Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A INTRUSA / Suzanne Enoch
A INTRUSA / Suzanne Enoch

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Kate Brantley se disfarça de rapaz para espionar Alexander Cale, o lorde inglês que o pai dela suspeita estar envolvido no bloqueio do transporte de certos carregamentos para a França. Não demora para Alex descobrir que atrás das roupas amarfanhadas e do linguajar grosseiro, esconde-se uma jovem adorável, embora petulante demais para seu gosto. Alex está determinado a descobrir o verdadeiro motivo que levou o pai de Kate a lhe pedir para hospedar o "filho" por duas semanas, pois o pretexto utilizado não o convence. À medida que a teia de conspiração se enrosca à volta de Alex, ele se rende aos encantos da intrigante Kate, antes mesmo de vê-la vestida como mulher, pela primeira vez. num baile de máscaras. Apaixonado por uma espiã inimiga, Alex precisa escolher entre o senso de dever e o anseio de proteger a mulher que ama...

 

 

 


 

 

 


Capítulo I

- Ande direito, Kit. Estamos perto. - Stewart Brantley virou a cabeça para trás, olhou para a filha com expressão aborrecida e enterrou o chapéu encharcado na cabeça.
No meio da noite, Kate seguia o pai desajeitadamente pelas ruas molhadas. Stewart hesitou antes de enveredar por uma avenida larga, iluminada por lampiões a gás e por relâmpagos ocasionais. Desde que haviam desembarcado em Dover, a tempestade não amainara. No escuro e debaixo de chuva, Kate mal reconhecia a cidade de Londres, que havia muito tempo não visitava.
- Não consigo. Estou congelada - disse, batendo os dentes.
- Achei melhor não vir a Mayfair de carruagem alugada e pedir ao cocheiro para nos levar a Park Lane a esta hora...
- Eu sei. Despertaria suspeitas. - Kate passou a mão enluvada no rosto molhado pela chuva. - Acha que o conde de Everton nos receberá?
- Claro. Ele está em grande dívida comigo. Um trovão ribombou sobre os telhados das mansões mais nobres e abastadas da Inglaterra.
- É o que espero. Sejria lastimável ter saído de Paris para nada.
- Eu não teria vindo, se não tivéssemos um excelente motivo. Você sabe muito bem do que se trata.
Kate fungou e fez uma careta. Esperava não se resfriar. O pai detestava a Inglaterra e os ingleses. Aceitar ir para Londres era um sinal de como aquela viagem era importante. Segundo ele mesmo dissera, era uma questão de vida ou morte.
- Eu sei. - Kate teve de correr para seguir o pai que apressara o passo. - Mas não gosto da idéia de agir como espiã.
- Não será espiã, Kit. - O desconforto causado pela chuva ajudava a dissipar a já escassa paciência de Stewart. - Fouché vai cortar a minha cabeça... e a sua também... se o maldito inglês interceptar outro de seus carregamentos. Tudo o que você terá de fazer é descobrir quem é o infeliz que está trabalhando contra nós. Assim poderei ludibriá-lo. Não se trata de espionagem. É um bom negócio que não prejudicará a ninguém. Pelo contrário, trará dinheiro para nossos bolsos.
Ele contemplou a enorme mansão branca que se assomava adiante.
- Não acha que valerá a pena?
- Acho, sim... Claro.
Kate não demonstrou o desânimo que a invadia quando passaram pelos portões abertos da residência e percorreram o caminho até a entrada. O casarão do conde de Everton era descomunal até para os padrões londrinos. Era o maior que ela vira depois de deixar o coche em Piccadilly e entrar na dourada Mayfair. Apesar do manto grosso de capuz, o traje masculino de Kate estava ensopado. Parada entre as colunas de mármore trabalhado do pórtico da Cale House, ela tremia de frio e de tensão. A grandiosidade da construção a fazia apavorar-se diante da tarefa que tinha pela frente.
Stewart bateu na porta com a aldrava de bronze. O som ecoou e perdeu-se no ruído da chuva. Não houve resposta, ele tornou a bater, com mais força.
- Não entendo. Philip sempre vinha para a Cale House na temporada. Ele não iria para Everton, com o Parlamento em atividade.
Kate disfarçou o alívio.
- Já é tarde, papai...
Nesse instante a porta foi aberta por um homem com uniforme de mordomo por cima do pijama e chinelos nos pés.
- Pois não?
- Vim falar com lorde Everton - anunciou Stewart, como se fosse a coisa mais natural do mundo visitar alguém no meio da noite.
- Lorde Everton está dormindo.
- Pois então vá acordá-lo e avise-o que Stewart Brantley está aqui e deseja falar com ele.
- Não creio que isso justifique...
- Diga a ele que é sobre o pagamento de uma dívida antiga. - Stewart cruzou as mãos atrás das costas, um sinal de que não estava tão calmo quanto queria aparentar.
- Ah. Sim, milorde - concordou por fim o mordomo, sem muita convicção, porém abrindo mais a porta para que eles entrassem. - Se puderem aguardar um momento, eu vou chamar milorde.
O mordomo pediu licença e subiu a escadaria que ficava à direita do saguão.
Pouco depois ouviu-se uma voz alterada no andar de cima, e em seguida uma porta bateu. O mordomo desceu os degraus, apressado e com expressão carrancuda, e pediu aos visitantes que o acompanhassem até a sala de estar do andar superior. A iluminação fraca não permitia ver detalhes, mas o luxo era inegável. O cheiro das velas nos candelabros do corredor sugeria cera de abelhas e não sebo barato.
O relógio de parede bateu um quarto de hora quando eles entraram na sala, onde uma suave fragrância de perfume impregnava o ar. O ambiente mais iluminado permitiu ver as cornijas das paredes trabalhadas em ouro e o tapete persa no assoalho. Peças de cristal decoravam o consolo da lareira e um vaso chinês antigo enfeitava a mesa de centro. O que mais agradou a Kate foi o calor que vinha das brasas da lareira recém-apagada. Ela tirou as luvas e estendeu as mãos para aquecê-las.
Stewart parou no meio da sala para examinar um quadro pendurado acima da lareira, e Kate seguiu o olhar do pai. Era o retrato de um cavalheiro com os cabelos grisalhos nas têmporas. Era um homem atraente, com um leve sorriso nos lábios e olhos azuis expressivos, que pareciam vivos mesmo na pintura.
- É lorde Everton, papai? - Ela estudou o rosto do homem.
- É, sim - respondeu uma voz, atrás deles.
Kate virou-se para ver um homem parado na porta, com a mão apoiada na maçaneta de bronze. Era alto e esbelto, e usava uma calça preta e camisa branca, com as mangas enroladas até os cotovelos. Os olhos azuis eram tão penetrantes quanto os da pintura, mas a beleza máscula do rosto era mais evidente, e ele parecia mais jovem que no retrato.
- Creio que houve um engano - Stewart alegou. - Preciso falar com o conde de Everton.
- Eu sou o conde de Everton. - O homem olhou com frieza para as roupas molhadas deles. - E também barão Cale e visconde Charing.
- Oh... Eu devia ter imaginado - murmurou Stewart. - Alex... Alexander Cale. O que aconteceu com seu pai?
- Faleceu há quase quatro anos.
Um calafrio percorreu Kate de cima a baixo, ao compreender que teria de seguir aquele homem perturbador. Ela segurou o fôlego ao notar que ele avaliava com olhar intenso o seu corpo, marcado pelos trajes molhados, reparando nas feições marcantes do rosto aristocrático, nas sobrancelhas levemente arqueadas e na sombra de um sorriso cínico dançando na boca sensual.
Ele fechou a porta, e Kate engoliu em seco, estranhando o fato de estar com as pernas bambas.
- Milorde tornou-se um belo rapaz - elogiou Stewart, para espanto de Kate, que nunca vira o pai se dirigir de maneira tão amável a um inglês. - Não o vejo desde que...
- Eu tinha nove anos. Na ocasião você me disse que eu teria uma bela carreira como soldado ou pirata, depois que meu pai me deserdasse.
- Milorde era um menino rebelde.
- Não creio que tenha mudado muito. Por isso pode continuar me chamando de Alex, como sempre chamou. - O conde fitou Kate. - E este jovem, quem é?
Kate estremeceu sob o olhar fixo de Alex, e teve certeza de que ele descobriria o disfarce que sempre enganara a todos.
- É Kit Brantley, meu filho - disse Stewart.
- Como vai?
Alex inclinou a cabeça em cumprimento, e Kate retribuiu o gesto, limitando-se a sorrir timidamente.
Ele virou-se, acrescentou mais lenha na lareira e atiçou o fogo.
- Posso ver que estão com frio -- comentou e fez sinal para que tirassem os capotes molhados.
Apesar de ser mais alta que a média das mulheres, ela se sentia baixinha perto do conde, que devia ter pelo menos um metro e noventa. Não gostaria de tirar nenhuma peça de roupa diante dele.
Alex pegou o chapéu e o capote de Stewart e colocou-os sobre as costas de uma das poltronas estofadas. Antes que ele se voltasse para ela, Kate se adiantou:
- Já estou aquecido, obrigado. Prefiro ficar com o capote. Sem contestar, Alex se sentou no sofá e fez sinal para que os visitantes o imitassem.
- Perdoe minha franqueza, Brantley. Confesso que estou curioso para saber como exatamente espera que eu lhe pague a dívida de meu pai. Gostaria de uma quantia suficiente para cobrir sua viagem à Inglaterra?
Stewart endireitou as costas.
- Não preciso de dinheiro, Alex. Acredito que seu pai concordaria que dinheiro não seria um pagamento apropriado para essa dívida em particular.
- É impressionante como o senhor parece conhecer os pontos de vista de meu pai, que para mim sempre foram obscuros. Diga, por favor.
- Eu salvei você de morrer afogado.
- Sim, há vinte anos, segundo me informaram. Não me lembro direito do incidente.
- Seu pai deve ter lhe dito que, algum dia, eu viria cobrar o favor. Ele honrava a palavra empenhada.
- Na verdade, ele pensava que você já tivesse morrido - falou Alex, com um sorriso pouco amigável. - Mas já que está vivo, diga-me o que quer.
- Muito bem. - Stewart deu uma tossidela. - Meu filho atingiu a idade de cumprir os deveres cívicos, mas... com a atual agitação na França...
- Bonaparte fugiu de Elba, não é mesmo? - Alex demonstrou indiferença.
- Sim. E comecei a recear que Kit fosse convocado para o Exército. A França é nosso lar, mas não quero que meu filho morra por aquele lunático.
- Entendo. - Alex fitou Kate.
- Vim com a esperança de que seu pai cuidasse dele por algum tempo, até a situação se normalizar, ou até eu encontrar outro meio de resolver o problema.
Alex fitou as mãos e franziu os lábios. Kate refletiu que a expressão o tornava ainda mais atraente. Ele tornou a observá-la, como se não estivesse convencido, e desviou o olhar.
- Se não me falha a memória, seu irmão é o duque de Furth. Por que não deixa o duque servir de ama-seca para o garoto?
Stewart empalideceu.
- Nunca!
- Não preciso de ama-seca -- Kate interveio. - Posso tomar conta de mim mesmo. Não precisamos de lorde Everton, papai. Se ele não quiser nos ajudar, encontraremos outra solução.
Ela ficaria de bom grado em qualquer outro lugar onde não precisasse conviver com o olhar penetrante de Alexander Cale.
- Pois eu acho que precisamos dele, Kit - insistiu Stewart. Virando-se para Alex, perguntou: - Quer que eu lhe implore para honrar sua dívida?
Alex suspirou e sacudiu a cabeça.
- De forma alguma. Mas devo avisá-lo que não terei tempo de paparicar o garoto. Sou um homem muito ocupado.
- Nem eu gostaria que a estada de meu filho em sua casa interferisse em sua rotina. Aliás, peço-lhe que de forma alguma abra mão de seja o que for por causa dele. Acolhê-lo em sua casa será o suficiente. E não será por muito tempo. Em princípio, creio eu, até o final do mês. Confio em Deus que, até lá, toda essa loucura tenha acabado.
- Assim espero. - Alex levantou-se e fitou Kate mais uma vez. - Eu lhes mostrarei os quartos.
- Eu lhe agradeço muito, meu filho. - Stewart deu um suspiro de alívio.
- Uma dívida de honra tem de ser paga. Com isso, a obrigação de meu pai para com o senhor será encerrada. - A frase soou como uma ameaça.
- E tudo que lhe peço - Stewart afirmou.
Em comparação com os aposentos que o conde destinou a Kate, o apartamento deles em Paris era uma moradia miserável. As cortinas cor de pêssego com enfeites dourados combinavam com a colcha macia que cobria a cama grande e confortável, e Kate ficou maravilhada com os enormes travesseiros de plumas, antecipando a hora de afundar-se em toda aquela maciez. Passou os dedos sobre o tecido sedoso da colcha, perguntando-se o motivo da capitulação rápida do conde.
Estava sentada à frente da penteadeira, admirando a decoração requintada do quarto, quando o pai bateu à porta e entrou.
- Foi mais fácil do que eu esperava. - Stewart alegrou-se.
- Ele quase nos expulsou.
- Bobagem, filha.
- Acha que poderei convencê-lo a me apresentar aos nobres? - inquiriu Kate.
Stewart sorriu.
- Minha querida, seu poder de persuasão é incomparável. Os amigos de Alexander Cale devem estar mais envolvidos nas intrigas do governo do que os contemporâneos do pai dele. A situação é ainda mais favorável do que eu esperava.
- O senhor não tinha como supor que Philip Cale morreu há quatro anos, não é, papai? A não ser que o tivesse matado.
- Não seja insolente, menina. Quando me disser o nome do nobre que está embargando nossos negócios, ensinaremos a ele uma boa lição.
- Acredita que possa ser lorde Everton? Stewart deu de ombros.
- Até onde eu sei, Alex sempre foi rebelde e um tanto desajustado. Não seria exatamente quem o rei George teria escolhido, a menos que estivesse sob o efeito de um de seus acessos de loucura, para sustentar o respeitável estilo de vida dos britânicos. Ainda bem que ele pensa que você é homem. Segundo me disseram, os interesses de Alexander Cale são mulheres, bebida e jogo. Mesmo assim, é bom não se descuidar enquanto estiver perto dele, até ter certeza.
- Fique tranqüilo, papai. Agirei com cautela.
- É melhor eu ir embora. Ele pode mudar de idéia pela manhã, depois de uma noite de sono. Lembra-se de onde me encontrar se houver novidades? Ótimo. Sei que você terá êxito. Para o nosso bem.
- Tem certeza de que Fouché não ficará zangado?
- Eu já lhe disse, quanto maior o risco, maior o lucro. Levaremos a encomenda e ficaremos ricos e felizes.
- Por que não me conta o que estamos levando para ele?
- Será melhor que você não saiba. - Stewart perdera a conta de quantas vezes já repetira isso.
- Imagino que não sejam mantimentos, ou cobertores - provocou Kate.
- Confie em seu pai. Eu a verei em poucos dias.
- Eu sempre confiei em você. Stewart sorriu e beijou o rosto da filha.
- Boa menina.
Kate observou-o sair. Depois sentou-se na beira da cama e, devagar, tirou as roupas molhadas. Durante duas semanas teria de conviver com os amigos nobres de Alexander Cale e descobrir quem interferira no comércio deles no momento em que o conde de Fouché oferecera a seu pai uma parceria lucrativa demais para ser desprezada. O conde de Everton podia ter belos olhos e um semblante atraente, mas Kate Brantley o enganaria, como já fizera com tantos outros, durante quinze dias. Os ingleses jamais saberiam como Stewart Brantley conseguira escapar outra vez. Quando descobrissem, seria tarde demais. Ela e o pai já estariam longe.
Alexander Cale estava mal-humorado quando se sentou para tomar o desjejum, às oito e meia da manhã. Refletiu que Stewart Brantley deveria ter tido a consideração de escolher um horário mais adequado para ir até ali incomodá-lo.
Se não fosse por Kit, ele teria lhes dado algum dinheiro e mandado os dois embora. Mas alguma coisa na expressão do rapaz, algo que Alex não conseguia decifrar com precisão, o impelira a deixar que o garoto ficasse. Era algo muito sutil, um brilho nos olhos muito verdes e expressivos, que denotava, além de inteligência e personalidade, alguma emoção forte. Ansiedade, talvez, ou apreensão, mas também algo mais, que o deixara intrigado.
Alex fez sinal para o mordomo completar a xícara de chá, quando de repente a porta da sala de almoço foi aberta e uma das ajudantes de cozinha entrou, arfante.
- Milorde... está uma confusão terrível na estrebaria!
Alex levantou-se e foi atrás da moça. Atravessaram a cozinha, que era o caminho mais rápido até a cocheira, e, assim que saíram para a manhã fria e úmida, Alex ouviu o alarido formado por gritos de encorajamento, imprecações e resfolegar de cavalos. Correu até as portas duplas do barracão e entrou.
Kit Brantley estava encostado na parede oposta e segurava um forcado de modo ameaçador. Ben Conklin, o chefe dos cavalariços, apalpava um grande vergão no queixo. Atrás deles, os palafreneiros e cocheiros, em semicírculo, faziam algazarra.
- Esse menino quase me acertou com o forcado, milorde - Conklin explicou.
- Porque você pulou em cima de mim gritando feito um desvairado! - defendeu-se Kit, respirando fundo.
- O que veio fazer na estrebaria? - perguntou Alex, divertido.
Conklin raramente era derrotado numa disputa, muito menos por um oponente franzino como aquele.
- Kit, por que não larga essa ferramenta e entra para tomar o desjejum?
- Eu estava só olhando os cavalos - queixou-se Kit, pondo o forcado de lado.
Conklin não perdeu tempo e o atacou mais uma vez.
- Chega! - gritou Alex, dando um passo à frente. Com uma das mãos empurrou Conklin para o lado e agarrou Kit pelos braços e cintura. O peso do rapaz não condizia com a estatura. Tinha cintura fina e quadris arredondados, e Alex estranhou o modo como ele se debatia para se desvencilhar.
- Solte-me! - Kit gritou, esperneando.
Perplexo, Alex o libertou, e Kit caiu no chão. Com as roupas úmidas e cheias de fiapos de palha, Kit se pôs de pé e enfrentou Alex, com os punhos cerrados.
- Tente fazer isso de novo, imbécil !
Alex olhou para ele, e pensamentos estranhos lhe ocorreram.
- Vamos entrar, Kit.
- Não me dê ordens, ou...
- Agora!
Alex virou-se, cruzou o pátio e entrou de volta pela cozinha até a sala de refeições, sem olhar para trás.
- Sente-se - ordenou, assim que Kit entrou, atrás dele.
- Não - retrucou Kit, com aspereza. - Preciso me lavar primeiro.
Alex encarou seu hóspede, que o fitava com aqueles olhos incrivelmente verdes. Apressou-se a desviar o olhar, incomodado com algo que não compreendia inteiramente, uma sensação desconfortável que o inquietava ao extremo, e que ele se recusava a assimilar. Não, era impossível, devia haver alguma outra explicação para o efeito que aquele garoto causava nele.
- O que estava fazendo na estrebaria? - indagou, com mais rispidez do que pretendia.
- Eu já disse, estava vendo os cavalos - repetiu Kit, na defensiva. - Eu não ia roubar nada.
- Eu não estava insinuando isso.
- Ainda bem.
- Seu pai ainda não se levantou?
- Ele teve de voltar para Paris. Tinha negócios urgentes e...
- Ele foi embora e deixou você aqui? - perguntou Alex, surpreso.
- Sim. Milorde tinha concordado em...
- Considero a atitude dele muito descortês. O mínimo que eu esperava era que ele se despedisse de mim e me agradecesse, antes de partir.
- Esse não é o jeito de meu pai.
Kit deu de ombros e, inconscientemente, ergueu a mão para afastar uma pequena mecha de cabelos loiros do rosto. O gesto simples e delicado foi suficiente para que Alex enxergasse a verdade.
- Kit Brantley, você quase conseguiu me enganar - disse, soltando um profundo suspiro de alívio. - Você não é homem coisa nenhuma... Você é uma mulher, da cabeça aos pés e com todas as letras! Uma jovem e linda mulher!
Alex teve a confirmação ao ver o rosto de Kate empalidecer. Ela deu um sorriso forçado e ergueu uma sobrancelha.
- Milorde deve ter estado bebendo - alegou ela, com um ligeiro tremor na voz.
Alex deu um passo à frente e, com um movimento repentino, tirou-lhe o chapéu da cabeça. A fita que amarrava os cabelos soltou-se e caiu no chão, e uma espessa e ondulada cascata de fios dourados e sedosos soltou-se, quase tocando os ombros de Kate.
A voz melodiosa não era de um adolescente em fase de transição para a idade adulta... Tampouco o corpo esguio e leve... Muito menos os enormes e lindos olhos, emoldurados por longos cílios, que naquele momento o fitavam com um inconfundível brilho de apreensão.
- Eu...
- Não perca seu tempo tentando negar. Não me force a tomar medidas drásticas para comprovar a verdade - preveniu Alex, sentindo um profundo prazer ao ver o rosto de Kate ficar vermelho.
- Muito bem, lorde Everton. - Ela ergueu o queixo, desafiadora. - Sou uma mulher.
- Por todos os santos... - murmurou ele, num misto de perplexidade e deslumbramento. - Qual o motivo de toda essa farsa... Kit?
- Kate - corrigiu ela. - Meu nome é Kate Brantley, e Stewart é meu pai. A única farsa nessa história toda foi meu disfarce de garoto, e eu lhe asseguro que foi por um bom motivo.
Alex se sentia invadido por uma forte curiosidade e ao mesmo tempo um indescritível fascínio, além do aturdimento.
- Apenas para fins de esclarecimento... - murmurou, intrigado -...se seu pai quer evitar a convocação para o exército de Bonaparte, por que não permite simplesmente que você use saias?
- Não creio que lhe deva explicações sobre minha vida.
- Seu pai a confiou a mim por duas semanas - argumentou Alex. - Com o pretexto de querer poupar o filho de ser convocado para a guerra. Um filho que na verdade é uma filha. Portanto, o verdadeiro motivo é outro, e é natural, e justo, que eu queira saber do que se trata.
Kate pegou o chapéu e o colocou de volta na cabeça, antes de responder, muito séria:
- Milorde aceitou me hospedar em sua casa para cumprir uma dívida de honra. O pretexto não importa.
Kate virou-se, saiu da sala e fechou a porta, deixando Alex momentaneamente sem ação.
Assim que ele se refez do espanto, balançou a cabeça e correu para abrir a porta. Kate parou no meio do corredor e voltou-se para olhá-lo.
- Você é a criatura mais ridícula que já vi! - gritou ele, irritado.
Antes que Kate tivesse tempo de dizer alguma coisa, uma voz feminina e langorosa intrometeu-se entre eles:
- Bom dia, Alexander.
Com um farfalhar de saias, outra hóspede se aproximou, vindo do lado oposto do corredor.
- Barbara. - Alex foi até ela e brindou-a com um beijo no rosto.
- Resolveu acolher desabrigados, Alex? - perguntou a mulher, ajeitando os cachos negros, penteados de modo artístico, e olhando para Kate com desdém. - Quem é o moleque?
Alex tomou uma decisão rápida. O instinto lhe dizia que não fora apenas uma questão de segurança que trouxera os Brantley a Londres.
- Barbara, apresento-lhe Kit...
- Riley - Kate apressou-se a acrescentar, voltando na direção deles e curvando-se para beijar a mão de Barbara. - Meu primo tem dificuldade em aceitar minha ascendência irlandesa.
- Primo? - ecoou Barbara, olhando com estranheza de um para outro.
Alex não teve alternativa.
- Kit, lady Barbara Sinclair.
- Milady. - Kate anuiu e soltou a mão da dama. - Encantado.
Barbara deu um leve sorriso.
- Não me lembro de Alex tê-lo mencionado.
- Bem, faço parte do ramo pobre da família. - Kate fitou Alex com malícia.
- Alexander, eu não sabia da existência de parentes pobres.
- Na verdade, restou apenas este. - Alex olhou para Kate, ansioso.
- Por que está usando esses andrajos imundos? - perguntou Barbara, examinando o estado lastimável da roupa de Kate.
- Cheguei tarde ontem à noite, debaixo de chuva, e não quis incomodar ninguém - explicou Kate. - Então resolvi dormir na estrebaria.
Alex não pôde deixar de admirar a presença de espírito e a rapidez de raciocínio de Kate. Ela mentia e representava como ninguém, e ele não sabia se isso era bom ou ruim.
O relógio bateu nove horas, e Barbara se alvoroçou.
- Oh, ia me esquecendo do compromisso com a modista! - exclamou. - Preciso ir.
Ela sorriu afetuosamente para Kate.
- Oferecerei um jantar esta noite, e adoraria contar com sua presença, Kit. - Barbara voltou-se para Alex. - Você não se esqueceu, não é, querido? Espero vocês dois em casa, logo mais. Caroline e lady Driscoll ficarão maravilhadas.
Ela segurou o queixo de Alex e forçou o rosto dele para baixo, para beijá-lo rapidamente na boca. Em seguida dirigiu-se ao hall, deixou que o mordomo lhe colocasse o xale sobre os ombros e saiu, seguida pela criada que levava sua mala, até o coche que a aguardava.
Alex esperou ver o coche afastar-se e voltou para a sala de refeições para encontrar Kate já sentada à mesa e servindo-se de fatias de presunto com as mãos. Ao vê-lo, ela parou de comer e endireitou-se na cadeira. Alex sentou-se em seu lugar, em silêncio, e abriu o guardanapo de linho sobre as pernas.
- Ela é sua amante? - perguntou Kate, sem preâmbulos, voltando a atacar a travessa de presunto.
Ignorando-a, Alex indagou:
- Quantos anos você tem?
- Dezenove - respondeu ela, de boca cheia. - Faço vinte no mês que vem.
- Comporta-se como se tivesse doze - provocou Alex.
- Eu sei. - Kate dobrou outra fatia de presunto e colocou-a inteira na boca. - E você?
- Vinte e nove. Faço trinta em setembro.
- Aparenta essa idade mesmo - observou ela, tomando um gole de chá.
- Suponho que devo lhe agradecer por não ter devorado meu gado esta manhã.
Kate fez uma careta.
- Não gosto de carne crua. - Ela fez uma pausa. - Afinal, ela é sua amante ou não é?
- É.
Alex apoiou o cotovelo na mesa e o queixo na palma da mão. Espantado, observou-a puxar a travessa com torradas.
- No começo pensei que fosse sua esposa.
- Isso não me passaria pela cabeça. Tire o chapéu, a menos que seja uma criatura selvagem.
Kate fitou-o de relance e hesitou antes de obedecer. Os cabelos desalinhados eram longos demais para a moda masculina em voga, porém mais curtos do que seria indicado para uma dama.
Kate encolheu os ombros e largou o chapéu sujo no chão.
- Está melhor agora?
- Um pouco mais civilizado - disse Alex. - Se pretende se fazer passar por um rapaz, por que não corta essa cabeleira de forma mais apropriada?
Kate tocou nos cabelos.
- Este corte está na moda em Paris. - Pegou um pêssego e mordeu-o, sem se preocupar em descascá-lo. - Por que não me manda embora?
- Porque estou me divertindo. - Alex observou o sumo da fruta escorrer pelo queixo delicado. Se com aquela aparência desleixada e vestida como um rapaz, ela era atraente, como não seria com roupas femininas e aspecto tratado? - Embora não devesse, depois de saber que tenho parentesco com os malditos irlandeses.
- Riley é o sobrenome de solteira de minha mãe. Por isso sou meio maldita irlandesa e meio inglesa insolente.
- Uma bela herança - Alex ironizou.
- E muito orgulhosa de toda essa droga infernal. - Kate o fitou de soslaio. - Não está chocado com meu linguajar?
Alex riu e ela se recostou, com um sorriso encantador nos lábios.
- Não. Você me diverte, eu já disse. Antes me deu a impressão de ser bem mais austera.
- Eu estava com raiva. Você não queria que eu ficasse hospedada em sua casa.
- Eu nunca disse isso. Kate ficou séria.
- Não sou uma desabrigada, nem uma moça sem princípios. Meu pai lhe pediu para me acolher por uns dias por conta da dívida de honra de sua família com a minha. Se não pretende honrar essa dívida, serei obrigada a partir.
Para quem fora criada na França, Kate falava um inglês perfeito. Ela parecia uma jovem bem-educada, inteligente e sagaz. Alex compreendia que Stewart o tivesse procurado por conta da dívida, mas perguntava-se por que razão ele queria esconder a filha, e de quem. Não que a presença dela o aborrecesse, ao contrário.
- Faço questão de honrar a dívida para com seu pai, Kate.
- Obrigada. - Kate levou à boca a última fatia de presunto. - Isso me poupa de ter que forçar você a um acordo.
- Ah... E como você me forçaria a um acordo?
- Eu poderia contar ao marido de lady Sinclair que ela passou a noite aqui.
Alex descontraiu-se. A ameaça era insignificante.
- Minha querida, o marido de Barbara é inofensivo, uma vez que está sete palmos embaixo da terra.
- Ou eu poderia deixá-la descobrir que sou mulher. Isso arruinaria o relacionamento.
Alex sacudiu a cabeça.
- Barbara sabe que não sou fiel. Creio que terá de me conhecer melhor antes de planejar um meio de me coagir, Kate Brantley.
Alex seria capaz de apostar que havia algo mais ali do que simplesmente a necessidade de proteção. Talvez Kate estivesse à procura de um bom partido. Se fosse isso, ficaria desapontada. Casamento não fazia parte de seus planos. Ele apreciava imensamente uma companhia feminina, mas apenas para se divertir, não para um compromisso sério.
- Por que ela aceita ter um relacionamento com você, mesmo sabendo que você não é fiel? - estranhou Kate.
Alex perguntou-se se aquela ingenuidade seria autêntica ou simulada.
- Porque sou podre de rico - admitiu ele com sinceridade. - O que não deve ser novidade para você.
- Eu ouvi falar em conde de Everton pela primeira vez há apenas quatro dias, e não fazia a menor idéia de como era esse homem que iria me hospedar. Pensei que fosse o senhor do retrato.
Ainda com o queixo apoiado na mão, Alex tamborilou os dedos no rosto. Por um momento, pareceu-lhe que Kate dizia a verdade.
- Então seu pai a abandonou aqui.
- Ele não me abandonou - corrigiu Kate, com veemência.
- Deixou-me aos seus cuidados por duas semanas, e voltará para me buscar.
- Ele já fez isso antes?
- Algumas vezes. Em geral fico no nosso apartamento em Saint-Marcel, quando ele tem de se ausentar da cidade.
- Você mora em Saint-Marcel?
- Sim, por quê? Alex parecia chocado.
- Seu pai é irmão do duque de Furth. Por que vocês têm de morar justamente na pior zona de Paris?
- Não é tão ruim. Além disso, sei tomar conta de mim mesma. Se eu quiser, qualquer um acredita que sou um rapaz.
- A mim, você não enganou.
- No seu caso, não era tão grave se viesse a descobrir. Mas já estou acostumada a me disfarçar, e papai achou que seria melhor, para evitar problemas.
- Está certo. Eu quase expulsei vocês daqui ontem à noite.
- E por que não fez isso?
- Porque fiquei intrigado com você.
- Mas você pensou que eu fosse menino.
- Por isso mesmo.
- Então, você tem uma queda por garotos?
Alex franziu a testa. Sutileza, sem dúvida nenhuma, era uma faceta inexistente na personalidade de Kate Brantley.
- Nenhuma - respondeu ele, controlando-se para não rir. - Na verdade, fiquei aliviado quando descobri seu disfarce.
- E continua aliviado? - perguntou Kate, fitando-o por sob os longos cílios.
"Intrigado" e "curioso" seriam os termos mais exatos, mas Alex não daria a ela essa satisfação.
- Creio que sim - falou, aparentando indiferença. - A temporada tem sido enfadonha.
- E eu a deixarei mais interessante.
- Espero que sim... - Alex ergueu a xícara de chá -...prima.
Kate sorriu e imitou o gesto dele, num brinde silencioso.
Após o lauto desjejum, Kate teve de esperar algum tempo antes de mergulhar na tina de latão que fora levada a seu quarto. Sentia-se imunda depois da viagem, da chuva e da luta na cocheira com o cavalariço, e a sensação da água quente envolvendo seu corpo, mais a lembrança do modo como Alex a olhara, com uma sensualidade velada, era mais que reconfortante.
- Não vá pegar no sono, senhorita, ou acabará se afogando - avisou a governanta, atrás dela.
- Obrigada, sra. Hodges. - Kate virou-se e viu a robusta mulher de cabelos brancos. - Prefiro que me chame de Kit.
A sra. Hodges sorriu.
- Vou tentar - retrucou, brincalhona. Kate retribuiu o sorriso.
Dali a pouco Kate levantou-se para receber a toalha estendida das mãos da governanta. Sentiu-se constrangida. Ninguém a via despida. Nunca tivera criadas, e a mãe morrera quando ela estava com seis anos. Pouco tempo depois, o pai vendera a pequena propriedade em Hampstead. Eles haviam se mudado para Madri, depois para Veneza e finalmente haviam chegado a Paris. Durante esse percurso ela assumira a identidade de Kit Riley Brantley, filho ou sobrinho de Stewart, dependendo das circunstâncias.
Enrolou-se na toalha macia e a governanta começou a mexer nas vestimentas que uma criada trouxera.
- Não se preocupe, sra. Hodges. Estou acostumada a me vestir sozinha.
A mulher examinou a gravata e sacudiu a cabeça.
- Eu não saberia mesmo lidar com isso.
A sra. Hodges deixou-a sozinha. Kate olhou as roupas que os criados haviam se esforçado para limpar. Mais do que nunca lhe pareceram andrajos, como os descrevera Barbara Sinclair. Velhos, desbotados e com remendos. A faixa de pano que usava ao redor do busto provocou coceiras.
- Droga.
Kate tentou endireitar a copa do chapéu de feltro e enfiou-o na cabeça, depois de amarrar os cabelos para trás com uma tira de tecido. Hesitou antes de abrir a porta do quarto e descer. Sentira-se constrangida sob o escrutínio de Alex, ainda mais depois que ele descobrira a farsa. Segundo o pai, Alex era um devasso. E ela teria de conviver com ele por duas semanas.
A governanta e o mordomo esperavam por Kate ao pé da escada.
- Onde está o conde?
- Milorde saiu - respondeu Wenton, sem comentar sobre o fato de a sra. Hodges atender um rapaz.
- Saiu? - Kate desapontou-se. Perdera uma oportunidade de travar conhecimento com pessoas ligadas a ele.
- Sim. Milorde disse que se você estivesse disposto, eu poderia acompanhá-lo em um passeio pelas redondezas. E instruiu-me a não deixá-lo sair da casa sozinho.
- Está bem. - Kate suspirou, irritada.
- O almoço é servido em geral à uma hora, se lhe for conveniente - Wenton informou.
- Para mim está ótimo. - Kate estranhou a cortesia. As refeições em Saint-Marcel nunca eram planejadas e muitas vezes consistiam de pão seco.
Kate percorreu a mansão e ficou extasiada com a suntuosidade. Mal notou a presença do mordomo, que não se afastava dela por um segundo sequer. Com exceção do Palais Royale, nunca vira tanta opulência. Refletiu que, a julgar pela quantidade de ouro, prata e cristais, o conde de Everton não devia ser o nobre que seu pai procurava. Alexander Cale não precisava de dinheiro nem de encargos governamentais. Além disso, homens libertinos não ocupavam cargos de responsabilidade.
A saleta íntima ficava em um dos cantos, no andar térreo da casa. Era mobiliada com peças de madeira clara, e a decoração refinada induzia a supor-se um toque feminino. Um conjunto de sofá e poltronas estofados predominava no ambiente, e as mantas decorativas, mesinhas de canto com abajures e delicadas peças ornamentais, completavam a decoração de extremo bom-gosto. Kate calculou que aquele aposento devia ter sido o preferido da condessa, mãe de Alex.
- O que tem atrás destas portas? - perguntou Kate, apontando para as portas duplas de madeira trabalhada.
- Aqui é o gabinete privativo do conde - respondeu Wenton, indicando uma delas. - E ali fica o depósito da prataria.
- Por que estão trancadas?
- Eu não saberia dizer, filho.
A curiosidade de Kate aumentou. Afinal, era filha de um homem que praticava contrabando e roubos ocasionais. Descobrir o que havia lá dentro teria de ficar para mais tarde.
A biblioteca impressionou-a pela quantidade de livros. Certamente a família gostava de ler. Muitos dos volumes eram recentes, o que a levou a deduzir que Alex Cale tivesse herdado dos pais o gosto pela leitura. Rodeou as estantes e passou a ponta dos dedos pelas lombadas dos livros encadernados. A leitura fora uma extravagância rara em sua vida, da qual ela sentia falta. Talvez Alex não se importasse de lhe emprestar um ou dois livros durante sua estada ali.
A proximidade de criados dificultava a Kate fazer uma exploração mais detalhada da casa. Os quartos de dormir não a interessavam. Também duvidava que as salas de estar e de jantar, bem como o salão de bailes no terceiro pavimento, abrigassem segredos.
Depois do almoço, foi até a saleta íntima e espiou pela janela. Do outro lado de Park Lane, as alamedas do Hyde Park estavam apinhadas de damas e cavalheiros bem vestidos. Resoluta, Kate pôs o chapéu na cabeça e saiu, disposta a obter alguma informação.
Fazia meia hora que ela perambulava pela praça arborizada quando sua atenção foi atraída para um grupo de lordes que conversavam à sombra de uma árvore, montados em seus cavalos. Falavam sobre Napoleão e as leis tarifárias, e discretamente Kate se posicionou atrás de um arbusto para escutar a conversa.
- Ele está interferindo também no nosso próprio comércio - queixou-se um homem gordo e atarracado.
Kate o descartou de imediato. Quem quer que estivesse contribuindo para o embargo dos "negócios" franceses teria de ser simpatizante com as leis tarifárias.
- Nem mesmo um perdulário como George venderia mercadorias a um país com o qual estamos em guerra - respondeu um outro. - Há três anos, Bonaparte confiscou todas as propriedades inglesas que conseguiu. Aposto que na ocasião milorde não se queixava do comércio.
Espiando por entre a folhagem, Kate reparou que o cavalheiro que falara era o mais jovem dos três. Tinha os cabelos castanhos bem cortados e montava um cavalo baio.
- Ora, ele não recebeu sua cota de ouro - interveio o terceiro homem, com ar de riso.
- Não tem graça, Rawlings - repreendeu o gorducho.
- Não acredito que a parte de Donald tenha sido muito vultosa, em vista do insucesso da empreitada - o jovem garboso opinou.
- Sem dúvida - concordou Rawlings. - E graças a... Nesse momento, a concentração de Kate foi interrompida por um movimento às suas costas, que a obrigou a virar-se para trás. A primeira coisa que ela viu foram as pernas de um formoso garanhão negro, e antes mesmo de erguer os olhos, ela já sabia quem era o cavaleiro que o montava.
O semblante de Alex Cale não era dos mais afáveis quando ele olhou para Kate, com as mãos cruzadas sobre o arção da sela.
- Achei que você soubesse a diferença entre "ficar dentro de casa" e "sair de casa".
Kate comprimiu os lábios e suspirou, contrafeita. Ele a fizera perder o resto da conversa.
- Não sou uma débil mental, milorde - retrucou ela, irritada.
- Nunca achei que fosse, apesar de você insistir em parecer que é. Alex tirou um pé do estribo e estendeu a mão para baixo. Kate suspirou, apoiou-se no suporte de couro e deu um impulso para sentar-se atrás dele. Num gesto automático, passou os braços ao redor da cintura dele, sentindo os músculos rijos do abdome liso. Ao aproximar o rosto da jaqueta de montaria que Alex usava, ela sentiu um leve odor de charuto e a fragrância almiscarada de creme de barbear. Inclinou-se para a frente para inalar o perfume.
- Eu... estava entediada - disse ela, decidindo que tinha de agir como "primo", não como mulher.
- Isso é óbvio. - Alex fitou-a por sobre o ombro.
O pai de Kate sempre descrevera os nobres ingleses como homens anêmicos, tacanhos, antipáticos e desagradáveis. Alexander Cale devia ser uma exceção. Alto e forte, ele estava longe de ser anêmico.
- Aonde milorde foi hoje?
- Eu saí. - Alex cutucou o cavalo, conduzindo-o para a alameda que circundava a praça.
- Ah... que interessante.
- Não muito.
- Precisamos voltar? Eu gostaria de conhecer seus amigos. Alex ficou em silêncio até chegarem à Cale House. Ajudou Kate a desmontar e entregou o cavalo aos cuidados de Conklin.
- Pelo menos podemos ir ao jantar de lady Sinclair? - Kate seguiu-o para dentro de casa.
- Eu vou. - Alex parou de repente. - Você não vai a lugar nenhum, vai ficar quietinha aqui dentro de casa.
- Mas aqui é muito monótono, o tempo custa a passar! - queixou-se ela.
Alex estava tornando aquela missão cada vez mais difícil, tanto pela teimosia quanto pela presença perturbadora.
- Será apenas por quinze dias. Tenho uma boa biblioteca. Por acaso sabe ler?
- Por acaso, sei. Mas só leio histórias de piratas malvados com lutas de espada e bem sangrentas.
O riso grave e melodioso de Alex provocou arrepios na espinha de Kate.
- Vamos ver o que se pode fazer.
Ele subiu a escada para se vestir, e Kate foi para seus aposentos, decidida a lavar-se. Não tinha intenção de ficar para trás. Algum tempo depois, Wenton anunciou o jantar. Enquanto comesse, pensaria numa maneira de ir à festa de Barbara Sinclair.
Estava saboreando uma suculenta asa de galinha assada quando a porta se abriu e o conde entrou.
Kate já vira homens vestidos em traje a rigor. Comparecera a várias festas parisienses disfarçada de rapaz. Mas ao ver Alexander Cale, refletiu que nunca tivera tão magnífica visão de masculinidade. O paletó cinza-escuro de talhe elegante deixava entrever um colete creme e a corrente de ouro do relógio de bolso; a calça preta realçava as coxas musculosas. Kate engoliu em seco. Com aqueles cabelos pretos ondulados e penetrantes olhos azuis, Alex era um modelo de perfeição da espécie masculina.
- Aqui está, prima. - Com expressão divertida, ele deixou um livro sobre a mesa.
- Robinson Crusoé - Kate leu em voz alta.
- Embora não tenha nenhuma cena de luta de espada, é tipicamente pirata.
- Obrigada.
- Comporte-se - advertiu ele, depois virou-se e saiu. Kate mordeu a asa de galinha, e um trovão ribombou acima da casa. A chuva açoitava implacavelmente as vidraças.
- Tomara que ele fique encharcado feito um pato - murmurou ela, sem se importar com a presença repentina do mordomo.
Por mais estranho que parecesse, Kate se ressentia de ser deixada sozinha em casa, enquanto Alex ia se divertir com Barbara Sinclair.
- Wenton... Alex tem conhaque?
- Recebi instruções para não lhe servir bebida alcoólica, filho.
Kate fez uma careta, e o mordomo teve de apertar os lábios para não rir.

Capítulo II

Na manhã seguinte, quando Kate desceu para tomar o desjejum, descobriu que Alex já saíra, o que lhe causou uma profunda irritação. Que tipo de anfitrião era ele, que não tinha sequer a cortesia de esperar para desejar bom-dia à hóspede antes de desaparecer?
Wenton explicou que o conde tinha várias reuniões e recomendara para que ela não se ausentasse da casa. A chuva contínua deixava Park Lane com cor cinzenta e com enormes poças de água, o que não afetou em nada a resolução de Kate de desobedecer à ordem de não sair. Antes, porém, tinha uma tarefa a executar.
Avisou Wenton de que ficaria lendo na biblioteca e correu para examinar a porta fechada do gabinete de Alex. Depois de se certificar de que não havia ninguém por perto para observá-la, ajoelhou-se e tirou a faca de dentro da bota. A fechadura era mais resistente do que ela pensara, mas acabou cedendo, graças à sua habilidade.
O escritório era amplo, com uma porta de ligação aberta para uma saleta contígua, onde havia uma mesa de bilhar e algumas poltronas velhas. Kate perguntou-se por que razão Alex escolhera um cômodo tão escondido e isolado do resto da casa para ser a sala de jogos. Precisava descobrir se Alexander Cale se dedicava a atrapalhar as transações de "exportadores autônomos". Fora essa incumbência que ela recebera do pai. Stewart Brantley sempre dizia que o trabalho deles era levar para os cidadãos parisienses mercadorias livres de impostos.
Kate abriu a primeira gaveta de uma das laterais da escrivaninha, de madeira entalhada. Estava cheia de folhas de pergaminho em branco e lacres. Na segunda gaveta havia convites para soirées, bailes, recitais, passeios, jantares, piqueniques, almoços, corridas de cavalo, caçadas, desjejuns e toda espécie de eventos. O conde era bastante requisitado. Na gaveta seguinte, Kate encontrou uma caixa contendo um par de pistolas. O fato de o conde possuir uma ou duas armas não era, em si, significativo, e ela fechou a gaveta para examinar o conteúdo das gavetas do outro lado. Na primeira havia um baralho, um mapa da Costa Leste da Inglaterra, algumas moedas francesas e um velho pergaminho amassado onde estava escrito: Mosquete - 938, Pistola - 352.
Talvez se tratasse da relação dos tiros que haviam matado as aves na última temporada. Kate preocupou-se com as moedas e o mapa da costa. Ainda não podia eliminar o conde de Everton da lista de prováveis suspeitos. Por um lado, aqueles objetos poderiam ser inocentes, úteis para quem tivesse, por exemplo, uma embarcação de passeio ou de pesca. Junto do mapa estava uma carta, um tanto comprometedora, de uma tal "Condessa Fenwall", e um catálogo de equipamentos agrícolas, com uma carta do administrador da propriedade do conde de Everton inserida entre duas páginas, dizendo que a maior parte do feno fora ceifado e precisava ser replantado. Lady Fenwall pedia para Alex visitá-la enquanto o marido estava em Yorkshire. Prometia várias coisas que fizeram Kate corar. A carta era datada do ano anterior. Kate perguntou-se se Alex teria aceitado o convite. Condessa ridícula!, pensou.
Os livros de contabilidade estavam na gaveta seguinte, e Kate abriu o primeiro deles. Na caligrafia masculina de Alex, havia páginas e páginas de anotações de lucros sobre as propriedades, que eram no mínimo três, além dos lançamentos de despesas com salários, impostos, roupas, entradas de teatro, mobília, a compra de uma égua e mais uma centena de itens de valor variado. Kate recostou-se na cadeira. Alexander Cale não estava brincando quando dissera que era podre de rico.
Kate hesitou antes de abrir a última gaveta. Não queria encontrar evidências concretas do envolvimento de Alexander Cale no embargo das transações clandestinas de seu pai. O que era um absurdo, já que era exatamente por isso que estava ali. Não importava quem fosse o agente inglês, contanto que o encontrasse. O carregamento teria de ser entregue para que Fouché se acalmasse.
Puxou a gaveta e viu uma caixa de bombons, uma garrafa de vinho do Porto deitada e uma caixa de charutos finos. Com um sorriso, ela pegou um bombom e fechou a gaveta. Mastigando o chocolate, pôs-se a examinar a prateleira interna do anteparo da escrivaninha e alguns papéis que se encontravam sobre o tampo envernizado. Não encontrou nada de interessante. Ao que tudo indicava, o segredo mais bem guardado de Alexander era a paixão por chocolate. Mas Kate ainda não podia se dar por convencida.
Saiu do escritório, trancou a porta e limpou as marcas dos dedos na maçaneta lustrosa. Correu até a biblioteca, entrou, deu a volta e saiu, fechando a porta com ruído. As restrições impostas por Alex dificultavam o acesso a lugares onde Kate poderia encontrar o que procurava, mas não havia tempo para ficar sentada de braços cruzados, à espera de uma oportunidade. Tinha de pôr mãos à obra.
Kate foi até a sala de almoço e pegou um pêssego da fruteira, para enganar o estômago até a hora do almoço. Nesse instante ouviu a porta da frente ser aberta.
- Onde está o estimado Alexander? - perguntou uma voz masculina.
- O conde saiu - respondeu Wenton.
Espiando pela porta entreaberta que ligava o saguão de entrada ao hall de distribuição, Kate viu três cavalheiros parados no umbral, todos muito bem vestidos e com aparência de lordes. Um deles a avistou, e Kate reconheceu o homem que se mostrara a favor das leis tarifárias, na conversa que escutara no Hyde Park, no dia anterior. E esse mesmo homem aparentemente era amigo de Alexander Cale, que por sua vez tinha posse de um mapa da costa da Inglaterra e moedas francesas. Interessante.
- Ah, é você! - exclamou o homem que a vira.
- Sou eu, o quê? - Kate indagou, apreensiva.
Os outros dois homens se viraram para ela. O baixote atarracado sorriu e se aproximou.
- Tem razão, Reg - murmurou ele, por sobre o ombro. Kate encostou-se no batente da porta.
- Quem eu deveria ser? - Kate repetiu a pergunta, imitando o sotaque afetado dos visitantes.
- O rapaz sobre quem Barbara falou a noite inteira. O primo de Alex. O que deveria ter roubado o coração de Caroline.
- Quem é Caroline? - quis saber Kate.
- A mulher com quem vou me casar. - Reg fez uma careta engraçada.
- Pobre garoto iludido - o terceiro lamentou e fitou-a com olhar especulativo.
Kate disse a si mesma que aquele era o mais perigoso dos três.
- Por que não vem almoçar no Boodle's conosco? Nós deixaremos que participe da conspiração.
Kate não saberia afirmar se era ironia ou se era sério. Teria de desempenhar seu papel a contento ou poderia levantar suspeitas.
- Eu iria, se soubesse quem milorde é. O homem loiro sorriu.
- Sou lorde Reginald Hanshaw, Reg para os íntimos.
- Eu sou Francis Henning, Francis a qualquer hora. - O baixote gorducho estendeu a mão.
Kate cumprimentou-o e ele apontou para o terceiro homem.
- E este é o visconde Devlin. Augustus, para quem consegue tolerá-lo. Ele às vezes é insuportável.
- Só para meus amigos - o visconde retrucou com um aceno de cabeça e virou-se para o lado, para tossir discretamente.
- Prazer, Devlin - murmurou Kate apertando a mão do homem que devia temer. - Kit Riley. Kit para todo o mundo.
- É curioso que Alexander nunca tenha comentado conosco que tinha parentes irlandeses - observou Reg, com um olhar de soslaio para Reg e fazendo um sinal para Kate acompanhá-los.
- Eu não deveria ir sem o conhecimento de meu primo - disse Kate, simulando relutância. Aqueles três cavalheiros lhe possibilitariam ter acesso a muito mais lugares do que ela conseguiria por conta própria.
- Ora, Kit, venha conosco - insistiu Devlin. - Reg pagará tudo.
Kate sorriu, encantada com os três, apesar das advertências de seu pai. O ponto de vista de Stewart às vezes era mais influenciado por preconceito do que por alguma razão justificada.
- Está bem.
- Céus. - Reg deu uma risada. - Até mesmo os estrangeiros querem se aproveitar de mim.
- Kit - interveio Wenton, dando um passo à frente. - Não creio que o conde aprove sua atitude.
- Ele que tivesse providenciado melhor entretenimento para mim, então - respondeu Kate, com pouco caso.
- Muito bem dito - aprovou Devlin.
Kate lançou um olhar desafiador ao mordomo, vestiu o capote surrado e saiu para as ruas chuvosas de Mayfair.

