bem — disse o Ben Castanho —, houve um velho Plumm nos Reinos do Poente que casou com uma princesa do dragão. A minha avó contou-me a história. Viveu nos tempos do Rei Aegon.
  — Qual dos Reis Aegon? — perguntou Dany. — Houve cinco Aegon a governar Westeros. — O filho do irmão teria sido o sexto, mas os homens do Usurpador tinham-lhe esmagado a cabeça contra uma parede.
  — Ah, houve cinco? Bem, isso é uma confusão. Não vos sei dar um número, minha rainha. Mas este velho Plumm era um senhor, deve ter sido um tipo famoso nos seus tempos, falado por todo o lado. O caso
é, com a vossa real licença, que ele tinha uma picha de dezoito decímetros.
  As três campainhas na trança de Dany tilintaram quando ela se riu.
  — Quereis dizer centímetros, julgo eu.
  — Decímetros — disse firmemente o Ben Castanho. — Se fossem centímetros, quem havia de querer falar dela?, Vossa Graça.
  Dany riu-se como uma rapariguinha.
  — A vossa avó disse-vos que chegou a ver esse prodígio?
  — Isso foi coisa que a velha bruxa não fez. Era meio ibbenesa e meio qohorik, nunca esteve em Westeros, o meu avô deve-lhe ter contado a história. Um dothraki qualquer matou-o antes de eu nascer.
  — E de onde veio o conhecimento do vosso avô?
  — Uma daquelas histórias contadas em família, suponho. — O Ben Castanho encolheu os ombros. — É tudo o que sei de Aegon, o Sem-Número, ou do poderoso membro do velho Lorde Plumm, temo bem. É melhor
ir tratar dos meus Filhos.
  — Tratai disso — disse-lhe Dany.
  Quando o Ben Castanho saiu, ela recostou-se nas almofadas.
  — Se fosses grande — disse a Drogon, coçando-o entre os cornos —, voaria contigo por sobre as muralhas e transformaria aquela harpia em escórias. — Mas passar-se-iam anos até que os seus dragões fossem
suficientemente grandes para serem montados. E quando forem, quem os montará? O dragão tem três cabeças, mas eu só tenho uma. Pensou em Daario. Se alguma vez existiu um homem capaz de violar uma mulher
com os olhos…
  Na verdade, ela era igualmente culpada. Dany dava por si a roubar olhares ao tyroshi quando os seus capitães vinham aos conselhos, e por vezes, de noite, recordava o modo como o dente de ouro cintilava
quando ele sorria. Isso, e os seus olhos. Os seus brilhantes olhos azuis. Na estrada de Yunkai, Daario trouxera-lhe todas as noites, quando vinha fazer o relatório, uma flor, um rebento ou uma planta
qualquer… para a ajudar a conhecer aquela terra, dizia. Vespalgueiro, rosa penumbrosa, hortelã silvestre, renda de senhora, folha-de-adaga, giesteira, comichosa, ouro de harpia… E tentou poupar-me à visão
das crianças mortas. Não o devia ter feito, mas a intenção era bondosa. E Daario Naharis fazia-a rir, o que Sor Jorah nunca fazia.
  Dany tentou imaginar como seria permitir que Daario a beijasse, como Jorah a beijara no navio. A ideia era ao mesmo tempo excitante e perturbadora. É demasiado arriscado. O mercenário tyroshi não era
um homem bom, ninguém tinha de lho dizer. Sob os sorrisos e gracejos era perigoso, até cruel. Sallor e Prendahl tinham acordado uma manhã como seus parceiros; nessa mesma noite, oferecera-lhe as suas
cabeças. Khal Drogo também podia ser cruel, e nunca existiu homem mais perigoso. Mas mesmo assim acabara por amá-lo. Poderia amar Daario? O que quereria dizer se o trouxesse para a minha cama? Faria isso
dele uma das cabeças do dragão? Sabia que Sor Jorah se zangaria, mas fora ele que dissera que tinha de tomar dois maridos. Talvez devesse casar com ambos e pôr ponto final no assunto.
  Mas aqueles eram pensamentos tolos. Tinha uma cidade a tomar, e sonhar com beijos e com os brilhantes olhos azuis de um mercenário qualquer não a ajudaria a abrir uma brecha nas muralhas de Meereen.
Sou do sangue do dragão, recordou Dany a si própria. Os seus pensamentos giravam em círculos, como um rato a perseguir a própria cauda. De súbito deixou de conseguir suportar nem que fosse um momento
mais os estreitos limites do pavilhão. Quero sentir o vento no rosto e cheirar o mar.
  — Missandei — chamou —, manda selar a minha prata. E a tua montada também.
  A pequena escriba fez uma vénia.
  — Às ordens de Vossa Graça. Deverei chamar os vossos companheiros de sangue para vos guardar?
  — Levamos Arstan. Não tenciono deixar os acampamentos. — Não tinha inimigos entre os seus filhos. E o velho escudeiro não falaria demasiado, como Belwas, nem a olharia como Daario.
  O bosque de oliveiras queimadas onde montara o pavilhão ficava junto ao mar, entre o acampamento dothraki e o dos Imaculados. Depois dos cavalos selados, Dany e os companheiros seguiram ao longo da
costa, para longe da cidade. Mesmo assim, sentia Meereen nas costas, troçando de si. Quando olhou por sobre um ombro, ali estava ela, com o Sol da tarde a refulgir na harpia de bronze no topo da Grande
Pirâmide. Dentro de Meereen, os esclavagistas reclinar-se-iam em breve, vestidos com os seus tokars debruados, para se banquetearem com carneiro e azeitonas, fetos de cachorros, arganazes com mel e outros
acepipes do género, enquanto cá fora os seus filhos passavam fome. Uma súbita e violenta fúria encheu-a. Derrotar-vos-ei, jurou.
  Ao passarem pelas estacas e fossos que rodeavam o acampamento dos eunucos, Dany ouviu Verme Cinzento e os seus sargentos a fazer passar uma companhia por uma série de exercícios com escudo, espada curta
e lança pesada. Outra companhia banhava-se no mar, vestida apenas com tangas de linho branco. Reparara que os eunucos eram muito asseados. Alguns dos seus mercenários tinham um cheiro tal que parecia
não terem tomado banho ou mudado de roupa desde que o pai perdera o Trono de Ferro, mas os Imaculados tomavam banho todas as noites, mesmo depois de passarem o dia inteiro em marcha. Quando não havia
água disponível, limpavam-se com areia, ao modo dothraki.
  Os eunucos ajoelharam à sua passagem, levando punhos fechados ao peito. Dany devolveu a saudação. A maré estava a subir, e a rebentação espumou em volta das patas da sua prata. Via os seus navios ao
largo. Balerion era o mais próximo; a grande coca anteriormente conhecida como Saduleon, de velas enroladas. Mais ao largo encontravam-se as galés Meraxes e Vhagar, dantes chamadas Partida de Joso e Sol
de Verão. Na verdade os navios pertenciam ao Magíster Illyrio, e não a ela, e no entanto dera-lhes novos nomes quase sem pensar no assunto. Nomes de dragões, e mais do que isso; na antiga Valíria de antes
da Destruição, Balerion, Meraxes e Vhagar tinham sido deuses.
  A sul do reino ordenado de estacas, fossos, exercícios e eunucos a tomar banho ficavam os acampamentos dos seus libertos, um lugar muito mais ruidoso e caótico. Dany armara o melhor que pudera os antigos
escravos, com as armas de Astapor e Yunkai, e Sor Jorah organizara os homens capazes de lutar em quatro fortes companhias, mas não viu ali ninguém a exercitar-se. Passaram por uma fogueira feita com madeira
trazida pelo mar, onde uma centena de pessoas se reunira para assar a carcaça de um cavalo. Sentia o odor da carne e ouvia a gordura a chiar enquanto os assadores viravam o espeto, mas a cena só a fez
franzir o sobrolho.
  Crianças corriam sob os cavalos do grupo, cabriolando e gargalhando. Em vez de saudações, vozes chamavam-na de todos os lados numa balbúrdia de idiomas. Alguns dos libertos saudavam-na como “Mãe”, enquanto
outros suplicavam mercês ou favores. Alguns rezavam para que estranhos deuses a abençoassem, e outros pediam-lhe que os abençoasse a eles. Ela sorria-lhes, virando-se para a esquerda e para a direita,
tocando-lhes as mãos quando as erguiam, deixando que aqueles que ajoelhavam tocassem o seu estribo ou a sua perna. Muitos dos libertos acreditavam que havia boa sorte no seu toque. Se os ajuda a obter
coragem, que me toquem, pensou. Ainda temos duros desafios em frente.
  Dany parara para falar com uma grávida que queria que a Mãe de Dragões desse um nome ao seu bebé quando alguém se aproximou e lhe agarrou o pulso esquerdo. Virando-se, vislumbrou um homem alto e esfarrapado
com a cabeça rapada e a cara queimada pelo Sol.
  — Com menos força — começou a dizer, mas antes de conseguir terminar, ele derrubou-a da sela. O chão saltou contra si e fê-la perder o fôlego, enquanto a sua prata relinchava e recuava. Atordoada, Dany
rolou para o lado e apoiou-se num cotovelo…
  …e então viu a espada.
  — Aí está a porca traiçoeira — disse ele. — Eu sabia que acabavas por vir um dia receber beijos nos pés. — Tinha a cabeça calva como um melão, o nariz era vermelho e descamava, mas Dany conhecia aquela
voz e aqueles olhos verdes-claros. — Vou começar por cortar-te as tetas. — Dany estava vagamente consciente da voz de Missandei a gritar por ajuda. Um liberto deu um passo em frente, mas só um passo.
Um golpe rápido e caiu de joelhos, com sangue a escorrer-lhe pela cara. Mero limpou a espada nas bragas. — Quem é o próximo?
  — Sou eu. — Arstan Barba-Branca saltou do cavalo e pôs-se por cima dela, com o vento salgado a fazer-lhe ondular o cabelo branco como neve, e com ambas as mãos no grande bastão de madeira rija.
  — Avô — disse Mero —, foge antes que parta o teu pau em dois e te foda com…
  O velho fez uma finta com uma das pontas do bastão, puxou-a para trás, e brandiu a outra mais depressa do que Dany teria acreditado ser possível. O Bastardo do Titã cambaleou para trás, na direcção
da rebentação, cuspindo sangue e dentes partidos da ruína da sua boca. O Barba-Branca colocou Dany atrás de si. Mero lançou-lhe uma estocada à cara. O velho saltou para trás, com a rapidez de um gato.
O bastão atingiu as costelas de Mero, fazendo-o recuar. Arstan chapinhou para o lado, parou um golpe em arco, afastou-se a dançar de um segundo, bloqueou um terceiro a meio movimento. Os movimentos eram
tão rápidos que a rapariga quase não conseguia segui-los. Missandei estava a ajudá-la a pôr-se em pé quando ouviu um crac. Julgou que o bastão de Arstan se partira até ver o osso irregular que se projectava
da barriga da perna de Mero. Ao cair, o Bastardo do Titã torceu-se e atacou, enviando a ponta da espada directamente contra o peito do velho. O Barba-Branca afastou-lhe a lâmina quase com desprezo e atingiu
violentamente o lado da cabeça do grandalhão com a outra ponta do bastão. Mero estatelou-se, com sangue a borbulhar da sua boca enquanto as ondas o submergiam. Um momento mais tarde os libertos também
o submergiram, com facas, pedras e punhos furiosos a subir e a descer num frenesim.
  Dany afastou o olhar, nauseada. Sentia-se mais assustada agora do que enquanto os acontecimentos decorriam. Ele podia ter-me matado.
  — Vossa Graça — Arstan ajoelhou. — Sou um velho, e estou envergonhado. Ele nunca devia ter-se aproximado o suficiente para vos agarrar. Fui negligente. Não o reconheci sem a barba e o cabelo.
  — Tal como eu. — Dany respirou fundo para parar de tremer. Inimigos por todo o lado. — Levai-me de volta à minha tenda. Por favor.
  Quando Mormont chegou, estava enrolada na sua pele de leão, bebendo uma taça de vinho com especiarias.
  — Examinei a muralha do rio — começou Sor Jorah a dizer. — É alguns centímetros mais alta do que as outras, e igualmente forte. E os meereeneses têm uma dúzia de barcos de fogo amarrados sob os baluartes…
  Ela interrompeu-o.
  — Podíeis ter-me avisado de que o Bastardo do Titã tinha escapado.
  Ele franziu o sobrolho.
  — Não vi necessidade de vos assustar, Vossa Graça. Ofereci uma recompensa pela sua cabeça…
  — Pagai-a ao Barba-Branca. Mero tem-nos acompanhado o caminho todo desde Yunkai. Rapou a barba e perdeu-se entre os libertos, aguardando uma oportunidade de vingança. Arstan matou-o.
  Sor Jorah deitou ao velho um longo olhar.
  — Um escudeiro com um pau matou Mero de Bravos, foi isso que aconteceu?
  — Um pau — confirmou Dany — mas já não um escudeiro. Sor Jorah, é meu desejo que Arstan seja armado cavaleiro.
  — Não.
  A sonora recusa já era bastante surpreendente. Mais estranho ainda foi vir de ambos os homens ao mesmo tempo.
  Sor Jorah puxou pela espada.
  — O Bastardo do Titã era um tipo perigoso. E bom a matar. Quem és tu, velho?
  — Um melhor cavaleiro do que vós, sor — disse friamente Arstan.
  Cavaleiro? Dany sentia-se confusa.
  — Dissestes que éreis um escudeiro.
  — E fui, Vossa Graça. — O velho caiu sobre um joelho. — Fui escudeiro do Lorde Swann na minha juventude, e a pedido do Magíster Illyrio servi também Belwas, o Forte. Mas durante os anos que levaram
de uma coisa à outra, fui um cavaleiro em Westeros. Não vos disse mentiras, minha rainha. No entanto, há verdades que calei, e por isso e por todos os meus outros pecados só vos posso pedir perdão.
  — Que verdades calastes? — Dany não estava a gostar daquilo. — Ireis dizer-me. Já.
  Ele inclinou a cabeça.
  — Em Qarth, quando me perguntastes o nome, disse-vos que me chamavam Arstan. Isso é verdade. Muitos homens me chamaram por esse nome enquanto Belwas e eu nos dirigíamos para leste ao vosso encontro.
Mas não é o meu verdadeiro nome.
  Dany estava mais confusa do que zangada. Ele enganou-me, tal como Jorah me avisou, e no entanto acabou de salvar-me a vida.
  Sor Jorah enrubesceu.
  — Mero rapou a barba, mas vós deixastes crescer uma, não é verdade? Não admira que me parecêsseis familiar como um raio…
  — Conhecei-lo? — perguntou Dany ao cavaleiro exilado, perdida.
  — Vi-o talvez uma dúzia de vezes… de longe, normalmente, quando estava na companhia dos irmãos ou a participar nalgum torneio. Mas todos os homens dos Sete Reinos conheceram Barristan, o Ousado. — Encostou
a ponta da espada ao pescoço do velho. — Khaleesi, perante vós ajoelha-se Sor Barristan Selmy, Senhor Comandante da Guarda Real, que traiu a vossa Casa para servir o Usurpador Robert Baratheon.
  O velho cavaleiro nem sequer pestanejou.
  — O corvo chama preto ao melro, e vós falais de traição.
  — Porque estais aqui? — perguntou-lhe Dany. — Se Robert vos enviou para me matar, porque me salvastes a vida? — Ele serviu o Usurpador. Ele traiu a memória de Rhaegar, e abandonou Viserys para viver
e morrer no exílio. Mas se me quisesse ver morta, teria precisado apenas de se pôr de lado… — Agora quero a verdade completa, pela vossa honra de cavaleiro. Sois um homem do Usurpador, ou meu?
  — Vosso, se me aceitardes. — Sor Barristan tinha lágrimas nos olhos. — Aceitei o perdão de Robert, é verdade. Servi-o na Guarda Real e no Conselho. Servi com o Regicida e outros quase tão maus, que
mancharam o manto branco que eu usava. Nada o poderá perdoar. Podia continuar a servir em Porto Real se o vil rapaz sentado no Trono de Ferro não me tivesse posto de lado, envergonha-me admiti-lo. Mas
quando ele tirou o manto que o Touro Branco prendera em volta dos meus ombros, e mandou homens matar-me nesse mesmo dia, foi como se tivesse tirado uma membrana da frente dos meus olhos. Foi então que
soube que tinha de procurar o meu verdadeiro rei, e morrer ao seu serviço…
  — Posso conceder esse desejo — disse sombriamente Sor Jorah.
  — Silêncio — disse Dany. — Quero ouvir o que ele tem a dizer.
  — Talvez tenha de morrer uma morte de traidor — disse Sor Barristan. — Se assim for, não deverei morrer só. Antes de aceitar o perdão de Robert, lutei contra ele no Tridente. Vós estáveis do outro lado
da batalha, Mormont, não é verdade? — Não esperou por uma resposta. — Vossa Graça, lamento ter-vos induzido em erro. Foi a única forma de evitar que os Lannister soubessem que me tinha juntado a vós.
Sois vigiada, tal como o vosso irmão era. O Lorde Varys relatou durante anos cada movimento de Viserys. Enquanto fiz parte do pequeno conselho, ouvi uma centena de tais relatórios. E desde o dia em que
desposastes Khal Drogo, tendes um informador ao vosso lado a vender os vossos segredos, a trocar murmúrios com a Aranha por ouro e promessas.
  Ele não pode querer dizer…
  — Estais enganado. — Dany olhou para Jorah Mormont. — Dizei-lhe que está enganado. Não há nenhum informador. Sor Jorah, dizei-lhe. Atravessámos juntos o mar dothraki e o deserto vermelho… — Sentia o
coração a rodopiar como um pássaro apanhado numa armadilha. — Dizei-lhe, Jorah. Dizei-lhe como percebeu as coisas mal.
  — Que os Outros te carreguem, Selmy. — Sor Jorah atirou a espada ao tapete. — Khaleesi, foi apenas ao início, antes de começar a conhecer-vos… antes de começar a amar…
  — Não digais essa palavra! — Afastou-se dele. — Como pudestes fazê-lo? Que vos prometeu o Usurpador? Ouro, foi ouro? — Os Imorredouros tinham dito que ela seria traída duas vezes mais, uma vez por ouro
e uma vez por amor. — Dizei-me o que vos foi prometido!
  — Varys disse… que eu podia ir para casa. — Baixou a cabeça.
  Eu ia levar-te para casa! Os dragões pressentiram a sua fúria. Viserion rugiu e ergueu-se fumo cinzento do seu focinho. Drogon bateu o ar com asas negras, e Rhaegal torceu a cabeça para trás e arrotou
uma chama. Devia dizer a palavra e queimá-los a ambos. Não haveria ninguém em que pudesse confiar? Ninguém que a mantivesse em segurança?
  — Serão todos os cavaleiros de Westeros tão falsos como vós os dois? Saí, antes que os meus dragões vos assem a ambos. A que cheira mentiroso assado? Cheirará tão mal como os esgotos de Ben Castanho?
Ide!
  Sor Barristan ergueu-se, hirto e lento. Pela primeira vez, pareceu ter a idade que tinha.
