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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


À HORA DO CRIME Francisco Luiz Coutinho de Miranda
À HORA DO CRIME Francisco Luiz Coutinho de Miranda

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Francisco Luiz Coutinho 

 

 

 

 

AO PÚBLICO
Nasci num ano em que o sangue dos cidadãos de Lisboa alagou as praças e as ruas da capital.
Foi uma carnificina monstruosa, o 13 de março de 1838!
As guardas nacionais, colhidas à traição, foram covardemente espingardeadas à ordem dos falsos intérpretes das instituições, que a guarda nacional era chamada a zelar e defender!
Ainda se não sabe ao certo o número dos mártires daquela tremenda hecatombe!
Eram pela rua aos montões os cadáveres dos populares e dos soldados, povo também, sacrificados naquele dia aos caprichos e veleidades do governo pessoal!
E esses homens do povo, e esses guardas nacionais, todas essas vítimas inocentes da maldade e da ambição, eram na sua maior parte os valorosos companheiros do duque de Bragança; os que tinham amassado com o seu sangue generoso os alicerces do trono constitucional; os que tinham, pela sua coragem, pela sua dedicação, pelo seu civismo, conquistado para a filha do imperador-rei o trono de Portugal, na longa epopeia que começou na ilha Terceira e terminou em Évora Monte!
Eu não havia ainda nascido; mas creio que minha santa mãe me concebeu então. Vi a luz do mundo em nove de dezembro desse mesmo ano, quase precisamente nove meses depois de tão amplo adicionamento ao livro imenso do martirológico da liberdade!
Bafejou-me ao nascer o ar das revoluções!
Daí talvez a origem das tendências revolucionárias do meu espírito!
Quase que o meu primeiro vagido se confundiu com os gritos de dor das vítimas da tirania!
Daí por certo o meu amor pelo povo, e o meu horror pelos déspotas!
Embalaram-me no berço as descrições detalhadas das ações homéricas dos sitiados do Porto; educaram-me no respeito pelo princípio santo da liberdade; desenvolveram-me a razão, encaminhando-me sempre o espírito para as teorias, poéticas e patrióticas, do mais largo desenvolvimento dos foros e regalias do povo!
Daqui indubitavelmente a minha crença sincera e firme na religião democrática!
Mas quem me diria, quando os primeiros alvores da razão começaram a esclarecer-me a inteligência; quando eu escutava com infantil respeito, no vivo entusiasmo da criança que facilmente se exalta palas santas doutrinas da liberdade, a descrição singela que meu velho pai me fazia dos sacrifícios e das privações, da fome e dos perigos, do sangue e das vidas, que a liberdade custara; quem me diria, repito, que aquele honrado velho havia de ser vítima dos falsos sacerdotes da sua religião política; que eu próprio havia de ser constantemente torturado pelos depositários infiéis do tesouro riquíssimo que meu pai ajudara a conquistar para o seu país!
E esta é, infelizmente, a verdade!
Tantas casas arruinadas, tão férteis campos talados, tantas vidas preciosas oferecidas em holocausto à liberdade, de que serviram?
De bem pouco, na verdade!
Em vez da tirania, a falsa liberdade!
Em lugar do despotismo brutal; mas franco, por que constituía a base do sistema governativo, o despotismo hipocritamente encapotado no manto da liberdade, infamemente roubado à deusa dos povos, pelos falsos levitas da sua religião!
Em substituição do poder absoluto de um homem, o poder absoluto de muitos, que se dizem responsáveis, e que ainda não fizeram lei que torne efetiva a sua responsabilidade; que deveram ser filhos dos partidos, e que são oriundos de corrilhos e fações; que dão conta dos seus atos a parlamentos imorais e ridículos, que têm por base a viciação da urna, santuário da liberdade, e o princípio hereditário no exercício de legislar, que é um absurdo, ou a fornada, que pode ser um abuso!
E para isto fugiste tu ao lar paterno, meu pai!
E para isto abandonaste a mãe que te estremecia, e a irmã, que se finou, com saudades tuas!
E para isto foste ferido três vezes em campanha, e alcançaste jus a essa medalha que tanto te ufanava, e que tão pouco vale aos olhos dos ignorantes, e dos perversos, que têm deixado crescer espinhos e abrolhos no campo formoso que tu e os teus companheiros de armas arrotearam, para as futuras gerações gozarem!
Progresso! Liberdade! Tolerância!
Termos mentidos! princípios falsos! palavras sem significação, na prática desgraçada de governos retrógrados, de ministros libertecidas, de homens que só respiram ódios; e só aspiram vinganças!
O progresso para eles é a reação!
A sua liberdade é a perseguição para os que mais livremente manifestam a sua opinião política!
Para eles a tolerância está nas cadeias em que encerram os adversários ou aqueles que, fatigados dos seus desvarios, lançam mão do recurso extremo, do remédio fatal, da última razão dos povos—a revolução; princípio em nome do qual eles são poder; arma de que nenhum deles tem deixado de usar, no jogo abjeto dessa política miserável, em que o país se tem arrastado há mais de trinta anos!
Livre manifestação do pensamento!
Pois isto é porventura princípio pratico em Portugal?
Apregoam para aí uns órgãos da imprensa, que é livre, libérrima, a manifestação do pensamento político!
Mentira!
Poucos como eu podem mais desafogadamente responder a uma tal asserção:
—Mentira!
Poucos podem clamar, com mais documentado conhecimento da causa:
Mentira!
Sim, mentira, porque no meu país não existe liberdade para a manifestação do pensamento, e eu sou disso um exemplo vivo!
Falei uma vez ao povo, dizendo-lhe verdades que ele deve conhecer, e perseguiram-me!
Nunca foi alterada a ordem pública nas pacíficas reuniões em que ecoou a minha voz, e processaram-me!
Exercia um direito que meu pai me conquistara com o seu sangue, e vi cair na vala humilde do cemitério, minado de desgostos, louco de rancor, desesperado de arrependimento, o velho honrado que me deu o ser, ao ver-me perseguido e homiziado pelo crime horrendo de falar em público!