- Aonde é que você foi?
Kate quase deixou cair no chão a capa encharcada, antes de entregá-la a Wenton. Alexander Cale estava de pé, no hall, sem paletó e com a gravata na mão. Os olhos brilhavam de raiva.
- Eu saí. - Kate entregou o chapéu ao mordomo e tentou ignorar a presença imperiosa às suas costas.
- Ah, saiu - repetiu Alex. - Por que não me acompanha até a biblioteca, um instante?
- E por que você não vai para o inferno? - ela retrucou, sacudindo as botas molhadas.
Alex hesitou e em seguida agarrou-a pelo colarinho.
- Solte-me! - Kate gritou e esperneou.
Alex gemeu ao ser atingido na perna e agarrou-a pelo paletó, indiferente à agitação de Kate, arrastou-a até a biblioteca. Ela acertou-lhe um soco, e Alex segurou-lhe os pulsos com força, abriu a porta com um pontapé e jogou-a em cima de uma poltrona.
Kate levantou-se de imediato.
- Seu canalha! Não toque em mim!
- É a segunda vez que sai sem minha permissão. - Alex esfregou o ombro onde ela o atingira. Seria um desastre se ela houvesse acertado o queixo. - Não ouse me desafiar novamente!
- E você acha certo sair para se divertir com seus amigos, enquanto eu fico aqui feito uma prisioneira? - Kate endireitou o casaco.
- Segundo entendi, seu pai desejava que ficasse em segurança e... protegida. Se resolveu mudar as regras por sua conta, não pode esperar que eu concorde, uma vez que a responsabilidade continua sendo minha. Certo?
- Não mudei regra nenhuma!
- O que não deixa de ser uma pena. - Alex abriu a porta.
- O que quer dizer com isso? - Pense o que quiser, prima.
- Não sei o que você esperava. Meu pai não disse que você deveria me deixar trancafiada dentro de casa até morrer de tédio.
- E lhe dei um livro para ler. - Alex saiu da biblioteca e começou a subir a escada.
Kate seguiu-o.
- E acha que um livro idiota é distração suficiente para uma pessoa?
- É uma obra-prima, e é a primeira edição.
- Então, além de idiota é velho!
Kate só se deu conta de que o seguira até os aposentos dele quando chegou à porta do quarto. Parou e olhou ao redor. O recinto tinha o dobro do tamanho do quarto de hóspedes. A madeira escura e os tecidos em tom de verde e dourado contrastavam com as paredes claras. A cama de dossel era enorme, mas com um único travesseiro.
- Não creio que lhe agradasse bordar, por exemplo - disse Alex com cinismo. - Ou estou errado?
- Ah! Outras pessoas se interessariam por Robinson Crusoé muito mais do que mim.
- Do que eu - corrigiu Alex, tirando a gravata e jogando-a para um criado que os observava.
- Do que eu - repetiu Kate, imitando o sotaque dele. - Vous êtes un boeuf stupide!
- E você é uma pirralha inglesa! - Sem cerimônia, Alex desabotoou o cós da calça e puxou a camisa para fora. - Fale inglês!
Kate enrubesceu, longe de estar escandalizada com o fascínio que Alex exercia sobre ela. Incomodava-a que ele tivesse revelado o segredo na frente de um empregado. O criado continuava a tirar os vincos da gravata e Kate imaginou se ele seria surdo.
- Vous êtes un grand boeuf stupide! - ela acrescentou. Alex abotoou de novo a calça.
- Antoine, não fique aí parado. Traduza. O rapaz interrompeu o que estava fazendo.
- Perdão, milorde?
- Traduza o que ela disse! - o conde repetiu. - E jogue essa porcaria fora e me dê uma nova.
- Pois não, milorde. - Antoine foi até uma cômoda de mogno e pegou uma gravata de seda branca. - O senhor é uma anta. - Ele se virou e voltou para o lado do conde.
- Un grand boeuf stupide! - enfatizou Kate, olhando para o criado.
- Antoine? - perguntou Alex.
- Uma grande anta, milorde.
Alex passou o pente nos cabelos, que, um pouco mais longos do que o corte ditado pela moda, tocavam o colarinho da camisa. Kate teve vontade de passar a mão neles.
Alex observou o reflexo dela no espelho da penteadeira.
- Você invade minha casa, come minha comida, suja meu tapete, abusa de meus favorecimentos e de meus amigos. E eu é que sou uma anta?
- É um anfitrião horroroso!
- Kate Brantiey - Alex virou-se e encarou-a -, devo lembrá-la de que não é minha hóspede. Portanto, não sou seu anfitrião.
- Sou... Estou tentando pagar uma dívida de honra e cumprir uma promessa que nunca fiz. - Apontou um dedo para ela. - E terá de seguir as regras que lhe impus.
- Drogue!
- Antoine?
- Droga, milorde.
Alex franziu os lábios e abotoou o colete branco.
- Onde esteve hoje?
- Reg, Francis e Augustus Devlin me levaram para almoçar no Boodle's.
Tudo que Kate descobrira fora que Reg e Devlin, como ela, também não gostavam de Napoleão. Reg interpretara com comicidade a política do príncipe George. Entretanto, sua amizade com Alex poderia ser motivo para algumas indagações. A precaução contra Devlin continuava. Francis não era muito esperto, mas era divertido.
- Aposto que milorde sabia. Wenton deve ter lhe contado.
- É verdade.
- Então por que perguntou?
- Para ver se você mentiria.
- Eu?!
- Sim. Parece-me afeita a mentiras.
Kate encostou-se no batente e observou Antoine amarrar a outra gravata do conde. Gostou da maneira de fazer o nó.
- Você vai ao White's?
- Vou.
- Augustus me convidou para ir com ele esta noite, se você não quiser me acompanhar.
- A senhorita não vai a nenhum lugar! Nem comigo nem com Devlin! - Alex explodiu. - Será que estou sendo claro?
- Milorde nem parece um nobre cavalheiro inglês - resmungou Kate, sem esconder o desapontamento.
Se não pudesse percorrer Mayfair sem um bom guia, todo o sacrifício da viagem teria sido inútil. O conde de Fouché tornaria a vida ainda mais difícil para eles. Talvez até mesmo tentasse matá-los.
- Isso não importa - retrucou Alex. - Vou mantê-la em segurança dentro de minha casa por mais doze dias. Depois disso a entregarei a seu pai. Os dois nunca mais terão motivo para me incomodar.
Com a ajuda de Antoine, ele vestiu um paletó azul-escuro e depois calçou um par de luvas brancas.
- Boa noite.
Alex passou por Kate, desceu a escada e disse para Wenton não o esperar.
Kate refletiu que o pai ficaria desgostoso ao saber que o conde de Everton a mantivera em cativeiro.
- Precisa de alguma coisa, sir? - Antoine limpou a penteadeira do conde e fitou-a com curiosidade.
- Não. Sim. - Kate apontou para a gravata que Antoine se preparava para jogar fora. - Posso?
- Creio que sim.
Kate pegou a peça amarrotada, em muito melhor estado que a sua.
- Merci - agradeceu, antes de ir para seu quarto, tomada por um profundo desânimo.
- Escute o que lhe digo. Heathrow vai pleitear residência permanente nas colônias no final da temporada. - Francis Henning pôs as cartas usadas em uma pilha e sacudiu a cabeça para o carteador. - Seja mais bondoso.
Alex riu.
- Você poderia tentar o suborno. Mesmo que Heathrow esteja arruinado, ele ainda tem a Mansão Oberlin no nome dele.
- Não, Alex. A mansão está hipotecada. - Reg observou o conjunto de naipes de espadas na mesa. - Dessa vez será o sete. - Ele depositou várias moedas sobre a carta.
- Você tem repetido isso a noite inteira - Devlin observou e deu uma tossidela. - Alexander, ele está certo sobre Heathrow. O nosso marquês empobrecido tem duas alternativas. A América ou a prisão por dívidas. - Tomou o último gole de vinho do Porto e serviu-se de nova dose.
- Heathrow está assim por culpa dele mesmo - Reg continuou. - Margaret Devereaux propôs-lhe casamento.
Alex fitou o irmão mais novo da srta. Devereaux, que sempre ocupava uma das cadeiras douradas do White's.
- Eu preferiria encarar as dívidas a me casar com ela.
- É o que Heathrow deve ter decidido - concordou Devlin.
- Alex, por que não trouxe seu primo? - Reg mudou de assunto e soltou uma imprecação quando o crupiê virou um nove de copas. - Sete. Eu disse sete.
- O garoto me aborrece muito e quero me livrar dele o mais depressa possível.
Alex esvaziou a taça e pediu para Devlin tornar a completá-la. Kate Brantley era um problema em todos os sentidos, e ele se recriminou por ter concordado que ela ficasse na Cale House.
- Suponho que isso implica em negar-me um adiantamento para eu jogar esta noite?
Alex ficou emudecido. O som da voz melodiosa atrás dele precedeu o toque da mão delicada em seu ombro. Ele entornou o cálice e engoliu o vinho de uma só vez. Então virou-se. Kate, sorridente, desafiava-o com o olhar a tomar uma atitude contra ela. Alex encarou-a e entregou-lhe um punhado de moedas da mesa.
- Não as perca. - Alex esperava que seus amigos não percebessem o quanto ele ficara perturbado com a chegada de Kate.
- Aprendi a contar jogando faraó - Kate respondeu e sentou-se entre Devlin e Alex. Com ar de superioridade, pegou a garrafa de vinho e serviu-se.
- Isso não quer dizer que seja um expert no assunto. - Reg franziu o cenho. - Sete, mais uma vez. - Tornou a deixar algumas moedas sobre a carta ofensora.
- Por Deus, Reginald, seja mais criativo - Augustus criticou-o e pôs suas moedas ao lado de um três.
- Sou otimista.
- Isso explica a insistência em convencer Caroline a aceitar seu pedido de casamento. - Devlin virou uma moeda entre os dedos.
- É evidente que sim.
- Isso é uma loucura, rapaz.
- Kit, quer esperar até terminarmos a rodada? - perguntou Francis.
- Não, podemos continuar. - Kate informou-se sobre o valor mínimo da aposta e depositou cinco xelins ao lado do sete de espadas.
- Você também? - Francis não se conformou.
- Lembre-se de que está usando meu dinheiro - recriminou Alex.
- Uma pequena parte dele, ricaço - Kate respondeu. Devlin riu e foi acometido por um acesso de tosse, e teve de aceitar a taça que Alex lhe estendia com olhar sombrio.
Alex considerou que a aposta de Kate fora inteligente, pois ela não sabia quais as cartas que haviam saído. Apostou meia libra na dama, pois restavam duas no baralho. Fitou Kate com olhos semicerrados. As faces coradas por causa do vinho a deixavam com um aspecto encantador. Admitiu que cometera um erro ao subestimar os problemas decorrentes do desafio de decifrar Kate Brantley. Nem mesmo se surpreendeu quando o carteador virou um sete de ouros.
- Até que enfim! - Francis alegrou-se quando o crupiê deslizou algumas moedas para Reg e para Kate. - Talvez agora ele pare de se lamentar.
- Ah. - Reg fez pouco caso.
- Alex - Francis inclinou-se para a frente -, quando vai apresentar Kit a lady Caroline?
- Eu disse a Barbara que isso é bobagem - respondeu ele.
- Mas ela tem razão. O rapaz tem um ar mais do que romântico - considerou Devlin.
- Além de um cérebro diminuto e falta de modos. - Alex não conteve o riso ao ver a expressão zangada de Kate.
- Mesmo assim leve-o aos Fontaine na quinta-feira. Estou ansioso para ver a reação de Caroline quando o conhecer - disse Francis.
- Afinal, quem é essa tal de lady Caroline? - Kate ergueu uma sobrancelha.
- Meu primo não precisa conhecer lady Caroline - Alex interrompeu-os, aborrecido. - Ela não se interessará por um rapaz sem título de nobreza.
- Eu odiaria roubá-la de Reg - declarou Kate com orgulho e pôs uma moeda sobre a dama, a mesma aposta de Alex. Os dedos se tocaram e, apesar das luvas, foi possível sentir o calor da pele. - Quais as damas restantes?
- Copas e paus - disse Reg.
- Alex, eu aposto que a próxima dama será a de paus - Kate desafiou-o.
Alex esforçou-se para desviar os olhos do pescoço e do queixo de Kate.
- Dez libras - aceitou, admirado como ninguém ainda percebera que ela era mulher. - E se me permite a pergunta, como conseguirá o dinheiro da aposta?
Augustus Devlin passou para Kate dez de suas libras e terminou de tomar o vinho.
- Curioso, Devlin - Francis protestou. - Na semana passada eu lhe pedi emprestado cinco libras para apostar em um cavalo e você me mandou para o inferno. Agora empresta o dobro para esse moleque, sem ele pedir!
- Ah, estamos em família - Devlin respondeu. - Além disso eu sabia que você perderia.
- O que pretende fazer com esse dinheiro, Kit? - Alex ignorou a conversa paralela.
- Conhecer Londres. O primo se recusa a me acompanhar. Como ficarei pouco tempo, contratarei um guia.
Alex sabia que aquela explicação tinha o intuito de aborrecê-lo. Cutucou o carteador por baixo da mesa com a ponta da bota e fez que sim com a cabeça. Kate se mantinha altiva e calma, exceto pelo brilho no olhar. O homem começou a virar as cartas, uma a uma. Seis de ouros, ás de paus, três de ouros. Restaram quatro cartas.
- Ainda bem que ele parou de apostar nas damas - Reg considerou.
O crupiê fitou Alex de relance e virou a carta.
- Creio que você terá de conhecer Londres sozinho e a pé - Alex alegou quando apareceu a dama de copas.
Juntou a pilha de moedas à sua frente. Sem dinheiro, Kate nada poderia fazer, o que seria um alívio para ele. Pelo menos era o que esperava.
- Você é um egoísta desprezível.
- E eu acho que sua hora de dormir já passou, garoto.
- Meu pai me mandou para cá para eu me inteirar dos costumes da cidade.
- Seu pai o trouxe para Londres para evitar problemas enquanto ele estivesse viajando. Vamos embora. - Alex levantou-se.
Aborrecida, Kate tomou o vinho, guardou as moedas emprestadas no bolso e ficou em pé.
- Boa noite, senhores. - Ela bateu no ombro de Reg e inclinou a cabeça para Devlin.
- Boa noite, Kit - retribuiu o visconde. - Se Alex não o acompanhar, eu o farei.
- É muita gentileza de sua parte. - Alex estreitou os olhos, mas não conseguiu detectar nenhuma segunda intenção na fisionomia do companheiro.
- Às ordens, meus caros.
Kate dirigiu-se para a saída e Alex deu uma libra ao crupiê. O homem agradeceu e enfiou a moeda no bolso do colete.
- Embusteiro - Devlin murmurou.
- Sempre que possível. - Alex seguiu o "primo" para fora do clube lotado. - Como foi que chegou até aqui? - Fez um aceno e pediu a carruagem.
- Andando! - Kate indignou-se. - Não quero ser acusada novamente de roubar sua estrebaria! - Ela hesitou. - O que há de errado com Devlin?
- Por acaso esqueceu da discussão que tivemos? - Ele indicou a carruagem e subiu atrás de Kate.
- Não foi discussão. Você deixou claro que não queria se preocupar em tomar conta de mim. - Sentada de frente para Alex, ela cruzou os braços e recostou-se no assento estofado. - Não lhe pedi que me tratasse como se eu fosse uma criança pequena, só porque sou uma mulher.
- Eu nem me lembrava disso - mentiu Alex.
- Eu também raramente me lembro que você é um cavalheiro - revidou ela.
- Só quando lhe convém, como por exemplo, para roubar minhas gravatas. - Alex passou a ponta do dedo indicador nos babados que enfeitavam o colarinho de Kate.
Ela bateu na mão de Alex.
- Pare com isso! Vai estragar o laço!
Alex recostou-se e fingiu não perceber que Kate o observava. De repente, sentiu um impulso quase irresistível de beijá-la.
- Ele tem tuberculose.
- O quê?
- Você não me perguntou qual era o problema com Devlin? Estou respondendo.
- Ah.
- Você joga faraó muito bem. - Alex sorriu ao perceber que ela estava constrangida.
- Eu sei.
- Foi seu pai quem lhe ensinou?
- Ele me ensinou tudo. - Kate ergueu o queixo.
- Imagino que ele deva ter omitido muito pouca coisa. Algumas, pelo menos.
Kate percebeu a insinuação contida nas palavras.
- Está querendo me escandalizar?
- Não custa tentar.
Alex enfiou a mão no bolso, tirou uma nota de dez libras e colocou-a no colo de Kate.
- O que é isso? - Ela se espantou.
- Da próxima vez que decidir se aventurar pela noite londrina, alugue uma carruagem. Mayfair pode ser mais segura que Saint-Marcel, mas isso não quer dizer que não existem perigos.
- Está preocupado comigo? - Kate fitou-o com ironia enquanto alisava a cédula.
- Crimes também acontecem por aqui.
Ela dobrou a nota e guardou-a no bolso da calça, enquanto o coche parava em frente à entrada da Cale House. Um criado adiantou-se para abrir a porta.
- Será que poderemos nos entender daqui para a frente, primo? - perguntou Alex.
- Sim, mas...
Ele fez sinal para que ela saltasse.
- Amanhã falaremos sobre isso.

- Onde está meu primo? - Alex entregou o chapéu e as luvas a Wenton e indicou a seu acompanhante que fizesse o mesmo.
- Está tomando banho, milorde - informou o mordomo.
- De novo? - perguntou Alex, pegando o exemplar do London Times que estava no console.
- Sim, milorde.
Alex sorriu. A sujeira devia estar tão impregnada no corpo de Kate que certamente levaria um mês para se descolar. Era uma pena que ele não pudesse esfregar-lhe as costas.
- Venha, sr. Lewis.
- Pois não, milorde. - O acompanhante suspendeu a pesada sacola que trazia nos braços.
Alex parou diante da porta do escritório. Havia uma pequena porém visível lasca branca no soalho escuro de mogno, próximo à parede. Ele se abaixou e examinou a partícula. Era um fragmento da pintura, embora não houvesse nenhuma marca na parede.
- Alguém mudou os móveis de lugar, Wenton?
- Não, milorde.
Alex endireitou-se e notou um arranhão no batente, na altura do trinco.
- O que meu primo fez durante a manhã?
- Levantou-se tarde e desceu para tomar o desjejum.
- E ontem?
- Creio que esteve lendo, milorde. Deseja que eu faça um relatório diário, milorde?
Alex negou com um gesto de cabeça e deixou a lasca de pintura na mão enluvada do mordomo. Ao que tudo indicava, Kate não resistia ao desafio de uma porta trancada. Imaginou o que ela estaria procurando e se encontrara algo que a interessasse. Já ficara evidente que Kate Brantley não viera à Cale House em busca de proteção. Ele teria de descobrir a finalidade daquela viagem a Londres. Enquanto isso, teria de reforçar o trinco do depósito da prataria.
Subiu a escadaria curva e bateu na porta do quarto de Kate.
- Sim?
- Posso entrar?
- Não.
- Preciso que abra a porta.
- Para quê?
- Para falar com você sem ter de ficar me esgoelando! Alex ouviu uma imprecação abafada e o barulho de água.
- Espere um momento!
Seguiu-se uma movimentação dentro do quarto, enquanto Kate certamente saía da tina e vestia alguma coisa.
- O que foi? - perguntou ela, abrindo a porta de repente. Por um instante Alex perdeu o fôlego, diante da visão de Kate, com as mechas douradas e molhadas caindo sobre os ombros, as faces coradas pelo calor do banho e a camisa vestida às pressas, que absorvia a umidade da pele que ela não tivera tempo de secar direito. Embaraçada, ela virou-se para acabar de abotoar a calça, que segurava com uma das mãos na cintura para que não escorregasse, e enfiou apressada as abas da camisa para dentro do cós. Ao ver um desconhecido entrar atrás de Alex, Kate arregalou os olhos.
- Este é o sr. Lewis, meu alfaiate - apresentou Alex. - É um senhor bastante discreto. A especialidade dele é disfarçar as pernas tortas e as corcovas de vários membros vaidosos da aristocracia.
- Mas...
- Como você vai ficar aqui por algum tempo, julguei necessário ter mais alguns trajes - Alex interrompeu o protesto de Kate e explicou: - Eu já coloquei o sr. Lewis a par da situação.
- Mas eu não posso pagar essa despesa - insistiu Kate.
- Aceite como um presente meu - disse Alex, indo sentar-se no peitoril da janela, decidido a não deixar Lewis a sós com Kate.
Abriu o Times e folheou as páginas do jornal, fingiu ler enquanto observava o reflexo do quarto na vidraça.
Kate suspirou, deu de ombros e concordou. O alfaiate tirouda sacola uma fita métrica e começou a tirar as medidas de Kate, começando pelo braço, e depois passando para os ombros, busto, cintura, quadris e pernas.
Alex refletiu que naquele momento daria tudo para trocar de lugar com o alfaiate.
- Será que eu poderia ganhar um chapéu novo? - Kate pediu, escondendo o embaraço.
- Creio que poderemos visitar uma loja de artigos masculinos, sem despertar suspeitas - Alex concordou.
Lewis fez as anotações finais, guardou a fita métrica e molhou a ponta do lápis com a língua.
- O que tem em mente, milorde?
- Prefiro um tecido cinza. Os detalhes ficarão por sua conta. Uma camisa nova e meia dúzia de gravatas. Tudo para amanhã. - Alex cruzou as mãos nas costas e fitou Kate. - Para o final da semana quero mais dois costumes. Um azul e outro verde-escuro. Nada de marrom nem modelos de janota.
Kate fitou o próprio casaco marrom.
- Você não gosta de marrom?
- Estou cansado de vê-lo com essa roupa. Para a noite, um preto e um cinza-escuro. E também coletes e camisas. E tudo o mais que meu primo desejar.
- Está bem, milorde.
- Cinco ternos? - Kate arqueou as sobrancelhas.
- Suponho que queira cinco pares de botas e cinco chapéus?
- Posso? - Os olhos dela brilharam.
- Não.

Stewart Brantley, sentado nos fundos de uma pequena taverna em Long Acre ao norte de Covent Garden, terminou de tomar seu vinho do Porto. O taverneiro pensara tratar-se de um aristocrata, já que pedira uma bebida habitualmente servida aos nobres. O que não estava em desacordo, pois ele já fora um cavalheiro.
Não deixaria mais nenhum lorde interferir em seus negócios. O homem de quem acabava de se despedir dispusera-se a conseguir alguns caixotes vazios em troca de alguns trocados. Uma despesa insignificante em comparação ao lucro que teria depois de encher os caixotes e entregá-los nas mãos certas.
- Brantley!
Stewart Brantley assustou-se.
- Fouché! O que o trouxe a Londres? - Stewart falou em francês e olhou em volta, receoso de ser ouvido por algum inglês mal-intencionado.
Jean-Paul Mercier parecia mais um nobre francês do que um contrabandista. Aos trinta e três anos, era ambas as coisas. Usava os cabelos pretos e compridos amarrados na nuca, conforme a última moda francesa. O conde de Fouché sentou-se em frente a Stewart. Dois homens acomodaram-se em uma mesa próxima. O conde raramente viajava sozinho.
- Vim apreciar a paisagem - Fouché também respondeu em francês.
- Um período estranho para um feriado, não acha? - Stewart brincava com a garrafa de vinho e imaginava o objetivo daquela viagem inesperada de Fouché.
- Pelo visto, não está contente em me ver. - Fouché tirou a garrafa das mãos de Stewart e serviu-se. - E eu fiz um esforço imenso para encontrá-lo.
- Você sabia que eu estaria aqui.
- Quando eu soube que você e Kit haviam saído de Paris, achei que talvez não pretendesse voltar.
- Somos sócios, Jean-Paul. - Stewart não revelou que a idéia lhe ocorrera.
- Sim, mas você é um traidor, também.
- Não sou.
- Você é inglês e conseguiu armas para os soldados de Napoleão.
- Eu as consegui para você. O que fez com elas é responsabilidade sua.
- Não apenas minha, meu amigo - Fouché falou com suavidade.
Stewart não se deixou enganar. Apesar dos modos refinados, o conde era frio como gelo. Não hesitava em matar quando lhe era conveniente.
- Não se preocupe, Fouché. Já estou em contato com uma pessoa disposta a vender um carregamento de armas. Kit está na pista do bastardo que interceptou a última remessa.
O conde inclinou-se para a frente, interessado.
- Você sabe quem é?
- Saberei em breve. Não teremos mais interferências.
- Assim espero. Você me deixará a par das notícias.
Jean-Paul Mercier decidiria sobre o futuro do homem, depois que Kate o desmascarasse. Embora Stewart não morresse de amores por seus compatriotas, não era um assassino.
- Sem dúvida.
- Onde está Kit?
- Em Mayfair. - Stewart preferia não entrar em detalhes.
- Não quero me imiscuir em seus negócios. Mas eu me preocupo com sua filha sozinha em Londres.
Stewart endireitou-se no banco, sem saber o que dizer.
- Minha fi...
- Acha que sou idiota? Eu já desconfiava disso há algum tempo.
- Tive de tomar precauções para proteger Kate da incerteza que nos envolve. Nunca pretendi fazer ninguém de tolo.
- Eu sei - Fouché foi irônico. - Mas foi muito interessante descobrir a verdade.
- Por favor lembre-se que está se referindo à minha filha.
- Que já é uma mulher-feita Stewart, enquanto não conseguir aquelas armas, continuará em débito comigo. Dez mil libras.
- Eu não a venderei ao senhor. - Stewart encarou o olhar frio e maldoso.
- Talvez devesse reconsiderar a idéia - sugeriu o conde e tomou mais um gole de vinho. - Meu caráter não é pior que o seu. E certamente eu vivo com maior conforto. - Fouché observou a taverna suja e deu de ombros, decidido a não pressionar. - Não há pressa. Ainda ficaremos em Londres por uns dias.
Stewart levantou-se e deixou algumas moedas sobre a mesa encardida.
- Eu lhe entregarei os mosquetes e o nome do traidor. Nada mais.
- Veremos.

Kate nunca vira roupa mais linda. Sentou-se, ficou em pé, curvou-se e abaixou-se para ver o efeito do terno cinza no espelho da penteadeira. Após a noite passada com lorde Hanshaw nos clubes da cidade, o terno marrom estava pronto para ser queimado. Sem poder se conter, correu até os aposentos de Alex. Fosse ou não um agente inglês, tinha um alfaiate esplêndido.
- Posso entrar? - Kate perguntou depois de bater na porta.
- Por favor.
Kate abriu a porta e fez uma mesura elegante. Alex se barbeava junto à penteadeira e Antoine segurava uma toalha a seu lado.
- O que acha?
- Que são sete horas da manhã. - Alex abaixou a lâmina de barbear.
- Ah, fique quieto. É fantastique. É maravilhoso! - Kate deu uma volta, rindo.
- Magnífico - Alex concordou.
Kate aproximou-se e esticou o queixo para a frente.
- Veja a maciez do tecido da camisa.
Alex enxugou a mão na toalha que Antoine segurava e tocou no colarinho. Os dedos roçaram na base do pescoço e Kate fechou os olhos. Sentiu o polegar na linha do queixo e a pulsação acelerada. Ficou imóvel para ele continuar. Apesar dos dedos cálidos, ela estremeceu. Alex tocou-lhe o rosto antes de tirar a mão.
Kate abriu os olhos e viu que ele voltara a se barbear. Inspirou fundo e observou-o escanhoar o rosto com a lâmina afiada, sentindo-se hipnotizada. Ele virou a cabeça de lado e depois esticou a pele do lábio superior. De repente, cortou-se.
- Droga! Pare de olhar!
- Eu estava observando para ver como se faz - Kate desculpou-se.
- Providência inútil para quem não precisa se barbear, não acha? Nem mesmo deveria entrar aqui!
- Por que não? Pensei que não se incomodasse com decoro. - Kate fitou-o, travessa. - Não sei por que ficou tão irritado. Foi um cortezinho de nada. Nem mesmo deixará cicatriz.
Suponho que não se importaria também se eu tivesse cortado a orelha!
Kate fitou a orelha de Alex e a mecha de cabelos negros que a rodeava.
- Seria uma pena se milorde perdesse a orelha. Está doendo muito? - Ela deu um passo à frente e tocou-lhe o rosto.
Alex agarrou-lhe o pulso e fitou-a, e Kate teve vontade de beijá-lo. Não apenas os lábios, mas também a face ensaboada e as pálpebras semicerradas sobre os olhos azuis.
- Por que insiste em ficar olhando, Kate? - empurrou-a Alex.
- Por que insiste em não me deixar chegar perto de você? - volveu ela.
- Porque não quero que seu pai me acuse de tê-la desonrado! Ele me obrigaria a casar com você!
- Vous êtes une bete grande! - Irritada, Kate apoiou os quadris no peitoril da janela e cruzou os braços.
- De novo o maldito francês! Antoine, o que ela disse?
- Que o senhor é uma grande besta - Antoine traduziu e apressou-se a virar de costas para guardar o creme de barbear em uma pequena bacia, para que o conde não visse seus olhos cheios de lágrimas, por causa do esforço que ele fazia para não explodir numa gargalhada.
- Ah. - Alex voltou a fazer a barba. - Isso quer dizer que não pretende ir comigo à loja de artigos masculinos esta tarde.
Kate tornou a ficar em pé, animada.
- Oh, Alex, me desculpe! Eu estava brincando...
- Foi o que imaginei.
- Sabe, acho que vou precisar de um sobretudo também. Com as roupas novas, o velho ficaria horrível. E se pudermos comprar pelo menos um par de botas... O solado das minhas já está furado. Ah, e uns dois lenços de seda para usar no bolso do colet...
- Santo Deus! Você está agindo mesmo como uma mulher!
- Eu, não. - Kate o fitou com os olhos semicerrados, curiosa para testar até que ponto o afetava.
Alex tomou a largar a lâmina e virou-se para ela.
- Pode descer e começar a tomar seu desjejum - disse, fitando-a com expressão séria.
Quando Kate não se moveu, ele vociferou:
- Saia da minha frente, pelo amor de Deus, antes que eu corte a minha jugular!
Capítulo III

Alex pretendia fazer a primeira refeição do dia com Barbara, mas desistiu. Escreveu um bilhete pedindo desculpas por cancelar o compromisso em cima da hora e desceu.
Os criados ficaram surpresos com a dispensa do serviço matinal, mas Alex não quis arriscar. Kate estava de muito bom humor e não parava de admirar seu reflexo na lâmina das facas. Um criado mais esperto poderia desconfiar da verdade.
Kate largou as facas e serviu-se generosamente das iguarias que estavam no aparador. Alex refletiu que já presenteara mulheres com diamantes, e que não haviam demonstrado tanta alegria como Kate por ter ganhado algumas roupas novas. Os olhos dela brilhavam como esmeraldas. Será que aquela menina nunca ganhara um presente?
- O que representa tudo isso? - Kate sentou-se, com o prato cheio e a fisionomia séria.
- Tudo isso, o quê? - Alex tomou uma xícara de chá e levantou-se para escolher os alimentos prediletos.
- Você encomendou roupas para mim e agora dispensou os criados. Por quê?
- Por uma questão de segurança - respondeu ele. - Para todos os efeitos, você é meu "primo". Se eu a mantiver mais tempo trancada, a curiosidade será ainda maior. Por isso terá de sair um pouco e conhecer algumas pessoas. E isso seria impraticável usando aqueles trapos.
- Ainda bem. Não agüento mais ficar trancafiada aqui dentro.
- Espero que deixe de criar problemas. Não gosto disso. Kate enfiou uma fatia enorme de pêssego na boca.
- Gosta, sim.
- Como é?
Ela mastigou e engoliu a fruta.
- Você gosta de problemas.
- E o que a faz supor isso?
- Você não é nada do que dizem a seu respeito. Tem apenas uma amante, que não veio aqui desde que cheguei. Você é o devasso libertino mais quieto e sossegado que já conheci.
Alex começava a perceber que sua impressão inicial de Kate Brantley, como uma simples jovem pobretona espirituosa e engraçada, era uma mera sombra da verdadeira personalidade dela. Ali estava uma mulher inteligente e perspicaz, que poderia mesmo ser perigosa. Para ele, principalmente, ainda mais se continuasse com aquele hábito de irromper em seu quarto e invadir seu escritório a toda hora.
- A temporada tem sido maçante, e nos últimos dias tive de conviver com um convidado indesejável.
- Por isso lady Sinclair não voltou?
- Isso não é da sua conta - retrucou ele, praticamente admitindo que Kate acertara. - Pode me passar a geléia de laranja, por favor? - Quantos devassos libertinos você já conheceu?
Ele espalhou geléia na torrada.
- Ah, muitos. - Kate inclinou-se para olhar os morangos no prato dele.
- Sirva-se.
Kate espetou imediatamente um morango com o garfo.
- Continue.
- O conde de Fouché, em Paris. Ele tem olhos misteriosos e costumava se vangloriar de suas conquistas.
- E por acaso você o achava atraente? - Alex se surpreendeu contrariado ao antecipar uma resposta positiva.
- Não sei. E difícil achar atraente uma pessoa em quem não se confia.
Alex serviu-se de mais chá.
- Você confia em mim? Kate riu e fez uma careta.
- Só se você me comprar um sobretudo novo. - Precisava sair de qualquer jeito, para se encontrar com o pai.
Alex também riu.
- Esse é o motivo para uma conversa tão agradável? Ela ficou séria.
- Eu pareço muito ambiciosa, não é? - Kate fitou o prato ainda cheio. - Os últimos meses com meu pai... Bem, sei que eu lhe disse outra coisa, mas as coisas não foram muito agradáveis em Paris.
Os raios pálidos de sol que penetravam pela janela iluminaram o rosto delicado de Kate. Alex admitiu que ela era muito feminina e adorável.
- Foi o que ouvi dizer. -- Ele mordeu uma torrada com ar pensativo.
- Eu uso aquelas roupas horríveis há meses, e não me lembro da última vez em que comemos frutas frescas.
- Por isso seu pai a mandou para cá? Kate negou com um gesto de cabeça.
- Tudo o que sei é o que ele lhe disse. Que na Cale House eu ficaria mais segura.
- Mesmo usando calças.
- Principalmente com elas.
- É uma pena. Eu lhe compraria um vestido, se isso a agradasse.
Kate estreitou os olhos, desconfiada.
- Você tem sido muito bondoso. Será que está tentando me seduzir?
Se ele não tivesse assumido uma dívida de honra...
- Se eu pretendesse seduzi-la, você não ficaria em dúvida. Agora trate de comer. Assim que terminar de devorar essa montanha, eu a levarei ao Colton's.
- O que é isso?
- Uma loja que vende artigos masculinos, sobretudos, chapéus, luvas, trajes para montaria e até alforjes. Não que você vá precisar de um alforje, claro... A menos que tivesse planos de se dedicar à profissão de gatuna.
- Obrigada, Alex. - Kate sorriu inocentemente, sem dar nenhuma indicação de que a brincadeirinha estava muito mais próxima da realidade do que ele supunha.
Alex não perguntou o preço do maravilhoso sobretudo preto que Kate admirava. Avisou ao lojista para mandar a conta e Kate saiu da loja usando o elegante agasalho, um belo par de luvas brancas de antílope e calçando lustrosas botas de pelica.
Kate analisou o perfil de Alex enquanto caminhavam ao longo da Bond Street. Não fazia idéia do que ele pretendia. Será que ele esperava algo em troca?
De repente, ela parou de andar e ficou imóvel, paralisada.
- O que foi, Kate? - perguntou Alex, alerta.
- N-Nada - gaguejou ela, forçando um sorriso. Não era possível que fosse Jean-Paul Mercier que ela vira de relance, na esquina da rua. Ele devia estar em Paris, aplaudindo pomposamente as reformas de Napoleão. - Aquilo ali é uma doceria?
Alex seguiu o olhar de Kate.
- Estou aqui para protegê-la. Pode confiar em mim.
Era o que ela mais desejava. Ter confiança em alguém, mesmo que esse alguém fosse Alexander Cale. Ele seria capaz de entender que ela e o pai estavam tentando sobreviver e que haviam cometido enganos. Ele poderia ajudá-la a encontrar a pessoa que ela procurava. Ou não.
- Proteger-me do quê? - Kate tornou a esquadrinhar a esquina com os olhos, mas não viu ninguém.
- Eu também gostaria de saber. Kate ignorou o comentário sarcástico.
- Para onde iremos agora? - perguntou ela, quando chegaram ao faetonte.
- Tenho algumas reuniões.
- Por acaso você é o primeiro-ministro? - Kate não conteve a provocação.
As reuniões de Alex pareciam-lhe suspeitas, e durante as ausências dele, Kate vasculhara a mansão à procura de indícios reveladores. Nada encontrara, com exceção do mapa e das moedas, que sugerisse o envolvimento de Alex com atividades governamentais. Era quase decepcionante descobrir que um homem como o conde de Everton era inócuo. Não se surpreenderia se Francis Henning, por exemplo, se revelasse uma pessoa sem ideais. Mas Francis não era dono de uma vasta biblioteca, nem fora ele o objeto de seus sonhos nas últimas noites.
Alex apontou para a carruagem e riu.
- Sou apenas um membro da Câmara dos Lordes.
- Achei que farristas não cumpriam com seus deveres de cidadão.
- Faço o possível para chegar atrasado a todos os eventos cívicos e sociais. Os nobres mais convencionais me consideram impertinente.
Kate franziu o nariz.
- Meu pai diz que os aristocratas são inúteis.
Alex ergueu uma sobrancelha e estalou a língua para os dois cavalos.
- O sangue azul corre em suas veias, minha querida.
- Nada disso.
- Você é sobrinha do duque de Furth. Sangue mais azul, impossível.
Assim como os seus olhos, pensou Kate.
- Não tenho nenhuma relação com aquele homem. Alex não fez comentários.
- Não vai me perguntar o motivo?
- Não é da minha conta.
Ele consultou o relógio e voltou-o ao bolso do colete. Instigou a parelha a um passo mais rápido.
- Queira perdoar-me. - Kate cruzou os braços, ofendida. - Não pretendia aborrecê-lo.
- Não vai usar nenhum termo em francês para me qualificar?
Kate não chegou a decidir-se por nenhum epíteto.
- Alexander! - Alguém o chamou do outro lado da rua.
Uma mulher grandalhona, de meia-idade e olhos azuis, usando uma peruca branca fora de moda, acenava com um lenço bordado pela janela da carruagem. Da outra passageira, sentada ao lado dela, só era possível avistar a saia de musselina azul.
- Bom dia, lady Cralling - Alex cumprimentou-a sem entusiasmo.
- Já lhe disse para me chamar de Eunice, seu tolo.
- Claro, Eunice. - O sorriso de Alex, embora simpático, não alcançou seus olhos.
Alex era um perito jogador que sabia blefar, Kate concluiu. Admitiu que ambos guardavam segredos. Quais seriam os de Alexander Cale?
Uma carroça de feno na frente deles parou quando uma jovem ruiva foi para o meio da rua oferecer bugigangas ao condutor. Eunice Cralling bateu com a bengala no chão do veículo, para descontentamento dos que se encontravam no banco atrás dela, e seu cocheiro também parou.
- Mércia, cumprimente milorde - ela ordenou.
Uma jovem pálida e esguia, talvez um pouco mais nova que Kate, deslizou para a frente do assento e pestanejou, tímida.
- Bom dia, lorde Everton - murmurou, com voz quase inaudível.
- Bom dia, senhorita. - Alex tocou na aba do chapéu e cutucou Kate. - Eunice, Mércia, este é meu primo, Kit Riley.
Kate apoiou um pé na estrutura do faetonte e o cotovelo no joelho dobrado.
- Encantado em conhecê-las.
- Igualmente - retrucou a moça, e Kate anuiu.
- Alexander, você irá à festa dos Fontaine esta noite, não é? - indagou Eunice.
- Ainda não sei se vou, Eunice. - Impaciente, Alex olhava a carroça de feno que não se mexia.
- E você, Kit, está pensando em ir? - perguntou Mércia com doçura.
- Com certeza. - Kate imaginou se Mércia ousava respirar sem a permissão da mãe.
Alex não escondeu a contrariedade, mas Kate não se incomodou. Se não tomasse as próprias decisões, acabaria trancafiada no sótão da Cale House junto com a tranqueira empoeirada durante os próximos dez dias.
A moça ruiva saiu do meio da rua, a carroça de feno partiu e Alex fustigou os cavalos, após despedir-se das damas Cralling.
- Mas que droga, Kate! - explodiu ele, quando já não podiam ser ouvidos. - Pare de agir dessa forma!
- Ah, mil perdões, milorde. - Ela bateu as pestanas e imitou a voz fina e afetada de Mércia.
- Por todos os santos, você é uma mulher!
- Ah, pensei que você tivesse se esquecido disso e estivesse com medo que eu roubasse a srta. Cralling de você. Ela também é sua amante?
- Não costumo dormir com meninas - Alex declarou, carrancudo.
- Bem, com quem você dorme ou deixa de dormir não é da minha conta - resmungou Kate. - E eu gostaria que me deixasse ir ao baile dos Fontaine esta noite.
- Não.
- Ah, mas que inferno, Alex! Por que não?!
- Porque eu não quero que vá.
Depois de ser apresentada como parente de Alex, ela não poderia ir a nenhum lugar sem ser reconhecida como tal.
- Ah, vieillard étouffant - Kate resmungou. Alex olhou para ela de soslaio.
- Seu ve-lho cha-to! - Kate traduziu pausadamente, para não deixar dúvidas.
- Ainda sou vigoroso o suficiente para deitá-la em meus joelhos e dar-lhe umas boas palmadas. - Alex conduziu o faetonte para Park Lane.
- Ah, com certeza você adoraria fazer isso! - Kate cruzou os braços, com o cenho franzido.
- Nem imagina o quanto!
Kate avistou as paredes brancas da Cale House e deu um pulo. Esquecera do encontro com o pai.
- Eu lhe disse que vou jogar dados com Francis Henning? Alex suspirou, irritado.
- Não adiantaria proibi-la. Sei que iria de qualquer maneira. Quer que a leve?
Kate surpreendeu-se com a anuência.
- Não. Alugarei uma carruagem.
- Volte antes de escurecer. - Alex parou perto de um ponto de coches. - Não deixe que Francis fique bêbado, ou terei de pagar as contas dele até o final do mês.
Kate apeou, relutante em deixar Alex.
- Voltarei logo.
- Melhor assim. Não pretendo sair à sua procura. - Ele estalou a língua para os cavalos. - E a senhorita não tem permissão de ir à Fontaine House.
- Veremos.
A taverna escolhida para o encontro ficava distante de Mayfair, onde seria improvável que alguém reconhecesse Stewart Brantley.
Logo que entrou, Kate inquietou-se com os olhares dos fregueses em sua direção, mas logo acalmou-se ao ver o pai sentado a uma mesa no fundo do recinto.
- Bonjour, papa - murmurou e sentou-se de frente para ele.
- Está parecendo um maldito lorde inglês, Kate. - Stewart comentou, contrafeito.
- Se eu continuasse usando aquelas roupas mal-ajambradas, ninguém falaria comigo.
- Se for presa por furto, nossa vida vai se complicar ainda mais. - O pai serviu-lhe um caneco de cerveja. - Não preciso lhe recomendar que seja prudente.
- Eu não roubei nada. - Kate alisou a manga do paletó. - Alex comprou roupas novas para mim.
- O quê?
- Creio que ele se compadeceu de minha situação. - Kate decidiu não contar que Alex descobrira seu segredo. O pai a levaria de volta para Paris e nunca mais ela veria Alex. - Disse que não poderia andar por Londres comigo vestida com andrajos.
- Eu a avisei que ele era persuasivo. Descobriu alguma coisa?
Kate negou com um gesto de cabeça.
- Algumas possibilidades, mas nada definitivo. Alex parece...
- Que história é essa de "Alex"? - o pai arqueou uma sobrancelha.
- Ele achou melhor me apresentar como primo dele - explicou Kate. - E está levando a sério demais a incumbência de me proteger. Deveríamos ter inventado outra história.
- Não imaginei que um vigarista como ele pudesse agir com honradez.
- Mas eu o vencerei pela persistência. - Kate recostou-se e ergueu o caneco. - Esta noite ele me levará à Fontaine House.
- Esplêndido. - Stewart sorriu pela primeira vez desde que Kate chegara.
- O senhor me prometeu, papai. Depois de resolvido o assunto com Fouché, o senhor não teria mais negócios com ele.
- É preciso procurar maiores lucros. Admito que Fouché é um risco. Mas se tivermos sucesso, iremos além de negociar com ele.
- Se o senhor me dissesse o que está planejando, minha tarefa seria facilitada.
- Não é necessário que você saiba. Não se discute uma péssima causa quando há um bom dinheiro envolvido.
- Está bem. - Kate olhou para os lados para ter certeza de que ninguém os observava e pousou a mão sobre a do pai. - Eu encontrarei a pessoa. E logo.
- Sei disso, filha.

- Não adianta bater o pé, chutar minhas canelas, nem esgoelar! Admito que será profundamente enfadonho não contar com sua presença. Mas não mudarei de idéia! - declarou Alex com veemência.
Fazia mais de uma hora, desde que Alex voltara da sessão no Parlamento, que Kate o atormentava, sem sucesso.
- Não sou uma criança! Você não pode me obrigar a ficar em casa!
- Não só posso, como o farei!
Alex virou-se para Antoine dar os últimos retoques no fraque cinza-escuro.
- Isso é inacreditável! - Kate tornou a bater os pés e tossiu com estardalhaço. Sem conseguir comover o conde, atirou as luvas dele no chão. - Vous êtes un gros bravache!
- Antoine? - Alex fitou-a pelo espelho.
- O senhor é um bofe gordo.
- Vous êtes un bravache arrogant!
- O senhor é...
- Eu entendi essa, Antoine - Alex interrompeu o criado e virou-se para Kate, com olhar fulminante.
Ela percebeu que ultrapassara os limites e tratou de girar nos calcanhares e sair correndo do quarto. Mas Alex a alcançou no meio do corredor e a agarrou pelo braço.
- O que é que eu sou? - exigiu ele.
- Un bravache arrogant - Kate repetiu, atrevida.
Alex segurou-a pelos dois braços e empurrou-a até a parede. Kate conteve o impulso de dar-lhe uma joelhada, limitando-se a erguer o queixo, desafiadora.
- Um... fanfarrão... arrogante - ela traduziu.
Os olhos de Alex brilhavam na semi-obscuridade e suas mãos eram cálidas sobre o tecido fino da camisa que Kate usava.
- Vous êtes un bravache e vous avez les yeux beaux - acrescentou ela, tirando vantagem do fato de ele não entender francês para dizer livremente que ele tinha lindos olhos.
- O que é isso? - quis saber ele.
- Nada.
- Traduza!
- Nem morta!
Alex fitou-a em silêncio por uns instantes, depois suspirou e soltou-a.
- Pegue seu paletó. E trate de se comportar.
- Ah, obrigada, Alex! Obrigada!
Kate correu para seu quarto e não viu o ligeiro sorriso que se desenhou nos lábios do conde de Everton.

- Não se afaste de mim - Alex murmurou pelo canto da boca, e em seguida sorriu e adiantou-se para saudar lorde e lady Fontaine, os anfitriões da noite.
- Pode confiar em mim - respondeu Kate no mesmo tom, esquecida das ameaças e avisos que tivera de agüentar nos últimos trinta minutos.
- Harold, Elizabeth, permitam que eu lhes apresente Kit Riley, meu primo.
Kate apertou a mão estendida do barão e levou aos lábios a palma da mão da baronesa.
- A seu dispor, milorde, milady.
- Fico feliz que tenham vindo, Alex e Kit. - Elizabeth sorriu com simpatia e convidou-os a entrar no salão de baile.
- Ah, que maravilha! - Kate perdeu o fôlego. - Alex, como está minha gravata?
- Perfeita.
Alex sentiu uma súbita vontade de puxar Kate pela gravata e arrastá-la de volta para casa, antes que ela cometesse alguma asneira, ou se metesse em confusão e se arriscasse de alguma forma. Admitia que nos últimos dias vinha se comportando como um velho superprotetor, independentemente das possíveis intenções secretas de Kate para comparecer à festa e dos motivos que a trouxeram a Londres. Reconhecia que era incapaz de resistir aos encantos de Kate Brantley.
- Procure se divertir com moderação - aconselhou ele. - Tome cuidado para que seu disfarce não seja revelado. Nem todos aceitariam o fato com condescendência.
- O que aconteceu com "não se mova", "não abra a boca", "esconda-se atrás das cortinas" e "apenas observe"?
- Acabei compreendendo que faz parte da minha condição de libertino desafiar a sociedade em qualquer situação. E hoje, esse desafio reside em você, primo.
- Merveilleux! - Kate tocou-lhe na manga. - Maravilhoso. Eu o verei mais tarde.
Kate encaminhou-se para a terrina de ponche, completamente à vontade, embora não conhecesse nenhum dos aristocratas presentes no salão. Alex desconfiou que aquela jovem não tinha medo de nada, e que sua maior preocupação era um nó de gravata mal dado. Acalmou-se ao ver que Reg e Francis se aproximavam dela, junto à mesa onde estavam servidas as iguarias.
- Olá, meu querido, ainda não assustou o jovem Kit? - perguntou Barbara Sinclair atrás dele.
- Barbara. - Alex virou-se e beijou-lhe a mão.
Ela usava um vestido púrpura que não tinha a menor pretensão de ser decente. O decote ousado era debruado de renda preta e deixava à mostra os contornos do busto generoso.
- Não. Kit insiste em dizer que não devo ser o vilão que todos apregoam.
- Pobrezinho. - Barbara deu um risinho maroto. - Dance esta valsa comigo ou morrerei de tédio.
- Com prazer, milady.
Eles se encaminharam para a pista de dança.
- Você ainda não me disse se estou bonita esta noite. - Barbara encostou-se em Alex, insinuante.
- Está deslumbrante. - Alex sorriu.
- Obrigada - ela ronronou. - Mandei fazer este vestido pensando em você.
Eles já haviam tido uma conversa semelhante em outra ocasião. Como o resultado fora satisfatório, não custava prosseguir no mesmo caminho.
- Então devo acreditar que não está usando nada por baixo?
- Como adivinhou? - Barbara se fez de coquete.
Alex sorriu e vasculhou o salão à procura de Kate. Não havia sinal dela em parte alguma.
- Maldição.
- O que foi? - Barbara assustou-se.
- Não sei onde meu primo se meteu. Esse garoto só me causa problemas.
Então, de repente, ele a avistou, no meio do salão, rodopiando ao som da valsa com Mércia Cralling nos braços.
Kate passou por ele e deu uma piscadela. Além de tudo, a pestinha dançava bem, mesmo na posição do cavalheiro, pensou ele, irritado.
- Parece que Kit fez uma conquista - Barbara concluiu.
- É.
- Pena que Caroline não tenha vindo. Eu comentei bastante com ela sobre seu primo. Ela não quer admitir, mas está curiosa para conhecê-lo.
- O que você sabe a respeito de meu primo para ter "comentado bastante" sobre ele com alguém? - perguntou Alex, mais rispidamente do que pretendia. Aquela endiabrada ainda o tiraria do sério.
Barbara olhou para ele. surpresa.
- Ora, sei que ele é seu primo, que o pai dele lhe pediu para tomar conta dele enquanto estivesse viajando... Que é um garoto não muito refinado, que sabe jogar faraó e que você o estima. E também que ele é muito atraente.
Alex se surpreendeu.
- Ele é jovem demais para você - falou, com as sobrancelhas arqueadas.
- Que indelicadeza, Alex! Peça desculpas.
- Não invente joguinhos, Barbara. - A música terminou e Alex tornou a procurar por Kate.
- A menos que peça desculpas, terá de jogar paciência sozinho esta noite - insistiu Barbara.
- Eu poderei encontrar um parceiro, se quiser jogar. - Alex riu sem vontade.
- Sua grosseria está indo de mal a pior - repreendeu ela. - Por que não pode desculpar-se?
- Porque não preciso. - Alex virou-se e deixou-a falando sozinha.
Era verdade. Barbara precisava mais do dinheiro do conde de Everton do que ele da companhia dela. De repente ele avistou Kate, rindo com Reg e Francis. Ela tinha uma taça de ponche em cada mão. Uma delas devia ser para Mércia.
- Terei de reexaminar a árvore genealógica de minha família - disse uma voz masculina atrás de Alex. - Não me lembro de ter nenhum parente de sobrenome Riley.
Alex aceitou, sem se virar, o vinho do Porto que lhe foi passado por sobre o ombro.
- Não se lembra de tia Marabelle ter se casado com aquele artista circense irlandês? Aquele ali é o fruto da união deles. - Ele apontou para Kate.
O homem alto e musculoso, um pouco mais velho que Alex, pôs-se ao lado dele e olhou fixamente na direção de Kate.
- Não temos nenhuma tia Marabelle.
Do outro lado, uma certa mão delicada segurou-lhe o braço.
- Adoro circo! - exclamou uma voz feminina. - Ele é acrobata?
- Domador de ursos. -- Alex sorriu para a jovem miúda e ruiva. - Se eu conseguir arrastá-lo para cá, o apresentarei a você.
Kate atendeu ao aceno da mão dele.
- Estou me divertindo muito, primo - declarou ela, com os olhos brilhantes.
- Não duvido - Alex respondeu com secura. - Kit, lembra-se de nosso primo Gerald Downing e sua esposa Ivy, não é?
Kate piscou.
- Ah, sim. Meu pai me falou...
- Sua mãe -- corrigiu Alex.
- Não. Meu pai me falou várias vezes sobre a família de minha mãe. - Kate pôs a mão na manga de Gerald. - Minha mãe faleceu.
- Pobre Marabelle! - Gerald fitou a esposa de esguelha.
- Nós mandamos flores, querida?
- Oh, não. - Ivy sacudiu a cabeça. - Marabelle era alérgica.
- Mas meu amor, ela já estava morta. Certamente as flores não a incomodariam.
Kate olhava de um para outro, desconfiada.
- Por acaso estão brincando comigo?
- Com certeza. - Gerald estendeu a mão e cumprimentou-a de novo. - Prazer em conhecê-lo, seja lá quem for. - Olhou para Alex. - Quem é ele?
Alex olhou para os lados e certificou-se de que não havia ninguém por perto.
- Ela - sussurrou.
- Ela? - repetiu Ivy, olhando espantada para Kate. Alex teve certeza de que Kate atiraria nele, se tivesse uma pistola.
- Não acredito que você contou!
- Gerald é meu primo. Não engoliria uma mentira dessas.
- Você não me disse que tinha primos.
- Você não perguntou.
- Mas você poderia ter me prevenido, droga!
- Tem certeza de que ele é ela? - perguntou Gerald, estranhando o palavreado de Kate.
- Ela é filha de um amigo da família - Alex falou devagar.
- Está sob meus a cuidados por uns dias. Ninguém mais pode saber.
- Agora vou dançar com Lydia Calloway. - Kate pareceu mais descontraída e encarou Alex. - A menos que pretenda divulgar meu segredo para mais alguém.
- Podemos dançar uma valsa depois? - pediu Ivy. - Assim poderíamos nos conhecer melhor.
- Claro, se quiser.
- Santo Deus - Gerald murmurou, observando Kate afastar-se. - Não tem nenhum plano em relação a ela?
- Só se for para estrangulá-la - mentiu Alex. Augustus Devlin, novamente embriagado, apareceu na entrada e abraçou Kate pelos ombros. Alex não gostou do que viu.
- Por minha honra, terei de mantê-la pura e em segurança - Alex declarou. - Nunca olhei para ela como mulher.
- Ainda bem - Ivy comentou.
Passava de duas e meia da madrugada quando a carruagem veio buscá-los para levá-los de volta à Cale House. Kate afundou no assento estofado e espreguiçou-se.
- Gostei de Ivy - declarou.
- Também gosto dela - Alex concordou, sentado no banco em frente. - Ela não é uma de minhas amantes.
- Eu não ia perguntar. - Kate bocejou. - Estou com dor nos pés.
Ela esticou as pernas, apoiou-as no banco ao lado de Alex e flexionou os dedos dentro das botas.
- Não sei como as mulheres agüentam os sapatos de bico fino por tanto tempo. Eu preferia andar descalça.
- Se não tivesse dançado tanto...
- Nem sei como teve tempo de reparar quantas vezes eu dancei. Ficou circulando pelo salão com todas as mulheres disponíveis. Depois de lady Sinclair ter se retirado, bastante irritada.
Felizmente Kate conseguira mais duas pistas, quase tão promissoras quanto Reg Hanshaw e Alex. Sir Thadius Naring e lorde Lindley haviam recebido incumbências governamentais envolvendo Bonaparte e a França. Kate só não descobrira quais eram exatamente essas missões.
- Não pude dançar com Celeste Montgomery. Você a roubou de mim.
- Celeste gosta de rapazes mais jovens - retrucou Kate, disfarçando a raiva.
- Fiquei admirado como conseguiu enganar a todos.
- Obrigada.
- Por que não ficou com Barbara Sinclair? - Kate arrependeu-se da pergunta assim que a pronunciou.
- Ela disse que sou grosseiro. Vai levar algum tempo até ela me perdoar.
- Vai se casar com ela?
- Não.
- Ela sabe disso?
- Ela conhece meu ponto de vista a respeito de casamento.
- Você não tem preferência por meninos, tem?
- Não. - Alex fez uma breve pausa. - Mas eu tentei uma vez.
Kate empertigou-se e pôs os pés no chão.
- Meninos? - Felizmente a penumbra no interior do coche não permitia que ele visse seu rosto afogueado.
- Não. Casamento.
- Oh... E o que aconteceu? - Ela não se mexeu quando o coche virou em Park Lane.
Alex suspirou.
- Ela morreu. Estávamos casados havia pouco tempo. Ela contraiu uma febre. Tinha a saúde frágil, e não resistiu.
- Como era o nome dela?
- Mary. Mary Devlin Cale.
- Devlin?
- Sim. Era a irmã mais nova de Augustus.
- Por isso ele disse que emprestar dez libras ficaria em família. Isso aconteceu há quanto tempo?
- Há quase três anos.
- Agora entendo por que relutou em me aceitar em sua casa. Deve ter sido horrível eu ficar lá para lembrá-lo...
- Bobagem, Kate. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Não virei um ermitão depravado. Eu não queria você em minha casa porque previ que você me causaria problemas. O que ficou provado hoje, depois de você flertar com todas as mulheres do baile, me deixar irritado e por causa disso eu acabei discutindo com Barbara. E agora terei de dormir sozinho. De novo.
Alex levantou-se quando o criado abriu a portinhola.
- Amanhã irei a um leilão de cavalos. Se quiser me acompanhar, estarei pronto às nove.
Kate entrou na Cale House sorrindo e com trejeitos masculinos. Alex a convidara para sair, sem ela ter de implorar.
Foi somente quando já estava deitada que ela compreendeu que ótima oportunidade aquele leilão lhe daria para seguir as pistas que descobrira.