  — Para onde devemos ir, Vossa Graça?
  — Para o inferno, servir o Rei Robert. — Dany sentiu lágrimas quentes nas faces. Dragon gritou, brandindo a cauda de um lado para o outro. — Que os Outros vos carreguem a ambos. — Ide, ide-vos embora
para sempre, vós ambos, da próxima vez que vir as vossas caras cortar-vos-ei essas cabeças de traidores. Mas não conseguiu dizer essas palavras. Eles traíram-me. Mas salvaram-me. Mas mentiram. — Ide…
— Meu urso, meu feroz e forte urso, o que farei sem ele? E o velho, amigo do meu irmão. — Ide… ide… — Para onde?
  E então soube.
 
 TYRION
  Tyrion vestiu-se na escuridão, escutando a respiração suave da esposa que vinha da cama que partilhavam. Ela sonha, pensou, quando Sansa murmurou qualquer coisa em voz baixa — um nome, talvez, embora
fosse demasiado ténuo para ter a certeza — e se virou para o lado. Como marido e mulher, partilhavam uma cama de casados, mas era tudo. Até as lágrimas guarda para si.
  Esperara angústia e ira quando lhe contara a morte do irmão, mas a cara de Sansa permanecera tão imóvel que por um momento temera que ela não tivesse compreendido. Fora só mais tarde, com uma pesada
porta de carvalho entre ambos, que a ouvira soluçar. Tyrion pensara então em ir ter com ela, para lhe oferecer o conforto que pudesse. Não, tivera de lembrar a si próprio, ela não procurará consolo num
Lannister. O melhor que podia fazer era protegê-la dos detalhes mais feios do Casamento Vermelho que continuavam a chegar das Gémeas. Decidira que Sansa não precisava de ouvir contar o modo como o corpo
do irmão tinha sido cortado e mutilado; nem como o cadáver da mãe fora atirado nu ao Ramo Verde numa zombaria selvagem dos costumes funerários da Casa Tully. A última coisa de que a rapariga precisava
era mais alimento para os seus pesadelos.
  Mas não era o bastante. Enrolara o seu manto em volta dos ombros dela e jurara protegê-la, mas isso era um gracejo tão cruel como a coroa que os Frey tinham colocado sobre a cabeça do lobo gigante de
Robb Stark depois de a coserem ao seu cadáver decapitado. Sansa também o sabia. O modo como o olhava, a sua rigidez quando subia para a cama… quando estava com ela, nem por um instante conseguia esquecer-se
de quem era, e do que era. Tal como ela não esquecia. A rapariga continuava a ir todas as noites ao bosque sagrado rezar, e Tyrion perguntava a si próprio se estaria a rezar pela sua morte. Ela perdera
o lar, o seu lugar no mundo, e todos aqueles que alguma vez amara ou em quem confiara. O Inverno está a chegar, avisava o lema dos Stark, e realmente chegara a eles com uma vingança. Mas é o pino do Verão
para a Casa Lannister. Então porque sinto este maldito frio?
  Enfiou as botas, prendeu o manto com um broche de cabeça de leão e deslizou para o salão iluminado por archotes. Pelo menos havia uma vantagem no seu casamento; permitira-lhe fugir da Fortaleza de Maegor.
Agora que tinha esposa e criados, o senhor seu pai concordara que necessitava de instalações mais adequadas, e o Lorde Gyles vira-se abruptamente despojado dos seus espaçosos aposentos no topo da Fortaleza
das Cozinhas. E que magníficos aposentos eram, com um grande quarto de dormir e um aposento privado de tamanho adequado, uma casa de banhos e um quarto de vestir para a esposa, e pequenos quartos adjacentes
para Pod e para as aias de Sansa. Até a cela de Bronn, perto da escada, tinha uma espécie de janela. Bem, é mais uma seteira, mas deixa entrar a luz. A cozinha principal do castelo ficava mesmo do outro
lado do pátio, era certo, mas Tyrion achava aqueles sons e cheiros infinitamente preferíveis a partilhar Maegor com a irmã. Quanto menos tivesse de ver Cersei, mais probabilidade havia de ser feliz.
  Tyrion ouviu Brella a ressonar quando passou pela sua cela. Shae queixava-se disso, mas parecia um preço bastante pequeno a pagar. Fora Varys a sugerir-lhe a mulher; outrora, ela gerira a casa do Lorde
Renly na cidade, o que lhe dera bastante prática em ser cega, surda e muda.
  Acendendo um círio, dirigiu-se à escada dos criados e desceu. Os andares por baixo daquele que habitava estavam em silêncio, e não ouviu outros passos além dos seus. Continuou a descer, passando pelo
piso térreo e prosseguindo, até emergir numa cave sombria com um tecto abobadado de pedra. Muito do castelo estava interligado pelo subsolo, e a Fortaleza das Cozinhas não era excepção. Tyrion bamboleou-se
por uma longa passagem escura até encontrar a porta que queria, empurrou-a e entrou.
  Lá dentro, os crânios de dragão esperavam, e Shae também.
  — Pensava que o senhor se tinha esquecido de mim. — O vestido dela estava dobrado em cima de um dente negro quase tão alto como ela, e a rapariga estava em pé dentro das mandíbulas do dragão, nua. Balerion,
pensou Tyrion. Ou seria Vhagar? Um crânio de dragão parecia-se muito com os outros.
  Bastou vê-la para ficar teso.
  — Sai daí.
  — Não saio. — A rapariga sorriu o seu sorriso mais perverso. — O senhor vai arrancar-me de dentro das mandíbulas do dragão, eu sei. — Mas quando ele se bamboleou para mais perto, ela debruçou-se para
a frente e soprou o círio.
  — Shae… — Ele estendeu a mão, mas ela rodopiou e escapou-se-lhe.
  — Tendes de me apanhar. — A voz vinha da esquerda. — O senhor deve ter brincado aos monstros e às donzelas quando era pequeno.
  — Estás a chamar-me monstro?
  — Não mais do que a mim donzela. — Estava atrás dele, com os pés a bater suavemente no chão. — Tendes de me apanhar na mesma.
  E ele apanhou, finalmente, mas só porque ela deixou que a apanhasse. Quando se esgueirou para o interior do seu abraço, ele estava corado e sem fôlego de andar a tropeçar em crânios de dragão. Tudo
foi esquecido num instante quando sentiu os pequenos seios da rapariga comprimidos contra o seu rosto, na escuridão, os pequenos mamilos retesados a roçar levemente nos seus lábios e na cicatriz onde
tivera o nariz. Tyrion puxou-a para baixo, para o chão.
  — Meu gigante — ofegou ela quando a penetrou. — O meu gigante veio salvar-me.
  Mais tarde, enquanto jaziam abraçados entre os crânios de dragão, Tyrion apoiou nela a cabeça, inalando o cheiro suave e limpo do seu cabelo.
  — Devíamos regressar — disse com relutância. — Deve ser quase alvorada. Sansa deve estar a acordar.
  — Devíeis dar-lhe vinho de sonhos — disse Shae — como a Senhora Tanda faz com Lollys. Uma taça antes de dormir, e podíamos foder na cama ao lado dela sem que acordasse. — Soltou um risinho. — Se calhar
devíamos fazer isso, uma noite qualquer. O senhor ia gostar? — A mão dela encontrou o seu ombro e pôs-se a massajar-lhe os músculos. — Tendes o pescoço duro como pedra. O que vos inquieta?
  Tyrion não conseguia ver os dedos à frente da cara, mas mesmo assim contou por eles as suas aflições.
  — A minha esposa. A minha irmã. O meu sobrinho. O meu pai. Os Tyrell. — Teve de passar para a outra mão. — Varys. Pycelle. O Mindinho. A Víbora Vermelha de Dorne. — Chegara ao último dedo. — A cara
que me fita da água quando me lavo.
  Shae beijou o seu nariz mutilado e cheio de cicatrizes.
  — Uma cara corajosa. Uma cara bondosa e amável. Gostava de a ver agora.
  A sua voz tinha toda a doce inocência do mundo. Inocência? Idiota, ela é uma rameira, tudo o que conhece dos homens é o bocado que têm entre as pernas. Idiota, idiota.
  — Antes tu do que eu. — Tyrion sentou-se. — Temos um longo dia à nossa frente, ambos. Não devias ter apagado aquele círio. Como vamos nós encontrar a roupa?
  Ela riu.
  — Talvez tenhamos de ir nus.
  E se formos vistos, o senhor meu pai enforca-te. Contratar Shae como uma das aias de Sansa dera-lhe uma desculpa para ser visto a falar com ela, mas Tyrion não se iludia quanto à sua segurança. Varys
prevenira-o.
  — Eu dei a Shae uma história falsa, mas destinava-se a Lollys e à Senhora Tanda. A vossa irmã tem uma mente mais suspicaz. Se me perguntar o que sei…
  — Contar-lhe-eis alguma mentira inteligente.
  — Não. Contar-lhe-ei que a rapariga é uma seguidora de acampamentos comum que adquiristes antes da batalha do Ramo Verde e trouxestes para Porto Real contra as ordens expressas do senhor vosso pai.
Não mentirei à rainha.
  — Já lhe mentistes antes. Deverei dizer-lhe isso?
  O eunuco suspirara.
  — Isso corta mais profundamente do que uma faca, senhor. Servi-vos com lealdade, mas tenho também de servir a vossa irmã sempre que possa. Quanto tempo julgais que ela me deixaria viver se deixasse
de lhe ser útil? Não tenho nenhum feroz mercenário para me proteger, nenhum irmão valente para me vingar, tenho apenas alguns passarinhos que me segredam aos ouvidos. Com esses segredos tenho de comprar
de novo a vida todos os dias.
  — Perdoai-me se não choro por vós.
  — Perdoarei, mas vós deveis perdoar-me se não choro por Shae. Confesso que não compreendo o que há nela para fazer com que um homem inteligente como vós aja tão tolamente.
  — Poderíeis entender se não fôsseis um eunuco.
  — Então é isso? Um homem pode ter miolos ou um bocado de carne entre as pernas, mas as duas coisas não? — Varys abafara um risinho. — Então talvez me deva sentir grato por ter sido cortado.
  A Aranha tinha razão. Tyrion procurou as roupas de baixo às apalpadelas na escuridão assombrada por dragões, sentindo-se infeliz. O risco que estava a correr deixava-o tenso como um tambor, e havia
também culpa. Que os Outros levem a minha culpa, pensou enquanto enfiava a túnica pela cabeça. Porque hei-de sentir-me culpado? A minha esposa não quer nada de mim, e rejeita muito em especial a parte
que parece desejá-la. Talvez lhe devesse contar sobre Shae. Não se dava propriamente o caso de ser o primeiro homem a ter uma concubina. O próprio oh-tão-honroso pai de Sansa dera-lhe um irmão bastardo.
Tanto quanto sabia, a sua esposa poderia ficar encantada por saber que ele andava a foder Shae, desde que isso a poupasse a atenções que não desejava.
  Não, não me atrevo. Com votos ou sem eles, a sua esposa não era digna de confiança. Podia ser donzela entre as pernas, mas dificilmente se podia achá-la inocente de traição; em tempos despejara os planos
do próprio pai aos ouvidos de Cersei. E as raparigas da sua idade não eram conhecidas por manterem segredos.
  O único caminho seguro era ver-se livre de Shae. Podia mandá-la a Chataya, reflectiu Tyrion, relutantemente. No bordel de Chataya, Shae teria todas as sedas e pedras preciosas que poderia desejar, e
os mais gentis patronos de elevado nascimento. Seria de longe uma vida melhor do que a que vivia quando a encontrara.
  Ou então, se estava cansada de ganhar o pão deitada de costas, podia arranjar-lhe um casamento. Bronn, talvez? O mercenário nunca se recusara a comer do prato do seu senhor, e agora era um cavaleiro,
um partido melhor do que ela podia almejar. Ou Sor Tallad? Tyrion vira-o mais do que uma vez a fitar Shae com desejo. Porque não? É alto, forte, não é difícil olhá-lo, um jovem cavaleiro dotado da cabeça
aos pés. Claro, Tallad conhecia Shae apenas como uma bonita aia de uma jovem senhora em serviço no castelo. Se se casasse com ela e depois ficasse a saber que ela era uma rameira…
  — Senhor, onde estais? Os dragões comeram-vos?
  — Não. Estou aqui. — Apalpou um crânio de dragão. — Encontrei um sapato, mas acho que é teu.
  — O senhor parece muito solene. Desagradei-vos?
  — Não — disse, com demasiada brusquidão. — Tu agradas-me sempre. — E aí reside o perigo. Podia sonhar em mandá-la embora em alturas como aquela, mas isso nunca durava muito tempo. Tyrion via-a tenuamente
no meio das trevas, a puxar uma meia de lã por uma perna esguia. Consigo ver. Uma vaga luminosidade insinuava-se pela fileira de longas janelas estreitas abertas bem alto na parede da cave. Os crânios
dos dragões Targaryen emergiam da escuridão que os rodeava, negros em fundo cinzento. — O dia chega cedo de mais. — Um novo dia. Um novo ano. Um novo século. Sobrevivi ao Ramo Verde e à Água Negra, posso
perfeitamente sobreviver ao casamento do Rei Joffrey.
  Shae despendurou o vestido do dente do dragão e enfiou-o pela cabeça.
  — Eu subo primeiro. Brella há-de querer ajuda com a água do banho. — Debruçou-se para lhe dar um último beijo, na testa. — Meu gigante de Lannister. Amo-vos tanto.
  E eu também te amo, querida. Podia ser uma rameira, mas merecia mais do que o que tinha para lhe dar. Vou casá-la com Sor Tallad. Ele parece ser um homem decente. E alto…
 
 SANSA
  Foi um sonho tão bom, pensou Sansa, ensonada. Estivera de regresso a Winterfell, correndo pelo bosque sagrado com a sua Lady. O pai estava lá, e os irmãos também, todos quentes e em segurança. Se os
sonhos pudessem tornar-se realidade…
  Afastou os cobertores. Tenho de ser brava. Os seus tormentos terminariam em breve, de um modo ou de outro. Se a Lady estivesse aqui, não teria medo. Mas a Lady estava morta; Robb, Bran, Rickon, Arya,
o pai, a mãe, até a Septã Mordane. Todos mortos menos eu. Estava agora sozinha no mundo.
  O senhor seu esposo não estava a seu lado, mas estava habituada a isso. Tyrion dormia mal, e era frequente acordar antes da alvorada. Normalmente ia encontrá-lo no aposento privado, inclinado ao lado
de uma vela, perdido num qualquer velho pergaminho ou livro encadernado a couro. Por vezes o cheiro do pão da manhã que vinha dos fornos levava-o às cozinhas, e por vezes subia ao jardim do telhado, ou
ia passear, sozinho, pelo Passadiço do Traidor.
  Abriu as portadas e estremeceu quando a pele de galinha lhe gatinhou pelos braços acima. Havia nuvens a acumular-se no céu oriental, perfuradas por raios de Sol. Parecem dois enormes castelos a flutuar
no céu da manhã. Sansa via as muralhas de pedra arruinada, as suas poderosas fortalezas e barbacãs. Estandartes vaporosos rodopiavam no topo das suas torres e estendiam-se para as estrelas em rápido desvanecimento.
O Sol erguia-se atrás deles, e viu-os passar de negro a cinzento e a um milhar de tons de rosa, ouro e carmim. Pouco depois o vento juntou-os, e passou a haver apenas um castelo onde tinham havido dois.
  Ouviu a porta a abrir-se quando as aias trouxeram a água quente para o banho. Eram ambas novas ao seu serviço; Tyrion dizia que as mulheres que tinham antes tratado de si eram todas espias de Cersei,
tal como Sansa sempre suspeitara.
  — Vinde ver — disse-lhes. — Há um castelo no céu.
  Elas vieram dar uma olhadela.
  — É feito de ouro. — Shae tinha cabelo escuro e curto e olhos ousados. Fazia tudo o que lhe era pedido, mas por vezes dirigia a Sansa os mais insolentes dos olhares. — Um castelo todo feito de ouro,
ora aí está uma coisa que eu gostava de ver.
  — Um castelo, é? — Brella tinha de semicerrar os olhos. — Aquela torre ‘tá a cair, parece. É tudo ruínas, aquilo.
  Sansa não queria ouvir falar de torres a cair e castelos arruinados. Fechou as portadas e disse:
  — Somos esperados no pequeno-almoço da rainha. O senhor meu esposo está no aposento privado?
  — Não, senhora — disse Brella. — Não o vi.
  — Pode ser que tenha ido ver o pai — declarou Shae. — Pode ser que a Mão do Rei precise dos seus conselhos.
  Brella soltou uma fungadela.
  — Senhora Sansa, quereis entrar na banheira antes que a água arrefeça demasiado?
  Sansa deixou que Shae lhe puxasse a camisa de dormir pela cabeça e entrou na grande banheira de madeira. Sentiu-se tentada a pedir uma taça de vinho, para lhe acalmar os nervos. O casamento estava marcado
para o meio-dia no Grande Septo de Baelor, do outro lado da cidade. E, ao cair da noite, o banquete seria dado na sala do trono; mil convidados e setenta e sete pratos, com cantores, malabaristas e saltimbancos.
Mas primeiro era o pequeno-almoço no Salão de Baile da Rainha, para os Lannister e os homens Tyrell — as mulheres Tyrell quebrariam o jejum com Margaery — e cento e tal cavaleiros e fidalgos. Fizeram
de mim uma Lannister, pensou Sansa com amargura.
  Brella mandou Shae ir buscar mais água quente enquanto lavava as costas de Sansa.
  — Estais a tremer, senhora.
  — A água não está suficientemente quente — mentiu Sansa.
  As aias estavam a vesti-la quando Tyrion apareceu, com Podrick Payne a reboque.
  — Estais adorável, Sansa. — Virou-se para o escudeiro. — Pod, faz a gentileza de me servires uma taça de vinho.
  — Vai haver vinho ao pequeno-almoço, senhor — disse Sansa.
  — Há vinho aqui. Não esperais certamente que enfrente a minha irmã sóbrio? É um novo século, senhora. O tricentésimo ano desde a Conquista de Aegon. — O anão pegou na taça de tinto que Podrick lhe entregara
e ergueu-a bem alto. — A Aegon. Que tipo afortunado. Duas irmãs, duas esposas e três grandes dragões, que mais pode um homem pedir? — Limpou a boca com as costas da mão.
  Sansa reparou que as roupas do Duende estavam manchadas e em desalinho; parecia que dormira vestido.
  — Ireis vestir roupa lavada, senhor? O vosso gibão novo é muito bonito.
  — O gibão é bonito, sim. — Tyrion pôs a taça de lado. — Anda, Pod, vamos ver se encontramos algum vestuário que me faça parecer menos anão. Não vou querer envergonhar a senhora minha esposa.