Mais tarde, por que reincidi neste crime nefando, os miseráveis roubaram-me o emprego, exercido durante; muitos anos com honra e zelo, no desempenho do qual só recebera elogios, e nunca censuras, ou mesmo leves admoestações!
E a manifestação do pensamento é livre, libérrima!
Na imprensa o mesmo!
Ainda bem a minha pena não tem traçado um período veemente de amarga censura, ou de pungente ironia, contra os que cinicamente antepõem à lei a sua vontade pessoal, e já os escrivães e os juízes, os delegados e os esbirros da justiça andam atarefados em levantar processos, que partam os bicos desta pena, que se não dobra à venalidade, e que prefere ser molhada no fel amargo do cálix da perseguição, do que nas ânforas douradas da corrupção, em que inutilizam as suas os jornalistas devassos!
E a manifestação do pensamento é livre, libérrima!
Restava-me ainda um recurso!
Descobri um outro campo em que pudesse evangelizar a minha ideia querida, sem ofensa das ideias de ninguém!
Era o teatro!
O teatro, onde na velha e sabia Grécia se fazia a apologia da virtude política, e se erguia o patíbulo moral dos homens públicos menos fiéis aos seus deveres de cidadãos!
O teatro, de onde nos tempos do governo absoluto se dirigia a sátira pungente e a ironia mordaz, contra os que menos presavam a dignidade nacional, e se tornavam réus de leso patriotismo!
Nem essa tribuna me pode ser franqueada; e não obstante eu não a busquei sem levar vestido o hábito da decência; não me preparei para ela sem o mais escrupuloso comedimento na frase; eu não pensei em fazer do palco estátua de Pasquino, nem cruz ignominiosa de nenhum homem público!
E apesar disso conheço que me é defeso pôr em cena as figuras com que mais simpatizo no grande teatro da política universal!
Vejo que me não será permitido evangelizar à luz civilizadora da rampa as teorias do meu credo político, como se proclamam ali as teorias científicas, como se apregoam as doutrinas filosóficas, como se apostolizam os princípios humanitários!
Como se a ciência, a filosofia e a humanidade não tivessem íntimas relações com a política em geral!
E é livre, libérrima, a manifestação do pensamento!
Mentira! Falsidade! Embuste!
Vi para aí na cena umas peças, aliás bem urdidas, e corretamente escritas, em que se relatavam cenas, mais ou menos exatas, da guerra bárbara que tem assolado a França!
E pensei:
—Pois se é permitida a representação de peças, em que os autores se apresentam manifestamente inclinados à causa da França, o que até certo ponto prejudica a neutralidade do país em presença da guerra; por que não há de alguém, no campo altíssimo das generalidades, tratar em tese os mais altos princípios políticos?
Por essa ocasião deu-se o tristíssimo episódio da morte de Prim, que foi o fatal epílogo da revolução de Cadix, e o negro prologo da monarquia que o valente general ergueu sobre os destroços da monarquia bourbônica.
Na ignorância dos pormenores daquela trágica cena, que não honra decerto os que a executaram; fervilharam os boatos a respeito da origem do crime.
Uns atribuíam-no aos partidos, outros a indivíduos despeitados, e alguns em especial ao honrado partido republicano.
Repugnaram-me todas estas hipóteses, e indignou-me a última.
Onde está a abnegação, não existe o crime!
Onde vive o amor da pátria, não se demora o plano tenebroso de morte, contra uma glória nacional!
As bocas que proclamam a liberdade para o escravo, e o princípio da inviolabilidade da vida humana; não pronunciam a voz de fogo na encruzilhada covarde!
Destas considerações nasceu a ideia descrever o “À Hora do Crime”.
Tracei-o, esforçando-me por guardar todas as conveniências.
Pus em ação a ideia democrática; mas sem ofensa para ninguém.
Advoguei o princípio republicano, em tese; sem que em nenhuma hipótese ofensiva pudesse ser ferido qualquer dos atores do grande drama trágico-festival, que nos últimos dois meses se representou em Espanha.
E li depois o meu modesto trabalho a um amigo consciencioso, conhecedor dos segredos da cena, e habilíssimo escritor dramático, pedindo-lhe a sua opinião franca, sincera, desapaixonada, acerca do meu pobre escrito.
Tive em resposta elogios imerecidos, que a sua amizade entendeu dever prodigalizar-me, e uma profecia triste, que me calou todavia no espírito, pela experiência que infelizmente me tem feito conhecer a intolerância que, altiva e arrogante, domina no meu país!
A profecia foi:
—A sua peça não pode ser representada, porque nenhum empresário, por mais liberal que seja, por mais desejo que tenha de dar ao seu trabalho a justa recompensa que merece, lho porá em cena. O Sr. não sabe em que país vivemos?!
Acordei do letargo em que me lançara o entusiasmo pela minha ideia!
Conheci que o conselheiro que eu buscara cumpria o seu dever e era leal, porque me dizia verdade!
Resignei-me com a fatalidade que persegue o meu pensamento, quando tenta manifestar-se; e disse comigo:
—É atroz mentira, é pungente ironia, é refalsada falsidade, o princípio que para aí se proclama, asseverando que a manifestação do pensamento é livre em Portugal!
Não há tal; em Portugal o pensamento vive agrilhoado à intolerância! Só é livre para os que se entregam à política mesquinha do soalheiro! Em a ideia se alargando pelos vastos horizontes da verdade eterna há de ir forçosamente responder por ela, como criminoso, ao tribunal ou à cadeia, o que ousou manifestá-la!
E como é proverbio velho, que — contra a força não há resistência; não insisti no intuito, e meti o trabalho na gaveta.
A pedido de alguns correligionários que o conhecem, dou-o hoje à estampa.
Nesta tribuna não temo as responsabilidades, por que respondo eu pelo que escrevi.
No teatro pode o gênio da opressão embargar-me a voz; mas na imprensa e no comício há de ela soltar-se sempre livre e desembaraçada, em quanto me não asfixiarem os algozes da liberdade!