Capítulo IV

- Nunca ouviu falar de Vauxhall Gardens? - Alex admirou-se.
Uma multidão de aristocratas e de semi-aristocratas se aglomerava no pátio do leilão. Enquanto Kate observava com interesse os aficcionados em cavalos, pombos e falcões. Alex se recriminava por tê-la trazido. Afinal ainda não descobrira qual o propósito da estadia de Kate em Londres.
- Nunca. - Ela sentou-se na parte inferior da cerca. - Há quanto tempo conhece Reg Hanshaw e Augustus Devlin?
- Estudamos juntos em Cambridge. Vauxhall Gardens é um local destinado a vários tipos de entretenimento, como recitas musicais, espetáculos pirotécnicos, bailes, além dos espaços para jogos, contendas de boxe e outras disputas.
- Precisa me levar lá para conhecer. Eu adoro boxe. Meu pai me ensinou a boxear.
Alex imaginou o que teria acontecido se Kate Brantley tivesse aparecido em sua vida cinco ou seis anos antes, quando era ainda imaturo e não levava em consideração as conseqüências de seus atos, tanto para si próprio como para os outros.
Uma coisa era certa: o senso de dever perderia longe para a tentação de seduzir aquela bruxinha.
- Eles são envolvidos com política? Alex piscou.
- Quem?
- Reg e Devlin.
- Não mais do que eu - respondeu Alex, com o cenho franzido, estranhando o interesse dela em seus amigos. - Espero que não esteja pensando em revelar a eles seu segredinho.
Não o agradava a idéia de outros homens saberem que seu "primo" era mulher.
- Eles não têm a mente tão aberta como a minha.
- Não fui eu que contei meu segredinho a alguém mais, foi você.
- Lembre-se de que é preciso ter cuidado. Se eu descobri, outros podem descobrir também.
- Eu sou cuidadosa.
- Não. Você é esperta. Não confunda uma coisa com a outra.
Kate fitou-o, surpresa.
- Isso é um elogio ou uma crítica? - indagou, os olhos brilhando como esmeraldas.
- Digamos que seja um pequeno elogio.
- Então aceite um pequeno agradecimento. - Kate brindou-o com um sorriso fugaz.
- Quer dizer que até noções de boxe seu pai lhe deu? - perguntou Alex, curioso.
- Sim. Meu pai é fantastique.
- E quem é que você já enfrentou no ringue?
- Na verdade, ele nunca me deixou praticar - confessou Kate. - Mas uma vez dei um soco na cara do conde de Fouché.
- É esse o patife francês que você mencionou na outra noite?
- Sim. Ele nunca foi muito agradável. E nos últimos tempos estava sendo arrogante demais. "Bonaparte isso, Bonaparte aquilo..." Claro, tive de pedir desculpas depois, por tê-lo deixado com o olho roxo.
Alex riu e apoiou-se na cerca, perto de Kate. Ela exalava uma fragrância de sabonete muito agradável.
- Você apoia os sentimentos de seu pai em relação a Bonaparte?
Ela anuiu.
- Deveriam ter enforcado o bastardo em vez de jogá-lo em Elba como um soldadinho de chumbo para acumular poeira.
As palavras de Kate vinham ao encontro do que Alex dissera a um grupo de amigos cerca de um mês antes. Ele notou a repentina mudança no semblante dela, de alegre a séria, e disse a si mesmo que poderia ser fingimento. Kate Brantley sabia mentir muito bem. O pai dela não simpatizava com os ingleses e criara a filha como uma francesa. Com a guerra em curso, nenhum inglês ousaria apoiar Bonaparte.
- Você transpira patriotismo. - Alex fitou com desinteresse um belo garanhão que era conduzido pelo pátio.
- Se as tropas dele invadissem uma de suas propriedades, você levaria o assunto mais a sério - retrucou ela.
Kate apoiou o queixo nos braços cruzados sobre a cerca. Alex achou-a ainda mais adorável.
- Céus! - Ele fingiu-se horrorizado. - Acha que Bonaparte vai querer minha colheita de cevada e minhas olarias? Preciso pedir assistência imediata a George. Talvez um esquadrão dos Granadeiros Reais evite que minhas ovelhas sirvam de alimento para o exército francês.
Kate esforçou-se para não rir.
- Eles gostam mais de frutas frescas que de cevada.
- Ah! Que esperteza. Analisar os hábitos alimentares das tropas de Bonaparte!
O brilho no olhar de Kate despertou a atenção de Alex.
- Ora, isso não é difícil de saber. E só ver o que está mais escasso nas ruas de Paris.
Alex gostaria de saber por que razão Kate parecia lamentar o que dissera.
- Entendo.
A princípio, ele imaginara que Stewart a enviara à Cale House para roubar alguma coisa. Mas até o momento, não dera por falta de nada, e tampouco houvera reclamações de furto na casa dos Fontaine.
Kate apontou para o pátio com o queixo e perguntou, mudando de assunto:
- O primo vai comprar um cavalo para mim?
- Tenho cavalos suficientes em minha estrebaria. Gerald me pediu para avaliar uma boa parelha para o coche dele.
A atenção de Alex foi atraída para o interior do cercado, onde uma jovem loira, esguia e atraente os observava. Estava interessada em Kate! Com uma imprecação, segurou as abas do casaco de Kate e obrigou-a a descer da cerca.
- Mas que droga, Alex! Você me fez enfiar uma lasca de madeira no dedo!
- Vamos embora. - Ele puxou-a pelo braço.
- Não quero ir! - Kate lutou para soltar-se.
- Não estou lhe perguntando.
- O que houve? - Ela olhou para os lados, procurando entender.
- Nada... por enquanto. - Alex acenou para o cocheiro.
- Pare de me puxar! Alex hesitou e largou-a.
- Perdão - ele resmungou. - Não pretendia machucá-la. Kate levantou a mão.
- Foi apenas uma picada, mas creio que vou precisar de um novo par de luvas.
- Muito justo.
- Alex! - Reg Hanshaw chamou-o de longe. Kate diminuiu o passo e Alex tornou a puxá-la.
- Vamos!
- Alex! - Reg aproximou-se. - Kit! Que bom encontrá-los aqui!
- Como vai, Reg? - Kate sorriu, soltou-se e parou. Carrancudo, Alex apertou a mão estendida do amigo.
- Ah, Kit, quero lhe apresentar lady Caroline. - Reg estava acompanhado da jovem que, de longe, se interessara por Kate. Atrás deles vinha uma criada. - Milady, já conhece Alex. E este é Kit Riley, seu primo.
- Sinto-me honrado, lady Caroline. - Kate sorriu, curvou-se e beijou os dedos da jovem.
Caroline deu um sorriso e soltou a mão. Alex, irado, rezou para que um raio atingisse uma das duas.
- Finalmente pude conhecê-lo, sir Riley. Tenho ouvido muitos comentários a seu respeito.
- Na certa devem ser mentiras. - Kate mostrou-se encantadora. Fitou Alex, desafiando-o a interferir, e voltou a falar com Caroline. - O que ouvi falar sobre milady não faz jus à realidade.
Caroline riu.
- Alex, seu primo consegue ser mais lisonjeador do que você.
O olhar expressivo de Kate não disfarçava a curiosidade. Alex fizera a corte a Caroline? Os dois tinham sido amantes?
- Eu lhe disse que ele era encantador. - Reg parecia não se incomodar com o flerte da jovem com quem pretendia se casar.
- É verdade. - Alex voltou a segurar o braço de Kate. - Peço-lhes desculpas, mas estou atrasado para um encontro. Precisamos ir.
- Kit pode ficar conosco - sugeriu Reg. - Depois o levaremos para casa.
- Esplêndido! - concordou Kate, entusiasmada.
- Desculpe-me, Reg. - Alex não soltou o braço de Kate. - Precisarei da ajuda de meu primo. Temos de resolver o assunto dos documentos que seu pai enviou para mim. Lembra-se, Kit?
- Ora, que maçada! Está bem, Alex. - Ela tocou a aba do chapéu. - Tenha um bom dia, lady Caroline. Espero que nos encontremos outra vez.
Caroline sorriu.
- Também espero, sir Riley.
Kate resolveu não discutir e apressou-se até a carruagem. Alex seguiu-a, depois de inclinar a cabeça para Reg e Caroline.
- Pode ir - disse ele ao cocheiro, fechando a porta. A carruagem foi para a frente e Kate começou a rir.
- Ficou com medo que eu roubasse Caroline de Reg? - Kate tirou a luva para examinar o dedo machucado. - Ela é adorável.
- Muito bem-educada. -- Alex cruzou os braços.
- E por causa disso você quase teve um ataque apoplético?
- Se eu tiver um ataque apoplético, será por sua causa. E por minha culpa, por ter trazido você mesmo sabendo que me causaria problemas. Por falar nisso, o que sabe a respeito de lady Caroline?
- Pelo amor de Deus, Alex! Para de ser maçante. Não pretendo me casar com ela!
Era a primeira vez que alguém o chamava de "maçante".
- Espero que não, mesmo - ele ironizou. - Ela é Caroline Brantley, filha do duque de Furth. Sua prima. Sua prima!
Kate tapou a boca com a mão.
- Pare a carruagem - ela murmurou e fechou os olhos. Preocupado, Alex tocou-lhe o joelho. Admitiu que não passava de um idiota. Kate estava pálida e trêmula.
- Kate, sinto muito...
- Pare a carruagem - ela repetiu e curvou-se para a frente. - Estou passando mal...
- Kate... Waddle, pare! - gritou ele para o cocheiro.
O coche deu um solavanco antes de parar, e Alex abriu a portinhola. Kate passou por baixo do braço dele e esticou a cabeça, despejando tudo o que estava no estômago.
Depois de alguns minutos, ela voltou a se sentar no banco, ainda com os olhos fechados e o rosto pálido, porém com expressão menos transtornada. Limpou a boca com um lenço e suspirou, antes de perguntar:
- Por que você não me disse antes quem ela era?
- Eu não imaginei que vocês duas viessem a se encontrar. Não imaginei que Kit Riley fosse um don-juan, que faria tamanho sucesso entre as mulheres e que todas iriam querer conhecê-lo.
- Quando éramos pequenas, ela sempre queria pegar minha boneca favorita. Ela é linda, não?
- A beleza deve ser um traço familiar - Alex murmurou. Kate desviou o olhar, como se o elogio não a agradasse.
- Mas por que não me avisou, ao menos? Você sabia que Francis e os outros tinham intenção de nos apresentar.
- Me perdoe, Kate. Foi uma falha minha não ter prevenido você.
- Eu praticamente prometi a Caroline uma dança no próximo baile. E se ela se apaixonar por mim?
Alex se esforçou para não rir.
- Não creio que...
- Meu pai vai ficar furioso!
Alex refletiu que Kate podia ser uma farsante mentirosa, mas era profundamente leal ao pai.
- Seu pai está em Paris, não ficará sabendo. E para Caroline, não passará de um flerte. - Alex estudou-a com atenção. - Seu aspecto melhorou. Como está se sentindo?
- Bem, desde que consiga esquecer o assunto.
- Então é isso que deve fazer. - Alex deu ordem ao cocheiro para que prosseguisse e voltou-se para Kate. - Quer almoçar comigo no White's?
- Não estou com fome nenhuma. Prefiro ficar em casa, deitada.
Kate demonstrara levar muito a sério o desentendimento entre o pai e o tio. Alex imaginou se a briga familiar era o motivo por trás da ida dela a Londres.
- Se me permite perguntar, o que Furth fez a seu pai? Kate desviou o olhar.
- Você disse que o assunto não o interessava.
- Bobagem. Sabe que eu acho você fascinante? Ela o encarou.
- Está flertando comigo?
- Talvez. Na verdade, é um hábito.
- Pois pode parar. Estou indisposta.
- Desculpe. O que aconteceu entre eles? Kate endireitou-se.
- Outra coisa. Não gosto de ser arrastada como um saco de grãos.
- Não mude de assunto. Por que seu pai odeia Furth?
Kate suspirou.
- Por causa de minha mãe. Furth perseguia minha mãe. Não lhe dava trégua, mesmo quando ela implorou para ele a deixar em paz. Isso acabou por matá-la.
Alex gostaria de poder consolar Kate.
- Quantos anos você tinha quando ela morreu?
- Seis.
- Por acaso lembra-se de seu tio?
- Pare de me interrogar, Alex, ou vai me fazer vomitar de novo.
Alex compreendeu que Kate não era uma menina frágil e vulnerável, mas sim uma jovem forte e determinada. Tinha o direito de se sentir indisposta ou deprimida. Fosse real ou fingimento. Problema dele, se queria acreditar nela ou não.
Kate dormiu a tarde inteira. Quando acordou, descobriu que Alex havia saído, sem informar onde poderia ser encontrado.
Vestiu um dos ternos novos e rumou para o Traveller's, um local não costumeiramente freqüentado por Alex e seus amigos. Devlin já se queixara da bebida que era servida naquele clube. Ela esperava que não fosse Reg Hanshaw o aristocrata que o pai procurava. Além de ser amigo de Alex e um rapaz inteligente, estava praticamente noivo de Caroline. Nem queria pensar no envolvimento de Alex Cale.
Francis Henning estava no Traveller's e viu Kate antes que ela tivesse tempo de recuar e sair. Ele a apresentou aos freqüentadores. A maioria pertencia à pequena nobreza. Sem poder esquivar-se, Kate acabou ganhando dele dez libras no jogo de dados.
- Afinal, o que fazem os nobres, Francis? - Kate perguntou, contando os pontos da última rodada.
- Freqüentam a Câmara dos Lordes, aprovam leis relativas a impostos e investimentos. Eles vêem e são vistos. Querem ter certeza de que todos sabem que são figuras importantes.
- E essas missões governamentais sobre as quais tenho ouvido falar? Francis, nessa rodada ganhei três coroas.
Francis suspirou.
- Que sorte, Kit! O que não é de admirar, sendo primo de quem é. - Francis riu e olhou para a porta. - Ah, vejam quem está entrando. E Thadius Naring. Se quer saber sobre missões governamentais, ele é o homem que pode informá-la a respeito.
Kate olhou para o homem alto e magro que se sentou a uma mesa rodeada de homens, no meio do salão.
- Ele tem alguma?
- Provavelmente, mais de uma. Está tentando chegar ao príncipe George, ou qualquer outra baboseira patriótica. Comprou o título de sir, para obter um baronato, talvez. Para quê, não sei, porque ele não precisa de dinheiro. A família da mãe é magnata da indústria têxtil. Bem que ele poderia deixar a posição para um de nós, para quem uma renda extra seria muito mais bem-vinda.
Kate serviu ao amigo outro cálice de vinho do Porto.
- Certamente há outros além de Naring em busca desse tipo de trabalho. Afinal, como você disse, uma renda extra é sempre bem-vinda.
- Se está interessado em obter uma nomeação, deveria falar com seu primo - Francis sugeriu e esvaziou o cálice. - Eu mesmo venho pedindo isso a ele há meses, mas Alex se limita a dar risada. Com você será diferente, pois faz parte da família.
Kate suspirou fundo, recostou-se no assento e tomou um gole de vinho para se acalmar.
- A missão dele não parece ser muito importante.
Kate apoiou as mãos na mesa para que não tremessem. Afinal não devia ser incomum um nobre trabalhar para o governo.
Poderia ser uma tarefa insignificante, como contar gado em Cumberland ou coisa parecida.
- Duvido que ele tenha muita influência. Francis riu.
- Conheço apenas três pessoas que têm mais influência do que Alex junto ao príncipe regente. O duque de Wellington, o conde de Liverpool e o duque de Furth.
Kate tomou mais um gole de bebida.
- Por isso ele às vezes age com arrogância.
- E egoísmo também. Na última temporada ele e Hanshaw desapareceram durante um mês. Ninguém ficou sabendo para onde foram.
- Está dizendo que eles foram juntos? - Kate tentava convencer-se que os indícios do envolvimento de Alex não eram significativos.
- Não sei. - Francis estava no limiar entre soltar a língua e cair de tanto beber. - Nunca me disseram nada. Acusam-me de não saber guardar um segredo. Creio que foi algo sobre dificuldades financeiras do irmão de Reg.
Kate e o pai haviam contrabandeado para a França produtos frescos e vários outros itens no último ano. Até a dificuldade que enfrentavam atualmente, tinham sido interceptados uma única vez, durante a temporada. Stewart quase fora preso. Certamente muitos nobres haviam deixado Londres durante a temporada, mas era uma coincidência que não podia ser ignorada.
- Por falar nisso, onde está Alex? - quis saber Francis.
- Creio que foi ao White's - Kate respondeu a primeira coisa que lhe veio à cabeça. - Eu quis mudar um pouco de ambiente.
- Estive no Whíte's há pouco e não o vi. Aposto que ele dever ter ido ao encontro de Barbara Sinclair.
A possibilidade não ocorrera a Kate, e a imagem de Alex beijando aquela mulher a perturbou. Levantou-se e empurrou a garrafa quase vazia para Francis.
- Ah, me esqueci! Tenho de ir à casa dos Downing hoje à noite.
Fazia sentido Alex estar na casa da amante, Kate refletiu, sentada no coche alugado de volta a Park Lane. O pensamento a deixava com o coração apertado.
A carruagem parou diante de Cale House, e Kate pagou o cocheiro e desceu. Wenton e os criados deviam estar dormindo, pois ninguém pedira que esperassem. Como estava sem sono, foi até a biblioteca. Havia deixado Robinson Crusoé sobre a mesa. Sentou-se na poltrona estofada diante da lareira e imaginou sentir a fragrância inebriante de Alex. Tentou ler, mas não conseguiu se concentrar. Depois de vasculhar as prateleiras de livros, acabou pegando um volume de poesias de Byron. Voltou a se sentar e estava folheando as páginas do livro quando o som da voz de Alex atrás dela a sobressaltou.
- Como vai nosso Robinson?
Kate fechou o livro, virou-se e respondeu com ar de enfado:
- Ah, vai muito bem. E nossa Barbara?
- Era lá que eu supostamente deveria estar?
- E não era lá que você estava? - Kate não sabia onde encontrara coragem para tocar no assunto.
- Não - respondeu Alex, sério. - Estava no Society, jogando bilhar.
O coração de Kate se inflou de alegria. Alex não fora ao encontro de Barbara Sinclair!
- Você foi jogar bilhar no Society? - Kate fingiu indignação. - Sem mim?
- Você estava dormindo quando saí, e eu não quis acordá-la. - Alex sentou-se em uma mesa baixa diante de Kate. - Eu deveria ter imaginado que seu pai também lhe ensinou a jogar bilhar.
- Claro que ensinou.
- Eu tinha uma mesa de bilhar, mas Mary não gostava dela. Por isso a tirei do caminho.
Aquilo explicava a sala secreta de jogos.
- É uma pena que ela não o deixasse jogar.
- Bobagem. - Alex esticou o braço, acariciou o rosto de Kate com o nó dos dedos e afastou uma mecha de cabelos para detrás da orelha. - Se eu quisesse, poderia ter deixado a mesa no meio do salão de baile. Eu procurei apenas agir com cortesia. O que a está afligindo?
- Nada. Só estou com um pouco de dor de cabeça.
- Aonde você foi esta noite?
- Quem disse que eu fui a algum lugar? - Kate imaginou se Alex havia estado com Francis.
- Está usando traje de noite.
Kate recriminou-se. Era mesmo uma tonta. O pai não cansava de avisá-la de que toda mentira devia ter um suporte.
- E seus cabelos estão cheirando a fumaça de charuto - acrescentou Alex. - E você bebeu vinho.
- Estive no Traveller's. Ganhei algumas coroas de Francis. Alex anuiu, um pouco mais descontraído, e seu olhar pousou no volume de Robinson Crusoé, em cima da mesa, e a seguir no livro que Kate segurava, com um dedo marcando a página.
- Ah, o que está lendo agora? - indagou.
- Byron. - Ela enrubesceu.
- Posso ver?
Kate suspirou e estendeu o livro para ele.
- Childe Harolde?
Kate olhou para as próprias mãos como se nunca as tivesse visto.
- Ah - murmurou Alex, baixinho. - De dia ou à noite, no lamento ou no pesar, esse coração, não mais livre, carrega o amor que não pode mostrar e, silencioso, chora por ti...
Alex parou de ler, e Kate não agüentou o silêncio que se seguiu. Ergueu o rosto e sentiu um desejo absurdo de tocar com os dedos a mecha de cabelo que caíra sobre a testa dele. Pela primeira vez na vida, ela queria ser feminina e agir como uma mulher. Ou que, pelo menos, Alexander Cale a visse como tal.
Ele sorriu e devolveu-lhe o livro, que Kate aceitou com os olhos baixos, sem coragem de encará-lo.
- Está tarde. Eu já devia estar dormindo.
- Não quer mais poesia esta noite? - Alex não desviava o olhar do rosto dela. - Eu gostaria de ler outra.
Kate sacudiu a cabeça com veemência.
- Não creio que seja uma idéia sensata. - Kate não suportaria continuar ouvindo Alex declamar poemas românticos, com aquela voz profunda.
- É preciso sempre agir com sensatez? - Ele tocou-lhe um joelho. - Tem receio de cometer uma pequena tolice, nem que seja por um momento?
Kate desejava jogar-se nos braços de Alex e ser beijada por ele.
- Sim.
Alex fítou-a intensamente, procurando indícios de que ela estivesse mentindo.
- Está bem. Gostaria de ser avisado, caso mude de idéia. Os dois se levantaram ao mesmo tempo e quase colidiram.
Alex a segurou e Kate levantou o rosto. Ele percebeu o desejo que ela tentava ocultar e inclinou o rosto sobre o dela. Kate segurou o fôlego e fechou os olhos, receando que seu coração saltasse pela boca. Sentiu a respiração quente de Alex quando ele resvalou os lábios em seu rosto, nas pálpebras e detendo-se na testa.
- Boa noite, Kate.
Ela abriu os olhos e viu-o sair da biblioteca. Ficou parada onde estava, até ouvir a porta do quarto dele ser fechada. Então respirou fundo e saiu de casa, sem fazer ruído. Era imperativo que conseguisse logo a informação que o pai queria. Quanto antes fosse embora da Cale House, melhor.
Sem perda de tempo, Kate voltou ao Traveller's e apresentou-se a sir Thadius Naring. Depois de embriagá-lo um pouco, jogou com ele, ganhou vinte libras e perguntou se algum de seus trabalhos para o governo incluía deter contrabandistas na Costa Leste da Inglaterra. Terminaram a noite no Navy.

Assim que abriu a porta do quarto que alugara na pensão da sra. Henry Beacham, uma mulher discreta e pouco curiosa, Stewart Brantley percebeu que havia mais alguém no aposento.
O quarto estava escuro, portanto não podia ser Daniel, o filho da sra. Beacham, que sempre trazia o jantar. Se fosse ele, teria acendido uma vela. Também não podia ser Kate, já que ela não fazia a menor idéia de onde ele estava hospedado.
Stewart fechou a porta e enfiou a mão no bolso, apertando os dedos ao redor do cabo da pistola. Sentiu um perfume masculino familiar, mas só acreditou de quem se tratava ao escutar a voz.
- Bon soir, Stewart - o conde de Fouché saudou-o das sombras e uma lamparina foi acesa perto da janela.
Do outro lado do aposento estavam Guillaume e Beloche, os dois troncudos e perigosos acompanhantes de Fouché.
- Pensei que fosse costume esperar do lado de fora pelo dono da casa - disse Stewart em francês, retirando a mão do bolso, deduzindo que Fouché o vigiara para saber onde encontrá-lo. - Ou deixar um cartão de visita.
- Velhos amigos não precisam dessas formalidades. - O conde afastou-se da luz. - E sua casa é em Paris.
- No meio da sua maldita guerra. - Gotas de suor brotaram na testa de Stewart.
- Ora, Stewart, não vim até aqui para discutir sobre política, e sim para saber onde estão meus mosquetes. Precisarei deles antes do previsto.
Stewart não queria saber se Napoleão tinha urgência das armas. Atravessou a sala e sentou-se diante da lareira.
- Já tomei providências para retirá-las do estoque, mas não as transportarei até a costa enquanto não tiver certeza de que não serão interceptadas.
- Kate já encontrou nosso inglês intrometido?
- Não. Ele... Ela tem alguns suspeitos em vista, mas não podemos nos dar ao luxo de errar. É preciso ter absoluta certeza, para evitar complicações.
- Essas eu conheço bem. Não a deixe esquecer os motivos pelos quais está aqui. Parece-me que ela está se divertindo muito em Londres. Você não devia ter encarregado uma mulher de uma tarefa desse porte.
- Kate sabe o que faz.
Fouché franziu a testa e sua fisionomia ficou ainda mais parecida com a de uma ave de rapina.
- Ouvi dizer que um primo do conde de Everton tornou-se o sucesso de Londres e que o nome dele é Kit. É assim que os ingleses descobrem os segredos? Transformando as filhas em meretrizes?
O que Alex Cale sabia sobre os Brantley não precisava ser dividido com Jean-Paul Mercier.
- Alexander não tem idéia da verdadeira identidade de Kate nem dos motivos que a trouxeram a Londres.
Fouché estreitou os olhos.
- Espero que ela perceba logo que um lorde inglês jamais poderá satisfazê-la a contento.
Stewart decidiu ignorar o ciúme de Fouché.
- Kate veio a Londres para me ajudar, apenas isso.
- Muito bem, Stewart. Avise-a de que precisamos do nome da pessoa com urgência.
- Temos outra opção. Eu poderia mandar as caixas para o Norte e despachá-las de Suffolk, em vez de...
- Não quero mais delongas! - Fouché gritou.
- E eu não quero ficar sem opções se Kate não for bem-sucedida - Stewart contestou, severo. - Se as armas forem confiscadas, você nada terá para entregar a Napoleão.
O conde examinou as unhas tratadas.
- Nada, exceto sua cabeça, Brantley. - Fouché foi até a porta, seguido por Guillaume e Beloche. - Estou de olhos bem abertos. Aconselho-o a evitar falhas - ameaçou, antes de sair.
Stewart foi até a janela e abriu as venezianas. O contrabando de armas era altamente lucrativo, mas exigia muitos sacrifícios, isso não era novidade. Mentir para Kate acerca do verdadeiro conteúdo das caixas era o que menos importava. Não queria discutir com a filha. Entretanto, morrer no decurso da operação não fazia parte do trato.
Estremeceu. Haviam mergulhado em águas profundas demais. Felizmente Kate e ele eram bons nadadores.

Capítulo V

Alex cavalgava seu garanhão negro na manhã fria e nevoenta. Àquela hora, o Hyde Park estava deserto, assim como a Rotten Row. Era um bom horário para passear e refletir sobre a noite anterior, antes do início do dia cansativo no Parlamento. Por pouco não acordara Kate para vir com ele, mas receara perturbá-la.
- Alex!
Ele disfarçou uma careta. Thadius Naring se aproximava a cavalo, com alguns amigos. Bajuladores, todos eles. Não fazia idéia do que Naring poderia querer com ele. Puxou a rédea do cavalo e aguardou.
- Bom dia, Alex. - Naring estendeu a mão.
Alex cumprimentou-o com expressão de enfado. Não tinha intenção de perder tempo com aduladores naquela esplêndida manhã. Se não voltasse logo para casa, perderia o desjejum com sua hóspede.
- Alex, gostaria de saber onde anda seu primo.
- Kit? Ainda não acordou. Por quê?
Naring perdeu a expressão confiante ao deparar-se com a frieza do conde.
- Bem, ele ganhou vinte libras de mim ontem. Palgrave e Traven estarão fora esta noite. Imaginei se Kit não poderia me dar a oportunidade de recuperar o dinheiro.
Kate dissera que tinha estado no Traveller's com Francis Henning, mas não falara nada sobre Naring.
- Está procurando vingança por vinte libras, Naring? O outro riu, constrangido.
- Claro que não. Kit Riley é um rapaz divertido, embora faça perguntas estranhas.
- Admito que falta a meu primo um pouco de refinamento. - Alex sorriu, alerta. - O que ele queria saber? Endereços de bordéis?
- Não. Nem eu os passaria a um rapaz tão jovem.
- Muito bem pensado, Naring. O que ele queria saber?
- Estava interessado em missões governamentais e coisas semelhantes. Deve ter ouvido falar que estou engajado em algumas e ficou curioso. Segurou-me até de madrugada.
Isso significava que Kate saíra de casa depois que ele fora se deitar.
- Onde vocês se encontraram?
- Começamos no Traveller's e terminamos no Navy. Algum problema?
- Nenhum. É apenas que tenho certa dificuldade para controlar o garoto. Obrigado pelas notícias. - Alex aproximou-se um pouco mais e baixou o tom de voz. - Para seu próprio bem, recomendo que não diga nada a ele sobre nossa conversa.
- Nem pensei nisso, Alex.
- Ótimo. - Alex sorriu. - Meus amigos e eu combinamos um encontro no White's na próxima semana. Se quiser ir...
- Bem, claro... - Naring mal disfarçou a euforia.
- Bom dia, cavalheiros. - Alex inclinou a cabeça e instigou o cavalo de volta a Park Lane.
Não conseguia atinar com o motivo para Kate sair no meio da noite e fazer indagações a respeito de missões governamentais. Quanto antes descobrisse, melhor.

- Cale-se, Kit. - Augustus Devlin tapou as orelhas. - Caminhavam pela St. James Street, rumo a Pall Mall. - Já estou com dor de cabeça.
- Deve ser por causa da garrafa de conhaque que você tomou ontem à noite - sugeriu Reg.
- Eu só o estava advertindo para cuidar melhor de si mesmo - protestou Kate, encarando o visconde.
Dormira mal naquela noite, e o mau humor de Devlin não ajudava a melhorar seu estado de espírito. O humor de Alex, por sua vez, também estava tenebroso quando ela se levantara, o que a fizera desistir de tomar o desjejum. Manter distância de Alex e da turbulência de emoções que ele lhe provocava era a única maneira de conseguir levar a cabo sua tarefa.
- Por que eu haveria de cuidar de mim e desperdiçar um tempo precioso?
- Bem, eu prefiro cuidar de mim para ter uma vida longa e preciosa - contrapôs Kate.
- Se eu conseguisse trabalhar para o governo, teria tudo isso e dinheiro também - disse Francis para Reg.
- Ilusão sua, Francis - retrucou Reg, com uma careta. - O governo não paga tão bem como você pensa. E muito mais um dever do que um serviço remunerado.
- Que espécie de dever? - Kate indagou.
- Enfadonho. - Reg respondeu com um sorriso. - Nem vale a pena discutir. - Apontou para o outro lado da rua. - Preciso de um par de botas novas. Desta vez comprarei as Wellington, de cano alto e bico largo.
- Eu me recuso a perder meu tempo numa loja de botas - disse Devlin. - Prefiro tomar cerveja.
- Ah, pois eu gosto muito de botas - interveio Kate, decidida a não se afastar de Reg enquanto não descobrisse que tipo de encargo ele recebera. - Prefiro as que são enfeitadas com borlas.
- Alex vai pensar que você o está imitando. - Reg deu risada.
- Espera que ele pague pelas botas, Kit? - indagou Francis.
- Eu o convencerei a fazer isso. - Kate mostrou-se confiante.
- Não duvido. - Devlin a fitou de soslaio. - Alex parece ansioso para satisfazer suas vontades.
Kate não se prendeu ao sentido dúbio do comentário.
- Ninguém resiste ao meu charme natural.
- Então você deve ser o mais charmoso dos seres vivos. - Devlin saudou-os e foi embora.
Reg observou Devlin afastar-se deu de ombros e atravessou a rua lado a lado com Kate. Ao passar em frente a uma loja de roupas, Kate parou. Na vitrine, havia um manequim com o vestido mais lindo que ela já vira. Em seda rosa, era enfeitado com renda cor de marfim nas mangas franzidas, no decote e na saia.
- O que lhe chamou a atenção? - Reg inclinou-se para ver melhor.
Kate rezou para não corar.
- Fico me perguntando como as mulheres agüentam ser aprisionadas dentro dessas monstruosidades.
Reg riu e fez sinal para que prosseguissem, indicando a loja de botas logo adiante.
- Tirá-las aí de dentro também é uma inconveniência - brincou o barão.
Kate olhou por sobre o ombro e suspirou. Nunca se interessara por roupas. No entanto, uma semana depois de conhecer Alexander Cale, perdera completamente o juízo.
- Reg, seria possível conseguir para mim uma dessas incumbências do governo? Alguma coisa excitante. Espionagem, contrabando, pirataria. Coisas do gênero.
Reg Hanshaw sacudiu a cabeça, rindo.
- Seu primo Alex é muito mais influente que eu. Por que não pede a ele?
- A sua missão é interessante? - Kate insistiu. Reg negou com um gesto de cabeça.
- É por demais enfadonha.
Kate teve de se contentar com aquela resposta, para o momento. Thadius Naring era um tolo egocêntrico, não devia ser ele o lorde que atrapalhara os negócios de seu pai e de Fouché. Reg Hanshaw não se mostrava disposto a falar sobre seu trabalho, o que a fazia presumir que fosse algo importante. Apesar da ligação dele com Caroline, era um bom começo.
Kate gostaria muito de poder eliminar Alex da sua lista de suspeitos.
Encontraram Devlin à tarde e foram às corridas. Reg ganhou trinta libras, o que lhes valeu um jantar. Mais tarde foram jogar dados no Army's Club. Passava de meia-noite quando Kate chamou uma carruagem de aluguel e voltou para a Cale House com mais dez libras no bolso.
- Boa noite, Wenton. - Ela sorriu sem jeito quando o mordomo abriu a porta. - Alex saiu?
Wenton segurou o chapéu, as luvas e o maravilhoso casaco novo que ela usava.
- Milorde está no gabinete e não deseja ser incomodado.
- Estarei na biblioteca, se ele precisar de mim.
Kate pensara o dia inteiro no poema que Alex declamara, e pretendia ler os versos românticos. Nesse momento ouviu vozes masculinas vindas do gabinete de Alex.
Alvoroçada, tropeçou na borda do tapete persa, perdeu o equilíbrio, cambaleou e bateu contra a porta que estava apenas encostada.
Kate precipitou-se para dentro do escritório e agarrou-se no espaldar da poltrona mais próxima para não cair.
- Desculpem-me, eu...
Alex, ao lado da lareira, fitou-a com olhar distante, sem esconder a irritação. Deu-lhe as costas e pegou um cálice vazio das mãos do visitante que estava em pé ao lado da janela.
- Obrigado por sua ajuda - Alex falou.
- Com prazer, milorde. Sempre às suas ordens.
O homem era loiro, tinha as faces coradas pelo vento e vestia um capote preto. Olhou de viés para Kate e pegou o chapéu e as luvas que estavam na poltrona na qual ela continuava apoiada.
- Eu o manterei informado.
- Agradecido. - Alex indicou a porta e acompanhou o cavalheiro até o hall. - Não saia daí - ordenou para Kate.
Ela se perguntou o que seria que o homem estava disposto a descobrir e manter Alex informado a respeito. Obviamente, sua inesperada invasão no gabinete não interrompera uma conversa sobre colheita de feno.
Alex retornou instantes depois, fechou a porta, pegou o cálice de conhaque e tomou um gole. Afastou a cortina e espiou a rua escura.
- Desculpe-me, Alex - pediu Kate. - Eu estava indo para a biblioteca e tropecei no tapete. Eu não pretendia...
- Que desculpa esfarrapada, Kate! Kate largou o encosto da poltrona.
- Eu tropecei! Não tenho culpa se a porta não estava fechada! - defendeu-se ela.
- Onde esteve esta noite?
- Ganhei cinco libras de Reg no jogo de dados. - Kate diminuiu a quantia para o caso de Alex resolver pedir as moedas. - Por que estranhos bebem seu conhaque e eu não posso?
- Ele não é um estranho. E crianças não bebem conhaque.
- Eu...
- Já sei. - Alex levantou ã mão. - Kate Brantley não é criança. Muito bem. Venha sentar-se aqui.
Alex indicou a porta aberta nos fundos do gabinete.
Receosa, Kate entrou na sala de bilhar. Ao lado da janela havia uma bandeja com uma garrafa e copos, uma mesa de jogo dobrada e duas poltronas, bastante usadas, mas confortáveis. Ela se sentou em uma delas.
Alex abriu a mesa e tirou um baralho de uma caixa que estava sobre o consolo da lareira. Jogou as cartas sobre a mesa, depois abriu a garrafa de conhaque.
- Seu pai incentiva você a beber? - Ele se sentou de frente para Kate.
- Não me incentiva, mas também não me proíbe. - Kate não conseguia parar de pensar no homem desconhecido e no que ele viera fazer na Cale House. - Consigo beber uma quantidade razoável sem ficar bêbada.
- Ótimo. - Alex abriu a garrafa e serviu doses iguais do líquido ambarino para ambos.
Kate tinha bom-senso suficiente para saber que não era aconselhável beber com Alex, dentro de quatro paredes.
- Alex, eu juro que tropecei no tapete e...
- Um tanto desajeitada, você, não?
- E você é um bocado rude!
- Estou com raiva! Beba.
- Não.
- Por que não?
- Porque não gosto mais de você e não quero saber de sua bebida!
Kate levantou-se, e Alex agarrou-a pelo pulso.
- Sente-se - ele sibilou. Surpresa, tentou recuar.
- Se quer companhia para beber, vá procurar seu amigo misterioso.
Alex ficou em pé.
- Sente-se! - ele repetiu com fúria.
Kate pôs as mãos na cintura, para não demonstrar que ele a intimidava.
- Por que esse acesso de cólera? Ele voltou à cadeira.
- Estou habituado a que as pessoas cumpram minhas ordens. Você é independente demais, para o meu gosto!
- Quem foi mesmo que falou em desculpa esfarrapada?
- Está bem, está bem! - explodiu ele. - Você me importunou ao máximo, e sendo você uma mulher, não me resta muito a fazer senão esbravejar com você. Por favor - pediu com mais brandura -, sente-se e tome um drinque comigo.
A idéia de ficar na companhia de Alex era irresistível. Talvez o humor dele melhorasse se conversassem um pouco.
- Está bem - concordou Kate, emburrada. - Mas não me culpe se acordar com dor de cabeça amanhã.
- Vou arriscar.
Kate voltou a sentar-se e ergueu a taça de conhaque. Tomou um gole e depois outro.
- Que maravilha! - Ela sorriu, estalando a língua. Alex começou a embaralhar as cartas.
- Vamos jogar?
- Sim. O perdedor tomará um drinque. - Kate esperava ganhar, fazer Alex beber e arrancar alguma informação importante.
- O ganhador poderá fazer uma pergunta.
- Sobre que assunto?
- Qualquer um. A escolha.
Kate pensou logo em armadilhas, mas resolveu aceitar.
- Combinado.
Alex ganhou a primeira rodada.
- Beba, Kate.
Ela tomou um gole e o líquido pareceu queimar em sua garganta.
- Qual é a pergunta?
- Por que saiu de madrugada, depois que me recolhi para dormir?
Kate engoliu em seco.
- Como sabe que eu saí?
- É a minha vez de fazer perguntas.
- Bem... Eu tinha visto Thadius Naring bebendo, mais cedo, e achei que ele seria um alvo fácil - respondeu Kate, imaginando se teria falado demais.
- Poderia ter me avisado. Teríamos aliviado juntos a algibeira dele.
- Se ele visse você no Traveller's, teria ido embora. E eu preciso de dinheiro. Você, não.
- Tem razão. - Alex entregou o baralho para Kate.
A rodada seguinte terminou com a vitória de Kate e Alex teve de beber um trago.
- Como você ficou sabendo que eu saí?
- Encontrei Naring esta manhã. Ele quer uma revanche. Alex ganhou a rodada seguinte e foi a vez de Kate beber a dose obrigatória.
- Há quanto tempo fala francês?
- Não sei ao certo. No começo, logo que saímos da Inglaterra, eu não entendia uma palavra de francês, mas de repente comecei a entender tudo e a falar.
Alex ganhou a mão seguinte também.
- Sempre morou em Saint-Marcel?
- Não. Depois de Madri e Veneza, moramos em Saint-Germain por um tempo. Faz mais de cinco anos que moramos em Saint-Marcel.
Finalmente Kate ganhou com três noves e encheu a taça de Alex até a borda. Fitou-o, certa de que o conde de Everton guardava segredos. A artimanha consistiria em descobrir o que desejava sem que ele se desse conta de que estava sendo investigado.
- De onde vem o seu dinheiro?
- Que tipo de pergunta é essa, Kate?
Ela moveu o dedo indicador em sinal de negativa.
- Minha vez de fazer perguntas. Alex recostou-se.
- Você gostaria de examinar os livros de contabilidade ou pode ser um resumo?
- A segunda alternativa.
- A maior parte vem de investimentos. Sou acionista de várias tecelagens, mineradoras e companhias de navegação. O restante vem de serviços prestados para o governo, lucro de arrendamentos, das olarias, colheitas da lã e venda de cavalos em Alex, Charing, Hoaroak Abbey, Castle Gaindailey e Corredor Timederia. E de algumas apostas, a título de diversão.
Em meio ao relato de suas riquezas, Alex dissera o quê Kate receava ouvir.
- Meus Deus...
Na hora seguinte, Kate ficou sabendo que, apesar da reputação de bon vivant, Alex levava a sério suas obrigações na Câmara dos Lordes, e que vendera suas ações de uma tecelagem francesa quando o Conselho votara a favor da supremacia de Napoleão Bonaparte. Porém ele se esquivou às perguntas sobre tendências políticas e respondeu com evasivas sobre o que mais importava a Kate.
Alex ganhou a maior parte das rodadas e Kate teve de admitir que ele era um jogador de cartas mais experiente que ela. Como perdedora, ela bebera mais, o que prejudicara sua capacidade de raciocínio.
Por isso, quando Alex se levantou para avivar o fogo, Kate derramou o conteúdo de seu cálice dentro da manga do paletó. Embora relutasse em sujar a roupa nova, era preferível do que embotar a mente.
- Quantas vezes visitou a Inglaterra desde os seis anos? - Alex indagou, depois de sentar-se.
As perguntas de Alex tanto podiam advir de mera curiosidade como de algum interesse específico.
- Três ou quatro vezes, não sei ao certo. Nunca ficamos por muito tempo.
Na meia hora seguinte, Kate se empenhou em distraí-lo e em encharcar a manga.
- Que horas são? - Alex espreguiçou-se. Kate olhou o relógio sobre a lareira.
- Quase três. É a sua vez. - Ela derramou o conteúdo na manga com perícia.
- Espere, não era a minha vez de... - Alex inclinou-se sobre a mesa, agarrou o pulso de Kate, puxou-a e ficou em pé. As cartas voaram para os lados quando ele levantou a manga ensopada de conhaque. - Sua impostora!
- Solte-me! - Kate não tinha força suficiente para se libertar.
Alex puxou-a ao redor da mesa e a fez erguer-se.
- Dispa-se!
- O quê?
- Tire essa porcaria de paletó! Vamos terminar esse jogo. Eu paguei muito caro por este conhaque para desperdiçá-lo em sua manga.
- Está bem.
Um tanto trôpega, Kate obedeceu, enquanto Alex lhe fitava o pescoço com o cenho franzido.
- Onde foi que aprendeu a amarrar a gravata desse jeito?
- Antoine me ensinou. Ele disse que é a última moda e que só milorde se recusa a aceitar isso.
- É janota demais.
- Não é. Estou vestida de acordo com o padrão dos nobres.
- Está mesmo.
O brilho dos olhos de Alex havia diminuído por causa da bebida. Ele procurou outra garrafa, pois a primeira estava quase vazia.
- Você também tem de tirar o paletó.
Kate fitou Alex em mangas de camisa e teve vontade de arrancá-la junto com o colete. Alex sentou-se de novo e inclinou-se para a frente. Puxou uma ponta da gravata dela e desmanchou o nó.
- Pare - ela protestou debilmente, e fez o mesmo com a gravata dele.
Alex segurou as pontas dos dedos de Kate, virou a mão dela e examinou a palma. Tornou a virá-la e beijou-lhe levemente a parte interna da mão. Em seguida puxou-a mais uma vez por cima da mesa e beijou-a.
Kate fechou os olhos e retribuiu o beijo, que em nada se parecia com os que presenciara nas tavernas de Paris. Era suave e sensual, sem ser grosseiro. Quando Alex a soltou, ela voltou a sentar-se, sem fôlego. Ele a fitava com olhar intenso e sombrio.
- Nós perdemos metade do baralho - Alex comentou. Kate abaixou-se para recuperar as cartas e viu que sua gravata estava na mão de Alex.
- Você não está cumprindo o trato - avisou.
- E você tem lábios doces - murmurou ele.
- Você está bêbado.
- In vino veritas. - Alex sorriu. - É latim.
- Eu sei. - Kate embaralhou as cartas. - É a minha vez.
Alex ganhou a rodada, fitou-a e levantou os punhos de babados da camisa dela até o cotovelo. Kate estremeceu com o toque.
- Você não confia em mim?
- Não. E chega de artimanhas. - Alex observou-a beber. - Quando foi a última vez que você usou um vestido?
Alex tinha o poder de perturbá-la. Kate pensou um pouco e respondeu:
- Há treze anos. Eu tinha seis.
Kate ganhou a rodada seguinte com cinco cartas de copas.
- Quem foi a primeira mulher que você beijou?
- Minha mãe.
- Não era a isso que eu me referia.
- Mas foi o que você perguntou.
- Covarde.
- Como é?
- Você ouviu muito bem.
- Você é irritante, sabia? Foi Lucy Leviton, a filha do meu tutor.
- Quantos anos você tinha? - arriscou Kate, sem esperar que ele respondesse.
Alex deixara claro que o ganhador tinha direito a uma só pergunta por vez.
- Quinze. - Ele inclinou a cabeça de lado. - Também tenho direito a uma pergunta extra?
Kate deu de ombros e evitou encará-lo. Temia que ele a beijasse outra vez, embora fosse esse seu maior desejo.
- Por que não?
Alex ficou em pé e deu a volta por trás da cadeira dela.
- Kate Brantley, considera o beijo um critério de desonra? Kate espantou-se com o calor irradiado pela presença de Alex às suas costas. Tinha respostas prontas sobre seu pai e sobre seu passado, mas o assunto era mais complicado quando versava a respeito do coração e de sentimentos. Muito mais complicado, e muito mais perigoso.
- Não, eu não diria que um beijo é exatamente uma desonra.
Alex inclinou-se sobre o ombro de Kate, virou-lhe a cabeça para trás com delicadeza e beijou-a. Depois endireitou-se e ficou de frente para ela.
- Ainda bem. Caso contrário, eu estaria desonrando meu compromisso com um simples toque de lábios. - Levantou-a. - As regras sempre me parecem excessivamente restritas.
Sem pressa e com suavidade, tornou a beijá-la. Kate refletiu que perdera o controle da situação e de si mesma. Os lábios de Alex tinham gosto de conhaque, e ela fechou os olhos, entregando-se à sensação de mergulhar no calor, na força e na proximidade de Alex.
Correspondeu ao beijo e passou as mãos nos braços musculosos. Sem se conter, acariciou-lhe as costas e a cintura, pressionando o corpo contra o dele, desejando mais, consciente de que estava ultrapassando os limites permitidos.
Ninguém saberia, Kate pensou em um momento de loucura, mais embriagada pela presença de Alex do que pela bebida. Todos pensavam que ela era um rapaz. Se tivesse um caso com Alex, quem ficaria sabendo? De repente inspirou fundo, tentando recuperar o bom-senso, empurrou Alex gentilmente e afastou-se.
Ele não desviava os olhos de seus lábios, a expressão indecifrável.
- Muito bem... - Alex também respirou fundo. - Voltemos às perguntas. Sou o primeiro homem que você beijou?
- Não. O primeiro foi meu pai. - Kate devolveu a provocação e fez menção de sentar-se.
Alex segurou-a pelo braço e a obrigou a permanecer em pé.
- Seu pai odeia os ingleses. - Embora não fosse uma pergunta, Alex esperava uma resposta.
- É verdade.
- E você?
- É a minha vez de perguntar.
Kate libertou-se da mão dele e cambaleou para trás, zonza que estava pelo efeito do vinho e do beijo. Felizmente caiu sentada na poltrona.
- Por que você me beijou?
- Porque tive vontade. - Alex cruzou os braços.
- Você sempre faz o que tem vontade?
- Nem sempre.
- Por que não?
Alex deu um sorriso enviesado, inclinou-se para a frente e apoiou-se nos braços da poltrona.
- Porque sou uma anta. - Ele a beijou novamente e voltou a se sentar na poltrona em frente.
Alexander Cale poderia ser o homem que seu pai procurava. E se ele lidava com a política com a mesma sagacidade com que jogava cartas e usava seu poder de sedução, seria um oponente perigoso.
Kate sentiu-se subitamente exausta, sem forças até mesmo para ir para o quarto se deitar. Recostou a cabeça na poltrona e fechou os olhos, querendo fugir da imagem de Alex a sua frente. Naquele momento, tudo o que ela desejava era mergulhar num sono profundo e dormir a noite inteira.
Alex se recostou em sua poltrona também e observou o movimento da respiração de Kate. O busto subia e descia ritmadamente. Fora um interrogatório calculado e nervoso. Ele não sabia o que teria feito com Kate Brantley se seu amigo detetive James Samuels não lhe tivesse dado a notícia. Teria dado uma fortuna para não saber. O que não o impedia de desejá-la com ardor.
Fazia meses que tomara conhecimento de que armamentos britânicos vinham sendo roubados e transportados para a França. Como suspeitava, Bonaparte não pretendia perder tempo e ficar de braços cruzados em Elba. Mas não esperava ouvir a informação, que ele fizera Samuels jurar que não passaria adiante, de que o carregamento de mosquetes com destino a Calais, que eles haviam interceptado dois meses antes, fora providenciado e comprado por um homem chamado Stewart Brantley.
Essa notícia, bem como a do recente desaparecimento de mais mil armas, eram fatos que Alex não estava preparado para enfrentar. Era um direito seu mandar prender Kate Brantley, que seria julgada por traição. Seria ela uma espiã?
Kate mexeu-se levemente, no sono, e Alex estudou-lhe o semblante, pensativo. Aquela jovem era um enigma, um quebra-cabeça, um mistério, um grande problema. Era por demais intrigante, e Alex sabia que não deveria ter se envolvido com ela daquela maneira.
Suspirou e levantou-se. Com todo o cuidado, levantou-a nos braços, e ela aninhou a cabeça em seu ombro, sem acordar.
Desajeitado, abriu a porta e foi para o corredor. Aquela hora os criados estavam todos dormindo, e somente as lamparinas do corredor estavam acesas.
A porta do quarto de Kate estava aberta, e Alex entrou e deitou-a na cama. As duas mangas da camisa estavam manchadas e irrecuperáveis. Teria de comprar-lhe outra. Desabotoou-lhe o colete e tirou-lhe as botas, antes de cobri-la com o acolchoado.
Kate suspirou e virou-se de lado, colocando a mão entre o rosto e o travesseiro. Se ela era ou não espiã de Bonaparte, não poderia prendê-la até conhecer os reais motivos daquela trama. Teria de esperar mais alguns dias até saber por que ela viera a Londres. Rastrearia o caminho do armamento roubado e não perderia Kate Brantley de vista. Quando Stewart Brantley viesse à procura da filha, ela nada teria para relatar. Quando fossem embora, ele devolveria as armas roubadas ao príncipe George e faria um relatório.
Surpreso, Alex deu-se conta de que estava disposto a ocultar informações de seus compatriotas até que descobrisse a verdade sobre Kate, mesmo sabendo que um deles, particularmente, ficaria furioso, e com razão.
Alex admitia que aquela ânsia de poupar e proteger Kate era irracional, ultrapassava o senso de cavalheirismo. Mas era mais forte do que ele.
Inclinou-se e beijou levemente a testa de Kate. Depois apagou a vela na mesa-de-cabeceira, empertigou-se e saiu. Teria de encontrar forças para resistir à tentação por mais alguns dias.

Kate acordou sem as botas e com o colete desabotoado. O pior era ter adormecido justamente quando as coisas haviam se tornado mais interessantes. Passou um dedo no contorno dos lábios. Ela e Alex haviam bebido demais na noite passada. Se não fosse isso, jamais teria deixado que a situação fugisse ao controle àquele ponto. Muito embora fosse o que ela mais desejara nos últimos dias.
Seritia-se muito infeliz, e sua cabeça latejava implacavelmente. Mas isso não a impediu de avaliar os próprios sentimentos que nutria por Alex. O que, do seu ponto de vista, era uma tragédia. Até prova em contrário, teria de encarar o fato de que Alexander Cale era o homem que ela e o pai procuravam. As peças soltas começaram a se encaixar quando a expressão "serviços prestados para o governo" foi proferida, com todas as letras, e em alto e bom som.
- Droga!
Sentou-se e a dor de cabeça se acentuou. A última coisa que se lembrava era de ter sentido um sono incontrolável, mais nada. Não fazia idéia de quanto tempo ficara adormecida na poltrona, até Alex resolver carregá-la para a cama, como se faz com um bebê.
Tirou a camisa suja e vestiu uma limpa. Passou um pente nos cabelos, prendeu-os em um rabo-de-cavalo e, decidida, rumou para o quarto de Alex. Não era nenhuma criança que pudesse ser convencida a confessar. Também não era nenhuma mulher que pudesse ser seduzida e depois descartada como um sapato velho. Se ele risse, ela lhe daria um soco do qual ele nunca mais se esqueceria.
Quando Kate abriu a porta do quarto de Alex, encontrou-o estirado na cama, em completo estado de abandono, deitado de costas, com os braços abertos, como se houvesse caído e assim permanecido. O colete se encontrava no chão, ao lado das botas e da camisa amarfanhada. Ainda vestia calça e meias.
Antoine não estava por perto, e Kate entrou e fechou a porta sem fazer ruído. Alex estava com os lábios entreabertos, e uma mecha de cabelos sobre um dos olhos.
Kate balançou a cabeça.
- Como posso odiar você? - murmurou baixinho.
O som da voz sussurrada o despertou de imediato. Alex piscou e sentou-se depressa. A seguir levou as mãos à cabeça e tornou a cair para trás.
- Bem-feito. - Kate sorriu, apesar da sensação de que sua própria cabeça explodiria de dor a qualquer momento.
- Quer me matar de susto, entrando em meu quarto desse jeito sorrateiro, como se fosse um gato?!
Alex não parecia suspeitar dela. Talvez estivesse mais bêbado do que parecera e não assimilara coisa alguma do que ela dissera na véspera.
- De que jeito queria que eu entrasse? Batendo a porta e fazendo estardalhaço?
- E por que tinha de vir aqui, para início de conversa? - Alex sentou-se outra vez, deslizou até a beira da cama, segurou-se no pilar e procurou levantar-se.
Kate se afastou. O olhar de Alex indicava que ele se lembrava de tudo o que acontecera na noite passada. E que ainda não decidira o que fazer. Queria gritar que ele não deveria ser um agente inglês, porque beijá-lo fora a coisa mais deliciosa que já lhe acontecera.
- Você tirou minhas roupas, ontem à noite!
- Se eu tivesse feito isso, eu a teria deixado nua - defendeu-se Alex. - Eu apenas soltei alguns botões e fitas para que você pudesse respirar.
Ele foi até a janela, abriu as cortinas e estreitou os olhos ante a claridade do sol. Kate observou por um momento, fascinada, as formas másculas do corpo atlético, e então desviou o olhar, recriminando-se. Sua prioridade era descobrir uma maneira de provar se Alex era ou não a pessoa que procuravam, e também se ele suspeitava de que seu pai planejava um novo carregamento contrabandeado.
- Vá buscar um pouco de café para nós - Alex ordenou por sobre o ombro.
Kate franziu a testa e foi para o corredor. Uma criada arrumava um vaso com flores sobre um aparador, e Kate pediu a ela que trouxesse café. Quando voltou para o quarto de Alex, viu-o sentado diante da penteadeira, passando creme de barba no rosto. Ele a olhou pelo espelho e levantou a navalha.
- Dormiu bem, Kate?
- Sim - respondeu ela, preferindo considerar a pergunta como inocente. - E você?
- Muito bem. Obrigado. - Ele a fitou de viés e começou a se barbear.
O silêncio foi constrangedor. Kate não conseguia pensar em um assunto de conversação que não despertasse suspeitas. Mas o tempo corria contra si. Logo ela teria de partir, e precisava de provas.
- Você tem alguma reunião hoje?
- Não. - Alex inclinou a cabeça para trás e passou a lâmina por baixo do queixo.
Kate o fitava, fascinada.
- Por que pergunta?
- Por nada - disse ela, dando de ombros. - Eu queria fazer alguma coisa para passar o tempo.
- Vou comprar um ancinho para o feno. Se quiser me acompanhar, será bem-vinda.
Kate gostaria de passar a mão na pele lisa onde a lâmina passara.
- Pensei em me encontrar com Reg e Francis. Parece que haverá uma corrida de barcos no Tâmisa.
- Você passa tempo demais com meus amigos. Ela pôs as mãos nos quadris.
- Se você não fosse tão grosseiro, eu o acompanharia de bom grado. Mas você nunca é amável, e me leva aos lugares sempre de má-vontade. Não sei por que reclamar se eu...
Alex puxou-a pelo braço. Ela perdeu o equilíbrio e acabou caindo sentada no colo dele.
- Cale-se!
- Ora, seu...
Kate foi calada pelos lábios impiedosos de Alex, que pareciam querer devorar os seus. Tinha a impressão de ter sido atingida por um raio. Alex segurava-lhe a cabeça e ela pôs as mãos no rosto ainda úmido do sabão de barba, enquanto ele a enlaçava pela cintura e a puxava de encontro a si.
Kate não ofereceu resistência. Estremeceu e aproximou-se ainda mais.
- Posso achar o caminho sozinha! Não se incomode! - uma voz feminina ecoou no corredor.
Alex interrompeu o beijo e praguejou. Afastou Kate do colo e levantou-se no mesmo instante em que a porta foi sacudida e aberta. Barbara Sinclair irrompeu no quarto, arfante e segurando as saias com uma das mãos. Wenton entrou atrás dela, com a expressão mais sombria que de costume.
- Perdão, milorde... Lady Sinclair insistiu... Alex ergueu uma das mãos.
- Está bem, Wenton, não se preocupe.
- Sim, milorde. - O mordomo fez uma mesura e saiu, fechando a porta.
- Precisa de alguma coisa, Barbara? - perguntou Alex, com expressão inabalável.
Kate ficou admirada com aquela súbita compostura. Ela própria mal conseguia controlar a respiração.
Barbara Sinclair foi até a cama e reparou que estava desfeita. Passou a mão no acolchoado e virou-se para Alex.
- No começo imaginei que você estivesse ocupado em acompanhar seu primo. Depois me ocorreu que isso não faz parte de sua natureza. Alguma outra coisa deve estar tomando seu tempo.
Barbara encarou Kate com ar especulativo, e ela se inquietou. Alex a prevenira de que se ele descobrira o disfarce, outras pessoas poderiam descobrir também.
Barbara se aproximou e apontou um dedo para Kate. Ela teve vontade de afastar a mão de Barbara com um tapa, mas um cavalheiro jamais faria tal coisa, por isso ela se conteve. Sentiu o dedo de lady Sinclair em seu rosto e ficou em pânico ao ver que estava molhado de espuma.
- Mas que droga, Alex! - A presença de espírito de Kate foi instantânea. - Eu lhe disse para largar essa maldita navalha enquanto falava!
Ela fez um espalhafato para examinar a própria roupa, como se estivesse procurando manchas de sabão de barba.
- Eu teria feito isso, se você parasse de me atormentar com assuntos sobre os quais nada entende! - volveu Alex, dando continuidade à encenação e jogando uma toalha para Kate.
Kate limpou o rosto enquanto Barbara se aproximava de Alex, farfalhando as saias de tafetá.
- Não quero que pense que estou lhe cobrando a atenção - murmurou Barbara, langorosa.
Kate teve ganas de desmanchar o penteado sofisticado de Barbara e arrancar-lhe alguns cabelos da cabeça.
- Ótimo. - Alex se levantou. - Fico contente que tenha isso em mente.
Barbara tirou a toalha das mãos de Kate e começou a limpar a espuma do rosto de Alex.
- Já conversamos sobre esse assunto. Alex. O problema é que o visconde Mandilly não tem me dado sossego, e ele é uma pessoa desagradável. Quando você está por perto, basta um de seus olhares insolentes para pô-lo em seu lugar.
- De fato, a insolência é uma característica de meu primo - Kate interveio na conversa.
Que droga... Barbara Sinclair não poderia ter escolhido outra hora para se lamentar?
Por sobre o ombro, Barbara lançou um olhar enigmático para Kate e cochichou algo no ouvido de Alex, que se empertigou, com a fisionomia impassível.
- Kit, pode nos deixar a sós por um momento? - pediu, sem olhar para ela.
Ah, não! Aquilo passava dos limites!
- Eu sou seu hóspede! - Kate não escondeu a irritação. - Não pode me dispensar só porque...
Alex acercou-se dela e segurou-a pelo braço.
- Chega, Kit - falou com calma, conduzindo-a para a porta e para fora do quarto. - Vá tomar seu desjejum.
Kate ficou parada, olhando a porta que fora batida com força. Sentia-se como se um lindo castelo tivesse desmoronado de repente, as ruínas jazendo a seus pés. Ela não passava de uma diversão para Alex, que tratava de livrar-se dela a um simples estalar de dedos da amante.
Com raiva, limpou as lágrimas que teimavam em turvar-lhe a vista. O conde de Everton lhe ensinara uma verdade. Kate Brantley não passava de uma tola.
Desceu a escada e pegou o chapéu e as luvas pendurados no cabide do vestíbulo. Tinha coisas mais importantes para fazer do que lamentar o idílio romântico do conde de Everton e lady Barbara Sinclair. Precisava de respostas, e agora não se importaria nem um pouco se encontrasse provas do envolvimento de Alexander Cale no embargo dos negócios de seu pai.

- Muito bem, Barbara - Alex encostou-se no pé da cama e cruzou os braços. - O que foi que decifrou?
- Como eu já lhe disse, estive pesquisando sobre a história de sua família. - Ela foi até a janela e olhou para fora. - Você não tem nenhuma tia Marabelle. E, portanto, nenhum primo Kit Riley.
- É?
Alex precisava descobrir o que Barbara sabia a respeito de Kate. Desde o princípio soubera que Kate representava problemas de vários tipos. Era uma donzela virgem, vestia-se como rapaz, usava o palavreado de um marinheiro, fazia trapaças em jogos de azar, e provavelmente estava a serviço de Napoleão Bonaparte ou de um de seus seguidores.
- Quem é ela, Alex?
- Ninguém que deva lhe tirar o sono.
- Mas está me tirando o sono! Eu prezo a sua fortuna e a sua companhia. Não quero perdê-las para uma magricela de calças!
Alex espantou-se com a demonstração de arrogância de Barbara, e teve a impressão de ouvir uma voz alterada, ao longe, como se alguém estivesse praguejando alto, porém não pôde distinguir as palavras.
- Não me olhe assim, Alex! Você teria a mesma reação que eu, se alguém se intrometesse entre você e algo que você deseja.
Exatamente como você acabou de fazer, pensou Alex.
- É verdade. Meu hóspede não ficará em Londres por muito tempo. Por isso sugiro que não lance mão de ameaças nem de melodramas.
- Quer dizer que pretende manter segredo a respeito dessa... dessa criatura? Pois bem, se é assim, também poderei manter segredo... desde que valha a pena o sacrifício.
- Está fazendo chantagem, Barbara? - Se o segredo fosse seu, Alex não hesitaria em menosprezar a atitude mesquinha de Barbara. Mas não pôr em risco a integridade de Kate, mesmo sendo ela uma possível criminosa. - O que você quer?
Barbara se surpreendeu com a pronta capitulação.
- Bem... apenas o seu interesse, Alex. Por enquanto. - Pouco confiante, manteve distância. - Posteriormente podemos adicionar algum outro acordo.
- Concordo. Por enquanto. Mas esteja avisada, Barbara... Não cometa nenhuma asneira, porque eu não tolerarei, entendeu?
Barbara entendeu a advertência. O interesse era mútuo.
Ela assentiu e saiu do quarto, fechando a porta sem fazer ruído. Alex abriu a janela e inspirou o ar fresco da primavera. A poucos dias da partida de Kate, ele assumia riscos desnecessários e muito perigosos.
Bateu com o punho fechado no peitoril. Ele e Kate haviam embarcado em um jogo de conseqüências imprevisíveis, tanto para ela como para si mesmo. Pela primeira vez em sua vida, não tinha idéia do que deveria fazer. Pensava apenas em tornar a beijar Kate Brantley, tirar aquelas roupas masculinas e acariciar-lhe a pele nua.
Escutou uma batida leve na porta.
- Milorde?
- Entre, Antoine.
Alex respirou fundo, e Antoine ajudou-o a tirar o robe e a vestir-se.
- Por acaso notou se meu primo destruiu algum móvel ou obra-de-arte no caminho para a sala de almoço?
Não podia contar a Kate sobre o acordo que fizera com Barbara, e também não teria tempo de reconquistar a confiança dela para impedi-la de agir e protegê-la ao mesmo tempo.
- Posso ter me enganado, mas creio que o menino Kit saiu.
- Como é? - Alex virou-se bruscamente e Antoine ficou com a gravata na mão.
- Eu o vi conversando com Wenton e...
Alex pegou a gravata, deu um nó rápido e foi para o corredor.
- Wenton! - gritou, de cima, apoiado na balaustrada. O mordomo apareceu embaixo.
- Para onde Kit foi?
- Milorde, sir Riley avisou que, se me fosse perguntado...
- Fale logo, homem! - Alex desceu a escada correndo.
- Pediu-me para transmitir a milorde um pedido de desculpas por ausentar-se sem obter seu consentimento, mas que não se sentia à vontade para interrompê-lo e...
- Quero saber o que meu primo lhe disse antes de sair, Wenton!
- Bem, milorde, eu... não gostaria de repetir as palavras que o rapaz me encarregou de lhe transmitir, e...
- Pois eu faço questão que você as repita, agora! - esbravejou Alex.
Wenton pigarreou, e seu rosto ficou vermelho.
- Sim, milorde, ele... me avisou para lhe dizer que... milorde e aquela... perdão, milorde... aquela leitoa emproada fossem para o inferno, porque ele ia para Covent Garden, milorde.
O primeiro impulso de Alex foi correr atrás de Kate e impedir que se metesse em apuros. A reação seguinte foi imaginar se ela teria ido passar informações para os espiões de Bonaparte que infestavam Charing Cross e Covent Garden. Não tinha certeza se dissera alguma coisa que não devia, na véspera.
Por fim, decidiu que Kate Brantley pretendia levá-lo à loucura e que nada poderia fazer enquanto sua cabeça estivesse latejando daquele jeito. Antes de qualquer outra coisa, teria de tomar um café e comer algo.
Agradeceu secamente ao mordomo e foi para a sala de almoço.
- Quero falar com Drake, assim que ele chegar. E me avise imediatamente, quando meu primo voltar, ou se souber de alguma confusão que possa ter sido causada por ele.
- Sim, milorde.
Alex sabia que precisava reconquistar a confiança de Kate para ganhar o jogo. Mas o maior problema era saber primeiro exatamente que jogo era esse, que os dois estavam jogando.