  Quando o Duende regressou pouco depois, estava bastante apresentável, e até um pouco mais alto. Podrick Payne também mudara de roupa, e por uma vez parecia quase um escudeiro como deve ser, embora uma
borbulha vermelha bastante grande que tinha na asa do nariz estragasse o efeito do seu magnífico trajo púrpura, branco e dourado. É um rapaz tão tímido. A princípio, Sansa desconfiara do escudeiro de
Tyrion; ele era um Payne, primo do Sor Ilyn Payne que cortara a cabeça ao pai. No entanto, depressa se apercebeu de que Pod tinha tanto medo dela como ela tinha do primo. Sempre que falava com ele, o
rapaz ficava do mais alarmante tom de vermelho.
  — Púrpura, dourado e branco são as cores da Casa Payne, Podrick? — perguntou-lhe polidamente.
  — Não. Isto é, sim. — Corou. — As cores. As nossas armas são xadrezado de púrpura e branco, senhora. Com moedas de ouro. Nos quadrados. Púrpura e brancos. Em ambos. — E estudou os pés dela.
  — Há uma história por trás dessas moedas — disse Tyrion. — Sem dúvida que Pod a confidenciará um dia aos vossos dedos dos pés. Agora, porém, somos esperados no Salão de Baile da Rainha. Vamos?
  Sansa sentiu-se tentada a pedir para não ir. Podia dizer-lhe que tenho um incómodo na barriga, ou que o sangue da Lua chegou. Nada desejava mais do que voltar a meter-se na cama e puxar as cortinas.
Tenho de ser corajosa, como Robb, disse a si própria, ao dar rigidamente o braço ao senhor seu esposo.
  No Salão de Baile da Rainha quebraram o jejum com bolinhos de mel cozidos com amoras silvestres e nozes, fatias de presunto defumado, peras de Outono e um prato dornês de cebolas, queijo e fatias de
ovo cozido com malaguetas.
  — Nada como um robusto pequeno-almoço para despertar o apetite para o banquete de setenta e sete pratos que se seguirá — comentou Tyrion enquanto os criados lhes enchiam os pratos. Havia jarros de leite,
jarros de hidromel e jarros de um vinho dourado, ligeiro e doce para empurrar o pequeno-almoço para baixo. Músicos vagueavam por entre as mesas, com gaitas, flautas e rabecas, enquanto Sor Dontos galopava
pela sala no seu cavalo de pau de vassoura e o Rapaz Lua soltava ruídos de traques com as bochechas e cantava canções rudes sobre os convidados.
  Sansa reparou que Tyrion quase não tocou na comida, embora tivesse bebido várias taças de vinho. Quanto a si, experimentou um pouco dos ovos dorneses, mas as malaguetas queimaram-lhe a boca. Além dos
ovos, limitou-se a debicar a fruta, o peixe e os bolinhos de mel. De todas as vezes que Joffrey olhava para ela, sentia a barriga tão agitada que era como se tivesse engolido um morcego.
  Depois da mesa limpa de comida, a rainha presenteou solenemente Joffrey com o manto de esposa com que envolveria os ombros de Margaery.
  — É o manto que eu usei quando Robert me tomou como sua rainha, o mesmo manto que a minha mãe, a Senhora Joanna, usou quando se casou com o senhor meu pai. — Sansa pensou que parecia puído, em boa verdade,
mas talvez fosse por ter sido tão usado.
  Então chegou a altura dos presentes. Era tradição da Campina dar presentes à noiva e ao noivo na manhã do seu casamento; no dia seguinte receberiam mais presentes como casal, mas as prendas naquele
dia eram para as suas pessoas individuais.
  De Jalabhar Xho, Joffrey recebeu um grande arco de madeira dourada e uma aljava cheia de longas setas com penas verdes e escarlates; da Senhora Tanda um par de botas flexíveis de montar; de Sor Kevan
uma magnífica sela para justas, em couro vermelho; um broche de ouro vermelho, esculpido como um escorpião, foi-lhe dado pelo dornês, o Príncipe Oberyn; recebeu esporas de prata de Sor Addam Marbrand;
um pavilhão de torneio em seda vermelha do Lorde Mathis Rowan. O Lorde Paxter Redwyne apresentou um belo modelo em madeira da galé de guerra de duzentos remos que se encontrava em construção na Árvore.
  — Se aprouver a Vossa Graça, chamar-se-á Valor do Rei Joffrey — disse ele, e Joff concedeu achar o nome muito satisfatório.
  — Farei dela o meu navio-almirante quando zarpar para Pedra do Dragão a fim de matar o meu tio traidor, Stannis — disse.
  Ele hoje faz de rei atencioso. Sansa sabia que Joffrey podia ser galante quando lhe convinha, mas parecia convir-lhe cada vez menos. E de facto, toda a sua cortesia desapareceu de imediato quando Tyrion
lhe entregou o seu presente: um enorme livro antigo intitulado Vidas de Quatro Reis, encadernado a couro e magnificamente iluminado. O rei folheou-o sem qualquer interesse.
  — E o que é isto, tio?
  Um livro. Sansa perguntou a si própria se Joffrey moveria aqueles seus gordos lábios vermiformes quando lia.
  — A história dos reinados de Daeron, o Jovem Dragão, Baelor, o Abençoado, Aegon, o Indigno e Daeron, o Bom, escrita pelo Grande Meistre Kaeth — respondeu o seu pequeno esposo.
  — Um livro que todos os reis deviam ler, Vossa Graça — disse Sor Kevan.
  — O meu pai não tinha tempo para livros. — Joffrey empurrou o livro para longe. — Se lêsseis menos, tio Duende, talvez a Senhora Sansa tivesse um bebé dentro dela por esta altura. — Riu-se… e quando
o rei se ri, a corte ri-se com ele. — Não fiqueis triste, Sansa, depois de deixar a Rainha Margaery à espera de bebé, visitarei o vosso quarto e mostrarei ao meu pequeno tio como se faz.
  Sansa enrubesceu. Deitou um relance nervoso a Tyrion, com medo do que ele poderia dizer. Aquilo podia tornar-se tão feio como a ida para a cama, no banquete deles. Mas por uma vez o anão encheu a boca
com vinho em vez de palavras.
  O Lorde Mance Tyrell avançou para apresentar o seu presente: um cálice dourado de noventa centímetros de altura, com duas ornamentadas pegas curvas e sete lados a cintilar de pedras preciosas.
  — Sete lados para os sete reinos de Vossa Graça — explicou o pai da noiva. Mostrou-lhes como cada lado ostentava o símbolo de uma das grandes Casas: leão de rubi, rosa de esmeralda, veado de ónix, truta
de prata, falcão de jade azul, sol de opala e lobo gigante de pérola.
  — Uma taça magnífica — disse Joffrey — mas parece-me que vamos ter de arrancar o lobo e pôr no seu lugar uma lula.
  Sansa fingiu não o ouvir.
  — Margaery e eu beberemos bastante no banquete, sogro. — Joffrey ergueu o cálice acima da cabeça, para que todos o admirassem.
  — A maldita coisa é tão alta como eu — resmungou Tyrion em voz baixa. — Metade do cálice e Joff fica a cair de bêbado.
  Óptimo, pensou ela. Talvez quebre o pescoço.
  O Lorde Tywin esperou até ao fim para entregar ao rei o seu presente: uma espada longa. A bainha era feita de cerejeira, ouro e couro vermelho oleado, incrustado de cabeças de leão em ouro. Sansa viu
que os leões tinham olhos de rubi. O salão de baile ficou em silêncio quando Joffrey desembainhou a espada e a ergueu acima da cabeça. Ondulações vermelhas e negras no aço cintilaram à luz da manhã.
  — Magnífica — declarou Mathis Rowan.
  — Uma espada digna de canções, senhor — disse o Lorde Redwyne.
  — A espada de um rei — disse Sor Kevan Lannister.
  O Rei Joffrey estava tão excitado que parecia querer matar alguém mesmo ali e naquele momento. Golpeou o ar e soltou uma gargalhada.
  — Uma grande espada deve ter um grande nome, senhores! Como lhe chamarei?
  Sansa lembrou-se de Dente de Leão, a espada que Arya atirara ao Tridente, e da Devoradora de Corações, aquela que ele a obrigara a beijar antes da batalha. Perguntou a si mesma se ele quereria que Margaery
beijasse aquela.
  Os convidados estavam a gritar nomes para a nova arma. Joff rejeitou uma dúzia antes de ouvir um que lhe agradou.
  — Lamento de Viúvas! — gritou. — Sim! E ela irá criar muitas viúvas! — Voltou a golpear o ar. — E quando enfrentar o meu tio Stannis, quebrará a sua espada mágica em duas. — Joff experimentou um golpe
vertical, forçando Sor Balon Swann a dar um apressado passo para trás. A expressão na cara de Sor Balon fez ressoar gargalhadas no salão.
  — Tende cuidado, Vossa Graça — avisou Sor Addam Marbrand. — O aço valiriano é perigosamente aguçado.
  — Eu lembro-me. — Joffrey fez cair Lamento de Viúvas, num violento golpe vertical a duas mãos, sobre o livro que Tyrion lhe dera. A pesada capa de couro fendeu-se em duas. — Aguçado! Eu disse-vos, não
sou estranho ao aço valiriano. — Precisou de meia dúzia de outros golpes para desfazer o fino volume, e o rapaz estava sem fôlego quando acabou. Sansa conseguia sentir o marido a lutar contra a fúria
enquanto Sor Osmund Kettleblack gritava:
  — Rezo para que nunca vireis esse perigoso gume contra mim, senhor.
  — Tratai de nunca me dar motivos, sor. — Joffrey deu um piparote com a ponta da espada num bocado de Vidas de Quatro Reis, atirando-o para fora da mesa, após o que voltou a enfiar a Lamento de Viúvas
na bainha.
  — Vossa Graça — disse Sor Garlan Tyrell. — Talvez não soubésseis. Em todo o Westeros não havia mais de quatro cópias desse livro iluminadas pela própria mão de Kaeth.
  — Agora há três. — Joffrey desafivelou o seu velho cinto da espada para o trocar pelo novo. — Vós e a Senhora Sansa deveis-me um presente melhor, tio Duende. Este está feito em pedaços.
  Tyrion estava a fitar o sobrinho com os seus olhos desiguais.
  — Talvez uma faca, senhor. Para combinar com a vossa espada. Um punhal do mesmo belo aço valiriano… digamos, com um cabo de osso de dragão?
  Joff deitou-lhe um olhar penetrante.
  — Vós… sim, um punhal para combinar com a minha espada, óptimo. — Fez um aceno. — Um… um cabo de ouro com rubis. Osso de dragão é demasiado simples.
  — Como quiserdes, Vossa Graça. — Tyrion bebeu outra taça de vinho. Ajuizando pela atenção que prestava a Sansa, bem podia estar sozinho no seu aposento privado. Mas quando chegou a altura de partir
para o casamento, pegou-lhe na mão.
  Enquanto atravessavam o pátio, o Príncipe Oberyn de Dorne pôs-se ao lado deles, com a amante de cabelo negro pelo braço. Sansa deitou um relance curioso à mulher. Era filha ilegítima, não era casada,
e dera duas filhas bastardas ao príncipe, mas não temia olhar nos olhos nem sequer a rainha. Shae dissera-lhe que aquela Ellaria adorava uma deusa do amor lisena qualquer.
  — Era quase uma prostituta quando ele a encontrou, senhora — confidenciara a aia — e agora é quase uma princesa. — Sansa nunca antes tinha estado tão perto da dornesa. Não é realmente bela, pensou,
mas há qualquer coisa nela que atrai o olhar.
  — Uma vez tive a grande sorte de contemplar a cópia de Vidas de Quatro Reis que há na Cidadela — estava o Príncipe Oberyn a dizer ao senhor seu esposo. — As iluminuras eram uma maravilha de se ver,
mas Kaeth foi muito mais amável com o Rei Viserys do que devia.
  Tyrion deitou-lhe um olhar penetrante.
  — Muito amável? A meu ver, ele falha miseravelmente para com Viserys. Devia ter sido Vidas de Cinco Reis.
  O príncipe riu-se.
  — Viserys quase nem chegou a reinar uma quinzena.
  — Reinou durante mais de um ano — disse Tyrion.
  Oberyn encolheu os ombros.
  — Um ano ou uma quinzena, que importa? Envenenou o próprio sobrinho para conquistar o trono, e depois de o ter, não fez nada.
  — Baelor matou-se à fome com jejuns — disse Tyrion. — O tio serviu-o lealmente como Mão, tal como tinha servido o Jovem Dragão antes dele. Viserys pode só ter reinado durante um ano, mas governou durante
quinze, enquanto Daeron guerreava e Baelor rezava. — Fez uma expressão amarga. — E se realmente eliminou Baelor, podeis culpá-lo? Alguém tinha de salvar o reino das loucuras de Baelor.
  Sansa sentiu-se chocada.
  — Mas Baelor, o Abençoado, foi um grande rei. Percorreu descalço o Caminho dos Ossos para fazer a paz com Dorne, e salvou o Cavaleiro do Dragão de um fosso de serpentes. As víboras recusaram-se a atacá-lo
por ele ser tão puro e santo.
  O Príncipe Oberyn sorriu.
  — Se fôsseis uma víbora, senhora, quereríeis morder um pau desprovido de sangue como Baelor, o Abençoado? Eu preferia reservar as minhas presas para alguém com mais sumo…
  — O meu príncipe está a brincar convosco, Senhora Sansa — disse a mulher, Ellaria Sand. — Os septões e cantores gostam de dizer que as serpentes não morderam Baelor, mas a verdade é muito diferente.
Ele foi mordido meia centena de vezes, e devia ter morrido das mordidelas.
  — Se tivesse morrido, Viserys teria reinado uma dúzia de anos — disse Tyrion — e os Sete Reinos poderiam ter ficado mais bem servidos. Há quem pense que Baelor ficou com o espírito transtornado por
todo aquele veneno.
  — Sim — disse o Príncipe Oberyn —, mas não vi serpentes nesta vossa Fortaleza Vermelha. Como explicais Joffrey?
  — Prefiro não explicar. — Tyrion inclinou rigidamente a cabeça. — Perdoai-nos. A nossa liteira aguarda. — O anão ajudou Sansa a subir e trepou desajeitadamente atrás dela. — Fechai as cortinas, senhora,
por gentileza.
  — Tem de ser, senhor? — Sansa não queria ficar fechada atrás das cortinas. — O dia está tão agradável.
  — É provável que o bom povo de Porto Real atire bosta à liteira se me vir cá dentro. Fazei-nos a ambos uma amabilidade, senhora. Fechai as cortinas.
  Ela fez o que lhe era pedido. Seguiram em silêncio durante algum tempo, enquanto o ar se ia tornando quente e abafado à volta deles.
  — Lamento pelo vosso livro, senhor — obrigou-se ela a dizer.
  — O livro era de Joffrey. Podia ter aprendido uma coisa ou outra se o tivesse lido. — Parecia distraído. — Eu devia ter sabido. Devia ter visto… uma quantidade de coisas.
  — O punhal talvez lhe agrade mais.
  Quando o anão fez uma careta, a cicatriz retesou-se e torceu-se.
  — O rapaz arranjou maneira de merecer um punhal, não vos parece? — Felizmente Tyrion não esperou pela sua resposta. — Joff discutiu com o vosso irmão Robb em Winterfell. Dizei-me, havia também maus
sentimentos entre Bran e Sua Graça?
  — Bran? — A pergunta confundiu-a. — Falais de antes da queda? — Teve de tentar lembrar-se. Tudo se passara havia tanto tempo. — Bran era um doce rapazinho. Todos gostavam dele. Lembro-me de que ele
e Tommen lutaram com espadas de madeira, mas só na brincadeira.
  Tyrion caiu num silêncio taciturno. Sansa ouviu o distante tinir de correntes vindo do exterior; a porta levadiça estava a ser erguida. Um momento mais tarde ouviu-se um grito, e a liteira pôs-se em
movimento com um solavanco. Privada do cenário que atravessavam, escolheu fitar as mãos dobradas, desconfortavelmente consciente dos olhos desiguais do marido. Porque está ele a olhar-me daquela maneira?
  — Amáveis tanto os vossos irmãos como eu amo Jaime.
  Será isto alguma armadilha Lannister para me levar a proferir traições?
  — Os meus irmãos eram traidores, e partiram para sepulturas de traidores. É traição amar um traidor.
  O seu pequeno esposo fungou.
  — Robb ergueu-se em armas contra o seu legítimo rei. Pela lei, isso fez dele um traidor. Os outros morreram demasiado novos para saberem o que é a traição. — Esfregou o nariz. — Sansa, sabeis o que
aconteceu a Bran em Winterfell?
  — Bran caiu. Andava sempre a escalar coisas, e por fim caiu. Sempre tememos que isso acontecesse. E Theon Greyjoy matou-o, mas isso foi mais tarde.
  — Theon Greyjoy. — Tyrion suspirou. — A senhora vossa mãe acusou-me em tempos… bem, não vos sobrecarregarei com os detalhes sórdidos. Acusou-me falsamente. Nunca fiz mal ao vosso irmão Bran. E não vos
quero nenhum mal.
  Que quer ele que eu diga?
  — É bom saber, senhor. — Ele queria algo dela, mas Sansa não sabia o que era. Parece uma criança esfomeada, mas não tenho comida para lhe dar. Porque não me deixa em paz?
  Tyrion voltou a esfregar o seu nariz cheio de escaras e cicatrizes, um feio hábito que atraía o olhar para o seu feio rosto.
  — Nunca me perguntastes como morreu Robb ou a senhora vossa mãe.
  — Eu… prefiro não saber. Dar-me-ia pesadelos.
  — Então nada mais direi.
  — Isso… isso é gentil da vossa parte.
  — Oh, sim — disse Tyrion. — Eu sou a própria alma da gentileza. E sei o que são pesadelos.
 
 TYRION
  A nova coroa que o pai oferecera à Fé era duas vezes mais alta do que aquela que a turba esmagara, uma glória de cristal e fio de ouro. A luz do arco-íris refulgia e cintilava de cada vez que o Alto
Septão movia a cabeça, mas Tyrion teve de perguntar a si próprio como conseguiria o homem suportar o peso. E até ele tinha de admitir que Joffrey e Margaery faziam um casal régio, ali em pé, lado a lado,
entre as altas estátuas douradas do Pai e da Mãe.
  A noiva estava adorável, vestida de seda em tom de marfim e renda de Myr, com as saias decoradas com padrões florais realçados de pérola-semente. Como viúva de Renly, podia ter usado as cores Baratheon,
ouro e negro, mas chegara-lhes como uma Tyrell, num manto de donzela composto por uma centena de rosas de pano de ouro cosidas a veludo verde. Tyrion perguntou a si próprio se ela seria realmente donzela.
Não que seja provável que Joffrey saiba a diferença.
  O rei estava quase tão magnífico como a noiva, com o seu gibão de rosa-sombra, sob um manto de veludo de um profundo tom de carmim, decorado com o seu veado e leão. A coroa assentava-lhe com facilidade
nos caracóis, ouro sobre ouro. Salvei aquela maldita coroa para ele. Tyrion deslocou o peso desconfortavelmente de um pé para o outro. Não conseguia ficar quieto. Demasiado vinho. Devia ter pensado em
aliviar-se antes de saírem da Fortaleza Vermelha. A noite sem dormir que passara com Shae também estava a fazer-se sentir, mas acima de tudo queria estrangular o maldito do seu real sobrinho.