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PERSONAGENS: D. EMÍLIO CASTELAR (chefe do partido republicano espanhol) D. RAMON VIEGAS (correligionário de D. Emílio) D. CARLOS VIEGAS (correligionário de D. Emílio) MARTINEZ (ajudante do general Prim) ISABEL (filha de D. Ramon e noiva de Martinez) PABLO (criado de D. Ramon) Correligionários de D. Emílio
 
A ação passa-se em casa de D. Ramon, Rua de Alcalá, em Madrid, na noite do assassinato de Prim.
 
(Sala espaçosa, guarnecida com modesta elegância. Porta ao fundo e laterais. Janela. Ao meio da cena uma mesa e uma cadeira, e aos lados duas ordens de cadeiras)
 
CENA I Isabel e Martinez.
 
ISABEL (a Martinez, que se dispõe a sair)  Que precipitação é essa, meu querido?! Não sei o que me vaticina o coração! Desejava que não saísses hoje daqui!
 
MARTINEZ Louca! Poucos dias faltam para a realização da tua e da minha ventura! Terminadas as festas da coroação serás minha esposa à face de Deus.
 
ISABEL E se tu não voltares, Martinez? Se os inimigos do novo rei, e eles são tantos! empregarem um recurso extremo para impedir que ele cinja a coroa e empunhe o cetro de São Fernando?
 
MARTINEZ Que vãos terrores te obcecam o espírito! Ignoras acaso que o general cobre Amadeu, e que entrando em Espanha o novo rei sob a égide de Prim, há de chegar incólume, por entre o respeito e o entusiasmo das multidões, até aos degraus do trono que lhe conquistamos em Alcoleia?
 
ISABEL Eu não duvido do prestígio do teu general, nem do valor dos seus briosos companheiros de Cadix, que ainda hoje o seguem; mas não creio na boa estrela que os monárquicos divisam onde eu só vejo negrura e trevas!
 
MARTINEZ (ansioso)  Explica-te!
 
ISABEL Ouço o que dizem meu pai e meu irmão; escuto as palavras dos seus correligionários políticos que aqui se reúnem; conheço as valiosas relações que eles mantêm entre as classes populares; sei que é grande a sua dedicação pela república, que é imenso o seu entusiasmo por ela, que é sublime a sua abnegação, e que todos eles estão dispostos a implantar no solo da pátria a árvore frondosa e santa da república, ainda mesmo a troco dos maiores sacrifícios!
 
MARTINEZ (inquieto)  Queres tu dizer, Isabel, que os correligionários de teu pai e de teu irmão estão dispostos... O que ouviste, Isabel?
 
ISABEL (com dignidade)  O que eu ouço nas reuniões que se realizam nesta casa, não te digo eu agora, nem te direi jamais! Se o amor me prendeu o coração a um monárquico, não me obcecou o espírito a ponto de me fazer trair a causa que a minha família defende, e que eu reputo santa.
 
MARTINEZ (hesitando)  Eles pensam em assassinar o rei?
 
ISABEL (com indignação) 
 
Não! Os republicanos não defendem a inviolabilidade da vida humana para arrancarem covardemente a vida a um homem! Na religião democrática respeita-se a virtude, e condena-se o crime! Os republicanos não pensam em assassinar ninguém, porque o assassinato é um crime!
 
MARTINEZ Confesso, porém, que as tuas palavras chegaram a inspirar-me um profundo terror! Tinhas dito há pouco...
 