Capítulo VI

Kate perambulou por entre as barracas de frutas e vegetais do mercado de Covent Garden e pegou um pêssego. Havia percorrido a Bond Street à procura de Reg Hanshaw ou de Thadius Naring.
Encontrara Augustus Devlin que, absorto, não respondera a sua saudação. Num impulso, resolvera segui-lo. Seria melhor do que voltar à Cale House ou ficar pensando no que estava acontecendo por lá durante sua ausência. E assim chegara a Covent Garden.
Devlin estava parado mais adiante, conversando com uma mulher de busto grande e lábios muito vermelhos, usando um vestido barato e decotado. Kate percebeu que a expressão distante e pensativa de Devlin, de pouco antes, fora substituída por um sorriso que ia de uma orelha a outra.
Ela se escondeu atrás de uma carroça quando ele se virou em sua direção. Contou até dez e foi até o quiosque de um padeiro. Olhou para trás e não avistou Devlin. Frustrada, foi até onde se encontrava a mulher de aspecto vulgar.
- Por acaso a senhora viu para onde foi o meu amigo, que estava aqui havia pouco? - Kate indagou.
- Posso ser sua amiga também, sir - respondeu a mulher, brincando com um botão do colete de Kate.
- Então selemos nossa amizade. - Entregou à mulher uma moeda, que ela examinou a depois guardou dentro do decote.
- Como é esse seu amigo?
- É alto e loiro, e tem uma tosse crônica. - Kate quase acrescentou que ele era atraente, mas lembrou-se a tempo de que não podia se expressar como uma mulher.
- Ah, já sei. Ele não teve tempo para mim. Foi ao encontro de outro cavalheiro, por ali.
Kate espiou na direção da viela indicada pela mulher. Apesar de curiosa, resolveu não se arriscar sozinha por um beco deserto. Agradeceu, entregou à mulher outra moeda e caminhou até o meio do quarteirão. Encontrou um bom lugar de observação, encostou-se na parede e aguardou.
Alex estava profundamente contrariado. À uma e meia terminara a reunião com o advogado que cuidava de seus negócios. Às cinco horas havia comprado dois ancinhos e escrito um recado para o administrador da propriedade, avisando que o preço da cevada subira no mercado londrino e que era preciso substituir vinte acres da plantação de aveia por cevada. Às seis horas, cansado de esperar, resolveu jantar mais cedo no Boodle's.
Recusara a companhia de Reg e Francis para jantar na casa de Barbara. Seu estado de espírito estava mais para estrangulá-la do que para jantar com ela. Combinara de encontrar-se com os amigos mais tarde, no baile dos Worthington. Voltou à Cale House para trocar de roupa e Wenton informou-o de que Kit ainda não voltara.
Alex praguejou baixinho e bateu as luvas contra a perna. Covent Garden no escuro não era dos lugares mais seguros, se é que Kate realmente estava lá, e não em alguma taverna, trocando informações com algum espião francês. Também era possível que ela estivesse em algum clube masculino, apostando o dinheiro dele. Que ao menos as trapaças dela não a deixassem perder!
Alex esperou até às onze horas e então desceu. Avisou Wenton que iria à casa dos Worthington e recomendou que dissesse a Kit onde ele estava, quando o primo voltasse para casa.
Se Kate não aparecesse até ele retornar, teria de sair para procurá-la, pensou Alex, apreensivo. Mas decidiu adiar a preocupação para mais tarde e distrair-se na enfadonha festa.
Caroline estava lá, acompanhada pela mãe, a duquesa de Furth, e perguntou por Kit. Felizmente Martin Brantley não estava em Londres. Alex imaginava a reação de Kate, se o visse. Ele mesmo desejava que o duque continuasse por algum tempo em Wiltshire. Era uma preocupação a menos.
- Alex. - Reg Hanshaw se aproximou e ofereceu-lhe um cálice de conhaque. - Alguma novidade?
- Em poucos dias saberemos. Mandei Hunt para Dover e James para o Norte. Um carregamento de mil mosquetes não é muito fácil de esconder.
- Mesmo assim, isso deixaria nosso glorioso líder agitado. Alex teve certeza de que não gostaria de envolver seu antigo mentor naquela confusão.
- Escreveu para ele, Reg?
- Você não escreveu? - Reg levantou urna sobrancelha.
- Creio que é mais agradável mandar uma mensagem falando da recuperação das armas do que avisar que ainda não as encontramos.
- Está certo. De qualquer forma não tenho o menor desejo de irritá-lo.
- Nem eu. - Alex moveu uma sobrancelha para Reg, ao ver Francis Henning se aproximar. - Como vai, Francis? - Notou o vistoso anel que ele ostentava. - De quem roubou isso?
- Eu ganhei de Lindley. Ele disse que o comprou diretamente de um navio procedente da índia.
- Era usado como cascalho? - Reg abaixou a cabeça para examinar a pedra vermelha.
- Tenho certeza de que é uma jóia de valor incalculável! - Francis indignou-se.
- Aposto que é vidro - Reg provocou-o.
- Veja, Alex. - Francis estendeu a mão. - O que acha? Alex não chegou a responder. Viu Barbara entrar, pediu licença aos amigos e foi ao encontro dela.
- Alex. - Barbara saudou-o, cautelosa.
Alex disse a si mesmo que, para o bem de Kate, teria de ser amável com Barbara Sinclair até que o assunto fosse resolvido. De uma maneira ou de outra.
- Barbara. - Beijou-lhe a mão. - Vamos dançar?
- Com prazer - ela aceitou, graciosa.
- Não vi seu primo, Alex.
- Não me provoque. Sua reputação também está em jogo.
- Vamos dançar - ela sussurrou.
- Vamos.
Kate voltou para a Cale House às oito e meia da manhã seguinte. Wenton informou-a que Alex retornara havia pouco e que se encontrava na sala de almoço.
- Ele pediu para me ver? - Kate só pensava em uma cama macia.
- Milorde não disse nada a respeito, sir.
Alex batera a porta na sua cara e passara a norte com a amante. Enquanto isso, seus amigos ocupavam-se em impedir o contrabando, com missões do governo e em rastrear as manobras de Napoleão. Curiosamente, Augustus Devlin, que segundo Alex estava com tuberculose, fora ao encontro de vários indivíduos de aspecto suspeito em um beco de Covent Garden, e lá ficara até depois da meia-noite. Mais estranho ainda fora o fato de ele esgueirar-se pela entrada de serviço da própria casa, como se não quisesse ser visto chegando àquela hora. E fora encostada atrás do muro da Devlin House que Kate acabara adormecendo, enquanto esperava para ver se Devlin tornaria a sair.
Kate encaminhou-se para a escada e parou diante da porta da sala de almoço. Não podia deixar Alex perceber que ela desconfiava de suas atividades. Além disso, estava disposta a perdoá-lo pela rudeza. Pensando nisso, entrou.
Alex levantou os olhos do jornal e tomou um gole de chá.
- Bom dia - ele a cumprimentou.
- Bom dia - Kate respondeu e sentou-se na cabeceira oposta.
Um criado trouxe chá e outro serviu as frutas e as torradas. Alex fez sinal aos dois para que se retirassem.
- Por uma questão de etiqueta, esse lugar é destinado à senhora da casa - Alex falou atrás do jornal.
- Assim ela poderá ficar bem longe do marido - Kate resmungou, irritada por Alex não pedir desculpas por seu comportamento. - Um costume estupidamente inglês.
- Como estamos nos esmerando nas indelicadezas, poderia me dizer onde esteve desde ontem de manhã?
- Não é da sua conta - ela respondeu para o jornal. Depois de alguns minutos, Alex abaixou o jornal, dobrou-o e o entregou a Kate.
"Napoleão arregimenta seguidores" era a manchete, ao lado de um esboço artístico de Bonaparte falando ao Conselho em Paris.
Kate percebeu que Alex a fitava sem piscar, certamente curioso para descobrir a causa das olheiras e da gravata desfeita. Não importava. Nada mais aconteceria entre eles. Devolveu a ele o jornal.
- Isso não me surpreende - comentou. -- Não acredito que Napoleão tente nova campanha contra a Rússia.
- Também não fiquei surpreso - Alex concordou. -Contudo, não posso imaginar quais serão os planos de seu pai.
Kate espantou-se, mas disfarçou, puxando a fruteira.
- O que meu pai tem a ver com isso?
- Fui encarregado de protegê-la durante um período de quinze dias. Depois disso ele terá de tomar outras providências. O duque de Wellington está se dirigindo para o norte da França. Paris não vai oferecer mais segurança. Muito menos o Exército que poderia convocar um rapaz.
Kate deu de ombros. Alex se preocupava em protegê-la e com a promessa que fizera. Talvez ele não soubesse dos verdadeiros motivos de sua estada em Londres. Embora tivesse certeza de que Alex agia contra os interesses de seu pai, Kate não conseguia odiá-lo.
- Sem dúvida ele pensará em uma alternativa.
- Ele é bastante habilidoso.
- Como é que você sabe?
- A prova está diante de mim. Poucos pais pensariam em vestir as filhas com trajes masculinos para protegê-las. - Alex sentou-se perto de Kate. - Agora, diga-me. Onde esteve a noite passada? - Tocou-lhe os dedos. - Se não me responder, serei forçado a trancá-la no quarto até seu pai voltar. Durante seis dias. - A voz de Alex era suave e o olhar frio como aço.
- Você não pode me trancar!
- Duvida que eu o faça?
Kate sabia que um suspeitava do outro e que haviam chegado a um impasse.
- Está bem. - Ela inspirou fundo. - Eu lhe direi onde estive, se você me disser onde esteve.
- Fui ao baile dos Worthington e depois acompanhei Barbara Sinclair até a casa dela. Jogamos cartas até as três da manhã. Voltei para cá e fiquei acordado, esperando você voltar. Por favor, não me diga que esteve em um dos nossos clubes.
- Você e Barbara ficaram jogando cartas? - Kate perguntou, incrédula.
- Isso mesmo. Eu a deixei ganhar. O que foi difícil, por ela ser uma jogadora descuidada. Ao contrário de você.
- E isso foi tudo o que você fez, a noite inteira?
- Foi.
- Por quê?
Alex fitou-a com intensidade e franziu os lábios.
- Porque Barbara Sinclair é uma substituta medíocre. O coração de Kate disparou.
- Substituta... de quem?
- De Kate Brantley. - Alex segurou a mão dela.
- Você é responsável por mim, esqueceu?
- Não esqueci, mas obrigado por lembrar. Acontece que isso não tem nada a ver com meus sentimentos por você.
- Ah.
Alex sacudiu a cabeça com um leve sorriso.
- Quer que eu faça uma relação deles?
Ele parecia ter desistido de saber onde ela estivera.
- Por favor.
- Não gostaria de melindrá-la, mas já que insiste, vamos começar por suas roupas.
- Gosta delas?
- Eu as odeio.
- Perdão, mas foi você quem...
- Deixe-me falar. As roupas femininas, mesmo as mais simples, destinam-se a sugerir as formas escondidas sob as mesmas. Creio que por isso são vendidas. - Alex a fitava com certa malícia. - Camisas, coletes, calças e sei lá mais o quê não combinam com a natureza das mulheres. Até hoje eu só vi seu pescoço e suas mãos. Isso é frustrante, Kate.
Alexander Cale, conde de Everton, estava atraído por ela, a a filha de um contrabandista.
- Patife - Kate murmurou.
O que ele dissera, por mais perturbador que fosse, respondia a uma dúvida que a atormentava desde a noite anterior. Estivera preocupada em encontrar provas de que Alex era o homem procurado por seu pai, e não considerara o que aconteceria com ele caso viesse a ter uma comprovação. Nem queria pensar no pior.
Não podia permitir que isso acontecesse. Só havia uma solução. Perturbá-lo. Cativá-lo. Para fazê-lo esquecer de seus propósitos como agente do governo. A idéia não a agradava, pelo sofrimento que causaria a ambos, mas seria melhor do que vê-lo morto. No entanto, não estava certa de conseguir fingir que estava seduzida e não perder de vista seu objetivo.
- Kate. - Alex apoiou o queixo na palma de uma das mãos e o cotovelo na mesa, e a fitava com olhar especulativo.
- Sim? - Ela piscou, voltando ao presente.
- Uma moeda por seus pensamentos - ele sussurrou.
- Eu... estava pensando se era isso que meu pai tinha em mente quando me fez vestir calças.
- Quanta frieza. Eu esperava por uma frase mais encorajadora.
- O que esperava ouvir?
- Uma resposta honesta.
- De que adiantaria revelar meus sentimentos? Isso nada mudaria.
- Fale.
- Eu o acho muito irritante. - Kate levantou-se.
Com uma rapidez surpreendente, Alex correu e encostou-se na porta. Enfiou a mão no bolso e, com movimentos lentos, tirou de dentro uma chave e balançou-a diante do rosto dela.
- Não esqueceu de nada, Kate?
- Não está falando sério, está? - protestou ela, alarmada.
- Nunca falei mais sério em minha vida.
- Lourdaud! Anel Boef!
- Já a escutei empregar um desses termos antes. É melhor ter em mente que tenho muito boa memória.
- Eu também!
- Ótimo. Então não preciso repetir a pergunta.
- Eu odeio você!
- Não é o que eu esperava ouvir, mas pelo menos é sincero. Kate não estava certa de odiá-lo, mas precisava de tempo para inventar uma mentira. Alex sabia que ela não estivera no White's.
- Fui a Covent Garden e aluguei uma carruagem para ir a Dover, com o propósito de comprar uma passagem para Calais. Mas mudei de idéia. Fiquei um pouco em Dover, depois aluguei outro coche e voltei para Londres. - Kate cruzou os braços e rezou para que sua raiva parecesse genuína.
Alex abaixou a chave.
- Por que mudou de idéia?
- Não sei. Antes não tivesse mudado.
Alex pensou um pouco antes de fazer um novo comentário.
- Bem, isso me deixa diante de um dilema.
- E qual seria?
- Você me disse o que eu queria saber, mas eu não poderia deixá-la voltar para Paris no meio de uma guerra e faltando seis dias para terminar o compromisso que assumi com seu pai para honrar a promessa feita pelo meu.
Mais uma vez ela não acertava o alvo, Kate se recriminou.
- Não creio que me trancar no quarto possa ser considerado uma atitude honrada.
- Decidiremos isso mais tarde. - Alex guardou a chave no bolso. - Por que não termina de comer e vamos até a casa de Gerald e Ivy?
- Não quero.
- Não me faça repetir, Kate. Tenho de ir lá, e você irá comigo. Não posso me arriscar a deixá-la sozinha. Imagine se Kit Riley resolver passar a noite na rua como uma mulher. Estaria arruinada.
Alex foi para o corredor e fechou a porta.
- Eu sou uma mulher - murmurou ela.

- Quem você está pretendendo encaçapar?
Alex fez a jogada e segurou a ponta do taco de bilhar antes de olhar para o primo, suprimindo a vontade de rir e fazendo-se de desentendido.
- Perdão?
Gerald Downing apontou para a bola de número três, que rolava sem rumo sobre a mesa.
- Pelo que me lembro de seus discursos anteriores, o segredo da vitória no jogo de bilhar é cabeça fria e um gole de...
- Conhaque. Eu sei. E você tirou o dia de hoje para desfiar uma série de chavões, não é?
- Você me ensinou a maioria deles.
- Engula todos e sirva-me uma dose, Gerald.
Gerald foi até a bandeja de bebidas e Alex avaliou a jogada desastrosa que acabara de fazer. Escutou o riso das damas na sala de estar e franziu o cenho. Kate fizera dele um bagaço e na certa sabia disso. Fechou a porta e as risadas foram abafadas.
- É o nosso fardo. - Gerald serviu-o.
- O que é o nosso fardo? - Alex tomou o drinque de uma vez.
- Ouvi-las rir de nós e não saber o que foi que fizemos que é tão engraçado. - Gerald deu a volta na mesa para jogar.
Alex sabia por que Kate se divertia tanto à sua custa. No caminho para a casa dos Downing, ela nem ao menos o olhara, de tão irritada. Ele também ficara furioso, ao imaginar que ela fora a Dover com planos de voltar para a França. Não estava acostumado a ser descartado. E mesmo depois de ela ter dito que o odiava, Alex continuava a desejá-la com ardor.
Gerald encaçapou duas bolas e errou outra. Alex voltou para a mesa. Gerald lhe propiciara uma bela tacada, com chance de recuperar o jogo.
- Talvez devesse tomar um gole, Gerald. - Alex deslizou o taco na mesa.
- Por quanto tempo mais Kate ficará na Cale House?
- Seis dias - Alex murmurou e procurou o melhor ângulo de ataque.
- E como você está lidando com isso?
- Maravilhosamente bem.
- Tudo na castidade?
- Cale a boca, Gerald! Gerald riu.
- Dado o seu histórico de vida, sinto-me orgulhoso de meu primo!
Alex jogou. A bola nove entrou na caçapa seguida de perto pela bola branca.
- Eu tenho um grande poder de autocontrole.
- Por que não desafogar as mágoas com Barbara ou com uma das centenas de mulheres dispostas a servir ao conde de Everton?
Porque Kate Brantley é a única mulher que eu desejo, pensou Alex.
- O que o faz pensar que não as procurei?
- Porque você está mais tenso do que a corda de um arco.
- Tenho outros problemas em que pensar na vida além de... Gerald apontou o taco para o peito de Alex.
- Não tente pôr a culpa em Bonaparte. - Ele inclinou-se sobre a mesa. -- No mínimo, você ainda tem seis dias pela frente para se preocupar com a virtude de Kate.
Dentro de seis dias Kate iria embora, e ele nunca mais a veria.
- Graças a Deus.

- Fico feliz que tenha me contado - garantiu Ivy. - Não há nada de errado a seu respeito, minha querida.
- Eu fiquei ali parada, babando por causa de um vestido. Reg deve ter pensado que enlouqueci.
- A maneira como foi criada não elimina o fato de você ser mulher, Kate. Foi a primeira vez que se sentiu dessa forma?
- Acho que sim.
Kate passara a manhã tecendo mentiras para Alex e continuava a mentir para a bondosa Ivy. Tudo se complicara. O mais fácil era lançar a culpa sobre Alex Cale. Se ele não fosse tão atraente, espirituoso e despertasse tanto interesse, ela jamais teria pensado nas coisas terríveis que vinha fazendo.
- A situação entre ambos já mehorou?
- O que quer dizer com isso, Ivy?
- Na noite em que a conhecemos, vocês dois não escondiam o antagonismo.
- Alex é muito irritante.
- Às vezes, sim. - Ivy recostou-se na poltrona e tomou um gole de chá. - Tenho uma idéia. Que tal comprarmos um vestido? Eu poderia ajudá-la a escolher um traje apropriado. O que acha?
- Eu não... bem, agradeço muito, mas... - Depois que voltasse para Paris, não teria mais aquela oportunidade. Seria arriscado usar um vestido em Saint-Marcel. - Acha mesmo que eu deveria, Ivy?
- E por que não? - A sineta anunciou a hora do almoço. - Que tal amanhã?
Kate pensou em perder pouco tempo com aquela futilidade. Precisava empenhar-se em distrair Alex até seu pai transportar as mercadorias pelo canal da Mancha. Se Reg e Augustus estivessem ativamente envolvidos, e não apenas apoiando Alex, também teria de encontrar uma maneira de diminuir o ritmo de atividade deles.
- Está bem!
Quando entraram na sala de almoço, Gerald e Alex já se encontravam no recinto. Eles se levantaram e Ivy dispensou os criados. Em seguida sentou-se e Alex imitou-a. Gerald, em pé, fitou-o com severidade. Kate segurou o espaldar da cadeira e cerrou os dentes.
Alex suspirou e tornou a levantar-se.
- Perdoe-me, milady. Não me ocorreu que hoje estivesse no seu papel de dama.
Kate pensou em proferir algumas imprecações em francês. Talvez pudesse perguntar a Alex onde ele aprendera a ler a mente das pessoas. Outra opção seria irromper em lágrimas e sair correndo. Em vez disso, deu um leve sorriso e sentou-se.
- Ninguém pode adivinhar, não é mesmo?
Depois de alguns minutos de conversas paralelas, Kate passou a travessa com galinha assada para Ivy.
- Alex, se não houver nenhuma objeção, eu gostaria de passar algumas horas com Kate amanhã - comentou Ivy.
Alex olhou para ela e depois para Kate.
- Não pretendo arruinar sua maldita dívida de honra - Kate sussurrou.
- Não sou responsável pelos atos de Kate. - Alex franziu os lábios. - Por isso sugiro que pergunte a ela.
- Eu adoraria, Ivy - Kate antecipou-se.
- A título de curiosidade, por que esse entusiasmo?
- A companhia de Ivy é muito mais agradável de que a sua, cochon - Kate retrucou, arisca.
Alex ergueu uma sobrancelha e Gerald engasgou com um pedaço de pão.
- Kate, desculpe-me, mas tem certeza de que é uma mulher? Não me lembro de nenhuma que tenha chamado Alex de "porco" antes de ele ter rompido com elas.
Kate levantou-se e jogou o garfo na mesa.
- Sim, eu sou mulher! - Exasperada, ela saiu da sala.
Alex levantou-se, pediu desculpas aos primos e foi no encalço de Kate. Alcançou-a no final da alameda de entrada, enxugando as lágrimas.
- Não vai fugir de novo, não é mesmo?
- Sinto muito. Eu não imaginava que Gerald soubesse francês. - Ela passou a manga do casaco nos olhos.
- Somente quando se trata de bons vinhos e carnes suculentas. Quer parar um pouco? Essas botas não foram feitas para correr em maratonas.
Kate se deteve, sombria e encarou-o. Alex entregou-lhe uma rosa branca e o coração dela bateu descompassado. A raiva e a frustração foram inteiramente esquecidas.
- Obrigada. - Kate segurou a flor.
- Quero que me perdoe. - Alex passou a língua nos lábios e desviou o olhar por um momento.
- Pelo quê?
- Por ter lhe dito que a desejo. Sei que o problema é meu e que terei de lutar contra ele.
Se ela se jogasse nos braços de Alex, despertaria suspeitas. Mas não lhe parecia muito fácil agir com sutileza em relação a Alex.
- Acha que conseguirá?
- Não sei. Nunca tive de testar essa faceta da minha natureza. - Alex abriu o braço, convidando-a para voltar à casa dos Downing.
Problemas de coração também eram uma experiência nova para Kate.
- Sinto-me envergonhada. Não gostaria de entrar agora.
- Façamos outra coisa. Eu a ensinarei a dirigir o faetonte e permitirei que aterrorize os pedestres na Hyde Park. Acha que isso a alegrará?
- Pode ser.
Kate limpou as lágrimas remanescentes e seguiu-o. Alex subiu na pequena carruagem descoberta e estendeu a mão para ela, para ajudá-la a subir. Ele demorou para soltar-lhe a mão e Kate não o encarou. Tinha receio de ceder ao desejo de beijá-lo ali mesmo, diante dos cavalariços dos Downing.
A carruagem deu um arranco e partiu. Alex enfiou a mão no bolso do casaco, tirou uma maçã e ofereceu-a a Kate. Ela aceitou e deu uma mordida, e o sumo da fruta escorreu por seu queixo.
- Obrigada.
- Não há de quê. A maçã era para os cavalos. -- O sorriso dele antecedeu uma boa risada.
Tudo voltava ao normal, e Kate se descontraiu.
- Não me importo de dividir. - Ela abocanhou mais um pedaço.
Kate dirigiu o faetonte como se fizesse isso desde criança.
- Solte um pouco Benvolio - Alex instruiu, recostado e de braços cruzados. - Mercutio está fazendo o trabalho sozinho.
- Está bem. - Kate se transformara na última meia hora, quando Alex lhe entregara as rédeas. - Posso fazê-los galopar?
- Eu não a aconselharia a fazer isso.
- Eu só perguntei.
- Ainda bem. Ou acabaria matando a nós dois.
Os olhos verdes de Kate brilharam na semi-obscuridade do Hyde Park. Alex escutou-a rir e pensou na história que ela contara sobre o sumiço da véspera. Não tinha certeza se ela mentira, mas não restava dúvida de que alguma coisa importante a preocupava.
- Alex! Kit!
Um faetonte se aproximava. Alex virou a cabeça e sentiu os cavalos serem contidos quando Kate reconheceu os ocupantes da carruagem.
- Calma, Kit. - Ele acenou para Reg Hanshaw e Caroline. - Pare a carruagem devagar.
- Alex...
Alex viu que Kate estava pálida e receou que ela tivesse uma indisposição semelhante à do outro dia. Tomou as rédeas das mãos dela, que tremiam.
- Caroline não morde - sussurrou, brincalhão. - E também não deixarei que ela lhe dê uma surra.
- O que vocês dois estão conspirando? - Reg queixou-se, curioso.
- Meu primo está tentando massacrar meus animais e ignora meus conselhos de como se deve guiar uma parelha.
Kate encostou-se no braço de Alex, à procura de conforto, deixando-o desnorteado. Ele não conseguia decifrar Kate. Havia momentos em que ela era distante e hostil. Em outros, parecia confiante e vulnerável. Poderia levar a vida inteira para desvendar aquela mulher.
No momento seguinte ele se recriminou pelos pensamentos indesejáveis. Não pretendia empenhar seu coração mais uma vez, e além disso Kate Brantley era uma inimiga.
- Minha mãe nunca comentou comigo sobre essa teimosia, característica deste ramo da família - disse Kate, surpreendendo Alex por sua coragem e presença de espírito.
- Eu sempre me pergunto qual dos dois lados de uma família tem razão, quando um não tolera o outro - Caroline alegou com graça.
- Um observador imparcial é muito difícil de encontrar. - O sorriso relutante de Kate foi encantador.
- É verdade que pretende ficar apenas mais alguns dias, Kit? Nesse caso poderíamos fazer uma despedida com Devlin e Francis no Society depois de amanhã. O que acha da idéia?
- Será ótimo, Reg.
- Não se comprometa, Kit. Seu pai poderá vir buscá-lo antes.
- Kit, por que não convence seu pai a deixá-lo ficar até o final da temporada? - Caroline perguntou.
- Eu... não, eu... bem, ele tem negócios na Irlanda e precisará de mim para ajudá-lo.
Alex imaginou se Kate ficaria feliz em ir embora. Ela não falava muito do pai, mas era difícil acreditar que estivesse ansiosa para voltar a Saint-Marcel. A menos que tivesse mentido também a este respeito, para despistar seu verdadeiro endereço.
Eles se despediram de Reg e Caroline, e Kate virou-se e acompanhou-os com o olhar.
- Não foi tão terrível, foi?
- Não. Suponho que ela não se encontre muito com o pai. Nem se pareça com ele.
Na verdade, a semelhança era surpreendente.
- Você gosta dela, não é, Kate?
- Se ela não fosse quem é... e eu não fosse quem sou...
- Até quando pretende ser Kit Riley, o aventureiro? - Alex perguntou enquanto saíam do Hyde Park.
- Não sei. Nunca pensei no assunto.
- Logo completará vinte anos, minha querida. Talvez devesse começar.
- Talvez...

Capítulo VII

- Está mesmo planejando visitar Ivy? - Alex perguntou na manhã seguinte, à mesa do desjejum, e levantou-se.
- Sim, a menos que você tenha outra coisa em mente. Kate era mesmo imprevisível, o oposto do que fora Mary e a maioria das mulheres com quem ele se relacionara.
- Não - respondeu ele. - Apenas alguns encontros... interessantes.
Alex pretendia insinuar algum caso amoroso.
- Chega de subterfúgios, Alex. Você não é o dissoluto que finge ser.
- Por acaso está desapontada?
Kate ignorou a ironia. Limpou o canto da boca com o guardanapo num gesto delicado.
- Esses encontros são muito importantes? Não poderia faltar a um deles?
- Na verdade, trata-se de reuniões de interesse nacional. Com a retirada de Bonaparte de Elba, o assunto está na ordem do dia.
- Organizar um exército seria a melhor solução. - Kate também se levantou.
Aquele comentário, vindo de uma simpatizante de Napoleão, era uma surpresa.
- Gostaria que eu liderasse um exército contra a França?
- Não! - A idéia de Alex expor-se ao perigo a aterrorizava.
- Por que não? Kate enrubesceu.
- Wellington pode comandar um exército. Alex segurou-a pelos braços.
- O que deseja que eu faça, Kate? O brilho nos olhos verdes era intenso.
- Você poderia apenas continuar com suas assembléias. - Ela suspirou, dramática. - Não posso imaginar o que fazem as esposas dos lordes o dia inteiro enquanto eles vão às sessões da Câmara. Eu enlouqueceria de tédio.
- Creio que, por vingança, devem gastar o dinheiro deles na Bond Street.
- Bem, como eu só tenho quinze libras, suponho que terei de enlouquecer de tédio.
Quinze libras e a vida de miséria em Saint-Marcel.
Alex pediu-lhe que o acompanhasse até seu gabinete, tirou um pedaço de pergaminho de uma gaveta, escreveu alguma coisa e entregou o papel a Kate.
- Fique à vontade.
Kate leu o que ele escrevera e arregalou os olhos.
- Você está me concedendo uma autorização de crédito?
- Pode comprar o que quiser, para levar quando voltar a Paris.
- Não tem medo que eu o arruine? - brincou ela.
- Você já fez isso - ele respondeu, sério, e acariciou-lhe o rosto. - Mas eu não perdi a confiança em Kate Brantley.
Enquanto Kate estivesse fazendo compras, seria mais difícil encontrar-se com alguém para revelar algum segredo de Estado. Um estrategista escrevera que a distração podia ser uma arma menos dolorosa e tão eficiente como um ataque direto.
Kate fitou-o por um longo momento, dobrou o papel e guardou-o no bolso.
- Obrigada, Alex.
Alex apontou-lhe um dedo, com bom humor.
- Eu a aconselho a não considerar a compra de propriedades e de veículos. Ah, e também de cabeças de gado.
Kate riu.
- Bem, se precisar de mim, estarei gastando seu dinheiro na Bond Street.
Kate não agia como uma seguidora de Napoleão, nem como filha de um homem que contrabandeava armas por essa causa. Por um momento, Alex quase cedera ao desejo de passar o dia com Kate. Os negócios de Estado que fossem para o inferno.
Relutante, subiu para pegar as luvas. Teria de se manter o mais afastado possível de Kate, pois o regresso dela à França era uma questão de dias. Ele tinha muito trabalho pela frente. Os mosquetes seguiam pela costa rumo ao Norte, e Bonaparte começava a marcha em direção à Bélgica.
Kate e Ivy começaram pelo final da Bond Street. Uma jovem senhora fazendo compras em companhia de um rapaz mais moço despertava comentários maliciosos, mas Ivy não parecia se importar. Kate, encantada com as roupas e tecidos, importava-se menos ainda.
- Sr. Riley?
Ela largou as fitas que estava escolhendo. Do outro lado da bancada, Mércia Cralling a fitava com curiosidade.
- Srta. Cralling. Que prazer em revê-la.
- O que está fazendo aqui? - Mércia sussurrou e corou.
- Ivy teve a bondade de me acompanhar para escolher um traje para minha mãe. - Kate observou o penteado de Mércia.
- Eu pensei que sua mãe tivesse falecido - estranhou Mércia.
- Tem razão, me perdoe. - Kate recriminou-se. Alex ficaria furioso com o descuido. E seu pai também. - Meu pai se casou de novo. O presente é para minha madrasta.
- Você é muito gentil.
Mércia segurou na mão de Kate, que mordeu a língua para não rir e retirou a mão.
- Ela merece.
Kate olhou para trás. Ivy explicava para a vendedora que sua tia, mãe de Kit, era alta e não aparentava a idade.
- Kit, acha que tia...
- Célia.
- Célia vai preferir um vestido de musselina azul, ou um verde e cor de pêssego? - Ivy apontou os dois vestidos que a vendedora segurava.
- O verde, eu acho. - Kate examinou os modelos e estremeceu ante a idéia de meter-se dentro de um deles.
- Vamos levar este - Ivy anuiu para a mulher. Kate foi até o balcão.
- E isto também. - Ela deixou perto do vestido um conjunto de fivelas de marfim e um par de meias de seda.
O problema maior eram os sapatos. Não poderia tirar as botas para experimentá-los. Ivy e Kate decidiram, em voz baixa, comprar as sapatilhas verdes que haviam visto em outra loja. Se ficassem pequenas, o tecido maleável lacearia.
- Isto é para a sua madrasta? - perguntou Eunice Cralling, a mãe de Mércia, aproximando-se do balcão para examinar o vestido.
- Sim. - Kate inspirou fundo, contendo-se para não bater na mão da intrometida.
- Eu diria que é um pouco audacioso. Até indigno. Eu não usaria um trapo desses. O conde não aprovará. - Eunice virou-se, segurou as saias de brocado e afastou-se.
- Minha mãe vai adorar! - Kate retrucou e entregou a autorização de crédito para a vendedora.
Como acontecera nas três lojas anteriores, a vendedora imediatamente pôs a loja à disposição para a querida mãe do simpático Kit Riley.
- Isto é o suficiente - Ivy respondeu por Kate e mandou embrulhar as peças escolhidas.
Carregada com os pacotes, Kate saiu da loja na companhia de Ivy, maldizendo Eunice Cralling, que abalara sua autoconfiança.
- Kate, não se preocupe com a opinião de lady Cralling - Ivy adivinhou-lhe o pensamento. - Ela não é exatamente uma referência em questões de moda e bom-gosto.
- Eu não me importo - Kate comentou enquanto entregava os pacotes para o cocheiro dos Downing. - Estou imaginando o que Alex dirá quando começar a receber as contas de todas as lojas de artigos femininos da Bond Street.
- Quando isso acontecer, Kit Riley estará bem longe - Ivy divertiu-se. - Além disso ele não impôs limites. Creio que pensamos em tudo. Meias, roupas íntimas... O que mais lhe ocorre?
- Nada, Ivy. - Na verdade, Kate entendia muito pouco de moda feminina.
- Bem, então vamos voltar para casa e ver o que acontece.
O conde de Fouché escondeu-se ao ver o coche dos Downing subir a rua em direção à Berkeley Square. Teve certeza de que Stewart Brantley superestimara a capacidade da filha de envolver-se com a causa. A jovem deveria fazer um trabalho de espionagem e não sair às compras enquanto Bonaparte arriscava a vida pela França. E Kate gastava como se tivesse o Banco da Inglaterra à sua disposição. Alex pagava regiamente pelos serviços que recebia.
Fouché fez sinal a seus acompanhantes e os três voltaram na direção de Covent Garden.
- Vamos, mes amis - ele murmurou. -- Temos um encontro.
Ele fora esperto. Não deixara tudo por conta de Stewart. E ainda haveria de ensinar à filha dele um pouco de boas maneiras e a ter respeito por um nobre francês.
- Que tal? - Ivy terminou de abotoar o vestido de musselina e afastou-se.
Kate engoliu em seco, abriu os olhos e fitou-se no espelho de báscula da amiga. As mangas do vestido chegavam aos cotovelos, deixando os antebraços nus. O vestido, um pouco largo, deslizara pelo ombro esquerdo e deixava à mostra a pele alva do pescoço. Ivy aplicara ruge nas faces de Kate e prendera os cabelos com presilhas nas laterais, deixando algumas madeixas soltas. Naquela roupa, seu busto lhe parecia desproporcionalmente volumoso em relação ao corpo esguio.
- Estou ridícula - sussurrou ela, com os olhos cheios de lágrimas.
- Ah, minha querida! - Ivy segurou-a pelo braço e virou-a. - Você está linda... Não se olhe como Kit, mas sim como Kate.
Kate inspirou fundo e tornou a olhar-se no espelho, tentando analisar sua imagem de maneira imparcial.
- Está um pouco largo - observou, examinando-se de perfil.
- E verdade. - Ivy apertou um pouco a costura das costas. - Mas não havia tempo de mandar fazer um vestido novo. Sei que minha criada faria um penteado melhor. Mas acredite em mim, Kate, você está com uma aparência excelente.
- Eu me sinto nua. - Ela virou-se para ver o decote nas costas.
- A idéia é essa. Quer que eu...
As duas mulheres se entreolharam ao ouvir batidas na porta.
- Sim? - Ivy perguntou.
- Milady, lorde Everton está à procura do sr. Riley - avisou a criada.
- Oh, não! - Kate sufocou um grito.
Apressou-se a tirar as sapatilhas e levantou a saia para arrancar as meias.
- Kate, o que está fazendo?
- Ajude-me, Ivy! - implorou ela, desesperada, tentando desabotoar o vestido.
- Não quer que Alex a veja como mulher? - Ivy adiantou-se para ajudá-la.
- Não! Ele vai rir de mim e dizer que eu poderia ter gastado o dinheiro dele em algo mais útil.
- Não foi tanto dinheiro assim, minha querida - Ivy tentou acalmá-la enquanto desabotoava a carreira de botões.
Uma batida mais forte sacudiu a porta.
- Ivy, meu primo está tentando seduzi-la?
- Espere um momento. Alex! - Ivy respondeu. - Desça antes de Gerald voltar e decida quem defenderá minha honra.
- Eu já vou, Alex! - gritou Kate, saindo esbaforida de dentro do vestido.
- O que.vocês duas estão fazendo aí dentro, afinal?
- Nada! - Kate enfiou a calça. - Espere lá embaixo!
- Está bem.
Elas ouviram os passos se afastarem no corredor, e Kate enrolou a faixa no busto, sem parar de se recriminar. Que tola que fora, perdendo tempo em provar vestidos em vez de ajudar o pai.
- Kate, como pode usar uma coisa dessas? - Ivy fitou a faixa com horror.
- Estou acostumada.
Ela vestiu a camisa pela cabeça e enfiou a fralda para dentro da calça. Lembrou-se da maquiagem no rosto e esfregou uma toalha para remover tudo. Depois olhou com tristeza para o traje largado no chão.
- Leve o vestido, Kate - Ivy sugeriu. - Se não quiser usá-lo perto de Alex, poderá usá-lo em Paris.
Kate deu um abraço apertado na bondosa mulher.
- Muito obrigada, Ivy. Apesar de tudo, foi um dia adorável. Kate enfiou tudo em uma sacola e desceu para encontrar Alex na sala de jogos, rolando com os dedos as bolas de bilhar.
- Pronto, podemos ir - murmurou. Alex virou-se e encarou-a.
- O que comprou hoje?
- Nada de especial.
Ivy garantira que quando Alex recebesse as contas, Kate já estaria em Paris.
- Só uma sacola de viagem, para levar minhas coisas de volta.
Kate teve a impressão de detectar um leve desapontamento na expressão de Alex, mas como ele não fez nenhum comentário, também não disse nada.
- Então, vamos?
Kate e Alex estavam chegando ao saguão quando Ivy o chamou do pé da escada.
- Alex, posso lhe falar por um momento? Preciso de sua ajuda para comprar o presente de aniversário de Gerald.
- Claro. - Ele voltou-se para Kate. - Com licença, um instante, volto já.
Alex seguiu Ivy até um aposento nos fundos da casa e perguntou, em voz baixa:
- O que houve? O aniversário de Gerald é em fevereiro.
- Alex, você vai deixá-la voltar para Paris?
- O pai virá buscá-la. Pouco poderei fazer.
- Se o pai a mandou para cá para mantê-la em segurança, como pode pensar em levá-la de volta em meio a uma guerra? Não se sabe o que poderá acontecer com ela.
- Eu sei. - Se Kate ficasse e as provas contra Stewart fossem reunidas, seria ainda pior. Talvez ela mesma fosse condenada. - Por quanto tempo acredita que ela poderá enganar com o disfarce? Acha que será melhor para ela ficar, mesmo que descubram a verdade e se espalhem os comentários de que "a mais recente amante do conde de Everton passou a temporada inteira jogando com os amigos dele"?
- Eu entendo sua posição, Alex, mas vê-la partir me cortará o coração - Ivy alegou, com lágrimas nos olhos.
- Compartilho de seus sentimentos, Ivy.
Os dois se entreolharam por um momento, e Alex voltou para o lado de Kate.
- Terminaram de confabular? - perguntou ela, ensaiando um sorriso.
- Sim - respondeu ele, sério.
E, para perplexidade de Kate, não disse mais uma única palavra naquele dia.

Kate acordou na manhã seguinte e lembrou-se de que faltavam apenas cinco dias. Os pássaros gorjeavam nas árvores. Na rua, começava o movimento matutino. Cinco dias.
Kate continuou deitada, sem saber o que fazer. Somente deveria entrar em contato com o pai em situação de extrema emergência, e sabia que ele não consideraria problemas do coração como uma emergência.
Com três nobres envolvidos, se um deles não pudesse ser subornado ou ameaçado para desistir, todo o trabalho teria sido inútil. Seu pai encontraria um meio mais drástico para alcançar o intento. Era o que sempre acontecia. Contudo, a solução poderia não agradá-la, e ela nada poderia fazer para interferir.
- Kit? - Alex chamou-a do corredor.
- Sim? - Kate sentou-se.
- Posso entrar?
Ela puxou os lençóis até o pescoço.
- Pode.
Alex entrou e tornou a fechar a porta. Foi até a janela, abriu as cortinas e pôs-se a examinar o tampo da penteadeira. Pegou a fita que Kate usava para prender os cabelos e depois a faixa que ela amarrava ao redor do busto.
Ela seguia com os olhos os movimentos dele pelo quarto, sem sair da cama.
- Para que serve isto? - indagou Alex, sentando-se no pé da cama.
- Para amarrar à volta do peito e passar mais facilmente por um rapaz.
- Ah, então você tem peito!
Por baixo das cobertas, Kate empurrou-o com os pés.
- Posso saber por que essa preocupação com minha roupa íntima, se prometeu preservar minha pureza?
- Mesmo que eu não tivesse um compromisso de honra, Kate Brantley se preocuparia por nós dois.
- Está me chamando de puritana?
- Jamais pensei em uma coisa dessas - ironizou ele. - Kate, tenho duas perguntas para lhe fazer. Deseja voltar a Paris?
Kate fitou-o, surpresa.
- O que disse?
- Se lhe fosse dada a oportunidade de escolha, voltaria para Paris? Para Saint-Marcel? Para a revolução sem fim de Bonaparte?
- Para onde mais eu poderia ir, Alex?
Desanimada, Kate endireitou-se e o lençol deslizou para baixo. Alex acompanhou a cena e Kate sentiu-se despida, apesar da camisola. Estremeceu e voltou a cobrir-se.
- Poderia ficar na Inglaterra.
- Como um garoto? Você não disse que eu deveria cuidar para não ser descoberta?
Alex olhou para as próprias mãos inquietas.
- Bem, eu imaginei que talvez pudesse ficar na Cale House. Era uma armadilha tentadora. Esquecer o pai, o contrabando, a sordidez de Saint-Marcel, e ficar com Alexander Cale.
- Como sua amante?
Ou até Alex se cansar dela. Ou até ela ser descoberta e ele querer evitar escândalos.
- Claro que não. - Alex esfregou o punho fechado na coxa. - Não terá de pagar nenhum preço por isso.
- Mas você gostaria que eu me tornasse sua...
- Sim, eu gostaria.
- Alex - Kate procurou manter a voz calma -, não necessito da proteção de ninguém. Não preciso que tomem conta de mim. Não quero ficar escondida ou trancada. Também não pretendo ser um fardo ou um empecilho para que me lembrem disso a toda hora. - Kate gostaria de dizer a verdade, mas não podia. - Meu pai está em Paris. Ele é a minha família. Ficarei com ele.
- Você tem família em Londres.
- Não tenho. - Kate suspirou ao pensar na adorável Caroline.
- Menina teimosa.
- E a segunda pergunta? - Ela estava aflita para mudar de assunto.
- Nada muito importante. Eu apenas gostaria de saber o que lhe agradaria fazer hoje?
- Está me dando uma opção?
- Talvez gostasse de visitar os lugares mais famosos de Londres. O Palácio de Buckingham, o Parlamento, a Torre ou...
- Enquanto isso, você irá para onde? - Kate interrompeu-o. Pensou no que o pai diria se a visse a ponto de chorar por um homem que pretendia destruí-los.
Alex tocou-lhe as pontas douradas dos cabelos desalinhados. Kate fechou os olhos e sentiu arrepios da cabeça aos pés. Imóvel, ela mal ousava respirar. O busto enrijeceu sob o tecido fino.
- Se me permitir, irei em sua companhia.
- E seus compromissos?
- Esquecerei todos. - Alex fitou-a com intensidade e sorriu, irresistível. - Tenho me comportado de maneira imperdoável, e quero me redimir. O que poderíamos fazer?
- Um piquenique! - A resposta imediata a fez corar.
- Aonde gostaria de ir?
- Ao campo.
- Espere um pouco, estou confuso. Eu lhe ofereço um tour por Londres e você prefere um passeio fora da cidade?
- Sim.
- Por quê?
Por que desejo ficar com Alex Cale só para mim.
- Não faço um piquenique desde os cinco anos. Mas se você preferir outra coisa...
- De maneira alguma. - Alex levantou-se. - Faremos o que deseja. Gostaria de convidar Ivy e...
- Não. - Kate precisava ficar com Alex sem ter de inventar mais mentiras.
- Iremos só nos dois. Tenho uma rápida tarefa a cumprir. Enquanto isso Wenton se encarregará de preparar tudo. Não me demoro. Vista-se e não se esqueça... disso. - Alex apontou a faixa. - A menos que deseje ficar mais à vontade.
- Patife! - ela ralhou. Alex riu e saiu do quarto.
Alex refletiu que um espião haveria de preferir uma visita ao Parlamento ou outro departamento do governo, à procura de algum ponto estratégico. Jamais poderia supor que uma agente secreta francesa desejasse fazer um passeio ao campo. Ainda mais a sós com um homem que conhecia seu segredo.
Foi à casa de Reg e não o encontrou. O barão saíra para cavalgar com Caroline. Melhor assim. Alex ainda não concluíra o objetivo. Interceptar o segundo carregamento de armas demandaria um certo tempo e um pouco de confusão também. E antes de obter uma informação consistente, seria tolice tomar iniciativas. Deixou o cartão de visitas com o mordomo de Reg e voltou para a Cale House.
Instruiu a sra. Hodges para pegar a cesta de piquenique e disse a Wenton que preferia o vinho Madeira.
- Milorde? - Uma das criadas entrou timidamente na sala de almoço.
- O que deseja?
- A sra. Hodges disse que a torta de pêssego para o almoço está esfriando. A de maçã queimou porque Brundle pôs lenha demais no fogão. - A moça se curvou numa vênia.
- Droga - Alex resmungou. Kate adorava torta de maçã.
- Milorde - a jovem continuou, amedrontada -, a sra. Hodges disse que eu poderia ir ao padeiro e ver se ele tem as tortas.
Wenton voltou e fitou a criada com hostilidade. Ele nunca permitia que as serviçais da cozinha transitassem pelas outras áreas da mansão.
- Milorde? - O mordomo apresentou a garrafa que trouxera.
- Essa mesma.
Wenton embrulhou-a em uma toalha e guardou-a no cesto.
- Não há necessidade - Alex falou com a moça. - A de pêssego será suficiente. Wenton, por favor, leve a cesta para a sra. Hodges.
- Pois não, milorde.
Wenton pegou a cesta e fez um sinal para dispensar a moça. Dali a pouco Alex escutou a reprimenda de Wenton e a resposta esganiçada da menina. Sorriu.
Admirou-se da própria ansiedade. Sua boca começou a salivar quando pensou no conteúdo de uma cesta de piquenique. Na verdade, tudo pelo dever e pela pátria. Em sua companhia, Kate não poderia agir. Por isso mesmo, teria de ser um dia glorioso.
Ouviu uma trovoada e foi até a janela. Um raio atravessou o céu e nuvens escuras se acumulavam rapidamente. Não demorou muito para a chuva começar a cair e levar o bom humor de Alex para a enxurrada.
- O todo-poderoso conde de Everton pensou em satisfazer meu desejo - Kate entrou na sala, rindo -, mas não contou com a chuva.
- Nem poderia - retrucou ele, carrancudo. - Em plena primavera...
- Não é culpa sua. - Ficou séria e observou o semblante de Alex.
Ele se perguntou por quanto tempo poderia continuar fingindo ignorância e olhando nos olhos de Kate.
- O meu convite para um passeio continua em pé.
Kate foi até a janela. Alex teve certeza de que, apesar da brincadeira, ela desejava fazer o passeio no campo. Depois de animar-se feito um tolo com a perspectiva ora malograda, refletiu que, pelo menos, estragara o dia de uma espiã em Londres.
Wenton voltou com a cesta, olhou pela janela e deixou o volume pesado no chão. No mesmo instante ocorreu a Alex uma idéia.
- Wenton, leve isso até a biblioteca e ajude-nos um pouco.
- Ajudar, milorde? - Resignado, Wenton levantou o cesto outra vez.
- Teremos de fazer uma mudança nos móveis. Quando Wenton saiu, Kate passou o dedo na mesa, pensativa, e fitou Alex de soslaio.
- Uma reunião festiva... na biblioteca, com um primo?
- Qual o problema?
- Pensei que você desejasse evitar boatos desnecessários. Desconfio que já me tornei um problema.
Kate tinha razão. Os criados provavelmente faziam especulações, embora sempre se mostrassem discretos. Eles nem mesmo haviam feito comentários sobre os relacionamentos desastrosos que ele tivera logo após a morte de Mary.
- O onipotente conde de Everton fará o possível para atender ao desejo de Kate Brantley. - Alex não queria pensar na insensatez de ficar a sós com ela.
Alex avisou Wenton para afastar a escrivaninha de mogno, as poltronas estofadas e as mesas laterais para o fundo.
- Não seria mais fácil empurrar apenas o sofá da sala de almoço?
- Não. - Alex irritou-se.
- Desculpe-me. Por acaso eu o fiz recordar-se de Mary?
- Fez com que me lembrasse de perfeição. Espere aqui. - Alex dirigiu-se à biblioteca.
Kate ficou parada no mesmo lugar. No pouco tempo em que se conheciam, Alex falara pouco e com relutância a respeito da falecida esposa. Kate olhou com curiosidade ao redor da sala íntima. Não tivera a impressão de que Alex lamentasse a morte da mulher. Mas pelas conversas dele, era de se supor que desejasse poupar o coração de qualquer outro envolvimento.
- Kit - Alex chamou-a da biblioteca, alguns minutos depois, quando os criados se retiraram. - Pode entrar.
Kate sorriu. Dez dias antes, não poderia imaginar que seria convidada para participar de uma reunião social a sós com o conde de Everton. Nem que o evento a agradaria. Logo, porém, o sorriso apagou-se. Depois de trair o pai, duvidou que levasse lembranças agradáveis de Londres.
Ela se deteve na porta da biblioteca. Alex estava sentado de pernas cruzadas sobre uma manta que fora estendida no meio do aposento, com a cesta de vime a seu lado. Um quadro que representava uma bela propriedade rural estava encostado na parede, servindo de cenário para a cena improvisada. Do outro lado, fora colocada outra tela emoldurada, onde se viam um lago, uma campina verdejante, muitas flores e um pequeno cervo.
- Bem-vinda ao campo! - Alex ergueu a garrafa de vinho Madeira.
Kate não conseguia falar e custava-lhe respirar. Continuou parada, fitando o conde de Everton sentado no chão da biblioteca, por causa dela. Seu coração ameaçava saltar do peito, e ela virou-se para esconder o rosto. Alex não podia de maneira alguma ler a verdade em seus olhos. Ela estava apaixonada.
- O que houve, Kate?
Kate inspirou fundo e voltou-se.
- Eu estava imaginando você fazendo isso com Barbara Sinclair. - Ela sorriu e sentou-se ao lado de Alex.
- Uma situação improvável. - Ele encheu dois cálices com o vinho. - Eu não faria e ela não gostaria.
- Por que não? - Kate pensou na reação do pai, quando viesse a saber daquilo tudo.
- Ela consideraria uma atividade... desinteressante.
- Ah - murmurou Kate. - E o que ela acha interessante fazer?
Alex deixou a garrafa de lado e pegou um dos cálices.
- Apesar de seu disfarce, não me esqueço de que você é uma jovem donzela. Não pretendo lhe revelar detalhes íntimos que poderão chocar sua inocência.
Kate fez uma careta.
- Talvez prefira encená-los comigo, então?
- Quanta ousadia! Eu poderia ser levado a supor que está pretendendo me seduzir.
Kate teve uma idéia, uma espécie de última oportunidade. Lembrou-se de como Mércia Cralling flertara com ela e abaixou a cabeça, fitando Alex por sob os cílios. Não sabia se pretendia ajudar seu pai ou a si mesma. Começou a duvidar seriamente de que obedeceria às ordens de Stewart Brantley para prejudicar Alex. Afastá-lo dos deveres parecia ser a única opção que lhe restava. Com dedos trêmulos, tocou no colarinho dele.
- E se eu estivesse?
- De maneira hipotética, é claro - Alex estranhou Kate ter entrado num jogo para ela desconhecido -, em que consistiria essa sedução?
Kate não sabia o que responder. Teria sido mais fácil se Alex simplesmente começasse a beijá-la. Imaginou que um bom recurso seria inclinar-se na direção dele.
- O que acha de uma viagem até sua propriedade em Everton, só nós dois?
Seria apenas por alguns dias, até o carregamento do pai chegar em Calais e Alex ficar livre do perigo. Ela estaria perdida, claro, mas na verdade já estava, portanto, não faria diferença.
Alex virou a cabeça de lado e tomou um gole de vinho.
- Nessa viagem, você vestiria rendas em vez de casimira, e pérolas em vez de relógio de bolso?
- Se você assim o desejar. Alex fitou-a e sacudiu a cabeça.
- Por que essa anuência repentina, Kate? O que houve? Ela pestanejou.
- Você venceu minha resistência - sussurrou. Alex inclinou a cabeça para trás e riu.
- Santo Deus!
Kate dividiu-se entre aceitar a conversa como uma farsa e a vontade de ser levada a sério.
- Não acho graça em servir de diversão para um lorde! Alex reclinou-se para trás e voltou a ficar sério.
- Nunca pretendi me divertir com você.
- Mas me provoca incessantemente.
- Não é verdade - Alex protestou.
- É, sim. Sinto muito se não gosta de minha aparência. Nada posso fazer a respeito! - Kate levantou-se com o cálice na mão e procurou um local onde deixá-lo.
Alex também ficou em pé. Kate entregou-lhe o cálice e foi até a porta. Alex pôs os dois copos no chão e segurou Kate pelo ombro. Virou-a e encostou-a na parede.
- Eu não estava brincando, nem provocando você. - Ele baixou a cabeça e beijou-a.
Kate sentiu-se prensada pelo corpo musculoso. Uma sensação estranha a invadiu, um misto de ansiedade, euforia e temor. Alex abraçou-a pela cintura, puxando-a ainda mais para perto dele.
Aquilo era o que Kate sempre imaginara. Quando via casais abraçados, fantasiava uma sensação de calor que faria a noção de tempo se perder e o respirar se tornar desnecessário. Alex afastou a cabeça, fitou-a com olhar escurecido e tornou a beijá-la com rudeza.
Kate entreabriu os lábios e Alex explorou-lhe o interior da boca. O gesto pareceu a Kate íntimo em excesso, assim como as mãos que lhe acariciaram os quadris. Mas não se aborreceu, ao contrário. Passou as mãos no peito musculoso e nos ombros de Alex.
- Alex - sussurrou, trêmula, quando Alex afastou o rosto. Ele puxou-lhe a cabeça para trás e beijou-lhe a parte mais sensível do pescoço. Kate esqueceu de tudo, exceto o calor de Alex que a esmagava contra a parede. Se não estivesse amparada, com certeza teria caído como um saco vazio.
Os trovões ressoaram com violência e sacudiram as vidraças.
- Meu Deus - Alex murmurou. - Meu Deus.
Ele recuou devagar, e Kate, relutante, afastou as mãos do peito de Alex.
- O que houve? - perguntou, trêmula.
- Eu... desculpe-me, Kate.
- Alex, eu quero...
- E eu a desejo. - Deu um sorriso triste. - O nosso envolvimento implicaria em um sem-número de consequências. Muitos pagariam por minha... fraqueza. - Acariciou-lhe o lábio inferior com a ponta do indicador. - Perdoe-me.
Alexander Cale sabia de tudo.
Ele saiu e fechou a porta sem fazer ruído. Lágrimas deslizaram pelo rosto de Kate. No chão, as marcas de um sonho desfeito: dois cálices vazios e vinho derramado.
O coração de Kate parecia estar partido ao meio, e ela fechou os olhos por causa da dor. Havia muita coisa em jogo além de uma fantasia tola e impossível, com um amor e uma vida aos quais não tinha direito. Mesmo se não existissem Napoleão e sua maldita guerra, ela era filha de um contrabandista, e Alex era o conde de Everton.
Uma coisa era certa. Precisava encontrar o pai com urgência.

Lorde Martin Brantley, ou visconde Trawbry, ou marquês de Fens, ou duque de Furth, não gostava de Londres. Não pelos divertimentos da temporada ou por desdenhar o Parlamento e as leis. Longe disso. Mas Londres ficava a dois dias de distância de Furth. Entre ida e volta, eram quatro dias. Tempo demais para Martin Brantley.
Ele fazia aquela viagem em circunstâncias muito especiais. Como aquelas. Uma oportuna, outra nem tanto.
Com um suspiro aborrecido e impaciente, desceu do coche enlameado. Olhou para cima e subiu os degraus de granito de sua mansão na Grosvenor Square, no coração de Mayfair.
- Vossa Graça - Royce, o mordomo, saudou-o. Endireitou-se e apanhou o chapéu e o sobretudo jogados em sua direção. - Bem-vindo a Londres.
O duque tirou as luvas e atirou-as dentro do chapéu.
- Onde está a duquesa, Royce?
- Na sala de estar, Vossa Graça.
- E Caroline?
- Saiu para almoçar. Vossa Graça.
- Com quem?
- Com lady Cralling, lady Montgomery e lady Feona, Vossa Graça.
- Está bem.
- Se Vossa Graça acha...
- Não acho nada.
O duque ignorou os criados que espiavam pelos cantos e foi em direção à escada. A porta da sala de estar encontrava-se aberta. Sua esposa bordava, sentada de costas para a entrada.
Martin enfiou a mão no bolso e apertou o bilhete de quatro linhas que o fizera vir a Londres. Sem uma palavra, jogou o papel no colo da mulher.
- Estou aqui, milady.
A duquesa assustou-se, ficou em pé e segurou-se no encosto da poltrona.
- Graças ao Senhor que você veio. - Ela o beijou no rosto. O duque retribuiu o gesto de carinho, virou-se e apontou para o bilhete que caíra no chão.
- Explique-se! - ordenou.
- É pior do que eu temia. - Ela tornou a sentar-se e abanou-se com uma das mãos.
- Dispenso a dramaticidade - o duque resmungou e abaixou-se para pegar o pedaço de pergaminho. Desdobrou-o e, em tom de voz irritado, leu em voz alta as frases que já sabia de cor: - "Aconteceu o pior. Receio que nossa Caroline esteja apaixonada por um plebeu. Venha antes que seja tarde demais. Sua Constance".
Ele olhou para a esposa.
- Quem é esse sujeito?
- Metade das moças solteiras de Londres desfalece a seus pés - choramingou Constance, torcendo as mãos no colo. - Segundo ouvi dizer, ele é encantador, mas completamente inaceitável.
- Quem é ele?! - Furth esbravejou.
Sua esposa era dada a exageros, o que não inviabilizava a possibilidade de Caroline ir contra tudo o que haviam planejado para ela e cair de amores por um qualquer.
- O primo do conde de Everton. O duque hesitou.
- Primo de Alexander? Então, como pode ser plebeu?
- Ele é irlandês e não tem título de nobreza.
- Ah. E qual o nome do enjeitado?
- Riley... Kit Riley.
- Bem, mandarei trazer minha bagagem para dentro. Terei de resolver algumas coisas antes de voltar a Furth.