  Não sou estranho ao aço valiriano, vangloriara-se o rapaz. Os septões andavam sempre a palrar sobre o modo como o Pai no Céu nos julga a todos. Se o Pai tivesse a bondade de derrubar e esmagar Joff
como se fosse um escaravelho bosteiro, eu até podia acreditar.
  Devia tê-lo compreendido há muito tempo. Jaime nunca mandaria outro homem matar em seu nome, e Cersei era demasiado astuciosa para usar uma faca cujo rasto podia levar até si, mas Joff, o arrogante,
perverso e estúpido canalha que era…
  Recordou a manhã fria em que descera os íngremes degraus exteriores da biblioteca de Winterfell e encontrara o Príncipe Joffrey a gracejar com o Cão de Caça sobre matar lobos. Mandar um cão matar um
lobo, dissera. Contudo, nem mesmo Joff era tão tolo que ordenasse a Sandor Clegane que matasse um filho de Eddard Stark; o Cão de Caça teria ido ter com Cersei. Em vez disso, o rapaz encontrara a sua
ferramenta no duvidoso bando de cavaleiros livres, mercadores e seguidoras de acampamentos que se fora ligando à comitiva do rei à medida que esta seguia para norte. Um cretino bexiguento qualquer disposto
a arriscar a vida em troca do favor de um príncipe e de algumas moedas. Tyrion perguntou a si próprio de quem teria sido a ideia de esperar até Robert partir de Winterfell para abrir a goela a Bran. O
mais certo é ter sido de Joff. Sem dúvida que julgou que isso era o ápice da astúcia.
  Tyrion julgava recordar que a adaga do príncipe tinha o botão incrustados de jóias, e arabescos de ouro embutidos na lâmina. Pelo menos, Joff não fora suficientemente estúpido para usar essa. Em vez
disso fora meter o nariz nas armas do pai. Robert Baratheon era um homem de descuidada generosidade, e teria dado ao filho qualquer punhal que ele desejasse… mas Tyrion julgava que o rapaz se teria limitado
a levá-lo. Robert chegara a Winterfell com uma grande comitiva de cavaleiros e serventes, uma enorme casa rolante e um comboio de bagagem. Sem dúvida que um qualquer criado diligente se teria assegurado
de que as armas do rei seguiam com ele, para o caso de desejar alguma.
  A lâmina que Joff escolhera era boa e simples. Nada de trabalhos em ouro, nada de jóias no cabo, nada de embutidos de prata na lâmina. O Rei Robert nunca a usara, provavelmente esquecera que lhe pertencia.
Mas o aço valiriano era mortalmente aguçado… suficientemente aguçado para cortar pele, carne e músculo num golpe rápido. Não sou estranho ao aço valiriano. Mas fora, não fora? De outro modo nunca teria
sido idiota ao ponto de escolher a faca do Mindinho.
  O porquê ainda lhe escapava. Simples crueldade, talvez? O sobrinho tinha disso em abundância. Tyrion só com grande dificuldade evitava vomitar todo o vinho que bebera, urinar-se nas bragas ou fazer
ambas as coisas. Remexeu-se com desconforto. Devia ter dominado a língua ao pequeno-almoço. O rapaz agora sabe que eu sei. A minha grande boca será a minha morte, juro.
  Os sete votos foram feitos, as sete bênçãos invocadas, e as sete promessas trocadas. Quando a canção nupcial foi cantada e o desafio passou sem resposta, chegou a altura da troca dos mantos. Tyrion
deslocou o peso de uma perna deformada para a outra, tentando ver entre o pai e o tio Kevan. Se os deuses forem justos, Joff fará disto uma salganhada. Assegurou-se de não olhar para Sansa, para o caso
de a amargura estar visível nos seus olhos. Devias ter-te ajoelhado, raios te partam. Teria sido assim tão difícil dobrar esses teus rígidos joelhos Stark, permitindo-me manter alguma dignidade?
  Mace Tyrell removeu ternamente o manto de donzela da filha, enquanto Joffrey recebia o manto de noiva, dobrado, das mãos do irmão Tommen e o sacudia com um floreado. O rei rapaz era tão alto aos treze
anos como a sua noiva aos dezasseis; não precisaria de se empoleirar nas costas de um bobo. Envolveu Margaery em carmim e ouro e inclinou-se para lhe prender o manto em volta da garganta. E foi com essa
facilidade que ela passou da protecção do pai para a do marido. Mas quem a protegerá de Joff? Tyrion deitou um relance ao Cavaleiro das Flores, que se encontrava junto dos outros membros da Guarda Real.
É melhor que mantenhais a espada bem afiada, Sor Loras.
  — Com este beijo empenho o meu amor! — declarou Joffrey num tom retumbante. Quando Margaery ecoou as palavras, ele puxou-a para si e deu-lhe um longo e profundo beijo. Luzes arco-íris voltaram a dançar
em volta da coroa do Alto Septão quando declarou solenemente que Joffrey das Casas Baratheon e Lannister e Margaery da Casa Tyrell eram uma só carne, um só coração, uma só alma.
  Óptimo, isto está feito. Voltemos agora para o maldito castelo para que eu possa fazer uma mija.
  Sor Loras e Sor Meryn seguiram à frente da procissão que partiu do septo, trajando as suas armaduras de escamas brancas e mantos de neve. Depois vinha o Príncipe Tommen, espalhando à frente do rei e
da rainha pétalas de rosa que tirava de um cesto. Após o casal real seguiam a Rainha Cersei e o Lorde Tyrell, atrás destes a mãe da rainha de braço dado com o Lorde Tywin. Depois vinha a Rainha dos Espinhos,
titubeando com uma mão apoiada no braço de Sor Kevan Lannister e a outra na sua bengala, trazendo os guardas gémeos logo atrás para o caso de cair. Depois vinha Sor Garlan Tyrell e a senhora sua esposa,
e por fim era a vez deles.
  — Senhora. — Tyrion ofereceu o braço a Sansa. Ela aceitou-o obedientemente, mas o anão conseguia sentir a rigidez da rapariga enquanto desciam juntos a nave. Não o olhou nem uma vez.
  Ouviu-os a aclamar lá fora antes mesmo de chegar às portas. A multidão amava tanto Margaery que até estava disposta a voltar a amar Joffrey. Ela pertencera a Renly, o belo e jovem príncipe que lhes
quisera tanto bem que regressara da sepultura para os salvar. E a prodigalidade de Jardim de Cima chegara com ela, fluindo do Sul pela Estrada das Rosas. Os palermas não pareciam lembrar-se de que fora
Mace Tyrell quem fechara a Estrada das Rosas para começar, e quem gerara a maldita fome.
  Saíram para o ar vivo do Outono.
  — Temi que nunca conseguíssemos fugir — gracejou Tyrion.
  Sansa não teve alternativa a olhá-lo.
  — Eu… sim, senhor. É como dizeis. — Parecia triste. — Mas foi uma cerimónia tão bela.
  Tanto quanto a nossa não foi.
  — Foi longa, até aí concordo. Preciso de voltar ao castelo para uma boa mijadela. — Tyrion esfregou o que lhe restava do nariz. — Gostava de ter maquinado uma missão qualquer que me levasse para fora
da cidade. O Mindinho é que foi esperto.
  Joffrey e Margaery estavam rodeados pela Guarda Real no topo dos degraus que davam para a grande praça de mármore. Sor Addam e os seus homens de mantos dourados mantinham a multidão afastada, enquanto
a estátua do Rei Baelor, o Abençoado, os fitava com benevolência. Tyrion não teve alternativa a juntar-se à fila, com os demais, para dar os parabéns. Beijou os dedos de Margaery e desejou-lhe todas as
felicidades. Felizmente, havia outras pessoas atrás deles à espera de vez, e não precisaram de demorar muito tempo.
  A liteira estivera ao Sol, e dentro das cortinas fazia muito calor. Quando se puseram em movimento, Tyrion reclinou-se sobre um cotovelo e Sansa sentou-se, de olhos fitos nas mãos. Ela é tão bonita
como a rapariga Tyrell. O cabelo era de um rico ruivo outonal, os olhos de um profundo azul Tully. O desgosto dera-lhe um aspecto assombrado e vulnerável; isso ainda a tornara mais bela. Desejou chegar
até ela, atravessar a armadura da sua cortesia. Teria sido isso a fazê-lo falar? Ou só a necessidade de se distrair da bexiga cheia?
  — Tenho andado a pensar que quando as estradas estiverem de novo seguras, podíamos fazer uma viagem a Rochedo Casterly. — Para longe de Joffrey e da minha irmã. Quanto mais pensava no que Joff fizera
às Vidas dos Quatro Reis, mais perturbado se sentia. Havia ali uma mensagem, oh, sim. — Agradar-me-ia mostrar-vos a Galeria Dourada, a Boca do Leão e o Salão dos Heróis onde Jaime e eu brincámos em rapazes.
Pode-se ouvir o trovão vindo de baixo, de onde o mar entra…
  Ela ergueu lentamente a cabeça. Sabia o que a rapariga estava a ver; a testa brutal e inchada, o toco em carne viva do nariz, a cicatriz cor-de-rosa e irregular e os olhos desiguais. Os olhos dela eram
grandes, azuis e vazios.
  — Irei onde quer que o senhor meu esposo deseje que vá.
  — Esperava que vos pudesse agradar, senhora.
  — Agradar-me-á agradar ao meu senhor.
  A boca dele apertou-se. Que homenzinho patético tu és. Achavas que tagarelar acerca da Boca do Leão iria fazê-la sorrir? Quando foi que fizeste uma mulher sorrir sem ser por ouro?
  — Não, foi uma ideia tola. Só um Lannister pode amar o Rochedo.
  — Sim, senhor. Como desejardes.
  Tyrion ouvia os plebeus a gritar pelo nome do Rei Joffrey. Daqui a três anos esse rapaz cruel será um homem, e governará sozinho… e qualquer anão com metade dos miolos a funcionar estará muito longe
de Porto Real. Talvez em Vilavelha. Ou até nas Cidades Livres. Sempre sentira um forte desejo de ver o Titã de Bravos. Isso talvez agradasse a Sansa. Em tom gentil, falou de Bravos, e encontrou uma muralha
de taciturna cortesia tão gelada e inflexível como a Muralha por onde caminhara uma vez no Norte. Isso fatigou-o. Então e agora.
  Passaram o resto da viagem em silêncio. Após algum tempo, Tyrion deu por si a esperar que Sansa dissesse alguma coisa, fosse o que fosse, a mais insignificante das palavras, mas ela não falou. Quando
a liteira parou no pátio do castelo, permitiu que um dos palafreneiros a ajudasse a descer.
  — Somos esperados no banquete dentro de uma hora, senhora. Irei ter convosco em breve. — Afastou-se sobre pernas hirtas. Ouviu as gargalhadas sem fôlego de Margaery do outro lado do pátio quando Joffrey
a tirou da sela. Um dia o rapaz será tão alto e forte como Jaime, pensou. E eu continuarei a ser um anão debaixo dos seus pés. E um dia é bem capaz de me fazer ainda mais curto…
  Descobriu uma latrina e suspirou, grato, enquanto se aliviava do vinho da manhã. Havia alturas em que uma mijadela lhe sabia tão bem como uma mulher, e aquela era uma delas. Gostaria de se conseguir
aliviar das dúvidas e das culpas com metade daquela facilidade.
  Podrick Payne esperava-o à porta dos seus aposentos.
  — Preparei o vosso gibão novo. Aqui não. Na vossa cama. No quarto.
  — Sim, é aí que tenho a cama. — Sansa devia lá estar, vestindo-se para o banquete. E Shae também. — Vinho, Pod.
  Tyrion bebeu-o no banco de janela, matutando enquanto observava o caos das cozinhas, lá em baixo. O Sol ainda não tocara o topo da muralha do castelo, mas já sentia o cheiro de pães a cozer e de carnes
a assar. Os convidados começariam em breve a entrar em torrente na sala do trono, cheios de expectativa; aquela seria uma noite de canções e esplendor, planeada não só para unir Jardim de Cima e Rochedo
Casterly, mas também para proclamar poderio e riqueza, como lição para todos os que pudessem ainda pensar em opor-se ao domínio de Joffrey.
  Mas quem seria suficientemente louco para se opor agora ao domínio de Joffrey, depois daquilo que caíra sobre Stannis Baratheon e Robb Stark? Ainda se lutava nas terras fluviais, mas por todo o lado
os nós se apertavam. Sor Gregor Clegane atravessara o Tridente e capturara o vau rubi, após o que tomara Harrenhal quase sem esforço. Guardamar rendera-se ao Walder Negro Frey, o Lorde Randyll Tarly dominava
Lagoa da Donzela, Valdocaso e a Estrada de Rei. No ocidente, Sor Daven Lannister unira-se a Sor Forley Prester no Dente Dourado para marchar sobre Correrrio. Sor Ryman Frey descia das Gémeas à frente
de dois mil lanceiros para se lhes juntar. E Paxter Redwyne dizia que a sua frota zarparia em breve da Árvore, a fim de dar início à longa viagem em volta de Dorne e através dos Degraus. Os piratas lisenos
de Stannis ficariam numa inferioridade numérica de dez para um. A luta a que os meistres andavam a chamar a Guerra dos Cinco Reis estava praticamente no fim. Mace Tyrell fora ouvido a queixar-se que o
Lorde Tywin não deixara vitórias para ele.
  — Senhor? — Pod encontrava-se a seu lado. — Ireis trocar de roupa? Preparei o gibão. Na vossa cama. Para o banquete.
  — Banquete? — disse Tyrion com amargura. — Que banquete?
  — O banquete de casamento. — Pod não se apercebera do sarcasmo, claro. — O Rei Joffrey e a Senhora Margaery. Rainha Margaery, quero eu dizer.
  Tyrion decidiu ficar muito, muito bêbado naquela noite.
  — Muito bem, jovem Podrick, vamos lá pôr-me festivo.
  Shae estava a ajudar Sansa com o cabelo quando entraram no quarto. Alegria e dor, pensou o anão quando as contemplou juntas. Riso e lágrimas. Sansa usava um vestido de cetim prateado debruado a veiro,
com mangas pendentes que quase tocavam o chão, forradas de suave feltro púrpura. Shae arranjara-lhe o cabelo artisticamente dentro de uma delicada rede de prata que piscava de pedras preciosas de um tom
escuro de púrpura. Tyrion nunca a vira mais adorável, mas ostentava a mágoa naquelas longas mangas de cetim.
  — Senhora Sansa — disse-lhe —, esta noite sereis a mais bela senhora no salão.
  — O senhor é demasiado bondoso.
  — Senhora — disse Shae em tom desejoso. — Eu não podia ir servir às mesas? Quero tanto ver os pombos sair da tarte a voar.
  Sansa olhou-a com incerteza.
  — A rainha escolheu todos os criados.
  — E o salão estará demasiado cheio de gente. — Tyrion teve de reprimir o aborrecimento. — Mas haverá músicos por todo o castelo, e mesas no pátio exterior com comida e bebida para todos. — Inspeccionou
o seu gibão novo, com ombros almofadados e mangas em balão com cortes que mostravam o cetim negro que tinham por baixo. Uma bela veste. Tudo o que precisa é de um belo homem para a vestir. — Vem, Pod,
ajuda-me a entrar nisto.
  Bebeu outra taça de vinho enquanto se vestia, após o que tomou a esposa pelo braço e acompanhou-a para fora da Fortaleza das Cozinhas, a fim de se juntarem ao rio de seda, cetim e veludo que fluía para
a sala do trono. Alguns convidados tinham já ocupado os seus lugares nos bancos. Outros vagueavam à frente das portas, apreciando o calor extemporâneo da tarde. Tyrion levou Sansa em volta do pátio, a
fim de cumprir as cortesias da praxe.
  Ela é boa nisto, pensou, enquanto a observava a dizer ao Lorde Gyles que a sua tosse parecia melhor, a elogiar Elinor Tyrell pelo vestido, e a interrogar Jalabhar Xho acerca dos costumes nupciais das
Ilhas do Verão. O primo de Tyrion, Sor Lancel, fora trazido para baixo por Sor Kevan, no que era a primeira vez que ele deixava a cama desde a batalha. Tem um aspecto horrível. O cabelo de Lancel tornara-se
branco e quebradiço e estava magro como um espeto. Se não tivesse o pai a seu lado para o manter em pé, teria certamente tombado no chão. Mas quando Sansa elogiou o seu valor e disse como era bom vê-lo
de novo a ganhar forças, tanto Lancel como Sor Kevan resplandeceram. Ela teria sido uma boa rainha e uma esposa ainda melhor para Joffrey se ele tivesse tido o bom senso de amá-la. Perguntou a si próprio
se o sobrinho seria capaz de amar fosse quem fosse.
  — Tens um aspecto requintado, filha — disse a Senhora Olenna Tyrell a Sansa quando se aproximou deles no seu passo titubeante, trajando um vestido de pano de ouro que devia pesar mais do que ela. —
Mas o vento entrou-te no cabelo. — A pequena velha esticou-se e atarefou-se com madeixas soltas, voltando a pô-las no lugar e endireitando a rede para o cabelo de Sansa. — Fiquei muito triste quando soube
das tuas perdas — disse enquanto remexia e repuxava. — O teu irmão era um horrível traidor, eu sei, mas se começarmos a matar homens em bodas, eles ficarão ainda com mais medo do casamento do que aquele
que já têm. Pronto, assim está melhor. — A Senhora Olenna sorriu. — Apraz-me dizer que parto para Jardim de Cima depois de amanhã. Já me fartei bem desta cidade malcheirosa, muito obrigada. Talvez queiras
acompanhar-me para uma pequena visita, enquanto os homens estão longe entretidos com a sua guerra? Vou sentir uma falta tão terrível da minha Margaery, e de todas as suas adoráveis senhoras. A tua companhia
seria um conforto tão querido.
  — Sois demasiado gentil, senhora — disse Sansa —, mas o meu lugar é junto do senhor meu esposo.
  A Senhora Olenna concedeu a Tyrion um sorriso enrugado e desdentado.
  — Oh? Perdoai uma velha tonta, senhor, não pretendi roubar-vos a vossa adorável esposa. Assumi que andaríeis por longe à frente de uma hoste Lannister contra um inimigo malvado qualquer.
  — Uma hoste de dragões e veados. O mestre da moeda tem de permanecer na corte para tratar de pagar a todos os exércitos.
  — Com certeza. Dragões e veados, é muito inteligente. E também dinheiro do anão. Já ouvi falar desse dinheiro do anão. Sem dúvida que colectá-lo é uma ocupação tão desagradável.
  — Deixo a outros a colecta, senhora.
  — Oh, deixais? Eu pensava que quereríeis tratar disso em pessoa. Não podemos admitir que a Coroa seja espoliada do seu dinheiro do anão. Podemos?
  — Que os deuses não o permitam. — Tyrion começava a perguntar a si próprio se o Lorde Luthor Tyrell não se teria despenhado daquela falésia intencionalmente. — Se nos perdoardes, Senhora Olenna, é tempo
de ocuparmos os nossos lugares.