ISABEL É que os republicanos não são os únicos inimigos do rei! Amadeu tem contra si a má vontade de todos os partidos de Espanha; e dos que o repelem, dos que o guerreiam, dos que jamais lhe darão tréguas, só os republicanos têm por divisa o horror ao crime, só eles respeitam com dogma o princípio da inviolabilidade da vida do homem!
 
MARTINEZ Verás que te iludes!
 
ISABEL Oxalá!... E se fosse só o novo rei que me inspirasse receios por ti! E o teu general?!... Ninguém como ele tem hoje um nome mais brilhante na Espanha; mas ninguém como ele tem mais irreconciliáveis inimigos entre o povo espanhol! Prim pôs a coroa de Isabel na cabeça de Amadeu, e nem mesmo os mais encarniçados inimigos da rainha lhe perdoam que ele lhe derrocasse o trono, para edificar sobre as suas ruínas o trono de um estrangeiro!
 
MARTINEZ (sorrindo)  Vejo-me obrigado a fechar a sessão! Se te embrenhas tão cegamente no labirinto da política, pouco tempo te restará para cuidares dos preparativos da nossa festa nupcial! Pensa em mim, Isabel; antegoza a nossa próxima felicidade, e deixa a teu pai e a teu irmão o cuidado de velarem pela pátria que eles lealmente amam; e de prestarem cultos à religião política, que tão nobremente professam. (Vai a sair)
 
ISABEL (detendo-o)  Então sempre vais?
 
MARTINEZ Que fazer? (Consultando o relógio) São seis horas e meia... Deve estar a findar a sessão do Congresso, e tenho de acompanhar o general, que parte hoje em minha companhia, e na de Nandin e Moia, para Cartagena, a fim de esperarmos e acompanharmos a Madrid sua majestade Amadeu I.
 
ISABEL Vai, vai, meu querido; e oxalá que essa viagem do rei novo me não fira de morte o coração, onde se abriga um tão grande amor por ti! Escreve-me, Martinez; escreve-me de todos os pontos onde descansares! Olha que se me parte o coração nesta despedida!
 
MARTINEZ Sossega e espera! Se Deus quis que nos amássemos tanto, não foi decerto para nos fazer infelizes! 
 
(Abraçam-se.—Martinez sai pelo fundo)
 
 
CENA II
 
ISABEL (só, triste e encostada à janela)  Sossega e espera!... Que tranquilidade há de existir no peito de uma pobre mulher, que vê quase a despenhar-se no abismo metade da sua alma! Que esperança pode abrigar-se-me no coração, se eu vejo Martinez, o meu noivo, o homem que eu amo mais que a minha vida, afrontar indiferente a morte, ao lado daquele pelo qual metade da Espanha se julga iludida, fazendo parte do séquito do rei que transformou por um—sim—imprudente as esperanças da pátria em ilusões e sonhos, que podem amanhã produzir a guerra civil! (Caindo aniquilada numa cadeira) Oh! que infeliz eu sou! Oh! quão desgraçada serei! Condenada a viver perpetuamente entre os ódios mortais dos correligionários daqueles que mais queridos me são no mundo! De um lado o receio da perseguição dos monárquicos ao pai e ao irmão que estremeço! Do outro, o temor da represália dos republicanos, contra o homem com quem em pouco vou partilhar a sorte, e ao qual de há muito dei inteiro o coração! Oh fatalidade!
 
 
CENA III Isabel e D. Carlos.
 
D. CARLOS (do fundo)  Estás aqui, minha irmã? Não te aborrece esta sala? Não te sufoca a atmosfera que aqui se respira?
 
ISABEL Não!
 
D. CARLOS Tu, tão nova e tão linda, aspirando o ar tão pesado deste recinto de conspirações?
 
ISABEL Sim!
 
D. CARLOS Por que não vais antes para os teus quartos? Não te é mais agradável a vista risonha do jardim, que tu tratas tão cuidadosamente, do que o aspeto desta sala, onde hoje reside o desespero, onde paira a indignação, onde bate porventura as asas o demônio da vingança?
 
ISABEL Não.
 
D. CARLOS (preocupado) 
 
Não... sim... Não outra vez!... Que tens tu, Isabel?... Respondes apenas por monossílabos às minhas carinhosas interrogações?... Que tens tu, minha irmã?
 
ISABEL Nada!
 
D. CARLOS Nada, e eu vejo-te os olhos pisados!... Nada, e tu choras!... Desafoga comigo, Isabel!... Teu irmão ainda tem coração para recolher os teus pesares, e amor bastante para te prodigalizar consolações!
 
ISABEL (com desalento)  Martinez... o meu querido Martinez, parte esta noite para Cartagena, em companhia de Prim, que vai ali esperar o novo rei! Compreendes agora a razão dos meus monossílabos, a causa das minhas lágrimas, origem dos meus pesares?
 
D. CARLOS (tranquilizando-a)  E que tem isso? O rei vem; mas isso não quer dizer que conseguirá firmar solidamente uma dinastia! Época virá, e talvez pouco distante, em que a nação lhe indique solenemente o caminho da sua pátria! Se Martinez vai hoje, como ajudante do general, que se disse democrata no exilio, e que tão mal compreendeu no poder a sua brilhante posição, esperar o rei que é imposto à nação espanhola; talvez que em breve, convertido à crença democrática, ele vá, general da república, fazer embarcar no mesmo porto o desvairado mancebo, que tão facilmente se deixou fascinar peio brilhantismo de uma coroa, que não é sua, e que decerto é pesada demais para cabeça tão juvenil!
 