Kate não foi à taverna Hanging Crow para falar com o pai.
Esperou Alex sair e deixou a Cale House. Alugou uma carruagem e caminhou debaixo de chuva os últimos quarteirões até Long Acre. A uns vinte metros da taverna viu uma pessoa na entrada e correu para esconder-se na padaria da esquina.
A impressão de estar sendo seguida nos últimos dias parecia se comprovar. Beloche, um dos asseclas de Fouché, observava os pedestres, encostado na porta da taverna. Kate sentou-se, pediu um café e uma fatia de torta de maçã.
Não fazia sentido a presença de Fouché em Londres. Napoleão estava em Paris, reunindo um exército para lutar contra os ingleses. Jean-Paul Mercier era um dos poucos nobres franceses que haviam apoiado a primeira revolução de Bonapartee que haviam sobrevivido para contar a história. Não devia estar na Inglaterra, longe de seu estimado mestre, a menos que houvesse um bom motivo. E comparado com a reconquista da Europa, o contrabando era bem menos importante.
Mas a verdade era que Fouché estava em Londres, com seu pai. E sem dúvida a andava espionando. O que significava que o entendimento entre ele e seu pai devia estar estremecido.
Kate esperou durante uma hora. Ninguém entrou nem saiu da taverna. Ela pagou, deixou a padaria e voltou por onde viera. Precisava falar com o pai e avisá-lo de que Alex descobrira alguma coisa, embora não soubesse precisar exatamente o quê.
As regras eram claras. Pai e filha somente poderiam encontrar-se às escondidas e sob anonimato. Kate limpou a chuva do rosto e agasalhou-se com o confortável sobretudo. Apesar do que sabia, Alex não a acusara de nada. Com Fouché entre ela e o pai, e cinco dias pela frente, teria de desempenhar-se da melhor maneira possível.
Se ao menos ela pudesse. Se conseguisse encarar Alex e sorrir. Se conseguisse fazer de conta que não sabia do que ele estava falando e fingir que não estava perdidamente apaixonada por ele.

Capítulo VIII

O tapete da biblioteca ficou estragado, milorde. - Wenton entrou no gabinete com uma bandeja de chá e bolinhos.
- Jogue-o fora - disse Alex com rispidez e sem levantar os olhos da carta que escrevia para o administrador do Solar Everton.
O homem não precisava de instruções detalhadas, pois tomava conta da herdade havia décadas. Mas Alex terminara as tarefas daquela tarde e procurava distrair a mente. Não parava de se recriminar pela tolice de ter perdido Kate de vista outra vez.
- Sim, milorde.
Alex fechou os olhos enquanto o mordomo ajeitava a bandeja na mesa e se retirava. A imagem de Kate não o deixava. Praguejou, respirou fundo e assinou a missiva. Já beijara muitas mulheres e se deitara com outras tantas. Por que todas haviam perdido o significado desde a descoberta de que Kit era Kate?
Com nova imprecação, passou a mão nos cabelos. Não se lembrava do compromisso assumido antes de Reg convidá-lo para a despedida de Kate no Society naquela noite. Irritado, remexeu na correspondência até encontrar o convite de lady Crasten para um jantar exclusivo. Fora requisitado o comparecimento apenas dos cavalheiros conhecidos por seu comportamento mais ousado. Assim a festa se tornaria mais atraente. Dois anos antes ele se deitara pela primeira vez com Barbara Sinclair, em uma dessas festas privativas.
Alex picou o convite e jogou os pedaços no cesto de papéis. O relógio bateu quatro horas. Kate estava fora havia pelo menos três. Como ele insinuara que suspeitava dela, Kate fugira. Seria preciso impedir que ela o levasse à loucura.
Alex tirou um pedaço de papel apergaminhado da gaveta e molhou uma pena no tinteiro. Escreveu uma saudação no alto da página, mas parou com a ponta da pena no papel. Teria de fazer um relatório, confirmar a identidade do contrabandista e detalhar os próximos passos. Deu um suspiro entrecortado e recolocou a pena no tinteiro. Tinha certeza do envolvimento de Kate, mas não poderia condená-la antes que ela confessasse.
- Boa tarde, Wenton - a voz alegre soou da porta. Alex amassou o papel e jogou-o no lixo.
- Kate!
Ele se conteve para não ir correndo até o hall. Minutos depois ela empurrou a porta e entrou. Os cabelos molhados caíam pelo rosto e sua roupa parecia úmida.
- Por que berrou, Alex? - Kate indagou com frieza, encostada no batente.
Alex desejou limpar-lhe o rosto e beijar-lhe os lábios.
- Não esqueça do encontro com Reg e os outros esta noite - ele retribuiu a frieza.
- Não esquecerei. Com licença. Preciso me trocar ou ficarei com pneumonia.
- Prenda os cabelos para trás. Está com aspecto bastante... feminino. - Alex ficou em pé e aproximou-se.
- É mesmo? - Ela tocou os cabelos. - Alex, posso fazer-lhe uma pergunta?
- Qualquer uma.
- Você tem algum retrato de sua mãe nesta casa? Era a última coisa que Alex esperara ouvir.
- Sim. No salão de baile. Gostaria de vê-la?
- Sim.
Eles subiram dois lances de escada. Alex pegou uma lamparina que estava sobre uma mesa e virou no corredor à direita até chegar a uma grande porta dupla que ficava destrancada. O recinto fora ocupado apenas uma vez desde a morte de sua mãe. Logo após seu casamento. Os criados mantinham o chão limpo e os lustres cobertos para evitar a poeira. No lado oposto à entrada, dois quadros enormes estavam cobertos por um lençol. Alex afastou o pano e levantou a lamparina para iluminar os quadros.
Kate seguiu-o e admirou-se.
- Ela era linda... Alex, quantos anos sua mãe tinha, quando esse retrato foi pintado?
- Devia ter mais ou menos a idade que você tem hoje.
- Você se parece com ela - observou Kate, contemplando o rosto sorridente e simpático, como o do marido no quadro ao lado. - Como ela era?
- Bem, tirando o fato de que não usava calças nem dizia palavrões, parecia-se bastante com uma moça chamada Kate Brantley.
- Não acredito! - Fitou-o com um sorriso intrigado.
- É verdade. Minha mãe tinha grande vivacidade de espírito. Muitos homens a temiam.
- Mas os homens não têm medo de mim.
- Porque pensam que você é um deles. Se usasse saias, teria de saber desmaiar, sorrir com afetação e mostrar espanto com freqüência.
Eles se entreolharam diante da luz tremeluzente. A verdade era que Alex desejava Kate com ardor, independentemente do que a consciência e o dever o advertiam.
Kate engoliu em seco e, devagar, foi em direção à porta.
- Preciso trocar de roupa - murmurou. - Obrigada por me mostrar os retratos e... perdoe-me pelo que houve hoje de manhã.
- Não foi sua culpa. Tenho um pouco de dificuldade para me lembrar que não sou don-juan.
Kate não acreditou nem por um instante que fora o senso de cavalheirismo que o impedira de prosseguir. Como voltara para casa, Alex poderia pensar que ela não saíra para nenhuma missão.
- E eu continuo esquecendo que sou Kit e não Kate.
- Não é uma questão de esquecer, mas de querer enganar. A mim você nunca enganou, Kate.
- E o que acha de Kate, monsieurl
- Muito linda. Adorável.
Alex olhou para o retrato dos pais. Eles sorriam. Em aprovação.
- Boa noite - ele sussurrou e apagou a vela.
Augustus Devlin estava bêbado quando Kate Brantley e Alexander Cale chegaram ao Society. Reg Hanshaw chegara antes deles e fitou Alex com expressão eloqüente.
- Boa noite, amigos. - Kate sentou-se ao lado de Devlin, esperando descobrir outros indícios. Mais um confronto como o daquela manhã com Alex, e ela teria de ir embora. - Onde está Francis?
- Visitando a avó - Reg respondeu. - Ele deixou um abraço e disse que sentia perder a despedida.
- Ela está doente? - Kate aceitou o conhaque que Alex lhe servia e corou diante do olhar intenso.
- Ela está nas últimas há cinco anos. Os netos se engalfinham para saber quem será o mais favorecido no testamento. Sempre que pode, Francis vai lá pedir algumas libras. Que não são concedidas com muita facilidade, diga-se de passagem.
- Que tristeza. - Kate lembrou-se da descrição que seu pai fazia do duque de Furth. a quem considerava como ávaro.
- Eu disse a ele que não desse esse gosto para a avó. mas o que se faz sem dinheiro? - Devlin comentou.
- Não muita coisa - Kate teve de concordar.
Kate percebeu que Alex não desviava o olhar dela. Teria de dar-lhe um pontapé. Homens não olhavam uns para os outros daquela maneira. Devlin nada notaria, pois estava bêbado, mas Reg se encontrava sóbrio.
- Por falar em dinheiro - Reg anunciou -, o jantar hoje é por minha conta, mes amis.
- O que vamos comemorar? - Alex indagou.
- Caroline concordou em fazer um piquenique com nosso intrépido herói - explicou Devlin, brincando com a taça.
- Creio que ela aceitou para fazer mais perguntas a seu respeito, Kate. - Reg deu risada. - Contudo, reconheço como um bom sinal qualquer atenção por parte de Caroline.
- Não sei por que milorde insiste que ela está apaixonada por mim - Kate protestou, franzindo a testa. - Mal troquei meia dúzia de palavras com ela.
- É simples. - Devlin recostou-se na cadeira. - Reg empenhou-se em agradar Caroline. Ela conhece todas as nuanças de seu caráter e de seu pensamento. Kit Riley. ao contrário, permanece um mistério a ser explorado e resolvido.
Kate não soube dizer se Devlin insinuava algo além do comentário óbvio, e pelo olhar de Alex, percebeu que a mesma idéia ocorrera a ele.
- Não sou nenhum mistério - retrucou. - Apenas não pretendo me intrometer em seara alheia.
- Ah, como é galante, meu rapaz - Devlin elogiou pela cortesia. - Alex, seu primo pode dar-lhe boas lições.
- Por falar em lições, Alex, achei que estivesse ministrando algumas para Barbara - disse Reg. - Por que a amizade repentina na noite passada?
- Ah, sabe como eu sou. Não queimo todos os cartuchos.
- Fitou Devlin e apoiou os cotovelos sobre a mesa. - O que o está aborrecendo, Augustus?
- Nada. Eu estava pensando em como a corte de Reg é diferente da sua. Ele corteja a família inteira.
- Augustus... - Reg recriminou-o em voz baixa.
Nos último dias, Kate pensara muito sobre o breve casamento de Alex. Fitou Devlin sem disfarçar a curiosidade.
- Não conhece a história, meu rapaz? - Devlin pareceu ler-lhe os pensamentos. - Então escute. Alexander Lawrence Bennett Cale, o futuro todo-poderoso conde de Everton, poderia ter qualquer mulher do mundo. E decidiu escolher minha irmã. - A risada de Devlin era a de um bêbado. - E ela o odiava.
- Chega, Augustus! - Alex preveniu-o, ríspido.
- Ora, Alex... Reg e eu sabemos de tudo. E, afinal, Kit faz parte de sua família. - O visconde voltou-se para Kate. - Eles ficaram casados seis meses, e cada minuto desse período foi um inferno. Pergunte a ele se não é verdade.
- Por Deus, Augustus! - Reg levantou-se e fitou Alex.
- Não sei o que houve com ele. Está assim a noite inteira. Eu o levarei para casa.
Devlin soltou-se do barão que o segurara pelo braço.
- Ele a deixava muito inquieta. Os dois tinham tão pouca coisa em comum que Mary foi acometida por uma febre maligna e Alex só ficou sabendo três dias depois. E esperou mais um dia, não foi, para chamar o médico? - Ele lançou um olhar fulminante para Alex.
- Ela insistiu para que eu não o fizesse.
Kate percebeu o desconforto de Alex e levantou-se.
- Vamos, primo. Ele está bêbado demais. Não entende que, insultando você, ofende a própria irmã.
- É mesmo? - Devlin esvaziou mais uma vez a taça. - Creia-me, não foi essa a minha intenção.
Alex arrastou a cadeira para trás e ficou em pé.
- Se já não estivesse morto, Augustus, eu o desafiaria para um duelo. Mas no estado em que se encontra, não valerá o chumbo desperdiçado.
Alex virou-se e foi até a porta. Kate foi atrás dele.
- Kit! - Devlin chamou.
Kate se deteve. Bêbado, Devlin poderia ser uma boa fonte de informações.
- Não me interessa o que tem para me dizer, Devlin. - Kate foi até a porta e saiu.
Alex estava sentado na carruagem, o olhar perdido em algum ponto além das orelhas de Mercutio.
- Que maneira desagradável de terminar a noite - comentou quando Kate sentou-se a seu lado e estalou as rédeas.
- Amanhã ele nem mesmo se lembrará do que disse.
- O verme tem uma memória melhor que a sua. - Alex suspirou. - O pior é que ele está certo.
- Isso não é da minha conta.
Kate gostaria muito de saber o que se passara entre Alex e a falecida esposa.
Apesar do frio e do adiantado da hora, a menina das laranjas estava parada na esquina. Alex parou a carruagem e chamou-a. A garota veio correndo. Alex deu-lhe um florim por duas laranjas e entregou uma para Kate. Ela tirou a faca da bota e começou a descascar a fruta, enquanto Alex impelia os cavalos para a frente.
- Meus pais sempre desejaram netos e me atormentavam por isso. - Alex conservava o olhar fixo no intenso tráfego noturno. - Depois da morte de minha mãe, meu pai nunca mais mencionou o fato. E quando ele morreu, comecei a pensar seriamente que eu era o último dos Cale e que não poderia permitir que a linhagem se extinguisse. Tornei-me obcecado com a noção absurda que eu precisava de um herdeiro imediatamente.
- E apaixonou-se por Mary Devlin. - Kate terminou de descascar a laranja, aborrecida por estar com ciúme de uma mulher morta.
- Eu conhecia Augustus desde Cambridge e conheci Mary quando ela debutou na sociedade. Ela falava pouco, era graciosa, elegante e respeitável. Exatamente o que um jovem idiota procura quando tenta encontrar uma mulher que possa dar-lhe filhos. Ela era perfeita. E eu, cheio de imperfeições.
Kate gostaria de dizer que ele era maravilhoso, mas não ousou.
- Nós tínhamos pouco em comum. Ela não gostava de jogar cartas nem bilhar. Até o cheiro de bebida a enjoava. Para ela, mulheres não deviam se interessar por política, sob pena de serem taxadas de afetadas intelectualmente. Minhas paixões a deixavam apavorada e ela aceitava o "'amor" como um dever matrimonial, como se o único propósito do sexo fosse gerar filhos. Embora eu me esforçasse para tornar o relacionamento agradável, eu não passava de uma obrigação que tinha de ser suportada.
Kate fitou-o por um longo momento, incapaz de imaginar como Mary Cale pudera não gostar dele.
- Ela estava errada, Alex. - Kate não acrescentou que também a considerava uma idiota.
- Na sua opinião. Bem, em poucas semanas, nosso casamento se deteriorou a ponto de eu a encontrar apenas quando éramos obrigados a comparecer juntos a algum evento social. Ela passava os dias na sala de estar com suas amigas irritantes. Dormíamos em quartos separados, em andares diferentes da casa. Por isso eu só soube que ela estava doente três dias depois que a febre havia se instalado.
Alex olhou para as mãos que apertavam as rédeas com força, como se não fossem as dele.
- Eu não queria que ela morresse, mas estaria mentindo se dissesse que não me senti aliviado. Ela se sentia infeliz. Adorava ser a condessa de Everton, mas odiava ser a esposa do conde. - Deu um sorriso triste. - Pelo menos posso dizer a meus ancestrais que fiz a minha parte. E podem ir para o inferno se esperam que eu tente isso de novo!
Kate sentiu um aperto no coração ao ouvir a última parte do relato, embora fosse ridículo imaginar qualquer tipo de futuro ao lado de Alex. Disse a si mesma que sentia por Alex nada ter deixado em benefício próprio. Nada além de perder tempo com Barbara Sinclair ou qualquer outra mulher disposta a passar a noite com ele.
- Isso é muito triste. - Kate abraçou-o pela cintura e encostou a cabeça no ombro dele. - Mas não creio que todos os casamentos sejam dessa maneira.
- Acha que eu deveria fazer uma nova tentativa? - O sarcasmo da voz foi acompanhado por um olhar que expressava uma triste solidão.
- Seus pais tiveram um casamento feliz, não foi? Alex franziu os lábios e anuiu.
- E verdade. O que faz o meu duplamente fracassado, não acha?
Kate negou com um gesto lento de cabeça.
- Você me entendeu mal. Alex riu sem vontade.
- Peço que me perdoe, mas creio que uma virgem vestida de homem e portando uma faca não é boa conselheira matrimonial.
- Cochon! Eu estava tentando ajudar. - Kate guardou a faca na bota.
- Onde conseguiu essa arma?
- Está comigo há anos. Desafie Devlin. Não pense em duelar comigo. Apesar de tudo, a noite está agradável.
Alex girou os ombros para relaxar a tensão.
- Pode falar quando quiser - disse, mais calmo. - Aprecio seu interesse e entendi sua boa-vontade.
- Amanhã vou visitar Ivy - Kate mudou de assunto e supôs que Alex fosse impedi-la de ir.
Além disso, precisava averiguar se o pai estaria na Hanging Crow. De qualquer forma, estar perto de Alex a desconcentrava. Ainda teria de decidir o que faria com ele, com Reg e com Augustus Devlin.
Alex concordou, sem reclamar. Depois de alguns momentos, virou a carruagem rumo ao norte de Londres.
- Creio que teremos de comer. Está com fome?
- Eu sempre estou. Alex riu.
- Que tal o Boodle's?
- Se você pagar - retrucou ela, aliviada por Alex ter melhorado de humor.
- Eu sempre pago - declarou ele.

Kate ficou parada durante uma hora do outro lado da taverna. Não viu Fouché nem seus homens e entrou. Seu pai não se encontrava em nenhum lugar lá dentro, e ela voltou para a rua, aliviada. Cumprira seu dever e tentara um contato com o pai. A ausência de Stewart propiciava-lhe a opção de decidir o que fazer com Alex e seus amigos, antes que o pai tomasse uma decisão mais radical. A idéia de matar um nobre por causa de uma carga interceptada parecia-lhe absurda e perigosa. O que a levara a preocupar-se ainda mais com a perspectiva.
Tratou de sair de Covent Garden, onde Jean-Paul Mercier circulava e foi para a casa dos Downing. O mordomo convidou-a a entrar na sala íntima e Ivy mostrou-se radiante.
- Kate! - Ivy largou a pena de escrever, levantou-se e abraçou-a. - Que surpresa agradável!
- Alex foi para uma reunião...
- Gerald também. - Ivy fechou a porta e encostou-se nela. - Tudo por culpa daquele francês horroroso. Ah, estou contente que tenha resolvido vir. O que a trouxe até aqui?
- Ah, eu pretendia fazer uma visita...
Ivy conduziu Kate até o sofá onde as duas se sentaram.
- Não, minha querida, sei que não é só isso.
- Eu gosto da sua companhia.
- Eu agradeço, mas sei que há outro motivo. De qualquer modo, alegro-me com sua visita. Recebemos um convite ontem que me pareceu muito interessante.
- Do que se trata?
- Os Thornhill vão oferecer um baile de máscaras na quarta-feira.
- Eu sei, Alex foi convidado. Ivy, não está querendo sugerir que...
- Por que não, Kate? Todos irão mascarados e com fantasias. Será sua única oportunidade de se vestir como mulher em Londres.
Não só em Londres como em qualquer outro lugar. E também de Alex vê-la usando um traje feminino.
- Mas eu não tenho nada para vestir...
- Eu sei. Teremos de providenciar um vestido e algumas lições de etiqueta.
- Algumas não. Milhões! - Kate respondeu, nervosa.
- Eu poderia dar um jeito em tudo, se lhe agradar, é claro. Kate suspirou, contendo a ansiedade.
- Acho que eu adoraria.
Com idéias mirabolantes, Kate deixou a casa dos Downing e voltou para a Cale House. Desceu da carruagem alugada e não notou a figura familiar encostada no poste de iluminação em frente à mansão.
- Kate?
Ela deu um pulo e virou-se.
- Jean-Paul! - Kate exagerou na demonstração de alegria e adiantou-se para cumprimentá-lo. - O que o traz a Londres?
- Vim para ajudar seu pai. - O conde apontou para a Cale House. - Assim como você.
- Ah, sim.
- Eu esperava que tivesse novidades para mim, Kate. Um nome, quem sabe.
Kate franziu o cenho, simulando ignorância. Seria difícil conseguir a compreensão de seu pai. A de Fouché, seria impossível.
- Será um desastre se o carregamento for interceptado novamente. Seu pai deve a mim e a meus sócios dez mil libras. Se me disser quem está agindo contra nós, poderei criar... dificuldades para que essa pessoa continue interferindo.
Kate imaginou qual dificuldade impediria Alex de cumprir com seu dever.
- Só poderei informar a meu pai. Ele tem algo planejado.
- Eu sei. Eu sou o planejado. - Os olhos escuros brilharam na tez azeitonada. - Ma belle chère, eu tenho guardado seu segredo.
Fouché sabia, e isso a deixava ainda mais inquieta.
- Dê-me um nome, Kate. - Fouché tornou a olhar para a mansão. - É ele?
- Claro que não! Estou aqui por uma coincidência.
- Então diga de quem se trata. Nós, franceses, somos muito ciumentos. - Fouché acariciou-lhe o rosto. - Eu poderei mantê-la mais segura e com muito maior conforto do que um inglês aguado.
Kate sentiu a pele arder onde fora tocada. Somente Alex poderia acariciá-la. Confiava menos em seu aliado de que no inimigo.
- O que isso tem a ver com nossa missão? - Kate recuou.
- Dê-me um nome, m'amoureuse. - Fouché tornou a avançar.
- Não tenho nenhum. Na verdade, supus que fosse uma pessoa e esta manhã descobri que havia me enganado. Tenho outras possibilidades, mas ainda preciso confirmar. - Kate notou que a carranca de Fouché aumentava. - Cometer um erro poderia ser fatal para nós.
- Está bem. - Fouché segurou-lhe o queixo. - Estarei por perto.
Kate anuiu e caminhou para dentro da Cale House. Seu pai também não gostava de Fouché, mas o fato de não tê-la informado sobre a presença dele em Londres significava que ainda trabalhavam juntos. Ela mentira para os dois, com o intuito de proteger Alexander Cale. Estava cansada de mentir.
Alex soltou a cortina do escritório quando o conhecido de Kate olhou para a mansão pela segunda vez. Deduziu que se tratava de um francês pelo corte de cabelo e estilo do casaco. Pela intimidade com que dialogavam, não haviam se conhecido casualmente naquele momento.
Voltou ao hall, entrou na biblioteca e sentou-se, antes de Wenton abrir a porta.
- Como estão meus primos? - perguntou ao ver Kate entrar.
- Ivy está ótima. - Kate acomodou-se na frente de Alex. - Gerald não estava em casa. - Ela esticou o pescoço para ver o livro que estava em cima da mesa. - Está lendo meu Byron?
- Seu Byron? - Alex ergueu uma sobrancelha.
Kate revirou os olhos.
- Eu quis dizer, o livro que eu estou lendo.
- Sua demora foi excessiva. - Alex passou o dedo na lombada do livro. - Imaginei se não teria ido às corridas com Reg ou Francis.
- Oh, não. Ivy e eu conversamos muito. Só isso.
- Falaram muito sobre a vida alheia?
- Que horror, Alex! - Kate protestou.
Alex deduziu que teria de perguntar diretamente, se quisesse saber quem era o homem que vira pela janela. Não pretendia agir daquela forma. Kate era uma mentirosa profissional. Não deixava pistas. Só lhe restava atacar sob outro ângulo. Ergueu alguns papéis da mesa.
- Recebi isto hoje. Importaria-se de me explicar do que se trata?
Kate olhou para os papéis e empalideceu. Alex leu a primeira folha.
- Um par de sapatilhas: três xelins.
Kate abaixou a cabeça. Envergonhada, encolheu-se na poltrona.
- Loja da sra. Beams. - Alex leu outra folha: - Um vestido de musselina: duas libras e seis xelins. Um par de meias de seda: dois xelins. Duas fivelas de marfim: dois xelins.
- Alex, eu...
Alex segurou-lhe a mão estendida.
- Como ficou sua aparência dentro do vestido? - Ele acariciou-lhe os dedos.
- Você não está zangado?
- Claro que não. O que achou da roupa?
- Senti-me uma idiota. Os sapatos ficaram apertados, o vestido ficou folgado, e...
- De qualquer modo, eu gostaria de vê-la usando roupas de mulher. Para satisfazer minha curiosidade.
Kate virou a cabeça de lado e soltou os dedos.
- Na verdade, ficou horrível.
- Permita que eu julgue por mim mesmo. Kate deu de ombros.
- Como quiser. Mas eu não os vestirei aqui.
- Devo ir aos seus aposentos? - Alex sugeriu, matreiro.
Para surpresa de Alex, Kate ficou séria e não o agrediu verbalmente. As brincadeiras de provocação eram perigosas. Apesar dos limites que impusera a si próprio, o desejo de tocar em Kate, de beijá-la e abraçá-la era muito forte.
- Tenho uma idéia melhor - ela disse, hesitante.
- Sou todo ouvidos. - Alex recostou-se, esticou as pernas e cruzou-as na altura dos tornozelos.
Kate fitou-o, sacudiu a cabeça em um gesto negativo e levantou-se.
- Não é nada.
- Pode falar. - Alex endireitou-se. - Não tenha receio. - Evitou demonstrar a extensão de sua curiosidade.
Kate foi até a janela.
- Não é nada importante - ela repetiu. - É que... o baile dos Thornhill.
- Eu recebi o convite.
- Pois bem. Eu estava pensando... Isto é, Ivy sugeriu...
- Fale logo - Alex encorajou. Era inusitado ver Kate sem saber o que dizer.
- Bem, eu gostaria de ir ao baile...
- E por que não? Será sua última noite em Londres.
-...usando um vestido.
Alex contemplou o rosto enrubescido de Kate e demorou alguns minutos para recuperar a fala.
- O que foi que disse? - Ele arqueou as sobrancelhas.
- Ninguém me reconhecerá. Todos usarão fantasias e máscaras.
- Ficou maluca? - Alex levantou-se.
- Não. Eu apenas quero usar um vestido.
Alex entendeu a sinceridade do propósito de Kate. Ela não tentara mentir nem procurara uma desculpa para justificar seu desejo.
- Kate Brantley, por acaso tem noção do risco a que estará exposta?
- Sim.
A pergunta dele fora desnecessária. Kate não era nenhuma tola. O que o deixava ainda mais intrigado com aquela decisão inesperada.
- A sugestão foi de Ivy?
- Não se zangue com ela. - Kate tocou-lhe a manga. - Por favor, Alex. Sem sua anuência, nada poderei fazer.
Alex desviou o olhar, mas sentiu-se observado.
- Não gosto disso - ele resmungou, sabendo que não poderia recusar o pedido de Kate. - Será muito perigoso. Só concordo porque poderei vigiá-la e acudir ao menor sinal de alarme.
- Merci, Alex. - Kate fitou-o com um sorriso tímido que fez o coração de Alex bater mais forte. - Posso pedir-lhe mais um favor?
Alex ergueu os braços e largou-se na poltrona.
- Está bem. - Ele riu. - Eu me rendo.
Kate passou a língua nos lábios e sentou-se. Segurou o livro que estava sobre a mesa.
- Poderia ler um dos poemas para mim?
- Ah. -- Alex sentiu-se dividido entre o cavalheirismo e o comportamento libertino.
- Eu sei - Kate reconsiderou o pedido com tristeza. - Não é sensato. - Tornou a levantar-se. - Não tem importância.
Havia alguma intenção oculta por trás daquela solicitação. O que ela realmente desejava não era fácil de decifrar. Alex deu um suspiro exagerado e pegou o livro.
- Tem alguma preferência? - perguntou, folheando as páginas.
- Deixo que escolha a que achar apropriada. - Kate apoiou um cotovelo no braço da poltrona estofada, e o queixo na mão.
Alex achou uma que poderia agradá-la e tossiu antes de começar:

Ele somente respirava e vivia por intermédio dela.
Ela era a escolhida.
Não falava com ela.
Tremia em suas palavras.
Ela era sua visão.
Pois seu olhar seguia o dela e por ele enxergava.
O que emprestava colorido a suas coisas...
Sua chama se extinguira; ela era sua vida.
O oceano para o rio de seus pensamentos...

Durante alguns minutos o silêncio só foi interrompido pela respiração deles, como se não desejassem romper o encanto. Kate estava de olhos fechados, com um sorriso nos lábios sensuais.
- Qual é o nome do poema?
- O Sonho.
- Alex pôs o livro nas mãos de Kate. - É seu. - Incapaz de resistir, beijou-a e saiu da biblioteca, antes de Kate abrir os olhos.

Na manhã seguinte, Alex deixou Kate na casa dos Downing e foi ao Parlamento. Nos aposentos de Ivy, Kate foi submetida a uma sessão de medidas idêntica à que enfrentara com o alfaiate de Alex. A sra. Adams, modista de Ivy, era muito mais afável que o sr. Lewis. Elogiou-lhe os cabelos e a silhueta esguia. Kate admitiu que teria mordido a mão do sr. Lewis, se ele ousasse dizer que era bem-proporcionada.
Atordoada, Kate permitiu a Ivy decidir cores, tecidos e modelo. As duas mulheres passaram mais de uma hora discutindo detalhes e experimentando amostras junto a seu rosto antes de decidir qual a mais adequada. Finalmente optaram por seda cor de vinho bordado com contas pretas, renda sobre a saia, mangas bufantes e ombros à mostra.
- Acho que isso me fará parecer uma... mulher de vida fácil - Kate tentou protestar.
A sra. Adams fitou-a, espantada.
- Confie em mim - Ivy tranqüilizou-a e fez uma lista que incluiu anáguas, meias e sapatos.
A sra. Adams teria de trazer tudo na manhã seguinte para a primeira prova. Depois dos detalhes acertados, a modista empacotou seus pertences e foi embora. Kate suspirou e largou-se na poltrona mais próxima.
- Isso é exaustivo - declarou e pegou uma porção de pequenos sanduíches que uma criada trouxera.
- Kate - Ivy murmurou -, se está pretendendo ser uma lady...
- Ah, desculpe. - Kate devolveu os excesso de petiscos para a bandeja e ficou só com um. - Alex disse que eu como por um regimento. Mas creio que ele não se importa com isso.
- Alexander é um homem não convencional. Mas em sociedade, deve-se consumir com moderação, sem dar a impressão de que as iguarias não agradam.
- Não creio que poderei aprender alguma coisa. - Kate pôs um pãozinho minúsculo inteiro dentro da boca. - Alex está antecipando um desastre completo.
- Contou para ele? - Ivy bebeu um gole de chá.
- Não quis mentir sobre isso. - Kate estava realmente cansada de mentiras.
- E ele concordou?
- Com certa relutância. - Kate fez uma careta e lambeu o dedo antes de Ivy franzir a testa em repreensão. - Será que Alex tem razão e que tudo se transformará em um desastre completo?
Ivy pensou um pouco.
- Não - respondeu por fim, com um sorriso. - Farei o possível para provar que Alexander Cale estava errado em suas previsões. Ele costuma acertar em tudo. Ou, pelo menos, é o que ele acha. - Estreitou os olhos. - Agora vamos aproveitar o pouco tempo que nos resta para aprender a andar, dançar, conversar com cortesia...
Kate empalideceu. Alex estava certo.
- Não poderei ir, Ivy.
- Por que não?
- Não sei dançar.
- Que bobagem! Nós dançamos juntas, lembra-se? Kate cobriu o rosto com as mãos.
- Mas eu só sei conduzir - murmurou.
Depois de alguns momentos, Kate pôs as mãos no colo e fitou Ivy, que se sacudia... de tanto rir.
- Não sei do que está achando graça - Kate ofendeu-se, cruzou as mãos na altura do peito e recostou-se.
- Sinto muito, Kate. Tenho de lhe dar razão. Não poderá conduzir ninguém, vestida de mulher.
- Não aprendi outra forma de dançar. Ivy levantou-se, rindo.
- Vamos. Veremos o que se pode fazer.
Gerald não estava em casa. Fender, o mordomo, foi convocado para tocar piano. O arranjo não agradou a Kate. Mais pessoas saberiam de seu segredo.
- Lembre-se - Kate instruiu-a quando a música foi iniciada. - Os passos que está acostumada a fazer terão de ser feitos às avessas. Ponha a mão em meu ombro. Agora serei o cavalheiro.
- Ah, quanta confusão! - Kate sorriu para Fender, que murmurou alguma coisa ininteligível.
Kate pisou nos dedos da parceira uma porção de vezes. Eramuito difícil dançar como mulher. Ivy também parecia ter dificuldades.
- Não desista, Kate - Ivy encorajou-a. - Sei que terá sucesso. Só mais uma vez.
As duas pararam ao escutar risadas masculinas. Gerald Downing e o conde de Everton estavam parados na porta, avaliando os esforços das duas.
- Fico satisfeito em comprovar pelo menos uma dificuldade para Kate Brantley. - Alex aproximou-se. - Talvez um parceiro mais experiente esteja lhe fazendo falta. - Estendeu a mão. - Permita-me.
Dançar com Ivy era mais simples, pois ambas estavam fora de seu elemento. Kate aceitou a mão de Alex e ele abraçou-a pela cintura. O que a fez sentir-se vulnerável. Pensou em um mestre e uma aluna desajeitada. Não teve coragem de encará-lo.
- Não quero ninguém caçoando de mim.
- Tem razão. - Ivy fez sinal para Gerald acompanhá-la. - Fender? Por favor.
Com semblante de enfado, o mordomo retomou a valsa. Alex começou a dançar, mas Kate o impediu de prosseguir.
- Quero ver como são os movimentos deles. Alex soltou a mão e levantou-lhe o queixo.
- Não terá de observar ninguém. Descontraia-se e siga meus passos. Confie em mim.
Kate o vira dançar antes e pensara como seria ficar em seus braços. Tentou recordar-se da coreografia ao contrário e conseguiu dar duas voltas completas. Alex sorriu e Kate voltou a ficar confusa. Golpeou-o na canela com a ponta da bota e perdeu o equilíbrio.
- Ah... - Kate recriminou-se e parou.
- Relaxe - Alex sussurrou e abraçou-a. - Não tente se lembrar de nada. Olhe para mim. Dance comigo.
Eles recomeçaram e Kate pisou-lhe os dedos.
- Desculpe - murmurou, infeliz e se deteve.
- Nunca vi ninguém mais teimosa. - Alex não a permitiu parar e quase a arrastou para prosseguir. - Não se preocupe com os erros e não os cometerá.
Ela tropeçou mais uma vez, mas Alex não a deixou desistir.
- Alex, eu não posso. Milorde estava certo. Eu não... Alex interrompeu-lhe os protestos com um beijo.
- Cale-se. Vamos dançar.
Kate passou a língua no lábio inferior e fitou os Downing. O casal circulava perto da janela. Entretidos um com o outro, não prestavam atenção aos convidados. Kate fitou Alex. Ele piscou e tornou a beijá-la.
- Achei que milorde estivesse antecipando um desastre completo. - Nem se importou que Alex a estivesse apertando muito mais de que o permitido pelas convenções.
- E estou. - Alex entrelaçou os dedos com os de Kate.
- Então por que está me ajudando?
Na verdade ela queria pedir para Alex beijá-la novamente. Entendeu que ele tentava o jogo da sedução. Esperava que o motivo fosse pelo menos um pouco de carinho e não simples curiosidade.
- Eu deveria ter acrescentado que previa um fracasso para mim. - Alex espiou os primos e beijou Kate de novo, dessa vez com maior intensidade.
- Alex! - Ivy recriminou-o.
Alex suspirou e afastou o corpo. Naquele momento Kate percebeu que estivera dançando com Alex durante alguns minutos, sem tropeçar, deslizando suavemente nos braços de um dançarino experiente.
- Milorde fez de propósito.
- Girar é muito agradável e eu a declaro diplomada em dançar valsa.
- Só se eu for beijada toda vez que pisar nos pés do cavalheiro.
- Então será melhor dançar apenas comigo - Alex comentou, sério.
Kate não acreditou que Alex estivesse com ciúme. O que, no entanto, não a desagradou. O conde de Everton estava com ciúme de Kate Brantley, uma jovem que usava calças e sem nenhum pretendente.
- Talvez fosse melhor milorde comprar botas mais resistentes.
Alex riu.
- Começo a pensar que talvez fosse mais seguro usar uma armadura em sua presença.
- Está com receio de mim, Alex? - Kate ergueu o queixo. O sorriso de Alex a fez desejar que estivessem sozinhos na sala.
- Nem imagina o quanto - Alex sussurrou.
Eles praticaram valsa, quadrilha e duas danças campestres, antes de Alex dar-se por satisfeito.
- Se continuarmos, acabarei caindo de cansaço.
- Mas nós temos apenas três dias antes do baile. - Kate não queria sair dos braços de Alex.
E ele entendeu que tomara a atitude correta em concordar com o pedido de Kate. Apesar do risco - em todos os sentidos - que o comparecimento de Kate ao baile poderia representar, seria a última noite dela em Londres. Prometeu a si mesmo que faria o possível para transformar a ocasião em uma festa inesquecível.
- Não há motivos para preocupações. A aluna é aplicada. Quando o vestido ficará pronto?
- Em três dias.
- A previsão não poderia ser antecipada?
- Estamos no auge da temporada. A minha modista está sobrecarregada de costuras - Ivy interferiu, defendendo a sra. Adams.
- Deveria ter-lhe oferecido pagamento mais substancial - Alex recriminou-a.
- Ora, tenho certeza de que tudo dará certo - Gerald procurou apaziguar os ânimos. - Não vamos brigar antes da hora.
- O vestido ficará pronto e será deslumbrante - Ivy comentou. - Tudo dará certo - repetiu as palavras do marido.
- Assim espero - Alex suspirou. Os Downing não sabiam nem a metade dos perigos que poderiam ameaçá-los. - Vamos, Kate.
- Eu a verei amanhã, prima Ivy. - Kate beijou o rosto de Ivy e encaminhou-se até a porta. - Alex, vamos ao White's esta noite? - perguntou já na calçada.
- Eu já havia assumido um compromisso antes.
- Com quem? - Kate não conseguiu disfarçar a curiosidade e a frieza.
Não adiantaria mentir para Kate. Ela acabaria descobrindo.
- Barbara Sinclair.
Kate não demonstrou o abalo que sentira.
- Vou continuar minhas lições com Ivy. Tenho muito o que aprender.
Alex segurou-a pelo ombro. Não queria discutir na casa dos Downing nem explicar o motivo que o levava a manter um jogo amistoso com Barbara.
- Kate...
Ela se desvencilhou.
- Sua estupidez não é de minha conta, Alex.
- Como é?
- Foi milorde quem se afastou. Não eu.
Era verdade. Se fosse capaz de separar as necessidades de seu corpo dos desejos de seu coração, poderia ter feito de Kate sua amante. Fosse ela ou não espiã de Bonaparte. Todavia a teia os envolvera. As decisões que deveriam ser claras haviam se tornado sombrias e cada vez mais confusas.
- Eu me comprometi com seu pai a honrar a dívida assumida pelo meu. E lembre-se da promessa que fez para mim. Não irá a lugar nenhum até seu pai chegar.
- Sempre mantenho minha palavra. - Kate voltou para dentro.
Alex subiu no faetonte e estalou a língua para os cavalos.
- Eu também, srta. Brantley - ele murmurou.
Alex se convencera de que fora uma idiotice deixar Kate à vontade em Londres durante três dias. Pouco importava se Barbara revelasse o segredo. De qualquer forma, teria de prender Kate como espiã. Ficar com Kate haveria de piorar a situação que já deveria ter sido resolvida. Ele se recusava a examinar os motivos que o levaram a prolongar o jogo.
Deteve Benvolio e Mercutio. Um coche com um esplêndido brasão estava parado diante de sua casa. Conklin conversava com um cavalariço de libré ao lado do veículo reluzente.
Mais cedo ou mais tarde isso teria de acontecer. Com o coração disparado, apeou da pequena carruagem. Conklin se adiantou para segurar os cavalos. Wenton estava de folga, e um dos criados se encarregara da porta da frente.
- Milorde - o rapaz estava alvoroçado e inquieto -, ele... Sua Graça...
Alex tirou as luvas.
- Onde está ele?
- Na sala de estar, milorde. Eu não sabia...
- Não se preocupe, Timothy. - Alex anuiu e subiu a escada.
O duque de Furth examinava o quadro que estava em cima da lareira, como o irmão fizera quinze dias antes. O primogênito era mais alto e mais musculoso que Stewart, mas ambos tinham cabelos loiros e olhos verdes.
- Boa tarde, milorde. - Alex entrou na sala e fechou a porta.
- Alex. - Martin Brantley, o duque de Furth, virou-se e cruzou os braços na altura do peito. - Onde é que você estava?
Alex deu de ombros e foi até o aparador onde se encontravam as garrafas de bebida.
- O que o traz a Londres?
- Uma carta de Hanshaw. - O duque aproximou-se e aceitou um cálice com conhaque. Tirou a missiva do bolso e deixou-a sobre o aparador. - Gostaria de me explicar do que se trata?
Alex serviu um drinque para si próprio.
- Reg é um bisbilhoteiro que tira conclusões precipitadas. Tudo será resolvido. Como sempre.
- Alexander, estão faltando armas. Napoleão está livre. Você não tinha o direito de me ocultar o caso.
- Vossa Graça também não deveria ficar tanto tempo longe de Londres.
Martin tomou um gole.
- Deixar-me à frente dessa incumbência foi uma decisão de um monarca insano, não minha. E como tudo teria de ser mantido em segredo, eu dependia de você para manter-me informado.
- E foi o que eu fiz. - Alex amaldiçoou Hanshaw. Tudo lá era complicado sem o tio de Kate aparecer e exigir respostas que ele não estava preparado para dar. - Sempre que havia algo para relatar.
- Então não soube de nada nos últimos dois meses? Estranho, Alexander.
- Descobri poucas coisas, milorde. E prefiro ter certeza antes de passar fatos adiante. Com todo o respeito.
- Pois a mim parece um desrespeito total. - O duque de Furth fitou-o, intrigado. - Você não tem muito tempo disponível.
- Eu sei. - Alex tampou a garrafa. - Apenas mais alguns dias. Terei de solucionar o problema antes.
- Algum amigo?
- Depende do ponto de vista. - Alex indicou uma poltrona para o duque. Com a recusa, não havia como sentar-se e ele se recostou na lateral do sofá. - Que desculpa o senhor deu às massas para sair de Furth?
- Na verdade, você me propiciou um bom pretexto.
- Não diga.
- Isso mesmo. Creio que seu primo irlandês está fazendo a corte à minha filha. Confesso que estou bastante preocupado com o fato. Terei de advertir o patife, publicamente, se possível. Onde está ele?
Alex prendeu a respiração.
- Kit? Não sei. Deve estar perdido em Londres. - Felizmente Kate não voltara com ele por causa da discussão.
- Muito bem. Até que eu possa encontrá-lo em local apropriado e de maneira oportuna, avise-o para manter-se afastado de Caroline. Não me interessam as intenções dele. Caroline só se casará com um nobre de bom título. A menos que esse Kit seja um desses, é melhor ficar longe dela. Fui claro?
Alex fitou o duque com expressão insondável.
- Falarei com ele, Vossa Graça.
Furth terminou de tomar o conhaque e deixou a taça sobre a mesa.
- Muito bem. Por enquanto é só. Quanto ao outro assunto, não poderei dar-lhe muito tempo. O príncipe George vem me atormentando há semanas para apresentar-lhe algum indício. Concordo com sua decisão de certificar-se dos fatos antes de tomar uma atitude, mas há muita coisa em jogo nesse caso.
- Não precisa lembrar-me de meu dever.
- Sei disso. Por alguns dias darei uma demonstração de ser um pai protetor. Com um bom motivo. Creio que Reginald Hanshaw está interessado em Caroline.
- Eu ainda não havia notado.
- Mentiroso. - Furth deu um sorriso afável e saiu da sala.
Alex largou-se na poltrona e inspirou fundo. Se fosse cumpridor de suas obrigações, teria contado a Furth que o irmão mais novo dele era o contrabandista das armas. E que a sobrinha espionava para o pai, possivelmente a serviço de Napoleão Bonaparte.

Capítulo IX

- Essa é a coisa mais absurda que já escutei na vida - Alex resmungou.
Barbara ria, animada, enquanto conversava com uma criatura estranha que aparecera em Londres, um barão prussiano chamado Kurt Blanschauer. Ela pretendia deixar Alex com ciúme. E o homem era ridículo.
- Foi Wentworth quem contou. - Reg Hanshaw disse. - Metade da população londrina está navegando para a Bélgica, como se procurassem diversão. Aquele sujeito - apontou o barão Kurt - até me ofereceu hospedagem na casa que ele tem lá.
- Imagino como se divertiriam se estivessem na linha de frente com um mosquete na mão e o exército de Bonaparte caminhando na direção deles. - Alex sacudiu a cabeça. - Eles se lamentam do bastardo desde o começo da temporada. Agora partem para ver o divertimento.
- Sei que eu não deveria ter lhe dito isso - admitiu Reg. - O que disseram Hanton e Hunt?
- Hunt não viu nada e Hanton ainda não voltou. Meu palpite é o norte do país. Ele não cometerá o mesmo erro duas vezes.
- Ele? Já temos um nome?
Alex tomou um trago. Havia tantas pistas que ele próprio não sabia qual delas deveria seguir.
- Provavelmente. Dentro de alguns dias poderei dizer com certeza. Outra coisa, Reg. Kit não sabe nada a respeito do assunto. Eu gostaria que continuasse dessa maneira. - Pelo menos evitaria que tudo piorasse ainda mais.
- Não confia nele?
- Não quero que ele tire conclusões apressadas do que escuta.
- Entendo. No entanto ele tem interesse no assunto. Já me pediu para conseguir-lhe uma incumbência do governo. Eu o aconselhei a procurá-lo.
Kate também sabia a respeito de Reg.
- Agradecido.
- Farei qualquer coisa para contar com sua amizade - Reg fez graça. - Ainda mais que preciso de sua ajuda.
- Pois não. - Felizmente mudavam de assunto.
- Furth está em Londres. Sei que é por minha culpa, mas embora eu tenha despertado a ira do leão, pedirei para você interceder em meu favor.
Alex quase engasgou com o vinho do Porto.
- Eu?
- Sim. Ele sempre gostou de milorde. Diga-lhe que sou um homem nobre e honrado. E que também uso meu título com dignidade e respeito.
- Está me pedindo para mentir. - Alex fez uma careta.
- Seja lá o que for.
- Reg, eu gostaria de ajudar. Mas Furth veio a Londres para impedir que meu primo se aproxime de Caroline. Nesse caso, qualquer interferência minha pareceria suspeita.
Reg franziu os lábios.
- Pobre Kit. O duque deve ter assustado o rapaz. - Reg alegrou-se. - Todavia fico satisfeito em saber que Furth decidiu eliminar meu competidor.
- Reze para não ser o próximo a cair.
- Isso sobrevirá se ninguém interceder a meu favor. Você é o único de meus amigos com título de nobreza que tem alguma coisa na cabeça.
- Esqueceu de Augustus?
- Não se pode contar com ele desde o entrevero no Society. Fechou-se no escritório com um estoque de bebida. Só sai de lá para ir ao banheiro e mandar os criados comprarem charutos.
- Então, Reg, terá de ficar por conta própria. - Naquela noite, Augustus Devlin se excedera. - Como regra geral, não recomendo casamento nem para meus inimigos.
- A sua escolha foi infeliz, Alex. Caroline é maravilhosa. A aparência, a voz, o som de seu riso, a careta que faz quando não quer rir, os dedos delicados, a...
- Ah, Senhor! Poupe-me, Reg. Enquanto fica aí desfiando um rosário de elogios amorosos, Caroline conta aos pais que está apaixonada por Kit.
- Ela está apenas tentando atrair minha atenção. Não percebe que se trata de um plano orquestrado? Comparado com Kit, ganharei longe.
- Então por que precisa de minha ajuda? - Alex irritou-se.
- Para fazer com que Furth enxergue isso. - Reg bateu-lhe no ombro. - Não faz mal. Encontrarei alguém disponível para testemunhar a meu favor.
Alex virou-se e viu Barbara Sinclair sorrindo para ele, enquanto conversava com lady Crasten. Controlando o mau humor, retribuiu o sorriso.
- Com licença, Reg.
Alex aproximou-se da amante e beijou-lhe a mão.
- Alex! Eu gostaria de agradecer o lindo broche que recebi esta manhã. - Fitou Jacqueline Crasten e acariciou o "B" cravejado de brilhantes que trazia no peito. - Foi um presente por demais generoso.
- E muito bonito, Alex - Jacqueline concordou. - Deve ter custado uma pequena fortuna.
- Não foi nada. - Alex deu o braço para Barbara. - Minha querida, permita que eu admire o mimo em particular.
- Em mim ou quer que eu tire a roupa? - Barbara falou alto para a amiga ouvir e deixou-se conduzir até a biblioteca. - Adorável, não acha?
- Com certeza. Presumo que receberei a conta, não?
- Você o comprou para mim.
Alex encostou-se na estante e cruzou os braços.
- Quanto foi que eu gastei com você?
- Não seja mesquinho, Alex.
- Você é a chantagista. Apenas quero saber o montante das despesas de hoje.
- Novecentas libras.
- Santo Deus, Barbara! - Alex fingiu-se alarmado. - Desse jeito acabarei na miséria em cem anos. Creio que poderia me prejudicar mais do que isso.
- Não quero prejudicá-lo de forma alguma, Alex. - Barbara acariciou-lhe o peito e o abdômen. - Estou apenas protegendo o que é meu. Todos acreditam que ainda somos amantes. - Beijou-lhe o queixo. - Bem que poderia ser verdade.
Foi mais difícil resistir do que ele imaginara. Tinha certa afeição por Barbara. Era bonita, esperta e uma amante calorosa. A proximidade com Kate e a falta de definição o deixava ansioso. Vibrava de tensão. As carícias provocantes de Barbara atingiram o alvo, mas ele segurou-lhe o pulso e afastou-a.
- Não, Barbara.
- Está com receio de preocupar aquela menina que veste calças? Talvez ela queira uma noite de sossego.
- Barbara, como gastei novecentas libras para comprar-lhe um broche, creio que terá de contentar-se com ele esta noite.
- Tenho certeza de que gastou muito mais com seu brinquedo. Não blasfeme.
Kate se desculpara por gastar dez libras em um conjunto feminino. Novecentas para ela seria uma fortuna incalculável.
- Não se esqueça, Barbara. Depois da partida de meu primo a chantagem terminará. Esse "B" é lindo, mas não combina com milady.
A porta foi aberta e antes que Alex pudesse reagir, Barbara jogou-se em seus braços e beijou-o.
- Alex, que idéia maravilhosa! - Barbara descolou seus lábios dos dele.
O visconde Mandilly entrou.
- Mandilly. - Alex afastou Barbara e virou-se para aporta.
- Desculpe-me, Alex. Eu não sabia - o visconde falou.
- Claro que sabia - Alex respondeu e voltou para a sala de estar.
Alex perambulou durante uma hora, conversando com amigos e conhecidos. Refletiu se Kate já teria retornado à Cale House e se ainda estaria com raiva. Sabia que não deveria ter vindo, mas acalmar Barbara lhe parecia a maneira menos complicada de adiar a explosão até depois da partida de Kate.
- Alex - Reg cochichou, assustado. - O que foi que deu em milorde?
Alex franziu o cenho.
- Não estou entendendo.
- Vai se casar com Barbara Sinclair?
- O quê?
- Depois de sair da biblioteca, ela proclamou aos quatro ventos que os dois teriam novidades em breve e que milorde ainda precisava de tempo para fazer o anúncio. Andou bebendo demais, Alex?
- Ela se excedeu! - A fúria tomou conta de Alex. Virou-se à procura de Barbara. Os boatos tomariam conta de Londres em questão de horas. Se Kate escutasse, teria mais um motivo para não confiar nele. - Eu a matarei.
- Não aqui. - Hanshaw segurou-o pelo braço. - Nós a arrastaremos até uma viela escura.
- Isso não tem graça nenhuma, Reg.
- Eu não estava brincando. Sei que estão estremecidos - Reg levantou a mão -, e o problema não é de minha conta. Mas milorde terá de pôr um paradeiro nisso, antes que seja tarde demais.
- Não posso. - Alex cerrou os dentes.
Com certeza Barbara planejava uma armadilha desde que soubera do segredo de Kate. E ele nada poderia fazer para impedi-la de continuar a jogada imunda. Por enquanto. Kate teria de ser protegida e Stewart Brantley impedido de contrabandear armas.
- Barbara que se divirta. Ela não me forçará a subir ao altar. Será pior para ela mais tarde.
- Alex, se não tomar cuidado...
- Eu sei. - Ela era a viúva de um visconde. Alexander Cale cairia no desagrado de seus pares se a maltratasse. - Barbara não é nenhuma donzela. Não poderá alegar que foi ludibriada. O escândalo para ela será pior de que para mim.
- Santo Deus, Alex. Não posso compreender por que está pretendendo arriscar...
Alex bateu-lhe no ombro.
- Logo eu lhe direi. Prometo.
Alex resolveu ir para casa. Teria de encontrar uma explicação para Kate antes de ela resolver assá-lo em um espeto.
Kate voltou da casa dos Downing bem tarde, com esperança de encontrar Alex recolhido em seus aposentos. Enxergou-o sentado no degrau superior da escadaria, folheando um almanaque agrícola.
- Milorde pôs fogo na biblioteca? - Kate começou a subir os degraus.
- Eu não queria perder a oportunidade de encontrá-la. - Alex largou o folheto e encarou Kate quando ela parou alguns degraus abaixo.
Ela se apavorou com o olhar constrangido de Alex. Supôs que seu pai fora preso e ela seria detida.
- O que houve?
- Eu gostaria de preveni-la a respeito dos boatos que escutará amanhã cedo.
- Que boatos? - A ansiedade continuava.
Alex deu uma tossidela e passou a mão nos cabelos.
- De que Barbara Sinclair e eu vamos nos casar.
Kate custou a entender o significado das palavras e teve a impressão de que o coração deixara de bater.
- O quê?
Alex deu um sorriso.
- Foi isso mesmo que eu disse quando soube.
A descontração de Alex deixou-a um pouco mais aliviada e ela sentou-se ao lado dele.
- Poderia explicar-me o caso com maiores detalhes?
- Barbara descobriu seu segredo.
- Oh! Deus - Kate falou com voz sumida.
- E verdade. E fez uma imposição. A menos que eu mantivesse a impressão de prosseguirmos no nosso relacionamento, ela desencadearia rumores a nosso respeito.
- Foi por isso que milorde passou aquela noite na casa dela?
- Foi. E hoje, após um desentendimento a respeito do assunto, ela anunciou para quem quisesse ouvir que eu e ela tínhamos novidades.
- Rameira! - Kate exclamou.
- Exatamente a minha opinião. - Alex riu. Kate fitou-o.
- Por que não me contou antes?
- Barbara Sinclair é um problema meu. - Alex acariciou-lhe o rosto com o dorso dos dedos. - Como foi sua noite?
Kate não conseguia acreditar que em dois dias Alexander Cale sairia de sua vida e ela nunca mais o veria.
- Nós nos divertimos bastante. Alex suspirou.
- Tenho outra novidade, minha querida. - Alex segurou-lhe as mãos e fitou-a intensamente.
Kate só desejava beijá-lo e perder-se em seus braços. Alex jamais seria seu inimigo. Jamais.
- Furth está na cidade.
Alarmada, tentou soltar-se, mas Alex a segurou.
- Ele nunca vem a Londres!
- Quase nunca. Furth foi avisado de que sua filha estava apaixonada por um irlandês sem título. E mandou que eu lhe trouxesse um recado. Mantenha-se afastado de Caroline.
Kate pensou que fosse desmaiar e encostou a cabeça no ombro de Alex. Ele roçou a face nos cabelos de Kate e ela sentiu a fragrância forte do perfume francês de Barbara, de espuma de barbear, de couro e da pele de Alex. Seria muito simples virar o rosto e beijá-lo. Restava-lhe pouco tempo. Teria que contar ao pai sobre o conde de Everton e esperar que encontrassem uma maneira de não envolver o perigoso Fouché. O que seria improvável, a menos que ela nada dissesse. Aflita com o pensamento, afastou-se.
- O que houve, Kate?
- Eu... não quero vê-lo.
- Creio que poderemos evitar o encontro por quarenta e oito horas.
- E depois? - Kate sussurrou. Alex levantou-se.
- Se eu fosse uma cigana, eu lhe diria. - Estendeu a mão para ajudá-la a erguer-se. - Até amanhã, Kate.
- Boa noite, Alex.
O vestido ficou pronto na data prevista, como a sra. Adams prometera.
Gerald continuara as lições de dança iniciadas por Alex e promoveu Kate ao posto de melhor dançarina de Londies. Ivy parecia satisfeita com o resultado das aulas de boas maneiras e recomendou-lhe para esquecer as imprecações.
Na manhã do dia do baile, Kate Brantley mal continha a impaciência. Alex teria de comparecer à assembléia na Câmara dos Lordes e ela pensou em aproveitar a ausência dele para interrogar novamente Thadius Naring. Desistiu. Procurava desculpas para inocentar Alex. Era muito tarde para isso. Assim como era tarde para negar que estava apaixonada por ele.
O dia se arrastava. Cansada de andar de um lado a outro, foi para a biblioteca. Encontrou uma cópia de A Comédia dos Erros. Achou o título apropriado. Não chegou a ler.
Escutou a porta ser aberta e Wenton saudar Alex. Fitou o relógio sobre a lareira. Faltavam poucas horas para o baile dos Thornhill. Seu coração disparou ainda mais com a entrada de Alex no recinto.
Ele jogou a correspondência na mesa e sentou-se diante de Kate.
- Então. Kate, qual o plano pra hoje à noite?
Kate sabia que a idéia não o agradava e alegrava-se por ele mostrar cordialidade apesar da relutância.
- Acredito que seria melhor não chegarmos juntos - Kate deixou de lado o volume.
- Muito bem pensado.
- Depois de milorde sair, alugarei uma carruagem e irei à casa dos Downing. Após a minha transformação - franziu o cenho ao vê-lo rir -, irei ao baile.
- Com Gerald e Ivy.
- Não.
- Jovens respeitáveis não comparecem desacompanhadas a bailes. - Alex não escondeu o desagrado.
- Alex, ninguém saberá quem eu sou. Usarei uma máscara. Não importa que eu vá sozinha. Isso apenas aumentará o mistério.
Alex não estava convencido.
- E depois?
- Voltarei à casa dos Downing, trocarei de roupa e retornarei para cá.
- Não estou gostando nada disso.
- Alex...
- Está bem. Não seja desmancha-prazeres, Alex! - ele imitou voz feminina e tamborilou com os dedos no braço da poltrona. - Pelo menos diga o que vestirá, para eu saber com quem flertar.
Kate riu, animada.
- Milorde terá de descobrir.
Alex fitou a janela.
- E amanhã?
Kate perdeu a alegria.
- Meu pai estará aqui. Já arrumei minhas coisas. - Estava preocupada. Vira o pai há quase uma semana. O tempo voara. Ela se levantou e foi até a porta.
- Kate...
- Não diga nada, Alex. - Ela não suportaria ouvi-lo pedir mais uma vez para não voltar a Paris. - Não está na hora de milorde se aprontar?
- Seu desejo é uma ordem, milady. - Alex ficou em pé. - Prometa-me que tomará cuidado. Esta noite sairá de cena o jovem teimoso.
- Não se preocupe. - Kate sorriu com emoção.
- Impossível, minha querida.
Alex trocou de roupa. Escolheu o traje de noite negro, a máscara escura que representava uma cabeça de lobo e desceu. Aceitou o casaco e o sobretudo das mãos de Wenton.
- Comporte-se, primo - falou por sobre o ombro para dar mais efeito e saiu.
Kate correu para cima. Da janela do escritório de Alex, viu-o subir no coche. Assim que o veículo foi para a frente, Kate contou - pulando alguns números - até cinqüenta e desceu.
- Wenton, vou sair um pouco.
- Está bem, sr. Riley. - Ele a ajudou a vestir o sobretudo. Kate agradeceu, foi para a rua, parou um coche de aluguel e foi para a casa dos Downing.
O conde de Everton, encostado na parede do salão de baile dos Thornhill, conteve a custo o riso. Lady Wentworth desfilava com uma máscara dourada que, pelas plumas atrás da cabeça, devia representar um cisne. Mas o formato do chapéu mais parecia a tromba de um elefante e ela mesma lembrava um paquiderme.
Kate haveria de divertir-se muito com os absurdos presentes naquele baile, Alex conjeturou e fitou mais uma vez a porta de entrada. Havia mais de uma hora, ele esperava, ansioso, como um jovem no primeiro encontro com a amada.
- Alex.
Alex virou a cabeça. A máscara de um pavão colorido balançava-se em sua direção.
- Está mesmo resplandecente, Francis - admirou-se. O pavão parou a seu lado.
- Como soube que era eu, Alex?
- Ainda está usando o anel de rubi falso.
- Não consegui tirá-lo do dedo. - Francis Henning levantou a mão para examinar a bugiganga.
- Como está sua avó?
- Ah, como um cavalo de corrida. Depois de a bajular por uma semana, consegui cinqüenta libras. "Eu o considero um bom menino", ela disse, "mas é preciso ser mais independente". Respondi que se ela me fornecesse mil libras por ano, eu seria independente como um habitante da Virgínia.
- E ela?
- Disse que as colônias não serão agradáveis para seu neto e me deu um xelim para comprar-lhe um pouco de chocolate.
- Hanshaw está aqui? Francis assentiu.
- Está na companhia de Caroline e de seus pais Milorde sabia que Furth estava na cidade?
Alex olhou na direção indicada pelo anel de rubi. Martin Brantley, com uma simples máscara negra e fisionomia impassível, escutava uma das histórias cômicas de Reg sobre a vida londrina. Não se divertia nem um pouco, talvez pelo fato de o barão ter expressado seu interesse por Caroline. Alex admirou a determinação do rapaz. Ao lado, Caroline escondia o rosto atrás de um véu azul de padrão indiano.
- Santo Deus - Francis murmurou.
Alex virou-se para ver se uma das penas espetara o olho de Francis. Mas o amigo estava boquiaberto, olhando fixamente para a porta de entrada do salão. Alex seguiu o olhar dele e parou de respirar ao ver Kate Brantley, imóvel, esperando ser anunciada.
Esplendorosa seria o termo mais apropriado para descrevê-la. Imponente, trazia os cabelos loiros penteados para o alto com finas madeixas que tocavam as faces rosadas. Conversava com o marquês de Hague enquanto relanceava um olhar pelo salão através da meia máscara negra bordada de lantejoulas que refletia o tom do vestido cor de vinho. Os ombros desnudos deixavam à mostra a pele alabastrina, e pelo decote ousado entrevia-se um busto perfeito em contraste com a cintura fina.
- Quem é ela? - Francis ergueu a máscara até a testa para enxergar melhor. - Acha que veio com Hague?
- Cale-se - Alex murmurou.
Kate adiantou-se com o convite dele na mão e devidamente oculto.
- Milorde, milady - anunciou o mordomo -, apresento-lhes a... Dama Mascarada? Milady... lorde e lady Thornhill.
Uma apresentação desse tipo seria tolerada apenas em um baile de máscaras. E a escolha do título despertou sorrisos e acenos de várias pessoas. Kate adiantou-se e aceitou a mão estendida do marquês de Hague. Alex não conseguia mais pensar nela como Kit.
- Quem será ela? - Francis ficou curioso. - Acha que pode ser a sobrinha de Peningfield?
Desdêmona Peningfield não se comparava a Kate Brantley.
- Ela está na Índia com o irmão. - Alex comentou.
De olhar estreitado, notou que os homens começavam a se aproximar de Kate. Teve de conter-se para não agarrá-la e sair com ela do baile. Previu a noite de tormentos que o aguardava.
- Não deve ter sobrado nenhuma música para dançar com ela! - Francis indignou-se e abriu caminho por entre os presentes, balançando as penas coloridas de pavão em busca de uma chance para receber as atenções de Kate.
Ela o fitou e Alex sentiu o magnetismo de sua presença mesmo de longe. Resolveu pedir a ela o consentimento para dançar uma valsa. Ao aproximar-se, a orquestra começou a tocar uma melodia campestre e Hague não perdeu tempo. Kate sorriu para Alex, tentadora com os lábios pintados de vermelho, e foi para a pista de dança com o marquês.
Carrancudo, Alex dirigiu-se até a mesa servida com iguarias e bebidas. Kate estava se divertindo e acabaria por matá-lo. Bem, o mais importante seria adverti-la da presença de Furth. O que o levou a pensar que o mais correto seria avisar Furth de que uma espiã estava no baile. Não. Não estragaria a noite de Kate.
Reg, com expressão cômica que mesclava desânimo e esperança, equilibrava precariamente algumas taças de ponche.
- Alex - Reg espiou os Brantley.
- Como vai a batalha?
- Imagino que estou sendo apenas tolerado. No passado, ele gostava de mim.
- Na época, você não pretendia tornar-se membro da família dele.
O barão deu uma risadinha.
- Isso é verdade. Kit não veio? Se ele sorrisse para Caroline, poderia aumentar minha oportunidade de ser aceito.
- Kit não estava disposto e resolveu ficar em casa.
- Alex, quem é a Dama Mascarada?
- Não faço idéia. - Alex arqueou as sobrancelhas. - Eu ia lhe perguntar o mesmo.
Kate circulava com elegância e graça pelo salão com o gordo e suarento Hague.
- Ah, há pouco vi Augustus perguntar a Barbara sobre o casamento iminente.
Alex se esquecera do assunto.
- Por que o interesse?
- Como é que vou saber? Se estivessem conversando, você poderia perguntar a ele.
- Muito engraçado. Reg, poderia fazer-me um favor?
- Eu lhe devo inúmeros. O que deseja?
- Mantenha Furth afastado de mim esta noite. - Ele pretendia ficar o mais perto possível de Kate e seria preciso evitar riscos.
- Pois não, farei o que me pede. Eu entendo. Ele está aborrecido por não ter conseguido descobrir sequer um nome. Eu também, por falar nisso. Você costumava confiar em mim. O que houve?
- Revelarei no momento oportuno. Não esta noite.
- Não temos muito tempo e eu...
- Vá beber seu ponche, Reg.
- Quanta sutileza. Está bem. Até mais, Alex. Impaciente, Alex voltou à pista de dança. A música não terminava nunca. Toda vez que Kate o mirava, centelhas arrepiavam-lhe a pele. Felizmente soou o acorde final e Alex se aproximou da Dama Mascarada. Mas Francis chegou primeiro e Kate saiu com o sr. Henning para dançar uma valsa.
Alex resmungou uma imprecação e arrancou uma taça de ponche das mãos de um criado. Bebeu de uma vez e desejou que fosse um conhaque. Mesmo de costas era impossível ignorar Kate Brantley. Foi para as margens do salão, cumprimentou conhecidos e manteve distância de Furth. Teve vontade de matar Francis Henning que segurava Kate pela cintura. Nem mesmo conseguia afastar o olhar. Vigiava cada gesto e movimento deles.
Alex conseguiu um cálice de vinho do Porto. Inspirou fundo e bebeu.
Um toque em seus ombros o fez virar-se.
- Milorde? Por acaso esqueceu de nossa valsa? - Os olhos de Kate pareciam esmeraldas ovais e brilhantes através das aberturas da meia máscara.
- Que falha imperdoável. - Alex estendeu a mão e Kate deslizou sobre ela os dedos trêmulos cobertos com luva cor de vinho.
Eles executaram os passos em sincronia perfeita, como se estivem habituados a dançar juntos. Kate recendia a lavanda, bem mais agradável de que os perfumes franceses de odor acentuado preferidos por Barbara.
- Milorde viu se Gerald e Ivy já chegaram? Depois de me ver vestida, Gerald perdeu o entusiasmo.
- Na verdade, não os vi. Kate, confesso que está deslumbrante.
- Obrigada, milorde. - Ela corou. - Esta noite eu me sinto bonita.
- O termo é bastante modesto. Eu me sentia mais seguro quando a via vestida com uma calça.
- Seguro? - Kate fitou-o. - Ainda tem medo de mim, Cabeça de Lobo?
- Estou tremendo, Dama Mascarada - Alex murmurou. Kate também tremia. Alex teve de usar todo o seu autodomínio para não beijar aqueles lábios vermelhos e tentadores.
Ele a apertou mais do que o permitido pelo costume. As saias rodavam ao redor das botas de Alex. Ela arfava e sorria levemente com a boca entreaberta, apertando-lhe a mão. O tremor de Alex nada tinha a ver com receio.
Soaram as derradeiras notas da valsa, mas Alex relutou em soltar Kate.
- Quem será o próximo a dançar com a Dama Mascarada? - Alex perguntou.
- Nenhum dos outros será aceito, milorde. - Kate olhou ao redor, apoiando a mão no braço de Alex. - Eu gostaria de tomar um pouco de ar fresco. Milorde me acompanha?
- Claro, milady.
Alex conduziu-a por entre os mascarados até a porta. O terraço revestido de hera estava vazio. Kate debruçou-se sobre a amurada e fitou o jardim.
- Sinto-me como uma princesa de contos de fadas.
- É muito mais do que isso, Kate. - Alex apoiou-se a seu lado.
Kate tirou a máscara de Alex e deixou-a no chão. Acariciou-lhe o rosto com as pontas dos dedos enluvados. Alex prendeu a respiração, ergueu-lhe o queixo e beijou-a. Kate abraçou-o pela nuca e pressionou-se de encontro a ele.
Alex afastou a cabeça para respirar e Kate levantou-se na ponta dos pés.
- Não pare, Alex, por favor.
Alex virou-a de frente para a luz do luar e ergueu a meia máscara até a raiz dos cabelos. Encostado na grade, acariciou o rosto, o pescoço e os ombros alvos de Kate. Num impulso, abaixou a cabeça, roçou os lábios na pele sedosa e depois a beijou na boca.
- Alex...
Kate deu um pulo e Alex levantou a cabeça. O duque de Furth estava parado nas sombras da porta. Kate não se virou. Alex segurou-a pelos ombros.
- Alteza. - Alex cumprimentou-o com um gesto de cabeça.
- Sinto por interromper...
- Não se desculpe, Alteza. - Alex fitou Kate. Muito pálida, a imagem do desespero. - Nós estávamos apenas... nos conhecendo. - Com gestos lentos, ele abaixou a máscara sobre o rosto dela.
- Em uma hora bastante apropriada - o duque ironizou, exasperado por um de seus homens esquecer o trabalho enquanto havia um espião à solta.
- Tem razão, Alteza. - Alex teve receio de que Kate pulasse dali para escapar e cochichou-lhe ao ouvido. - Não se preocupe. Eu o afastarei.
Kate engoliu em seco e fitou Alex. Precisava decidir se podia confiar nele. Não teve dúvida. Apoiou-se no corrimão e desceu os degraus até o jardim.
Alex fitou-a de revés, pegou a máscara do chão, aproximou-se de Furth, segurou-o pelo braço e levou-o de volta ao salão de baile lotado.
- Alteza, eu já o cumprimentei pela beleza de sua filha? Caroline se torna cada vez mais atraente.
Furth ignorou a isca e olhou para trás.
- Quem é ela?
- Ninguém com quem deva se preocupar, Alteza. - Alex estava certo de que pagaria pela mentira depois da partida de Kate. Se a deixasse ir embora.
- Está na defensiva, milorde?
- Diante da interrupção inoportuna, quem não ficaria?
- Estranho dizer isso, Alex. Afinal está comprometido com outra mulher.
- Essa é outra história, Alteza. E falsa, por sinal. Espero recontá-la em poucos dias.
- Arrisco-me a dizer que, nesse tempo, milorde terá muitas tarefas.
- Esteja certo de que as cumprirei integralmente. - Alex soltou o braço do duque. - Agora se me der licença, Alteza.
Alex apressou-se de volta à varanda, mas antes de alcançar a porta, Barbara Sinclair alcançou-o. Seus olhos brilhavam pelas aberturas da máscara dourada de deusa do sol.
- Milorde foi longe demais! Flertando com ela diante de todos! Não permitirei que isso continue. Não quero que riam às minhas custas.
- Milady foi quem se excedeu - Alex falou em voz baixa. - Falaremos disso depois. Agora sorria e afaste-se. Ou nosso noivado terminará antes de começar.
Alex fez um mesura e Barbara forçou um sorriso. Ela acenou para alguém do outro lado e rumou para cumprimentar o conhecido. Alex voltou para a sacada e encontrou-a vazia.
Furioso, bateu com os punhos na amurada de pedra.