  — E eu também. Setenta e sete pratos, certamente. Não vos parece que isso é um pouco excessivo, senhor? Eu não comerei mais do que três ou quatro garfadas, mas nós os dois somos muito pequenos, não
somos? — Voltou a dar palmadinhas no cabelo de Sansa e disse: — Bem, vai-te lá embora, filha, e tenta mostrar-te mais alegre. Onde se meteram os meus guardas? Esquerdo, Direito, onde estais? Vinde ajudar-me
a subir para o estrado.
  Embora o anoitecer ainda estivesse a uma hora de distância, a sala do trono era já um esplendor de luz, com archotes a arder em todas as arandelas. Os convidados alinhavam-se, em pé, ao longo das mesas,
enquanto arautos gritavam os nomes e títulos dos senhores e senhoras que faziam a sua entrada. Pajens com a libré real escoltavam-nos pela larga coxia central. A galeria encontrava-se repleta de músicos;
tambores, flautistas e rabequistas, corda, sopro e percussão.
  Tyrion pegou no braço de Sansa e fez a caminhada num passo pesado e bamboleante. Sentia os olhos postos nele, debicando a nova cicatriz que o deixara ainda mais feio do que fora anteriormente. Que olhem,
pensou enquanto saltava para a cadeira. Que me fitem e que murmurem até se fartarem, não me esconderei por causa deles. A Rainha dos Espinhos seguiu-o, avançando com passinhos minúsculos. Tyrion perguntou
a si próprio qual dos dois pareceria mais absurdo, ele com Sansa ou a mulherzinha encarquilhada entre os seus guardas gémeos de dois metros e dez.
  Joffrey e Margaery entraram na sala do trono montados em cavalos brancos a condizer. Pajens corriam à frente deles, espalhando pétalas de rosa sob os seus cascos. O rei e a rainha também tinham mudado
de roupa para o banquete. Joffrey usava bragas às riscas negras e carmim e um gibão de pano de ouro com mangas de cetim negro e tachões de ónix. Margaery trocara o vestido modesto que usara no septo por
outro muito mais revelador, um trajo de samito verde-claro com um corpete em renda miúda que lhe desnudava os ombros e a parte superior dos seus pequenos seios. Solto, o suave cabelo castanho caía-lhe
sobre os ombros brancos e descia pelas costas quase até à cintura. Em volta da testa trazia uma esguia coroa de ouro. O seu sorriso era tímido e doce. Uma rapariga adorável, pensou Tyrion, e um destino
mais gentil do que o que o meu sobrinho merece.
  A Guarda Real escoltou-os até ao estrado, até aos lugares de honra à sombra do Trono de Ferro, envolto para a ocasião em longas flâmulas do dourado Baratheon, do carmesim Lannister e do verde Tyrell.
Cersei abraçou Margaery e beijou-lhe as bochechas. O Lorde Tywin fez o mesmo, e o mesmo fizeram Lancel e Sor Kevan. Joffrey recebeu beijos de carinho do pai da noiva e dos seus dois novos irmãos, Loras
e Garlan. Ninguém pareceu muito ansioso por beijar Tyrion. Depois de o rei e a rainha ocuparem os seus lugares, o Alto Septão ergueu-se para comandar uma prece. Pelo menos não é tão monótono como o último,
pensou Tyrion, consolando-se.
  Ele e Sansa tinham sido postos em lugares à direita do rei e afastados deste, ao lado de Sor Garlan Tyrell e da sua esposa, a Senhora Leonette. Havia uma dúzia de outros convivas sentados mais perto
de Joffrey, o que um homem mais susceptível teria tomado como uma afronta, dado ter sido Mão do Rei não muito tempo antes. Tyrion ter-se-ia sentido contente se esses convivas tivessem sido cem.
  — Que as taças se encham! — proclamou Joffrey, depois de os deuses receberem o que lhes era devido. O seu copeiro despejou um jarro inteiro de escuro tinto da Árvore no cálice nupcial de ouro que o
Lorde Tyrell lhe dera naquela manhã. O rei teve de usar ambas as mãos para o erguer. — À minha esposa, a rainha!
  — Margaery! — gritou-lhe o salão em resposta. — Margaery! Margaery! À rainha! — Um milhar de taças retiniram umas nas outras e o banquete nupcial teve o seu verdadeiro início. Tyrion Lannister bebeu
com os outros, esvaziando a taça naquele primeiro brinde e fazendo sinal para que a voltassem a encher assim que se voltou a sentar.
  O primeiro prato era uma sopa cremosa de cogumelos e caracóis em manteiga, servida em tigelas douradas. Tyrion quase não tocara no pequeno-almoço, e o vinho já lhe subira à cabeça, por isso a comida
era bem-vinda. Terminou depressa. Um já está, faltam setenta e seis. Setenta e sete pratos, enquanto ainda há crianças a passar fome nesta cidade, e homens capazes de matar por um rabanete. Poderiam amar
bem menos os Tyrell se nos pudessem ver agora.
  Sansa provou uma colher de sopa e afastou a tigela.
  — Não vos agrada, senhora? — perguntou Tyrion.
  — Haverá tanta coisa, senhor. Tenho uma barriga pequena. — Remexeu nervosamente no cabelo e olhou ao longo da mesa para onde se encontrava Joffrey com a sua rainha Tyrell.
  Desejará encontrar-se no lugar de Margaery? Tyrion franziu o sobrolho. Até uma criança devia ter mais juízo. Afastou os olhos, procurando uma distracção, mas para onde quer que olhasse, via mulheres;
boas, lindas, felizes e belas mulheres que pertenciam a outros homens. Margaery, claro, sorrindo com doçura enquanto partilhava com Joffrey uma bebida vinda do cálice de sete lados. A sua mãe, a Senhora
Alerie, grisalha e bem-parecida, ainda orgulhosa ao lado de Mace Tyrell. As três jovens primas da rainha, vivas como passarinhos. A esposa myresa do Lorde Merrywheather, com o seu cabelo negro e os seus
grandes olhos, negros e apaixonados. Ellaria Sand entre os dorneses (Cersei colocara-os na sua própria mesa, logo abaixo do estrado, num lugar de grande honra mas tão longe dos Tyrell como a largura do
salão permitia), rindo de qualquer coisa que a Víbora Vermelha lhe dissera.
  E havia uma mulher, sentada quase na ponta da terceira mesa da esquerda… a esposa de um dos Fossoway, achava ele, e bem cheia com o seu filho. A sua delicada beleza não era em nada diminuída pela barriga,
e o prazer que obtinha da comida e dos divertimentos também não. Tyrion observou-a enquanto o marido lhe oferecia bocados do seu prato. Bebiam da mesma taça, e beijavam-se com frequência e imprevisivelmente.
Sempre que o faziam, a mão dele pousava com gentileza na barriga dela, num gesto terno e protector.
  Perguntou a si próprio o que Sansa faria se se debruçasse e a beijasse naquele preciso momento. O mais certo seria recuar. Ou armar-se de coragem e aguentar, cumprindo o seu dever. Não se pode dizer
que esta minha esposa não seja cumpridora do seu dever. Se lhe dissesse que queria romper-lhe a virgindade naquela noite, aguentaria também isso obedientemente, e não choraria mais do que tivesse de chorar.
  Pediu mais vinho. Quando o obteve, o segundo prato estava a ser servido, uma forma de tarte cheia de carne de porco, pinhões e ovos. Sansa não comeu mais do que uma das suas garfadas, enquanto os arautos
anunciavam o primeiro dos sete cantores.
  Hamish, o Harpista, de barba grisalha, anunciou que iria tocar “p’rós ouvidos de deuses e homens, uma canção nunca antes ouvida em todos os Sete Reinos”. Chamou-lhe “A Cavalgada de Lorde Renly”.
  Os dedos do homem moveram-se pelas cordas da harpa vertical, enchendo a sala do trono com um som doce.
  — Do seu trono de ossos o Senhor da Morte olhou o lorde assassinado — começou Hamish, e prosseguiu contando o modo como Renly, arrependendo-se da sua tentativa de usurpar a coroa ao sobrinho, desafiara
o próprio Senhor da Morte e regressara à terra dos vivos para defender o reino contra o irmão.
  E foi por isto que o pobre Symon acabou numa tigela de castanho, reflectiu Tyrion. A Rainha Margaery lacrimejou no fim, quando a sombra do bravo Lorde Renly voou até Jardim de Cima para olhar uma última
vez o rosto do seu verdadeiro amor.
  — Renly Baratheon nunca se arrependeu de nada na vida — disse o Duende a Sansa — mas ou eu não entendo nada de coisa alguma, ou Hamish acabou de ganhar um alaúde dourado.
  O Harpista também lhes ofereceu várias canções mais familiares. “Uma Rosa de Ouro” era para os Tyrell, sem dúvida, tal como “As Chuvas de Castamere” se destinava a lisonjear o pai de Tyrion. “Donzela,
Mãe e Velha” deliciou o Alto Septão, e “A Senhora Minha Esposa” agradou a todas as rapariguinhas que traziam romance nos corações, e, sem dúvida, também a alguns dos rapazinhos. Tyrion escutou com meio
ouvido, enquanto provava fritos de milho doce e pão de aveia quente com bocados de tâmara, maçã e laranja e roía a costela de um javali selvagem.
  Daí em diante, os pratos e diversões sucederam-se uns aos outros numa profusão desconcertante, boiando numa enchente de vinho e cerveja. Hamish deixou-os, e o seu lugar foi ocupado por um urso razoavelmente
pequeno e idoso, que dançou desajeitadamente ao som de flautas e tambores, enquanto os convidados da boda comiam truta com uma crosta de puré de amêndoas. O Rapaz Lua subiu para as andas e pôs-se a caminhar
imponentemente em volta das mesas, perseguindo o Abetouro, o bobo ridiculamente gordo do Lorde Tyrell, e os senhores e senhoras provaram garças-reais assadas e empadões de queijo e cebolas. Uma trupe
de malabaristas de Pentos executou pinos e mortais, equilibrou bandejas nos pés nus e formou uma pirâmide, apoiando-se nos ombros uns dos outros. Os seus feitos foram acompanhados por caranguejos cozidos
com ardentes especiarias orientais, tabuleiros cheios de bocados de carneiro guisado em leite de amêndoa com cenouras, passas e cebolas, e empadões de peixe acabados de sair dos fornos, servidos tão quentes
que queimavam os dedos.
  Então os arautos chamaram outro cantor; Collio Quaynis de Tyrosh, cuja barba ostentava um tom vermelhão e cujo sotaque era tão ridículo como Symon garantira que seria. Collio arrancou com a sua versão
de “A Dança dos Dragões”, a qual era mais adequada como canção para dois cantores, um homem e uma mulher. Tyrion suportou-a com a dupla ajuda de uma perdiz com mel e gengibre e de várias taças de vinho.
Uma balada insinuante sobre um casal de amantes moribundos no meio da Destruição de Valíria poderia ter agradado mais ao salão se Collio não a tivesse cantado em alto valiriano, língua que a maior parte
dos convidados desconhecia. Mas “Bessa, a Criada de Bar” reconquistou-os com a sua letra libertina. Foram servidos pavões na sua plumagem, assados inteiros e recheados de tâmaras, enquanto Collio chamava
um tambor, fazia uma profunda vénia perante o Lorde Tywin, e se lançava “As Chuvas de Castamere”.
  Se me obrigarem a ouvir sete versões daquilo, pode ser que desça ao Fundo das Pulgas para pedir desculpa ao guisado. Tyrion virou-se para a esposa.
  — Então, qual preferistes?
  Sansa olhou-o, pestanejando.
  — Senhor?
  — Os cantores. Qual preferistes?
  — Eu… lamento, senhor. Não estava a ouvir.
  E também não estava a comer.
  — Sansa, há alguma coisa errada? — Falou sem pensar, e sentiu-se instantaneamente idiota. Toda a família dela foi massacrada e está casada comigo, e eu não sei o que há de errado.
  — Não, senhor. — Afastou os olhos dele e fingiu um interesse pouco convincente no Rapaz Lua que enchia Sor Dontos de tâmaras.
  Quatro mestres piromantes conjuraram feras de chamas vivas que se atacaram umas às outras com garras ardentes enquanto os criados carregavam para o salão tigelas de blandissório, uma mistura de caldo
de carne de vaca com vinho fervido adoçado com mel e salpicado de amêndoas peladas e bocados de capão. Então veio um grupo de flautistas ambulantes, cães amestrados e engolidores de espadas, com ervilhas
em manteiga, nozes cortadas e bandejas de cisne escalfado num molho de açafrão e pêssegos. (“Cisne outra vez, não”, resmungou Tyrion, lembrando-se do jantar com a irmã na véspera da batalha.) Um malabarista
manteve meia dúzia de espadas e machados a rodopiar no ar enquanto espetadas de morcela eram trazidas ainda a chiar para as mesas, uma justaposição que Tyrion achou bastante esperta, embora talvez não
do melhor dos gostos.
  Os arautos sopraram as suas trombetas.
  — Para cantar pelo alaúde dourado — gritou um deles —, apresentamo-vos Galyeon de Cuy.
  Galyeon era um grande homem com um peito em forma de barril, uma barba negra, uma cabeça calva e uma voz trovejante que enchia cada canto da sala do trono. Trouxe nada menos que seis músicos para tocar
para ele.
  — Nobres senhores e belas senhoras, não cantarei mais do que uma canção para vós, esta noite — anunciou. — É a canção da Água Negra e de como um reino foi salvo. — O tambor arrancou num ritmo lento
e agoirento.
  — O negro lorde cismou, no topo da sua torre — começou Galyeon — num castelo tão negro como a noite.
  — Negro era o seu cabelo e negra a sua alma — entoaram os músicos em uníssono. Uma flauta juntou-se à melodia.
  — Alimentava-se de sangue e inveja, e enchia a taça a transbordar de despeito — cantou Galyeon. — Meu irmão governou sete reinos, disse à bruxa da esposa. Tomarei o que era seu e torná-lo-ei meu. Que
o seu filho sinta o gume da minha adaga.
  — Um jovem bravo com cabelo de ouro — entoaram os músicos, enquanto uma harpa de mão e uma rabeca começavam a tocar.
  — Se alguma vez voltar a ser Mão, a primeira coisa que faço é enforcar todos os cantores — disse Tyrion, demasiado alto.
  A Senhora Leonette soltou uma leve gargalhada a seu lado, e Sor Garlan debruçou-se para dizer:
  — Um feito valente deixado por cantar não é menos valente.
  — O lorde negro reuniu as legiões, rodearam-no como corvos fazendo-o feliz. E sedentos de sangue embarcaram nos navios…
  — …e ao pobre Tyrion cortaram o nariz — concluiu Tyrion.
  A Senhora Leonette soltou um risinho.
  — Talvez devêsseis ser um cantor, senhor. Rimais tão bem como este Galyeon.
  — Não, senhora — disse Sor Garlan. — O senhor de Lannister está destinado a realizar grandes feitos, não a cantar acerca deles. Se não fosse a sua corrente e o seu fogovivo, o inimigo teria atravessado
o rio. E se os selvagens de Tyrion não tivessem matado a maior parte dos batedores do Lorde Stannis, nunca teríamos sido capazes de os apanhar desprevenidos.
  Aquelas palavras fizeram com que Tyrion se sentisse absurdamente grato, e ajudaram a apaziguá-lo enquanto Galyeon cantava intermináveis versos sobre o valor do rei rapaz e da sua mãe, a rainha dourada.
  — Ela não fez isso — exclamou Sansa de súbito.
  — Nunca acrediteis em nada que ouçais numa canção, senhora. — Tyrion chamou um criado para lhes voltar a encher as taças de vinho.
  Em breve era já noite cerrada fora das grandes janelas, e Galyeon continuava a cantar. A sua canção tinha setenta e sete versos, embora parecesse ter mil. Um para cada conviva presente no salão. Tyrion
aguentou os últimos vinte e picos bebendo, para ajudar a resistir à vontade de enfiar cogumelos nos ouvidos. Quando o cantor finalmente fez as suas vénias, alguns dos convidados estavam suficientemente
bêbados para começar a apresentar os seus próprios divertimentos involuntários. O Grande Meistre Pycelle adormeceu, enquanto dançarinos das Ilhas do Verão giravam e rodopiavam com vestimentas feitas de
penas brilhantes e seda fuliginosa. Medalhões de alce recheados com queijo de mofo maduro estavam a ser servidos quando um dos cavaleiros do Lorde Rowan apunhalou um dornês. Os homens de mantos dourados
arrastaram ambos para fora da sala, um para apodrecer numa cela e o outro para ser cosido pelo Meistre Ballabar.
  Tyrion brincava com cabeça de porco cozinhada em leite e temperada com canela, cravinho, açúcar e leite de amêndoa, quando o Rei Joffrey se pôs subitamente em pé.
  — Trazei os meus reais cavaleiros! — gritou, numa voz pesada de vinho, batendo as mãos.
  O meu sobrinho está mais bêbado do que eu, pensou Tyrion enquanto os homens de mantos dourados abriam as grandes portas na extremidade do salão. Do local em que se encontrava sentado só conseguia ver
os topos de duas lanças às riscas quando dois homens a cavalo entraram lado a lado. Uma onda de gargalhadas seguiu-os pela coxia central, na direcção do rei. Devem vir montados em póneis, concluiu… até
surgirem à sua vista.
  Os cavaleiros eram um par de anões. Um montava um feio cão cinzento, de pernas longas e maxilas pesadas. O outro montava uma imensa porca malhada. Armaduras de madeira pintada chocalhavam e estalejavam
quando os pequenos cavaleiros eram sacudidos para cima e para baixo nas suas celas. Os escudos eram maiores do que eles, e lutavam intrepidamente com as lanças enquanto avançavam, balançando de um lado
para o outro e gerando rajadas de bom humor. Um cavaleiro vinha todo de dourado, com um veado negro pintado no escudo; o outro usava cinzento e branco, e trazia como símbolo um lobo. As montadas vinham
albardadas de forma condizente.
  Tyrion relanceou os olhos pelo estrado, para todas as caras sorridentes. Joffrey estava vermelho e sem fôlego, Tommen gritava, aos saltos na cadeira, Cersei soltava risinhos polidos, e até o Lorde Tywin
parecia moderadamente divertido. De todos os que se encontravam sentados à mesa elevada, só Sansa Stark não sorria. Poderia tê-la amado por isso, mas em boa verdade os olhos da rapariga Stark encontravam-se
longe, como se nem sequer tivesse visto os ridículos cavaleiros a saltitar na sua direcção.
  Os anões não têm culpa, decidiu Tyrion. Quando terminarem, elogiá-los-ei e dar-lhes-ei uma gorda bolsa de prata. E ao chegar a manhã, descobrirei quem planeou esta pequena diversão e tratarei de arranjar
uma forma diferente de agradecer.
  Quando os anões refrearam as montadas sob o estrado para saudar o rei, o cavaleiro do lobo deixou cair o escudo. Ao inclinar-se para o apanhar, o cavaleiro do veado perdeu o controlo da sua pesada lança
e atingiu-o nas costas. O cavaleiro do lobo caiu da porca, e a sua lança tombou e deu uma traulitada na cabeça do adversário. Ambos acabaram no chão, numa grande confusão. Quando se ergueram, ambos tentaram
montar o cão. Seguiram-se muitos gritos e empurrões. Por fim, reconquistaram as selas, só que montados no corcel um do outro, segurando no escudo errado e virados para trás.