ISABEL (com receio)  E se um tiro traiçoeiro, cortando o ar num ermo, vier feri-lo, em vez de ferir Amadeu ou Prim?
 
D. CARLOS (sorrindo) 
 
Que lembrança! Em Espanha o partido mais forte é o republicano, por que é aquele que tem mais crentes retemperados na fé do martírio; e por isso o rei e o general, e todo o séquito de Amadeu, e toda a comitiva de Prim, passarão ilesos por entre a indiferença pública! O assassinato é um crime, e os republicanos não ferem o adversário senão no campo convencional da honra, ou no campo franco e aberto da batalha leal!
 
ISABEL Sinto que tens razão; mas sinto também que se me comprime a coração nos horrores da dúvida; apavoram-me os terríveis pressentimentos que me assaltam o espírito!
 
 D. CARLOS (oferecendo-lhe o braço)  Vem comigo distrair-te. É o amor que te faz delirar assim! Vem comigo! 
 
(Isabel dá-lhe o braço, e saem ambos pela porta lateral).
 
 
CENA IV D. Emílio e D. Ramon.
 
D. RAMON (a D. Emílio — do fundo)  É infelizmente assim, meu caro Castelar. Desde que aqueles espanhóis, menos ciosos da velha dignidade castelhana, votaram na constituinte um rei estrangeiro, a minha fé continuou inabalável; mas a minha esperança no futuro diminuiu consideravelmente!
 
D. EMÍLIO E porque, estimável D. Ramon?
 
D. RAMON Porque o moço inexperiente; mas ambicioso decerto, que imprudentemente trocou o bem estar e sossego, pelos espinhos agudíssimos da coroa de Espanha, pode ser um bom rapaz, e é-o decerto; pode possuir um coração bem formado, e creio que o possui; pode mesmo desejar abrir na história nossa pátria uma era brilhante de benefícios, de liberdades, de tolerâncias; mas é rei, e por mais digno que seja o seu sentir, por mais nobres que sejam as suas aspirações, hão de em pouco transformá-lo em tirano, em déspota, em liberticida, os áulicos que hão de cercar-lhe o trono, as camarilhas que hão de insinuar-se no seu ânimo para lhe dominar a vontade, os maus cidadãos, enfim, que mais dão razão de ser ao credo republicano, e que todos os dias, e a todas as horas, e em todos os instantes lhe conquistam adeptos, encaminhando os príncipes pela vereda fatal do erro, impelindo-os cinicamente para o plano inclinado onde se tem despenhado tantos, tantos!... arrastando consigo as nações cujos destinos dirigiam!
 
D. EMÍLIO Tem razão em seus receios, D. Ramon; mas não a tem na sua descrença! Mau é que um rei venha matar as esperanças mais fagueiras que o povo espanhol concebeu, quando, ao grito do triunfo majestoso da revolução de Cadix, viu cair a pedaços o trono apodrecido dessa mulher, que tanto sangue custou à nossa nobre terra! E pior é que esse rei, imposto à livre e orgulhosa Espanha, seja um estrangeiro! O nosso proverbial orgulho, esse orgulho indomável, que tornou sempre respeitados os cavalheirosos filhos de Espanha, sente-se ferido de morte na mais vulnerável das suas manifestações! Mas que importa isso? Quanto mais o justo orgulho, a nobre altivez de um povo se sente abatida e humilhada, tanto mais violento é o esforço supremo que deve dar-lhe a desafronta, e com a desafronta a liberdade! Tenha fé no futuro, D. Ramon!
 
D. RAMON Fé!... Sei que a sua é viva e sincera, Castelar; não ignoro quanto a pátria deve à sua dedicada abnegação e às suas profundas convicções; sou o mais entusiástico admirador desse talento colossal, que assombra a pátria, e a Europa, e o mundo; mas sou velho, e na frieza que dão os sessenta anos, e na impassibilidade filha de uma longa experiência, vejo as cousas por um prisma tristíssimo, fatal! Vejo que quando o italiano for o senhor deste país, por mais altivo e orgulhoso que o povo espanhol seja, o jugo férreo do despotismo há de vir em seguida comprimi-lo nas cadeias de escravo, e a emancipação da pátria ficará por isso longamente adiada, porque as hecatombes e as carnificinas hão de levar o desânimo onde hoje existe o entusiasmo, hão de levar a indiferença onde hoje vive o amor da pátria!
 