- Milady poderia ter ficado - Kate assegurou a Ivy. Sentada junto à penteadeira, removia a pintura do rosto, sem esquecer que se arriscara demais. - Não precisavam ter saído atrás de mim.
- Ficamos preocupados. - Ivy estava apoiada na beira do móvel. - O que Alex fez para aborrecê-la tanto?
Kate deixou o pano úmido na superfície de mármore.
- Não foi ele. - Tirou as presilhas e os grampos com que a criada de Ivy lhe prendera os cabelos.
- Disseram-lhe alguma grosseria e Alex não matou o autor da ousadia? Estou surpresa.
Kate achou graça.
- Um duelo seria excitante, não é mesmo? Imagine só! O conde de Everton e o marquês de Hague duelando por uma mulher que até ontem era um rapaz!
- Achei que Francis Henning estivesse lhe fazendo a corte.
- Ah, Ivy. - Kate riu com vontade. - Francis me propôs casamento. Comentou que eu era Afrodite em visita aos mortais. Ouvi muitos elogios. Disseram que eu era deslumbrante
- E não foi nenhuma mentira.
- Acha mesmo? - Kate ficou séria.
- Kate, não creio que sua transformação não a tenha agradado.
- Não é isso. - Lembrou-se do olhar de Alex que a deixara com a sensação de flutuar no meio do salão - Eu me senti bonita. Sei de mulheres que achavam Kit Riley atraente, mas não se podia levar a sério um absurdo. Esta noite foi a primeira vez que acreditei no que me diziam. - Kate abraçou-se. - Eu gostei de ouvir aquelas palavras lisonjeiras e, sobretudo, da maneira como Alex olhava para mim.
- Era de se imaginar.
Kate abotoou o colete e pegou o casaco.
- Eu gostaria de escutar a versão de Francis. Seria engraçado.
Ela deixaria Londres no dia seguinte. Não saberia a opinião de Francis sobre a Dama Mascarada nem o que os convidados diziam a respeito da misteriosa estranha.
- O que deseja que eu faça com o vestido? - perguntou Ivy.
- O que lhe aprouver. - Kate passou os dedos na seda macia da saia, a coisa mais linda que já possuíra. - Jamais tornarei a vesti-lo. - Pegou a máscara preta brilhante. - Eu gostaria de guardá-la como lembrança.
- Se não quiser, não terá de voltar para Paris. - Ivy segurou as mãos de Kate.
- Eu sei. - Kate soltou-se e vestiu o paletó. - Barbara Sinclair descobriu meu segredo. Mais cedo ou mais tarde, outros ficarão sabendo. Duvido que um escândalo seja do agrado de Alex.
De certa forma, teria de agradecer a Barbara. Ela tornara impossível sua permanência em Londres. Teria de concordar com os desejos de seu pai.
Depois de olhar o vestido maravilhoso pela última vez, desceu, despediu-se dos Downing e entrou na carruagem que Gerald chamara.
Recostou-se no assento, pensativa. O duque de Furth por pouco não a identificara e Alex não hesitara em protegê-la. Kate suspirou, desejando ser beijada por ele antes de ir embora.
Kate apeou da carruagem diante da Cale House onde se viam algumas luzes acesas. Wenton abriu a porta no instante em que ela chegou ao degrau superior da entrada. O mordomo recuou nas sombras para pegar o chapéu, as luvas e ajudou-a a tirar o capote que foi pendurado no local costumeiro.
- Alex está em casa?
O mordomo não respondeu, passou os dedos sob o colarinho do paletó de Kate e deslizou-o por cima dos ombros dela.
- Wenton! - Kate virou-se, chocada com o comportamento do mordomo. - O que...
Ele a beijou, impedindo-a de protestar. Kate reconheceu de imediato o autor da ousadia. Retribuiu o beijo com toda a paixão reprimida. Sentiu a mão que tirava a fita e soltava os cabelos ondulados. Alex forçou-a a recuar até a porta e levantou a cabeça.
- Alex...
- Uma vergonha ter-me deixado daquela maneira. - Desabotoou-lhe o colete e tirou-o. - Deixar um homem louco e fugir. Sou um ser humano. Jogou o colete no chão ao lado do paletó.
- Eu não pretendia...
- Eu a considero uma mulher sem coração.
Alex tornou a beijá-la e provocou os lábios com a língua ávida. Soltou o nó da gravata e beijou-lhe a face. Kate perdeu o fôlego quando Alex mordiscou-lhe a orelha. Com o coração aos pulos, pressionou-se de encontro ao físico atlético de Alex. Sentiu o pulsar da masculinidade e um súbito calor entre as pernas. A gravata foi para o chão.
- Onde está Wenton? - Kate sussurrou e deu um pulo quando Alex arrancou a fralda da camisa para fora da calça.
- Mandei-o para a cama.
- E os outros? - Sentiu que Alex lhe puxava a camisa para cima.
- Dormindo.
- E se estiverem escutando? - E empurrou-lhe a mão e abaixou a camisa.
Alex afastou-se e Kate imaginou que estragara tudo de novo. Ele se abaixou e pegou as roupas no chão. Em seguida beijou-a e ergueu-a nos braços.
- Para onde estamos indo? - Kate, para imitá-lo, beijou-lhe a ponta da orelha.
- Ao seu quarto, minha querida. - Ele se encaminhou para a escada.
- Prefiro o seu.
- Está bem - Alex concordou e subiu os degraus.
Eles entraram nos aposentos de Alex. Ele fechou a porta com o pé, deixou-a no chão e jogou as roupas em uma poltrona. Foi até a lareira, aumentou as chamas com um pouco de lenha e voltou para perto de Kate.
- Creio que eu deveria ir embora e deixá-la em paz. - Alex acariciou-lhe o rosto. - Mas...
- Não vá -- ela sussurrou. Alarmada com a idéia de que Alex pudesse abandoná-la, segurou-lhe o rosto entre as mãos e passou a mão nos cabelos negros.
- Eu ia dizer-lhe que não tenho intenção de fazer isso. Não esta noite.
Alex acariciou-lhe as costas e puxou novamente a camisa. Kate prendeu a respiração. Ele a desejava. Não procurara Barbara Sinclair ou outra qualquer de suas amantes. Alex ansiava por ela. Tremendo, levantou os braços e Alex tirou-lhe a camisa pela cabeça. Ele olhou a faixa que lhe amassava o busto e passou a ponta do dedo na pele acima da mesma. Kate estremeceu. Alex tentou desamarrar o nó da faixa, mas Kate o impediu de fazê-lo, envergonhada.
- Quero vê-la. - Alex sorriu. - Manteve-se escondida de mim durante semanas e esta noite permitiu que metade de Londres contemplasse seu busto esplêndido. Não me torture mais, minha querida.
Alex estava mais atraente de que o habitual com os cabelos desalinhados e o brilho intenso nos olhos azuis. Kate abaixou as mãos vacilantes. Alex puxou o nó e desenrolou a faixa entremeando os movimentos com carinhos. A tira de pano foi parar na poltrona e Alex extasiou-se na contemplação de tanta beleza.
- Eu diria que valeu a pena esperar - Alex murmurou e sentou-a na beira da cama para tirar-lhe as botas. - Não sei para que esse excesso de roupas - resmungou com uma careta.
Kate notou a pouca firmeza da mão de Alex. A calma dele era simulada.
- Então por que não descartar tudo?
Kate passou as mãos nos ombros e nos braços de Alex.
Depois de tirar-lhe as botas, ele a fez ficar em pé para desabotoar-lhe a calça. Sem desviar os olhos do rosto dela, terminou a tarefa e beijou-a no rosto.
- Ma petite - sussurrou e o tom possessivo fez Kate arrepiar-se. - Como vê, tenho alguma noção do idioma francês - ele acrescentou com um sorriso, enquanto puxava a calça pelas pernas dela abaixo e a atirava por cima das outras peças.
- Você é maravilhosa!
O beijo foi intenso, exigente. Kate ergueu-se na ponta dos pés quando ele deslizou a mão por sua cintura e quadris. A pele nua parecia queimar onde Alex a tocava.
- Alex... - Kate abraçou-o. - Agora suas roupas é que estão atrapalhando.
Ele riu e, relutante, afastou-se para tirar o casaco.
- Podemos remediar isso, não é?
Kate ajudou-o a desabotoar e tirar o colete. Quase o sufocou para afrouxar o nó da gravata.
- Desculpe - ela pediu.
Alex beijou-lhe a nuca. Kate arrancou a camisa de dentro da calça e Alex levantou os braços para que ela a tirasse pela cabeça. Kate sentiu-se inebriada pela fragrância masculina.
Alex livrou-se das botas, da calça e das meias, fazendo crescer a pilha de roupas no chão.
Kate sentiu-se inquieta ao vê-lo nu. Teve vontade de rir com a ironia da situação. Ela, que sempre vestira roupas de homem, nunca vira um homem sem roupa.
- Confie em mim, Kate. Apenas uma vez. Alex deitou-a na cama e estirou-se a seu lado.
Kate garantiu a si mesma que, apesar do desconforto inicial, jamais imaginara que fosse possível sentir tanto prazer. E teve certeza de que nenhum outro homem, a não ser Alex, seria capaz de fazê-la sentir-se como se flutuasse no ar. Somente com Alex veria uma chuva de estrelas derramar-se sobre eles. Com Alex ela se sentira uma mulher completa. Ainda ofegante, passou a mão nas costas suadas de Alex e desejou ficar ali para sempre.
Ele ergueu a cabeça devagar e apoiou-se em um cotovelo para contemplá-la. Os dois se entreolharam em silêncio durante um longo tempo. Era impossível imaginar que aquele homem, apesar de ser um inglês nobre e libertino, fosse seu inimigo. Ela o amava. No entanto, uma pergunta permanecia no ar. A mesma que decidiria seu destino. Kate não fazia idéia do que Alexander Cale sentia por ela, além de desejo.
Com a mão livre, Alex levou uma mecha de cabelos loiros para trás da orelha de Kate.
- Eu falhei na promessa que fiz a seu pai - Alex comentou enquanto lhe acariciava a pele nua com a palma da mão.
- Já não era sem tempo - retrucou ela, aparentando mais coragem do que realmente tinha. Alex a fazia sentir-se audaciosa e vulnerável ao mesmo tempo.
Ele sorriu preguiçosamente.
- Quem diria que depois de toda aquela conversa sobre um vestido largo demais e sapatos apertados, Diana, em toda a sua glória, apareceria na mansão dos Thornhill.
- Isso foi diferente...
- E por isso mesmo provocante! Alex afastou-se e Kate protestou.
- Minha dama libertina! - provocou ele, puxando o acolchoado para cima.
Apesar do fogo aceso, o quarto estava frio.
- Um travesseiro é muito pouco - Kate comentou, acariciando o rosto de Alex. - Como é que você e Barbara faziam com apenas um?
- Ela não passava as noites aqui.
- Por que não? - Sua dedução estava correta.
- Por que insiste em falar sobre minhas amantes anteriores, se quero apenas ficar aqui a seu lado? - Alex perguntou em vez de responder.
- Suas amantes anteriores? Isso significa que eu sou sua amante atual?
Alex franziu o cenho. No momento não queria pensar naquela possibilidade.
- Não sei o que você é, Kate "Kit Riley" Brantley. O que na verdade nos cria um grande problema.
A lista de nomes serviu para lembrá-la de uma verdade que a atormentara a noite inteira.
- Você conhece o duque de Furth. - Ela o desafiou a negar a evidência.
- Conheço.
Um ligeiro estremecimento fez Kate supor que a tranqüilidade da resposta fosse apenas aparente.
- Eu nunca neguei o fato.
- Não, mas...
Alex interrompeu o protesto dela com um beijo.
- Esta noite, não. Não falemos sobre o que acontecerá mais tarde.
Kate procurou decifrar-lhe o olhar. Mas tudo que viu foi o reflexo de sua própria curiosidade e desejo.
- Esta noite, não - ela concordou.
Alex inclinou-se e tornou a beijá-la. Tomou-a nos braços e apertou-a junto ao peito.
- Ótimo.
Kate riu, feliz por sentir que Alex a desejava novamente.
- Quem é o libertino aqui?
- Veremos depois que eu a submeter a alguns testes, minha querida.
- E quais são eles? - Kate animou-se.
- Quanta pressa! Vamos por etapas para que possamos aproveitá-las.
- Oh! - Kate gemeu e perdeu-se nos beijos de Alexander Cale, conde de Everton.
Capítulo X

Alex acordou antes de Kate. Os dois haviam dormido sobre o único travesseiro. Ela estava com o rosto encostado ao dele, e ele a abraçava. Com as pernas entrelaçadas, a sensação de aconchego era ainda mais agradável.
Alex observou-a durante algum tempo, acompanhando a respiração suave. Embora o chamassem de devasso, aquela era apenas a segunda mulher que ele deflorara. A primeira fora sua esposa, e a reação de Mary fora bem diferente da de Kate. Seria como comparar gelo e fogo. Seu primeiro pressentimento a respeito de Kate Brantley estava correto. Deduzira que se tratava de uma mulher perigosa quando, na primeira manhã, a vira devorar o desjejum.
Kate mexeu-se e encostou-se ainda mais. Pelo menos em sonhos, confiava nele. Alex soltou um braço e entrelaçou os dedos nas madeixas loiras que emolduravam o rosto de Kate. Embora raramente passasse uma noite sozinho, detestava as manhãs posteriores e as repetidas demonstrações de coquetismo. Fora preciso encontrar desculpas diferentes a cada dia para deixar a cama logo cedo.
Depois de Kate Brantley ter entrado em sua vida feito um furacão, passava as noites sozinho com seu único travesseiro. E as manhãs tinham sido as menos solitárias de sua vida. Invariavelmente aquela jovem extraordinária irrompia em seus aposentos por diferentes motivos. Insistia em aprender como se barbear ou o insultava em francês. Na primeira refeição do dia, devorara tudo o que estivesse à sua frente e provocava-o com perguntas impertinentes. E pela primeira vez desde a morte dos pais ele se sentira feliz.
Todavia Kate Brantley continuava sendo uma traidora. Alex admitiu que não deveria ter permitido uma aproximação tão íntima, embora não se lembrasse de haver desejado nenhuma outra mulher com tanto ardor. Não havia desculpa para tamanho desatino, e ele se recusava a analisar as possíveis causas para sentir-se assim.
Alex apoiou-se no cotovelo e beijou a testa de Kate. Se não dissesse nada do que descobrira, soldados ingleses pagariam com a vida por seu egoísmo. Se cumprisse com seu dever, a filha de Stewart Brantley poderia enfrentar a prisão ou a forca. Na melhor das hipóteses, o exílio para a Austrália. A menos que ela desistisse de ser a filha de Stewart Brantley.
Suspirou e fechou os olhos. A tensão nervosa não o abandonava. Jurara nunca mais agir daquela maneira. No entanto...
- Se pretendia fingir que estava dormindo, não deveria ficar com a cabeça apoiada desse jeito - Kate murmurou, abrindo os olhos.
- Obrigado. Sei que me falta a sua habilidade de prevaricação.
A alegria de Kate transformou-se imediatamente em suspeita.
- O que quer dizer com isso? - perguntou ela, com uma ênfase que pegou Alex de surpresa.
- Apenas que passou treze anos de sua vida enganando o mundo disfarçada de rapaz. - Ele ergueu uma sobrancelha. - O que mais poderia ser?
Kate hesitou antes de responder.
- Não sei. Apenas fiquei irritada.
Alex franziu a testa. Não sabia exatamente como proceder, ainda mais diante do temperamento arrebatado de Kate.
- Só poderei ir a Canterbury à tarde - Alex falou baixo, endireitou-se e passou a mão nos cabelos.
Kate sentou-se a seu lado e beijou-lhe o ombro.
- O que pretendia fazer em Canterbury?
- Obter uma licença especial, é claro. Desemaranhar a história de Kit Riley demandará um certo trabalho, mas não será uma tarefa impossível.
Kate não se mexeu, o olhar fixo nas colunas da cama.
- Do que está falando? - ela murmurou depois de algum tempo.
- Do nosso casamento, Kate, é óbvio - disse ele, ríspido. A idéia de casamento ainda lhe causava incômodo.
Kate fitou-o com olhar fuzilante.
- Nós não vamos nos casar, Alexander Cale.
- Não tenha dúvidas a respeito. - Ele inspirou fundo. Em um dia ou dois, teria de confrontá-la com a decisão a respeito das lealdades. Antes disso, teria de protegê-la sob a asa de seu sobrenome e título. - Esta noite pode ter resultado em uma gravidez.
Kate estreitou os olhos.
- Não estou grávida!
- Como pode ter tanta certeza?
Alex encarou-a e ela desviou o olhar, sem saber o que dizer.
- Então está decidido. Farei uma pequena doação à Igreja e poderemos estar casados amanhã à noite - declarou ele.
- Não!
- Não há alternativa, Kate.
- Eu disse não.
- Kate...
- Alex, não vim para a sua cama como uma armadilha para arrastá-lo ao matrimônio. Em poucos dias estarei de volta a Paris, e você...
- Não permitirei que meu filho perambule pelos becos de Saint-Marcel como um bastardo - Alex resmungou, enraivecido. - Como também não consentirei que seja uma mãe solteira.
Kate fitou-o, irredutível.
- Não quero mais falar sobre o assunto. - Kate afastou os lençóis, saiu da cama e foi até a janela, sem se importar com a própria nudez. - De qualquer forma, você já está comprometido.
- Não estou! - Alex fechou os olhos e respirou fundo. - Pelo menos me diga quando foi sua última menstruação.
Qualquer outra mulher teria agarrado a oportunidade de braços abertos. Mas não Kate. Por mais despropositada que pudesse parecer a proposta diante das circunstâncias, Alex desejava que ela a aceitasse.
Kate virou-se para ele.
- Há poucos dias - respondeu, envergonhada.
- Quantos? - ele insistiu, desapontado com a resposta. Qualquer desculpa seria válida para mantê-la a seu lado.
- Três ou quatro.
- Tem certeza? Não mais que uma semana?
- Tenho certeza - Kate murmurou.
- Está bem - Alex viu-se obrigado a aquiescer. - Nesse caso. uma gravidez é bastante improvável.
- Por que não me perguntou antes? Poderíamos ter evitado esta conversa estúpida.
Alex analisou a expressão feroz do rosto de Kate e teve certeza de que ela não desejava casar-se com ele.
- Irlandesa teimosa!
- Eu já disse que não quero mais falar desse assunto! - retrucou ela, exaltada.
- Problema seu, porque eu quero continuar falando! O relógio do hall tocou a primeira de dez badaladas.
- Droga! - Alex jogou os lençóis de lado, levantou-se e foi até a penteadeira.
- O que houve? - De nervosa, Kate passou a preocupada.
- Estou atrasado.
Kate levou as mãos à cintura, sem esconder o descontentamento.
- Quer que me esconda embaixo da cama enquanto Antoine o ajuda a aprontar-se?
Alex riu.
- Se Kit Riley pode se vestir sozinho, por que eu não posso? - Alex tirou uma camisa do guarda-roupa e jogou na direção de Kate. - Trate de cobrir-se ou acabaremos voltando para a cama.
- Uma idéia excelente - Kate retrucou.
Alex não soube dizer se ela se referia a voltar para a cama ou a cobrir a nudez. Ela enfiou a camisa pela cabeça.
- Farei sua barba - ela ofereceu uma desculpa pela discussão.
Alex lembrava-se do que acontecera quando fora interrompido por Kate.
- De maneira nenhuma. O cavalheiro com quem vou me encontrar irrita-se quando tem de esperar. - Os três que o acompanhariam, e a quem teria de mentir pela última vez, também não gostavam de atrasos.
Kate franziu o cenho, sentou-se no peitoril da janela e observou-o vestir-se. A gravata foi amarrada com um nó simples e sóbrio.
- Com quem vai se encontrar?
- Com o príncipe George. - Não havia por que mentir. Kate endireitou-se.
- Verdade? Se eu me vestir depressa, poderei ir junto?
- Não! - Pelo bem do príncipe regente e de Kate. não queria que ela se aproximasse do Palácio de Buckingham.
- Não confia em mim? - Ela franziu os lábios.
- Não. Quando eu voltar, discutiremos o assunto. Está certo?
Kate fitou as mãos entrelaçadas e depois encarou Alex.
- Sim.
- Kate, quero que me prometa uma coisa.
- O que é?
- Não vá embora com seu pai antes de eu falar com ele. Kate não chegou a responder. Wenton bateu na entrada com a edição matinal do London Times. Alex pegou o jornal e fechou a porta na cara do mordomo. Leu as manchetes da primeira página. Falavam a respeito das suposições de que Napoleão deixaria Paris rumo a Calais com o exército e aportaria em Dover por volta do dia quinze.
- Alguma coisa interessante?
- Nada de extraordinário. - Alex largou o jornal e aproximou-se de Kate. - Prometa. - Acariciou-lhe o rosto com o nó dos dedos.
- Alex...
- Se não o fizer serei obrigado a amarrá-la na cama e rodear a mansão com soldados armados.
Kate não duvidou da seriedade de Alex.
- Não irei embora até conversarmos de novo. - Sorriu, conciliadora. - Posso esperá-lo para o almoço ou devo procurar Reg e Francis?
Alex não gostou da idéia dos amigos desfrutarem da companhia de Kate, mesmo por amizade.
- No Navy, está bem? - Alex calçou as botas. - Deixarei Wenton avisado sobre seu pai, caso ele chegue antes de nós voltarmos.
- De acordo.
Alex imaginou se Kate detestava tanto quanto ele as mentiras, as meias-verdades e a desconfiança. Entre eles não deveria haver mais mentiras. Beijou-a e saiu.
Alex mandara os criados para baixo e Kate pôde voltar a seus aposentos sem ser vista. Sentou-se na beira da cama. sem vontade de tirar a camisa. Passou a manga no rosto e sentiu o perfume de Alex. Incapaz de conter a alegria, deitou-se de costas na cama, riu e bateu as pernas no ar. Ser mulher não era tão ruim como imaginara que fosse. Pelo menos enquanto estivesse com Alexander Cale.
Refletiu no que poderia dizer a ele na conversa que teriam. Nada que pudesse prejudicar o pai, embora estivesse cansada de mentir, principalmente para Alex.
Vestiu-se e desceu para comer. Tirou a máscara de lantejoulas do bolso do capote, antes que alguém a descobrisse. Verificou as horas no relógio de carrilhão e voltou para o quarto. Fechou a porta, ajoelhou-se diante da valise e soltou as duas fivelas. Enfiou a máscara debaixo das camisas e sentiu um objeto estranho.
Uma pequena algibeira de couro fora deixada no meio de suas roupas. Kate franziu o cenho, puxou a peça e desatou o nó. Boquiaberta, não conseguia respirar. A bolsa estava lotada com papel-moeda, francês e inglês. Havia perto de duas mil libras. Com mãos trêmulas, leu o bilhete que acompanhava o dinheiro. Cuide-se, primo. Carinhosamente, Alex. Escrito havia dois dias, provavelmente quando ela se encontrava na casa dos Downing.
A oferta era extremamente generosa. Lágrimas deslizaram por seus olhos. Com essa quantia ela e o pai não teriam mais de fazer contrabando. Poderiam mudar-se para Saint-Germain ou até deixar a França. E Alex lhe pedira em casamento, apesar de todos os empecilhos.
Antes de aceitar a proposta que mais desejava, precisava ter certeza de que poderia confiar nele, mesmo depois de contar-lhe quem era. Alex teria de pedir que se casasse com ele por que a amava e não por obrigação.
O conde de Everton deixou o Palácio de Buckingham com tranqüilidade apenas aparente. Sua vontade era chamar o príncipe de gordo idiota e quebrar um de seus preciosos vasos chineses. Felizmente Furth permanecera em reunião com o príncipe George. Ao lado dos companheiros atravessou os jardins e chegou ao Mall. Mandou Waddle para casa e explodiu.
- Bufão arrogante e empolado! - Alex bateu com o punho na coxa.
- O que se poderia esperar, Alex? - Gerald procurou acalmá-lo. - Ele quer uma vítima. De imediato.
- Não posso dar-lhe o que não tenho!
- Perdoe-me a falta de sensibilidade, Alex - Reg comentou. - Milorde está nessa comissão há seis anos. Durante esse tempo sempre descobriu quem estava por trás do contrabando apreendido. Não tê-lo feito ainda talvez seja o motivo da irritação do príncipe.
- Eu recuperei as armas, não recuperei?
- Sim, o primeiro carregamento. Nenhum de nós soube muita coisa a respeito do segundo e...
- Ele só faltou dizer que eu mentia.
- E não era verdade? - Gerald rodou a bengala.
- Era.
- Por que fez isso? - Reg perguntou. - Não imaginava os problemas que criaria para si mesmo?
- Tenho minhas razões. - O maior deles era proteger uma espiã antes de entregar o nome do pai dela às autoridades.
Reg parou para comprar um ramo de flores de uma vendedora. Tirou um botão e prendeu-o na lapela.
- Alex...
Um tiro ecoou da rua. Alex sentiu algo quente passar por seu rosto e Reg caiu de costas sobre a duquesa de Devenbroke.
Ela desmaiou e seguiu-se um momento de histeria. Pessoas corriam para os lados, procurando abrigo. Alex não descobriu de onde viera o tiro nem quem fora o autor do disparo.
- Reg! - Alex meteu-se no meio da aglomeração.
Gerald já estava ao lado do barão e ajudou-o a ficar em pé.
- Estou bem - Hanshaw garantiu e passou a mão no ferimento da testa. - Quem foi o idiota que atirou contra mim?
- Não sei. - Alex passou a mão no rosto chamuscado e espiou os telhados. Virou-se para observar as vielas. Muitos locais poderiam servir de esconderijo. Lorde Bandwyth e lady Júlia Penston abanavam o rosto da duquesa que dava gemidos promissores. - Reg, tem certeza de que está bem?
- Sim. - O barão estreitou um olho por causa da dor. - E milorde?
- Estou ótimo.
- Desconfio que alguém não deve estar gostando de sua intromissão - Hanshaw declarou, cambaleando. - Ou Furth quer me eliminar.
- Gerald, cuide dele - Alex ordenou. - Avise Martin do ocorrido.
- Está bem. O que pretende fazer?
- Seguirei uma pista.
- Tenha cuidado - Gerald avisou-o. - Não sabemos quem é o alvo.
- É o que pretendo descobrir.
Negar a divulgação da identidade de um contrabandista de armas era crime grave. O príncipe George estava furioso. E apesar de ser conhecido como um fanfarrão, ele não era um idiota completo. Além do mais, Martin sabia que Alex ocultava alguma coisa. Reg e Gerald diriam que ele não pensava com a cabeça e sim com outra coisa. Por último, Kate não agia sozinha. E seus companheiros fariam qualquer coisa para levar as armas para a França. Até matar.
Avistou o Navy e consultou o relógio de bolso. Kate o aguardava. A não ser que fosse a autora do disparo e estivesse escondida. Bobagem. Era evidente que não fora ela. Encontrou Francis que estava de saída.
- Alex. - Francis aceitou as luvas de um criado. - Descobriu quem era ela?
- Ela, quem? - Alex tirou o chapéu e jogou-o na mão de outro empregado.
- A Dama Mascarada. A cidade inteira está falando a respeito dela. Gibson supõe que seja uma princesa russa.
- Pode ser, por que não?
- Alex, vi quando foram para o terraço. E, segundo lady Putney, Barbara uivava de ódio na sala das senhoras. Quem é ela?
- A Dama Mascarada. - Alex tentou soltar-se, mas Francis não largava de sua manga. - Ela é um mistério tão grande para mim como para os outros. Com licença, Francis. Estou com pressa.
- Kit afirmou que milorde negou saber de quem se tratava, mas acho que ele pretendia ver-se livre de mim para conversar com o outro camarada.
- De quem está falando? - Alex sentiu o coração congelar-se.
- O que está na sala de bilhar conversando com Riley como um velho amigo. Eles falam em francês e eu não entendi nada. Milorde está indo para Vauxhall com...
Alex largou Francis, atravessou o salão, evitou lorde Ranley e suas perguntas indiscretas e foi para o recinto de jogos. Era improvável que o francês fosse o pai dela. Não teria coragem de aparecer em plena Mayfair enquanto vendia armas para um inimigo da Inglaterra. Se fosse Stewart, Alex teria de prender os dois.
Passou pelo bajulador Thadius Naring e viu Kate. Ela conversava com o mesmo estranho atraente de cabelos escuros que a interceptara em frente à Cale House.
- Kit - Alex aproximou-se. - Perdoe-me por fazê-lo esperar.
- Não se preocupe, Alex, está adiantado. Permita que lhe apresente Jean-Paul Mercier, conde de Fouché. Jean-Paul, meu primo Alexander Cale, conde de Everton.
- Enchanté. - O conde analisou Alex com olhar penetrante.
- Boa tarde. - Alex estendeu a mão. - Kit mencionou tê-lo conhecido em Paris.
- Espero que as palavras dele a meu respeito tenham sido bondosas - Fouché respondeu com sotaque acentuado e cumprimentou-o.
Alex não percebeu a mancha de pólvora nos dedos, mas assim mesmo continuou alerta.
- Sem dúvida foram, Jean-Paul. O que houve com seu rosto, Alex?
- Uma pedrinha atirada pela roda de uma carruagem. Fouché largou o taco de bilhar.
- Como eu já lhe disse, Kit, vim apresentar minhas despedidas. - Fouché fitou Alex. - Voltarei para a França esta noite.
Alex deduziu que Fouché estivesse envolvido e que iria embora com os Brantley. E ficou em pânico ao pensar na partida.
- Pois me parece um lugar perigoso no momento - Alex fingiu preocupação.
- Não é, se tivermos cuidado. E isso é o que não nos falta, não é?
- Bien, entenda - Kate respondeu, distraída. - É claro. O francês fez uma mesura elegante.
- Prazer em conhecê-lo, Alex. - Segurou no ombro de Kate com exagero de familiaridade. - Je te verrai encore bientôt.
- Adieu. - Kate anuiu e Fouché foi embora.
- O que foi que ele disse? - Alex perguntou.
- Tome cuidado - ela mentiu.
Alex entendera muito bem que Fouché dissera pretender vê-la em breve. Tirou o taco das mãos de Kate e deixou-o sobre a mesa.
- Venha comigo.
Eles foram até a entrada e esperaram o funcionário trazer-lhe os pertences. Saíram do clube e um criado fez sinal para um coche.
- Onde está Waddle? - Kate pôs o chapéu.
- Mandei-o para casa. - Alex fez sinal para Kate subir na carruagem alugada. - Park Lane - ele disse para o cocheiro.
A porta foi fechada e o condutor pôs os cavalos em marcha.
- Alex, o que houve?
Ele segurou-lhe as mãos e cheirou-as. Tinham cheiro de giz e não de pólvora. Sabia que Kate não poderia ser uma assassina.
- O que está fazendo? - Ela olhou as próprias mãos. Alex não respondeu.
- Sobre o que conversava com aquele francês?
- Nada especial.
- Diga-me, Kate! - Desesperado, Alex queria confiar nela.
- Ele... me disse que falou com meu pai. Papai teve negócios inesperados em Calais e vai se atrasar em alguns dias.
Certamente era um imprevisto em relação ao carregamento de armas. O tempo urgia.
- Como é que os Brantley sobrevivem em Paris? - Alex apertou-lhe os braços.
- Alex, está me machucando! - Kate protestou, tentando desvencilhar-se.
- O mesmo eu lhe digo! Responda, Kate!
- Da maneira que conseguimos.
- Quero a verdade. Não tolero mais mentiras!
- O que houve, Alex? - Kate alarmou-se.
- Atiraram em Reg há poucos momentos.
- O quê? - Ela empalideceu, tocou na face de Alex e cobriu o rosto com as mãos. - Não pode ser.
Alex procurou lembrar-se de que Kate era uma ótima atriz e puxou-lhe os pulsos.
- Teve alguma coisa a ver com isso, Kate?
- Ele... ele está...
- Não. A bala passou de raspão. Ele tem uma cabeça dura. Alex segurou-lhe o rosto. - Olhe para mim. Teve alguma coisa a ver com isso?
- Sim - ela sussurrou e uma lágrima deslizou-lhe pela lace. - Mas eu não...
Alex sacudiu-a, sentindo o mundo desmoronar.
- Responda! O que seu pai faz em Paris?
- Papai joga... e eu também... um pouco. Creio que antes do governo de Napoleão, ele já começara a contrabandear. Eu era muito pequena e não sei ao certo.
- Contrabandeava o quê?
- Tudo. Frutas frescas, vegetais, cobertores, farinha, ouro, prata. As autoridades inglesas se tornaram mais rigorosas e papai teve de associar-se com Jean-Paul.
E o conde de Everton permitira que Fouché se evadisse!
- Nos últimos meses, Fouché encontrou um novo comprador. Papai disse que se tratava de um velho lorde excêntrico. Por mais estranhas que fossem suas encomendas, ele pagava bem. Meu pai não me disse qual o conteúdo das mesmas, mas sei que não se tratava de vegetais.
Alex daria tudo para não escutar tudo aquilo.
- Por que atiraram em Reg? Kate apertou-lhe as mãos.
- O último carregamento foi interceptado. O velho ficou furioso e ameaçou mandar Jean-Paul matar meu pai, caso houvesse novo fracasso. Por isso viemos para cá. Fui encarregada de ajudar meu pai descobrir quem estava atrás de toda essa embrulhada. Assim meu pai poderia subornar ou ameaçar quem o atrapalhava. - As lágrimas continuavam a deslizar. - Foi milorde, não foi?
- Foi.
- Milorde jamais aceitaria um suborno - Kate falou para si mesma.
- O tiro que atingiu Reg poderia ser destinado a mim?
- Não. Eu não sei... Não contei a ninguém o que eu descobri.
- E espera que eu acredite nisso?
- Papai odeia os ingleses e eu o acompanhava nesse sentimento. Até conhecer milorde. Por isso nada disse a ele.
- Então falou sobre Hanshaw!
- Não fiz isso, Alex! Sei que deveria ter falado. Mas não disse nada sobre milorde, nem sobre Reg ou Augustus.
- Outra mentira! - Alex tornou a sacudi-la e afastou-a, apesar da vontade de acreditar em Kate.
Ela se encostou novamente em Alex.
- Não é! Sei que papai escondeu muita coisa de mim. Mas eu juro, Alex. Não contei nada do que descobri! Nada. Eu não poderia permitir que o prejudicassem.
Alex tomou-a nos braços.
- Deus é testemunha de como eu desejo acreditar em suas palavras.
- Esteja certo de que elas são verdadeiras. - Kate beijou-o com ferocidade.
Se ela não tinha conhecimento sobre as armas e não dera os nomes a Fouché, ainda havia uma esperança. Para ela. Para eles. Abraçou-a pelos ombros, apertou-a de encontro ao peito e retribuiu o desespero do beijo.
A carruagem se deteve e o cocheiro bateu na portinhola.
- Chegamos, sir - ele avisou.
Alex tinha certeza de que se deixasse Kate ir embora, ele a perderia para sempre. Ela desceu, Alex seguiu-a e jogou uma moeda para o cocheiro. Wenton abriu a porta, e eles não lhe deram a menor atenção.
Alex puxou-a até a entrada mais próxima. A da sala íntima. Ele tropeçou, Kate abraçou-o pela cintura e entraram. Alex fechou a porta, sem dar atenção ao espanto de Wenton que os seguira. Trancou a fechadura com uma das mãos e com a outra começou a despir Kate.
Kate beijou-o, empurrou-o até o sofá, fez com que se deitasse sobre ela e abriu os botões da calça dele.
Por um longo tempo depois de terem feito amor, Alex ficou deitado com a cabeça no ombro de Kate, enquanto ela lhe acariciava os cabelos. Alex não a abandonara depois de ela ter dito a verdade. O que ela mais temia não acontecera. Alex não a odiava.
- Poderíamos ter matado Wenton de susto - Alex murmurou.
Kate começou a rir e Alex acompanhou-a nas risadas. Dessa vez as lágrimas foram de alegria.
Alex apoiou-se em um cotovelo e enrolou os dedos nas mechas douradas.
- Agora terá de casar-se comigo - Alex afirmou, sério.
- Não posso.
- Kate, tem idéia em que espécie de crime está envolvida? Contrabando em tempos de guerra!
Ela o fitou, procurando uma resposta na expressão de Alex.
- Está querendo proteger-me.
- Claro que sim.
- Alex, eu posso tomar conta de mim mesma. Eu já lhe disse, nunca tive intenção de prendê-lo em uma armadilha...
- Preferia que eu a levasse presa? Sabe muito bem que eu poderia fazê-lo.
- Por fazer contrabando de lençóis e vegetais? - Kate sabia que não era bem assim. - E essa sua idéia de servir ao príncipe?
- Não pode imaginar o que está acontecendo.
- Então diga, Alex.
- Não.
- Ainda não consegui sua confiança, Alex. - O que não seria de se estranhar, depois de todas as mentiras por ela contadas.
- Isso não é verdade. Mas a sua segurança consiste em ignorar os fatos. - Alex acariciou-lhe o abdome com a palma da mão.
- Alex, o que acontecerá a partir de agora?
Alex beijou-a com suavidade. Voltara o amante gentil. Os momentos de louca paixão haviam passado.
- Nós a manteremos aqui, segura.
- Contará para Reg e para Augustus?
- Hanshaw acabará sabendo, mas não já. Augustus pode ir para o inferno antes de eu o incluir nessa história.
- Por que não falar com Aug...
- O problema não é dele.
Aquilo não fazia sentido. Tinha certeza de que Devlin era um espião. Ela o vira esgueirando-se à noite como se não quisesse ser visto pelos amigos. Poderia ser um traidor. Se ela nada dissera a Fouché sobre Reg e Alex, alguém o fizera. Sentiu um arrepio.
- Alex, creio que está enganado a respeito da sinceridade de Devlin.
- Esqueça-o, Kate!
Ela se convenceu de que Alex não a escutaria sobre as suspeitas. Alex acariciou-lhe os lábios com a ponta dos dedos.
- Quero que me prometa mais uma coisa.
Se Devlin estava ajudando Fouché, Alex estava em perigo.
- O quê?
- Prometa que não voltará a Paris com seu pai.
- Milorde não quer perder os rastros dele, não é?
- Não mude de assunto. Sabe muito bem que uma coisa nada tem a ver com outra. Prometa-me que ficará aqui. Sem obrigações. Apenas ficar em Londres.
Alex queria protegê-la a qualquer custo.
- Está bem.
Às duas da manhã eles escutaram fortes batidas na porta de entrada.
- De novo, não! - Alex lamentou-se e Kate sentou-se a seu lado.
- Não deve ser papai. Ele não faria tamanho escândalo. Se fosse Stewart, Kate não suportaria ver o pai ser preso.
- Também não deve ser um cobrador - Alex fez graça -, a não ser que a senhorita houvesse usado novamente meu crédito. Wenton abrirá a porta.
- Alex! - Eles ouviram Gerald subir a escada.
- Santo Deus - Alex resmungou e vestiu o roupão. - Fique aqui.
Alex enfiou o roupão e abriu a porta ao mesmo tempo em que Gerald chegava. Alex conseguiu ir para o corredor e trancar a porta antes do primo ver o que se passava dentro do quarto.
- O que houve, Gerald?
James Samuels subiu atrás de Gerald. Não eram boas novas.
- Napoleão encontra-se a menos de quatrocentos quilômetros da Bélgica - Gerald anunciou.
- Milorde estava certo a respeito das caixas seguirem para o Norte - Samuels afirmou. - Hanton conseguiu encontrá-los há dois dias.
- Boney está arrebanhando apoio ao longo do caminho - Gerald continuou.
Duas conversas simultâneas no meio da noite eram desconcertantes, ainda mais quando Alex estava preocupado com Kate na cama à espera dele. Mas de repente, o espírito de alerta falou mais alto.
- Bonaparte está tentando isolar Wellington!
- Se ele conseguir o apoio de Blücher e dos alemães, Wellington não terá chance. - Gerald considerou.
- Isso dependerá de quão bem armados estarão os soldados de Bonaparte - Alex considerou.
- E da rapidez com que poderemos recuperar essas armas - Gerald atacou.
- Por favor, abaixe o tom de voz. - Alex disfarçou uma espiada para a porta do quarto.
Gerald percebeu o deslize.
- Kate? Alex, mas que falta de escrúpulos!
- Deixe disso, Gerald.
- Não posso. Não a conheço muito, mas ela não é uma qualquer, primo. E terá de receber uma reparação.
- Sei disso e não digo o contrário. Mas tudo é mais complicado do que imagina.
- Fale logo!
- O pai dela é o contrabandista de armas. Perplexo, Gerald arregalou os olhos.
- E ela sabe disso?
- Não posso afirmar ainda.
- Alex, seu envolvimento no caso poderá levá-lo à forca!
- Nobres não têm sido enforcados. - Alex esfregou a têmpora que começava a latejar.
- Então...
- Escute. - Alex fitou Samuels de soslaio. - Irei para o Norte com James para confiscar aquelas malditas armas antes que cheguem à costa.
- Alex...
- Mandarei direto para o príncipe George os homens presos com as armas. Isso o deixará satisfeito por uns dias até que eu possa resolver... o outro problema.
- E o que planeja fazer? Alex suspirou.
- Não tenho idéia.
- Não o deixarei sair daqui se não me disser o que planeja fazer.
- Por acaso poderá impedir-me?
- Não pretendo herdar Everton por alguma estupidez que milorde possa cometer.
- Gerald, escute. O pai de Kate é Stewart Brantley e ela é sobrinha do duque de Furth.
Gerald empalideceu.
- Ele é irmão de Martin? Ela é... sobrinha dele?
- Repetir isso não nos levará a lugar nenhum. O problema não é fácil de ser resolvido.
- Furth deve ser comunicado.
- Eu sei. Cuidarei disso. Por enquanto diga a Hanshaw e a Furth que fui em busca das armas.
Alex não deixaria Kate ser presa. Furth representaria um escudo e seria a única maneira de protegê-la, quer ela quisesse ou não. E mesmo que ela passasse a odiá-lo pela imposição.
- Estamos dentro de um verdadeiro emaranhado.
- É verdade. James, sele Tybalt e mais um cavalo.
- Sim, milorde.
- Gerald, espere embaixo. Descerei em seguida.
Alex entrou no quarto e encontrou Kate sentada na beira da cama, enrolada no lençol. Linda, preocupada e muito séria.
- O que houve? - ela perguntou em voz baixa. Alex gostaria de poder contar-lhe o que ocorrera.
- Nada sério. Terei de ausentar-me de Londres por alguns dias.
- Não pretende ir à Bélgica lutar contra Napoleão, não é?
- Claro que não. Terei de partir imediatamente.
- Quero ir também! - Kate levantou-se e segurou-lhe a mão. - Por favor.
- Não, Kate. Terá de ficar com Gerald e Ivy.
- Milorde vai atrás de meu pai - ela sussurrou. Alex fechou os olhos por uns instantes.
- Terei de recuperar o carregamento.
- Eles tentarão matá-lo...
- Não creio. Não me disse que seu pai está em Calais? E Fouché já voltou para a França.
- Por favor, não vá. - Kate abraçou-o.
Alex retribuiu o abraço e apertou-a de encontro ao peito. Surpreendia-se por ela aceitar com calma o confisco do carregamento.
- Vista-se. Gerald a levará para a casa dele.
A sra. Hodges acompanhou Kate a seus aposentos. Alex fez a barba e vestiu-se, enquanto Antoine arrumou o alforje. Ao descer, encontrou Kate e Gerald à sua espera. Levou-a até a sala íntima.
- Kate, voltarei logo. Não cometa nenhuma loucura. Ele a beijou com desespero.
- Por favor, tome cuidado, Alex.
- Fique tranqüila. - Alex acariciou-lhe o rosto com o nó dos dedos. Fitou-a intensamente. Depois de falar com Furth a respeito dela, na certa seria odiado pelo resto da vida. Com mais um beijo, Alex foi até a saída.
- Alex, je t'aime - Kate murmurou antes de Alex abrir a porta. - Sabe o que isso significa, não é?
- Sei.
Alex, sem se virar, sentiu o coração dividido. Ou se tratava de um último esforço para impedi-lo de cumprir o dever ou era a verdade. Se olhasse para Kate Brantley mais uma vez não seria capaz de partir. Foi para o hall.
- Cuide dela - disse para Gerald na passagem.
O conde de Everton deixou a Cale House. foi até a estrebaria e saiu a galope rumo ao norte do país.
Kate não sabia precisar quando acontecera a mudança radical. Sempre odiara os ingleses, e em particular Alex, quando não o conhecia. E de repente, seria capaz de fazer qualquer coisa para salvar-lhe a vida. Seu pai diria que ela era louca por arriscar-se por um conde inglês. Um patife de sangue azul que acabaria por arruiná-la.
Sentia-se confusa pelas emoções conflitantes que a dominavam. Amava um homem que saíra em busca de seu pai para prendê-lo. Deveria pensar em vingança e isso nem de longe lhe ocorria. Tentou, inutilmente, pensar que eles saberiam cuidar de si mesmos quando se defrontassem com Fouché ou com Napoleão.
Uma intuição não a abandonava. Alex lhe escondia fatos por desejar poupá-la. Alguém sugerira que Fouché tentara matar Reg Hanshaw ou o conde de Everton. Por sua vez, Augustus Devlin encontrava estranhos no meio da noite, em vielas escuras, às escondidas. E Alex de nada sabia.
Os Downing, seguindo à risca o pedido de Alex, não a deixaram sozinha um só minuto. Com a paciência esgotada, Kate sugeriu aos amigos o recital de Mércia Cralling, onde a diversão seria garantida. Enquanto Gerald e Ivy se trocavam, Kate pensava no paradeiro de Alex. Augustus e seu contato teriam conhecimento da viagem de Alex? A dúvida a atormentava.
Durante o recital de Mércia, escutou várias vezes menções à Dama Mascarada, sempre especulando sobre a verdadeira identidade da misteriosa jovem. Para ela mesma tornava-se difícil decidir quem era na realidade. Aquela que se vestia de rapaz ou a que passara uma noite vestida como mulher. A reação de Alex ao vê-la fora em grande parte responsável pela própria vontade eufórica de usar saias. Acreditava que poderia encontrar uma saída para o dilema, se conhecesse os verdadeiros sentimentos de Alex. O que diria ao pai quando ele viesse buscá-la?
Kate escutou os aplausos e tratou de imitar a platéia. Mércia levantou-se do banquinho e fez uma leve mesura em agradecimento. Lady Cralling correu para congratular-se com a filha. Os convidados também ficaram em pé, esticaram as pernas dormentes e foram para a mesa onde tinham sido dispostas bebidas e quitutes.
- Podemos ir embora? - Gerald cochichou para Ivy e ela cutucou-lhe as costelas.
- Ainda não. A menos que pretenda continuar andando pela casa, cuidando de nossa hóspede.
Kate sentiu-se culpada. Desde o começo eles haviam demonstrado bondade e deferência, e ela não desistia de causar-lhes preocupação. Procurou por seu alvo no recinto. Esperava que ele houvesse comparecido ou teria de vasculhar Mayfair no escuro em busca dele.
Gerald endireitou as costas e suspirou. De repente, animou-se.
- Ali está Hanshaw. Voltarei logo.
- Vá, meu querido. Homens - Ivy murmurou, inclinando a cabeça para o lado de Kate.
- Como é que disse, prima? - Kate endireitou o colete, sorrindo.
- Claro que não estava me referindo ao sr. Riley - Ivy também riu.
Deborah Glover aproximou-se para falar com Ivy, e Kate pedia licença. Precisava encontrar o visconde Devlin. Olhou por sobre o ombro e dirigiu uma imprecação silenciosa a Alex pelas recomendações ridículas. Ivy estava entretida com a amiga e Kate parou junto à mesa para experimentar um dos bolinhos de presunto.
Estava comendo o segundo quando sentiu uma certa mão em seu braço. Impaciente, tentou soltar-se, pensando tratar-se de Mércia. Não era.
- Lady Sinclair. - Kate sorriu e procurou não engasgar. Seus pensamentos começaram a girar diante das complicações inesperadas. Justamente naquela noite e com a antiga amante de Alex.
- Aceita um bolinho?
- Não tente me enganar! Conheço-a muito bem, sua rameira!
Segundo seu pai, o ataque era a melhor defesa.
- Demorou demais para descobrir - Kate falou de boca cheia e pegou um cálice de vinho da bandeja de um criado que passava.
Barbara abriu a boca, sem saber o que responder. Uma pergunta pareceu-lhe mais indicada.
- O que tem a dizer sobre isso? - sibilou ela. Kate levantou uma sobrancelha e engoliu o bolinho.
- Parece que o preço da cevada vai subir este ano - ela declarou, com fingida inocência.
Barbara agarrou-lhe o braço.
- Se eu fosse a senhorita, não seria tão presunçosa. Posso arruiná-la em dois segundos.
- E eu a deixaria estendida no chão na metade desse tempo. Sei boxear muito bem.
Kate refletiu que Barbara Sinclair não estava acostumada a ser ameaçada fisicamente.
- Não me interessa quem é nem o que sabe fazer - Barbara retrucou. - Só quero que saia de Londres. Imediatamente.
Kate considerou a sugestão como a mais acertada.
- Ou?
- Ou todos saberão quem é a rameira de Alexander!
- Uma acusação estranha, Barbara - disse um homem atrás delas.
Augustus Devlin abraçou as duas pelos ombros e inclinou a cabeça para a frente, entre ambas.
- O roto falando do esfarrapado - acrescentou, baixinho.
- Saia daqui, seu bêbado! - Barbara não conteve a ira.
- E trate de ficar afastada de Alex - Kate advertiu-a e sorriu. - Se alguém ficar sabendo a meu respeito, ele não se casará com você.
- Por acaso esperava casar-se com Alex, sua idiota? Onde foi que ele a encontrou? Em Covent Garden? - Barbara fitou Kate de alto a baixo. - Desengonçada do jeito que é, quanto pode valer? Um xelim?
Augustus deu risada.
- Mais do que pode ter conseguido brincando com cavaleiros e escudeiros na Regent Street, Barbara. Afaste-se dela, sua bruxa, ou começarei a espalhar histórias sobre suas predileções, madame.
Barbara soltou-se dele, muito pálida.
- Fique certa de que jamais ficará com Alex - Barbara fitou Kate com fúria. - Pode acreditar. Antes do final da temporada, ele e eu estaremos noivos!
Devlin observou Barbara sair do salão pisando duro.
- Tome cuidado com ela - recomendou e pegou uma torta doce. - Dizem que ela fez bruxaria para o falecido esposo quando o encontrou na cama com uma das criadas.
Kate observou a aparência do visconde. Se antes ele já tinha uma aparência espectral, agora sua pele parecia uma película transparente que se rasgaria ao menor sopro. Considerou a hipótese de Fouché ter mandado o visconde vigiá-la ou se o encontro fora uma coincidência. De qualquer forma, não tivera de sair para procurá-lo e decidiu não fazer nenhum interrogatório no recital de Mércia Cralling.
- Agradeço sua advertência.
- Não há de quê. - Devlin olhou o pedaço de torta na mão. - Por falar nisso, qual é seu nome?
Ela já desconfiava que Devlin solucionara o enigma.
- Kate.
- Você estava deslumbrante no baile de máscaras.
- Obrigada.
- Entendo por que Alex não abre mão de sua companhia. Kate teve certeza de que ele era mais perigoso da que Barbara Sinclair. O visconde tinha pouco a perder. Augustus Devlin estava morrendo. Não tinha família nem herdeiros. Se lhe fosse conveniente, espalharia a história de Kit Riley pela cidade inteira. Se ele soubesse de tudo, poderia destroçar a reputação de Alex no campo político. O conde de Everton poderia ser preso por acobertar uma traidora dentro de sua própria casa.
- Isso era necessário.
- Imagino quanto você pagaria para preservar seu segredo. - Devlin olhou-a de cima a baixo e Kate percebeu que ele estava sóbrio. - Ou segredos, podemos dizer assim. Conceder-me-ia seus favores, Kate?
- Se me forçar a isso, contarei a Alex a verdade a seu respeito.
- Ele nunca acreditará. - Devlin sacudiu a cabeça, sorrindo. - Você não tem provas. E uma pobre-coitada, mesmo bonita, não convencerá ninguém de coisa alguma.
- Por que você odeia tanto Alex? - Parecia incrível que o acusasse do que ela mesma sentira por Alex.
- O assunto é pessoal.
- Não permitirei que faça nenhum mal a ele.
- Quanta lealdade - ele comentou com sorriso cínico. - No entanto seria muito mais inteligente e seguro se você se mantivesse afastada disso. - Os olhos opacos de Devlin a encararam e ele tocou-lhe o rosto com os dedos frios. - Diga a Alex para deixá-la comigo. Se ele tiver oportunidade.
- Vá para o inferno! - Kate virou-se e deixou-o. Não lhe daria a satisfação de demonstrar o receio de que algo pudesse acontecer com Alex.
Augustus Devlin observou-a afastar-se com fisionomia impassível. Depois pediu uma dose dupla de conhaque a um criado que passava.