  Levou algum tempo a pôr tudo como deve ser, mas por fim esporearam as montadas, dirigiram-se às extremidades opostas do salão, e viraram-se para a justa. Enquanto os senhores e as senhoras soltavam
gargalhadas e risinhos, os pequenos homens colidiram com estrondo e tinido, e a lança do cavaleiro do lobo atingiu o elmo do do veado, fazendo-lhe saltar a cabeça. Esta rodopiou pelo ar, espalhando sangue,
e foi aterrar ao colo do Lorde Gyles. O anão sem cabeça pôs-se a cambalear em volta das mesas, agitando os braços. Cães ladraram, mulheres gritaram, e o Rapaz Lua deu um grande espectáculo, oscilando
de um lado para o outro sobre as suas andas, até que o Lorde Gyles tirou um melão vermelho e sumarento de dentro do elmo despedaçado, no mesmo momento em que o cavaleiro do veado espetou a cabeça para
fora da armadura, e outra tempestade de risos sacudiu o salão. Os cavaleiros esperaram que terminasse, rodearam-se um ao outro trocando coloridos insultos, e estavam prestes a separar-se para outra justa
quando o cão atirou o cavaleiro ao chão e montou a porca. O enorme animal guinchou de aflição, enquanto os convidados da boda guinchavam de riso, redobrado quando o cavaleiro do veado saltou para cima
do cavaleiro do lobo, despiu-lhe as bragas de madeira e desatou a sacudir-se freneticamente de encontro às partes baixas do outro.
  — Rendo-me, rendo-me — gritou o anão de baixo. — Bom sor, guardai a espada!
  — Guardaria, guardaria, se parásseis de mexer a bainha! — respondeu o anão de cima, para divertimento geral.
  Vinho jorrava de ambas as narinas de Joffrey. Arfando, pôs-se em pé com dificuldade, quase derrubando o seu grande cálice de duas mãos.
  — Um campeão — gritou. — Temos um campeão! — O salão começou a aquietar-se quando se foi vendo que o rei estava a falar. Os anões separaram-se, sem dúvida à espera dos agradecimentos reais. — Mas não
é um verdadeiro campeão — disse Joff. — Um verdadeiro campeão derrota todos aqueles que o desafiam. — O rei trepou para cima da mesa. — Quem mais desafiará o nosso minúsculo campeão? — Com um sorriso
cheio de satisfação, virou-se para Tyrion. — Tio! Vós ireis defender a honra do meu reino, não é verdade? Podeis montar o porco!
  As gargalhadas abateram-se sobre ele como uma onda. Tyrion Lannister não recordava ter-se posto em pé, nem trepado para a cadeira, mas deu por si empoleirado na mesa. O salão era uma mancha de rostos
lúbricos, iluminada pelos archotes. Torceu a cara na mais hedionda caricatura de um sorriso que os Sete Reinos já tinham visto.
  — Vossa Graça — gritou —, eu montarei o porco… mas só se vós montardes o cão!
  Joff carregou o sobrolho, confuso.
  — Eu? Eu não sou nenhum anão. Porquê eu?
  Meteste o pé direitinho na argola, Joff.
  — Ora, vós sois o único homem presente no salão que eu tenho a certeza de derrotar!
  Não poderia dizer o que era mais agradável; o instante de silêncio chocado, o vendaval de gargalhadas que se lhe seguiram, ou a expressão de fúria cega na cara do sobrinho. O anão regressou ao chão
com um salto, bastante satisfeito, e, quando voltou a olhar, Sor Ormund e Sor Meryn estavam a ajudar Joff a descer também. Quando viu que Cersei o fulminava com o olhar, Tyrion soprou-lhe um beijo.
  Foi um alívio quando os músicos começaram a tocar. Os minúsculos cavaleiros levaram o cão e a porca para fora do salão, os convidados regressaram aos seus tabuleiros de cabeça de porco, e Tyrion pediu
outra taça de vinho. Mas de súbito sentiu a mão de Sor Garlan na sua manga.
  — Senhor, atenção — avisou o cavaleiro. — O rei.
  Tyrion virou-se na cadeira. Joffrey estava quase em cima dele, rubro e cambaleante, fazendo saltar vinho sobre a borda do grande cálice nupcial dourado que trazia em ambas as mãos.
  — Vossa Graça — foi tudo o que teve tempo de dizer antes de o rei virar o cálice ao contrário por cima da sua cabeça. O vinho caiu-lhe sobre o rosto numa torrente vermelha. Empapou-lhe o cabelo, picou-lhe
nos olhos, queimou-lhe o ferimento, escorreu-lhe pelas bochechas e ensopou o veludo do seu gibão novo.
  — Que achas disto, Duende? — escarneceu Joffrey.
  Tyrion tinha os olhos em fogo. Bateu várias vezes no rosto com a parte de trás da manga e, pestanejando, tentou devolver clareza ao mundo.
  — Isso não foi correcto, Vossa Graça — ouviu Sor Garlan dizer em voz baixa.
  — De modo algum, Sor Garlan. — Tyrion não se atrevia a deixar que aquilo ficasse ainda mais feio do que já estava, ali não, com metade do reino a ver. — Não é um rei qualquer que pensaria em honrar
um humilde súbdito servindo-o do seu próprio cálice real. Uma pena que o vinho se tenha derramado.
  — Não se derramou — disse Joffrey, dotado de demasiada deselegância para aceitar a retirada que Tyrion lhe oferecera. — E também não vos estava a servir.
  A Rainha Margaery surgiu de súbito junto do cotovelo de Joffrey.
  — Meu querido rei — rogou a rapariga Tyrell —, vinde, regressai ao vosso lugar, há outro cantor à espera.
  — Alaric de Eysen — disse a Senhora Olenna Tyrell, apoiando-se na bengala e sem prestar mais atenção ao anão empapado em vinho do que a neta. — Tenho tanta esperança que ele nos toque “As Chuvas de
Castamere”. Já se passou uma hora, esqueci-me da melodia.
  — Além disso, Sor Addam quer fazer um brinde — disse Margaery. — Vossa Graça, por favor.
  — Não tenho vinho — declarou Joffrey. — Como é que posso beber num brinde se não tenho vinho? Tio Duende, vós podeis servir-me. Uma vez que não quereis justar, sereis o meu copeiro.
  — Será uma honra.
  — Não é para ser uma honra! — gritou Joffrey. — Dobrai-vos e apanhai o meu cálice. — Tyrion fez o que lhe era pedido, mas ao estender a mão para a pega, Joff pontapeou-lhe o cálice entre as pernas.
— Apanhai-o! Será que sois tão desastrado como feio? — Teve de se enfiar debaixo da mesa para achar aquela coisa. — Óptimo, agora enchei-o com vinho. — Pegou num jarro que uma criada transportava e encheu
a taça até três quartos. — Não, de joelhos, anão. — Ajoelhando, Tyrion ergueu a pesada taça, perguntando a si próprio se estaria prestes a tomar um segundo banho. Mas Joffrey pegou no cálice nupcial com
uma só mão, bebeu longamente e pousou-o na mesa. — Agora podeis erguer-vos, tio.
  Sentiu cãibras nas pernas ao tentar erguer-se, e quase voltou a cair. Tyrion teve de se agarrar a uma cadeira para se firmar. Sor Garlan estendeu-lhe uma mão. Joffrey soltou uma gargalhada, e Cersei
também. Depois foram outros. Não viu quem, mas ouviu-os.
  — Vossa Graça — a voz do Lorde Tywin estava impecavelmente correcta. — A tarte está a chegar. A vossa espada é necessária.
  — A tarte? — Joffrey pegou na mão da sua rainha. — Vinde, senhora, é a tarte.
  Os convidados puseram-se em pé, gritando, aplaudindo e batendo com as taças de vinho umas nas outras enquanto a grande tarte avançava lentamente ao longo do comprimento do salão, empurrada por meia
dúzia de radiantes cozinheiros. Tinha dois metros de largura, uma crosta e um tom dourado de castanho, e ouviam-se guinchos e batidas vindos lá de dentro.
  Tyrion voltou a subir para a cadeira. Tudo o que lhe faltava agora era que uma pomba lhe cagasse em cima para que o dia ficasse completo. O vinho atravessara o gibão e as roupas de baixo e sentia a
humidade contra a pele. Devia trocar de roupa, mas não era permitido a ninguém abandonar o banquete até chegar a altura de levar os noivos para a cama. Calculou que isso ainda estivesse a uns vinte ou
trinta pratos de distância.
  O Rei Joffrey e a sua rainha dirigiram-se à tarte em frente do estrado. Quando Joff puxou pela espada, Margaery pousou-lhe uma mão no braço para o deter.
  — A Lamento de Viúvas não se destina a cortar tartes.
  — É verdade. — Joffrey ergueu a voz. — Sor Ilyn, a vossa espada!
  Das sombras do fundo do salão surgiu Sor Ilyn Payne. O espectro no festim, pensou Tyrion enquanto observava o Magistrado do Rei a avançar, descarnado e sombrio. Era novo de mais para ter conhecido Sor
Ilyn antes de perder a língua. Teria sido um homem diferente nesse tempo, mas agora o silêncio faz tanto parte dele como aqueles olhos vazios, aquele lorigão ferrugento, e a espada longa que traz às costas.
  Sor Ilyn fez uma vénia perante o rei e a rainha, estendeu a mão por sobre o ombro e apresentou um metro e oitenta de ornamentada prata, cintilante de runas. Ajoelhou para oferecer a enorme lâmina a
Joffrey, com o cabo para a frente; pontos de fogo vermelho piscaram no copo em olhos de rubi, um bocado de vidro de dragão esculpido com forma de uma caveira sorridente.
  Sansa agitou-se na cadeira.
  — Que espada é aquela?
  Os olhos de Tyrion ainda lhe ardiam por causa do vinho. Pestanejou e voltou a olhar. A espada de Sor Ilyn era tão longa e larga como Gelo, mas era demasiado brilhante e prateada; o aço valiriano possuía
uma certa escuridão, uma espécie de fumo na sua alma. Sansa agarrou-lhe o braço.
  — Que fez Sor Ilyn à espada do meu pai?
  Devia ter mandado Gelo de volta a Robb Stark, pensou Tyrion. Olhou de relance para o pai, mas o Lorde Tywin observava o rei.
  Joffrey e Margaery juntaram as mãos para erguer a espada e a brandir, juntos, num arco prateado. Quando a crosta da tarte se quebrou, as pombas jorraram num turbilhão de penas brancas, espalhando-se
em todas as direcções, dirigindo-se às janelas e às vigas do telhado. Um rugido de deleite ergueu-se dos bancos, e os rabequistas e gaiteiros na galeria puseram-se a tocar uma melodia jovial. Joff tomou
a noiva nos braços, e fê-la girar alegremente.
  Um criado pousou uma fatia quente de tarte de pombo à frente de Tyrion e cobriu-a com uma colher de creme de limão. Naquela tarte os pombos estavam bem e verdadeiramente cozidos, mas não os achou mais
apetitosos do que os brancos que esvoaçavam pelo salão. Sansa também não comia.
  — Estais mortalmente pálida, senhora — disse Tyrion. — Precisais de respirar um pouco de ar fresco e eu preciso de um gibão lavado. — Ergueu-se e ofereceu-lhe um braço. — Vinde.
  Mas antes de conseguirem retirar-se, Joffrey regressou.
  — Tio, onde ides? Sois o meu copeiro, esqueceste-vos?
  — Preciso de vestir um trajo lavado, Vossa Graça. Dais-me licença?
  — Não. Gosto do aspecto que tendes. Servi-me o vinho.
  O cálice do rei encontrava-se na mesa, onde ele o deixara. Tyrion teve de voltar a subir para cima da cadeira para lhe chegar. Joff arrancou-lho das mãos e bebeu longa e profundamente, com a garganta
a agitar-se enquanto o vinho lhe escorria, púrpura, pelo queixo abaixo.
  — Senhor — disse Margaery —, devíamos regressar aos nossos lugares. O Lorde Buckler quer fazer um brinde à nossa saúde.
  — O meu tio não comeu a sua tarte de pombo. — Segurando o cálice com uma mão, Joff enfiou a outra na tarte de Tyrion. — Não comer a tarte dá má sorte — ralhou-lhe enquanto enchia a boca com pombo quente
e condimentado. — Vedes? É boa. — Cuspindo flocos de crosta, tossiu e serviu-se de outra mão-cheia. — Mas está seca. Precisa de ser empurrada para baixo. — Joff bebeu um trago de vinho e voltou a tossir,
com mais violência. — Quero ver, cof, como montais aquele, cof cof, porco, tio. Quero… — As suas palavras interromperam-se num ataque de tosse.
  Margaery olhou-o com preocupação.
  — Vossa Graça?
  — É, cof, a tarte, nad… cof, tarte. — Joff bebeu outro gole, ou tentou, mas o vinho veio todo fora quando outra onda de tosse o fez dobrar-se pela cintura. A cara dele estava a ficar vermelha. — Eu,
cof, não consigo, cof cof cof cof… — O cálice caiu-lhe da mão e escuro vinho tinto escorreu pelo estrado.
  — Ele está a sufocar — arquejou a Rainha Margaery.
  A avó pôs-se ao seu lado.
  — Ajudai o pobre rapaz! — guinchou a Rainha dos Espinhos, com uma voz que era dez vezes maior do que ela. — Palermas! Ireis ficar aí todos de boca aberta? Ajudai o vosso rei!
  Sor Garlan afastou Tyrion com um empurrão e pôs-se a bater nas costas de Joffrey. Sor Osmund Kettleblack rasgou o colarinho do rei. Um terrível som forte e agudo emergiu da garganta do rapaz, o som
de um homem que tentava sugar um rio através de um caniço; então parou, e isso foi ainda mais terrível.
  — Virai-o ao contrário! — berrou Mace Tyrrell para todos e para ninguém. — Virai-o ao contrário, sacudi-o pelos calcanhares!
  Uma voz diferente estava a gritar:
  — Água, dai-lhe um pouco de água! — O Alto Septão desatou a rezar ruidosamente. O Grande Meistre Pycelle gritou para alguém o ajudar a regressar aos seus aposentos, a fim de ir buscar as suas poções.
Joffrey pôs-se a arranhar a garganta, rasgando com as unhas fendas sangrentas na carne. Por baixo da pele, os músculos projectavam-se, duros como pedra. O Príncipe Tommen gritava e chorava.
  Ele vai morrer, compreendeu Tyrion. Sentiu-se curiosamente calmo, embora o pandemónio se encapelasse a toda a sua volta. Estavam de novo a bater nas costas de Joff, mas a cara dele só ficava mais escura.
Cães ladravam, crianças berravam, homens gritavam conselhos inúteis uns aos outros. Metade dos convidados do casamento estavam em pé, alguns empurrando-se para ver melhor; os outros corriam para as portas
na pressa de se irem embora.
  Sor Meryn abriu a boca ao rei para lhe enfiar uma colher pela goela abaixo. Quando o fez, os olhos do rapaz encontraram-se com os de Tyrion. Ele tem os olhos de Jaime. Só que nunca vira Jaime com uma
expressão tão assustada. O rapaz só tem treze anos. Joffrey fazia um som seco, uma espécie de estalido, tentando falar. Os seus olhos dilataram-se, brancos de terror, e ergueu uma mão… estendendo-a para
o tio, ou apontando… Estará a pedir-me perdão, ou julgará que posso salvá-lo?
  — Nããããão — uivou Cersei. — Pai, ajudai-o, alguém que o ajude, o meu filho, o meu filho…
  Tyrion deu por si a pensar em Robb Stark. Em retrospectiva, o meu casamento está a parecer muito melhor. Tentou ver como Sansa estaria a acolher aquilo, mas a confusão no salão era tanta que não conseguiu
encontrá-la. Mas os seus olhos caíram sobre o cálice nupcial, esquecido no chão. Inclinou-se e apanhou-o. No fundo ainda havia centímetro e meio de vinho de um profundo tom de púrpura. Tyrion reflectiu
por um momento, e depois despejou-o no chão.
  Margaery Tyrell chorava nos braços da avó enquanto a velha dizia: “Coragem, coragem”. A maior parte dos músicos fugira, mas o último flautista na galeria soprava uma endecha. Nas traseiras da sala de
trono, rompera uma rixa em volta das portas, e os convidados tropeçavam uns nos outros. Os homens de mantos dourados de Sor Addam entraram para restaurar a ordem. Havia convidados que se precipitavam
para a noite, alguns a chorar, outros a tropeçar e a vomitar, outros brancos de medo. Ocorreu tardiamente a Tyrion que talvez fosse sensato sair também.
  Quando ouviu o grito de Cersei, soube que terminara.
  Devia sair. Já. Em vez disso bamboleou-se na direcção da irmã.
  Ela estava sentada numa poça de vinho, embalando o corpo do filho. Tinha o vestido rasgado e manchado e o rosto branco como cal. Um cão negro e magro aproximou-se dela, farejando o cadáver de Joffrey.
  — O rapaz está morto, Cersei — disse o Lorde Tywin. Pousou a mão enluvada no ombro da filha enquanto um dos guardas enxotava o cão. — Larga-o. Deixa-o partir. — Ela não ouviu. Foram precisos dois homens
da Guarda Real para lhe desprender os dedos de modo a que o corpo do Rei Joffrey Baratheon deslizasse, sem forças e sem vida, para o chão.
  O Alto Septão ajoelhou a seu lado.
  — Pai no Céu, julgai o nosso bom Rei Joffrey com justeza — entoou, dando início à prece pelos mortos. Margaery Tyrell desatou a soluçar, e Tyrion ouviu a mãe, a Senhora Alerie, dizer:
  — Ele engasgou-se, querida. Engasgou-se com a tarte. Não teve nada a ver contigo. Ele engasgou-se. Todos vimos.
  — Ele não se engasgou. — A voz de Cersei era tão penetrante como a espada de Sor Ilyn. — O meu filho foi envenenado. — Olhou para os cavaleiros brancos, em pé, impotentes, à volta dela. — Guarda Real,
cumpri o vosso dever.
  — Senhora? — disse Sor Loras Tyrell, sem compreender.
  — Prendei o meu irmão — ordenou-lhe. — Foi ele quem fez isto, o anão. Ele e a sua mulherzinha. Eles mataram o meu filho. Capturai-os! Capturai-os a ambos!
 
 SANSA
  Longe, do outro lado da cidade, um sino começou a repicar.
  Sansa sentiu-se como se estivesse num sonho.
  — Joffrey está morto — disse às árvores, para ver se isso a acordaria.
  Não estava morto quando ela abandonara a sala do trono. Mas estava de joelhos, arranhando a garganta, rasgando a sua própria pele enquanto lutava por respirar. A cena fora demasiado terrível para observar,
e ela virara-se e fugira, soluçando. A Senhora Tanda também fugira.
  — Tendes um bom coração, senhora — dissera a Sansa. — Não é qualquer donzela que choraria assim por um homem que a pôs de parte e a casou com um anão.