D. EMÍLIO (com gesto sublime)  Basta velho! Que o ancião não pronuncie jamais em presença de correligionários seus tão eloquentes palavras de descrença! A fé e a esperança são princípios religiosos do cristão, e divisa inalterável do democrata! E cristãos, e republicanos somos nós, para que aos nossos ouvidos possam chegar a descrença e o desespero, apostolados por um dos nossos! Reanima-te, nobre ancião! soldado velho da liberdade! evangelizador sincero da república! O futuro, se não é risonho e festival, não é completamente negro e carregado de nuvens procelosas! A república tem feito grandes conquistas no mundo! Na França opera milagres! na Suíça dá nobres exemplos! na América oferece lição profícua! no nosso irmão e amigo Portugal cria profundas raízes! e até na própria Prússia produz fenômenos, porque ao passo que os exércitos devastadores do autocrata alemão talam os campos verdejantes da bela França, para asfixiar a democracia, o povo de Berlim, que é povo, e que por isso é nobre, e generoso, e republicano, como todos os seus irmãos no mundo, elege para seu representante ao parlamento o chefe ostensivo do partido republicano da Alemanha! E é nesta conjuntura, que a voz autorizada de um velho respeitável há de trazer o desalento ao espírito dos valentes campeões da democracia espanhol?... Não, D. Ramon! O futuro é nosso! Ao triunfo completo da França, e ele há de vir, deve seguir-se o derrocamento dos tronos! à emancipação do povo francês seguir-se-á a emancipação da Europa! A derrota do tirano alemão deve necessariamente ser o sinal da queda de todos os déspotas do mundo!
 
(Durante esta fala tem entrado sucessivamente pelo fundo muitos indivíduos, e pela porta lateral D. Carlos, que recebe todos com cordialidade e afeto)
 
TODOS Apoiado!... Muito bem!... É assim!...
 
 
CENA V Os mesmos, D. Carlos, e os recém-vindos.
 
D. EMÍLIO (voltando-se para o fundo)  Ei-los, os nossos amigos! Em todos a mesma fé! Em todos a mesma esperança!
 
D. RAMON (aos recém-chegados)  Conversávamos, eu e D. Emílio, acerca do futuro do país, e do obstáculo, não insuperável, que a eleição do rei pode trazer é realização dos nossos desejos!
 
D. EMÍLIO Tratemos porém agora do assunto que aqui nos traz hoje. (A D. Ramon) D. Ramon, ocupai a presidência, vós, que sois o mais velho. (A D. Carlos) E vós, D. Carlos, exporeis as razões que vos determinaram a convocar esta reunião dos nossos amigos.
 
D. RAMON (ocupando a presidência)  Aceito, não por vaidade; mas por condescendência. Este lugar pertence de direito ao honrado chefe do partido republicano espanhol; que, modesto até ao extremo, nem mesmo entre os seus mais íntimos e mais leais amigos quer ser o primeiro; quando a verdade é que nenhum de nós se lhe avantaja, nem em talento, nem em virtude, nem em dedicação!
 
TODOS Apoiado! Apoiado! 
 
(D. Emílio agradece com o gesto)
 
D. CARLOS Meus senhores, o rei está a chegar, o general Prim parte esta noite para Cartagena, a fim de o acompanhar a Madrid; é mister pois que o partido republicano tome uma deliberação definitiva acerca do procedimento que deve adoptar no dia da coroação do italiano.
 
UMA VOZ Formule a sua proposta.
 
D. CARLOS (continuando)  É o que vou fazer. Eu proponho que nós todos empreguemos os esforços possíveis, para que os nossos correligionários madrilenos, sem exceção de um só, se apresentem vestidos de luto pesado no dia da chegada de Amadeu a Madrid. Creio que faremos assim uma imponente manifestação, visto que imperiosas razões partidárias obstam a que ela seja mais ruidosa e mais enérgica. É um protesto solene contra a invasão ambiciosa do estrangeiro, e ao mesmo tempo um aviso ao seu espírito, que verá decerto no luto do povo um argumento veemente contra os que por adulação, por servilismo, por vil baixeza lhe hão de dizer no paço real, que ele inspira amor àqueles que só sentem por ele profunda indiferença, se não lhe votam do íntimo da alma rancor e ódio!
 
D. EMÍLIO Aprovo a ideia; mas peço para fazer uma observação, talvez desnecessária. A manifestação dos republicanos deve ser digna e nobre, para ser majestosa! Envidemos toda a nossa energia, ponhamos em ação toda a nossa atividade, para que nem o italiano, nem o general que o fez rei de Espanha, sofram sequer um insulto! Amadeu é um príncipe ambicioso, talvez; mas julga aceitar legalmente a coroa, por que legalmente lha julgou oferecer a maioria da assembleia constituinte, no erro fatal a que a levou o seu grande respeito por Prim, e o desconhecimento dos poderes limitados que lhe conferia o seu mandato! O marquês de los Castilejos, por mais fatal que fosse para a pátria a sua obcecação, ou quem sabe se a dificuldade da sua posição política, é espanhol e liberal, foi o mais valente caudilho da revolução de Cadix, é um cidadão benemérito, é um general aguerrido, é o herói do Mexico, de Reus, de Castilejos, de Marrocos e de Saragoça! Que um e outro sejam pois respeitados por nós! Que Amadeu, quando o povo lhe indicar imperiosamente o caminho da sua pátria, não possa acusar os republicanos de Espanha de uma grosseria, ou de uma crueldade! Que Prim possa ser de futuro o esteio sólido da república, como tem sido mais de uma vez o sustentáculo valente da liberdade! 
 
(Ouve-se fora uma grande detonação)
 
TODOS (erguendo-se e correndo à janela)  Que é isto? Que é isto?
 
D. RAMON (à janela)  Vejo muito povo aglomerado na esquina da rua do Turco... soldados e populares que correm para aquele lado... e um fumo denso que é decerto produzido pelos tiros que ouvimos!
 
 
CENA VI Os mesmos, Isabel e depois Pablo.
 
ISABEL (da porta lateral, correndo)  Que é isto, meus senhores? Não ouviram uma horrível detonação? Foi decerto um crime tremendo que acabou de se perpetrar!
 
ALGUMAS VOZES Ouvimos! Ouvimos!
 
D. CARLOS (na janela)  Lá corre um homem de blusa azul!... Toma a direção do Prado!
 
PABLO (do fundo vem precipitadamente, e hesita vendo tanta gente)  Perdão, meus senhores... Não sabia...
 
D. EMÍLIO (inquieto)  Fala! fala! O que aconteceu.
 
PABLO Uma grande atrocidade, meus senhores!... Que também, verdade seja, ele tem feito morrer bastantes desgraçados, e os senhores, quem sabe? talvez que algum dia tivessem de pagar o patau numa morte parecida com a que ele teve!
 
VOZES Mas fala... dize... o que foi?
 
PABLO Ora, o que foi? O general Prim vinha do Congresso, dirigia-se ao ministério da guerra; vai senão quando...
 
ISABEL Meu Deus! O general! Não mentiram os meus pressentimentos!
 
PABLO (continuando)  Vai se não quando, o trem para, por que a rua estava tomada por duas carruagens que a obstruíam; e palavras não eram ditas, quando um dos ajudantes do marechal deita a cabeça de fora para ver o que aquilo era, uns poucos de homens disparam à queima roupa os seus trabucos para dentro da carruagem, e, por Maria Puríssima! lá ficaram todos decerto com os anjinhos!
 
TODOS Horror! Infâmia!
 
ISABEL (desvairada)  E Martinez... também ia... também morreu?
 
PABLO Eu sei lá, menina! Eu não o vi; mas se lá ia dentro...
 
ISABEL (desfalecendo)  Morto!... ele!... 
 
(Desmaia; mas só Pablo lhe presta socorro, porque os demais personagens estão preocupados com a notícia)
 
D. EMÍLIO (em tom solene e com sentimento)  Meus senhores, tínhamos razões de desamor, não sei se profundo; mas quero bem crer que temporário, pelo herói que depois de afrontar mil vezes a morte, no campo aberto da batalha, e de conquistar, para si e para a pátria, imarcescíveis louros, acaba de sucumbir a um tão covarde crime! Foi nosso companheiro no exilio, não chegou a compreender os generosos intuitos do nosso partido, opôs uma barreira de ferro às nossas aspirações democráticas; mas era espanhol e cristão, e cumpre-nos, primeiro que tudo, enviar a Deus uma prece fervente pelo repouso da sua grande alma! De joelhos, amigos, e oremos! 
 
(Ajoelham todos.— Martinez aparece ao fundo)
 
 
CENA VII Os mesmos e Martinez.
 
MARTINEZ (entre a porta do fundo, maravilhado)  Que vejo!... Todos estes homens orando! Eles!... os alcunhados pedreiros livres! Eles!... os temidos hereges! Eles!... os republicanos!
 
D. RAMON (erguendo-se)  De que te espantas, meu filho? Somos cristãos, e oramos a Deus pela alma do teu general, tão infamemente assassinado!
 
MARTINEZ Felizmente são orações perdidas, porque o marechal apenas se acha levemente ferido! Mas não foi perdida a cena que acabo de presenciar, o espetáculo comovente que vim surpreender! Bendita a fatalidade que sem produzir os resultados negros a que mirava, operou a conversão espontânea de um iludido, que se deixou desvairar pela calúnia atroz dos que infamemente pretendem esmagar o crédito dos republicanos! (Abraçando D. Ramon) Aceite no seu grêmio um convertido!
 
D. CARLOS Mas o general... Não morreu?
 
ISABEL (despertando)  Estas vozes... Estes rostos alegres... (Vendo Martinez) Tu... Vivo!... (Apalpando-o) Nem sequer foste ferido? (A D. Ramon) Perdão meu pai! (Aos demais) Desculpem, meus senhores! Martinez é meu noivo... e em poucos dias será meu marido!
 
MARTINEZ Sossega! Não morreu ninguém! Eu estou são; o meu general foi levemente ferido numa das mãos, pelos tiros daqueles miseráveis, e Nandin também tem um ferimento, que felizmente não é grave.
 
TODOS Ainda bem! Ainda bem!
 
D. CARLOS (a si mesmo)  Não digo eu—ainda bem—porque sou médico. Receio bastante que a ferida seja mortal, por que sei que o ferimento produzido pela arma de fogo é quase sempre fatal, quando o frio é intenso, como o destes dias tem sido.
 
D. EMÍLIO Rendamos graças a Deus, por ter permitido que se frustrasse um tão negro crime. É que a Providência reserva ainda decerto o general Prim, para algum grandioso cometimento em favor do seu país!
 
ISABEL E oxalá que assim seja! Oxalá que um dia chegue, em que aquele valente militar possa conosco bradar: —Viva a república!
 
TODOS Viva a república!
 
ISABEL Desculpa, Martinez! O meu coração é teu, e da ideia generosa e sublime de que estes cavalheiros são dedicados apóstolos!
 
MARTINEZ E de que eu começo hoje o noviciado!
 
ISABEL (muito contente)  Converteste-te?!... Oh! é mais um presente da Providência! Eu vo-lo agradeço, meu Deus!...
 
D. RAMON É um anjo, que sente como nós santo amor pela república!
 
D. EMÍLIO Acompanho, intimamente regozijado, as saudações angélicas da donzela inocente, que bem representa aqui a santa virgem da democracia! Mas que o nosso entusiasmo nos não torne suspeitos de cumplicidade no crime nefando que tanto nos indignou! É mister que todos nós, em vez das projetadas manifestações de desagrado ao rei eleito, prestemos sincera homenagem ao vulto gigante, que ia sendo vítima de um tão monstruoso atentado! Tão feio crime só pode ter sido perpetrado por facínoras, por miseráveis, por maus espanhóis! Não foram decerto, não; não foram adeptos da nossa crença, religionários convictos da nossa igreja, os que o perpetraram! Os republicanos não são covardes! Os republicanos não são vis! Os republicanos não são assassinos! As vestes alvas da democracia, a vestal que mantem o fogo sagrado da liberdade, a santa que tem por evangelho a tolerância, a deusa que manda respeitar a vida humana, mancharam-se de sangue no México, mas jamais se enodoarão na nobre terra de Espanha! Amigos, protestemos todos, bem alto, contra um tal atentado! 
 
(Sinais de aprovação)
 
ISABEL (a Martinez)
 
E partirás com o general?
 
MARTINEZ Não; apesar de ligeiros, os ferimentos do general impedem-lhe que parta hoje.
 
ISABEL Mais um favor do céu! Permitam, meus senhores, que eu vá tocar no piano o nosso hino patriótico, aquele hino de Riego, que tanto nos tem entusiasmado nos nossos saraus comemorativos dos acontecimentos gloriosos do partido republicano! 
 
(Inclinam-se todos. — Isabel sai pela porta lateral)
 
D. EMÍLIO E quem irá a Cartagena, em lugar de Prim?
 
MARTINEZ O almirante Topete, que cedendo às instâncias de sua alteza o Regente, aceitou a presidência do conselho de ministros, durante o impedimento do marechal Prim.
 
D. CARLOS (admirado)  Topete!?
 
D. RAMON (idem) O chefe dos unionistas!?...
 
D. EMÍLIO (com gravidade)  O espanhol honrado, que em presença do perigo da pátria sacrifica à ideia primordial da sua crença, os compromissos particulares de um corrilho! Um republicano não devia, não podia, sem desonra, entregar a Amadeu o cetro espanhol; mas um montpensierista pode, sem quebra de dignidade, sentá-lo no trono de Espanha! Que mais larga ideia traduz Antônio de Orleans do que Amadeu de Saboia? Não representam um e outro o princípio monárquico? Não são estrangeiros um e outro? Não ambicionavam ambos a coroa de Espanha? É nobre o procedimento do almirante! Queria um rei, e por isso respeitando os votos dos seus correligionários monárquicos, cobrirá amanhã o príncipe contra o qual ontem votou! Nós é que não podemos cobrir nem um nem outro; suposto que tenhamos o indeclinável dever de respeitar ambos! Nós é que não podemos senão, no campo legal que a constituição nos oferece, ou no campo leal que as circunstâncias nos traçarem, velar pela conservação das liberdades que conquistamos, e propugnar pelo larguíssimo desenvolvimento delas! É honroso o nosso posto! É sublime a nossa missão! É de esperança o nosso futuro! Se nem o duque de Aoste, nem o duque de Montpensier representam para nós o anjo do bem, fadado por Deus para tornar a Espanha feliz, cumpre-nos evangelizar a república, e mesmo batalhar por ela, para que a nossa pátria possa breve proclamar o código político, em que reside decerto o princípio da regeneração dos povos! Firmes sempre, e sempre honrados, sacrificaremos embora as vidas e as fortunas; mas jamais venderemos o coração e a consciência. 
 
(Ouve-se no piano o hino de Riego. Escutam-no todos com respeito)
 
D. EMÍLIO (continuando, com entusiasmo)  E ao som daquele hino patriótico, e animados pelas harmonias daquela música, que tem sido a companheira fiel de todas as nossas glórias modernas, de todas as nossas conquistas liberais, bradaremos sempre: —Viva a Espanha! Viva a liberdade! Viva a república!
 
TODOS Viva a Espanha! Viva a liberdade! Viva a república!
 
ISABEL (da porta lateral—correndo)  Perdão, meus senhores! Também eu quero acompanhá-los nas suas saudações! Também eu quero soltar um brado de verdadeiro entusiasmo! —Glória aos mártires da França! Amizade sincera e leal ao nosso vizinho Portugal, livre e independente! Viva a república!
 
TODOS Viva a república!
 
(Rompe na orquestra o hino de Riego)

 

 

                                                 Francisco Luiz Coutinho de Miranda

 

 

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