Capítulo XI

O tempo frio e chuvoso de Suffolk deixava as estradas em péssimas condições. Hanton McAndrews deixara aviso para eles ao longo das estações de posta do caminho. Pela brevidade das mensagens era de se supor que o escocês andava depressa para acompanhar o passo dos contrabandistas.
Mas nem a urgência ou o mérito da tarefa que tinha pela frente impediam Alex de pensar em Kate toda vez que ele e Samuels paravam para descansar os cavalos e procurar notícias.
A calma com que ela aceitara a presumível captura de seu pai devia ser causada pela certeza de que Stewart Brantley conseguiria despistá-los, conforme já fizera no passado. Alex não tinha a menor intenção de virar as costas ao dever. E quando prendesse Stewart, perderia Kate. Esse pensamento o assombrava.
Um dia depois e a cinco quilômetros do mar, Alex e Samuels encontraram Hanton e as caixas de armas. Alex ainda não descobrira se Stewart Brantley retornara de Calais para escoltar pessoalmente os mosquetes.
- Tudo bem, milorde? - Hanton indagou, abaixado ao lado de Alex atrás das rochas onde esperavam havia mais de três horas pela presa.
Alex descansou o queixo no braço e observou os contrabandistas reunidos abaixo, na enseada. O barco chegara havia mais de uma hora, mas os homens não pareciam com pressa de carregar a mercadoria. Isso porque a maré demoraria em virar. Além disso, nuvens escuras acumulavam-se, vindas do nordeste. Com certeza esperariam a primeira maré da manhã para cruzar o canal até Calais.
- Dentro do previsto. - Alex se afastou um pouco da beira do precipício.
- Milorde parece estar planejando um funeral - Hanton comentou com seu forte sotaque escocês.
- E como estou me sentindo - Alex admitiu, levantou-se e limpou a calça.
- Lembro-me de que a captura sempre foi a parte que mais o agradava. - Hanton seguiu-o colina abaixo para encontrar James Samuels, que os aguardava com os cavalos. - Milorde os surpreendia aos gritos, atirando.
- Com a idade tornei-me mais ajuizado. - Alex segurou as rédeas e montou.
- Seu pai odiava aquelas reuniões protocolares. - Hanton pulou no cavalo. - Costumava dizer que o invejava por milorde poder sair e não ter de ficar sentado, conversando.
- Hanton, ainda toca gaita de fole? - Alex instigou Tybalt a um galope macio.
- Sim, milorde. Por que pergunta?
- Pelo seu vozeirão, parece que tem fôlego para isso. Samuels, do outro lado, deu uma gargalhada.
- Ele tem capacidade para tocar uma debaixo de cada braço.
- Cale-se, inglês maldito! - Hanton retrucou. - Eu jamais deveria ter deixado minha filha se casar com você!
O conde sorriu. Fazia um ano que não via Hanton McAndrews e mais de três que não cavalgava com o escocês.
Naquela época, os franceses haviam tomado a costa de assalto e confiscado mercadorias britânicas, sob o decreto de Fontainebleau, de Bonaparte. O príncipe George encarregara Furth, Hanshaw e os Cale de impedir o assalto. Depois da morte do pai, Alex escutara os conselhos de Gerald e permanecera em Londres, segundo Gerald, para evitar que o sangue precioso dos Cale fosse derramado em favor da pátria. Frustrado por não mais estar em ação, tornara-se versado em política, aborrecera-se e voltara a atenção para o mundo da libertinagem. E Kate Brantley o levara de novo para o frio e a umidade de Suffolk.
Alex incitou Tybalt a um galope mais rápido em direção à enseada, adorando a ação. Tanto quanto adorava a espiã que esperava por ele em Londres. Admirou-se por admitir o fato e por ter ficado tanto tempo sem agir.
Eles foram vistos pelos contrabandistas e um tiro atingiu as rochas nas proximidades. Hanton encostou o cavalo no de Alex.
- Abaixe a cabeça, milorde! - Hanton gritou e atirou de volta.
Alex fez sinal para Samuels e mais dois homens assumirem a liderança. Hanton e seus comandados deram a volta por trás da angra para evitar uma fuga para oeste ou para norte. Alex c os outros foram para leste para evitar que os outros levassem o barco pelo canal.
- Parem! - Alex gritou, puxando com força as rédeas de Tybalt.
Tirou a pistola do coldre e apontou para o homem mais próximo. Seus acompanhantes fizeram o mesmo. A vista das armas, os contraventores deixaram cair as que empunhavam.
- Santo Deus, milorde! - Hanton chamou de perto das carroças. - No mínimo, trinta caixas!
Alex deu um sorriso de alívio. Haviam chegado a tempo. Os soldados ingleses não morreriam por sua causa.
- A quem pertencem essas carroças? - Alex adiantou-se. Como era de se esperar, ninguém respondeu. Hanton aproximou-se e segurou a cabeça de Tybalt para Alex desmontar.
- Nenhum voluntário? - Hanton ironizou.
- Creio que eles preferem falar com os algozes de Old Bailey. - Alex não podia deixar de pensar no que teria acontecido se Hanton não houvesse perseguido as pistas com a devida rapidez. - Sr. Samuels, por que não traz para nós um pouco de corda?
A pergunta provocou uma série de murmúrios. Em seguida, um homem grisalho e gordo, com dentes estragados e com jeito de líder, cuspiu nas pedras e adiantou-se com passos indolentes.
- Will Debner - ele resmungou com sotaque de Yorkshire. - As carroças não são minhas.
- Boa tarde, sr. Debner. Podemos trocar algumas palavras? Samuels e seus homens ficaram vigiando os outros enquanto
Alex e Debner se afastavam para não serem ouvidos. Hanton seguiu-os de perto.
- Diga-me, sr. Debner, onde conseguiu essas armas? - Alex ajeitou o capuz da capa na cabeça para se proteger do vento gélido que soprava do Norte.
Debner cuspiu de novo e cruzou os braços.
- Se eu disser, o que vou ganhar?
- Não ser enforcado aqui mesmo, traidor! - Hanton gritou. Alex levantou a mão e o escocês se calou.
- Quero uma resposta para pensar no assunto e evitar o enforcamento.
- Só por puxar essas malditas carroças? - Debner olhava ora para Alex, ora para Hanton.
- Por contrabandear armas para o inimigo em tempos de guerra - Alex corrigiu-o. - Isso é traição. Punível com a morte. - Alex deu um passo à frente e empurrou Debner sobre uma pedra. - Onde foi que conseguiu os mosquetes? - repetiu.
Debner esfregou o peito com a mão suja.
- Milorde permitirá que eu viva?
- Não deixarei que o enforquem.
Alex refletiu se o homem tinha capacidade para entender a diferença. Mesmo com práticas supostamente mais humanas, havia uma grande variedade de meios para executar um criminoso.
Debner franziu a testa, estreitou os olhos e mexeu os pés.
- Conheço um homem na França. É um inglês de sangue azul, mas não se considera como tal.
- O nome dele?
- Stewart Brantley. Mandou avisar-me de que eu teria de ir a York e que as carroças estariam em um celeiro velho. E estavam. Eu as trouxe. Nada que mereça uma condenação à forca, não acha?
Alex ignorou a pergunta.
- Depois de deixar os caixotes no barco, para onde iria a encomenda?
A questão era crítica. Como as caixas tinham sido apanhadas antes de saírem de solo inglês, o crime seria apenas de roubo. A menos que fosse obtida uma confissão.
- Stewart nos encontraria em Calais dentro de alguns dias. Viemos para a costa mais cedo por causa do mau tempo.
- O senhor já trabalhou para esse tal de Stewart antes, não foi?
- Sim. - Debner tornou a estreitar os olhos. - Não estou confessando nada que milorde não soubesse.
- Está certo. - Alex escondeu a frustração atrás de uma expressão neutra e de punhos fechados. - Eu me pergunto se o senhor também teve negócios com outro inglês... de sangue azul.
O bandido cuspiu de novo.
- O que vou ganhar com isso?
A paciência de Alex estava se esgotando.
- Conseguirei o melhor que puder para o senhor. Responda!
- Sim, um jovem magro, de cabelos claros e sangue azul. Bonito rapaz. Não o vejo há quase um ano.
A boca de Alex ficou seca.
- Farei o que puder por sua causa. - Alex inspirou fundo e se virou de frente para a água.
Sem dizer nada, Hanton passou por ele e empurrou Will Debner em direção da enseada. Alex contemplou durante algum tempo as águas tempestuosas do canal da Mancha. A França ficava ao sul, oculta por uma muralha de nuvens. A Bélgica e Wellington, a leste. Entre os dois, Napoleão Bonaparte.
Alex também se sentia no meio de um impasse. Kate estivera envolvida com o pai em contrabandos de pequena monta. Isso não era grave. Napoleão estivera exilado em Elba e as pessoas tinham de sobreviver, de qualquer maneira. Sua preocupação era o armamento. O fato de Debner não ver o "bonito rapaz" há um ano não significava o não envolvimento de Kate no caso.
- Logo escurecerá, milorde - Hanton avisou e Alex anuiu.
- Todos estão prontos? - perguntou ele sem se virar.
- Sim, milorde. Amarrados para serem entregues a Sua Majestade. - Hanton hesitou. - Milorde conhece o rapaz magro?
- Conheço. - Alex voltou-se. - Será melhor proteger as caixas e os cavalos antes de a tempestade começar. Vá para o Sul amanhã cedo.
- E milorde?
Voltarei para Londres esta noite.

Kate abaixou-se atrás dos arbustos da trilha principal de Vauxhall Gardens e esperou. O solo estava frio e úmido, e o nevoeiro, denso. Ivy e Gerald ficariam furiosos se descobrissem sua ausência. Se pretendiam mantê-la trancada, não deveriam ter-lhe destinado um quarto com janela sobre uma treliça externa. Planejava voltar a tempo para jogar uma partida de bilhar com Gerald como fizera na véspera. Mas precisava falar com Reg. Não o encontrara em casa. O mordomo empolado lhe revelara o paradeiro de milorde. E ali estava ela, aguardando.
Reg provavelmente estava em companhia da família Stewart, o que incluía tio Martin. Seria difícil encontrar Reg sozinho com Caroline. Na verdade, nem mesmo sabia por que viera. Se Devlin trabalhava com Fouché e ela com o pai, os quatro estavam do mesmo lado. Com a diferença de que Fouché mataria Alex, se pudesse. E ela faria o possível e o impossível para impedi-lo.
Viu lorde Bandwyth rodear as fontes e Julia Penston passar ao longe com uma amiga. Finalmente viu Reg no gazebo. Com Caroline e sem os outros Furth! Mas ali também se encontravam Mércia Cralling, Celeste Montgomery, Francis Henning e lorde Andrew Grambush.
Kate levantou-se. tirou as folhas da calça e do paletó e aproximou-se do grupo.
- Kit, pensei que já estivesse na Irlanda - Reg saudou-a e estendeu a mão, que Kate apertou.
- Meu pai atrasou-se. Ficarei em Londres mais um ou dois dias.
- Sr. Riley, talvez pudesse persuadir seu pai a deixá-lo ficar até o final da temporada - Caroline falou e sorriu, encantadora.
Kate deu um sorriso pálido e voltou-se para Reg.
- Poderia falar um minuto com milorde? O barão fitou-a com ar indagador e assentiu.
- Grambush, compre sorvete para as damas. Kate e eu iremos em seguida.
Os outros se afastaram e Reg olhou para Kate.
- Se está querendo investigar o paradeiro de Alex, eu não posso...
- Não é nada disso. Responda-me apenas uma pergunta. Devlin sabe para onde Alex foi?
- Mas por que...
- Ele sabe, Reg? - Kate balançava-se na corda bamba. Se caísse de um lado, mataria Alex. Se caísse de outro condenaria o pai e talvez a si mesma.
- Não. Eu não lhe disse nada e Alex não está falando com ele. Portanto...
- Obrigado.
Reg agarrou-a pelo braço.
- Por que está preocupado com Devlin?
Reg era, no momento, a única pessoa em quem ela poderia confiar.
- Eu o vi outro dia, conversando com um francês.
- Há muitos deles em Londres.
- Mas eles estavam em um beco... à meia-noite.
Reg franziu o cenho e pensou durante algum tempo. Calculando, pesando possibilidades. Finalmente piscou e sacudiu a cabeça.
- Não. Sei que pretende ajudar e que as coisas têm sido excitantes. - Ele passou o dedo na atadura da testa. Augustus não é apenas nosso amigo, mas faz parte da família de Alex. Esse é um negócio muito sério, Kit. Não repita a ninguém o que me disse ou poderá criar dificuldades para si mesmo e para Alex.
- Reg, pense um pouco. Devlin sabe o que está se passando e odeia Alex.
- Nada disso. Ele apenas diz coisas... desagradáveis quando está bêbado. Daqui a uma semana serão amigos de novo. Já aconteceu antes. Alex voltará para casa amanhã ou depois. Poderá contar suas suspeitas e ele lhe dirá a mesma coisa. Vamos ver os fogos de artifício, venha.
- Não posso. Tenho de voltar. Reg, por favor, não conte nada a Devlin.
- Fique tranqüilo. Nada direi.
Isso manteria Reg Hanshaw seguro até que pudesse convencer Alex... ou até ela mesma cuidar de Devlin se não houvesse outra opção.
- Obrigado.
Reg viu Kate sumir nas sombras.
- Impossível - murmurou, antes de voltar para junto de seu grupo.

Exausto e congelado, Alex subiu os degraus de granito da Stewart House e bateu a aldrava na porta de madeira.
Royce abriu a porta, saudou-o com uma mesura e fitou com asco as botas enlameadas. Levou-o até a sala de estar e retirou-se para avisar o duque da visita. O ambiente era mobiliado com peças antigas e quase sem uso. A família ficava pouco tempo na cidade. O début de Caroline os trouxera a Londres daquela vez.
Em duas das paredes havia retratos da família, inclusive dos dois irmãos, montados lado a lado, e vários de Caroline, em diferentes fases da vida. A um canto, Alex reparou no retrato de outra menina, com cerca de cinco anos. Linda, de olhos verdes, usando um vestido rodado de cintura alta e segurando um chapéu de palha na mão, ao lado de um canteiro de margaridas.
- Kate - murmurou.
- Presumo que milorde foi bem-sucedido - disse Martin Brantley, entrando na sala.
Alex virou-se.
- Interceptamos o carregamento.
- Que maravilha! - Ele entrou e fechou a porta. - Eu estava muito preocupado, Alexander.
- Eu também. Vossa Graça, tenho novidades que certamente não o agradarão.
Furth estreitou os olhos.
- Fale logo, Alexander.
- Tenho o nome do contrabandista que estávamos procurando.
- E isso já faz algum tempo, ou estou enganado?
- Não está. - Alex hesitou. - Esta foi a segunda vez que pegamos as armas destinadas a Napoleão. Nas duas vezes, o nome de... Stewart Brantley está envolvido como o contato de Napoleão.
- Stewart Brantley - Martin repetiu, pálido e fechou os olhos por um instante. - Stewart... Tem certeza, Alexander?
- Eu...
- Claro que tem ou não me teria escondido o fato. Droga! - Furth começou a andar de um lado a outro com impaciência nunca vista.
- É, eu precisava certificar-me.
- Ou estava com receio de que eu o impedisse de agir?
- De maneira nenhuma, Alteza.
A energia do duque pareceu apagar-se e ele se largou em uma poltrona.
- A culpa foi minha. Ele transferiu o ódio que tem por mim para toda a nação. Alexander, já falou com príncipe George?
- Não. De Suffolk vim direto para cá. - Alex mostrou as roupas sujas. - Como se pode deduzir.
- Então eu terei de dar a ele as boas novas. - Furth levantou-se e foi até os retratos. - Eu sabia que ele se envolvera com algum tipo de contrabando, mas não supus que chegasse a esse ponto. Por isso não pensei em denunciá-lo. - Chegou perto do retrato de Kate e suspirou. - Pobre menina.
Alex entrelaçou os dedos trêmulos.
- Há outro motivo por eu ter vindo aqui primeiro. A filha de seu irmão...
- Kate? O que ouviu falar dela? - A ansiedade era perceptível.
- Ao que tudo indica, ela mora com o pai em Paris. Acredito que ela tenha ajudado Stewart de alguma forma, mas não lenho certeza de...
- Jamais. - Furth voltou a fitar a pintura iluminada por um raio de sol. - Ela, jamais!
- Com o devido respeito, Vossa Alteza não a vê desde os seis anos.
Furth virou-se devagar para a frente.
- Como é que sabe disso? - murmurou, com um brilho estranho nos olhos verdes.
- Eu a conheci e ela me disse.
- Milorde a prendeu?
- Não.
- Graças a Deus.
- Ela... falou a meu respeito?
Alex imaginou o motivo da perturbação de Furth, sempre tão confiante. Era óbvio que tinha grande carinho pela sobrinha que não via há cerca de quatorze anos.
- Ela não disse nada, exceto referir-se à possível culpa de Vossa Alteza na morte da mãe dela.
- Não tive culpa. - Martin sentou-se no peitoril da janela. - Não tive. - De repente, Furth aparentou envelhecer. - Anne era uma mulher extraordinária. Sempre tive grande admiração por ela. Não guardo rancor contra Stewart e certamente nenhum contra Kate. Alexander, sabe onde ela está, não é mesmo?
Alex inspirou fundo.
- Sim, sei.
O duque ficou em pé e aproximou-se.
- Diga-me.
- Alteza, em virtude das circunstâncias, pouco posso fazer para protegê-la. - Não quis revelar que a pedira em casamento duas vezes e que ela recusara. - Mas creio que seu nome terá efeito muito melhor que o meu.
Furth pareceu mais esperançoso.
- Farei o impossível para resguardá-la.
- Ela não gostará de saber o que estou fazendo.
- Ela está em Londres?
- Sim.
- Onde, Alex? Exijo que me diga imediatamente.
- Martin, por mais que eu preze nossa amizade, coloco os desejos dela acima de suas exigências.
- Alexander, por favor.
Alex não esperava que Furth fosse implorar. O encontro teria de ser em lugar público, onde Kate fosse obrigada a manter a compostura. Se fosse em um local privativo, ela atiraria nos dois antes de ser convencida a escutar a primeira explicação.
- Está bem. Primeiro terei de falar com ela. Eu o encontrarei no Traveller's esta noite às oito horas. Não posso prometer mais do que isso, Martin.
Obrigado, Alexander. Agora vamos falar com George.

- Ivy, não quero aprender a bordar!
Kate irritava-se, apesar de toda a bondade demonstrada pelos Downing. Eles não haviam suspeitado de sua escapada na noite anterior, mas Ivy cismara em entreter a hóspede em cada minuto do dia. A preocupação deles era tocante, mas a vigilância diuturna a impedia de sair atrás de Augustus Devlin. Não sabia se ele ainda estava em Londres nem que atitude tomar.
Admitiu gostar do visconde. Em todo caso, Devlin não era diferente dela. Independentemente dos motivos, os dois não haviam apoiado os ingleses na guerra contra Napoleão. Mas ao contrário de Augustus, ela mudara de opinião. Se Alex não estivesse envolvido, ela nem mesmo teria se importado com Devlin.
- Todas as jovens respeitáveis executam lindos bordados - Ivy comentou com um sorriso forçado.
- Mas essa não é minha pretensão, Ivy. - Kate, sentada no sofá, afastou o bastidor. Preferia jogar bilhar com Gerald, mas ele saíra.
- Muito bem, Kate. Mas quando Alex voltar, terá de resolver aquele problema. Onde já se viu, acossá-la na sacada dos Thornhill como se estivesse lidando com uma... - Ivy corou.
- Rameira? Ivy, ele não estava me forçando a nada.
- Não foi essa a opinião do duque de Furth.
Kate resistiu à tentação de contar a Ivy quem Martin Brantley era na realidade.
- Ninguém sabia que era eu.
- Eu sabia e ele terá de responder pelo comportamento reprovável.
Kate não ignorava ao que Ivy se referia, embora Ivy não soubesse que ela já recusara o pedido de casamento de Alex. Em parte ela até gostaria de estar grávida. Assim ficaria para o resto da vida com uma parte de Alex, quando tudo terminasse.
- Ivy, não acho que será preciso pressioná-lo... Uma voz familiar a interrompeu.
- Kate?
- Alex! - Kate correu para a entrada e jogou-se nos braços dele.
- Desculpe-nos por um momento - Alex pediu a Ivy e arrastou Kate para um canto.
O beijo foi intenso e desesperado. Kate agarrou-o pela nuca e teve vontade de chorar de alívio pela volta de Alex.
- Ainda bem que não vendeu a casa de meus primos na minha ausência - Alex caçoou, sem a soltar.
Alex estava com a roupa suja de barro e demonstrava não apenas cansaço, mas também preocupação.
- O mercado não era favorável - Kate sustentou a brincadeira. - Alex, está sujando meu colete.
- Eu lhe comprarei outro. - Alex tornou a beijá-la.
- Olá, Alexander. - Ivy apareceu na porta. - Precisamos ter uma pequena conversa.
- Está bem. - Alex franziu o cenho e, relutante, soltou Kate.
- Não, não. - Kate empurrou-o em direção à escada. - Não precisa, não.
Alex parou e segurou-lhe as mãos.
- Não precisa o quê, Kate?
- Eu lhe direi mais tarde. - Kate fitou Ivy com reprovação. O que ela mais queria no momento era saber de seu pai e se Alex já desconfiava de Devlin.
- Diga do que se trata e pare de empurrar-me, Kate.
Kate afastou-se e cruzou os braços.
- Cochon - ela murmurou e franziu o nariz. Alex achou graça e virou-se para Ivy.
- Do que se trata?
- Exijo uma explicação. O que pretende fazer a respeito de Kate? - Ivy tamborilou os dedos na coxa.
- Não tenho a menor idéia. Gostaria de contar com sua sugestão, prima.
- Milorde arruinou-lhe a reputação.
- Ah, então está dando ouvidos a maledicências, Ivy?
- Chega, Alex. - Gerald acabava de chegar.
- Parem de discutir - Kate interveio. Gerald aproximou-se da esposa.
- Ivy tem razão. Alexander infringiu as regras. De várias maneiras. Quem vai pagar por isso?
- Gerald, se houver um preço, eu o pagarei com alegria.
- Alex, não brinque. Os acontecimentos poderão apanhá-lo.
- Já fui apanhado - Alex desconversou. -- Venha, Kate. - Ele estendeu a mão para Kate.
- De maneira nenhuma - Ivy não desistiu. - Os dois podem estar contentes, mas isso não pode continuar dessa maneira. Alguém acabará prejudicado. - Fitou Alex. - E sem dúvida, não será milorde. Barbara Sinclair não...
- Esqueça Barbara. Prefiro vê-la no inferno. Não permitirei que ela cause o menor transtorno a Kate.
- Será preciso apenas uma palavra e o estrago será feito. Kate admitiu que Ivy estava certa, mas que pouco se poderia fazer a respeito. Enquanto permanecesse em Londres, estaria sob a mira constante de Barbara. Mesmo sem conhecer os objetivos de sua estadia na cidade, lady Sinclair a perseguiria por saber que Alex desejava proteger o segredo.
- Creio que deveríamos atirar nela - Kate anunciou.
- Mas que idéia. - Alex alarmou-se.
- Estou sendo prática. Só isso.
- Kate, eu já lhe disso que não podemos fazer nada contra Barbara e...
- Não estou preocupada comigo, Alex. Ele apertou-lhe a mão.
- Muita gentileza. Mas não se pode sair por aí matando pessoas. Acredite em mim. E, se possível, confie também.
- Farei o que me pede. Se me derem licença, irei pegar minhas coisas.
- De jeito nenhum! - Ivy e Gerald disseram em uníssono.
- Se voltar para a Cale House, tudo estará perdido - Ivy afirmou. - Kate, sei que merece muito mais do que isso.
- Eu afirmo que...
Alex fez um sinal imperceptível.
-...estou muito agradecida pelo que fizeram por mim. - Fitou Alex sem entender. - Ficarei aqui até descobrirmos alguma coisa.
- Ótimo - Gerald anuiu. - Alex, que tal um drinque para contar as novidades?
- Não, obrigado. - Fitou Kate de relance. - As notícias são boas, em todos os sentidos.
Kate deduziu que o pai escapara e admirou-se por Alex considerar aquela uma boa nova.
- Graças a Deus. - Gerald deu um sorriso.
- Agora irei para casa - Alex afirmou. - Tenho de trocar de roupa e resolver alguns assuntos. Os portões de minha casa são fechados às oito. - Fez um chiste, beijou a mão de Kate e cochichou ao levantar a cabeça. - Traveller's. - Anuiu para os primos e piscou para Kate antes de sair. - Eu a vejo amanhã cedo, Kate.
- Espero não ter sido muito severa com ele. Mas Alexander é muito teimoso.
Kate sorriu e seguiu Gerald até a sala de jogos. Jogaria bilhar com Gerald e depois se queixaria de dor de cabeça. Sairia pela janela a tempo de encontrar Alex no Traveller's às oito. Gerald perdeu três partidas e resolveu jantar mais cedo. Kate não chegou a apelar para a indisposição. Com pretexto de ler, foi a biblioteca e em seguida para seu quarto. Dez minutos depois estava a caminho do clube em um fiacre.
Deu uma moeda ao cocheiro e entrou no saguão pouco iluminado do Traveller's. Depois de três dias de separação teria sido melhor eles se encontrarem na Cale House. Kate sentira muita falta de Alex. Era assustadora a angústia provocada pela ausência dele.
Alex estava sentado a uma mesa dos fundos, de onde podia apreciar as idas e vindas. Kate sentou-se e Alex ofereceu-lhe um conhaque.
- Gerald e Ivy estão amarrados no porão?
- Ah, que bobagem. Alex, meu pai...
- Está não se sabe onde e fazendo a vida mais difícil para nós. - Alex tomou um gole e fitou a porta por sobre o ombro de Kate.
- Algo errado? - Ela franziu a testa.
- Não totalmente. - Alex não a olhou. - Bem, fiz algo que talvez possa não lhe agradar. Mas se tomei essa atitude é por lhe desejar o melhor.
- Alex, do que está falando? - Kate preocupou-se. Alex tornou a fitar a porta e inspirou fundo.
- Preciso fazer-lhe uma pergunta.
- Espero que não seja de caráter matrimonial. O momento seria totalmente inadequado.
- Kate Brantley tem uma maneira especial de arrasar o ego de um homem - ele murmurou.
- Por que não vamos para a Cale House? Eu o farei mudar de opinião.
- Não me tente. - Alex inclinou-se para a frente. - Kate, tem idéia do que seu pai contrabandeava?
- O que foi que descobriu?
- Diga-me a verdade, Kate. Só por essa vez. Seja qual for a resposta, juro que não deixarei que nada de mal lhe aconteça.
- Não sei do que está falando. Eu já lhe disse que posso muito bem tomar conta de mim mesma.
- Por favor, responda à minha pergunta.
- Então não use de subterfúgios, faça perguntas objetivas e eu responderei.
- Muito bem. Sabia que seu pai contrabandeava armas para Bonaparte?
Kate o fitou, estarrecida. Ela pensara em ouro e não queria saber o que Napoleão compraria com isso. Armas, jamais. Seu pai não faria isso.
- Mentiroso! -Ela tirou a mão que Alex pretendia segurar.
- Não estou mentindo. - Alex estava pálido e sombrio. - Acha que me agradou saber disso?
- Acho, sim! Meu pai jamais iria tão longe. - Kate bateu com o punho fechado na mesa.
- Mas foi. Tenho testemunhas. E algumas dizem que a filha dele também estava envolvida.
- Bastardo, eu o odeio!
- Kate, estou tentando ajudá-la. Será possível que não entenda a gravidade da situação? O governo da Inglaterra está acusando seu pai de traição! Eu... eu tive de dar o nome dele ao príncipe George esta manhã. E não dei o seu. Nada lhe acontecerá. Mas eu também preciso saber se a filha dele ignorava a natureza da operação.
- Milorde ficou maluco. - Kate ficou em pé. - Como pôde pensar...
Era evidente que, diante das circunstâncias, Alex poderia imaginar que ela estivesse envolvida. Se confiasse nela, saberia que Kate Brantley jamais mataria ninguém. Nem mesmo soldados britânicos.
- Queira desculpar-me, mas eu vou embora. - Kate virou-se e bateu em um cavalheiro.
- Meu Deus - ele balbuciou. - Eu deveria ter imaginado. Kate ficou imóvel. O duque de Furth a olhava. Ela notou os cabelos grisalhos, as rugas ao redor dos olhos e o rosto menos angular. Ouvira aquela voz havia alguns dias.
- Alteza - ela recuou e desviou o olhar.
- Kate - Alex falou atrás dela. - Sinto muito. Eu não queria que isso acontecesse dessa maneira. Eu pretendia contar-lhe primeiro. Eu...
Kate virou-se num ímpeto.
- O traidor aqui é milorde! - ela gritou sem se importar com a agitação causada no clube. - Nunca mais quero ouvir falar de nenhum dos dois. - Furiosa, virou-se e encaminhou-se a passos largos até a porta.
- Kate! - Alex berrou e levantou-se, supondo que cometera um grave erro de julgamento. Mas a certeza somente Kate poderia dar-lhe.
- Alex! - o duque de Furth chamou-o.
Alex esquecera da presença dele. Fitou-o de esguelha.
- Mais tarde - Alex resmungou.
- Agora. - Furth atingiu o queixo de Alex com um soco. Surpreso, o conde caiu na cadeira onde Kate estivera sentada. Por pouco não caíra no chão. O primeiro impulso foi revidar. Conteve-se. Continuou sentado e esfregou o queixo.
- Espero que Vossa Alteza tenha uma boa explicação para o que acabou de fazer.
- Milorde sabia desde o começo que Kate Brantley era minha sobrinha. - Furth sentou-se em frente, lívido de fúria.
- Não tenho a menor dúvida, pelo que vi naquele baile de máscaras e também agora, que o senhor a desgraçou. Por Deus, Alexander, eu deveria matá-lo!
Alex teve de esforçar-se ao máximo para não explodir.
- Ela culpa Vossa Alteza pela morte da mãe dela e a simples menção de seu nome a deixa transtornada.
- Isso não é...
- Vossa alteza está aqui porque não terei como protegê-la depois da prisão de Martin. Com licença, vou atrás de Kate. - Alex levantou-se e foi até a porta.
- Irei com milorde - Furth gritou atrás dele.
- Vá para o inferno, Alteza.
Kate fora embora com Waddle. Poderia alcançá-la na Cale House. Um dos empregados do clube parou uma carruagem e ele subiu no veículo. Recostou-se e consultou o relógio. A discussão não levara mais de doze minutos. Parecera uma eternidade.
Wenton ficou surpreso ao ver seu senhor chegar em um coche alugado e garantiu não ter visto Kate.
- Tem certeza?
- Sim, milorde. Eu não... o vejo há vários dias.
- Escute bem. Se Kate aparecer, não a deixe ir embora. Nem que para isso tenha de amarrá-la ou dar-lhe um soco. Entendido?
- Sim, milorde.
Alex dispensou o fiacre e mandou Conklin selar Tybalt. Tão cansado como o cavalo, cavalgou por Mayfair até a casa dos Downing, disposto a torcer o pescoço de Kate se ela não estivesse lá.
Estava. Encontrou Waddle na boléia da carruagem dos Cale. O homem parecia ter visto um fantasma. Gerald preparava-se para montar quando viu o primo.
- Alex - ele tirou o pé do estribo e segurou o freio de Tybalt.
- Onde ela está?
- Eu ia procurá-lo, Alex. O que foi que disse a ela? - Gerald indagou com raiva.
Londres inteira estava com raiva dele.
- Não é de sua conta. Onde está ela?
- Alex? - Ivy chamou-o da entrada.
Alex apeou do cavalo, passou pelos Downing e correu para dentro da casa.
- Kate! - Alex gritou, rodeou Fender e foi para a escadaria. - Kate, perdoe-me! Deixe-me explicar!
- Alex! - Gerald veio atrás dele.
- O que é? - Alex subiu os degraus de dois em dois.
- Ela não está aqui.
Alex parou. Agarrado no corrimão, fechou os olhos, em pânico.
- Para onde ela foi?
- Ela entrou correndo - Ivy explicou ao se aproximar - mas não sei como foi embora. Ela nunca...
- Para onde ela foi, Ivy? - Alex repetiu, abriu os olhos e encarou a prima.
- Disse que iria ao encontro do pai.
Alex sentou-se no degrau imediatamente superior. Faltava-lhe ar. Teve de inspirar várias vezes para conseguir falar.
- Ela voltou para a França - Alex sussurrou.
- Tentamos impedi-la, mas ela estava furiosa - Gerald alegou.
Alex levantou-se.
- Pois deveria tê-lo feito de qualquer maneira. Ela é capaz de cometer as maiores loucuras.
Alex desceu a escada e voltou para a rua, seguido pelos Downing que não poderiam estar mais compungidos.
- Alex, sinto muito.
- Esqueça. - Alex pulou em cima de Tybalt. - Ela não irá a lugar nenhum, pelo menos até eu ter oportunidade de esclarecer tudo.
- Ela levou meu melhor cavalo - Gerald disse.
- Há mais de meia hora - Ivy acrescentou.
- Eu a alcançarei em Dover. - Pelo menos era o que Alex esperava.
- Sei que milorde gosta dela. Gerald e eu também gostamos muito de Kate. Mas ela não podia ficar mais tempo em Londres, milorde sabe bem disso. Talvez ela estará melhor em Paris, depois...
- Não! - o cavalo assustou-se com o grito e Alex teve de puxar as rédeas.
- Alex, não faça...
- Não permitirei que ela me abandone tão facilmente. Não sem uma bela luta.
Alex cutucou o cavalo e desapareceu na escuridão.

Capítulo XII

Alex andava de um lado a outro no cais de Dover, enquanto Gerald se empenhava num interrogatório minucioso de um balseiro suspeito. Finalmente Gerald entregou algumas moedas ao homem que se afastou assobiando.
- Tem certeza de que era ela? - Alex impacientou-se e acompanhou a direção do olhar de Gerald.
- Ele nem queria falar comigo, de tanto medo. Na certa pensou que milorde pensava em devorá-lo.
- Ela estava no barco? - Alex insistiu.
- Um rapaz alto, atraente, loiro, carregando uma valise e sem falar com ninguém.
- Exceto não falar com ninguém, era ela, sem dúvida. - O receio pela segurança de Kate pulsava em cada fibra de seu ser. - A embarcação saiu com a maré, o que deixará Kate no mínimo com doze horas de vantagem. - Bateu a mão no pilar. - Ela tem a sorte dos irlandeses!
- O que pretende fazer, Alexander Cale?
- Ela não escapará com tanta facilidade - Alex afirmou e consultou o relógio de bolso pela enésima vez desde que haviam saído de Londres.
Gerald sacudiu a cabeça em um gesto negativo.
- Não acredito, Alexander. Não está pensando em ir para a França, está?
- Estou.
- Há uma guerra em andamento!
- Sei disso. E por minha culpa Kate Brantley vai cair no meio do tumulto. - Era o que mais o perturbava. Lutaria pela segurança de Kate, independentemente da opinião dela a seu respeito.
- O que fez para ela fugir dessa maneira?
- Pedi a Furth para encontrar-se conosco no Traveller's.
- E para quê. Alexander?
- Minha intenção era deixar Kate sob a proteção de Martin. Pensei em amortecer o golpe e, como sempre, errei o alvo e começamos a discutir a respeito do pai dela.
- Alexander. mesmo assim, foi ela quem decidiu ir embora.
- Ela afirmou que não partiria. - Alex admitiu ser teimoso e irracional.
- Não acha que está se comportando com certa... obsessão?
Alex fitou as águas escuras do canal da Mancha. No horizonte era possível enxergar através do nevoeiro as luzes difusas de Calais. Ao longe, em algum ponto indefinido, estava Kate. Desde que Ivy anunciara a partida de Kate, cansaço, frustração, raiva e solidão passaram a atormentá-lo.
- Eu a amo, Gerald.
Gerald fitou-o por algum tempo.
- Eu o acompanharei, Alexander.
- Não, Gerald. Se alguma coisa acontecer comigo, o senhor é o último da linha sucessória dos Cale-Downing. Além disso, Ivy me mataria se eu aceitasse sua oferta.
- Não poderá ir sozinho, Alexander - Gerald protestou sem ênfase.
Se não fosse por Kate, Alex jamais faria uma viagem à França naquela altura. Capturar um inglês a serviço de Sua Majestade era o mesmo que condená-lo à morte.
- Nada acontecerá comigo.
Alex foi até a extremidade do cais onde estavam Tybalt e o cavalo de Gerald. Com doze horas pela frente até uma nova mudança da maré, teria tempo de voltar a Londres, pegar algumas coisas e retornar a Dover a tempo de embarcar no próximo navio rumo a Calais.
- Posso fazer-lhe uma pergunta, Alex?
- O que é?
- Como vai achar Kate quando chegar à França?
Kate estaria sempre doze horas à sua frente, Alex calculou. Se não mentira, ela e o pai moravam em Saint-Marcel. Não seria fácil nem sensato seguir a pista. Não importava. Faria qualquer coisa para encontrá-la.
- Ela virá a meu encontro.
- E como conseguirá essa proeza, sendo que ela cruzou o canal para abandoná-lo?
- Já lhe disse. Foi um mal-entendido.
- Do tamanho de Yorkshire - Gerald ironizou.
- Cale-se, Gerald. - Alex pulou no cavalo.
- Por mais que esteja irritado, não permitirei que deixe a Inglaterra sem me dizer o que está planejando. - Gerald montou.
- Stewart Brantley está esperando um carregamento de armas em Calais. E ele me levará até Kate ou eu o matarei.
- Misericórdia, Alexander! Acabará por nos meter em uma grande, encrenca.
- Tem razão primo. Já estamos nela. E poderá ficar pior.
Em plena madrugada, o duque de Furth andava de um lado a outro em seu gabinete. Seguira Alex até a casa de Gerald Downing. Pela rapidez com que ele e o primo haviam saído, tratava-se de algo urgente. Não foi difícil deduzir do que se tratava. Mandara um criado vigiar a Cale House e outro para Dover.
Precisava inteirar-se dos fatos de qualquer maneira. O mais sensato seria não perder Alex de vista. Uma hora depois o camarada que fora para Dover voltou, exausto e arfante.
- O conde de Everton e o sr. Downing foram para Dover, mas não ficaram lá por muito tempo.
- Eles embarcaram?
- Não, Alteza. A maré refluiu. Eles conversaram por algum tempo e galoparam a toda velocidade de volta à cidade. Vim direto para avisá-lo.
- Ela voltou para Stewart. Alexander deveria ter-lhe dito que eu estaria no Traveller's. - Furth murmurou para si mesmo. Achou estranho Alex ter retornado a Londres. Teria interpretado de maneira errônea o relacionamento entre Alex e Kate?
- Como disse. Alteza?
- Não foi nada, Edmund. Pode descansar.
- Obrigado, Alteza. - O homem fez uma cortesia. Meia hora mais tarde, o segundo homem voltou para apresentar o relatório.
- Um homem idoso chegou à Cale House. Poucos minutos depois o conde e ele tornaram a sair. Milorde usava roupas velhas e parecia um plebeu.
Martin sentou-se em uma poltrona.
- Então Alex vai para Calais e com a guerra em curso - murmurou.
Nas últimas semanas o conde de Everton vinha se comportando de maneira não usual. Um fato que coincidia com a chegada de Kate a Londres. Deduziu que não se enganara na interpretação do estado de espírito de Alex. Aborrecido com os acontecimentos e ao mesmo tempo mais calmo, levantou-se e foi acordar o mordomo. Teria de tomar algumas providências.
Calais estava em pior situação do que pouco menos de um mês antes, quando Kate deixara a França. Carregando uma valise com suas roupas e duas mil libras, estava bem alerta aos ladrões, pedintes e desertores do Exército que perambulavam pelas ruas. O mais honesto seria não haver trazido o dinheiro, mas com certeza teria de usá-lo. Para Alex, não faria falta.
Além disso fora uma indenização muito pequena para o que Alex fizera. Sabendo como ela odiava o tio, chamara Furth para o encontro. Alex não tinha o direito de imaginar que ela precisava de proteção como se fosse uma menina indefesa. Kate Brantley podia defender-se muito bem sozinha. Alex que fosse para o inferno, ajudado por Devlin. Ela pouco se importava.
Não encontrou o pai no minúsculo aposento que ocupavam não muito longe da zona portuária. Constatou, aliviada, que ele ainda morava ali. Tirou o dinheiro da sacola e enfiou a valise debaixo do catre. O quarto deles já fora arrombado. Sentir-se-ia mais segura se levasse as notas junto ao corpo.
Hesitou antes de sair à procura do pai. Ele ficaria furioso por ela ter voltado por conta própria e pela confusão que deixara em Londres após a partida. Abriu o guarda-louças pequeno e velho. Como de costume, nada havia para comer. Desde o jantar na casa dos Downing, havia aproximadamente vinte e quatro horas, não se alimentara. Foi para a rua. Teria de comer em uma das tavernas locais.
Para entrar no L'Ange Déchu, teve de empurrar um ferreiro enorme e bêbado que ocupava a porta. Imaginou a expressão de Francis Henning se a visse ali dentro.
- Kit! - Bertrand chamou-a atrás do balcão e ergueu duas canecas. - Bem-vindo, rapaz!
Kate cumprimentou-o e sentou-se perto da lareira.
- Obrigado, Bertrand - ela respondeu em francês. Pediu uma sopa e bolinhos.
Parecia estranho expressar-se em francês depois de quase um mês falando e raciocinando em inglês, exceto pelos insultos que dirigira a Alex. Teria de tomar cuidado. Em tempos de guerra, qualquer deslize seria perigoso.
- Kit! - a voz jovial de Stewart Brantley soou da entrada. - Bem-vindo a Calais, meu filho.
Kate levantou-se, sorridente e foi beijada no rosto. Não viu desprazer no rosto de seu pai. Impossível acreditar na acusação de Alex. Admitiu que o pai era hábil em disfarçar emoções. Recuou, fez sinal para ele sentar-se e pediu uma garrafa de cerveja.
- Kate - Stewart olhou para os lados e sentou-se. - Por que saiu de Londres e deixou seu primo?
- Eu estava preocupado com o senhor - Kate respondeu no mesmo tom. - Achei que viesse me buscar antes de voltar para cá.
Ele se inclinou para a frente e demonstrou aborrecimento.
- Sei muito bem o que faço. Eu iria buscá-la assim que fosse oportuno.
- Desculpe-me por ter-me angustiado à toa. - Kate irritou-se pela sugestão que deveria confiar cegamente no pai.
- Está com raiva? Pensei que lhe agradaria ficar mais alguns dias com o primo.
Havia a possibilidade de o pai haver descoberto que Alexander Cale era o nobre procurado por ele. Resolveu nada dizer. As perguntas inevitáveis seriam muito dolorosas.
- Por que eu haveria de querer ficar mais tempo com um bastardo arrogante?
Stewart Brantley pediu a Bertrand uma tigela de cozido.
- Por nada.
- Por falar no assunto, Fouché atirou em Hanshaw antes de eu lhe dar alguma informação. Papai, se o conde tem seus próprios informantes, para que o senhor precisava de mim em Londres?
Stewart bebeu um gole de cerveja.
- Eu me recuso a deixar meu bem-estar físico e monetário nas mãos de Fouché.
Kate não gostou de ser manipulada sem saber dos motivos.
- Fouché sabe... a meu respeito.
- Isso não importa - ele alegou com frieza. - Deixaremos a França em pouco tempo. - Tomou mais um pouco da bebida. - Independentemente do resultado do conflito, poderemos ter lucro em outro lugar.
Ficar para sempre longe de Alex seria um alívio. E seria terrível.
- Está bem.
- Kate, por acaso Alex satisfez o débito de honra para comigo? - O pai olhou o caneco.
Kate deu de ombros e evitou encarar Stewart.
- Quando partiremos?
- Kate, ele a levou para a cama e... Ela empalideceu.
- Papai!
-...por causa da humilhação, a ofendida correu de volta para casa. Estarei errado? Deveria ter ficado lá até eu voltar, Kate. Conforme o combinado.
Kate não podia acreditar que o pai houvesse planejado tudo. Esperava, no mínimo, que ele jurasse defendê-la. E, na verdade, ele pretendera jogá-la na cama de Alex e usar a prerrogativa em benefício próprio.
- Não fugi por causa dele - Kate murmurou. - Alex apresentou-me a uma pessoa a noite passada.
- Quem?
- Creio que Alex estava preocupado com sua demora em vir buscar-me...
- Ah, estava?
- E por eu estar sozinha, sem família, apresentou-me ao duque de Furth.
Kate desconfiava que a atitude de Alex fora para protegê-la. O pai perdeu a cor e levantou-se, derrubando a cadeira.
- Falou com aquele... desgraçado?
- O suficiente para desculpar-me e sair. Stewart suspirou, endireitou a cadeira e sentou-se.
- Papai, sempre confiei no senhor. Não sei por que não confia em mim. Não sou mais nenhum bebê.
- Sei disso. E Alex também não. Sei que se tornou um dançarino com bom jogo de cintura, Kate. Mas não pense em dançar comigo. E jamais com Fouché, para seu próprio bem. Pelo menos enquanto ele estiver em Londres.
- Ele não está mais lá.
- Droga! Tem certeza? - Ele falou em inglês e levantou-se diante da afirmativa da filha. - Eu a verei pela manhã.
- Aonde vai? - Kate atirou algumas moedas na mesa e seguiu-o.
Apesar da noite quente de verão, fogueiras eram acesas nas ruas e pessoas se reuniam em volta para tomar vinho barato. A tensão era palpável no ar. Era provável que Napoleão já houvesse chegado à Bélgica. Assim como o duque de Wellington e a armada britânica. A França, apreensiva, esperava o desenlace.
- Estou aguardando um carregamento - explicou o pai. - Pensei em manter-me afastado por mais alguns dias, no caso de Fouché ser mal-sucedido. Mas como ele está aqui, certamente virá buscar a encomenda.
- Que espécie de... encomenda? - Kate não queria mais mentiras, segredos e muito menos admitiria ser usada.
Stewart voltou-se e cruzou os braços na altura do peito.
- O que está pretendendo insinuar, filha?
- Acho que o senhor está contrabandeando armas para Napoleão. E quero saber o motivo.
- Porque ele perderá a guerra e me deixará rico. E não teremos mais de viver na infecta Saint-Marcel.
- Então o senhor pretende matar soldados ingleses para engordar seu bolso. Posso entender o contrabando de mercadorias para Bonaparte visando a sobrevivência. Mas armas? E para matar compatriotas?
- Eles não são meus conterrâneos! Se a ilha inteira afundasse no mar do Norte, eu pouco me importaria.
Kate passou a língua nos lábios e passou a mão sobre o paletó, por cima do dinheiro.
- E se não precisássemos vender as armas para ficarmos ricos?
- Do que está falando?
Ela acabaria por revelar ao pai o que trouxera, mas não naquela noite.
- Nada em especial. Mas se não fosse necessário... O pai agarrou-a pelo braço e sacudiu-a.
- Não tenho tempo para sonhos, Kate! Nem desejo ser questionado por minha filha que passou algumas semanas em uma mansão londrina e deitou-se com um conde! Com certeza não foi a primeira nem será a última a ocupar a cama dele. Eu tomo as decisões nesta família, está claro?
Kate soltou-se e fitou-o, confusa. Por causa das mentiras de seu pai, abandonara a oportunidade de ser feliz. Fugira do único amor de sua vida. Reconhecia, porém, que as mentiras e as maquinações de Stewart Brantley haviam permitido que eles não morressem de fome durante treze anos e em períodos de guerra. Além disso, para onde ela iria?
- Está bem, papai.
- Boa menina. - Ele se afastou. - Eu a verei mais tarde. Kate sacudiu a cabeça.
- Irei com o senhor.
Ele fez um gesto para ela precedê-lo.
- Criança de meu coração.
- Não sou mais criança - Kate murmurou, limpando as lágrimas com as costas da mão.
O conde de Everton achava que ela era uma traidora. Era o que ela se tornaria.
- Acalme-se, milorde. - Hanton McAndrews abaixou-se para conferir se as cordas que amarravam Will Debner ainda estavam firmes. -- Se continuar gritando desse jeito, atrairá a polícia local.
- Não estou gritando - Alex levantou-se e foi até uma das janelas fechadas e deterioradas do velho armazém.
Não ousavam abrir nenhuma delas para ventilação. Os sons da movimentação das ruas repercutiam no beco. Os cidadãos ficavam cada vez mais agitados com o ressurgimento da batalha entre Napoleão e os britânicos. Era preciso evitar mais problemas.
- Estou apenas preocupado, Hanton. Muito preocupado.
- Nossos homens lograrão êxito - Hanton assegurou. - Eles conseguiram uma vitória sobre o corso uma vez e tornarão a derrotá-lo.
- Mas nós ouvimos as notícias antes de embarcarmos. - Kate poderia estar a caminho de Paris, enquanto eles esperavam a chegada de Stewart. - Bonaparte está perseguindo Blücher. Assim que o derrotar, irá atrás de Wellington e...
- Isso nunca acontecerá - McAndrews interrompeu-o, cruzou os braços e encostou-se na parede.
- Admiro seu otimismo, mas tudo isso me faz pensar em um revés. - Alex foi até a pilha de caixotes e sentou-se no mais próximo. - Será que o príncipe me agradecerá por interceptar alguns mosquetes?
- Milorde já fez muito mais do que a maioria.
- Não preciso de simpatias, meu velho.
- Eu sei. Estou apenas me lembrando como seu pai não queria milorde envolvido em conflitos armados. Mesmo assim, tinha muito orgulho do filho.
Alex deu um pontapé em um pedaço de madeira velha.
- Ele pensaria que estou me comportando como um idiota.
- Com certeza. Eu gostaria de conhecer essa jovem que o fez entrar na França em plena guerra.
Alex deu um gemido. Não saberia explicar a súbita importância de Kate Brantley em sua vida. A ponto de arriscar a vida pela oportunidade de se desculpar com ela. Ele a queria de volta. Com o coração apertado, não conseguia se imaginar sem Kate.
Gerald tentara convencê-lo de que se tratava de orgulho ferido por nunca ter sido rejeitado. E o primo esquecera que Mary o rejeitara durante o casamento. Apesar do desalento, fora capaz de recuperar-se. Seus sentimentos por Kate tinham o impacto de um furacão. O oposto da brisa leve que experimentara por Mary Devlin Cale. A intensidade das emoções não lhe deixavam alternativas. Teria de seguir Kate até o fim do mundo para encontrá-la.
- Tem certeza de que Stewart virá buscar o carregamento pessoalmente? - Alex perguntou ao prisioneiro.
As caixas tinham sido levadas a bordo e desembarcadas no porto de Calais. Foram postas em uma carroça e trazidas até o depósito indicado por Debner. Depois de carregar tudo para dentro do recinto imundo, encontravam-se sujos e cansados, mas felizes por estar vivos. Alex torcia para que Furth e George jamais descobrissem detalhes do plano. Embora desconfiasse que o príncipe exigiria uma explicação.
- Tenho. Só não sei quando. Stewart Brantley é um camarada muito singular.
Alex decidira não amordaçar o prisioneiro. Debner sabia que os franceses matariam a todos se os descobrissem. Apesar de queixar-se das cordas e do calor, mantinha silêncio sempre que ouvia alguém se aproximar do barracão. Alex esperava que o príncipe George fizesse vista grossa ao fato de ele ter emprestado Debner, isto é, tirado o homem da cela de Old Bailey sem pedir permissão. E desconfiava que a generosidade e o perdão do príncipe dependeriam mais do sucesso de Wellington do que do seu.
- Rezo para que Stewart venha logo - Hanton resmungou. - Com vitória ou derrota, não quero estar aqui quando os franceses escutarem as notícias. Já estão agitados o suficiente, sem saber de nada. De qualquer modo, eles nos espetariam só para se divertir.
- Eu o avisei para partir com o navio - Alex lembrou-o.
- Eu não poderia abandoná-lo, milorde. Jamais me perdoaria.
- Obrigado, Hanton. - Alex comoveu-se. - Mas se Stewart Brantley não aparecer nas próximas vinte e quatro horas, irei a Paris. Tenho de encontrá-la.
- Perdão, milorde. Ficou maluco?
- Creio que sim.
- Eu não vou a Paris - Debner resmungou.
Alex não lhe deu ouvidos. Não cessaria a busca enquanto não encontrasse Kate. Até se apaixonar por ela, não conhecera o significado daquele sentimento. Seu amor seria de Kate para sempre. Ela era única. E teria de perdoá-lo.
Hanton suspirou.
- E eu terei de ir com milorde.
Escurecera. Pelo beco haviam passado dois grandes grupos de manifestantes gritando slogans contra os ingleses. A situação tendia a piorar. Alex rezou para Kate estar em local seguro. Às dez e meia Hanton espiou por uma das frestas e fez sinal para Alex se aproximar.
- Uma carroça parou em frente - o escocês murmurou. - Dois homens vêm para cá. Um deles tem uma pistola.
Hanton afastou-se e Alex espiou. Apesar de enxergar apenas partes das pessoas, teve certeza de que o mais esbelto era Kate.
- Graças a Deus - sussurrou.
- São eles? - Hanton perguntou junto a seu ouvido.
- Sim.
- Será melhor nós nos escondermos.
Relutante, Alex afastou-se da janela. Hanton ajoelhou-se na frente de Debner e cortou as cordas.
- Lembre-se de nosso trato. - Alex parou diante do contrabandista. - Se nos ajudar, nós o deixaremos em um local seguro perto de Londres.
Debner gemeu e ficou em pé.
- Sim, milorde.
Alex subiu na pilha de caixas e alçou-se sobre uma das vigas que sustentavam o teto. Hanton passaria por contrabandista.
Alex teria de esconder-se e esperar. Não tinha intenção de usar a arma que estava no bolso do sobretudo.
Surpreendia-o admitir os motivos que o haviam feito vir até ali. Simplesmente não imaginava sua vida sem Kate. Se ela fosse espiã e traidora, não voltariam para a Inglaterra. Era dono de uma pequena propriedade na Espanha - herança de sua mãe - e a Coroa não os alcançaria naquele país.
Hanton foi até a porta e Debner chegou perto dos caixotes. Alex ajeitou-se sobre a viga poeirenta. Quando soou a primeira pancada leve na entrada, Alex tirou uma teia de aranha do rosto e esforçou-se para respirar sem ruído.
Hanton olhou para cima, fez um sinal e abriu a porta. Stewart Brantley e a filha cumprimentaram Debner, olhando com desconfiança para Hanton e entraram. Kate parecia cansada e a resignação em seu olhar era de cortar o coração.
- Sr. Debner, perdoe-nos pelo atraso. - Stewart foi até os caixotes e bateu em um deles com a ponta da bota. - Eu o recompensarei por seu tempo perdido.
- De qualquer forma, eu nada poderia fazer com eles.
- Sempre se acha alguma utilidade - Stewart comentou com cinismo e bateu em outro caixote. - Vamos conferir minha mercadoria e levar tudo para a carroça. As caixas seguirão para a Bélgica esta noite.
Hanton e Debner tiraram uma caixa e deixaram-na no chão. Kate fitou a quantidade de caixotes, fechou os olhos por um instante a aproximou-se do pai.
- Papai - ela pediu em um fio de voz. - Não faça isso, por favor. Podemos esconder as caixas até o final da guerra e vendê-las depois.
- E ter metade do lucro? - o pai retrucou. - Como viveremos até lá?
- E se eu tiver meios de sustentar-nos durante esse tempo?
- Por acaso possui dez mil libras? - Stewart ergueu uma sobrancelha. - Pois é isso que devemos ao conde de Fouché.
- Papai, o senhor estará matando pessoas. Esse é um dinheiro sujo de sangue.
- Mas não o nosso.
Kate não mentira. Ela ignorava a natureza da mercadoria. Era uma contrabandista, mas não traidora. Alex conteve vontade de pular de cima e tomá-la nos braços. Teria de convencê-la de que fora um idiota e de que a amava.
Eles abriram a tampa do caixote. Stewart inclinou-se e afastou a camada superior de palha e praguejou, fuzilando Debner com o olhar.
- Mas o que é isso?
Um cheiro desagradável espalhou-se pelo depósito. Kate espiou por cima do ombro do pai. E a expressão de espanto foi acompanhada por um grito abafado.
- Parece cheiro de cebola - ela fitou Hanton que fingia estar embasbacado.
Alex observou Stewart com satisfação. O pai de Kate estava vermelho de tão furioso.
- Você sabia disso, Kate?
- E como eu poderia saber, papai?
- E como tomou conhecimento de que eu contrabandeava armas?
- Eu... ele me contou.
- Ele, quem? Furth?
- Alex.
- Misericórdia! Então foi ele... desde o começo!
- Eu sabia que Alex estava atrás do senhor, mas não imaginei que ele interceptara o carregamento. De qualquer forma - ela apontou os caixotes - estou satisfeita.
- Depois de tudo o que fiz por sua causa, ainda tem coragem de me dar as costas? - Stewart espumava. - Uma pena que tenha abandonado seu amante em Londres. - Segurou-lhe o queixo. - Mas está na França, com um carregamento de cebolas e uma dívida de dez mil libras com o conde de Fouché. O conde de Everton salvou alguns soldados ingleses e nos condenou à morte.
- Uma lástima - uma terceira voz disse em francês e Jean-Paul Mercier entrou no depósito. - Ainda mais que os mosquetes eram destinadas às forças francesas reunidas na fronteira da Bélgica. Alguém terá de pagar por isso, acreditem.
Dois homens armados entraram atrás dele. Fouché afastou-se e tirou duas pistolas do cinto.
Alex procurou atrair a atenção de Hanton, mas não houve tempo. O escocês agarrou a tampa da caixa e atingiu com ela o estômago de um dos homens de Fouché. A madeira estilhaçou-se e o camarada caiu no chão sem um gemido. O conde e o outro homem se voltaram contra McAndrews. Alex disse uma imprecação e pulou. Atingiu Fouché no peito e os dois foram para o chão.
Alex percebeu o cano da pistola quase encostada em seu rosto e rolou de lado. Levantou-se e olhou para o belo rosto de Kate.
- Olá, meu amor! - ele a cumprimentou com alegria. Kate olhou de viés de maneira quase imperceptível e Alex atirou-se ao lado oposto de Fouché. O segundo auxiliar veio para cima dele girando a pistola. Alex abaixou o corpo e disparou um soco violento. O camarada estatelou-se de costas no chão.
Hanton prendeu Fouché de encontro à parede. Alex virou-se e recebeu uma pancada no queixo.
- Pare com isso, Kate!
Kate fitava-o com as pernas afastadas, pronta para atingi-lo outra vez, caso ele avançasse. Os olhos verdes brilhavam de ódio e Alex não pôde conter o sorriso de satisfação ao vê-la sã e salva.
- Não me olhe dessa maneira, Alex. Eu já lhe disse que nunca mais queria vê-lo. Não sei o que está fazendo aqui, mas...
- Alexander!
Com o grito de Hanton, Alex segurou Kate e jogou-se com ela no chão. O tiro passou por cima deles. Alex abraçou o corpo flexível de Kate e rolou para o lado. Viu Debner ir atrás do terceiro francês e olhou para Kate.
O chapéu de Kate voara e os cabelos loiros espalharam-se sobre o braço de Alex. No rosto, um arranhão e os lábios entreabertos preparavam-se para soltar mais uma imprecação. Alex beijou-a.
- Sua partida súbita não permitiu que eu me desculpasse - ele murmurou.
- Saia de cima de mim! - Ela o esmurrou no ombro. - Eu o odeio! Não venha me dizer que fez esse trajeto todo para pedir-me desculpas. Seu desejo é prender meu pai.
Alex sacudiu a cabeça.
- Eu só poderia encontrá-la por intermédio dele.
Atrás deles, Hanton praguejava. Alex virou-se. O escocês se empenhava em nova batalha, mas Alex voltou sua atenção para Kate.
- Mentira - ela o acusou. - Milorde nem mesmo fala francês e veio atrás de mim no meio de uma guerra?
- Eu falo francês.
- Não fala!
- Je suis un bâtard, un boeuf stupide, un bravache e un fou.
- Milorde está repetindo os insultos que eu lhe dirigi.
- Non. Ce n 'est pas...
Alex sentiu a boca do cano de uma arma pressionada na têmpora direita.
- Saia de cima de minha filha, Alex - Stewart Brantley avisou-o com voz baixa.
Sem desfítar Kate, Alex ergueu-se devagar apoiado nas mãos e joelhos. Poderia jurar que ela estava preocupada. E com ele.
- Papai, não atire. - Kate levantou-se depressa. - Eu darei um jeito nisso.
- Permita-me a honra - Fouché aproximou-se.
Se Kate não estivesse entre eles, Alex teria se desviado. Assim, a bala atingiu-o no ombro esquerdo. O impacto jogou-o no chão.
Kate atirou-se sobre Fouché com um grito desesperado, mas ele a jogou contra a parede.
- Bastardo! - ela gritou e tentou atingir novamente Fouché.
- Kate! - o pai chamou-a. - Vamos embora.
Kate ignorou a ordem do pai. Ajoelhou-se ao lado de Alex que, de costas, estava com os olhos fechados. A mancha de sangue se espalhava na roupa de camponês que ele usava.
- Alex... - Kate acariciou-lhe o rosto com a mão trêmula. Ele descerrou as pálpebras. Kate pensara que nunca mais veria o azul daquele olhar.
- Dites moi ques vous ne me deteste pás - Alex disse em voz baixa.
- Eu o odeio - ela sussurrou. - Milorde mentiu para mim a respeito de tudo. Muito mais do que eu.
- Não é bem assim.
- Milorde, está tudo bem? - Hanton perguntou do outro lado com voz tensa.
Kate olhou para o escocês e entendeu o motivo. Beloche estava com uma arma apontada para ele. Os dois estavam feridos e, se não fosse pela arma, poder-se-ia dizer que o escocês grandalhão vencera a luta.
- Ainda não chegou minha hora, Hanton. - Alex gemeu, tentando sentar-se.
- Está muito enganado, Alex - Fouché contestou. - Onde estão meus mosquetes?
- Não lhe direi nem depois de morto.
Kate assustou-se. Fouché era um assassino. Provocá-lo seria uma idiotice.
- Acha que sou algum idiota? - Jean-Paul retorquiu. - Não é apenas sua vida que está em risco aqui dentro.
Alex endireitou as costas, amparado por Kate.
- Estão em Londres. - Alex procurou não gemer de dor.
- Pois trate de recuperá-las para mim.
- Jamais farei isso.
Fouché, o lábio sangrando e machucado pela colisão com Alex, puxou Kate pelo braço.
- Milorde voltará a Londres e trará as armas.
Com a pistola apontada na cabeça de Alex, o conde fez Kate ficar em pé. Ela já vira aquele olhar de desprezo e ódio quando ele matara o taverneiro Falo por causa de um uísque aguado.
- Alex... - Kate tentou preveni-lo, mas o conde impediu-a de prosseguir e beijou-a com força. - Maldito! - Ela procurou soltar-se e levantou a mão livre para dar-lhe um soco.
A reação de Fouché foi imediata. Esbofeteou-a com violência e segurou-a pelos cabelos.
- Como pôde perceber, Alex, terei com que me ocupar enquanto vai buscar meus mosquetes. Eu lhe garanto. Saberei tirar bom proveito dela.
Alex, muito pálido, comprimia os lábios entre dor e ódio. Stewart Brantley, em uma atitude sensata, preferiu esperar o momento certo para intervir.
Alex apoiou-se no braço sadio para ficar em pé.
- Há dois minutos, eu teria concordado em deixá-lo viver, Fouché.
- Milorde - Hanton advertiu-o, observando Beloche, Guillaume, Fouché e o conde. - Não tome nenhuma atitude intempestiva.
Fouché deu um sorriso maldoso e puxou os cabelos de Kate.
- Ameaças vazias não me impressionam. Traga os mosquetes. Se fizer isso em quarenta e oito horas, eu lhe entregarei o que houver sobrado dela. Se ela ainda o quiser, depois de ter ficado comigo.
- Por favor, Alex, faça o que ele está pedindo. - Kate deu um soluço e fitou Alex com olhar entendido.
Alex não poderia adivinhar a intenção de Kate, mas de repente gemeu e curvou-se, segurando o ombro ferido. Kate rezou para que ele estivesse fingindo. Num movimento brusco, lateral e para baixo, tirou o punhal da bota e enfiou-o na coxa de Mercier.
O sangue jorrou na mão de Kate e Fouché cambaleou para trás. Alex atingiu-o e os dois foram ao chão. Em meio à surpresa, Hanton e Debner atacaram Beloche e Guillaume.
O conde conseguiu recuperar-se primeiro. Arrancou a faca da perna e com ela ameaçou Alex.
- Milorde é um homem morto - Fouché rosnou. - Tu étes mort, bâtard.
Alex abaixou-se e empurrou Fouché por cima da pilha de caixotes. O de cima balançou e despedaçou-se no piso. O cheiro forte de cebolas inundou o ambiente.
Do lado de fora, os sinos da igreja começaram a soar. Ao longe, ouviu-se uma explosão que aparentava ser oriunda do mar. Durante a tarde, Kate e o pai haviam visto grupos de soldados que se dirigiam para o Sul, mas ele afirmara tratar-se de desertores.
Alex escorregou nas cebolas. Fouché aproveitou a oportunidade e feriu o rosto de Alex.
- Não. - Kate estremeceu ao ver a listra de sangue na face de Alex. Teria de impedir a luta. Adiantou-se, mas foi contida pelo pai que a segurou pelo ombro.
- Vamos embora - ele cochichou. - Eles estão... - Vá o senhor, papai. Eu ficarei.
- Com ele? - O pai apontou Alex. - Não seja louca. Encontraremos outro...
- Não quero outros, papai. - Kate recuou.
- Havia uma hora, nem podia escutar o nome dele. Kate, será que sua lealdade esvaiu-se após uma noite de prazer? Até mesmo os sacrifícios que tenho feito?
- O senhor me ensinou a lutar pelo que desejo. E eu...
- Vejo que é egoísta e volúvel como sua mãe. Eu não deveria ter perdido meu tempo...
Escutaram-se tiros do lado de fora.
- Kate, não perca seu coração - o pai aconselhou-a. - Permita que sua mente vença o jogo.
- Não quero mais jogar nada, papai - ela sussurrou e virou-se ao escutar uma imprecação.
Fouché tornou a atacar e Alex recuou, caindo sobre o caixote quebrado.
- Milorde é um homem morto! - Fouché gritou e ameaçou o peito de Alex com o punhal.
Kate gritou e jogou-se para a frente, mesmo sabendo que não adiantaria. Alex enfiou a mão no bolso. Uma detonação reverberou pelo armazém e Jean-Paul caiu para trás, desmontado como uma marionete.
Kate notou a imobilidade de Fouché e o buraco enfumaçado no casaco de Alex. Ele a fitou por um instante e desmaiou.
- Papai, não poderei ir com o senhor. - Esperança, realidade e sonhos se mesclavam em sua mente. - Por favor, me perdoe.
- Isso é uma grande tolice, Kate. - Stewart, em um gesto surpreendente, abraçou-a com força, suspirou e olhou Alex de relance. - Ele foi um menino turbulento. Talvez minha melhor ação tenha sido salvar-lhe a vida. Diga-lhe que estamos quites. Repita o mesmo para Martin.
Mais tiros e gritos soaram de perto.
- Eu direi, papai, se tem certeza de que devo falar com... Stewart foi embora, sem esperar o final da frase. Hanton e Debner arrastavam Alex para fora das madeiras quebradas.
- Au revoir.