  Um bom coração. Eu tenho um bom coração. Um riso histérico trepou-lhe pela garganta, mas Sansa sufocou-o. Os sinos tocavam, lentos e fúnebres. Ressoando, ressoando, ressoando. Tinham tocado da mesma
forma pelo Rei Robert. Joffrey estava morto, ele estava morto, estava morto, morto, morto. Estava a chorar porquê, se o que queria era dançar? Seriam lágrimas de alegria?
  Encontrou a roupa onde a escondera, na noite da antevéspera. Sem aias que a ajudassem, levou mais tempo do que devia a desatar os atilhos do vestido. Tinha as mãos estranhamente desajeitadas, embora
não estivesse tão assustada como devia estar.
  — Os deuses são cruéis por o levarem tão jovem e bonito, no seu próprio banquete de casamento — dissera a Senhora Tanda.
  Os deuses são justos, pensou Sansa. Robb morrera também num banquete de casamento. Era por Robb que chorava. Por ele e por Margaery. Pobre Margaery, duas vezes casada e duas vezes viúva. Sansa despiu
uma manga, empurrou o vestido para baixo e contorceu-se para fora dele. Enrolou-o numa bola, enfiou-o no tronco de um carvalho, e puxou a roupa que aí escondera, sacudindo-a. Vesti roupa quente, dissera-lhe
Sor Dontos, e roupa escura. Não tinha nada negro, por isso escolhera um vestido de grossa lã castanha. O corpete estava decorado com pérolas de água doce, porém. O manto há-de cobri-las. O manto era de
um profundo tom de verde, com um grande capuz. Enfiou o vestido pela cabeça e prendeu o manto, deixando embora o capuz em baixo, de momento. Também havia sapatos, simples e resistentes, com tacões rasos
e biqueira quadrada. Os deuses ouviram as minhas preces, pensou. Sentia-se tão atordoada, tão dentro de um sonho. A minha pele transformou-se em porcelana, em marfim, em aço. As mãos moviam-se rigidamente,
desajeitadamente, como se nunca antes lhe tivessem soltado o cabelo. Por um momento desejou que Shae ali estivesse, para a ajudar com a rede.
  Quando a libertou, o seu longo cabelo ruivo caiu em cascata pelas costas e sobre os ombros. A rede de prata tecida pendia-lhe dos dedos, com o fino metal a brilhar suavemente e as pedras negras ao luar.
Ametistas negras de Asshai. Uma delas desaparecera. Sansa ergueu a rede para ver melhor. Havia uma mancha escura no encaixe de prata de onde a pedra caíra.
  Um súbito terror encheu-a. O coração martelou-lhe contra as costelas, e por um instante prendeu a respiração. Porque estou tão assustada? É só uma ametista, uma ametista negra de Asshai, nada mais.
Devia estar solta no engaste, só isso. Estava solta e caiu, e agora jaz num sítio qualquer da sala do trono, ou no pátio, a menos que…
  Sor Dontos dissera que a rede para o cabelo era mágica, que a levaria para casa. Dissera-lhe que devia usá-la naquela noite, no banquete de casamento de Joffrey. O fio de prata estendia-se, apertado,
sobre os nós dos seus dedos. Esfregou com o polegar o buraco onde a pedra estivera. Tentou parar, mas os dedos não lhe pertenciam. O polegar era atraído para o buraco, como a língua é atraída para um
dente em falta. Que tipo de magia? O rei estava morto, o rei cruel que fora o seu galante príncipe mil anos antes. Se Dontos mentira acerca da rede para o cabelo, teria mentido também sobre o resto? E
se não vier? E se não houver nenhum navio, nenhum barco no rio, nenhuma fuga? O que lhe aconteceria se assim fosse?
  Ouviu um ténuo restolhar de folhas, e enfiou a rede de prata bem fundo no bolso do manto.
  — Quem está aí? — gritou. — Quem é? — O bosque sagrado encontrava-se escuro e sombrio, e os sinos carregavam Joff para a sepultura.
  — Eu. — Ele saiu a cambalear de debaixo das árvores, a cair de bêbado. Pegou-lhe no braço para se equilibrar. — Doce Jonquil, eu vim. O vosso Florian veio, não tenhais medo.
  Sansa afastou-se do toque dele.
  — Dissestes que eu devia usar a rede para o cabelo. A rede de prata com… que tipo de pedras são estas?
  — Ametistas. Ametistas negras de Asshai, senhora.
  — Elas não são ametistas nenhumas. São? São? Mentistes.
  — Ametistas negras — jurou ele. — Havia magia nelas.
  — Havia assassínio nelas!
  — Mais baixo, senhora, mais baixo. Assassínio não. Ele engasgou-se com a tarte de pombo. — Dontos gargalhou. — Oh, tarte saborosa, tão saborosa. Prata e pedras, é tudo o que era, prata, pedras e magia.
  Os sinos repicavam e o vento fazia um ruído que era igual ao que ele fizera ao tentar inspirar uma golfada de ar.
  — Envenenaste-lo. Foi isso. Tirastes uma pedra do meu cabelo…
  — Chiu, sereis a nossa morte. Eu nada fiz. Vinde, temos de ir, eles procurar-vos-ão. O vosso esposo foi preso.
  — Tyrion? — disse ela, chocada.
  — Tendes outro esposo? O Duende, o tio anão, ela pensa que foi ele a matar o rei. — Dontos pegou-lhe na mão e puxou-a. — Por aqui, temos de ir, depressa, não tenhais medo.
  Sansa seguiu-o sem resistir. Nunca consegui tolerar os choros das mulheres, dissera Joff uma vez, mas a mãe dele era a única mulher que agora chorava. Nas histórias da Velha Ama os gramequins fabricavam
coisas mágicas que eram capazes de fazer com que um desejo se tornasse realidade. Terei desejado a sua morte?, perguntou a si própria, antes de se lembrar que já tinha idade para não acreditar em gramequins.
  — Tyrion envenenou-o? — Sabia que o seu esposo anão odiara o sobrinho. Poderia realmente tê-lo matado? Saberia da minha rede para o cabelo, das ametistas negras? Ele levou vinho a Joff. Como era possível
sufocar alguém pondo uma ametista no seu vinho? Se Tyrion o fez, eles julgarão que eu também desempenhei um papel, compreendeu com um sobressalto de medo. E porque não? Eram marido e mulher, e Joff matara-lhe
o pai e troçara dela a propósito da morte do irmão. Uma carne, um coração, uma alma.
  — Silêncio agora, doçura — disse Dontos. — Fora do bosque sagrado, não podemos fazer um som. Puxai o capuz e escondei o rosto. — Sansa anuiu e fez o que ele dizia.
  O homem estava tão bêbado que por vezes Sansa teve de lhe dar o braço para impedir que caísse. Os sinos tocavam do outro lado da cidade, com um número cada vez maior a juntar-se aos restantes. Manteve
a cabeça baixa e permaneceu nas sombras, logo atrás de Dontos. Ao descer a escada em espiral, ele caiu de joelhos e vomitou. Meu pobre Florian, pensou, enquanto lhe limpava a boca com uma manga larga.
Vesti roupa escura, dissera ele, mas sob o manto castanho com capuz trazia o seu velho sobretudo; riscas horizontais em vermelho e rosa sob um chefe negro carregado com três coroas de ouro, as armas da
Casa Hollard.
  — Porque estais a usar o vosso sobretudo? Joff decretou que seria a vossa morte se fôsseis apanhado outra vez vestido como um cavaleiro, ele… oh… — Já nada do que Joff decretara importava.
  — Quis ser um cavaleiro. Pelo menos para isto. — Dontos pôs-se de novo em pé e pegou-lhe no braço. — Vinde. Ficai agora em silêncio, nada de perguntas.
  Continuaram a descer a escada em espiral e atravessaram um pequeno pátio rodeado de altas paredes. Sor Dontos abriu com um empurrão uma porta pesada e acendeu um círio. Encontravam-se dentro de uma
longa galeria. Ao longo das paredes erguiam-se armaduras vazias, escuras e poeirentas, com os elmos coroados com fileiras de escamas que lhes desciam pelas costas. Enquanto passavam rapidamente por elas,
a luz do círio fazia com que as sombras de cada escama se estendessem e torcessem. Os cavaleiros ocos estão a transformar-se em dragões, pensou.
  Mais uma escada levou-os a uma porta de carvalho reforçada com ferro.
  — Sede agora forte, minha Jonquil, estais quase lá. — Quando Dontos ergueu a tranca e abriu a porta, Sansa sentiu uma brisa fria no rosto. Passou através de três metros e meio de muralha, e então viu-se
fora do castelo, em pé, no topo da falésia. Em baixo ficava o rio, em cima o céu, e um era tão negro como o outro.
  — Temos de descer — disse Sor Dontos. — Lá em baixo está um homem à espera para nos levar num bote até ao navio.
  — Eu vou cair. — Bran caíra, e ele adorara trepar.
  — Não, não caireis. Há uma espécie de escada, uma escada secreta, entalhada na pedra. Vede, podeis tacteá-la, senhora. — Pôs-se de joelhos com ela e fê-la debruçar-se sobre a borda da falésia, apalpando
com os dedos até encontrar o degrau cortado na face do penhasco. — É quase tão bom como degraus de uma escada de mão.
  Mesmo assim, a descida era muito grande.
  — Não consigo.
  — Tem de ser.
  — Não há outro caminho?
  — O caminho é este. Não será muito difícil para uma mulher jovem e forte como vós. Agarrai-vos bem e nunca olheis para baixo, e chegareis ao fundo num instante. — Os olhos dele brilhavam. — O vosso
pobre Florian é gordo, velho e bêbado, eu é que devia estar assustado. Costumava cair do cavalo, esquecestes-vos? Foi assim que começámos. Estava bêbado e caí do cavalo e Joffrey quis a minha tola cabeça,
mas vós salvastes-me. Vós salvastes-me, querida.
  Ele está a chorar, apercebeu-se Sansa.
  — E agora fostes vós a salvar-me.
  — Só se descerdes. Se não, matei-nos a ambos.
  Foi ele, pensou ela. Ele matou Joffrey. Tinha de ir, tanto por ele como por si própria.
  — Ide à frente, sor. — Se ele caísse, não o queria a cair sobre a sua cabeça e a arrastá-los a ambos pela falésia abaixo.
  — Como quiserdes, senhora. — Deu-lhe um beijo húmido e passou desajeitadamente as pernas pela borda do precipício, esperneando até encontrar um apoio para os pés. — Deixai-me descer um pouco, e segui-me
depois. Vireis? Tendes de o jurar.
  — Irei — prometeu.
  Sor Dontos desapareceu. Sansa ouvia-o a bufar e arquejar enquanto começava a descida. Pôs-se à escuta do repique dos sinos, contando-os. Ao chegar a dez, baixou-se cautelosamente sobre a borda do penhasco,
tacteando com os dedos dos pés até encontrar um lugar para eles descansarem. As muralhas do castelo elevavam-se, grandes, por cima de si, e por um momento nada desejou mais do que içar-se e correr de
volta para os seus quentes aposentos na Fortaleza das Cozinhas. Sê brava, disse a si própria. Sê brava, como uma senhora numa canção.
  Sansa não se atreveu a olhar para baixo. Manteve os olhos postos na face da falésia, assegurando-se de cada passo antes de estender os pés para o seguinte. A pedra era áspera e fria. Por vezes sentia
os dedos a deslizar, e os apoios para as mãos não eram espaçados de uma forma tão regular como teria preferido. Os sinos não queriam parar de tocar. Antes de chegar a meio caminho, tinha já os braços
a tremer, e soube que ia cair. Mais um passo, disse a si própria, mais um passo. Tinha de continuar em movimento. Se parasse, nunca mais se moveria, e a alvorada iria encontrá-la ainda agarrada à falésia,
gelada de medo. Mais um passo, e mais um passo.
  O chão apanhou-a de surpresa. Tropeçou e caiu, com o coração aos saltos. Quando rolou de costas e fitou o local de onde viera, sentiu a cabeça a rodar, entontecida, e os dedos agarraram-se à terra.
Consegui. Consegui. Não caí, consegui descer e agora vou para casa.
  Sor Dontos ajudou-a a pôr-se em pé.
  — Por aqui. Agora silêncio, silêncio, silêncio. — Permaneceu perto das sombras que jaziam, negras e espessas, sob os penhascos. Felizmente não tiveram de ir longe. Cinquenta metros a jusante, um homem
estava sentado num pequeno esquife, meio escondido pelos restos de uma grande galé que dera ali à costa e ardera. Dontos coxeou até ele, bufando. — Oswell?
  — Nada de nomes — disse o homem. — Para o barco. — Estava sentado, enrolado sobre os remos, um velho, alto e de membros esguios, com longos cabelos brancos, um grande nariz adunco e os olhos ensombrados
por um capuz. — Entrai, e depressa — resmungou. — Temos de nos pôr a caminho.
  Depois de ambos estarem a salvo a bordo, o encapuzado fez deslizar as pás dos remos para dentro de água e entregou as costas aos remos, fazendo-os avançar para o canal. Por trás deles, os sinos continuavam
a repicar a morte do rei rapaz. Tinham o rio escuro todo para si.
  Com remadas lentas, constantes e rítmicas, abriram caminho para jusante, deslizando por cima das galés afundadas, passando por mastros partidos, cascos queimados e velas rasgadas. Os toletes tinham
sido revestidos de panos, e o barco movia-se quase sem um som. Uma névoa erguia-se sobre a água. Sansa viu a muralha em ameia de uma das torres do guincho do Duende, erguendo-se na margem, mas a grande
corrente tinha sido descida e passaram sem impedimentos pelo local onde mil homens tinham ardido. A costa afastou-se, o nevoeiro tornou-se mais denso, o som dos sinos começou a atenuar-se. Por fim mesmo
as luzes desapareceram, perdidas algures atrás deles. Estavam na Baía da Água Negra, e o mundo reduziu-se a água escura, névoa soprada pelo vento e o companheiro silencioso corcovado sobre os remos.
  — Temos de ir até muito longe? — perguntou.
  — Nada de falar. — O remador era velho, mas mais forte do que parecia, e a sua voz era feroz. Havia algo estranhamente familiar no seu rosto, embora Sansa não conseguisse identificar o que seria.
  — Não é longe. — Sor Dontos tomou-lhe a mão na sua e esfregou-a com gentileza. — O vosso amigo está perto, à vossa espera.
  — Nada de falar! — rosnou de novo o remador. — O som chega longe sobre a água, Sor Bobo.
  Desconcertada, Sansa mordeu o lábio e encolheu-se em silêncio. O resto foi remar, remar, remar.
  O céu do oriente mostrava já o primeiro vago indício da alvorada quando Sansa viu por fim uma silhueta fantasmagórica na escuridão que se estendia em frente; uma galé mercante, com as velas enroladas,
deslocando-se lentamente, movida por uma única fileira de remos. Quando se aproximaram, viu a figura de proa do navio, um tritão com uma coroa dourada a soprar um grande búzio. Ouviu uma voz gritar, e
a galé deu lentamente a volta.
  Quando se puseram ao lado da galé, uma escada de corda foi atirada por esta sobre a amurada. O remador puxou os remos para o barco e ajudou Sansa a erguer-se.
  — Agora para cima. Vá lá, menina, eu seguro-vos. — Sansa agradeceu-lhe pela gentileza, mas só recebeu um grunhido em resposta. Foi muito mais fácil subir a escada de corda do que fora descer a falésia.
O remador Oswell seguiu logo atrás dela, ao passo que Sor Dontos permaneceu no barco.
  Dois marinheiros esperavam junto à amurada para a ajudar a subir para o convés. Sansa tremia.
  — Ela tem frio — ouviu alguém dizer. O homem tirou o manto e aconchegou-o em volta dos seus ombros. — Pronto, está melhor, senhora? Descansai, que o pior terminou.
  Conhecia a voz. Mas ele está no Vale, pensou. Sor Lothor Brune estava a seu lado com um archote.
  — Lorde Petyr — chamou Dontos do barco. — Tenho de remar de volta, antes que pensem em procurar por mim.
  Petyr Baelish pôs uma mão na amurada.
  — Mas primeiro ireis querer o pagamento. Dez mil dragões, não foi?
  — Dez mil. — Dontos esfregou a boca com as costas da mão. — Conforme prometestes, senhor.
  — Sor Lothor, a recompensa.
  Lothor Brune baixou o archote. Três homens aproximaram-se do alcatrate, ergueram bestas e dispararam. Um dardo atingiu Dontos no peito quando ele olhou para cima, penetrando através do remate esquerdo
do seu sobretudo. Os outros rasgaram garganta e barriga. Aconteceu tão depressa que nem Dontos nem Sansa tiveram tempo de gritar. Quando terminou, Lothor Brune atirou o archote para cima do cadáver. O
pequeno barco ardia violentamente quando a galé se afastou.
  — Mataste-lo. — Agarrando-se à amurada, Sansa virou-se e vomitou. Teria fugido aos Lannister para cair em coisa pior?
  — Minha senhora — murmurou o Mindinho —, a vossa mágoa é desperdiçada num homem como aquele. Era um bêbado, e não era amigo de ninguém.
  — Mas ele salvou-me.
  — Ele vendeu-vos em troca da promessa de dez mil dragões. O vosso desaparecimento irá fazê-los suspeitar de vós quanto à morte de Joffrey. Os homens de mantos dourados irão à caça, e o eunuco fará tinir
a sua bolsa. Dontos… bem, ouviste-lo. Vendeu-vos por ouro, e quando o bebesse, ter-vos-ia voltado a vender. Um saco de dragões compra o silêncio de um homem durante algum tempo, mas um dardo bem colocado
compra-o para sempre. — Fez um sorriso triste. — Tudo o que ele fez, fê-lo às minhas ordens. Não me atrevi a travar abertamente amizade convosco. Quando ouvi contar como lhe salvastes a vida no torneio
de Joff, soube que ele seria o instrumento perfeito.
  Sansa sentiu-se agoniada.
  — Ele disse que era o meu Florian.
  — Por acaso lembrais-vos do que vos disse naquele dia em que o vosso pai se sentou no Trono de Ferro?
  O momento voltou-lhe à memória com grande clareza.
  — Dissestes-me que a vida não era uma canção. Que um dia aprenderia isso para meu pesar. — Sentiu lágrimas nos olhos, mas não saberia dizer se chorava por Sor Dontos Hollard, por Joff, por Tyrion ou
por si própria. — É tudo mentiras, desde sempre e para sempre, tudo e todos?
  — Quase todos. Menos eu e vós, claro. — Sorriu. — Vinde esta noite ao bosque sagrado, se quiserdes ir para casa.
  — A nota… éreis vós?
  — Teve de ser o bosque sagrado. Nenhum outro local da Fortaleza Vermelha está a salvo dos passarinhos do eunuco… ou ratazaninhas, como eu lhes chamo. No bosque sagrado há árvores em vez de paredes.
Céu no lugar de tectos. Raízes, terra e pedras em vez de soalhos. As ratazanas não têm lugar por onde correr. As ratazanas precisam de esconder-se, para que os homens não lhes espetem espadas. — O Lorde
Petyr pegou-lhe no braço. — Permiti que vos mostre a vossa cabina. Tivestes um dia longo e penoso, eu sei. Tendes de estar cansada.
  O barquinho já não era mais do que um turbilhão de fumo e fogo atrás deles, quase perdido na imensidão do mar da alvorada. Não havia regresso; o seu único caminho era em frente.
  — Muito cansada — admitiu.
  Enquanto a levava para baixo, ele disse:
  — Falai-me do banquete. A rainha dedicou-se tanto. Os cantores, os malabaristas, o urso dançarino… o pequeno senhor vosso esposo gostou dos meus anões combatentes?
  — Vossos?
  — Tive de os ir mandar buscar a Bravos e de os esconder num bordel até ao casamento. A despesa só foi excedida pelo incómodo. É surpreendentemente difícil esconder um anão, e Joffrey… podeis levar um
rei até à água, mas com Joffrey era preciso andar a esparrinhá-la por todo o lado antes que ele entendesse que a podia beber. Quando lhe falei da minha pequena surpresa, Sua Graça disse, “Porque hei-de
querer uns anões feios no meu banquete? Detesto anões”. Tive de lhe pegar no ombro e sussurrar, “Mas não tanto como o vosso tio os detestará”.
  O convés balançou debaixo dos pés dela, e Sansa sentiu-se como se o próprio mundo se tivesse tornado instável.
  — Eles pensam que Tyrion envenenou Joffrey. Sor Dontos disse que o prenderam.
  O Mindinho sorriu.
  — A viuvez ficar-vos-á bem, Sansa.
  A ideia agitou-lhe a barriga. Podia nunca mais ser obrigada a partilhar uma cama com Tyrion. Isso era o que queria… não era?
  A cabina era baixa e apertada, mas fora posto um colchão de penas no estreito beliche a fim de o deixar mais confortável, e grossas peles foram empilhadas por cima.
  — É pequeno, eu sei, mas não devereis ficar muito desconfortável. — O Mindinho indicou uma arca de cedro sob a vigia. — Achareis lá dentro roupa lavada. Vestidos, roupa de baixo, meias quentes, um manto.
Temo que não passe de lã e linho. Vestuário indigno de uma donzela tão bela, mas servirá para vos manter seca e limpa até que vos possamos arranjar algo melhor.
  Ele mandou preparar tudo isto para mim.
  — Senhor, eu… eu não compreendo… Joffrey deu-vos Harrenhal, fez de vós Senhor Supremo do Tridente… porquê…
  — Porque haveria de querê-lo morto? — O Mindinho encolheu os ombros. — Não tive nenhum motivo. Além disso, estou a mil léguas de distância, no Vale. Mantende sempre os vossos inimigos confusos. Se nunca
estiverem seguros de quem sois ou do que quereis, não podem saber o que é provável fazerdes em seguida. Por vezes a melhor maneira de os confundir é fazer coisas que não têm nenhum fito, ou até que parecem
jogar contra vós. Lembrai-vos disto, Sansa, quando começardes a jogar o jogo.
  — Que… que jogo?
  — O único jogo. O jogo dos tronos. — Afastou uma madeixa do cabelo dela. — Já tendes idade para saber que a vossa mãe e eu éramos mais do que amigos. Houve uma época em que a Cat era tudo o que eu desejava
neste mundo. Atrevi-me a sonhar com a vida que podíamos ter e os filhos que ela me daria… mas ela era filha de Correrrio, e de Hoster Tully. Família, Dever, Honra, Sansa. Família, Dever, Honra significavam
que eu nunca poderia obter a sua mão. Mas ela deu-me algo melhor, um presente que uma mulher não pode dar mais do que uma vez. Como poderia voltar as costas à sua filha? Num mundo melhor, poderias ter
sido minha, não de Eddard Stark. A minha leal e adorada filha… Afasta Joffrey da cabeça, querida. Dontos, Tyrion, todos. Nunca mais te incomodarão. Agora estás em segurança, e isso é tudo o que importa.
Estás a salvo comigo, e a caminho de casa.
 
 JAIME
  O rei está morto, disseram-lhe, sem saber que Joffrey não era só seu soberano, mas também seu filho.
  — O Duende abriu-lhe a goela com um punhal — declarou um vendedor ambulante na estalagem à beira da estrada onde passaram a noite. — Bebeu-lhe o sangue num grande cálice de ouro. — O homem não foi mais
capaz de reconhecer o cavaleiro barbudo e maneta com o grande morcego no escudo do que qualquer um dos outros, portanto disse coisas que de outro modo poderia ter engolido, caso soubesse quem estava a
ouvi-lo.
  — Foi veneno o que despachou a coisa — insistiu o estalajadeiro. — A cara do rapaz ficou preta que nem uma ameixa.
  — Que o Pai o julgue com justiça — murmurou um septão.
  — A mulher do anão tratou do assassínio com ele — jurou um arqueiro vestido com a libré do Lorde Rowan. — Depois desapareceu do salão numa nuvem de enxofre, e um lobo gigante fantasma foi visto a percorrer
a Fortaleza Vermelha, com sangue a pingar das maxilas.
  Jaime ouviu tudo sentado e em silêncio, deixando-se cobrir pelas palavras, com um corno de cerveja esquecido na mão boa. Joffrey. O meu sangue. O meu primogénito. O meu filho. Tentou chamar à memória
a cara do rapaz, mas os seus traços teimavam em transformar-se nos de Cersei. Ela deverá estar de luto, com o cabelo despenteado e os olhos vermelhos de chorar, a boca a tremer enquanto tenta falar. Voltará
a chorar quando me vir, embora lute contra as lágrimas. A irmã raramente chorava, excepto quando estava com ele. Não conseguia suportar que outros a julgassem fraca. Só ao gémeo mostrava as feridas. Ela
procurará em mim conforto e vingança.
  Cavalgaram duramente no dia seguinte, por insistência de Jaime. O filho estava morto, e a irmã precisava dele.
  Quando viu a cidade à sua frente, com as torres de vigia escuras contra o ocaso que se aprofundava, Jaime Lannester aproximou-se a meio galope de Walter Pernas-d’Aço, que seguia atrás de Nage e da bandeira
de paz.
  — Que fedor horrível é aquele? — protestou o nortenho.
  A morte, pensou Jaime, mas disse:
  — Fumo, suor e merda. Porto Real, em suma. Se tiverdes um bom nariz, podereis também cheirar a traição. Nunca tínheis cheirado uma cidade?
  — Cheirei Porto Branco. Nunca fedeu assim.
  — Porto Branco está para Porto Real como o meu irmão Tyrion está para Sor Gregor Clegane.
  Nage subiu uma pequena colina à frente deles, com a bandeira de paz de sete pontas a erguer-se e virar-se ao vento, e a estrela polida de sete pontas a cintilar brilhantemente no topo do mastro. Veria
em breve Cersei, e também Tyrion, e o pai. O meu irmão poderia realmente ter matado o rapaz? Jaime achava difícil acreditar naquilo.
  Sentia-se curiosamente calmo. Sabia que era suposto que os homens enlouquecessem de desgosto quando os filhos morriam. Era suposto que arrancassem o cabelo, que amaldiçoassem os deuses e jurassem rubra
vingança. Então porque seria que sentia tão pouco? O rapaz viveu e morreu acreditando que Robert Baratheon era o seu pai.
  Jaime vira-o nascer, isso era certo, embora mais por Cersei do que pela criança. Mas nunca lhe pegara ao colo.
  — Que imagem daria? — avisara-o a irmã quando as mulheres finalmente os deixaram. — Já é suficientemente mau que Joff se pareça contigo sem que te babes por cima dele. — Jaime cedera quase sem luta.
O rapaz fora uma coisinha cor-de-rosa e estridente que exigia demasiado do tempo de Cersei, do amor de Cersei e dos seios de Cersei. Que Robert ficasse com ele.
  E agora está morto. Imaginou Joff jazendo imóvel e frio, com um rosto negro de veneno, e continuou a não sentir nada. Talvez fosse o monstro que o acusavam de ser. Se o Pai no Céu descesse para lhe
oferecer de volta o filho ou a mão, Jaime sabia qual das coisas escolheria. Afinal, tinha um segundo filho, e semente bastante para muitos mais. Se Cersei quiser outro filho, eu dou-lho… e desta vez hei-de
pegar-lhe ao colo e que os Outros carreguem quem não gostar. Robert apodrecia na sua sepultura, e Jaime estava farto de mentiras.
  Virou-se abruptamente e galopou para trás, ao encontro de Brienne. Só os deuses sabem porque me incomodo. Ela é a criatura menos sociável que tive o infortúnio de conhecer. A rapariga seguia bem atrás
e cerca de um metro desviada para o lado, como que para proclamar que não fazia parte do grupo. Ao longo do caminho tinham encontrado roupas de homem para ela; uma túnica aqui, uma capa ali, um par de
bragas e um manto com capuz, até uma velha placa de peito em ferro. Parecia mais confortável vestida de homem, mas nunca nada faria com que parecesse bonita. Nem feliz. Uma vez fora de Harrenhal, a sua
habitual teimosia casmurra rapidamente se voltara a instalar.
  — Quero de volta as minhas armas e armadura — insistira.
  — Oh, com certeza, que vos tenhamos de novo coberta de aço — respondera Jaime. — Especialmente um elmo. Ficaremos todos mais felizes se mantiverdes a boca fechada e a viseira em baixo.
  Pelo menos isso Brienne podia fazer, mas os seus silêncios carrancudos depressa começaram a desgastar-lhe tanto o bom humor como as constantes tentativas de Qyburn para se insinuar. Nunca pensei que
daria por mim com saudades da companhia de Cleos Frey, que os deuses me ajudem. Começava a desejar tê-la deixado para o urso.
  — Porto Real — anunciou Jaime quando a encontrou. — A nossa viagem terminou, senhora. Cumpristes o vosso voto, e entregastes-me em Porto Real. Inteiro menos uns quantos dedos e uma mão.
  Os olhos de Brienne mostraram-se indiferentes.
  — Isso foi apenas metade do meu voto. Disse à Senhora Catelyn que lhe levaria de volta as filhas. Ou Sansa, pelo menos. E agora…
  Ela nunca conheceu Robb Stark, e no entanto o desgosto que sente por ele é mais profundo do que o meu por Joff. Ou talvez fosse pela Senhora Catelyn que fazia luto. Essa notícia chegara-lhes em Bosque
Malhado, pela boca de um cavaleiro corado que mais parecia uma banheira chamado Sor Bertram Beesbury, cujas armas eram três colmeias em fundo listado de negro e amarelo. Uma companhia de homens do Lorde
Piper passara por Bosque Malhado no dia anterior, dissera-lhes Beesbury, correndo para Porto Real sob a sua bandeira de paz.
  — Com o Jovem Lobo morto, Piper não viu objectivo em continuar a lutar. Tem o filho cativo nas Gémeas. — Brienne escancarara a boca como uma vaca prestes a sufocar com o bolo, e assim coubera a Jaime
deslindar a história do Casamento Vermelho.
  — Todos os grandes senhores têm vassalos insubmissos que lhes invejam a posição — dissera-lhe depois. — O meu pai tinha os Reyne e os Tarbeck, os Tyrell têm os Florent, Hoster Tully tinha Walder Frey.
Só a força mantém homens assim nos seus lugares. No momento em que lhes cheira a fraqueza… durante a Idade dos Heróis, os Bolton costumavam esfolar os Stark e usar as suas peles como mantos. — Ela fizera
uma expressão tão infeliz que Jaime quase dera por si a desejar confortá-la.
  Desde esse dia Brienne agira como alguém que estivesse meio morto. Nem chamar-lhe “rapariga” conseguia provocar uma resposta. A força dela desapareceu. A mulher fizera cair um rochedo sobre Robin Ryger,
batalhara contra um urso com uma espada de torneio, arrancara à dentada a orelha de Vargo Hoat e lutara com Jaime até à exaustão… mas agora encontrava-se quebrada, acabada.
  — Eu falo com o meu pai para vos devolver a Tarth, se isso vos agradar — disse-lhe. — Ou, se preferirdes ficar, talvez possa arranjar-vos alguma posição na corte.
  — Como senhora acompanhante da rainha? — disse ela sem interesse.
  Jaime recordou o aspecto dela naquele vestido de cetim cor-de-rosa, e tentou não imaginar o que a irmã poderia dizer de uma tal acompanhante.
  — Talvez um posto na Patrulha da Cidade…
  — Não servirei com perjuros e assassinos.
  Então porque quiseste prender uma espada à cintura?, podia ter dito, mas reprimiu as palavras.
  — Como queirais, Brienne. — Com uma só mão, deu meia volta ao cavalo e deixou-a para trás.
  O Portão dos Deuses estava aberto quando lá chegaram, mas havia duas dúzias de carros alinhados ao longo da berma da estrada, carregados com cascos de cidra, barris de maçãs, fardos de feno, e algumas
das maiores abóboras que Jaime já vira. Quase todas as carroças tinham os seus próprios guardas; homens de armas ostentando os símbolos de fidalgos menores, mercenários vestidos de cota de malha e couro
fervido, por vezes apenas um filho de agricultor de cara rosada, agarrado a uma lança de fabrico caseiro com uma ponta endurecida pelo fogo. Jaime sorriu-lhes a todos enquanto passavam a trote. Ao portão,
os homens de mantos dourados recebiam moedas de cada um dos condutores antes de mandarem avançar as carroças.
  — O que é isto? — quis saber o Pernas d’Aço.
  — Eles têm de pagar pelo direito a vender dentro da cidade. Por ordem da Mão do Rei e do mestre da moeda.
  Jaime olhou para a longa fila de carroças, carros de mão e cavalos carregados.
  — E mesmo assim fazem bicha para pagar?
  — Há bom dinheiro a fazer aqui, agora que a luta terminou — disse-lhes alegremente o moleiro da carroça mais próxima. — São os Lannister que dominam agora a cidade, o velho Lorde Tywin do Rochedo. Dizem
que ele caga prata.
  — Ouro — corrigiu secamente Jaime. — E o Mindinho cunha a coisa a partir de verga-de-ouro, garanto.
  — Agora o mestre da moeda é o Duende — disse o capitão do portão. — Ou era, até o prenderem por assassinar o rei. — O homem examinou os nortenhos com suspeita. — Quem sois vós?
  — Homens do Lorde Bolton, para falar com a Mão do Rei.
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                                          CONTINUA
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O capitão olhou de relance Nage com a sua bandeira de paz.
  — Vindes dobrar o joelho, quereis vós dizer. Não sois os primeiros. Subi directamente ao castelo, e tratai de não causar sarilhos. — Mandou-os passar com um gesto e voltou a virar-se para as carroças.
  Se Porto Real chorava a morte do seu rei rapaz, Jaime nunca o teria deduzido pelo aspecto da cidade. Na Rua das Sementes um irmão mendicante vestido com uma túnica no fio rezava ruidosamente pela alma
de Joffrey, mas os transeuntes não lhe prestavam mais atenção do que teriam prestado a uma portada solta a bater ao vento. Noutros locais, as multidões habituais deslocavam-se dum lado para o outro; homens
de mantos dourados e cota de malha negra, ajudantes de padeiros a vender tortas, pães e tartes quentes, prostitutas debruçadas de janelas com os corpetes meio desatados, sarjetas fedendo aos dejectos
da noite. Passaram por cinco homens que tentavam arrastar um cavalo morto de uma viela, e, noutro local, por um malabarista que fazia girar facas no ar para deleite de um ajuntamento de soldados Tyrell
bêbados e crianças pequenas.
  Percorrendo a cavalo ruas familiares com duzentos nortenhos, um meistre sem corrente e uma mulher fenomenalmente feia a seu lado, Jaime descobriu que quase não atraía um segundo olhar. Não sabia se
havia de se sentir divertido ou aborrecido.
  — Eles não me reconhecem — disse ao Pernas d’Aço enquanto atravessavam a Praça dos Sapateiros.
  — O vosso rosto está mudado, e as vossas armas também — disse o nortenho — e agora têm um novo Regicida.

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  Os portões da Fortaleza Vermelha estavam abertos, mas uma dúzia de homens de mantos dourados armados com piques cortavam o caminho. Baixaram as pontas quando o Pernas d’Aço se aproximou a trote, mas
Jaime reconheceu o cavaleiro branco que os comandava.
  — Sor Meryn.
  Os olhos abatidos de Sor Meryn Trant esbugalharam-se.
  — Sor Jaime?
  — Que bom que é ser lembrado. Afastai estes homens.
  Passara-se muito tempo desde que alguém saltara para lhe obedecer tão depressa. Jaime esquecera-se de como o apreciava.
  Depararam com mais dois membros da Guarda Real no pátio exterior, dois homens que não usavam mantos brancos da última vez que Jaime ali servira. É tão típico de Cersei nomear-me Senhor Comandante e
depois escolher os meus colegas sem me consultar.
  — Vejo que alguém me deu dois novos irmãos — disse ao desmontar.
  — Temos essa honra, sor. — O Cavaleiro das Flores brilhava, tão perfeito e puro nas suas escamas e seda brancas que Jaime se sentiu como uma coisa esfarrapada e barata por contraste.
  Jaime virou-se para Meryn Trant.
  — Sor, desleixastes-vos no ensino dos seus deveres aos nossos novos irmãos.
  — Que deveres? — perguntou Meryn Trant num tom defensivo.
  — Manter o rei vivo. Quantos monarcas perdestes desde que deixei a cidade? Dois, não foi?
  Então Sor Balon viu o coto.
  — A vossa mão…
  Jaime obrigou-se a sorrir.
  — Agora luto com a esquerda. Dá mais luta. Onde encontrarei o senhor meu pai?
  — No aposento privado com o Lorde Tyrell e o Príncipe Oberyn.
  Mace Tyrell e a Víbora Vermelha a cortar pão juntos? De estranheza a maior estranheza.
  — A rainha também se encontra com eles?
  — Não, senhor — respondeu Sor Balon. — Ireis encontrá-la no septo, rezando pelo Rei Joff…
  — Vós!
  Jaime viu que o último dos nortenhos desmontara, e agora Loras vira Brienne.
  — Sor Loras. — Ela ficou estupidamente imóvel, segurando o freio.
  Loras Tyrell aproximou-se dela a passos largos.
  — Porquê? — disse. — Ireis dizer-me porquê. Ele tratou-vos com gentileza, deu-vos um manto arco-íris. Porque quereríeis matá-lo?
  — Não o fiz. Teria morrido por ele.
  — E morrereis. — Sor Loras puxou pela espada.
  — Não fui eu.
  — Emmon Cuy jurou que fostes, com o seu último suspiro.
  — Ele estava fora da tenda, não chegou a ver…
  — Não estava ninguém na tenda além de vós e da Senhora Stark. Pretendereis dizer que aquela velha seria capaz de cortar através de aço endurecido?
  — Houve uma sombra. Eu sei como isto soa a demência, mas… estava a ajudar Renly a vestir a armadura, e as velas apagaram-se e apareceu sangue por todo o lado. A Senhora Catelyn disse...

 

 

                                                                 

 

                                                   

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