Capítulo XIII

- Cuidado, homem! - Alex reclamou, muito pálido. - Está doendo.
- Então não deveria ter levado um tiro - Hanton respondeu enquanto afastava a camisa do ferimento que sangrava.
Kate aproximou-se. Sabia que a dor era intensa, apesar das palavras jocosas.
- Você deveria ter se abaixado - ela comentou.
- Eu me lembrarei da próxima vez - Alex retrucou com voz fraca e gemeu de novo.
- Senhorita, eu agradeceria se me ajudasse a enfaixar o ombro dele - pediu Hanton.
Kate sentou-se no caixote ao lado de Alex.
- Kate - ele sussurrou quando sentiu na coxa o roçar da perna de Kate.
Ela pressionou na ferida uma tira de pano dobrada, que Hanton lhe entregara.
- Fique quieto ou sangrará até morrer - avisou.
- Isso mesmo - concordou Hanton.
- Desculpem-me.
Alex não conteve os gemidos enquanto o escocês e Kate o enfaixavam. Segurou com força o cotovelo de Kate e encostou a cabeça no ombro dela.
- Kate, meu... sócio, Hanton McAndrews - murmurou entre protestos de dor. - Hanton, Kate Brantley. A mulher que não quer se casar comigo. - Levantou a cabeça e fitou-a. - Onde está seu pai?
- Foi embora. Você não poderá prendê-lo.
Alex sacudiu a cabeça, já com o semblante mais descontraído.
- Eu lhe disse que não vim à procura dele. - Alex cingiu-a com o outro braço. - Fico satisfeito de saber que não o acompanhou.
- Alguém teria de tomar conta de você.
- E esse o único motivo? - Alex roçou a face nos cabelos de Kate.
Ela se arrepiou.
- E verdade que veio à França por minha causa? Depois de tudo o que aconteceu?
- Claro que sim.
- Mesmo sabendo que não faria nenhum prisioneiro?
Na rua, sucediam-se tiros e gritos. Debner, com expressão sombria, espiava a confusão pela fresta da janela.
- Decerto George tratará de prender alguém quando chegarmos a Dover - Hanton comentou, fitando Alex.
- Alex, o que houve? - Kate imaginou o que ele teria feito para chegar a Calais.
- Esqueça, Hanton. - Alex afastou o braço para que pudessem vestir-lhe a camisa. - Eu desobedeci a algumas normas. Nada sério.
Ele se levantou e sentiu-se tonto. Kate passou o braço dele sobre seus ombros.
- Não acredito.
Alex sorriu e puxou-a mais para perto.
- Estraguei sua gravata. Terei de comprar-lhe outra.
- Alex, o que deseja de mim?
- O resto da sua vida, Kate.
- Mas eu sou...
- Discutiremos isso na volta. E nem pense em fugir outra vez.
- No momento não tenho mesmo para onde ir. - Kate escondeu a excitação com palavras casuais.
Uma explosão bem próxima sacudiu o armazém. Kate abaixou a cabeça quando a sujeira do forro caiu sobre eles.
- Sair de Calais poderá ser mais difícil do que supúnhamos - Hanton resmungou.
- Debner, pode ouvir o que eles estão dizendo? - quis saber Alex.
- Napoleon il se bat, la défaite, la défaite - Debner falou.
- Napoleão caiu, derrotado, derrotado - Kate traduziu.
- Graças a Deus. - Alex fechou os olhos.
- Eu agradeceria a Deus se esse fato nos permitir deixar a França o quanto antes. - Hanton não escondeu a preocupação.
- E como você pretende sair de Calais? - Kate agarrou Alex pela cintura.
- Nós alugamos um barco velho de pesca que está ancorado no porto. Teremos de encontrá-lo.
Debner abriu a porta e os quatro foram para a rua. Kate se lembrou do Inferno de Dante. Construções em chamas lançavam fumaça negra em direção ao céu escuro. Grupos de pessoas carregavam tochas, proferindo ameaças e obscenidades contra os ingleses, e lutando entre si para descarregar a frustração e a raiva. Hanton ia à frente, indicando os melhores caminhos. Alex caminhava com Kate nas sombras, e deteve-se quando um pelotão de soldados franceses passou rumo ao Leste e ao Sul.
- Eles devem estar voltando para Paris - Alex deduziu.
- Debner e eu vamos aprontar o barco - Hanton recuou para avisá-los. - Não quero ver você ferido esperando no cais.
- Tenha cuidado. - Alex não escondeu o desagrado por dividir o grupo.
- Esse é meu lema. - Hanton levou Debner e os dois sumiram na viela.
- Você estaria mais segura com eles - afirmou Alex. Kate preocupava-se mais com ele do que consigo própria.
- Matar Fouché poupou meu pai de uma dívida de dez mil libras. Tentarei pagar...
- Chega de jogadas, Kate. Eu amo você e quero ficar a seu lado. Mas não por dever ou meia dúzia de mentiras. Entendido?
- Você me ama? - Kate sussurrou, imersa na magia das palavras.
- Creio que desde a primeira em que a vi - Alex respondeu no mesmo tom e encostou-se na parede. - E não adianta dizer que é indiferente a mim, porque já a escutei dizer que me ama.
- Eu sei. Foi quando confessei em francês.
- Kate, vamos esquecer as mentiras e os fingimentos de ambos os lados. - Alex fechou os olhos e através dos lábios comprimidos deixou escapar mais um gemido de dor.
- Alex?
- Estou bem, não se preocupe. - Ele descerrou as pálpebras. - Uma pena não poder aproveitar mais este momento.
Ele tornou a se apoiar nos ombros de Kate. Deixaram o abrigo das sombras e caminharam o mais depressa que lhes foi possível. As ruas se enchiam de pessoas. As notícias da derrota de Napoleão se espalhavam depressa. O brilho alaranjado a oeste sugeria que havia construções em chamas na zona portuária.
Kate e Alex viraram em direção ao Norte para evitar a multidão enfurecida. Na frente deles, um grupo de jovens atacava uma loja de roupas, jogando pedras e tochas nas janelas. Imediatamente o fogo se alastrou e iluminou metade do quarteirão. Alex tentou recuar, mas não houve tempo.
- Vive Napoleon! - um deles gritou ao vê-los.
- Vive Napoleon - Kate respondeu.
- Qui est que c'est? - um outro perguntou e encostou o dedo no ombro de Alex.
Alex estremeceu e resmungou de dor.
- É meu irmão -- Kate respondeu em francês. - Os malditos ingleses o feriram há dois dias e agora vocês acabaram de queimar nossa casa!
- E como podemos saber se está dizendo a verdade? - um terceiro indagou.
- Querem ver o buraco no ombro dele?! - esbravejou Kate. - E eu quebro o braço de quem encostar a mão nele de novo!
- E para onde pretendem ir? - Um deles pareceu mais convencido diante da demonstração de revolta de Kate.
- Para a casa de meu tio, se não resolverem atear fogo nela também.
Alex cambaleou para a frente e Kate apavorou-se, sem saber se era ou não fingimento. Ela não conseguiria arrastá-lo até o cais.
- Deixe-nos passar! - Ela se esmerou para transformar o medo em indignação. - Poupem sua fúria para os ingleses. Não a desperdicem naqueles que deram o sangue por nós.
Os amotinados acreditaram e, bradando outras frases patrióticas e obscenas, afastaram-se para o Leste, em direção ao armazém.
- Espero que não achem Fouché. - Alex procurou endireitar-se. - Os asseclas dele ficarão felizes em nos identificar.
Eles haviam discutido a respeito de Beloche e Guillaume. Não poderiam levar os franceses para a Inglaterra nem queriam matá-los a sangue-frio. Cordas e mordaças foram usadas para imobilizá-los. Haviam contado com a imobilidade deles pelo menos até se distanciarem de Calais.
- O que acontecerá comigo em Londres? - Kate apalpou o bolso e assustou-se. O dinheiro havia sumido. Foi então que entendeu o motivo do abraço inesperado do pai.
- Nada.
Kate tinha vontade de sair da França o mais depressa possível, mas temia o retorno à Inglaterra.
- Como pode garantir? Talvez eu devesse esperar em Dover por um navio que vá para a Itália ou Espanha.
- Nada disso. Voltaremos para Londres.
Kate acostumara-se a confiar apenas em si mesma.
- Seria um absurdo regressar depois do que fiz, Alex. Não irei.
Alex parou de repente e fez menção de retomar o caminho de volta.
- Então eu também vou ficar.
Kate apressou-se a ampará-lo de volta, antes que ele caísse.
- Não seja tolo, Alex. Isso seria o mesmo que se condenar à morte.
- Não vou deixá-la, Kate.
- Alex. - Uma pedinte parou do outro lado da rua e olhou-os com suspeita. Kate murmurou uma imprecação e instigou Alex para que prosseguisse. - Por favor, não diga esse tipo de coisa. Posso acabar me convencendo que é sincero.
- E por que acha que não é? Estou dizendo a verdade. Kate desejava confiar nele, de todo o coração.
- Meu pai é um traidor - ela insistiu, receosa de que Alex estivesse delirando. - E eu também.
- Eu já disse e repito: não permitirei que nada lhe aconteça.
- Será impossível me proteger de tudo o tempo inteiro, Alex. Hanton garantiu que você está com problemas.
- Ele não sabe o que diz.
Alex tropeçou, e teria caído se Kate não o estivesse segurando.
- Quer descansar um pouco?
- Não podemos perder tempo.
Eles atravessaram uma viela e chegaram a uma rua mais larga, onde manifestantes queimavam uma bandeira do Reino Unido. Passaram pela última rua de lojas e chegaram ao cais.
De repente, Alex se deteve. Um pouco adiante, uma fileira de barcos de pesca estava em chamas. O primeiro deles acabava de afundar.
- Algum deles era o nosso? - Kate antecipou a resposta.
- Era. - Metade do cais fora incendiado. - Está vendo Hanton? - Alex soltou o corpo com desânimo.
- Não. - Kate procurou enxergar através do fogo e da fumaça. - Talvez ele esteja providenciando outra embarcação.
- Preciso descansar um pouco.
Alex fechou os olhos, exausto. No instante em que se aproximaram de um amontoado de caixas vazias e barricas de peixe, Alex sentiu as pernas amolecerem. Kate ajudou-o a sentar.
- Não se pode imaginar flagelo maior. - Ele perscrutou as águas com laivos alaranjados e impediu que Kate lhe examinasse o ferimento.
- Não seja teimoso - ela ralhou. - Deixe-me ver.
- Nada mudou. Ainda dói e está sangrando.
Kate insistiu e ele tomou a afastar-lhe a mão.
- Terei de tratar você como uma criança birrenta, Alex?
- Esqueça isso, Kate.
Ela não se deu por vencida. Ajoelhou uma perna em cima do braço são de Alex e passou a outra por cima dele. Só depois de alguns instantes foi que se deu conta da posição erótica em que se encontravam. Alex fitou-a surpreso, e depois divertido.
- Está bem. Cedo à sua determinação. Mas, por favor, solte meu braço.
Kate obedeceu, lamentando que estivessem em meio a turbas de desordeiros em um cais em chamas. Alex encostou a cabeça em um barril, e Kate afastou com cuidado o colarinho para examinar a ferida. A atadura estava empapada de sangue.
- Sinto muito - ela murmurou.
- O tiro não partiu de suas mãos.
- Você está aqui por minha culpa.
- Para encontrá-la, eu teria ido mais longe. Kate inclinou-se e beijou-o levemente nos lábios.
- Eu te amo, Alex.
- Então pare de ser teimosa e diga que voltará para Londres comigo.
Kate anuiu, sem responder. Ela não sabia o que os aguardava. Voltaria com ele, sem afirmar que ali permaneceria. Não queria mentir para Alex. Nunca mais.
Alex acariciou-lhe os cabelos e Kate assustou-se quando o telhado de uma construção em chamas desabou.
- Nós estamos dentro de um barril de pólvora! - ela exclamou.
Apesar da dor que sentia, Alex beijou Kate, e ela retribuiu com toda a força do seu coração. Nada mais importava. Queria apenas ficar com Alex.
Algo penetrou em sua consciência, apesar da paixão que a consumia. Eram gritos.
- Alex... escute! - Ela recuou, relutante.
- Trouvez l'anglais! Tuez l'anglais! - O som procedia da mais próxima das construções. Encontrem o inglês! Matem o inglês!
- São os homens de Fouché, Alex. Eu lhe disse que deveríamos matá-los.
- Ainda poderemos fazê-lo.
Kate ajudou-o a se levantar, mas Alex se dobrou ao meio e teria caído se ela não o segurasse.
- Alex? - Ela o agarrou pela cintura.
- Estou bem. Apenas um pouco tonto. Vou escondê-la. - Alex tirou a pistola do bolso e carregou-a com a mão esquerda.
- Eu é que vou escondê-lo. Papai e eu temos um quarto ao norte.
- Alguém terá de avisar Hanton.
- Eu o encontrarei.
Os gritos tornaram-se mais fortes. Beloche e Guillaume apareceram na beira do cais, seguidos por uma turba enfurecida. Em instantes Kate e Alex foram avistados.
- Tuez l'anglais! - O grito foi ensurdecedor.
- Venha atrás de mim - Alex ordenou. - Vamos para o beco!
Um tiro de mosquete espocou e a bala atingiu o barril à direita de Kate.
- Vá, Kate!
- Não o deixarei! - Ela se agarrou no braço de Alex que tentava empurrá-la em direção ao beco.
- Kate, não seja tola. Faça...
- Alex! Kate virou-se.
- Reg! - Alex respondeu, mal acreditando no que via. Hanton e outro homem acompanhavam o barão. Reg atirou para dar-lhes cobertura e ouviram-se gritos. Kate e Alex se abaixaram e foram para o outro lado. Hanton deu o grito de guerra dos escoceses e descarregou o mosquete.
O terceiro homem atirou com uma pistola e Kate ficou paralisada. Não se tratava de Will Debner. Alex bateu nela por trás e gemeu por causa do ombro.
- Corra! - Alex ordenou e detonou sua arma.
- É Furth - Kate afirmou e encostou-se em Alex.
- Não me importa. Eles não estão atirando contra nós. Vá!
A multidão estava próxima, sem se intimidar com os disparos que atingiam suas fileiras. Kate pôs o braço de Alex em seu ombro, segurou-o pela cintura e correu.
- Sabe atirar? - o duque de Furth perguntou a Kate assim que ela e Alex o alcançaram.
- Sim!
O duque carregou uma pistola e entregou-a a Kate. Ela mirou Beloche por um segundo e atirou. O contrabandista caiu de bruços. Imóvel. Hanton afastou Alex de Kate e carregou-o em direção ao trecho mais setentrional do cais. Um veleiro estava ali ancorado e, em pé no deque, uma quarta pessoa acenava para eles.
Reg fez sinal para Kate precedê-lo e despejou uma quantidade substancial de pólvora no meio do cais. Kate correu para diante. A explosão às suas costas a fez estremecer. Espiou para trás e constatou que no mínimo quatro metros de molhe haviam desaparecido. Hanshaw e Furth vinham atrás dela. Quando Kate alcançou o barco, Hanton ajudava Alex a subir na escada de corda. Kate estremeceu ao escutar o estampido. A bala que pegou na mão de Hanton e atirou-o para trás no piso escorregadio também atingiu a testa de Kate. Ela foi jogada contra um dos pilares e perdeu o equilíbrio.
- Kate! - Alex berrou, caindo sobre o madeiramento.
- Não se movam! - Augustus Devlin saiu de trás do casco, tirou uma segunda pistola do cinto e apontou o cano nas costas de Alex.
- Kate - Alex murmurou, sem desfilar o sangue que lhe escorria pelo rosto.
- Estou bem. - Kate apoiou-se no pilar para não cair na água.
- Vire-se, Alex.
- Largue isso, Devlin! - Furth ordenou por trás de Kate. - Não temos tempo para isso. Ficou maluco?
Duas balas de mosquete alojaram-se na popa com um ruído oco.
- Completamente - Augustus concordou. - Vire-se, Alexander.
Alex teve de obedecer. Kate endireitou-se, a cabeça latejando. Do outro lado, Hanton ajoelhou-se, segurou a mão ferida com a direita e mirou Devlin com olhar estreitado pela fúria. Reg e Furth estavam em pé atrás de Kate. O povo enfurecido continuava a gritar e a atirar na direção deles.
- Augustus, largue as armas. - Alex comandou. - Agora!
- Milorde deveria ter escutado Kate. Ela sabia. Milorde matou minha irmã e agora encontrou outra. Pensa que poderia divertir-se com a minha morte? Está muito enganado, conde de Everton. Terei minha vingança, Alexander, fria e sanguinolenta.
Kate soltou o pilar e deu um passo à frente com cuidado. Devlin encarava Alex e não poderia ser distraído.
- Eu não a matei, Augustus - Alex procurou falar com calma. - Eu não mentiria. Eu não a amava, mas não a queria ver morta.
Augustus negou com um gesto de cabeça.
- E eu lhe digo que não pretendo ir para o inferno sozinho. Alexander Cale irá à frente, para guiar meu caminho. - Devlin apertou o gatilho.
Kate inspirou fundo, fechou os olhos e pôs-se na frente de Alex. A pistola retumbou. Duas vezes. Kate sentiu um vento quente levantar-lhe os cabelos. Alex atirou-se nela por trás e os dois caíram sobre o piso duro de madeira. Um corpo afundou na água. Ela virou a cabeça. Hanshaw, extremamente pálido, abaixou a arma fumegante. Augustus não existia mais.
- Kate. - Alex abraçou-a, emocionado.
- Estou bem - ela respondeu, trêmula, e agarrou-se em Alex. As lágrimas deslizavam sem controle. Alex estava vivo e Augustus morrera. - Estou bem.
- Graças a Deus, srta. Kate - Hanton murmurou. - Graças a Deus.
- Temos de ir - Furth avisou-os. - A maré não tardará a baixar e eles já estão consertando o píer.
Reg, constrangido, ajudou-os a ficar em pé.
- Ele disse que pretendia ajudar, Kate. Eu deveria tê-la escutado.
Alex segurou-a pelo ombro e virou-a de frente para ele.
- Nunca mais faça uma coisa dessas, Kate.
Kate nunca sentira aquela necessidade imperiosa de proteger a vida de alguém. Era uma sensação assustadora e confortante. Ainda mais ao reconhecer que Alex sentia o mesmo por ela.
- Vamos - Furth insistiu.
O duque ajudou Hanton a ficar em pé e a subir a escada. Os demais os seguiram. Hanshaw e o duque soltaram as amarras e o barco saiu do porto. Eles libertaram Debner e a tripulação que tinham sido trancados por Devlin no porão. Desterraram as velas quando se encontravam longe do alcance dos mosquetes. Foram em direção a Denver, impelidos pela maré e pelo vento.
Kate foi levada para a cabine principal junto com Alex, Reg e o duque de Furth. Alex, preocupado, sentou-a em um banco e pressionou-lhe a testa com um pano.
- Eu mesma faço isso. - Ela tentou segurar a compressa.
- De jeito nenhum.
- Seu ferimento é muito mais grave de que o meu.
- Apesar do esforço que fez para se matar, Kate. Nunca vi tolice maior.
- Então será melhor acreditar da próxima vez quando eu tentar preveni-lo sobre algum amigo. - Kate sentia o olhar fixo de Furth.
- Eu não poderia imaginar que ele me odiasse tanto - Alex murmurou.
- Ah, Alex, sinto muito.
- Posso oferecer-lhes um gole de conhaque? - o duque de Furth adiantou-se.
Alex entregou o pano para Kate e virou-se para Furth.
- Tenho uma dívida de gratidão para com Vossa Alteza. Seu senso de oportunidade é extraordinário.
- Houve um pouco de sorte - Reg alegou. - Furth deduziu para onde milorde tinha ido e Gerald encontrou-me. Nós andamos pelo porto toda a noite até avistar Hanton tentando roubar um barco. Não tínhamos certeza de que estivesse aqui. Milorde poderia ter ido para Paris.
- Nós quase fomos. - Alex fitou Kate de relance. O duque deu uma tossidela.
- Alguma notícia de meu irmão?
- Ele foi embora - Kate respondeu.
- E a deixou? - o duque perguntou com rispidez.
- Eu não quis ir com ele.
- Kate. - O duque suspirou, hesitante. - Sei que lhe disseram coisas horríveis a meu respeito e também que acredita nelas. Não tenho pretensão de mudar seus pontos de vista, mas eu gostaria de dar minha versão sobre os fatos.
- Escute o que ele tem a dizer, Kate - Alex pediu em voz baixa. - Eu o conheço e sei que ele é um homem íntegro. Se não quiser, não precisa encontrá-lo no futuro.
Ela viu o desprazer no rosto de Furth com a última frase, mas ele nada disse.
- Está bem. Escutarei o que tem para dizer, Alteza.
- Tenho de ver como está Hanton. - Reg levantou-se. saiu e fechou a porta.
- Quer que eu saia? - Alex indagou.
- Não ouse. - Kate o fitou, carrancuda.
- Está bem. - Alex deu um leve sorriso.
Furth sentou-se em frente, esfregou as mãos e olhou para baixo. Inseguro e bem diferente do homem descrito pelo irmão.
- Não sei por onde começar. - Ele a fitou.
- Para mim, tanto faz. - Kate não ocultou a rudeza. O duque tornou a suspirar.
- Sua mãe, Anne, morreu de pneumonia. Eu não fiz nada contra ela. E nem poderia. Eu a amava.
Kate quis interrompê-lo, mas o olhar angustiado de Furth impediu-a de falar.
- Meus primeiros anos de casamento com Constance foram difíceis. Foi um enlace contratado por meu pai. De minha futura esposa, eu tinha duas informações: o nome e o tamanho de seu dote. Quando conheci sua mãe, apaixonei-me. Apesar de ela estar noiva de Stewart.
- Vossa Alteza está ultrapassando os limites! - Kate levantou-se e Alex imitou-a.
- Kate, não quero fazê-la sofrer. Mas é preciso que saiba a verdade. Stewart deixou a Inglaterra após a morte de Anne por ela ter-lhe revelado no leito de morte que a filha era minha e não dele. - O duque tornou a abaixar a cabeça.
- Não... - Kate murmurou, imóvel e pálida.
- Santo Deus, Martin, poderia ter usado de maior sutileza - Alex resmungou.
- Milorde sabia? - Kate perguntou em um fio de voz. Alex sacudiu a cabeça.
- Eu suspeitava que faltava uma parte da história, mas não tinha idéia do que poderia ser.
- Acredita em mim, Kate.
- Não sei se eu deveria... - Ela estava cansada. Gostaria de isolar-se para pensar.
- Stewart ficou furioso. O que era perfeitamente compreensível. Ele deve ter suposto que eu pretendia tirar dele a última lembrança de Anne. - Furth inspirou fundo. - Eu os procurei durante muito tempo. Segui a pista dos dois na Espanha e perdi totalmente o contato na Itália. Sempre que surgia uma nova indicação, eu mandava investigar. Nunca recebi nenhuma notícia satisfatória. Mas eu nunca perdi a esperança de encontrá-la, Kate.
Tudo começava a fazer sentido. As mudanças constantes, o ódio aos ingleses e principalmente contra o irmão, o plano de vesti-la como rapaz com a desculpa de salvaguardá-la.
Kate viu a compreensão e a simpatia no olhar de Alex.
- Não sei o que fazer - ela confessou.
- Eu lhe darei tempo para pensar, Kate - falou o duque.
- Sei que não é fácil assimilar fatos dessa natureza. - Ele fez uma mesura e saiu da cabina.
- Não é fácil - Kate repetiu. - Não é mesmo.
- Eu diria que foi uma narrativa incompleta, dadas as circunstâncias - Alex comentou.
- Alex, o que vou fazer? Isso me parece mais uma fantasia de que a realidade.
- É pouco, comparado com o que já teve de enfrentar.
- O duque na certa pretende assumir seus deveres de pai. Por mais que eu reconheça esse direito, não desejo morar com ele.
- É simples. - Alex acariciou-lhe o rosto com o nó dos dedos. - Venha morar comigo.
- Como Kit Riley? Não acho que seja...
- Como a condessa de Everton, Kate - ele a interrompeu. Qualquer donzela aceitaria de imediato o pedido. Mas não uma espiã, filha, ou melhor sobrinha de um contrabandista e filha ilegítima.
- Não posso casar-me com milorde.
- Por que não?
- Ah, por que...
- Eu já não lhe dei provas do quanto a amo? Depois de conhecê-la, entendi como minha vida era solitária. Eu jamais poderia ser feliz ao lado de outra mulher. Je t'aime, ma chère. Eu a amo. Case-se comigo.
Kate não conseguia respirar. Recuou e ele a seguiu.
- Sou uma pessoa ridícula. Não sei fazer nada que as mulheres fazem e...
- Sabe, sim. Ela corou.
- Estou falando de outras coisas. Eu não me enquadro na vida social nem em...
- Case-se comigo - Alex insistiu. - A condessa de Alex poderá se dar ao luxo de ser excêntrica.
- Por que logo eu? Barbara e tantas outras dariam um braço para conseguir um pedido seu.
- Eu morreria sem Kate Brantley a meu lado.
Kate teve receio de que seu coração saltasse para fora do peito.
- Mas eu...
- Quero vê-la usando cachos e vestidos e aqueles sapatos desconfortáveis de bico fino. Desejo vê-la em Alex. Gostaria que me ensinasse a trapacear no jogo. Preciso ouvi-la insultar-me em francês. Ambiciono ver seu sorriso e seus olhos no rosto de meus filhos. Nunca mais quero passar pelo sofrimento de perdê-la.
- Alex...
- Eu a amo, Kate. Case-se comigo. Por favor. Mariez moi, s'il vousplait.
Kate fechou os olhos. Alex beijou-lhe as pálpebras e as lágrimas que deslizavam pelas faces.
- Kate, diga que aceita. Meu coração não suportaria a dor de uma recusa.
Ela abriu os olhos.
- Eu aceito, Alexander Lawrence Bennett Cale.
- Graças ao Bom Deus. - Alex nunca fora tão feliz.
Alex não tinha do que se queixar. Exausto, com arranhões e hematomas pelo corpo, ainda contava com um buraco no ombro. E para melhorar, lutava para não adormecer. Não por receio de ter pesadelos ou morrer por causa dos ferimentos. Mas pelo pavor de acordar de manhã e ver que tudo não passara de um sonho.
Insone, ouvia as badaladas do carrilhão e tentava decidir se valeria a pena ir até à casa de Gerald e Ivy. Precisava certificar-se se Kate não mudara de idéia e fugira.
Ela recusara o pedido de Martin para ficar na Brantley House. O duque entendera a relutância, mas a fizera prometer que não sairia da cidade. Alex e Furth, a contragosto, permitiram-lhe a escolha do local para se hospedar. E, com o coração apertado, o conde de Everton a vira subir na carruagem dos Downing e sumir mais uma vez na escuridão.
Irritado, Alex escutou o relógio soar quatro horas. Pensou na mensagem que recebera do príncipe George. Teria de comparecer a uma audiência assim que voltasse para Londres. A morte de Fouché certamente lhe renderia uma reprimenda pouco menos drástica. Teria de explicar a soltura irregular de Will Debner, a traição e morte de Augustus Devlin e mais uma série de mentiras.
A maçaneta de seu quarto foi girada. Alex estreitou os olhos. A porta foi aberta com cuidado e uma pessoa vestida de paletó e calça esgueirou-se para dentro. Os cabelos loiros e curtos denunciaram de quem se tratava.
- Como foi que entrou aqui? Kate assustou-se e fechou a porta.
- Alex, quer me matar de susto? Pensei que estivesse dormindo. - Ela parou ao lado da cama. - Pulei a janela da biblioteca. Acho melhor mandar consertar a tranca.
- Creio que farei isso somente depois do casamento. Não é todo homem que tem o privilégio de ter a noiva a seu lado para conversar no meio da noite.
Com um sorriso malicioso, Kate subiu na cama.
- E quem disse que vim aqui para conversar? Alex riu, satisfeito.
- Estou ferido, minha querida - ele fingiu um protesto. Kate afastou-se.
- Perdão, monsieur. Não o perturbarei. Bon soir. Alex segurou-a pelo braço.
- Aonde pensa que vai? Não permitirei que abandone um enfermo.
Kate voltou, inclinou-se e beijou-o.
- Ah, melhor assim. - Ela se estendeu ao lado de Alex.
- Baisez moi encore - Alex pediu. - Beije-me novamente. Kate não se fez de rogada e atendeu ao pedido. Desatou a gravata e ajudou Alex a tirar a camisa.
- Acredita em destino, Alex? - Ela passou a ponta dos dedos no contorno da bandagem.
Alex soltou-lhe a fita que amarrava os cabelos e envolveu os dedos nas madeiras brilhantes.
- Eu não costumava.
- E agora? - Kate beijou-lhe o lóbuío da orelha e o pescoço.
- Se eu não estivesse tentando agarrar um sapo - Alex observou o casaco cair no chão por cima da gravata -, não tivesse caído no rio no exato momento em que Stewart Brantley dava seu passeio matinal - o colete foi jogado por cima do monte -, se ele não soubesse nadar e não houvesse pulado na água - a camisa foi tirada pela cabeça -. não poderia ter uma desculpa para, vinte anos mais tarde, trazê-la para espionar os lordes ingleses.
- Então? - Kate tirou a faixa que lhe achatava o busto.
- Eu acredito no destino. E devo dizer-lhe que está muito distraída, srta. Kate. Nem percebeu a surpresa.
- Do que se trata?
- Veja, dois travesseiros. Kate deu uma gargalhada.
- Isso quer dizer que, ocasionalmente, milorde me escuta.
- Eu sempre a escutarei, desde que saiba persuadir-me.
- Ah, que delícia. - Kate experimentou o travesseiro e impediu que Alex se levantasse. - Mas eu quero provar outras das quais eu estava com saudade.

- Não estou gostando disso - Kate murmurou para Alex do lado de fora do salão de baile de Brantley House, lotado de convidados.
- Pois eu, sim.
A porta foi aberta e um criado espiou para dentro.
- Só mais um momento, milorde. - O homem fechou a porta diante da anuência de Alex.
- Estou enjoada, Alex. - A idéia lhe ocorreu para escapar do que a aguardava. - Acho que vou...
- Não está e não vai. E se estiver passando mal, eu a carregarei nos braços.
- Milorde não tem consciência! Nem mesmo se importa se eu não quero estar aqui.
- Claro que me importo. Mas essa é a melhor solução, Kate. Sabe muito bem disso.
- Sei o que é melhor para mim. E certamente não é usar este vestido diante de todos e anunciar que estive mentindo o tempo inteiro.
- É um traje adorável, minha querida. O verde-esmeralda é da cor de seus olhos. Kate, tenho certeza de que seu pai está se esmerando para tornar a história convincente. Mesmo que assim não fosse, ninguém ousará contradizer a filha do duque de Furth.
Kate se opusera ao plano desde o início, mas Alex se recusara a escutar os argumentos, as objeções e os protestos. De modo geral, a idéia fora a mais sensata. Furth organizara um grande baile para anunciar o retorno da filha havia muito desaparecida. Ele passaria a noite informando confidencialmente a um seleto grupo de amigos que sua filha voltara a Londres vestida como um rapaz para impedir as atividades ilícitas do tio em busca de ajuda, acabara encontrando o conde de Everton e os dois haviam se apaixonado. Em seguida, os amigos confiáveis teriam um tempo para espalhar o relato. Bem mais tarde, Alex e Kate seriam anunciados.
A história ocultaria suas atividades ao lado de Stewart e manteria em segredo as de Alex. Mas nada poderia disfarçar o fato de ela ter mentido para a nobreza de Londres desde a sua chegada. Sentia-se constrangida por ter enganado a todos. E os bem-nascidos não gostavam de parecer tolos.
- Eu deveria pelo menos estar usando calça - Kate resmungou e puxou o corpete apertado do vestido. - Eu me sinto muito exposta.
- Nós já concordamos que não haveria mais mentiras, Kate.
- Eu sei, eu sei. Mas só entre nós. Não havíamos contado com eles. - Kate apontou a porta fechada.
- Não inteiramente. Mas para preservar a reputação de Alex, passado, presente e futuro, é preciso que saibam que me casei com uma mulher e não com um rapaz mal-educado.
- Alex... - As mãos de Kate tremiam. Alex segurou-lhe os ombros.
- Não estará sozinha nessa batalha, Kate. Estou convencido de que é uma mulher forte e que sabe tomar conta de si mesma. Mas pode contar comigo para o resto de nossas vidas. - Alex beijou-lhe os lábios com carinho. - Apenas por essa vez permita que eu decida pelo melhor. - Beijou-a novamente. - Confie em mim.
Kate retribuiu os beijos com ansiedade.
- Tem certeza de que não poderíamos fazer outra coisa e esquecer minha revelação pública? - Kate empurrou-o de volta ao sofá e começou a desabotoar-lhe o colete.
- A minha futura esposa é bastante atrevida. - Alex tomou-a nos braços.
A porta foi aberta e o mordomo dos Furth apareceu.
- Sua Alteza acha que está na hora de milorde e milady serem apresentados - Royce informou e manteve a porta escancarada.
Alex suspirou e encostou a testa na de Kate.
- Seja corajosa, meu amor - ele sussurrou. - Para quem se arriscou a levar um tiro por minha causa, isso deve ser muito simples. - Fitou-a com paixão inequívoca.
Kate suspirou e passou a mão no braço de Alex. Eles foram para o corredor e, precedidos por Royce, chegaram ao salão de baile. Alex apertou-lhe a mão e anuiu para o mordomo.
Royce abriu a porta, adiantou-se e parou adiante da soleira.
- O conde de Everton e lady Kate Brantley.
Todos, sem exceção, se viraram para olhar. Os convidados pararam de falar e os músicos, de tocar. A maioria aguardava algo fora do comum. Talvez um rapaz magro usando um vestido. Pela cacofonia de vozes que se elevou quando Alex e Kate entraram, ficou evidente de que não esperavam aquela surpresa. Ser reconhecida e apreciada como mulher era uma sensação nova para Kate. E recompensadora, apesar do nervosismo.
- Por Deus, ela é a Dama Mascarada - Philip Dunsmore comentou e gargalhou, olhando para o marquês de Hague. - Milorde dançou com um rapaz!
- Qualquer um podia constatar que ela era uma mulher. - Hague procurou um drinque com vontade de afundar no chão.
A presença calma de Alex a seu lado ajudou Kate a enfrentar os olhares curiosos. Mércia Cralling, muito pálida, não a des-fitava. A seu lado, Celeste Montgomery dava risadinhas e cochichava com as amigas. De repente, Mércia deu um grito, derrubou a taça de ponche e desmaiou.
- Minha querida, seu efeito sobre as pessoas é extraordinário - Alex comentou sem se alterar.
Ele a levou até a mesa onde estavam servidas as mais deliciosas iguarias e muitas bebidas. Kate teve certeza de que teria caído, se não contasse com o amparo sereno de Alex.
- Mas que ousadia - lady Crasten comentou com uma amiga. - Fingir ser um rapaz para roubar Alex debaixo de...
- Lady Crasten. - Reg aproximou-se sem ter sido pressentido. - Sei que já se conheciam, mas permita que eu lhe apresente lady Kate.
Lady Crasten virou-se e fabricou um sorriso na face miúda.
- Sinto-me honrada, lady Kate. - Ela tomou a mão de Kate entre as suas. - Fico feliz de saber que milady está bem. Se quer mesmo saber - ela falou com ar confidencial, mas sem abaixar o tom de voz -, eu já imaginava. Eu disse a Lisette que milady era adorável demais para ser um garoto.
- Gentileza sua, lady Crasten. - Kate esperou a condessa afastar-se e saudou Reg com um sorriso. - Obrigada, Reg. Eu não o vejo há dias. Pensei que estive com raiva.
Reg fez uma mesura.
- Encantado em revê-la. Admito que fiquei surpreso em Calais, mas tive tempo de me refazer do espanto. Eu estranhei algumas coisas, principalmente naquela noite em Vauxhall. Confesso-me humilhado.
- E eu, desconcertado - Francis Henning alegou, aproximando-se. - Quando resolveu tornar-se mulher, Kate?
- Eu sempre fui, Francis.
- Mas conseguiu me embebedar e ganhar de mim vinte libras - Francis se queixou e de repente empalideceu. - Eu a pedi em casamento, não foi? - Virou-se para Alex. - Não
312
SuzanneEnoch
leve a sério, Alex. Pensei que ela fosse ura rapaz. Quero dizer, não daquela vez... Isto é, eu não sabia...
- Não se preocupe, Francis. - Alex levantou a mão e riu. - Às vezes eu mesmo me confundo.
- Ainda bem. - Francis suspirou. - Pensei que fosse uma falha minha.
O duque de Furth apareceu e a multidão afastou-se para ele passar. Reg puxou Francis para trás. O duque chegou perto de Kate, beijou-a no rosto e apertou a mão de Alex.
Furth pegou duas taças de champanhe da bandeja de um criado, ofereceu-as a Kate e a Alex e apanhou outra para si mesmo.
- Digníssimos lordes e senhoras. Eu gostaria de aproveitar a oportunidade de estar entre amigos para lhes dar duas notícias. A primeira é que minha filha Kate... - Ele segurou a mão dela -...voltou para mim após anos de separação.
Ele inclinou a cabeça diante dos aplausos.
- A segunda é que Alexander Cale, conde de Everton, pediu-me ontem permissão para casar-se com Kate. E eu dei meu consentimento.
Aquilo era uma mentira. Alex só pedira a aprovação de Kate. Uma nova onda de aplausos foi interrompida pela chegada da prima de Kate, irmã na verdade, Caroline. Ela, que já sabia da novidade e se alegrara, fizera questão de representar sua parte e mostrar-se surpresa. Abraçou Kaie efusivamente.
Os momentos seguintes foram repletos de brindes e congratulações, além das naturais especulações a respeito das circunstâncias de seu nascimento. Alex, com classe e um sorriso in-definível no rosto, esquivava-se das perguntas indiscretas e desencorajava os mais ousados.
Ele-não demonstrou o desagrado que sentiu diante da aproximação de Barbara Sinclair.
- Barbara. - Inclinou a cabeça.
- Gostaria de parabenizar o belo casal. - Ela mostrou os dentes em um sorriso forçado.
- Obrigado - respondeu Alex, com frieza. - Agradeço seu empenho em preservar o segredo de Kate.
Kate preferia enfrentar uma hostilidade direta às bajulações que a incomodavam desde a chegada ao salão de baile.
- Peço desculpas, lady Sinclair, por qualquer mal-entendido que possa ter havido em relação às intenções de Alex a seu respeito.
- Não se preocupe, senhorita. Meu relacionamento com Alex independe das intenções dele a seu respeito.
Kate fechou as mãos em punho diante da insinuação. Barbara pretendia continuar sendo amante de Alex. Conteve-se para não lhe arrancar os cabelos.
- Lady Sinclair, sugiro que ofereça suas mercadorias em outra praça.
- Quanta ingenuidade, minha querida. Imagino que deve lhe faltar muita experiência como mulher...
- Barbara - Alex interrompeu-a. - Devo lembrá-la de que Kate se tornará minha esposa. Se a insultar, estará insultando a mim.
Barbara reconsiderou o que pretendia dizer.
- Está bem. Quando se cansar dessa espantalha, sabe onde me encontrar. Alex riu.
- Provavelmente no cemitério - respondeu, antes de vi-rar-se e levar Kate até a pista de dança, no momento em que a orquestra iniciava uma valsa.
- Eu deveria ter acertado um soco naquela cara de fuinha - Kate resmungou.
- Por mais que isso me agradasse, prefiro dançar com minha noiva. - Alex parou de frente para Kate. - Perdoe-me por não ter resolvido o caso antes. Os comentários desagradáveis desta noite teriam sido mais do que suficientes, mesmo sem os relativos a meu passado.
- Prefiro enfrentar seu passado que o meu.
- Ela esbanja beleza como a noite estrelada sem nuvens... Kate corou.
- Byron, aqui?
-...e ainda melhor do que esse brilho eu encontro em seu aspecto e em seu olhar. - Na expressão de Alex havia uma infinidade de paixões e segredos.
- Eu te amo, Alex. E não permitirei que ninguém o afaste de mim.
Alex inclinou-se e beijou-a, sem se incomodar com as exclamações dos que estavam por perto.
- E eu amarei você para todo o sempre, minha doce, adorável e querida Kate.
Kate alegrou-se com a decisão de o casamento ser realizado em Everton. Martin Brantley mostrara-se propício a Furth, e a duquesa foi favorável à Abadia de Westminster. Felizmente Alex fizera valer sua opinião. Ou se casariam em Everton ou fugiriam para a Escócia. O duque levara a ameaça a sério e tratara de concordar.
Os jardins floridos de Everton eram o cenário ideal para um casamento. Martin estava em pé ao lado da duquesa e de Caroline. Ele mostrara paciência e até simpatia pelo retraimento de Kate, o que a fez confiar um pouco mais nele. Com o tempo talvez chegasse a chamá-lo de pai. Ele a deixava à vontade.
Sob o cálido sol da manhã, Kate e Alex aceitavam os cumprimentos, da interminável fila de convidados. A orquestra, no tablado erguido entre duas fontes, tocava uma variedade de valsas e outros ritmos mais agitados, para desgosto de alguns poucos mais retrógrados.
Fazia uma hora que o casal trocara os votos matrimoniais, entregando o coração um ao outro, sem hesitar. Kate tocou na aliança de ouro, admirada por a cerimônia ter ocorrido sem incidentes. Napoleão fora novamente preso. Por influência do duque de Furth, o príncipe George concordara em não examinar mais profundamente certos assuntos. Ela não ouvira mais falar de Stewart Brantley desde que haviam se despedido na França. Com o dinheiro que roubara, certamente já havia saído de lá outra vez.
Kate não poderia estar mais feliz. A imponente residência na parte central de extensos gramados ajardinados, com um lago nos fundos e a cidade de Cheltenham a leste. O terreno destinado às plantações estendia-se a perder de vista. Kate nunca vira uma herdade tão vasta nem tamanha evidência de poder e riqueza. E o que mais a agradava era a simplicidade de Alex, que não fazia ostentações desnecessárias.
A orquestra começou a tocar outra valsa. Alex pediu licença a lady Cralling e segurou a mão de Kate.
- Esta dança é minha, milady - disse ele enquanto se afastavam.
- Será que Mércia me perdoou?
- Agora acredito que sim. Eunice contou que depois do susto na Brantley House, Mércia ficou acamada durante três dias.
- Não vejo por quê. Enquanto me encorajava, Mércia também aceitava a corte de Grambush.
Alex riu, fascinante no traje formal preto e cinza.
- Que coração insensível, minha querida...
- Quanto tempo ainda teremos de ficar aqui fora? - Kate mudou de assunto e piscou para ele.
- Como a festa é nossa, teremos de permanecer até o fim. O que calculo que se dê daqui a mais algumas horas. - Alex apertou-lhe a mão.
- As etiquetas sociais são maçantes. - O sorriso de Kate iluminou-lhe o rosto bonito. - Estou ansiosa para ficar a sós com meu marido.
- Ficaremos juntos por toda a vida. Ele acariciou-lhe o rosto e abraçou-a.
Kate suspirou, feliz, e observou os jardins onde perambulavam centenas de convidados. Muitos ficariam hospedados na propriedade durante semanas. A imensidão de Everton permitiria que Alex e ela usufruíssem uma privacidade confortável.
Lorde Sumpton interrompeu-os para oferecer-lhes estadia em uma luxuosa villa na Espanha para a lua-de-mel, mas eles já haviam decidido ficar em Everton.
Além dos canteiros de rosas, Kate avistou o brilho de uma luz. Um homem, familiar e inconfundível, estava parado ao lado de um cavalo. Ao perceber que fora visto, baixou o espelho, curvou-se e deixou um embrulho a seus pés. Hesitou por alguns segundos e então soprou um beijo na direção de Kate. A seguir montou no cavalo e saiu a galope em direção às montanhas.
Kate aproveitou a distração de Alex, que ainda conversava com Sumpton. Olhou para os lados, ergueu a barra da saia e foi rapidamente até o local onde o pacote fora depositado. Era uma caixa pequena, retangular, amarrada com barbante. Com mãos trêmulas, Kate desamarrou o barbante e levantou a tampa da caixa. Dentro havia um colar de pérolas de quatro voltas entrelaçadas e presas por uma argola de ouro.
- Outro presente? - Alex aproximou-se por entre as roseiras.
- Alex - Kate murmurou, segurando o colar. - Eu me lembro dele. Era de minha mãe.
- É lindo. - Alex viu o cavaleiro que se distanciava. - Meu amor, Stewart Brantley realmente ama você como a uma filha.
Apesar do que acontecera entre eles, Kate não deixara de gostar de Stewart. Ele atravessara toda a região de Gloucestershire até Cotswold Hills somente para vê-la vestida de noiva e deixar-lhe a única recordação que lhe restara da esposa.
- O que pretende fazer? - Kate temeu pela vida do homem a quem até pouco tempo atrás chamava de pai.
- Eu? - Alex sorriu apaixonadamente e segurou a mão dela.
- Dançar com minha esposa.

 

 

                                                                  Suzanne Enoch

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades