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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A JOVEM PERDIDA / D. H. Lawrence
A JOVEM PERDIDA / D. H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Imagine-se uma cidadezinha mineira como Woodhouse,  com uma população de dez mil pessoas, e três gerações ali nascidas. Esse espaço de três gerações atesta uma sociedade  bem estabelecida. A velha cepa do "condado" fugiu do espetáculo de tanto carvão desentranhado da terra para florescer, alimentada pelo dinheiro das minas, em regiões ainda idílicas. Mantém-se um grande e inacessível magnata,  o proprietário local de carvão: velho de três gerações, ascendendo desde a camada mais baixa do condado e dando pontapés nas massas inferiores. Deixemo-lo de lado.
      Uma sociedade bem estabelecida em Woodhouse, cheia de delicados matizes, escalonando-se desde o negro pó de carvão até a areia do pedreiro e a serragem dos madeireiros,  passando pelo esplendor do toucinho, manteiga e carne, até o perfume do droguista e o desinfetante do médico, por sobre o ouro sereno dos banqueiros, caixas, clérigos e outros que tais, até a refulgência do automóvel do diretor de todas as minas. Aqui o ne plus ultra. O diretor vive no retiro arborizado do Castelo, como é chamado. Da mansão genuína,  que o condado abandonara, apropriou-se a empresa para seus escritórios.
      Eis então onde estamos: um vasto substrato de mineiros; uma espessa faixa de comerciantes misturados com pequenos patrões e diversificada por mestres-escolas e o clero não conformista; uma camada mais alta de banqueiros, ricaços e abastados ferragistas, clero episcopal e diretores de minas; depois, a rica e pegajosa cereja, o proprietário local de carvão, brilhando sobre tudo.
      Este o complicado sistema social de uma pequena cidade industrial nas Midlands, Inglaterra, neste ano da graça de 1920. Mas vamos um pouco para trás. Assim era já no último ano calmo de abundância: 1913.
      Um ano calmo de abundância. Mas com uma triste doença crônica: a do excesso de mulheres. Por que será que, em nome de certa prosperidade, terão todas as classes, menos a mais baixa, de suportar o fruto de mar Morto dessas mulheres não casadas e não casáveis, chamadas "solteironas"?
      Por que é que todo comerciante, todo mestre-escola, todo banqueiro e todo clérigo produz uma, duas, três ou mais solteironas? Dão as classes médias, particularmente as mais baixas classes médias, vida a mais moças do que rapazes? Ou casam os homens da mais baixa classe média com mulheres de melhor ou de pior condição, assim deixando encalhadas as suas verdadeiras companheiras? Ou são as mulheres da classe média muito exigentes na escolha de maridos?
      Seja o que for, é uma tragédia. Ou talvez não.

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      Talvez estas mulheres não casadas das classes médias sejam os famosos operários-sem-sexo de nossa sociedade
anti-industrial, de que tanto ouvimos falar. Talvez o que a todas elas falte seja uma ocupação: em resumo, uma tarefa. Mas talvez pudéssemos ouvir sua própria opinião antes de se fazer a lei.
      Em Woodhouse havia uma espantosa colheita de velhas solteironas entre os "finos", os comerciantes e o clero.
Toda a população feminina da cidade, as mulheres dos mineiros e as outras, continha a respiração quando se via oportunidade de uma dessas filhas do conforto e da desgraça se salvar. Elas se agarravam aos auspiciosos casamentos com a intoxicação do alívio. Pois, seja lá o que possa ser o ciúme de classe, a mulher detesta ver outra mulher deixada para sempre na prateleira, sem uma oportunidade. Todas queriam que as moças da classe média arranjassem marido. Todos o queriam, incluindo as próprias moças. Eis a desgraça.
      Ora, James Houghton tinha somente uma filha: Alvina Houghton.
      Mas retrocedamos aos últimos anos do século passado, quando Alvina era criança de peito; ou mesmo mais atrás, aos dias prósperos de James Houghton. Nos seus dias prósperos, James Houghton era a crême de la crême da sociedade de Woodhouse. A casa de Houghton fora sempre próspera: gente do comércio, admitamo-lo; mas, depois de poucas gerações de abundância, os comerciantes adquirem um cachei particular. Ora, James Houghton, aos vinte e oito anos, herdou um esplêndido negócio de artigos de Manchester, em Woodhouse. Era um jovem alto, magro e elegante, com suíças, verdadeiramente distinto, um pouco no estilo Bulwer. Tinha
o prazer da conversação elegante, da literatura e da cristandade elegantes; um jovem alto, magro e frágil, demasiado tímido de maneiras, cheio de idéias fáceis, e com uma bela voz de orador, muito bela. Além disso, decerto, um comerciante. Cortejava uma mulher baixa e morena, mais velha do que ele, filha de um proprietário do Derbyshire. Esperava que ela lhe trouxesse pelo menos dez mil libras. No que veio a ficar desapontado, porque ela lhe trouxe apenas oitocentas. Sendo de uma natureza romântico-comercial, nunca lhe perdoou, mas sempre a tratou com a mais elegante cortesia. Era um delicado espetáculo vê-lo descascar e preparar uma maçã para ela. Mas aquela maçã descascada e partida era a parte que lhe competia. Esse elegante Adão do comércio devolvia-a a Eva, sem caroço, e nada mais se sentia obrigado a fazer por ela. Entretanto, nasceu Alvina.
      Antes de tudo isso, todavia, antes de seu casamento, James Houghton construíra Manchester House. Era um vasto edifício quadrado (vasto, claro, para a terra), construído
na rua principal e ao mesmo tempo estrada da pequena mas progressista cidade. A fachada mais baixa consistia em duas lindas lojas, uma de artigos de Manchester, a outra de seda
e lãs. Era o poema comercial de James Houghton.
      Porque James Houghton era um sonhador, e tinha qualquer coisa de um poeta: comercial, entenda-se. Gostava muito dos romances de George MacDonald, e das fantasias desse autor. Tecia uma contínua fantasia para ele próprio, uma fantasia comercial. Sonhava com sedas e popelinas, de fino tecido e
de imprevista delicadeza; sonhava com as carruagens do condado paradas em frente às suas vitrinas com formosas mulheres acotovelando-se a seu balcão, encantadas, extasiadas. E encantado, extasiado, mostrava-lhes admiráveis tecidos que somente ele e elas podiam suficientemente apreciar. Sua fama chegava até Alexandra, princesa de Gales, e Isabel, imperatriz da Áustria, as duas mais elegantes mulheres da Europa, que desciam do céu à loja de Woodhouse,
e indo ali para mostrar o que se poderia fazer comprando na casa de James Houghton.
      Não poderemos dizer por que foi que James Houghton
não conseguiu tornar-se o Liberty ou o Snelgrove do seu tempo. Talvez tivesse demasiada imaginação. Seja como for, nos primeiros tempos em que ele levou a mulher para o novo lar, a vitrina do lado de Manchester era uma espumante e primaveril florescência de musselinas e estampados, a vitrina
do lado de Londres era uma tarde outonal de sedas e ricos tecidos. Que mulher podia deixar de ficar deslumbrada! Mas ela, pobrezinha, vinda de uma casa de pedra do pedregoso Derbyshire, sentia um pouco de aversão pela dança do homem
em frente à sua mercadoria, como Davi atrás da arca.
      A casa para que ele a levou era um monumento. No
grande quarto de dormir por cima da loja mandara construir
o mobiliário, feito de sólido mogno: oh, muito, muito
sólido. Sem dúvida, ele próprio pulava ou saltitava com satisfação no monstruoso leito nupcial: para subir era preciso um banco e cadeira. Mas a pobre mulherzinha,
mais velha do que ele, tinha de se alçar para ali de coração oprimido, de se deitar e encarar a lúgubre fortaleza de mogno, em frente ao grande armário, ou voltar-se obliquamente com enfado para o grande psiché, que fazia um perpétuo e horrível cumprimento às suas graças. Que mobília! Nunca poderia ser tirada daquele quarto.
      A criança nascera no segundo ano. E então James Houghton mudou-se para um quarto de dormir pequeno e incompletamente mobiliado, no outro extremo da casa, onde dormia numa tábua dura, e fez-se anacoreta para o resto de seus dias. A mulher ficara só com a criança e o mobiliário ali no quarto. Apanhou uma doença do coração como resultado de depressões nervosas.
      Mas, como borboleta, James esvoaçava sobre os tecidos. Era um tirano para as empregadas. Nenhum marquês francês
em romance de Dickens seria mais elegante e raffiné e sem coração. As moças detestavam-no. E, Contudo, seus curiosos requintes e entusiasmo faziam com que o suportassem. Submetiam-se-lhe. A loja atraía a curiosidade. Mas as pessoas pobres de espírito de Woodhouse eram fracas compradoras. Fatigavam James Houghton com pedidos de zefires vulgares,
de flanela vermelha que debruariam com lã preta, de alpacas pretas e bombazinas e merinos. Ele fazia esvoaçar as musselinas raiadas de seda, os algodões estampados da Índia. Mas os da terra afastavam-se como se ele lhes oferecesse as túnicas envenenadas de Hércules.
      Houve uma liquidação. Essas liquidações contribuíram muito para a doença de coração de Mrs. Houghton. Traziam
os primeiros sinais de cansaço à cara de James Houghton.
Primeiro, claro, ele baixou apenas, com discrição, a parte
do estoque que custara menos, de estampados e musselinas,
de voiles e musselinas de lã, com alguns belos galões e
guarnições dourados e bronzeados para animar o conjunto. E Woodhouse comprava cautelosamente.
      Depois da liquidação, todavia, James Houghton sentiu-se livre para mergulhar na orgia do novo estoque. Partiu com olhar fixo para Manchester. Depois do quê, enormes pacotes, caixotes e caixas chegavam a Woodhouse e eram descarregados no passeio da loja. Chegava a tarde de sexta-feira e com ela uma revelação na vitrina de Houghton: os primeiros piques, as primeiras colchas e edredons finamente tecidos e semelhantes a favos de mel, as primeiras toucas de folhos e aventais de criadas; uma maravilha em branco. Era como James o anunciava: "Uma maravilha em branco". Quem sabe se ele não teria acabado de ler o famoso romance de Wilkie Collins!
      Quando os nove dias de maravilha em branco passaram
e foram esquecidos, James desapareceu, dirigindo-se a Londres. Algumas sextas-feiras mais tarde regressou com a Moda de Inverno. Encantadores e maravilhosos casacos de inverno, para senhoras... tudo aquilo em que James punha
as mãos era para senhoras, porque desdenhava o sexo forte: encantadores e maravilhosos casacos de inverno para senhoras, de tecido espesso, negro e salpicado, enchiam e exibiam seus punhos de pele ao fundo, enquanto peles, boas, regalos e fantasias de inverno se ofereciam na frente da vitrina. Na noite de sexta-feira, multidões se acumulavam lá fora; os bicos de gás resplandeciam no seu máximo. James Houghton rondava ao fundo como um autor dramático na noite de estréia. O resultado era sensacional. Dez aldeias olhavam e se comprimiam em volta do vidro cristalino. Era sensacional: muito sensacional! No seio da multidão, espanto, admiração, temor, e ridículo. Sublinhemos a palavra "temor". Os habitantes de Woodhouse receavam que James Houghton lhes impusesse seus modelos. Seus artigos eram de excelente gosto, mas os compradores tinham o pior gosto possível. Permaneciam
lá fora e apontavam, troçavam e escarneciam. O pobre James, como um autor dramático na noite de estréia, via sua obra cair por terra.
      Mas, apesar de tudo, acreditava na sua própria superioridade - e muito justamente. O que ele não compreendia era que a multidão detestava a superioridade. Woodhouse
pretendia um progresso suavemente graduado na mediocridade, uma mediocridade tão banal e chã que nenhum mortal sensível podia conceber. Woodhouse pretendia uma série de pequenas e vulgares emoções, e importava de Nottingham ou de Birmingham uma mediocridade de mau gosto para tomar o lugar de alguma mediocridade de mau gosto de que Nottingham e Birmingham se tivessem já descartado. Aquela Woodhouse, como verdadeira condição de sua própria existência, odiava tudo o que se aproximasse da originalidade e do verdadeiro gosto e isso James Houghton não podia entender. Pensava que não havia
sido suficientemente inteligente, quando o fora bastante,
até mesmo demasiado inteligente. Ele sempre pensara que Dona Fortuna era uma senhora caprichosa e fastidiosa, uma espécie de Isabel da Áustria ou de Alexandra, princesa de Gales, de elegância além da que estava a seu alcance. Pois Dona Fortuna, igual em Londres ou Viena, colocada em Woodhouse, era uma mulher vulgar da média e mais baixa classe média, pronta a pôr seu pesado pé sobre tudo que não fosse vulgar, fabricado à máquina, para uso da ralé. Quando ele viu suas delicadas originalidades, assim como os ligeiros ornamentos de sua fantasia de negociante de panos, espezinhados pelo calmo e sólido pé da vulgar Dona Fortuna, caiu em acessos de depressão confinantes do misticismo e falou à mulher em vagas influências mais altas e no anjo Israfel. A pobre senhora ficou muito assustada com Israfel e completamente atarantada com as venetas de James.
      Por fim - desçamos depressa a vertente dos infortúnios de James - começou a verdadeira época das Grandes Liquidações de Houghton. As Grandes Liquidações de Houghton eram realmente acontecimentos. Depois de alguns anos de espera, ele deixou correr. Baixou o preço dos estampados, das chitas, dos festões, dos voiles, com mão larga e pródiga. Os preços caíam como nozes. Um elevado um-e-onze resvalou para
seis-três.
      Agora era realmente a ocasião. Além disso, as coisas, tendo envelhecido um pouco durante aqueles anos de prateleira, começaram a aproximar-se do gosto do público.
E além disso, como o tecido era bom, não interessava o padrão. E então as mocinhas de Woodhouse iam à escola com saias e calças feitas com tecidos que James destinara para elegantes vestidos de verão; saias e calças de que as mocinhas de Woodhouse se envergonhavam, apesar de tudo. Porque, se acontecia levantarem-se as pequenas saias, havia
a certeza de que suas companheiras exclamariam em coro: "Ah! ah! ah! Você está com calças de três pence do Houghton".
      James Houghton vivia nas nuvens. Ele via ainda a Fada Morgana arrebatando seus tecidos, que enrolava às formas tentadoras, e vaticinando-lhe uma prosperidade nunca vista. Na verdade, ele se tornara também superintendente da escola dominical. Mas quem poderá dizer se isso era um ato de vaidade ou se era uma tentativa para estabelecer uma Entente Cordiale com poderes mais altos?
      Entretanto, a mulher se tornava cada vez mais inválida; a pequena Alvina era uma linda e crescida criança. Woodhouse estava realmente impressionada com o aspecto de Mrs. Houghton: pequena, pálida e concentrada, passeando com a delicada filhinha, tão fresca com sua capa de arminho e com seu regalo. Mrs. Houghton, com sua luzidia pele negra de urso e a criança com o arminho branco e salpicado, passando silenciosa e senhorilmente na rua, fazia uma impressão que ninguém esquecia.
      Mas Mrs. Houghton sofria do coração. Se, durante o passeio, via dois meninos brigando, tinha de correr para
eles com moedas e súplicas, deixando-os confundidos,
enquanto se apoiava, com os lábios azuis, a uma parede. Se via um carroceiro estalar o chicote nas orelhas do cavalo, quando o animal ia numa subida, tinha de tapar os olhos e desviar o rosto, e todas as forças a abandonavam.
      Assim, ela se conservava cada vez mais no quarto, e a criança foi entregue aos cuidados de uma governanta. Miss Frost era uma mulher jovem, perfeita e vigorosa, de cerca
de trinta anos de idade, cabelo grisalho e óculos de aros dourados. O cabelo branco não era devido a qualquer tragédia; era um trait de família.
      Miss Frost foi mais querida do que ninguém por Alvina Houghton, durante os primeiros longos vinte e cinco anos de sua vida. A governanta era uma forte e generosa mulher, música por vocação. Tinha uma voz doce e cantava no coro da capela, e ocupava-se da primeira classe de moças na escola dominical de que James Houghton era superintendente. Não gostava de James Houghton, antes o desprezava, via nele os traços de um hipócrita, detestava seu aéreo e gracioso egoísmo, sua falta de humanidade, e, mais do que tudo, sua quimérica imaginação. À medida que James avançava na idade, tornava-se um sonhador. Foi pena, na verdade, que tivesse morrido antes da era de Freud. Gozava os mais maravilhosos
e feéricos sonhos, que podia perfeitamente descrever em encantadora e delicada linguagem. Nessas ocasiões, a voz belamente modulada quase cantava, os olhos cinzentos brilhavam ferozmente sob as espessas sobrancelhas, a face pálida com as suíças tinha uma estranha lueur, as mãos longas e finas agitavam-se de vez em quando. Tornava-se seco de figura, o casaco simples mas elegante mantinha-se abotoado sobre o peito quando contava os sonhos - aventuras, aventuras que eram metade de Edgar Allan Poe, metade de Andersen, com laivos de Vathek e Lord Byron e George MacDonald; talvez mais do que laivos deste último. As senhoras eram sempre sensíveis a tais histórias. Mas Miss Frost nunca se sentia tão fortemente impaciente como quando tinha de ouvi-las.
      Durante vinte anos, ela e James Houghton trataram-se mutuamente com uma distante cortesia. Às vezes, ela se tornava abertamente impaciente com ele, às vezes ele lhe respondia secamente: "Realmente, realmente! Oh! Realmente! Bem, bem, custa-me crer que a senhora pense assim...", quando a ofensa consistia em ela pensar assim. Então, dirigia-se para o Clube dos Conservadores em passo rápido, leve e apressado, como se o destino o apressasse. No clube, jogava xadrez - no que era exímio - e conversava. Depois voltava para casa ao meio-dia e meia para almoçar.
      Toda a moral da casa assentava em Miss Frost. Esta, logo no primeiro ano, estabeleceu sua conduta. Devia proteger Alvina, que ela amava como se fosse sua própria filha, e a nervosa, petulante e doente mulher, a mãe, dos caprichos de James. Não que James tivesse vícios. Ele não bebia nem fumava, era abstêmio e limpo como um anacoreta, e nunca perdia a compostura. Mas, ainda assim, as duas deviam ser protegidas. Imperceptivelmente, Miss Frost tomou em suas mãos as rédeas do mando doméstico. Sua lei era calma, forte e generosa. Não procurava proveito para si própria. Ia ao leme do pobre barco doméstico de Manchester House, iluminando os quartos escuros com sua presença firme e radiosa; os cabelos grisalhos e a face pálida, forte e tranqüila, que parecia despedir certas radiações. Parecia dar peso, equilíbrio e
paz ao vacilante e confuso lar. Fiscalizava a criada e sugeria os pratos, os quais James comia sem saber o que eram. Trazia flores e livros e, muito raramente, uma visita. Mas as visitas não se sentiam à vontade na sombria Manchester House. As flores encantavam a pobre inválida, os livros faziam-na discutir com o aéreo James; discussões após as quais ela invariavelmente se exasperava, enquanto James invariavelmente se retirava para a loja, elevando sua voz musical, que os empregados detestavam, para uma ou para outra das empregadas.
      Na verdade, James tinha uma irritante maneira de falar dos livros. Falava de incidentes, efeitos, idéias, como se tudo aquilo para ele não fosse mais do que sensações
artísticas. Nem um grãozinho de sentimento humano no homem, dizia Miss Frost, vermelha de indignação. Ela escolhia invariavelmente o aspecto humano.
      Entretanto, as lojas começaram a apresentar um ar desesperado e miserável. Depois de dez anos de liquidações
- liquidações de primavera, liquidações de verão, liquidações
de outono, liquidações de inverno, James começou a abandonar seu sonho de fazendas. Não suportava mais ter de exibir o pesado e esburacado casaco de fazenda preta com aplicações
de pele de urso. Baixou-lhe o preço de cinco guinéus para um, e, depois, oh ignóbil dia!, para dez-e-seis. Quase beijou a cigana com o cesto cheio de tampas de caçarolas, quando finalmente ela lho comprou por cinco xelins, no fim de uma das suas liquidações de inverno. Mas mesmo ela, apesar do amargo e chuvoso dia, não quis vestir o casaco na loja. Levou-o debaixo do braço para o Miners' Arms. E mais tarde, com uma comoção que realmente lhe fez mal, James, espreitando
furtivamente à porta da loja, viu-a sentada numa horrível carroça puxada por um bolorento cavalo, de um branco esverdeado, sacudindo os braços como uma bruxa feroz e
de cabelos eriçados. Os compridos pêlos da pele de urso, molhados pela chuva, pareciam uns chevaux de frise de grandes bicos de porco-espinho em volta do pescoço e dos punhos. Que bom, que maravilhoso tecido! James contemplou aquilo um momento, e depois retirou-se para os fundos da loja como um coelho para a toca.
      Os altos poderes não pareciam cumprir os termos do tratado por que James ansiava. Começou a afastar-se da Entente. A escola dominical era para ele uma grande provação.
Em lugar de serem transportados por sua graça e por sua eloqüência, os rústicos e imundos rapazes e moças mineiros descaradamente batiam com os pés e faziam um barulho
ensurdecedor quando ele procurava falar. Quando se encontrava na tribuna, dizia muitas coisas acres e secas. Mas para que serve dizer coisas acres a tais demoniozinhos e sacos de fel... aos filhos de mineiros? Miss Frost salvava a situação tomando a seu cuidado as moças maiores e fazendo com que o grande e belo ferreiro que ensinava os rapazes menores estendesse sua influência até os grandes. Sua influência era mais do que efetiva. Consistia em segurar os rapazes recalcitrantes pelos joelhos e gracejar com eles de maneira jocosa, em dialeto. A mão do ferreiro era uma autêntica mão de ferreiro e seu dialeto era tão vasto quanto se podia desejar. Entre o apertão e o idioma doméstico nenhum rapaz podia ficar sem gritar. Assim, a escola dominical prestava mais atenção a James, cujas orações eram belas. Mas então um dos rapazes, protegido de Miss Frost, ficou durante meia hora na sala escura com Mrs. Houghton e revelou o segredo dos apertões do ferreiro, segredo que tanto perturbou a pobre
senhora que marcou uma fase no aumento de seus padecimentos
e tornou a tarde de domingo um pesadelo para ela. Então, James Houghton desgostou-se do grosseiro modo escocês do ferreiro. Assim, chegou ao final a superintendência da escola dominical.
      Na mesma época, Salomão teve de dividir o filho. Isto
é, deixou o lado de Londres da sua loja a W. H. Johnson, alfaiate e dono de armarinho, um pequeno parvenu cujo
inglês não podia suportar análise. Triste, mas foi assim mesmo. Carpinteiros e marceneiros fizeram sua aparição e os compartimentos foram completamente separados. Do seu quarto, nos fundos sombrios, a inválida ouvia o bater dos martelos e o barulho das serras e sofria. W. H. Johnson veio com uma vitrina nova, e a mulher, sagaz e calma mulher, e a filha, formosa e forte moça, ajudavam-no nas tardes de sexta-feira. Os homens vinham em multidão... mesmo as mulheres, para comprarem para os maridos uma gravata de seis pence e meio. Podiam ter comprado uma gravata de quatro-três na loja de James Houghton. Mas preferiam dar seis pence e meio pela sucata, nova, mas sem valor, de W. H. Johnson. E James, que tentara realizar com sucesso nova liquidação, viu a multidão transpor outra porta, e ouviu os passos pesados no sobrado da outra loja: a loja que já não era sua.
      Depois desse golpe no seu orgulho e integridade, permaneceu algum tempo retirado e com tendência para o misticismo. Provavelmente poderia ter-se inclinado para Swedenborg, não estivessem suas asas demasiado cortadas para novo vôo. Teve a idéia brilhante de transformar seus tecidos abandonados em confecções: não roupas de homem, oh, não; de mulher, ou antes, "de senhora", dizia o novo anúncio.
      James Houghton era mais uma vez feliz. Uma escada de madeira em ziguezague foi erguida nos fundos de Manchester House. Instalaram-se máquinas de costura de vários modelos
e movimentos nos grandes sótãos. Pediu-se por anúncio uma contramestra e foram contratadas costureiras. Assim, nova fase de vida se iniciou. Às seis e meia da manhã havia uma barulhara de pés e vozerio de moças, no pátio dos fundos e pela escada de madeira ao longo da parede de trás. A pobre inválida ouvia todos os ruídos. Não podia vencer seu receio nervoso de uma invasão. Repetidamente, todas as manhãs sentia a invasão de algum inimigo que avançava sobre ela. E todos os dias o barulho profundo e constante das máquinas de costura lá em cima se assemelhava ao profundo rumor de um bombardeio sobre seu coração enfraquecido. Para fazer as coisas piores, James Houghton decidiu que devia ter suas máquinas de costura impelidas por uma força extra-humana. Instalou novos maquinismos, acetileno ou outra invenção parecida, que se destinavam a acionar as outras máquinas por meio de uma grande correia. Daí um maior estremecimento e vibração nas regiões superiores, verdadeiramente horrível de suportar-se. Porém, afortunada ou desafortunadamente, o maquinismo do acetileno não foi um sucesso. As moças picavam-se nos dedos, e as máquinas de costura recusavam-se absolutamente a parar de coser uma vez que estivessem postas em movimento e recusavam-se absolutamente a pôr-se em movimento uma vez que estivessem paradas. Assim, depois de pouco tempo, um sótão foi reservado para os maquinismos inutilizados e ferrugentos, embora caros.
      Dona Fortuna, que se recusava a deixar-se tentar
por finos tecidos e belos enfeites, continuava relutando
a ser captada pelas confecções. De novo a boa senhora era
inteiramente da baixa burguesia. James Houghton desenhava robes. As robes estavam agora em moda. Talvez fosse Alexandra, princesa de Gales, quem dera fama à esbelta
robe Princesa, que assentava como uma luva. Fosse como fosse, James Houghton desenhava vestidos. As suas costureiras, raça ainda mais insensível do que as empregadas da loja, proclamavam que James Houghton provava suas próprias invenções na sua própria pessoa, elegante e delgada, na intimidade de seu próprio espelho. Mas ainda que fosse assim, por que não? Miss Frost, ouvindo essa lenda, olhava furtivamente para o entusiasta.
      Notemos, entretanto, que Miss Frost deixara de receber qualquer salário de James Houghton. Apesar disso, ela própria contribuía para a manutenção do lar doméstico e da mesa. Tinha absolutamente decidido nunca deixar seus dois encargos. Sabia que uma governanta era uma verba impossível em Manchester House, no atual estado de coisas. E assim custosamente percorria a região, dando lições de música às filhas dos comerciantes e dos mineiros que se vangloriavam
de ter piano. Ensinava mesmo mineiros, destemidos e de pesadas mãos, que estavam possuídos da paixão de "tocar"; caminhava quilômetros no seu giro de aldeia em aldeia. Mulher de cabelo grisalho, de passo largo e firme, forte figura e rápido e formoso sorriso quando sua face acordava atrás dos óculos de aros de ouro. Como muitos míopes, tinha o olhar atento daquele que segue seu próprio caminho.
      Os mineiros a conheciam e tinham por ela o mais alto respeito e admiração. Quando saíam em imundos jorros de dentro da mina, desde que ela se aproximasse afastavam-se
como mágico e negro rio de cima do passeio para a trilha dos cavalos, para lhe dar lugar. E os homens que a conheciam suficientemente para a saudar, chamando-a pelo nome - "Miss Frost!" - e dando à saudação o tom apropriado, eram realmente pessoas barulhentas. "É uma verdadeira senhora", diziam. E pensavam assim. Ao ouvir seu nome, a pobre Miss Frost tinha de expedir um sorriso e um aceno de trás dos óculos, mas nunca ou raramente sabia a que negra cara sorrira. Se por acaso o descobria, então respondia alegremente "Mr. Lamb" ou "Mr. Calladine". A seu modo, era uma mulher orgulhosa, por ser olhada com cordial respeito, tratada com veneração por pelo menos um milhar de mineiros. Era alguma coisa, para uma mulher.
      Miss Frost cobrava quinze xelins por treze semanas de lições, a duas lições por semana. E achavam caro. Dizia-se que ela amealhava dinheiro. Este ia principalmente para os gastos da casa dos Houghtons. Além disso, ela ensinava a Alvina a teoria e a prática do piano, porque Alvina era naturalmente música, e ainda ministrava à moça os elementos de educação de uma menina, incluindo o desenho de flores, a aquarela e a tradução de um poema de Lamartine.
      Por inacreditável que pareça, o destino atirou um outro apoio à decadente casa de Houghton, na pessoa da contramestra das costureiras, Miss Pinnegar. James Houghton queixava-se da Fortuna, porém a que outro homem teria a Fortuna enviado duas mulheres como Miss Frost e Miss Pinnegar, grátis? Contudo, elas ali estavam. E é duvidoso que James fosse alguma vez reconhecido por sua presença.
      Se Miss Frost o salvou sabe Deus de que débâcle doméstica e de que horrores, Miss Pinnegar salvou-o do asilo. Digamos as coisas tal como são. Durante uma dúzia de anos suportou Miss Frost a doente, nervosa e inválida Clariss Houghton; durante mais de vinte anos acarinhou, cuidou e protegeu a jovem Alvina, defendendo a criança de uma mãe nervosa e de um pai como James. Durante quase vinte anos tratou de que na mesa houvesse comida e de que nas camas houvesse lençóis limpos, e todo esse tempo se conservou virtualmente na posição de pessoa estranha, sem o mínimo de autoridade reconhecida.
      Quanto a Miss Pinnegar! A seu modo ela era muito diferente de Miss Frost. Era antes uma espécie de mulher pequena, robusta, cor de rato e rastejante, de cores vivas
na face e de cabelo castanho-escuro, arrepanhado como um boné. Via-se bem que não era uma senhora: sua gramática não era irrepreensível. Tinha uns pálidos olhos cinzentos, um caminhar arrastado, uma voz doce e faces quase purpúreas. Mrs. Houghton, Miss Frost e Alvina não gostavam dela. Toleravam-na de má vontade.
      Mas desde logo ela teve uma curiosa ascendência sobre James Houghton. Podia esperar-se que o olho estético deste
se sentisse ofendido. Havia a voz, sem dúvida; a voz doce, próxima e segura de si que parecia quase tocar, como um segredo, o ouvinte. Muitos dos ouvintes não gostavam de ser secretamente tocados, como se aquilo os penetrasse até debaixo do vestuário. Miss Frost detestava isso; Mrs. Houghton também. A voz de Miss Frost era clara e direta
como o som de um sino, aberta como a luz do dia. Todavia, Alvina, ainda que lealmente estivesse de acordo com sua querida Miss Frost, não se importava realmente com o sereno e sugestivo poder de Miss Pinnegar. Porque Miss Pinnegar não era insinuante de modo vulgar. Pelo contrário, eram antes toscas e categóricas as coisas que dizia. Parecia pesar o que dizia, secretamente, antes de o dizer, e depois aproximava-se como se quisesse introduzi-lo na consciência do ouvinte sem que este se apercebesse disso. Parecia fazer escorregar as palavras, sem se dar por isso, pelos ouvidos de uma pessoa, de modo que elas eram aceitas sem a mais leve discussão. Era este o seu modo de se aproximar das pessoas. A seu modo, era tão leal e desinteressada como Miss Frost. Há assim pólos opostos entre a honestidade e a lealdade.
      Miss Pinnegar tinha a segunda classe de moças na escola dominical, e ocupava o segundo e subserviente lugar em Manchester House. Pela força das coisas, Miss Frost ocupou o primeiro lugar. Somente quando Miss Pinnegar falava a Mr. Houghton, naquela maneira de se dirigir a ele - "Qual é a sua opinião, Mr. Houghton?" - parecia estabelecer-se uma relação imediata entre os dois e uma prioridade incontestável na sua unissonância, o que para o coração franco de Miss Frost era um espinho cruel. Essa secreta intimidade e a secreta alegria por ter, realmente, o principal poder, eram mais intoleráveis à grisalha mulher. Não que houvesse, de fato, qualquer
correspondência ilícita entre James Houghton e Miss Pinnegar. Longe disso. Qualquer dos dois teria repelido de modo absoluto a idéia de tal possibilidade. Tratava-se
simplesmente de uma correspondência implícita entre as duas psiques, de um imediatismo de compreensão que precedia toda expressão, tácito, sem fios.
      Miss Pinnegar vivia com eles; desse modo, a família compunha-se da inválida, quase sempre sentada, de vestido preto com gola branca segura por um alfinete de ouro, no seu próprio quarto obscuro, não fazendo nada, nervosa e doente
do coração; de James, e da magra e jovem Alvina, que se ligara à sua querida Miss Frost, e ainda daquelas duas estranhas mulheres. Miss Pinnegar nunca levantava a voz nos assuntos domésticos; parecia, pelo seu silêncio, admitir sua própria insuficiência de cultura e de intelecto, quando se discutiam assuntos de interesse, somente se saindo de vez em quando com banalidades provocantes e truísmos... por mais provocantemente que se colocasse no ponto de vista banal e vulgar; depois do que ela se voltava serena, senhora de si e triunfante para James Houghton, e suscitava um assunto de
negócios, doce, afirmativa e superior. As outras tapavam os ouvidos.
      Mas Miss Pinnegar ia fincando os pés lentamente. Tinha de deixar que James corresse a gama das suas criações. Todas as sextas-feiras, à noite, novas maravilhas, vestidos e "vestidos de casaco" para senhoras (a expressão era novidade) guarneciam a vitrina da loja de Houghton. Era uma das maravilhas da terra a vitrina de Houghton às sextas-feiras à noite. Novos e velhos, nenhum indivíduo e certamente nenhuma mulher deixava Woodhouse sem gastar dez excitados e habitualmente hilariantes minutos no passeio em frente à vitrina. Guinchos abafados de jovens donzelas que só então conseguiam lobrigar alguma coisa, gargalhadas da simpática juventude, continuavam trocistas e censurando: "Ih, mas como é caro o chapéu de chuva, filha", e "Gostaria de casar comigo vestida com aquilo, gostaria? O quê? Nem metade!", ou ainda "Se você me visse com aquilo começava logo a gostar de mim, não acha?", com uma resposta provável: "E teria de sair correndo para não ser comido" - gargalhadas estridentes. Tudo isso era o entretenimento regular em Woodhouse nas noites de sexta-feira. A loja de James Houghton era tida como o divertimento cômico semanal. Seus vestidos de pique com botões de vidro e com uma espécie de enfeites de aço e com punhos eram imortais.
      Mas, uma vez mais, deixemos isso de lado. Miss Pinnegar trabalhava na loja nas noites de sexta-feira. Auxiliava seu homem. Muitas vezes, quando os gritos se erguiam muito alto, ia à porta da loja, encarava com seus pálidos olhos cinzentos a turba ridícula de namoradeiros e de jovens meio enterrados nos bonés. E impunha silêncio. Iam-se embora disfarçadamente.
      Entretanto, Miss Pinnegar prosseguia o curso sóbrio e regular de seu próprio caminho. Enquanto James irrompia,
para usar a palavra local, em vestidos e roupas femininas,
Miss Pinnegar trabalhava com firmeza, fazendo fortes e indestrutíveis camisas de homens e roupas de mineiros, fortes e práticos aventais para as mulheres dos mineiros, belos vestidos estampados para as criadas, etc. Não se aventurava
a fantasiar. Os artigos eram para servir os clientes. Assim, sob os borbotões e a espuma da aventura criadora de James, corria uma vagarosa mas firme corrente de produção e de lucro. As mulheres de Woodhouse acabaram por depender de Miss Pinnegar. Os rapazes na mina despedaçavam as roupas com espantosa facilidade. "Desta vez tenho de ir a Miss Pinnegar para comprar camisas para você, rapaz", diziam as mães agastadas, "e veremos se as dela duram mais." Era quase uma ameaça. Mas isso era bom para Manchester House.
      James comprava então poucos artigos: apenas retalhos para seus imortais vestidos. Era Miss Pinnegar que atendia
os viajantes e encomendava a flanela e os panos de algodão. James rondava por perto e dizia a última palavra, decerto. Mas que era a sua última palavra senão o eco da penúltima
de Miss Pinnegar? Não o interessavam os panos de algodão e tecidos reles.
      Seu próprio estoque permanecia em depósito. O tempo, como um lento turbilhão, arrastava-o com violência para
perto e para longe dos olhos, como um montão de algas num remoinho. Havia de quinze em quinze dias uma série de saldos. A exibição de "criações" cessou. O novo entretenimento era a liquidação da noite de sexta-feira. James atirava-se a uma parte do seu estoque, fazia uma confusão de tudo aquilo, delirantemente gastava uma quarta e uma quinta-feira baixando os preços, e depois abria na tarde de sexta-feira. À noite, havia uma multidão. Uma saia de baixo em bom moiré por
um-e-onze-três não era para desprezar, e uma bela gola de rendas por seis-três, depois de engomada, valeria pelo menos três-e-seis. Era o que iria acontecer: tudo aquilo, depois de engomado, se transformaria em coisas realmente bonitas, pobre estoque amarrotado de James. Sua bela e semitransparente face corava, os olhos relampejavam quando ele recebia as moedas em troca dos laços de fita ou dos maços de alfinetes. A loja ficava cheia de mulheres que espreitavam, que agarravam e devolviam as coisas e faziam comentários em voz alta e insensível. Porque havia ainda muitos lotes cômicos. Uma vez, por exemplo, ele repentinamente amontoou pilhas de chapéus, enfeitados e não enfeitados, das formas mais sobrenaturais, impertinentes e extravagantes. Woodhouse divertiu-se nessa noite.
      Durante esse tempo, em seu hábito calmo, polido e refletido, Miss Pinnegar servia o público, mostrando uma considerável paciência com uma tintazinha de desprezo.
Ficava muito fatigada nessas noites... os cabelos sob a rede invisível tornavam-se mais corredios e as faces descaíam purpúreas e afogueadas. Mas, enquanto James ali estava, ela permanecia também. O público não gostava dela, contudo ela influenciava o público. E o estoque diminuía lentamente. Algumas coisas estavam em retalhos. A loja parecia ter digerido parte de seu conteúdo.
      James acumulava avaramente moedas de seis pence. Felizmente para as costureiras, Miss Pinnegar tomava conta ela própria das encomendas e recebia os pagamentos das suas próprias produções. Alguns de seus fregueses habituais pagavam-lhe um xelim por semana, ou menos. Ora, isto dava um pequeno lucro fixo. Ela tirava sua própria e modesta parte, pagava as despesas de sua oficina e deixava o resto para James.
      Este acumulara moedas de seis pence e desimpedira um pouco a loja. Desistira das "criações". Era tempo para novo vôo. Concluiu que era melhor ser industrial do que  comerciante. A loja, já na metade do seu primitivo tamanho,
era ainda demasiado grande. Podia ser dividida uma vez mais. Os impostos tinham aumentado em Woodhouse. Por que não separar outra loja do primitivo estabelecimento?
      Assim o pensou, assim o fez. Veio o arquiteto com quem ele jogara muitas partidas de xadrez. Seria melhor, disse o arquiteto, separar uma loja de bom tamanho a dividir ao meio o estabelecimento primitivo. James ficaria pouco à vontade, um pouco apertado em apenas a terça parte do seu espaço presente. Mas com a idade as pessoas fazem-se teimosas.
      Mais marteladas e alterações, e James veio a
encontrar-se engaiolado numa comprida e estreita loja,
escura na parte de trás, com uma alta e oblonga janela e
uma porta metida numa quina apertada. O vizinho era um alegre e jovem merceeiro de coisas baratas e de florida figura. O novo merceeiro assobiava Assim como a hera e gritava tumultuosamente ao caixeiro. À porta, avançando sob o olhar sensível de James, estava uma pirâmide de latas de salmão de seis pence e meio, latas vermelhas e brilhantes, onde estava estampada a imagem de um salmão em postas, e outra pirâmide amarela de latas de ananás de quatro pence e meio. Toucinho pendia em pálidos pedaços quase por cima da porta de James, enquanto a palha e o papel perfumados pelo queijo, a banha e os ovos podres se infiltravam até a soleira.
      Isso descia sobre o mundo como uma vingança, mas o que James perdia no rés-do-chão, tentava recuperá-lo no andar de cima. Sabe Deus o que ele teria feito se não fosse Miss Pinnegar. Esta defendia daquele sua própria oficina com uma doce, pesada e silenciosa tenacidade que teria derrotado homens mais fortes do que James. Mas a força deste repousava sobre a sua flexibilidade. Esquadrinhava os sótãos vazios, por entre a maquinaria sem uso. Armou de novo as máquinas, comprou mais duas novas, e fundou uma nova seção, fabricando elástico para ligas e chapéus.
      Estava imensamente orgulhoso com as primeiras
partidas de elástico e viu dessa vez Dona Fortuna com as condescendentes mãos amarradas. Mas, acostumado às desilusões, ele verificou que cada centímetro de elástico
lhe custava exatamente sessenta por cento mais do que o preço por que o poderia vender, e então sacrificou a nova seção.
Felizmente, vendeu uma máquina e ganhou ainda com isso duas libras.
      Depois disso, fez um último esforço. Este consistiu em um tecido de malha com o que se poderia fazer coisas nunca
vistas. Miss Pinnegar vigiava esse negócio, que bem depressa abortou. Então, James deixou-a só.
      Entretanto, a loja desembaraçou-se vagarosamente dos trastes. Nas quintas-feiras à tarde, James punha de lado montões de retalhos, vestimentas antigas e pechinchas de ocasião. Com isso enfeitava a vitrina até fazê-la parecer um museu histórico, sujo e desordenado. Dentro, fazia cestos de coisas: cestos de três, seis e nove pence, como pastelões em que cada artigo era uma ameixa. E então, sexta-feira à tarde, magro e ativo, agitava-se por detrás do balcão, com o casaco miseravelmente abotoado no peito estreito e com as faces excitadas. Cortara as suíças, a ponto de se tornarem tão pequenas como as orelhas. O bigode grisalho, até então grande, fora repuxado por baixo da boca. O cabelo, que se tornara raro, fino e flutuando sobre a careca, fora escovado. Mas ainda cavalheiro, ainda cortês, com uma voz persuasiva,
fazia sugestões sobre as possibilidades de uma aplicação de penas verdes de papagaio ou de alguns metros de enfeite
de pérolas cor-de-rosa ou de uma velha franja. As mulheres apertavam a espessa e rara franja velha, delicada e desbotada, ansiosas por apalpar sua maciez. Mas não poderiam dar três pence por ela. Fitas, galões, tranças, botões, plumas, jabôs, peles, aplicações, franjas, guarnições de azeviche, enfeites de contas de vidro, maços de velhas rendas de cor feitas à máquina, muitos maços de estranhos cordões de todas as cores, para galões à moda antiga, fitas com a inscrição "H. M. S. Birkenhead", para bonés de criança à maruja... tudo aquilo que ninguém desejava e que as mulheres mexiam e remexiam até que lobrigassem uma pechincha. E os olhos vivos de James observavam a onda vagarosa dos
destroços flutuando, tal como a água da panela que ferve mas que não se evapora. Era extraordinário que não pensasse nos dias em que aqueles retalhos eram tesouros novinhos. Mas na realidade não pensava nisso.
      E a seu lado Miss Pinnegar recebia tranqüilamente as encomendas de camisas, discutia e punha-se de acordo, tomava medidas e recebia dinheiro por conta.
      A loja abria agora apenas às sextas-feiras à tarde e à noite, e, assim, todos os dias, duas vezes por dia, James era visto, de cabeça nua, descendo apressadamente a rua, como se fosse impelido pelo destino, em direção ao Clube Conservador, e duas vezes por dia era visto regressando apressadamente para comer. Estava se tomando velho: a filha era uma mulherzinha, mas em seu pensar era ainda o mesmo homem e a filha, uma criança, a mulher uma jovem inválida a quem era preciso agradar com algumas atenções delicadas, como a de descascar-lhe uma maçã.
      No clube, esperavam-no outros males. Fez ali conhecimento com homens que pretendiam explorar uma olaria perto da linha férrea. O terreno chamava-se Klondyke. James
tinha agora novo sítio para onde correr: nos baixos da colina de Bagthorpe, em Klondyke. Grandes malmequeres cresciam em tufos perto da areia amarela em Klondyke, flores amarelas estendiam floridos tapetes estivais. James voltava a casa todo coberto de areia, discorrendo brilhantemente sobre areia, barro, prensas, fornos e moinhos para barro. Levara para casa um tosco e rosado tijolo e regozijava-se ao vê-lo. Era um sólido tijolo, era um tijolo impermeável. Era um tijolo feio, horrivelmente pesado e ressequido.
      Dessa vez, tinha certeza: Dona Fortuna erguer-se-ia
da terra como Perséfone. Estava tanto mais certo disso quanto era certo que outras pessoas da cidade se encontravam com
ele nessa aventura: merceeiros e picheleiros sérios e
endinheirados. Todos iam ficar ricos.
      Klondyke durou um ano e meio, e não foi de todo mau negócio, porque, no fim, ponderadas todas as crises, James não perdera senão cinco por cento do seu dinheiro. De fato, ponderadas todas as crises, ele estava quase quite. Não obstante, considerava Klondyke o maior de todos os golpes. Miss Pinnegar tê-lo-ia estimulado e auxiliado noutro projeto, se isso pudesse distraí-lo. Até Miss Frost era boa para ele. Mas era inútil. No ano que se seguiu a Klondyke, envelheceu, parecia ter perdido a plumagem, tinha um aspecto depenado e vacilante.
      Contudo, despertou depois de uma greve de carvão. A Asfixia por Meio Pêni infundiu-lhe vida nova. Durante a greve de carvão, os próprios mineiros começaram escavando no campo, mesmo ao pé das casas, em busca do carvão superficial. Atrás da capela metodista da Nova Seita encontraram um abundante veio de carvão impuro e amarelado. O veio foi aberto à borda de um monte a que conduzia um ribeiro; o poço era um declive. Por baixo, andavam as pessoas. Quando a greve terminou, dois ou três mineiros continuaram extraindo o carvão mole e impuro que vendiam a oito-e-seis pence por tonelada, ou a seis pence por quintal. Mas um povo de mineiros desprezava uma tal
imundície, como eles lhe chamavam.
      James Houghton, todavia, foi tomado do desejo de explorar o veio do Prado da Seita, como ele lhe chamava. Juntou-se a dois mineiros... rumava sem cessar para o campo, falava, como antes nunca fizera, com inúmeros mineiros. Fazia parar toda a gente que encontrava e a toda gente falava do Prado da Seita.
      Acabou por abrir um poço, de vinte metros de profundidade, armou uma barraca de ferro ondulado com
uma grua e descia os homens um de cada vez para o poço, num balde de ferro. Era um negócio acanhado, de amadores, que não valia dez-réis. Em três meses foi esquecido o nome Prado da Seita. Todos conheciam o sítio por a "Asfixia por Meio Pêni". "Quê!", dizia um mineiro à mulher: "Já não há carvão? Você podia buscá-lo na Asfixia por Meio Pêni". "Não", replicava a mulher. "Eu não quero queimar uma porcaria daquelas e ficar sufocada em fumaça branca."
      Foi nos primeiros tempos da Asfixia por Meio Pêni que Mrs. Houghton morreu James Houghton chorou e pôs um fumo preto no chapéu de seda dos domingos. Mas ele estava
fervorosamente ocupado na Asfixia por Meio Pêni, vendendo quintais de forragens da cova do lixo, como as pessoas dali chamavam àquilo, para pensar em qualquer outra coisa.
      Tinha três homens e dois rapazes trabalhando no poço, além de um velho para trabalhar com a grua. E apesar de todas as troças, ele prosperava. Velhos e desconjuntados carros de carvão arrastavam-se atrás da Nova Seita e enchiam-se no poço. O carvão melhorou um pouco de qualidade; era barato e ficava à mão. Por fim, James podia vender cinqüenta ou sessenta toneladas por semana porque o artigo era fácil de extrair. E agora enfim lidava realmente com dinheiro. Imaginava-se à frente de milhões.
      Isso foi assim durante mais de um ano. Um ano
após a morte de Mrs. Houghton, Miss Frost adoeceu e morreu repentinamente. Mais uma vez James Houghton chorou e tremeu.
Mas era a Asfixia por Meio Pêni que o fazia tremer.
Tremiam-lhe todos os membros com a aproximação do sucesso. Via-se fazendo nobres economias para sua filha única.
      Mas, aí... cansa repetir sempre a mesma coisa. Primeiro a Câmara de Comércio começou a levantar dificuldades. Em seguida, foi uma quebra no veio. Depois, o teto da Asfixia por Meio Pêni estava tão mal seguro e mole... mas James não dispunha de recursos para a reparação. Em resumo, quando a filha Alvina estava perto dos vinte e sete anos, a Asfixia por Meio Pêni fechou. Houve um leilão das pobres máquinas, e James Houghton regressou à casa escura e melancólica, a Miss Pinnegar e a Alvina.
      Era uma casa miserável e lúgubre. James parecia ter chegado ao fim. Mas Miss Pinnegar persuadiu-o a abrir de novo a loja nas tardes de sexta-feira. O resto do tempo, definhado e doente, ele sombriamente apressava-se a ir até o clube.
     
     
      CAPÍTULO 2 - A ASCENSÃO DE ALVINA HOUGHTON

      A heroína desta história é Alvina Houghton. Se a deixamos de fora no primeiro capítulo de sua própria história é porque, durante os primeiros vinte e cinco anos de sua vida, ela realmente não contava para nada, ou se obscureceu como se fosse insignificante. Ela e a mãe eram as passageiras fantasmas no barco dos destinos de James Houghton.
      Em Manchester House todas as vozes baixavam de tom.
E assim, desde o princípio, Alvina falava numa voz calma, delicada e quase monacal. Era uma criança magra, de delicados membros e faces, e olhos grandes, cinzento-azulados e irônicos. Mesmo muito pequena, tinha já aquela singular inclinação de pálpebras que lhe dava o aspecto de quem hesita na troça. Se o fazia, era inteiramente sem o saber, porque sob os cuidados de Miss Frost não recebia educação em ironias ou em escárnio. Miss Frost era franca, bem-humorada e um pouco grave. Conseqüentemente, Alvina, ou Vina, como lhe chamavam, apenas entendia os modos explícitos da franqueza bem-humorada.
      Não se sabia qual a maior sombra que envolvia a criança: se a de Manchester House, escura e com o seu quê de sinistro, ou a de Miss Frost, benevolente e protetora. Era suficiente que a moça venerasse Miss Frost; ou que acreditasse nisso.
      Alvina nunca foi à escola. Recebia lições de sua querida governanta, estudava piano, passeava e, quanto à vida social, ia à capela congregacionista e às funções ligadas à capela. Enquanto era pequena, ia duas vezes à escola dominical e uma vez à capela, aos domingos. Então, ocasionalmente, havia um espetáculo de lanterna mágica ou uma leitura piedosa, ao que Miss Frost a acompanhava. Quando cresceu, entrou para o coro da capela, freqüentava o Esforço Cristão e PSA e a Sociedade
Literária nas noites de domingo. A capela forneceu-lhe uma completa atividade social, no decurso da qual travou conhecimento com certos grupos de pessoas, arranjou alguns amigos, teve oportunidade para passeios na região e para ir aos divertimentos locais. Por cima de tudo isso, nas noites de quinta-feira ia à biblioteca circulante substituir o fornecimento semanal de livros, e aí de novo encontrava amigos e pessoas conhecidas. É difícil exagerar o valor da igreja ou da capela, particularmente da última, como instituição social, em terras como Woodhouse. A capela congregacionista deu a Alvina toda uma vida exterior, sem a qual ela teria sido na verdade pobre. Não era particularmente religiosa por inclinação. Talvez a beleza das orações do pai
a tocasse. Assim, ela de nenhuma duvidava e nenhuma aceitava, mas tolerava.
      Fez-se uma moça magra, de aparência distinta, com um rosto esguio, nariz fino, ligeiramente arqueado, e belos olhos cinzento-azulados sobre os quais as pálpebras caíam numa inclinação singular e sardônica. A maneira sardônica era, todavia, muito recolhida. Era uma "senhora", sem de qualquer modo ser veemente. Na rua, seu andar era um movimento delicado e lento, a face denotando tranqüilidade. Conversando, era rápida e apressada, com intervalos de repouso de boa educação e atenção. A voz era como a do pai, flexível e curiosamente atrativa.
      Por vezes, contudo, Alvina tinha ataques de tumultuosa hilaridade, não absolutamente natural, com uma estranha maneira meio patética, meio sarcástica. O pai tinha
tendência para um tom arrogante e trocista. Em Vina eram loucas explosões de hilariante sarcasmo. Isso desassossegava Miss Frost. Esta vigiava a estranha face da moça, que tomava o ar de uma gárgula. Via os olhos rolando de modo estranho sob as pálpebras sardônicas, e então Miss Frost sentia que nunca, nunca tinha conhecido alguém tão completamente diferente, incompreensível e antipático como sua querida Vina. Durante trinta anos a forte e protetora governanta educou e cuidou do seu cordeiro, da sua pomba, somente para ver o cordeiro abrir uma boca de lobo, para ouvir a pomba despedir o cacarejo selvagem de uma gralha ou de uma pega,
um som estranho de irrisão. Em tais momentos, o coração de Miss Frost gelava. Não ousava reconhecer. E censurava e reprimia a pupila, restituindo-lhe a habitualmente impulsiva e afetuosa gravidade. Depois, afastava o caso. Era apenas uma aberração acidental por parte da moça, derivada da sua própria natureza. Miss Frost ensinava inteiramente a Alvina as qualidades da sua verdadeira natureza e Alvina acreditava em tal ensino. Durante vinte anos, manteve-se a criatura grave e delicada que a governanta desejava. Mas havia um olhar singular e trocista por trás de seus olhos, um olhar de velho saber e deliberada irrisão. Nem ela própria tinha consciência disso. Mas era assim. E era isso, talvez, o que afugentava os rapazes.
      Alvina atingiu a idade dos vinte e três anos e parecia que estava destinada a enfileirar junto das solteironas, dentre as quais muitas encontravam frio conforto na capela. Porque ela não tinha pretendentes. Na verdade, havia extraordinariamente poucos rapazes do seu meio em Woodhouse; pois, fosse qual fosse a sua condição, ela tinha certa educação e inerente cultura. Os rapazes do mesmo nível social eram-lhe por muitas razões estranhos. Nada sabendo, sua sapiência ia fundo, mais fundo do que Woodhouse podia medir. Por isso, os rapazes não gostavam dela. Não gostavam da inclinação das suas pálpebras.
      Miss Frost, com previdente ansiedade, persuadiu a moça
a arranjar alguns alunos para lições de piano. O trabalho era desagradável a Alvina. Não era boa professora. Manteve-se sem grandes cuidados, um tanto indiferente.
      Quando fez vinte e três anos, Alvina conheceu um homem chamado Graham. Era um australiano que estava em Edimburgo tirando o curso médico. Antes de voltar à Austrália, veio passar alguns meses praticando com o velho Dr. Fordham de Woodhouse... o Dr. Fordham que era parente de sua mãe.
      Alexander Graham foi chamado para ver Mrs. Houghton. Mrs. Houghton não gostou dele. Achou-o indolente. Era homem de meia altura, de cor escura, com olhos muito negros, e com um corpo que parecia nadar dentro do terno. Era amável e polido, ria freqüentemente, mostrando os dentes. Eram os dentes que Miss Frost não podia suportar. Parecia-lhe ver uma boca forte, cheia de dentes cruéis e compactos. Declarou que ele tinha sangue negro nas veias, que não era homem digno de confiança, e que nunca, nunca poderia fazer feliz a vida de uma mulher.
      Porém, apesar de tudo, Alvina estava atraída por ele.
Os dois permaneciam juntos, rindo e conversando horas seguidas. O que podiam arranjar para dizer era um mistério. Contudo, eles lá estavam, rindo e tagarelando, num tom fluido e insinuante que tornava Miss Frost incapaz de se conter.
      O homem corria para a casa sempre que Miss Frost saía. Arranjou pretexto para encontrar Alvina à noite, para passearem. Uma noite, deu com ela um grande passeio e quis fazer uma declaração de amor. Mas a educação era demasiado forte nela.
      - Oh, não - disse ela. - Nós somos só amigos. Graham sabia que a educação dela era demasiado forte também para ele.
      - Nós somos mais do que amigos - retrucou ele. - Nós somos mais do que amigos.
      - Não me parece - disse ela.
      - Sim, somos - insistiu ele, tentando enlaçá-la pela cintura.
      - Não faça isso - gritou ela. - Vamos para casa.
      Então, ele rebentou em ardentes e íntimos protestos de amor, que a fizeram estremecer e causaram-lhe ligeira aversão.
      - Seja como for, tenho de falar a Miss Frost - disse.
      - Decerto, decerto - respondeu ele. - Mas é preciso que eu faça depressa o pedido.
      Passaram debaixo de uma lâmpada e ele viu-lhe as
faces exaltadas, os olhos brilhantes, as delicadas narinas dilatadas como as de quem pressente a batalha e se ri dentro de si. Parecia rir com certa orgulhosa e virtuosa indiferença. As mãos tremiam-lhe de desejo.
      Assim se prometeram um ao outro. Ele comprou um anel para ela, uma esmeralda engastada em pequenos diamantes. Miss Frost encarou o caso de maneira grave e silenciosa, mas não queria abertamente negar sua aprovação.
      - Gosta dele, não gosta? Não lhe é antipático, não é mesmo? - insistiu Alvina.
      - Não, não me é antipático - replicou Miss Frost. - E por que haveria de sê-lo? Ele é uma pessoa que eu nunca vi.
      E com isso Alvina sutilmente se contentou. O pai tratava o rapaz com discreta atenção, pontuada por acessos de impaciente hostilidade e ciúme. A mãe unicamente suspirou
e aspirou sais.
      Falando a verdade, Alvina estava um pouco enfadada com
a maneira de ele fazer a corte. Achava-o fascinante mas com
o seu quê de repelente. E ela não tinha certeza se odiava o elemento repelente ou se se deliciava com ele. Mantinha o
ar de indiferença astuta e meio trocista, que era tão insuportavelmente penosa a Miss Frost e tão excitante para
o sombrio rapaz. Era um ar estranho em moça delicada e virgem... irregularmente sinistro. E a voz dela tinha uma curiosa ressonância de bronze que exercia direta influência sobre os nervos dos ouvintes; desagradavelmente sobre os de muitos ingleses, mas como fogo sobre a suscetibilidade do rapaz... o escurinho, como o povo o chamava.
      Mas, depois de tudo, restavam-lhe apenas seis semanas para passar na Inglaterra antes de embarcar para Sydney. Propôs que se casassem antes de ele partir. Miss Frost nem quis ouvir isso. Primeiro que veja a família, dizia ela.
      Assim, o tempo passou, até que ele partiu. Alvina sentiu sua falta, sentiu a falta da sua excitação extrema mais do que do ser humano, que ele era. Miss Frost dedicou-se à tarefa de reconstituir a influência que tinha sobre a pupila, de fazer desaparecer da face da moça aquele ar astuto e quase licencioso. Era uma luta do coração contra a sensualidade. Miss Frost tentou por todos os modos despertar de novo o coração amoroso da moça... que não estava certamente ocupado por aquele homem. Era uma tarefa difícil, uma inquietante
e amarga tarefa a que Miss Frost se tinha entregado.
      Mas por fim ganhou a partida. Alvina pareceu
derreter-se. A brilhante dureza de seus olhos tornou-se doce de novo, numa espécie de gravidade e de ternura. A influência
do homem estava esquecida, a moça ficou desabitada, vazia e inquieta.
      Ela devia ir ter com Alexander, em Sydney, depois de três meses. Vieram cartas dele, escritas durante a viagem... e depois um cabograma da Austrália. Chegara. Alvina devia estar preparando o enxoval, para seguir. Mas, devido à mudança de sentimentos, estava indecisa.
      - Gosta dele realmente, filha? - dizia Miss Frost com ênfase, unindo as sobrancelhas espessas e enérgicas. - Gosta dele suficientemente? Isso é o que interessa saber.
      A maneira como Miss Frost punha a questão implicava que Alvina não o amava nem podia amá-lo... porque Miss Frost não o podia. Alvina ergueu os grandes olhos azuis, confundidos, meio enternecidos com a governanta, meio brilhantes de inconsciente irrisão.
      - Eu nem sei realmente - respondia Alvina, rindo apressadamente. - Eu nem sei.
      Miss Frost perscrutou-a e replicou, cheia de sentido:
      - Bem!...
      Para Miss Frost era claro como a luz do dia. Para Alvina, não tanto. Nos seus períodos de lucidez, quando via tão claro como a luz do dia também, realmente não amava o homenzinho. Achava-o um estrangeiro horrível, um inferior, para falar a verdade. Admirava-se de como podia ter tido a mais leve atração por ele. De fato, não podia compreendê-lo. Estava tão livre dele como se ele nunca tivesse existido. A esmeralda quadrada no seu dedo era quase um absurdo. Estava inteiramente segura de si.
      E depois, irritantemente, uma completa volte-face
em seus sentimentos. A disposição clara-como-a-luz-do-dia desaparecia como a luz do dia tem de desaparecer. Ela
via-se numa noite em que o rapaz surgia grande, espantosamente grande, poderoso e mágico, enquanto Miss
Frost minguava até desaparecer em nada. Em tais alturas
desejava com todas as forças que pudesse ir como um cabograma para a Austrália. Sentia que era esse o caminho. Sentia que a sombria e apaixonada receptividade de Alexander a tocava, a envolvia, mesmo dos antípodas. Sentia-se caminhando para a loucura, sentia que perdia a lucidez. Porque não podia agir.
      A mãe e Miss Frost eram firmes na maneira de pensar. O pai disse:
      - Fará o que melhor lhe parecer. É muito arriscado ir assim tão longe... muito arriscado. Não terá ninguém que a proteja.
      - Não me importo de não ter quem me proteja - disse ela perversamente.
- Porque não sabe o que isso seja - retrucou o pai. Lançou à filha um olhar rápido. Talvez a compreendesse
melhor do que os outros.
      - Pessoalmente - disse Miss Pinnegar, falando de Alexander - ele não me diz nada. Mas cada um tem seu modo
de pensar.
      Alvina viu que a subjugavam e que ela própria se estava deixando subjugar. Estava meio aliviada. Parecia abrigar-se na bem-conhecida segurança de Woodhouse. O desconhecido
tinha-a assustado. Miss Frost tomava agora posição definida.
      - Eu sinto que você não gosta dele, filha. Tenho quase a certeza disso. Assim, tem de escolher. Sua mãe tem receio de que você vá... tem receio. Pode ter certeza de que nunca... mais a veria. Ela diz que não tem forças para suportar isso... para suportar a idéia de você estar lá longe com Alexander. Isso a faz tremer. Bem sabe que ela sofre horrivelmente. Tem de escolher, menina. E tem de escolher o melhor.
      Com tantas pressões, Alvina tornava-se teimosa. Ela própria acreditava em que não o amava. Tinha absoluta certeza de que não o amava. Mas, por uma certa perversidade, queria ir.
      Veio carta dele de Sydney, uma dos pais para ela e
outra para os pais dela. Todos pareciam francos, não muito cordiais, mas o suficiente. Miss Frost chorou lágrimas
amargas sobre a carta de Alexander. Parecia-lhe uma missiva frívola e fria, com palavras de meiguice espetadas como pontos de exclamação. Ele parecia não ter nenhum pensamento, nenhum sentimento em relação à moça. Tudo o que queria era levá-la dali depressa. Nem sequer aludia às saudades, pela sua partida, dos pais e dos amigos ingleses; nem uma palavra. Apenas a pressa de fazê-la partir, ao concluir: "E agora, querida, não descansarei enquanto não vir você aqui em Sydney. O que a ama para sempre, Alexander". Uma criatura egoísta, sensual, que teria esquecido a pobre Vina em três meses, se ela não fosse, e que não se importaria com ela depois de seis meses, se ela fosse. Miss Frost possivelmente tinha razão.
      Alvina sabia das lágrimas que provocava à sua volta. Subiu a escada e contemplou a fotografia... o focinho negro
e impertinente dele. Quem era ele, afinal de contas?
Ela não o conhecia. Olhava-o com olhos frios e achava-o repugnante.
      Dirigiu-se ao quarto da governanta e encontrou Miss Frost num estranho estado de agitação.
      - Não acredite em mim, querida, não acredite no que
eu digo - desfechou Miss Frost precipitadamente, até mesmo loucamente. - Não dê atenção ao que eu tenho dito. Faça o que quiser. Bem sei que faço mal em querer influenciá-la. Sei que faço mal. É maldade e loucura de minha parte. Faça apenas o que lhe apetecer, querida. O resto não interessa. Não se importe nada com o que lhe tenho dito. Bem sei que estava enganada.
      Pela primeira vez na sua vida, Alvina viu a querida governanta perturbada, o belo cabelo branco um pouco desalinhado, os olhos cinzentos e míopes, tão profundos
e bons atrás dos óculos de aros de ouro, agora distraídos
e assustados. Alvina rebentou imediatamente em lágrimas e lançou-se nos braços de Miss Frost. Esta chorava também como se seu coração se estivesse partindo, mantendo a respiração com um estranho som de angústia e de abandono, o gritar terrível de uma mulher de coração amoroso que nunca se habituara à moderação. Alvina sossegou. Num segundo,
tornou-se a mais velha das duas. A terrível acrimônia dessa mulher de cinqüenta e dois anos, que enfim se esfacelara, calou a moça de vinte e três, e despertou toda a sua apaixonada ternura. O som terrível de "Nunca mais, nunca mais... é muito tarde", que parecia cantar nos curiosos e abstratos gritos da mulher mais velha, encheu a moça de uma profunda sabedoria. Ela sabia que o mesmo soaria no grito de sua mãe moribunda. Casada ou não, era o mesmo... a mesma angústia sentida em toda a sua dor depois dos cinqüenta anos, o prejuízo de nunca ter sido capaz de se libertar, de se submeter.
      Alvina sentia-se muito forte e rica com o fato da sua juventude. Para ela não era ainda tarde demais. Quanto a Miss Frost, era para sempre demasiado tarde.
      - Eu não quero ir, querida - falou Alvina à mulher mais velha. - Eu sei que não gosto dele. Ele não representa nada para mim.
      Miss Frost tornou-se gradualmente silenciosa e virou o rosto para o lado. Depois disso voltou a calma àquela casa. Alvina anunciou ter a intenção de quebrar o compromisso. A mãe beijou-a e gritou, dizendo com o egoísmo de uma inválida:
- Eu nunca poderia me separar de você, nunca. Entretanto, o pai falou:
      - Parece-me que procede com acerto, Vina. Eu pensei muito no caso.
      Então, Alvina empacotou o anel, as cartas e as lembranças e enviou tudo para além-mar. Ficara realmente aliviada; como se tivesse escapado a alguma penosa aventura.
Durante alguns dias, sentiu-se feliz, em puro alívio. Amava toda a gente. Era encantadora, alegre e gentil com todos, particularmente com Miss Frost, que ela amava com profundo, terno e quase doloroso amor. A pobre Miss Frost parecia ter perdido parte de sua confiança, ter-se revestido de novo modo pensativo, novo silêncio e distância. Era como se achasse o seu ativo contato com a vida um violento presente. Talvez estivesse envelhecendo. Talvez seu coração orgulhoso tivesse cedido.
      Alvina ficara com uma pequena fotografia do rapaz. Muitas vezes ia procurá-la e a contemplava. Amor?... Não, não era amor. Era qualquer coisa de mais primitivo ainda. Era curiosidade, profunda, radical, ardente curiosidade. Como ela contemplava aquela sombria e impertinente face! Um bruxuleio de irrisão assomou-lhe aos olhos. Contudo, ela olhava sempre.
      Do mesmo modo ela olhava o rosto dos rapazes de Woodhouse. Mas nunca encontrou neles o que encontrava na fotografia. Todos lhe pareciam como folha de papel branco,
quando os comparava. Havia uma pálida e superficial expressão no rosto dos rapazes de Woodhouse: ou, se debaixo havia
algum poder de sugestão, era um pouco abjeto ou humilhante, inferior, comum. Eram todos ou vazios ou vulgares.
 
      CAPÍTULO 3- ENFERMEIRA DE MATERNIDADE

      Certamente Alvina fez com que todos pagassem aquela disposição de submissão e doçura. Num mês tornara-se intolerável.
      - Não posso passar aqui a vida - declarou, forçando
os olhos da maneira que irritava extremamente os outros habitantes de Manchester House. - Eu sei que não posso.
Não posso suportar isto. Nada mais: não posso suportar,
e isto tem de ter um fim. É o que lhes digo, não posso. Não posso suportar isto. Estou enterrada... só isso: enterrada viva. Está acima de minhas forças. É isso mesmo.
      Havia uma singular estridência, como um insulto, na voz dela. Todos eles eram postos à prova.
      - Mas que quer você, querida? - perguntava Miss Frost, unindo, agitada, as sobrancelhas negras.
      - Quero ir embora - respondeu Alvina, bruscamente.
      Miss Frost fez com a mão direita um leve gesto de impotente impaciência. Este era tão expressivo que Alvina quase se pôs a rir.
      - Mas para onde é que você quer ir? - perguntou Miss Frost.
      - Não sei nem me importa - disse Alvina. - Para qualquer parte, desde que seja fora de Woodhouse.
      - Está arrependida por não ter ido para a Austrália?
- entrepôs Miss Pinnegar.
      - Não, não estou arrependida por não ter ido para
a Austrália - retorquiu Alvina num riso grosseiro. - A Austrália não é a única terra fora de Woodhouse.
      Miss Pinnegar ficou naturalmente ofendida. Mas a curiosa insolência que muitas vezes se manifestava na moça era diretamente herdada do pai.
      - Bem vê, menina - disse Miss Frost agitada - Se você soubesse o que quer, seria mais fácil decidir o que deve fazer.
      - Quero ser enfermeira - atirou Alvina.
      Miss Frost permanecia tranqüila, com a tranqüilidade
de uma mulher de meia-idade, desaprovadora, e olhando para
a aluna. Ela pensava que Alvina estava falando ao acaso. Contudo, não ousava repreendê-la, no estado em que se encontrava.
      Alvina falava ao acaso, na verdade. Nunca pensara em ser enfermeira... nunca tal idéia lhe passara pela cabeça. E se tivesse passado, certamente não teria tido bom acolhimento. Mas ela ouvira Alexander falar da Enfermeira Fulana e da Irmã Sicrana. E assim atirara aquela declaração. E tendo-a atirado, preparava-se para se agarrar a ela. Nada como dar o salto sem olhar primeiro.
      - Enfermeira! - repetia Miss Frost. - Mas você se acha capaz de ser enfermeira? Acha que tem força para isso?
      - Sim, tenho certeza de que posso - retorquiu Alvina.
- Quero ser enfermeira de maternidade. Dessa maneira nunca precisarei assistir a operações. - E ria-se nervosamente.
      A mão direita de Miss Frost batia como ave ferida.
Ela se lembrava do tempo em que batia o compasso, insistentemente, quando dava lições de música, sentada
ao piano, ao lado dos alunos. Agora, batia sem compasso
e sem razão. Alvina sorria com vivacidade e crueldade.
      - Como se meteu tal idéia em sua cabeça, Vina?
- perguntou a pobre Miss Frost.
      - Isso só interessa a mim - respondeu Alvina, ainda mais astuta e viva.
      - Com certeza você nem pensa nisso - disse Miss Frost, desanimada.
      - Mas claro que penso. Se não o pensasse, para que falaria nisso?
      Miss Frost teria feito tudo para evitar os astutos, vivos e cruéis olhos da pupila.
      - Pois então temos de pensar no caso - falou ela, molemente. E saiu.
      Alvina correu para o quarto e sentou-se à janela, olhando a rua. O olhar astuto e vivo não a abandonara ainda. Mas o coração estava ferido. Tinha vontade de chorar, de se lançar ao peito de sua querida. Mas não podia. Não, pela sua vida, não podia. Um diabinho se sentara no peito dela e lhe conservava aquele sorriso astuto.
      Com espanto seu, aquele se instalou por dias e dias. A toda hora esperava que ele se fosse. A toda hora esperava
ceder, rebentar em lágrimas de ternura e reconciliação. Mas não... ela não cedia. Teimava. Todos os outros esperavam que a antiga Vina afetuosa renascesse. Mas a nova e recalcitrante Vina sobressaía cheia de força. Achou um exemplar de The Lancet e viu o anúncio de uma casa em Islington onde em seis meses se ensinavam e formavam enfermeiras para maternidades. O preço era sessenta guinéus. Alvina anunciou que tinha intenção de partir para essa escola. Tinha duzentas libras em bens próprios deixados pelo avô.
      Todos ficaram horrorizados em Manchester House... não pesarosos, desta vez, mas escandalizados. Isto parecia-lhes um passo repugnante e indelicado. E era. E Alvina, em sua curiosa perversidade, queria que o fosse. Mrs. Houghton tomou uns ares longínquos e silenciosos, como se nada mais ouvisse ou lhe dissesse respeito. Deixava correr. Estava realmente muito fraca. Miss Pinnegar dizia:
      - Pois bem, se ela o quer, que o faça. - E, como era freqüente em Miss Pinnegar, essas palavras pareciam conter uma velada ameaça.
      - Enfermeira de maternidade! - exclamava James Houghton. - Enfermeira de maternidade! Mas o que entende afinal por isso?
      - Parteira habilitada - falava secamente Miss Pinnegar. - É isso, não é? É pelo menos o que eu penso. Parteira habilitada.
      - Sim, claro - disse Alvina, alegremente.
      - Mas...! - gaguejou James Houghton, puxando os óculos para a testa e fazendo com que os fios dos raros e finos cabelos lhe descobrissem a careca. - Não posso compreender que uma moça com... com certa educação, com qualquer educação, possa escolher uma tal... uma tal... ocupação. Não o posso compreender.
      - Não pode? - disse Alvina, vivamente.
      - Ah, bem, se ela pode... - disse Miss Pinnegar, misteriosamente.
      Miss Frost falou pouco. Mas tinha sérias conversas confidenciais com o Dr. Fordham. O Dr. Fordham não aprovou, naturalmente não aprovou, mas não viu nenhum grande mal nisso. Então era moda as raparigas pretenderem ser enfermeiras de maternidades, se suas esperanças eram queimadas ou contrariadas! E então pediam-se informações.
Pediam-se informações.
      O resultado foi que Alvina iria para Islington fazer
os seis meses de aprendizagem. Houve grande alvoroço ao
prepararem suas coisas. Em vez de enxoval, uniformes de belo tecido com riscas azuis e brancas, com grandes aventais brancos. Em vez de uma grinalda de flores de laranjeira,
uma fina touca de seda azul, e em vez da cauda, um véu de seda azul.
      Muito bem! Alvina pensava que se ia assustar quando se aproximasse o momento da partida. Mas não, não estava nada assustada. Miss Frost vigiava-a com rigor. Voltaria a velha, terna, sensível e recatada Vina... a tão estranha, sensível, nervosa e querida moça? Não, por mais aterrador que pudesse parecer, tal criatura não voltaria. Alvina manteve-se alegre e bem-disposta, o tom meio trocista continuava em sua voz, escarnecedor. Beijou toda a gente com alegria e vivacidade
e partiu. Não estava nervosa.
      Chegou a St. Pancras, tomou um fiacre e partiu para seu destino... e pelo caminho foi olhando pela janela. Horríveis, compridas, pedregosas, escangalhadas e de pavimentes estragados, as ruas e praças de Islington, cinzentas, cinzentas, muito mais cinzentas do que as de Woodhouse, e intermináveis. Como eram tão exageradamente sórdidas e repugnantes! Mas, em lugar de sentir repulsa e desânimo, Alvina gozava aquilo. Ouvia o barulho da mala no tejadilho
do fiacre, e continuava olhando as fachadas horríveis, escangalhadas e monótonas de Islington, e sorria alegremente como se houvesse algum encanto naquilo tudo. Talvez para ela houvesse algum encanto naquilo. Talvez aquilo agisse como um tônico sobre o diabinho do seu peito. Talvez se ela tivesse visto tufos de campainhas brancas - era fevereiro - e sebes de teixos e janelas de bangalôs, ela estivesse fatigada. Tal como era, gozava aquilo. Gozava olhando de relance, através de janelas sem cortinas, sórdidos quartos onde seres humanos se moviam inconscientes daquela sordidez. Gozava o cheiro do arenque assado, ou antes queimado. Tão vulgar! Tão indizivelmente vulgar! E ela detestava os arenques, por causa da impressão de cabelo das espinhas na boca. Mas cheirá-los assim, saber que estava na região dos "bifes por um pêni", dava-lhe um prazer perverso.
      O fiacre parou junto de uma casa amarela, na esquina
de uma praça onde algumas insignificantes árvores nuas se erguiam entre pedaços de papel ao vento, pedaços de papel
e lixo em desordem à volta das grades de cada uma delas. Subiu alguns degraus de um amarelo sujo e tocou a campainha dos "Doentes", pois sabia que não devia tocar a dos
"Fornecedores". Uma criada, não propriamente suja, mas nada atraente, deixou-a num vestíbulo pintado de castanho-pálido, e pavimentado com uma esteira, sem outro ornamento. Depois, subiu as escadas nuas para uma sala onde uma mulher corpulenta, pálida e vulgar, com duas verrugas no rosto, bebia chá. Eram três horas. Era a enfermeira-chefe. Esta conduziu-a logo para o quarto de dormir, não muito pequeno mas desguarnecido e desconfortável, com aspecto de sujo, e deixou-a ali. Alvina sentou-se na cadeira, olhou para a mala à sua frente, olhou para o quarto pouco acolhedor, e sorriu  para si mesma. Depois, levantou-se e foi à janela; uma janela muito suja, dando para uma espécie de pátio, com outros pátios em fila, e em frente, como um reflexo, outra fila cerrada de compartimentos vistos pelos fundos, com escadas de ferro e horríveis portas, roupa estendida, pequenos banheiros e pessoas formigando de alto a baixo como vermes. Alvina estremeceu, mas sorriu ainda. Depois, devagar, começou a tirar o chapéu. Colocou-o sobre a cômoda pintada de castanho.
      A criada entrou então com uma bandeja, pousou-a, acendeu um bico de gás descoberto, que sibilou fracamente, desceu uma rangente cortina verde-escura, que mostrava uma tendência para vivamente voar de novo na direção do teto.
      - Obrigada - disse Alvina, e a criada saiu.
      Então Miss Houghton bebeu o seu chá preto e comeu pão com margarina.
      Decerto bastantes livros têm sido escritos acerca de heroínas em circunstâncias idênticas. Não há necessidade
de entrar em pormenores sobre os seis meses de Alvina em Islington.
      A alimentação era criticável, contudo Alvina
engordava com ela. O ar era impuro, e contudo suas cores nunca tinham sido tão quentes e frescas e sua pele tão doce. As companheiras eram quase sem exceção vulgares e grosseiras, contudo nunca tinha se entendido tão bem com mulheres da mesma idade... ou mais velhas. Tinha sempre uma gargalhada
ou uma palavra, e, posto que não fosse capaz de se arriscar ela própria com indecências, tinha, contudo, uma espantosa faculdade para ter o ar sabido e indecente além de qualquer expressão, revirando os olhos e erguendo as sobrancelhas de certo modo... Oh, isso era mais do que suficiente para as companheiras! E todavia, se elas lhe pedissem uma história suja ou uma indecência clara, ficaria desconcertada.
      Mas ela gostava daquilo. Era espantoso como gostava daquilo. Não se importava de como eram revoltantes e indecentes aquelas enfermeiras... tomava o ar de quem
participasse naquilo tudo, e tudo se passava tão facilmente como o piscar dos olhos. Balançava as ancas e arqueava os olhos o melhor possível. E contudo, com o curioso e frio
tato de mulheres, deixavam-na só, uma e todas, na intimidade; precisamente ignoravam-na.
      É verdadeiramente incrível como Alvina se tornou florescente e forte nessa época. Nada a escandalizava,
nada a transtornava. Estava sempre pronta com seu riso duro de enfermeira e com as suas caçoadas de enfermeira. Ninguém lhe valia em double-entendres. Ninguém como ela atirava um olhar malicioso. Aprendera tudo em quinze dias. E nem uma
vez sequer ela deixou de sentir-se jovial e em plena atividade. Parecia-lhe que não tinha um momento para meditar ou refletir... estava demasiadamente em movimento. Todo o tempo em movimento, vivendo, ativa, em completo movimento. Quando ia para a cama era para dormir. Quando acordava era manhã e levantava-se. Logo que se achava de pé e vestida, tinha alguém a quem responder, alguma coisa a dizer, qualquer
coisa a fazer. O tempo passava como um trem expresso... e lhe parecia nunca ter conhecido vida diferente daquela.
      Não muito longe ficava a maternidade. Era um lugar terrível. Tinha de ir para lá, imediatamente, ajudar. Ali tinha de ouvir conferências e demonstrações. Ali encontrava
médicos e estudantes. Um lindo grupo deles, por um ou por outro motivo. Se ela se revestisse de carne e se tornasse rósea e forte, seria o gênero deles: a fôrma para seus pés. Sua voz tinha o som perfeito, seus olhos o modo perfeito de revirarem, suas ancas os movimentos perfeitos. Parecia inteiramente a fôrma para o pé deles. E contudo não o era.
      Seria inútil dizer que ela não estava chocada. Estava, profunda e terrivelmente. Todo o seu estado era talvez em larga medida resultado do choque: uma espécie de peça teatral baseada na história. Mas as coisas terríveis que ela viu na maternidade, e mais tarde, foram ao fundo e destruíram-lhe para sempre a juventude e a tutela. Por quantos infernos
mais profundos, que Miss Frost jamais conheceria, não andou ela? O inferno do animal humano, o organismo humano em suas convulsões, lixo humano social em suas abjeções e degradações.
      Durante a última metade de sua estada, ela teve de visitar as casas dos bairros pobres. E que casas! Uma mulher estendida no chão nu e imundo, alguns casacos velhos atirados sobre ela, e vermes rastejando por todos os lados, apesar dos inspetores de saúde pública. Mas que importaria isso à mulher doente! Rangia os dentes e dava gritos agudos e soltava gritos raivosos com dores. Nos períodos calmos permanecia estúpida e indiferente, ou blasfemava um pouco. Mas no fundo era uma abjeta e estúpida indiferença; abjeta e brutal indiferença por tudo... sim, por tudo. Uma fêmea funcionando, nada mais.
      Alvina devia receber certa quantia por esses casos
que atendia a domicílio. Uma pequena parte dessa quantia
era para ela, o resto entregava-o à pensão. Era o ajustado. Recebia insensível a quantia dada de má vontade, ameaçava e exigia quando não eram pontuais. Ah!... se uma pessoa não
se fazia pagar por qualquer modo, essa suja gente a trataria com mais desprezo do que se a pessoa fosse do mesmo meio.
Foi uma das mais árduas lições que Alvina teve de aprender: ameaçar aquela gente, em seus próprios tugúrios, para conseguir certa obediência às suas ordens e certo respeito por sua presença. Para atingir tal fim teve de mostrar-lhes os dentes. E numa semana ela se tornou tão dura e insensível para com eles como eles o eram para ela. Dessa maneira, sua tarefa deu resultado. Ela não os odiava. Eles existiam. Levavam uma certa vida e havia que aceitá-los no que valiam e dentro do seu meio. Que mais? Quando era preciso mostrar-se gentil, procedia-se assim. A dificuldade não estava nisso. A dificuldade estava em ser suficientemente rude e áspera:
isso é que era embaraçoso. Custava muito a luta para ser suficientemente áspera e insensível. Seria uma alegria para ela se lhe fosse permitido tratá-los calma e afavelmente, com consideração. Mas, pfff... não era isso o que lhes servia. Queriam-se insensíveis e, se alguém não era insensível como eles, faziam troça e impediam que esse alguém fizesse o que tinha a fazer.
      Mas era Alvina verdadeiramente ela própria todo o tempo? O grande problema se levanta à nossa frente... o que é uma pessoa ser ela própria? Certamente não é o que pensamos que somos e devemos ser. Alvina tinha sido educada a ter-se na conta de criatura delicada, terna e casta, com tendências altruístas e uma alma pura e "elevada". Sim, era-o, mas numa parte mais ou menos exaurida de si própria. Mas a elevação
de alma terminara em James Houghton, nele tinha atingido verdadeiramente o ponto, não apenas do patético, mas do seco, anti-humano e repulsivo quixotismo. Em Alvina, a elevação de alma estava já estendida para além do limite de resistência. Sendo mulher de certa flexibilidade de temperamento, levado através de gerações até um ponto delicado, ela arrepiou carreira. Recuou na sua elevação de alma. Traiu-a ela dessa forma?
      Parece-nos que não. Se virarmos a cara de um pêni e se ficarmos olhando a coroa, não negamos nem traímos por esse motivo a cara. São duas faces que se completam. O mesmo ocorre com a elevação da alma. É apenas um lado da moeda... o lado da coroa. No reverso, continuam as três pernas fazendo girar suavemente a roda do universo, a brincadeira do golfinho e os olhares maliciosos do caranguejo.
      Assim, Alvina fazia girar sua moeda, e sua moeda caía na coroa. Cara ou coroa? Caras durante gerações. Depois coroas. Veja-se a poesia da justiça.
      Então, Alvina decidiu aceitar a decisão do destino. Ou antes, sendo suficientemente mulher, não decidiu nada. Ela era seu próprio destino. Passou por entre as experiências
de sua aprendizagem como um outro ser. Ela não era ela própria, dizia Toda-a-Gente. Quando voltou a Woodhouse pela Páscoa, com aquela touca e capa, Toda-a-Gente ficou simplesmente desconcertada. Imagine-se que aquela débil, pálida e tímida moça, tão distinta, era agora uma nutrida e corada mulherzinha, corpulenta e de forte aspecto, e com certos exageros. Imagine-se a mãe dela, espantada, quase moribunda.
      - O quê, é a minha querida Vina!
      Vina ria. Sabia o que todos sentiam.
      - Pelo menos isso fez bem à sua saúde - disse o pai, sarcasticamente; ao que Miss Pinnegar respondeu:
      - E isso já é bastante.
      Mas Miss Frost no primeiro dia não disse nada. Só no segundo, ao almoço, como Alvina comesse depressa e bem, a mulher de cabelos grisalhos disse tranqüilamente, com tintas de frio desdém:
      - Como você está mudada, menina!
      - Estou? - riu Alvina. - Oh, não realmente. - E pôs nos olhos um olhar malicioso, que fez estremecer Miss Frost.
      Interiormente, Miss Frost estremeceu e se absteve de fazer perguntas. Alvina falava sempre dos doutores: o Dr.
Young e o Dr. Headley e o Dr. James. Falava de teatros e de music-halls aonde fora com eles, e do alegre tempo que com eles passara. E seus olhos cinzento-azuis pareciam ter-se tornado mais duros e cinzentos, de algum modo mais brilhantes. Na sua ânsia e na sua terna sensibilidade, os olhos de Alvina teriam escurecido no seu azul tão belo. E agora, em sua floração, eram brilhantes e maliciosos e de um cinzento claro. O escuro, terno e poético azul desaparecera para sempre. Eram luminosos e cristalinos, como os olhos de uma criança.
      Miss Frost estremeceu, e absteve-se de perguntas. Ela queria, ela tinha necessidade de perguntar à pupila: "Alvina, deixou-se iludir por algum desses doutores?" Mas, friamente, o seu ânimo absteve-se de perguntar... ou mesmo de pensar seriamente. Por enquanto, deixava o assunto em suspenso. Estava já demasiado vexada.
      Certamente Alvina apresentava os jovens doutores
como muito simpáticos, mas também como jovens camaradas libertinos. "Valha-nos Deus, é preciso ter muito juízo
com eles!" Imaginem-se tais palavras ditas por uma moça ternamente criada: palavras proferidas em sua própria casa,
e acompanhadas do rir aberto, que conduziria uma mulher casta e generosa como Miss Frost a imaginar... bem, ela se abstinha de imaginar o que quer que fosse. Tinha força de espírito.
Nunca, por um momento sequer, esperava responder a si própria à pergunta de se Alvina fora iludida por algum daqueles doutores ou não. A pergunta permanecia feita, mas inteiramente sem resposta... friamente esperando a devida resposta. Somente quando Miss Frost se despediu de Alvina, beijando-a, na estação, as lágrimas lhe vieram aos olhos, e disse apressadamente e em voz baixa:
      - Lembre-se de que nós todos rezamos por você.
      - Não, não façam isso! - gritou Alvina involuntariamente, sem saber o que dizia.
      E depois o trem começou a andar, e ela viu a querida Miss Frost parada na estação, a face pálida e bem modelada olhando por trás dos óculos de aros de ouro, ansiosamente,
a forte e corpulenta figura permanecendo silenciosa e imóvel, no seu casaco e saia vermelho-escuros, o cabelo branco brilhando sob o chapéu escuro de abas levantadas. Alvina atirou-se para o assento do carro. Gostava de Miss Frost. Gostaria dela eternamente. Sabia que tinha razão - ampla e belamente - a sua amada, a sua querida Miss Frost. Eterna e gloriosamente certa.
      E contudo... e contudo era uma razão que se devesse observar? Havia outras razões. Havia um outro lado da medalha. Pureza e elevação de alma, bela mas insustentável
tirania. A bela e insustentável tirania de Miss Frost! Era
já tempo de Miss Frost morrer. Era já tempo para aquela perfeita flor ser recolhida pela imortalidade, uma adorável immortelle. Mas um obstáculo para outras, purpúreas e carminadas flores que estavam em botão na haste. Uma admirável edelvais, mas era tempo de ser colhida pela eternidade. Anêmonas negro-púrpura e vermelhas eram exatamente o verdadeiro sangue de Adônis, e estranhas orquídeas individuais, salpicadas e fantásticas. Era tempo de Miss Frost morrer. Ela, Alvina, que a amava como ninguém mais a teria amado, com aquele amor que vai até o centro do universo, sabia que era tempo de sua querida ser encerrada, oh, muito gentil e docemente, na imortalidade. A mortalidade estava ocupada com o dia seguinte ao seu dia. Era tempo de Miss Frost morrer. Enquanto Alvina permanecia imóvel no trem, correndo de Woodhouse para Tibshelf, isso se decidia nela.
      Ia contente por regressar a Islington, para o meio de todos os horrores dos partos. Os médicos que ela conhecia cumprimentavam-na. De uma maneira geral, esses jovens
não tinham um grande respeito pelas enfermeiras em geral.
Por que prenderem-se com o respeito? As funções humanas
eram muito obviamente estabelecidas para se fazer grande barulho acerca delas. E assim os médicos punham os braços à volta da cintura de Alvina, porque ela era roliça, e a beijavam no rosto, porque a pele era suave. E ela ria e se contorcia um pouco, de modo que eles sentiam melhor o calor e a suavidade dela sob a pressão de seus braços.
      - Isso não é direito, sabe? - dizia ela, rindo esbaforida, mas olhando-os nos olhos com um curioso e definido olhar de inalterável resistência. Isso apenas os
excitava.
      - Que é que não é direito?
      Ela abanava a cabeça ligeiramente.
      - Não está certo se portarem assim, como... - falava com o mesmo ar de desafio definido; uma negativa categórica.
      - A quem é que o diz? - diziam eles.
      Porque ela de nenhum modo os proibia de se "portarem assim". De maneira nenhuma. Quase os encorajava, até. Ria e arqueava os olhos e arfava. Mas a espinha dorsal tornava-se somente mais forte e mais firme. Fraca e flexível como era, sua espinha dorsal nem por um instante cedia. Não podia. Tinha de confessar que gostava dos jovens médicos. Eram espertos, a face deles era clara e de brilhante aspecto. Gostava daquela espécie de intimidade com eles, quando a beijavam e se metiam com ela nos laboratórios vazios e nos corredores... muitas vezes nos intervalos dos casos mais críticos e aterradores. Gostava do braço deles em volta da cintura, dos beijos que chegavam ao rosto afastado para trás, torcendo-se, muitas vezes em lutas desesperadas. Tomavam liberdades imperdoáveis. Por vezes, o sangue se aquecia no combate, e ela se apercebia de que, com as mãos, podia despedaçar qualquer homem, qualquer macho, membro a membro. Uma força sobre-humana e voltaica a invadia. Por um momento, ela encapelava-se em força maciça, inumana, de fêmea. E invariavelmente, quando eles fraquejavam, ela os tocava com
a mão repetida e gentilmente, apiedada. De tal modo que ficava sempre amiga deles. Quando a abandonava o curioso poder amazônico e era nada mais do que simples mulher,
fazia-lhes olhos tímidos uma vez mais, e os tratava com a inevitável homenagem de fêmea ao macho.
      Os homens gostavam dela. Erguiam os olhos para ela, quando ela não os olhava, e admiravam-na. Faziam a si próprios perguntas sobre ela. Tinham sido derrotados por
ela, cada um deles. Mas eles não o sabiam claramente. Olhavam para ela, como se ela fosse a própria Mulher, uma criatura não inteiramente pessoal. No que reparavam todos eles, era na sua maneira de usar os cabelos castanhos seguros acima das orelhas. Havia naquilo qualquer coisa de casto e nobre e como que de guerreiro. O traço sensato que a envolvia no meio das intimidades e amizades, nem altivo nem afetado, mas um pouco propenso à luta, e ainda invencível na luta, fazia-os procurá-la por todos os lados.
      Sentiam-se seguros com ela. Sabiam que ela não os deixaria cair. Não os enredaria com casamento, nem tentaria servir-se ou se serviria deles para qualquer coisa. Não se importava com eles. E assim, em virtude de sua isolada
auto-suficiência na luta, da firme e presunçosa espinha dorsal, eles estavam prontos a contar com ela e a ouvi-la. Headley particularmente esperava poder submetê-la. Era um rapaz bem constituído, de cabelo ruivo e face de lutador. O espírito da luta estava realmente desperto nele e amava de coração aquela mulher. Se ele pudesse submetê-la, podia chegar à loucura de a desposar.
      Contra ele, ela fazia despertar todo o seu vigor. Não podia estar fora de si um só momento. O traiçoeiro imprevisto do ataque dele, porque ele era a própria traição, tinha de haver-se com o imprevisto voltaico da resistência e do contra-ataque dela. Não era menos do que mágico o caminho por que o suave e sonolento corpo da mulher saltaria num jato para dentro da força terrível, esmagadora e voltaica, algumas vezes estranha e maciça, ao primeiro contato traiçoeiro da mão determinada do homem. A força dele era tão diferente da dela... ativa, muscular, ligeira. Mas a dela era profundidade e agitação, como a estranha agitação de um tremor de terra, ou a elevação do touro quando se ergue do chão. E por puro poder não-humano, elétrico e paralisante, ela podia dominar o vigoroso rapaz de cabeça ruiva.
      Ele era quase um companheiro para ela. Mas ela não era como ele. Os dois eram inimigos... e bem familiarizados. Estavam mais ou menos emparelhados. Mas como ele se achava continuamente frustrado, tornava-se amuado, como um urso de cabeça sensível. E então ela o evitava.
      Verdadeiramente, ela gostava muito mais de Young e de James. James era um camarada ativo, esbelto e de cabelos negros, um cavalheiro, que estava sempre tentando cativá-la com sua atividade. Ela gostava de seus membros delicados, magros, e de sua generosidade exagerada. Convidava-a para refeições ridiculamente dispendiosas e lhe mandava bolos e flores fabulosamente recherchés. Andava sempre impecavelmente bem vestido.
      - Na verdade - dizia ele a Alvina - você reúne em si duas espécies de mulher: a senhora e a enfermeira.
      Mas ela não ficara impressionada com o siso dele.
      Estava mais fortemente inclinada para Young. Este era
um jovem gordo de meia altura, com aqueles olhos azuis de rapazinho que sabem tanto; particularmente de segredos de mulher. Era uma estranha coisa que aqueles homens infantis tivessem um tão profundo e meio perverso conhecimento do outro sexo. Young era certamente inocente sobre até onde os atos vão. Contudo, seu cabelo já estava embranquecendo no cimo da cabeça.
      Também brincava com ela... sendo médico, e ela uma enfermeira que encorajava aquilo. Acariciava-a e beijava-a;
e não a levava ao ponto de resistir. Porque tais carícias
e beijos tinham aquela intimidade dos de um rapazinho, que quase a enterneciam. Ela podia ter quase sucumbido ante ele. Se isso não acontecera fora porque com ele não era caso de
se sucumbir. Ela gostaria de lhe tomar a cabeça entre as
mãos e de o acariciar e mimar como a um querubim, para que ele cedesse. E, posto que gostasse de fazê-lo, ainda aquela inflexível rigidez de espinha dorsal a coibia. Não podia fazer o que lhe agradava. Havia dentro dela um fado inflexível que lhe traçava a linha a seguir.
      Muitas vezes ela se admirava com sua própria virgindade. Valia isso muito, no fim das contas, comportando-se como se comportava? Devia de algum modo importar-se com isso? Não devia antes desprezá-lo? Pecar em pensamentos era tão mau como pecar por atos. Se o pensamento era o mesmo que o ato, não era o seu comportamento equivalente a uma perpetração completa? Desejava ter-se comprometido inteiramente. Desejava ter ido até o fim.
      Mas os sofismas e os desejos não lhe faziam bem. Ali estava ela, ainda isolada. E ainda havia nela o que a preservaria intata, não obstante a sofistica e deliberada
intenção. Chegara ao fim dos estudos. Ia regressar a Woodhouse virgem como saíra. De certo modo se sentia derrotada. Por quê? Quem o sabia? Mas, vistas as coisas,
ela se sentia derrotada, condenada a voltar ao que era antes. O destino tinha sido demasiado forte para ela e para os seus desejos; o destino que não era uma associação exterior de forças, mas que estava íntegro na própria natureza dela. A sua própria inescrutável natureza era seu destino: chaga contra a sua vontade.
      Foi em agosto que regressou a casa, com o uniforme de enfermeira. Fora derrotada pelo destino, visto que voltava casta e virgem. Mas voltava com altas esperanças de ganho material. Era bem a filha de James Houghton. Tinha pela frente um rico futuro. Enfermeira de maternidade diplomada, traria fácil e triunfalmente ao mundo todos os bebês do distrito. Pediria dois guinéus por caso: e mesmo dentro de uma modesta previsão de dez bebês por mês, teria vinte guinéus. Às mães abastadas cobraria de três a cinco guinéus. Dentro desse cálculo, teria facilmente trezentos guinéus por ano. Ia ser independente, poderia rir na cara de toda a gente.
      Atirou-se de volta a Woodhouse a fim de fazer sua fortuna.
     
      CAPÍTULO 4 - MORREM DUAS MULHERES

      Diga-se de passagem que Alvina Houghton não fez fortuna como enfermeira de partos. Sendo filha do pai, poderíamos quase esperar que nem sequer ganhasse um pêni. Mas ganhou... ao todo, uns poucos pence. Teve exatamente quatro casos, e depois nada mais.
      A razão é óbvia. Quem em Woodhouse poderia chamar
uma enfermeira de dois guinéus, para um parto? E quem iria chamar Alvina Houghton, mesmo que estivesse disposto a abrir a bolsa? No fim das contas, todos a conheciam como Miss Houghton, acentuando o miss, e ninguém a podia conceber
como Enfermeira Houghton. Além disso, parecia uma coisa
positivamente indecente pedir auxílio técnico a alguém tão intimamente ligado a eles. Todos preferiam quer uma simples parteira, quer uma enfermeira arranjada entre desconhecidas pelo médico.
      Se Alvina quisesse fazer fortuna, ou mesmo arranjar o suficiente para viver, teria de ir para uma cidade estranha. Era o que lhe diziam todos os que a conheciam. Mas ela nunca, nem por um momento, refletira no conselho. Estudara para enfermeira de partos com o fim de exercer a profissão em Woodhouse, tal como James Houghton comprara suas preciosidades para as vender em Woodhouse. E pai e filha do mesmo modo calmamente esperaram que a procura de Woodhouse acorresse a seu sortimento. Ambos do mesmo modo foram derrotados em suas previsões.
      Durante algum tempo, Alvina pavoneou-se com o uniforme de enfermeira Depois, deixou-o. E quando o deixou perdeu a pose, as cores e as carnes. Gradualmente voltou à velha, magra e descorada palidez, com os olhos um pouco grandes demais para o rosto. E então parecia que o rosto era um pouco comprido demais, um pouco magro. E com a vestimenta civil parecia um pouco desarranjada, andrajosa. E além disso aparentava ser mais velha; aparentava mais do que a sua idade, apenas vinte e quatro anos. Esta era a antiga Alvina que voltava, quase desfeita e deteriorada, aparentemente. Tinha mesmo no seu desalinho um pouco do modo das mulheres desarranjadas, opinavam as perscrutadoras mulheres dos mineiros. Mas ela era ainda uma senhora, e não derrotada. Inegavelmente era uma senhora. E isso era muito irritante para a abastada e florescente filha de W. H. Johnson, duas portas adiante. Inegavelmente uma senhora, e inegavelmente não dominada. Isso também era irritante para os bondosos e despreocupados jovens do coro da capela, onde ela retomou
seu lugar. Esses jovens tinham a boa natureza dos cães que abanam a cauda e esperam ser acariciados. E Alvina não os acariciava. Certamente, uma carícia de tal mão miseravelmente enluvada de pele de cabrito preta não teria sido muito desvanecedora... não necessitava imaginá-lo. O modo como hesitava e os olhava, aos jovens, tão seguro como se fosse uma prostituta, e contudo, com a indiferença bem-educada de uma senhora... sim, era quase ofensivo.
      Na realidade, Alvina se desprendera por enquanto de
seu interesse pelos rapazes. Manchester House fixara-se sobre ela como uma condenação. Havia a loja abarrotada, na qual se tinha de serpentear por caminho sinuoso na obscuridade, a menos que se preferisse caminhar quilômetros pela rua de trás, até a porta do pátio. Havia James Houghton, matizado pelo pó de carvão, esvoaçando numa agitação de nervoso frenesi, sempre indo para ou vindo da Asfixia por Meio Pêni... de tal modo absorvido que não viu a filha logo que chegou a casa, quando ela regressou. E quando ela lhe chamou a atenção para o fato de estar ali, com um "Olá, meu pai", ele simplesmente a olhou apressadamente, como que vexado com a interrupção, e disse:
      - Ah, Alvina, já voltou. Veio nos encontrar cheios de trabalho. - E voltou de novo a seu êxtase.
      Mrs. Houghton estava agora muito fraca, e tão nervosa naquela fraqueza que não podia suportar o mais leve som.
O seu maior horror era permitir que o marido entrasse no quarto. Quando este entrava, os lábios se lhe azulavam imediatamente, de tal modo que ele tinha de sair correndo. Por fim, ele ficava de fora, somente perguntando
apressadamente, cada vez que vinha a casa: "Como está Mrs. Houghton?" Então, uma vez mais o ininterrompido êxtase com
a Asfixia por Meio Pêni.
      Quando Alvina foi ao quarto da mãe, no regresso, tudo
o que a pobre inválida pôde fazer foi derramar-se em lágrimas, gritando desfalecida:
      - Filha, tenho medo de você. Não é a mesma.
      Isso, dito pela patética figurinha metida na cama, caiu sobre Alvina como uma pancada.
      - Por que não sou a mesma, minha mãe? - perguntou.
      Mas por causa da mãe ela teve de despir o uniforme de enfermeira. E na mesma altura teve de fazer-se enfermeira dela. Miss Frost, uma mulher que fora admitida, e a criada tinham assistido à inválida. Miss Frost estava gasta e pesada; tinham desaparecido sua vivacidade e sua alegria. Tornara-se também irritável. Estava muito satisfeita com o regresso de Alvina, que lhe vinha tirar de sobre os ombros a responsabilidade da enfermagem. Porque a sua maravilhosa energia decaíra e derretera-se.
      Alvina nada disse, mas lançou-se ao trabalho. Era calma e proficiente com a mãe. Ambas se amavam uma à outra, com um curioso amor impessoal que não tinha uma simples palavra a trocar; quase um amor de além-túmulo. Nessa altura, Mrs. Houghton não falava nunca, a não ser para se irritar um pouco. Então Alvina ficava sentada durante muitas horas no pomposo e sombrio quarto de dormir, olhando silenciosamente para a rua, ou apressadamente se erguendo para cuidar da doente. Porque continuamente vinha o murmúrio irritável:
      - Vina!
      Permanecer sentada em sossego... Quem conhece a longa disciplina disso, nos dias que correm, que as nossas mães
e avós conheceram? Permanecer sentada em sossego, durante dias, meses e anos... permanecer à força sentada em sossego, com a dignidade de uma tranqüila maneira de proceder. Alvina procedia à antiga. Tinha a velha e feminil faculdade de permanecer sentada calma e recolhida, não em verdade toda a vida, mas por longos períodos seguidamente. E assim foi durante os meses em que serviu de enfermeira à mãe. Cuidava constantemente da inválida; fazia alguns trabalhos caseiros; passeava e ocupava seu lugar no coro nas manhãs de domingo.
E contudo, de agosto a janeiro, parecia ter ficado sentada na cadeira do quarto de dormir, por vezes lendo, mas a maior parte das vezes sem fazer nada, as mãos sossegadas no regaço, o espírito entregue à meditação Ela nem sequer pensava, nem sequer rememorava. Mesmo tal atividade teria feito com que sua presença no quarto causasse preocupação. Sentava muito sossegada, com todas as atividades em descanso, exceto aquela estranha vontade de passividade que não era de modo nenhum relaxamento, mas severa e profunda disciplina de alma.
      Naquela altura havia uma sensação de prosperidade, ou provável prosperidade, na casa. E havia abundância de carvão na Asfixia por Meio Pêni. Era um carvão sujo e cinzento. As mais fundas barras da grelha ficavam constantemente cobertas daquele pó cinza-claro, e seria uma fatalidade tentar atiçar o fogo. Porque se uma pessoa remexia e tornava a remexer,
o que levantava eram brancas nuvens cúmulos de cinza,
ficando-se por fim com um pouco de borralha escura e sulfurosa. Mas mesmo assim, mediante contínua aplicação, poder-se-ia conservar o quarto moderadamente aquecido sem parecer que se estava consumindo o alimento e a bebida da casa na grelha. O que era um benefício.
      Os dias e os meses obscureciam o passado, e Alvina voltava à sua velha magreza e palidez. Estavam magros os antebraços, que se mantinham quietos no regaço, uma calma senhoril os envolvia quando ela passeava, em sua lenta, posto que vigilante, maneira. Via tudo. Contudo, passava sem atrair a atenção de ninguém.
      No princípio do ano a mãe morreu. O pai veio e derramou lágrimas constrangidas. Miss Frost chorou um pouco, cheia
de dor. E Alvina chorou também: nem ela sabia bem o porquê. Pobre mãe! Alvina tinha a sabedoria antiga de deixar correr, e não de pensar. Afinal de contas, não lhe cabia a reconstrução da vida dos pais. Viera depois deles. O seu tempo não era o tempo deles, a sua vida não era a vida deles. Tornar a subir o canal para descobrir o curso deles era coisa inteiramente diferente de deslizar ao sabor da corrente para dentro do desconhecido, como eles tinham feito trinta anos antes. A arrogante e impertinente exploração das gerações passadas pela geração presente nada vale para a nossa reputação. De fato, nenhuma geração repete os erros da geração antecedente, do mesmo modo que nenhum rio repete
seu curso. Assim, devem os jovens deixar de ser tão orgulhosos de sua superioridade sobre os velhos. A geração jovem pratica facilmente seus próprios erros; o quão detestáveis são esses novos erros e por quê, somente o futuro será capaz de dizê-lo. Mas com certeza eles serão tão inteiramente detestáveis, tão inteiramente cheios de mentiras
e hipocrisia, como qualquer dos erros dos nossos pais. Uma sabedoria absoluta é coisa que não existe.
      A sabedoria apenas se refere ao passado. O futuro permanece para sempre um campo infinito de erros. Ninguém
o pode conhecer de antemão.
      Assim, Alvina se absteve de ponderar a vida e o destino da mãe. Qualquer que tivesse sido o destino da mãe, o destino da filha seria coisa diferente. Era organicamente inevitável A filha tem que se haver com seu próprio destino, não com o da mãe.
      Contudo, Miss Frost meditava amargamente acerca do destino da pobre morta. Amargamente remoía a sorte daquela mulher. Eis Clariss Houghton, casada, mãe... e morta. Que vida! Quem era o responsável? James Houghton. Em que poderia James Houghton ter procedido diferentemente? Em tudo. Em resumo, ele deveria ter sido alguém diferente, e não ele próprio. O que é a reductio ad absurdum do idealismo. O universo devia ser qualquer coisa diferente e não o que é:
é esse o absurdo da conclusão idealista. O gato não devia apanhar o rato, o rato não devia roer a toalha, e assim por diante...
      Mas Miss Frost sentava-se junto da morta, pesarosa e desesperada. Ali estava o fim da vida de uma outra mulher: e que fim! Pobre Clariss; criminoso James.
      Contudo, por quê? Por que era James mais criminoso
do que Clariss? É o único fim da vida de um homem o fazer feliz uma mulher ou um grupo de mulheres? Por quê? Por que esperaria uma pessoa que a fizessem feliz, e ficaria doente do coração se não o fosse? A doença do coração de Clariss era seguramente sinal mais enfático de obstinada auto-estima do que o eram as vitrinas da loja de James. Ela esperava que a fizessem feliz. Todas as mulheres da Europa e da América o esperam. Era delas a culpa de não serem felizes: porque a
sua expectativa é arrogante e impertinente. O ser tudo e o atingir tudo na vida não repousa na felicidade feminina, ou em qualquer felicidade. A felicidade é uma espécie de pedaço de sabão... o precioso bebê não será feliz enquanto não o alcançar, e, quando o conseguir, isso custar-lhe-á os olhos
e o estômago. Poderá alguma coisa ser mais pueril do que uma humanidade que geme porque não é feliz, como um bebê no banho?
      A pobre Clariss, contudo, morrera... e, se a doença de coração a atacara porque não era feliz, afinal ela morrera da sua própria doença do coração, coitada. Nisso reside toda a moral que a humanidade pode desejar extrair.
      Miss Frost chorava angustiada e nada via senão uma mulher traída, voltada aos desgostos e à morte lenta. Desgostos e morte lenta porque um homem a tinha desposado.
Miss Frost chorava por si própria, pelos seus próprios desgostos e morte lenta. Desgostos e morte lenta porque um homem não a tinha desposado. Homem infeliz, que terá você
de fazer com estas exigentes e nunca satisfeitas mulheres? As nossas mães consumiam-se porque os nossos pais bebiam e eram libertinos. As nossas mulheres consomem-se porque nós somos virtuosos e impotentes. Que esfinge é a mulher! Onde está o Édipo que resolverá o enigma da felicidade da mulher e depois a estrangule?... Apenas com o desposar a própria mãe!
      Nos meses que se seguiram à morte da mãe, Alvina continuou na mesma, em descanso. Encarregou-se da administração da casa e recebeu uma ou duas inundações
de alunos de Miss Frost, moças a quem dava lições na escura sala de visitas de Manchester House. Tinha todo o tempo ocupado, principalmente com a administração da casa. Parecia
ser grande tarefa a de pôr as coisas em ordem depois da morte da mãe.
      Tirou do armário todos os vestidos da mãe... vestidos caros e de uma moda antiga, com pouco uso. O que se poderia fazer com eles? Deu-os, sem consultar ninguém. Conservou algumas coisas íntimas, herdou algumas poucas jóias. Era interessante como sua mãe deixara tão poucos vestígios... apenas vestígios.
      Decidiu mudar-se para o grande e monumental quarto de dormir, na frente da casa. Gostava de amplidão e gostava das janelas. Era estritamente a dona da casa, de resto. Por isso, ocupou seu lugar. A pequena sala de visitas da mãe era fria e não tinha uso.
      Depois, Alvina examinou toda a roupa branca. Havia ainda abundância e tudo estava em bom estado. James tinha visto longe quando montara casa, no começo. E agora reclamava das despesas da casa, reclamava do gasto de sabão e de velas, e gostaria até de introduzir a margarina em vez de manteiga. As mulheres recusaram essa última degradação. Mas James estava acima dessas coisas de comida.
      A velha Alvina parecia ser ela mesma de novo. Era calma, obediente e afetuosa. Recorrera aos velhos e infantis modos para com Miss Frost, e esta lhe chamava "Querida!" com toda
a antiga gentileza protetora. Mas havia uma diferença. Sob aquela aparência súplice, Alvina mantinha-se quase friamente independente. Fazia o que pensava que devia fazer. Os antigos traços de intimidade persistiam entre ela e a querida Miss Frost. E talvez nenhuma delas soubesse que a verdadeira intimidade tinha desaparecido. Mas tinha. Não havia intercâmbio espontâneo entre elas. Era uma espécie de beco sem saída. Cada uma sabia o grande amor que sentia pela outra. Mas agora era um amor estático, inoperante. A corrente quente não percorria mais qualquer delas. Todavia, qualquer uma daria a vida pela outra, faria tudo para poupar à outra um desgosto.
      Miss Frost tornara-se cansada e de aspecto arrasado. Se se atirava para uma cadeira era como se desejasse nunca mais se levantar... nunca mais fazer um esforço. E Alvina servia-a com prontidão, levando-lhe o chá e tirando-lhe das mãos a pauta de música, procurando tornar-lhe suaves todas as coisas. E continuamente a jovem mulher exortava a mais velha a que trabalhasse menos, renunciando aos alunos. Mas Miss Frost respondia pronta e nervosamente:
      - Se não trabalhasse, morreria.
      - Mas por quê? - era a pergunta de Alvina. E nas suas censuras havia laivos de troça por tal crença.
      Miss Frost não respondia. Tons acinzentados
assomavam-lhe ao rosto.
      Por esta época, começou uma singular amizade com
Miss Pinnegar, depois de tantos anos de oposição. Ela
própria se achou mais ligada a Miss Pinnegar... era tão
fácil entender-se com ela, ela deixava tanta coisa por dizer. O que ficava por dizer importava mais a Alvina agora do que
o que era expresso. Começou a detestar a franqueza e a direta exteriorização de todo pensamento. Isso repugnava-lhe. Preferia a tácita admissão das divergências à comunicação aberta e cordial. E Miss Pinnegar admitia-o inteiramente.
Ela nunca fazia sentir a alguém, por um instante, que estava de acordo com esse alguém. Nunca se sentia mesmo a proximidade dela. Deixava-se ficar no seu próprio terreno, e deixava cada um no seu. E através do espaço chegavam seus calmos lugares- comuns... mas longe, no espaço.
      Com Miss Frost tudo era franqueza, explícita e inteira. Não que Miss Frost ultrapassasse os limites. Era muito mais bem-educada do que Miss Pinnegar. Mas sua verdadeira
educação era aquela qualidade protestante e nórdica que faz crer que todos temos, realmente, a mesma alta posição, e todos a mesma natureza divina, intrinsecamente.
É uma bela suposição. Mas, de bom ou mau grado, isso desagradava então a Alvina.
      Ela preferia Miss Pinnegar e admirava a humilde sabedoria desta com o mais vivo espanto. Falavam ambas do
Dr. Headley, que, segundo o que haviam lido no jornal,
tinha finalmente se desonrado.
      - Parece que precisa haver gente assim para haver de tudo - dizia Miss Pinnegar.
      Tais bocados de sabedoria caseira eram para Alvina como um alívio das cãibras e dores. "Precisa haver gente assim para haver de tudo." Precisava haver a sua espécie também.
E devia haver a espécie de seu pai, assim como a de sua mãe
e a de Miss Frost. Devia haver cada uma das espécies para haver todas as espécies. Por que ter padrões e um molde regulamentar? Por que ter um critério humano? Aí é que se encontra o âmago do problema. Por que, em nome de todos os céus, ter critérios humanos? Por quê? Simplesmente por fanfarronada e estreiteza.
      Alvina sentia-se à vontade com Miss Pinnegar. As duas
se falavam, nos momentos de calma, e separavam-se como conspiradoras quando Miss Frost entrava, como se houvesse
alguma coisa que as envergonhasse. Se havia, sabe Deus o
que podia ser, pois as suas conversas eram bastante banais. Mas Alvina gostava de estar com Miss Pinnegar na cozinha. Miss Pinnegar não era competente e entendida como Miss Frost;
era vulgar e sem iniciativa, de calmos e imperceptíveis
movimentos. Mas era profunda, e havia certa secreta satisfação na sua maneira de ser muito discreta.
      Assim decorriam os dias, semanas e meses, e Alvina escondia-se como uma toupeira nas escuras salas de Manchester House, ocupada com a cozinha, lavagens e arranjos, pondo a casa em ordem, e ocupando-se dos alunos. À tarde, dava o seu passeio. Uma vez, e só uma, ela foi à Asfixia por Meio Pêni e, invadida de repentina curiosidade, insistiu em descer no balde de ferro à pequena galeria. Tudo estava limpo nas curtas passagens subterrâneas, emadeiradas e em perfeita ordem. ,Os mineiros eram suficientemente competentes. Mas a água gotejava lugubremente aqui e ali, e havia no ar um cheiro de mofo.
      O pai acompanhava-a, mostrava-lhe o veio de carvão salpicado de amarelo, o cascalho, as junturas, a direção que aquilo seguia. Tinha já uma espécie de vago conhecimento do negócio todo, e parecia um prestidigitador não inteiramente digno de crédito, que tivesse encantado aquilo com o jogo
das mãos. No fundo, estavam os mineiros cinzentos e fantasmagóricos, à luz da candeia, e pareciam escutar sardonicamente. Um deles, dócil na sua condição de subordinado como James na de patrão, metia-se na conversa:
      - Sim, é o caminho que ele segue, Miss Huffen... sim, a menina verá o teto um bocado desmoronado... desprendendo-se. Não, a menina não vai encontrar ferro neste poço... não é suficientemente fundo. Isto cai-lhe em cima como chumbo,
como se o teto pusesse um ovo em cima da menina. É um pouco delgado aqui... Vinte centímetros. Veja, o leito é mole, semelhante a areia, mas não é sempre assim se se descer mais fundo. É fácil trabalhar... não é preciso esfalfar-se. Veja aqui... - E ele abaixava-se, indicando uma escavação pouco profunda e inclinada que estava fazendo por baixo do carvão. O trabalho era a pouca altura, era preciso estar sempre
abaixado. O teto e os lados emadeirados do caminho pareciam comprimir as pessoas. Era como se se estivesse no túmulo
para sempre, como os egípcios mortos e eternos. Ela estava assustada, mas fascinada. O mineiro continuava falando com ela, tapando-lhe a visão com o braço nu, acinzentado e cabeludo, e apontando com a mão nodosa. As candeias
ensebadas, com grandes mechas, escorriam e cheiravam mal. Havia espessura no ar, um sentido de escura e fluida presença na atmosfera espessa, a escura, fluida e viscosa voz do mineiro fazendo no ouvido dela um som arrastado e de vogais abertas. Ele parecia demorar-se junto dela como se soubesse... como se soubesse o quê? Qualquer coisa para sempre incognoscível e inadmissível, qualquer coisa que pertencia puramente ao subterrâneo, aos escravos que trabalham debaixo da terra: conhecimento humilhado, submetido, mas ponderado e inevitável. E sempre a voz dele ia bater nos ouvidos dela... e sempre a presença dele avançava para junto dela, e parecia chocar-se com ela... uma figura minúscula, semigrotesca e de um cinzento obscuro, brandindo um antebraço nu; não humana; uma criatura do mundo subterrâneo, dissipada como um morcego, fluida. Ela se sentia dissipar, também. Tornar-se simples fantasma com voz, uma presença na atmosfera espessa. Sentia os pulmões espessos e vagarosos, o espírito dissolvido, sentia que podia agarrar-se como um morcego no longo desmaio das trevas do mundo subterrâneo, cheias de fendas. Agarrar-se como um morcego
e pender eternamente desmaiada nas correntes das trevas...
      Quando voltou à superfície, piscou os olhos e olhou o
mundo com espanto. Que belo e luminoso lugar era, esculpido em substancial luminosidade. Que estranho e amorável lugar, borbulhando iridescências douradas na superfície do submundo. Iridescências douradas... pudesse qualquer coisa ser mais fascinante! Como a amorável e cintilante superfície num fluido declive. Mas uma superfície de veludo. Uma superfície de veludo, de luz dourada e pálida luminosidade, estranhas
e belas elevações de casas e árvores, depressões de campos
e estradas, tudo dourado e flutuando como uma majólica atmosférica. Nunca a vulgar fealdade de Woodhouse parecera tão extasiante. Pensava que nunca tinha visto uma beleza assim, uma admiravelmente luminosa majólica, vivente e palpitante, a lustrosa e esbelta superfície do mundo e a estranha face de todas as trevas. Era como uma visão. Talvez
gnomos e trabalhadores subterrâneos, escravizados na idade
da luz, enxergassem com tais olhos. Talvez fossem assim porque eram absolutamente cegos à fealdade convencional.
Porque verdadeiramente nada podia ser mais horrível do que Woodhouse, como os mineiros a tinham edificado e disposto. E contudo, mesmo os talos das couves e os limites apodrecidos dos jardins, mesmo os pátios eram instinto e mágica, fundidos como se parecessem o borbulhar ascendente das subtrevas, o borbulhar do peso e luminosidade da majólica, inteiramente ignorante do céu, pesado e satisfeito.
      Escravos do submundo! Ela olhava o balancear dos mineiros cinzentos ao longo do pavimento com uma nova fascinação, hipnotizada por uma nova visão. Escravos ...
feiticeiros e trabalhadores de ferro, mágicos, malignos e escravizados, das antigas histórias. Mas altos... os mineiros pareciam-lhe tornar-se altos e cinzentos, na sua magia escravizada. Escravos que levariam à queda da superimposta ordem do dia. Não porque individualmente o quisessem. Mas porque, coletivamente, qualquer coisa borbulhava neles, a força das trevas que não tinha senhor nem controle. Aquilo borbulharia e agitar-se-ia neles como o tremor de terra agita a Terra. Podia ser simplesmente desastroso, porque não tinha senhor. Não havia o senhor das trevas no mundo. O mundo pueril iria gritar por um novo Jesus, outro Salvador vindo
do céu, outro celestial super-homem. Quando o que se queria era um Senhor das Trevas vindo do submundo.
      Assim jorravam além dela, voltando do trabalho, cinzentos da cabeça aos pés, figuras distorcidas, oscilantes, com curiosas faces que apareciam debaixo da imundície.
Seus passos eram pesados e apressados, a sua maneira de andar rígida e grotesca. Eram um caudal; contudo, parecia-lhe que surgiam como estranhas e válidas figuras de contos de fadas, não acabadas e como que ainda não experimentadas. Os mineiros, os trabalhadores de ferro, aqueles que modelavam os mistérios do submundo.
      Como sempre acontece aos filhos das Midlands, a nostalgia dos seus repulsivos e rústicos habitantes invadiu-a de novo, mesmo enquanto estava ali, no centro. Curiosa, negra, inexplicável e contudo insaciável ânsia, como de um tremor de terra. Sentir a terra erguer-se e estremecer e despedaçar o mundo desde o fundo. Afundar-se nas ruínas.
      E assim, apesar de tudo, pobreza, desalinho, obscuridade, e nada, ela estava contente de permanecer em casa naquela altura. Na verdade, estava cheia da mesma velha,
vagarosa, terrível ânsia dos habitantes das Midlands: uma ânsia insaciável e inexplicável. Mas a própria ânsia a mantinha calma. Porque a essa altura ela não a traduzia em desejo, ou necessidade de amor. No fundo do seu espírito, algures, estava a idéia fixa, a intenção fixa de achar o amor, um homem. Mas como, todavia, nessa época, a idéia estava jacente, não se manifestava. A ânsia que a possuía como possui toda a gente, em maior ou menor grau, naqueles sítios, sustinha-a misteriosa e inconscientemente.
      Um quente verão declinava em outono, os longos e desnorteantes dias passaram, as noites passageiras, somente pequenas pausas de sombra entre meio-dia e meio-dia,
escureceram e cresceram. A inquietação caiu sobre todos. Havia outra pequena greve entre os mineiros. James Houghton, como um escaravelho excitado, fugia de um lado para outro, sentindo que estava fazendo fortuna. Nunca Woodhouse estivera tão apinhada, às sextas-feiras, de compradores e de gastadores. O lugar parecia sobrecarregado de vida.
      O outono conservou-se belo até o fim de outubro. E então, repentinamente, a chuva fria, chuva fria sem fim, e
a obscuridade pesada, molhada, poderosa. Através do vento e da chuva, era penoso caminhar. Pobre Miss Frost, que parecera quase florescer de novo nos longos dias quentes, recuperando uma livre alegria que quase atingiu a vivacidade, e que provocara mesmo uma espécie de escândalo em virtude da intimidade com um formoso mas vulgar desconhecido, um agente de seguros que tinha vindo à terra com uma bela e não cultivada voz de tenor... agora definhava de novo. Ao corado jovem oferecera chá na sua sala, e trabalhara muito na bela e metálica voz dele, corrigindo-o e ensinando-o e rindo com ele e despendendo realmente um notável número de horas só com ele na sala em Woodhouse... porque desistira de percorrer a região, e arrendara uma sala de música numa rua tranqüila, onde dava lições. E o jovem ficara, e não queria ir embora.
Prolongavam o tête-à-tête e o canto até as dez horas da noite, e Miss Frost regressava a Manchester House excitada
e formosa e um pouco envergonhada, enquanto o homem, que
era vulgar, empreendia novas aventuras nas ruas. Tinha o cabelo trigueiro, cores muito vivas e modos bastante provocantes. Empreendeu nova aventura, a sua própria maneira de apreciar-se aumentou consideravelmente, com Miss Frost e a sua voz cultivada a justificá-lo. Era um bocadinho insolente e pouco condescendente com os naturais, que não gostavam dele. Sendo como eram, não podiam imaginar o que Miss Frost podia achar nele. Começaram mesmo a aborrecê-la, e um lindo escândalo estava começando acerca do par, na agradável sala em que Miss Frost tinha seu piano, seus livros e suas flores. O escândalo era tão injusto como o são muitos escândalos.
Todavia, na verdade, todo aquele verão e outono Miss Frost teve nova alegria, ligeiramente agressiva, e boa disposição. E Manchester House viu-a relativamente pouco.
      E então, no fim de setembro, o jovem foi transferido pela sua companhia de seguros para outro distrito. E no fim de outubro começou o mais abominável e insuportável tempo, dilúvios de chuva e ventos do norte, cortando em pedaços as pessoas tenras e desabrochadas pelo verão. Miss Frost definhou imediatamente. Caiu sobre ela o silêncio. Estremecia quando tinha de deixar o lume. Ia de manhã para a sua sala e ali ficava todo o dia, numa quente e fachada atmosfera, estremecendo quando os alunos lhe traziam com eles o tempo lá de fora.
      Estava sempre sujeita a bronquites. Em novembro teve
uma gripe séria. E então, subitamente, uma manhã não pôde levantar-se. Alvina entrou e encontrou-a semi-inconsciente.
A moça ficou quase louca. Chamou por socorro. Mandou logo o pai chamar o médico, amontoou cavacos no fogão do quarto e fez uma fogueira viva, trouxe leite quente e aguardente. 
      - Obrigada, filha, obrigada. É a minha bronquite
- ciciou Miss Frost precipitadamente, tentando bebericar o leite. Não podia. Não queria.
      - Mandei chamar o médico - falou Alvina com voz fria, em que se anunciava a velha hesitação de um puro amor.
      Miss Frost ergueu os olhos:
      - Não é preciso - disse e sorriu, cativante, para Alvina.
      Era uma pneumonia. Inútil falar da louca angústia de Alvina durante os dois dias seguintes. Era tão rápida e sensível na enfermagem que parecia ter uma segunda visão.
Não falava a ninguém. Naquele silêncio, sua alma estava sozinha com a alma da sua querida. Longa semi-inconsciência
e sofrimento despedaçante da pneumonia, angustiosa doença.
      Mas por vezes os olhos cinzentos se abriam e sorriam
com delicado carinho para Alvina, e Alvina retribuía o sorriso com alegre e correspondente carinho. Mas aquilo
custava bastante.
      Na noite do segundo dia, Miss Frost levantou a mão
de sob os lençóis, e colocou-a na mão de Alvina. Alvina inclinou-se para ela.
      - É tudo para você, meu amor - ciciou Miss Frost, olhando com olhos estranhos a face de Alvina.
      - Não diga nada, Miss Frost - gemeu Alvina.
      - É tudo para você - murmurou a mulher doente. Menos... - E enumerou alguns pequenos legados que mostravam a sua generosa e atenciosa natureza.
      - Está bem, lembrar-me-ei - disse Alvina, debaixo de lágrimas, agora.
      Miss Frost sorriu com o velho, brilhante e maravilhoso olhar, que tinha o seu quê de realeza.
      - Dê-me um beijo, querida - murmurou.
      Alvina beijou-a, e não pôde reprimir os soluços da sua muito grande pena.
      A noite passou vagarosamente. Por vezes, os olhos cinzentos da doente repousavam, escuros, dilatados, pálidos, nas faces de Alvina, com pesado, quase acusador, sinistro
olhar. Depois, fechavam-se de novo. Ê por vezes olhavam patéticos em mudo e assustado apelo. Então de novo se fechavam... somente para se abrirem de novo tensos de dor. Alvina enxugava os lábios marcados de sangue.
      De manhã, ela morreu... ali repousava, pálida, amarfanhada pela morte, com o admirável cabelo branco
em desalinho, e desordenada, ela que tinha sido sempre
tão bela e limpa.
      Alvina conhecia a morte, que é indizível. Sabia que
sua querida levava uma parte de sua própria alma na morte.
      Mas ela estava só. E a angústia de estar só, a angústia da pena, ardente, ardente pena da sua querida que estava despedaçada na morte... a angústia de autocensura, de remorso; a angústia da lembrança; a angústia dos olhares
da moribunda, cativantes e sinistramente acusadores e pateticamente, desesperadamente implorantes... prova após prova de mortal angústia, que através da eternidade nunca perderia o poder de penetrar no vivo!
      Alvina procurou conservar-se estranhamente calma e distante nos dias seguintes à morte. Somente quando estava só, sofria a ponto de sentir o coração realmente partido.
      - Nunca mais sentirei nada - dizia ela, de modo abrupto, a uma amiga de Miss Frost, outra mulher acima dos cinqüenta.
      - Que tolice, criança! - censurava-a Mrs. Lawson, gentilmente.
      - Não poderei! Nunca mais terei coração para sentir o que quer que seja - falava Alvina, com estranho, agitado mover de olhos.
      - Não há de ser assim, criança. Você há de sentir outras coisas...
      - Não terei disposição - persistia Alvina.
      - Por enquanto não - dizia Mrs. Lawson gentilmente.
- Você pode não acreditar... mas o tempo... o tempo faz voltar tudo...
      - Está bem, mas não acredito - dizia Alvina. Todos a achavam muito dura. Para uma das suas comadres, Miss Pinnegar confessara:
      - Pensava que ela fosse sentir mais. Gostava mais dela do que da própria mãe... e a mãe se deu conta disso. Mrs. Houghton lamentava-se amargamente, às vezes, porque ela não
a amava. Eram tudo uma para a outra, Miss Frost e Alvina. Eu esperava que ela ficasse mais sentida. Mas nunca se sabe ao certo. É uma boa coisa que ela não o fique, realmente.
      A própria Miss Pinnegar não se importava nada com o fato de que Miss Frost tivesse morrido. Não se sentia ela própria implicada.
      Os parentes mais próximos apareceram e tudo estava regularizado. Achou-se o testamento, apenas uma linha num bocado de papel de apontamentos exprimindo o desejo de que tudo fosse para Alvina. A própria Alvina transmitiu os pedidos verbais. Tudo foi calmamente cumprido.
      Como tinha de ser. Porque nada havia a deixar. Apenas
sessenta e três libras no banco, nada mais; depois, o vestuário, o piano, os livros e as músicas. O irmão de Miss Frost ficou com isso, a seu próprio pedido: os livros e músicas, e o piano. Alvina herdou algumas simples bugigangas, e cerca de quarenta e cinco libras em dinheiro.
      - Pobre Miss Frost - gritava Mrs. Lawson, chorando amargamente. - Nada guardava para ela própria. Veja agora
por que ela nunca queria envelhecer, porque assim não
poderia trabalhar. Foi uma pena, foi uma pena, uma das melhores mulheres que puseram o pé na terra.
      Manchester House repousou no mais profundo silêncio,
na mais espessa obscuridade. Miss Frost fora-se irreparavelmente. Com ela, a realidade abandonara a casa.
Esta parecia estar silenciosamente esperando desaparecer. E Alvina e Miss Pinnegar podiam se mover nela e conversar em vão. Não podiam nunca afastar a sensação de esperar o fim; aquilo era justamente esperar o fim. E os três, James, Alvina e Miss Pinnegar, esperavam pacientes, através dos meses, que a casa chegasse a seu fim. Com Miss Frost o espírito da casa desaparecera. Já não existia. Escura, vazia de sentimentos, assemelhava-se a uma casa exatamente em vésperas de ser vendida.
     
      CAPÍTULO 5 - O HOMEM GALANTE

      A Asfixia por Meio Pêni trabalhou caprichosamente no inverno, e na primavera caiu. Por essa altura, James Houghton tinha um patético e infantil olhar que tocou os corações de Alvina e Miss Pinnegar. Estas começaram a tratá-lo com certa indulgência feminina, quando ele as rondava, agitado e confundido. Era como um pássaro que se tivesse despenhado numa sala e estivesse exausto, debilitado pelas suas tentativas para voar através da falsa liberdade de vidro da janela. Às vezes, ele se sentava abatido a um canto, com a cabeça caída para o lado. Mas Miss Pinnegar seguia-o de perto, como gato reservado que era, seguia-o até o quarto
de trabalho para examinar quaisquer pormenores, seguia-o até à loja para revolver os velhos destroços do estoque. Uma vez, ele evidenciou o alarmante sintoma de meditar na morte da mulher. Miss Pinnegar estava absolutamente assustada. Mas não era inventiva. Restara a Alvina sugerir: "Por que o pai não arrenda a loja, e uma parte da casa?"
      Arrendar a loja! Arrendar o último centímetro de fachada para a rua! James pensava nisso. Arrendar a loja! Permitir que o nome desaparecesse da lista de comerciantes?
Aposentar-se? Desaparecer? Tornar-se um ninguém sem nome, ocupando prédios desconhecidos?
      Pensava nisso. E pensando nisso, ficava tão indignado que repuxava suas energias dispersas, conservadas dentro
da sua frágil estrutura. E então aparecia com o mais singular
de todos os seus projetos. Manchester House seria adaptada para pensão para as melhores classes, e faria uma fortuna satisfazendo as necessidades dessas classes, que não tinham então outro lugar para onde ir. Sim, Manchester House seria adaptada como uma espécie de tranqüilo hotel familiar para
as melhores classes. A loja transformar-se-ia num elegante vestíbulo, atapetado, com um porteiro e uma larga porta envidraçada, em arco, encimada com as palavras "Manchester House", grandes e imponentes, fazendo um arco também, enquanto por baixo, mais delgadas e pequenas, se exibiriam
as palavras "Hotel Familiar". James seria o proprietário
e secretário, guardando os livros e ocupando-se da correspondência; Miss Pinnegar seria a gerente, superintendendo os criados e dirigindo a casa, enquanto Alvina ocuparia a equívoca posição de "hospedeira". Ela
iria apertar a mão dos hóspedes; tocaria piano e seria a enfermeira dos enfermos. Porque nos prospectos James incluiria: "Enfermeira diplomada sempre no prédio".
      - O quê! - gritara-lhe Miss Pinnegar, por uma vez brutal e colérica. - O senhor quer dar a isto o aspecto de um asilo particular de lunáticos?
      - Não me explicará a senhora por quê? - respondeu James, azedamente.
      Por ele próprio, estava encantado com o plano; começou
a juntar idéias e despesas. Haveria a formosa entrada e o vestíbulo; haveria uma ampliação da cozinha e da copa; haveria uma instalação nova de água quente e de dispositivos sanitários; haveria um elevador veloz para trazer as coisas da cozinha; haveria uma formosa varanda envidraçada ou loggia ou terraço nos fundos do primeiro andar, em todo o comprimento do pátio. Essa loggia ofereceria uma vista maravilhosa para sudeste e leste. No plano imediato, é verdade, ficaria o pátio das cocheiras e o bairro sujo
das casas dos mineiros, derramando-se colina abaixo. Mas dessas podia facilmente não se fazer caso, porque o olhar instintivamente erraria pelo verde e pouco profundo vale
até a longa vertente fronteira, mostrando a quinta situada entre um grupo de árvores e campos de feno agradavelmente semeados, e, a distância não muito longa, minas de carvão
com cintilantes e estreitas linhas de estrada de ferro atravessando os campos cultiváveis, e montões de ardente escumalha. A varanda ou terraço coberto (James fixara-se por fim na palavra "terraço") seria uma das especialidades da
casa: a especialidade. Seria adaptado a uma espécie de restaurante elegante e convidando à ociosidade. Chás elegantes, a dois-e-seis por cabeça, e ceias elegantes,
a cinco xelins, sem vinho, seriam servidos ali.
      Como abstêmio e homem de idéias ascéticas, James,
nos seus primeiros momentos aéreos, antes de pensar nisso, decidiu que sua casa seria absolutamente não-alcoólica.
Uma casa de temperança! Agora, retraía-se. Todos nós sabemos o que é um hotel de temperança provinciano. Além disso, há magia no som do vinho. Servem-se vinhos. A legenda o atraía imensamente... como abstêmio, isso tinha misteriosa e hipnótica influência. Ele devia ter vinhos. Nada sabia
acerca deles. Mas Alfred Swayn, da Adega de Bebidas Alcoólicas, dar-lhe-ia as luzes precisas em cinco minutos.
      Era muito curioso ver Miss Pinnegar rosnando quando ele falava no seu plano. Quando pela primeira vez este lhe foi revelado, as cores lhe subiram como as de um peru num afluxo de indignada cólera.
      - É ridículo. É absolutamente ridículo! - disse ela rispidamente, levantando e baixando a cabeça e voltando-se para o lado, como um peru indignado.
      - Ridículo! Por quê? Explique-me por quê! - respondeu James, rosnando também.
      - É absolutamente ridículo - repetiu ela, incapaz de fazer mais do que lançar perdigotos.
      - Pois sim, veremos - disse James com ar superior.
      E mais uma vez começou a se lançar absorvidamente
àquilo, como uma ave construindo o ninho. Miss Pinnegar o vigiava com uma espécie de fúria casmurra. Ia para a porta
da loja espreitá-lo. Viu-o escapar para a Adega de Bebidas Alcoólicas, e voltou atrás para contá-lo a Alvina.
      - Ele foi beber!
      - Beber? - indagou Alvina.
      - É o que lhe digo - disse Miss Pinnegar, vingativamente. - Beber.
      Alvina deixou-se cair e riu até mais não poder. Isso tudo lhe parecia realmente muito engraçado, muito engraçado.
- Não posso entender de que se ri - disse Miss Pinnegar.
- Uma vergonha. É uma vergonha. Mas eu não vou me deixar endoidecer com isso. Não serei gerente, é o que lhe digo. É absolutamente ridículo. Quem é que ele pensa que virá para aqui? Anda fora de si... e bebe; é o que é. Ir à Adega de Bebidas Alcoólicas às dez horas da manhã! É ali que ele vai buscar aquelas idéias... ao uísque ou à aguardente! Mas ele não me porá maluca, a mim.
      - Oh, querida! - suspirava Alvina, rindo com compostura e com um pouco de enfado. - Bem sei que aquilo é perfeitamente ridículo. Temos de fazê-lo desistir.
      - Já disse tudo o que podia dizer - atalhou bruscamente Miss Pinnegar.
      Quando James entrou para comer, as duas mulheres o atacaram.
      - Mas, meu pai - dizia Alvina -, não há quem venha para cá.
      - Um nunca acabar de gente... um nunca acabar de gente
- dizia o pai. - Repare na Shakespeare's Head, em Knarborough.
      - Mas Knarborough é Knarborough - atirou Miss Pinnegar. - Onde há aqui homens de negócios? Onde é que há gente que venha aqui a negócios e onde é que está o nosso comércio de atacadistas e de meias?
      - Há homens de negócios - dizia James. - E há senhoras.
      - Quem - retorquiu Miss Pinnegar - vai dar meia coroa por um chá? Eles contam com chá e pão sem manteiga por quatro pence, e pastéis a seis pence, e com damascos e ananás a nove pence, e presunto por um xelim, e com presunto e ovos e com compota e pastéis à vontade a um-e-dois. Se eles contam com um chá de garfo e faca por um xelim, que vai o senhor lhes dar por meia coroa?
      - Eu bem sei o que lhes hei de dar - dizia James.
      - E hei de arranjá-lo por dois xelins. - Passou-lhe pela cabeça a idéia de l e 11 e meio... mas rejeitou-a. - A senhora não imagina o que eu fornecerei à melhor freguesia.
      - Mas não há melhor freguesia em Woodhouse, papai
- dizia Alvina, incapaz de reprimir o riso.
      - Se se cria o sortimento, cria-se a procura - retorquiu ele.
      - Mas como arranjará o senhor uma melhor freguesia?
- perguntou Alvina, trocista.
      James assumiu seu polido e abstrato ar, como se estivesse preocupado com mais altos projetos. Era o ar
de um obstinado rapazinho que se põe ao lado dos anjos... ou que as mulheres viram assim.
      Miss Pinnegar estava disposta a combatê-lo agora
com toda a força. Atiraria sua pesada vontade negativa obstinadamente contra ele. Não lhe falaria, não notaria
sua presença, estava muda como pedra e cega como pedra:
James não existia. Isso o irritava. E ela o avaliava mal.
Ele somente tomou outro circuito, e ergueu mais o vôo
sobre a espiral de seu egotismo espiritual. Julgou-se final
e santamente no bom caminho, frustrado até aí por seres mais baixos, sobre os quais tinha o direito de se elevar, de voar mais alto. Então voou até serenas alturas e o seu Hotel Familiar pareceu uma celestial imposição, uma construção em mais alto plano.
      Falou com o arquiteto; e depois, com seus planos e plantas, falou com o construtor e com o empreiteiro. O construtor apresentou um orçamento de seiscentas ou setecentas libras... mas James faria melhor em ver o picheleiro que instalava a água quente e a aparelhagem sanitária. James estava um pouco chocado. Tinha calculado muito menos. Possuindo apenas um pequeno número de libras depois da Asfixia por Meio Pêni, pretendia hipotecar Manchester House se pudesse obter a soma suficiente de
dinheiro para a manutenção do estabelecimento durante um
ano. Viu que tinha de sacrificar a sala de trabalho de Miss Pinnegar. Viu, e temeu, a violenta e indisfarçada hostilidade
de Miss Pinnegar. Contudo (seu obstinado ânimo ergueu-se) estava inteiramente disposto a arriscar tudo neste último lance do jogo.
      Miss Allsop, filha do construtor, veio ver Alvina. Os Allsops eram personagens importantes na paróquia, e Cassie Allsop era uma das solteironas. Era magra e de ar murcho e pensativo, com cerca de quarenta e dois anos. Na intimidade, era tiranamente exigente com os criados, e rancorosa, mesmo mesquinha, com suas sobrinhas que não tinham mãe. Mas em público tinha aquele recatado e pensativo aspecto.
      Alvina ficou surpresa com a visita. Quando deparou
com Miss Allsop na porta dos fundos, toda a sua inerente hostilidade acordou.
      - Oh, é Miss Allsop! Quer entrar?
      Sentaram-se na sala do meio, a vulgar sala de estar da casa.
      - Vim - falou Miss Allsop, entrando imediatamente no assunto e falando com sua voz de professora de escola dominical - para lhe perguntar se sabe alguma coisa do
plano do Hotel Familiar de seu pai.
      - Sim - disse Alvina.
      - Ah, sabe! Bem, nós estamos pasmados. Mr. Houghton foi falar a meu pai ontem, sobre as alterações na casa. Custarão um dinheirão.
      - Ah, sim? - indagou Alvina, fazendo olhos grandes e trocistas.
      - Sim, um dinheirão. Que pensa você disso?
      - Eu?... Bem... - Alvina hesitava, até que desatou a rir. - Para dizer a verdade, não tenho pensado muito nisso.
      - Mas parece-me que deve pensar - disse Miss Allsop, severamente. - Meu pai está certo de que não dará lucro... e isso há de custar sabe-se lá quanto. Está destinado a ser um prejuízo completo. E seu pai está ficando velho. Você ficará à margem da vida sem um níquel para fazê-la feliz. Parece-me que é uma terrível perspectiva para você.
      - Parece-lhe? - perguntou Alvina.
      Ali estava ela, com um murro, arrumada na prateleira das solteironas.
      - Oh, parece-me. Sinceramente! Faria tudo que pudesse para evitá-lo, se fosse você.
      Miss Allsop partiu. Alvina se sentiu sacudida em sua disposição. Uma solteirona na companhia de Cassie Allsop!... E James Houghton brincando com os restos do dinheiro,
hipotecando Manchester House até o telhado. Alvina caiu numa espécie de fatigada mortificação, na qual a sua peculiar obstinação persistia diabólica e rancorosamente. "Deixemos o magro, mesquinho e vil destino cumprir-se a si próprio." Sua ira contra o pai ergueu-se de novo.
      Arthur Witham, o picheleiro, veio com James Houghton examinar a casa.
      Arthur Witham era também um dos homens da igreja... como o tinha sido seu comum, metediço e impolido pai antes dele. O pai deixara a cada um de seus filhos uma linda somazinha de dinheiro, que Arthur, o mais velho, tinha aumentado ao décuplo. Era manhoso e estúpido e também pouco educado, e falava com má pronúncia. Mas não tinha mau aspecto, um rapaz asseado com grandes olhos azuis que desejava conservar os "hh" no lugar devido, e que teria sido um cavalheiro se pudesse.
      Contra seu hábito, Alvina juntou-se ao picheleiro e
ao pai na copa. Arthur Witham saudou-a com certo respeito. Ela gostava dos olhos azuis e da figura asseada dele. Era fino e manhoso em negócios, muito atento, e lento para assumir compromissos. Naquela altura, apalpava, espreitava
e escorregava por debaixo da canalização. Alvina via-o quase desaparecer (segurava-lhe uma vela) e ria-se para si própria vendo as firmes e bem-modeladas nádegas saindo de sob a canalização, tal como o traseiro de um cão saindo de uma sarjeta. Era finório quanto a dinheiro, Arthur... mandão, e rastejando manhosamente na busca de sua própria importância
e poder. Queria o poder... e rojaria tranqüilamente até o alcançar; tanto quanto o permitissem suas forças. Os seus "hh" eram uma barreira de arame farpado e uma complicação, obstando a seu ilimitado progresso.
      Emergiu de sob a canalização, e foram à cozinha e depois ao andar de cima. Alvina seguia-os persistentemente, mas a certa distância, e calada. Quando a volta de inspeção estava quase acabada, disse inocentemente:
      - Isso vai custar muito dinheiro?
      Arthur Witham vagarosamente meneou a cabeça. Em seguida, olhou para ela. Ela sorriu meio trocista para os olhos dele.
      - Isso não pode ser feito de graça - disse ele, olhando mais uma vez para ela.
      - Trataremos disso depois - retorquiu James, acompanhando o picheleiro à porta.
      - Bom dia, Miss Houghton - falou Arthur Witham.
      - Bom dia, Mr. Witham - replicou Alvina vivamente.
      Mas ela se deixou ficar ao fundo, e quando Arthur Witham saía ouviu-o dizer: "Pois bem, eu vou ver isso, Mr. Houghton. Vou ver isso e à noite lhe direi. Terei prontos os cálculos, logo à noite".
      Os modos do homem eram um pouco despropositados, mesmo um pouco arrogantes para com o pai, pensava ela. A estrela de James declinava.
      À tarde, logo depois do almoço, Alvina saiu, entrou
na oficina, onde folhas de chumbo e caixas de lata pintada
e de massa se espalhavam por toda parte, alternadas com folhas de vidro e papel pintado. Lottie Witham, mulher de Arthur, apareceu. Era uma mulher de trinta e cinco anos,
uma viborazinha, com ambições sociais e sem filhos.
      - Mr. Witham está em casa? - disse Alvina.
      Mrs. Witham olhou para ela.
      - Vou ver - respondeu, e saiu da loja.
      Arthur entrou em seguida em mangas de camisa, com um aspecto atraente.
      - Não sei o que pensará de mim e do que me traz aqui
- falou Alvina com forçada amabilidade. Arthur ergueu para ela os olhos azuis, e Mrs. Witham surgiu ao fundo, na entrada interior.
      - O quê, que há de novo? - perguntou Arthur impassivelmente.
      - Faça as coisas tão caras quanto possível a meu pai
- disse Alvina, rindo nervosamente.
      Os olhos azuis de Arthur quedaram-se na face dela. Mrs. Witham deu uns passos à frente, na oficina.
      - O quê? De que é que se trata? - perguntou Lottie Witham de modo especial.
      Alvina voltou-se para a mulher.
      - Não diga nada - disse ela. - Mas nós não queremos que meu pai leve o projeto adiante. É preciso que ele desista. E Miss Pinnegar e eu não poderemos fazer nada para isso. Terei de ir embora.
      - Aquilo não vai dar em nada - falou Arthur impassivelmente.
      - E meu pai não tem dinheiro, tenho certeza - aduziu Alvina.
      Lottie Witham contemplava a magra e nervosa face de Alvina. Fosse pelo que fosse, ela lhe agradava. E decerto Alvina era considerada uma senhora em Woodhouse. Era aquilo
a que ela chegara, com o declínio da fortuna de James: era simplesmente considerada uma senhora. A consideração não era já indiscutível.
      - Quer entrar por uns instantes? - indagou Lottie Witham, levantando a extremidade do balcão. Era um raro e arrojado rasgo da parte de Mrs. Witham. O imediato instinto
de Alvina foi recusar. Mas lhe agradava Arthur Witham em mangas de camisa.
      - Está bem... mas só um minuto - dizia ela à medida que ultrapassava a porta do balcão. Sentia que se aventurava em terreno novo. Foi conduzida à nova sala de visitas, cheia de mobílias forradas de brocado novo, cor de pavão e bronze, com dourados e bronze e paredes brancas. Era a nova casa dos Withams, e Lottie envaidecia-se dela. As duas mulheres tiveram uma conversa pouco demorada e confidencial. Arthur ficara à entrada por uns momentos, depois saíra.
      Alvina realmente não gostava de Lottie Witham. Contudo, a outra mulher era fina e sagaz no aprender, e por uma razão qualquer Alvina lhe agradou. Assim, ela foi convidada a ir tomar chá em Manchester House.
      Depois disso, tantas dificuldades se levantaram no caminho de James Houghton que ele se atormentou quase até
não poder mais As suas duas mulheres deixaram-no só. Fora, dificuldades se multiplicaram sobre ele até que abandonou o projeto... ele fora simplesmente afastado disso por circunstâncias desagradáveis.
      Lottie Witham veio tomar chá e Manchester House
lhe foi mostrada. Não tinha nenhuma idéia do que fosse Manchester House... não meteria um gato em tal sinistro buraco. No entanto, ficou bastante impressionada com o ar
de superioridade.
      - Ai, meu Deus! - exclamou, quando entrou no quarto de Alvina e contemplou a enorme mobília, o enorme planalto da cama.
      - Ai, meu Deus! Eu não seria capaz de dormir naquilo
nem um segundo, juro! Você não se assusta? Mesmo que tivesse Arthur a meu lado, estaria tão assustada do outro lado que não saberia o que fazer. Dorme aqui sozinha?
      - Durmo - respondeu Alvina, rindo. - E eu não tenho um Arthur, mesmo de um lado só.
      - Palavra de honra que você devia ter um marido de ambos os lados, em tal cama - falou Lottie Witham.
      Alvina foi também convidada para o chá... quarta-feira à tarde, dia de fechar as lojas. Arthur assistiu ao chá, muito embaraçado e sentindo as mãos como que inchadas. Alvina se entendia melhor com a mulher dele, que observava atentamente para aprender da convidada o segredo da calma. A indefinível calma e a inevitabilidade de uma senhora, mesmo de uma senhora que é nervosa e agitada... tal era o problema que preocupava o espírito de Lottie, agudo e ativo mas vulgar. Ela até nem reparava nos esforços de Alvina, rindo para extrair qualquer coisa do desajeitado Arthur: porque Alvina era uma senhora e os seus modos mereciam ser estudados.
      Alvina realmente gostava de Arthur e pensava bastante nele... sabe Deus por quê. Ele e Lottie eram inteiramente felizes juntos, e ele estava absorvido na sua insignificante
ambição. Dentro das suas possibilidades, era invencivelmente ambicioso. Acabaria por fazer uma fortuna suficiente e por ser conselheiro da cidade ou juiz de paz. Mas para além de Woodhouse ele não existia. Por que então se sentiria Alvina atraída por ele? Talvez por causa da sua "maneira fechada" e da sua secreta determinação.
      Quando ela o encontrava na rua fazia-o parar, ainda
que ele estivesse sempre cheio de pressa, e fazia-o trocar algumas palavras com ela. E quando havia chá em casa dele, ela tentava despertar sua atenção. Mas, apesar de que a olhasse firmemente com seus olhos azuis, de sob as suas longas pestanas, ainda assim, sabia-o, ele a olhava objetivamente. Ele não concebera nunca qualquer ligação com ela, fosse qual fosse essa ligação.
      Era Lottie quem tinha o espírito planificador. Na família de três irmãos havia um... não cordeiro preto, mas branco. Havia um que estava subindo, para ser um cavalheiro.
Era Albert, o segundo irmão. Fora mestre-escola em Woodhouse; partira para a África do Sul e ocupara um posto numa espécie de escola primária numa das cidades da colônia do Cabo. Juntara algum dinheiro, aumentando seu patrimônio. Agora estava na Inglaterra, em Oxford, onde deveria obter seu tardio grau. Quando o conseguisse voltaria à África do Sul para assumir o cargo de diretor da escola, com setecentas libras por ano.
      Albert tinha trinta e dois anos e não era casado. Lottie tinha determinado que ele deveria levar para o Cabo uma mulher adequada: possivelmente Alvina. Ele passou as férias em Woodhouse... e estava apenas no primeiro ano de Oxford. Pois bem, o que podia ser mais adequado?... Um homem novo
em Oxford, uma mulher nova em Woodhouse. Lottie falou muito dele a Alvina, e a moça estava imensamente interessada em
conhecê-lo. Imaginava um Arthur mais alto, mais fascinante
e educado.
      Com receio de ficar solteirona, o receio de sua própria virgindade estava realmente se apoderando de Alvina. Havia uma terrível futilidade sombria, o nada, em Manchester
House. Tinha vinte e seis anos. Sua vida era absolutamente estéril, agora que Miss Frost se fora. Estava andrajosa e sem dinheiro, uma simples criada caseira: porque James não queria sequer uma rapariga para ajudar na cozinha. Tinha um ar fanado e gasto. O pânico, o terrível e mortal pânico que vence tantas mulheres solteiras por volta dos trinta anos, começava a vencê-la. Não se importava com o casamento, se ao menos tivesse um amante. Mas uma espécie de terror atirava-a à procura de um amante. Preferia tornar-se lama, vir a ser uma prostituta, dizia ela a si própria, do que morrer como Cassie Allsop e as outras, murchar lenta, ignominiosa e
horrivelmente na árvore. Preferiria matar-se, até.
      Mas são precisos certos dotes para vir a ser mulher livre ou prostituta. Se não se tem as qualidades que atraem os homens libertinos, que fazer? Suponha-se que não está na natureza de uma pessoa atrair homens libertinos e promíscuos! Como, então, fazer-se prostituta se não se tem feitio para isso?, nem mesmo para mulher livre. Não basta querer. É preciso um segundo partícipe para se chegar a acordo.
      Por conseguinte, todos os desesperados e libertinos
planos e idéias de Alvina se reduziram a zero ante o inexorável da sua natureza. E o inexorável da sua natureza era altamente refinado e seletivo, uma inevitável negação
de libertinagem ou prostituição. Por isso, os homens tinham receio dela... do seu poder, uma vez que se tivessem comprometido. Ela envolveria e conduziria um homem,
destruí-lo-ia mesmo, mas não desistiria de conseguir o que dele queria. E o que ela queria era alguma coisa de sério e arriscado. Não simplesmente o casamento... Oh, de modo algum! Mas um profundo e perigoso relacionamento. O mesmo que pedir aos remadores na baixa rebentação da paixão que mergulhem no golfo agitado do oceano. Ora, com as calças arregaçadas até os joelhos, era bastante para eles molhar os dedos dos pés no perigoso mar. Nada tinham a fazer com nereidas desesperadas como Alvina.
      Ela lançara o pensamento sobre Arthur. Verdadeiramente ridículo. Mas havia qualquer coisa de compacto e enérgico
e voluntarioso nele que ela engrandecia dez vezes e assim obtinha, imaginariamente, um atraente amante. Passava os dias miseravelmente em Manchester House, ocupada com o penoso trabalho caseiro. Desde o colapso da Asfixia por Meio Pêni, James Houghton tornara-se tão mesquinho que isso era como uma doença nele. Uma moeda de seis pence, de prata, tinha uma pálida e celestial radiação a que ele não podia renunciar, uma nebulosa brancura que o fazia julgar que tinha o céu consigo. Como podia ele então deixá-la ir-se? Mesmo um pêni castanho parecia vivo, pulsando com misterioso sangue, potente, mágico. Amava o monte de suas agitadas moedas, na loja, como se fossem abelhas divinas levando-lhe o sustento
trazido do infinito. Mas as moedas que ele via gotejando em despesas da casa o perturbavam de modo agudo, como se fossem coisas vivas deixando o redil. Era uma constante luta arrancar dele o dinheiro suficiente para as necessidades.
      E assim a comida caseira se tornou escassa em extremo,
o carvão era poupado centímetro a centímetro, e quando Alvina precisava consertar os sapatos tinha de recorrer ao pouco dinheiro que amealhava. Porque James Houghton tinha o impudor de dar à filha uma pensão de dois xelins por semana. Ela andava furiosa. Todavia, essa fúria era daquela espécie perigosa e meio irônica que mina quem lhe está submetido
e não tem efeito exterior. Um sentimento de amarga troça
a fazia ir andando. Na grave e pode-se dizer que sórdida nulidade de Manchester House, ela se tornava sombria e absorta, absorta em nada em particular, contudo absorta. Estava sempre mais ou menos ocupada; e certamente havia sempre qualquer coisa a fazer, quer a fizesse ou não.
      A loja abria uma vez por semana, na tarde de
sexta-feira. James Houghton rondava os armazéns em Knarborough e adquiria quantidades diversas de tecidos,
com os quais enchia a sua bem pobre vitrina. Mas o coração não puxava mais para o negócio. A simples tenacidade o fazia pairar sobre isso.
      A meio do verão Albert Witham veio a Woodhouse, e Alvina foi convidada para o chá. Estava muito excitada. Todo o tempo imaginando Albert um Arthur mais alto e delicado, ela se abstinha de realmente fixar o espírito sobre aquele homenzinho. Grande foi seu desapontamento quando viu Albert inteiramente desprovido de atrativos. Era baixo, magro e frágil, com uma face pálida, seca e achatada, e com curiosos e pálidos olhos. Seu aspecto era de uma severa insipidez, qualquer coisa como um linguado com limão. Era curiosamente achatado e parecido com um peixe, uma pessoa podia imaginar sua espinha dorsal espalhando-se como a espinha dorsal de um linguado ou de uma solha. Os dentes eram sãos, mas grandes, amarelados e chatos. Uma pessoa muito curiosa.
      Falava em tom ligeiramente declamatório, não polido, apesar de Oxford. Tinha o falar nasal característico de Woodhouse. Nunca seria um cavalheiro, por mais que vivesse.
Contudo, não era ordinário. Realmente um peixe singular: muito interessante, se se pudesse afastar a impressão de que se olhava para ele através da parede de vidro de um aquário, a mais horripilante de todas as fronteiras entre dois mundos. Num aquário os peixes parecem rir largamente à entrada, e aí ficam falando um com o outro, num modo declamatório terrível à vista. Porque ninguém ouve o som de toda a sua declamada e espantada conversa. Ora, posto que Albert Witham tivesse uma
voz boa e forte, que soava como água entre rochas a seu ouvido, ela parecia não ouvir nunca uma palavra do que
ele dizia. Este sorria para ela e fixava-a, e balançava
a cabeça, e dizia coisas muito originais, realmente. Porque ele era um genuíno peixe extravagante. E contudo ela parecia não ouvir nenhum som, nenhuma palavra vinda dele; nada chegava até ela. Talvez na realidade os peixes pronunciem correntes de palavras aquosas, para as quais nós, com os nossos ouvidos aerorressonantes, somos sempre surdos.
      O interessante era que esse extravagante peixe parecia logo desde o princípio imaginar que ela o tinha aceitado como um candidato. E ele estava quase disposto a isso. Porém, desde o primeiro momento sorria para ela com uma espécie de complacente deleite... compassivo, quase se poderia dizer, como se houvesse completa compreensão entre eles. Se ao menos pudesse se recolocar num estado de espírito sensato, ela teria realmente gostado dele. Ele ria para ela, e dizia realmente coisas interessantes por entre seus grandes dentes. Havia nele qualquer coisa de belo. Mas, devemos repetir, era como se a parede de vidro de um aquário os separasse.
      Alvina olhava para Arthur. O rapaz era pequeno, de cabelos escuros e de belas cores. Mas, agora que o irmão estava ali, também ele parecia estar rodeado de um mudo
e aquoso silêncio, como de peixe, e longínquo. Parecia nadar como um peixe no seu próprio pequeno elemento. Era tudo estranho, como Alice no País das Maravilhas. Alvina compreendia agora a espécie de magreza cansada de Lottie, o ar macilento, nervoso, de alga marinha. A pobrezinha estava sempre nadando na vida.
      Para Alvina aquele era um chá muito curioso. Ouvia e sorria e dava vagas respostas a Albert, que inclinava os ombros largos, magros e frágeis em direção a ela. Lottie
parecia sombriamente presidir o encontro. Mas era Arthur quem se animava a conversar. E agora, proferindo seus discursos que lhe enchiam a boca, parecia-lhe a ela ouvir nele uma mais tranqüila e mais sutil edição do pai. O pai tinha sido um homem pequeno, terrificamente barulhento e enrugado, assombrosamente mal-educado e assombrosamente prepotente, que exercera a tirania por muitos anos sobre as crianças da escola dominical durante o serviço da manhã. Era uma criatura de aspecto extravagante, com suíças redondas e cinzentas. Para Alvina, sempre uma criatura, nunca um homem: um atroz fantasma surgindo de baixo do chão da capela. E como ele
costumava apontar as crianças do fundo, com o seu horrível dedo de ferro, se às pobrezinhas acontecia cochichar ou cabecear na capela!
      Essas eram as suas crianças... os mais curiosos pedaços do velho grupo. Quem alguma vez teria acreditado que ela fosse estar tomando chá com elas?
      - Por que não arranja uma bicicleta para passear?
- estava Arthur dizendo.
      - Mas eu não sei andar - disse Alvina.
      - Aprenderia em duas lições. Não é difícil andar de bicicleta.
      - Não me parece que venha a ser capaz - falou Alvina.
      - Não me queira dizer que é nervosa... - disse Arthur rudemente e num modo escarnecedor.
      - Eu sou - persistiu ela.
      - Não precisará ser nervosa comigo - sorriu Albert largamente, na sua singular e genuína galanteria. - Eu vou ensiná-la.
      - Mas eu não tenho bicicleta - retorquiu Alvina, sentindo-se enrubescer pouco a pouco até uma carregada vermelhidão de quem não está à vontade.
      - Terá a minha para aprender - disse Lottie. - Albert providenciará isso.
      - É uma oportunidade - falou Arthur, rudemente.
- Aproveite-a enquanto ele está com essa idéia.
      Mas Alvina não queria aprender a andar de bicicleta. As duas irmãs Carlins, as duas mais velhas solteironas, tinham tornado a si próprias ridículas para sempre, ao se fazerem dois demônios gêmeos de bicicleta. E o horrível e enérgico esforço de pedalar uma bicicleta quilômetros e quilômetros de estrada não atraía Alvina de modo algum. Era completamente indiferente a fazer excursões e explorações por ali. Gostava de dar um passeio, na sua maneira vagarosa e indiferente. Mas atirar-se para qualquer caminho lhe era odioso. E então, ser ensinada a andar de bicicleta por Albert Witham! Toda a sua alma lhe fugia.
      - Sim - dizia Albert, chispando em direção a ela seus estranhos pálidos olhos. - Venha. Quando quer ter a primeira lição?
      - Oh! - gritou Alvina, confusa. - Não posso prometer. Não tenho tempo, na verdade.
      - Tempo! - exclamava Arthur, rudemente. - Mas que tem para fazer durante o dia?
      - Tenho as coisas da casa - disse ela, olhando para ele graciosamente.
      - A casa! Ponha-lhe uma corrente à volta do pescoço e amarre-a - retorquiu ele.
      Albert riu, mostrando todos os dentes.
      - Eu bem sei que sempre achará o que fazer, com todas
as coisas a seu cargo - falou Lottie a Alvina.
      - Certamente! - falou Alvina. - À noite, estou absolutamente cansada... apesar de o senhor não poder
acreditá-lo, desde que diz que não faço nada - acrescentou, rindo, confusa, para Arthur.
      Mas ele, pequeno fabricante de fortuna, cabeça-dura, replicou:
      - Você tem uma moça para ajudar, não é verdade? Albert, contudo, emitia chispas para ela.
      - Ela tem muito o que fazer em casa. Haveria de lhe fazer bem um pouco de exercício ao ar livre. Venha até a estrada da diligência amanhã à tarde, e deixe-me dar-lhe
uma lição.
      Ora, a estrada da diligência era um passeio plano entre belos canteiros de relva ajardinados, abaixo, no vale. Era um lugar delicioso para aprender a andar de bicicleta, mas escancarado inteiramente aos olhos de toda a gente. Alvina morreria de vergonha. Começou a rir nervosamente só de pensar nisso.
      - Não, não posso. Não posso, realmente! Muito, muito obrigada.
      - Não pode, realmente! - disse Albert. - Pois bem, outro dia falaremos, sim?
      - Quando eu sentir que possa - respondeu ela.
      - Sim, quando sentir que pode - replicou Albert.
      - Não é bem isso - dizia Arthur. - Não é questão de tempo. É nervoso.
      De novo Albert chispava para ela simpaticamente, e dizia:
      - Oh! Eu a seguro. Não tenha medo.
      - Mas eu não tenho medo - replicou ela.
      - O que não quer é dizer que tem - interpôs Arthur. - As mulheres nunca reconhecem os próprios defeitos.
      Alvina começava a se sentir muito entontecida. Não estava acostumada àqueles modos mecânicos e imperiosos. Aquilo era como as duas partes de um insensível par de
tenazes de ferro. Levantou-se, dizendo que devia ir embora.
      Albert levantou-se também, e foi buscar o seu chapéu de palha, com a fita de cor.
      - Eu vou com você, se não se importa - disse ele. E tomou lugar ao lado dela ao longo da estrada de Knarborough, onde toda a gente se voltava para os ver. Porque, na verdade, ela tinha uma certa fama em Woodhouse. Ia com ele, rindo e conversando. Mas não se sentia inteiramente à vontade. Ele parecia muito contente. Somente não estava muito contente
com ela. Estava contente consigo próprio por causa dela: desordenadamente contente consigo próprio. No seu mundo, como no de um peixe, não havia senão seu próprio nadar; e se ele tinha a sorte de ter qualquer coisa nadando a seu lado e dando-lhe confiança, ora!, tanto mais complacentemente ele sorria.
      Andava firme e ereto, com a cabeça puxada para trás,
de tal modo que parecia ir à frente da cabeça e dos ombros, numa espécie de avanço horizontal. Não parecia que andasse passeando com todo o corpo. Suas maneiras eram de uma galanteria excêntrica, que ignorava completamente a sua individualidade de mulher. O modo como tirava o chapéu, o modo como se inclinava e sorria desgraciosamente, mesmo excitadamente, quando falava, era tudo um pouco incômodo e cômico. Deixou-a à porta da loja, dizendo:
      - Vê-la-ei de novo, espero.
      - Oh, decerto - replicou ela, batendo à porta apressadamente, porque estava fechada à chave. Ouviu os passos do pai por fim, caminhando aos tropeções pela loja.
      - Boa noite, Mr. Houghton - disse Albert untuosamente e com certa confiança quando James assomou à porta.
      - Oh, boa noite! - respondeu James, deixando Alvina passar, e fechando a porta na cara de Albert.
      - Quem é? - perguntou ele severamente.
      - Albert Witham - replicou ela.
      - Que é que ele quer de você? - disse James de mau humor.
      - Espero que nada.
      Escapou-se na obscuridade de Manchester House, fugindo da noite parda de verão. Os Withams tinham-na deixado fora
de si, fazendo-a sentir que não era ela própria. Sentia não sabia o quê, que não podia sentir, que estava absolutamente dispersa e descentrada. E tinha receio dos irmãos Witham. Podia ser a vítima deles. Achou que devia evitá-los.
      Nos dias seguintes viu Albert, com um paletó Norfolk, calças de flanela e chapéu de palha, passando várias vezes
e olhando para dentro da loja e para as janelas. Mas ela escondeu-se bem. Quando saiu, foi pelos fundos. Assim, ela
o evitou.
      Mas, na tarde de domingo, estava ele sentado firme e frágil, no antigo lugar dos Withams na igreja, a cabeça um pouco puxada para trás, de modo que o rosto e o pescoço
pareciam ligeiramente achatados. Usava colarinhos baixos, virados e engomados, que deixavam ver todo o pescoço. E
ele ficou olhando-a durante o serviço (ela estava sentada no
coro), contemplando-a com olhos aparentemente indiferentes
e um tímido e íntimo sorriso... uma espécie de olhar
je-sais-tout de um namorado secreto. Arthur ocasionalmente
também lançava um judicioso olhar para Alvina, como se ela fosse uma chaminé que precisasse de conserto e ele devesse calcular o custo e se valia a pena.
      Naturalmente, quando ela do estreito coro veio para Knarborough Road, lá estava Albert, que avançava como um policial, rondando-a e sorrindo-lhe.
      - Não sei se incomodo... - falou num fingido modo deferente que mostrava não imaginar que pudesse estar incomodando.
      - Oh, de modo algum - disse Alvina com ar indiferente. Ele sorriu, seguro.
      - Não tem nenhum compromisso para esta noite? - indagou ele.
      - Não - replicou ela, unicamente.
      - Podemos dar um passeio. Que lhe parece? - continuou ele, olhando de relance em todas as direções da rua.
      Que devia ela pensar, afinal de contas? Todas as moças eram acompanhadas por rapazes no passeio depois da igreja e se requebravam para eles.
      - Não me importo - disse ela. - Mas não posso ir muito longe. Tenho de estar em casa às nove.
      - Para que lado iremos? - disse ele.
      Ele a conduziu, virando ao fundo da colina através dos jardins públicos, e propôs levá-la em não muito original passeio a Flint's Lane, e ao longo da linha férrea... a linha férrea da mina, entenda-se, regressando depois pela estrada da Marlpool; uma espécie de círculo. Ela concordou.
      Não encontraram muito o que falar. Ela o interrogou acerca dos planos que tinha, e acerca do Cabo. Mas, salvo
as generalidades que dizia prontamente, ele era pouco
comunicativo.
      - Geralmente, o que faz nas noites de domingo?
- perguntou ele.
      - Oh, dou um passeio com Lucy Grainger... ou vou à casa dos Hallams... ou vou para casa - respondeu ela.
      - Não passeia então com rapazes?
      - Meu pai não deixaria - replicou ela.
      - Que dirá ele agora? - perguntou Albert, intimamente satisfeito.
      - Só Deus sabe! - falou ela, rindo.
      - Deus geralmente sabe - respondeu ele maliciosamente.
      Quando chegaram à via férrea, onde se caminhava aos tropeções, ele disse:
      - Quer meu braço?
      - Oh, vou bem assim - disse ela. - Obrigada.
      - Vá - continuou ele, chegando-se um pouco mais perto dela, e lhe oferecendo o braço. - Não há nenhum mal nisso, não é verdade?
      - Oh, claro que não - respondeu ela.
      E sentindo-se em falsa posição, ela lhe tomou o braço, muito contra a vontade. Ele se aproximou um pouco mais dela e começou a andar mais devagar.
      - Vamo-nos entendendo melhor, não vamos? - dizia ele, dando à mão dela uma ligeira compressão com o braço, contra seu flanco.
      - Muito melhor - replicou ela, rindo. Então ele baixou a voz significativamente.
      - Já lá vão muitos dias desde que passei por esta linha - disse ele.
      - É um de seus antigos passeios? - perguntou ela, maliciosa.
      - Sim, estive aqui uma ou duas vezes... com moças que estão agora todas casadas.
      - Não pensa em casar-se? - perguntou ela.
      - Oh, não sei. Já o podia ter feito. Mas nunca se chegou a esse ponto, em todo caso. Muitas vezes penso que nunca chegarei a tanto.
      - Por quê?
      - Ao certo, não sei. Sabe, parecia sempre que não podia ser. Talvez nenhum de nós tivesse verdadeiramente inclinação.
      - Talvez fosse isso - falou ela.
      - E contudo - ele o admitia habilidosamente -, gostaria de casar-me... - A isto ela não respondeu.
      - E você, não gostaria? - continuou ele.
      - Quando encontrar o homem que me sirva - retorquiu ela, rindo.
      - Ai está - disse ele. - É isso, é exatamente isso. E ainda não o encontrou? - A voz dele parecia sorrir com o seu quê de triunfo, como se a tivesse agarrado. 
      - Sim... uma vez pensei que sim... quando estive noiva de Alexander.
      - Mas você reconheceu que se tinha enganado - insistiu ele.
      - Não. Minha mãe estava tão doente nessa altura...
      - Há sempre qualquer coisa a ter em conta - disse ele.
      Ela continuava perguntando a si mesma o que faria se ele a quisesse beijar. A simples incongruência de tal desejo da parte dele aparecia-lhe como um problema. Por sorte, durante essa noite, ele não formulou desejos, mas deixou-a à porta da loja logo depois das nove, com um pedido:
      - Vê-la-ei esta semana, ou não?
      - Não sei bem. Agora não posso prometer - disse ela, precipitadamente. - Boa noite.
      O que ela principalmente sentia quanto a ele era uma perplexidade descentralizada, muito semelhante a não sentir coisa alguma.
      - Imagine quem me levou para dar um passeio, Miss Pinnegar? - disse ela, rindo, à confidente.
      - Não posso imaginar - replicou Miss Pinnegar,
fixando-a.
      - Nunca adivinharia - disse Alvina. - Albert Witham.
      - Albert Witham! - exclamou Miss Pinnegar, quedando-se de todo imóvel.
      - Isso pode bem deixá-la sem respiração - disse Alvina.
      - Não, não é isso! - atirou de mau gosto e apressadamente Miss Pinnegar. - Bem... Bem, o que tenho a dizer... - E depois, em tom diferente: - Bem, ele é um
bom partido, parece-me.
      - De fato! - replicou Alvina.
      - Sim, é - insistia Miss Pinnegar. - Parece-me que está muito bem.
      - Que é estar muito bem? - perguntou Alvina. Miss Pinnegar hesitou. Olhou para Alvina. Reconsiderou.
      - Decerto que não é o homem que eu teria imaginado para você, mas...
      - A senhora pensa que ele o será? - disse Alvina.
      - Por que não? - disse Miss Pinnegar. - Por que não... se você gostar dele.
      - Ah - gritou Alvina, submergindo no sofá, e dando uma risada. - É isso.
      - Decerto, você não teria nada a fazer com ele se ele não lhe interessa - pronunciou Miss Pinnegar.
      Albert continuou rondando pelas imediações. Não fez nenhum ataque direto durante alguns dias. Repentinamente,
uma tarde apareceu à porta dos fundos com um ramo de goivos brancos na mão. A face iluminou-se-lhe com um súbito e estranho sorriso quando ela abriu a porta... um largo, pálido-cintilante e notável sorriso.
      - Lottie quer saber se você pode ir tomar chá amanhã
- disse ele de um jato, olhando para ela com uma pálida luz nos olhos, que sorriam palidamente na direção dos olhos dela, mas sem de qualquer modo a ver. Ele esperava no vestíbulo que o mandassem entrar.
      - Quer entrar? - indagou Alvina. - Meu pai está em casa.
      - Está bem, entro - disse ele, contente. Subiu os degraus, ainda segurando o ramo de goivos brancos.
      James Houghton rodou na cadeira e espreitou por sobre os óculos para quem havia entrado.
      - Papai - disse Alvina -, conhece Mr. Witham, não é verdade?
      James Houghton soergueu-se. Olhava ainda por cima dos óculos para o intruso.
      - Sim... conheço-o de vista. Como está? - Estendeu a mão frágil.
      Albert recuou, com as flores na mão, e passando o seu largo, satisfeito, pálido-cintilante olhar do pai para a filha, disse:
- Que devo fazer disto? Quer aceitá-los, Miss Houghton?
- Olhava fixamente para ela com brilhantes e pálidos olhos sorridentes.
      - São para mim? - perguntou ela, com falsa delicadeza.
- Muito obrigada.
      James Houghton olhava por cima dos óculos, perscrutadoramente, para as flores, como se fossem um ramo
de furões de dentes brancos e afiados. Depois olhou, desconfiadamente, para a mão que Albert por fim lhe estendeu. Apertou-a levemente, e disse:
      - Puxe a cadeira
      - Receio que o tenha vindo perturbar na leitura - falou Albert, ainda tendo no rosto o forçado e excitado sorriso.
      - Bem... - disse James Houghton. - A luz está desaparecendo.
      Alvina voltou com as flores numa jarra. Colocou-as sobre a mesa.
      - Cheiram bem, não é? - disse ela.
      - Acha? - replicou ele, ainda com o sorriso excitado. Houve uma pausa. Albert, bastante embaraçado, debruçou-se, dizendo:
      - Posso ver o que está lendo? - E voltou-se para o livro. - Tommy e Grizel! Muito bem! Que tal acha o livro?
      - Bem vê - disse James -, estou ainda no princípio.
      - A mim, parece-me interessante - falou Albert - como estudo de um homem que não pode evadir-se de si próprio. Encontra-se muita gente assim. O que me pergunto é por que é que eles acham isso uma tal desvantagem.
      - Acham qual desvantagem? - perguntou James.
      - Não serem capazes de evadir-se deles próprios. O conhecimento de si próprio. Isso os embaraça, e interfere
no poder de ação deles. Ora, eu pergunto a mim mesmo por que é que o conhecimento de si próprio pode impedir a ação a um homem. Por que isso causa receios? Parece-me que me conheço a mim próprio, mas não julgo que tenha tantos receios. Não acho que sejam necessários.
      - Claro que penso que Tommy é um caráter fraco. Creio que é um caráter vil - disse James.
      - Não, eu não vou tão longe - disse Albert. - Eu não o direi fraco, propriamente. Ele é fraco somente numa direção. Não, o que me pergunto é por que ele se sente culpado. Se
uma pessoa consegue conhecer-se a si própria, não tem de se sentir culpada por isso, não lhe parece?
      Fitava James com seu estranho e sorridente olhar.
      - Eu não diria tanto - replicou James. - Mas se um homem não conhece seu próprio modo de ser, esse homem decerto não pode ser verdadeiramente um homem.
      - Não me parece - replicou Albert. - O que acontece é que ele se sente culpado por não conhecer seu próprio modo
de ser. Mas isso não é necessário. O sentimento de culpa...
      Albert parecia insistir neste ponto, que não tinha particular interesse para James.
      - Onde me parece que temos de mudar - dizia Albert - é no sentimento de que outras pessoas têm o direito de nos dizer o que devemos sentir e fazer. Ninguém sabe o que outro homem deve sentir. Cada homem tem seus próprios sentimentos especiais, e o direito próprio para tanto. É a dificuldade da educação. Uma pessoa não deve querer que todos os seus filhos sintam o mesmo. As naturezas deles são diferentes, e assim todos devem sentir de maneira diferente, praticamente, quanto a todas as coisas.
      - Não haveria fim para tal confusão - falou James.
      - Não há necessidade de se falar em confusão. O senhor aceita certo número de regras e convenções e leis, com fins sociais. Mas, na vida privada, o senhor sente justamente o que sente, sem ocasião para tentar sentir qualquer outra coisa.
      - Não sei - retorquiu James. - Há certos sentimentos comuns à humanidade, como o amor, a honra, a verdade.
      - Deve o senhor chamar-lhes sentimentos? Eu diria que o que é comum é a idéia. A idéia é comum à humanidade, uma vez que ela seja posta em palavras. Mas o sentimento varia com cada homem. A mesma idéia representa um modo diferente de sentir, em cada indivíduo diferente. Parece-me que é o que devemos reconhecer se vamos fazer qualquer coisa quanto à educação. Nós não queremos produzir sentimentos de massa. Não lhe parece?
      O pobre James estava demasiado confuso para saber se concordava ou não.
      - Quer trazer uma luz, Alvina?
      Alvina acendeu o bico de gás incandescente que pendia no meio da sala. A dura luz branca mostrou o ar algo cansado de Alvina quando esta se estendeu para ela. Mas Albert seguia-a com o olhar, sorrindo abstratamente. Era como se as palavras lhe saíssem sem o afetar em nada. Não pensava no que estava sentindo, e não sentia aquilo em que estava pensando. E por isso ela mal ouvia o que ele dizia. Contudo, acreditava que ele era inteligente.
      Era evidente que Albert era completa e
bem-aventuradamente feliz à sua maneira, sentado na extremidade do sofá, não longe do lume, e falando animadamente. A única coisa desagradável era que, embora falasse na direção de seu interlocutor, não falava para ele simplesmente dizia palavras para aquele lado. James, contudo, era uma pena tão leve que não notava isso, mas somente se sentia a si próprio um pouco importante por sustentar conversa tão sutil com um homem de Oxford. Alvina, que
nunca esperara interessar-se em conversas inteligentes, depois da longa experiência do pai, viu sua expectativa de novo justificada. Não estava interessada.
      O homem estava muito bem vestido, com casaco de duas cores, segundo a moda, calças de flanela e sapatos castanhos. Era mesmo elegante, a julgar pelas meias amarelas e pela gravata amarela e castanha. Miss Pinnegar olhou-o com aprovação quando entrou.
      - Boa noite! - disse ela, um nadinha condescendente, quando lhe apertou a mão. - Como é que acha Woodhouse, depois de ter estado fora tanto tempo? - O seu modo de falar era tão calmo, como se só dificilmente pudesse falar alto.
      - Bem - respondeu ele. - Encontrei tudo na mesma, em relação a muitos aspectos.
      - Não gostaria de ficar aqui de novo?
      - Acho que não. Isto parece um pouco estreito, sabe, depois de se ter estado em novas terras. Mas tem seus atrativos. - Sorriu significativamente.
      - Sim - concordou Miss Pinnegar. - Penso que os antigos conhecimentos ainda valem alguma coisa.
      - Decerto. Oh, decididamente que sim. Não há relações como as antigas. - Sorriu insipidamente quando volveu o olhar para Alvina.
      - Acha isso? - retorquiu Miss Pinnegar. - Não lhe parece que os novos conhecimentos compensam os antigos?
      - Não, não compensam inteiramente. Há qualquer coisa que falta... - De novo olhou para Alvina. Mas ela não respondeu àquele olhar.
      - Pois bem - disse Miss Pinnegar. - Estou satisfeita por ainda valermos alguma coisa, apesar de outras atrações maiores. Quanto tempo fica na Inglaterra?
      - Mais um ano. Exatamente um ano. No próximo ano
por esta altura espero estar embarcando de volta ao Cabo.
- Sorriu como em antecipação. Contudo, estava longe
de crer que isso lhe importasse, ou que qualquer coisa lhe importasse.
      - E Oxford lhe agrada? - perguntou ela.
      - Oh, sim. Estou sempre muito ocupado.
      - Qual é a sua especialidade? - perguntou James.
      - Inglês e história. Mas estudo psicologia por uma questão de gosto.
      Alvina pegara uma roupa para coser. Estava sentada debaixo da luz, um pouco meditativa. Que tinha tudo aquilo com ela? O homem falava e cintilava na direção dela. Ela
se sentiu um bocadinho importante. Mas comovida ou enternecida?... Nem um pouco.
      Ela perguntava a si própria se alguém o convidaria a cear... pão e queijo, doce de uvas, e água, tudo o que se podia oferecer. Ninguém o convidou, e por fim ele se levantou.
      - Acompanhe Mr. Witham pela loja, Alvina - disse Miss Pinnegar.
      Alvina guiou o homem pelo longo, escuro e atravancado caminho da loja. À porta, ele disse:
      - Você não disse nada quanto a vir tomar chá na
sexta-feira.
      - Julgo que não poderei - falou Alvina. Ele pareceu embaraçado.
      - Por quê? Que é que a impede?
      - Tenho tanto que fazer... Ele sorriu lenta e satiricamente.
      - E isso não pode esperar?
      - Não, pode crer. Não posso ir na sexta-feira... agradeço-lhe muito. Boa noite. - Deu-lhe a mão e entrou rapidamente na loja, fechando a porta. Ele se deixou ficar
no patamar, fitando a porta fechada. Depois, apertou os lábios e se afastou.
      - Bom - disse Miss Pinnegar com ar decidido, quando Alvina entrou. - Pode dizer o que quiser... mas para mim ele é muito simpático, muito simpático.
      - E extremamente inteligente - falou James Houghton, movendo-se na cadeira.
      - Eu estava absolutamente farta - disse Alvina.
      Ambos olharam para ela, irritados.
      Depois disso ela fez realmente o que pôde para evitá-lo. Quando o via vagueando pela rua com todos os vagares, uma espécie de cólera a possuía. Aos domingos, deslizava do coro para a capela, e saía pela porta principal, enquanto ele a esperava na porta pequena. Ê por sorte, quando ele apareceu uma noite, durante a semana, ela havia saído. Voltou pelo pátio. E dali, através da janela sem cortinas, viu-o sentado à espera dela. Sem refletir, deu uma volta aos calcanhares e escapou. Não entrou enquanto ele não foi embora.
      - Chegou tarde! - disse Miss Pinnegar. - Mr. Witham esteve aqui até há dez minutos.
      - Bem sei - Alvina riu. - Eu vinha entrando pelo pátio e o vi. Então saí outra vez até ele ir embora.
      Miss Pinnegar olhou para ela, desaprovadora.
      - Julgo que você sabe o que faz - falou.
      - Como você explica um tal procedimento? - indagou o pai, implicantemente.
      - Eu não queria encontrá-lo - respondeu a moça.
      O dia seguinte era sábado. Alvina herdara de Miss Frost a tarefa de arranjar flores para a capela uma vez por trimestre. Percorrera os jardins das pessoas amigas e colhera as flores de agosto escarlates, amarelo-vivas e púrpureas, os ásteres, os goivos vermelhos, os grandes girassóis japoneses, coreópsis, gerânios. Com isso tudo no cesto, deslizava pela noite para a capela. Sabia que Mr. Calladine, o guarda, não fecharia as portas enquanto ela não chegasse.
      No momento em que entrava na capela (era um edifício grande, arejado e agradável), ouviu marteladas vindas da tribuna, e viu o bruxulear de uma candeia. Algum operário
ocupado antes de chegar o domingo. Ela fechou a cortina de baeta por trás de si, correu pela igreja para a sacristia,
à procura das jarras, depois foi apanhar água. Tudo estava quente e silencioso.
      Era o começo da noite. A luz amarela jorrava
através das janelas laterais, a grande janela de vitrais
ao fundo enchia-se profundamente de cores inflamadas em
que os amarelos e vermelhos eram os mais vivos. Em cima,
na tribuna, o martelar continuava. Ela dispunha as flores
em muitos vasos até que a mesa da comunhão ficou como os vitrais, um emaranhamento de amarelo-forte, carmesim,
púrpura e verde-bronze. Pretendia obter um efeito de luz caleidoscópico, uma confusa combinação de flores de cor forte e quente, vibrante, e luminosamente entremeadas. Era muito vistoso para uma mesa de comunhão. Mas o tempo das açucenas passara.
      De repente, houve um terrível estrondo, pancadas e desmoronamento, em cima, na tribuna, seguidos de uma praga.
      - Está ferido? - gritou Alvina, olhando para o ar. A candeia se apagara.
      Mas não houve resposta. Sentindo-se curiosa, saiu da capela em direção à escada no pórtico lateral, e subiu em direção ao órgão. Andou em volta, e viu ali um homem em mangas de camisa agachado na escuridão entre o órgão e a parede de trás, enquanto um par de degraus partidos a separavam dele. Estava muito escuro para ver quem era.
      - Estes dois degraus podres caíram comigo - falou a voz enfurecida de Arthur Witham - e iam-me partindo uma perna.
      Alvina andou na direção dele, abrindo caminho por cima dos degraus. Ele estava sentado, cuidando da perna.
      - É grave? - perguntou ela, debruçando-se sobre ele. Na sombra, ele ergueu o rosto. Estava pálido e seus olhos estavam enfurecidos de cólera. A face dela estava perto dele.
      - É grave - respondeu ele, furioso com a comoção. Esta o tinha tirado de seu equilíbrio.
      - Deixe-me ver - disse ela.
      Ele levantou as mãos que afagavam a canela um pouco acima do tornozelo. Ela pôs os dedos no osso, por cima da meia, para ver se havia fratura. Imediatamente, os dedos ficaram molhados de sangue. Então ele fez uma coisa curiosa. Com as mãos premiu a mão dela sobre a perna ferida, premiu-a com toda a força, como se aquela mão fosse um emplastro. Por alguns momentos, ficou premindo a mão dela sobre a canela partida, completamente absorto, como qualquer pessoa fica quando tem uma comoção e uma ferida intensa num ponto de consciência apenas, e quanto ao resto inconsciente.
      Depois, começou a voltar a si. A dor modificou-se. Ele não podia suportar a súbita e aguda ferida na canela. Era um dos seus pontos sensíveis e que nada toleravam.
      - O osso não está partido - disse ela, profissionalmente. - Mas o senhor faria melhor se tirasse a meia.
      Sem demora, ele puxou as calças para cima e enrolou a meia, extremamente cauteloso, e cheio de dor.
      - É capaz de arranjar luz?
      Ela encontrou a candeia. Sabia onde os fósforos ficavam sempre, numa pequena saliência do órgão. Desse modo,
trouxe-lhe luz, enquanto ele examinava a canela machucada.
O sangue escorria, mas não muito. Era uma feia escoriação, inchada e de aspecto muito desagradável. Ele continuava olhando absortamente, curvado sobre ela à luz da candeia.
      - Não será assim tão mau, quando a dor desaparecer
- dizia ela, reparando nos pêlos pretos da canela. - Faríamos melhor se a ligássemos. Tem um lenço?
      - Está no casaco.
      Ela olhou em volta à procura do casaco dele. Estava aborrecida com ele, porque a ignorava completamente. Agarrou o lenço e enxugou os dedos nele. Depois, com seu próprio lenço fez uma compressa para a ferida.
      - Posso colocar? - perguntou Alvina.
      Mas ele não respondeu. Continuava acariciando a perna, olhando para a ferida, enquanto o sangue lentamente escorria pelos pêlos molhados, até o tornozelo. Não havia outra coisa a fazer senão esperar.
      - Posso colocar? - repetiu com força, um pouco impaciente. Então, ele pôs a perna um pouco para a frente.
      Ela olhou para a ferida, e a enxugou um pouco. Depois dobrou a compressa do seu próprio lenço e colocou-a em cima da ferida. E de novo ele fez a mesma coisa, agarrou a mão dela como se fosse um emplastro, e aplicou-a na ferida, premindo para baixo cautelosa mas firmemente. Ela estava
um tanto zangada. Ele continuava a não reparar nela. E ela, esperando, parecia caminhar num sonho, dormindo; o seu braço tremia um pouco, estendido e fixo. Parecia perder o sentido das coisas, sob a compressão firme que ele lhe impunha. Era como se a pressão na mão a premisse para dentro do esquecimento.
      - Sim - disse ele rapidamente.
      E ela, obediente, começou a atar a ligadura com os dedos entorpecidos. Ele parecia ter criado nela aquele hábito.
      Quando ela acabou, ele levantou-se a custo, olhou para o órgão que estava reparando e para os degraus partidos.
      - Por causa de uma porcaria destas, a vida de um homem fica em perigo - falou ele olhando para os degraus. Depois, obstinadamente, arranjou-os de novo, e fitou a tarefa interrompida.
      - O senhor não vai continuar, não é verdade? - perguntou ela.
      - Isto tem de ficar pronto amanhã, domingo - respondeu ele. - Se você quisesse segurar a escada um minuto! Isto não demora mais de um minuto para ajustar. Está tudo feito, falta só ajustar.
      - Não seria melhor deixar isso?
      - Se não lhe custa segurar a escada, não hei de cair outra vez - disse ele. Então, agarrou a candeia e subiu de novo, apressado, obstinado e colérico, com a chave de parafusos e o martelo. Trabalhou durante alguns minutos, batendo e reajustando, enquanto ela segurava a escada raquítica e olhando para ele fixamente, de baixo, para o disforme volume das calças. Estranha diferença, ela não podia deixar de pensá-lo, entre a peluda e vulnerável, de algum modo infantil, perna do homem verdadeiro e a extravagante
forma daquelas calças de trabalhador. O caroço, o próprio homem, parecia tão delicado... a casca tão dura e insensível.
      E ele não lhe dizia uma palavra... nem uma palavra humana de reconhecimento? Os homens são as criaturas mais curiosas e irreais. Afinal de contas, ele tinha se servido dela. Era só pensar em como ele premira a mão dela delicada mas firmemente, firme sobre a ferida, em como ele arrancara a virtude de dentro dela, a ponto de ela se sentir inteiramente fraca e confusa. E depois disso ele recaía na sua pele rugosa e feia de operário, tratando-a como se ela fosse uma pequena escada, que podia deixá-lo embaixo ou levantá-lo.
      Enquanto estava segurando a escada, sentiu-se fraca e conturbada. Queria despertar as forças, ser capaz de lhe virar as costas. Afinal de contas, ele arrancara dela a virtude, podia ter a delicadeza de dizer obrigado e tratá-la como se fosse um ser humano.
      Por fim, ele deixou os consertos, e olhou em volta.
      - Acabou? - indagou ela.
      - Acabei - respondeu ele, mal-humorado.
      E, agarrando a candeia, começou a descer. Quando chegou ao fim, agachou-se sobre a perna e apalpou a ligadura.
      - Aqui tem seu castigo - disse ele, como se fosse culpa dela.
      - A ligadura está bem posta? - perguntou Alvina.
      - Parece-me que sim - respondeu ele com rudeza.
      - Tem certeza?
      - Oh, está tudo bem - disse ele, andando em volta e apanhando as ferramentas. - Vou para casa.
      - Eu também - respondeu ela.
      Ela agarrou a candeia e foi um pouco à frente. Ele vestiu o casaco apressadamente e pegou as ferramentas, ansioso por ir embora. Ela olhava para ele, segurando a candeia.
      - Veja minha mão - disse ela, mostrando-a. Estava manchada de sangue, assim como a bainha do vestido, uma roupa de algodão com riscas pretas e brancas.
      - Está ferida? - disse ele.
      - Não, mas olhe para isto. Olhe aqui. - Mostrava as manchas de sangue no vestido.
      - Isso se lava - disse ele, assustado com ela.
      - Sim, com certeza. Mas agora está assim. Não lhe parece que me deve agradecer?
      Ele recuou um pouco.
      - Sim - disse ele. - Estou muito agradecido.
      - O senhor devia estar mais do que agradecido - falou Alvina.
      Ele não respondeu, mas olhou-a dos pés à cabeça.
      - Vamos descendo - disse ele. - O povo pode reparar.
      De súbito, ela começou a rir. Aquilo parecia tão cômico. Que situação! A candeia tremeu enquanto ela ria. Que homem, que lhe respondia como um automatozinho! Seriamente, muito seriamente ele dissera: "O povo pode reparar!" Ela ria de uma maneira destemperada e confusa, enquanto desciam a escada.
      Ao fim da escada, Calladine, o guarda, encontrou-os. Era um homem alto e magro de bigode preto, por volta dos cinqüenta anos.
      - Acabou por hoje? - indagou ele, rosnando em eco ao riso sempre agitado de Alvina.
      - Vocês têm uma bela escada, uma armadilha - falou Arthur, colericamente. - Caiu quando eu estava lá em cima e tive muita sorte em não partir uma perna. Estive bem perto disso.
      - O senhor caiu com a escada? - perguntou Calladine, bem-humorado. - Isso nunca me aconteceu.
      - Mas devia. Pouco faltou para partir a minha perna.
      - O quê, o senhor está ferido?
      - Parece-me que sim. Olhe aqui... - E começou a puxar a perna da calça. Mas Alvina dera a candeia a Calladine e fora embora. Levava a última visão de Arthur curvado sobre sua perna preciosa, enquanto Calladine curvava o corpo e baixava a candeia.
      Quando chegou a casa, tirou o vestido e lavou-se cuidadosamente, lavando também a bainha manchada, completamente, atirou fora a água e limpou a bacia com água fria, escrupulosamente. Depois, vestiu uma vez mais o vestido preto, compôs o cabelo, e desceu ao andar de baixo.
      Mas não pôde coser nem sossegar num lugar. Era a tarde de sábado, e o pai abrira a loja; Miss Pinnegar tinha ido a Knarborough. Devia voltar às nove horas. Alvina principiou a fazer uma imitação de galinhola, ou uma imitação de qualquer outra coisa, com queijo e um ovo e pedaços de torrada. Seus olhos estavam dilatados e, como que divertida, trocista, o rosto estremecia um pouco com uma ironia não inteiramente agradável.
      - Estou contente por a senhora ter voltado - disse
Alvina, quando Miss Pinnegar entrou. - A ceia está pronta. Vou perguntar a papai se ele vai fechar a loja.
      Naturalmente, James não fecharia a loja, embora estivesse unicamente desperdiçando luz. Mal tocou na ceia e desandou com a boca cheia, apenas ouviu o toque da campainha.
Retinha os fregueses conversando tanto quanto podia. Seu amor pela conversa degenerara numa espasmódica paixão pela tagarelice.
      Alvina olhou para Miss Pinnegar, enquanto as duas se sentavam à magra mesa da ceia. Os olhos dela estavam dilatados, num olhar trocista e quase satânico.
      - Já formei uma opinião sobre Albert Witham - falou Alvina. Miss Pinnegar olhou para ela.
      - Como? - perguntou esta, com simulada indiferença, mas um pouco cortante.
      - Tudo acabou - disse Alvina, rompendo numa risada.
      - Por quê? O que aconteceu?
      - Não aconteceu nada. Não o posso suportar.
      - Por quê... tão depressa... - disse Miss Pinnegar.
      - Não foi depressa - Alvina riu. - De maneira nenhuma. Não posso suportar. Nunca pude. E não vou me esforçar por isso. Aí está. Não lhe parece que está bem? - E recomeçou no seu riso apressado, parte para si própria, parte para Arthur, parte para Albert, parte para Miss Pinnegar.
      - Oh, está bem, se você está tão certa - falou Miss Pinnegar sarcasticamente.
      - Estou absolutamente certa - retorquiu Alvina. - Tenho certeza absoluta.
      - As pessoas absolutamente seguras são muitas vezes as que mais se enganam - falou Miss Pinnegar.
      - Antes me quero com meus próprios erros do que com as certezas de quem quer que seja - retorquiu Alvina.
      - Então não espere que alguém pague pelos seus erros
- disse Miss Pinnegar.
      - Aconteceria o mesmo se eu esperasse - retrucou Alvina.
      Quando deitada na cama, fitou a luz da lâmpada da rua, presa na parede. Entregava-se toda a pensar; mas sabe Deus no quê ela pensava. Aguçara a ponta de seu gênio. Esperava o dia seguinte. Esperava para ver Albert Witham. Queria acabar com ele. Estava morta por cortar de vez qualquer correspondência com ele. Fixara durante muitas horas a luz da rua, e seu olhar se estreitara.
      No dia seguinte, não foi ao serviço religioso da manhã
e ficou em casa fazendo o almoço. À tarde, sentou-se em seu lugar no coro. No banco dos Withams estavam Lottie e Albert... não Arthur. Albert atirava para cima olhares furtivos. Alvina nem queria vê-lo... isso mesmo: nem queria vê-lo. Todavia, na sua voz baixa e doce cantou em alto os hinos de vésperas:
      "Senhor, guardai-nos esta noite
      A salvo dos nossos temores,
      Que os anjos nos protejam enquanto dormimos
      Até que a luz da manhã desponte..."
      Enquanto cantava a sua parte, e enquanto a suave e emocionante harmonia das vésperas se erguia luxuriosamente pela capela, ela espreitava por sobre as mãos postas o chapéu de Lottie. Não tolerava os chapéus de Lottie. Havia neles qualquer coisa de agressivo e vulgar. Ela detestava simplesmente o aspecto da nuca de Albert, enquanto ele se inclinava para a oração de vésperas. Tinha um aspecto mesquinho ou até vulgar. Lembrava-se de que Arthur tinha o mesmo aspecto, ao curvar-se para a oração. Ali estava!... como não o tinha ela visto antes! Que insignificante e vulgar aspecto! Como pudera ela pensar em Arthur! Tornara-se a si mesma ridícula. Ele e a sua perninha. Ela fez uma careta para a capela, esperando que as pessoas levantassem a cabeça e se fossem embora.
      Albert esperava-a no portão. Avançou, levantando o chapéu.
      - Boa noite - disse ele, sorridente.
      - Boa noite - murmurou ela.
      - Há quanto tempo não a vejo! E procurei-a por toda parte.
      Chovia um pouco. Ela abriu o guarda-chuva.
      - Quer dar uma voltinha? A chuva não é muita - perguntou ele.
      - Não, obrigada. Tenho de ir para casa.
      - Por que está assim com tanta pressa? Um passeio só até Beeby Bridge. Vamos.
      - Não, obrigada.
      - Que quer dizer isso? Por que recusa?
      - Não quero.
      Ele parou e olhou-a de cima. Um frio e arrogante olhar de cólera, um pouco rancoroso, subiu ao rosto dele.
      - Quer dizer que é por causa da chuva? - disse ele.
      - Não. Espero que não me queira mal. Mas eu não quero dar mais nenhum passeio. Não veja neles nada de especial.
      - Oh, quanto a isso - dizia ele, tirando as palavras da boca da moça. - Por que queria você que eles tivessem alguma coisa de especial? - Ele sorriu superiormente para ela.
      Alvina olhou-o fixamente no rosto.
      - Mas eu prefiro não dar mais nenhum passeio, obrigada... mais nenhum - disse ela, olhando-o firme nos olhos.
      - Não dará mais nenhum - replicou ele, endurecido.
      - Sim. Estou absolutamente segura disso.
      - É sempre tão segura! - falou Albert, num esgar de escárnio. Ficou olhando-a insolentemente da cabeça aos pés.
      - Boa noite - disse ela. O esgar dele deixou-a furiosa. Pondo o guarda-chuva entre eles, afastou-se.
      - Pois bem, boa noite - replicou ele, já sem que ela o visse. Mas a voz dele era de escárnio e impotência.
      Alvina foi para casa, tremendo. Mas sua alma ardia de satisfação. Tinha-se desembaraçado dele.
      Mais tarde, ela perguntava a si própria se tinha sido indelicada com ele. Mas o que estava feito estava feito... e feito para sempre. Vogue la galère.

      CAPÍTULO 6 - A ÚLTIMA TENTATIVA DE HOUGHTON
 
      O pior era que seu barco não podia fazer-se à vela. Vogava cheio de água no carunchoso porto do lar. Era muito bom ter loucos e precipitados caprichos de ironia e independência, se se tinha de pagar por eles com a consumição poeirenta na prateleira.
      Alvina caiu de novo na humilhação e no temor: começou mostrando sintomas da doença cardíaca da mãe. Aos dias sucediam-se os dias, ao meses sucediam-se os meses, as estações iam-se umas após as outras, e ela levava a vida
como uma criada em Manchester House, fazia compras, cantava no coro aos domingos, comparecia aos eventos da paróquia, visitava pessoas amigas, ria e conversava e divertia-se em jogos. Mas todo esse tempo, o que havia realmente na sua vida? Não muito. Ia-se fanando, a caminho de ser uma solteirona. Já com vinte e oito anos, gastava os dias na lida da casa, enquanto o pai se tornava um homem idoso e frágil, ainda muito vivo de alma e espírito. Miss Pinnegar começava a tornar-se encanecida e avelhentada também, o dinheiro tornava-se cada vez mais escasso, havia um dia negro à frente quando o pai morresse e o lar se despedaçasse, e ela tivesse de se agarrar à vida como trabalhadora.
      Aí estava a única alternativa: trabalhar. Ela podia escravizar seus dias ensinando piano, como Miss Frost fizera; podia arranjar um lugar secundário de enfermeira; podia sentar-se na caixa de qualquer loja. Haveria um trabalho de alguma espécie para ela. E ela mergulharia na rotina de sua tarefa, como tantas mulheres faziam, envelhecendo e morrendo, tagarelando e agitando-se. Teria aquilo a que se chama independência. Mas, encarando seriamente esse tesouro, e sem a opção de recusá-lo, quão estranho e horrível ela o achava!
      Trabalhar!... Uma profissão! Mais precisamente do que se revoltava contra os Withams, ela se revoltava contra um emprego. Albert Witham era-lhe desagradável, ou antes, ele não era exatamente desagradável, ele era principalmente incongruente. Ela não podia afastar a sensação de que ele lhe abria a boca e lhe sorria através do vidro de um aquário, estando ele do lado da água. Se ela pudesse ser capaz de se afeiçoar ao estranho e desumano elemento dele, quem sabe? Em todo caso isso teria o seu quê de aventura: melhor do que um emprego. Revoltava-se com toda a sua alma contra a palavra emprego. Mesmo os substitutos, serviço ou trabalho, eram detestáveis, insuportáveis. Enfaticamente, não queria trabalhar por um salário. Era demasiado humilhante. Podia qualquer coisa ser mais infra digna do que executar uma série de ações especiais dia após dia, durante a vida, para receber alguns xelins a cada sete dias? Que vergonha! Uma condição vergonhosa. A mais vulgar, sórdida e humilhante de todas as formas de escravidão: a mecânica. Mais valia ser abertamente escrava, em contato com todos os caprichos e impulsos de um ser humano, do que servir em qualquer rotina mecânica do trabalho moderno.
      Tremia de cólera, impotência e temor. Durante meses, a lembrança de Albert era um tormento para ela. Podia ter casado com ele. Este teria sido estranho, um estranho peixe. Mas não seria melhor dar o estranho salto no elemento dele, do que se condenar à rotina de um emprego? Ele teria sido curioso e desumano. Mas, no fim de tudo, aquilo teria sido uma experiência. Sob certo aspecto, gostava dele. Havia nele qualquer coisa de original e de íntegro, que lhe agradava. Não era mentiroso. A seu modo, era honesto e reto. Depois, poderia levá-la para a África do Sul: um milieu inteiramente novo. E talvez tivesse filhos! Estremeceu um pouco. Não, filhos dele não! Ele parecia tão curiosamente um animal de sangue frio! E contudo, por que não? Por que não filhos dele, curiosos, pálidos e meio de sangue frio, como peixinhos dela própria? Por que não? Tudo era possível, e mesmo desejável, uma vez que se pudesse compreender a estranheza disso. Pudesse ela uma vez mergulhar através da parede do aquário! Pudesse ela uma vez beijá-lo!
      Por conseguinte, o tranqüilo vibrar das cordas de Miss Pinnegar era insuportável.
      - Não posso compreender como ele a desagrada tanto
- dizia Miss Pinnegar.
      - Nunca se podem compreender essas coisas - dizia Alvina. - Não compreendo por que não gosto de tapioca e de araruta... mas não gosto.
      - É diferente - falou Miss Pinnegar secamente.
      - Não é mais fácil de compreender - replicou Alvina.
      - Porque não há necessidade de compreendê-lo - disse Miss Pinnegar.
      - E há necessidade de compreender a outra coisa?
      - Certamente. Eu não vejo nele nada que não esteja bem
- concluiu Miss Pinnegar.
      Alvina saiu, silenciosa. Era nos primeiros meses depois que Alvina desenganara Albert. Este estava de novo em Oxford... e não voltaria a Woodhouse até o Natal. Entre ela e os Withams de Woodhouse havia uma decidida frieza. Eles não olhavam para ela, agora, nem ela para eles.
      Não obstante, como o Natal se aproximava, Alvina excitava seus sentimentos. Talvez pudesse se reconciliar com ele. Deslizaria por entre tudo e sorrir-lhe-ia. Mergulharia,
uma vez por todas... e beijá-lo-ia e desposá-lo-ia e daria à luz os pequenos meios peixes, os filhos dele. Excitava-se numa grande febre de antecipação.
      Mas quando ela o viu, na primeira noite, sentado, rígido e de olhos fixos desinteressadamente na frente da capela, desviados de tudo no mundo e fixando ao longe sabe Deus o quê, tal como os peixes fixam, então a desumanidade dele atravessou-a de novo como uma prisão, e prendeu-lhe todos
os ímpetos de fantasia. Albert olhava desinteressadamente para a frente, e desinteressadamente levantava uma parede
de esquecimento entre ele e ela.
      A moça tremeu e deixou correr.
      Depois do Natal, todavia, nada tinha em que depositar esperanças. E foi então que pareceu encolher; parecia positivamente encolher.
      - Você nunca mais falou com Mr. Witham? - perguntou Miss Pinnegar.
      - Ele nunca mais me falou - replicou Alvina.
      - A mim tirou-me o chapéu.
      - Devia ter casado com ele, Miss Pinnegar - falou Alvina. - Estava mesmo talhado para a senhora. - E ria ironicamente.
      - Não preciso dessa mercadoria - disse Miss Pinnegar.
      E depois disso, esteve muito tempo sem perdoar a Alvina e sem se tornar de novo sua amiga. Talvez nunca lhe tivesse perdoado se não a tivesse encontrado chorando amargamente na abandonada sala de estar da mãe.
      Até então, a história de Alvina é demasiado vulgar. É mais ou menos a história de milhares de moças. Todas elas arranjam trabalho. É a solução habitual para tudo. E se nos ocuparmos de uma moça como tantas teremos de passar suave e insipidamente sobre longos anos de emprego; ou, na melhor das hipóteses, o casamento com qualquer insípido mestre-escola ou empregado de escritório.
      Mas nós asseguramos que Alvina não é vulgar. Gente vulgar, destino vulgar. Mas gente extraordinária, destino extraordinário. Ou então nem sombra de destino. O moderno
sistema de modelo para toda a gente é demais para a maior parte dos indivíduos extraordinários. Isso os mata ou os atira para o lado.
      Tem havido muitas histórias acerca de pessoas vulgares. Chego ao ponto de pensar que o Duque de Clarence bem deve ter achado a malvasia intolerável, quando se engasgou e se fez vermelho e ficou realmente asfixiado num tonel dela. E as pessoas vulgares não são malvasia. São mesmo vulgar água de torneira. E nós temos nos ocupado e alagado e quase afogado em perpétuas correntes de vulgaridade, pois a água da torneira tende a tornar-se um detestável fluido para nós. Detestamos sua insipidez. Detestamos a gente vulgar. Estamos em perigo de vida com ela; e também com a alma em perigo, porque essa gente nos condena a todos e a cada um à vulgaridade. Todos os indivíduos terão por natureza os seus pontos extraordinários. Mas hoje em dia podemos procurá-los com um microscópio, estão inteiramente desgastados pela fricção maquinal e regular dos nossos monótonos e mecânicos dias.
      Não havia esperanças para Alvina no ordinário. Se amparo havia, teria "de vir do extraordinário. Aqui o extremo perigo do seu caso. Aqui o amargo temor e humilhação que ela sentia quando trabalhava miseravelmente em Manchester House, escondendo-se tanto quanto possível dos olhos do público. Os homens podem sorver o sumo intoxicante da própria importância exaltada, extraído da erva daninha do fracasso... os fracassados são geralmente os mais presunçosos dos homens: tal como era James Houghton. Mas, numa mulher, o fracasso é outra coisa. Nelas, isso significa o fracasso no viver, o fracasso no estabelecer a própria vida sobre a face da terra. E isso é humilhante, a última humilhação.
      E assim os anos lentos descreviam seu círculo e a corda de cada ano era simples nó pesado e estrangulado. Alvina
passara os vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito e mesmo os vinte e nove anos. Estava nos trinta Devia ser motivo de riso. Mas não era.
      Em verdade, na trança castanho-clara de Alvina os cabelos grisalhos estavam já aparecendo. Em verdade, ela preferia sempre ser tida como uma moça. E os anos de passos
pesados, tão lentos passando, eram tão imperceptivelmente numerosos na sua acumulação!
      Mas nós não vamos seguir a nossa canção até à sua fatal e lúgubre conclusão. Provavelmente, a vulgar heroína solteirona dos nossos dias está destinada a morrer aos
cinqüenta, não está autorizada à longa vida dos romances passados. Que a canção lhe baste.
      James Houghton teve mais outra mania. Tinha um último plano pronto a pôr em prática. Contemplando um mundo mutável, eram as novidades populares o que mais o fascinava. O rinque de patinação, como outra Caríbdis, quase o entontecia no seu remoinho, quando ele penosamente se afastava das rochas da Asfixia por Meio Pêni. Mas curara-se, e durante quase três anos estivera obscuramente parado no porto, como uma frágil e inútil barca, vendendo o resto das suas bugigangas e patinhando aos poucos nas sobras em estoque. Miss Pinnegar pensava que ele chegara à tranqüilidade.
      Mas ai, naquele degenerado, mesquinho e decadente clube encontrou ele um novo tentador: um homem gorducho que tinha sido no mundo do music hall uma espécie de agente. Este homem fornecia as pequenas representações para as cidades pequenas. Estivera na América, no oeste, no mesmo ofício. Regressara à Inglaterra, onde havia deixado a mulher e a filha. Mas não podia limitar-se à vida da família. Onde quer que estivesse, a mulher estava a cem quilômetros de distância. Agora, encontrava-se mais ou menos encalhado em Woodhouse. Tinha quase se fixado com um music hall nas Potteries, como gerente; tinha quase conseguido um outro lugar em Ickley, no Derbyshire; forçara caminho através das cidadezinhas mineiras e industriais; explorando qualquer espécie de music hall ou teatro onde pudesse arranjar uns trocados. E agora, em águas muito baixas, achava-se em Woodhouse.
      Woodhouse tinha já um cinema: o famoso Império, erguido por Jordan, o hábil construtor e decorador, que tinha se saído tão surpreendentemente bem. Na mocidade de James, Jordan era uma obscura e ignorante insignificância. E agora tinha automóvel, e olhava para o cambaleante James com sardônico desprezo, de sob seus olhos escuros, de pesadas, muito pesadas pálpebras. Era bastante corpulento, de frágil saúde, mas silencioso e invencível era A. W. Jordan.
      - Perdi uma boa ocasião - dizia James, agitado. - Perdi ali uma ocasião rara. Devia ter sido o primeiro a pensar num cinema.
      Confessava-o a Mr. May, o estranho que procurava uma espécie de trabalho como "gerente". Mr. May, que também era nédio e que sabia ter cuidado com a língua, mas cuja face vermelha e gorducha e cujos olhos azuis o traíam, pôs a conversa no cachimbo e fumou-a. Não que ele fumasse cachimbo: sempre cigarros. Mas registrou a confissão de James, como qualquer coisa que um dia podia interessar.
      Contudo, o espírito de Mr. May, posto que vivo,
era terra-a-terra, não alado. Viera a Woodhouse não para contemplar o Império de Jordan, mas a provisória construção
de madeira que se erguia no velho mercado de gado - o Cinema e Teatro de Variedades Wright. O espetáculo de Wright não
era escolhido, como o do Império de Woodhouse. Porém, estava
sempre lotado com mineiros e operárias. Mas desafortunadamente não havia maneira de Mr. May conseguir meter o nariz no mercado de gado. Aquilo era uma propriedade de família. Mr. e Mrs. Wright, um filho e duas filhas com os maridos: uma velha empresa familiar bem fechada à chave. Contudo, era o gênero de espetáculo que agradava a Mr. May: fitas cinematográficas entre números de variedades. O cinematógrafo não era senão um item no programa, entre
os números mais emocionantes, para Mr. May, de prestidigitadores, canções populares, farsas curtas, aves amestradas, e cômicos. Mr. May era demasiado humano para acreditar que um espetáculo devesse consistir inteiramente na fatigante dor de olhos diante de uma fita.
      Ficara verdadeiramente deprimido pelo fracasso em arranjar uma solução qualquer. Tinha a família a manter, e
embora sua honestidade fosse de um gênero especial, tinha a consciência firme dos deveres para com a mulher e a filha. Tendo estado tanto tempo na América, adquirira qualidades americanas, uma das quais era essa pesada espécie de inocência íntima, aliada a uma complacente e natural falta de escrúpulo em "matéria de negócios". Homem de certa singular sensibilidade em coisas materiais, gostava de ter os ternos limpos e novos, a roupa branca imaculada, o rosto barbeado e lavado como o de um querubim. Mas seus ternos estavam agora fora de moda, e a elegância cara dos mesmos prejudicava-lhe as possibilidades, embora tais ternos mostrassem o aspecto
de terem saído quase novos, naquela manhã, de uma caixa de papelão. Os chapéus de feltro demasiado pequenos eram sempre airosamente trazidos de lado sobre a face cheia e vermelha. Mas os olhos olhavam lugubremente, como se ele sentisse que não merecia tão pouca sorte, e havia uma linha biliosa por baixo deles.
      Assim Mr. May, no seu quarto na Lua e Estrelas, que era a melhor pensão de Woodhouse (ele tinha de ter um bom hotel), lugubremente meditava na sua situação. Woodhouse lhe oferecia pouco, ou nada. Devia ir para Alfreton. E arranjaria aí alguma coisa? Ah, onde, onde neste odioso mundo haveria refúgio para um homem carregado de responsabilidades, que queria trabalhar e a quem não eram dadas oportunidades? Mr. May viajara em vagão pullman e fora direto ao melhor hotel da cidade, como qualquer outro americano com dinheiro... na América. Vivera à grande, também. E agora, nesta Inglaterra unha-de-fome, vira o calçado se gastando nos tacões e tinha receio de ficar encalhado, sem dinheiro mesmo para uma passagem de trem. Se pudesse fugir sem pagar a conta do hotel... pois bem, isso seria por culpa do mundo. Tinha que viver. Mas devia forçosamente ter no bolso o suficiente para uma passagem para Birmingham. Dizia sempre que a mulher estava em Londres. E ia sempre a pé até Lumley para pôr as cartas no correio. Era cheio de evasivas.
      Assim, uma vez mais foi a Lumley pôr as cartas no correio. E contemplou Lumley. E achou-a um buraco infernal, esquecido de Deus e sem saída. Era o longo errar de uma estrada poeirenta pelo vale, com um pó cinzento-pálido e salpicos vindos das olarias, e grandes chaminés expelindo fumaça preta em direção à estrada. Depois, havia uma pequena rua a atravessar, no alto da qual se via a fundição de ferro, um sítio negro e rude. Um pouco mais longe ficava o ramal da estrada de ferro e, do outro lado, mais casas estendendo-se até Hathersedge, onde as grandes fábricas estavam em movimento. Comparada com Lumley, Woodhouse, cuja igreja podia ser vista erguendo-se orgulhosa e vulgarmente numa elevação por cima das árvores e das vertentes dos prados, era um idílico céu.
      Mr. May dirigiu-se para o Hotel Derby a fim de tomar um uísque. E naturalmente arranjou conversa.
      - Vocês parecem bastante tranqüilos em Lumley - disse ele na sua voz especial e delicada de homem de teatro. - Não há aqui absolutamente nenhum divertimento?
      - Vai-se a Woodhouse, ou a Hathersedge.
      - Mas não eram capazes de manter qualquer coisa só para vocês, que rivalizasse com o Variedades Wright?
      - Sei lá... talvez... se alguém começasse.
      E assim James foi inoculado com a idéia de montar um cinema no solo virgem de Lumley. Não disse às mulheres nem uma palavra. Mas na madrugada em que Mr. May aflorou o assunto, ele tornou-se um novo homem. Agitava-se como um rapaz, agitava-se como se lhe tivessem nascido asas.
      - Vamos lá - disse Mr. May - para ver o lugar. O senhor não se compromete a nada... não assume qualquer compromisso. Ficará apenas conhecendo o lugar.
      E assim aconteceu que, na manhã seguinte, esse par singularmente ligado foi junto a Lumley. James ia muito andrajoso com um casaco preto e calças cinzento-escuras e
com um boné cinzento e ordinário. Curvava-se para a frente quando andava, e apressava-se sempre, como se perseguido pelo destino. Tinha a face emagrecida mas ainda bela. Estranho que o boné ordinário, incongruentemente, lhe desse mais ainda o ar de um cavalheiro. Mas dava. Quando caminhava, lançava olhares vigilantes para aqui e para ali e cumprimentava toda a gente.
      A seu lado, um tanto apertada no terno e redonda
como um tonel, com o peito para fora e a cabeça para trás,
ia a empertigada figura de Mr. May, lembrando um pássaro importante das espécies menores. O terno acinzentado
ficava-lhe muito bem, com o senão de que era talvez um pouco justo. O casaco e o colete eram apertados por trancas de seda exatamente do mesmo tom do tecido. O colarinho mole, imaculadamente limpo, tinha uma risca escura como a camisa. As botas eram pretas com canos cinzentos, mas com os tacões um pouco gastos. O chapéu cinzento-escuro era elegante. No conjunto, tinha um aspecto muito janota, posto que um pouco atrasado em relação à moda; muito vermelho de cara, apesar de os olhos azuis serem ambos biliosos; muito a rigor, ainda que aquele rigor estivesse errado.
      Discutiam amigavelmente enquanto andavam, James curvando-se para a frente, Mr. May curvando-se para trás.
Mr. May tomava os ares elegantes de homem do grande mundo.
      - Decerto... - dizia. Ele usava a palavra com muita freqüência: - ... Decerto - dizia Mr. May - é um sítio desagradável... desagradável! Nunca vi nada pior durante
as minhas viagens. Mas agora... não é disso que se trata...
      Tirava as mãos gordas de dentro dos punhos da camisa.
      - Não, não é disso. Claro que não é disso. Está mesmo muito longe disso. O que nós queremos... - começou James.
      - É público... decerto! E nós o temos! Terreno virgem!...
      - Sim, claro. Intato. Um mercado por explorar.
      - Um mercado por explorar! - reiterava Mr. May, confirmando inteiramente, embora com a leve ponta de um sorriso. - Que sorte tivemos!
      - Bem manobrado - dizia James. - Bem manobrado.
      - Pois claro... decerto! E por que não havemos de manobrar bem?
      - Ora, nós nos arranjaremos, nós nos arranjaremos
- emitiu a voz rápida, vagamente rouca, de James.
      - Decerto que sim. Valha-nos Deus, se não pudermos arranjar público em Lumley, não sei de que seremos capazes.
      - Nós temos um guia no que se refere ao gosto dessa gente - falou James. - Podemos ver o que Wright faz... e Jordan... e podemos ir a Hathersedge e Knarborough e Alfreton, antes de começar...
      - Certamente... se acha que isso é necessário. Farei tudo isso pelo senhor. E entrevistarei os próprios diretores e os próprios atores... como se fosse jornalista, não é uma boa idéia? Eu fiz o meu bocado de jornalismo e não há nada mais fácil do que arranjar cartões de jornais diferentes.
      - Sim, é uma boa sugestão - dizia James. - Como se fosse escrever uma notícia nos jornais... excelente.
      - É tão simples! O senhor recolherá exatamente todas as informações que pretende.
      - Claro... claro! - concordava James.
      E assim comentavam os nossos dois heróis, cheirando as sórdidas redondezas do lugar, os prados incultos e os sítios pantanosos de Lumley. Foram dar a um lugar árido onde se encontravam dois carros de caravana. Uma mulher descascava batatas, sentada no degrau mais baixo de um carro. Uma moça mestiça subia com um grande cântaro de água esmaltado de azul-pálido. Nos fundos havia duas barracas cobertas com lona de cor. Dentro, ouvia-se que martelavam.
- Bom dia! - disse Mr. May, parando em frente da mulher. - Não está um bom tempo, não acha?
      - Não, não está - disse a mulher.
      - Vejo que está trabalhando. E que tal vai isso?
      - Regular - respondeu a mulher.
      - Só regular! É pena. Bom dia.
      O olho esperto de Mr. May, vagabundeando em volta, tinha visto um negro aparecer de sob a lona que cobria uma barraca. O negro era magro e tinha um aspecto jovem embora frágil, e coxeava. A cara era exatamente como a do jovem negro do desenho de Wateau: patética, pensativa, mosqueada. Num instante, Mr. May compreendera tudo: o homem era o marido da mulher... tinham-se instalado naquelas paragens. A barraca onde haviam martelado era uma oficina. A outra seria de diversões. Sentindo o premente mal-estar americano provocado pela presença de um negro, Mr. May fugiu com James.
      Vieram a saber que a mulher era de Lumley, que tinha dois filhos, que o negro era o pobre-diabo mais pacífico e respeitável, e que a família só cuidava de si e não se metia nas coisas de Lumley.
      - Espero que seja assim - dizia Mr. May, um pouco desgostoso à simples idéia disso.
      Depois, tratou de descobrir há quanto tempo eles estavam naquele terreno - três meses - quanto tempo ficariam ali - só outra semana, depois iriam para a feira de Alfreton - quem era o dono do terreno - Mr. Bows, o açougueiro. Oh! E para que serviria o terreno? Oh, era terreno para construção. Mas as fundações não eram muito boas.
      - Ora o que havia de acontecer! Não andamos com sorte   - gritou Mr. May, empertigando-se quando chegaram à rua. Mas uma tal alegria e uma tal pimponice eram um grande esforço para ele. Perdera desgraçadamente o seu uísque das onze horas; desgraçadamente... o seu mata-bicho. E ele não ousava confessá-lo a James, que, sabia-o, era abstêmio. Assim, arrastou o enfastiado e vazio passeio até Woodhouse, e afundou-se com um longo "Oh" de nervoso esgotamento no bar privado da Lua e Estrelas. Franziu o curto nariz. O cheiro do local era-lhe desagradável. Cerveja repugnante, a que os mineiros bebiam! Ah! Estava tão fatigado! Deixou-se cair para trás com o uísque e ficou olhando absorto, tristemente, em frente. Por baixo dos olhos a cor tornou-se ainda mais amarelada. Sentia-se inteiramente abandonado pela sorte, e petulante.
      Contudo, precipitou-se com toda a sua brilhante galhardia, na vez seguinte em que foi encontrar James. Não tinha abordado ainda a questão do salário. Quando estaria
em situação de obter um adiantamento de James? Devia apressar o seguimento do caso. Escovou o ondeado cabelo castanho cuidadosamente ao espelho. Como estava embranquecendo nas fontes! Não era de admirar, valha-nos Deus, com tal vida! Estava em mangas de camisa. O colete, com as costas de cetim cinzento, apertava-o cingidamente. Engordara... mas não ganhara corpulência. De modo nenhum. Olhava-se de lado, e tristemente tinha receio de que estivesse mais magro. Era um desses homens que se conduzem como os pássaros, fazendo a cauda sobressair um pouco atrás, airosamente. Como estava extraordinariamente usado o cetim do colete! Olhou para os punhos da camisa. Estavam acabando. Felizmente, quando fizera as camisas, ficara com pano suficiente para consertos nos punhos e nos colarinhos. Vestiu o casaco, do qual tirara a
mais leve suspeita de pó, e de novo se arranjou para sair e ir ter com James, para tratar do caso do adiantamento.
      Não o conseguiu naquele dia, contudo. Na manhã seguinte, tocou a campainha para o chá às seis horas. E antes das dez já tinha ido num vôo a Lumley e voltado, falado com Mr. Bows acerca do terreno, e, vencendo toda repugnância, falado com
o sossegado, frágil e melancólico negro, acerca da feira de Alfreton e da possibilidade de comprar alguma barraca arruinada, para o cinematógrafo.
      Com todas essas novidades encontrou James, não no mesquinho clube, mas na sala de leitura deserta daquilo a
que se chamava a Liga dos Artífices, onde nunca um artífice
entrara, mas somente homens da classe de James. Ali pegaram
o tabuleiro de xadrez e pretextaram jogar uma partida. Mas a sua conversa foi rápida e em voz baixa.
      Mr. May revelou suas descobertas. Depois disse, experimentando:
      - Não seria melhor que tratássemos agora do aspecto "finanças"? Se vamos em busca de uma edificação (curioso que ele lhe chamasse sempre uma edificação), é preciso que saibamos o que vamos gastar.
      - Sim... sim. Bem... - falou James vagamente, nervoso, olhando furtivo para Mr. May. Entretanto, este, abstratamente, mexia no cavalo preto.
      - O senhor compreende, de momento - dizia Mr. May - não tenho fundos que possa converter em dinheiro. Não tenho dúvidas em que um pouco mais tarde... se tivermos
necessidade disso... poderei arranjar umas centenas de libras. Devem-me muito dinheiro. Mas é tão difícil cobrar o que nos devem, sobretudo da América. - Ergueu os olhos azuis para James Houghton. - É claro que podemos esperar algum tempo, até que eu consiga dinheiro. Ou então posso trabalhar como seu gerente, pode o senhor fazer-me seu empregado...
      Observava a cara de James. Este baixava os olhos para
o tabuleiro. Estava agitado com a excitação. Não queria um sócio. Queria estar sozinho naquilo. Detestava sócios.
      - O senhor quer ser gerente com um ordenado fixo?
- perguntou James, apressado e num tom rouco, roçando vagarosamente os dedos uns nos outros.
      - Pois bem, de boa vontade, se me concede a opção de me tornar seu sócio, nas condições que contratarmos, mais tarde.
      James não queria bem isso.
      - Que condições são essas? - perguntou.
      - Mas, bem, isso não é assunto para agora. Suponha de momento que me contrata como seu gerente, com um ordenado, digamos, de... de quanto é que lhe parece?
      - Por semana? - indagou James, explicitamente.
      - Não seria melhor por mês?
      Os dois homens olharam um para o outro.
      - Com aviso prévio de um mês de cada parte? - continuou Mr. May.
      - Quanto? - perguntou James, avaro.
      - Bem, não vejo como possa fazê-lo com menos de vinte libras por mês. Claro que é irrisoriamente baixo. Na América, nunca aceitei menos de trezentos dólares por mês, e isso era o mais reles e mais baixo. Mas, claro, a Inglaterra não é a América... e é pena.
      Mas James abanava a cabeça num movimento vibrante.
      - Impossível! - replicou astutamente. - Impossível! Vinte libras por mês? Impossível. Não poderei dá-las. Nem poderei pensar nisso.
      - Então, diga quanto. Diga em quanto é que pode pensar
- retorquiu Mr. May, um tanto vexado por esse provinciano tremente, abanando astutamente a cabeça, e pela sua própria e repentina queda em inferioridade.
      - Não poderei ir além das dez libras por mês - falou James peremptoriamente.
      - Quanto? - esganiçou Mr. May. - E com que viveria eu? E minha mulher?
      - É preciso que as coisas rendam - disse James. - E para as coisas renderem, devo de princípio limitar as despesas.
      - Não... pelo contrário. O senhor tem que contar
com gastar alguma coisa, a princípio. Se começa a ser
unha-de-fome no começo, não terá nenhum resultado. Dez
libras por mês! Mas não é possível! Dez libras por mês! Como hei de viver?
      A cabeça de James vibrava ainda num movimento negativo. E os dois homens não chegaram a acordo naquela manhã. Mr. May foi para casa mais deprimido e aborrecido do que nunca, e tomou o seu uísque mais mal-humoradamente. Mas James iluminava-se com o fogo da batalha.
      O pobre Mr. May teria de juntar todo o seu engenho e toda a sua esperteza para o encontro seguinte. Decidira que devia obter uma percentagem por outro modo. Fazia planos em todos os sentidos. Aceitaria as dez libras... mas, na verdade, ouviu alguém na vida uma coisa tão ridícula, dez libras!... Maldito sovina, maldita mulher! Aceitaria as dez libras; mas conseguiria o que desejava.
      Desandou uma vez mais a ver o negro, para inquirir
sobre certa casa de madeira com outras seções e terraço, velho teatro móvel que se encontrava fechado na comuna de Selverhay, e que provavelmente estaria à venda. Apressou-se a ver uma vez mais Mr. Bows. Escreveu várias cartas e redigiu diversas notas. E na manhã seguinte, cerca das oito horas, percorreu o caminho de Selverhay; caminhando, pobre homem, os longos e nada interessantes onze quilômetros com seus pequenos pés calçados em sapatos apertados, através de uma região que outrora fora bela, mas que estava agora completamente invadida por aldeias de mineiros, subindo e descendo as pesadas colinas, perguntando o caminho a toscos indivíduos até por fim chegar à comuna, que não era propriamente uma comuna, mas uma espécie de aldeia mais desanimadora do que o habitual: nua, alta, virada ao céu e para estéreis vistas.
      Ali encontrou o teatro. Tinha um aspecto velho e sórdido, pintado de vermelho-escuro e emporcalhado de pequenos e envelhecidos cartazes. A erva crescia ao lado
das paredes de madeira. Se ao menos não estivesse apodrecida! Baixou-se e sondou e furou com o canivete, até que um polícia rural de capacete alto como um cântaro o viu, desceu da bicicleta e veio cuidadosamente rodando a mesma bicicleta, assustando o pobre Mr. May quase até a apoplexia ao perguntar atrás dele, em voz forte:
      - O que o senhor está fazendo?
      Mr. May levantou-se com as faces ruborizadas e com as veias do pescoço inchadas, segurando na mão o canivete.
      - Oh - disse ele -, bom dia. - Compôs o colete e olhou de relance o alto e esguio polícia e a bicicleta reluzente.
- Estava dando uma vista de olhos a esta casa velha, com o fito de comprá-la. Desconfio que está podre desde os alicerces.
      - Não seria de admirar - falou o polícia, desconfiado, vendo Mr. May fechar o canivete de bolso.
      - Parece-me que assim isso não serve para o que eu queria - disse Mr. May.
      O polícia não se dignou responder.
      - O senhor é capaz de descobrir onde é que eu posso informar-me, apesar de tudo? - Mr. May usava as maneiras
mais afáveis, de homem do mundo. Mas o polícia continuava  fitando-o dos pés à cabeça, como se ele fosse algum maravilhoso exemplar, desconhecido naquela terra simples e honesta.
      - Informar-se para quê? - perguntou o guarda.
      - Para poder comprá-la - disse Mr. May, um pouco impaciente. Era com dificuldade que continuava com aquela franqueza e jovialidade de homem para homem.
      - Eles não vivem aqui - disse o guarda.
      - Não vivem?! Onde vivem? E quem são?
      O polícia olhava-o mais desconfiadamente do que até então.
      - Chamam-se Cowlard. Moram em Offerton quando não andam viajando.
      - Cowlard... obrigado. - Mr. May sacou de um caderno de apontamentos - C-o-w-l-a-r-d... está certo? E o endereço, me faz o favor?!
      - Não sei em que rua Mas pode informar-se no Três Sinos. É irmã da patroa.
      - No Três Sinos... obrigado. O senhor disse Offerton?
      - Sim.
      - Offerton! Onde fica isso?
      - A cerca de doze quilômetros.
      - O quê? E como se vai para lá?!
      - Pode ir a pé... ou de trem.
      - Ah, há estação?
      - Estação! - O polícia olhava-o como se ele fosse criminoso ou maluco.
      - Sim. Há estação lá?
      - Claro... a mais importante depois de Chesterfield. De repente, fez-se luz em Mr. May.
      - Oh-h! - disse. - O senhor quer dizer Alfreton.
      - Alfreton, sim. - O polícia estava agora convencido de que o homem não regulava bem. Mas afortunadamente ele não era um polícia zeloso, não tinha o desejo de subir na escala policial: achava que estava melhor embaixo.
      - E por onde é que se vai para a estação daqui?
- perguntou Mr. May.
      - Qual quer? Pinxon ou Bull'ill?
      - Pinxon ou Bull'ill?!
      - Há duas - disse o polícia.
      - Para Selverhay? - perguntou Mr. May.
      - Sim, são as duas.
      - E qual é a melhor?
      - Depende dos trens que passam. Às vezes, é preciso esperar uma hora ou duas.
      - O senhor sabe que trens há?
      - Há um à tarde... mas não sei se passará antes de o senhor chegar.
      - Para onde?
      - Bull'ill.
      - Bull'ill. Bem, talvez, vou tentar. Pode me dizer qual é o caminho?
      Quando, após uma hora de fatigante marcha, Mr. May chegou à estação de Bullwel e viu que não havia trem até as seis da tarde, sentiu que bem estava merecendo tudo o que pudesse obter de Mr. Houghton.
      O primeiro rumor que Miss Pinnegar e Alvina surpreenderam da projetada aventura foi quando James anunciou que alugara a loja a Mardsen, o merceeiro do lado. Mardsen
concordou em tomar conta dos compartimentos de James com aluguel igual ao dos compartimentos que já ocupava, e além disso em fazer todas as alterações e em pôr as armações por sua conta. Era um grande lucro para James: nada daquilo lhe custaria um pêni e o aluguel seria um lucro limpo.
      - Mas quando? - perguntou Miss Pinnegar.
      - Toma posse em primeiro de outubro.
      - Bem... é uma boa idéia. A loja não vale a pena - disse Miss Pinnegar.
      - Claro que não - concordou James, esfregando as mãos: sinal de que estava singularmente excitado e satisfeito.
      - Assim o senhor vai descansar, e viver tranqüilamente
- falou Miss Pinnegar.
      - Vamos ver - disse James. E com essas palavras fatais esgueirou-se à procura de Mr. May.
      James estava agora perto dos setenta anos. Contudo, esvoaçava como uma folha ao vento. Simplesmente era uma frágil folha.
      - Papai anda pensando em alguma - disse Alvina, no tom de quem previne.
      - Parece que sim - falou Miss Pinnegar pensativamente.
- Pergunto a mim mesma o que será, agora.
      - Não posso imaginar, mas apostaria que é qualquer coisa importante... do contrário ele teria falado.
      - Sim - disse Miss Pinnegar vagarosamente. - O mais provável é que o dissesse. Não adivinho o que possa ser.
      - Não faço nenhuma idéia - falou Alvina.
      As duas mulheres viviam tão isoladas que não tinham ouvido falar das escapadas de James a Lumley. Assim, aguardavam como gatas o regresso do homem, à hora do jantar.
      Miss Pinnegar viu-o vir conversando animadamente com Mr. May, que, todo de cinzento, com o peito garbosamente inflado como um pintarroxo, tinha um aspecto mais rosado do que o habitual. Tendo chegado a um acordo, aventurava-se pelo uísque e soda celebrando o fato, e James tomara até mesmo um cálice de porto.
      - Alvina! - chamou Miss Pinnegar discretamente da loja. - Alvina! Depressa!
      Alvina correu a espreitar pelo canto da vitrina. Ali estavam os dois homens, Mr. May, como um jovial pássaro de face rosada, empertigando a cabeça para ouvir James Houghton, e por vezes agarrando James pela lapela do casaco, no vão desejo de dizer uma palavra, enquanto a cabeça de James se inclinava e o rosto se agitava com o que dizia excitadamente, saltando de um para outro pé, e andando em volta do interlocutor.
      - Quem poderá ser aquele homem, de modos tão ordinários? - indagou Miss Pinnegar com o coração caindo-lhe aos pés.
      - Não posso imaginar - disse Alvina, rindo-se do cômico espetáculo.
      - Não o acha espantoso? - perguntou a pobre e avelhentada mulher.
      - Perfeitamente impossível. Já viu alguma vez uma cara assim vermelha?
      - E o debruado do terno! - falou Miss Pinnegar, indignada.
      - Papai bem podia ter lhe vendido o terno - dizia Alvina.
      - Esperemos que ele não tenha vendido o seu pai, isso sim.
      Os dois homens haviam dado alguns passos mais em direção à casa, e as mulheres se prepararam para escapar lá para dentro. Claro que era espantosamente feio estar espiando assim para o meio da rua. Mas quem poderia pensar então em conveniências?
      - Pararam outra vez - disse Miss Pinnegar, tornando a chamar Alvina.
      Os dois homens estavam trocando palavras um pouco mais animadas, as vozes mal eram perceptíveis.
      - Não sei o que poderá ser - murmurou Miss Pinnegar desditosamente.
      - O assunto é teatro, tenho certeza - declarou Alvina.
      - Você acha? - disse Miss Pinnegar. - Não pode ser! Não pode ser! Oh, não posso acreditar, não posso.
      Mas agora Mr. May pusera a mão vigorosa sobre o braço
de James. E apertava a mão de seu patrão. E James, com o seu bonezinho barato, sorria uma pomposa despedida. E Mr. May, com um gesto gracioso da mão enluvada de cinzento, voltava para a Lua e Estrelas, pavoneando-se, enquanto James corria para casa na ponta dos pés, na sua pressa natural.
      Alvina meteu-se em casa apressadamente, mas Miss Pinnegar deixou-se ficar. James estremeceu quando entrou
pela porta da loja e a encontrou à sua frente.
      - Oh... Miss Pinnegar - disse ele, começando a
esquivar-se dela.
      - Quem era aquele homem? - perguntou ela severamente, como se James fosse uma criança de quem não pudesse tolerar mais nada.
      - Hã? O quê? - falou James, recuando.
      - Quem era aquele homem?
      James era um pouco surdo e a sua voz estava um pouco rouca.
      - O homem... - Miss Pinnegar virou-se para a porta.
- Ali! Aquele homem.
      James também veio até a porta, e espreitou para fora como se esperasse ver qualquer coisa. A vista das costas estreitas e desenvoltas de Mr. May, do elegante chapéu e das mãos metidas em luvas cinzentas surpreendeu-o muito. Ficou aborrecido com o fato de lhe mostrarem aquele espetáculo.
      - Oh - disse ele. - É o meu gerente. - E meteu-se apressadamente na loja, perguntando pelo almoço.
      Miss Pinnegar deixou-se ficar por alguns momentos
em puro alheamento, na entrada da loja. A consciência a abandonara. Quando se recuperou, sentiu que estava no
limite da histeria e da síncope. Mas retemperou-se uma vez mais, embora o esforço lhe custasse um ano de vida. Nunca desmaiara, nunca caíra em histerismo.
      Recompôs-se, embora um pouco curvada como se tivesse apanhado uma surra e, fechando a porta da loja, seguiu James até a sala de jantar, como era inevitável. Ele almoçava e pareceu não dar pela entrada dela. Havia um cheiro de guisado à irlandesa.
      - Que gerente? - perguntou Miss Pinnegar, pequenina, silenciosa e inevitável, à entrada.
      Mas James estava numa das suas abstrações, num dos seus transes.
      - Que gerente? - persistiu Miss Pinnegar.
      Mas ele debruçou-se, ainda sem ouvir, sobre o prato e continuou a engolir seu guisado à irlandesa.
      - Mr. Houghton! - falou Miss Pinnegar, num tom de voz repentinamente alterado. Ficara de uma cor amarelo-pálida.
E deu uma rápida pancadinha na mesa com a mão. James estremeceu. Olhou para cima, desnorteado, como se o tivessem despertado.
      - Hã? - fez ele, de boca aberta. - Hã?
      - Responda-me - disse Miss Pinnegar. - Que gerente?
      - Gerente? Hã? Gerente? Que gerente?
      Ela avançou um pouco mais para perto, ameaçadora em seu vestido negro. James encolheu-se.
      - Que gerente? - replicou ele num eco. - O meu gerente. O gerente do meu cinema.
      Miss Pinnegar olhou para ele, e tornou a olhar, e não disse nada. Naquele momento toda a cólera que ele excitava em todas as mulheres foi silenciosamente descarregada contra ele, como um raio negro de silenciosa eletricidade. Mas Miss Pinnegar, o engenho da cólera, sentiu que ia rebentar.
      - Cinema! Cinema! Quer me dizer que... - Mas ela estava realmente sufocada, os vasos do coração e do peito lhe estalavam. Teve de apoiar a mão na mesa.
      Era um momento terrível. Tinha um aspecto pálido e horrível, o rosto parecia uma máscara, os olhos pareciam pedras e os lábios estavam azulados. Um terrível raio estaria para cair. James estava consumido e não se mexia. Houve silêncio durante minutos, uma suspensão.
      E durante esses minutos, ela rompeu com ele. Rompeu
com ele para sempre. Quando voltou suficientemente a si,
dirigiu-se à sua cadeira e sentou-se em frente ao prato. E
em breve começou a comer, como se estivesse só.
      A infeliz Alvina, para quem aquele fora um terrível e inesperado momento, olhava para um e para outro, e deixara pender a cabeça sobre o prato. James também, de cabeça curvada, se esquecera de comer. Miss Pinnegar comeu muito devagar, sozinha.
      - Não come, Alvina? - perguntou ela por fim.
      - Não, tinha comido bastante - respondeu Alvina.
      - Por que não come? - disse Miss Pinnegar. Sua voz era breve, quase como a de Miss Frost. Estranha como a de Miss Frost.
      Alvina pegou o garfo e começou a comer, automaticamente.
      - Sempre me quis parecer - disse Miss Pinnegar - que o guisado à irlandesa fica melhor misturado com um bocado de nabo sueco.
      - A mim também - falou Alvina. - Mas ainda não há nabos.
      - Oh! Não os havia já na terça-feira?
      - Não. Havia nabos amarelos... mas não eram suecos.
      - Então com nabos amarelos. Gosto de nabos amarelos
- disse Miss Pinnegar.
      - Eu poderia ter posto alguns, se soubesse - falou Alvina.
      - Está bem. Fica para outra vez - disse Miss Pinnegar.
      Nem mais uma palavra sobre o cinema; nem mais um sopro. Logo que comeu a torta de ameixas, James saiu.
      - Que teria ele feito? - disse Alvina quando ele saiu.
      - Comprou um cinema... e aquele homem que nós vimos é o gerente. É muito simples.
      - Mas que vamos nós fazer com um cinema? - dizia Alvina.
      - Que vai ele fazer, é o que você quer dizer. Isso não me diz respeito. Não tenho nada com isso. Não lhe emprestarei coisa alguma, não vou me preocupar com isso, para mim é
como se não existisse cinema. É tudo o que tenho a dizer
- anunciou Miss Pinnegar.
      - Mas ele saiu para tratar disso - retrucou Alvina.
      - Então deixe-o se desvencilhar. Não é nada comigo. Vistas bem as coisas, não tenho nada com os negócios do seu pai. Seria mesmo impertinente eu me meter neles.
      - Nem eu tenho nada com isso - disse Alvina.
      - É diferente. Você é filha dele. Ele para mim não é nada, felizmente. Pobre de sua mãe.
      - Oh, mas ele foi sempre assim - disse Alvina.
      - Então está tudo bem - falou Miss Pinnegar.
      Havia qualquer coisa de fatal nos sentimentos dela.
Uma vez que estes haviam arrefecido, nada os aqueceria de novo. Seria o mesmo que tentar aquecer um rato gelado. O rato entra em putrefação.
      Mas a pobre Miss Pinnegar, depois disso, tinha um ar mais envelhecido e parecia um pouco encurvada. E as coisas que dizia muitas vezes lembravam a Alvina Miss Frost.
      Na noite seguinte, James pôs-se a conversar com a filha, depois que Miss Pinnegar se retirara.
      - Já lhe disse que comprei um cinema - falou James.
- Estamos agora tratando de arranjar as máquinas: o dínamo e o resto.
      - Mas onde fica o cinema? - perguntou Alvina.
      - Perto de Lumley. Levo você lá amanhã e lhe mostro
o lugar. A casa, própria para teatro ambulante, vem na
quinta-feira.
      - Mas é o senhor e quem mais?
      - Estou absolutamente só... absolutamente só - dizia James Houghton. - Encontrei um gerente muito bom, que conhece bem esses negócios... um tal Mr. May. Homem muito agradável. Muito agradável.
      - Baixo e vestido de cinzento?
      - Sim. E tenho estado pensando... se Miss Pinnegar se ocupasse da caixa e da distribuição dos bilhetes... se ela quisesse tomar conta da bilheteria, você poderia tocar piano; e se Mr. May aprendesse a trabalhar com a máquina... ele já está aprendendo; e se eu indicasse os lugares ao público, não precisaremos de mais pessoal.
      - Miss Pinnegar não vai para a caixa, papai.
      - Por que é que não há de ir? Por quê?
      - Eu não sei por quê. Mas ela não quer fazer nada... e se eu fosse o senhor não pediria isso a ela.
      Houve uma pausa.
      - Está bem - disse James, arrogante. - Podemos nos arranjar sem ela.
      E Alvina devia tocar piano! Foi um grande golpe que lhe deram! Meteu-se no quarto para rir e chorar ao mesmo tempo. Via-se já ao piano, martelando a Valsa da viúva alegre e, nos momentos ternos, o Rosário O Rosário, seguidamente. Quando as fitas se desenrolassem aos estremeções e o público desse berros e algum rapaz magricela gritasse "Chocolate a um pêni cada barra! Chocolate a um pêni cada barra!", ela começaria a martelar outro trecho.
      Que espetáculo, Deus seja louvado! Rebentava de rir.
E, ao mesmo tempo, pensava na mãe e em Miss Frost e chorava como se seu coração fosse se despedaçar. E então toda espécie de trechos cômicos e incongruentes lhe vieram à cabeça. Imaginava-se compondo inapreciáveis variações. Demora-te mais, Lucy, por exemplo. Começou a entrançar em sua mente harmonias imaginárias e variações sobre o tema de Demora-te mais, Lucy.
      Demora-te mais, Lucy, demora-te mais, Loo.
Como eu gosto de me demorar, de me demorar, ao pé de ti. Escuta-me enquanto canto, amor, promete que me serás
fiel,
      E demora-te mais, mais, e demora-te mais, mais, Loo.
     
      Todos os trechos que encolerizavam tanto Miss Frost! Todas as valsas de sonho e orações de virgem e as canções terríveis!
      Porque na ilha dos sentimentais... ais
      Haverá alguém que pense em mim?
      Na ilha dos sentimentais... ais
      Haverá com certeza alguém...
     
      Pobre Miss Frost! Alvina via-se regendo um coro de rústicos mineiros, numa atmosfera de perfume reles e de laranjas, durante os intervalos, quando as fitas acabassem.
      Gostarias de namorar comigo?
      Gostarias de namorar comigo?
      (Por que não!)
      Debaixo do carvalho formoso e sombrio,
      chamando-me a tua queridinha,
hás de gostar tanto de me abraçar e estreitar. (Experimenta!)
      Balança-me nos teus joelhos,
      chamando-me a tua rica pombinha,
      hás de gostar tanto de namorar comigo.
      (Oh-oh - Vamos a isso!)
      Alvina ficara muito agitada imaginando tais coisas.
      De manhã contou a Miss Pinnegar.
      - Sim - disse Miss Pinnegar -, vai me ver distribuindo bilhetes, não é assim? Sim... está bem. Oxalá não tenha de ser ele próprio a fazer isso. E você vai tocar piano. É uma vergonha! É uma vergonha! Ainda bem que sua mãe e Miss Frost já morreram. Ele perdeu os últimos restos de vergonha... os últimos, se alguma vez a teve... do que eu duvido muito. Pois bem, tudo o que tenho a dizer é que estou muito contente por não ter nada com isso. E tenho pena de você, por ser filha dele. Tenho muita pena de você, tenho. Sim... nem ponta de vergonha... nem ponta de vergonha.
      E Miss Pinnegar saiu da sala, mortificada.
      Alvina foi a Lumley e lhe mostraram o local, sendo também apresentada a Mr. May. Este inclinou-se para ela na sua melhor maneira americana e tratou-a com agradável
deferência americana.
      - Não acha - falou ele - que é um plano admirável?
      - Maravilhoso - replicou ela.
      - É claro - disse ele - que a construção será simplesmente provisória. É claro que não haverá nada para causar admiração: apenas um velho teatro ambulante de madeira. Mas afinal, o que precisamos é começar.
      - E é o senhor quem vai projetar o filme? - perguntou ela.
      - Sim - respondeu ele com orgulho -, passo todas as noites com o operador do Marsh em Knarborough. Acho aquilo muito interessante... muito interessante, na verdade. E você vai tocar piano? - disse ele, pondo a cabeça de lado e olhando-a maliciosamente.
      - Meu pai assim quer - respondeu ela.
      - Mas que diz você a isso? - insistiu ele.
      - Acho que não tenho nada a dizer.
      - Oh, mas decerto... Decerto você não o faria se não
o quisesse. Isso não poderia ser. Poderíamos assalariar um rapaz qualquer... - E voltou-se para Mr. Houghton como que a perguntar.
      - Alvina pode tocar melhor do que ninguém em Woodhouse
- disse James. - Não devemos aumentar as despesas. E os salários sobretudo...
      - Mas decerto que Miss Houghton terá seu salário. O trabalhador merece salário. Decerto. Mesmo a trabalhadora, para falar no feminino. E com o mesmo salário o senhor pode encontrar um rapaz insignificante que tenha punhos fortes.
Tenho receio que isso canse Miss Houghton e a mate.
      - Não me parece - disse James. - Não me parece. Há muitos números que ela não precisa acompanhar.
      - Bem, se é assim - disse Mr. May -, eu mesmo posso acompanhar alguns, quando não estiver passando filmes. Não sou um grande pianista... mas posso tocar um pouco, isto é... - E fazia trilos com os dedos num teclado imaginário em frente a Alvina, erguendo os olhos para ela e sorrindo um pouco maliciosamente.
      - Julgo - continuou ele - que posso acompanhar tudo menos o homem que trabalha com pratos... porque tenho medo
de fazê-los cair. Mas as canções... oh, as canções!
Con molto espressione!
      E de novo ele trilava no imaginário teclado e sorria para Alvina com as bochechas gordas.
      Ele começava a lhe agradar. Havia nele qualquer coisa
de afetado, quando o conhecíamos melhor... verdadeiramente até de fastidioso. Um autêntico homem de teatro!
Vistoso também. Mas de maneira fastidiosa!
      Vinha com muita freqüência a Manchester House, depois disso. Miss Pinnegar era bastante dura com ele e ele não gostava dela. Mas sentia-se muito feliz conversando em
tête-à-tête com Alvina.
      - Onde está sua mulher? - perguntou ela.
      - Minha mulher! Oh, não me fale dela - disse ele, comicamente. - Está em Londres.
      - Por que é que não se pode falar dela? - perguntou Alvina.
      - Oh, há todas as razões para não se falar dela. Nós não nos entendemos lá muito bem, ela e eu.
      - Que pena - disse Alvina.
      - Sim, é pena! Mas que fazer? - Riu comicamente.
Depois, tornou-se grave. - Não - disse ele. - É uma pessoa impossível.
      - Compreendo - disse Alvina.
      - Tenho a certeza de que não compreende - continuou Mr. May. - Não... - e ele pôs a mão no braço de Alvina. - Não comece a julgar que ela é imoral! Seria o maior erro que poderia cometer. Oh! Meu Deus, não. A sua moralidade é inatacável. Viver de três folhas de alface e dar o resto à mulher durante dias. Ela é assim. Oh, que dias horríveis nós passamos nos primeiros anos! Só vivemos juntos três anos. Mas, meu Deus, que inferno que aquilo era!
      - Por quê?
      - Nada agradava àquela mulher. Não queria comer. Se eu lhe dizia "Que há para cear, Grace?", tão certo como o que é certo ela respondia: "Oh, hei de tomar um banho antes de ir para a cama... é a minha ceia". Era uma dessas vegetarianas avançadas que andam por aí.
      - É extraordinário - falou Alvina.
      - Extraordinário! É assim mesmo. Uma vida extraordinariamente dura, a minha E também não queria que
eu comesse. Ia atrás de mim para a cozinha e ficava furiosa quando eu cozinhava para mim. Eu estava preparando um prato de champignons; deliciosos champignons, deliciosos... e coloquei-os no fogo fritando em manteiga; deliciosos champignons novos. Que eu seja enforcado se ela não foi à cozinha e quando eu estava de costas derramou uma porção de água suja de cenouras na caçarola. Fiquei furioso. Ora, já se viu!... Deliciosos champignons novos.
      - Cogumelos frescos - disse Alvina.
      - Cogumelo... a melhor coisa que há no mundo. Oh! Não acha? - E revirava os olhos ridiculamente para o alto.
      - São bons - falou Alvina.
      - Eu também acho. E metidos... metidos naquela água
suja de cenouras. Oh, fiquei tão furioso! E ela só achou
para dizer: "Oh, eu não queria estragar a água!" Não queria estragar aquela água suja e tinha dado cabo dos meus champignons! Pode-se conceber uma pessoa assim?
      - Devia ser insuportável.
      - Claro que era. Diminuí de peso. Diminuí não sei quantos quilos no primeiro ano de casamento com tal mulher. Ela odiava que eu comesse Ora veja, uma das grandes
acusações contra mim, no fim das contas, foi isto que ela
me disse: "Fui ver a despensa", disse-me ela, "e reparei que estava quase vazia, e pensei comigo mesma: 'Agora ele não pode cozinhar'. E apesar de tudo você conseguiu comer!" Aí tem. Que acha disso? A maldade disso!
      - Mas como queria ela que o senhor vivesse? perguntou Alvina.
      - Roer uma folha de alface com ela e beber água da torneira... e depois edificar-me com um panfleto de Bernard Shaw. Era uma mulher assim. Tudo o que me dava nem se sentia no estômago.
      - Assim tão dominadora!
      - Oh! - Ele erguia os olhos ao céu e estendia as mãos.
- Eu não acreditava no que via. Não supunha que houvesse gente assim. E os amigos dela! Que amigos horríveis os dela... os tais fabianos! E o eugenismo deles. Queriam examinar minha vida privada, por motivos eugênicos. Você não pode fazer idéia de tal vida! Pior do que a Inquisição espanhola. E aturei aquilo três anos. Como é que o aturei é que não sei...
      - Agora nunca a vê?
      - Nunca! Nunca deixo que ela saiba onde estou! Mas sustento-a, é claro.
      - E a sua filha?
      - Oh, é a moça mais encantadora do mundo. Vi-a em casa de um amigo quando voltei da América. A coisa mais rica do mundo. Mas é claro que desconfia de mim. Trata-me como se não me conhecesse...
      - É triste!
      - Oh... insuportável! - Estendeu as mãos roliças e cuidadas, mostrando num dos dedos um anel verde cinzelado.
      - Que idade tem sua filha?
      - Catorze anos.
      - Como se chama?
      - Gemma. Nasceu em Roma quando eu era empresário de Miss Maud Callum, a danseuse.
      Era curiosa a intimidade que, desde logo, Mr. May estabelecera com Alvina. Mas era uma intimidade puramente verbal, descritiva. Ele não fazia avanços físicos. Pelo
contrário, era como uma pomba, ave inconsolável bicando as migalhas da simpatia de Alvina e levantando constantemente
os olhos para investigar se ela não dera um passo na direção dele. Se tivesse surpreendido nela o mínimo sinal de aproximação, teria fugido a sete pés. Nada o horrorizava mais do que uma mulher que tentasse se aproximar dele. Isso o horrorizava, isso o fazia odiar toda a tribo das mulheres; horríveis gatos de duas pernas e sem bigodes. Se fosse um pássaro, seu horror inato dos gatos não seria tão grande. Amava o anjo, e particularmente o anjo-mãe na mulher. Oh!... Venerava-o. Mas familiaridade!
      Assim, ele nunca desejaria ser visto fora de casa com Alvina; se a encontrava na rua fazia-lhe uma vênia e passava adiante; fazia-lhe uma vênia muito profunda e reverente, na verdade, mas passava adiante, com as costas mais pavoneadas e afirmativas do que nunca. Decididamente, virava-lhe as costas em público.
      Mas Miss Pinnegar, autêntica gata velha, parda e perigosa, olhava-o do canto dos olhos pálidos, quando ele
se virava de costas.
      - Que afeminado! - murmurava. - No vestir, no caminhar, em tudo... que afeminado.
      - Se eu fosse você, Alvina - dizia ela -, não ficaria tanto tempo na sala com ele. O povo pode falar.
      - Eu talvez até gostasse - Alvina riu.
      - Que quer dizer com isso? - interrompeu Miss Pinnegar.
      Não obstante, podia se contar com Mr. May em assuntos de negócios. Estava de pé às cinco e meia da manhã e às sete já estava a caminho. Vagava como firme barquinho levado por brisa constante, para cá e para lá, saindo de Woodhouse e voltando, e para todo lado. Nas obras era severo e rabugento. Apertava o terno quando estava furioso ou descontente, e severas e resmungonas vinham as palavras, como tesouras.
      - Mas como é que isso pode ser? - atirou ele a Arthur Witham. - O gás ainda não está ligado? Devia ter ficado pronto ontem.
      - Tivemos de esperar pelas peças para os suportes
- disse Arthur.
      - De esperar pelas peças! Mas o senhor não sabia já há quinze dias que eram necessárias essas peças?
      - Julgava que serviriam as que temos aqui.
      - Oh, julgava! Realmente! Que espécie de homem é o senhor para julgar isso? E mandou-as vir na verdade ou só pensou que as mandara vir?
      Arthur olhou-o de mau humor. Odiava-o. Mas as observações agudas de Mr. May não eram para deitar fora.
      - Espero que tenha ido além do pensar - disse Mr. May.
- O pensar parece-me processo muito lento. E quando julga que terá aqui as peças?
      - Amanhã.
      - O quê! Mais um dia! Ainda mais um dia! Mas o senhor está agora tendo muito pouco interesse pelos seus negócios. Oh! Amanhã. Vejam lá. Dois dias já de atraso e ainda amanha! Bem, espero que por amanhã o senhor queira dizer quarta-feira e não amanhã de manhã ou qualquer outra data absurda e fantástica em que o senhor tenha pensado. Mas tenha as coisas prontas amanhã! - Aqui, ele deixou cair a mão apaziguadora no braço de Arthur. - Promete-me que tudo fica pronto amanhã, não é verdade?
      - Sim, farei todo o possível.
      - Não diga "farei todo o possível". Diga que ficará pronto.
      - Se me for possível fazê-lo...
      - Bem. Está bem. Arranje as coisas para que seja possível... e muito obrigado. Fico-lhe ainda mais obrigado
se o fizer.
      Arthur estava incomodado, mas tinha de se agarrar ao
trabalho. E assim, nos princípios de outubro, tudo ficou pronto e Woodhouse foi emplastrada com cartazes anunciando
o "Palácio dos Prazeres de Houghton". O pobre Mr. May via bem a ironia contida na palavra "Palácio".
      - Podemos garantir o prazer - dizia ele. - Mas pessoalmente não tomo qualquer responsabilidade quanto ao palácio.
      Mas James, para fazer uso da expressão vulgar, andava maluquinho de todo.
      - Papai está meio maluco - dizia Alvina.
      - Oh! - exclamava Mr. May, embaraçado e interessado.
      Mas isso apenas significava que James vivia sua vida. Desenhara os anúncios. O primeiro era um amontoado de linhas a vermelhão, com a misteriosa inscrição em grandes letras negras: O CINEMA PALÁCIO DE HOUGHTON - e por baixo, em letras menores: "Abre em Lumley a 7 de outubro, às 6 e 30 da tarde". Aonde quer que se fosse, aquelas faixas a vermelhão e preto saltavam das paredes sobre a gente. Havia ainda outros anúncios, em delicado azul-pálido e vermelho-pálido, como um genuíno anúncio de teatro, dando os programas completos. E por baixo destes, uns dizeres de tamanho grande anunciavam, em letras verdes sobre fundo amarelo: "Venda final de liquidação na Casa Houghton, Knarborough Road, na
sexta-feira, 30 de setembro. Venham e comprem. Não há preços marcados".
      James andava numa roda-viva. Juntava todos os restos e retalhos de todos os cantos de Manchester House. Ordenava-os em lotes e marcava de cabeça os lotes. E então desandou. Colou anúncios nas vitrinas e por toda a loja: "Leve o que desejar e pague o que quiser".
      Ele e Miss Pinnegar guardavam a loja. As mulheres amontoaram-se lá dentro. Revolviam tudo. Era uma morte
para James o fato de aceitar os preços que elas ofereciam.
Mas aceitava-os. Porém advertiu-as de que comprariam um artigo de cada vez. "Uma coisa de cada vez, se não se importa", dizia ele, quando elas apareciam com as mãos
cheias por uma bagatela. Não tardou muito para que atenuasse a regra.
      Pois bem, por volta das onze horas tinha esvaziado bastante a loja, realmente, muito mesmo... e muitas mulheres tinham comprado o que não queriam ao preço que tinham
feito. Febril mas satisfeito, James fechava a porta pela última vez. No dia seguinte, cerca das onze horas, removera todos os seus pertences, a porta que ligava a casa com a loja fora bem aparafusada; o merceeiro entrara vagarosamente e olhara em volta aquele espaço nu. Recebeu a chave de James e imediatamente pôs o empregado colando novo anúncio na vitrina, arrancando todos os anúncios de James. O pobre James teve de dar a volta pela Knarborough Road, pela Wellington Street, até a cocheira dos cavalos de aluguel, depois por caminhos longos e estreitos antes de chegar à sua própria casa, vindo da sua própria loja.
      Mas não se importava. Cada hora que passava mais próximo tornava o primeiro sucesso do seu Palácio dos Prazeres. Estava satisfeito com Mr. May. O Palácio ficou firme em pé, por fim - oh, era tão raquítico quando chegou! Resplandecia com a nova cobertura, completa, de tinta vermelho-escura, como sangue de boi. Estava enfeitado com uns toques de alfazema e amarelo em volta da porta e em volta do teto de madeira decorada. Tinha uma nova rampa inclinada junto às portas, e dentro, um novo assoalho de madeira, com cadeiras de veludo vermelho defronte do pano e velhos bancos de igreja, atrás. A juventude mineira reconheceu os bancos.
      - Ih! São os bancos da igreja velha.
      - Que pena! O pastor vai ficar desconsolado.
      Tema para piadas sem fim. E o Palácio dos Prazeres foi batizado, num rasgo feliz, o Esforço de Houghton, referência àquele esforço particular da Igreja chamado o Esforço Cristão, em que Alvina e Miss Pinnegar figuravam.
      - Para onde você vai?
      - Para Lumley.
      - Para o Esforço de Houghton?
      - Sim.
      - Droga.
      Era assim que qualquer lacônico jovem mineiro se dirigia a outro. Mas não antecipemos.
      Mr. May tinha dado o melhor de si no arranjo do programa para a primeira semana. As fitas eram: O pássaro humano,
que era um filme dos esquiadores da Noruega, puramente descritivo; A panqueca, filme humorístico; e a seguir o grande filme de episódios: O abraço silencioso. E depois, nas variedades, o primeiro número era Miss Poppy Traherne, senhora de inumeráveis saiotes, que podia, rodopiando, representar o que se quisesse, desde uma taioba calçada de meias verdes até um arco-íris, uma bicicleta, uma chávena e um pires: era maravilhosa a tal Miss Poppy Traherne. O número seguinte eram Os Irmãos Baxter, que subiam e desciam pelas costas uns dos outros e pela frente uns dos outros e se punham de pé na cabeça uns dos outros e se encarapitavam por momentos nos ombros uns dos outros, como se cada um deles fosse um lanço de escada com patamar e os três fossem três lanços de escada para três andares, o lanço de cima continuamente descendo e passando a ser o lanço de baixo, enquanto o lanço do meio caía e se tornava num corredor horizontal.
      Alvina teve de começar o espetáculo tocando uma abertura chamada Sejam todos bem-vindos: um trecho ridículo. Estava excitada e infeliz. No domingo de manhã houvera um ensaio dirigido por Mr. May. Ela tocou Sejam todos bem-vindos e depois pegou nas partituras enxovalhadas que Miss Poppy Traherne trazia consigo. Miss Poppy era bastante exigente. Quando rodopiava as saias, não deixava de dizer: "Mais depressa, por favor", "Mais devagar" - num tom de voz arrogante e oficial que era como que abafado pelo farfalhar da roupa. "Não pode dar expressão a isso?", gritava ela quando a taioba se desmanchava, e havia um som de real êxtase na voz dela. Mas por que pedia ela "Mais forte! Mais forte!", quando se transformava em chávena e pires, era o que Alvina não podia compreender: a não ser que Miss Poppy se fantasiasse a si própria como uma chávena de chá forte.
      Contudo, tornava-se simplesmente ela própria, arquejava freneticamente, e depois, com voz rouca, perguntava se não era o primeiro número do espetáculo. Tinha desprezo por Sejam todos bem-vindos. Mr. May respondia-lhe que sim. Ela era o primeiro número. Sobre o assunto, iniciou uma discussão. Mr. Houghton dizia, intrometendo-se apressadamente, que queria fazer um pequeno discurso de abertura. Miss Poppy olhou-o como se ele fosse o cuco de um relógio e tivesse de esperar que este acabasse de cantar. Depois, disse:
      - Mas isso não é todas as noites. Há seis noites na semana.
      James fora completamente desarmado. Aquilo acabou com Mr. May se metamorfoseando ele próprio em cão: disse que tinha o costume no saco; e fez a cena do torrão de açúcar com um dos Irmãos Baxter, num breve primeiro número. A virgindade profissional de Miss Poppy foi assim salva de ultraje.
      No fundo da cena havia meio metro de cortina tapando
os dois camarins, "Senhoras" e "Cavalheiros". Nos momentos livres Alvina deixava-se estar no camarim das senhoras ou na estreita entrada, porque dentro não havia espaço suficiente. Observava as senhoras se prepararem, dando uma pequena ajuda Via os pés dos homens em velhos escarpins, do outro lado da cortina, e ouvia suas vozes ásperas. Por vezes, era uma conversa em calão que prosseguia para lá da cortina... porque muitos dos atores já se conheciam: muito amáveis na frente, falando muito mal nas costas.
      A infeliz Alvina andava perplexa. Era extremamente delicada... oh, extremamente delicada com os artistas.
Estes tratavam-na com uma espécie de amizade imediata e
repreendiam-na e davam-lhe conselhos, e tinham um pouco de despeito porque Mr. May a tratava com atenção e deferência. Sentia-se perplexa, um pouco excitada, e como se não fosse ela própria.
      A primeira noite chegou O pai produzira uma blusa de crepe da China cor-de-rosa e um pente ornado de brilhantes, coisas que ela se recusou a usar. Manteve a blusa preta e a saia preta e o habitual penteado simples. Mr. May disse: "Decerto! Ela não tem que despertar para si as atenções". Miss Pinnegar realmente desceu a colina com ela, e começou a chorar quando viu o edifício cor de sangue de boi, com os bicos de gás à frente. Era a primeira vez que via aquilo. Foi com Alvina até a porta do palco, nos fundos, e subiu a escada até aquela imitação de camarim. Mas fugiu ao ver Miss Poppy de cabelos amarelos e calças verdes, de folhos, com laços verdes. Pobre Miss Pinnegar! Ficou lá fora sobre a grama pisada por trás da Banda da Esperança, e chorou. Felizmente trouxera a mantilha.
      Foi valentemente de volta até a entrada principal e subiu os degraus. A multidão entrava. Entrevia-se a cara de James espreitando de dentro da pequena bilheteria.
      - Um! - disse ele oficialmente, puxando o bilhete. E então a reconheceu. - Oh - disse -, a senhora não vai me dar dinheiro.
      - Sim, vou - disse ela, e deixou a moeda de quatro pence, e os dedos acobreados e imundos de James atiraram-na para dentro, enquanto o jovem atrás de Miss Pinnegar a empurrava para a frente.
      - No meio, os lugares de quatro pence - dizia o homem
da porta, empurrando-a na direção de Mr. May, que queria
pô-la no veludo verde. Mas ela puxou um dos bancos e tomou seu lugar.
      A casa estava abarrotada com um público que fazia algazarra, assobiava e se excitava. O pano estava descido. James tinha-o alugado aos camaradas negociantes, e apresentava anúncios locais numa série de remendos. Havia um porco gordo e uma grande empada de carne de porco, e o porco dizia: "Todos sabem onde me encontrar. Dentro da crosta,
na Casa Frank Churchill, Knarborough Road, Woodhouse". Em redor do nome de W. H. Johnson flutuavam um chapéu de feltro, um colarinho com gravata, um par de suspensórios e um chapéu de chuva. Etc., etc. Tudo fazia com que uma pessoa se sentisse como que em casa. Mas Miss Pinnegar estava tristemente cheia de calor e comprimida no seu assento.
      Era a hora, e os mineiros começaram a bater com os pés no chão. Era aquele exatamente o excitado e numeroso público que Mr. May queria. Aprestou-se em conduzir James à frente do pano. Mas James, fascinado por ter juntado tanto dinheiro tão depressa, não podia ser deslocado da bilheteria, e os dois homens quase brigaram. Por fim, Mr. May foi visto enxotando James para o palco, como a um frango teimoso, pela coxia lateral.
      James, em frente ao pano de boca iluminado de anúncios locais, inclinava-se e começava e não pronunciava uma só palavra audível! A multidão aquietou-se, a eloqüência
jorrou. Mas a multidão estava farta de James e começou
a arrastar os pés. "Desça, desça!", gritou Mr. May freneticamente lá de baixo. Mas James não se mexeu. Iria
discorrer toda a noite. Mr. May acenou excitadamente a Alvina, que estava obscuramente sentada ao piano, e arremessou-se para o palco. Ergueu a voz e afogou James. Este deixou de acenar com as mãos enegrecidas, Alvina atacou o Sejam todos bem-vindos tão forte e enfaticamente quanto pôde.
      Durante todo o tempo, Miss Pinnegar permaneceu sentada como uma esfinge, como uma esfinge. O que pensava, nem ela
o saberia. Mas estupidamente fitava James, e ansiosamente
olhava de relance a matraqueante Alvina. Sabia que Alvina tinha de martelar até receber o sinal de que Mr. May estava pronto com o costume de cão.
      Um puxão no pano. Alvina feriu o acorde final, o pano subiu, e:
      - Bem imitado! - disse Miss Pinnegar em voz alta.
      Era Mr. May vestido de cão pedinte, bastante natural
e bastante ridículo. O público dava gritos. Alvina estava sentada com as mãos no regaço. O cão foi um grande sucesso.
      Pano! Algumas notas do Toreador, e depois as folhas de música de Miss Poppy. Música doce. Miss Poppy estava no chão, debaixo de uma mantilha verde. E então dilatava-se cada vez mais, no clima rodopiante de uma perfeita taioba. Pano repentino e um grito de êxtase dos mineiros. De todas as plantas a taioba é a mais mística e portentosa.
      Depois, um estampido e um mugido no piano de Alvina. É a tempestade de que emerge o arco-íris. O pano sobe... Miss Poppy volteando até as saias subirem como pela ação da brisa, subirem e tornar-se um arco-íris por cima das pernas agora escurecidas. As luzes da ribalta extinguiram-se. Miss Poppy extinguia-se toda também.
      O arco-íris não é tão emocionante como a taioba. Mas a bicicleta, feita no último momento sobre uma perna e depois um espantoso salto no ar, para trás, de novo faz vibrar a casa.
      A própria Miss Poppy reserva-se para a chávena e o pires. Mas o público, vulgar como sempre, não pode compreender aquilo.
      E então, Alvina liberta-se das folhas de música de Miss Poppy, enquanto Mr. May se senta como um profissional ao piano e faz voar acordes para as escadas que sobem e descem dos Irmãos Baxter. Entretanto, a face pálida de Alvina paira como um fantasma na parte escurecida, como um fantasma que estivesse debaixo do palco.
      As lâmpadas se apagam: murmúrios e sussurros de beijos... e depois o dístico na tela: O pássaro humano
em letras a tremerem. Não é boa a máquina, e Mr. May não
é bom operador. O público distintamente critica. Acendem-se as luzes e... "Chocolate a um pêni a barra! Chocolate a um pêni a barra!", tal como no sonho de Alvina; e depois A panqueca... e assim termina a primeira parte. Luzes para o intervalo.
      Miss Pinnegar suspirou e dobrou as mãos. Não olhava
nem para a direita nem para a esquerda. Apesar de si mesma, apesar da vergonha e da decência ultrajadas, estava excitada. Mas sentia que tal excitação não lhe fazia bem. Em vão o rapaz muito pertinentemente lhe gritava "Chocolate". Não olhava nem para a direita nem para a esquerda. Mas quando
viu Alvina fazendo-lhe um sinal com a cabeça e sorrindo da coxia lateral sob a cena, quase se desfez em lágrimas. Era demasiado para ela, de uma vez só. E Alvina parecia quase
indecentemente excitada. Quando ela atravessou pela frente do público, para o piano, para tocar a sedutora Valsa de sonhos, tinha um ar quase inquieto, como seu pai. James, escusado seria dizê-lo, esvoaçava e andava apressado de um lado para outro à volta do público e do palco, como uma alvéloa na extremidade de um lago.
      A segunda parte compunha-se de uma drama cômico, interpretado por dois Irmãos Baxter disfarçados de mulheres
e por Miss Poppy disfarçada de homem... com um par de pessoas da região ali metidas para fazer o guarda e o conde. Isso foi muito bem. O final foi a primeira parte do Abraço silencioso.
Quando as luzes se acenderam e Alvina solenemente atacou o Deus salve o nosso gracioso rei, o público estava de pé e não muito quieto, evidentemente assobiando com excitação como bolos na caçarola quando a caçarola é retirada do fogo. Mr. Houghton agradeceu a cortesia e a atenção. E ninguém lhe prestou a mínima atenção.
      Miss Pinnegar ficou para o fim, esperando por Alvina. E Alvina, na sua excitação, esperou por Mr. May e pelo pai.
      Mr. May circulava emproadamente no átrio vazio.
      - Bem! - disse ele, fechando ambos os punhos e sacudindo-os no rosto de Miss Pinnegar. - Que tal isso?
      - Parece-me que vai muito bem - respondeu ela.
      - Muito bem! Também me parece, de fato. Como o fogo numa casa. O quê? Não? - E ele riu, num agudo e excitado risinho.
James contava os penies, muito compenetrado, na caixa, e colocava-os num saco. Os outros tiveram de esperar por ele. Por fim, fechou o saco.
      - Então - disse Mr. May -, satisfeito?
      - Assim, assim - respondeu James, roucamente excitado.
- Assim, assim.
      - Só assim, assim? Oh-h! - E Mr. May repentinamente agarrou o saco. James voltou-se como se quisesse arrebatá-lo. - Bem! Sinta-lhe o peso e veja se é assim, assim! - disse Mr. May dando o saco a Alvina.
      - Meu Deus! - gritou ela, passando-o a Miss Pinnegar.
      - Quem poderia esperar uma coisa dessas? - disse Miss Pinnegar, entregando-o a James. Mas ela estava friamente alheada.
      Mr. May fechou o gás no registro e voltou a falar através da escuridão do teatro vazio, descobrindo o caminho com uma lanterna de bolso.
      - C'est le premier pás qui coûte - dizia ele, num francês americanizado, enquanto fechava as portas e metia a chave no bolso. James saltitava silenciosamente ao lado, curvado sob o peso do saco cheio de penies.
      - Quanto é que se fez, papai? - perguntou Alvina jovialmente.
      - Ainda não contei - respondeu ele, mal-humorado.
      Quando chegou a casa, subiu apressadamente para o
quarto nu. Limpou muito bem a mesa e depois, com mão hábil, agarrou mancheias de moedas e empilhou-as em pequenas colunas na secretária. Estava ali um exército de gordas moedas, uma dúzia por coluna, lá atrás, filas e filas de alinhadas moedas de bronze. E comandando tudo, uma valorosa coluna de
meias-coroas, alguns valentes e importantes florins, como generais e coronéis, depois uma fila inteira de xelins, como outros tantos capitães, e uma nuvenzinha de prateados tenentes em moedas de seis pence. Mesmo no fim, como frágil homem do tambor, uma delgada coluna de moedas de três pence.
      Ali estavam todos: corpulentos dragões de penies valentes, pesados e mantendo seu campo, com uma cortina de brilhante infantaria em moedas de meio pêni, comandada pelo imóvel general meia-coroa, que no seu posto era flanqueado por todo o seu estado-maior de coronéis-florins e de capitães-xelins, por ordem de quem brilhantemente se moviam os ágeis tenentes-seis pence, todos ignorando o pálido frágil Joey das moedas de três pence.
      De vez em quando James corria o olhar onipotente sobre aquele exército. Gostava dele. Gostava de sentir a mesa premida, gemendo sob aquele peso. Gostava de ver os pence, como inumeráveis pilares de nuvens, erguidos, à espera de conduzi-lo no deserto dos recursos escondidos, enquanto as moedas de prata, como pilares de luz, mostrariam o caminho através da longa noite da fortuna. O peso das moedas deprimia-lhe sensualmente os músculos e dava-lhe prazer. A escura vermelhidão do bronze, como pulgas sangüíneas, parecia viver e respirar, a prata tinha magia como se fosse alada.

      CAPÍTULO 7 - Natcha-Kee-Tawara

      Mr. May e Alvina tornaram-se quase inseparáveis e Woodhouse cochichava com o escândalo. Woodhouse não podia acreditar que Mr. May fosse absolutamente peremptório no horror por toda espécie de familiaridade com uma mulher. Não podia acreditar que fosse unicamente tão amigo de Alvina porque ela era como uma irmã para ele, pobre, solitária e arruinada alma: uma pura irmã que verdadeiramente não tinha corpo. É certo que apesar de Mr. May ser antes amigo, em sentido epicurista, do seu próprio corpo, contudo o corpo dos outros fazia-o estremecer. Assim, seu supremo pronunciamento sobre Alvina era: "Ela não é físico, é espírito".
      Explicou-lhe mesmo um dia, em seu modo ingênuo:
      - Há duas espécies de amizade - dizia ele -, física e espiritual. A física é coisa momentânea. É claro, você gosta dos indivíduos, é amável com eles, etc... manter a coisa tão decente quanto possível. É decente enquanto você assim o puder manter. Mas é coisa momentânea. Você sabe disso. Pode durar uma semana ou duas, ou um mês ou dois, mas logo de princípio se sabe que aquilo vai acabar... por completo, depressa. É preciso vê-la como ela é. Mas é tão diferente com as amizades espirituais! Essas duram. São eternas... se alguma coisa humana é eterna ou pode ser eterna. - Juntava
as mãos em modos ridículos de querubim. Era completamente sincero; se um homem pode ser completamente sincero.
      Alvina estava inteiramente satisfeita em ser um dos amigos eternos e espirituais dele, ou antes uma das amizades dele, pois que existia in abstractu no que a ele dizia respeito. Porque ela não podia considerá-lo fisicamente vivente. Fisicamente ele nunca estava presente: estava sempre singularmente ausente. Mas sua ingenuidade aguçava o dente de serpente da mais amarga ironia de Alvina.
      - E sua mulher? - perguntou ela.
      - Oh, a minha mulher! Que horrível lembrança! Aí cometi eu o grande erro de tentar juntar as duas numa só pessoa! E caí entre dois pilares! Oh, minha amiga, não vê? Oh! Caí entre dois pilares lindamente, lindamente! E então... ela quase os pôs em cima de mim. Parece-me que nunca mais levantei a cabeça: quando eu era físico, ela era espírito... Bernard Shaw e banhos frios para a ceia! E quando eu era espírito, ela era físico e lançava os braços ao meu pescoço. De manhã, veja lá. Sempre de manhã, quando eu tinha de estar fresco para os negócios. Sim, invariavelmente. Que lhe parece isso? Nem o Diabo seria capaz de inventar coisa mais incômoda. Oh, minha amiga, nem me fale nisso. Mas que tempo eu passei! Felizmente ainda estou vivo. Sim, na verdade. E você ri.
      Alvina fazia mais do que rir. Ria às gargalhadas. E contudo continuava em boa amizade com aquele homenzinho singular.
      Ele comprara um novo e elegante sobretudo, que lhe ficava bem, e um novo chapéu. Ela reparou até, um dia em
que ele se instalava comodamente num sofá, que ele trazia
roupa-branca de seda azul-pálida e suspensórios de seda violeta. Perguntava a si mesma onde teria ele arranjado aquilo e como poderia tê-lo comprado. Mas ele o estava
usando.
      James parecia, por enquanto, absorvido na empresa... particularmente no tomar parte nela. Parecia, por enquanto, contente, ou quase isso. Certamente havia dinheiro entrando. Mas ele tinha de pagar tudo o que pedira emprestado para comprar o edifício e as coisas necessárias, e um rol de dinheiro sublimado numa muito pequena conta no banco.
      O Esforço fazia sucesso, sim, fazia sucesso. Mas não um sucesso estrondoso. Nas noites de chuva, Woodhouse não se dispunha a arrastar-se até Lumley. E então Lumley era um daqueles lugares deprimidos e negativos na face da terra que não tinham influência nenhuma. Naquela região de montes aguçados com belos cumes, e de vales e canais profundos e bastante tristes, eram os lugares sobre os cumes, como Woodhouse, Hathersedge e Rapton, que floresciam, enquanto os tristes lugares ao longo dos canais existiam somente para o trabalho, não para a vida e para o prazer. E fora exatamente ali que James estabelecera sua empresa; ali naquele estagnante pó e bolor de olarias e fundições, onde nenhuma ilusão podia florescer.
      Sonhara com casa cheia todas as noites e com preços altos. Mas não havia probabilidade de se cogitar em aumentar os preços. Tivera de marcá-los mais baixos do que os do Império de Woodhouse. Era definitivamente mais reles. Sua esperança agora residia na linha férrea que estava sendo construída de Knarborough através da região - escura região, na verdade - através de Woodhouse e Lumley e Hathersedge, até Rapton. Quando essa linha férrea estivesse funcionando haveria mais rapazes e moças na fila do que então. Assim, ele abria as asas de arco-íris em direção ao futuro e começava a dizer:
      - Quando o trem funcionar, hei de comprar uma máquina nova e lentes melhores, e aumentarei a instalação.
      Mr. May não falava de negócios com Alvina. Era terrivelmente discreto a respeito de negócios. Mas disse-lhe uma vez, no princípio do ano que se seguiu à inauguração:
      - Qual é sua opinião sobre o que estamos fazendo, Miss Houghton?
      - Estamos fazendo hoje o que fizemos no princípio, me parece - disse ela.
      - Sim - respondeu ele. - Sim. É verdade. É perfeitamente verdade. Mas então? Parece que eles gostam dos programas.
      - Também me parece - concordou ela. - Parece-me que gostam, quando comparecem. Mas é engraçado, parece que já não querem vir. Eu bem vejo que falam de nós como se fôssemos de segunda categoria. E só vêm porque não podem ir ao Império ou a Hathersedge. Somos uns tapa-buracos. É isso o que somos.
      Mr. May olhou para o chão. Ergueu para ela os olhos azuis, desditoso e espantado. A falência começava a
assustá-lo vergonhosamente.
      - Qual é a razão disso? - perguntou ele.
      - Não creio que gostem das variedades - replicou ela.
      - Mas repare como as aplaudem! Repare como ficam contentes!
      - Bem sei. Bem sei que gostam quando estão lá e as vêem. Mas não voltam. Enchem o Império... e o Império agora só passa fitas, e custam mais barato.
      Ele a fitava tristemente.
      - Não creio que só gostem de fitas. Não creio que só queiram coisas na tela - dizia, lisonjeador e desditoso. Ele próprio não se interessava pelos filmes. O seu interesse era ainda o interesse humano pelos atores vivos e pelas proezas vivas dos mesmos. - Por que é - continuava ele - que o público fica sempre muito mais excitado depois de um bom número de variedades do que depois de um filme, seja ele qual for?
      - Bem sei que é assim - dizia Alvina. - Mas não me parece que eles gostem de ser excitados assim.
      - Assim, como? - perguntou Mr. May lamentosamente.
      - Pelas coisas que os artistas fazem. Parece-me que têm ciúmes.
      - Oh! Isso não tem pés nem cabeça! - explicou Mr. May, sobressaltando-se como se tivesse sido alvejado com um tiro. Depois, pôs a mão no braço dela. - Perdoe se sou rude! Bem sabe que eu não queria sê-lo! Mas você quer dizer que esses mineiros estúpidos e essas moças das fábricas têm ciúmes das coisas que os artistas fazem, porque não são capazes de
fazê-las?
      - Decerto que sim - concordou Alvina.
      - Mas eu não posso acreditar nisso - disse Mr. May, fazendo com a boca um esgar de amuo e sorrindo para ela como se ela fosse uma criança caprichosa. - Em que conceito tão baixo você tem a natureza humana!
      - Tenho? - riu Alvina. - Eu nunca havia notado isso. Mas tenho certeza de que o público rústico daqui tem ciúmes, se alguém faz qualquer coisa ou tem qualquer coisa que ele não pode ter.
      - Não creio nisso - protestava Mr. May. - Quem é que pode ser assim tão pateta! E se é assim, por que não há de ter ciúmes das coisas extraordinárias que se fazem nos filmes?
      - Porque não vêem gente de carne e osso. Tenho a certeza de que é assim. O filme é só fotografias, como fotografias no Daily Mirror. E as fotografias não têm sentimentos diversos dos do público. Falo dos sentimentos do público que as vê. E é por isso que gosta delas. Porque o faz sentir que é alguma coisa.
      - As fotografias fazem os mineiros e as moças sentirem que são alguma coisa? Mas como? Por que os identifica com os heróis e heroínas da tela?
      - Sim... o público toma aquilo tudo para si, e nada mais existe senão ele. Sei que gosta disso. É porque ele próprio se pode derramar pelo filme e porque não pode fazê-lo por um ator vivo. É contra o próprio ator. E o odeia.
      Mr. May contemplou-a longa e tristemente.
      - Não acredito que o público seja assim! O público sadio! - disse ele. - Repare, para mim todo o prazer está
na personalidade viva, na curiosa personalidade do
artista. É aquilo de que mais gosto.
      - Bem sei. Mas é porque o senhor é diferente deles.
      - Não estou entendendo. Que quer você dizer? Quer dizer que são mais inteligentes?
      - Não, mas são mais modernos. O senhor gosta de coisas que não encontra em si. Mas eles não. Odeiam admirar tudo o que não possam aplicar a si próprios. Odeiam tudo o que não seja eles próprios. E é por isso que gostam de fitas. É tudo para eles, sempre como eles próprios são.
      Ele estava ainda embaraçado.
      - Sabe, não estou entendendo bem o que você diz - disse ele, um pouco escarninho, como se ela estivesse sendo ridícula.
      - Porque não os conhece. O senhor não conhece o público vulgar. Não sabe como ele é presunçoso.
      Ele a fitou um longo tempo.
      - E acha que devemos abolir as variedades e passar apenas filmes, como o Império? - disse ele.
      - Parece-me que seria melhor - volveu ela.
      - E é mais barato - respondeu ele. - Mas então! É tão chato! Oh, palavra de honra, é tão chato. Não me parece que poderia suportar isso.
      - E as nossas fitas não são suficientemente boas - dizia ela. - Devíamos arranjar uma máquina nova e gastar dinheiro com filmes mais caros. Nossos filmes dão sono e as cópias estão muito usadas.
      - Mas são decerto suficientemente boas - disse ele.
      Era assim que estava a questão. O Esforço dava para
as despesas e deixava uma margem de lucro pequena, não mais. À primavera seguiu-se o verão, e então houve uma muito vaga margem de lucro. Mas James não estava nada desanimado. Agora estava à espera dos trens, edificando esperanças, desde que não podia construir com tijolo e cal.
      Os trabalhadores atarefavam-se aos magotes ao longo da estrada de Knarborough e na vertente de Lumley. Alvina habituara-se completamente a eles Quando descia a colina, pouco depois das seis da tarde, encontrava-os descansando. Alguns deles lhe agradavam. Tinham o aspecto de presos dando voltas no pátio... alguns deles; e notava um certo jogo de cabeças que a assustava, porque a fascinava. Havia um rapaz alto, de faces vermelhas, e cabelo louro, que tinha o ar de quem afrontava os mares e o sol do Ártico. Ele a olhou. Conheciam-se bem, por passarem um pelo outro. E ele olhou de lado o arrogante Mr. May. Alvina procurava sondar o que significaria o olhar do rapaz. Perguntava a si própria o que ele pensaria de Mr. May.
      Ficou surpreendida ao ouvir a opinião de Mr. May sobre o operário.
      - É um belo rapaz, sim senhor - exclamou seu companheiro, ao passarem pelos trabalhadores. E todos os três se voltaram e viram que os outros três se tinham voltado.
Alvina riu e lançou um olhar significativo. Naquele momento, de bom grado iria com o trabalhador. Começava a se aborrecer com os modos presunçosos de Mr. May.
      De uma maneira geral, Alvina gostava do cinema e da vida que este lhe trazia. Aceitava-a. E começou a vulgarizar um pouco suas maneiras. Estava dédassée: saíra inteiramente de sua classe. As outras filhas de respeitáveis comerciantes a evitavam agora, ou lhe falavam apenas de longe. Supunha-se que ela "andava" com Mr. May.
      Alvina não se importava. Até gostava daquilo. Gostava de ser dédassée. Gostava de se sentir intrusa. Afinal, parecia estar no seu próprio meio. Ria-se para si mesma quando andava de cá para lá, de Woodhouse para Lumley, entre Manchester House e o Palácio dos Prazeres. Ria quando via os anúncios do teatro do pai colados em toda parte. Ria quando via os anúncios excitantes na Semana de Woodhouse. Ria quando sabia que todos os rapazes de Woodhouse a reconheciam e olhavam para ela como para as que lhes davam prazeres inferiores. Fora cortada da lista; e gostava disso.
      Porque, no fim de tudo, divertia-se bastante com isso. Não havia apenas a atividade contínua. Havia os artistas. Todas as semanas ela conhecia um novo grupo de estrelas... três ou quatro em regra. Ensaiava com elas às tardes de segunda-feira e via-as todas as noites e em matinês, duas vezes por semana. James agora dava representações todas as noites, e sempre tinha algum público. Assim, Alvina tinha oportunidade de entrar em contato com toda aquela gente singular de teatro de segunda classe. Achava que quase todos eram do mesmo tipo: um pouco insolentes, um pouco maliciosos em geral, indiferentes à moral comum, e filósofos apesar de irritáveis. Eram freqüentemente muito irritáveis. E tinham sempre certo fundo de filosofia endurecida. Alvina não gostava deles... nenhum de nós se julga, na verdade, profundamente emocionável por eles. Mas ela achava divertido vê-los a todos e conhecê-los a todos. Era tão diferente de Woodhouse, onde tudo era medido e rotulado! Aquela gente era nômade. Não se preocupavam nada com o saber quem somos ou quem não somos. Tinham uma vaidade profissional muito irritável, e era tudo. Era muito interessante observá-los. Não eram muito delicados. Se os rapazes gostavam de espreitar à volta da cortina quando a artista estava de calcinhas, oh, sim, ela talvez os insultasse, mas ninguém se importava. O fato de as senhoras usarem calças e meias de seda preta não impressionava a ninguém, como não impressionavam as tintas de maquilagem e os bigodes falsos. Tudo aquilo fazia parte da profissão. Quanto à imoralidade... bem, o que havia de fato? Não grande coisa. A maioria dos homens se interessavam muito mais por uma gota de uísque do que por qualquer vício mais carnal, e a maioria das moças eram companheiras umas das outras; os homens estavam ali apenas para trabalhar com
elas; mesmo se a cena fosse uma farsa de amor íntimo de inconveniente enredo. Qual a novidade? Ninguém podia se excitar com aquilo; ninguém, em regra geral.
      Mr. May ordinariamente reservava quartos para os artistas numa casa de Lumley. Quando vinha alguém mais importante, dirigia-se a uma viúva mais decente de Woodhouse.
Nunca deixava Alvina se ocupar de tais arranjos, exceto com
a viúva de Woodhouse, que há muitos anos fora criada em Manchester House e mesmo agora vinha ainda fazer a limpeza.
      Eram pessoas extravagantes, excêntricas, aqueles atores. Muitos tinham uns laivos de imaginação, e muitos bebiam. Muitos eram de idade madura. Muitos tinham maneiras abstratas; na vida ordinária, pareciam um tanto fora do mundo. Singulares, estranhas criaturas, freqüentemente um tanto deprimidas, sentindo que a vida se lhes escapava. O cinema os matava.
      Alvina teve um namoro muito sério com um homem que tocava flauta e clarineta. Ele por volta dos cinqüenta anos, ainda firme e demasiado corpulento. Quando não embriagado,
era de uma completa reserva. Quando alto, falava numa maneira encantadora e divertida... Oh, encantadora! Alvina quase o amou. Mas, ai, ele bebia tanto! Mas como ele era insinuante! Foi-se e ela não o viu mais.
      Um outro, de aspecto americano vulgar, sem barba,
levemente meloso, deixou Alvina inteiramente fria, ainda
que fosse de uma amável e verdadeiramente cavalheiresca galanterie. Era muito amável. Mas muito antipático. Alvina se sentia mais fascinada pelo peixe extraordinário; como a dama que fazia coisas maravilhosas com seis furões ou o japonês todo tatuado e que tinha os mais espantosos e fortes pulsos, a ponto de poder deitar abaixo qualquer mineiro com uma volta da mão. Curiosas modas aquelas!... Mas um bocadinho longe dela. Examinava-as a distância. Desejava transpor de um salto a distância. Particularmente com o japonês, que ficava quase inteiramente nu, mas vestido com a mais esquisita tatuagem.
Nunca esqueceria a águia que voava com as asas horrivelmente abertas entre os ombros dele, ou o estranho e confuso desenho que envolvia o redondo das nádegas. Não era muito alto, mas bem proporcionado e sem um pêlo no corpo liso e tatuado. Era quase azul... isto é, a tatuagem era azul, com traços de vermelho brilhante; como por exemplo, à volta dos mamilos e numa estranha mandíbula vermelha de serpente por cima do umbigo. Uma serpente seguia em volta dos rins e das ancas. Ele lhe contou quantas vezes tivera o sangue envenenado, durante os trabalhos da tatuagem. Era uma criatura bizarra, de olhos negros, com um ar silencioso e uma lubricidade de
sapo. Assustava-a. Mas quando estava vestido com trajes comuns e era um japonês europeu feito às pressas e com ar de impostor, era ainda mais assustador. Porque a cara (não era tatuado além de certo ponto sob o pescoço) era amarela, chata e queimada, com um olho aberto como qualquer serpente idosa. Parecia que ele estava sempre sorrindo horrivelmente: lascivo, inimaginável. Ele era um estranho espetáculo em Woodhouse, numa manhã de sol; um refugo do Oriente, de aspecto impostor, com os tacões gastos. Quem poderia ter imaginado a águia terrível dos seus ombros, a serpente dos seus rins, aquela pele flexível e mágica?
      O verão passou mais uma vez, e o outono. O inverno era
o melhor tempo para James Houghton. Além disso, os trens começariam a funcionar em janeiro.
      Ele queria arranjar um bom programa para a semana
em que os trens começassem a funcionar. Mr. May preparou-o com bastante antecedência. Um dos números era a troupe
Natcha-Kee-Tawara. A troupe Natcha-Kee-Tawara era constituída por cinco pessoas, Madame Rochar e quatro rapazes. Eram oficialmente uma troupe de índios peles-vermelhas. Mas um dos jovens, suíço-alemão, era um famoso cantor à moda tirolesa,
e outro, o suíço-frances, era um bom cômico de pronúncia francesa, ao passo que a "Madame" e o alemão faziam uma movimentada farsa de duas pessoas. O grande número, sem dúvida, era a cena indígena dos natcha-kee-tawaras
      Os Natcha-Kee-Tawaras estavam anunciados para a terceira semana de janeiro, vindos das Potteries na tarde de domingo. Quando Alvina regressou da igreja nessa tarde, encontrou a viúva, Mrs. Rollings, sentada na sala conversando com James, que tinha um ar impaciente. Desde a abertura do Palácio dos Prazeres que James freqüentava menos a igreja. E além disso estava ficando velho e trêmulo, e a única tarde em que podia gozar de tranqüilidade era a de domingo. Acrescente-se que nessa especial e sombria noite de domingo chovia e nevava tristemente lá fora e James estava já um pouco gripado, e assim parece que ele fazia bem em ficar em casa.
      Mrs. Rollings, sentada, acariciava uma garrafa. Tinha que ir à farmácia buscar um xarope contra a gripe porque a Madame apanhara uma grande gripe. O farmacêutico fora para a igreja, e não abriria a farmácia antes das oito.
      Madame e os quatro rapazes haviam chegado por volta das seis. Madame, dizia Mrs. Rollings, era uma mulher baixa e gorda, e lamentava-se constantemente por ter apanhado uma inflamação no peito, levando a mão até ele, experimentando
a respiração e fazendo "Ha-a-ar! Harr!" para ver se podia respirar convenientemente. Ela, Mrs. Rollings, sugerira que Madame metesse os pés em água quente com mostarda, mas Madame dizia que devia tomar qualquer coisa para desafrontar o peito. Os rapazes eram quatro belos e delicados camaradas. Gostavam evidentemente de Madame. Madame insistira em cozinhar costeletas para os rapazes. Ela própria comera uma, mas pusera a mão no peito ao engoli-la. Um dos rapazes saíra para arranjar um pouco de aguardente e voltara trazendo também meia dúzia de grandes garrafas de cerveja.
      Mr. Houghton estava muito interessado na gripe de Madame. Fazia repetidamente as mesmas perguntas para ver e saber se aquilo era grave. Mas Mrs. Rollings não parecia
saber grande coisa. James franziu a testa. Imagine se Madame não pudesse trabalhar! Estava muito inquieto.
      - Acha que poderá ir com Mrs. Rollings ver como ela está, Alvina? - disse ele à filha.
      - Julgo que o senhor não quererá que Alvina saia de casa numa noite assim - disse Miss Pinnegar. - E além disso, não é correto. Onde está Mr. May? São coisas que lhe competem.
      - Oh! - retrucou Alvina. - Não me importo de ir. Esperem um pouco. Vou ver se ainda temos pastilhas contra a febre.
Se for muito grave, posso fazer uma cataplasma, como as que fazia para mamãe.
      E correu ao andar de cima. Estava ansiosa por ver como eram Madame e os quatro rapazes.
      Com Mrs. Rollings bateu à porta dos fundos da farmácia
e depois ambas correram na chuva até a casa da viúva. Não era longe. Ao chegarem à porta de entrada ouviram o barulho de vozes. Mas na cozinha tudo estava calmo. As vozes vinham da sala da frente. Mrs. Rollings bateu.
      - Entre! - disse uma voz com o seu quê de aguda. Alvina entrou.
      - Trago-lhe o xarope - falou a viúva. - E veio também Miss Huff'n, para ver como a senhora está.
      Os quatro rapazes estavam sentados ao redor da mesa,
em mangas de camisa, com garrafas de cerveja à frente. Havia muita fumaça de cigarros. Junto do lume, que ardia vivamente, estava sentada uma roliça e pálida mulher, de olhos negros e brilhantes e de sobrancelhas bem-desenhadas: tanto podia ter quarenta como cinqüenta anos. Havia fios grisalhos na sua bem-cuidada cabeleira escura. Estava vestida de maneira simples, com um vestido preto bem-talhado e uma pequena gola de renda. Tinha na face um ligeiro ar de comiseração por si própria. Segurava um cigarro nos dedos desfalecidos.
      Ergueu-se com dificuldade e estendeu a mão gorda, onde se mostravam quatro ou cinco anéis. Deixou cair o cigarro aceso para dentro da lareira.
      - Muito prazer - disse ela. - Não fixei seu nome. - A voz de Madame estava agora um pouco queixosa e lamurienta, como uma flauta de bronze vibrando, fúnebre.
      - Alvina Houghton.
      - Filha do dono do teatro onde vão trabalhar - interpôs a viúva.
      - Ah! Sim! Sim! Compreendo, Miss Houghton. Não sabia como se dizia. Huffton... não é? Miss Houghton. Apanhei uma grande gripe... - e punha a mão gorda e cheia de anéis no peito gordo. - Mas deixe-me apresentar-lhe meus rapazes...
- Uma ondulação da mão gorda, cujo dedo indicador estava levemente amarelecido pelo cigarro, em direção à mesa.
      Os quatro rapazes levantaram-se e olharam Alvina e Madame. A sala era pequena e bem vazia, com sofás de crina
e protetores de renda branca, e chão de oleado. A mesa
estava também coberta com um oleado americano em cores berrantes, lustroso mas limpo. Um bico de gás nu pendia do teto. Como mobília, havia apenas cadeiras, cadeiras de braços, a mesa e um canapé com renda na altura da cabeça. Contudo, a salinha parecia apinhada... cheia de gente, de rapazes com elegantes coletes e gravatas, mas sem os casacos.
      - Este se chama Max - disse Madame. - Digo-lhe só os nomes, e não os sobrenomes, porque é mais fácil para você...
      Entretanto, Max curvara-se. Era um suíço alto, de olhos amendoados e rosto achatado, figura rígida e constrangida.
      - Este se chama Louis... - Louis curvou-se galantemente. Era um suíço-francês, regularmente alto, de malares proeminentes e com uma mecha de lustroso cabelo negro
caindo-lhe sobre as fontes.
      - Este é Géoffroi... Geoffrey... - Geoffrey fez a sua vênia; um homem de largos ombros, paciente e taciturno, originário da França alpina.
      - E este é Francesco... Frank... - Francesco contraiu levemente o lábio num meio sorriso, como se sem querer a cumprimentasse à maneira militar. Era moreno, alto e desengonçado e de olhos amarelo-bronze. Era italiano do
sul. Madame olhou para ele outra vez. - Ele não gosta do
nome em inglês, Frank. Como vê, fez uma careta. Não gosta.
Chamamos-lhe também Cicio... - Mas Cicio baixava a cabeça timidamente, com o mesmo débil sorriso no rosto, uma meia careta, e inclinava-se para a cadeira, querendo se sentar.
      - É a minha família de rapazes - dizia Madame. - Somos de três raças, embora só Cicio não seja das nossas montanhas. Não quer se sentar?
      Todos se sentaram. Houve um silêncio.
      - Os meus rapazes bebem um pouco de cerveja, depois dessa viagem horrível. Em regra, não gosto que eles bebam. Mas hoje vá lá. Eu não tomo porque tenho medo que me faça
mal à garganta. - Punha a mão no peito e respirava longa e dificilmente. - Eu sinto. Eu sinto aqui. - Batia no peito.
- Tenho receio de amanhã. Não quer tomar um copo de cerveja? Cicio, vá buscar outro copo... - Cicio, no extremo da mesa, não se levantou, mas olhou para Alvina como se presumisse que não haveria necessidade de se mexer. O estranho e arrogante arrepanhamento do lábio persistia. Madame olhou-o com severidade. Mas ele voltou para o lado dela o belo perfil com um tênue ar de troça.
      - Não, obrigada. Nunca bebo cerveja - apressou-se Alvina a dizer.
      - O quê? Nunca? Oh! - Madame cruzou as mãos, mas seus olhos negros arremessavam ainda veneno a Cicio. Os outros rapazes pegaram os copos, puseram os cigarros na boca e sopraram a fumaça sob o nariz.
      Madame fechou os olhos e inclinou-se para trás um momento. A face tinha um aspecto transparente e pálido, havia círculos escuros sobre os olhos, os cabelos bem-cuidados
brilhavam como vidro negro por cima das orelhas. Evidentemente não estava bem. Os rapazes olharam para ela e cochicharam uns para os outros.
      - Quer me parecer que está muito gripada - falou Alvina. - Posso ver se tem febre?
      Madame teve um arrepio e ficou com ar de susto.
      - Oh, não vale a pena incomodar-se - disse ela. Max, o suíço alto e vivo, voltou-se para ela e disse:
      - Sim, deve-se tirar a temperatura para se saber o que é. Quando estivemos em Redruth tive quarenta graus.
      Alvina tirara o termômetro do bolso. Cicio, entretanto, balbuciara qualquer coisa em francês, evidentemente qualquer coisa de inconveniente, a Max.
      - Que hei de fazer se não puder trabalhar amanhã?
- gemeu Madame ao ver Alvina erguer o termômetro para a luz.
- Max, que havemos de fazer?
      - Fique na cama e nós levaremos a cena do Prisioneiro branco - disse Max, em stacatto e compenetrado.
      Cicio contraiu o lábio e deixou cair a cabeça para o lado. Alvina caminhou para Madame com o termômetro. Madame ergueu a mão gorda e afastou Alvina, enquanto fazia esta última declaração:
      - Nunca... nunca faltei ao trabalho, um dia sequer, durante dez anos. Nunca. Se tenho de ficar abandonada, será melhor morrer de uma vez.
      - Ficar abandonada! - exclamou Max. - Bem sabe que não ficaria assim. Que é que quer dizer?
      - Ponha o termômetro - disse Geoffrey, brusco mas afetuoso.
      - Amanhã, vai ver, estará boa. Com certeza! - falou Louis. Madame meneou tristemente a cabeça, abriu a boca e atirou-se para trás, com os olhos fechados e a ponta do termômetro saindo comicamente de um canto dos lábios. Entretanto, Alvina tomara-lhe o pulso gordo e branco e contava as pulsações.
      - Podemos levar... - começou Geoffrey.
      - Ah! - disse Max, levantando um dedo e olhando ansioso para Alvina e para Madame, que continuava inclinada para
trás com a ponta do termômetro airosamente saindo da boca franzida, as faces empalidecidas.
      Max e Louis aguardavam ansiosamente. Geoffrey deitava fumaça pelo nariz, enquanto Cicio acendia indiferente outro cigarro, riscando um fósforo no salto do sapato e deitando baforadas pela ponta de seu nariz bastante comprido. Depois, tirou o cigarro da boca, voltou a cabeça, cuspiu vagarosamente no chão, e pisou o cuspe com o pé. Max bateu as pálpebras e tomou um ar desdenhoso, murmurando qualquer coisa sobre "em schmutziges italienisches Volk", ao mesmo tempo que Louis, recusando-se quer a ver, quer a ouvir, deu forma com os lábios à palavra "chien".
      Depois, rápidos como um raio, ambos dispensaram de novo sua atenção a Madame.
      A temperatura era de quase quarenta.
      - A senhora estaria melhor na cama - disse Alvina. - Já comeu alguma coisa?
      - Quase nada - respondeu Madame lamentosamente.
      Max continuava sentado, pálido e impressionado. Louis correra a pegar a mão de Madame. Beijou-a rapidamente, depois voltou o rosto para o lado por causa das lágrimas nos olhos. Geoffrey bebia cerveja em grandes goles e Cicio, de cabeça inclinada, olhava por sob as sobrancelhas.
      - Vou num salto chamar um médico... - falou Alvina.
      - Não. Isso não, minha menina! Não faça isso! Eu apanho febre com facilidade...
      - É afeita à febre - murmurou Louis pateticamente. - Vou para a cama - disse Madame, levantando-se, obediente.
      - Espere um momento. Vou ver se há lume no quarto
- disse Alvina.
- Oh, é muito amável. Abra a porta para ela, Cicio... Cicio dirigiu-se à porta, mas era muito tarde. Max
apressara-se a deixar Alvina sair. Madame deixou-se cair na cadeira.
      - Nunca durante dez anos - lamentava-se ela. - Quoi faire, ah, quoi faire! Que ferez-vous, mês pauvres, sans votre Kishwégin. Que vais-je faire, mourir dans un tel
pays! La bonne demoiselle... la bonne demoiselle... elle a du coeur. Elle pourrait aussi être belle, s'il y avait un peu plus de chair. Max, liebster, schau ich sehr elend aus? Ach, oh jeh, oh jeh!
      - Ach nem, Madame, ach nein. Nicht, so furchtbar elend
- disse Max.
      - Manca il cuore solamente al Cicio - gemeu Madame.
- Che natura povera, senza sentimento... niente di bello. Ahimé, che amico, che ragazzo duro, áspero...
      - Trova? - disse Cicio, com uma contração do lábio. Comportava-se, ao abaixar as pestanas longas e belas, como
se tivesse chorado por tudo aquilo, como se não se tivesse limitado a portar-se mal até então.
      Assim, Madame se lamentava em quatro línguas, enquanto, pálida, repousava num sofá. Normalmente, apenas falava francês com os rapazes. Mas aquela era uma ocasião especial
      - La pauvre Kishwégin! - murmurava Madame. - Elle vá finir au monde. Elle passe... la pauvre Kishwégin.
      Kishwégin era o nome de pele-vermelha de Madame, o nome sob o qual ela dançava a dança do fogo da squaw.
      Agora que sabia que estava doente, Madame parecia adoecer ainda mais. A respiração vinha em pequenos arquejos. Doía-lhe um lado. Um rubor de febre parecia lhe subir às faces. Os quatro rapazes estavam extremamente preocupados. Louis não ocultava as lágrimas. Somente Cicio conservava o leve sorriso nos lábios, aumentando a dor e o mal-estar de Madame.
      Alvina voltou para conduzi-la ao quarto. Todos os rapazes se levantaram e beijaram a mão de Madame quando ela saiu, aquela pobre mão cheia de jóias que estava vagamente
perfumada com água-de-colônia. Deu boa-noite a cada um deles.
      - Boa noite, meu fiel Max, tenho confiança em você. Boa noite, Louis, coração terno. Boa noite, valente Geoffrey. Ah, Cicio, não aumente os meus cuidados. Sejam bons braves, todos, sejam irmãos em harmonia. Uma oraçãozinha pela pauvre Kishwégin. Boa noite!
      Depois dessa despedida, subiu vagarosamente a escada, pondo a mão no joelho a cada degrau, com esforço.
      - Não... não - dizia ela a Max, que queria ajudá-la.
- Não suba. Não... não!
      O quarto estava em ordem e limpo.
      - Esta noite - lamentou ela - não posso ver se os quartos dos rapazes estão em ordem. A gente não pode se fiar neles. Precisam de um olho que os guie; sobretudo Cicio; sobretudo Cicio!
      Deixou-se cair junto do lume e começou a tirar o vestido.
      - Podia me deixar ajudá-la - falou Alvina. - Eu fui enfermeira.
      - Ah, é muito gentil, muito gentil, minha menina. Eu sou uma velha mulher solitária. Não estou habituada a atenções. É melhor deixar-me.
      - Deixe-me ajudá-la.
      - Ai de mim, ahimé! Quem haveria de dizer que Kishwégin precisaria de ajuda! Dancei ontem à noite com os rapazes no teatro de Leek; e esta noite tenho de me meter na cama em... como se chama esta terra, minha menina? Não consigo
lembrar-me.
      - Woodhouse - disse Alvina.
      - Woodhouse! Woodhouse! Não há alguma coisa chamada Woodhouse? Parece-me que sim. Uff, horrível!! Mas horrível por quê?
      Alvina depressa despiu a gorda e bem-vestida mulherzinha. Parecia muito mole. Alvina não era capaz de entender como ela podia ser no palco uma dançarina vigorosa.
Mas a moleza de Madame podia transmudar-se em selvagem energia, repentino poder convulsivo, como num molusco. Alvina escovou a longa cabeleira negra e deu-lhe um arranjo ligeiro. Depois, meteu Madame na cama.
      - Ah - suspirou Madame -, a caminha! A caminha! Mas frio... está muito frio. É capaz de pendurar o vestido e de dobrar as meias, minha menina?
      Alvina rapidamente dobrou e pôs de lado a elegante roupa-branca. Madame era uma mulher estranha e elegante... até mesmo nas ligas tecidas em preto e ouro.
      - Pobres rapazes... sem Kishwégin! Parece-lhe que devo mandar vir um padre, menina? Um padre? - disse Madame batendo os dentes.
      - Um padre! Oh, não! Vai ficar melhor logo que se aqueça. Isso não passa de um resfriado. Mrs. Rollings está aquecendo um cobertor...
      Alvina correu ao andar de baixo. Max abrira a porta da sala de visitas e esperava, ouvindo o barulho dos passos. Tinha cerrados os punhos ossudos por baixo das mangas largas, suas sobrancelhas estavam tragicamente erguidas.
      - Está muito doente? - perguntou.
      - Não sei. Mas não me parece. Poderia aquecer o cobertor enquanto Mrs. Rollings faz um mingau?
      Max e Louis ficaram aquecendo cobertores; as calças de Louis eram talhadas justas na cintura e lhe davam um ar feminino.
      Max era desempenado e firme. Mrs. Rollings chamou Geoffrey para encher os baldes de carvão e levar um ao andar de cima. Geoffrey obedientemente saiu para o alpendre de carvão com uma lanterna. Em seguida, foi transportar lá para cima o sofá de crina.
      - Tenho de ir em casa buscar umas coisas - falou Alvina a Cicio. - Quer vir comigo para traze-las?
      Ele se levantou e com um movimento atirou fora o cigarro. Não olhava para Alvina. As belas sobrancelhas pareciam defender-lhe os olhos. Era razoavelmente alto,
mas frouxamente constituído para um italiano, de ombros ligeiramente caídos. Alvina reparou na trigueira e delgada mão mediterrânea, quando ele levou os dedos aos lábios. Era uma mão como ela nunca vira, preênsil, meiga e escura. Com
um estranho e gracioso meneio, ele foi ao corredor buscar o casaco.
      Não disse palavra, antes se manteve a distância enquanto caminhava ao lado de Alvina.
      - Tenho pena de Madame - disse Alvina, apressando-se esbaforida através da noite. - Ela pensa muito em vocês.
      Mas Cicio não se dignava a responder e caminhava com as mãos nos bolsos do impermeável, encolhendo-se por causa do mau tempo.
      - Tenho receio de que ela não possa dançar amanhã
- disse Alvina.
      - Parece-lhe que não poderá? - disse ele.
      - Tenho quase certeza de que não.
      Depois do quê ele nada mais disse e Alvina guardou também silêncio até chegarem à ruela escura e ao pátio atulhado, nos fundos da casa.
      - Acho que você não deve estar vendo absolutamente nada - disse ela. - É por aqui. - Tateou no escuro e encontrou a mão tateante dele.
      - Por aqui - disse ela.
      Curioso, como era leve a pressão de seus dedos... quase como o contato de uma criança. Assim chegaram à claridade da janela da sala de visitas.
      Alvina entrou correndo, e o rapaz a seguiu.
      - Tenho de ficar com Madame esta noite - explicou ela apressadamente. - Está com febre, mas pode se livrar dela
se conseguirmos fazê-la suar. - E Alvina subiu as escadas correndo para juntar as coisas necessárias. Cicio ficou fora, junto da porta, e respondeu a todos os convites de Miss Pinnegar para vir para o lume com um aceno de cabeça e um ligeiro sorriso, envergonhado e estúpido.
      - Mas entre e se aqueça antes de ir para a rua outra vez - disse Miss Pinnegar olhando para o homem, enquanto ele inclinava a cabeça a distância. Este mexeu ainda a cabeça negativamente, mas por fim abriu a boca.
      - Fica mais frio depois - falou ele, mostrando os dentes num leve e estúpido sorriso.
      - Oh, está bem, se julga assim - disse Miss Pinnegar, irritada. Não conseguiu nada dele e não tentou mais.
      Quando voltaram, Madame delirava e falava excitadamente da sua dança, dos seus rapazes. Os três rapazes estavam aterrorizados. Tinham aquecido os cobertores a um calor ardente. Alvina espalhou os emplastros e aplicou-os no lado em que Madame tinha dor. Como ela se assemelhava a uma criança de pele branca, doce e gorda! A dor significava uma ponta de pleurisia, seguramente. Os homens rondavam do lado de fora. Alvina envolveu a pobre doente nos cobertores quentes, meteu-lhe umas poucas colheradas de mingau quente e uísque pela garganta abaixo, prendeu-a à cama, baixou a luz e mandou os homens embora. Depois, sentou-se, velando. Madame se irritava, gemia, murmurava, cheia de febre. Alvina a acalmava e punha suas mãos para dentro das cobertas. E por fim a pobre mulher aquietou-se. Tinha a testa ligeiramente
molhada. Caiu num sono tranqüilo, transpirando abundantemente. Alvina continuou velando; acalmava-a quando ela repentinamente se sobressaltava e começava a afastar
os cobertores; aquietava-a, puxava-a delicada e firmemente para baixo, envolvia-a bem e fazia-a submeter-se à transpiração contra a qual, em sobressaltos convulsivos, ela lutava e se batia, gritando que estava sufocando, que estava muito quente, muito quente.
      - Fique calma, fique calma - dizia Alvina. - A senhora precisa se manter quente.
      A pobre Madame gemia. Como ela odiava ferver no banho
da própria transpiração! A sua natureza voluntariosa se revoltava fortemente. Teria atirado para o lado os cobertores e aberto a boca ao ar frio, se Alvina não a puxasse para baixo com aquela doce e inevitável pressão.
      Assim, passaram as horas, até que por volta da uma hora a transpiração se tornou menos abundante e a doente ficou realmente melhor, realmente mais sossegada. Então, Alvina desceu ao andar de baixo por um momento. Viu luz ainda acesa na sala da frente. Bateu e entrou. Dentro, Max estava sentado junto do lume, imagem do infortúnio, com Louis em frente a ele, cabeceando de sono à força de ter chorado. No sofá, Geoffrey ressonava levemente, enquanto Cicio, sentado com a cabeça apoiada na mesa, os braços estendidos, dormia como um morto. De novo ela reparou nas ternas e trigueiras mãos mediterrâneas, nos pulsos delgados, delgados para um homem naturalmente musculoso.
      - Então não foram para a cama? - ciciou Alvina. - Por quê?
      Louis acordou. Max, o único teimoso que velava, abanou a cabeça lugubremente.
      - Ela está melhor - ciciou Alvina. - Transpirou. Está melhor, dorme sossegadamente.
      Max olhou espantado, com olhos redondos, brancos de sono, de coruja, pessimista e cético.
      - Sim - insistiu Alvina. - Venham vê-la. Mas não a acordem.
      Max tirou os chinelos e ergueu-se em toda a sua altura. Louis, como um frango assustado, fez o mesmo. Todos levaram os chinelos na mão. Sem barulho, entraram e espreitaram
furtivamente por sobre os cobertores amontoados. Madame repousava, com o aspecto um pouco ruborizado e bastante infantil, dormindo levemente, com uma madeixa de cabelos negros colada à face e os lábios ligeiramente abertos.
      Max observou-a por alguns momentos. Depois, bruscamente, endireitou-se, puxou para trás seu cabelo castanho, penteado à maneira alemã, e persignou-se, dobrando o joelho como perante um altar; persignou-se e dobrou o joelho uma vez mais; e pela terceira vez persignou-se e inclinou-se perante o altar. Depois, endireitou-se de novo e pôs-se de lado.
      Louis persignou-se também. As lágrimas corriam-lhe. Curvou-se e levou a ponta de um cobertor aos lábios, beijando-a reverentemente. Depois, cobriu a face com a
mão.
      Entretanto, Madame continuava dormindo leve e inocentemente.
      Alvina saiu. Max seguiu-a silenciosamente, conduzindo Louis pelo braço. Quando chegaram ao fundo da escada, Max e Louis se lançaram nos braços um do outro e se beijaram em cada uma das faces, gravemente, à maneira continental.
      - Está melhor - disse Max gravemente, em francês.
      - Graças a Deus - replicou Louis.
      Alvina testemunhava tudo isso com algum espanto. Os homens não lhe prestavam atenção. Max avançou e sacudiu Geoffrey, Louis pôs a mão no ombro de Cicio. Os dorminhocos
tinham dificuldade em acordar. Os acordados sacudiam os que dormiam, mas em vão. Por fim, Geoffrey começou a despertar. Mas em vão Louis erguia da mesa os ombros de Cicio. A cabeça e as mãos pendiam inertes. As compridas pestanas negras permaneciam imóveis, o comprido e fino nariz grego inspirava suave e regularmente, a boca continuava fechada. O seu estranho cabelo, belo e negro, era um pêlo denso, animal, e as mãos eram nuas, de aparência frágil, morenas. Tinha um anel de prata numa das mãos.
      Alvina repentinamente agarrou numa das mãos inertes que deslizou sobre a coberta da mesa quando Louis sacudiu os ombros do rapaz. Apertou a mão com força. Cicio abriu os olhos amarelo-bronze que pareciam ter sido cravados com um dedo sujo, como se costuma dizer, devido às pestanas e sobrancelhas sombrias. Estava muito embriagado pelo primeiro sono e não via nada.
      - Acorde - dizia Alvina, rindo, apertando de novo a mão dele.
      Ele levantou a cabeça uma vez mais, bruscamente prendeu a mão de Alvina, os olhos ganharam consciência, a mão afrouxou, reconheceu-a, deixou-se cair para trás na cadeira, voltando o rosto para o lado e baixando as pestanas.
      - Levante-se, animal - falou Louis devagar, em francês, puxando-o como os carreiros puxam às vezes os bois. Cicio se pôs de pé, cambaleando.
      - Ela está melhor - disseram-lhe. - Vamos para a cama.
      Pegaram as velas e marcharam para o andar de cima, fazendo cada um deles, ao passar, uma vênia a Alvina. Max solenemente, Louis galante, os outros dois rudes e enervados.
      Ocuparam as duas águas-furtadas.
      Alvina tirou a almofada do sofá e dormiu no chão em frente ao lume, no quarto de Madame.
      Madame dormiu bem e muito, mexendo-se e caindo no sono de novo. Eram oito horas quando fez a primeira pergunta. Alvina já estava levantada.
      - Oh... Alors. Afinal estou melhor, estou muito bem. Posso dançar hoje.
      - Hoje, não me parece - falou Alvina. - Mas talvez amanhã.
      - Não, hoje - disse Madame. - Quero dançar hoje, porque estou bem. Eu sou Kishwégin.
      - A senhora está melhor. Mas hoje deve ficar na cama. É isso mesmo... iria sentir-se fraca se tentasse ficar de pé.
      Madame observava a face magra de Alvina com olhos rabugentos.
      - A menina é inglesa: severa e materialista. Alvina estremeceu e olhou para ela com seus grandes olhos azuis.
      - Por quê? - Tinha um ar pálido, patético, uma espécie de heroísmo que Madame detestava, mas que agora achava tocante.
      - Ora - disse Madame, estendendo a mão gorda e cheia de anéis. - Ora, eu sou uma mulher ingrata. As pessoas não são boas para você, bem o vejo. Venha cá.
      Alvina caminhou vagarosamente para Madame e pegou na mão estendida, Madame beijou-lhe a mão, depois a aproximou de si e a beijou em cada uma das faces, gravemente, como os rapazes se tinham beijado uns aos outros.
      - A menina foi boa para Kishwégin e Kishwégin tem um coração que não esquece. Por isso, Miss Houghton, farei o que me disser. Kishwégin lhe obedecerá. - E Madame passou a sua mão pela de Alvina e inclinou a cabeça gentilmente.
      - Posso ver se tem febre?
      - Sim, minha amiga, pode. Pode mandar em mim, que
eu obedeço. - Assim Madame se inclinou no travesseiro, submissamente segurando o termômetro entre os lábios e
observando Alvina com seus olhos negros.
      - Está bem - falou Alvina quando olhou para o termômetro. - Normal.
      - Normal! - repetiu num eco a voz gutural de Madame.
- Bem! Então quando poderei dançar?
      Alvina voltou-se e olhou para ela.
      - Parece-me, falando a verdade - disse Alvina -, que não deve fazê-lo antes de quinta ou sexta-feira.
      - Quinta-feira! - repetiu Madame. - Disse quinta-feira? - Havia um tom de forte rebeldia na voz dela.
      - A senhora está tão fraca! Por pouco escapou de uma pleurisia. Eu só posso lhe dizer o que penso, não acha?
      - Ah! vocês, as inglesas - dizia Madame, observando-a com seus olhos negros. - Parece que gostam de se guiar apenas por si. Em tudo, guiar-se apenas por si. E em relação a toda a gente. Vocês são tão boas, guiam-se por si próprias. Sim, vocês, as boas inglesas. Quinta-feira. Está bem, será
quinta-feira. Então, até quinta-feira, Kishwégin não existe.
      E deixou-se cair, já bastante fraca, de novo sobre o travesseiro. Quando tomou o chá e se lavou, e o quarto foi arrumado, mandou chamar os rapazes. Alvina preveniu Max de que Madame deveria repousar tanto quanto possível naquele dia.
      Logo que o primeiro dos quatro rapazes apareceu, em mangas de camisa e em chinelos, à entrada da porta, Madame disse:
      - Ah, vocês estão aí, meus rapazes! Entrem! Entrem!
Não é Kishwégin quem lhes fala. Kishwégin não existe até
quinta-feira, como a demoiselle inglesa quer.
      Ofereceu a mão levemente perfumada com água-de-colônia (todo o quarto cheirava a água-de-colônia), e Max inclinou
a frágil espinha e beijou-a. Ela tocou-lhe a testa delicadamente com a outra mão.
      - Meu filho Max, meu amparo.
      Louis veio sorrindo com um ramo de violetas e de anêmonas cor-de-rosa. Colocou-as sobre a cama na frente dela e lhe tomou a mão, curvando-se e beijando-a reverentemente.
      - Está melhor, querida Madame? - disse ele, sorrindo largamente para ela.
      - Melhor, sim, gentil Louis. E melhor com as suas flores, coração cavalheiresco. - Levou as violetas e as anêmonas à face, com ambas as mãos, e depois galantemente
colocou-as de lado para estender a mão a Geoffrey.
      - O bom Geoffrey fará o que puder enquanto não há Kishwégin? - indagou ela quando o rapaz se inclinou para a cumprimentar.
      - Bien sûr, Madame.
      - Cicio, falta um botão no punho da sua camisa. Onde está a minha agulha? - Olhou em redor do quarto, enquanto Cicio lhe beijava a mão.
      - Quer alguma coisa? - perguntou Alvina, que não compreendera o francês.
      - A minha agulha, para pregar esse botão. Está aí, no saco de seda.
      - Eu prego - disse Alvina.
      - Obrigada.
      Enquanto Alvina pregava o botão, Madame falava com os rapazes, principalmente com Max. Deviam obedecer a Max, dizia ela, porque ele era o irmão mais velho. À noite, ensaiariam bem a cena do Prisioneiro branco. Deviam ensaiar com cuidado e deviam arranjar alguém que fizesse o papel da jovem, pois nessa cena ela não tinha praticamente nada a fazer, a jovem, mas apenas sentar-se e levantar-se. Miss Houghton... mas ah, Miss Houghton teria de tocar piano, não poderia fazer o papel da jovem. Outra, então.
      Enquanto a entrevista decorria, chegou Mr. May, cheio de preocupações com os negócios.
      - Não haverá cortejo! - gritou ele.
      - Ah, o cortejo! - gritou Madame.
      A troupe Natcha-Kee-Tawara, a pedido, assinalava a
sua entrada em qualquer cidade com um cortejo. Os rapazes
iam vestidos de braves peles-vermelhas e, comandados por Kishwégin, passeavam no dorso de cavalos pelas ruas principais. Cicio, que era excelente cavaleiro, tendo servido um conhecido marquês num regimento italiano de cavalaria, fazia um pouco de exibição.
      Mr. May estava muito interessado no cortejo. Tinha os cavalos prontos. A manhã estava levemente soalheira, depois do granizo e do mau tempo. E agora ia encontrar Madame na cama e os rapazes reunidos com ela.
      - Que grande infelicidade! - gritava Mr. May. - Que grande infelicidade!
      - Horrível! Horrível! - lamentava-se Madame, da cama.
      - Mas não há nada a fazer?
      - Há... o senhor pode fazer a cena do Prisioneiro branco... os rapazes podem fazê-la se arranjar a squaw, que nada tem a dizer. Ah, julgo que no fim das contas se arranjará.
      Alvina viu o ar irritado e exausto de Madame.
      - E se agora fossem lá para baixo? - disse Alvina. - Mr. May sabe o que há a fazer.
      E ela afugentou os homens para fora do quarto.
      - Tenho de me levantar. Não dançarei. Serei figurante. Mas tenho de estar lá. É demasiado horrível, demasiado horrível! - gemia Madame.
      - Não faça caso deles. Arranjar-se-ão sozinhos. Os homens são uns bebês... Deixe-os arranjar as coisas por si próprios.
      - Crianças... são todos crianças! - gemia Madame.
- Todos crianças! E assim, que vão eles fazer sem a velha gouvernante? Os meus pobres braves, que irão eles fazer sem Kishwégin? É demasiado horrível, demasiado horrível, sim. Pobre Mr. May... tão desapontado
      - Pois bem, deixe-o ficar desapontado - gritou Alvina, enquanto à força cobria Madame e a fazia ficar sossegada.
      - A menina é dura! É uma dura inglesa. Todas o mesmo. Todas o mesmo! - Madame calara-se, de mau humor e enfraquecida. Alvina movia-se sem barulho. E em poucos minutos Madame adormeceu de novo.
      Alvina desceu a escada. Mr. May estava ouvindo Max, que em alemão explicava em que consistia a cena do Prisioneiro branco. Mr. May passara sua infância numa escola alemã. Empertigava a cabeça para um lado e, pondo a mão no braço de Max, respondia-lhe num alemão extravagante. Os outros estavam calados. Cicio aparentava nada ouvir, mas fumava e olhava para os próprios pés. Louis e Geoffrey entendiam metade das coisas, Louis mexia a cabeça com ar de compreensão, enquanto Geoffrey pronunciava rápidos e ríspidos "Já! - Já! - Doch!
- Eben!" bastante despropositados.
      - Serei eu a squaw - gritou Mr. May em inglês, interrompendo e voltando-se para o auditório. Empertigou
a cabeça numa maneira ridícula, como um papagaio. - Serei
eu a squaw! Como se chama ela? Kishwégin? Eu serei Kishwégin! - E erguia a cabeça e faiscava cheio de importância.
      Os dois altos suíços olharam-no, sorrindo levemente. Cicio, sentado no sofá, com os braços sobre os joelhos,
girava a cabeça e observava o fenômeno Mr. May com impenetrável e inexpressiva atenção.
      - Vamos - disse Mr. May, inchando com aquela nova importância. - Vamos ensaiar esta manhã e faremos o cortejo
à tarde, exatamente quando os mineiros vão para casa. Aí está! O quê? Não é uma boa idéia? Bem! Vocês podem estar prontos dentro em pouco, agora?
      Olhava com excitação os rapazes. Eles mexiam a cabeça com lenta gravidade, como se já fossem braves. E foram calçar as botas. Depressa, eles marcharam para Lumley, Mr. May saltitando como um cavalinho de circo ao lado de Alvina, os quatro rapazes à frente.
      - Que lhe parece isto? - gritava Mr. May. - Salvamos a situação, hem? Não lhe parece? Não lhe parece que podemos nos felicitar?
      Foram encontrar Mr. Houghton agitando-se no teatro. Estava com cólicas por saber que Madame se encontrava doente.
      Max fez uma brilhante exibição de canções tirolesas.
      - Mas é preciso que eu lhes explique - vociferava Mr. May. - É preciso que eu lhes explique o que são as canções tirolesas.
      E, voltando-se para o teatro vazio, começou, estendendo a mão:
      - Nos altos Alpes da Suíça, onde as neves e os glaciares eternos reinam sobre deliciosos prados cheios de flores, se vos for dado acordar, como me foi dado a mim, em alguma solitária casa feita de madeira, entre as pastagens da montanha, vós... hã... vós... vejamos... se vós... não...
se tiverdes a sorte de passar a noite em alguma solitária casa feita de madeira entre as altas pastagens, a madrugada acordar-vos-á com uma selvagem e inumana canção, abrireis os olhos à primeira cintilação de gelados e eternos raios de sol, os vossos ouvidos ressoarão a um cantar sobrenatural, que não tem palavras nem significado, mas sons, como se algum deus selvagem do gelo estivesse cantando para si próprio ao vaguear entre os cumes da madrugada. Olhareis em frente por sobre as flores para a neve e vereis, muito ao longe, uma pequena figura de homem movendo-se pela grama. É um camponês cantando a canção da montanha, garganteando como alguém que erguesse a voz à borda das neves eternas, antes que a raça humana aparecesse.
      Durante essa oração, James Houghton esteve sentado com
a mão no queixo, devorado por amargo ciúme, avaliando a eloqüência de Mr. May. E sobressaltou-se quando Max, alto e formoso, então em traje tirolês, camisa branca e suspensórios verdes formando um quadrado, calções de camurça pespontados em verde e vermelho, bem-constituídos joelhos nus, tornozelos nus e pesados sapatos, cantou suas nativas árias tirolesas, em voz penetrante e perturbadora. Estava animado, ereto, bem disposto, impetuoso e com um ar montanhês. Havia no homem uma paixão impetuosa e gelada. Alvina começava a compreender a dependência de Madame por ele.
      Louis e Geoffrey representaram um diálogo-farsa, dois estrangeiros que roubam ao mesmo tempo uma bolsa lutam na
rua um com o outro, protestando que queriam entregá-la ao policial, Cicio, que assiste firme e ridículo. Mr. Houghton acenava com a cabeça, vagarosa e gravemente, como que a dar sua aprovação comedida.
      Depois, todos se retiraram para se vestir para a grande cena Alvina estudava a música que Madame sempre trazia consigo. Se Madame topava com um bom pianista, agradava-lhe
o acompanhamento; senão, passava sem isso.
      - Estou bem? - disse uma voz desajeitada.
      E era Kishwégin, escura, envergonhada, de longos cabelos e um curto vestido de camurça, polainas e mocassins, braços nus, envergonhada e sorrindo desajeitadamente. Alvina estalava de rir.
      - Mas não sirvo? - protestava Mr. May, ferido.
      - Sim, está esplêndido - disse Alvina, engasgando-se.
- Mas tenho de rir.
      - Mas por quê? Diga-me, por quê? - perguntava Mr. May ansiosamente. - É o meu aspecto que a faz rir ou sou somente eu? Se sou eu, não me importo. Mas se é o meu aspecto,
diga-me.
      Nesse momento, a figura aterradora de Cicio caracterizado vagueou pelo palco. Estava nu até a cintura, usava calças franjadas, a pele vermelho-escura, trazia compridos cabelos negros e penas de águia - apenas duas
penas -, e uma cara maravilhosa e assustadora pintada com faixas brancas, vermelhas, amarelas e pretas. Estava manifestamente satisfeito consigo próprio. Seu caminhar curiosamente leve e a sua curiosa maneira de levantar o lábio sobre os dentes brancos, num quase sorriso, eram inteiramente
convincentes.
      - Esqueceu-se do cinturão - disse ele, tocando a cintura saliente de Mr. May - e de pôr flores no cabelo.
      Mr. May deu um grito agudo e um salto. Um urso sobre as patas traseiras, vagaroso, bamboleante, mexendo os ombros amplos, estendia uma pata para ele. O urso caiu pesadamente sobre as quatro patas e uma gargalhada lhe saiu do focinho.
      - O senhor não precisa dançar - disse Geoffrey de dentro do urso.
      - Venha pôr-me as flores - falou Mr. May ansiosamente para Alvina.
      No vestiário, a cortina de separação estava caída. Max, em calças de pele de corça mas com o corpo sem pintura,
tinha um ar muito branco e estranho ao dar os últimos toques de caracterização no rosto de Louis. Olhou furtivamente para Alvina, depois continuou seu trabalho. Havia qualquer coisa de nobre na sua figura branca e ereta e no jeito duro de sua cabeça, no semi-luminoso cabelo castanho. Tinha um ar curiosamente superior.
      Alvina dava os últimos retoques nos arranjos femininos de Mr. May. Louis levantou-se, brave como Cicio, em caracterização ainda mais horrível. Max enfiava uma camisa
de caça esfarrapada e uma cartucheira. Tinha a cara um pouco ensombrada. Era o prisioneiro branco.
      Arranjaram o cenário, enquanto Alvina observava. Tudo
se fez depressa. Um fundo de troncos de árvores e de floresta sombria; uma cabana de índio, uma fogueira e um berço suspenso de um ramo. Enquanto trabalhavam, Alvina
esforçava-se em vão para identificar os dois braves por baixo da caracterização. Os traços estavam tão habilmente desenhados, o esgar de ferocidade era tão fixo e horrível, que até mesmo no trabalho tranqüilo da mudança de cenário, a graça fria e feminina de Louis parecia plena de latente crueldade, enquanto a postura mais musculosa de Cicio a fazia sentir que nem por um único momento confiaria nele. Que medonhas coisas eram os homens, selvagens, cruéis, por baixo de seus modos civilizados.
      A peça tinha a sua beleza. Começava com Kishwégin sozinha à porta da cabana, cozinhando, escutando, balançando de quando em quando o berço suspenso e, mas apenas quando Madame desempenhava o seu papel, cantarolando uma canção índia de ninar. Entra o brave Louis com o prisioneiro branco, Max, que traz as mãos atadas. Kishwégin respeitosamente saúda o marido; o prisioneiro manietado senta-se perto da fogueira. Kishwégin serve comida e pede licença para dar de comer ao prisioneiro. O brave Louis, ouvindo um ruído, levanta-se apressadamente com o arco e a flecha. Há uma cena muda de simpatia entre Kishwégin e o prisioneiro; o prisioneiro quer que ela quebre as cadeias. Retorna o brave Louis... está furioso com Kishwégin; entra o brave Cicio arrastando um urso, aparentemente morto. Kishwégin examina o urso, Cicio examina o prisioneiro. Cicio tortura o prisioneiro, fazendo-o
ficar de pé e dar saltos, contrafeito. Kishwégin balança o berço. O prisioneiro é atirado ao chão... cai e não pode levantar-se. Está estendido junto do urso caído. Kishwégin traz comida a Cicio. Os dois braves conversam através de sinais, Kishwégin balança o berço e cantarola. Os homens erguem-se uma vez mais e curvam-se sobre o prisioneiro. Nesse momento, ouve-se um rugido surdo. O urso se levanta. Louis se volta e ao mesmo tempo o urso se atira sobre ele. Cicio dá um salto e apunhala o urso, depois luta com ele. Kishwégin corre e corta as cadeias do prisioneiro. Este se ergue e tenta levantar os braços entorpecidos e sem forças, ao mesmo tempo
que o urso lentamente aperta Cicio e que Kishwégin se ajoelha junto do marido. O urso deixa cair Cicio sem vida e volta-se para Kishwégin. Nesse momento, Max consegue matar o urso; pega na mão de Kishwégin e ajoelha-se com ela perante Louis morto.
      Era admirável como os homens representavam tão bem seus papéis. Mas Mr. May exagerava um pouco os saltos, no papel de Kishwégin.
      Cicio vestiu-se logo que lhe foi possível, a fim de ir ver os cavalos alugados para o cortejo da tarde. Alvina o acompanhou, Mr. May e os outros estavam ocupados.
      - Sabe, a peça, acho admirável - disse ela a Cicio. Ele se voltou e olhou-a. Seus olhos amarelos e sombrios repousavam sobre o olhar bondoso dela, sem a verem, os lábios franzidos numa espécie de sorriso vaidoso e desdenhoso.
      - Sem Madame, não - falou ele, com o seu lento, escarnecedor e estúpido sorriso. - Sem Madame... - Encolheu os ombros e estendeu as mãos, inclinando as sobrancelhas.
- Não vale nada, lhe digo eu.
      - Não - disse Alvina. - Parece-me que Mr. May vai bem, dadas as circunstâncias. O que Madame faria além disso?
- perguntou ela com uma ponta de ciúme.
      - Que faria? - Olhou para ela com o mesmo longo e sardônico olhar dos seus olhos amarelos, como um gato olhando para um pássaro que se lhe escapa. E de novo fez o mesmo movimento de encolher os ombros. - Falando a verdade, ela faz tudo. Os outros... não são nada. São o que Madame fez deles. E agora julgam que fizeram tudo, eis aí. É isso mesmo.
      - Mas como é que Madame fez tudo? Imaginou tudo, você quer dizer?
      - Imaginou tudo, sim. E depois fez tudo. Você devia
vê-la dançar... Ah! Você devia vê-la dançar em volta do urso, quando eu o levo! Ah, que coisa linda! Ela bate com as mãos... - E Cicio se deteve, imóvel na rua, com o chapéu um pouco levantado de um lado, com um aspecto demasiado vulgar, e sorriu ao longo do nariz delicado para Alvina, e bateu levemente as mãos, inclinando as sobrancelhas e as pestanas como se estivesse imitando fisionomicamente a dança, e durante todo aquele tempo seus lábios sorriam estupidamente. Quando terminou, deu um peremptório estremeção com a cabeça, e ouviu-se um grande alarido de risos vindos da calçada oposta, onde um grupo de moças da fábrica de louça, com os aventais salpicados de argila cinzenta, os cabelos, sapatos e pele salpicados de manchas descoradas, parara observando. As moças defronte guinchavam de novo para toda a gente como um grupo de monos cinzentos. Cicio virou-se e olhou para elas com um ar de desprezo bailando ao longo do nariz. Berraram mais alto. E ele estava tremendamente pouco à vontade, caminhando ali perto de Alvina com seus pés pequenos e femininos.
      - São tão estúpidas - falou Alvina. - Já estou acostumada a elas.
      - Precisavam ser... - Ergueu a mão num picante e sensual gesto: - beijadas! - concluiu, baixando a mão.
      - Quem é que lhes faria isso? - disse Alvina.
      Fez uma momice napolitana, ao mesmo tempo que girava os dedos de uma das mãos espalmadas no ar.
      - Por que é que vocês todos amam tanto Madame?
- perguntou Alvina.
      - Quê? Amam? - disse ele, fazendo uma pequena momice
- Gostamos dela... gostamos dela... como de uma mãe. Você disse amor... - Levantou os ombros levemente, encolhendo-os. E nem por um momento deixou de olhar para Alvina de sob as pestanas escuras, como que a observá-la de lado, tendo na boca o peculiar, estúpido, vaidoso e escarninho sorriso. Alvina estava um pouquinho enfastiada. Mas via nele um ar de instintiva bondade natural, via que ele era vaidoso e que se constrangia, sabendo que ela não o seguia na linguagem dos gestos. Para ele não era ainda inteiramente natural
exprimir-se em palavras. O gesto e a expressão facial eram instantâneos e diziam mundos de coisas, desde que alguém os pudesse entender.
      Mas certamente ele era estúpido, no sentido que ela dava à palavra. Ouvia a sentença de Mr. May sobre ele: "Como uma criança, veja, exatamente tão interessante, exatamente tão enfadonho, exatamente tão estúpido".
      - De onde é você? - perguntou ela.
      - Da Itália.
      - De que lugar? - insistiu ela.
      - De Nápoles - disse ele, olhando-a de lado, perscrutadoramente.
      - Deve ser muito bonito.
      - Ah! - Lançou a cabeça para um lado e estendeu as mãos, como que para dizer: "É impossível não achar Nápoles muito bonita!"
      - Gostaria de ver. Mas não gostaria de morrer - disse ela.
      - O quê?
      - Diz-se: "Ver Nápoles e morrer" - riu ela.
      Ele abriu a boca e entendeu. Depois riu para ela.
      - Sabe o que isso quer dizer? - falou ele graciosamente. - Quer dizer ver Nápoles e depois morrer. Não morrer antes de tê-la visto.
      Sorriu um sorriso inteligente.
      - Bem vejo! Bem vejo! - gritou ela. - Nunca havia pensado nisso.
      Ele estava contente com a surpresa e o divertimento dela.
      - Ah, Nápoles! - dizia ele. - É tão linda... - Estendia a mão à sua frente. - O mar... e Posilippo... e Sorrento... e Capri... Ah! Você nunca saiu da Inglaterra?
      - Não - disse ela. - Mas gostaria de sair.
      Ele olhou-a nos olhos. Teve a instintiva vontade de lhe dizer que logo a levaria.
      - Você nunca viu nada... nada - disse ele.
      - Mas se Nápoles é assim tão linda, por que é que você a abandonou? - perguntou ela.
      - O quê?
      Repetiu a pergunta. Em resposta, ele olhou para ela, susteve a mão e, friccionando a ponta do polegar com a ponta dos outros dedos, disse, com um delicado e belo sorriso:
      - Notas! Dinheiro! Não se ganha dinheiro em Nápoles. Ah, Nápoles é bela, mas é pobre. Vive-se ao sol e ganham-se catorze, quinze pence por dia...
      - Não é suficiente - disse ela.
      Ele pôs a cabeça de lado e franziu as sobrancelhas como que para dizer: "Que se há de fazer?" E o sorriso em sua boca era triste, delicado e encantador. Havia nele um ar indefinido de tristeza e de ansiedade, qualquer coisa de robusto e frágil ao mesmo tempo que a arrastava para um estranho caminho.
      - Mas você voltará?
      - Para onde?
      - Para a Itália. Para Nápoles.
      - Sim, voltarei à Itália - disse ele, como se involuntariamente se confessasse. - Mas talvez não volte a Nápoles.
      - Nunca mais?
      - Ah, nunca mais! Eu não digo que nunca mais. Irei a Nápoles ver a irmã de minha mãe. Mas não irei viver lá...
      - Ainda tem pai e mãe?
      - Eu? Não. Tenho um irmão e duas irmãs... Na América. Pais, nenhum. Morreram.
      - E você erra pelo mundo... - disse ela.
      Ele olhou-a e fez um gesto ligeiro e triste e também indiferente.
      - Mas você tem uma mãe em Madame - disse ela. Dessa vez fez um outro gesto: comprimiu os cantos da boca como se não tivesse gostado. Depois, voltou a seu lento e delicado sorriso.
      - Precisa um homem ter duas mães? Hã? - perguntou ele, vivamente.
      - Parece-me que não. - Alvina riu.
      Ele olhou-a furtivamente para ver o que ela queria dizer, o que ela entendera.
      - Minha mãe morreu, veja! - disse ele. - Mulheres francesas... Mulheres francesas... têm filhos até que estes completem cem anos...
      - Que quer dizer? - disse Alvina, rindo.
      - O francês já é um homem aos sete anos, mas, se a mãe se aproxima, é um bebê mesmo com setenta. Sabia disso?
      - Não, não sabia - respondeu Alvina.
      - Mas agora... sabe - disse ele, virando uma esquina, com ela.
      Tinham chegado aos estábulos. Ali estavam três dos cavalos, incluindo o puro-sangue que Cicio iria montar.
Deteve-se e examinou os animais criticamente. Depois, lhes falou em estranhos sons, deu-lhes palmadas, acariciou-os, apalpou-os, deslizou a mão por baixo, por cima, por baixo, tateando-lhes as pernas.
      Depois, estando debaixo deles, olhou com o longo e
lento olhar de seus olhos amarelos para Alvina. Ela se
sentiu inconscientemente lisonjeada. O longo e amarelo
olhar dele deteve-se, prendendo os olhos dela. Ela se perguntava o que ele estaria pensando. Contudo, ele não falava. Voltou-se de novo para os cavalos. Estes pareciam entendê-lo, endireitando-se, atentos.
      - Este é o meu - falou ele, com a mão no pescoço do velho puro-sangue. Era um baio com uma estrela branca.
      - Acho-o muito belo - dizia ela. - E parece tão sensível!
      - Na Inglaterra - respondeu ele bruscamente - os cavalos vivem muito tempo, porque não vivem... nunca estão vivos, sabe? Na Inglaterra, as locomotivas são vivas e os cavalos andam sobre rodas. - Riu para os olhos dela como se ela entendesse. Ela ficou um tanto nervosa quando ele lhe sorriu do fundo do estábulo, com seus olhos amarelos e meio misterioso, irônico. Tinha vontade de virar-se e ir para qualquer parte. Mas um impulso mais forte fazia-a sorrir para o rosto dele, enquanto lhe falava.
      - Eles gostam que você toque neles.
      - Quem? - Os olhos dele observavam os dela. Era curioso como pareciam tão escuros, apenas com o anel amarelo da pupila. Ele olhava para dentro dela, para além da sua personalidade costumeira, impessoal.
      - Os cavalos - disse ela. Tinha medo do seu longo
olhar felino. Contudo, estava convencida de que no fundo
ele era naturalmente bom. Ele lhe parecia ser o único homem apaixonado e naturalmente bom que vira. Observava-o vagamente, com estranha e leve confiança, uma implícita crença nele. Nele... em quê?
      Naquela tarde, os mineiros, ao marcharem para casa ao crepúsculo de inverno, foram alegrados pelo espetáculo: Kishwégin, na sua pele de corça, polainas franjadas e vestido franjado de pele de corça, cabelo comprido caído pelas costas, e com maravilhosos tecidos e arreios sobre seu corcel, cavalgava escarranchada um alto cavalo branco, seguida por Max, vestido de cacique, com o longo cocar de penas pintadas na cabeça, depois os outros, caracterizados com penas e brilhantes mantas navajas. Conduziam arcos e lanças. Cicio ia sem manta, nu até a cintura, caracterizado
e brandindo uma longa lança. Saía da última fila, saudava o cacique com o braço e a lança para o alto ao ultrapassá-lo, repentinamente parava o corcel empinando-o e trotava vagarosamente de novo para a última fila, fazendo o cavalo executar sua marcha. Era extraordinariamente vivo, e brando como veludo, a cavalo.
      Multidões de crianças excitadas e em algazarra corriam ao longo dos passeios. Os mineiros, caminhando, cinzentos e pesados, num rio intermitente que subia do oeste cinzento, paravam no passeio, maravilhados com a cavalgada que se aproximava e passava, retinindo as campainhas prateadas dos arreios, agitando as cores maravilhosas das mantas listradas e dos xales, a lã escarlate dos adornos, as brilhantes pontas das penas. As mulheres gritavam quando Cicio, caracterizado, fazia evoluções junto do passeio. As crianças gritavam e corriam. Os mineiros berravam. Cicio sorria na sua terrível caracterização, brandia a lança e trotava lentamente, como uma flor no caule, em volta do cortejo.
      Miss Pinnegar, Alvina e James Houghton vieram à Knarborough Road para ver. Foi um grande momento. Olhando ao longo da estrada viram todos os lojistas à porta, os passeios alvoroçados. E depois, a distância, o cavalo branco tinindo os arreios escarlates e as campainhas, com a morena Kishwégin sentada na manta da sela, de brilhantes e fantásticas listras, sentada impassível e completamente diminuída sobre aquela intermitente cintilação de cores; depois o cacique, de face trigueira, ereto, não constrangido, envolvido numa manta branca com barras escarlates e pretas, e todo o seu estranho penacho de penas brancas, pintadas nas pontas, pendendo pelas costas; quando se chegava mais perto podiam-se ver a pele de lobo e os brilhantes mocassins contra os flancos negros do cavalo. Louis e Geoffrey vinham a seguir, sinistros, as faces horríveis, trazendo mantas com pinceladas e pinceladas de cor, resplandecentes sobre a obscuridade deles, e sentando-se austeros, segurando as lanças; finalmente Cicio, no seu cavalo baio com sela verde, saltitando por aqui e por ali
na última fila, as penas pendentes, o cavalo suando, a cara sorrindo palidamente com a caracterização. Assim eles caminhavam através do sombrio cinzento da Knarborough Road, no fim da tarde invernosa. Num sítio qualquer o sol se punha e, distante, no alto, havia uma tonalidade alaranjada.
      - Nunca vi coisa tão linda! - murmurava Miss Pinnegar.
- Nunca vi coisa tão linda!
      A estranha selvageria das raiadas mantas navajas parecia-lhe perturbadora, marchando pela Knarborough Road; ela examinava Kishwégin com curiosidade.
      - Quem pode acreditar que é Mr. May... é tal qual uma moça. Bem, bem, isso leva a que cada um pergunte a si próprio o que é e o que não é. Mas eles são bons, não são? O quê? Espantoso! Tal qual índios. Podemos acreditar no que estamos vendo. Meu Deus, de que terrível raça eles... - Nessa altura, deu um grito e desviou-se, agarrando-se à parede, porque Cicio passava, roçando nela com a cauda do cavalo e volteando a lança de maneira a tocar Alvina e James Houghton levemente com a extremidade. James também assustou-se e deu um grito; a turba na esquina ululava. Mas Alvina apreendeu o lento e travesso sorriso enquanto aquele horror pintado mostrava os
dentes ao passar; ela deu uma gargalhada excitada. Sentiu os olhos amarelo-escuros demorarem-se nela, naquele segundo, como que negligentemente.
      - Isso já é demais! - Miss Pinnegar gritava, inteiramente fora de si. - Não há necessidade dessas coisas! Para que serve assustar assim uma pessoa? Além disso, é
perigoso. Devia-se pôr um fim nessas coisas. Acho que não se deve deixar uma tal gente de teatro tomar tantas liberdades.
      O cortejo passava lentamente, com seus cavalos desassossegados, o seu brilho de cores misturadas e os seus silenciosos cavaleiros. Cicio trotava lentamente atrás, sobre a sela verde, suave como veludo, o belo torso sombrio e nu.
      - Eh, você tem vontade de morrer - diziam as mulheres na multidão.
      - Um autêntico selvagem, aquele. Até esfria o sangue da gente...
      - Eh, nenhum homem, apesar disso, pinta a cara porque o merece. Um homem asseado é o que é.
      Ele não olhou para Alvina. O sorriso leve e trocista descobria-lhe os dentes. Pôs-se repentinamente em linha atrás de Geoffrey, num movimento do cavalo, gritando para Geoffrey em italiano.
      Arrefecera o tempo. O cortejo pôs-se a trotar. Mr. May estava demasiado trêmulo. Cicio deteve-se, encostou a lança ao poste de um candeeiro, puxou pela manta verde que tinha debaixo de si, lançou-a em torno dos ombros, ao sentar-se, e partiu para junto dos outros. Haviam todos desaparecido atrás do cume da colina de Lumley, descendo. Ele se fora, também. No crepúsculo invernoso a multidão começou, lentamente, a se dispersar. E contra o que seria de esperar, manifestava o seu desagrado pelo espetáculo: pois os homens e mulheres adultos estavam até certo ponto escandalizados com tal espetáculo. Era um anacronismo. Queriam uma coisa que se dirigisse diretamente ao espírito. Miss Pinnegar exprimiu isso.
      - Bem - disse ela, quando regressou sã e salva a Manchester House, com o gás aceso e enquanto despejava água para ferver na chaleira. - Podem dizer o que quiserem.
É interessante de certo modo, apenas para mostrar como são os selvagens peles-vermelhas. Mas é infantil. Não passa de uma infantilidade. Não posso compreender como se pode gostar de tais espetáculos. Não acontece nada. Não é como o cinema, onde se vê tudo e se compreende tudo de uma vez; num relance sabe-se tudo. E olhando-se aquela gente não se sabe nada. Sabe-se que são homens assim vestidos para ganhar dinheiro. Não vejo por que havemos de encorajá-los. Não perco tempo
com atores preguiçosos, passeando em cortejo; por mim não perco tempo. Gosto de ir ao cinema uma vez por semana. É instrutivo, percebe-se tudo num instante, tudo o que se precisa saber, e isso chega para uma semana. Pode-se vir a saber a vida real de todos os povos pelo cinema. Não vejo por que se há de querer gente caracterizada, fingindo.
      Estavam sentados para o chá com torradas e marmelada, durante esse discurso. Miss Pinnegar era sempre como uma douche de água fria para Alvina, conduzindo-a à razão depois de uma excitação deliciosa. Num minuto, Madame e Cicio e todos pareceram tornar-se irreais... verdadeiras irrealidades; enquanto as malconservadas cenas do filme eram vivas, verdadeiras como o dia. E Alvina ficava sempre desconcertada quando isso acontecia. Na realidade, ela odiava Miss Pinnegar. Contudo, nada tinha a responder. Eram irreais. Madame e Cicio e o resto. Cicio era uma fantasia impelida pelo vento para ser impelida de novo para qualquer parte.
O que era imutável e permanente era Woodhouse, a semper idem Knarborough Road, a imutável e carcomida escuridão de Manchester House, o tropeço de Miss Pinnegar cheirando a mofo, e o pai, cujos dedos, cuja verdadeira alma parecia emporcalhada pelas moedas. Aqueles eram o fato sólido e permanente. Aqueles eram a própria vida. E Cicio, volteando no cavalo baio e na sela verde, era um feiticeiro e uma estranha entidade, um velho farrapo colorido, impelido da Knarborough Road para o limbo. O limbo. Entretanto, Miss Pinnegar e o pai sentavam-se comendo suas torradas e
tirando-lhes as côdeas e bebericando sua terceira chávena de chá. Nunca seriam impelidos para qualquer parte... nunca, nunca. Woodhouse estava ali até à eternidade. E a troupe Natcha-Kee-Tawara era impelida como um pedaço de papel para dentro do limbo. O nada! Pobre Madame! Pobre Madame, galante e histriônica! Miss Pinnegar podia amarfanhá-la e lançá-la para o cano de esgoto utilitário e dar cabo dela. Entretanto, Miss Pinnegar viveria para sempre. Isso deu a Alvina uma disposição colérica.
      - Miss Pinnegar - disse ela. - Parece-me que a senhora muitas vezes gosta de ser desagradável. A senhora é uma autêntica desmancha-prazeres.
      - De fato - falou Miss Pinnegar asperamente. - Tenho pena, mas não posso aprovar os seus prazeres.
      - A senhora não pode desaprová-los mais do que eu odeio sua existência de desmancha-prazeres - retorquiu Alvina encolerizada.
      - Você está doida, Alvina? - disse-lhe o pai.
      - A mim mesma pergunto como não o estou - respondeu Alvina -, com a vida que levo.

      CAPÍTULO 8 - CICIO

      Madame não recuperou sua boa disposição depois da gripe. Esteve dois dias de cama, assistida por Mrs. Rollings, Alvina e os rapazes. Mas tinha todo o cuidado em nunca dar lugar a escândalos. Os rapazes não podiam vê-la, salvo na presença de uma terceira pessoa. E então era estritamente uma visita de cerimônia ou de negócios.
      - Oh, a sua Woodhouse há de ser para mim uma alegria quando a deixar - dizia ela a Alvina. - Sinto que ela me traz infelicidade.
      - Sente? - perguntou Alvina. - Mas se a senhora se tivesse resfriado noutra parte poderia ter sido muito pior, não acha?
      - Oh, minha amiga! - exclamava Madame. - Julga que eu a incluo na minha aversão por Woodhouse? Oh, não! A menina não é Woodhouse. Pelo contrário, penso que não é agradável para você também, este lugar. A menina tem um ar... também... como dizer... franzino, não muito feliz.
      Era um ponto de interrogação.
      - Estou certa de que tenho muito mais aversão a Woodhouse do que a senhora - replicou Alvina.
      - Também eu. Sim! Também eu estou certa. Eu o vejo. Mas por que não vai para qualquer outra parte? Por que não se casa?
- Ninguém quer se casar comigo - respondeu Alvina. Madame olhou-a penetrantemente, com negros olhos sagazes
sob as sobrancelhas arqueadas.
      - Como? - exclamou. - Como não querem? A menina não é desinteressante, é apenas um pouquinho magra... macilenta...
      Observava Alvina. Esta riu, contrafeita.
      - Não há ninguém? - persistia madame.
      - Agora não - disse Alvina. - Absolutamente ninguém.
- Olhou, com riso confuso, os olhos muito negros de Madame.
- Bem vê, não posso ter interesse pelos rapazes de Woodhouse, por nenhum. Não posso.
      Madame mexeu lentamente a cabeça para cima e para baixo. Uma secreta satisfação atravessava-lhe o rosto pálido como cera, no qual os olhos eram como duas criaturas gêmeas e independentes: singulares como dois vivos animaizinhos negros na neve.
      - Decerto! - disse ela, compreensiva. - Decerto! Como haviam de interessar-lhe? Mas há outros homens além desses daqui... - Acenou com a mão para a janela.
      - Não os encontro, aí está - falou Alvina.
      - Não, não com freqüência. Mas às vezes. Às vezes!
Fez-se um silêncio significativo entre as duas mulheres.
      - As inglesas - disse Madame - são tão práticas. Por quê?
      - Parece-me que não o podem evitar - retorquiu Alvina
- Mas elas não têm metade do seu senso prático e da sua inteligência, Madame.
      - Oh, não, não. Eu sou prática de uma maneira diferente. Eu sou prática... im-praticamente... - tropeçava nas palavras. - Aquela Sue, por exemplo, no Judas, o obscuro ... não é um livro interessante? E não é ela sempre muito praticamente prática? Se ela fosse impraticamente prática poderia ter sido inteiramente feliz. Percebe o que eu quero dizer?... Não. Mas ela é ridícula, a Sue: tão Anna Karênina! Ridículas, ambas. Não acha?
      - Por quê? - indagou Alvina.
      - Por que é que ambas fizeram toda a gente infeliz, quando tinham o homem que desejam e dinheiro suficiente? Acho-as a ambas tão imbecis! Se tivessem sido espancadas,
teriam perdido todas as idéias práticas e impertinências,
ou simplesmente as esqueceriam e teriam sido suficientemente felizes. É uma mulher que o diz. Idéias como as que elas tinham não são trágicas. Não, de maneira alguma. São absurdas, pode crer, absurdas. E é tudo. Absurdas. Sue e Anna, são ambas... sem pé nem cabeça. Aí tem. Não há tragédia em tudo aquilo. Absurdas. Sou mulher. Também conheço os homens. E sei conhecer o absurdo quando o vejo. As inglesas são todas absurdas; as piores mulheres do mundo em absurdo.
      - Olhe que eu sou inglesa - disse Alvina.
      - Sim, minha amiga, a menina é inglesa. Mas não é
necessariamente tão absurda. Por que há de sê-lo completamente?
      - Absurda? - Alvina ria. - Mas eu não sei em que a senhora vê o meu absurdo.
      - Ah - disse Madame enfadada. - Elas nunca compreendem. Mas eu gosto de você, minha amiga. Sou uma velha...
      - Mais nova do que eu.
      - Mais nova do que a menina, porque sou prática pelo coração e não somente pela cabeça. A menina não é prática pelo coração. E contudo tem coração.
      - Mas todas as inglesas têm bom coração - protestou Alvina.
      - Não! Não! - objetou Madame. - São todas muito boas, e muito práticas na sua bondade. Mas não têm coração em toda essa bondade. É tudo cabeça, tudo cabeça; bondade de cabeça.
      - Não concordo com a senhora - dizia Alvina.
      - Não. Não. Eu sei disso. Mas não me importo. A menina é muito boa para mim e lhe agradeço. Mas é pela cabeça, bem vê. E por isso eu lhe agradeço pela cabeça. Pelo coração... não.
      Madame juntou os dedos brancos e os colocou sobre o
seio com um gesto de repúdio. Os olhos negros fitavam
rancorosamente.
      - Mas, Madame - falou Alvina, irritada -, eu nunca valeria metade da senhora como mulher de negócios. E isso não é pela cabeça?
      - Ah, com certeza. Com certeza a menina não seria boa mulher de negócios. Porque a menina é boa pela cabeça. Eu... - Deu uma pancada na testa e meneou a cabeça. - ... Eu não sou boa pela cabeça. Pela cabeça sou mulher de negócios, uma boa mulher de negócios. Com certeza sou boa mulher de negócios... com certeza. Mas... - Ela mudou de expressão, dilatou os olhos e pôs a mão no peito. - Quando o coração fala, então eu escuto com o coração. Não escuto com a cabeça. O coração ouve o coração. A cabeça, isso é outra coisa. Mas
a menina tem olhos azuis, não pode compreender. Somente os olhos escuros... - Calou-se e ficou meditando.
      - E os olhos amarelos? - perguntou Alvina, rindo.
      Madame lançou-lhe um olhar, os lábios franzidos num muito leve e delicado sorriso de irrisão. Contudo, pela primeira vez seus olhos sombrios se dilataram e se tornaram vivos.
      - Olhos amarelos como os de Cicio? - disse ela, com grandes olhos perscrutadores e sorrindo, num ricto sutil.
- São os mais sombrios de todos. - E meneou a cabeça
maliciosamente.
      - São? - disse Alvina, confusa, sentindo um rubor que lhe subiu da garganta à face.
      - Ah! Ah! - Madame riu. - Ah! Ah! Eu sou uma velha, bem vê. Meu coração é velho demais para ser bom e a minha cabeça é velha demais para ser inteligente. Meu coração é bom para pouca gente... muito pouca, especialmente aqui na Inglaterra. Meus rapazes o sabem. Mas talvez seja bom para você.
      - Obrigada - disse Alvina.
      - Aí está. Pela cabeça. Obrigada Não está certo. Bem vê!
      Mas Alvina fugiu, confusa. Sentia que Madame a estava envolvendo.
      Mr. May divertia-se imenso fazendo o papel de Kishwégin. Quando Madame saiu do quarto, Louis, que tinha muito jeito para a mímica, imitou-o. Sucedeu de Alvina entrar na sala de visitas no meio das explosões de riso. Todos pararam e a olharam, desconfiados.
      - Continuez! Continuez! - falou Madame a Louis. E a Alvina: - Sente-se, minha amiga, e veja como temos um bom ator no nosso Louis.
      O rapaz atirou um olhar em redor, pôs a cabeça um pouco de lado e meteu o queixo para dentro, exatamente com o sorriso de Mr. May e, abanando ligeiramente o traseiro,
começou a fazer o papel da falsa Kishwégin. Andava de lado e levantava a cabeça e fazia jaculatórias com as mãos erguidas e, em muda exibição, o comprido francês apresentava uma hilariante caricatura do gerente de Mr. Houghton que fazia Madame chorar de riso, enquanto Max se apoiava contra a parede, rindo e estremecendo continuamente como uma panela fervendo, incontrolável. Geoffrey estendia os punhos fechados na mesa e ria às gargalhadas, e Cicio punha a cabeça para trás e mostrava os dentes todos num riso barulhento de mofa prazerosa. Alvina riu também. Mas corava. Havia um quê de sarcástico e aniquilador na maneira de Louis troçar de um ausente. E os outros divertiam-se muito. Por momentos, Alvina mordeu os lábios com os dentes, aquilo era tão claramente divertido e tão aniquilador! Ria contra sua própria vontade. Contra a própria vontade estremecia numa convulsão de riso. Louis era dominador... dominava-lhe a psique. Ela riu até sua cabeça cair desamparada sobre a cadeira, sem poder se mexer. Ficou sem forças, inerte naquele orgasmo de riso. O fim de Mr. May. Contudo, ela estava chocada.
      E então Madame enxugou os olhos negros e vivos e fez com a cabeça um lento sinal de aprovação. De repente, Louis teve um sobressalto e levantou um dedo de aviso. Num momento todos esconderam os sorrisos e disfarçaram. Somente Alvina continuou silenciosamente a rir.
      - Oh, bom dia, Mrs. Rollings! - ouviu-se a voz de Mr. May. - Está tudo muito animado. Miss Houghton está aqui? Posso entrar?
      Ouviram-se os passos pequenos e apressados dele e uma pancadinha na porta.
      - Entre - disse Madame.
      Todos os Natcha-Kee-Tawaras estavam sentados, de cara séria. Apenas a pobre Alvina se debruçava na cadeira em nova e leve convulsão. Mr. May relanceou o olhar e avançou para Madame.
      - Oh, bom dia, Madame, muito prazer em vê-la já
aqui - falou ele, tomando-lhe a mão e curvando-se cerimoniosamente. - Perdoe a minha intromissão nesta alegria!
- Olhou sorridentemente em volta. Alvina estava ainda sem controle. Continuava inclinada para o lado na cadeira e não
podia sequer falar.
      - Era evidentemente uma boa piada. Também posso ouvi-la?
      - Oh - disse Madame, vagarosa. - Não era uma piada.
- Era apenas Louis entretendo-nos, fazendo um número.
      - Deve ter sido muito bom - falou Mr. May. - Não se poderia repetir?
      - Não - arrastou Madame -, não vale nada... apenas uma absurda boa disposição de momento. Por que não se senta? E por que não toma um uísque? Quer?
      Max deu um uísque com água a Mr. May.
      Alvina estava sentada com o rosto para o lado, quieta mas incapaz de falar a Mr. May. Max e Louis tornaram-se pálidos. Geoffrey fixava o recém-chegado tolamente, com grandes olhos azuis; Cicio apoiava os braços nos joelhos, olhando de lado por sob as longas pestanas para a inerte Alvina.
      - Bem - indagou Madame -, e tem ficado satisfeito com as casas?
      - Oh, sim - respondeu Mr. May. - Inteiramente! As duas noites foram excelentes. Excelentes!
      - Ah... estou satisfeita. E Miss Houghton me diz que não posso dançar ainda amanhã, é muito cedo.
      - Miss Houghton sabe - disse Mr. May, penetrante.
      - Decerto! - concordou Madame. - Eu faço o que ela me diz.
      - Por que não, se é para seu bem e não dela?
      - Claro! Claro! Ela é muito gentil.
      - Miss Houghton é muito gentil... para quem quer que seja - disse Mr. May.
      - Não duvido - falou Madame. - E estou muito satisfeita por o senhor ter feito tão bem o papel de Kishwégin. É também muito amável.
      - Sim - replicou Mr. May. - Começo a perguntar-me se
não errei a vocação. Eu devia estar sobre o palco em vez de embaixo dele.
      - Sem dúvida. Mas é um pouco tarde...
      Os olhos dos estrangeiros, observando-o, lisonjeavam Mr. May.
      - Receio que sim - disse ele. - Sim, o gosto popular é uma coisa misteriosa. Qual é a sua opinião? Acha que o seu trabalho é apreciado tanto como anteriormente?
      Madame o observava com seus olhos negros.
      - Não - replicou ela. - Não é. O cinema está nos afastando. Talvez ainda duremos dez anos mais. E depois disso, acabamos.
      - Julga isso? - perguntou Mr. May, com ar grave.
      - Tenho certeza - disse ela, abanando a cabeça como quem sabe o que está dizendo.
      - Mas por que há de ser assim? - indagou Mr. May, irado e petulante.
      - Por que há de ser assim? Não sei. Não sei. O cinema
é barato, não dá trabalho, não exige esforço ao espectador, nem sentimento no coração, nem apreciações ao espírito, nada disso. E por isso gostam dele e não gostam de nós porque têm de sentir as coisas que fazemos, no coração, e apreciá-las com o espírito.
      - E o público não deseja apreciar e sentir?
      - Não. Não deseja. O que deseja é tudo pelos olhos, e acabou-se... pronto! É curiosidade, curiosidade impertinente. É tudo. Em toda parte é o mesmo. E por isso... dentro de dez anos, desaparece por completo a Kishwégin.
      - Não. Assim, que futuro teria a senhora? - disse Mr. May, tristemente.
      - Posso ter morrido... quem sabe. Se não, terei o meu quartozinho em Lausanne ou em Bellinzona e serei de novo uma burguesa e a boa católica que sou.
      - Como eu também - disse Mr. May.
      - Ah, sim? É? Católico americano?
      - Bem... inglês... irlandês... americano.
      - O quê?
      Mr. May nunca se sentira tão triste na vida como naquele dia. Onde, afinal, poderia repousar a conturbada cabeça?
      Também não havia paz na troupe Natcha-Kee-Tawara. Porque na quinta-feira haveria mudança de programa. As núpcias de Kishwégin (com o prisioneiro branco, deve-se dizer) tomariam o lugar da cena anterior. Max, evidentemente, era o diretor do ensaio. Madame não viria ao teatro senão quando ela própria tivesse de entrar.
      Ainda que muito calmo e discreto, em regra, Max tomava bruscamente um ar de hauteur e superioridade que era na verdade incômodo. Geoffrey zangava-se sempre com isso. Mas Cicio enchia-se de impiedosa e destemperada cólera. Porque Max, bruscamente, revelava desprezo pelo "eitaliano", como chamava a Cicio, usando a palavra cockney.
      - Bah! Quelle tête de veau - disse Max, bruscamente desdenhoso e irado porque Cicio, que era realmente lento para apreender as coisas que lhe diziam, tinha uma vez mais ficado sem entender.
      - Comment? - perguntou Cicio, na sua lenta e irrisória maneira.
      - Comment? - escarneceu Max, num eco. - O quê? O quê? Que é que eu disse? Disse cabeça de bezerro. Cabeça de porco, se lhe parece que assenta melhor.
      - A quem? A mim ou a você? - disse Cicio.
      - A você, meu italiano estúpido.
      Subiu um rubor à face de Max, que se manteve ereto, com o cabelo castanho parecendo subir reto da testa e os olhos negros relampejando fúria.
      - Que poderia eu esperar de um selvagem porco alemão? Hã?
      Tudo isso em francês. Alvina, sentada ao piano, viu Max, alto e branco de cólera; Cicio, o pescoço duro, fora de si e convulsionado de raiva, estendendo o pescoço para Max. Todos usavam roupas comuns, sem casacos, trabalhando em mangas de camisa. Cicio tinha na mão uma navalha.
      - Então! Parem com isso! Parem com isso! - dizia Mr. May, peremptório. Mas Cicio, inclinado para a frente, teso e imobilizado pela raiva, estava inteiramente fora de si. Segurava fixamente na mão a navalha.
      - Italiano porco - dizia Max em inglês, voltando-se para Mr. May. - Não entendem nada.
      Mas a última palavra foi abafada pelo salto e pelo golpe de Cicio. Max, meio abaixado em posição de defesa, recebeu o golpe na clavícula e cambaleou para cima de Mr. May, enquanto Cicio saltava como um gato do palco para baixo, pulava pelo interior do teatro e saía, abandonando a navalha que tiniu nas tábuas por trás dele. Max recompôs-se e saltou como um diabo, branco de raiva, pelo teatro, atrás dele.
      - Pare... pare! - gritava Mr. May.
      - Halte, Max! Max, Max, attends! - gritaram Louis e Geoffrey, enquanto Louis corria atrás do amigo. As tábuas estremeceram de novo com o salto do homem.
      Alvina, que estava sentada ao piano, à espera,
levantou-se sobressaltada e voltou à cadeira quando Cicio a empurrou para passar. Agora Max, branco, com os olhos azuis imobilizados, estava junto dela.
      - Não faça isso!... - gritou ela, levantando a mão para lhe deter o avanço. Ele a viu, desviou-se e hesitou, virou-se para saltar sobre os assentos e evitá-la, mas Louis o agarrou e apertou os braços em volta dele.
      Max e Louis se engalfinharam na coxia. Max olhando com ódio para o amigo. Louis era também decidido, tão impetuoso quanto Max, mas por fim este começou a render-se. Tremia e estava fora de si. Louis continuava a segurá-lo pela mão e pelo braço.
      - Deixe-o ir, irmão, ele não merece isso. Que pode ele compreender? Essa gente do sul, são meio crianças, meio animais. Não sabem o que fazem. Ele feriu você, meu amigo? Era uma navalha aqui do teatro, mas foi um golpe forte... aquele italiano, aquele cão. Deixe ver.
      Assim, gradualmente Max foi se acalmando. De sob o colete, no ombro, o sangue já tinha manchado a camisa.
      - Tem algum ferimento, irmão, irmão? - dizia Louis.
- Deixe ver.
      Max agora movia o braço com dificuldade. Tiraram o
colete e puxaram a camisa. Uma nódoa negra e a pele cortada.
      - Se o osso não estiver partido! Levante o braço, frère... levante. Dói... assim? Não... não está partido... não... o osso não está partido.
      - Não há nenhum osso partido, bem sei - disse Max.
      - Animal! Não conseguiu isso, pelo menos.
      - Para onde ele teria ido? - perguntou Mr. May.
      Os estrangeiros encolheram os ombros e não deram atenção. Não houve mais ensaio.
      - É melhor irmos para casa e contar a Madame - disse Mr. May, que estava cheio de receio com sua representação da noite.
      Fecharam o Esforço. Alvina estava pensando em Cicio. Tinha saído em mangas de camisa. Ela pegou o casaco e o chapéu dele no fundo do vestiário e levou-os debaixo do impermeável que tinha no braço.
      Madame estava preocupada. Tinha ouvido alguém entrar pelo fundos e subir as escadas e sair de novo. Mrs. Rollings dissera-lhe que era o italiano, que entrara em mangas de camisa e que saíra de terno e chapéu pretos, montando na bicicleta sem dizer palavra. Pobre Madame! Fazia esforços para calçar os sapatos e tinha o chapéu posto quando os outros chegaram.
      - O que se passa? - perguntou.
      Ouviu de Louis uma explicação apressada.
      - Ah, que animal, que animal, não é merecedor dos meus cuidados - gritava a pobre Madame, sentando-se, com um pé calçado e outro não. - Por que é que você, Max, não teve suficiente presença de espírito para conter esses seus impulsos de montanhês? Não estou farta de dizer e redizer e tornar a dizer que no Natcha-Kee-Tawara há apenas uma nação, a dos índios, e uma tribo, a de Kishwe? E agora você o chama de italiano sujo, ou italiano cão, e ele se portou como um animal. Muito de animal, muito de animal, mas pouco esprit. Mas você, Max, foi quase tão mau. Tem o temperamento de um diabo, que é talvez pior que o de um animal. Ah, esta Woodhouse está amaldiçoada, bem o sei. Se pudéssemos estar longe daqui! Não haverá maneira de esta semana passar? Temos de encontrar Cicio. Sem ele a companhia fica arruinada... até que se arranje um substituto. Tenho de arranjar um substituto. E como?... E onde? Neste país... digam-me. Estou cansada de Natcha-Kee-Tawara. Não há uma verdadeira tribo de Natcha-Kee-Tawara... não, nunca. Estou farta de
Natcha-Kee-Tawara. Separemo-nos, partamos, mes braves,
digamos adieu aqui, nesta funesta Woodhouse.
      - Oh, Madame, querida Madame - falou Louis -, tenhamos esperança. Juremos a mais firme fidelidade, querida Madame, nossa Kishwégin. Não partamos. Max, você não quer partir, não é, irmão bem-amado? Não quer partir, não é mesmo, irmão que eu amo? E você, Geoffrey...
      Madame rompeu em lágrimas, Louis chorou também, mesmo Max voltou a cara para o lado, com lágrimas. Alvina
retirou-se da sala, seguida de Mr. May.
      Dentro de um momento, Madame foi juntar-se a eles.
      - Oh - disse ela. - Não se foram embora. Nós perguntamos a nós mesmos que caminho terá seguido Cicio, se o de Knarborough ou o de Marchay. Geoffrey vai de bicicleta à procura dele. Mas terá ele ido para Knarborough ou para Marchay?
      - Pergunte ao policial do Largo do Mercado - sugeriu Alvina. - Com certeza reparou nele, porque a bicicleta amarela de Cicio é tão fora do comum...
      Mr. May saiu para indagar, enquanto os outros discutiam entre si onde Cicio poderia estar.
      Mr. May voltou e disse que Cicio partira pela estrada de Knarborough. Chovia ligeiramente.
      - Ah! - disse Madame. - E agora, como encontrá-lo, numa cidade tão grande? Tenho receio de que ele nos deixe, impiedosamente.
      - Com certeza ele quererá falar a Geoffrey antes de partir - disse Louis. - Foram sempre bons amigos.
      Todos olharam para Geoffrey. Ele encolhia os largos ombros.
      - Sempre bons amigos - falou ele. - Sim. Ele talvez esperasse por mim em casa do primo em Battersea. Em Knarborough, não sei.
      - Quanto dinheiro tinha ele? - perguntou Mr. May. Madame estendeu as mãos e levantou os ombros.
      - Quem sabe?
      - Esses italianos - disse Louis, virando-se para Mr. May. - Têm sempre dinheiro. Noutro país, jamais gastam um
sou se puderem evitá-lo. São como isto... - E fez o gesto napolitano, desenhando no ar com os dedos.
      - Mas ele os abandonaria sem uma palavra? - exclamou Mr. May.
      - Sim! Sim! - disse Madame tristemente. - É capaz disso. Só ele faria tal coisa. Mas é capaz de fazê-lo.
      - Mas que rumo tomaria?
      - Que rumo? Quer dizer para onde poderia ir? Para Battersea, sem dúvida, para junto do primo... e depois para
a Itália, se pensar que amealhou dinheiro bastante para comprar terras por lá.
      - E assim, digamos-lhe adeus - falou Mr. May, amargamente.
      - Geoffrey deve saber - disse Madame, olhando para Geoffrey.
      Este encolheu os ombros e não traiu o camarada.
      - Não - respondeu ele. - Não sei. Ele deixará recado
em Battersea, presumo. Mas não sei se irá para a Itália.
      - E não sabe onde encontrá-lo, em Knarborough?
- perguntou Mr. May, grave e muito compenetrado.
      - Não... não sei. Talvez na estação, se ele for de trem para Londres. - Era evidente que Geoffrey não auxiliava Mr. May.
      - Alors! - falou Madame, acabando com aquelas futilidades. - Vá a Knarborough, Geoffrey, e veja... E volte a tempo de trabalharmos. Vá já. E se o encontrar, traga-o de novo. Diga-lhe que venha em atenção a mim.
      E empurrou o rapaz. Ele partiu, fazendo os quinze quilômetros do percurso para Knarborough através da chuva.
      - Eles sabem - disse Madame. - Sabem os lugares de cada um. Faz pouco mais de um ano que viemos a Knarborough. Mas eles se lembram.
      Geoffrey pedalava o mais depressa possível por sobre a lama. Não se importava muito com encontrar ou não o amigo. Gostava do italiano, mas nunca o tivera como pessoa que permanecesse. Sabia que Cicio não estava satisfeito, e queria mudar. Sabia que a Itália o afastava da troupe, com a qual estivera associado durante três anos ou mais. E o suíço de Martigny sabia que o napolitano partiria, quebrando todos os laços, um dia, repentinamente, para a Itália." As coisas eram assim e Geoffrey as encarava filosoficamente.
      Pedalou pela cidade e a primeira coisa que fez foi procurar os artistas de music hall nas suas pensões. Conhecia uma boa parte deles. Receberam-no com agrado e uísque... mas nenhum deles tinha visto Cicio. Mandavam-no para outros artistas, para outras casas. Correu a via-sacra dos conhecidos e dos desconhecidos, das casas estranhas e das familiares, dos possíveis hotéis de terceira classe. Depois, foi ao bairro dos italianos, em Marsh... sabia que aquela gente se procurava sempre uns aos outros. E depois, apressando-se, deu um pulo à estação de Midland, perguntando
aos carregadores, na plataforma de partida para Londres, se tinham visto seu amigo, um homem com uma bicicleta amarela e um casaco preto. Tudo em vão.
      Geoffrey apressadamente acendeu a lanterna e pedalou na escuridão para Woodhouse. Era possantemente constituído e imperturbável. Pedalava devagar nas ruas que subiam, depois deslizava descendo na escuridão da parte industrial. Tinha continuamente de atravessar linhas férreas, que estavam em mau estado e tinha por vezes de escapar aos bondes brilhantemente iluminados que lhe cortavam o caminho por entre a densa escuridão. Chovera todo o caminho e a roda traseira resvalava debaixo dele, na lama e na via férrea.
      Quando avançava pela longa escuridão que se estendia entre Slaters Mill e Durbeyhouses, viu uma luz à sua frente... outro ciclista. Tomou seu lugar na estrada.
A luz aproximou-se com rapidez. Era um forte farol de acetileno. Fixou-o. Um relâmpago e um salpico de lama e viu as costas curvadas do que era provavelmente Cicio passar junto dele em grande velocidade na baixa bicicleta de corridas.
      - Eh, Cic!... Cicio! - gritou, saltando da bicicleta.
      - Hã! - ouviu ele como resposta, uma voz inconfundivelmente italiana.
      Voltou-se... viu que o outro ciclista parara. O farol deu uma volta e Cicio lentamente retornou pedalando. Desceu junto de Geoffrey.
      - Toi! - disse Cicio.
      - Eh! Où vas-tu?
      - Eh! - exclamou Cicio.
      A conversa consistiu, em boa parte, em sons proferidos de vários modos.
      - Voltou? - perguntou Geoffrey.
      - De onde vem você? - retorquiu Cicio.
- De Knarborough... à sua procura. E você?
- Parti a roda da frente em Durbeyhouses.
      - Desprendeu-se?
      - É!
      - Ferido?
      - Não.
      - Max está bem.
      - Merde!
      - Ande, volte comigo.
      - Não. - Cicio abanou a cabeça.
      - Madame ficou chorando. Quer que volte. Cicio meneou a cabeça.
      - Nunca mais? - disse Geoffrey.
      - Basta... já chega - disse Cicio, num esgar invisível.
      - Volte por uns dias e partiremos todos juntos.
      Cicio meneou a cabeça de novo.
      - É um adeus?
      Cicio não disse nada.
      - Não vá embora, camarada - disse Geoffrey.
      - Faut - disse Cicio, levemente escarninho.
      - Eh, alors! Gostaria de ir com você. Quer?
      - Para onde?
      - Não importa. Vai para a Itália?
      - Quem sabe!... Pode ser.
      - Gostaria de voltar lá.
      - Eh, alors! - Cicio voltou-se meio de lado.
      - Espere por mim uns dias - disse Geoffrey.
      - Onde?
      - Vou vê-lo amanhã em Knarborough. Vá para a pensão de Mrs. Pym, Hampden Street, 6. Gettiventi está lá. Combinado?
      - Vou pensar nisso.
      - Às onze horas, está bem?
      - Vou pensar nisso.
      - Amigos sempre... Cicio... hem? - Geoffrey ofereceu a mão.
      Cicio, devagar, apertou-a. Os dois homens inclinaram-se um para o outro e deram um beijo de despedida em cada face.
      - Até amanhã, Cicio...
      - Au revoir, Gigi.
      Cicio montou na bicicleta e partiu num abrir e fechar de olhos. Geoffrey esperou um momento por um bonde que vinha em sua direção, brilhando sob a chuva. Depois, montou e pedalou na direção oposta. Foi direto a Lumley, e , Madame teve cólicas até as dez horas.
      Ouviu as novidades e disse:
      - Amanhã vou buscá-lo. - E com isto foi para a cama.
      De manhã, levantou-se cedo e enviou um bilhete a Alvina. Alvina apareceu às nove horas.
      - Quer vir comigo? - disse Madame. - Venha. Iremos juntas a Knarborough e traremos o velhaco do Cicio. Venha comigo porque eu estou sem forças. Sim, vem? Bem! Bem! Vamos dizer aos rapazes e iremos já, no bonde.
      - Mas eu não estou arrumada - disse Alvina.
      - Quem é que a verá? - disse Madame. - Venha, vamos embora.
      Disseram a Geoffrey que iriam ter com ele na esquina da Hampden Street, às cinco para as onze.
      - A menina vê - disse Madame a Alvina -, são muito engraçados esses rapazes, sobretudo os italianos. Talvez
ele não deixe que o vejamos... quem sabe? Talvez ele vá para a Itália mesmo assim.
      Sentaram-se no bonde trepidante, uma longa e fatigante jornada, e depois vadiaram pelas ruas tristes e feias da cidade manufatureira. Na esquina da rua esperaram por Geoffrey, que chegou cheio de lama da bicicleta.
      - Peça a Cicio que venha ter conosco e iremos tomar
café no Restaurante Geisha... ou chá, ou outra coisa qualquer - disse Madame.
      De novo, as duas mulheres esperaram fatigantemente na esquina da rua. Por fim, Geoffrey voltou, abanando a cabeça.
      - Ele não quer vir? - perguntou Madame.
      - Não.
      - Diz que vai para a Itália?
      - Não. Que vai para Londres.
      - É o mesmo. São inacreditáveis. Ele está assim tão teimoso?
      Geoffrey ergueu os ombros. Madame podia ver nele também um começo de defecção. E estava fatigada e desalentada.
      - Acabaremos com Natcha-Kee-Tawara, pronto - disse ela, mal-humorada.
      Geoffrey observava-a estúpida e impassivelmente.
- Quer ir com ele? - perguntou ela, bruscamente. Geoffrey sorriu timidamente e as cores se lhe avivaram.
Mas não disse nada.
      - Vá também - disse ela. - Vá também! Vá com ele! Mas para honrar a palavra, acabe a semana em Woodhouse. Não posso fazer com que o pai de Miss Houghton perca duas noites. Onde está sua vergonha? Acabe a semana e depois vá... Mas acabe a semana. Diga isso a Francesco. Acabei com ele. Mas ele que cumpra os compromissos. Não me envergonhem, não dêem cabo da minha honra e da honra de Natcha-Kee-Tawara. Diga-lhe isso.
      Geoffrey voltou de novo à casa. Madame, com seu elegante chapeuzinho preto de véu matizado, seu traje de casaco e saia pretos, ficou ali na esquina da rua, olhando em frente, tremendo um pouco de frio, mas não dizendo palavra alguma.
      De novo, Geoffrey assomou à porta. A face estava impassível.
      - Diz que não quer - falou ele.
      - Ah! - exclamou ela bruscamente, em francês. - O ingrato, o animal! Há de pagar por isso. Verão como há de pagar. Canalha, sem fé nem sentimentos. Meu Max, você tinha razão. Ah, precisava de pancada um canalha assim, como se bate num cão até que ele nos lamba os pés. Não há ninguém
que lhe queira bater por mim, ninguém! Sim, vamos embora.
Diga-lhe que antes de sair da Inglaterra ele há de sentir a mão de Kishwégin, e que ela será mais pesada do que a Mão Negra. Diga-lhe isso, a esse covarde, que obriga uma mulher
a faltar à palavra sem querer. Ah, canaille, canaille! Nem
fé nem sentimentos, nem fé nem sentimentos. Não se deve ter confiança neles, nesses cães do sul. - Deu alguns passos agitados pelo passeio. Depois, levantou o véu para limpar as lágrimas de cólera e de amarga desilusão.
      - Espere um pouco - falou Alvina. - Eu vou lá. - Estava comovida.
      - Não. A menina não! - exclamou Madame.
      - Sim, vou - disse ela. Tinha nos olhos o fogo da batalha. - Venha comigo até à porta - disse a Geoffrey.
      Este se pôs a caminho, obedientemente, e fê-la subir uma comprida e estreita escada, coberta de uma passadeira de oleado amarelo e castanho, bastante gasta, até o cimo da porta.
      - Cicio - disse ele, do lado de fora.
      - Oui! - respondeu a voz encaracolada de Cicio. Geoffrey abriu a porta. Cicio estava sentado numa cama estreita, numa pobre água-furtada, esconsa.
      - Não entre - disse Alvina a Geoffrey, olhando-o por sobre o ombro, enquanto entrava. Depois, fechou a porta
por trás de si e ficou de costas para esta, em frente ao italiano. Ele estava negligentemente sentado na cama, um cigarro entre os dedos, jogando a cinza no chão nu, entre os pés. Olhou cheio de curiosidade para Alvina. Ela o observou com seus olhos azuis, grandes e brilhantes, sorrindo ligeiramente e não dizendo nada. Ele a olhava firmemente, desconfiado, de sob as compridas pestanas pretas.
      - Não quer vir? - disse ela, sorridente e olhando-o nos olhos. Ele batia a cinza do cigarro com o dedo mínimo. Ela perguntava a si mesma por que usaria ele a unha do dedo mínimo tão grande, assim, tão grande. Continuava a sorrir-lhe e não fazia nenhum sinal.
      - Venha! - incitava-o ela, nunca tirando os olhos dele.
      Ele não fazia o mais ligeiro movimento e continuava com as mãos caídas entre os joelhos, observando-a e o cigarro ondeando um fio azul de fumaça.
      - Não quer vir? - disse ela, continuando de costas para a porta. - Não quer vir? - Sorriu de uma maneira estranha e viva.
      De súbito, deu um passo à frente, inclinou-se, olhando
o rosto dele como que timidamente, pegou sua mão trigueira e levantou-a para si. A mão dele estremeceu, deixou cair o cigarro, mas não foi retirada.
      - Quer vir, não quer? - disse ela, sorrindo graciosamente para os estranhos e observadores olhos amarelos dele, que olhavam fixamente os seus, para as negras pupilas
que enternecidamente se dilatavam. Sorria para os enternecidos olhos redondos dele, como olhos de algum
animal que se fixam num dos seus silenciosos e mais delicados
momentos. E repentinamente ela beijou-lhe a mão, beijou-a duas vezes, sofregamente, nos dedos e nas costas. Ele usava um anel de prata. Ao beijar-lhe os dedos, o anel de prata parecia-lhe um símbolo da sujeição dele, da sua inferioridade. Puxou-o pela mão levemente. E ele se pôs de pé. Ela voltou-se e agarrou na maçaneta da porta, mantendo agarrados os dedos dele com a mão esquerda.
      - Você vem, não é verdade? - dizia ela, olhando por sobre os ombros para os olhos dele. E lendo o consentimento nos imutáveis olhos dele, soltou sua mão e lentamente abriu
a porta. Ele voltou-se devagar, tirou o casaco de um prego, atirou-o para os ombros e vestiu-o. Depois, agarrou o chapéu, pôs um pé sobre o cigarro fumado, que continuou ardendo. Seguiu-a para fora do quarto, caminhando com a cabeça um pouco à frente, à maneira meio grosseira e cheia de sensualidade dos italianos.
      Quando chegaram à rua, viram a figura elegante, francesa, de Madame, que estava sozinha, como que abandonada. Tinha a face muito branca, por baixo do véu matizado, e os olhos muito negros. Olhava para Cicio, que seguia atrás de Alvina, à triste maneira de um cão, e não mexeu um músculo até que ele chegou a um passo dela. Ela olhou-o na face.
      - Te voilà donc! - disse ela, sem expressão. - Allons boire un café, he? Vamos tomar um café. - Ela punha agora uma inflexão de ternura na voz. Mas os olhos estavam negros de cólera. Cicio sorria tranqüilamente, um sorriso tranqüilo, belo e estúpido, e caminhou com ela.
      Madame não disse nada enquanto caminharam. Geoffrey passou na bicicleta, gritando que iria direto para Woodhouse.
      Quando os três se sentaram em frente das chávenas
de chá, Madame puxou o véu para cima dos olhos, o que lhe provocava uma faixa negra por cima das sobrancelhas. Tinha
a face pálida e cheia como a de uma criança, mas quase petreamente sem expressão, e os olhos negros e imperscrutáveis. Olhava quer para Cicio, quer para Alvina,
com olhares negros e imperscrutáveis.
      - Não querem também bolos com o café, vocês dois?
- perguntou ela com uma entonação amável que os olhares estranhos e negros desmentiam.
      - Sim - respondeu Alvina. Estava um pouco corada, como que provocante, enquanto Cicio se sentava timidamente, virando para o lado a cabeça que pendia, com o lento e estúpido, ainda que belo sorriso nos lábios.
      - E nada de mais trapalhadas com Max, hem, Cicio?
- dizia Madame, ainda com a entonação amável e os mesmos olhos negros e observadores. - Nada mais dessas estúpidas cenas, hem? Quê? Responda.
      - Pela minha parte, nada mais - disse ele, levantando os olhos para ela com um olhar fendido, como de gato, uns olhos zombeteiros.
      - Ah! Não? Nada mais? Ainda bem. Está bem! Estamos satisfeitas, não é verdade, Miss Houghton, com que Cicio tenha voltado e com que não torne a haver mais zangas?
... Hem?... Não é verdade?
      - Eu estou absolutamente satisfeita - disse Alvina.
      - Absolutamente satisfeita... sim, absolutamente satisfeita! Está ouvindo, Cicio? E lembre-se da outra vez. Quê? Não? Hã?
      Ele levantava os olhos para ela, um lento, zombeteiro sorriso franzindo-lhe os lábios.
      - Com certeza - disse ele, lentamente, numa sutil inflexão.
      - Sim. Bom! Está bem! Está bem! Somos todos amigos. Somos todos amigos, não é verdade, todos os
Natcha-Kee-Tawaras? Hã? Que lhe parece?
      - Sim - disse Cicio, de novo levantando para ela os olhos amarelos e cintilantes.
      - Está bem. Está bem, então! Está tudo bem... tudo esquecido... - Madame restabelecera sua antiga voz franca. Mas a sombria fixidez de seus olhos e o estreito olhar de Cicio, quando ele a olhava de relance, mostravam outra disposição por trás da evidência das palavras. - E Miss Houghton é do grupo! Não é? Ela nos aproximou uma vez mais
e assim se tornou do grupo. - Madame sorria de um modo estranho, as faces pálidas, gordas e brancas.
      - Eu adoraria ser uma Natcha-Kee-Tawara - disse Alvina.
      - Sim... bem... por que não? Por que não pertencer? Que é que você diz, Cicio? A menina pode tocar piano, talvez fazer outras coisas. Talvez melhor que Kishwégin. Que é que você diz, Cicio, não pode ela juntar-se a nós? Não é ela do grupo?
      Ele sorriu e mostrou os dentes, mas não respondeu.
      - Bem, como é? Que diz? Que não?
      - Sim - disse Cicio, sem querer comprometer-se.
      - Também digo que sim! Também digo. Muito boa idéia! Vamos falar nisso e falar talvez a seu pai, e a menina irá conosco! Sim.
      Assim, as duas mulheres regressaram a Woodhouse, de bonde, enquanto Cicio seguiu para casa de bicicleta. Era espantoso que Madame e Alvina não encontrassem nada para dizer uma à outra.
      Madame fez uma reunião da troupe e tudo pareceu igual
a antes. Ela decidira dançar na noite seguinte, noite de sábado. No domingo, a companhia partiria para Warsall, a cerca de cinqüenta quilômetros, para cumprir o contrato seguinte.
      Nessa noite, Cicio, sempre que tinha um momento disponível, observava Alvina. Ela sabia-o. Mas não conseguia decifrar o que aquilo queria dizer. Ele poderia do mesmo modo ter observado uma serpente se visse uma deslizando pelo teatro. Olhava-a de lado, furtiva mas persistentemente. E contudo não desejava encontrar os olhos dela. Evitava-a e observava-a. Quando ela o via parado, na sua maneira de estar negligente, musculoso e curvado, com a cabeça inclinada para a frente e os olhos de lado, por vezes desagradava-lhe. Contudo, havia no rosto dele uma espécie de finesse. A pele era delicadamente morena e ligeiramente luzidia. Os olhos eram tão escuros que toda a gente esperaria que fossem negros e cintilantes. E contudo encontravam-se umas pupilas amarelas, sulfúreas e longínquas. Era como encontrar um leão. O nariz comprido e delicado, o queixo bastante longo e arredondado e os lábios franzidos pareciam aperfeiçoados
por séculos de cultura esquecida. Ele esperava, silencioso, ali, com qualquer coisa de muscular e longínquo na sua atitude curvada, esperava. O quê? Alvina não o podia adivinhar. Desejava encontrar seus olhos, ter com ele um entendimento aberto. Mas ele não queria. Quando ela tentou conversar, o rapaz respondeu de maneira estúpida, de sorriso na boca e olhos inexpressivos, sem dizer absolutamente nada. Afastava-se dela obstinadamente. Quando ele se caracterizou, ela odiou por um momento seu dorso musculoso, belo e em declive, estúpido e largo. O esbelto desempenho de Max parecia muito mais delicado, mais fino, mais varonil. O peso aveludado e suave de Cicio, o verdadeiro peso dos seus músculos, tão delicadamente possantes, aborrecia-a.
      Alvina martelava colericamente o piano. Madame, que naquela última noite dançava como Kishwégin, arremessava-lhe olhares penetrantes. Alvina evitava Madame, como Cicio evitava Alvina... enganosa e todavia consciente, distante e contudo próxima.
      Madame dançou maravilhosamente. Não podia negar-se
que era uma artista. Tornava-se muito diferente: fresca, virginal, primitiva, mágica criatura esvoaçando. Era
infinitamente delicada e atraente. Seus braves mostravam-se ao mesmo tempo glamourosos e heróicos, e magicamente ela os cobria de endemoninhamento. Não importava que Alvina martelasse no piano, mal-humorada. Não conseguiria abafar o ardor que envolvia Kishwégin e a troupe. Cicio estava formoso agora: sem caracterização, animado, sem medo e ao mesmo tempo sugestivo, um sombrio e misterioso feitiço nas faces, apaixonado e distante. Um desconhecido... e tão belo! Alvina martelava o piano, quase em lágrimas. Odiava a beleza dele. Ela os separava. Nada tinha a esperar dela.
      Madame, com o comprido cabelo negro pendendo em
bem-cuidadas tranças, as faces ardendo por baixo das tintas escuras, era outra criatura. Como era leve! Como parecia
humilde e distante, como que separada dos homens por um fosso! Como era submissa... uma eternidade de inacessível submissão! A dança envolvente em redor do urso morto era bela: uma sombria e secreta curiosidade, uma admiração pela força maciça e máscula da criatura, estremecimentos de triunfo sobre o animal morto, uma cruel exultação e o temor de que ele não estivesse realmente morto! Era um espetáculo adorável, sugerindo o alvorecer do mundo, antes de Eva ter trincado a alvura de qualquer maçã carnuda, quando ela se mostrava ainda sombria, de olhos negros e silenciosa. E, depois, aquela simpatia clandestina pelo prisioneiro branco! Era na verdade, então, a Eva morena, tentada pelo conhecimento. A sua fascinação era implacável. Ajoelhava-se junto do brave morto, seu marido, como se ajoelhasse junto
do urso; com temor e admiração e dúvida e exultação. Dava-lhe um imperceptível empurrão com o pé. Carne morta como o urso! E um raio de alegria se derramava sobre ela, transformando-se
num soluço de mortal angústia. E então, vacilante, perversa, cheia de dúvida, olhava para Cicio lutando com o urso.
      Ela era a peça mais importante da ação, era Kishwégin.
E os morenos braves pareciam tornar-se mais morenos, mais secretos, malevolentes, ardendo num fogo cruel e ao mesmo tempo pensativos, conhecedores do seu fim. Cicio riu de maneira estranha, ao lutar com o urso, como não rira nunca nas noites anteriores. O som dirigia-se para o público, um som doce, malevolente e irônico. E quando se imaginava que o urso o esmagaria e que ele ia cair, libertou-se cambaleante dos braços do urso e disse para Madame, em voz irônica:
      - Vivo sempre, Madame. - E então caiu.
      Madame parou, como que atingida por um tiro, ao ouvir as palavras dele: "Vivo sempre, Madame". Ficou suspensa, sem se mexer, repentinamente sem forças. Depois, de repente, levou a mão à boca com um grito:
      - O urso!
      Assim terminava a cena. Mas, em lugar do terno e semi ansioso triunfo de Kishwégin, um triunfo elétrico como devia ser, quando ela pegava na mão do homem branco e a beijava, houve uma dúvida, uma hesitação, um nada, e Max não sabia bem o que fazer.
      Depois da representação, nem Madame nem Max se dignaram a dizer qualquer coisa a Cicio quanto à sua inovação na peça. Louis sentia que lhe competia falar, que lhe tinham reservado isso.
      - Ouça, Cicio... - falou ele. - Por que você alterou a cena? Poderia ter estragado tudo se Madame não fosse o gênio que é. Por que disse aquilo?
      - Por quê? - disse Cicio, respondendo em italiano ao francês de Louis. - Estava farto de estar morto, eis aí.
      Madame e Max ouviam em silêncio.
      Depois que Alvina tocou o God save the king, foi ao palco. Mas Cicio e Geoffrey já tinha emalado tudo e saído. Madame conversava com James Houghton. Louis e Max estavam ocupados. Mr. May dirigiu-se a Alvina:
      - Bem - disse ele. - Assim se fechou outra semana. Parece que nos saímos bem das dificuldades, não acha?
      - Maravilhosamente.
      Mas o pobre Mr. May falava em tom patético. Parecia sentir-se abandonado. Alvina não tinha nenhuma atenção para ele. Seus olhos vagueavam. Não lhe prestou a mínima atenção.
      Madame aproximou-se.
      - Bem, Miss Houghton - falou ela -, chegou a hora de lhe dizer adeus, parece-me.
      - Como se sente, depois de ter dançado? - perguntou Alvina.
      - Bem... não com tantas forças como de costume... mas não muito mal. Estarei bem dentro em pouco... obrigada. Parece-me que seu pai está mais doente do que eu. Em minha opinião ele tem um aspecto doentio.
      - Meu pai estafa-se muito.
      - Sim, e quando nós já não somos jovens, não há muito para estafar. Bem. Devo lhe agradecer uma vez mais.
      - A que horas partem, de manhã?
      - No trem das dez e meia. Se não chovermos rapazes irão de bicicleta... talvez todos eles. Nesse caso irão à hora que quiserem.
      - Eu virei despedir-me... - falou Alvina.
      - Oh, não... não se incomode.
      - Sim, eu quero levar para casa as coisas... a chaleira para as bronquites e o resto.
      - Oh, muito, muito obrigada... mas não se incomode. Eu mandarei Cicio com isso... ou um dos outros.
      - Gostaria de despedir-me de todos - persistiu Alvina.
      Madame olhou furtivamente para Max e Louis.
      - Não estamos todos aqui? Não. Dois foram embora. Não! Bem! A que horas virá?
      - Por volta das nove?
      - Muito bem, e eu parto às dez. Muito bem. Então au revoir, até amanhã. Boa noite.
      - Boa noite - disse Alvina. Estava muito corada. Foi com Mr. May e mal deu pela presença dele. Depois da ceia, quando James Houghton foi contar as moedas, Alvina disse a Miss Pinnegar:
      - Não acha que meu pai anda com ar preocupado, Miss Pinnegar?
      - Já reparei nisso há muito tempo - respondeu Miss Pinnegar, asperamente.
      - Que lhe parece que ele irá fazer?
      - Anda se matando, indo lá para baixo, faça sol ou faça chuva, gelando na bilheteria, e depois com o ar viciado... Anda se matando, simplesmente.
      - Que podemos fazer?
      - Nada, enquanto existir aquele lugar. Absolutamente nada.
      Era também o que Alvina pensava. Foi deitar-se.
      Levantou-se cedo e não tirava os olhos do relógio. Era uma manhã cinzenta, mas não chovia. Às cinco para as nove, correu para a casa de Mrs. Rollings. No pátio dos fundos estavam já as bicicletas, brilhantes ou enlameadas, conforme os donos. Cicio estava abaixado consertando um pneu, abaixado apoiando-se nos dedos dos pés, junto à terra. Voltou-se como um animal de ouvido agudo, deitando um olhar furtivo à aproximação dela, mas não se levantou.
      - Está arrumando as coisas para partir? - disse ela, baixando os olhos para ele. Ele virou a cabeça, contrafeito, olhando-a às avessas, e empinou o queixo. Ela nunca o vira assim ao contrário. Seus olhos descansaram no rosto dele, confusos. O queixo parecia muito grande e agressivo. Ele tinha o seu quê de repelente e brutal, assim visto às avessas. Todavia, ela prosseguiu:
      - Pode me ajudar a levar para casa as coisas que trouxe para Madame?
      Ele levantou-se mas não olhou para ela. Usava sapatos de ciclista muito gastos. Ficou olhando o pneu da bicicleta.
      - Não agora - disse ela. - Quero dizer adeus a Madame. Daqui a meia hora, pode ser?
      - Sim, está bem - disse ele, ainda olhando para o
pneu da bicicleta, largado no chão, como que nu. A posição
da cabeça dele, estendida para baixo, parecia a ela
curiosamente bela, assim como a linha reta e possante da nuca, a forma delicada da parte de trás da cabeça, o cabelo negro. O modo como o pescoço nascia dos ombros fortes e amplos era belíssimo. Havia algo de inconsciente mas deliberado na posição daquela cabeça. O rosto dele parecia sem cor, de tintas neutras, inexpressivo.
      Ela entrou. Os rapazes faziam os preparativos de partida.
      - Suba, Miss Houghton - chamou de cima a voz de Madame. Alvina subiu ao encontro de Madame, que fazia as malas.
      - É um momento desagradável este das mudanças - falou Madame, olhando para Alvina como se fosse uma pessoa estranha.
      - Receio que a incomode. Mas ficarei apenas um minuto.
      - Oh, está muito bem. Aqui estão as coisas que a menina trouxe... - Madame indicava-lhe um pequeno monte. - E obrigada, muito, muito obrigada. Tenho a impressão de que a menina me salvou a vida. E agora permita-me que lhe dê uma pequena lembrança da minha gratidão. Não é uma grande coisa porque não somos milionários no Natcha-Kee-Tawara. Apenas uma lembrancinha da nossa conturbada visita a Woodhouse.
      Presenteou Alvina com um par de mocassins, de um feitio curioso e adorável, com as solas e os lados de macia pele de veado.
      - Pertenciam a Kishwégin, por isso é Kishwégin quem os dá, pois ela está muito reconhecida a você por lhe ter salvo a vida, ou por a ter salvo de uma longa doença.
      - Oh, mas eu não quero aceitá-los... - dizia Alvina.
      - Não gosta deles? Por quê?
      - Acho-os lindos, lindos! Mas eu não posso privar a senhora deles...
      - Mas eu os dou de coração. A menina os aceita. Hem? - E Madame apresentava os mocassins, abrindo a mão gorda e cheia de jóias, num gesto decisivo.
      - Mas eu não posso aceitar isso - disse Alvina. - Sinto que eles pertencem aos Natcha-Kee-Tawaras. E eu não quero roubar os Natcha-Kee-Tawaras. Fique com eles.
      - Não, eu os dei. A menina não rouba os
Natcha-Kee-Tawaras aceitando um par de mocassins... é impossível!
      - Além disso, tenho a certeza de que são muito pequenos para mim.
      - Ah! - exclamou Madame. - Então é isso? Experimente!
- Sei que são - dizia Alvina, rindo confusamente. Sentou-se e tirou o sapato. O mocassim era um bocadinho
pequeno... só um bocadinho. Mas era encantador no pé, encantador.
      - Sim - falou Madame. - É muito pequeno. Está bem. Vou então arranjar-lhe outra coisa qualquer.
      - Por favor, não - disse Alvina. - Por favor, não procure nada. Eu não quero nada. Por favor!
      - O quê? - exclamou Madame. - É muito pequeno. Está bem. Vou então arranjar-lhe outra coisa qualquer.
      - Por favor, não - disse Alvina. - Por favor, não procure nada. Eu não quero nada. Por favor!
      - Está bem! Então, está bem. Não darei. Não lhe darei nada.
      E Madame passou de novo a ocupar-se das arrumações.
      - Tenho tanta pena de que se vá embora - disse Alvina.
      - Pena? Por quê? Sim, também eu tenho pena de nunca mais a ver. Sim, também eu. Mas talvez nos vejamos outra vez. Mandar-lhe-ei um postal. Pode ser que eu mande um dos rapazes, de bicicleta, trazer-lhe qualquer coisa que eu compre para você. Sim? Posso mandar?
      - Oh, teria um grande prazer... mas não compre...
- Alvina deteve-se a tempo. - Não compre nada. Mande-me qualquer coisinha dos Natcha-Kee-Tawaras. Eu gosto dos mocassins...
      - Mas são muitos pequenos - disse Madame, que tinha estado a observá-la com seus olhos negros que decifravam todos os motivos. Madame tinha também o seu lado avarento
e estava satisfeita por tornar a levar os mocassins.
- Muito bem... muito bem, farei como quer. Mandar-lhe-ei uma coisinha qualquer dos Natcha-Kee-Tawaras e um dos rapazes virá traze-la. Talvez Cicio? Hem?
      - Muito obrigada - disse Alvina, estendendo-lhe a mão.
- Até mais ver. Tenho tanta pena de que se vão embora.
      - Bem... bem! Nós não vamos para muito longe. Não para muito longe. Talvez nos vejamos qualquer dia. Pode ser. Adeus!
      Madame pegou na mão de Alvina e sorriu com ar cativante, gentilmente, com seus olhos negros e insondáveis. Uma repentina e invulgar gentileza. Alvina corou com surpresa
e com vontade de chorar.
      - Sim. Tenho pena de que a menina não faça parte dos Natcha-Kee-Tawaras. Mas havemos de ver isso. Adeus. Tenho de arranjar minhas coisas.
      Alvina conduziu para baixo as coisas que tinha para levar. Depois, foi dizer adeus aos rapazes, que estavam em fases diferentes da toalete. Só Max estava apresentável.
      Cicio estava exatamente terminando o reparo do pneu dianteiro. Ela olhou os polegares morenos dele comprimindo
o pneu. Ele era rápido e firme, muito mais capaz, e mesmo hábil, do que se poderia supor ao ver suas morenas mãos mediterrâneas. Fez girar a roda, batendo-lhe levemente.
      - Está pronta?
      - Parece que sim. - Pegou na bomba e encheu o pneu. Ela observou o modo forte porém suave como ele deu um balanço na bicicleta, a colocou em pé. Após o quê, rapidamente guardou as ferramentas.
      - Quer vir agora? - perguntou Alvina.
      Ele voltou-se, esfregando as mãos, limpando-as com um pano velho. Foi para dentro da casa, pôs o casaco e uma boina e agarrou as coisas que estavam em cima da mesa.
      - Aonde vai? - perguntou Max. Cicio indicou Alvina com
a cabeça.
      - Oh, deixe-me levar as coisas, Miss Houghton. Ele não está em estado de sair... - disse Max.
      Na verdade, Cicio estava sem colarinho e os sapatos estavam rebentados.
      - Não tem importância - falou Alvina, apressadamente.
- Ele já conhece o caminho. Foi ele que as trouxe.
      - Mas eu as levo. Estou arrumado. Permita-me... - E começou a pegar as coisas. - Vá vestir-se, Cicio.
      O italiano olhou para Alvina.
      - Quer? - indagou ele, como que à espera de ordens.
      - Deixe Cicio levar as coisas - disse Alvina a Max. 
- Muito obrigada. Mas deixe-o levá-las.
      Assim, Alvina marchou pelas ruas matutinas de domingo, com o italiano que, de sapatos gastos, ia com os braços atulhados de objetos domésticos para casos de doença. Ela não sabia o que dizer e ele não dizia nada.
      - Vamos por aqui - disse ela, abrindo bruscamente a porta da sala de entrada. Tinha-a destrancado antes de sair porque essa entrada raramente era usada. Assim, ela conduziu o italiano para a escura sala de visitas, com altas estantes negras com filas e filas de livros encadernados em couro, o velho tapete vermelho com flores e um grande piano coberto de partituras. Cicio pôs as coisas onde ela indicou e deixou-se ficar de boina na mão, olhando de lado.
      - Muito obrigada - disse ela, hesitante.
      Ele franziu os lábios num leve sorriso de desprezo.
      - De nada - murmurou.
      Seus olhos vagaram pouco à vontade, encontrando um retrato na parede.
      - Esta era minha mãe - falou Alvina.
      Ele baixou os olhos para ela, mas não respondeu.
      - Tenho tanta pena de que se vá embora - comentou ela nervosamente, fixando-o com os olhos azuis muito abertos.
      O leve sorriso cresceu até a parte inferior do rosto, que ele mantinha desviado. Depois, olhou para ela.
      - Temos de ir - disse ele, com os olhos observando-a reservadamente, a boca se torcendo num sorriso meio envergonhado.
      - Gosta de viver assim, sempre de um lado para outro?
- perguntou ela, os grandes olhos azuis fixos no rosto dele.
      Ele mexeu levemente a cabeça.
      - Tem de ser. Eu gosto.
      O que ele dizia não significava nada para si mesmo. Agora, observava-a fixamente, com um ar ligeiramente trocista e com uma reserva que não podia evitar.
      - Acha que o tornarei a ver? - disse ela.
      - Teria prazer nisso? - perguntou ele, com um sorriso dissimulado e um leve encolher de ombros.
      - Teria muitíssimo prazer... - O rubor subiu-lhe ao rosto. Sentiu aproximarem-se os passos quase imperceptíveis de Miss Pinnegar.
      Ele fez-lhe um leve aceno com a cabeça, olhando-a fixo, mexendo os cantos dos olhos manhosamente, o nariz parecendo aguçar-se levemente.
      - Está bem. Na próxima semana? De manhã?
      - Sim! - exclamou Alvina, no momento em que Miss Pinnegar entrava pela porta. Ele relanceou-lhe um olhar por cima do ombro.
      - Oh! - gritou Miss Pinnegar. - Não podia imaginar quem seria. - Olhou para o rapaz de modo severo.
      - Não podia? - disse Alvina. - Viemos trazer estas coisas.
      - Oh, sim. Bem... será melhor virem para outra sala, para junto do lume - disse Miss Pinnegar.
      - Eu tenho de ir-me embora. Adeus! - disse Cicio, e com uma ligeira vênia para Alvina e uma ainda mais ligeira para Miss Pinnegar, saiu da sala e pela porta da frente, como que fugindo.
      - Suponho que eles partam esta manhã - disse Miss Pinnegar.

      CAPÍTULO 9 - ALVINA TRANSFORMA-SE EM ALLAYE

      Alvina chorou quando os Natchas partiram. Gostava muito deles, queria estar com eles. Mesmo em Cicio ela não via mais do que um dos Natchas. Esperava que ele voltasse, assim como esperava uma visita de toda a troupe.
      Era tão triste o teatro sem eles! Estava farta do Esforço. Desejava que aquilo não existisse. O ensaio da manhã de segunda-feira maçou-a de modo horrível. O pai andava nervoso e irritável. A semana anterior fatigara-o sensivelmente. Ele próprio se metera num estado de apreensão nervosa que nada justificaria, a não ser talvez que as paredes de madeira do Esforço ardessem até o chão, com Mr. May lá dentro, vitimado como outro Sansão. Adquirira um horror nervoso por todos os artistes. Não se sentiria livre nem por um só momento enquanto dependesse de um só deles que fosse.
      - Temos de pôr isto só como cinema - disse ele febrilmente a Mr. May. - Não contrate mais ninguém depois
do fim do próximo mês.
      - Como? - disse Mr. May. - Como? Está absolutamente decidido?
      - Sim, absolutamente! Absolutamente! - James estava agitado. - Já escrevi acerca da máquina nova e do fornecimento de filmes da Chanticlers.
      - Ah, sim? - falou Mr. May. - Oh, então, nesse caso...
- Mas ele estava cheio de consternação e de pena.
      - Claro - disse ele mais tarde a Alvina - que não posso de forma alguma ficar se tivermos apenas cinema! - E arqueou as pálpebras embranquecidas e sombrias, terrivelmente
decidido.
      - Por quê? - exclamou Alvina.
      - Oh... por quê! - Tomava uns ares irônicos. - Bem, isso não é de modo nenhum o meu forte. Eu não sou operador de cinema! - E inclinou a cabeça para um lado numa careta de desprezo e superioridade.
      - Mas o senhor também o é - retorquiu Alvina.
      - Sim, também. Mas não apenas! Você pode lavar os pratos na cozinha. Mas não é apenas a empregada, não é verdade?
      - Mas acha que é a mesma coisa? - exclamou Alvina.
      - Claro que sim! - respondeu Mr. May. - Claro que é a mesma coisa.
      Alvina riu, de certo modo impiedosamente, fixando-lhe os olhos pálidos e reflexivos.
      - Mas que fará o senhor, então? - perguntou ela.
      - Tenho de procurar outra coisa - disse o homenzinho, vexado mas destemido. - Há mais coisas do que isso.
      - Então não ficará aqui? - perguntou ela.
      - Nem pensar nisso. Nem pensar nisso. - Arrulhava como um pombo ferido.
      - Bem - disse ela, rindo laconicamente. - São coisas entre o senhor e meu pai...
      - Claro! - disse ele. - Naturalmente. Com quem mais havia de ser? - Mas o tom de voz era um pouco despeitado, como se ele tivesse posto as derradeiras esperanças em Alvina.
      Alvina saiu. Deu conhecimento a Miss Pinnegar da mudança que ia ocorrer.
      - Bem - disse Miss Pinnegar, judiciosa mas distante -, é uma mudança para o bom caminho. Mas duvido que isso faça algum bem.
      - Duvida? - disse Alvina. - Por quê?
      - Não acredito naquele local, nunca acreditei - declarou Miss Pinnegar. - Não acredito que tal lugar dê alguma coisa de bom.
      - Mas por quê? - persistia Alvina. - O que a leva a ter assim uma opinião tão firme?
      - Não sei. Mas é o que eu sinto. E senti-o desde o começo. Aquilo está errado desde o princípio. Foi um erro
tê-lo começado.
      - Mas por quê? - insistia Alvina, rindo.
      - Seu pai não é homem para aquilo. Não é homem para andar metido em teatros. Isso não é para ele. Não é do seu
feitio. Ele agiu contra sua própria natureza e contra sua própria vida.
      - Oh, mas... - disse Alvina - meu pai era um homem de teatro, mesmo na loja. Foi sempre isso. Minha mãe dizia que ele era como um saltimbanco numa barraca de feira.
      Miss Pinnegar estava embaraçada.
      - Bem! - disse ela com vivacidade. - Se é isso que você vê nele! - Houve uma pausa. - E nesse caso - continuou ela asperamente -, parece-me que qualquer coisa do homem de teatro despertou na filha! Ou da mulher de teatro... O que não representa melhoria, a meu ver.
      - Há algum mal nisso? - indagou Alvina. - Me agrada... e o mesmo acontece a meu pai.
      - Não - exclamou Miss Pinnegar. - Nisso você está enganada! Aí é que você está errada. Isso é absolutamente contrário ao que há de melhor na natureza dele.
      - Sim! - disse Alvina, com surpresa. - Que idéia nova! E o que há de melhor na natureza de meu pai?
      - Você talvez não o saiba - disse Miss Pinnegar friamente -, e nesse caso também não posso lhe dizer. Mas isso não altera nada. - Caiu num silêncio mortal durante
momentos. Depois, bruscamente, rebentou, maldosa e fria:
- Ele continuará até se matar, e então saberá.
      O pequeno advérbio "então" passou sibilando pelo espaço como uma bala. Obrigou Alvina a deter-se. Estaria seu pai para morrer? Refletiu. Bem, todos os homens tinham de morrer.
      Esqueceu a questão em meio a outras que a ocuparam. Primeiro, poderia ela tolerar que o Esforço se transformasse num cinema barato e imundo? As estranhas figuras dos artistes que passavam ante seus olhos tinham-na distraído, semana a semana. Tinham-na aborrecido em algumas semanas, noutras ela os detestara, mas havia sempre uma probabilidade na semana seguinte. Pensava nos Natcha-Kee-Tawaras!
      Ela pensava demais nos Natcha-Kee-Tawaras. Sabia-o. E tentava obrigar o espírito à contemplação do novo estado de coisas, enquanto dava pancadas no piano, acompanhando filmes importunos. Haveria o pai, ela própria e Mr. May... ou um novo operador, um novo gerente. O novo gerente! - Pensava nele por um momento... e pensava nas mecânicas pessoas com cara de operário que geriam o Wright's e o Império de Woodhouse.
      Mas seu espírito repelia essas áridas reflexões. Os Natcha-Kee-Tawaras obcecavam-na. Pareciam tê-la fascinado. Qual deles, ou o quê, lhe lançara o feitiço, ela não o sabia.
Mas estava como que hipnotizada. Ansiava estar com eles. Sua alma gravitava sempre na direção deles.
      Segunda-feira passou e Cicio não veio; passou
terça-feira, e quarta. Do fundo da alma ela estava cética quanto a que eles cumprissem a promessa... quer Madame, quer
Cicio. Por que haveriam de cumprir a promessa? Ela bem sabia o que eram esses artistes nômades. E a alma obstinava-se dentro dela.
      Na quarta-feira à noite deu-se outro fato sensacional
no Esforço. Mr. May encontrou James Houghton desmaiado na bilheteria, depois de o espetáculo ter começado. Que fazer? Não podia interromper Alvina nem o espetáculo. Mandou o rapaz dos chocolates e laranjas ao Pear Tree buscar conhaque.
      James voltou a si.
      - Estou bem - disse ele, num modo sumido - Estou bem. Não se incomode. - Ficou sentado, com a cabeça apoiada à mão, na bilheteria, e Mr. May teve de deixa-lo para ir passar o filme.
      Quando chegou o intervalo, Mr. May correu à bilheteria, um estreito buraco onde James mal podia sentar-se e ali foi encontrar o inválido na mesma postura, semi-inconsciente.
Deu-lhe mais conhaque.
      Já lhe disse que estou bem - falou James, os olhos brilhando. - Deixe-me sozinho. - Mas ele de modo algum tinha o aspecto de estar bem.
      Mr. May chamou Alvina. Quando a filha entrou na bilheteria, o pai recaíra no estado de torpor.
      - Papai - disse ela, tocando-lhe o ombro levemente - Que foi?
      Ele murmurou qualquer coisa, algo sem nexo. Ela olhou-o no rosto. Estava cinzento e pálido.
      - Temos de levá-lo para casa. Temos de arranjar um carro.
      - Dê-lhe um pouco de conhaque - falou Mr. May.
      Mandaram o rapaz procurar um carro. James engoliu uma colherada de conhaque. Voltou a si, irritado.
      - Quê? Quê? - dizia ele - Eu não quero todo esse rebuliço. Continuem com o espetáculo, não há necessidade
de se incomodarem comigo. - Tinha os olhos espantados.
      - Deve ir para casa, papai.
      - Deixem-me sozinho! Quer fazer o favor de me deixar sozinho! Toda a vida martirizado por mulheres. martirizado por mulheres... primeiro uma, depois outra.
Já não agüento mais... já não agüento mais... - Olhava para Alvina com um olhar de fúria e desmaiou de novo, caindo com a cabeça sobre as mãos, na bilheteria. Alvina olhava para Mr. May.
      - Devemos levá-lo para casa - falou ela. Cobriu-o com um casaco e sentou-se perto dele. O espetáculo continuou sem música.
      Por fim, chegou o carro. James, inconsciente, foi transportado para Woodhouse. Foi preciso carregá-lo para dentro de casa. Alvina correu na frente para acender a luz no corredor escuro
      - Meu pai está doente - anunciou ela a Miss Pinnegar.
      - Eu já o tinha dito - disse Miss Pinnegar, dando um salto na cadeira.
      As duas mulheres foram ao encontro do cocheiro, que tinha James nos braços.
      - Pode com ele? - exclamou Alvina, trazendo a luz.
      - Não pesa muito - disse o homem.
      - Te-te-te-te-te - fazia a língua de Miss Pinnegar, num rápido te-te-te de aflição. - Que dizia eu já há tanto tempo?
      Deitaram James no sofá. Tinha os olhos meio fechados. Fizeram-no beber conhaque, mandaram o rapaz chamar o médico, aqueceram a cama de Alvina. O doente foi levado para a cama. E então começou outra vigília. Alvina sentou-se no quarto do doente. James tremia e balbuciava, mas não recuperava a consciência. Veio a manhã e ele estava na mesma. Pneumonia e pleurisia e uma ligeira infecção das meninges. Alvina bebeu chá, almoçou ligeiramente e foi para a cama por volta das nove horas da manhã, deixando James a cargo de Miss Pinnegar. O tempo estava todo desorganizado.
      Miss Pinnegar era uma enfermeira nervosa. Estava sentada, cheia de horror e apreensão, as sobrancelhas erguidas tremendo, e olhando James com terror sempre que
ele fazia barulho. Corria para ele e fazia o que podia. Mas ninguém imaginaria como aquilo lhe custava, como inconscientemente ela achava aquela tarefa antipática.
      No decurso da manhã, Mrs. Rollings veio e disse ter chegado o italiano da semana passada, que queria falar a Miss Houghton.
      - Diga-lhe que ela está descansando e que Mr. Houghton está muito doente - disse Miss Pinnegar severamente. 
      Quando Alvina apareceu por volta das quatro horas da tarde, encontrou um embrulho: um pente de osso com gravações e um bilhete de Madame: "Para Miss Houghton, com muitos cumprimentos e os mais sinceros agradecimentos de Kishwégin".
      Um pente com gravações, a cabeça de uma serpente, era o que lhe cabia. Alvina perguntou se não havia mais nenhum bilhete. Mais nada.
      Mr. May entrou e deixou-se ficar durante uma lúgubre meia hora. Depois, Alvina regressou à tarefa de enfermeira.
O doente não estava melhor e continuava inconsciente. Miss Pinnegar desceu para o andar de baixo, com os olhos vermelhos e um ar taciturno. O estado de James dava pouco lugar a esperanças.
      De manhã cedo morreu. Alvina chamou Mrs. Rollings e vestiram o corpo. Eram ainda só cinco horas e não havia claridade. Alvina foi deitar-se no quarto pequeno e frio
do pai, no fundo do corredor. Tentava dormir mas não podia. Às sete e meia levantou-se, começou as tarefas do novo dia. Veio o médico... ela foi fazer o registro do óbito, etc.
      Mr. May veio. Foi decidido manter aberto o teatro. Arranjar-se-ia uma pessoa qualquer para o piano e outra para a venda dos bilhetes.
      À tarde, chegou Frederick Houghton, primo de James e
o mais próximo parente. Era um homem de meia-idade, louro, vistoso, negociante de tecidos em Knarborough e muito beato, abastado e muito bourgeois. Tentou falar com Alvina de maneira paternal, ou amigável, ou de uma maneira proveitosa. Mas Alvina não podia ouvi-lo. Mexia-lhe com os nervos.
      Como ouvisse bater o portão, levantou-se e correu para a janela. Estava na sala de visitas com o primo, para dar à visita o ar solene que lhe competia. Viu Cicio encostando a bicicleta na parede e caminhando de cabeça erguida pelo caminho estreito e sombrio do pátio, em direção à porta da cozinha.
      - Desculpe-me, é um minuto apenas - disse ela ao primo, que levantou os olhos, irritado, quando ela saiu da sala.
      Chegou justamente em tempo de abrir a porta ao bater de Cicio. Estava na soleira da porta, o que a fazia mais alta que ele. O rapaz olhou-a, com um leve sorriso, de sob as pestanas negras.
      - É muito amável por ter vindo - disse ela. Mas a sua face estava lívida e fatigada, sem expressão. Apenas os grandes olhos pareciam tristes em todo aquele cansaço, quando ela os relanceou para Cicio. Ele parecia-lhe muito distante.
      - Madame pergunta como está Mr. Houghton.
      - Meu pai? Morreu esta manhã - respondeu Alvina, tranqüilamente.
      - Morreu! - exclamou o italiano, um relâmpago de medo e de consternação subindo-lhe ao rosto.
      - Sim... esta manhã. - Não tinha nem lágrimas nem emoção, mas olhava-o abstratamente, do cimo da escada da cozinha. Ele baixou os olhos e olhou para os pés. Depois,
levantou de novo os olhos e olhou para ela. Ela olhava para ele como que de muito longe. Assim, olharam um para o outro, como estranhos separados por grande e abstrata distância.
      Ele voltou-se e olhou para o pátio, em direção ao portão, onde podia ver justamente o pneu cinzento da bicicleta e o pára-lama amarelo. Parecia estar refletindo.
Se partisse agora, partiria para sempre. Involuntariamente, voltou-se e levantou o rosto de novo para Alvina, como que
a estudá-la cuidadosamente. Ela continuava ali no cimo da escada, neutra, lívida, de olhos bem abertos, tranqüilos, neutros. Parecia não o estar vendo. Ele a observou com olhos alerta, amarelo-escuros e insondáveis, até ela lhe encontrar o olhar. E então fez um ligeiríssimo gesto com a cabeça, como que chamando-a para ele. A alma de Alvina estremecia e morria dentro dela. E ele fez de novo o leve e quase imperceptível sinal da cabeça, para trás e para o lado, como que
chamando-a. Também a sua face estava fechada e inexpressiva. Mas nos olhos, que retinham os dela, havia uma luz negra de superioridade. Estava prestes a triunfar sobre ela. A moça sabia-o. E a alma fugia-lhe como se lhe fugisse do corpo. Fugia-lhe do corpo para qualquer parte, deixando-a ali impotente e sem alma.
      E, contudo, quando ele se virou, com a cabeça inclinada para a frente, para se afastar, quando atirou um rápido olhar por sobre o ombro, ela desceu os degraus para o acompanhar. Ele seguia de cabeça baixa pelo pátio sombrio, aproximando-se do portão. Ali, perto da bicicleta, havia um canto feito por um telheiro.
      Ele voltou-se lentamente para ela, e ela se deteve na frente dele.
      Alvina tinha os olhos bem abertos, neutros e submissos,
de uma nova e terrível submissão, como se tivesse perdido a alma. Assim ela o olhava, como uma vítima. Havia um leve sorriso nos olhos dele. Inclinou-se para ela.
      - Gosta de mim? Gosta?... Gosta? - disse ele, numa voz que parecia um contato palpável com ela.
      - Gosto - ciciou ela involuntariamente, sem alma, como uma vítima. Ele pôs um braço em volta dela, sutilmente, e levantou-a.
      - Gosto - disse ele num eco, quase trocista no seu triunfo. - Gosto. Gosto. - E sorrindo, beijou-a delicadamente, com certo requinte de conhecedor. Ela gemia por dentro da alma, nos braços dele, sentia-se morta, morta. E ele a beijava com requinte, com um apaixonado requinte que parecia pôr carvões ardentes na cabeça de Alvina.
      Ouviram passos. Miss Pinnegar vinha à procura dela. Cicio fê-la baixar-se, olhou-a demoradamente nos olhos, insondavelmente, sorrindo, e disse:
      - Volto amanhã.
      Com o quê esquivou-se, deslizou pelo pátio, pegou a bicicleta como quem pega uma pena e, não dando atenção a Miss Pinnegar, deixou o portão bater atrás dele.
      - Alvina - disse Miss Pinnegar.
      Mas Alvina não respondeu. Ela voltou-se, desapareceu, correu para casa e subiu as escadas para o pequeno quarto
nu que ela fizera seu. Fechou a porta à chave e ajoelhou-se,
curvando a cabeça até os joelhos num paroxismo. Num paroxismo... porque ela o amava. Prosternava-se num paroxismo... porque o amava. Aquilo era muito mais sofrimento, muito mais agonia do que alegria. Pendia ora
para um lado ora para o outro, num paroxismo de insuportável sensação, porque o amava.
      Miss Pinnegar bateu à porta.
      - Alvina! Alvina! Você está aí? Que está fazendo? Então não vai falar com seu primo?
- Vou já - respondeu Alvina.
      E, tirando um travesseiro da cama, apertou-o contra si
e balançou-o inconscientemente, num orgasmo de insuportáveis sensações. Era exatamente nas entranhas que sentia uma terrível, insuportável sensação. Como poderia suportá-la?
      Manteve-se assim até que se acalmou. Um momento de tranqüilidade pareceu cobri-la como se fosse sono; uma eternidade de sono naquele único momento. Depois, despertou
e levantou-se. Foi ao espelho, calma, evanescente, compôs o cabelo e arranjou o rosto. Estava tão calma, tão distante, que sentia que nada, nada podia sequer tocá-la.
      E então desceu a escada para junto daquele horrível primo de seu pai. Parecia tão intangível, distante e virginal, que tanto seu primo como Miss Pinnegar não conseguiram tirar nada dela. Simplesmente respondia às perguntas, mas não conversava. Eles conversavam um com o outro. E por fim o primo foi-se embora, profundamente desgostoso com Miss Alvina.
      Ela não deu por isso. Estava apenas satisfeita por
ele ter partido. E rodou pelo resto do dia, evasiva e vaga. Dormiu profundamente naquela noite, sem sonhos.
      O dia seguinte era sábado. Começou com uma grande tempestade de vento e chuva e saraiva, uma fúria. Alvina olhava para a rua com desânimo. Via que Cicio não poderia
vir... não poderia vir de bicicleta e era impossível vir de trem e voltar no mesmo dia. Ficou quase aliviada. Ficou quase aliviada pela intromissão do destino, reconhecida por aquele dia de neutralidade.
      Às primeiras horas da tarde veio um telegrama: "Iremos ambos amanhã manhã profunda simpatia Madame". Amanhã era domingo, e o funeral era à tarde. Alvina sentiu-se febril ao pensar em Cicio. Retraía-se... e contudo desejava que ele viesse. Ardentemente desejava que ele viesse.
      Mostrou o telegrama a Miss Pinnegar.
      - Valha-me Deus! - disse a fatigada Miss Pinnegar.
- Gente oferecida. E garanto que hão de desejar ir ao funeral. Como se fosse alguma coisa com eles...
      - Acho que é muito amável da parte dela - falou Alvina.
      - Oh, sim - disse Miss Pinnegar. - Se você acha, por mim não acredito que ele desejasse ser acompanhado por tal gente. E que quer ela dizer com este ambos? Quem é o outro? - Miss Pinnegar olhou severamente para Alvina.
      - Cicio.
      - O italiano! Mas por quê, Deus meu? Que vem ele fazer aqui? Eu não a entendo, Alvina. É esse o nome dele, Chicho? Nunca ouvi tal nome. Não há lugar para eles nos carros.
      - Alugaremos outro.
      - Mais despesa. Nunca vi gente tão impertinente... Mas Alvina não a ouvia. Na manhã seguinte, vestiu cuidadosamente o vestido novo. Era de voile preto. Cuidadosamente arranjou o cabelo. Cicio e Madame estavam para vir. O pensar em Cicio fazia-a estremecer. Deu voltas, à espera. Felizmente, nenhum dos convidados para o funeral viria antes da uma hora. Alvina sentou-se, descuidada, pensando em mil coisas, junto do lume na sala de visitas. Deixara tudo aos cuidados de Miss Pinnegar e Mrs. Rollings. Miss Pinnegar, de olhos vermelhos
e pele amarelecida, estava irritada além do que se poderia imaginar.
      Era quase meio-dia quando Alvina ouviu o portão. Correu a abrir a porta da frente. Madame usava o chapeuzinho preto
e o véu preto matizado, Cicio vinha de sobretudo preto e fechava a porta do pátio.
      - Oh, minha boa amiga! - exclamou Madame, saltitando ao encontro dela, estendendo as mãos com luvas pretas de pele de cabrito, uma das quais segurava um guarda-chuva. - Fiquei tão impressionada... tão impressionada ao saber da morte do seu pobre pai! Mas é verdade que ele morreu?... É verdade? Não, não posso acreditar.
      Levantou o véu, beijou Alvina e esfregou os olhos. Cicio subiu os degraus. Tirou o chapéu e sorriu levemente ao passar por Alvina. Tinha um ar pálido, constrangido. Ela fechou a porta e levou-os para a sala de visitas.
      Madame olhava em redor como um pássaro, examinando
a sala e os móveis. Estava evidentemente um pouco impressionada. Mas não deixou um momento de proferir palavras
de condolências.
      - Diga-me, minha filha, como é que isso aconteceu?
      - Não há muito o que contar - disse Alvina, e fez um breve relato da doença e da morte de James.
      - Estava cansado! Estava cansado! - disse Madame, abanando lentamente a cabeça para baixo e para cima. O véu negro, levantado, descaía sobre as sobrancelhas como um sinal de luto. - A gente não pode abusar das forças. E a menina mantém o teatro... com Mr. May?
      Cicio estava sentado, olhando para o lume. Sua presença fazia Alvina tremer. Ela notava como o delicado cabelo negro da cabeça dele não estava dividido por uma risca, antes crescia como um boné espesso, repuxado de lado na testa. Olhava para ela às vezes, enquanto Madame falava, e tornava a olhar para ela e desviava os olhos. Por fim, Madame fez uma pausa. Houve um longo silêncio.
      - Ficam para o funeral? - disse Alvina.
      - Oh, minha amiga, dar-lhe-emos muito incômodo...
      - Não - falou Alvina. - Já havia contado com vocês.
      - Aí está! A menina pensa em tudo. Mas eu vou embora, Cicio, não. Ele não a incomodará.
      Cicio levantou os olhos para Alvina.
      - Gostarei muito que ele vá - disse Alvina com simplicidade. Mas um rubor profundo começava a subir-lhe
ao rosto. Não sabia de onde isso vinha, sentia-se tão fria!
E tinha vontade de chorar.
      Madame seguia-a atentamente com os olhos.
      - Siamo di accordo - falou Cicio.
      Alvina e Madame olharam ambas para ele, sentado, constrangido, o rosto desviado, olhos caídos, mas sorridente. Madame olhou atentamente para Alvina.
      - É verdade o que ele diz? - perguntou ela.
      - Eu não o entendi - disse Alvina. - Não entendi o que ele disse.
      - Que a menina está de acordo com ele...
      Madame e Cicio olharam ambos para Alvina, sentada, com
o novo vestido preto. Os olhos dela involuntariamente voltaram-se para ele.
      - Não sei - respondeu ela de modo vago. - Tenho por acaso eu... ? - E olhou para ele.
      Madame esteve calada por momentos. Depois, disse gravemente :
      - Bem!... Sim!... Bem! - Olhava de um para o outro.
- Bem, é um caso a considerar. Mas se já decidiram...
      Nenhum deles respondeu. Madame levantou-se de repente e caminhou para Alvina. Beijou-a em cada uma das faces.
      - Eu a protegerei - disse ela. Depois, voltou a seu lugar.
      - Que disse você a Miss Houghton? - falou ela bruscamente a Cicio, olhando-o de frente e falando friamente.
      Ele olhava para Madame com um leve sorriso irônico. Depois, voltou-se para Alvina. Ela inclinou a cabeça e corou.
      - Fale, então - disse Madame. - Há de ter uma razão.
- Parecia receosa dele.
      Mas ele voltou a face para o lado e recusou-se a falar, sentando-se como se desconhecesse a presença de Madame.
      - Oh, bem - disse Madame -, eu estarei lá, signorino.
      Falava com uma ameaça meio travessa. Cicio franziu o lábio.
      - A menina ainda não o conhece - disse ela, voltando-se para Alvina.
      - Bem sei - retorquiu Alvina, irritada. Depois, acrescentou: - Talvez queira tirar o chapéu?
      - Se quer realmente que eu fique - disse Madame.
      - Sim, por favor. E quer pôr o casaco lá fora? - indagou ela a Cicio.
      - Oh! - disse Madame asperamente. - Ele não fica para comer. Irá a qualquer parte.
      Alvina olhou para ele.
      - Prefere assim? - perguntou.
      Ele olhou para ela com sardônicos olhos amarelos.
      - Se quiser... - disse ele, o sorriso grosseiro e irônico franzindo-lhe os lábios e mostrando os dentes.
      Ela teve um momento de completo pânico. Era ele estúpido e animal? Este límpido pensamento atravessou-a. Os olhos amarelos dele olhavam-na sardonicamente. Foi o puro desenho do rosto dele, sombrio e do outro mundo, que a decidiu...
porque isso a fez ser atravessada por um profundo espasmo.
      - Eu gostaria que você ficasse.
      Subiu ao rosto dele um sorriso de triunfo. Madame olhava-o duramente, de pé, junto da cadeira, uma das mãos ligeiramente balançando-se no quadril. Alvina lembrou-se de Kishwégin. Mas até na dura desconfiança de Madame havia um elemento de atração para ele. Cicio tirara do bolso a cigarreira.
      - On ne fume pas dans le salon - disse Madame brutalmente.
      - Ponha o casaco no corredor... e fume, se quiser
- disse Alvina.
      Ele pôs-se de pé e tirou o sobretudo. Tinha o rosto obstinado e trocista. Estava vestido de modo que chamava muito a atenção, ainda que de preto, e trazia botas de verniz preto com canos amarelos. Era belo... mas inegavelmente vestido com mau gosto. Tinha o anel de prata sempre no dedo... e o cabelo denso, belo, sem risca, ia mal com o elegante vestuário inglês. Tinha um ar vulgar... admitia Alvina. O coração se lhe partia. Mas que havia ela de fazer? Ele evidentemente não era feliz. A obstinação fazia-o elucidar a situação.
      Alvina e Madame foram ao andar de cima. Madame quis ver o falecido James, contemplou-lhe as faces frágeis, belas e etéreas, e persignou-se, chorando.
      - Un bel homme, cependant - balbuciou ela. - Mort en un jour. C'est trop fort, voyez! - E sorriu abafadamente com temor e soluços.
      Desceram para o quarto nu de Alvina. Madame olhou em redor furtivamente, como fazia em todos os quartos em que entrava.
      - Este era o quarto do meu pai - falou Alvina. - O outro era o meu; ele quis isto sempre assim... nu.
      - Uma natureza de monge, um eremita - balbuciou Madame. - Quem havia de dizê-lo! Ah, os homens, os homens!
      Tirou os alfinetes do chapéu e passou a mão pelo cabelo em frente ao pequeno espelho, onde só espreitando podia
ver-se. Alvina a esperava de pé.
      - E agora... - balbuciou Madame, voltando-se repentinamente. - Que há a respeito de Cicio? - Era ridículo que não elevasse a voz além de um murmúrio, ali no andar de cima. Mas era assim.
      Perscrutava Alvina com os olhos negros, brilhantes como vidro. Alvina olhava para ela, mas não sabia o que dizer.
      - Que há a respeito de Cicio? Quer casar com ele? E por quê?
      - Julgo que por gostar dele - respondeu Alvina, corando.
      Madame fez um pequeno trejeito.
      - Oh, sim! - balbuciou ela, fazendo uma careta desdenhosa. - Oh, sim!... Por gostar dele! Mas a menina não sabe nada sobre ele... nada. Como pode gostar dele sem o conhecer? Ele pode ser uma pessoa de mau caráter. Como é que gostaria então dele?
      - Mas não é, não é verdade?
      - Não sei. Não sei. Pode ser. Mesmo eu não o conheço... não, apesar de ele estar comigo há três anos. Quem é ele? Um homem do povo, um barqueiro, um operário, um modelo de artista. Não se liga a nada...
      - Que idade tem ele? - perguntou Alvina.
      - Vinte e cinco anos... um rapaz ainda. E a menina? A menina é mais velha.
      - Tenho trinta! - confessou Alvina.
      - Trinta! Já agora... uma diferença tão grande! Como pode acreditar nele? Como? Por que ele quer se casar com você... por quê?
      - Não sei - disse Alvina.
      - Não, nem eu o sei. Mas sei alguma coisa do que são esses italianos, que são operários em todos os países, só operários e sempre homens de condição inferior, sempre por baixo, por baixo, por baixo... - E Madame impelia para baixo as mãos abertas. - E então, quando têm uma oportunidade de subir... - Erguia a mão com um puxão. - São presunçosos e aproveitam a oportunidade. Ele há de querer subir,
servindo-se de você, e a menina descerá, com ele. É isso. Já presenciei isso muitas vezes... sim... mais do que uma vez.
      - Mas - dizia Alvina, rindo, lastimosa - ele não pode subir muito por minha causa, não lhe parece?
      - Por que não? Por que não? Em primeiro lugar, a menina é inglesa e ele pensa que sobe com isso. Depois, a menina não é da classe baixa, é da classe melhor, a classe dos patrões, a que dá emprego a Cicio e aos homens como ele. Como não vai ele subir na vida com você? Sim, há de subir e muito. Ou então a arrasta para baixo, para baixo... Sim, ou um ou outro. E além disso ele pensa que agora a menina tem dinheiro... agora que seu pai morreu... - Madame relanceou apreensivamente um olhar para a porta fechada. - E todos eles gostam de dinheiro, sim, muito mesmo, todos os italianos...
      - Gostam? - perguntou Alvina, assustada. - Estou certa de que não há nenhum dinheiro. Estou certa de que meu pai tinha dívidas.
      - O quê? Pensa isso? Pensa? Está falando a verdade? Oh, pobre Miss Houghton! Pois bem... e vai dizer isso a Cicio? Hã?
      - Sim... certamente, se isso tem importância - disse a pobre Alvina.
      - Claro que tem importância. Certamente tem muita importância. Tem importância para ele. Porque ele não terá muito. Ele poupa, poupa, poupa, como todos eles fazem, para voltar para a Itália e comprar um pedaço de terra. E se ele a levar, isso custar-lhe-á muito mais e não poderá continuar com os Natcha-Kee-Tawaras. Tudo será muito mais difícil...
      - Oh, vou dizer-lhe a tempo - falou Alvina, com os lábios pálidos
      - Diga! Sim. É melhor. E então verá. Mas ele é teimoso como um burro. Se continuar a querer levá-la, pense bem. É capaz de viver na Inglaterra como mulher de um trabalhador, de um eitaliano porcalhão, como se diz aqui. É uma coisa muito séria. Não será muito agradável para você, que não está acostumada a isso. Eu também não o estou. Mas tenho visto...
      Alvina observava com olhos bem abertos e conturbados, enquanto Madame dardejava olhares como que saídos de um vidro brilhante e muito negro.
      - Sim - disse Alvina. - Não me agradaria nada ser a mulher de um trabalhador numa casa pequena e imunda numa rua...
      - Numa casa? - exclamou Madame. - Não seria numa casa. Vivem muitos numa mesma casa. Seriam dois quartos, ou mesmo um quarto, numa casa com muita gente não muito limpa, percebe?...
      Alvina sacudiu a cabeça.
      - Não seria capaz de aturar isso - disse ela por fim.
      - Não! - Madame abanava a cabeça aprovativamente. - Não, não seria capaz. Vivem mal, os italianos. Não sabem o que seja o lar inglês... nunca. Não gostam. Nem sabem o que sejam as casas limpas e arranjadas dos suíços. Não. Não compreendem. Correm para dentro das tocas para dormir ou para abrigar-se, e é tudo.
      - Mesmo na Itália?
      - Ainda mais... porque lá há sol quase sempre...
      - E não é necessário uma casa - disse Alvina. - Disso é que eu gostaria.
      - Sim, é muito bonito... mas você não sabe como é aquela vida. Sentir-se-ia só no meio de pessoas como animais. E se for para a Itália, ele vai surrá-la... vai surrá-la...
      - Se eu deixar.
      - Mas não poderá evitá-lo, longe como estará de toda a gente. Ninguém a socorrerá. Se for mulher casada, na Itália, ninguém a socorrerá. É propriedade dele, se casar pela lei italiana. Não é como na Inglaterra. Na Itália, não há divórcio. E se ele lhe bater, a menina não terá quem a proteja...
      - Mas por que haverá ele de me bater? - indagou Alvina. - Por quê?
      - Eles o fazem. São muito ciumentos. E depois têm momentos de um mau gênio destemperado, mau gênio horrível...
      - Apenas quando os provocam - falou Alvina, pensando em Max.
      - Sim, mas nunca sabemos quando os provocamos. Quem poderá dizer quando é que ele se julgará provocado? E então ele lhe bate...
      Parecia ter-se acumulado o triunfo nos brilhantes olhos negros de Madame. Alvina olhou para ela e voltou-se para a porta.
      - Seja como for, agora já sei - disse ela numa voz sem modulação.
      - E é a verdade. É tudo verdade - ciciou Madame vingativamente. Alvina tinha vontade de fugir dela.
      - Tenho de ir à cozinha. Vamos para baixo? Alvina
não foi à sala de visitas com Madame. Estava demasiado transtornada e quase tinha horror de ver Cicio naquele momento.
      Miss Pinnegar, rosto tingido de carmim pelo lume, ajudava Mrs. Rollings a fazer o almoço.
      - Ficam os dois ou só um? - indagou ela, asperamente.
      - Os dois - disse Alvina, ocupando-se com os molhos, para esconder a angústia e a confusão.
      - O homem também - disse Miss Pinnegar. - Para que é que a mulher o trás? Não sei o que diria seu pai... um atorzinho vulgar e ele tem mesmo o ar do que é... e fica para almoçar.
      Miss Pinnegar estava inteiramente fora de si. Alvina pôs a mesa. Depois, foi para a sala de visitas.
      - Querem vir almoçar? - perguntou ela aos dois convidados.
      Cicio levantou-se, atirou o cigarro ao fogo e olhou em redor. Lá fora brilhava um sol pálido e aguado; mas ao menos era lá fora. Sentia-se preso e fora do seu elemento. Tinha uma irresistível vontade de sair.
      Quando chegou ao vestíbulo agarrou o chapéu. Tinha na face um sorriso estúpido e constrangido.
      - Vou-me embora - disse ele.
      - Pusemos lugar para você também - retorquiu Alvina.
      - Fique, já que ficou tanto tempo, até agora - disse Madame, atirando-lhe negros olhares.
      Mas ele correu para o casaco, olhando de modo estúpido. Madame ergueu as sobrancelhas, com desprezo.
      - Aí está um fino comportamento - falou ela sarcasticamente.
      Alvina estava perplexa.
      - Volta para o funeral? - indagou Madame friamente.
      Ele sacudiu a cabeça.
      - Quando estiver pronta para partir - falou ele.
      - Às quatro horas - disse Madame -, quando voltar do funeral. Dará tempo para pegarmos o trem.
      Ele abanou a cabeça, sorriu estupidamente, abriu a porta e saiu.
      - Eis aí uma coisa bem dele, é assim mesmo... assim mesmo. - Madame não era capaz de encontrar expressões, enquanto iam andando para a cozinha.
      - Miss Pinnegar, esta senhora é a Madame - apresentou Alvina.
      - Como está, passou bem? - disse Miss Pinnegar, um pouco distante e condescendente. Madame olhava-a vivamente.
      - Onde está o homem? Não sei o nome dele - disse Miss Pinnegar.
      - Não quis ficar - respondeu Alvina. - Como se chama ele, Madame?
      - Marasca... Francesco, Francesco Marasca, napolitano.
      - Marasca! - disse Alvina num eco.
      - Tem um mau som... um som de mau augúrio, mau sinal
- disse Madame. - Ma-ras-ca! - Abanava a cabeça ao sabor das sílabas.
      - Por que é que diz isso? - dizia Alvina. - Julga que os sons têm significado? Bom e mau?
      - Sim - disse Madame. - Certamente. Há sons bons, que são pela vida, pela criação, e há sons maus, que são pela destruição. Ma-ras-ca... é mau, como uma praga.
      - Mas de que espécie de maldade? Que é que isso faz?
- dizia Alvina.
      - Que é que isso faz? Impele a vida... para baixo, em vez de a elevar.
      - Mas por que é que as coisas devem sempre subir? Por que é que a vida deve sempre subir? - disse Alvina.
      - E quanto a outros nomes - interrompeu Miss Pinnegar, com um pouco de altivez. - Quanto a Houghton, por exemplo?
      Madame pôs o garfo no prato, mas conservou a faca na mão. Olhava para o quarto, não para Miss Pinnegar.
      - Houghton...! Huff-ton! - dizia ela. - Quando se pronuncia, tem um som contra: isto é, contra o vizinho, contra a humanidade. Mas quando se escreve Hough-ton!, então é diferente, é por.
      - É sempre pronunciado Huff-ton - disse Miss Pinnegar.
      Madame virou-se para olhar aquela velha e infeliz mulher.
      - A senhora pertence à família?
      - Não, não pertenço. Mas estou aqui há muitos anos
- respondeu Miss Pinnegar.
      - Oh, sim! - disse Madame. Miss Pinnegar estava espantosamente sentida. A refeição, com as três mulheres à mesa, decorreu penosamente.
      Miss Pinnegar levantou-se e foi lá para cima chorar. Sentia-se muito abandonada. Alvina levantou-se para lavar a louça, apressadamente, porque os convidados para o funeral deviam estar chegando. Madame foi para a sala de visitas fumar seu discreto cigarro.
      Mr. May foi o primeiro a chegar para a lúgubre tarefa; muito esticado no terno, embora um pouco apagado, todo de preto. Nunca andava de preto e sentia-se muito infeliz assim vestido, sendo quase morbidamente sensível à impressão que a cor lhe fazia. Sentou-se junto de Madame.
      Ela não fingia desespero; estava sentada, olhos negros e vigilantes, muito mulher de negócios.
      - E quanto ao teatro?... Continuará? - perguntou ela.
      - Bem, não sei nada. Não sei as intenções de Miss Houghton - disse Mr. May. Estava um pouco inchado naquele dia.
      - É com ela o assunto? - indagou Madame.
      - Pelo menos assim entendo...
      - E se ela quiser vendê-lo?
      Mr. May estendeu as mãos e tomou um ar sombrio mas distante.
      - O senhor podia formar uma companhia e continuar...
- disse Madame.
      Mr. May assumiu uma expressão ainda mais distante, repuxando-se com maneiras singulares, como se tivesse o ar
de quem estivesse amarrado. Mas os astutos olhos negros e o espírito penetrante de Madame não o deixaram fugir.
      - Compre-o de Miss Houghton - disse Madame astutamente.
      - Decerto - disse Mr. May. - Miss Houghton e mais ninguém é que deve decidir.
      - Sim, com certeza! O senhor... o senhor é casado?
      - Sou.
      - Sua mulher está aqui?
      - Minha mulher está em Londres.
      - E tem filhos?...
      - Uma filha.
      Madame meneou a cabeça vagarosamente para cima e para baixo, como se ao mesmo tempo estivesse fazendo milhares de contas.
      - Acha que Miss Houghton vai herdar muito? - disse ela.
      - Quer referir-se a bens, não é verdade? Não sei. Não investiguei.
      - Não, mas deve fazer uma idéia.
      - Parece-me que não.
      - Não! Bem! Não será muito, então?
      - Falando a verdade, não sei. Posso talvez dizer que não seria uma grande fortuna...
      - Não? - Madame mantinha-o preso a seus olhos negros.
- E crê que a outra terá alguma coisa?
      - A outra...? - inquiriu Mr. May, numa cadência ascendente. Madame fez um breve sinal na direção da cozinha.
      - A velha... a Miss... Miss Pin... Pinney... como é que lhe chamam?
      - Miss Pinnegar! A chefe das operárias? Falando a verdade, não sei absolutamente nada... - Mr. May estava glacial.
      - Ah... ah! Ah... ah! - refletia tranqüilamente Madame. Depois, perguntou: - A que operárias se refere?
      E ela ouviu astutamente o relato que Mr. May foi forçado a fazer da sala de trabalho lá em cima, extorquindo-lhe todos os pormenores que desejava reunir. Depois, houve uma pausa. Madame relanceou um olhar pela sala.
      - Bela casa! - disse ela. - É deles?
      - Penso que sim...
      De novo, Madame meneou a cabeça, sabidamente.
      - Dívidas, talvez, não? Hipotecas... - E tinha um ar astuciosamente sardônico.
      - É verdade! exclamou Mr. May dando um pulo - Importa-se que eu vá falar a Mrs. Rollings?
      - Oh, não... vá, vá - disse Madame, e Mr. May desapareceu num pulo, mal-humorado.
      Madame foi deixada só em sua confortável cadeira, examinando os pormenores da sala e fazendo contas de cabeça, até que os verdadeiros convidados para o funeral começaram a chegar. E então ela teve a satisfação de os apreciar. Alguns traziam coroas. O caixão tinha sido levado para baixo e fora colocado na pequena sala de estar... na sala de estar de Mrs. Houghton. Estava coberto de coroas brancas e de ramos com fitas cor de púrpura. Havia aperto e confusão.
      E então, por fim, chegaram o carro fúnebre e os outros carros... levaram o caixão. Alvina seguiu-o pelo braço do primo do pai, de quem ela não gostava. Miss Pinnegar dirigia o resto do acompanhamento. Era uma desagradável tarefa.
      Mas foi um grande funeral. Iam nove carros atrás do caixão... Woodhouse revivia o antigo respeito pela casa dos Houghtons. Um grupo de pequenos comerciantes seguia os carros... todos de preto e de luvas pretas. Os comerciantes mais ricos iam de carro.
      Pobre Alvina, foi aquele o único dia de sua vida em que esteve no centro da atenção pública. Por uma vez, todos os olhos se fixavam sobre ela, todos os espíritos pensavam nela. Pobre Alvina!, diziam todos os membros da "classe média" de Woodhouse. Pobre Alvina Houghton, diziam todas as mulheres dos mineiros. Pobre pequena, deixada sozinha... sozinha... E sem tostão. Muita sorte se não tiver ficado cheia de dívidas. James Houghton desperdiçou muito dinheiro nos seus grandes dias. Sim, se ela tivesse ficado com o que tinha, podia ser hoje muito rica. Só a mãe trouxera de dote três ou quatro mil libras. Sim, mas o pai tinha feito desaparecer tudo na Asfixia por Meio Pêni e na Klondyke e no Esforço. Ele mesmo foi seu pior inimigo. Pagara bem o que fizera. Eu não sou muito dessa opinião. Olhe como ele tratava a mulher, e agora Alvina. Não me parece que ele fosse o seu pior inimigo. Ele era também suficientemente inimigo da sua própria carne e do seu próprio sangue. Mas agora já não gastará mais dinheiro, de qualquer maneira. Não, ele morreu de repente, não foi?
Mas andava muito caído, não notou? Oh sim, parecia andar cambaleando quando ia a Lumley. Parece-lhe que aquilo pague as despesas? O quê, o Esforço?... Dizem que sim. Dizem que vai andando muito bem. A sala está sempre razoavelmente cheia. Sim, está. Talvez não continue, agora que Mr. Houghton se foi. Talvez não. Eu pergunto a mim mesma se terá deixado muito dinheiro. Parece-me que não. Tudo o que ele tinha está hipotecado. Deixa dívidas, vai ver como deixa. Que vai ela fazer agora? Terá de sair de Manchester House... ela e Miss Pinnegar. Não sei o que poderão fazer. Talvez retome a profissão de enfermeira. Ela nunca fez muito caso disso... e gastou um bom dinheiro com os estudos, dizem. É um pouco como o pai em questão de negócios... tudo de ocasião. É pena que não apareça por aí um belo rapaz para casar-se com ela. Não sei, ela não parece prender ninguém, não acha? Por que será que ela não tem nunca um rapaz decente? Todos sabem que ela já esteve comprometida uma vez. Sim, mas jamais alguém o viu e ele se foi tão depressa como veio. Lembra-se que ela namorou Albert Witham uns tempos? Não! Não, nunca soube. Quando foi isso? Ora, quando ele estava em Oxford, como sabe, estudando para diretor escolar. Por que é que ela não casou nessa altura? Talvez ele nunca tenha falado nisso. Sim, havia razão para isso. Ela devia olhar do alto para ele, nesses tempos. Sim, acabou-se tudo, meu rapaz. Aceitará qualquer um que lhe apareça agora. Repare como ela se entende com aquele gerente. É qualquer coisa de espantoso. Nunca reparou nela no
cinema? Nunca o deixa só. E é com toda a gente o mesmo. Oh, não se respeita a si própria. Não me admira. Nenhuma moça que se respeite se comportaria como ela, atirando-se à cabeça de qualquer sujeito. O quê, ela fez isso? Sim, um ator ou outra pessoa qualquer. Ela está numa idade propícia, no entanto. Não tem muitas probabilidades de se livrar disso. Que idade é que julga que terá? Deve andar por volta dos trinta. Não diga isso. Bem, tem aspecto disso. Ficará uma solteirona à força. Mas ela ganha um pouco de energia, às vezes. Sim, quando pensa que fisgou algum. Pergunto a mim mesma por que é que nunca o conseguiu. É ridículo. Oh, era muito senhora do seu nariz antes e agora é muito tarde. Ninguém a quer. E não tem parentes para onde ir, não é? Não, a não ser o primo do pai, que está ao lado dela. Olhe, vêm ali. Ele tem bom aspecto, não acha? Julgava que tinham enterrado Miss Frost ao lado de Mrs. Houghton? Julgava, não julgava? Eu acho que Alvina vai ficar junto de Miss Frost. Dizem que a campa foi feita para ambas. Sim, ela foi para Alvina mais mãe do que a própria mãe. Foi boa para eles, Miss Frost. Era tudo para Alvina.
Ali está a lápide dela... olhe, ali embaixo. Não é muito grande, falando a verdade. Não, não é. Repare, há espaço para o nome de Alvina, por baixo. Psiu!...
      Alvina voltou sentada no carro, e observava de dentro
da obscuridade as muitas caras na rua: tão familiares, tão familiares como o próprio rosto. E agora parecia vê-las de uma grande distância, do fundo da sua escuridão. O corpulento primo sentava-se em frente... como lhe desagradava a presença dele!
      Na igreja, chorou, pensando na mãe, em Miss Frost e
no pai. Sentia-se tão desolada... tudo lhe parecia tão
vazio! Chorou amargamente, ao inclinar-se durante a oração.
E seu choro contagiou Miss Pinnegar, que chorou quase tão
amargamente. Tudo aquilo era por demais horrível. O depois... o horrível depois.
      A seguir foi a lenta caminhada para o cemitério. Estava um dia baço e frio. Alvina tiritava enquanto se deteve na encosta fria, junto da campa aberta. O casaco não lhe parecia suficientemente quente, a velha peliça de pele de foca não era grande proteção. O oficiante estava sobre a prancha
junto da campa e ela ficara próximo, olhando as flores brancas batidas pelo vento frio. Tinha olhado para elas quando morrera a mãe... e quando morrera Miss Frost. Sentiu uma repentina atração por Miss Pinnegar. Contudo, teriam de separar-se. Miss Pinnegar tinha sido afetuosa com o pai de uma maneira singular e reservada... Pobre Miss Pinnegar, aquilo era tudo o que a vida lhe dera. Bem, no fim das contas, aquilo tinha sido um lar e uma vida no lar. Aos quais, lar e vida no lar, Alvina agora se agarrava com desesperada saudade, sabendo que inevitavelmente ia
perdê-los, agora que seu pai partira. Estranho, que ele tivesse partido. Mas ele estava cansado, gasto, muito magro
e cansado. Vivera os seus dias. Como tudo era diferente, agora, na sua morte, do tempo em que Alvina o apreciava como uma criança pequena e o tinha por um cavalheiro de boas
maneiras! Vive-se e aprende-se e perde-se.
      Por um momento, ela olhou para Madame, que tremia
de frio, o rosto escondido atrás do véu negro e matizado.
Mas Madame parecia imensamente distante; irreal. E Cicio... como se chamava ele? Não podia recordar-se. Como se chamava? Tentava recordar-se da vagarosa enunciação de Madame. Marasca... maraschino. Marasca! Maraschino! Que era maraschino? Onde ela ouvira isso? Dando que fazer aos miolos, lembrou-se dos médicos e das ceias depois do teatro. E maraschino... aí estava, era o licor branco favorito do inocente Dr. Young. Lembrou-se mesmo da maneira como ele parecia estalar os lábios dizendo a palavra "maraschino". Contudo, não apreciava muito aquilo. Uma porcaria quente,
amargosa... nada: não como o verde chartreuse que o Dr. James lhe dava. Maraschino! Sim, era isso. Feito de cerejas. Pois bem, o nome de Cicio era aproximadamente o mesmo. Ridículo! Mas ela supunha que as palavras italianas eram bastante parecidas umas com as outras.
      Cicio, o Marasca, a cereja amarga, ficara na cauda
da multidão, olhando. Não tinha qualquer ligação com o que quer que fosse da cerimônia... estava de fora, metido consigo, pouco à vontade, batido pelo vento e odiando as pessoas que o olhavam. Via a figura elegante e roliça de Madame como uma perdiz elegante e roliça no meio de um bando de aves domésticas. Confiava na presença dela. Sem ela, teria se sentido muito pouco à vontade naquela colina agreste. Ela e ele eram em certo sentido aliados. Mas aquela outra gente, como a sentia alheia e tosca! Apesar das boas roupas, as classes trabalhadoras inglesas não passavam para ele de bárbaros incivilizados; tal como ele lhes parecia um animal incivilizado. Toscos, pareciam-lhe, cheios de ângulos duros
e asperezas, como o clima do próprio país. Não que meditasse sobre eles. Mas sentia isso na carne, a aspereza e o desagradável neles. E Alvina pertencia àquela raça. Continuando ali junto da campa, pálida, contraída e com ar reservado, ela fazia parte integrante do horrível, frio e cinzento desconforto de toda a cena. Nunca algo fora para
ele mais antipático. Estava doido para ir embora... para fugir. Era tudo o que desejava. Apenas uma certa obstinação meridional o fazia olhar, do fundo das sombras do seu rosto, a moça pálida e reservada junto da campa. Talvez a detestasse até, naquela altura. Mas mesmo assim olhava para ela.
      Quando a cerimônia terminou e o acompanhamento se dirigiu aos carros para o regresso, Madame adiantou-se em direção a Alvina.
      - Venho dizer-lhe adeus, agora, Miss Houghton. Temos de ir para a estação por causa do trem. E obrigada, obrigada. Adeus.
      - Mas... - Alvina olhou em redor.
      - Cicio está ali. Eu o estou vendo. Temos de apanhar o trem.
      - Oh, mas... não vai de carro? Por que não diz a Cicio que vá com a senhora de carro? Onde está ele?
      Madame indicou-o; ele errava entre as campas, com o chapéu preto um pouco levantado de um dos lados. Alvina deixou o primo e dirigiu-se a ele.
      - Madame vai de carro para a estação - disse ela. - Quer que você vá com ela.
      Ele olhou em volta, para os carros.
      - Está bem - respondeu ele, e abriu caminho através das campas, até junto de Madame, seguido de Alvina.
      - Então, vamos juntos de carro - disse-lhe Madame. Depois: - Adeus, querida Miss Houghton. Pode ser que nos encontremos mais uma vez. Quem sabe? Meu coração está com você, minha querida. - Envolveu Alvina nos braços e beijou-a um pouco teatralmente. O primo olhava para aquilo, muito alheado. Cicio estava perto.
      - Vamos então, Cicio - falou Madame.
      - Adeus - disse-lhe Alvina. - Você volta, não é verdade? - Olhava para ele, com uma cara fatigada e pálida.
      - Está bem - disse ele, apertando-lhe a mão molemente.
      Falava num tom desesperançadamente vago.
      - Voltará, não é verdade? - repetia ela, fitando-o
com olhos fatigados e como que cegos.
      - Está bem - disse ele, baixando a cabeça e
afastando-se.
      Ela ficou muito quieta por um momento, completamente perdida. Depois, tomou um carro com o primo, para casa, para a refeição do funeral.
      - Adeus! - Madame agitou um lenço debruado de preto. Mas Cicio, muito pouco à vontade no carro, mantinha-se escondido.
      A refeição do funeral, com a sua carne assada e seus doces, foi uma coisa terrível. Mas chegou ao fim, porque todas as coisas chegam a um fim, e Miss Pinnegar e Alvina foram deixadas sós no vazio de Manchester House.
      - Se a senhora não estivesse aqui, Miss Pinnegar, eu estaria completamente sozinha - disse Alvina, pálida e cansada.
      - Sim. E também eu o estaria sem você - disse Miss Pinnegar brutalmente. Olhavam uma para a outra. E naquela noite dormiram ambas na cama de Miss Pinnegar, cheias de grande terror pela casa vazia.
      Durante os dias que se seguiram ao funeral, ninguém podia ter se sentido mais aborrecida do que Alvina. James deixara tudo à filha, com exceção de alguns direitos sobre a oficina, que eram de Miss Pinnegar. Mas a questão era: quanto somava aquele "tudo"? Havia um pouco menos de cem libras no banco. Havia uma hipoteca sobre Manchester House. Havia avultadas faturas relativas ao Esforço. Alvina ficara com cerca de cem libras do dinheiro do seguro, depois de pagar todas as despesas do funeral. Disso tinha certeza, e de nada mais.
      Além disso, quase endoidecia com a gente que vinha lhe falar. Veio o advogado, veio o pastor, veio o primo, vieram os velhos, corpulentos e prósperos comerciantes de Woodhouse, veio Mr. May, veio Miss Pinnegar. E todos eles tinham planos, e todos eles davam opiniões. A idéia principal era que se devia vender o teatro; e que se devia vender Manchester House, com a reserva de ficarem alugando o último andar, onde estavam as oficinas de Miss Pinnegar; que esta e Alvina deviam mudar-se para uma casa pequena, Miss Pinnegar mantendo a oficina, Alvina dando lições de música; que as duas mulheres deviam fazer sociedade na oficina.
      Havia outras idéias, claro. Havia uma facção contra a facção da igreja, que favorecia o plano esboçado acima. A facção do teatro, incluindo Mr. May e alguns dos mais prósperos comerciantes, favorecia o plano de se arriscar tudo no Esforço. Alvina devia ser a proprietária do Esforço, devia continuar pelo mesmo caminho de sucessos e abandonar qualquer outra empresa. Planos secundários incluíam a eleição de Alvina para o posto de enfermeira paroquial, com seis libras por mês; uma pequena escola particular; uma pequena loja de miudezas; e um lugar no escritório da empresa do primo, em Knarborough. A todos e a cada um Alvina respondia com um atormentado: "Não sei o que irei fazer. Não sei. Nada posso dizer por enquanto. Vou ver. Vou ver". Até que todos e cada um ficaram aborrecidos com ela. Eram todos muito benevolentes
e todos muito seguros de que tinham proposto a melhor coisa que ela podia fazer. E ficavam todos irritados, até mesmo indignados, por ela não concordar com as suas propostas.
Ela escutava tudo o que lhe diziam. Pedia mesmo opiniões. Freqüentemente, dizia: "Que lhe parece isto?" E repetia o plano da igreja ao grupo do teatro, o plano do teatro ao partido da igreja, a enfermagem aos proponentes do piano,
a loja de miudezas aos defensores da escola particular.
"Diga-me o que lhe parece", proferia ela repetidamente. E todos lhe diziam pensar que o plano que expunham era o melhor. E pouco a pouco ela revelou a cada um dos opinantes as propostas de cada um dos outros opinantes. "O Dr. Beeby,
o advogado, pensa...", e "Veja, Mr. Clay, o pastor,
aconselhava...", e assim por diante, até aquilo ser divulgado a trinta benévolas e obsequiosas cabeças. E trinta benevolentemente obsequiosas vontades competiam para estabelecer, cada uma delas, sua própria atmosfera de benevolência. E Alvina, cândida e patética, incitava-os todos à luta, sem saber sequer o que fazia. Só uma coisa era certa. Uma obstinada vontade dentro dela própria recusava-se absolutamente a ter idéias assentes. Não poderia ter idéias
assentes por si e não as assentaria por si própria. Assim, cada qual começava a dizer: "Já estou farto dela. A gente fala e não consegue nada. Ela se desvia para outra coisa qualquer. Não vou mais me incomodar com ela." Na verdade, Woodhouse esteve em ebulição durante três semanas ou mais, dispondo por Alvina o seu indisponível futuro. Foram inumeráveis as ofertas caridosas... durante três semanas.
      Entretanto, ela continuou a tratar do testamento e da redação da lista definitiva da propriedade de James; Mr. May continuou com o Esforço, embora Alvina não tivesse ido tocar; Miss Pinnegar continuou com as moças, e Alvina continuou não formulando idéias.
      Cicio não voltou na primeira semana. Alvina recebera
um postal de Madame, de Cheshire... bastante longe. Mas
era tal a trapalhada e a excitação sobre seu futuro material, levantara-se uma tal excitação à volta dela, que Alvina,
a pequena herdeira, heroína do momento, era arrastada numa tempestade de projetos e de sugestões benévolas. Respondeu
ao postal de Madame, mas não pensou muito nos
Natcha-Kee-Tawaras. De fato, ela estava gozando um real momento de importância, ali no centro da dominadora benevolência de Woodhouse; uma benevolência que ela inconsciente mas sistematicamente frustrava. Todo aquele planear de vendas e de restrições a fazer e de fixação de preços e de recebimentos de ofertas particulares por Manchester House e pelo Esforço, a excitação de se formar uma companhia limitada para continuar com o Esforço, de ver o advogado por causa da venda de Manchester House e o leiloeiro pela venda dos móveis, de receber homens que queriam adquirir barato as máquinas do andar de cima e de manter tudo em suspenso, nada decidindo, adiando tudo até ter visto mais gente, isso tudo de momento a fascinava, lhe subia à cabeça. E não foi senão quando a segunda semana passou que a sua excitação começou a fundir-se em irritação; e senão quando passou a terceira que ela começou a sentir-se enredada
numa asfixiante teia de indecisão e o ânimo lhe começou a faltar, porque Cicio não voltara. Agora, daria tudo para ver de novo os Natcha-Kee-Tawaras. Mas não sabia onde eles estavam. Começava agora a aborrecer-se da excitação por
causa da herança: a sua duvidosa herança. Agora daria tudo para sair de Woodhouse, daquela terrível trapalhada e emaranhamento de sórdidos assuntos. Agora, retornava a sua indiferença feroz.
      Disse bruscamente que iria embora: não quis dizer para onde. Juntou todo o dinheiro que pôde: cento e vinte e cinco libras. Tomou o trem para Cheshire, para o último endereço dos Natcha-Kee-Tawaras; foi na esteira deles para Stockport; e dali para Chinley, onde se deteve durante a noite. No dia seguinte voltou quase até Woodhouse e seguiu para Sheffield. Aí, naquela cidade negra, graças a Deus viu o cartaz deles numa parede. Tomou um táxi para o teatro, depois para a pensão onde se hospedavam. A primeira coisa que viu foi Louis, em mangas de camisa, em cima, no patamar.
      Ela riu, excitada e satisfeita. Parecia outra mulher. Madame olhou-a, quase enfastiada, quando ela entrou.
      - Não podia ficar longe da senhora, Madame - exclamou ela.
      - Evidentemente - disse Madame.
      Madame cosia as meias dos rapazes. Era para eles uma mãe admirável, cosendo a roupa para eles, cozinhando para eles, olhando por eles com o maior cuidado. Raros eram os minutos em que estava sem fazer nada.
      - Importa-se que eu fique? - perguntou Alvina. Madame continuou cosendo, por momentos, antes de responder.
      - E que há de novo por Woodhouse?
      - Não podia suportar mais aquilo. Não podia suportar. Foi por isso que juntei todo o dinheiro que pude e parti. Ninguém sabe onde estou.
      Madame olhou com olhos brilhantes, negros e desaprovadores para a moça corada que tinha à frente. Alvina tinha certo ar estranho e certa vivacidade que Madame não
conhecia, e uma franqueza de que a francesa suspeitava, mas achava desconcertante.
      - E as suas coisas, o testamento e o resto?
      - Continua-se mexendo nisso.
      - E há algum dinheiro?
      - Tenho cem libras comigo - Alvina riu. - O que haverá quando tudo estiver liquidado, não sei. Mas tenho a certeza de que não há de ser grande coisa.
      - Quanto é que acha? Mil libras?
      - Oh, é possível, quem sabe. Mas também é possível que não fique nem um pêni...
      Madame movia a cabeça, como sempre que fazia cálculos.
      - E se não ficar nada, que pensa fazer? - indagou
Madame.
      - Não sei - disse Alvina com vivacidade.
      - E se ficar alguma coisa?
      - Também não sei. Mas penso que, se me deixar
acompanhá-la ao piano, poderei manter-me algum tempo com meu dinheiro. A senhora disse que talvez eu pudesse ficar com os Natcha-Kee-Tawaras. Gostaria que o permitisse.
      Madame inclinou a cabeça de modo que apenas se viam as ondas negras e brilhantes do seu cabelo. Depois, levantou os olhos, num sorriso lento, sutil e escarninho.
      - Cicio não foi vê-la, não é?
      - Não - respondeu Alvina. - Apesar de ter prometido.
      De novo Madame sorriu sardonicamente.
      - Chama àquilo uma promessa? - disse ela. - A menina se satisfaz facilmente com palavras. Cem libras? Mais nada?
      - Cento e vinte...
      - Onde as tem?
      - Dentro do meu saco, na estação... em notas. E encontrei mais um pouco aqui. - Alvina abriu a carteira e tirou algumas moedas de ouro e prata.
      - Na estação! - exclamou Madame, sorrindo espantada.
- Quer dizer que talvez não tenha nada.
      - Oh, penso que está em lugar seguro, não lhe parece?
      - Sim... talvez... como isto é a Inglaterra:". . E acha que cento e vinte libras são suficientes?
      - Para quê?
      - Para satisfazer Cicio.
      - Eu não estava pensando nele - exclamou Alvina.
      - Não? - disse Madame ironicamente. - Posso propor a ele. Espere um momento. - Foi à porta e chamou Cicio.
      Ele entrou, com ar de quem não estava bem disposto.
      - Tenha paciência, querido - disse-lhe Madame -, vá à estação e traga o saquinho de Miss Houghton. Tem aí o recibo, não é verdade? - Alvina entregou a Madame o recibo da bagagem. - Midland Railway - disse Madame. E, Cicio, está ouvindo? Tome conta! Estão dentro do saco centro e vinte libras do dinheiro de Miss Houghton. Está ouvindo? Veja bem se não se perdeu.
      - É tudo quanto eu tenho - disse Alvina.
      - Por enquanto, por enquanto... até o testamento ser executado é todo o dinheiro que ela tem. Por isso, tome bem conta. Está ouvindo?
      - Está bem - disse Cicio.
      - Explique-lhe como é o saco, Miss Houghton - disse Madame.
      Alvina explicou. Ele baixou a cabeça e saiu. Madame esperou que ele saísse de vez. Depois, meneou a cabeça para Alvina, refletidamente.
      - Tire o chapéu e o casaco, minha amiga. Daqui a pouco vamos tomar chá... logo que Cicio venha. Deixe-o pensar, deixe-o pensar no que lhe convém. Já é certo tanto dinheiro, e talvez venha a haver mais. Deixe-o pensar. Será um caso a ponderar que haja tanto dinheiro... sim, tanto...
      - Mas será para ele realmente um caso a ponderar?
- indagou Alvina.
      - Oh, minha amiga! - exclamou Madame. - Por que não há de ser? Nós vivemos na terra e temos de comer. Não vivemos no paraíso. Se fossem mil libras, então ele teria uma vontade enorme de casar-se com você. Mas cento e vinte libras... é melhor que um murro num olho. É isso mesmo!
      - É horrível, no entanto - disse Alvina.
      - Ora, ora! Horrível! Se fosse Max, que é sentimental, então não, o dinheiro não valia nada. Mas todos os outros... sim, bem vê, são homens e sabem de que lado passar a manteiga no pão. Os homens são como os gatos, minha amiga, não gostam de pão sem manteiga.
      - Quer que a ajude a coser? - disse Alvina.
      - Hã? Vou lhe dar as meias de Cicio, quer? Ele as rompe nos dedos... vê? - Madame meteu dois dedos pelo buraco de uma meia vermelha e preta, e sorriu um tanto maliciosamente para Alvina.
      - Não faço questão das meias que deva coser - disse ela.
      - Não? Não faz questão? Bem, então dou-lhe outra. Mas se quer que eu lhe fale...
      - Para dizer o quê? - perguntou Alvina.
      - Para dizer que a menina tem tanto em dinheiro e que espera vir a ter mais. E que gosta dele... Sim? Estou falando a verdade? A menina gosta muito dele... hem? É assim?
      - E que mais, depois? - disse Alvina.
      - E ele que me diga se gostaria de casar com você... é muito simples. O quê? Sim?
      - Não - disse Alvina. - Não lhe diga nada... por enquanto.
      - Hã? Por enquanto? Por enquanto. Está bem, por enquanto, então. A menina verá...
      Alvina sentara-se, cosendo as meias e sorrindo a seu próprio descaramento. O ponto que acima de tudo a divertia era o fato de que não estava de nenhum modo segura de que quisesse casar-se com ele. Era Madame tecendo sua teia como uma grande e prolífica aranha negra. Era Cicio, a mosca desassossegada. E era ela própria, que não sabia nem mesmo o que estava fazendo. Ali estavam dois deles, Madame e ela, cosendo meias num quarto pequeno e mal arejado, com um bico de gás, como se tivessem nascido para aquilo. E no fim das contas, Woodhouse estava apenas a oitenta quilômetros.
      Madame desceu ao andar de baixo para preparar o chá. Onde quer que estivesse, ela superintendia a cozinha e a preparação da comida dos rapazes, escrupulosa e diligente.
Disse a Alvina que descesse. Cicio regressava com o saco.
      - Veja, querida, está salvo o seu dinheiro - disse Madame.
      Alvina abriu o saco e contou as notas, brancas e amarrotadas.
      - E agora - disse Madame - vou colocar isto no meu banco, sim, e lá estará seguro. E lhe darei um recibo, do que os rapazes serão testemunhas.
      Sentaram-se todos para o chá, na mal ventilada sala de estar.
      - Agora, rapazes - falou Madame -, que dizem vocês? Pode Miss Houghton ficar com os Natcha-Kee-Tawaras? Pode ficar como nossa pianista?
      Os olhos dos quatro rapazes fixaram-se em Alvina. Max, sendo a parte responsável, tinha o ar de quem via as coisas pelo lado prático. Louis estava enternecido, Geoffrey de olhos abertos e inquisitivos, Cicio furtivo.
      - Com grande prazer - disse Max. - Mas terão os
Natcha-Kee-Tawaras recursos para pagar a uma pianista?
      - Não - falou Madame. - Não. Penso que não. Miss Houghton virá por um mês, experimentar, pagando suas despesas. Sim? É o projeto dela.
      - Poderemos pagar-lhe as despesas? - indagou Max.
      - Não - disse Alvina. - Deixe-me pagar tudo durante um mês. Gostaria muito de estar com vocês, imensamente.
      Ela olhou de viés, com um olhar meio malévolo, meio suplicante, para o impassível Max. Este fez uma vênia ao sentar-se à mesa.
      - Julgo que teremos todos muita honra - disse ele.
      - Com certeza - disse Louis, fazendo também uma vênia por sobre a chávena.
      Geoffrey inclinou a cabeça, e Cicio baixou as pestanas em sinal de concordância.
      - Agora, então - disse Madame apressadamente -, estamos todos de acordo. À noite, beberemos uma garrafa de vinho celebrando o evento. Os cavalheiros estão de acordo? Que dizem vocês? Chianti... está bem?
      Todos se curvaram sobre a mesa.
      - E Miss Houghton precisa ter um nome artístico. Porque nós não podemos dizer Miss Houghton... quê?
      - Chamem-me Alvina - disse a moça.
      - Alvina... Al-vi-na! Não, desculpe-me, mas não gosto. Não gosto do som do "vi". À noite, encontraremos um nome.
      Depois do chá, perguntaram se havia quarto para Alvina. Não havia nenhum na casa. Mas duas portas adiante havia uma pensão decente, e no último andar arranjou-se lá um quarto.
      - Acho que fica bem aqui - falou Madame.
      - Muito bem - respondeu Alvina, olhando em redor do horrível cubículo e recordando seu outro período de provação, como enfermeira de maternidade.
      Vestiu-se o mais atraentemente possível, com o vestido novo de voile preto e, imitando Madame, pôs quatro anéis com pedras nos dedos. Em regra, usava somente o anel de luto, de esmalte preto e com um diamante, que andava sempre no dedo de Miss Frost. Agora, tirou-o e pôs quatro anéis com diamantes e uma boa safira. Viu-se ao espelho como nunca antes tinha feito, realmente interessada no efeito que fazia. E prendeu no vestido um valioso e antigo broche com um rubi.
      Depois, saiu para a casa de Madame. Esta olhou-a com olhos perspicazes e com uma leve ponta de ciúme: o eterno ciúme que deve existir entre uma francesa, perdiz roliça e pálida, cujo cabelo preto é muito lustroso e arranjado,
cujos olhos negros são muito agudos, cujo vestido preto é muito elegante e chique, e a esguia inglesa vestida de voile macio, de cabelos castanhos, vaporosos e soltos, e olhos
azul-cinzentos e reservados.
      - Oh... que diferença... que diferença! Quando tiver
um pouco mais de carnes, então... - Madame deu um leve estalo com a língua. - Que broche tão bonito, hein? - Madame
tocou-lhe com os dedos. - Imitação de velho... imitação de velho... coisa antiga.
      - Não - falou Alvina. - São rubis verdadeiros. Era da minha bisavó.
      - Ah, sim? Verdadeiros? Tem certeza?...
      - Certeza absoluta.
      Madame examinava as pedras com olhos entendidos.
      - Hum! - disse ela. E Alvina ficou sem saber se ela estava cética, ou ciumenta, ou admirada, ou realmente impressionada.
      - E os diamantes são verdadeiros? - indagou Madame, fazendo Alvina erguer as mãos.
      - Sempre julguei que sim - respondeu Alvina.
      Madame examinou-os e abanou lentamente a cabeça. Depois, olhou Alvina nos olhos, na verdade um pouco ciumenta.
      - Tem aí mais quatro mil francos - disse ela, abanando a cabeça com modos de entendida.
      - Parece-lhe?
      - Tenho certeza. É bastante... é bastante...
      E depois houve um silêncio entre as duas mulheres.
      Os rapazes tinham ido às compras para a ceia. Louis,
que sabia onde encontrar iguarias francesas e alemãs, entrou com embrulhos, Cicio voltou com um par de frascos, Geoffrey com diversos papéis gordurosos com comestíveis. Alvina ajudou Madame a pôr enchovas, sardinhas, atum, presunto e salame
em vários pratos, cortou uma haste num dos vasos de flores, para espetar no empadão de porco, pôs a mesa com os feios garfos, facas e copos. Constantemente, seus anéis cintilavam, o broche vermelho expedia raios luminosos, ela ria, estava alegre e diligente, e lisonjeava Madame com as muitas atenções que lhe dispensava. Se ela era ela mesma ou não, naquela sala repugnante, vulgar e abafada da pensão, não sabia nem prestava atenção. Mas sentia-se excitada e alegre. Sabia que os rapazes a estavam observando. Max dava sua
ajuda sempre que podia. Geoffrey observava seus anéis,
meio enfeitiçado. Mas Alvina estava apenas interessada em lisonjear a rotunda, branca e branda vaidade de Madame. Escolhia cuidadosamente para Madame o prato mais fino, o copo mais transparente, a faca de cabo mais branco, o garfo mais delicado. Madame via isso tudo, com olhos perscrutadores.
      No teatro, a mesma coisa: Alvina tocava para Kishwégin, apenas para Kishwégin. E Madame andava encantada.
      - Sabe, querida - disse ela mais tarde a Alvina -, compreendo o dom da simpatia da música. A música vai direto ao coração. - E beijava Alvina em ambas as faces, atirando os braços em volta do pescoço dela, dramaticamente.
      - Estou tão satisfeita! - dizia a astuta Alvina.
      E os rapazes mexeram-se, contrafeitos, e sorriram furtivamente.
      Correram para casa, para a famosa ceia. Madame sentou-se numa cabeceira da mesa, Alvina na outra. Madame tinha Max e Louis do seu lado, Alvina tinha Cicio e Geoffrey. Cicio estava à direita de Alvina: uma delicada insinuação.
      Começaram com aperitivos e cálices cheios de chianti. Alvina quis pôr água no seu vinho, mas não foi consentido o insulto ao líquido sagrado. Reinava um espírito de grande animação e cordialidade. Madame tornou-se mais pálida, os olhos mais negros, e com o vinho que bebeu a voz tornou-se
um pouco rouca.
      - Esta noite - disse ela - os Natcha-Kee-Tawaras fazem uma festa de perfilhação. A filha branca entrou para a tribo das Hirondelles, andorinhas que vão de terra em terra e fazem o ninho entre o telhado e a parede. Uma nova andorinha, uma nova huron, vinda da tenda dos caras-pálidas, dos covis da morte, da tribo dos Yengees. - Os olhos negros de Madame caíram com uma espécie de triunfo selvagem sobre Alvina.
- Sem nome, sem ter um nome, vem a donzela com jóias vermelhas, coração sombrio, lançando raios vermelhos. Vinho das sombras dos caras-pálidas, ébrio vinho para Kishwégin, vinho estranho para os braves, Vaali, à vous.
      - Vaali, bebei por ela... Boire à elle... - Ela ergueu o copo para a frente, no ar. Os rapazes dirigiram os copos na direção de Alvina, num cacho. Ela pôde ver as bocas sorrindo e os dentes brancos, quando soou nas gargantas:
      - Vaali! Vaali! Boire à vous
      Cicio estava perto dela. Debaixo da mesa, pôs a mão sobre o joelho dela. Imediatamente, ela avançou a mão para se proteger. Ele tomou-lhe a mão e olhou-a através do copo enquanto bebia. Ela viu-lhe a garganta movendo-se à medida que o vinho passava. Ele pousou o copo, ainda olhando-a.
      - Vaali! - disse ele, da garganta. Depois, através da mesa: - Hé, Gigi... Viale! Le Petit Chemin! Comment? Me prends-tu? L'Allée...
      Veio de Louis uma grande explosão de riso.
      - Está bem, está bem! - exclamava. - Oh! Madame! "Viale" é a palavra italiana para caminho estreito, para aléia. É muito expressiva.
      Max pôs-se a rir alto e de um modo inconveniente.
      - L'Allée Italienne! - falou ele às gargalhadas.
      - Aléia ou avenida, pouco importa - gritou Madame em francês -, desde que a viagem seja boa.
      Neste momento, Geoffrey compreendeu a piada. Com modos estranhos e sacudidos encheu o copo, erguendo o cotovelo.
      - A toi, Cie... et bon voyage! - disse ele, e depois empinou o queixo para cima e engoliu em grandes goles.
      - Certamente! Certamente! - gritava Madame. - À sua feliz viagem, meu Cicio, porque você não é grande viajante...
      Durante esta conversação em francês, Alvina esteve
sentada, com os olhos muito brilhantes, olhando de uns para os outros e sem compreender. Mas sabia que era qualquer coisa de indecente a seu respeito. Seus olhos tinham um vivo e levemente desnorteado medo de olhar quando ela saltava de uma para outra face. Cicio deixara a mão dela e limpara os lábios com os dedos. Ele próprio estava um pouco contrafeito.
      - Eles não querem o meu nome. Vão chamar-lhe Allaye!
- falou ela a Alvina. - Acha bom? Serve?
      - Está bem.
      E ela não podia compreender por que Gigi, e depois
os outros, explodiram às gargalhadas. Continuava a olhar em redor, com olhos vivos e embaraçados. Tinha as faces levemente coradas e um ar terno, um ar ingênuo e jovem.
- Passa então a ser um dos da tribo de
Natcha-Kee-Tawara, com o nome de Allaye? Não é verdade?
      - É - concordou Alvina.
      - E obedecerá às regras estritas da tribo? Concorda?
      - Então, ouça - Madame repuxou-se e compôs as penas como uma pomba preta, e arremessou olhares furtivos com seus olhos negros.
      - Nós somos uma tribo, uma nação... - Repita.
      - Nós somos uma tribo, uma nação - repetiu Alvina.
      - Digam todos - exclamou Madame.
      - Nós somos uma tribo, uma nação... - ulularam todos, de diferentes maneiras.
      - Bom! - disse Madame. - E não conhecemos outra nação senão a nação das Hirondelles...
      - Não conhecemos outra nação senão a nação das Hirondelles - voltou o canto áspero das fortes vozes masculinas, tonitruante, alegre e trocista.
      - Hurons... "hirondelles" quer dizer "andorinhas"
- disse Madame.
      - Sim, eu sei - disse Alvina.
      - Ah, sim, sabe! Então, bem! Não conhecemos outra nação senão a das Hirondelles. NÃO TEMOS OUTRA LEI SENÃO A LEI HURON.
      - Não temos outra lei senão a lei huron - cantou o responsório, num canto profundo e sardônico.
      - NÃO TEMOS LEGISLADOR A NÃO SER KISHWÉGIN.
      - Não temos legislador a não ser Kishwégin - cantaram sonoramente.
      - NÃO TEMOS OUTRO LAR SENÃO A TENDA DE KISHWÉGIN.
      - Não temos outro lar senão a tenda de Kishwégin.
      - NÃO HÁ NADA DE BOM SENÃO OS NATCHA-KEE-TAWARAS.
      - Não há nada de bom senão os Natcha-Kee-Tawaras.
      - Nós SOMOS AS HIRONDELLES.
      - Nós somos as Hirondelles.
      - Nós SOMOS KISHWÉGIN.
      - Nós somos Kishwégin...
      - NÓS SOMOS MONDAGUA...
      - Nós somos Mondagua...
      - Nós SOMOS ANTONQUOIS...
      - Nós somos Antonquois...
      - Nós SOMOS PACOHUILA...
      - Nós somos Pacohuila...
      - Nós SOMOS WALGATCHKA...
      - Nós somos Walgatchka...
      - Nós SOMOS ALLAYE...
      - Nós somos Allaye...
      - La musica! Pacohuila, la musica! - gritava Madame, pondo-se de pé num salto e num frenético tom de voz.
      Cicio levantou-se rápido e tirou da caixa o bandolim.
      - Ei... Ei... Ai... an... iii... ia... - começou Madame num longo e leve gemido. E a música desprendia-se do bandolim, gemente. Ela começou a executar uma dança ligeira mas intensa. Depois, acenou por um parceiro e executou uma tarantela gemida. Louis despiu o casaco e entregou-se todo à tarantela, Cicio fazia ressoar a tarantela, e Madame e Louis dançaram no espaço apertado.
      - Brava... Brava...! - gritaram os outros, quando Madame se atirou para cima da sua cadeira. E foram todos em magote beijar-lhe a mão. Um após outro, todos lhe beijaram os dedos, ao mesmo tempo que ela descansava a mão esquerda languidamente na cabeça deles, sentindo-se ligeiramente afogueada. Cicio, contudo, não se levantara e continuava dedilhando o bandolim. Alvina tampouco abandonara o lugar.
      - Pacohuila! - gritou Madame, num gesto imperioso.
- Allaye! Venham cá...
      Cicio pousou o bandolim e foi beijar os dedos de Kishwégin. Alvina foi também. Madame levantou a mão. Alvina beijou-a. Madame descansou a mão na cabeça de Alvina.
      - Aqui está a squaw Allaye, a filha de Kishwégin - disse ela, nos seus modos de tawara.
      - E onde está o brave de Allaye, onde está o braço que sustem a filha de Kishwégin, qual a andorinha que estende sua asa sobre a cabeça delicada da nova andorinha?
      - Pacohuila! - falou Louis.
      - Pacohuila! Pacohuila! - disseram os outros.
      - Abra as macias asas, abra a negra cobertura das asas, Pacohuila - disse Kishwégin, e Cicio, em mangas de camisa, solenemente estendeu os braços.
      - Abaixe-se, abaixe-se, Allaye, sob as asas de Pacohuila - disse Kishwégin, comprimindo levemente o ombro de Alvina.
      Alvina abaixou-se e ajeitou-se sobre o braço direito de Pacohuila.
      - A ave voou para sua casa? - cantou Kishwégin, numa das árias do repertório deles.
      - A ave está em casa... - cantaram os homens.
      - Há calor no ninho? - cantou Kishwégin.
      - Há calor no ninho.
      - A ave macho submeteu-se?
      - Submeteu-se.
      - Quem recebeu Allaye?
      - Pacohuila.
      Cicio galantemente abaixou-se e pôs Alvina de pé.
      - C'est ça! - disse Madame, beijando-a. - E agora, meus filhos, se não queremos que a polícia nos bata à porta, devemos todos nos recolher às nossas cabanas...
      Cicio observava Alvina. Madame lhe fez um gesto secreto e imperativo, significando que ele devia acompanhar a moça.
      - Tem sua chave, Allaye? - disse ela.
      - Se eu tenho uma chave? - perguntou Alvina. Madame sorriu sutilmente ao exibir uma chave.
      - Kishwégin deve abrir as portas de vocês todos - disse ela. Depois, num leve floreio, apresentou a chave a Cicio. 
- Dou-a a ele? Sim? - acrescentou com um sorriso sutil e malicioso.
      Cicio, sorrindo ligeiramente e mantendo a cabeça abaixada, pegou a chave. Alvina olhou vivamente, como que desnorteada, de um para o outro.
      - A luz também! - disse Madame, mostrando uma lanterna de bolso, que triunfantemente passou às mãos de Cicio. Alvina o observava. Dava conta de como ele atirava a cabeça para a frente desde os ombros retos e fortes, de como aquilo era belo, a nuca e a parte de trás da cabeça fortes e inclinadas para a frente. Isso produzia nela uma espécie de confusa submissão, o sentido provocado pelo narcótico da beleza desconhecida.
      - E então boa noite, Allaye... bonne nuit, fille
des Tawaras - Madame beijou-a e atirou-lhe sombrios e inexplicáveis olhares.
      Cada um dos br aves beijou-lhe a mão, numa profunda saudação. Depois, os homens apertaram calorosamente a mão de Cicio, cumprimentando-o.
      Ele não pegou nem o chapéu nem o casaco e foi como estava com ela para a casa vizinha e abriu a porta. Ela entrou e ele a seguiu, iluminando com a lanterna. Subiu
vagarosamente a escada empoeirada e amarelecida, com ele a segui-la. Quando chegou à porta do quarto, voltou-se e olhou para ele. A cara mal se lhe notava, e contudo era muito estranha e bela. Era aquela beleza desconhecida que quase a matava.
      - Não vem? - estremeceu ela.
      Ele fez uma singular e meio alegre, meio trocista contração das sobrancelhas finas e negras e começou a rir silenciosamente. Depois, curvou de novo a cabeça, rindo-se
para ela audaciosamente, descuidadamente, triunfantemente, como melancólico homem do sul que era. O instinto dela foi defender-se. E, então, subitamente achou-se na escuridão.
      Arfava. E enquanto ela arfava, ele a levou delicadamente para dentro do quarto e fechou a porta, mantendo sempre um braço em volta dela. Ela sentia o domínio pesado e muscular dele. Ele agarrou-a com os dois braços, poderoso, misterioso, horrível na escuridão de breu. Contudo, o sentido da beleza desconhecida dele a oprimia como uma força.
      Se por um momento pudesse escapar-se do feitiço negro daquela beleza, ter-se-ia libertado. Se ao menos pudesse, por um segundo, tê-lo visto numa forma repugnante, ele não a teria matado nem feito dela sua escrava como fez. Mas o feitiço mandava nela, o feitiço da treva e da insondável formosura dele. E ele a matara. Agarrara-a e matara-a, simplesmente. Quanto ela sofreu ninguém o pode dizer. E sempre aquela brilhante e morena beleza, insuportável.
      Quando mais tarde ela apertou o rosto contra o peito dele e chorou, ele a conteve delicadamente, como se se tratasse de uma criança, mas sem prestar atenção, e ela
sentiu na treva que ele sorria, e começou a ficar excitada. Mas ele somente a beijava, o sorriso evoluindo para um riso pesado, silencioso e invisível mas sensível, enquanto a transportava uma vez mais para muito longe. Pretendia fazê-la sua escrava, ela o sabia. E parecia subvertê-la e sufocá-la como uma onda. E ela podia ter lutado, mas só se o sentido daquela formosura morena e rica não a tivesse paralisado como um veneno. Assim, banhara-se sufocada naquela paixão.
      De manhã, quando clareou, ele voltou-se e olhou-a por debaixo das longas e negras pestanas, num longo, firme,
cruel e vagamente sorridente olhar de seus olhos fulvos,
perscrutando-a como que para ver se ela ainda estava viva. E ela olhou para ele, de olhos cansados e meio submetida. Ele sorriu levemente, levantou-se e deixou-a. E ela voltou o rosto para a parede, sentindo-se derrotada. Contudo, não derrotada de morte. Exceto quanto ao fatal entorpecimento do seu amor por ele, podia ainda escapar-lhe. Mas ela permanecia inerte, como que envenenada. Ele queria fazer dela sua escrava.
      Quando ela foi ter com os Natcha-Kee-Tawaras para o café, encontrou-os à sua espera. Tinha um ar bastante frágil e terno e olhos espantados que mostravam que ela tinha chorado.
      - Venha cá, filha dos Tawaras - disse-lhe Madame, vivamente. - Temos estado à sua espera. Bom dia e muitas felicidades, hem? Repare, é um dia de alegria para você...
      Madame, sorridente, conduziu Alvina a seu lugar. Junto do prato estava um ramo de violetas, um ramo de cravos vermelhos, um par de adoráveis mocassins e um par de finas luvas de pele de corça, delicadamente enfeitadas de penas
nos canhões. Os mocassins eram de Kishwégin, as luvas de Mondagua, os cravos de Antonquois, as violetas de Walgatchka... tudo "Para a Filha dos Tawaras, Allaye", como se dizia em pequenos cartões.
      - A prenda de Pacohuila você já conhece - falou Madame, sorrindo. - Os irmãos de Pacohuila são seus irmãos.
      Um por um, caminharam para ela e tocaram suas próprias testas com a parte de trás dos dedos dela, dizendo um após outro:
      - Eu sou o seu irmão Mondagua, Allaye!
      - Eu sou o seu irmão Antonquois, Allaye!
      - Eu sou o seu irmão Walgatchka, Allaye, o melhor irmão, bem sabe... - assim falou Geoffrey, olhando-a com amplos e quase solenes olhos de afeição. Alvina sorriu um pouco palidamente, perguntando a si mesma onde estava. Tudo era tão solene! Era tudo aquilo brincadeira, representação? Sentia uma amarga necessidade de chorar.
      Entretanto, Madame entrara com o café, que ela própria fazia sempre, e o grupo sentou-se para o café da manhã. Cicio sentou-se à direita de Alvina, mas parecia evitar olhá-la ou falar-lhe. Durante todo o tempo, olhou através da mesa, com o seu quê de interrogativo e de inteligente nos olhos, para Gigi; e durante todo o tempo se dirigiu a Gigi, com o gutural, rico e plangente modo de falar, em francês, que Alvina não tolerava e que lhe parecia horrível; e parecia que os dois homens faziam-se inconfessáveis comunicações. De tal modo que Alvina, apesar do seu desejo e da sua submissão, ficou por fim seriamente ofendida. Levantou-se da mesa logo que foi possível. De todo o coração, desejava que Cicio lhe prestasse atenção e público reconhecimento... e nada disso conseguira. Voltou para casa, para seu quarto, para arrumar tudo, não desejando que a dona da pensão ali entrasse antes dela. E estava um pouco na expectativa de que Cicio viesse lhe falar.
      Quando estava muito ocupada lavando roupa na bacia, a dona da pensão bateu e entrou. Era uma mulher do Yorkshire, rude e com o aspecto de quem bebia, nada simpática.
      - Ah, já fez a cama!
      - Sim - disse Alvina. - Já arrumei tudo.
      - Estou vendo. É uma criatura desembaraçada. Alvina não respondeu.
      - E parece que está lavando roupa. Alvina continuou sem responder.
      - Pode estendê-la no pátio.
      - Acho que pode secar aqui - disse Alvina.
      - Não fica muito bem secá-la aqui. É melhor que a gente a leve quando esteja pronta. Pode precisar dela. Posso
secá-la na cozinha. Quer beber qualquer coisa?
      - Não - respondeu Alvina. - Não gosto.
      - A bebida deixa a gente mais forte, pode crer. Bem, a mocidade há de fugir-lhe, como a toda gente. Mas, diga-me aqui, qual deles é? Eu o vi quando saía mas não pude reconhecê-lo. Ah, é pena que não queira tomar nada, é pena. É o mais louro e o mais alto deles, não é?
      - Não - replicou Alvina. - É o mais trigueiro.
      - Ah, sim! E um rapagão bem-encorpado. Eu julgava que Madame era esquisita. Vou carregar um pouco na conta, sabe? Tenho de aproveitar. Eu sou esquisita, em geral. Não gosto dessas idas e vindas, sabe? Começam a falar. A menina tem um aspecto sossegado. Vá, tem de me dar mais qualquer coisinha, senão não quero aqui essas coisas. A menina não pode tomar tais liberdades nesta casa, a não ser que possa...
      Ficara corada e parada à entrada da porta. Alvina tranqüilamente deu-lhe um meio soberano.
      - Não, minha menina - disse a mulher -, não é com vinagre que se apanham moscas. Cinco xelins é que está bem, minha menina. Não quero ir além das suas forças, não, mas temos de salvar as aparências, bem sabe.
      - Eu não tenho cinco xelins... - disse Alvina.
      - Não tem? Está bem, fica hoje isto e amanhã dará o resto. Espera-se, espera-se. Deus a abençoe por ser boa moça. Um coração assim aberto é digno de toda a justiça, e eu a faço. Não se fala mais nisso. Você é boa, menina, você é boa...
      E a untuosa mulher foi embora, abanando a cabeça.
      Alvina devia ter ficado preocupada. Mas não ficou. Foi mesmo rindo para o espelho escalavrado. No fundo de seus pensamentos, tudo de que se lembrava era que Cicio não lhe dava nenhuma atenção. Na realidade, esperava que agora ele viesse lhe falar. Se ela pudesse imaginar quão longe ele estava de tal idéia!
      Assim, ela deixou-se ficar de má vontade à janela que dava para a rua cinzenta, áspera e empedrada, e viu a dona
da pensão caminhando apressada pelo negro passeio de asfalto, com o avental sujo posto discretamente sobre o que evidentemente parecia ser um cântaro. Seguiu com os olhos a figura atarracada e decidida, que se dirigia para a taberna da esquina. E então viu Cicio pedalando a bicicleta amarela, seguindo com Gigi por um alcantilado e perigoso trajeto.
      Deixou-se ficar no quarto sórdido. Sentia que Madame a esperava. Mas sentia-se inerte, fraca, insociável. Só o real temor de ofender Madame a levou a sair, por fim.
      Max abriu a porta para deixá-la entrar.
      - Ah! - disse ele. - É você. Estávamos pensando onde poderia ter se metido.
      - Obrigada - disse ela, enquanto passava para o sujo vestiário, onde permaneciam ainda duas bicicletas.
      - Madame está na cozinha - disse ele.
      Alvina foi encontrar Madame entrouxada num avental branco, muito ocupada esfregando, com limão, uma galinha de carne amarela, antes de levá-la ao fogo.
      - Ah! - disse Madame. - Está aí! Saí e fiz as compras e já comecei a fazer o almoço. Sim, pode me ajudar. Quer lavar a salada? Sim? Cada grão de areia? Posso confiar em você?
      Madame ordinariamente tinha a cozinha por sua conta, de manhã. Ela ou desalojava a dona da pensão ou se servia dela como cozinheira-ajudante. Porque Madame era apreciadora de comida, senão mesmo gulosa. Se ela pendia para perdoar a si própria de qualquer coisa, era da comida. Adorava a boa mesa. E por isso os Tawaras gastavam mais dinheiro do que podiam. Ela era uma cozinheira exigente, insuportável, intimidativa. Alvina, que mal sabia fazer um jantar trivial, ficava irritada com as exigências da outra. Madame devolvendo-lhe as folhas verdes da salada e caçando um átomo de terra na parte branca, como uma pulga na cama, era demais para Alvina.
      - Lamento, mas nunca sou bastante meticulosa - disse ela. - Posso fazer qualquer outra coisa para a senhora?
      - Para mim? Eu não preciso que se faça nada para mim. Mas para os rapazes... sim, e vou mostrar-lhe num momento...
      E levou Alvina escada acima até o seu quarto, dando-lhe um par de finas calças de couro franjadas, pertencentes a um dos br aves. Tinha-se desfeito uma costura. Madame deu a Alvina uma agulha fina e um pouco de linha encerada.
      - O couro dessas coisas do Gigi não é bom - disse ela. Mostrava a Alvina outro lugar onde a roupa estava consertada. - Fique com o avental. No fim da semana você tem de consertar mais roupa, não estrague esse vestido de voile que é tão lindo. Onde deixou os seus diamantes? O quê? No quarto? Estão fechados à chave? Oh, minha filha... - Madame empalidecera e dardejava sobre Alvina olhares de fogo. - E se os roubam...
- exclamou. - Só de ouvir você fiquei sem forças! - Arquejava e tremia-lhe a cabeça. - Se não os roubaram, só tem que agradecer aos santos por terem-nos guardado. Mas corra, corra!
      E Madame batia com os pés no chão.
      - Traga-me todas as coisas que você tem lá... todas as coisas que tenham valor. Vou fechá-las à chave. Como você pode...
      Alvina saiu num repelão a caminho de seus aposentos. Felizmente, nada desaparecera. Levou tudo a Madame e esta tocou naqueles tesouros amorosamente.
      - E agora, quando quiser qualquer coisa, peça-me - disse ela.
      Com que curiosidade Madame examinou o broche de rubis!
      - Posso dá-lo à senhora, se lhe agrada, Madame - disse Alvina.
      - Que... que está dizendo?
      - Que lhe dou esse broche, se lhe agrada tê-lo...
      - Dar-me isto! - exclamou Madame, subindo-lhe à face
um raio de luz. Depois, passou para uma espécie de sedução.
- Não... não. Não devo ficar com ele. Você não quereria separar-se de uma coisa destas.
      - Não me importo - disse Alvina. - Fique com ele, se lhe agrada.
      - Oh, não! Oh, não! Não posso ficar com ele. É realmente lindíssimo. Deve valer mais de mil francos, porque me parece que é autêntico.
      - Tenho certeza de que é autêntico - falou Alvina.
      - É seu, se o quiser.
      - Oh, não posso! Não posso!
      - Sim, pode...
      - Que lindas pedras vermelhas! Jóias antigas, jóias antigas! E você na verdade quer me dar isto?
      - Sim, gostaria de lhe dar.
      - É uma moça de bom coração... - Madame lançou os braços em volta do pescoço de Alvina e beijou-a. Alvina sentia-se muito fria, apesar daquilo. Madame fechou as jóias rapidamente, após um último olhar.
      - E a minha galinha - disse ela -, que não é capaz de cozinhar depressa!
      Por fim, chamaram Alvina para almoçar. Os rapazes estavam à mesa, conversando como conversam rapazes, sem qualquer interesse. Depois da refeição, Cicio sentou-se
e dedilhou o bandolim, fazendo com que os sons gritantes vibrassem por toda a casa.
      - Vou dar uma volta pela cidade - disse Alvina.
      - E quem vai com você? - perguntou Madame.
      - Irei sozinha - disse Alvina -, a não ser que queira vir, Madame.
      - Ai, não, não posso. Não posso ir. Mas quer mesmo ir sozinha?
      - Sim, quero ir a umas lojas de artigos para senhoras
- disse Alvina.
      - Quer ir só! Está bem, então! E estará aqui à hora do chá, não é verdade?
      Apenas Alvina saiu, Cicio pôs de lado o bandolim e acendeu um cigarro. Passado um momento, chamou Geoffrey e os dois rapazes foram para a rua. Alvina, saindo de dentro de uma loja de tecidos na Rotherhampton Broadway, deu com eles andando pelo passeio. E eles continuaram a caminhar com ela. Ela entrou numa loja que vendia roupa branca feminina, deixando-os na calçada. Ficou ali todo o tempo que pôde, mas eles lá estavam quando ela saiu. Tinham uma paciência infinita para vadiar.
      - Julgava que tivessem ido embora - disse ela.
      - Não temos pressa - disse Cicio, e tomou-lhe os embrulhos como se isso fosse um direito seu. Ela desejaria que ele não tivesse tombado a aba do chapéu preto sobre
um dos olhos, e desejaria que não fosse assim tão cintado
o corte do seu casaco, e que não soltasse a fumaça do cigarro pelo nariz, na rua. Mas com simples desejos em nada o modificaria. Ele caminhava ao lado... muito irritante.
      Ela gastara todo o tempo possível nas lojas, depois tomaram o bonde para casa, de novo. Cicio pagou as três passagens, segurando a mão de Gigi, quando este procurou
moedas no bolso das calças, e pondo o braço sobre o ombro
do amigo, num triunfo afetuoso mas vulgar, por ter pago os bilhetes. Alvina estava absorvida.
      Eles tentaram falar com ela, tentaram insinuar-se, mas ela não lhes dera atenção. Falava com uma cortesia gelada. E assim se passaram a hora do chá e as horas depois do chá. O espetáculo decorreu mecanicamente, no teatro, e a ceia em casa, com cerveja e presunto cozido, foi uma coisa convencionalmente alegre. Até Madame, naquela noite, estava com um pouco de medo de Alvina.
      - Estou cansada, vou cedo para o quarto - disse a moça.
      - Sim, e eu acho que estamos todos cansados - disse Madame.
      - Por quê? - indagou Max, cheio de metafísica. - Por que nunca há duas noites alegres uma a seguir à outra?
      - Max, a cerveja o torna um farceur de fina qualidade
- respondeu Madame. Alvina levantou-se.
      - Por favor, não se levantem - disse Alvina aos outros. - Eu tenho a chave e conheço o caminho. Boa noite a todos.
      Levantaram-se e lhe deram boa-noite. Mas Cicio, com um sorrizinho obstinado e torpe na face, seguiu-a.
      - Por favor, não venha - disse ela, voltando-se, à porta da rua. Mas obstinadamente ele foi atrás dela. Seguiu-a até a sua porta.
      - Trouxe a lanterna? - disse ela. - A escada é tão escura!
      Ele olhou para ela e virou-se para tirar a lanterna.
Ela abriu a porta da casa e correu para dentro, fechando-a estrondosamente na cara de Cicio. Ele deixou-se ficar alguns momentos olhando para a porta, e um arzinho repugnante
subiu-lhe pelo nariz retilíneo. Voltou também para casa.
      Alvina foi direto para a cama e dormiu bem. E
no dia seguinte mostrou a mesma alegria gelada. Os
Natcha-Kee-Tawaras estavam um pouco desconcertados com ela. Era um travão naquela roda, um calço nas facilidades deles. Tornava-os irritáveis. E naquela noite - era sexta-feira
- Cicio não se levantou para acompanhá-la a casa. E ela percebeu que eles se sentiriam aliviados com sua partida.
      Aquilo não lhe agradou. No dia seguinte, que era sábado, o último e o grande dia da semana, sentiu-se mais uma vez um tanto estranha ao grupo. A tribo reunira-se na sua velha unissonância. Ela era a intrusa, a intrometida. E Cicio não olhava nunca para ela, somente lhe mostrava um lado meio desviado do rosto, no qual havia um ar levemente trocista e repugnante.
      - Vai amanhã a Woodhouse? - perguntou-lhe Madame com bastante frieza. Nenhum deles lhe chamava mais Allaye.
      - Devo ir buscar algumas coisas, não acha? - disse Alvina.
      - Com certeza, se pensa em ficar conosco. Aquilo era uma desagradável bofetada na cara para ela. Porém:
      - Eu quero ficar - disse ela.
      - Sim. Então irá amanhã a Woodhouse e nos encontrará em Mansfield na segunda-feira de manhã. Pode ser assim? Ficará uma noite em Woodhouse.
      Pela cabeça de Alvina esvoaçou um rápido pensamento: "Querem estar uma noite sem mim". O orgulho subiu-lhe obstinadamente. Esteve prestes a dizer: "Posso mesmo ficar
lá para sempre". Mas conteve a língua.
      Afinal, eram gente muito vulgar. Deviam estar contentes por tê-la com eles. Bastava ver como Madame se agarrara ao broche! E como Cicio era um rústico sem maneiras! Afinal, ela se diminuía vergonhosamente, ficando com eles em pensões vulgares e sórdidas. Afinal, fora educada de maneira muito diferente. Tinham normas de vida horrivelmente baixas... regras de vida muito baixas, não somente de moralidade, mas da vida no seu todo. Em verdade, rebaixara-se ao conformar-se com tais normas de vida. Evocava as imagens da mãe e de Miss Frost - senhoras e, ambas, nobres mulheres. O que ela podia pensar de si própria?
      Contudo, era ainda tempo de voltar atrás. Não se entregara. Exceto a Cicio. E o coração ardia-lhe quando pensava nele, em parte com cólera e mortificação, em parte,
ai!, com inegável e insaciável amor. Não podia se conter, o coração ardia-lhe, e queria vê-lo, queria que ele lhe prestasse atenção. E o instinto dizia-lhe que ele podia ignorá-la para sempre. Foi para seu quarto, mulher infeliz,
e chorou e encheu-se de aflições até de manhã, queimando-se entre a humilhação e o desejo.
     
      CAPÍTULO 10 - A QUEDA DE MANCHESTER HOUSE

      Alvina levantou-se purificada e pensativa. Enquanto se penteava, ouviu o som plangente e nasal do bandolim de Cicio. Via da janela um panorama composto de pátios e pequenos jardins, e estava em posição de entrever um pouco de Cicio, que estava sentado numa caixa no pátio de tijolos de sua casa, de cabeça nua e em mangas de camisa, puxando as cordas do bandolim gemente. A manhã não estava quente, mas havia vestígios de sol. Alvina notara que Cicio não sentia frio, a não ser quando havia vento ou uma chuva bem forte. Ele estava tocando plangentes canções napolitanas, de que Alvina nada entendia. Mas, embora visse apenas uma parte dele, vislumbrar
sua cabeça era suficiente para despertar nela aquela fascinação opressiva que, a intervalos, ora vinha ora se ia. Como ele tinha um ar distante, de homem do sul, qualquer coisa de aveludado e sombrio! Era tão fácil perdê-lo para sempre! Por um fio ela tinha-o deixado desaparecer.
      Desceu correndo. Geoffrey abriu-lhe a porta. Ela
sorriu-lhe num fugaz e luminoso sorriso, tendo-se operado nela uma mágica transformação.
      - Ouvi Cicio tocando - disse ela.
      Geoffrey abriu os lábios espessos num sorriso e abanou a cabeça na direção da porta traseira, com um profundo e íntimo olhar para os olhos de Alvina, como que a dizer que o amigo estava doente de amor.
      - Posso ir até lá? - disse Alvina.
      Geoffrey pôs a mão comprida no ombro dela durante um momento, olhou-a nos olhos e meneou a cabeça. Era um rapagão espadaúdo, com uma cara achatada e bela, de sadias cores e com um aspecto de boi alpino, vagaroso, eterno, mesmo um tanto misterioso Alvina estava assustada com a profunda, misteriosa expressão dos olhos dele, bovídeos e orlados de negro. O estranho arco das sobrancelhas fazia com que ele de repente não parecesse a ela inteiramente humano. Sorriu-lhe de novo, assustada. Mas ele apenas inclinou a cabeça e, com a mão pesada no ombro dela, delicadamente a impeliu para Cicio.
      Quando ela saiu pela parte de trás da casa, sorriu diretamente para Cicio, num súbito e luminoso sorriso. A
mão dele, sobre o bandolim, estremeceu, e fez-se silêncio. Ficou sentado, olhando para ela numa imediata reconstituição da lembrança. E, todavia, ela se afastou da longa e inescrutável contemplação dos morenos olhos dele. Estava um pouco ressentida com ele. E contudo caminhava para ele, e
só parou quando o vestido o tocou. E, tranqüilo, ele a contemplou, num olhar pesado e cheio de significação, que parecia comprimi-la; ele parecia alguém que a observasse
com propósitos. Ela olhou para o jardim negro, que tinha
uma vigorosa amoreira selvagem.
      - Quer ir comigo a Woodhouse? - disse ela.
      Ele não respondeu até ela se virar de novo. Depois, quando ela deu com seus olhos:
      - A Woodhouse? - perguntou ele, observando-a, para concentrar-se nela.
      - Sim - disse ela, com os lábios levemente pálidos.
E viu o eterno sorriso de triunfo lentamente irrompendo-lhe na boca. Tinha vontade de lhe cobrir a boca com a mão.
Preferia aqueles olhos morenos com as sobrancelhas e pestanas negras. Os olhos dele observavam-na como um gato observa um pássaro, mas sem a cintilação branca da ferocidade. Havia naqueles olhos um profundo, profundo calor de sol, qualquer coisa de insondável, de profundamente negro e abismal, mas com algo de doce para ela.
      - Quer ir? - repetiu ela.
      Mas os olhos dele tinham já começado a luzir o consentimento. Voltou-se para o lado, como se não tivesse vontade de dar uma resposta direta.
      - Vou - disse ele.
      - Toque qualquer coisa para eu ouvir - exclamou ela.
      Ele ergueu a face para ela e meneou levemente a cabeça.
      - Sim, toque - disse ela, baixando os olhos para ele.
      E Cicio inclinou a cabeça para o bandolim e bruscamente começou a cantar uma canção napolitana, num débil e comprimido falsete, olhando para ela enquanto os lábios
se moviam, olhando-a fixamente no rosto, numa curiosa carícia brincalhona, enquanto a suave voix blanche saía dos seus lábios para ela, por entre o trinado mais alto do bandolim. O som penetrava-a como um fio de fogo, doloroso, mas delicioso, o fio agudo da voz dele. Ela via o pomo-de-adão movendo-se
na garganta, as sobrancelhas descaindo enquanto ele a olhava através das pestanas, sem descanso. Ali estava a esfinge estranha cantando de novo, e ela própria entre as suas garras! Ela parecia dissolver-se naquele poderio.
      Madame interveio para a salvar.
      - O quê, serenata antes do café! Vocês têm mesmo uns estômagos estranhos! Ovos e presunto vêm mais a propósito, hem? Venham!
      Um brilho de desprezo e mofa subiu ao rosto de Cicio quando este parou a música e olhou para o lado.
      - Prefiro a serenata - disse Alvina. - Já comi presunto e ovos.
      - Ah, prefere? Bem... Mas agora tem de comer o presunto e os ovos, contudo. Ha? Está bem?
      Cicio pôs-se de pé e olhou para Alvina como teria olhado Gigi se Gigi estivesse ali. Os olhos diziam coisas indizíveis acerca de Madame. Alvina fez brilhar um sorriso, bruscamente. E um sorriso bem-humorado e meio trocista subiu à face dele também.
      Viraram-se e seguiram Madame para casa. Alvina ia na frente dele, sentia-lhe os dedos acariciando sua nuca e descendo pelas costas. Ela estremeceu como se uma criatura
invisível a tivesse tocado com as garras e olhou rapidamente em redor, para ver o rosto de Cicio, malicioso, por cima do ombro.
      - Afinal, estou aqui pensando - disse Madame - que hoje tomaremos todos o mesmo trem. Nós vamos juntos pela Great Central até o entroncamento. Depois você, Allaye, vai para Knarborough, e nos encontraremos amanhã. E agora não temos muito tempo.
      - Eu vou a Woodhouse - falou Cicio em francês.
      - Também vai? De trem ou de bicicleta?
      - De trem - respondeu Cicio.
      - Gasta tanto dinheiro!
      Cicio levantou ligeiramente os ombros.
      Quando o almoço terminou e Alvina foi para o quarto, Geoffrey saiu para o pátio onde estavam as bicicletas.
      - Cicio - disse ele. - Gostaria de ir com você a Woodhouse. Venha comigo de bicicleta.
      - Vou de trem com ela - falou ele.
      Geoffrey tornou-se sombrio e pesadamente colérico.
      - Gostaria de ver como é lá, chez elle - disse ele.
      - Peça a ela - falou Cicio. Geoffrey observou-o rapidamente.
      - Você me abandona - disse ele. - Gostaria de ver como
é lá.
- Peça a ela - repetiu Cicio. - Depois, vá de bicicleta. - Cicio tocou na larga face do amigo e sorriu-lhe com
afeição.
      - Eu não o abandono, Gigi. Pedi sua opinião. Você falou: Vá. Mas venha. Peça a ela e depois venha. Vai de bicicleta, não? Peca-lhe! Vá! Vá pedir-lhe.
      Alvina ficou surpresa por ouvir uma pancada na porta e a voz de Gigi, na sua forte pronúncia estrangeira:
      - Miss Houghton, eu levo sua mala.
      Ela abriu a porta, surpresa. Estava pronta para partir.
      - Está aí - falou ela, sorrindo-lhe.
      Mas ele a confrontou como um boi poderoso, cheio de perigosa força. O sorriso dela tranqüilizou-o.
      - Ouça, Allaye - disse ele -, diga-me uma coisa.
      - O quê? - Alvina riu.
      - Posso ir a Woodhouse?
      - Quando?
      - Hoje. Posso ir de bicicleta, tomar chá em sua casa, com você e Cicio? Hã? - Ele sorria, num sorriso denso, hesitante e meio sombrio.
      - Venha!
      Ele a olhou com seus grandes olhos azul-escuros.
      - Fala a verdade? - disse, estendendo a mão grande.
      - Sim, falo! - respondeu ela. - Desejo que venha.
      - Bom - falou ele, com um sorriso na boca espessa. E todo aquele tempo a observou curiosamente, do fundo dos olhos grandes.
      - Cicio... um bom tipo, hã? - indagou ele.
      - É? - Alvina riu.
      - Ah-ah! - Gigi meneou a cabeça solenemente. - O melhor! - Seu olhar era tão solene que Alvina riu. Ele riu também e pegou a mala como se fosse uma pena.
      - Ouça... - disse ele ao ver Cicio na rua.
      - Ben! - falou Cicio, estendendo a mão para a mala.
- Donne.
      - Não, não - retorquiu Gigi, fazendo força.
      Alvina achou-se na nova e movimentada estação naquele domingo de manhã, fazendo parte da pequena companhia teatral. Era uma experiência singular. Eram tão acintosamente uma companhia teatral... uma gente à margem do mundo. Madame atirava olhares negros para um lado e para outro, por trás do véu matizado, mantendo o ostensivo sangue-frio da profissão. Max dava voltas em largos passos ao redor de uma caixa preta na qual as palavras vermelhas "Natcha-Kee-Tawara" se destacavam, místicas, e em redor de um pequeno monte de acessórios de palco, no fim da plataforma. Louis estava esperando para comprar os bilhetes, Gigi e Cicio traziam as bicicletas. Eles próprios eram um comboio completo sempre partindo, atarefados, tumultuosos, alegres... e curiosamente à parte, errantes. Alvina andou na direção da banca de venda de livros, meio aberta, Geoffrey permanecia monumental, entre ela e a companhia. Ela voltou-se para ele.
      - A que horas devemos esperar por você? - disse ela. Ele sorriu na sua maneira larga e amigável.
      - Que eu chegarei lá? Bem... - revirou os olhos e fez cálculos. - Às quatro horas.
      - É mais ou menos a hora em que chegaremos - disse ela.
      Ele olhou-a compreensivamente e meneou a cabeça.
      Constituíam uma companhia bem-humorada no vagão do trem. Os homens fumavam cigarros e os apagavam com os saltos dos sapatos; Madame observava todos os viajantes com curiosidade profissional. Max examinava o jornal Lloyds, e mostrava notícias a Louis, que as lia por cima do ombro do companheiro. Cicio bruscamente deu uma palmada na coxa de Geoffrey e olhou rindo para o outro. Assim foi, até chegarem ao entroncamento. E então beijaram-se e disseram-se adeus, como se a companhia estivesse se separando para sempre. Louis lançou-se para o restaurante e regressou com empadas e laranjas, que depôs no compartimento. Madame presenteou Alvina com uma barra de chocolate. E foi um "Adeus, adeus, Allaye! Adeus, Cicio! Bon voyage. Divirtam-se, ambos".
      Alvina tomou o trem rápido de Knarborough, com Cicio.
      - Gosto de todos eles - disse ela.
      O rapaz abriu ligeiramente a boca e meneou a cabeça para cima e para baixo. Ela viu naquele movimento como ele era afetuoso e, a seu modo, emotivo. Ele amava os outros. Ela colocou sua mão na dele. Este deu à sua mão um apertão brusco, de compreensão física, e depois deixou-a como se nada tivesse acontecido. Havia mais gente no vagão com eles. Ela não podia deixar de sentir como fora brusco e amorável aquele momentâneo aperto de mão: tão quente, tão total!
      E assim contemplaram o deslizar da paisagem naquela manhã de domingo, chegando a Knarborough. Foram comer num pequeno restaurante. Era uma hora.
      - Não é estranho que estejamos viajando juntos, assim?
- perguntou Alvina, ao sentar-se na frente dele.
      Ele sorriu, olhando-a nos olhos.
      - Parece-lhe estranho? - disse, mostrando ligeiramente os dentes.
      - E a você, não? - exclamou ela. Ele deu um sorriso leve e lacônico.
      - E eu nem sei como posso amá-lo tanto - disse ela, por sobre as batatas, tremendo.
      Ele olhou furtivamente em volta, para ver se alguém estava ouvindo, se alguém podia ouvir. Isso ter-lhe-ia desagradado. Mas ninguém estava ali perto. Por baixo da
pequena mesa, pôs os joelhos dela entre os seus e apertou-os com uma vagarosa e imensamente forte compressão. Debilmente, ela estendeu a mão através da mesa para ele. Este cobriu-a por um momento com sua mão, depois ignorou-a. Mas os joelhos dela continuavam entre a potente e viva pressão dos seus joelhos.
      - Continue comendo - disse ele, sorrindo e fazendo-lhe sinal para o prato. Depois libertou-a.
      Decidiram ir a Woodhouse de bonde, um longo percurso de uma hora. Sentados no carro coberto, na atmosfera cheia de fumaça de tabaco forte, ele parecia fechado em si mesmo, afastado no seu próprio abrigo, evidentemente um estrangeiro de pele trigueira. E Alvina, sentada ao lado dele, se lembrou da mulher com o marido negro, lá em Lumley. Compreendia a reserva da mulher. Ela própria se sentia da mesma maneira, qualquer coisa apartada, por causa do homem que estava a seu lado. Apartada! E satisfeita por isso. Unia-se à sombria e desdenhada natureza estrangeira de Cicio. Amava isso, adorava isso, desafiava tudo o que havia no mundo. Sombrio, ele
sentava-se a seu lado, fechado em si mesmo, entristecido pela sua presumida inferioridade entre aquela gente industrial do norte. E ela estava com ele, ao lado dele, fora dos limites da gente a que pertencera.
      Havia pessoas conhecidas no bonde. Ela baixava a cabeça em resposta aos cumprimentos, mas tão evidentemente distante, que as pessoas detinham-se, voltadas para olhar para ela e para Cicio. Mas deixavam-na só. O rompimento entre ela e eles estava estabelecido para sempre... e fora por sua vontade que esse rompimento se estabelecera.
      Assim subiram e desceram os montes enfadonhos da região montanhosa e industrial, até que por fim pararam perto de Woodhouse. Passaram as ruínas da Asfixia por Meio Pêni e Alvina deitou-lhes um rápido olhar indiferente. Percorreram
a Knarborough Road. Bom número de jovens de Woodhouse vagava pelos passeios, com seus ternos domingueiros. Ela conhecia-os a todos. Conhecia as peles de raposa de Lizzie Bates, o vestido lilás de Fanny Clough e o chapéu de plumas de Mrs. Smitham. Conhecia-os a todos eles. E quase inevitavelmente o velho sentimento de Woodhouse começava a insinuar-se nela, estava satisfeita com que não pudessem vê-la, estava um pouco envergonhada de Cicio. Desejava, de momento, que Cicio não estivesse ali.
      E como chegava o momento de descer, ela olhou ansiosamente para todos os lados, para ver em que parada seria melhor descer... onde pouca gente pudesse reparar
nela. Mas então deixou os escrúpulos de lado e desceu na movimentada rua de domingo à tarde, acompanhada por Cicio, que levava a mala. Sabia que toda a gente estava
olhando para ela.
      Encaminharam-se para Manchester House. Miss Pinnegar esperava Alvina, mas pelo trem que chegava mais tarde. Por isso foi preciso bater, porque ela estava deitada. A mulher abriu a porta, com as faces cheias de manchas per causa da sua curiosa cor, e um pouco desamparada, um pouco enovelada, e um pouco irritável.
      - Não sabia que vinham duas pessoas - foram os seus cumprimentos.
      - Não sabia? - falou Alvina, beijando-a. - Cicio veio trazer-me a mala.
      - Oh! - exclamou Miss Pinnegar. - Como está? - E estendeu-lhe a mão. Ele apertou-a molemente.
      - Recebi seu telegrama - disse Miss Pinnegar. - Falava em trem. Mrs. Rollings volta às quatro...
      - Oh, está bem - disse Alvina.
      A casa estava silenciosa, num clima vespertino. Cicio tirou o chapéu e sentou-se na cadeira de Mr. Houghton.
Alvina disse-lhe que fumasse. Ele se mantinha silencioso e reservado. Miss Pinnegar, pobre figura, de faces manchadas e de traseiro roliço, de franjas cinzento-acastanhadas, estava de pé como se não soubesse o que dizer ou fazer.
      Seguiu Alvina até o andar de cima, ao quarto dela.
      - Não posso entender por que o trouxe com você - começou Miss Pinnegar. - Não sei em que é que anda pensando. Em toda parte já é um falatório.
      - Não me importo - disse Alvina. - Gosto dele.
      - Oh, que vergonha! - exclamou Miss Pinnegar, erguendo
a mão no gesto desanimado e involuntário de Miss Frost. - Em que conta você tem a si própria? E seu pai morreu há um mês.
      - Não tem importância. Meu pai está morto. E eu sei bem que os mortos não se importam com coisa alguma.
      - Nunca ouvi ninguém dizer coisas assim, como as que você diz.
      - Por quê? É o que eu penso.
      Miss Pinnegar estava pálida e desanimada.
      - Você não lhe pediu que passasse a noite aqui, não é?
- desfechou ela.
      - Pedi. E amanhã volto com ele para junto de Madame. Eu agora faço parte da companhia, como pianista.
      - E vai casar com ele?
      - Não sei.
      - Como é que pode dizer que não sabe? É espantoso! Isso me deixa fora de mim.
      - Mas eu não sei - dizia Alvina.
      - É inacreditável! Simplesmente inacreditável! Parece-me que não está boa da cabeça. Eu às vezes chegava a pensar que sua mãe tinha qualquer coisa errada. Com você é a mesma coisa. Não tem o juízo perfeito. Precisa ser pajeada.
      - Eu, Miss Pinnegar? Ah, está bem, não se preocupe com isso.
      - Só eu é que posso fazê-lo.
      - Espero que não o faça. Houve uma pausa.
      - Tenho vergonha de ficar mais um dia em Woodhouse
- falou Miss Pinnegar.
      - Vou-me embora para sempre - disse Alvina.
- Eu também gostaria - disse Miss Pinnegar. Repentinamente, caiu sobre uma cadeira e rebentou em
lágrimas, gemendo:
      - O seu pobre pai! O seu pobre pai!
      - Eu acho que os mortos estão bem onde estão. Por que o está lamentando?
      - Você é uma perdida! - gritou Miss Pinnegar.
      - Ah, sim? Sim? - riu Alvina divertidamente.
      - Sim, é uma jovem perdida - soluçou Miss Pinnegar, em tom final de desespero.
      - Eu gosto de ser perdida - disse Alvina.
      Miss Pinnegar chorava em silêncio. Tinha um ar confuso e abandonado. Alvina caminhou para ela e pôs-lhe a mão sobre o ombro.
      - Não se aflija, Miss Pinnegar - disse ela. - Não seja tola. Gosto de estar com Cicio e Madame. Talvez no fim venha a casar com ele. Mas se não casar... - A mão bruscamente agarrou o braço pesado de Miss Pinnegar até fazê-lo doer.
- Não perderia um minuto que pudesse estar com ele, não, por nada deste mundo.
      A pobre Miss Pinnegar descaía, convencida.
      - Você torna minha vida difícil em Woodhouse, a mim
- falou ela, desesperada.
      - Não pense nisso - disse Alvina, beijando-a.
- Woodhouse não é o mundo.
      - Vivi aqui durante quarenta anos.
      - E eu durante trinta. É por isso que gostei de ir embora.
      Houve uma pausa.
      - Tenho andado pensando - falou Miss Pinnegar - em abrir um pequeno negócio em Tamworth. Você sabe que os Watsons estão lá.
      - Parece-me que a senhora se daria bem lá - disse Alvina.
      Miss Pinnegar sentiu-se de novo com forças. Tinha ainda energia e coragem.
      - Não quero ficar aqui, de modo nenhum - retrucou ela.
- Woodhouse já não é nada para mim.
      - Com certeza que já não é - disse Alvina. - Parece-me que a senhora será mais feliz em outro lugar qualquer.
      - Sim... talvez fosse... agora!
      Não obstante, a pobre Miss Pinnegar tinha os cabelos grisalhos, era quase uma velha atarracada e estranha.
      Desceram as escadas. Miss Pinnegar pôs água no fogo, para o chá.
      - Quer ver a casa? - disse Alvina a Cicio.
      Ele fez que sim com a cabeça. E ela levou-o de aposento em aposento. Ele olhava para tudo rápida e curiosamente, fazendo observações sobre as coisas, mas sem profundidade.
      - Esta era a sala de estar de minha mãe - disse ela. 
- Esteve aqui sentada durante anos, nesta cadeira.
      - Sempre aqui? - disse ele, olhando Alvina no rosto.
      - Sim. Era doente do coração. Esta é outra fotografia dela. Não me pareço com ela.
      - Quem é aquela? - perguntou ele, apontando para uma fotografia de Miss Frost, formosa e de cabelos brancos.
      - Era Miss Frost, a minha governanta. Viveu aqui até morrer. Eu gostava dela... significava tudo para mim.
      - Também morreu?
      - Sim, há cinco anos.
      Foram à sala de visitas. Ele pôs a mão sobre as teclas do piano, que ressoaram.
      - Toque - falou Alvina.
      Ele mexeu a cabeça, sorrindo levemente. Mas desejava
que ela tocasse. Ela sentou-se e tocou um dos trechos de Kishwégin. Ele ouvia, sorrindo ligeiramente.
      - Bom piano... hem? - disse ele, olhando-a no rosto.
      - Eu gosto do som - disse ela.
      - É seu?
      - O piano? É. Julgo que tudo isto é meu... ao menos de nome. Não sei verdadeiramente como estão as coisas de meu pai.
      Ele olhou para ela de novo, e seus olhos erraram pela sala. Viu o retratinho colorido de uma criança com uma madeixa de cabelos castanho-ouro e olhos surpresos, de vestido azul-pálido com um largo cinto azul-escuro.
      - É você? - disse.
      - Reconhece-me? - disse ela. - Não estou cômica? Levou-o ao andar de cima, primeiro ao monumental quarto de dormir.
      - Era o quarto de minha mãe - disse ela. - Agora é meu.
      Ele olhou para ela, depois para as coisas do quarto, depois para fora da janela, depois para ela de novo. A moça corou e correu a mostrar o quarto dele e o quarto de banho. Depois, desceu as escadas.
      Ele ficou olhando a altura dos tetos, o tamanho dos quartos, levando em conta o tamanho e proporções da casa e
a qualidade do mobiliário.
      - É uma grande casa - disse. - É sua?
      - Está em meu nome. Meu pai deixou-me tudo... e as dívidas também, é claro.
      - Muitas dívidas?
      - Oh, sim! Ainda nem sei bem quanto. Mas talvez mais dívidas do que bens. Irei de manhã ao advogado. No fim, quando tudo estiver pago, talvez não fique mesmo nada para mim.
      Tinha parado nas escadas, dizendo isso, voltando-se para ele, que estava no degrau de cima. Ele a olhava, fazendo cálculos. Depois sorriu azedamente.
      - Será mau, se perder tudo, hem?
      - Não me importo, se eu puder viver... - falou ela.
      Ele abriu as mãos, suplicante, não compreendendo. Depois, olhou para o cimo da escada e ao longo do corredor
de novo, e para baixo, para o vestíbulo.
      - Um lindo casarão. Seria magnífico que fosse seu
- disse.
      - Eu bem que gostaria - disse ela com o seu quê de patético -, se ele lhe agrada tanto.
      Ele encolheu os ombros.
      - Eh! - acrescentou. - Como não gostar dele!
      - Eu não gosto! - disse ela. - Para mim é um triste e miserável buraco. Detesto esta casa. Vivi aqui toda a minha vida e vi tudo o que aconteceu de mau aqui. Detesto-a.
      - Por quê? - indagou ele, com entonação curiosa e sarcástica.
      - É pena que não seja de fato sua - disse ele, enquanto entravam na sala de estar, onde Miss Pinnegar, sentada, preparava pão com manteiga.
      - O quê? - perguntou Miss Pinnegar, vivamente.
      - A casa - respondeu Alvina.
      - Oh, sim, não sabemos. Esperemos que tudo corra bem
- replicou Miss Pinnegar, preparando o pão com manteiga num prato. Depois, bastante ácida, acrescentou: - É pena. E muitas outras coisas o são, além dessa. Se Miss Houghton tivesse o que devia ter, as coisas seriam muito diferentes, isso eu lhe asseguro.
      - Oh, sim! - disse Cicio, a quem aquelas palavras eram dirigidas.
      - Muito diferentes, na realidade. Se todo o dinheiro não tivesse sido... perdido... da maneira como foi, Miss Houghton não andaria tocando piano pelos cinemas.
      - Não, talvez não - falou Cicio.
      - Com certeza que não. Não é a coisa certa para ela, de maneira nenhuma.
      - Parece-lhe que não?... - indagou Cicio.
      - Imagina que sim? - retrucou Miss Pinnegar, virando-se e olhando-o fixamente, enquanto ele se sentava junto do lume.
      Ele olhou curiosamente para Miss Pinnegar, num leve ranger de dentes.
      - Eh! - disse ele. - Como é que eu posso saber?
       Eu acho que isso é claro como água - falou Miss Pinnegar.
      - Eh! - exclamou ele, sem compreender completamente.
      - Mas com certeza as pessoas que não estão habituadas a algo melhor não podem entender senão aquilo a que estão habituadas - disse ela, levantando-se e atirando as migalhas do avental de seda preta para o fogo. Ele olhava para ela.
      Miss Pinnegar saiu para a cozinha. Alvina preparava a lareira na sala de visitas. Veio com uma panela buscar carvão na lareira da sala de estar.
      - Que quer você? - disse Cicio, levantando-se. E
tirou-lhe a pá da mão.
      - Belos pedaços de carvão em brasa, não é? - dizia ele, enquanto tirava os pedaços vermelhos do montão da grelha.
      - Basta - disse Alvina. - Basta! Vamos pôr isto na sala de visitas. - Ele levou a pá cheia de brasas fumegantes para a outra sala, e atirou-as para cima dos ferros da grelha, observando Alvina pôr mais pedaços de carvão.
      - É bonito o fogo! Arde depressa! Linda coisa, o fogo! Sabe o que se diz na minha terra? "Pode-se viver sem comida, mas não se pode viver sem fogo."
      - Mas eu pensava que fazia sempre calor, em Nápoles
- disse Alvina.
      - Não, não faz. E a minha aldeia, quando eu era pequeno, ficava nas montanhas, a uma hora de trem, de Nápoles. Frio no inverno, calor no verão...
      - Tão frio como na Inglaterra? - disse Alvina.
      - Oh... e mais frio. Os lobos chegam perto. Pode-se ouvi-los uivando de noite, na geada...
      - Devem meter medo! - disse Alvina.
      - E matam os cães! Matam sempre os cães. Você sabe, eles odeiam os cães, detestam-nos. - Fez um ruído esquisito, para mostrar como os lobos detestam os cães. Alvina compreendeu e riu.
      - Eu faria o mesmo, se fosse um lobo - disse ela.
      - Sim, claro. - Os olhos dele falsearam sobre ela por momentos. - Ah, mas, pobres cães! Encontrá-los comidos... abandonados no meio das árvores ou das pedras, é um trabalhão encontrá-los no dia seguinte, os pobres animais.
      - Devem passar um grande susto - disse Alvina.
      - Susto... ui! - Ele fez uns gestos bruscos e alguns ruídos que deram mais intensidade às suas poucas palavras.
      - E você gosta da sua aldeia? - disse ela. Ele meneou a cabeça.
      - Não - disse ele. - Porque, sabe... não há nada a fazer... não há dinheiro... trabalha-se, trabalha-se... não se vive... não se ganha nada. Quando eu era pequeno, meu pai morreu, e minha mãe veio comigo para Nápoles. Então eu ia
nos pequenos barcos para o mar... pescando, transportando gente... - Fez um gesto com a mão, como para fazer-lhe compreender tudo o que as palavras não podiam exprimir. Sorriu para Alvina, mas havia nele uma ligeira e pungente tristeza, e distanciamento, a beleza da antiga fatalidade e completa indiferença pelo destino.
      - Vocês eram muito pobres?
      - Pobres?... Ah, sim! Não tínhamos nada. Farrapos... não tinha sapatos... Pão, um peixinho do mar... mariscos.
      As mãos tremiam-lhe, os olhos se fixavam nela com um olhar profundo de experiência. E parecia, apesar de tudo,
que para ele todas as situações valiam o mesmo, que a pobreza tinha tanto de vida como a abundância. Mas ele tinha uma espécie de idéia invejosa de que era humilhante ser pobre, e desse modo, por causa da vaidade, gostaria de ter bens. As inumeráveis gerações de civilização que o precederam
tinham-lhe deixado o instinto da insignificância do mundo. O seu pouco de educação moderna fazia do dinheiro e da independência uma idée fixe. O velho instinto dizia-lhe que
o mundo não era nada. Mas a educação moderna, demasiado superficial, era muito mais eficaz do que o instinto, levando-o a fazer de si próprio um espetáculo para o mundo. Alvina, observando-o, como que hipnotizada, via-lhe a beleza antiga, formada por civilizações após civilizações; e ao mesmo tempo via sua vulgaridade moderna e sua decadência.
      - E quando voltar, vai voltar à sua aldeia? - indagou ela.
      Ele fez um gesto com a cabeça e com os ombros, evasivo, descomprometido.
      - Não sei - respondeu ele.
      - Como se chama ela?
      - Pescocalascio - disse a palavra por entre os dentes, sem vontade.
      - Diga outra vez - falou Alvina.
      - Pescocalascio. Ela repetiu.
      - E como é que se escreve?
      Ele remexeu no bolso à procura de lápis e de um pedaço de papel. Ela levantou-se e deu-lhe um velho caderno de desenhos. Ele escreveu, lentamente, com a linda mão
italiana, o nome da aldeia.
      - E escreva seu nome - disse ela. "Marasca, Francesco", escreveu.
      - E escreva o nome do seu pai e da sua mãe - disse ela.
      Ele olhou para ela, interrogativamente.
      - Queria vê-los - disse ela.
      "Marasca, Giovanni", escreveu ele, e por baixo: "Califano, Maria".
      Ela olhava para os quatro nomes, na graciosa letra italiana. E leu-os alto, uns em seguida aos outros. Ele corrigia-a, sorrindo gravemente. Quando ela os disse
corretamente, ele acenou com a cabeça.
      - Sim - disse ele. - É isso. Pronuncia muito bem. Nesse momento, Miss Pinnegar entrou para dizer que Mrs. Rollings vira outro dos rapazes, de bicicleta, na rua.
      - É Gigi! Ele não sabe o caminho para aqui - disse Cicio, pegando apressadamente no chapéu e saindo à procura do amigo.
      Geoffrey apareceu, com a larga cara ardendo e transpirando.
      - Você não encontrava a casa? - perguntou Alvina.
      - A casa eu achei, mas a porta é que eu não encontrava
- respondeu Geoffrey.
      Riram-se todos e sentaram-se para tomar chá. Geoffrey e Cicio falavam um com o outro em francês e conservavam-se calmos. Felizmente para eles, Madame cuidara da sua maneira de comportar-se à mesa. Mas ainda estavam demasiado à vontade para o gosto de Miss Pinnegar.
      - Você viu? - disse Cicio em francês a Geoffrey. - É uma belíssima casa.
      - Ah, sim? - falou Geoffrey, rolando os grandes olhos pela sala e falando com as bochechas cheias de comida. - É?
      - Ah... se fosse dela...
      E assim, depois do chá, Cicio disse a Alvina:
      - Permite que Geoffrey veja a casa?
      Começou de novo a visita. Geoffrey, com suas grossas pernas mal-ajeitadas, contemplava as salas e fazia a Cicio comentários em francês. Quando subiram as escadas, apalpou o grande e liso corrimão de mogno. No quarto de dormir, olhou quase aterrado para a colossal cama e para o armário. No quarto de banho, abriu as torneiras prateadas, de modelo antigo.
      - Aqui é o meu quarto - falou Cicio em francês.
      - Assez éloigné! - replicou Gigi. Cicio relanceou também um olhar pelo corredor.
      - Sim - disse ele. - Mas o caminho é direto.
      - Olhe, rapaz... se você pudesse casar com isto...
- referindo-se à casa.
      - Ah, mas ela não sabe se ainda é a dona de tudo. As dívidas são capazes de não deixar nada.
      - O quê? É pena, é pena! La pauvre filie... pauvre demoiselle - lamentava Geoffrey.
      - Sim, é pena.
      - Muita pena! Olhe, rapaz, para o amor não precisa que haja bens, mas para o casamento, sim. O amor é para todos,
até para as cigarras. Mas o casamento quer dizer uma cozinha. É isso mesmo. La pauvre demoiselle; c'est malheur pour elle.
      - Tem razão - disse Cicio. - Et aussi pour moi. Para mim também.
      - Para você também, cher! Talvez... - disse Geoffrey, passando um braço pelo ombro de Cicio e dando-lhe um abraço súbito. Sorriram um para o outro.
      - Quem sabe?
      - Quem sabe... é verdade, Cicio.
      Enquanto desciam as escadas para ir ao encontro de Alvina, que eles ouviam tocando piano na sala de visitas, Geoffrey espreitou uma vez mais para dentro do grande
quarto de dormir.
      E desceram as escadas, rindo.
      Miss Pinnegar estava sentada junto de Alvina, decidida a não ir essa tarde à igreja. Estava sentada desajeitadamente, lendo um romance. Alvina trocou galanteios com os dois homens, tocou piano para eles e sugeriu que jogassem cartas.
      - Oh, Alvina, você não vai jogar cartas esta noite!
- comandou a pobre Miss Pinnegar.
      - Mas, Miss Pinnegar, isso não pode fazer mal a ninguém.
      - Bem sabe o que eu penso... e o que seu pai pensava... e sua mãe e Miss Frost.
      - Bem sabe que para mim tudo isso são preconceitos
- falou Alvina.
      - Oh, está bem! - disse Miss Pinnegar agastadamente.
      E, fechando o livro, levantou-se e foi para outra sala.
      Alvina trouxe as cartas e uma caixinha de moedas que sobrara dos lucros do Esforço. Naquela altura, bateram à porta. Era Mr. May. Miss Pinnegar mandou-o entrar, triunfante.
      - Oh! - disse ele. - Estão acompanhadas. Ouvi dizer
que tinha chegado, Miss Houghton, por isso me apressei a trazer-lhe os meus cumprimentos. Não sabia que estava
acompanhada. Como está, Francesco? Como está, Geoffrey? Comment allez-vous, alors?
      - Bien! - disse Geoffrey. - O senhor veio para jogar cartas?
      - Cartas no domingo à tarde! Mas isso é uma revolução, meu amigo! É claro que eu não sou um fanático. Se Miss Houghton me pedir...
      Miss Pinnegar olhou solenemente para Alvina.
      - Está bem. Tome o seu lugar, Mr. May - falou Alvina.
      - Obrigado, vamos então a isso, se eu puder. Sobretudo porque esses montes de moedas estão tentadores. Quem é a banca, podem me dizer? E Miss Pinnegar, joga bem?
      Mas Miss Pinnegar tinha virado suas pobres e arqueadas costas, e partira.
      - Estou com receio de que ela esteja zangada - disse Alvina.
      - Mas por quê? Nós não pomos em perigo a alma dela, pois não? Eu sou um bom católico, mas não me entendo com essas crendices provincianas. Quem dá as cartas? Miss Houghton? Mas esta partida não está muito seca? Ha? Vocês não acham?
      Os outros homens riram.
      - Se Miss Houghton me desse licença para ir correndo buscar qualquer coisa. Sim? Posso ir? Seria muito mais agradável. Que é que os senhores preferem?
      - Cerveja - disse Cicio, e Geoffrey concordou com um sinal de cabeça.
      - Cerveja! Oh, realmente! Admirável! Para mim, sempre um pouco de uísque. Que espécie de cerveja? Clara?... Ou escura? Parece-me que será melhor trazer garrafas. Mas como vou escondê-las? Não terá por aí uma sacola, Miss Houghton? Assim parecerá que eu vou viajar. E vou... até o Sun, ida e volta; e se não é bastante longe, mesmo para Miss Pinnegar e John Wesley, lamento-o muito.
      Alvina trouxe uma sacola.
      - Excelente! - disse ele. - Excelente! Cabem bem meia dúzia. Agora... - pôs-se a falar baixinho - não será melhor esgueirar-me pela porta da frente para escapar às garras do cão de guarda?
      Logo que saiu, nas pontas dos pés, os outros dois homens riram-se dele. Felizmente havia copos, copos antigos da melhor qualidade, no armário da sala de visitas. Mas infelizmente, quando Mr. May voltou, tornava-se necessário
um saca-rolhas. Alvina foi buscá-lo furtivamente à cozinha. Miss Pinnegar estava sentada, curvada, junto do lume, com
os seus óculos e um livro. Observava como um lince, quando Alvina se virou. E viu o saca-rolhas denunciador. Então curvou-se um pouco mais na cadeira.
      Andava pela noite um ruído de orgia. Porque Mr. May, depois de uma longa depressão, estava em boa forma. Gritavam, positivamente gritavam por sobre as cartas, berravam de excitação, disputando e rindo. Miss Pinnegar suportava sentada tudo aquilo. Mas chegou a um ponto em que não pôde mais.
      A porta da sala de visitas abriu-se e a encurvada, desajeitada e definhada mulher, no seu vestido de sarja preta, apareceu como um anjo baixo e vingativo, à entrada.
      - Que diria seu pai a isto? - disse ela severamente.
      O grupo suspendeu o riso e o jogo e deixou-se ficar olhando. Miss Pinnegar sentiu-se mal sob tantos olhares.
      - Meu pai! Mas por que meu pai?
      - Jovem perdida! - disse Miss Pinnegar, retirando-se e fechando a porta.
      Mr. May riu tanto que entornou o uísque.
      - Pronto - exclamou ele, sucumbindo. - Vejam o que ela me custou! - E explodiu noutro paroxismo, inchando como um peru.
      Cicio abriu a boca, rindo silenciosamente.
      - Jovem perdida! Jovem perdida! Mas como é que você pode estar perdida se está em sua casa?! - dizia Geoffrey, abrindo muito os olhos e olhando para todos os lados como se ele próprio tivesse perdido qualquer coisa.
      Todos se precipitaram de novo numa explosão de risos.
      - Não, mas, realmente - dizia Mr. May - beber e jogar cartas com estranhos na sala de visitas, e num domingo à tarde, claro que é escandaloso! É horrível! Não sei como poderá salvar-se, depois de um tal pecado. E em Manchester House, ainda por cima! - Teve outra explosão de alegria, que o deixou vermelho como um peru, contorcendo-se na cadeira e guinchando ligeiramente: - Oh, eu adoro isso! Você, uma jovem perdida! É claro que você está perdida! E Miss Pinnegar só agora é que deu por isso! Quem não tem vontade de se perder? Se Miss Pinnegar pudesse, até ela se perderia. Tenho certeza! É absolutamente natural!
      Mr. May esfregou os olhos com o lenço, que infelizmente tinha absorvido o uísque.
      Depois continuaram jogando, até Mr. May e Geoffrey terem ganho o dinheiro todo, exceto dois pence de Cicio. Alvina ficara devendo.
      - Foi uma partida muito agradável - disse Mr. May.
- Muito agradável. Não acham?
      Os outros dois homens sorriram e assentiram com a cabeça.
      - Só tenho pena de que Miss Houghton tenha perdido tanto, toda a noite. Foi de fato notável. Mas, apesar de tudo, conforto-me com o ditado "Feliz no jogo, Infeliz
nos amores". Eu com certeza sou perseguido pela pouca sorte em amores. E tenho certeza de que Miss Houghton preferirá
ser antes infeliz no jogo do que nos amores. Hã, não é assim?
      - Claro que sim - respondeu Alvina.
      - É assim mesmo, claro, com certeza! Pois bem, o que nós podemos fazer depois disso é desejar-lhe boa sorte nos amores. Não é assim, meus senhores? Acho que posso afirmar que todos desejamos fazer o que for possível para que Miss Houghton seja feliz nos amores, não é, senhores? Pois bem, então bebamos a isso. - Levantou o copo e fez uma saudação a Alvina. - Com todos os votos de que seja feliz nos amores, Miss Houghton, e o seu devotado servidor... - Fez uma vênia e bebeu.
      Geoffrey abriu muito os olhos para ela ao erguer seu copo.
      - Sei que você terá sucesso no amor, eu sei - disse ele lentamente.
      - E você, Cicio? Não bebe? - indagou Mr. May. Cicio levantou o copo, olhou para Alvina, fez um trejeito com a boca, cômico, e bebeu a cerveja.
      - Bem - disse Mr. May -, já que as palavras não o fazem, a cerveja deve confirmar esses votos.
      - Que horas são? - perguntou Alvina. - Temos de jantar.
Passava das nove horas. Alvina levantou-se e foi à cozinha, arrastando os homens atrás de si. Miss Pinnegar não estava lá. Não estava em parte alguma.
      - Teria ido para a cama? - falou Mr. May. E arrastou-se furtivamente pelas escadas acima, nas pontas dos pés, cômico, corado, gordinho. Conhecia bem os cantos da casa. Voltou aos saltos.
      - Ouvi-a tossindo - disse ele. - Havia luz por baixo da porta. Foi se deitar. Eu não disse sempre que ela era uma boa alma? Tenho de beber à saúde dela. Miss Pinnegar... - E curvou-se rapidamente na direção das escadas. - À sua saúde e que passe muito bem a noite.
      Após o quê, rindo alegremente sem saber de quê, ele próprio se sentou no melhor lugar da mesa e começou a trinchar o carneiro frio.
      - E onde estão os Natcha-Kee-Tawaras esta semana?
- perguntou. Informaram-no.
      - Oh? E vocês dois voltam para o acampamento de Kishwégin, de bicicleta, esta noite? Não devemos prolongar demasiado a nossa alegria.
      - Cicio fica para me ajudar a levar a mala amanhã
- disse Alvina. - Sabe, eu agora faço parte dos Tawaras permanentemente... como pianista.
      - Não, não sabia! Oh, realmente! Realmente! Oh! Bem vejo! Permanentemente! Sim, foi uma surpresa para mim! Sim! Como pianista? E se não sou indiscreto, qual é a parte que lhe compete do rendimento da tribo?
      - Não está ainda combinado - disse Alvina.
      - Não! Ah, sim, sim! Não podia estar já combinado. E disse que era um trato permanente? Decerto, por tal preço...
      - Sim, é um trato permanente - ripostou Alvina.
      - Pois é verdade! Que golpe você me deu! Não voltará então para o Esforço? Quê? De nenhum modo?
      - Não - disse Alvina. - Vou vender o Esforço.
      - Ah, sim? Está decidida a isso? Oh! São novidades para mim. E é uma decisão definitiva?
      - Absolutamente - respondeu.
      - Estou vendo. Tirando as conclusões, se assim me posso exprimir... - E relanceou os olhos por ela e pelos dois rapazes. - Estou vendo. Muito decidida, muito unilateral, se posso usar tal expressão; estou vendo! Oh, mas que golpe me deu! Que golpe me deu!
      - Por quê? - disse Alvina.
      - Que vai ser do Esforço? E conseqüentemente do pobre de mim?
      - Não poderá continuar?... Formar uma companhia?
      - Receio que não. Fiz tudo o que pude. Mas você bem sabe que me arrasa.
      - Tenho muita pena - falou Alvina. - Espero que não.
      - Muito obrigado pela esperança - disse Mr. May sarcasticamente. - Dizem que a esperança é doce. Começo a achá-la um pouco amarga!
      O pobre homem ficara muito pálido. Cicio e Geoffrey observavam-no com olhos sombrios.
      - E quando é que pensa pôr em prática essa fatal decisão? - perguntou Mr. May.
      - Vou amanhã falar com o advogado e dizer-lhe que venda tudo e resolva tudo o mais depressa possível - disse Alvina.
      - Vender tudo! Esta casa e tudo o que tem dentro?
      - Sim - respondeu Alvina. - Tudo.
      - Realmente! - Mr. May parecia estar atordoado.
- Parece-me que o mundo acabou de repente - dizia ele.
      - Mas seu mundo já não acabou antes, muitas vezes?
- disse Alvina.
      - Bem... suponho que uma ou duas vezes. Mas nunca inteiramente sobre mim, antes.
      Houve um silêncio.
      - E já falou a Miss Pinnegar? - indagou Mr. May.
      - Ainda não inteiramente. Mas ela está decidida a abrir um pequeno negócio em Tamworth, onde tem amigos.
      - Ah, está! E você realmente vai viajar com esses rapazes? - indicou Cicio e Gigi. - E sem ganhar nada!
- Alteou a voz. - Ora! É quase tráfico de escravas brancas
por parte de Madame. Palavra de honra!
      - Não me parece - falou Alvina. - E não vê que me está insultando?
      - Insultando! Bem, não sei. Penso que é a verdade...
      - Não para ser dita a mim, desse modo - disse Alvina, estremecendo de cólera.
      - Oh! - Mr. May empertigou-se, amarelo de tanta raiva.
- Oh! Não devo dizer o que penso! Oh!
      - Não, se pensa assim - disse Alvina.
      - Oh, realmente... O difícil é que me parece que penso assim, veja bem.
      Alvina observava-o com tristes e grandes olhos.
      - Saia daqui - disse ela. - Saia. Eu não quero ser insultada pelo senhor.
      - Não, de verdade! - exclamava Mr. May, pondo-se de pé, os olhos quase saltando-lhe das órbitas. - Não, de verdade! Eu não quis insultá-la na presença desses dois jovens cavalheiros.
      Cicio levantou-se lentamente também e, com um leve e repetido gesto de cabeça, indicou a porta.
      - Allez! - disse ele.
      - Certainement! - exclamou Mr. May, lançando-se verbalmente sobre Cicio como uma enraivecida galinha amarela estufando o papo. - Certainement! Je m'en vais. Cette
compagnie n'est pas de ma choix.
      - Allez! - disse Cicio, em voz mais alta.
      E Mr. May saiu, empertigado, da sala, como um pássaro estourando de raiva. Cicio ficou de mãos apoiadas na mesa, escutando. Ouviram Mr. May bater a porta da frente.
      - Ele se foi! - falou Geoffrey.
      Cicio sorria, escarninho.
      - Voyez, un cochon de lait - disse Gigi em voz alta e tranqüila.
      Cicio sentou-se na cadeira. Geoffrey serviu-lhe um pouco de cerveja, dizendo:
      - Beba, Cicio, a bolha estourou, prfff! - E Gigi bateu com o punho nas suas próprias bochechas estofadas.
      - Allaye, minha querida, à sua saúde! Nós somos os Tawaras. Nós somos Allaye! Nós somos Pacohuila! Nós somos Walgatchka! Allons! Cozeu-se o leitão e comeu-se. Voilà!
- Bebeu, num sorriso aberto.
      - Cada um por sua vez - dizia Geoffrey, que estava ligeiramente embriagado: - Cada um por sua vez, vamos colocando-os fora da arena, hors de combat. Quem fica sempre?
Pacohuila, Walgatchka, Allaye...
      Sorria um sorriso largo. Alvina estava sentada, afogando-se em pensamentos e torpor após a sua repentina irritação.
      - Allaye, em que é que está pensando? Você é a noiva de Tawara - falou Geoffrey.
      Alvina olhou para ele, sorrindo palidamente.
      - E quem é o Tawara? - perguntou ela.
      Ele levantou os ombros, abriu os braços e balançou a cabeça de um lado para outro, para toda a gente, como um mandarim cômico.
      - Aí está! - exclamou ele. - A pergunta! Quem é o Tawara? Quem? Diga-me! É Cicio... e sou eu... e Max e Louis... - Abriu os braços como que indicando os membros
distantes da tribo.
      - Eu não posso ser noiva de vocês quatro - disse Alvina, rindo.
      - Não... não! Não... não! Não foi isso o que eu quis dizer. Mas você é a noiva de Tawara. Você mora na tenda de Pacohuila. E se chegar o dia em que não houver quarto para você na tenda de Pacohuila, então o covil de Walgatchka, o urso, estará aberto para você. Aberto, sim, totalmente...
- Afastou os braços do peito amplo, da extremidade da mesa.
- Aberto, e quando Allaye entrar, será o covil de Allaye, Walgatchka será o urso que servirá Allaye. Pela lei do
Cara-Pálida, pela lei dos Yengees, pela lei dos Fransayes, Walgatchka será o marido-urso de Allaye, no dia em que ela levantar a cortina do seu quarto...
      Rolou os olhos e olhou em redor. Alvina o observava.
      - Mas eu posso ter medo de um marido-urso - falou ela.
      Geoffrey pôs-se de pé.
      - Por Manitu - disse ele -, a cabeça do urso Walgatchka é humilde. - Geoffrey inclinou a cabeça. - Seus dentes são tão macios como as açucenas. - Abriu a boca e pôs o dedo nos seus pequenos dentes cerrados. - Suas mãos são tão leves
como as abelhas que acariciam uma flor. - Estendeu as mãos, caminhou e, subitamente, deixou-se cair de joelhos junto de Alvina, mostrando as mãos e os dentes e rolando os olhos.
- Allaye não pode nunca ter medo do urso Walgatchka - disse ele, erguendo comicamente os olhos para ela.
      Cicio, que estivera observando e rindo por entre os dentes, pôs-se então de pé e agarrou Geoffrey pelos ombros, levantando-o.
      - Basta! Tu es saoul. Está bêbado, meu Gigi. Levante-se. Como quer você ir de bicicleta para Mansfield? Grande animal.
      - Cicio - disse Geoffrey solenemente. - Eu o amo, eu o amo como a um irmão e ainda mais. Amo-o como a um irmão, meu Cicio, como você sabe. Mas... - esbaforia-se - sou o escravo de Allaye, sou o urso domesticado de Allaye.
      - Levante-se - falou Cicio. - Levante-se! Per Bacco! Ela não quer um urso domesticado. - Sorriu para o amigo.
      Geoffrey pôs-se de pé e atirou os braços em volta de Cicio.
      - Cicio - suplicava ele. - Cicio... amo-o como a um irmão. Mas deixe-me ser o urso domesticado de Allaye,
deixe-me ser o urso dócil de Allaye.
      - Está bem - disse Cicio. - Você é o urso domesticado de Allaye.
      Geoffrey estreitou Cicio ao peito.
      - Obrigado! Obrigado! Saúde-me, meu amigo.
      E Cicio beijou-o em ambas as faces. Depois disso Geoffrey caiu imediatamente de joelhos, de novo na frente de Alvina, e ofereceu-lhe a face larga e cheia de cores.
      - Saúde seu urso, Allaye - exclamou ele. - Saúde seu escravo, o urso domesticado Walgatchka, que é bravo para todos menos para Allaye e para seu irmão Pacohuila, o Puma.
- Geoffrey grunhia, como um urso bravo, ao ajoelhar-se na frente de Alvina, oferecendo-lhe a face.
      Alvina olhou para Cicio, que se mantinha de pé, observando. Então beijou-o rapidamente na face e disse:
      - Por que não vai para a cama, dormir?
      Geoffrey cambaleou, abaixando a cabeça.
      - Não... não... - dizia. - Não... não! Walgatchka tem de ir para a tenda de Kishwégin, para o acampamento dos Tawaras.
      - Não esta noite, mon brave - dizia Cicio. - Esta noite ficamos aqui, hem? Por que nos separarmos, hem?... Frère?
      Geoffrey enlaçou de novo Cicio nos braços.
      - Pacohuila e Walgatchka são irmãos pelo sangue: dois corpos, o mesmo sangue. O mesmo sangue em dois corpos; o mesmo rio em dois vales; um lago entre montanhas.
      Aqui Geoffrey contemplou Cicio com olhos grandes e mortiços. Alvina trouxe uma vela e acendeu-a.
      - Vocês arranjam-se com um quarto só? - perguntou ela
- Vou dar-lhes outro travesseiro.
      Iluminou o caminho até o andar de cima. Geoffrey
seguiu-a, pesadamente. Depois, Cicio. No patamar, Alvina
deu-lhes a vela e o travesseiro, sorriu, deu boa-noite num
murmúrio e desceu de novo a escada. Tirou a mesa da ceia e levou da sala de estar os copos e as garrafas. Depois arrumou tudo, desfazendo todos os vestígios do festim. Tornou a pôr as cartas na velha caixa de mogno. Manchester House voltava a seu aspecto normal.
      Fechou o gás no registro e subiu para o quarto. À distância, podia ouvir a tranqüila mas profunda vibração do ressonar de Geoffrey. Estava cansada, depois de um dia como esse; demasiado cansada para que se incomodasse com qualquer coisa mais.
      Mas de manhã foi a primeira a descer. Ouviu Miss Pinnegar e apressou-se. Rapidamente, abriu as janelas e as portas para fazer desaparecer o cheiro da cerveja e do
tabaco. Ouviu os homens fazendo barulho no banheiro. E apressadamente preparou o desjejum e acendeu o fogo. Mrs. Rollings só apareceria mais tarde. Às seis e quarenta e cinco, Miss Pinnegar desceu e foi à cozinha fazer chá.
      - Ficaram aqui os dois? - perguntou.
      - Sim, dormiram ambos no quarto dos fundos - respondeu Alvina.
      Miss Pinnegar não disse mais nada, mas encafuou-se com o seu chá e o seu ovo quente na sala de estar. De manhã, não dizia palavra.
      Cicio desceu, em mangas de camisa, como de costume, mas usando colarinho. Saudou Miss Pinnegar polidamente.
      - Bom dia! - disse ela, e voltou a seu chá. Geoffrey surgiu. Miss "Pinnegar lançou-lhe um olhar mal-humorado, e mal respondeu ao cumprimento do rapaz. Depois, voltou a seu ovo, vagarosa e persistente nos movimentos, calada.
      Os homens saíram para examinar a bicicleta de Geoffrey. A manhã estava lenta e cinzenta, obscura. Ao encher os pneumáticos, ouviram alguém por trás deles. Miss Pinnegar
viera à porta do pátio e a abrira, mas sem dar pela presença deles. Depois, viram-na voltar e subir lentamente a escada exterior que conduzia ao andar de cima. Dois minutos depois, foram sobressaltados pela irrupção das operárias. Quanto a estas, deram gritos, muito altos e sobressaltados, repentinamente vendo os dois homens à sua direita, na manhã obscura. E retardaram-se na escada, olhando, roídas pela curiosidade, empurrando-se e murmurando, até que Miss Pinnegar apareceu lá em cima e, severamente, tocou uma sineta, pendente junto à porta de entrada das oficinas.
      Após essas excitações, Geoffrey e Cicio entraram para tomar o desjejum que Alvina tinha preparado.
      - Foi você quem fez tudo isso? - disse Cicio, olhando em redor.
      - Fui. Preparei o desjejum durante anos - respondeu Alvina.
      - Aqui, poucas vezes mais o fará, não é? - continuou ele, sorrindo significativamente.
      - Espero que sim - disse Alvina.
      Cicio sentou-se quase como um marido... como se esse fosse o seu direito.
      Geoffrey estava muito calmo nessa manhã. Tomou o desjejum e levantou-se para sair.
      - Vê-la-ei em breve - disse ele, sorrindo timidamente e despedindo-se de Alvina. Cicio acompanhou-o até a rua.
      Quando Cicio voltou, Alvina estava uma vez mais lavando louça.
      - A que horas partimos? - perguntou ele.
      - Apanharemos o trem da uma. Tenho de falar ao advogado esta manhã.
      - E o que é que vai lhe dizer?
      - Vou dizer-lhe que venda tudo...
      - E que se casa comigo?
      Ela estremeceu e olhou para ele.
      - Você não quer casar-se comigo, não é? - disse ela.
      - Sim, quero.
      - Não preferiria esperar e ver...
      - O quê? - disse ele.
      - Ver se ficará algum dinheiro?
      Ele observou-a com firmeza e sua fronte anuviou-se.
      - Por quê? - disse ele. Ela começou a tremer.
      - Não preferiria que houvesse dinheiro?
      À boca do rapaz veio um vagaroso e sinistro sorriso. Seus olhos nunca sorriam, exceto para Geoffrey, quando um fluxo de luz quente e alegre por vezes os cobria.
      - Você acha?
      - Sim. É verdade, não é? Sim, preferiria!
      Ele voltou os olhos para o lado e olhou para as mãos dela, que seguravam os garfos. Estas tremiam ligeiramente. Depois, voltou a olhá-la nos olhos, que o observavam,
abertos e pensativos e um pouco acusadores.
      Um riso cínico assomou ao rosto dele.
      - Sim - falou ele -, é sempre melhor haver dinheiro.
- Pôs uma das mãos sobre a dela, e ela encolheu-se. - Mas eu caso com você por amor, bem sabe. Sabe o que é o amor... - E atirou os braços em redor dela e riu.
      Ela resistiu.
      - Mas pode ter amor sem casamento - disse ela. - Sabe disso.
      - Está bem! Está bem! Dê-me amor, então. É isso o que eu quero.
      Ela debatia-se contra ele.
      - Mas não agora - falou ela.
      Viu nos olhos dele uma luz determinada, fixa, e meneou a cabeça.
      - Agora! - dizia ele. - Agora!
      Seus olhos amarelos fixavam-se nos dela, estranhos e dominadores.
      - Não posso. Não posso agora.
      Ele ria de modo sinistro; contudo, com certa ternura.
      - Venha para aquele quarto grande - disse ele.
      O rosto dela fugiu, evitando-o.
      - Não posso agora, é verdade - falou ela, abruptamente.
      Os olhos dele olharam para os dela. Os olhos dela olharam para ele, duros, frios e determinados. Permaneceram imóveis por alguns segundos. Então, como uma madeixa
desalinhada prendesse a atenção dele, o desejo encheu-lhe o
coração, quente e abundante, obliterando-lhe a cólera do combate. Por um momento, abrandou-se. Viu a dureza dela tornar-se mais peremptória e hesitou, numa súbita aversão, e quase a deixou cair. Então, de novo o desejo inundou-lhe o coração, seu sorriso tornou-se temerário, e ele ergueu-a do chão.
      - Sim - disse ele. - Agora.
      Durante um segundo, ela lutou freneticamente. Mas quase instantaneamente ela reconheceu o quanto ele era mais forte, e calou, imóvel e colérica. Branca, calada e imóvel, ela abandonou-se. Deixou-se levar pelo fluxo desconhecido e negro do desejo dele, arrancada para sempre de sua velha base.
      Há um momento em que o destino nos arrebata. Agora, Alvina sentia-se ela própria arrebatada, não sabia para onde, mas para uma região tenebrosa onde os homens tinham caras sombrias e olhos amarelos, translúcidos, onde todas as línguas eram estrangeiras, e onde a vida não era a vida dela. Era como se tivesse caído do seu próprio mundo num outro, numa estrela sombria, onde o sentido de todas as coisas mudara. Estava sozinha e não se importava de estar sozinha. Era o que queria. Em toda a paixão de seu amante encontrara um isolamento, belo, frio, como uma sombra que se houvesse enrolado em volta dela e que lhe desse uma doçura de perfeição. Foi um momento de tranqüilidade e plenitude.
      Os barulhos continuavam, na rua, em cima, na oficina. Mas o deles era um silêncio total.
      Por fim, ele levantou-se e olhou para ela.
      - É bom o amor, Allaye - disse ele.
      Ela continuava observando-o, em sua face estranha e sorridente, que parecia ter conhecido, semiconhecido, antes, em qualquer existência distante e proibida. Ele aproximou-se e pôs a mão no seio dela, e beijou-a.
      - Amor? - disse ele, enigmático, um pouco pensativo.
      Mas ela não podia responder, permanecia imóvel. Ele olhou-a nos olhos, distante e contudo próximo. Depois, foi embora.
      Ela permaneceu em sua perfeita e bela solidão, mais perfeita por estar só. Mas depressa desejou encontrá-lo. Subiu a escada e olhou ao espelho para si própria e para o vestido, arrumou o cabelo, atou o avental e desceu a escada uma vez mais. Não encontrou Cicio: tinha saído. Um gato desgarrado esgueirou-se da copa e partiu um prato ao saltar.
Alvina encontrou a água dos pratos fria. Pôs mais e começou a enxugar a louça.
      Cicio voltou pouco depois e ficou no patamar, olhando-a. Ela voltou-se para ele, inesperadamente, e riu.
      - Que tal lhe parece o seu comportamento?
      - Bom - disse ele, com um pequenino sinal de cabeça e um furtivo ar de triunfo, evasivo. Passou à frente dela e entrou na sala. O íntimo dela ardia de amor por ele: tão enganador, tão belo, na sua passagem silenciosa, longe da sua vista! Ela enxugava a louça, satisfeita. Por que era tão absurdamente feliz?, perguntava a si própria. E por que combatia tão duramente a sensação da sombria e inapreensível beleza dele? Inapreensível, eternamente inapreensível! Isso a fazia quase escrava dele. Combatia seu próprio desejo de cair-lhe aos pés. Ridículo, ser tão feliz.
      Cantava para si própria enquanto se ocupava no trabalho, no andar de baixo. Depois, subiu ao andar de cima, arranjando os quartos e preparando a mala. Às dez horas, estava pronta para ir ver o advogado da família.
      Hesitava quanto às suas coisas: o que devia levar e o que não devia levar. E com isso o tempo ia passando. Eram quase dez horas quando, correndo, desceu a escada. Ele estava sentado muito quieto, esperando. Olhou para ela.
      - Agora tenho de correr - disse ela. - Espero não me demorar mais do que uma hora.
      Ele pôs o chapéu e saiu com ela.
      - Vou dizer ao advogado que estou noiva de você. Digo?
- perguntou ela.
      - Sim - falou ele. - Diga-lhe o que quiser. - Estava indiferente.
      - Porque - disse Alvina alegremente - nós podemos gostar do que fazemos, de tudo o que dizemos. Vou dizer-lhe que pensamos casar no verão, quando nos conhecermos melhor, e ir para a Itália.
      - Por que é que lhe há de dizer tudo isso? - indagou Cicio.
      - Porque tenho de dar conta de mim, ou eles me obrigarão a fazer qualquer coisa que eu não quero fazer. Quer vir ao advogado comigo, quer? Ele é um velho muitíssimo simpático. Então, ele acreditará que você existe.
      Mas Cicio meneou a cabeça.
      - Não - falou ele. - Não vou. Ele não precisa me ver.
      - Bem, se não quer ir... Mas eu sei o seu nome, Francesco Marasca, e lembro-me de Pescocalascio.
      Cicio ouvia em silêncio, enquanto caminhavam pela rua
de Woodhouse, meio vazia na manhã de segunda-feira. As pessoas detinham-se, saudando Alvina. Alguns acorriam
interrogativamente, falando-lhe e olhando para Cicio. Este, contudo, conservava-se de lado ou voltava-lhes as costas.
      - Oh, sim - dizia Alvina. - Estou com uns amigos, aqui
e ali, durante umas semanas. Não, não sei quando voltarei. Passe muito bem!
      - Está com bom aspecto, Alvina - diziam-lhe. - Acho que está com um aspecto maravilhoso. Fez-lhe bem a mudança.
      - Fez-me bem, não é verdade? - falou Alvina vivamente. E ficava contente por estar com bom aspecto.
      - Bem, até já - disse ela, num relance de olhos, sorridente para os olhos dele e acenando com a cabeça, quando deixou Cicio à porta da casa do advogado, junto de uma parede coberta de hera.
      O advogado era um homem pequenino, todo branco. Alvina conhecia-o desde criança; mas antes como profissional do que como pessoa. Chegou toda sorridente ao escritório. Ele sentou-se e examinou-a cuidadosa e profissionalmente, antes de começar.
      - Bem, Miss Houghton, que novidades traz?
      - Penso que nenhuma, Mr. Beeby. Venho saber delas com
o senhor.
      - Ah! - exclamou o advogado, e tocou num peso que encimava uma pilha de papéis. - Receio que não haja notícias muito agradáveis, infelizmente. E nada muito desagradável,
tampouco.
      Deu-lhe um sorrisinho astuto.
      - O testamento já foi verificado?
      - Ainda não. Mas espero que esteja dentro de poucos dias.
      - E estão lá todas as dívidas?
      - Sim. Julgo que sim. Julgo que sim! - E de novo pôs a mão na pilha de papéis sob o peso e percorreu as margens com as pontas dos dedos.
      - Tudo isso?
      - Sim - respondeu ele serenamente. A voz tinha um som de mau agouro.
      - São muitas! - falou Alvina.
      - Uma boa soma! Uma boa soma! Deixe-me mostrar-lhe uma relação.
      Levantou-se e trouxe-lhe um papel. Ela verificou, com
a ajuda do advogado, que as dívidas de seu pai excediam em cerca de setecentas libras o cômputo total dos haveres.
      - Isso quer dizer que devemos setecentas libras?
- perguntou ela.
      - Calculei apenas a estimativa da propriedade. Claro que se pode obter muito mais, ao vender... mas pode-se também obter menos!
      - Como é horrível! - dizia Alvina, a coragem afundando.
      - Triste! Triste! Contudo, não penso que os haveres venham a dar menos do que o calculado. Não me parece.
      - Mas mesmo assim... - falou Alvina. - É certo que devemos alguma coisa...
      Via-se carregada com as dívidas do pai.
      - Receio que assim seja - dizia o advogado.
      - E, depois, que acontecerá?
      - Oh... os credores terão de se satisfazer com um pouco menos do que esperam, creio eu. Não uma grande parte, bem vê. Não acredito que eles reclamem muito. De fato, alguns deles receberão mais do que esperam. Não, quanto a isso não precisamos nos preocupar mais. De qualquer modo, não vale a pena. E, agora, você. Agradar-lhe-ia que eu tentasse arranjar as coisas com os credores de modo a que você ainda pudesse ficar com alguma coisa? Há muita gente que a conhece, que conhece suas condições, e posso tentar...
      - Tentar o quê? - perguntou Alvina.
      - Fazer alguma espécie de acordo. Talvez a senhorita pudesse arrendar as oficinas de Miss Pinnegar. Talvez se pudesse fazer qualquer coisa a respeito do cinematógrafo.
Que lhe parece?
      Alvina continuava sentada na cadeira, olhando pela janela para os ramos de hera e para os rebentos dos lilases. Sentia que não podia, que não podia desfazer-se de todos os recursos. Em seu íntimo, tinha confiadamente esperado umas centenas de libras; mesmo mil ou mais. E isso dar-lhe-ia certo atrativo, face à gente que não tinha nada. Mas agora!... Nada!... Nada por trás dela a não ser as suas cem libras. Quando essas se fossem!...
      Em tal dilema olhou para o advogado.
      - Não esperava que as coisas estivessem tão mal?
- perguntou ele.
      - Parece-me que não - respondeu Alvina.
      - Não. Bem... podia ter sido pior.
      De novo, ele esperava. E de novo ela olhou para ele negligentemente.
      - Que lhe parece? - disse ele.
      Como resposta, ela apenas o olhou com seus grandes olhos.
      - Talvez prefira decidir mais tarde.
      - Não - respondeu ela. - Não. Não é meu costume decidir mais tarde.
      O advogado observava-a com os olhos curiosos, batendo com a mão um pouco impacientemente.
      - Farei o possível para conseguir o que puder para você.
      - Oh, bem! - disse ela. - O melhor é deixar correr. De todo modo, não se preocupe comigo. Vou embora daqui, de qualquer maneira.
      - Vai embora? - indagou o advogado, examinando as próprias unhas.
      - Sim, não ficarei aqui.
      - Oh! E permite-me perguntar se tem alguma idéia definitiva de para onde irá?
      - Arranjei um contrato como pianista, numa companhia teatral ambulante.
      - Ah, sim! - exclamou o advogado, perscrutando-a vivamente. Ela olhava distraidamente para fora da janela.
Ele voltou ao exame atento das suas unhas. - E está ganhando
o suficiente?
      - O suficiente, muito obrigada.
      - Oh! Bem! Bem! - Impacientou-se um pouco. - Bem vê, somos todos velhos vizinhos e fomos ligados a seu pai durante muitos anos. Nós... quer dizer, as pessoas interessadas e eu, não gostaríamos de pensar que a menina foi atirada para fora de Woodhouse... eh... eh... desamparada. Se pudéssemos chegar a um acordo... fazer qualquer arranjo que lhe fosse agradável e que pudesse, em certa medida, assegurar-lhe um meio de vida...
      Observava Alvina com seus vivos olhos azuis. Alvina olhou para ele, ainda indiferentemente.
      - Não... mil vezes obrigada! - disse ela. - Mas não se incomode. Eu vou embora daqui.
      - Com a companhia de teatro ambulante?
      - Sim.
      O advogado examinava as unhas intensamente.
      - Bem - falou ele, tateando com a ponta de um dedo a aspereza imaginária na ponta de uma unha. - Bem, nesse caso. Nesse caso... Se já tomou uma decisão irrevogável...
      Olhou para ela vivamente. Ela meneava a cabeça vagarosamente, como um mandarim de porcelana.
      - Nesse caso - disse ele - temos de proceder à avaliação e aos preparativos para a venda.
      - Sim - concordou ela debilmente.
      - A senhorita compreende que todas as coisas de Manchester House, exceto seus objetos pessoais e os de Miss Pinnegar, pertencem aos reclamantes, aos credores de seu pai, e não podem ser removidas da casa.
      - Sim - disse ela.
      - E será necessário fazer uma relação de tudo. Por isso, se você e Miss Pinnegar pusessem estritamente as suas coisas à parte... Mas eu preciso ver Miss Pinnegar ainda hoje. Quer pedir-lhe que venha por volta das sete?... Julgo que ela estará livre a essa hora...
      Alvina tremia, sentada.
      - Eu empacotarei as minhas coisas hoje.
      - Claro que - disse o advogado - qualquer pequena coisa a que a menina esteja ligada, os credores sem dúvida não se importarão que a considere sua. Quanto a coisas de maior valor... o seu piano, por exemplo... tenho de fazer um pedido pessoal...
      - Oh, eu não quero nada.
      - Não? Bem! A menina verá. Tenciona demorar alguns dias?
      - Não - disse Alvina. - Vou-me embora hoje.
      - Hoje! E isso também é irrevogável?
      - Sim. Tenho de ir esta tarde.
      - Por causa do seu contrato? Posso saber onde trabalha a sua companhia esta semana? Muito longe?
      - Em Mansfield.
      - Oh! Então, bem, no caso de eu desejar vê-la pessoalmente, poderá vir cá?
      - Se for necessário - respondeu Alvina. - Mas eu não desejo vir a Woodhouse, a menos que seja necessário. Poderemos nos escrever?
      - Sim... com certeza! Com certeza!... Muitas coisas! Com certeza! E agora...
      Entrou em certos assuntos técnicos, e Alvina assinou alguns documentos. Por fim, podia retirar-se. Estivera quase uma hora no escritório.
      - Bem, bom dia, Miss Houghton. Escrever-lhe-ei e a menina escrever-me-á. Desejo-lhe uma agradável experiência na sua nova ocupação. Não irá deixar Woodhouse para sempre.
      - Até logo! - disse ela. E correu para a rua.
      Posta à prova nas suas forças, sentia-se como se tivesse apanhado uma surra que a derrubasse. Sentia que apanhara uma surra.
      À porta do advogado, parou um minuto. Ali perto, além de uma pequena depressão, erguia-se a colina do cemitério.
      Ali estavam as suas campas: a de sua mãe, a de Miss Frost, a de seu pai. Reparando, distinguiu a cruz branca da campa de Miss Frost, a pedra escura da de seus pais. Depois, virou-se lentamente, seguindo a parede da igreja, até ficar voltada para Manchester House.
      Sentia-se humilhada. Sentia que não tinha vontade de ver mais ninguém. Não tinha vontade de ver Miss Pinnegar, nem os Natcha-Kee-Tawaras; e, sobretudo, Cicio. Sentia-se estranha em Woodhouse, quase como se o terreno se erguesse de sob seus pés e lhe batesse na boca. O fato de Manchester House e toda a mobília estarem penhoradas para serem vendidas em nome dos credores de seu pai fazia-a sentir-se como se toda a sua vida em Woodhouse tivesse repentinamente sido despedaçada. Detestava a lembrança de Manchester House. Detestaria ficar nela um minuto mais.
      E contudo não queria ir embora, para os
Natcha-Kee-Tawaras. O relógio da igreja, sobre ela, tocou onze horas. Devia tomar o trem de meio-dia e quarenta para Mansfield. Contudo, em lugar de ir para casa, seguiu em sentido contrário, em direção aos campos e ao riacho. Quantas vezes percorrera aquele caminho!
      Quantas vezes tinha visto Miss Frost palmilhando bravamente aquele caminho, de volta das aulas de música! Quantos anos reparara ela numa certa cerejeira selvagem em flor, e num certo espinheiro que derramava a sua brancura
por entre os ramos entrelaçados de uma sebe de outros espinheiros! Quantas, quantas vezes, em quantas primaveras voltara Miss Frost para casa com um ramo desse pinheiro na mão!
      Alvina não tinha vontade de ir para Mansfield naquela tarde. Sentia-se insultada. Sabia que perderia muito valor aos olhos de Madame. Sabia que a sua própria situação na companhia seria humilhante. Seria, abertamente, uma pequena humilhação. Mas seria muito mais desesperadamente humilhante ficar em Woodhouse e experimentar o sabor completo da benevolência calculada de Woodhouse. Nem sabia o que era pior: se o frio ar de insolente semidesprezo, semi-satisfação com que Madame receberia as notícias da sua ruína financeira, se a proteção oficial que encontraria nos magnatas de Woodhouse. Sabia exatamente como os olhos negros de Madame brilhariam, como a sua boca se crisparia num sorriso escarninho e abertamente triunfante ao ouvir as notícias. E podia ouvir o tom fanfarrão com que Henry Wagstaff ditaria a benevolência de Woodhouse para com ela. Queria fugir de todos eles... de todos eles... para sempre.
      Mesmo de Cicio. Porque sentia que ele a insultava também. Sutilmente, todos o faziam. Todos pensavam nas suas possibilidades como herdeira. Quinhentas, mesmo duzentas
libras, teriam resolvido todas as diferenças. Escusado
negá-lo. Mesmo para Cicio. Cicio teria tido um respeito por ela para toda a vida se ela aparecesse mesmo com uma quantia tão miserável como duzentas libras. Agora que ela não tinha nada, ele friamente conteria esse respeito. Sentia que ele podia escarnecer dela. E não podia furtar-se a esse sentimento.
      Misericordiosamente, Alvina tinha um pouco de dinheiro disponível. E tinha alguns berloques que podiam ser vendidos. Nada mais. Misericordiosamente, por aquele simples momento, era independente.
      O que quer que fosse fazer, devia voltar para trás e emalar as coisas. Devia arrumar suas duas caixas e deixá-las prontas. Porque pressentia que, uma vez que a deixasse, nunca poderia voltar de novo a Woodhouse. A Inglaterra tinha penhascos a toda a volta... quando não houvesse nenhum outro lugar para ir, quando não pudesse ir mais longe, ela poderia passar por cima de um penhasco. Entretanto, tinha um curto caminho à sua frente. Entrincheirava-se, firme, na sua independência.
      Assim, voltou para a cidade. Não seria capaz dê tomar
o trem de meio-dia e quarenta porque era quase meio-dia. Mas estava contente. Desejava ter algum tempo para si própria. Mandaria Cicio embora. Vagarosamente, subiu a colina familiar... vagarosa e também amargamente. Tinha a impressão de que sua terra natal a insultava; e tinha a impressão de que os Natchas a insultavam. No meio do insulto, ela permanecia isolada em si própria, e desejava estar só.
      Encontrou Cicio esperando no outro extremo
do pátio: eternamente esperando, parecia. Estava impaciente.
      - Demorou muito - disse.
      - Sim - respondeu ela.
      - Temos de andar depressa para apanhar o trem.
      - Não posso ir nesse trem. Tenho de ir mais tarde. Você ainda pode comer qualquer coisa e ir agora.
      Entraram. Miss Pinnegar ainda não tinha descido. Mrs. Rollings estava atarefada, descascando batatas.
      - Mr. Marasca vai no trem e terá de comer qualquer coisa fria - disse Alvina. - Importa-se de lhe preparar algo enquanto eu vou lá em cima?
      - De Sharps e de Fullbanks chegaram as contas - disse Mrs. Rollings. Alvina abriu-as e ficou pálida. Eram trinta libras, as despesas totais do funeral. Tinha-se esquecido completamente delas.
      - E Mr. Atterwell deseja saber o que quer que ponha na lápide para o seu pai... se quiser escrever.
      - Está bem.
      Mrs. Rollings pôs de lado as batatas para o almoço de Miss Pinnegar e pôs a toalha para Cicio. Quando este estava comendo, chegou Miss Pinnegar. Perguntou por Alvina e foi para o andar de cima.
      - Já almoçou? - perguntou. Porque Alvina estava sentada escrevendo uma carta.
      - Vou num trem mais tarde - disse Alvina.
      - Vocês dois?
      - Não. Ele vai agora.
      Miss Pinnegar voltou de novo ao andar de baixo e foi para a copa. Quando Alvina desceu, voltou para a sala de estar.
      - Dê esta carta a Madame - falou Alvina a Cicio. - Eu estarei no teatro às sete da noite. Irei direto para lá.
      - Por que não vem agora? - perguntou Cicio.
      - Não é possível. O advogado acaba de me dizer que
as dívidas de meu pai vão além do valor dos bens. Nada é nosso... nem mesmo o prato em que você está comendo. Tudo está penhorado e vai ser vendido para pagar o que se deve. Por isso tenho de juntar os vestidos e sapatos, porque senão serão vendidos com o resto. Mr. Beeby quer que vá lá por volta das sete, Miss Pinnegar... antes que me esqueça.
      - O quê! - disse Miss Pinnegar, espantada. - O quê! A casa e os móveis e tudo vão ser vendidos? Então ficamos na rua? Não posso acreditar.
      - Foi o que ele me disse - acrescentou Alvina.
      - Mas é positivamente horrível - falou Miss Pinnegar, afundando-se imóvel numa cadeira.
      - Não é pior do que eu esperava - disse Alvina. - Pus
as minhas coisas nos meus dois baús e vou pedir a Mrs. Slaney que os guarde para mim. Além disso, tenho a mala com que viajo.
      - Realmente! - acrescentou Miss Pinnegar, admirada.
- Não posso acreditar numa coisa assim. E quando é que temos de sair?
      - Oh, não me parece que haja uma pressa desesperada. Vão fazer o inventário de todas as coisas e poderemos viver aqui até que tudo esteja preparado para a venda.
      - E quando será isso?
      - Não sei. Uma semana ou duas.
      - E o cinema também será vendido?
      - Sim... tudo! O piano... mesmo o retrato de mamãe...
      - É impossível acreditar numa coisa assim - dizia Miss Pinnegar. - É impossível. Ele não pode ter deixado as coisas tão mal.
      - Cicio - falou Alvina. - Tem de ir, se quer apanhar o trem. Entregue minha carta a Madame. Ficaria aborrecida se você perdesse o trem. Sei que Madame já não pode me tolerar, por todo o rebuliço e transtorno que causo.
      Cicio levantou-se lentamente, limpando a boca.
      - Estará lá então às sete horas? - disse ele.
      - No teatro - replicou ela.
      E, sem dizer mais nada, ele saiu. Mrs. Rollings entrou.
      - Ouviu? - disse Miss Pinnegar dramaticamente.
      - Ouvi alguma coisa - respondeu Mrs. Rollings.
      - Vendido! Tudo está para ser vendido. Todos os paus e farrapos! Nunca pensei que viveria até ver esse dia - falou Miss Pinnegar.
      - Isto era quase de se esperar - disse Mrs. Rollings.
- Mas a senhora está bem, Miss Pinnegar. Seu dinheiro não tem nada com isto, não é assim?
      - Não - respondeu Miss Pinnegar. - O pouco que eu tenho está a salvo. Mas não é bastante para me manter. Não é bastante, mesmo supondo que eu viva só mais dez anos. Se gastar apenas uma libra por semana, são necessárias cinqüenta e duas por ano. E para dez anos, veja lá, são quinhentas e vinte. Não se pode calcular menos. E eu não tenho metade desse dinheiro. Nunca tive mais do que o salário, bem sabe. Miss Frost ganhou bem mais do que eu. E ela não deixou muito mais do que cinqüenta. De onde há de vir o dinheiro?
      - Mas a senhora tem o suficiente para montar um pequeno negócio.
      - Sim, é o que eu terei de fazer. É o que eu terei de fazer. E depois, quanto a você? Quanto a você?
      - Oh, não se incomode comigo - dizia Alvina.
      - Sim, está tudo muito bem, não se incomode. Mas quando chegar à minha idade, verá que tem de se incomodar, e se incomodar um bom bocado, se não quiser se achar numa situação desagradável. Tem de se incomodar. E terá de se incomodar antes de chegar lá.
      Miss Pinnegar estava realmente zangada. A Alvina, isso parecia uma maneira ridícula de encarar as coisas. As três mulheres sentaram-se para comer um desagradável almoço de frios, batatas quentes e pudim aquecido.
      - Mas por mais que faça - proferiu Miss Pinnegar -, por mais que faça, e ainda que se esforce nesta vida, você será derrotada no fim. Será sempre derrotada.
      - Não tem importância - dizia Alvina -, se for só no fim. Não tem importância se já se viveu a vida.
      - Nunca se viveu a vida enquanto não se morre - falou Miss Pinnegar. - E se você trabalha e se esforça, tem direito aos frutos do seu trabalho.
      - Não tem importância - disse Alvina laconicamente -, desde que se gozou o trabalho e o esforço.
      Mas Miss Pinnegar estava demasiado colérica para
se mostrar filosófica. Alvina sabia que era inútil ficar colérica ou emocionada, de qualquer modo. Apesar disso,
estava como se tivesse levado uma surra. E ela quase invejava à pobre Miss Pinnegar a perspectiva de uma lojinha de miudezas em Tamworth, suficiente para o dia-a-dia. Seu próprio problema afigurava-se-lhe muito mais ameaçador. "Responder ou morrer", dizia a esfinge do destino. Miss Pinnegar podia responder à pergunta com o seu próprio destino. Ela podia dizer "loja de miudezas", e a sua esfinge reconheceria essa resposta como adequada à natureza dela e ficaria satisfeita. Mas cada um tinha seu destino próprio
e sua esfinge própria. A esfinge de Alvina era velha e
puro-sangue, e não lhe serviam respostas atravessadas. E seus dentes de puro sangue eram compridos e aguçados. Para Alvina, a última da fantástica raça de cavalos puro-sangue dos Houghtons, o problema do seu destino era terrivelmente abstruso.
      A única coisa a fazer era não resolvê-lo: ir à deriva e responder ao destino com o que viesse à cabeça. Nada de lutar contra o destino. Confiar numa tacada feliz ou suportar as conseqüências.
      - Miss Pinnegar - indagou Alvina -, ainda temos algum dinheiro?
      - Há perto de vinte libras no banco. Está tudo escrito nos meus livros - respondeu Miss Pinnegar.
      - E não poderemos levantá-las?
      - Cada pêni está nos livros.
      Alvina refletiu de novo.
      - Ainda há mais contas a pagar? - indagou. - Contas minhas, quero dizer. Devo alguma coisa?
      - Não sei se deve - disse Miss Pinnegar.
      - Eu vou ficar com o dinheiro do seguro, seja como for. Eles que digam o que quiserem. Consegui-o e vou ficar com ele.
      - Bem - falou Miss Pinnegar -, isso não é comigo. Mas é preciso pagar a Sharps e a Fullbanks.
      - Eu pagarei isso - disse Alvina. - Temos de dizer a Atterwell o que deve escrever na campa de papai. Quanto custará?
      - Cinco xelins cada letra, bem sabe.
      - Bem, põe-se só o nome e a data. Quantas serão? "James Houghton. Nascido em 17 de janeiro..."
      - Tem de pôr "Aqui jaz" - disse Miss Pinnegar.
      - Está bem. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete... Sete letras... trinta e cinco xelins. Parece muito para o "Aqui jaz..."
      - Mas não se pode tirar isso - falou Miss Pinnegar.
- Nisso você não pode economizar.
      - É uma pena - replicou Alvina.

      CAPÍTULO 11 - NÚPCIAS HONROSAS

      Durante dias, depois de se ter juntado aos
Natcha-Kee-Tawaras, Alvina esteve muito calma, submissa e
com o seu quê de remoto, sensível à sua posição humilhante
de parasita. Nenhum deles lhe prestava grande atenção. Eram vagos, desunidos. A cordialidade, a joie de vivre, não revivera. Madame andava um pouco irritada e muito exigente,
e inclinada ao rancor. Cicio e Geoffrey faziam vida à parte.
      Na segunda semana, Madame descobriu que um homem tinha sub-repticiamente pedido informações deles na pensão, à estalajadeira e à sua florescente filha. Devia ter sido um detetive... algum detetive impostor. Madame esperou. Então mandou Max levar a Mansfield uns recados inventados. Sim,
os cães desses detetives de aspecto porco andavam também por ali, fazendo os mais minuciosos inquéritos quanto ao modo de vida dos Natcha-Kee-Tawaras, quanto ao que faziam, quanto à maneira como se distribuíam para dormir, quanto ao modo como Madame se dirigia aos homens, quanto à atitude que os homens tinham para com Alvina.
      Madame esperou mais uma vez. E mais uma vez, quando foram para Doncaster, os mesmos dois camaradas com ar atravessado, espiando da rua e atormentando os inquilinos
da pensão com perguntas. Todos os Natchas perceberam os homens. E Madame, inteligentemente, extraiu da reta e respeitável estalajadeira o que os homens tinham perguntado.
Uma vez mais se tratava das acomodações para dormir... se a estalajadeira vira alguma coisa.
      Não havia dúvida a tal respeito: os Natcha-Kee-Tawaras estavam sendo vigiados. Eram seguidos e observados. Para quê? Madame fez uma conjetura astuta:
      - Querem dizer que somos estrangeiros imorais - dizia ela.
      - Mas o que tem a nossa moral pessoal com eles?
- indagou Max colericamente.
      - Sim... mas os ingleses! São tão puros! - respondeu Madame.
      - Sabe - disse Louis -, alguém deve tê-los posto
atrás de nós...
      Talvez - concordou Madame. - Alguém interessado em Allaye.
      Alvina ficou branca.
      - Sim - exclamou Geoffrey. - Tráfico de brancas! Mr. May disse-o.
      Madame meneou vagarosamente a cabeça.
      - Mr. May! - disse ela. - Mr. May! É ele. Ele sabe tudo a respeito de moralidades... e de imoralidades. Sim. Eu sei. Sim... sim... sim! Ele suspeita de todas as nossas ações imorais, mes braves.
      - Mas não há nenhuma, exceto a minha - exclamou Alvina, com os lábios pálidos.
      - Você! Você! Há você! - Madame sorrira travessamente, com o seu quê de escarnecedor.
      - Que devemos fazer? - perguntou Max, pálido nas
faces.
      - Malditos! Malditos! - estava Louis murmurando na sua pronúncia enrolada.
      Esperem - disse Madame. - Esperem. Eles não nos farão nada. Vocês são apenas estrangeiros indecentes, mes braves.
O pior que podem fazer é nos pedir que deixemos o seu puro país.
      - Nós não nos metemos com nenhum deles - exclamou Max.
      - Malditos - murmurou Louis.
      Não faça caso, mon cher. Você está num país puro.
Esperemos.
      - Se pensam que é comigo - disse Alvina -, eu posso ir embora.
      - Oh, minha querida, você é apenas a desculpa - falou Madame, sorrindo indulgentemente para ela. - Esperemos para ver.
      Ela continuou sorridente. Mas suas faces estavam brancas como papel, e os olhos, devido à cólera, negros como pingos de tinta.
      - Esperemos para ver! - cantarolava ironicamente.
- Esperemos para ver! Se tivermos que deixar este querido
país... então adieu! - E gravemente inclinou-se ante uma imaginária Inglaterra.
      - Sinto que a culpa é minha. Sinto que tenho de ir embora - exclamou Alvina, que estava horrivelmente angustiada, vendo o brilho e a palidez de Madame e as frontes
sombrias dos homens. Nunca a fronte de Cicio tivera um aspecto tão sombriamente negro. E Alvina tinha a impressão de que tudo era por culpa sua. Nunca experimentara uma sensação tão horrível: como se qualquer coisa de repulsivo se estivesse atirando sobre ela, vinda de trás. Cada minuto daquelas semanas foi um horror para ela: a sensação daqueles detetives, como cães sorrateiros, rondando, deslizando atrás deles, tentando obter alguma prova clara de imoralidade deles. E depois... a vingança desconhecida das autoridades! Todo o segredo repulsivo e todo o poder absoluto das autoridades policiais. A sensação de um grande e malévolo poder que os tinha todo o tempo na sua garra, e que estava vigiando, sentindo, esperando para dar o golpe mortal; a sensação do extremo desamparo de indivíduos que não eram sequer acusados, apenas vigiados e apanhados na rede! O sentimento de que eles, os Natcha-Kee-Tawaras, ela própria incluída, deviam ser monstros de vícios repugnantes, para terem provocado tudo aquilo; e contudo o conhecimento racional de que nenhum deles era um monstro de vício; aquilo era mortal. Ver um polícia fazia acorrer ao coração de Alvina uma chama de temor, de agonia; contudo, ela sabia que legalmente nada havia de que devesse ter receio. Sempre que batiam à porta era horrível.
      Simplesmente, ela não podia entender aquilo. Contudo, era assim mesmo: eram vigiados, seguidos, disso não havia dúvida. E tudo o que ela podia imaginar era que a troupe fora secretamente acusada de tráfico de brancas por alguém de Woodhouse. Provavelmente Mr. May tinha andado à volta dos magnatas de Woodhouse, interessando-se ele próprio pela virtude dela e granjeando simpatias pelo seu interesse. Disso ela estava convencida, de que fora o assunto da sua virtude que dera impulso a tudo aquilo; e que o primeiro instigador era Mr. May, que procurara qualquer vulgar magistrado ou conselheiro do condado.
      Madame não levara muito a sério as opiniões de Alvina. Pensava que era qualquer malevolência pessoal contra os próprios Tawaras, provavelmente levantada por outros
profissionais, com quem Madame não fora simpática.
      Durante algumas semanas, eles viveram na sombra desse dedo repulsivo que os seguia, para tocá-los e destruí-los com o negro sinal da vergonha. Os homens estavam calados e com tendência para a rabugice. Parecia que se mantinham unidos. Parecia que estavam encerrados num forte silêncio e tensão. Guardavam-se a si próprios... e Alvina guardava-se a si mesma... e Madame guardava-se a si própria. Assim prosseguiam.
      E lentamente a nuvem desfazia-se. Nunca se rompeu. Alvina via que a verdadeira força da sombria, silente intrepidez e fúria dos Tawaras tinha evitado que ela se
rompesse. Se houvesse um enfraquecimento, uma contração, estariam todos perdidos. Mas seus corações endureciam com negra, indômita cólera. E a nuvem desfez-se, passou adiante. Não havia mais indícios.
      O verão estava próximo. Alvina já não se sentia num
lar com os Natchas. Enquanto a ameaça pairou, eles pareceriam ignorá-la inteiramente. Os homens dificilmente lhe falavam. Dificilmente falavam a Madame sobre aquele assunto.
Mantinham-se dentro da própria clausura.
      Mas Alvina sentia-se particularmente excluída, posta
de lado. E quando a perturbação dos detetives começou a desvanecer-se e os homens se tornaram de novo mais alegres,
querendo que ela risse e fosse mais familiar com eles, ela respondia verbalmente, mas no seu coração não havia qualquer resposta.
      Madame fora muito generosa. Aceitou que ela pagasse o quarto e as despesas de viagem. Mas dava-lhe de comer e o resto. Onde quer que estivesse, Madame comprava a comida para todos e cozinhava-a ela própria. E Alvina entrava com o resto: não pagava pensão.
      Esperava, todavia, que Madame sugerisse um pequeno salário... ou pelo menos que a troupe lhe pagasse as despesas diárias. Mas Madame não fizera tal sugestão. Alvina sabia que não era muito desejada. E guardou seu dinheiro e esperou por qualquer outra oportunidade.
      Habituou-se a ir todas as manhãs à biblioteca pública da cidade onde estivesse, e ali percorria os anúncios: anúncios para parteiras, para governantas, pianistas, damas de companhia, ou mesmo criadas para o serviço de senhoras. Durante semanas não encontrou nada, apesar de ter escrito várias cartas.
      Uma manhã, Cicio, que começara a andar de novo em volta dela, acompanhou-a quando ela se dirigia à biblioteca. Mas seu coração estava fechado para ele.
      - Por que é que vai à biblioteca? - perguntou ele. Estavam em Lancaster.
      - Ver jornais e revistas.
      - Ah! Para arranjar um emprego, não é? Sua agudeza sobressaltou-a por um momento.
      - Se encontrar um, vou aceitá-lo - disse ela.
      - Eh! Eu sei - disse ele.
      Aconteceu que naquela mesma manhã ela viu nos anúncios da biblioteca um aviso de que o Conselho Municipal desejava contratar os serviços de uma enfermeira de maternidade com prática, inscrições com a junta médica. Alvina tomou nota do endereço. Cicio observava-a.
      - Que é uma enfermeira de maternidade? - perguntou ele.
      - Uma accoucheuse. A enfermeira que presta assistência quando os bebês nascem.
      - Você sabe fazer isso? - indagou ele, incrédulo e ligeiramente escarninho.
      - Fiz um curso de treinamento.
      Ele não disse mais nada, mas caminhou a seu lado quando ela voltou para a pensão. Ao se aproximarem da pensão, disse:
      - Não quer mais ficar conosco?
      - Não posso - disse ela.
      Ele fez um gesto breve e trocista.
      - Não posso - repetiu. - Por que é que diz sempre que não pode?
      - Porque não posso - respondeu Alvina.
      - Pff! - fez ele, num som sibilado de desdém.
      Mas ela entrou em casa e foi para o quarto. Felizmente, quando escolhera suas coisas em Manchester House, trouxera consigo o certificado de enfermeira e os atestados
abonatórios dos médicos. Escreveu o pedido, tomou o bonde para a Prefeitura e colocou-o na caixa de correspondência. Depois, telegrafou para seu médico pedindo outra
referência. Em seguida, foi à biblioteca e requisitou um livro especializado. Se fosse chamada, podia apresentar-se
à junta médica na segunda-feira. Tinha uma semana.
Pôs-se a ler e a estudar com afinco, recordando a prática
e os conhecimentos anteriores.
      Perguntava-se se devia apresentar-se de uniforme à junta médica. O uniforme de enfermeira estava metido num baú em casa de Mrs. Saney, em Woodhouse. Era o mês de maio. Os assuntos de Woodhouse estavam todos resolvidos. Manchester House e toda a mobília haviam sido vendidas a gente ordinária; pelo menos essa gente ficara com a casa. Tinham dado quatro mil libras por ela, o que era mais do que o advogado calculara. Por outro lado, o teatro fora vendido por quase nada. Tinham sobrado umas trinta e três libras, que os credores aumentaram para cinqüenta, e que ficaram para Alvina. Esta insistira para que Miss Pinnegar ficasse com metade. E assim tudo chegara ao fim. Miss Pinnegar estava já em Tamworth e a sua lojinha devia abrir na semana seguinte. Escrevera contando-o, cheia de felicidade e excitação.
      Às vezes, o destino procede com ligeireza e sem dificuldades. Na quinta-feira, Alvina recebeu a comunicação de que devia apresentar-se na segunda-feira seguinte.
E contudo ela não conseguiu falar disso a Madame até a noite de sábado. Quando estavam todos ceando, disse:
      - Madame, eu me inscrevi para enfermeira de maternidade, na Prefeitura de Lancaster.
      Madame levantou as sobrancelhas. Cicio não disse nada.
      - Ah! sim? Nunca me disse nada.
      - Pareceu-me que não valia a pena, se não conseguisse o lugar. Querem que eu vá lá na segunda-feira para depois decidirem...
      - Ah! Sim? Querem? Na segunda-feira? E então, se conseguir o lugar, ficará lá?
      - Sim, certamente.
      - Certamente! Certamente! Sim! Hum! E se não conseguir?
      As duas mulheres olharam uma para a outra.
      - Quê? - disse Alvina.
      - Se não conseguir o lugar! Não tem certeza, pois não?
      - Não - disse Alvina. - Não tenho certeza nenhuma.
      - Bem, então! E se não conseguir o lugar?
      - Quer dizer, o que é que eu farei?
      - Sim, o que é que fará?
      - Não sei.
      - Como! Não sabe! Voltará para junto de nós, então?
      - Se isso lhe agradar...
      - Se me agradar? Se me agradar! Vamos, não é questão de agradar a mim. É o que você própria quer fazer.
      - Parece-me que não gostam muito de mim - disse Alvina.
      - Por quê? Por que é que lhe parece? Quem lhe faz supor isso? Qual de nós a faz pensar isso? Diga.
      - Ninguém em particular. Mas me parece.
      - Oh, bem! Se ninguém lhe dá motivo e contudo pensa assim, deve estar dentro de você, não lhe parece? Hã? Não é?
      - Talvez seja - admitiu Alvina.
      - Então, bem! Bem! - Assim, Madame lhe deu o seu congé. - Mas se quiser voltar, então... - Madame encolheu os ombros. - Pode voltar, eu acho.
      - Muito obrigada - disse Alvina.
      Os rapazes seguiam a conversa com atenção. Pareciam indiferentes. Cicio pôs-se de lado, com o seu leve e estúpido sorriso.
      De manhã, Madame deu a Alvina tudo o que lhe pertencia, do pequeno cofre a que chamava seu "banco".
      - Está aqui o dinheiro... tanto... e tanto... e tanto... está certo? Conte também, faça o favor! - Alvina contou-o e conservou-o agarrado na mão. - E os seus anéis e a sua corrente e a medalha... veja... tudo, todas as coisas! Mas não está o broche. Onde está o broche? Aqui! Você o quer também?
      - Eu o dei à senhora - disse Alvina, ofendida. Olhou para os olhos negros de Madame. Esta baixou os olhos.
      - Sim, deu-me. Mas eu pensei, sabe, como agora não tem muito dinheiro, que talvez quisesse ficar com ele de novo...
      - Não, obrigada - disse Alvina, e foi-se embora, deixando Madame com o broche vermelho na mão nédia.
      "Graças a Deus, dei-lhe uma coisa de valor", pensou Alvina consigo mesma, dirigindo-se trêmula para o quarto.
      Tinha já preparado a mala. Tinha de arranjar novo alojamento. Disse adeus aos Natcha-Kee-Tawaras. Tinha a face fria e distante, mas sorriu ligeiramente ao dizer-lhes adeus.
      - Talvez - falou Madame -, talvez queira vir a Wigan amanhã à tarde... ou à noite? Quer?
      - Obrigada - disse Alvina.
      Saiu e encontrou um pequeno hotel, onde arranjou quarto para a noite, explicando a causa da sua visita a Lancaster. Havia no seu coração firmeza e ardor. Possuía-a uma cólera profunda, ardente e silenciosa contra tudo, e uma profunda indiferença pela humanidade.
      E por conseqüência, no dia seguinte, tudo correu como que por encanto. Decidira que ao menor sinal de indiferença por parte da gente da junta médica sairia, pegaria a mala e iria para Windermere. Nunca tinha estado nos lagos. E Windermere não era muito longe. Não toleraria uma simples insinuação de ofensa de quem quer que fosse. Iria diretamente para Windermere, ver o grande lago. Por que não fazer o que lhe apetecia? Podia ser muito feliz sozinha entre os lagos. E seria absolutamente livre, absolutamente livre. Até mesmo se imaginava deixando a Prefeitura, pegando a mala e se dirigindo para a estação e para a liberdade. Não tinha ela ainda cerca de cem libras? Por que preocupar-se um momento sequer? Ficar inteiramente sozinha no mundo inteiro... e inteiramente, inteiramente livre, com as suas cem libras... a perspectiva atraía-a sinceramente.
      E assim, tudo correu perfeitamente bem na Prefeitura. A junta médica foi encantadora com ela... encantadora. Não houve a mínima hesitação. Foi contratada logo ao primeiro momento. E deram-lhe um quarto agradável num hospital próximo a um jardim, e a enfermeira-chefe foi encantadora com ela, e os médicos, muito corteses.
      Quando poderia começar a trabalhar? Quando teriam necessidade dela? No momento em que pudesse. Podia começar amanhã... mas não tinha uniforme. Oh, a enfermeira-chefe
emprestar-lhe-ia um uniforme e aventais, até que chegasse o seu baú.
      Assim, à tarde, ela foi instalada no seu agradável quartinho, dando para o jardim, e vestida com o uniforme
de enfermeira. Foi tudo rápido como numa mágica. Telegrafou
a Madame, telegrafou pedindo o baú. Era outra pessoa. É escusado dizer que estava contente.
      É escusado dizer que, na manhã seguinte, depois de ter tomado um bom banho e de se ter vestido com roupa lavada e posto o vestido branco, o avental branco e a touca branca, ela se sentia outra pessoa. Sentia-se tão limpa, tão agradecida! Sua pele parecia viva, acariciada pela limpeza
e a brancura; sentia-se luminosa. Era tão diferente de estar com os Natchas.
      No jardim, as bolas-de-neve e as rosas balançavam-se suavemente entre a folhagem verde, havia flores-de-maio
cor-de-rosa e escarlates e, debaixo do verde novo das
árvores, brotavam íris purpúreas e brancas. Um jardineiro jovem estava trabalhando e um convalescente vagarosamente ensaiava alguns passos.
      Tendo ainda dez minutos, Alvina sentou-se e escreveu a Cicio: "Estou satisfeita por ter arranjado este lugar de enfermeira. São todos muito amáveis e já me sinto como em minha casa. Sinto-me muito feliz aqui. Lembrar-me-ei dos dias que passei com os Natcha-Kee-Tawaras, e de você, que foi sempre um estranho para mim. Adeus - A. H."
      Escreveu o endereço e pôs no correio. Sem dúvida Madame teria ocasião de ler aquilo. Não tinha importância.
      Alvina entregou-se então a seu novo trabalho. Havia certamente muito o que fazer, porque tinha de trabalhar no hospital e pela cidade, embora principalmente pela cidade. Passava rapidamente de caso para caso, quando era chamada. E era chamada a todas as horas. Era por isso um trabalho cansativo, que não lhe deixava tempo para si mesma, exceto nos breves intervalos.
      Não tinha grandes relações com ninguém, estava sempre muito ocupada. A enfermeira-chefe, as irmãs, os médicos e os doentes faziam parte do seu trabalho diário, e como tais os olhava. Eram os homens que principalmente ignorava; sentia-se muito mais próxima da enfermeira-chefe. Tomava muitas chávenas de chá e conversava muito no quarto da
enfermeira-chefe, nas calmas e soalheiras tardes em que o serviço não era intenso. Alvina aproveitava os momentos calmos quando podia, porque nunca sabia quando seria chamada por um ou outro médico, para a cidade.
      E assim aprendeu a fazer crochê com a enfermeira-chefe. Era trabalho de que nunca se ocupara. Mas agora tinha seu novelo de algodão e sua agulha, e ia trabalhando enquanto tagarelava. Tinha boa saúde e estava de novo engordando. Com os Natcha-Kee-Tawaras melhorara bastante, a cor e a força tinham-lhe voltado. Mas sem dúvida a vida de enfermeira, apesar de árdua, convinha-lhe mais. Estava se tornando bela, serena, folgazã com as outras enfermeiras, verdadeiramente feliz com a sua amiga enfermeira-chefe, que era bem-educada e séria, e nunca tomava intimidades exageradas.
      O médico com quem Alvina tinha mais contato era o Dr. Mitchell, um escocês. Tinha larga clientela entre os pobres
e era um homem cheio de energia. Tinha cerca de cinqüenta e três anos, era alto, bem constituído, com boa figura, mas com pés e mãos extraordinariamente compridos. Tinha o rosto vermelho e bem barbeado, os olhos azuis, bons dentes. Ria muito, e falava como se estivesse declamando. Alvina, pelo que as enfermeiras lhe diziam, sabia que ele começara lavando frascos para o Dr. Robertson, outro escocês, e que tinha feito a sua carreira gradualmente, até se tornar médico, e tinha uma clientela independente. Agora era muito rico... e solteiro. Mas as enfermeiras não andavam muito atrás dele porque ele era bastante dominador.
      Nas casas dos pobres, era um grande autocrata.
      - Que é que vocês têm aqui? - perguntava ele com barulho, vendo uma garrafa de um xarope calmante ao lado da cama de uma pobre mulher. - Levem isto e joguem-no na pia, e quando quiserem um xarope calmante, ponham graxa de sapato em água quente. Fará o mesmo efeito.
      Imagine-se o modo lento, pomposo, declamatório como aquele homem de faces vermelhas e belamente constituído pronunciava tais palavras, e ver-se-á por que os pobres
o temiam tanto.
      Tinha um olhar de águia. Aonde quer que fosse, havia tumulto logo que se lhe ouviam os passos na escada. E ele sabia que lhe escondiam qualquer coisa. Aspirava o ar, deitando em redor um olhar penetrante; e durante uma visita agarrou uma caneca azul que tinha sido empurrada para trás do espelho. Espreitou para o interior... e cheirou.
      - Cerveja? - disse, em tom de indignada interrogação. Deus Todo-Poderoso falaria provavelmente no mesmo tom se encontrasse o miolo de uma maçã atirado no meio das urtigas do paraíso: - Cerveja! Você esteve bebendo cerveja? - Isso enquanto olhava fixamente para a pálida mulher deitada na cama.
      - Deram-me um pouquinho, doutor. Sentia-me tão fraca!
      O médico saiu do quarto, ainda com a caneca na mão. A doente observava-o com olhos espantados. As atendentes levantavam os braços e olhavam umas para as outras.
Teria ele ido embora para sempre? Ouviu-se um repentino quebrar de vidros. O médico tinha atirado a caneca escada abaixo. Voltou com um andar solene.
      - Aí tem! - disse ele. - E a primeira pessoa que lhe der mais cerveja irá atrás da caneca.
      - Oh, doutor, é a única coisa que me conforta! - gemia a doente. - Não pode me fazer mal.
      - Mal! Mal! Com um estômago tão fraco como o seu! Mal! Você sabe mais do que eu? Então, que venho eu fazer aqui? Para me dizer o que lhe faz mal e o que não lhe faz mal? Parece-me que não há necessidade aqui de médico porque você já sabe tudo...
      - Oh, não, doutor. Não é assim. Mas quando a gente sente que definha na cama e não sabe o que fazer...
      - Tome um caldo de carne ou um pouco de pudim de arroz. Tome coisas que alimentem e não essas porcarias. Ouviram?
- dirigindo-se às atendentes, que se encolhiam contra a parede - ela não pode tomar bebida alcoólica, e livre-as Deus de eu as encontrar dando-lhe alguma.
      - Dizem que faz bem - retorquiu a mulher com audácia.
      - Que faz bem - arremedou o médico grosseiramente. - Por que será que uma criatura ignorante como você se mete a falar dessas coisas?
      A mulher murmurou qualquer coisa por entre a respiração.
      - Quê? Fale alto! Deixe ouvir o que tem a dizer. Tenho a certeza de que eu só teria a ganhar com isso...
      Mas a mulher, vexada, saiu precipitadamente do quarto e rebentou em lágrimas no patamar. Após o quê, o Dr. Mitchell,
acalmado, disse pormenorizadamente à doente o que ela devia fazer, concluindo:
      - Alimentos! Alimentos é do que você precisa. É um disparate dizer que não consegue comer. E empurre-os, se eles não quiserem descer sozinhos...
      - Oh, doutor...
      - Não me diga oh, doutor. Faça o que lhe digo. É o que lhe compete. - Após o quê, saiu, e ouviu-se o barulho do automóvel.
      Alvina habituou-se a cenas como essa. Não sabia como havia quem aceitasse aquilo. Mas depressa ela percebeu que
as pessoas gostavam, particularmente as mulheres.
      - Oh! enfermeira, espere o Dr. Mitchell ir embora. Ele me assusta, tenho medo de que grite comigo.
      - Por que é que toda a gente o atura? - perguntou inocentemente Alvina.
      - Oh, ele tem bom coração, menina, interessa-se por nós.
      E em toda parte era o mesmo:
      - Ele é bondoso. É ríspido, mas bondoso. É preferível ele a outro molengão. A gente se sente tranqüila com o Dr. Mitchell, não me importo com o que digam.
      Mas, para Alvina, esta forma peculiar de fanfarronice
e tirania que punha todas as mulheres em fuga como frangos não era particularmente atraente.
      Os homens não gostavam do Dr. Mitchell, e não recorriam a ele, se fosse possível. Contudo, desde que ele era médico do clube e do Serviço Nacional de Saúde, tinham de
submeter-se. A primeira coisa que ele dizia a um operário doente ou ferido, invariavelmente, era:
      - E deixe de beber cerveja.
      - Sim, sim!
      - Deixe de beber cerveja ou eu não torno a pôr os pés nesta casa.
      - Mas o senhor tem uma carinha corada, veja quem fala.
      - Tenho a cara assim porque a exponho ao tempo, para cuidar de gente ignorante como você. Nunca toquei em nada alcoólico.
      - Nem eu. Bebo um bocadinho de cerveja, se é a isso que o senhor chama tocar em álcool. E não me dou mal com isso.
      - Você ouviu o que eu disse.
      - Sim, ouvi.
      - E se continuar com a cerveja, também pode tratar-se sozinho. Eu é que não tratarei de você. A senhora bem sabe que não brinco, Mrs. Larrick. - Isso para a mulher.
      - Eu sei, doutor. E bem sei que é verdade o que diz. Eu peço a ele dia e noite.
      - Oh, bem, se ele não quiser ouvir a voz da razão, sofrerá as conseqüências. Que não espere que eu vá correndo atrás dele se não obedecer às minhas ordens. - E o médico saiu abruptamente e a mulher começou a lamentar-se.
      Não obstante, as mulheres tinham as suas queixas a fazer contra o Dr. Mitchell. Se Alvina entrava numa casa asseada em dia de chuva, tinha a certeza de que ouviria a dona da casa resmungar:
      "Oh, Deus, entre, enfermeira! Que dia! O médico ainda não veio. E vai chegar logo agora que eu limpei tudo, para andar de um lado para outro com aqueles grandes pés sujando tudo. Ele tem os maiores pés de Lancaster. Meu marido diz que ele tem as maiores patas de todo o reino. E faz uma tal porcaria, nunca limpa os pés no capacho e sobe logo pelas escadas lavadas acima.
      - Por que não lhe diz que limpe os pés? - dizia Alvina.
      - Oh, meu Deus! Imagine se eu lhe dissesse! Haveria de saltar-me ao peito com ambos os pés antes que eu tivesse aberto a boca. Não é homem a quem se possa dizer qualquer coisa. É fidalgo, é o que ele é.
      Alvina ria. Sabia que todos gostavam do médico por ele os tratar com arrogância e por ter o coração na boca.
      Por vezes, levava uma boa lição... quase sempre de um homem. Aconteceu que estava em casa de um trabalhador quando o homem estava jantando.
      - Você não tem coisa melhor do que estas papas? - dizia o cabeludo marido, tapando o nariz ao pudim de arroz.
      - Oh, deixe-se disso - exclamava a mulher. - Não tive mais tempo para fazer outra coisa. - O Dr. Mitchell acabava justamente de mostrar sua bela figura no patamar.
      - Pudim de arroz! - exclamou ele com barulho. - Não podia arranjar nada mais saudável e nutritivo. Como todos os dias um pudim de arroz... todos os dias, sim senhor.
      O homem estava comendo o seu pudim e sujando o grande bigode com ele. Não respondeu.
      - O quê? - exclamou a mulher. - E nunca come outra coisa?
      - Nunca - disse o médico.
      - Imagine! É assim tão amante disso?
      - Verifico que me dou bem com eles. São leves e digestivos. E meu estômago é fraco como o de uma criança.
      O trabalhador limpou o bigode na manga.
      - Não é o meu caso - disse ele. - Não preciso de papas. Para mim é como água. O que eu gosto é de coisa que encha
a pança; assim como um pudinzinho de maçã doce e um copázio de qualquer coisa que encha a barriga. E com o senhor aconteceria o mesmo se trabalhasse como eu.
      - Se eu trabalhasse como você - chacoteou o médico.
- Mas eu trabalho dez vezes mais do que qualquer um de vocês. Foi justamente o trabalho que me arruinou a digestão, por nunca comer descansado e nunca dormir uma noite com sossego. Quando é que posso pensar em sentar calmamente e digerir o jantar? Tenho de sair para ver gente como você...
      - E por que é que não leva a mamadeira com o senhor?
- disse o trabalhador.
      Mas o Dr. Mitchell ficou furioso com isso durante semanas. Aquilo enfureceu-o por sua robustez ter sido insultada. Alvina rira às escondidas.
      O médico começou por ser um pouco altivo e condescendente com ela. Mas felizmente ela verificava que conhecia seu serviço pelo menos tão bem como ele. Ela sorria
e deixava-o condescender. Certamente, nem o temia nem sequer o admirava. Na verdade, ele lhe desagradava bastante: aquele grande e corado solteirão de cinqüenta e três anos, careca, com o estômago tão fraco como o de uma criança, com sua imperiosidade afetada e um bom coração que era tão egoísta quanto o podia ser. Nada pode ser tão fanfarronicamente egoísta quanto um bom coração que acredita na sua própria benevolência. Ele era abstêmio demais para ser inteiramente varonil. Alvina preferia os trabalhadores, de bigodes horrivelmente compridos, que se enchiam de comida. E ele era demasiado palavroso e fidalgo para ser um homem como se deve
ser.
      Com efeito, tinha a consciência do fato de que conseguira tornar-se um cavalheiro. Porém, se um homem tem
a consciência de ser um cavalheiro, tende a ser menos do
que um homem. Mas se é doído pela ansiedade, com receio de que não seja um cavalheiro, é somente digno de piedade. Há um terceiro caso, contudo. Se um homem, altivamente, pelos seus modos, proclama que é agora um cavalheiro, a si mesmo se exibe como um palhaço. Para Alvina, o pobre Dr. Mitchell entrava nessa terceira categoria, a dos palhaços. Tolerava-o com bom humor, como as mulheres tantas vezes toleram os parvos e os poseurs. Sorria para si própria quando via a larga e importante presença dele no consultório. Sorria quando o via num leilão, comprando as maiores peças de mobília antiga. Sorria quando ele falava em ir à Escócia, para caçar faisão, ou em arranjar uma hora na manhã de domingo para jogar golfe. E falava dele, com calma e delicada malícia, com a enfermeira-chefe. Ele não era o favorito no hospital.
      Gradualmente, os modos do Dr. Mitchell mudavam para
com ela. De uma condescendência senhoril passou a um tom de desassossegada igualdade. Aquilo não se lhe ajustava bem.
O Dr. Mitchell não tinha iguais; tinha apenas vasto estrato de inferiores sobre o qual praticava a sua muito útil beneficência... o que lhe dava cerca de duas mil libras por ano; e depois os superiores, gente que tinha nascido com dinheiro. Eram os comerciantes e profissionais que tinham começado de baixo e subido, a ponto de andarem de automóvel, que o angustiavam. E por conseguinte, enquanto tratava Alvina nesse nível, sentia-se ele próprio em falsa posição.
      Alvina mantinha a sua atitude de calmo divertimento,
e pouco a pouco ele foi cedendo. Antes uma criatura altiva, elevando-se sobre a cabeça dela, ele tornara-se agora como que um grande peixe atirando o nariz para cima da água e lançando olhares para ela. Tratava-a com o seu quê de presunçosa deferência.
      - Está com um ar cansado esta manhã - ladrou ele num
dia de calor.
      - Julgo que é da trovoada - disse ela.
      - Trovoada! Trabalho, é o que você quer dizer. - E atirou-lhe um leve sorriso. - Eu a levo no meu carro.
      - Oh! não, obrigada, não se incomode! Tenho ainda uma chamada no caminho.
      - Para onde é que foi chamada? Ela lhe disse.
      - Muito bem. Isso não leva mais do que cinco minutos. Esperarei por você. Agora, pegue o seu casaco.
      Ela estava surpresa. Contudo, como as outras mulheres, submeteu-se.
      No percurso ele viu um homem com um carro de mão cheio de pepinos. Parou o carro e dirigiu-se ao homem.
      - Pegue essa carga de veneno e vá enterrar isso!
- exclamou ele em voz forte. O trânsito na rua parará.
      - Que é que o senhor diz? - replicou o vendedor, estupefato.
      O Dr. Mitchell apontou para a pilha verde de pepinos.
      - Pegue essa carga de veneno e vá enterrar isso
- intimou -, antes que faça mal a alguém.
      - Qual carga de veneno? - perguntou o vendedor, aproximando-se. Começara a juntar gente.
      - Qual carga de veneno! - repetiu o médico. - Pois que havia de ser, se não os pepinos?
      - Oh... - disse o homem, examinando cuidadosamente os pepinos. Certamente, alguns estavam amarelados na ponta.
- Como pode ser isso? Os pepinos estão todos bons; frescos, trazidos do mercado esta manhã.
      - Frescos ou não - disse o médico, fazendo soar as palavras distintamente -, isto é veneno que você mete no estômago. Não há coisa pior do que comer pepinos.
      - Oh! - disse o homem, gaguejando. - Isso é para os
que não gostam deles. A mim nunca me fizeram mal, e como-os como quem come uma maçã. - Dizendo isso, o vendedor apanhou um pepino do carro, tirou-lhe a ponta e mascou-o até a seiva esguichar. - Que mal há nisso? - perguntou, levantando o pepino mordido.
      - Eu não lhe digo que haja mal nisso - disse o médico.
- O que digo é que comer isso faz mal para o estômago. Eu
sou médico e sei que é isso o que me dá metade do trabalho. Metade dos problemas gástricos que surgem no verão são motivados por eles.
      - Está bem! Mas o senhor perde alguma coisa com isso? O senhor e eu somos compadres. Quanto mais pepinos eu venda, mais dinheiro para o senhor. Que têm eles de mal? Pepinos! Ótimos pepinos frescos! Todos frescos e sumarentos, baratos e gostosos - gritava o homem.
      - Eu sou médico não só para curar as doenças, mas também para evitá-las, quando posso. E os pepinos são um veneno para toda a gente.
      - Pepinos! Pepinos! Pepinos frescos! - gritava o homem.
      O Dr. Mitchell pôs o carro em marcha.
      - Quando é que essa gente aprenderá a ser inteligente?
- disse ele a Alvina, sorrindo e mostrando os dentes brancos e uniformes.
      - Eu não me preocupo, sabe? - disse ela. - Acho que cada um deve fazer o que quer...
      - Mesmo que saiba que lhes faz mal? - perguntou ele, sorrindo com amável condescendência.
      - Sim, por que não? Isso é com eles. Sempre vão arranjar coisas que lhes façam mal, de uma maneira ou de outra.
      - E não tenta evitá-lo?
      - É o mesmo que tentar parar o mar com os dedos.
      - Acha que sim? - sorriu o doutor. - Estou vendo que é pessimista. É pessimista no que respeita à natureza humana.
      - Eu? - sorriu Alvina. Parecia ser agradável ao médico que Alvina fosse pessimista com respeito à natureza humana. O fato parecia dar a ela um ar de distinção. Aos olhos dele, a moça parecia distinta. Ele estava rapidamente a caminho de se apaixonar por ela.
      Alvina, é claro, quando ele começou a admirá-la achou-o muito melhor e viu mesmo nele um atrativo insinuante e pueril. Havia nele realmente qualquer coisa de infantil. E essa qualquer coisa de infantil, desde que lhe parecia ser ela mesma a graça salvadora, lisonjeava-a, naturalmente, e fazia-a ser mais gentil para com ele.
      Ele habituou-se a levá-la no carro sempre que podia. E batia à porta da enfermeira-chefe, sorrindo e mostrando os belos dentes, exatamente à hora do chá.
      - Posso entrar? - A voz era quase de namoro.
      - Certamente.
      - Vejo que tomam chá! Muito agradável, uma chávena de chá a esta hora!
      - Quer uma, doutor?
      - Com muito prazer. - E sentou-se, desfazendo-se em sorrisos. Alvina levantou-se para lhe arranjar uma xícara.
- Eu não queria incomodá-la - disse ele a Alvina. - Os homens são sempre importunos. - Sorriu para a enfermeira-chefe.
      - Às vezes - falou a enfermeira-chefe - as mulheres gostam de ser importunadas.
      - Ah, sim? - Os olhos dele cintilavam. - Talvez você não diga o mesmo - disse, voltando-se para Alvina. Ela estava abrindo o guarda-louças. Tinha um ar insinuante, com aquele vestido fresco e a touca, o cabelo macio e castanho, a figura atraente, com aquelas ancas cheias e macias. Voltou-se para ele.
      - Oh, sim - falou ela. - Estou de acordo com a enfermeira-chefe.
      - Ah, está! - Não sabia como interpretar aquilo.
- Mas você se importa de ser incomodada no seu chá, com certeza.
      - Não - disse Alvina. - Estamos tão habituadas a ser incomodadas...
      - Gosta dele fraco, doutor? - perguntou a
enfermeira-chefe, servindo o chá.
      - Muito fraco, por favor.
      A galanteria dele era um pouco forçada, mas era inegavelmente galanteria. Quando ele saiu, a enfermeira-chefe tomou uns ares sérios, e Alvina ficou confusa. Uma esperava que a outra falasse.
      - Não lhe parece que o Dr. Mitchell anda se mostrando?
- indagou Alvina.
      - Muito! Está muito galante! O que não sei é quem o deixou assim. Palavra de honra que quem foi merece um prêmio. - Olhou travessamente para Alvina.
      - Não, não olhe para mim - disse Alvina, rindo. - Eu não sei nada sobre isso.
      - Acha que pode ser para mim? - disse a
enfermeira-chefe, maliciosa.
      - Tenho a certeza. E até que enfim ele começa a mostrar bom gosto.
      - Muito bem! - disse a enfermeira. - Vou ajeitar a minha touca. - E foi ao espelho arrumar o cabelo e a touca.
      - Pronto! - disse, balanceando-se em leve cortesia para Alvina.
      Ambas riram e marcharam para o trabalho.
      Mas não havia dúvidas, o Dr. Mitchell começara
a expandir-se. Era muito afável com Alvina e parecia
mesmo iluminar-se quando ela estava perto, para lhe atrair
a atenção. Sorria afetadamente e tornava-se singularmente senhor de si; chegava a ser aborrecido. Gostava de
debruçar-se sobre a cadeira dela e fazia um grande acontecimento do fato de lhe oferecer um cigarro sempre que
a encontrava, apesar de ele mesmo nunca fumar. Tinha uma cigarreira de ouro.
      Um dia convidou-a a ir ver o seu jardim. Tinha uma casa velha e agradável, com um grande jardim murado. Mostrou-lhe as flores e as trepadeiras e ofereceu-lhe morangos. Levou-a a admirar os aspargos. E depois deu-lhe chá na sala de visitas, com morangos, creme e bolo, mas ele nada comeu. Mas riu expansivamente todo o tempo. Era um homem feito e agora estava realmente deixando-se levar, deliciando-se com todas as coisas; acima de tudo com Alvina, que servia graciosamente o chá de um velho bule georgiano e sorria cheia de encanto por sobre as xícaras Rainha Ana.
      E ela, esperta como era, admirava todos os pormenores da sala de visitas. Era na verdade uma sala agradável, com rosas do lado de fora da janela francesa, continuando num relvado cheio de sol, com flores vermelho-vivas em canteiros. Mas lá dentro era tudo insistentemente antigo. Alvina admirava o aparador e as cadeiras de braços Jaime Primeiro e os cadeirões Hepplewhite e o sofá Sheraton e as prateleiras Chippendale e o tapete Axminster e o relógio de bronze com Shakespeare e Ariosto reclinados sobre ele (sim, admirava
até o Shakespeare do relógio) e o armário de ouropéis e os escabelos rendilhados e o horrível prato de Sèvres com um querubim e... mas para que enumerar? Ela admirava tudo. E o coração do Dr. Mitchell dilatava-se em seu peito, até ele senti-lo prestes a estourar, a menos que ele se atirasse aos
pés dela ou fizesse qualquer coisa extraordinária. Nunca sequer imaginara o que seria sentir-se assim; como era delicioso senti-lo. Podia ter-lhe beijado os pés num êxtase de louca expansão. Mas o hábito, tão forte, evitou que ele fosse além de um sorriso luminoso.
      Noutro dia, ele disse a ela, quando falavam de idades:
      - Cada um tem a idade que sente ter. Ora, quando eu tinha vinte anos parecia-me que tinha sobre meus ombros todos os cuidados e responsabilidades do mundo. E agora que estou mais ou menos na idade madura, sinto-me tão leve como se estivesse começando a vida - Sorria para ela.
      - Talvez o senhor esteja somente agora começando sua vida própria - disse ela. - Até agora viveu só para o seu trabalho.
      - Pode ser isso. Pode ser que até agora eu só tenha vivido para os outros, para os meus doentes. E agora talvez possa viver um pouco mais para mim próprio. - Irradiava
um real prazer, via o verdadeiro prazer da vida começar.
      - Por que não?
      - Oh, sim, tenho essa intenção - respondeu ele, em confidencia.
      Assim, gradualmente ele formava a idéia de casar-se agora, e de aposentar-se parcialmente do seu trabalho. Isto é, podia contratar outro assistente e dar-se a si próprio uma boa parcela de descanso. Tinha um imenso orgulho da sua casa. E agora contava realizar o sonho de sua vida: estar sempre em volta da mulher que fizesse sua esposa, acompanhando-a, sentindo-se orgulhoso dela e da casa, conversando com ela desde a manhã até a noite, verdadeiramente se encontrando nela. Quando tivesse de fazer as visitas, ela iria com ele no automóvel; em sua mente decidia que ela gostaria de o acompanhar. Ensinar-lhe-ia a dirigir e sentar-se-iam um ao lado do outro, e ela o conduziria e esperaria por ele. E se apressaria em sair das casas dos doentes e a encontraria ali sentada; iria para junto dela e sentir-se-ia aconchegado,
seguro e feliz, enquanto ela o conduzisse à visita seguinte, falando-lhe ele do trabalho que tinha.
      E se por acaso não saísse com ele, a mulher estaria ali à porta esperando-o, logo que tivesse ouvido o automóvel. E passariam longos, confortáveis serões juntos, na sala de visitas, ele cheio de prazer com a simples presença dela. Ela sentar-se-ia nos seus joelhos e ficariam aconchegados durante horas, antes que fossem confortável e deliciosamente para a cama. E de manhã ele não teria que apressar-se. Demorar-se-ia com ela, vagueariam pelo jardim olhando cada nova flor e cada novo fruto, ela usaria vestidos frescos e floridos e não traria touca sobre o cabelo, ele nunca seria capaz de sair de junto dela. Todas as manhãs seria uma coisa insuportável ter de separar-se dela, e a todas as horas ele estaria cheio de pressa para regressar. Seriam, enfim, tudo um para o outro. E como ele apreciaria isso! Ah!
      Punha-se a considerar se teriam filhos. Um filho a afastaria dele. Foi o seu primeiro pensamento. Mas isso depois!... Ah, bem, teria de esperar até a ocasião oportuna. O jovem sonho de amor nunca é tão delicioso como na idade virgem dos cinqüenta e três anos.
      Mas ele era muito cauteloso. Não fazia avanços definitivos antes de colocar a questão abertamente. Era o feriado de agosto, aquele para sempre negro dia da declaração
de guerra, quando a questão foi colocada. Porque este ano da nossa história é o ano fatal de 1914.
      Havia grande barulho na cidade por causa da declaração de guerra. Mas muita gente entendia que as notícias apenas pretendiam dar uma emoção extra ao importantíssimo  acontecimento do feriado. Meio mundo tinha ido para Blackpool ou para Southport, outro meio mundo tinha ido para os lagos ou para o campo. Lancaster estava ocupada com uma espécie de fête, não obstante. E como o tempo estava bom, toda a gente tinha uma disposição própria de feriado.
      Assim, o Dr. Mitchell, que conseguira levar Alvina ao hospital, conseguiu conduzi-la à sua casa às três e meia, para tomar chá.
      - Que lhe parece esta nova guerra? - disse Alvina.
      - Oh, estará terminada em seis semanas - disse o médico desprendidamente. E não pensaram mais nisso. Somente um rápido pensamento, Alvina se perguntara se aquilo afetaria os Natcha-Kee-Tawaras. Não tinha sabido mais nada deles.
      - Aonde gostaria de ir hoje? - perguntou o médico, virando-se para ela com um sorriso, enquanto conduzia o carro.
      - Estou pensando em Windermere... nos lagos - respondeu ela.
      - Poderemos em breve dar um passeio pelos lagos - disse ele. Ela não estava pensando nisso e assim não deu particular atenção àquelas palavras.
      - Que bom! - exclamou ela vagamente.
      - Podemos ir de automóvel e parar onde nos apetecer.
      - Sim - disse ela, perguntando-se o que estaria ele pensando.
      Logo que tomaram o chá, calma e galantemente em
tête-à-tête, na sala de visitas, ele perguntou a Alvina se gostaria de ver os outros compartimentos da casa. Ela  agradeceu e ele lhe mostrou a rica sala de jantar de carvalho, o quartinho com instrumentos médicos e uma cadeira giratória a que chamava o seu gabinete; depois a cozinha e a despensa, a governanta olhando de soslaio; depois, no andar de cima, o quarto de dormir, que era muito belo, com móveis de mogno e candelabros de prata e escovas com cabos de marfim verde sobre o toucador e uma higiênica cama branca e tapetes de palha; depois o adequado quarto de hóspedes, com a sua mobília antiga de pau-cetim e cadeiras cor de creme com grandes almofadas azul-pálidas e um tapete claro com grinaldas avermelhadas. "Muito lindo, adorável, imensamente lindo, gosto tanto disto, não é belo aquilo, nunca vi uma coisa assim!", foi o gratificante fogo de artifício de admiração da parte de Alvina. E ele sorria e regozijava-se.
Mas intimamente ela pensava em Manchester House e em como ela era sombria e horrível, em como a odiava, mas em como tinha impressionado Cicio e Geoffrey, em como eles teriam gostado de ver-se donos dela e em como o tinham mostrado nos olhos. Ela sorria para si própria, com o seu quê de amargo. Porque naquela tarde sentia-se estranhamente pouco à vontade e pensativa, saudosa - uma faceta que ela julgava ter felizmente perdido.
      O doutor arrastou-a mesmo até as águas-furtadas de
tetos oblíquos. Era homem corpulento e usava sempre ternos
azul-marinho, bem talhados e imaculados. Inconscientemente,
ela sentia que tais homenzarrões, com bons ternos daquela cor, especialmente se tinham faces coradas e pés grandes, e
o cabelo escasso, eram um tipo especial, sólido, com o seu quê de sentimental, e enfadonho.
      - Que lindas águas-furtadas! São tão atraentes os ângulos feitos pelo teto, as diferentes linhas! Oh! E que adorável janelinha! - Abaixou-se para olhar pela abertura
da pequena janela. - Adorável! Veja a cidade e os montes! Gostaria que este quarto fosse meu.
      - Então fique com ele - falou o médico. - Fique com ele como um dos seus quartos.
      Ela afastou-se do nicho da janela e olhou para ele. O médico inclinara-se para ela, sorridente, senhor de si, galante e ansioso. Ela achava que era melhor rir.
      - Eu falei só como se fosse uma criança, só fantasiando - disse ela.
      - Vi isso muito bem - replicou ele deliberadamente.
- Mas eu digo o que penso...
      Ela não respondeu, mas olhou para ele repreensivamente. Ele estava com um ar alegre e sorria afetadamente para ela.
      - Quer casar-se comigo e vir para aqui e chamar seu a este mirante? - Falou isto como se lhe estivesse oferecendo um chocolate. Sorria com curiosa incerteza.
      - Não sei - respondeu ela vagamente. O sorriso dele alargou-se.
      - Pois bem - disse ele -, decida-se. Eu não tenho grande jeito para falar de amor, bem sabe. Mas acho que o posso sentir muito bem. Quero que você venha para cá e seja feliz... comigo. - Acrescentou a última palavra como uma espécie de manhoso post-scriptum e como que para assumir um compromisso definitivo.
      - Mas eu nunca pensei nisso - respondeu ela, cogitando rapidamente.
      - Sei que não. Mas pense agora... - Começava a ficar contente consigo mesmo. - Pense agora. E diga-me se gostará de mim como do mirante. - Estava radiante e pusera a cabeça um pouco de lado... um pouco como Mr. May, durante um segundo. Mas era muito mais perigoso do que Mr. May. Era autoritário e tinha um gênio dos diabos quando o contrariavam. Ela o sabia. Era homem corpulento com um
terno azul-marinho, e com dentes muito brancos.
      Mais uma vez ela achou que era melhor rir.
      - É sobre o senhor que eu estou pensando. - Ela riu, arfando ainda. - E é sobre o senhor que eu faço perguntas a mim mesma.
      - Bem - falou ele, satisfeito consigo próprio -, pense no meu caso até tomar uma decisão...
      - Eu verei - disse ela, aproveitando a oportunidade.
- Pensarei no caso até tomar uma decisão..." está bem?
      - Sim - concordou ele. - É isso o que eu quero que você faça. E na próxima vez perguntar-lhe-ei, se me permite. Está bem, não está? - Ele sorriu indulgentemente para ela; achava a face dela jovem e encantadora, encantadora.
      - Sim - disse ela. - Mas não me pergunte muito cedo, sim?
      - Como, muito cedo? - Ele sorria deleitadamente.
      - Dê-me tempo para pensar. Não me pergunte antes do fim deste mês, está bem?
      - Deste mês? - Os olhos dele irradiavam prazer. Gozaria com a demora, tanto como ela gozaria. - Mas o mês está começando agora. Todavia... Está bem, você precisa ter o seu tempo. Este mês não lhe falarei mais no caso.
      - E eu lhe prometo pensar o mês inteiro.
      - É um contrato - disse ele.
      Desceram a escada, e Alvina voltou às suas ocupações. Estava muito excitada, muito excitada mesmo. Um homem corpulento, abastado, de terno azul-marinho, de bela
aparência, com cinqüenta e três anos, de dentes brancos e estômago delicado: era excitante. Situação segura, uma belíssima casa com coisas adoráveis, uma vez que as arranjassem melhor. E certamente ele a adorava. Era escusado dizê-lo. Andava tão inquieta como se alguém lhe tivesse dado um belo par de botas. Andava realmente inquieta e satisfeita consigo própria; e inteiramente decidida a tomar conta de tudo aquilo. Era como ela via as coisas: tomar conta de tudo aquilo.
      Certamente, havia o próprio homem a considerar. Mas ele era absolutamente apresentável. Não havia a mínima coisa contra ele; a mínima coisa. Se ele tivesse feito pressão durante a primeira metade do mês de agosto, teria quase certamente conseguido o que queria. Mas ele antegozava a aquiescência.
      Entretanto, o rebuliço e o desassossego da guerra começaram e fizeram-se sentir mesmo em Lancaster. E a excitação e o mal-estar começaram a produzir efeito no enfeitiçado entusiasmo de Alvina. Um pouco do seu velho
mau humor voltara-lhe. Seu espírito, que estivera como
que adormecido aqueles meses, acordava agora irritado e revoltava-se contra suas amarras. Quem era aquele homem, já entrado em anos, que ela desposaria? Quem era ele, por quem ela seria beijada? Beijada realmente e acariciada por ele! Repugnante! Evitava-o como à peste. Imaginava-se repousando de encontro ao largo colete azul daquele homem! Estremecia como se a tivessem picado. Imaginava sua cara vermelha e sorridente curvando-se sobre ela para a beijar! Afastava-o com a mão aberta. E fugia, para afastar aquele pensamento.
      E contudo! E contudo! Viveria tão confortavelmente, ficaria tão bem para o resto da vida! O odioso problema das
condições materiais ficaria resolvido para sempre. E ela bem sabia o quanto as condições materiais influem na vida.
      Porém, não podia decidir apressadamente. Mas sentia
pelo pobre Dr. Mitchell profundo rancor, pelo fato de que
ele não pudesse conceder-lhe todas as vantagens que ele oferecia, dispensando-a de aceitá-lo. Não se atrevia a decidir depressa. E esse real temor, como uma canga sobre ela, fazia-a ressentir-se do homem que a forçava a uma decisão.
      Às vezes, revoltava-se. Às vezes, ria desagradavelmente na cara do homem; embora não se atrevesse a ir muito longe, porque tinha um pouco de medo dele e do seu feitio irascível, também. Nos momentos de repentina revolta pensava nos
Natcha-Kee-Tawaras. Pensava muito neles. Perguntava a si própria onde estariam, o que fariam, e o quanto a guerra os teria afetado. O pobre Geoffrey era francês... teria de ir para a França combater. Max e Louis eram suíços, a guerra não os afetaria; nem a Cicio, que era italiano. Perguntava se a troupe estaria na Inglaterra; se continuariam juntos quando Geoffrey fosse embora. Perguntava-se o que pensavam eles dela. Tinha a impressão de que falavam nela. Sentia que não a tinham esquecido. Sentia que havia qualquer coisa a ligá-los.
      De fato, durante a última parte de agosto, pensou bem mais nos Natchas do que no Dr. Mitchell. Mas pensar nos Natchas não a ajudava em nada. Percebia que, se soubesse onde eles estavam, correria para junto deles. Mas então via que era impossível.
      Ao passar junto da estação viu muita gente e alvoroço. Havia gente vendo os rapazes que partiam. A cerveja corria: marinheiros, no trem, estavam embriagados; mulheres
dependuravam-se à lapela dos casacos dos homens. E quando o trem partiu, os rapazes acenaram com as mãos, as mulheres deram gritos e soluçaram.
      Um calafrio desceu pela espinha de Alvina. Aquele era outro assunto, diferente do Dr. Mitchell. Aquilo fazia-a sentir o médico irreal, trivial. Não sabia o que iria fazer. Via que devia fazer qualquer coisa... tomar parte na espantosa movimentação da vida. Sabia que afastaria o Dr. Mitchell, mais uma vez.
      Falou no assunto com a enfermeira-chefe. Esta aconselhou-a a adiá-lo. Por que não se fazer voluntária
do serviço de guerra? Claro que, sendo parteira, isso dificilmente seria qualificação para cuidar de soldados. Mas, no entanto, era enfermeira.
      Alvina via que era o que tinha a fazer. Em toda parte havia rebuliço e um ferver de agitação. Os homens estavam na ativa, havia também necessidade de mulheres. Escreveu o nome na lista de voluntários para o serviço ativo. Era o último dia de agosto.
      No dia primeiro de setembro, o Dr. Mitchell apareceu cedo no hospital, exatamente na hora em que Alvina começava seus serviços da manhã. Foi ao quarto da enfermeira-chefe
e perguntou pela Enfermeira Houghton. A enfermeira-chefe deixou-os juntos.
      O doutor estava excitado. Sorria muito, mas numa excitação de tensão nervosa. Alvina estava perturbada. O coração batia-lhe fortemente.
      - Então! - exclamou o Dr. Mitchell. - Que é que tem para me dizer?
      Ela olhou para ele com olhos confusos. Ele sorria excitadamente e cheio de intenção, e aproximou-se um pouco.
      - Hoje é o dia da sua resposta, não é? - perguntou ele. - Então, deixe-me ouvir o que tem a dizer-me.
      Mas ela apenas o observava, com os olhos muito abertos
e perturbados, e não falava. Ele chegou-se mais para perto.
      - Bem, então - disse ele -, tenho de tomar o seu silêncio como consentimento. - E riu agitadamente, numa antecipação nervosa, ao tentar pôr os braços em volta dela.
Mas ela deu um passo brusco para trás.
      - Não, ainda não - falou Alvina.
      - Por quê? - perguntou ele.
      - Ainda não dei a minha resposta.
      - Então dê - disse ele, mal-humorado.
      - Inscrevi-me como voluntária para o serviço ativo
- tartamudeou ela. - Pareceu-me que devia fazer alguma coisa.
      - Por quê? - perguntou ele. Dava uma entonação desagradável àquela palavra. - Eu sempre pensei que você
me responderia primeiro.
      Ela não respondeu, mas o observava. Não gostava dele.
      - Só ontem é que me alistei.
      - Por que não deixou isso para amanhã? Teria sido melhor. - Estava furioso. Mas viu-lhe na face um olhar meio de terror, meio de culpa, e, durante as semanas de espera, havia se preparado
      - Mas deixe disso - sorriu ele de novo, um tanto ameaçadoramente. - Você tem ainda que responder à minha pergunta. Ter-se inscrito como voluntária para o serviço
ativo não impede que esteja comprometida comigo, não lhe parece?
      Alvina observava-o, de olhos muito abertos. E de novo ele se chegou a ela, de modo que o colete de sarja azul parecia tocá-la, e a cara vermelho-púrpura ficava sobre ela.
      - Eu prefiria não ficar noiva, dadas as circunstâncias
- disse ela.
      - Por quê? - voltava a palavra desagradável. - Que é que as circunstâncias têm a ver com isso?
      - É tudo tão incerto. Parece-me melhor esperar.
      - Esperar! Não esperou já tempo suficiente? Não há nada que a impeça de tornar-se minha noiva. Absolutamente nada! Vamos, já não tenho idade para que brinquem comigo. E eu a amo demasiado para deixá-la ficar indefinidamente assim. Vamos! - Logo a seguir sorriu e ofereceu-lhe sua larga mão.
- Deixe-me pôr o anel no seu dedo. Será o dia mais feliz da minha vida aquele em que a fizer minha mulher. Dê-me sua mão...
      Alvina estava hesitante. Por um lado, a simples curiosidade fazia-a desejar ver o anel. Quase ergueu a
mão. E se não fosse por saber que ele a beijaria, tê-la-ia dado. Mas ele iria beijá-la... e a isso ela se opunha obstinadamente. Pôs a mão atrás das costas e olhou firmemente para os olhos dele.
      - Não brinque comigo - falou ele ameaçadoramente. Mas ela apenas continuava olhando trocista e obstinadamente para os olhos dele.
      - Vamos... - disse ele, fazendo sinal para que ela lhe desse a mão.
      Com um quase imperceptível movimento da cabeça, ela recusou, sem deixar de fitá-lo um só momento. O temperamento indomável dele levou a melhor. Viu tudo vermelho; sem saber
o que fazia, agarrou-a pelo ombro, inclinou-a para trás e empurrou-a, comprimindo-a contra a parede como se quisesse fazê-la passar através dela. Seus olhos estavam cegos de cólera, como um sol quente e vermelho. Bruscamente, quase instantaneamente, voltou de novo a si e retirou as mãos, abanando a mão direita como se um rato a tivesse mordido.
      - Desculpe! - exclamou fora de si. - Desculpe! Eu não queria fazer isso. Desculpe.
      Ela recobrou o equilíbrio e, de lábios pálidos, olhou para ele com olhos sombrios.
      - Desculpe! - continuava ele, falando alto, num estranho furor, como o de um rapazinho. - Esqueça isso tudo! Esqueça isso tudo! Não se lembre de que eu fiz isso.
      O rosto dele era uma espécie de vazio, inconscientemente ele torcia a mão que a agarrara, como se lhe doesse. Ela o olhava e perguntava-se por que todo esse furor. Ficara fria, não sentia as fortes sensações que ele parecia esperar dela. Não havia nada de menos natural, no fim das contas, do que ser atirada bruscamente contra uma parede. Certamente, seu ombro doeria no lugar em que ele a agarrara. Mas o mundo estava cheio de dores piores. Olhava-o com olhos bem abertos e distantes.
      E ele caiu de joelhos à sua frente, enquanto ela recuava de encontro à estante de livros; ele agarrou-lhe a barra do vestido, puxando-a para si, o que a deixou um pouco desconcertada e muito menos à vontade.
      - Perdoe-me! - dizia ele. - Esqueça essas coisas! Perdoe-me! Goste de mim! Goste de mim! Perdoe-me e goste de mim! Perdoe-me e goste de mim!
      Quando Alvina baixava os olhos consternados sobre aquele homem grande, corado e idoso, que com os gritos mostrava os dentes brancos como os de uma criança, e quando delicadamente tentava tirar a saia das garras dele, a porta abriu-se e apareceu a enfermeira-chefe com a sua grande touca folhada.
Alvina lançou um olhar rápido para ela, corou muito e baixou os olhos para o homem. Tocou-lhe a face com a mão.
      - Não é nada. Não é nada. Não pense mais nisso. Ele agarrou-lhe a mão e apertou-a.
      - Goste de mim! Goste de mim! - exclamava ele.
      A enfermeira fechou de novo a porta devagar,
retirando-se.
      - Goste de mim! Goste de mim!
      Alvina estava absolutamente confusa com aquela cena. Não pensava que os homens fizessem tais coisas. Aquilo não a comovia, confundia-a.
      O médico, tomando-lhe a mão, firmou-se nos pés e lançou os braços em redor dela, apertando-a ferozmente contra si.
      - Você gosta de mim! Você gosta de mim, não gosta?
- dizia ele, vibrante e fora de si, enquanto a apertava contra o peito e escondia a cara no cabelo dela. Em tal
momento, de que valia dizer que não gostava? A piedade pela vergonha dele, contudo, manteve-a imóvel e silenciosa nos
braços dele, pressionada contra o vasto peito dele, cingido por um colete de sarja azul.
      Ele começou a voltar a si. Ficou calado. Mas continuava a abraçá-la fortemente, não pensava em soltá-la.
      - Aceita o meu anel, não é verdade? - indagou ele por fim, ainda num estranho e lamentável tom de voz. - Aceita o meu anel?
      - Sim - respondeu ela friamente. Era preciso fazer qualquer coisa que o acalmasse naquela emergência. Ele
meteu febrilmente uma mão no bolso, continuando a segurar fortemente Alvina com o outro braço. E com aquela única mão conseguiu tirar o anel do estojo, deixando-o rolar pelo chão. Era um diamante solitário.
      - Em que dedo? Em que dedo é? - perguntou ele, começando a sorrir ligeiramente. Ela desembaraçou a mão e ofereceu o dedo anular. Em cima, estava o anel de luto que Miss Frost usara sempre. O doutor fez deslizar o diamante solitário sobre o anel de luto e envolveu Alvina de novo contra o peito.
      - Agora - disse ele, quase no seu tom natural de voz.
- Agora sei que você gosta de mim. - Aquela tão grande satisfação tornava-a colérica. Conseguiu libertar-se dele.
      - Quer vir agora comigo?
      - Não posso - respondeu ela. - Tenho de voltar para o meu trabalho lá dentro.
      - A Enfermeira Allen pode fazê-lo.
      - Prefiro que não.
      - Aonde é que vai hoje? Ela relacionou as visitas.
      - Bem, venha tomar chá comigo. Esperá-la-ei todos os dias para tomar chá comigo.
      Mas Alvina compunha a touca amarrotada em frente ao espelho e não respondeu.
      - Nós poderemos ver-nos sempre que quisermos, agora que estamos noivos - disse ele, sorrindo de satisfarão.
      - Onde poderá estar a enfermeira-chefe? - perguntou Alvina, saindo subitamente no fresco corredor, branco. Ele seguiu-a. E encontraram a enfermeira-chefe, que deixava
justamente uma enfermaria.
      - Senhora enfermeira-chefe! - exclamou o Dr. Mitchell, num acesso da sua velha e fanfarrona importância. - Pode felicitar a Enfermeira Houghton e a mim, porque estamos
noivos. - Sorria um sorriso largo.
      - Felicito-o já que o deseja, disse a enfermeira-chefe.
      - Sim, naturalmente. E a nós ambos, visto que agora formamos apenas um - replicou ele.
      - Não por completo, todavia - redargüiu gravemente a enfermeira, E por fim conseguiu ver-se livre dele.
      Em seguida, procurou Alvina, que tinha ido para as suas ocupações. - Bem, suponho que tudo esteja bem - disse a enfermeira-chefe gravemente.
      - Não, não está bem - respondeu Alvina. - Nunca me casarei com ele.
      - Ah, nunca é muito tempo. Ele me ouviu entrar?
      - Não. Com certeza que não.
      - Graças a Deus.
      - Sim, realmente. Foi absolutamente horrível. Perseguindo-me de joelhos, e a gritar-me que gostasse dele! Absolutamente horrível.
      - Bem - disse a enfermeira-chefe. - Nunca se sabe de quê um homem é capaz antes de o conhecermos. Depois, já nada nos surpreenderá, nada. Eu já não me admiro de nada que eles façam...
      - Eu devo dizer - falou Alvina - que fiquei surpresa. Muito desagradavelmente.
      - Mas você o aceitou...
      - Eu faria tudo para acalmá-lo... como a uma criança histérica.
      - Mas eu não estou muito certa de que você não tenha usado um meio muito arriscado, dando-lhe o que ele desejava...
      - Acho - replicou Alvina - que posso cuidar de mim. Posso ser transferida de um dia para outro.
      - Bom...! - disse a enfermeira-chefe. - Ele pode evitar que a transfiram, bem sabe. Está na direção. E se ele disser que você é indispensável...
      Era uma idéia nova para Alvina. Contava com uma partida rápida. Pôs o anel no bolso do avental e ali o deixou ficar esquecido até que o médico a apanhou à tarde, em casa de uma das doentes. Esperava por ela, para levá-la.
      - Onde está o anel? - indagou ele.
      E ela lembrou-se de que o pusera no bolso de um avental sujo, que abandonara... talvez estivesse perdido para sempre.
      - Não o uso durante o serviço - disse ela. - Você sabe.
      Teve de ir tomar chá com ele. Evitava suas atitudes amorosas, ele dizia toda espécie de sentimentalismos, que a revoltavam. E ele era por demais solteirão para se habituar facilmente a maneiras afetuosas... antes de casar, pelo menos. Assim, ele de bom grado a deixou só; estava, para dizer tudo numa palavra, devotadamente grato por ela desejar que ele a deixasse só. Mas queria que ela ficasse ali. Era seu maior desejo. Queria que ela ficasse sempre ali. E assim ansiava pelo casamento: para possuí-la inteiramente e tê-la sempre ali com ele, de modo que nunca estivesse só. Só e separado de todo mundo; mas ao lado dela, sempre ao lado dela.
      - Bem, quando marcaremos o casamento? - perguntou ele.
- Não é preciso que o adiemos muito. Ambos sabemos o que estamos fazendo. E agora que se anunciou o noivado...
      Olhou para ela ansiosamente. Ela viu o rapazinho histérico por baixo do homem forte e autoritário.
      - Oh, não até o Natal! - disse ela.
      - Até o Natal! - Ele estremeceu como se lhe tivessem mordido. - É ridículo! É ridículo esperar tanto! No mês que vem, o mais tardar.
      - Oh, não - disse ela. - É cedo demais.
      - Por quê? Quanto mais cedo melhor. Você pedirá demissão imediatamente, a fim de ficar livre.
      - Oh, mas há alguma necessidade disso? Eu posso ser transferida para o serviço de guerra.
      - Não é provável. Você é apenas parteira...
      E assim os dias passaram. Tomava chá com ele praticamente todas as tardes e habituara-se a ele. Discutiam a mobília... ela não podia evitar sugerir algumas alterações,
alguns arranjos de acordo com suas idéias. E ele articulava um plano de viagem de núpcias pela Escócia. Todavia, ela estava inteiramente certa de que não se casaria com ele. A enfermeira-chefe ria daquela certeza.
      - Você chegará lá - dizia ela. - Ele a está atando com muitos fiozinhos.
      - Ah, bom, a senhora verá!
      - Sim - retrucava a enfermeira-chefe. - Eu verei.
      E era verdade que a vontade de Alvina estava indeterminada, naquela altura. Estava resolvida a não se casar com ele. Mas a vontade, como uma mola que estivesse
mal fixada, não se lançava diretamente contra o doutor. Pediria demissão, como ele sugerira. Não para poder
desposá-lo, mas sim para que tivesse liberdade para fugir dele. Assim ela falava a si própria. Contudo, estava ficando em suas mãos.
      Um dia, no final de setembro, ela estava sentada com o médico, no automóvel, próximo da estação, obstruída por um esquadrão de soldados em uniforme caqui que marchavam ao som desenfreado da banda, para embarcar num trem especial de tropas que chegara do norte. A cidade estava em grande excitação. A febre da guerra espalhara-se por toda parte. Os homens corriam a alistar-se... e eram constantemente recusados, porque ainda se estava no período reservado às classes regulares.
      Como a multidão se encapelasse nos passeios, como os soldados marchassem a passo para a estação, como o tráfego estivesse paralisado, havia certa corrente na direção oposta. Chegara o trem das quatro e quinze. As pessoas se empurravam com as bagagens, crianças corriam com pás e baldes, cupês se arrastavam cheios de famílias: era a gente que regressava da praia. Alvina observava as duas multidões que se misturavam.
      E enquanto olhava, viu dois homens, um deles trazendo uma caixa de bandolim e uma mala que ela conhecia. Era Cicio.
      Ela não conhecia o outro homem: algum ator. Os dois homens pararam quase junto do automóvel, para verem passar a banda. Alvina via Cicio muito perto dela. Teria gostado de lhe esguichar água pelo moreno, formoso e absorto pescoço abaixo. Sentiu que o odiava. Ele ali estava ouvindo a música, os lábios levantados na sua maneira italiana levemente trocista, falando ao outro homem. As pestanas dele eram tão compridas e escuras como sempre, os olhos tinham ainda o aspecto atraente de terem sido ali postos com um dedo sujo. Trazia o mesmo terno acastanhado, de que ela não gostava, o mesmo chapéu preto atirado de leve e airosamente para cima de um dos olhos. Tinha um aspecto comum; e, todavia, aquele peculiar ar distante de meridional que lhe dava certa beleza e distinção aos olhos dela. Sentiu que o odiava muito. Sentia que havia sido abandonada por ele.
      A banda passara. Uma criança correu contra a roda
do carro parado. Alvina repentinamente debruçou-se e deu
um grito alto, começando a tremer. Toda a gente olhou,
incluindo os soldados que marchavam carregados.
      - Não podemos seguir ainda - disse o Dr. Mitchell.
      Mas Alvina olhou para Cicio naquele momento. Ele
virara-se com os outros, olhando interrogativamente para
o automóvel. E seus olhos vivos, cuja parte branca se apresentava tão branca em confronto com a pele morena, suas pupilas amarelas tão inumanas encontraram as dela, num rápido relâmpago de reconhecimento. A boca começou a franzir-se num sorriso de cumprimento. Mas ela fixou-o sem mover um músculo, fixou-o em branco, abstraindo toda migalha de sentimento, mesmo de animosidade ou frieza, na sua contemplação. Viu-lhe morrer nos lábios o sorriso, os olhos dele viraram-se para um lado e para outro com aquela curiosa timidez animal que o caracterizava. Era como se Cicio não quisesse vê-la olhando para ele, e corresse de um lado para outro como uma doninha
engaiolada, evitando o olhar branco e glauco dela.
      Ela voltou-se, sorridente, para o Dr. Mitchell.
      - Que era que estava dizendo? - perguntou docemente.

      CAPÍTULO 12 - ALLAYE TAMBÉM ESTÁ NOIVA

      Alvina achava agradável ser respeitada como o era em Lancaster. Não é só o profeta que é honrado exceto na sua própria terra: mas qualquer pessoa que tenha individualidade.
Naquela cidade do norte, Alvina achava que sua individualidade realmente contava. Pertencia já à classe reverenciada da medicina. E, noiva como estava, era uma
personalidade, uma pessoa.
      Pois muito bem. Ela não ia rebaixar-se. Via que mesmo aos olhos dos nativos, da parte abastada, pelo menos, perdera um pouco de distinção quando ficara noiva do Dr. Mitchell. O noivado havia sido anunciado em The Times, The Morning Post, The Manchester Guardian e no News local. Tal publicidade lançara uma ligeira mancha de vulgar familiaridade sobre ela. Em Woodhouse, sabia-o, seria elevada no conceito geral tremendamente. Mas já não estava em Woodhouse. Estava em Lancaster. E em Lancaster o noivado fazia-a sentir-se uma pomba num pombal. Só, sem o Dr. Mitchell, tinha um mágico poder. Ligada a ele, era um produto conhecido, etiquetado.
      Compreendeu-o no seu contato com a melhor gente da terra. A enfermeira-chefe era mulher de boa família e tinha sempre maneiras distintas, com a sua touca grande, branca e folhada, como se fosse uma abadessa de outrora. As mulheres realmente distintas da terra vinham tomar chá na sala dela,
e estes chás no hospital eram como uma pequena e elegante conspiração feminina. Tinham sempre um brilhante sabor a salão literário e artístico. A enfermeira-chefe tinha conhecido Walter Pater, num passado um tanto remoto.
      Alvina era admitida naqueles chás com as poucas mulheres que formavam a melhor elite intelectual daquela cidade no norte. Havia uma certa maçonaria na sala da enfermeira-chefe.
Esta, a mulher de um médico, a filha de um pastor e as mulheres de dois magnatas industriais da terra, estas cinco e mais Alvina formavam o pequeno grupo. Não se reuniam muito fora do hospital. Mas juntavam-se sempre naquela curiosa maçonaria feminina que cria sua própria lei interna, mesmo entre as mulheres mais presas a convenções. Falavam dos homens como nunca falariam na presença deles ou na frente de mulheres estranhas ao grupo. Punham de lado todas as máscaras das convenções. Discutiam livremente seus pensamentos, mesmo os mais secretos, e conservavam a maior calma quanto às coisas que faziam, mesmo as mais impossíveis. Alvina sentia que a sua transgressão era um negócio pacífico.
      - E vai casar-se mesmo com ele? - perguntava Mrs. Tuke, num olhar longo e frio.
      - Nem posso imaginar... - dizia Alvina.
      - Oh, mas acontecem tantas coisas que a gente não imagina! É nisso que o nosso corpo nos vence. Não posso imaginar que vou ter um filho... - Baixou as pálpebras
enfadada e sardonicamente sobre os grandes olhos.
      Mrs. Tuke era a mulher do filho de um industrial local. Tinha cerca de vinte e oito anos, era pálida, com grandes olhos cinzento-escuros, nariz arqueado e cabelo preto, uma cabeça como as das admiráveis moedas de Siracusa. Um estranho ar de riso que não era riso, nos cantos da boca, o nariz arqueado, e a lentidão dos grandes, abundantes e clássicos olhos davam-lhe o perigoso aspecto grego das mulheres siracusanas do passado; das perigosas, altamente civilizadas mulheres da velha Sicília.
      - Mas acha que se pode ter um filho sem ao menos o desejar? - perguntou Alvina.
      - Oh, mas não há sequer um átomo em mim que o deseje, sequer um átomo. Minha carne não o deseja. E meu espírito também não... contudo, é assim mesmo! - Abriu as mãos finas, num gesto de inevitabilidade.
      - Há qualquer coisa que o deseja - disse Alvina.
      - Oh! - fez Mrs. Tuke. - O universo é uma grande máquina e nós somos apenas uma parte dela. - Adejou o lenço de seda cinzenta e esfregou o nariz, observando com seus olhos grandes e cinzento-escuros a face fresca de Alvina.
      - Não há um átomo em mim que esteja interessado em ter um filho - persistia ela para Alvina. - Minha carne não está interessada, e meu espírito também não. Não posso imaginar por que casei com Tommy. E contudo, casei! - Abanava a cabeça
como se aquilo estivesse para além dela, e o pseudo-riso nos cantos da boca sem idade acentuou-se.
      Alvina seria a enfermeira de Mrs. Tuke. O bebê era esperado para o fim de agosto. Mas estava-se já em meados
de setembro e a criança ainda não chegara.
      Os Tukes não eram muito ricos, isto é, os jovens Tukes. Tommy queria compor música, por isso vivia com o que o pai lhe dava. O pai dera-lhe uma pequena casa fora da cidade, mobiliada com peças caras de velhas mobílias, de uma maneira que as pessoas da cidade achavam maluca. Veja-se... Effie insistira em pregar um raro pedaço de brocado amarelo na parede, em vez de um quadro, e em pintar de cor verde-maçã prateleiras no nicho da parede branca da sala de jantar. Depois, esmaltara em amarelo a mobília do vestíbulo e decorara-a com curiosas linhas e flores verdes e cor de alfazema, e tinha almofadas horríveis e louças da Sardenha com inenarráveis grifos com bicos aguçados.
      Que se havia de fazer de uma mulher assim! Alvina
dormiu aqueles dias em casa dela em vez de no hospital. Porque Effie dormia muito mal. Sentava-se na cama, as duas trancas negras e luzidias pendentes junto das faces brancas
e vivas, enrolando frouxamente em volta dela o seu roupão
de uma espécie de seda grafite, cinzento-escura, com riscas de fina seda azul-metálica, e aí, marfim e negro e grafite;
sentava-se em roupa de baixo acenando o lenço e mostrando o bruxulear do vestuário noturno de seda azul-marinho e seda branca, lamentando-se dos seus nervos e do seu próprio e impossível estado, e pedindo a Alvina que ficasse junto dela outra meia hora, e bruscamente examinando a grande pedra vermelha que tinha no dedo, como se estivesse lendo qualquer coisa nela.
      - Serei como a mulher das Cent nouvelles e trarei cinco anos o meu filho. Conhece essa história? Ela dizia que comer uma folha de salsa a que estivessem grudados bocados de neve sobressaltava a criança dentro dela. Pode ser exatamente assim...
      Alvina ria e ficava cansada. Transparecia nela uma espécie de sanidade meio amarga e de nonchalance, que azedava aquela mulher nervosa.
      Uma noite em que estavam assim sentadas no quarto de dormir por volta das onze horas, elas estremeceram e prestaram atenção. Cães à distância começaram também a
uivar. Um bandolim estava gemendo o seu som lá fora na
noite, estremecendo rapidamente, delicadamente. Alvina fez-se pálida. Sabia que era Cicio. Tinha-o visto escondendo-se pelas ruas da cidade, mas não lhe falara.
      - O que é isso? - exclamou Mrs. Tuke, pondo a cabeça para o lado. - Música! Um bandolim! Que coisa extraordinária! Acha que será uma serenata? - E erguia as sobrancelhas
travessamente.
- Acho que sim - disse Alvina.
      - Que coisa extraordinária! Que momento escolheram para uma serenata a uma senhora! Não é assim que acontece na vida! Tenho de ver isso...
      Saiu do leito com alguma dificuldade, envolveu-se
no roupão, enfiou os pés nas pantufas e foi para a janela.
Abriu a vidraça. Era uma admirável noite enluarada de setembro. Embaixo, estendia-se o jardinzinho fronteiro, com a sua estradinha e as grades de ferro que se fechavam sobre a estrada. Da sombra da estrada vinha o som do bandolim.
      - Ei, Tommy! - gritou Mrs. Tuke ao marido, que ela viu na estradinha embaixo. - Que lhe parece este concerto?
      - Está bem. Não a incomoda? - ergueu-se a voz do homem, de algum lugar embaixo.
      - Não me incomoda nem um pouco. Até gosto. Estou à espera de que cantem "O Richard, o mon roi!..."
      Mas a música parará.
      - Aí está! - exclamou Mrs. Tuke. - Assustou-o! E nós estamos doidas para ouvir uma serenata, não é verdade, Alvina? - Voltara-se para a enfermeira. - Quer dar-me o meu agasalho, sim? Muito obrigada. Por que não abre a outra janela para ver também?
      Alvina foi para a outra janela. Ficou olhando para fora.
      - Toque mais! - Mrs. Tuke gritou na noite. - Cante qualquer coisa. - E com o braço chegou a uma rosa que pendia ao luar, da parede, e com um movimento rápido do braço lançou-a para além do muro do jardim, inutilmente, com certeza.
      - Não toca mais? - gritou ela na noite, para o invisível. - Tommy, venha para dentro, a ave não cantará enquanto você andar por aí.
      - Pela voz é um italiano. Não há nada que eu deteste mais do que a música italiana emotiva. Perfeitamente nauseante.
      - Não faça caso, querido. Bem sei que parece que tudo o que têm lá dentro sai pela boca. Mas nós estamos doidas por uma serenata, não é verdade, Miss Houghton?
      Alvina continuava à janela, mas não respondeu.
      - Hã? - expeliu a extravagante voz de dúvida de Mrs. Tuke. - Não gosta?
      - Sim - disse Alvina. - Gosto muito.
      - E não está doida para ouvi-lo cantar?
      - Decerto.
      - Aí tem! - exclamou Mrs. Tuke, ao luar.
      - Venha para dentro, Tommy! Ele não vai cantar enquanto você estiver aí. Nada cantará com você aí - exclamou a jovem mulher.
      Ouviram-se passos na areia e depois o bater da porta de entrada.
      - Agora! - exclamou Mrs. Tuke.
      Esperaram. E então subiu o fino tinido do bandolim e, depois de alguns momentos, o canto. Era uma das mais conhecidas canções napolitanas, e Cicio cantava-a como
devia ser cantada.
      Mrs. Tuke foi para junto de Alvina.
      - Não acha que ele põe as entranhas naquilo? - perguntou ela, descansando a mão sobre a face e rolando os olhos, com ar de mofa.
      Depois, voltou para a sua própria janela, ajeitou os agasalhos no peito e pousou os cotovelos brancos ao luar.
      A canção terminou bruscamente, numa espécie clamorosa e animal de apelo. Mrs. Tuke estava inteiramente imóvel, descansando o queixo sobre os dedos. Alvina estava também imóvel. Então, Mrs. Tuke vagarosamente apanhou uns botões de rosa na velha parede.
      - Molta bella! - gritou ela, meio irônica. - E atirou as rosas para fora. Viu-se o vulto de um homem rondando fora das
grades, na estrada. - Entrez! - convidou Mrs. Tuke. - Entrez! Prenez votre rose. Entre e apanhe a rosa.
      A voz do homem disse qualquer coisa à distância.
      - Quê? - gritou Mrs. Tuke.
      - Quoi faire, alors! Alvina, leve-lhe a rosa à grade, quer? Vá lá, leve! O cantar deles é horrível, acho eu. Eu não posso ir lá embaixo. Mas leve-lhe as rosas, e veja o aspecto dele. Vá lá! - Os olhos de Mrs. Tuke estavam inquietos e excitados. Alvina olhou para ela vagarosamente. Alvina estava também sorrindo para si própria.
      Desceu as escadas lentamente e saiu pela porta da frente. De um arbusto ao lado tirou as duas rosas perfumadas. Depois, na estradinha, colheu flores. Cicio estava parado fora das grades.
      - Allaye! - disse ele, num tom doce e suplicante.
      - Mrs. Tuke manda estas rosas - disse Alvina, passando as flores através das barras da grade.
      - Allaye! - disse ele, acariciando-lhe a mão e
beijando-a com um meigo, apaixonado e suplicante jeito da boca. Alvina estremeceu. Subitamente, ele abriu o portão
e atraiu-a para si. Atraiu-a para a sombra da parede e passou os braços em volta dela, erguendo-a no ar num apaixonado desejo.
      - Allaye! - disse ele. - Amo-a, Allaye! - Apertou-a fortemente contra o peito e começou a afastar-se com ela.
Seu poder muscular e arrebatador parecia envolvê-la completamente. Levou-a embora para a estrada, unido fortemente a ela, envolvendo-a.
      - Enfermeira! Enfermeira! Eu não a vejo! Enfermeira...
- Era o longo apelo de Mrs. Tuke através da noite. Os cães começaram a ladrar.
      - Ponha-me no chão - murmurou Alvina. - Deixe-me, Cicio.
      - Venha comigo para a Itália. Venha comigo para a Itália, Allaye. Não quero ir para a Itália sozinho. Venha, para casar-se comigo... Allaye...
      Sua voz era um estranho e rouco murmúrio, bem por cima da face dela, e ele continuava segurando-a num abraço palpitante e pesado.
      - Sim... sim! - murmurou ela. - Sim... sim! Mas
solte-me, Cicio, solte-me.
      - Venha para a Itália comigo, Allaye. Venha comigo
- tornava ele ainda, numa voz enrouquecida pela dor e pela súplica.
      - Enfermeira! Enfermeira! Onde é que está? Enfermeira! Preciso de você - gritava a voz inquieta e queixosa de Mrs. Tuke.
      - Tem de soltar-me! - murmurava Alvina, sacudindo-se nos braços dele.
      Ele vagarosamente afrouxou seu abraço e ela deslizou como chuva para a terra. Mas ele estava ainda abraçado a ela.
      - Venha comigo, Allaye! Venha comigo para a Itália!
- dizia ele.
      Ela viu a face dele, bela, não-humana, ao luar, e estremeceu ligeiramente.
      - Sim! - disse ela. - Eu vou. Mas agora deixe-me. Onde está seu bandolim?
      Ele voltou-se e olhou para a rua.
      - Enfermeira! É absolutamente necessário que venha. Já não posso mais - gritou a voz estranha de Mrs. Tuke.
      Alvina escapou-se do homem, que estava um pouco desnorteado, e, pelo portão, entrou no jardim.
      - É preciso que venha! - voltou a voz de dor, da janela em cima.
      Alvina subiu as escadas correndo. Encontrou Mrs. Tuke descaída numa cadeira, com uma cara repuxada, horrorizada e terrificada. Como as dores apertassem repentinamente, ela proferiu uma exclamação, e premiu os punhos cerrados firmemente sobre o rosto.
      - Começaram as dores - disse Alvina, correndo para ela.
      - Oh, é horrível! É horrível! Eu não quero! - gritava a parturiente. Alvina confortava-a e tranqüilizava-a o melhor que podia. E de fora, uma vez mais, veio o gemido desesperante da canção napolitana, animal e inumano sobre a noite.
      Era quase intolerável. Mas repentinamente Mrs. Tuke ficou inteiramente calma e sentou-se com os punhos cerrados
sobre os joelhos, as duas trancas negro-azeviche pendendo de cada lado da sua face de marfim, os grandes olhos fixos, fitando o espaço. No verso... começou a murmurar lentamente para si própria:
      - Sim, é terrível! É horrível! Não compreendo isso. Que quer dizer isso, esse som? É tão mau como as dores. Que quer dizer? Que diz ele? Eu compreendo um pouco o italiano...
- Fez uma pausa. E de novo voltou subitamente o queixume:
      - Ma nun me lasciar...! - murmurava ela, repetindo a música. - Isso quer dizer... Não me deixes! Não me deixes! Mas por quê? Por que é que um ser humano se separa de outro? Que quer dizer isso? Que ruído horrível! Não é o amor a coisa mais horrível? Eu acho que é horrível. Faz de uma pessoa uma espécie de animal que uiva. Eu uivo com uma espécie de dor, ele uiva com outra. Dois animais infernais através da noite! Eu não sou eu própria, ele não é ele próprio. Oh, acho que é horrível. Que aspecto tem ele, Alvina? É bonito? Ou é um bruto qualquer?
      Olhava para Alvina com grandes, lentos e enigmáticos olhos.
      - É um homem que eu já conhecia - disse Alvina. A face de Mrs. Tuke despertou do seu meio êxtase.
      - Ah, sim? Oh! Um homem que você já conhecia! Onde o conheceu?
      - É uma longa história - disse Alvina. - Num grupo de atores ambulantes.
      - Num grupo de atores ambulantes! Que extraordinário! E como é que você veio a encontrar um tal homem?
      Alvina explicou o mais rapidamente possível. Mrs. Tuke observava-a.
      - O quê? - dizia ela. - Você fez isso tudo? - E perscrutava a face de Alvina. - Você tem influência sobre ele, é evidente - falou ela. Depois, estremeceu e limpou
o nariz com o lenço. - Oh, a carne é uma coisa nojenta!
- exclamou. - Fazer um homem uivar assim só porque você está aqui. E fazer-me uivar a mim porque estou com um filho aqui dentro. É insuportável! Mas que aspecto tem ele, afinal?
      - Não sei - disse Alvina. - Nada de extraordinário.
Um pouco abrutalhado...
      Mrs. Tuke relanceou o olhar para ela, para descobrir a ironia.
      - Eu gostaria de vê-lo - disse ela. - Acha que posso?
      - Não sei - respondeu Alvina, sem querer comprometer-se.
      - Acha que ele pode vir aqui em cima? Chame-o. Deixe-me vê-lo.
      - Mas quer vê-lo realmente? - indagou Alvina.
      - Com certeza... - Mrs. Tuke observava-a com grandes, sombrios e lentos olhos. Depois, arrastou-se para se pôr em pé. Alvina ajudou-a a deitar-se na cama.
      - Peça-lhe que venha por um minuto - disse Effie.
- Dar-lhe-ei um cálice do famoso vinho do Porto de Tommy. Deixe-me vê-lo. Sim, vá lá! - Estendeu o longo braço para Alvina, numa súbita súplica.
      Alvina riu e saiu, cheia de dúvida. A noite, lá fora, estava silenciosa. Mas ela foi encontrar Cicio encostado a
um pilar da grade. Ele teve um sobressalto.
      - Allaye! - disse ele.
      - Quer entrar um momento? Eu não posso deixar Mrs. Tuke.
Cicio, obedientemente, seguiu Alvina para dentro de casa e pelas escadas acima, sem uma palavra. Foi introduzido no quarto de dormir. Recuou quando viu Effie sentada na cama, de longas tranças e olhos mortiços, e com um sutil ar de sorriso nos cantos da boca.
      - Entre! - disse ela. - Quis agradecer-lhe a sua música. A enfermeira diz que era para ela, mas eu a apreciei, também. É capaz de me dizer a letra? Acho que é uma canção maravilhosa.
      Cicio apoiava-se à porta, a cabeça pendida e um sorriso acanhado, desconfiado e ligeiramente malicioso na face.
      - Tome um cálice de porto! - falou Effie. - Alvina, dê um cálice a cada um de nós. Gostaria de um para mim, também. E um bolo. - De novo ela estendeu o longo braço de sob o forro azul do agasalho, repentinamente, como se tomada pelo desejo. Cicio desviou os pés, observando Alvina servir o vinho.
      Engoliu o seu num trago, e pousou o copo.
      - Beba mais! - disse Effie, observando-o por cima do seu copo.
      Ele sorriu leve e estupidamente, e abanou a cabeça.
      - Não quer mais? Então diga-me a letra da canção...
Ele olhou para ela de dentro das sombrias cavidades das sobrancelhas e não respondeu. O leve, estúpido meio sorriso de escárnio continuava-lhe nos lábios.
      - Não quer dizer-me? Eu entendi um verso... Cicio sorriu mais pronunciadamente ao observá-la, mas não falou.
      - Entendi um verso - dizia Effie, abrindo os olhos para ele. - Ma non me lasciare... Não me deixes! É assim, não é?
Ele sorriu mexendo os pés, e abanou a cabeça.
      - Não me deixes! É isso, eu sabia que era assim. Por que não quer que a enfermeira o deixe? Quer que ela esteja com você a todo momento?
      Ele sorriu um pouco desdenhosamente, grosseiramente, e voltou o rosto para o lado, olhando de relance Alvina. Os olhos perscrutadores de Effie surpreenderam o relance.
Fora rápido e cheio do terrível apelo que a horrorizava.
      No mesmo momento, um espasmo cruzou-lhe a face, a expressão tornou-se-lhe pálida.
      - Vamos embora? - disse Alvina a Cicio.
      Ele virou-se imediatamente, de boné na mão, e a seguiu. No vestíbulo apurou os ouvidos, enquanto tirava o bandolim da caixa. Ouviu os gritos sufocados e as exclamações de Mrs. Tuke. No mesmo momento, a porta do escritório abriu-se e o compositor, um rapagão corpulento, de cabelos desalinhados, saiu.
      - É Mrs. Tuke? - atirou ele ansiosamente.
      - É. Começaram as dores - disse Alvina.
      - Oh, meu Deus! E você deixou-a! - Estava irascível.
      - Apenas por um minuto - falou Alvina.
      Mas com um Pf! de colérica indignação ele começara a subir as escadas.
      - Ela vai ter um filho - disse Alvina a Cicio. - Tenho de voltar para junto dela. - E estendeu-lhe a mão.
      Ele não lhe deu a mão; olhou-a na face com o mesmo olhar ligeiramente distorcido de súplica opressiva, súplica pesada e insuportável, na qual ele era carregado para ela como numa enchente.
      - Allaye! - exclamou ele, com o lábio um pouco erguido, mostrando os dentes como um animal ferido; uma curiosa espécie de sorriso. Não podia ir embora.
      - Tenho de voltar para junto dela - disse Alvina.
      - Vem comigo para a Itália, Allaye?
      - Vou. Onde está Madame?
      - Foi-se! Gigi... todos se foram.
      - Foi para onde?
      - Voltou para a França... chamado.
      - E Madame e Louis e Max?
      - Para a Suíça.
      Ficara desamparadamente olhando para ela.
      - Bem, tenho de ir - falou ela.
      O rapaz olhava-a com seus olhos amarelos, de sob as longas pestanas negras, como um animal preso, perseguido pelo destino. Ela voltou-se e deixou-o ali.
      Foi encontrar Mrs. Tuke agarrando ferozmente a borda dos lençóis e gritando:
      - Não, Tommy. Sou muito sua amiga, bem sabe. Mas vá embora. Oh, meu Deus, vá embora. Vá para longe de mim. Vá para longe! - Ela quase gritava.
      Ele deu um puxão no cabelo. Estivera trabalhando num grande coral que andava compondo, e nesta altura estava quase enlouquecido.
      - Não pode suportar a minha presença! - gritou, atirando-se pelas escadas.
      - Enfermeira! - exclamou Effie. - Não adianta tentar agarrar a vida. Estamos à mercê das Forças - gritava ela colericamente.
      - Por quê? - disse Alvina. - Há as forças boas da vida. Mesmo a vontade de Deus é uma força da vida.
      - Você não compreende! Eu quero ser eu própria. E eu não sou eu própria. Estou despedaçada pelas Forças. É horrível...
      - Está bem, mas eu não tenho culpa. Não fiz o universo
- disse Alvina. - Se a senhora tem de ser despedaçada pelas forças, está bem. Outras forças a reconstituirão de novo.
      - Não quero. Quero ser eu própria. Não quero ser pregada como uma cadeira, com um martelo. Quero ser eu mesma.
      - A senhora não será pregada como uma cadeira. Deve ter fé na vida.
      - Mas eu odeio a vida. Não passa de uma massa de forças. Eu sou inteligente. A vida não é inteligente. Olhe para ela neste momento: chama a isto inteligente? Oh... Oh! É incrível! Oh! - Estava feroz e suando com as dores. Tommy agitava-se lá embaixo, fora de si. Ouvia-se que falava com alguém lá fora, ao luar. Com Cicio. Tinha já telefonado iradamente para o médico. Mas o médico replicara que a enfermeira o chamaria.
      Logo que Mrs. Tuke recobrou alento, começou de novo.
      - Odeio a vida e a fé e todas as coisas. A fé não passa de medo. E a vida é uma massa de forças ininteligentes a que os seres inteligentes estão submetidos. Prostituídos. Oh... Oh!... Prostituídos...
      - Talvez a vida seja qualquer coisa de maior que a inteligência - disse Alvina.
      - Maior do que a inteligência! - gritava Effie. - Nada é maior do que a inteligência. O seu homem é um brutamontes. Os olhos amarelos dele não são inteligentes. São animais...
      - Não - disse Alvina. - Qualquer coisa diferente. Gostaria que eles não me atraíssem...
      - Aí tem! Porque você não gosta de estar à mercê das Forças - exclamou Effie. - Eu não gosto. Eu não gosto. Quero ser eu própria. E as forças separaram-me em pedaços! Separaram-me em peda... Oh-h-h! Não!
      Embaixo, Tommy fizera Cicio entrar de novo e os dois homens bebiam vinho do Porto no escritório, discutindo
sobre a Itália, pela qual Tommy tinha uma grande afeição sentimental, apesar de odiar toda a música após o último Scarlatti. Beberam vinho do Porto toda a noite, visto Tommy estar estritamente proibido de intervir no andar de cima ou mesmo de ir à procura do médico. Beberam três garrafas e meia de vinho do Porto e foram descobertos de manhã por Alvina, dormindo profundamente no escritório, com a luz elétrica ainda acesa. Tommy dormia com a bela e despenteada cabeça sobre a borda do canapé, com um fruto caído. Cicio estava no chão, com o rosto para baixo e apoiado nos braços dobrados.
      Alvina teve grande dificuldade em acordar o inerte Cicio. Por fim, teve de deixá-lo e de despertar Tommy primeiro; o qual, despertando, caiu do canapé com um estrondo
que o acordou desagradavelmente. Desse modo, voltou-se para Alvina, zangado, e perguntou-lhe que diabo é que ela estava fazendo. Em resposta a isso, Alvina levantou um dedo de admoestação, e Tommy, lembrando-se repentinamente, retrocedeu como se lhe tivessem batido.
      - Ela está dormindo agora - disse Alvina.
      - É menino ou menina? - perguntou ele.
      - Ainda não nasceu - disse ela.
      - Oh, meu Deus, é uma fuga maldita! - gritou o estupefato Tommy. Após o quê se puseram a acordar Cicio,
que era como a boneca morta de Petruchka, mole e descaída.
Quando acordou, todavia, sorriu para Alvina e disse:
      - Allaye!
      O sorriso moreno, mal desperto, aborreceu-a profundamente.

      CAPÍTULO 13 - A MULHER CASADA

      O remate de tudo isso foi que Alvina fugiu para Scarborough sem dizer nada a ninguém. Era na primeira semana de outubro. Pediu um fim de semana, para tratar de coisas
para o seu casamento. O casamento era, ao que se presumia, com o Dr. Mitchell, apesar de ela não lhe ter dado resposta definitiva. Contudo, passara-se o mês de aviso prévio e assim ela estava legalmente livre. E por conseguinte preparou uma grande mala com todas as suas coisas e vestiu a roupa de todos os dias, deixando o uniforme de enfermeira para trás.
      Conhecia muito bem Scarborough; e com toda a rapidez encontrou os quartos que ocupara antes, numa pensão onde estivera há muito tempo com Miss Frost. Depois de se refazer da viagem, foi até os rochedos no lado norte. Era noite, e o mar estava à sua frente. Que devia fazer?
      Tinha fugido de ambos os homens, tanto de Cicio como de Mitchell. Passara a última quinzena mais ou menos evitando
os dois. Agora tinha um momento só para si. Estava livre, mesmo de Mrs. Tuke, que a seu modo era mais exigente do que os homens. Mrs. Tuke tivera uma filha e passava bem. Cicio ficara vivendo com os Tukes. Tommy simpatizara com ele e contratara-o como uma espécie de criado pessoal: o tipo de coisa que Tommy faria, sem ter sequer pago a conta do açougue.
      Alvina sentara-se nos rochedos sentindo-se exasperada. Estava farta de ser atormentada. Na realidade, não queria casar-se com ninguém. Por que haveria de casar? Estava infinitamente agradecida por se encontrar só consigo mesma. Como estava fatigada das outras pessoas e das suas impertinências! Que devia fazer? Decidira oferecer-se de novo, dentro de pouco tempo, para o serviço de guerra... noutra cidade, desta vez. Nesse meio tempo, queria estar sozinha.
      Fez excursões, passeou pelos campos, nos breves mas adoráveis dias dos princípios de outubro. Durante três dias tudo foi doce e adorável... perfeita liberdade, pura, quase paradisíaca.
      No quarto dia, choveu; choveu todo o dia, e estava frio, triste, desanimador para além de qualquer expressão. Ficou ali sentada, encalhada na tristeza, sem sair de casa. Foi para a cama às nove horas, tendo decidido, de repente, ir para Londres e arranjar trabalho nos hospitais de guerra imediatamente: não pararia até o conseguir.
      Mas de noite sonhou que Alexander, o seu primeiro namorado, estava com ela, no cais de um porto qualquer, e
a repreendia amargamente, injuriando-a mesmo, por ter
chegado demasiado tarde, a ponto de terem perdido o barco. Deviam apanhar o barco, e ela, por negligência, chegara uma hora atrasada, podendo ver a larga popa do navio não muito distante. Apenas uma hora mais tarde. Mostrara a Alexander o seu relógio... exatamente dez horas, em vez de nove. E ele ficara mais cheio de cólera do que nunca, porque o relógio dela estava atrasado. Apontou para o relógio do porto... eram dez horas e dez minutos.
      Quando acordou estava pensando em Alexander. Há muito tempo que não pensava nele. A si mesma, perguntava se ele tinha o direito de estar zangado com ela.
      O dia estava ainda cinzento, com nuvens de chuva varridas sobre o mar... horrendas, repulsivas. Era um prolongamento do dia anterior. Bem, o desespero não valia
nada e ser infeliz não valia nada tampouco. Não se sentiria satisfeita em qualquer dos casos. A única coisa a fazer era agir: agarrar bem a vida e torcer-lhe o pescoço.
      Tirou o quadro de horários que pendia da parede; o quadro de horários, o tapete mágico dos dias de hoje. Quando em dúvida, parta! Era o axioma. Partir. Para onde?
      Outra resolução súbita. Telegrafaria a Cicio e iria ter com ele... onde? York... Leeds... Halifax? Levantou os olhos para os lugares marcados no quadro de horários e decidiu-se por Leeds. Redigiu um telegrama dizendo que estaria em Leeds naquela noite. Recebê-lo-ia a tempo? Tentaria.
      Saiu correndo e mandou o telegrama. Depois, pegou uma mala pequena, disse às pessoas da casa que voltaria no dia seguinte e partiu. Não gostava de precipitar-se em direção
a Lancaster. Mas não tinha importância.
      Esperou muito tempo pela chegada do trem do norte. A primeira pessoa que viu foi Tommy. Este acenou-lhe com a mão e saltou do trem em marcha.
      - Então! - disse ele. - Muito prazer em vê-la. Cicio está comigo. Effie insistiu para que eu viesse vê-la.
      Cicio desceu com a mala. Uma espécie de criado! Era demais para ela.
      - Vem então com seu criado? - disse ela, enquanto Cicio se conservava com a mala.
      - De modo nenhum - disse Tommy, pondo a mão no ombro do outro homem. - Somos os melhores dos amigos. Eu não carrego malas porque meu coração anda fraco. Olhe, desculpe-me,
mas gosto mais de você com uniforme. O preto não lhe fica bem. Não se importa com isso?
      - Sim, importo-me. Mas, fora o uniforme, só tenho vestidos pretos.
      - Está bem. Vai a algum lugar esta noite?
      - É muito tarde.
      - Bem, vamos para o hotel e falaremos. Eu estou agindo sob as ordens de Effie, como pode concluir...
      No hotel, Tommy deu-lhe uma carta da mulher, toda no
tom de "...não case com esse italiano, ele a meterá num buraco miserável e ninguém gosta de ser metido num buraco.
Eu sei...", concluía Effie, em tom sinistro.
      Tommy cantou outra ária. Cicio era um companheiro adorável, um companheiro admirável, um prazer. Ele, Tommy, compreendia muito bem que toda mulher quisesse casar-se
com ele... não concordava nada com Effie. Mas o casamento, sabe, é tão definitivo... E depois, com esta guerra, nunca se sabe como as coisas caminharão; um estrangeiro, e tudo isso. E depois... não leva a mal o que eu vou dizer? Não falaremos de classes sociais e dessas tolices. Se o homem é suficientemente bom, é suficientemente bom por si próprio. Mas é ele intelectualmente seu igual? No fim das contas, isso é que é o importante. Você não há de querer casar-se com um homem com quem não possa conversar. Com Cicio, é um prazer estar com ele porque ele é muito natural. Mas isso não é um prazer mental.
      Alvina pensava em Mrs. Tuke, que se lamentava de que Tommy falasse de música e de pseudofilosofia durante horas, quando estava com corda. Via o longo braço estendido, de repúdio e de fadiga, de Effie.
      "Certo!" Era outra das exclamações de Mr. Tuke. "Por que não ser atávica se se pode sê-lo, e seguir um homem passo a passo apenas porque ele é um homem? Ser como as mulheres bárbaras, uma escrava."
      Durante tudo isso, Cicio estivera fora da sala, como
que mandado. Foi apenas quando Alvina se sentou em frente ao espelho que ele abriu a porta suavemente e entrou.
      - Estou aqui - disse ele, e fechou a porta.
      Alvina ficara com a escova do cabelo suspensa, observando-o. Ele foi para junto dela, sorrindo ligeiramente, para a tomar nos braços. Mas ela pôs a cadeira entre eles.
      - Por que é que trouxe Mr. Tuke? - disse ela. Ele levantou os ombros.
      - Eu não o trouxe - disse, observando-a.
      - Por que lhe mostrou o telegrama?
      - Foi Mrs. Tuke que o tomou.
      - Por que você lhe deu?
      - Foi ela que me deu, no quarto dela. Guardou-o no quarto até eu ir lá buscá-lo.
      - Está bem - falou Alvina. - Volte para os Tukes. - E começou de novo a escovar o cabelo.
      Cicio observou-a, estreitando os olhos.
      - Que é que quer dizer? Não vou, Allaye. Você vem comigo.
      - Ah! - fungou ela desdenhosamente. - Eu vou para onde quiser.
      Mas, vagarosamente, ele abanou a cabeça.
      - Você vem, Allaye - disse ele. - Você vem comigo, com Cicio.
      Ela estremeceu àquela meiga e lamentosa súplica.
      - Como é que eu posso ir com você? Como é que eu posso confiar em você?
      De novo, ele abanou a cabeça. Seus olhos tinham um curioso fogo amarelo, suplicante, lamentoso, com o seu quê
de demoníaco, de suplicante coação.
      - Sim, venha comigo, Allaye. Venha comigo, para a Itália. Você não irá para o outro. É muito velho e não
tem saúde. Venha comigo para a Itália. Por que mandou o telegrama?
      Alvina sentou-se e cobriu o rosto, tremendo.
      - Não posso! Não posso! Não posso! - gemeu. - Não posso fazer isso.
      - Sim, venha comigo. Tenho dinheiro. Venha comigo para minha terra nas montanhas, para a casa de meu tio. Uma linda casa, você vai gostar. Venha comigo, Allaye.
      Ela não podia olhar para ele.
      - Por que é que me quer?
      - Por que é que quero você? - Riu de uma maneira curiosa, quase ridícula. - Não sei. Pergunte-me outra coisa, sim?
      Ela estava silenciosa, sentada e olhando para o chão.
      - Não posso, acho que não posso - falou ela abstratamente, olhando para ele.
      Ele sorria, um belo, sutil sorriso, como de um demônio, mas inexpressivamente tranqüilo. Fê-la estremecer como se estivesse magnetizada. Ele estava acossando-a como uma serpente acossa, e ela não podia recuar.
      - Venha, Allaye - disse ele suavemente, na sua pronúncia estrangeira. - Venha. Venha para a Itália comigo. Sim? - Pôs a mão sobre ela, e ela estremeceu como se lhe tivessem batido. Mas as mãos dele, com o suave e poderoso toque, a abraçaram rapidamente.
      - Sim? - insistiu ele. - Sim? Está bem, ha? Está bem!
- Ele tinha um estranho poder mágico sobre ela, como se possuísse os segredos sensuais, e ela estava prestes a ser submetida.
      - Não posso - gemeu ela, tentando lutar. Mas estava inerme.
      Enigmático e insidioso, eis o que ele era; não tinha nenhuma consideração por ela. Como podiam os gestos do
homem ser tão doces e brandos e contudo mostrar-se ele tão inumanamente indiferente! Não tinha nenhuma consideração por ela. Por que não se revoltava? Por que não podia revoltar-se? Estava como que enfeitiçada. Não podia combater o seu enfeitiçamento. Por quê? Porque ele lhe parecia belo, muito belo. E isso a deixava entorpecida, submissa. Por que tinha de vê-lo assim belo? Por que estava tão sem vontade?
Sentia-se como uma das antigas prostitutas sagradas; uma prostituta sagrada.
      De manhã, muito cedo, partiram para Scarborough, deixando uma carta para o adormecido Tommy. Em Scarborough foram ao registro civil: podiam casar-se dentro de quinze
dias. E os quinze dias passaram e ela estava sob o feitiço dele. Somente ela o sabia. Sentia-se amortecida. Cicio falava-lhe apenas de coisas vulgares. Não havia a maravilhosa intimidade de conversar, tal como ela havia sempre imaginado, e por que ela ansiara sempre. Não. Ele a amava... mas era de um modo sombrio, mágico, que não a deixava ser ela própria. O amor dele nem a estimulava nem a excitava. Amortecia-a. Tinha de ser a mulher quieta e obscura; sentia-se como se estivesse oculta por um véu. Seus pensamentos eram confusos, vinham de confusas regiões negras da consciência... contudo, algures,
ela quase exultava. Atavismo! A palavra de Mrs. Tuke
bailava-lhe na mente. Era atavismo aquele aniquilamento sob
o enfeitiçamento de Cicio? Era atavismo a estranha e como
que adormecida submissão ao ser de Cicio? Talvez fosse. Talvez fosse. Mas era também algo pesado, doce e rico. Em algum lugar, ela estava contente. Em algum lugar, estava imensamente orgulhosa da sombria e velada solidão eterna que sentia, sob a sombra dele.
      E assim tinha de ser. Estremeceu quando o tocou, porque ele era muito belo e ela estava submetida. Palpitava quando ele se movia, como se fosse a sombra dele. Contudo, o seu espírito permanecia distintamente lúcido. Podia criticá-lo, repreendê-lo nas coisas que ele fazia. Mas, no fim das contas, não podia repreendê-lo. Perdera o poder. Não se importava. Perdera o poder de se importar com as falhas dele. Estranha, doce, venenosa indiferença! Estava narcotizada. E sabia-o. Poderia ela um dia despertar da sua sombria e ardente coma? Estremecia e esperava que não. Mrs. Tuke diria que era atavismo. Atavismo! A palavra voltava-lhe à mente, curiosamente.
      Mas, apesar de tais pensamentos, sentia-se bem; um deixar correr profundo como o sono, uma passividade e indiferença tão sombria e doce que ela sentia dever ser
um mal. Mal! Estava mal. E contudo não tinha forças para estar de outra maneira. Estavam legalmente casados. E ela estava contente. Sentia-se aliviada por saber que não podia escapar. Era Mrs. Marasca. Por que tentar ser ainda Miss Houghton? Marasca, cereja amarga. Um fruto venenoso que tinha comido. Tão feliz estava por tê-lo comido! Tão belo que ele era! E ninguém o via, senão ela própria. Para ela isso era muito poderoso e fazia-a tremer quando reparava nele. A beleza dele, a sua sombra escura! Na realidade, Cicio estava muito mais belo desde que se casara. Parecia desabrochar. Antes, parecia que se tornava invisível nas ruas, na Inglaterra pelo menos. Mas agora qualquer coisa se abria nele, era uma poderosa, encantadora presença, as pessoas voltavam-se para vê-lo. Havia certa sombria altivez, como
de um leopardo, no ar em redor dele, qualquer coisa em que o povo inglês reparava.
      Ele queria ir para a Itália. E agora era a vontade dele que contava. Alvina, como sua mulher, tinha de submeter-se.
Levou-a para Londres no dia seguinte ao casamento. Queria partir para a Itália. Não gostava de estar na Inglaterra, um estrangeiro no meio da loucura nascente da espionagem.
      Em Londres, ficaram em casa do primo dele. O primo conservara o restaurante em Battersea e era um italiano florescente de Londres, um real produto de Londres, com
todas as boas virtudes inglesas de asseio e honestidade somadas à astúcia italiana. Chamava-se Giuseppe Califano,
era pálido e tinha quatro filhos de quem tinha o maior orgulho. Recebeu Alvina com afável respeito, como se ela fosse um bem de família mas como se estivesse um tanto incomodado e desaprovativo. Alvina descera ao ter desposado Cicio. Perdera a sua casta. Ele parecia antes exultar com a degradação dela. Porque era um italiano afeiçoado às coisas setentrionais, aceitava os padrões ingleses. Seus filhos eram ingleses. Quase protegia Alvina.
      Mas um longo e lento olhar dos remotos olhos azuis dela tornaram-no ardente, e repentinamente invejou Cicio, quase estava ele próprio enamorado dela. Ela perturbava-o no seu novo maneirismo de restaurateur em Londres, e perturbava-o na sombria alma de velho italiano que ele renegara. Tentava tratá-la como a uma dama inglesa. Mas o lento e remoto olhar dos olhos dela fazia isso cair por terra. Tinha de ser italiano.
      E tinha ciúmes de Cicio. Na face de Cicio havia um sorriso enleado e em redor do nariz bem talhado aparecia um sutil e meio desdenhoso triunfo. No fim das contas triunfara sobre o primo, abastado e inglesado, com reservada altivez. Com reservada altivez, como que de leopardo, Cicio andava pelas ruas de Londres naqueles dias tempestuosos da guerra. Ele era o único vencedor, atirando furtivamente setas sobre o norte subjugado.
      Alvina nada via de todas essas complexidades. Por enquanto, toda ela era sombra e poder. As coisas eram curiosas para ela. Era curioso estar em Battersea, naquela
pensão anglo-italiana, onde as crianças falavam inglês mais desembaraçadamente do que italiano. Era estranho estar em cima, no restaurante, ver as árvores do parque, ouvir o
ruído estridente dos trens. Era estranho passear e ir até o rio. Era estranho sentir a agitação da guerra e o medo no
ar. Mas ela não fazia perguntas. Parecia embebida na influência passional do homem, como num narcótico. Esquecera mesmo o atavismo de Mrs. Tuke. Indeterminada e sem fazer perguntas, ia passando os dias, acompanhava Cicio pela cidade, ia com ele fazer compras, ou sentava-se a seu lado no music hall, ou ficava no quarto cosendo, ou sentava-se para comer com os Califanos, um vago brilho na face. E Mrs. Califano era muito amável com ela, muito gentil, embora com uma suspeita de malicioso triunfo, de escárnio, sob aquela gentileza. Contudo era muito amável e feminina, hesitando entre a sua emancipação inglesa e a sua subordinação italiana. Apiedava-se, pela metade, de Alvina e estava, mais do que metade, ciumento dela.
      Alvina não sabia de nada... a não ser da presença de Cicio. Era a presença física dele que atirava o feitiço sobre ela. Ela, vivia dentro da aura dele. E submetia-se-lhe como se sobre ela o italiano tivesse estendido sua sombria natureza. Nada sabia dele. Vivia descuidadamente dentro da presença dele, palpitando dentro da influência dele, como se o seu sangue batesse nela. Sabia que estava submetida. Uma parte dela sabia-o e observava.
      Ele era muito feliz e no seu rosto havia uma real beleza. Os olhos luziam-lhe de resplandecente mistério, como os olhos de uma criatura vitoriosa, feliz e feroz, vista ao longe sob um matagal. E era muito bom para ela, a ternura dele fazia-a palpitar num desmaio de completo esquecimento de si, como se as comportas do seu ser profundo se abrissem. A profundidade do amor dele, quente, descuidado, envolvente, era imensurável. Ela sentia que podia submergir para sempre no seu abraço quente e palpitante.
      Depois, mais tarde, quando se sentiu inclinada a criticá-lo, lembrou-se do momento em que viu o rosto dele
no consulado italiano em Londres. Havia muita gente no consulado gritando por passaportes... uma multidão selvagem
e mal-educada. Eles haviam esperado a sua vez e entrado... Cicio não tinha jeito para abrir caminho à força. E, dentro, um velho alto e delicado, de barba branca, levantara a portinhola para Alvina entrar no gabinete e sentar-se para cumprir as formalidades. Agradeceu ao velho, que se inclinou como se tivesse de manter uma reputação.
      Cicio seguiu-a e foi ele quem teve de sentar-se para preencher os papéis, porque ela não compreendia as perguntas em italiano. Ela ficara ao lado dele, observando os italianos excitados, gargalhantes e barulhentos do East End, do lado de fora. Em toda a sala havia certa sem-cerimoniosa confusão, uma humana, desrespeitadora e confusa vivacidade que não era da Inglaterra, ainda que se estivesse no centro de Londres.
      - Como se chamava sua mãe? - perguntou Cicio. Ela voltou-se. Ele estava sentado, a caneta vigorosamente segura na ponta dos dedos, suspensos na séria e artística tarefa de preencher o formulário. E a face tinha uma luminosidade sombria, como uma sombria transparência que houvesse estado fechada e que agora se expandia. Ela estremeceu como se aquilo fosse além do que ela podia suportar. Porque a face dele estava aberta como uma flor que alcançasse as profundezas da sua própria alma, uma sombria e adorável translucidez, vulnerável até o mais profundamente vivo da sua alma. A adorável e rica escuridão da natureza meridional dele, tão diferente da sua própria, exposta agora na sua vulnerabilidade passional, tornava-a branca, com um quê de medo. Por um instante, a face dela pareceu chupada e velha, olhando para ele, respondendo às perguntas. Depois, seus olhos ficaram cegos pelas lágrimas, ela inclinou-se como que para olhar o que ele escrevia e subitamente beijou-lhe os dedos que seguravam a caneta, ali no meio do consulado, vulgar e cheio de gente.
      Ele ficara em suspenso, olhando-a de novo com os olhos brilhantes e descobertos de uma criatura selvagem que brinca sem ser vista. Um ligeiro sorriso, muito belo para ela, andava em sua face. Que viu ele quando olhou para ela? Ela não sabia, não sabia. E nunca saberia. Durante um momento, jurou a si mesma que o próprio Deus não a faria deixar aquele homem. Confiar-se-ia a ele para toda a eternidade. E de novo a incerteza caiu sobre ela, e Alvina voltou-se para o lado, fotograficamente vendo a multidão no consulado, mas na realidade inconsciente. O movimento dele ao levantar-se pareceu movê-la no seu sono, e ela voltou-se para ele ao mesmo tempo.
      Foi nos princípios de novembro que puderam partir para
a Itália, e a pálida e resplandecente condição dela subsistiu durante todo o tempo. Achou-se em Charing Cross de manhã cedo, no tumulto de apanhar o trem para o continente. Giuseppe estava lá e Gemma, sua mulher, e dois filhos, além de três outros italianos amigos de Cicio. Enchiam a plataforma. Giuseppe insistira em que Cicio adquirisse bilhetes de segunda classe. Tinham chegado muito cedo. Alvina e Cicio estavam instalados num compartimento de segunda classe com todas as suas bagagens, Cicio estava pálido, amarelado sob a sua pele morena, e nervoso. Permanecia excitadamente na plataforma, falando italiano... ou antes, no seu próprio dialeto, enquanto Alvina estava sentada muito quieta no seu canto. Por vezes, uma das mulheres ou uma das crianças vinha dizer-lhe algumas palavras, ou Giuseppe corria para ela com algumas revistas. Tratavam-na como se fosse uma espécie de inválido ou de amigo, agora que ela partia. Mas a maior atenção davam-na a Cicio, conversando com ele rapidamente todos ao mesmo tempo, enquanto ele respondia e olhava de relance para um lado e para outro, sob as suas finas pestanas, e ria o seu velho, nervoso e insignificante sorriso. Estava curiosamente emocionado.
      Chegara a hora de fechar as portas. As mulheres e as crianças beijaram Alvina, dizendo:
      - Ficarão bem, hem? Vão para a Itália... - E depois, profundos e expressivos acenos, que ela não podia interpretar, mas que estavam seguramente cheios de boa
intenção.
      Depois, todos beijaram Cicio. Os homens tomaram-no
nos braços e beijaram-no em ambas as faces, as crianças levantaram o rosto em ávida antecipação do duplo beijo. Era estranho com que avidez iam para aquele abraço, como todos conservavam a mão de Cicio, um após outro, enquanto ele sorria constrangida e nervosamente!

      CAPÍTULO 14 - A VIAGEM

      O trem começou a andar. Giuseppe correu ao lado dele, segurando a mão de Cicio; as mulheres e as crianças choravam e acenavam com os lenços, os outros homens gritavam recados, fazendo gestos estranhos e excitados. E Alvina sentara-se muito quieta, surpresa. E assim o grande e pesado trem partiu, deixando os outros cada vez menores e indefinidos na plataforma. Havia nevoeiro, o rio era um mar amarelo por baixo da pesada ponte de ferro. A manhã estava baça e úmida.
      O trem estava muito cheio. Junto de Alvina sentara-se uma elegante francesa, lendo L'Aiglon. Havia por toda parte uma medonha confusão de embrulhos e bagagens. Na frente dela ia Cicio, com o sobretudo preto aberto por cima do terno cinzento-claro, com o chapéu preto um pouco sobre o olho esquerdo. De quando em quando olhava para ela, sorrindo constrangidamente. Ela permanecia muito quieta. Passaram correndo por Bromley e entraram em campo aberto. O tempo estava cinzento, com um ou outro raio de sol cinzento. Nas dunas havia um pouco de neve. O ar no trem estava quente, pesado com tanta gente e denso com a excitação e com o desassossego. O trem pareceu precipitar-se pesada e solidamente, através de Weald.
      E assim, através de Folkestone e até o mar. Havia sol
no céu agora, e nuvens brancas na cavidade da abóbada do céu por cima da terra cinzenta, com um horizonte de paredes de nevoeiro. O ar estava calmo. O mar palpitava com um barulho de sucção no interior da doca. Alvina, e Cicio sentaram-se à popa, no convés da segunda classe, com as bagagens junto de si. Ele embrulhou-se numa manta branca, Alvina apertou-se no cachecol e no agasalho de castor. Tinha um ar muito terno e belo naquela sua calma indeterminação, e Cicio, rondando em volta dela, era belo também, dando-lhe aquela indiferença uma certa nobreza pensativa que de momento o punha acima de toda a inferioridade de classe. Os passageiros olhavam-nos de relance através da magia da indiferença.
      O mar estava muito calmo. O sol ia alto no céu claro, onde os cumes de nuvens brancas se mostravam contra o azul pálido de inverno. Pelo mar chegava o reflexo prateado do sol. E Alvina e Cicio olhavam para o sol, que estava um pouco para a direita do curso do barco.
      - O sol! - disse Cicio, indicando a esfera e sorrindo para Alvina.
      - Gosto muito! - disse ela.
      Ele sorriu de novo, silenciosamente. Estava estranhamente inquieto; ela não sabia por quê.
      O vento era frio por cima do mar de inverno, ainda
que os raios do sol fossem quentes. Levantaram-se, passearam em volta das cabinas. Havia outros barcos no mar: contratorpedeiros e navios de guerra, cinzentos, vagarosos e sinistros. Então, uma alta e brilhante escuna bruxuleou ao longe, no canal. Algumas embarcações de pesca vinham junto. Tudo estava muito calmo sob o sol de inverno, no canal.
      Foram passear na popa do barco. E o coração de Alvina subitamente contraiu-se. Agarrou o braço de Cicio enquanto o barco deslizava suavemente. Porque lá ao longe, para trás de todo aquele sol, estava a Inglaterra. A Inglaterra, por cima da água, elevando-se em rochedos cinzentos, cadavéricos, e veios de neve sobre as dunas! A Inglaterra, como um caixão grande e cinzento submergindo lentamente! Ela olhava para aquilo, fascinada e aterrada! Parecia repudiar o sol, permanecer às escuras, longa, cinzenta e morta, com veios
de neve como mortalhas de cadáveres. Era a Inglaterra! Os pensamentos dela voaram para Woodhouse, o centro cinzento
de tudo aquilo. O lar!
      O coração morria dentro dela. Nunca se sentira tão completamente estranha e distante. Cicio, a seu lado, não
era nada, enquanto, maravilhada, ela olhava ao longe, para trás de todo o sol e do mar, a substância da Inglaterra, cinzenta e riscada de neve, lentamente recuando e afundando, submergindo. Não podia acreditar naquilo. Era como olhar para outra coisa. O quê? Era como um caixão grande e cinzento, invernal, lentamente submergindo no mar. A Inglaterra?
      Voltou-se de novo para o sol. Mas nuvens e véus estavam já tecendo-se no céu. O frio começara a infiltrar-se, além disso. Sentou-se muito quieta por longo tempo, quase uma eternidade. E quando olhou em volta, de novo, havia somente um banco de névoa lá atrás, por cima do mar: um banco de névoa e alguns poucos barcos cinzentos, deslizando. Devia começar a ver se descobria a costa da França.
      E além, lá estava ela, assomando, cinzenta e amorfa, atapetada de neve. Tinha um ar cinzento, empilhado, sórdido, à luz de novembro. Imaginara Boulogne alegre e brilhante. Mas era mais cinzenta e lúgubre do que a Inglaterra. Mas sem aquele ar mágico, místico, fantasmagórico.
      O barco vagarosamente mudou de rumo e entrou no porto. Ela olhava o cais que se aproximava. Cicio juntava a bagagem. Depois, veio o primeiro grito que sempre se ouve: "Porteur! Porteur! quer um porteur?" Um carregador suspendeu a bagagem numa correia, e Cicio e Alvina meteram-se na confusão para a saída e para a inspeção dos passaportes. A multidão estava tensa, ansiosa e assustada, e funcionários gritavam instruções em francês e inglês. Alvina achou-se por fim na frente de uma mesa, onde homens de barba e fardados estavam salpicando de tinta as folhas cor-de-rosa dos passaportes ingleses; sentia-se estranha e pouco à vontade porque o seu passaporte era italiano. O funcionário examinou-a e fez perguntas a Cicio. Ninguém lhe perguntou nada... ela podia ter sido a sombra de Cicio. Depois, foram pela vasta caverna,
cheia de gente, da alfândega, onde encontraram o carregador acenando-lhes entre a multidão. Cicio debatia-se entre a multidão, enquanto o carregador conduzia Alvina para arranjar lugares no grande trem. E por fim ela ficou instalada uma vez mais num lugar, com o assento de Cicio reservado junto dela. E ali estava ela sentada, olhando através das linhas férreas para o porto, nos últimos raios do sol cinzento! Homens olhavam-na, funcionários fixavam-na, soldados diziam coisas sobre ela. E por fim, depois de uma eternidade, Cicio apareceu na plataforma, com o carregador saltitando atrás.
      Sentaram-se e comeram o que haviam comprado, e beberam vinho e chá. E, depois de longas horas, o trem partiu através do país riscado de neve, em direção a Paris. Em toda parte havia muita gente, o trem estava abafado sem estar quente. Junto de Alvina sentava-se um grande, gordo e jovem francês que se derramava sobre ela e lhe dava calor. A treva começou a descer. O trem estava muito atrasado. Fazia estranhas e assustadoras paradas. Luzes estranhas apareciam no céu, a toda a gente parecia estar ouvindo estranhos barulhos. Era tal o rebuliço e a confusão que Alvina não se dava conta de nada, mergulhada numa espécie de estupidez. Cintilações, relâmpagos, barulhos e depois, por fim, o frenesi de Paris.
      Era noite, a cidade estava às escuras, a neve caía, e não havia trem naquela noite para a Gare de Lyon. Num estado de semi-estupefação, depois de todas as perguntas e exames e tumultos, foi-lhes finalmente concedido desembarcar em Paris. Mas isso significou outra brava disputa com um condutor de táxi na neve que caía. Assim, foram deixados na Gare de Lyon.
      E a primeira pessoa que correu para eles foi Geoffrey, num uniforme de soldado bastante sujo. Tinha já estado em alguns combates duros e tinha um ar selvagem e confuso. Beijou Cicio e desfez-se em lágrimas nos ombros dele, ali na grande balbúrdia do saguão da Gare de Lyon. Havia gente olhando, mas ninguém parecia surpreso. Geoffrey soluçava e as lágrimas caíam silenciosamente pelas faces de Cicio.
      - Estou à sua espera desde as cinco horas, e ia-me embora. Cicio! Cicio! Tinha tanta vontade de ver você! Nunca mais o verei, irmão, meu irmão! - gritava Gigi, e um soluço fê-lo estremecer.
      - Gigi! Mon Gigi!
      - Ontem. Oh, Cicio, Cicio, sem você eu morro!
      - Não, Gigi. Não morre.
      - Sim, Cicio, morro. Eu sei que morro.
      - Eu digo que não, irmão - disse Cicio. Mas um espasmo tomou-o subitamente, e ele tirou o chapéu, pô-lo sobre o rosto e soluçou para dentro dele.
      - Adieu, ami! Adieu! - gritava Gigi, prendendo o braço do outro homem. Cicio tirou o chapéu da face manchada de lágrimas e o colocou na cabeça. Depois, os dois homens
abraçaram-se.
      - Toujours à toi! - disse Geoffrey, com uma estranha e solene saudação em face de Cicio e de Alvina. Depois, deu uma volta sobre os calcanhares e marchou rapidamente para fora da estação, o seu sujo casaco de soldado batendo com o vento. Cicio via-o ir. Em seguida, voltou-se e olhou com olhos espantados os olhos de Alvina. E depois correram na treva pela desolada plataforma. Muita gente, italianos em grande número, estava acampada esperando ali, enquanto flocos de neve flutuavam. Cicio comprou comida e alugou almofadas. O trem chegou. Houve um combate horrível por lugares, homens subindo pelas janelas. Alvina conseguiu um lugar, mas Cicio teve de ficar num corredor.
      Depois, a longa jornada noturna pela França, lenta e cega. O trem estava agora tão quente que a placa de ferro do
chão queimava os pés de Alvina. Fora, via manchas de neve. Um gordo hoteleiro italiano pôs um boné, baixou luz e esticou-se em frente a Alvina. No compartimento do lado uma criança chorava. Chorou toda a noite... todo o caminho de Paris até Chambéry ela chorou. O trem fazia paradas súbitas e ficava retido na neve. O hoteleiro ressonava. Alvina ficara quase em coma, no calor escaldante do vagão. E de novo o trem seguiu. E de novo ela viu estações de relance, retalhos de neve, pelas frestas das janelas com cortinas E de novo houve um puxão brusco e uma parada súbita, um murmúrio sonolento dos adormecidos, alguém dando mais intensidade à luz e alguém diminuindo-a de novo, alguém olhando lá para fora, alguém andando no corredor, a criança chorando.
      A criança pertencia a dois pobres italianos, milaneses, um homenzinho delgado e uma mulher bastante mal-vestida. Tinham cinco crianças franzinas, todos rapazes; e os quatro que podiam conservar-se de pé usavam boinas vermelhas. O quinto era um bebê. Alvina vira um funcionário francês ralhando com o pobre homenzinho na plataforma.
      Quando amanheceu e as pessoas estremunhadas abriram
as cortinas, a madrugada estava clara, e se encontravam no sul da França. Não havia sinais de neve. A paisagem era
meio meridional, meio alpina. Casas brancas com telhas acastanhadas apareciam entre amendoeiras e cactos. Era belo, e Alvina tinha a impressão de que já conhecera aquilo antes, numa vida mais feliz. A manhã estava agradável, quase de primavera. Foi até o corredor conversar com Cicio.
      Ele estava de pé, encostado à janela, balançando ligeiramente com o movimento do trem. Tinha a face pálida,
e um ar sombrio, obcecado, infeliz. Alvina, emocionada com
a região meridional, sorria excitadamente.
      - É a minha primeira manhã no exterior - disse ela.
      - Sim - respondeu ele.
      - Acho isto muito bonito - disse Alvina. - É parecido com a Itália?
      Ele olhou sombriamente para fora da janela e meneou a cabeça.
      Mas o ar sombrio continuava nas suas faces. Ela olhou
para ele. E o seu coração parou, como nunca antes tinha parado.
      - Está pensando em Gigi? - disse ela.
      Ele olhou para ela, num leve, infeliz e amargo
sorriso, mas não disse nada. Parecia muito distante dela.
Uma infelicidade feroz batia-lhe dentro do peito. Desceu o corredor, afastando-se dele, para evitar essa nova agonia, que no fim das contas não era a sua agonia. Ouvia tagarelar em francês e em italiano no corredor. Sentia a excitação e o terror da França, dentro do vagão; e fora viu bois brancos, vagarosamente lavrando, por baixo dos alamos curvados e amarelos do sopé dos Alpes, viu camponeses levantando os olhos, viu uma mulher segurando uma criança ao peito, olhando para o trem, viu as multidões excitadas e buliçosas na estação. E tudo parecia mais vasto, mais nobre do que na Inglaterra. Sentia influências mais vastas espalhando-se em redor, o passado era maior, mais magnificente nestas regiões. Pela primeira vez, a nostalgia do vasto mundo romano e clássico tomava posse dela. E achava aquilo esplêndido.
Pela primeira vez abria os olhos sobre o continente. E
pela primeira vez fazia idéia do que era fugir da minguada perfeição da Inglaterra para a imperfeição maior de um grande continente.
      Perto de Chambéry foram almoçar no vagão-restaurante.
E secretamente ela estava muito feliz. A tristeza de Cicio fazia-a infeliz. Mas no fundo estava extraordinariamente
aliviada e alegre. Cicio não a preocupava muito. O sentido de grandeza das terras em redor dela, a excitação da viagem com gente continental, o sabor agradável do café e do pão e do mel, a sensação de que amplos acontecimentos estavam tendo lugar... tudo isso a estimulava. Tinha afastado o terror da guerra e da invasão. O receio fervia em redor dela. E contudo estava animada e alegre. O vasto mundo estava numa das suas convulsões e ela movia-se entre tudo isso. Em alguma parte, ela acreditava na convulsão, o acontecimento a excitava.
      O trem começou a subir para Módena. Como os Alpes eram maravilhosos! Que grandeza, que poder inquebrantável havia nas montanhas! Cada vez mais para cima o trem se arrastava,
e ela olhava para as vertentes rochosas, para os cumes cintilantes de neve azul, para os vales profundos cheios de abetos e casas de telhados baixos. Havia pedreiras junto da linha, e homens trabalhando. Via-se uma estranha cidade na montanha, de aspecto sujo. E o trem lá ia subindo cada vez mais, ao sol da manhã quente, arrastando-se vagarosamente pelas curvas dos montes, e de tal modo que um pequeno cão castanho saído de uma cabana correu ao longo do trem durante muito tempo, ladrando para Alvina, correndo até à frente do trem rastejante e arfante, ladrando para as pessoas. Alvina, olhando para fora, viu as duas locomotivas pouco conhecidas dela, arfando a sua fumaça que curveteava à frente. E a manhã passou, e chegou o meio-dia.
      Cicio ficava excitado à medida que se aproximava de Módena, a estação fronteiriça. Seus olhos brilhavam de novo, ele se preparava para a sua entrada na Itália. Vagarosamente,
o trem rodou pela estação triste. E então uma confusão indescritível de carregadores e montes de bagagem, os empurrões e a multidão próprios das fronteiras alfandegárias,
a multidão intensa na sala de passaportes, tudo parecia pura loucura.
      Saíram de novo para a plataforma, tendo deixado
marcados os lugares. Cicio queria almoçar no restaurante da estação. E ali, nos passadiços e grandes corredores da suja estação, dúzias de italianos estavam sentados no chão: homens, mulheres, crianças acampados com trouxas e embrulhos empilhados. Eram emigrantes ou refugiados. Alvina nunca
tinha visto gente em rebanho, como gado, gado silencioso e bruto. Aquilo impressionou-a. Não podia compreender que um trabalhador italiano se deitasse assim, quando estava fatigado, na rua, na estação, em qualquer canto, como um cão.
      Durante a tarde, desceram os Alpes em direção a Turim. E por toda parte havia neve, funda, branca, maravilhosa neve, bela e recente, cintilando à luz da tarde pelos flancos das montanhas abaixo, sobre a via férrea, quase parecendo tocar no trem. E o crepúsculo caía. E nas estações a gente acumulava-se uma vez mais.
      Anoitecera já há muito quando chegaram a Turim. Muita gente desceu do trem, muitos apareceram para tomá-lo. Mas Cicio e Alvina tinham lugares lado a lado. Começavam a ficar cansados agora. Mas estavam na Itália. Uma vez mais desceram para comer. E depois o trem partiu de novo, à noite, para Alexandria e Gênova, Pisa e Roma.
      Era noite, o trem corria melhor, havia uma sensação mais calma na Itália. Cicio conversou um pouco com os outros companheiros de viagem. E Alvina ajeitou a almofada e dormiu mais ou menos até Gênova. Depois de longa espera nessa cidade, dormitou de novo. Acordou para ver o mar ao luar lá embaixo... um formoso mar prateado, chegando até o trem. Este parecia correr na borda do Mediterrâneo, contornando baías, passando entre rochedos escuros e sob castelos, um país de fadas no meio da noite. Ela olhava encantada; encantada com a magia do próprio mundo. E pensava consigo mesma: "Seja a vida o que for e sejam quais forem os horrores que os homens façam dela, o mundo é um lugar lindo, um lugar de magia, uma coisa maravilhosa! O mundo é um lugar incrível!"
      Esses pensamentos fizeram-na adormecer novamente. Contudo, tinha consciência dos túneis e montes, e largos pântanos, e do aproximar da alvorada. E de madrugada apareceu
Pisa. Vira a palavra suspensa na estação, na penumbra: "Pisa". Cicio disse-lhe que havia gente mudando para o trem de Florença. Tudo lhe parecia maravilhoso... maravilhoso!
Sentou-se e olhou para a estação negra, e depois ouviu o som da cometa de uma criança. E não lhe ocorreu ligar a partida do trem ao som da cometa.
      Mas ela via a alvorada de ouro, um sol dourado emergindo do nível da terra. Gostava daquilo. Gostava de estar na Itália. Gostava da descuidada vadiagem do trem, gostava de ter dinheiro italiano, de ouvir italiano ao seu redor, embora não fosse tão belo nem tão melodioso como ela esperava. Gostava de ver a paisagem abrasada e antiga. Lia uma vez e outra: "È pericoloso sporgersi", e "È vietato fumare", e outras pequenas, mágicas frases nos vagões. Cicio dizia-lhe
o que elas significavam e como se pronunciavam. E simpáticos italianos à sua frente começaram a perguntar-lhe se eram casados e quem e o que era a sua noiva, e olhavam para ela com olhos vivos e aprovativos, apesar de ela se sentir terrivelmente suja e desarrumada com a viagem.
      - Vêm da Inglaterra? Sim! Lindo país! - disse um homem a um canto, inclinando-se para a frente, para fazer exibição da sua capacidade lingüística.
      - Não tão lindo como este - falou Alvina.
      - O quê?
      Albina repetiu.
      - Não tão lindo? Oh? Não! Nevoeiro, não? - o homem gordo levantou os dedos no ar, para indicar nevoeiro na atmosfera. - Mas lindo país! Muito... conveniente.
      Sentou-se, triunfante, depois de ter acabado a sua frase. E a conversação tornou-se uma vez mais uma irradiação de italiano. As mulheres estavam muito interessadas. Olhavam para Alvina dos pés à cabeça. E esta adivinhava que elas
se perguntavam se Alvina já estaria esperando um bebê. Certamente perguntavam a Cicio em italiano se ela "estava fazendo um bebê para ele". Mas ele meneava a cabeça e não sabia, um pouco constrangido. Comiam rodelas de salame, pão
e bolos de arroz fritos, com os dedos espantosamente gordurosos, e bebiam vinho tinto das garrafas em grandes goles e ofereciam a comida a Cicio e a Alvina, e ficaram encantados quando ela disse a Cicio que queria um bocado de pão com salame. Ele tirou a pele do salame com os dedos e fez-lhe um sanduíche. As mulheres viam-na comer e, com olhos vivos e satisfeitos, diziam, acenando com a cabeça:
      - Buono? Buono?
      E ela, que conhecia a palavra, compreendeu e replicou:
      - Sim, bom! Buono! - E acenou do mesmo modo com a cabeça. O que causou imensa satisfação. As mulheres mostraram-lhe o embrulho com as rodelas de salame, acenaram
com a cabeça, iluminaram-se e disseram:
      - Se vuole ancora...!
      E Alvina mordeu seu grande sanduíche, sorriu e disse:
      - Sim, muitíssimo bom!
      E as mulheres olharam umas para as outras e disseram qualquer coisa, e Cicio interpôs-se, meneando a cabeça. Mas uma mulher ostensivamente limpou o gargalo de uma garrafa com um lenço limpo e ofereceu a garrafa a Alvina, dizendo:
      - Vin buono. Vecchio! - E acenou com força, indicando que ela devia beber. Ela olhou para Cicio e este olhou para ela, vacilante.
      - Bebo um pouco? - indagou ela.
      - Se lhe apetece - replicou ele, num gesto muito italiano de indiferença.
      Ela bebeu um pouco de vinho e este gotejou-lhe queixo abaixo. Não tinha muito jeito para beber pela garrafa. Mas gostava da sensação de calor que o vinho lhe dava. Estava muito cansada.
      - Si piace? Piace?
      - Sim, muito. Como se diz "muito"? - perguntou a Cicio.
      - Molto.
      - Si, molto. É claro, eu já conhecia a palavra, da música - acrescentou ela.
      As mulheres fizeram barulho e sorriram, acenando com
a cabeça, e assim o trem avançou, até que chegaram a Roma. Houve de novo a luta feroz com as bagagens, despedidas gerais, e depois massas de gente na estação de Roma. Roma! Roma! Que era aquilo para Alvina senão um nome e uma estação atulhada e excitada, e Cicio correndo atrás da bagagem e ambos comendo num restaurante de estação?
      Quase imediatamente depois de comerem, foram para o
trem uma vez mais, com novos companheiros de viagem, correndo desta vez para o sul, em direção a Nápoles.
      Numa confusão de cansaço cada vez maior, Alvina via a monótona e para ela sórdida Campânia que ladeava a linha férrea, as ruínas de um aqueduto arrastando-se próximo sobre a velha planície. Viu um carro, tão longe de tudo, correndo para atravessar a linha. Reparou que ele ia para Frascati.
      E lentamente os montes se aproximaram... passaram
as vinhas nos pequenos montes, os juncais, e estavam entre
as montanhas. Maravilhosas cidadezinhas empoleiravam-se,
fortificadas, sobre rochas e cumes, montanhas erguiam-se direitas desde o nível das planícies, como antigas gravuras topográficas, rios vagueavam por lugares selvagens e
rochosos, tudo aquilo parecia antigo e árido, ainda selvagem,
sob toda a sua remota civilização, a região dos montes Albanos, ao sul de Roma. Assim o trem subia e descia, contornando curvas.
      Já não estavam muito longe. Alvina estava demasiado cansada para pensar em como seria. Iam para a terra natal
de Cicio. Iam ficar em casa do tio dele, irmão da mãe.
Este tio tinha sido modelo em Londres. Construíra uma casa em terra deixada pelo avô de Cicio. Vivia agora sozinho, porque a mulher morrera e os filhos estavam fora. Giuseppe era seu filho: Giuseppe, de Battersea, em cuja casa Alvina estivera.
      Isso era o que Alvina sabia. Sabia que uma parte da terra, em Pescocalascio, pertencia a Cicio: um pedaço de terra semi-selvagem e antiga, que tinha sido deixada a sua mãe pelo velho Francesco Califano, o camponês avaro que fora seu pai. Essa terra permanecera integrada à propriedade e fora trabalhada por dois tios de Cicio, Pancrazio e Giovanni. Pancrazio era o tio abastado, que tinha sido modelo e havia construído a villa. Giovanni não era muito boa coisa. Era assim que Cicio punha as coisas.
      Contavam com que Pancrazio os esperasse na estação. Cicio juntou as malas e endireitou o chapéu, e assomou à janela, espreitando as montanhas escarpadas da tarde. Havia uma cidadezinha, ali entre os montes escarpados, uma cidade
num vale plano que se metia pelas montanhas como um golfo. O trem deu um sacolejão. Tinham chegado.
      Alvina estava tão cansada que mal pôde descer para a plataforma. Eram cerca de quatro horas. Cicio olhou para
um e outro lado à procura de Pancrazio, mas não o viu. Arrumou a bagagem em pilha na plataforma e disse a Alvina
que ficasse junto dela, enquanto ia buscar as malas despachadas. Apareceu um carregador que fez perguntas a Alvina, mas ela nada compreendeu. Depois, por fim veio Cicio, carregando uma pequena mala, enquanto um carregador o seguia, carregando outra. Saíram, abandonando a Alvina o monte de bagagens de mão. Ela esperava. O trem partiu. Cicio e o carregador voltaram, afadigados. Levaram-na através da pequena grade, até o lugar onde, no espaço deserto atrás
da via férrea, permaneciam dois grandes ônibus marrons e
uma fila de carros abertos. Cicio ajudou a pôr as malas
de mão no teto de um dos grandes ônibus. Quando acabaram, o homem que estava no teto desceu e Cicio deu a ele e ao carregador seis pence. O último imediatamente atirou para o chão a sua moeda com um gesto de desprezo indignado, abriu muito os braços e agitou-se violentamente. Cicio respondeu com energia e ambos se espicaçaram verbalmente, como dois pássaros. Aquilo acabou por fazer com que o motorista do ônibus, corpulento e de bigodes negros, enrolasse as mangas da camisa. Em conseqüência disso, Cicio muito amigavelmente deu ao carregador dois níqueis de dois pence a mais, ao que o carregador muito amavelmente lhe desejou "buon viaggio".
      Alvina foi alojada no interior do ônibus, com Cicio a seu lado. Mal se haviam sentado quando se ouviu uma voz, em inglês perfeitamente modulado:
      - Estão aqui? Como é que eu não os achei?
      Era Pancrazio, um italiano pequenino, de aspecto decadente, gasto, de sessenta anos ou mais, com um grande bigode e olhos circundados de vermelho e faces de rugas
profundas. Foi apresentado a Alvina.
      - Como é que eu não os achei? - dizia ele. - Eu estava na estação quando o trem chegou e não os vi.
      Mas era evidente que ele tinha bebido. Não teve
mais ocasião para falar. O ônibus estava cheio de fortes camponeses, de chapéus pretos e grandes capotes e sobretudos.
Arranjou-se para Pancrazio um lugar no outro extremo e ali ele se sentou, de faces impassíveis e cheias de profundas rugas, e de olhos vidrados e brilhantes. Tinha olhos
amarelo-castanhos, como os de Cicio. Mas no tio as pálpebras caíam de uma maneira curiosa e pesada, os olhos tinham um ar estúpido, como os de um gato velho e libertino, ligeiramente orlados de vermelho. Uma pessoa curiosa! E o seu inglês, apesar de lento, era perfeitamente articulado. Olhava para Alvina com olhares rápidos e impessoais, de modo nenhum um olhar fixo. E ficou sentado, impassível e abstrato como um pele-vermelha.
      No último momento, um corpulento padre, de negro, completou o amontoado e a porta fechou-se atrás dele. Todos os lugares tinham sido ocupados. O segundo grande ônibus
partiu e depois seguiu o outro para Molla, transportando Alvina e Cicio até a etapa seguinte da sua viagem.
      O sol estava já declinando sobre os cimos dos montes, sombras caíam sobre o golfo da planície. O ônibus corria
em grande velocidade pela estrada branca e reta, que atravessava a planície cultivada até o interior das montanhas. Ao lado da estrada, camponeses de capote, camponesas de vestidos plissados com corpetes brancos ou
com blusas de grandes mangas tufadas palmilhavam os caminhos abertos na relva, conduzindo vacas ou cabras, ou tocando burros muito carregados. As mulheres levavam lenços de cor na cabeça, como as mulheres que Alvina se lembrava de ter visto nas festas da escola dominical, que costumavam tirar a sorte com periquitos verdes. E todos palmilhavam os caminhos em direção à sombra azul das montanhas que se fechavam, deixando os altos da cidade para trás, à esquerda.
      Num cruzamento, o ônibus parou bruscamente e ali ficou, tranqüilo na estrada, junto a um regato gelado, ao cair do crepúsculo. Grandes bois brancos passavam, puxando um carregamento de madeira: os camponeses que tinham sido deixados lá para trás começaram a aparecer de novo, em pitorescos grupos. O regato gelado retinia, cabras, porcos e vacas vagueavam e abanavam as campainhas pelas margens relvadas da estrada, pelos campos planos e intermináveis, enquanto eram vagarosamente conduzidos para casa. Camponeses saltaram do ônibus para a estrada, para conversar, e um ar cortante entrou. Lá no alto, enquanto o sol descia, era curiosa a radiação gelada das montanhas nevadas, e uma cor rósea, ainda que sombria, escurecia no vale.
      Por fim, após cerca de meia hora, o rapaz que conduzia o ônibus apareceu correndo pela agreste margem da estrada, toda a gente subiu para o ônibus e este seguiu pela planície adiante. Rugindo e apressadamente ele galgou a primeira curva da subida. Grandes precipícios elevavam-se à direita, com a vermelhidão do poente sobre eles. A estrada serpenteava e dava voltas, tentando vencer o desfiladeiro. O ônibus continuava seu esforço vagarosamente, depois passou uma curva, serpenteou noutra curva e continuou o seu esforço
uma vez mais. Parecia estar escuro no meio das montanhas.
As rochas elevavam-se muito alto, a estrada curveteava e ondulava de um lado do largo desfiladeiro até o outro, o veículo palpitava e persistia. Por vezes aparecia uma casa, por vezes um bosque de carvalho, por vezes o resplendor de uma ravina, depois a alta e branca cintilação da neve sobre
a treva terrestre. E assim eles lá iam, pela escuridão adiante.
      Espreitando em frente, Alvina pensava, vendo o vale entre os cumes, que era o fim do caminho. E sempre que o ônibus dava uma nova volta, ela pensava que tinham chegado
ao fim do vale entre os montes. Mas não... a estrada desenrolava-se de novo à frente.
      Começou a aparecer uma pequena aldeia selvagem. Era o lugar de destino. Afinal, não era ainda. Apenas o alto, formoso e jovem montanhês, que vinha sentado do lado dela, desceu, resmungando porque o ônibus o trouxera para além da sua estrada, porque o motorista se recusara a parar. Todos altercaram com ele, e o rapaz desceu na sombra. O padre, enorme, comprimiu-se no seu lugar. O ônibus continuou curveteando, sempre em direção àquele buraco do horizonte que ficava entre os altos picos.
      Por fim, subiram através das casas aninhadas entre altos rochedos e entraram na pequena praça do mercado, o ponto mais alto do caminho. Tiraram a bagagem. Alvina desceu. Ali estava ela, no centro selvagem de uma velha e inacabada cidadezinha da montanha. A fachada de uma igreja erguia-se numa pequena elevação. Uma rua branca dirigia-se para o lado direito, onde um grande vale aparecia vagamente para além e para baixo. Baixas e esquálidas espécies de casebres erguiam-se em redor, entre alguns prédios altos. E havia algumas árvores pequenas e nuas. Havia estrelas no céu, o ar estava gelado. Havia ali, no escuro, uma gente animada, mulheres com extravagantes toucas folhadas de linho encanudado, qualquer coisa como uma touca de criada; vinham e olhavam fixamente. Eram mulheres camponesas de faces duras.
      Pancrazio estava falando com Cicio em dialeto.
      - Não pude arranjar um carro para ir à estação - disse ele em inglês. - Mas vou arranjar um aqui. Agora vão fazer o quê? Deixar a bagagem na Grazia enquanto esperam?
      Atravessaram a praça até uma espécie de loja, chamada Restaurante Postal. Era um pequeno buraco de chão batido e cheirando a gato. Três velhas estavam sentadas perto de um braseiro baixo de bronze em que ardiam carvão e cinzas. Homens bebiam. Cicio mandou vir café e rum, e a mal-encarada Grazia, com sua touca enxovalhada, chafurdou as sujas chávenas de café em água suja, tirou a cafeteira do lume, despejou café negro e requentado, e acabou de enchê-las com rum. Depois, atirou em cada xícara uma colher cheia de açúcar, fazendo o líquido derramar-se nos pires, e os fregueses estavam servidos.
      Contudo, Cicio bebeu. Alvina fez o mesmo, queimando muito os lábios. Cicio pagou e saíram.
      - Que é que vai comprar agora? - perguntou Pancrazio.
      - Comprar? - disse Cicio.
      - Comida - disse Pancrazio. - Comprou comida?
      - Não - disse Cicio.
      Arrastaram-se por caminhos pedregosos e escuros até um atalho e conseguiram arranjar uma posta grande de carne; foram até um padeiro e conseguiram uns pães enormes e chatos. Compraram açúcar e café. E Pancrazio lamentou, no seu elegante inglês, que não se pudesse arranjar manteiga. Por toda parte apareciam mulheres mal-encaradas que fixavam Alvina e lhe faziam perguntas. E Cicio e Pancrazio respondiam bastante friamente, com o seu quê de hauteur. Não havia claramente muita intimidade entre a gente de Pescocalascio
e a gente semicitadina de Ossona. Alvina sentia-se como se estivesse num país estranho e hostil, na treva da selvagem cidadezinha da montanha.
      Afinal, tudo ficou pronto. Subiram para uma charrete de duas rodas, Alvina e Cicio atrás, Pancrazio e o cocheiro na frente, a bagagem por todo lado. As coisas maiores tinham ficado para o dia seguinte. Estava um frio de gelo, e uma escuridão brilhante. A lua não apareceria tão cedo.
      E assim, sem qualquer outra luz que não fosse a das estrelas, a charrete foi apressada e ruidosamente colina abaixo, pela estrada pálida que serpenteava desde o cimo do vale até o golfo das trevas, embaixo. Ao fundo, na escuridão, dentro da escuridão, eles matraqueavam, ferozmente e sem cuidado, o jovem cocheiro fazendo barulhos estranhos para o seu cavalo quase invisível, estalando um chicote e dirigindo intermináveis perguntas a Pancrazio.
      Alvina chegara-se a Cicio. Ele permanecia quase impassível. O vento estava frio, as estrelas cintilavam.
E seguiam ruidosamente pela estrada dura e larga sob os
rochedos, cada vez mais fundo na escuridão. Cicio
inclinava-se para a frente, olhando. Alvina sentia a
presença das montanhas, das rochas e das estrelas.
      - Eu não sabia que isto era tão selvagem! - disse ela.
      - Não é muito - respondeu ele. Havia uma nota triste e plangente na voz dele. Passou o braço por trás dela.
      - Não gosta? - disse ele.
      - Parece-me que é bonito... maravilhoso - disse ela, emocionada.
      Ele abraçou-a apaixonadamente. Mas ela não sentia necessidade de ser protegida. Tudo era maravilhoso e assombroso para ela. Não podia compreender por que ele parecia transtornado e como que desesperado. Para ela
havia magnificência nas estrelas resplandecentes e nos despenhadeiros dos montes, mágicos, terríveis e grandiosos.
      Desceram até o nível inferior do vale e seguiram rodando adiante. Via-se uma casa, uma fantástica fogueira vermelha ardendo contra a parede, e figuras lúgubres em redor.
      - Que é aquilo? - disse ela. - Que estão fazendo?
      - Não sei - disse Cicio. - Cosa fanno li, eh?
      - Quê? Fanno il buga... - disse o cocheiro.
      - Estão lavando - disse Pancrazio, explicando.
      - Lavando! - exclamou Alvina.
      - Fervendo as roupas - falou Cicio.
      O carro continuava, ruidoso e aos solavancos na noite fria, estrada abaixo no vale. Alvina podia reconhecer a escuridão das grotas. Por cima, via o brilho de Orion.
Sentia-se inteiramente, inteiramente perdida. Ultrapassou os limites do mundo, para além das fronteiras, e se encontrava em algum lugar de mistério. Estava perdida para Woodhouse, para Lancaster, para a Inglaterra... para tudo.
      Passaram pela escuridão de bosques, com o som rápido
de água fria. E depois, repentinamente a charrete estacou. Alguém saiu de uma porta iluminada no escuro.
      - Descemos aqui... o carro não pode ir mais longe
- disse Pancrazio.
      - Já chegamos? - disse Alvina.
      - Não, falta ainda um quilômetro. Mas temos de deixar o carro.
      Cicio fez perguntas em italiano. Alvina desceu.
      - Boa noite! Têm frio? - disse uma voz feminina,
ítalo-americana, forte e rouca.
      Era mais uma parenta de Cicio. Alvina estremeceu e olhou para a mulher formosa, sinistra, de voz rouca, que estava de pé no retângulo de luz formado pela porta.
      - Bastante frio - disse ela.
      - Entrem e aqueçam-se - disse a mulher.
      - Aqui mora o marido de minha irmã - explicou Pancrazio.
      Alvina entrou na casa. Era uma espécie de estalagem. No chão de terra, luzia um grande braseiro que tinha o aspecto de um lago de fogo. Homens de chapéu e capote estavam sentados jogando cartas junto de uma pequena lâmpada, e um homem estava servindo vinho. A sala parecia uma caverna.
      - Aqueçam-se - dizia a mulher, apontando para o disco
de fogo no chão. Puxou uma cadeira, e Alvina sentou-se. Os homens olharam, mas continuaram ruidosamente com as cartas. Cicio chegou com as bagagens. Os homens levantaram-se e saudaram-no efusivamente, olhando para Alvina de vez em quando, como se ela fosse uma criatura estranha. Em meio ao dialeto italiano ouviam palavras em americano.
      Parecia haver uma conversa familiar a respeito de qualquer coisa, ao lado. Cicio chegou-se a ela e disse-lhe:
      - Querem saber se passamos a noite aqui.
      - Eu preferiria ir para casa.
      Ele desviou o rosto à palavra "casa".
      - Veja lá - disse Pancrazio -, parece-me que ficarão melhor aqui do que na minha pobre casa. Bem vê, não tenho mulher para cuidar dela...
      Alvina relanceou o olhar pela sala e pelos homens rudes em seus chapéus pretos. Estava pensando em como poderia "ficar melhor" ali.
      - Eu gostaria de ir embora - disse ela.
      - Então arranjaremos um burro - disse Pancrazio estoicamente. E Alvina seguiu-o até a rua.
      De um alpendre saiu um homem pequenino, com ar de salteador, com uma lanterna. Trazia um capote até o nariz
e um chapéu até os olhos. As pernas estavam embrulhadas
em trapos brancos, cruzados por correias de couro, e vinha calçado em silenciosas sandálias de pele.
      - Este é o meu irmão Giovanni - disse Pancrazio.
      - Ele não é muito bom do juízo. - Depois rompeu numa vigorosa torrente de dialeto.
      Giovanni tocou o chapéu para Alvina e deu a lanterna a Pancrazio. Em seguida, desapareceu, voltando poucos momentos depois com o burro. Cicio saiu com a bagagem e, à luz da lanterna, as coisas foram suspensas de cada lado do burro, numa trouxa bastante precária. Pancrazio experimentou de novo as cordas.
      - Pronto! Vão indo que eu já os alcanço.
      - Arre, burro! - exclamou Giovanni para o burro, batendo no flanco do animal. Depois, pegou na rédea e seguiu pela estrada escura, dando largos passos com as suas encardidas pernas brancas, escondido no capote, guiando o burro. Alvina reparou no arrastar dos pés calçados em sandálias de pele, no tranqüilo passo do burro.
      Ela ia com Cicio junto à margem da estrada. Este levava a lanterna. O burro, com a carga, cansou-se alguns passos à frente. Havia árvores do lado da estrada e uma pequena cascata de invisível mas barulhenta água. Grandes rochedos formavam, por vezes, saliências. Estrelas cintilavam no alto.
      - Como tudo isto é estranho! - disse Alvina a Cicio.
- Está contente por voltar à sua casa?
      - Não é a minha casa - replicou ele, como se a palavra o irritasse. - Sim, gosto de ver isto de novo. Mas não é lugar para pessoas jovens viverem. Vai ver se gosta.
      Ela perguntava a si mesma qual a causa do desassossego de Cicio. Era a mesma coisa em Pancrazio. Este último alcançou-os correndo.
      - Vocês devem estar cansados - disse ele. - Deviam ter ficado na casa do meu parente.
      - Não, eu não estou cansada - disse Alvina. - Mas tenho fome.
      - Bom, comeremos qualquer coisa quando chegarmos à minha casa.
      Seguiam na escuridão da estrada do vale. Pancrazio pegou a lanterna e foi examinar a carga e apertar as cordas. Um grande pão chato caiu e rolou pela estrada, enquanto uma pequena mala despencava. Pancrazio meteu-se numa torrente de conversa em dialeto com Giovanni, a quem passou a lanterna. Cicio apanhou o pão e colocou-o debaixo do braço.
      - Dê-me um pedaço - disse Alvina.
      E, na treva, ambos ficaram mastigando pão. Passados alguns momentos, Pancrazio fez parar o burro e tirou a lanterna de Giovanni.
      - Temos de deixar a estrada aqui - disse ele.
      E com a lanterna, cautelosa e delicadamente, mostrou a Alvina um pequeno caminho que descia ao lado da margem da estrada, por entre o mato. Alvina aventurou-se pela descida íngreme, Pancrazio seguiu-a com a luz. Atrás, ia Giovanni, incitando o burro. Todos abriam caminho pelo grande leito, cheio de seixos brancos, de um rio. Era um largo e estranho leito de seixos secos, pálidos à luz das estrelas. Ouvia-se
o barulho do rio a despenhar-se, um barulho glacial. O lugar parecia selvagem e deserto. À distância via-se a escuridão dos matos, ao longo da margem oposta.
      Pancrazio balançando a lanterna, todos abriam caminho pelos seixos desiguais, até que chegaram ao próprio rio, não muito bravio, mas deslizando veloz. Uma prancha comprida, delgada e inclinada, passava sobre ele. Alvina atravessou-a bastante trêmula, seguida por Pancrazio com a luz e por Cicio com o pão e a mala. Ouvia-se o barulho do burro e as exclamações de Giovanni.
      Pancrazio voltou atrás com a luz. Alvina viu o burro
na penumbra subir, caminhar pouco à vontade para a corrente, fixar as patas dianteiras e aspirar a água, o nariz
engolfando-se na água.
      - Arre, burro! Arre, burro! - gritava Pancrazio, batendo nos flancos do animal.
      Mas este apenas erguia o nariz e virava-se de lado.
Não queria meter-se na água. Pancrazio agarrou a rédea colericamente e voltou-se para a torrente.
      - Por que é que se fizeram os burros! São animais que não entendem nada. - A sua voz flutuou colericamente pela escuridão indiferente.
      Cicio ria. Ele e Alvina permaneciam sobre o amplo e pedregoso leito do rio, sob a forte luz das estrelas, olhando as figuras esbatidas do burro e dos homens arrastando-se
rio acima, à luz da lanterna.
      De novo, os mesmos trabalhos, o focinho branco do burro abaixando-se para aspirar a água desconfiadamente, a parte anterior pendendo com a carga. De novo, os gritos coléricos e as pancadas de Pancrazio. E o burro parecia meter-se na água. Mas não! Depois de longa deliberação, recuou. A vozeria colérica soava pelo ar transparente. O grupo com a lanterna moveu-se de novo rio acima, diminuindo à distância.
      Alvina e Cicio continuavam parados e olhavam. A lanterna parecia pequena à distância. Mas então... um barulho sonoro, de qualquer coisa que chafurdava, fez-se ouvir.
      - O burro decidiu-se - disse Cicio. Pancrazio voltou atrás, correndo, com a lanterna.
      - Oh, que estúpido animal! Deu-me vontade de matá-lo!
- exclamou ele.
      - Não está acostumado à água? - indagou Alvina.
      - Sim, está. Mas não quer ir senão quando muito bem entende. Antes disso seria melhor matá-lo.
      Cruzando o leito do rio, enveredaram em direção ao mato bravio da margem oposta. Aí, esperaram pelo burro, que chegou barulhando pelos seixos, guiado pelo paciente Giovanni. E depois tomaram um caminho difícil e rochoso, subindo entre
as margens. Alvina tinha grande dificuldade em galgar a subida irregular. Mas subiu. De novo esperaram pelo burro.
E, depois, de novo cortaram para a direita, por baixo de árvores.
      Apareceu uma casa indefinida na penumbra.
      - É aquela? - perguntou Alvina.
      - Não. É minha também. Mas não é ali que eu moro. Um pouco mais adiante. Agora já estamos em terra minha.
      Iam caminhando por um relvado encrespado... e ainda subindo. O relvado terminava numa súbita elevação entre grandes pedras, e subitamente ficaram no limiar de uma casa de aspecto imponente; mas estava tudo às escuras.
      - Oh! - exclamou Pancrazio - não fizeram nada do que eu lhes disse. - Deu estranhos gritos de exasperação.
      - O quê? - disse Alvina.
      - Nem acenderam fogo nem nada. Esperem um momento...
      O burro chegou. Cicio, Alvina, Giovanni e o burro esperaram à luz gelada das estrelas, debaixo da casa deserta. Pancrazio desaparecera pelos fundos da casa. Cicio conversava com Giovanni. Parecia incomodado, como se se sentisse deprimido.
      Pancrazio voltou com a lanterna e abriu a grande porta. Alvina seguiu até um vasto corredor de chão empedrado, onde havia apetrechos agrícolas, onde um carro de palha e de feijão jazia a um canto, e de onde se erguia uma nua escada de madeira. Foi o que pôde enxergar naquele bruxulear da luz da candeia, enquanto Pancrazio puxou um cordão e entrou na cozinha: um compartimento de paredes sombrias, com teto abobadado e com uma grande lareira às escuras e sem lume; um compartimento nu com móveis grosseiros e escuros; um chão de pedra não varrida; minúsculas janelas gradeadas, incrustadas na espessura da parede, entreabertas e parcialmente fechadas por cortinas de tecido grosso. Era como um cenário de teatro, tenebroso, não feito para se viver lá dentro.
      - Vou acender uma luz - falou Pancrazio, tirando um candeeiro de uma prateleira e procurando acendê-lo.
      Cicio estava atrás de Alvina, silencioso. Tinha posto sobre uma arca de madeira o pão e a mala. Ela virou-se para ele.
      - É uma linda sala.
      Era-o realmente, com seu teto alto e abobadado, sua caiação suja, sua grande lareira negra. Mas Cicio não compreendera. Sorria melancolicamente.
      Acendera-se o candeeiro. Alvina olhou em redor, perscrutadora.
      - Agora vou acender o fogo. Você, Cicio, ajude Giovanni com o burro - disse Pancrazio, correndo com a lanterna.
      Alvina olhou para o compartimento. Havia um banco de madeira em frente à lareira, colocado de costas para a sala. Havia uma pequena mesa sob uma janela quadrada em forma de nicho, sobre cujo rebordo oblíquo estavam jornais, cartas dispersas, pregos e um martelo. Sobre a mesa havia feijões secos e duas espigas de milho. Num canto, havia prateleiras, com dois pratos de esmalte quebrados, e uma pequena mesa por baixo, sobre a qual havia um balde de água com uma grande concha. Além disso, havia uma arca de madeira, duas cadeiras pequenas, e um monte de lenha, canas, galhos de videira, sabugos de milho, ramos de carvalho, enchendo o canto junto à
lareira.
      Pancrazio apareceu, arrastando-se, com lenha
recém-apanhada.
      - Não fizeram o que eu lhes disse, preguiçosos! - falou ele. - Disse-lhes que acendessem o lume e arrumassem a casa. Vocês ficam mal nesta pobre casa. Não tenho mulher, nada, tudo está fora do lugar...
      Quebrou uns cavacos e acendeu-os na lareira. Depressa se fez um grande fogo. Cicio chegou com as malas e a comida.
      - É melhor eu ir lá em cima despir meu casaco - disse Alvina. - Tenho tanta fome.
      - Será melhor ficar com o casaco - disse Pancrazio.
      - Está frio aqui. - E estava frio, frio de gelo. Ela estremeceu um pouco. Tirou o chapéu e as peles.
      - Querem que eu faça qualquer coisa para comer?
- perguntou Pancrazio.
      Pegou numa frigideira, tirou toucinho da arca de madeira (era a arca da comida) e pôs-se a fritá-lo. Alvina queria pôr a mesa. Mas não havia toalha.
      - Sentemo-nos aqui para comer, como eu costumo fazer
- disse Pancrazio. Pegou dois pratos de esmalte e um prato de sopa, três garfos de ferro, ordinários, duas facas velhas e um pouco de sal grosso e cinzento numa tigela de madeira. Pôs essas coisas em cima do banco fronteiro ao lume. Cicio estava calado.
      O banco era escuro e ensebado. Alvina temia estragar suas roupas. Mas sentou-se com o seu prato de esmalte e o seu incrível garfo, um pouco de comida e um pedaço de pão, e comeu. Era difícil... mas a comida era boa e o fogo aquecia. Somente havia um véu de fumaça no compartimento, bastante desagradável. Cicio sentara-se no banco, junto dela, e comia, enchendo muito a boca.
      - Acho isto engraçado - disse Alvina.
      Cicio olhou para ela com olhos sombrios, impressionados, melancólicos. Ela perguntava a si mesma o que teria ele.
      - Não acha engraçado? - disse ela, sorrindo. Ele sorriu devagar.
      - Você não gosta disto - falou ele.
      - Por que não? - perguntou ela, temerosa de que ele estivesse profetizando certo.
      Pancrazio entrava e saía com a lanterna. Trouxe pêras engelhadas, uvas verdes e redondas, e nozes, sobre um pano branco, e as apresentou.
      - Parece que as minhas pêras ainda estão boas - disse.
- Têm de comê-las e de desculpar esta casa sem conforto.
      Giovanni entrou com uma grande tigela de sopa e um copo de leite. Havia somente lugar para três no banco em frente ao lume. Ele puxou uma cadeira por entre a lenha espalhada e sentou-se. Tinha uns olhos brilhantes, azulados, e uma cara achatada; era um homem de cerca de cinqüenta anos, mas tinha uma cara simples, amável e ligeiramente imbecil. Todos os homens conservavam o chapéu na cabeça.
      A sopa viera da pequena casa de Giovanni. Era para Pancrazio e para ele. Mas havia apenas uma colher. Por isso,
Pancrazio tomou uma dúzia de colheradas e passou a tigela a Giovanni, que protestou e tentou recusar, mas aceitou e tomou dez colheradas, depois passou a tigela de novo ao irmão, com a colher. Assim, acabaram a tigela entre eles. Depois, Pancrazio foi à procura de vinho... um vinho esbranquiçado, não muito bom, pelo que ele se desculpou. E convidou Alvina para o café. E ela aceitou, satisfeita.
      Porque embora o lume aquecesse a parte da frente, as costas estavam muito frias. Pancrazio passou uma vara comprida e afiada pela argola de uma caçarola e estendeu-a
a Cicio, que devia suspendê-la sobre o fogo para ferver o leite, enquanto ele punha a cafeteira sobre as cinzas. Pegou num longo tubo de ferro, ou tubo de sopro, que se apoiava sobre dois pequenos pés, e entregou-o a Giovanni para soprar o fogo.
      Giovanni era um adorador do fogo. Os olhos dele faiscaram quando pegou no tubo. Pôs lenha nova na lareira, apesar de Pancrazio o ter proibido de fazê-lo. Compôs a lenha que ardia. E depois soprou ligeiramente o fogo para fazer o café.
      - Basta! Basta! - disse Cicio. Mas Giovanni soprava, os olhos cintilando, olhando para Alvina. Estava fazendo um lindo fogo para ela.
      Havia uma chávena, uma caneca esmaltada, uma pequena tigela. Era o serviço de café. Pancrazio, barulhentamente, moeu o café. Parecia ser ele quem fazia tudo, velho, abatido como estava.
      Por fim, Giovanni partiu... a cafeteira que suspendera no gancho sobre o lume estava fervendo. Cicio queimou a mão ao retirá-la. E por fim, por fim Alvina pôde ir para a cama.
      Pancrazio ia na frente com a vela, em seguida Cicio com a cafeteira negra, depois Alvina. Os homens tinham ainda o chapéu na cabeça. As suas botas pisavam com barulho os degraus nus.
      O quarto de dormir estava muito frio. Era um quarto grande, com paredes brancas e uma janela-porta, abrindo para um pequeno terraço. Tinha duas camas altas e brancas, cada uma de um lado do quarto. O lavatório era pequeno e em forma de tripé.
      O ar estava frio, gelado, o assoalho de pedra enregelava os pés. Cicio sentou-se numa cadeira e começou a tirar as botas. Alvina foi até a janela. A lua nascera. Havia uma inundação de luz sobre os deslumbrantes cumes de neve,
debilmente iluminados e maravilhosos na noite evanescente. Saiu por um momento até o terraço. Era um mundo de maravilha: a luz, sobre a neve dos montes, o leito do pálido vale, embaixo; o barulho do rio, e, em volta dela, rústicas colinas azul-escuras, com árvores cheias de ramaria. Tudo aquilo era mágico, mas tão frio...
      - É melhor fechar a janela - disse Cicio.
      Ela voltou para dentro. Estava morta de cansaço e aturdida com o frio, e sentia-se irremediavelmente suja depois de tal viagem. Cicio tinha-se deitado sem se lavar.
      - Por que é que a cama faz tanto barulho? - perguntou ela.
      O colchão era estofado com folhas secas de milho, capas secas das espigas, atingido com uma espessura enorme. Cicio fazia barulho como uma serpente entre folhas secas.
      Alvina lavou as mãos. Não havia outra coisa a fazer com a água senão jogá-la pela janela. Depois, lavou o rosto, cuidadosamente, em água quente. Que alívio! Suspirava
enquanto se limpava.
      - Isto faz bem - suspirou.
      Cicio olhava para Alvina enquanto ela escovava o cabelo. Ela estava quase embrutecida devido ao cansaço e ao ar frio e contundente. Às apalpadelas, arrastou-se para a cama alta e ruidosa. Mas esta era muito alta no meio. E estava fria como gelo. Sentiu um choque, quase como se tivesse caído dentro da água. Tremeu e sentiu-se quase inconsciente devido à fadiga. Os cobertores eram pesados, pesados! Estava perturbada com a excitação e o espanto. Sentia vagamente a tristeza de Cicio e se perguntava por quê.
      Acordou sobressaltada cerca de uma hora mais tarde. A lua entrava pelo quarto. Não sabia o que era. E tinha medo.
E tinha frio. Apossou-se dela verdadeiro terror. Cicio continuava muito quieto em sua cama. Tudo parecia eletrizado de horror. Sentia que podia morrer imediatamente; tudo era terrível à sua volta. Não podia mexer-se. Sentia que tudo em derredor era horrível, tudo a extinguia, tudo a expulsava. O seu ser estava ameaçado. De um momento para outro podia ser transfixada.
      Fazendo um esforço violento, sentou-se. O silêncio de Cicio na cama era tão horrível como o resto da noite. Tinha horror dele, também. Que poderia fazer, para onde poderia fugir? Estava perdida... perdida... absolutamente perdida.
      Esta certeza penetrou nela como gelo. Depois, deliberadamente, saiu da cama e dirigiu-se para Cicio. Ele estava horrível e medonho, mas quente. Sentiu que o poder e
o calor dele a invadiam e a faziam desfalecer. A paixão louca e desesperada que havia nele deixou-a completamente inconsciente de novo, completamente inconsciente.

      CAPÍTULO 15 - UM LUGAR CHAMADO CALIFANO

      Não há dúvida quanto a isso, Alvina era uma jovem perdida. Estava separada de tudo a que pertencia. Ovídio isolado na Trácia podia bem lamentar-se. Cada alma tem
necessidade do seu próprio alimento misterioso. Faltando esse alimento, nada vai bem.
      Em Pescocalascio era a misteriosa influência das montanhas e dos vales que parecia aniquilar constantemente
a inglesa; não, não apenas a ela, mas até mesmo às próprias
nativas. Cicio e Pancrazio agarravam-se a ela, visceralmente, como se ela os salvasse também da exterminação. Para tanto, precisava de toda a sua coragem. Na verdade, tinha de auxiliar as almas dos dois homens.
      A princípio, não podia compreender. Estava apenas aturdida com o que havia de estranho em tudo aquilo; assustada, meio arrebatada com a incrível beleza do lugar,
meio horrorizada com a maneira selvagem pela qual o lugar a aniquilava. Mas estava aturdida. Os dias iam passando.
      Parece que há lugares que nos resistem, que têm o poder de derrotar o nosso ser psíquico. É como se cada região tivesse os seus potentes centros negativos, lugares que selvagem e triunfantemente recusam a nossa cultura viva. E Alvina tinha encontrado um desses lugares, ali nas faldas dos Abruzos.
      Ela não estava exatamente na aldeia de Pescocalascio. Esta ficava a uma longa hora de caminhada. A casa de Pancrazio era a principal de um pequeno lugarejo de três
casas chamado Califano, porque os Califanos o tinham criado. Havia a casinha antiga e rústica, sem nenhuma janela, em que Pancrazio e a mãe de Cicio tinham nascido o berço da família. Depois, havia a casa de Pancrazio. Além, um pouco abaixo, uma outra casa, quase nova e moderna, sobre uma espécie de prado bravio, habitada por camponeses que cuidavam da terra. A dez minutos dali havia um outro grupo de sete ou oito casas, onde Giovanni vivia. Mas não havia lojas nem correio senão em Pescocalascio, a uma hora de mau caminho por uma estrada cheia de precipícios, rochosa e cansativa.
      E contudo, que podia haver de mais encantador que aqueles dias de sol: puros, quentes, azuis, entre os montes; pequenas colinas irregulares, escarpadas, meio selvagens,
com carvalhos castanhos e cheios de ramos e pântanos e tojos, cultivados de uma maneira selvagem e dispersa. Era lindo,
nas grotas perdidas, do outro lado de um pântano, ver Cicio lentamente conduzindo a charrua com dois grandes bois brancos; lindo ir com Pancrazio até o matagal bravio que margeava o leito do rio, depois pelo deserto de seixos brancos e maciços e, através da corrente, passar para a
outra margem, cheia de mato e selvagem, e por ali acima até
a estrada. Pancrazio sentia-se feliz quando Alvina o acompanhava. Apreciava que ela não tivesse medo. E o sentido da beleza do lugar que ela possuía era um infinito alívio para ele.
      Nada podia ser mais maravilhoso do que o crepúsculo no inverno. Às vezes, Alvina e Pancrazio voltavam tarde com o burro. E então, cuidadosamente, o burro descia os socalcos escarpados, já começando a gelar quando o sol desaparecia. E incessantemente ele atravessava a corrente enquanto uma névoa azul-violeta descia sobre o branco e amplo leito do rio, e os matagais se tornavam escuros, e no alto oh, era quase insuportavelmente belo!, a neve das montanhas próximas ardia, rósea, contra o céu azul-escuro. Ninguém poderia descrever a beleza inexprimível daquilo, o crepúsculo grandioso e pagão dos vales, selvagem, frio, com a sensação de deuses antigos
que sabiam do seu direito ao sacrifício humano. Aquilo arrebatava a alma de Alvina. Ela se sentia transfigurada naquilo, clarividente de um outro mistério da vida. Uma dureza selvagem entrava-lhe no coração. Os deuses que tinham pedido o sacrifício humano estavam certos, imutavelmente certos. Deuses ferozes, selvagens, que mergulhavam seus lábios em sangue, estes eram os verdadeiros deuses.
      O terror, a agonia, a nostalgia do passado pagão eram uma constante tortura para a sua alma mediúnica. Não sabia o que era aquilo. Mas era uma espécie de nevralgia na própria alma, que não podia ser localizada no corpo humano, e que
era física, todavia. Atravessando o cume de um monte cheio
de mato e rochas, e vendo Cicio ao longe, profundamente inclinado sobre o arado, em mangas de camisa, conduzindo os vagarosos bois castanho-pálidos, ondeantes, através de um pequeno trato de terra revolvida no matagal, a sua alma desfalecia, ela quase desmaiava à revelação de um mundo já desaparecido. E Cicio mantinha-se tão silencioso, parecia haver nele uma tão densa magia e uma tal angústia, que
dir-se-ia estar ele para sempre com medo de si mesmo e da coisa que ele era. Parecia, no seu silêncio, concentrar-se nela de uma maneira terrível. Ela pensava que não poderia mais viver.
      Por vezes ia apanhar castanhas, grandes e boas castanhas, colheita preciosa naquelas terras onde um porco gordo era quase objeto de veneração. Silenciosamente,
abaixava-se para encher o cesto. E, à distância, ouvia o barulho de Giovanni rachando lenha, de Cicio chamando os
bois ou de Pancrazio gritando para o burro, ou o ruído da
enxada de um camponês. Sobrepondo-se a tudo, o falar constante do rio correndo e a presença real, viva, das neves mais altas. E uma felicidade selvagem e terrível apossava-se
dela, transcendendo o desespero, mas ainda assim muito semelhante ao desespero. Ninguém jamais a encontraria. Saíra do mundo para um mundo pretérito, reabrira a antiga eternidade.
      E então Maria, a velha mulher de Giovanni, pequena como um elfo, subia com as vacas. Tinha prendido uma corda aos cornos de uma vaca e puxava-a da roça de milho novo para o mato cerrado, da pequena plantação de árvores para o urzal. Maria usava o vestido das camponesas, cheio de pregas e com mangas brancas, e um lenço vermelho na cabeça. Mas o vestido estava sujo e a face estava suja e os grandes brincos de ouro pendiam das orelhas, que talvez nunca tivessem sido lavadas. Estava um tanto defumada, também, pela perpétua fumaça da lareira.
      Maria, com seu lenço vermelho, puxava a vaca e
gritava-lhe, e dirigia-se rindo para Alvina, que tinha
medo das vacas. E então, esganiçando-se em dialeto, Maria
conversava com ela. Alvina sorria e tentava compreender. Impossível. Não era verdadeiramente fala humana. Era antes
um semiarticulado gritar de animais. Aquilo certamente
não era italiano. E contudo, Alvina, à força de ouvir aquilo constantemente, começava a apanhar frases coaguladas.
      Gostava de Maria. Gostava de todos eles. Eram todos muitos gentis para com ela, tanto quanto podiam. Mas podiam muito pouco. E eram gentis uns com os outros. Porque todos pareciam perdidos, como perdidos e abandonados aborígines, e tratavam Alvina como se fosse um ser superior. Gostavam dela porque ela descamisava milho e apanhava castanhas. Mas todos ansiavam por servi-la. E era como se todos necessitassem de alguém a quem servir. Era como se Alvina, a inglesa, tivesse um mágico encantamento aos olhos deles, e, enquanto ela fosse feliz, seria uma suprema alegria e um consolo terem-na ali. Mas, a ela, parecia-lhe que não poderia viver.
      E quando ela se sentia infeliz! Ah, os dias medonhos de chuva fria misturada com granizo, quando o mundo lá fora era mais do que impossível, e a casa, dentro, era um horror! As pessoas dali conservavam-se vivas com o trabalho constante, mudas e primitivas. Mas que poderia Alvina fazer?
      Porque a casa era indescritível. As duas únicas divisões habitáveis eram a cozinha e o quarto de Alvina; e a cozinha, com as janelas pequenas e gradeadas no alto da parede, uma das quais tinha um vidro partido e tinha de ficar meio fechada, era como uma caverna escura, abobadada e cheia de fumaça amarga. Sentada no banco em frente ao lume, no banco duro e gorduroso, Alvina podia na verdade manter o fogo com cavacos de carvalho verde. Mas a fumaça fazia-lhe mal aos pulmões, ela nem por um momento conseguia conservar-se limpa e nem podia fazer qualquer outra coisa. O quarto era de um frio impossível. E não havia mais nenhum lugar. E de longe
vinha o urrar selvagem de um burro, furioso e desesperado no meio da neve.
      A casa era muito grande, mas inabitável. No andar de baixo, à esquerda do largo corredor onde se metia o burro
em dias de mau tempo e onde as galinhas vagavam à procura de tesouros, havia o grande e comprido compartimento onde Pancrazio guardava seus apetrechos agrícolas, ferramentas, batatas e abóboras, e onde quatro ou cinco coelhos saltavam inesperadamente da sombra. No lado oposto, à direita, era a despensa, um lugar escuro com pipas de vinho e mais provisões agrícolas. E era só isso no andar de baixo.
      Subindo, a meio caminho, na volta da escada, havia
a entrada para uma espécie de celeiro, uma grande rede metálica atrás da qual se via o brilho das espigas de milho alaranjadas e do trigo. Em cima, havia quatro quartos. Mas só o quarto de Alvina era mobiliado. Pancrazio dormia no quarto sem mobília do lado oposto, sobre uma pilha de roupa velha. Mais adiante havia um quarto com lixo, uma cômoda e o refugo de livros velhos e de fotografias que Pancrazio trouxera da Inglaterra. Havia uma fotografia estragada de Lorde Leighton, entre outras. O quarto compartimento, com entrada pelo celeiro, estava sempre fechado.
      Fora de casa era o mesmo abandono. Houvera um pequeno jardim dentro dos muros de pedra. Mas as galinhas, os patos
e o burro tinham dado cabo de tudo. Havia por toda parte excremento de galinha, dentro e fora de casa, o burro deixava seu monte de excremento fumegando no ar de inverno à entrada da porta, enquanto o seu urrar dilacerante cortava o ar. Estradas, não havia nenhuma; apenas veredas fundas, como profundos sulcos rochosos, nas concavidades do terreno, e veredas rochosas incrustadas nos cumes. Tudo aquilo estava cheio de lama e de água, e era uma luta escorregadia passar de rochedo a rochedo ou ao longo dos estreitos caminhos de relva.
      Que fazer, pois, nas manhãs sombrias de granizo? Pancrazio trazia uma caldeira de água quente por volta das oito e meia. Não havia ele viajado pela Europa com cavalheiros ingleses, como uma espécie de modelo e criado
ao mesmo tempo? E não tinha ele adorado os seus cavalheiros ingleses? Mesmo agora, era infinitamente mais feliz tendo
essas pequenas atenções para com Alvina, do que ocupando-se das suas miseráveis propriedades.
      Cicio levantava-se cedo e vagueava ao acaso, à maneira descuidada dos italianos, durante todo o dia, sem fazer nada. Alvina saía do quarto gelado para a cozinha preta. Pancrazio, gentilmente, aquecia-lhe leite na extremidade de um pau comprido. Assim, ela se sentava no banco e bebia seu café
com leite, em que molhava pão seco. Depois, tinha o dia à sua frente.
      Lavava a sua chávena e o seu prato de esmalte e tentava limpar a cozinha. Mas Pancrazio tinha ao lume um grande pote negro, balouçando na corrente que o sustinha. Fazia comida para o eterno porco... a única criatura para quem se fazia comida. Cicio apanhava cavacos. Pancrazio entrava e saía, ia e vinha, vigiando o pote.
      Alvina coçou a sobrancelha e decidiu-se por um método
de trabalho. Uma vez que se desembaraçasse de Pancrazio, lavaria todas as xícaras, pratos e utensílios em água fervente. Bem, por fim Pancrazio saiu com o seu grande panelão negro e ela atirou-se ao trabalho. Mas não havia
seis peças de louça na casa e nem mais do que seis utensílios de cozinha. Isso depressa ficou lavado. Depois, esfregou as duas mesas e as prateleiras. Forrou a arca de comida com
papel limpo. Lavou os caixilhos das janelas e a estreita prateleira por cima da lareira, que tinha grandes montões
de cera com muito pó acumulado. Em seguida, atirou-se ao banco. Esfregou-o também. Depois, olhou para o chão. E até ela, boa dona-de-casa inglesa como era, reconheceu a futilidade de tentar lavá-lo. Seria o mesmo que tentar lavar a terra lá fora. Era terra assente em pedra. Varreu aquilo o melhor que pôde e pôs um pouco de ordem no monte de lenha, ao canto. Depois, lavou as janelas, para ver se entrava luz.
      E que diferença havia? Um cheiro úmido a sabão e não muito mais. Maria não fizera senão andar de um lado para outro, admirando, entrando e saindo, manifestando espanto
e aprovação. Tinha ostensivamente enxotado uma galinha importuna daquele templo de asseio. E foi tudo.
      Aquilo era desesperante. As mesmas paredes negras, o mesmo assoalho, o mesmo frio vindo dos fundos, a mesma fumaça de madeira verde de carvalho, o mesmo balde de água do poço... o mesmo ir-e-vir de homens ocupados, mas sem nada que fazer, o mesmo cacarejar de galinhas molhadas, o mesmo vazio sem esperanças.
      Alvina suportou aquilo algum tempo. E depois apanhou uma violenta gripe, e sentiu-se infeliz. Provavelmente, tinha sido da fumaça. Seu peito estava atacado, ela sentia-se fraca e desditosa. Não podia ficar no quarto porque também era frio. Se se sentasse na escuridão da cozinha, seria sufocada pela fumaça e teria perpetuamente frio na nuca. E Pancrazio não gostava de que o fogo se apagasse. A única esperança que lhe restava era trabalhar. Mas naquela casa não havia nada que fazer. Como poderia ela coser?
      Tinha de preparar as refeições do meio-dia e da tarde. Mas sem panelas e com a lareira cheia de fumaça, que podia ela fazer? Negra e engordurada, cozia batatas e fritava carne em banha, numa frigideira de cabo comprido. Depois, Pancrazio decretou que Maria preparasse macarrão com molho de tomate e sopa grossa de vegetais e, às vezes, polenta. Este alimento grosseiro e pesado era muito enfastiante.
      Alvina começara a acreditar que morreria no medonho
e insignificante desconforto de tudo aquilo. É verdade, os
dias de sol tinham voltado, e uma certa magia. Mas ela estava fraca e febril com a gripe, e não conseguia melhorar. De maneira que, mesmo ao sol, o cru desconforto e a selvageria inferior do lugar apenas a repeliam.
      Os outros ficavam deprimidos quando ela se sentia infeliz.
      - Tem vontade de voltar para a Inglaterra?
- perguntou-lhe Cicio, com um pouco de sardônica amargura na voz. Ela olhava para ele sem responder. O rapaz baixou a
cabeça e se foi.
      - Faremos uma lareira no outro quarto - dizia Pancrazio.
      Entrementes, Cicio convenceu Alvina a ficar na cama durante alguns dias. Ela ficou reconhecida por conseguir aquele repouso. Depois, ouviu um vaivém desusado. Pancrazio,
Cicio, Giovanni, Maria e um pedreiro meteram-se a fazer a lareira. Subiam e desciam as escadas, Maria carregando pedra e cal na cabeça e inclinando-se junto da porta de Alvina, com a carga encarapitada ao alto, para gritar algumas palavras ininteligíveis. Nos intervalos do transporte de cal, trazia à inválida sopa ou café ou leite quente.
      O trabalho ficou bem-feito - um quarto agradável
com duas janelas, que tinha sol à tarde e vista para as montanhas de um lado e para a aldeia empoleirada à distância, do outro. Quando Alvina ficou boa, marcharam numa segunda-feira muito cedo para o mercado de Ossona. Saíram de casa à luz das estrelas, mas a manhã veio quando chegaram ao rio.
Na estrada, Pancrazio arreiou o burro e, após uma demora infinda, partiram a trote para Ossona. As montanhas, de madrugada, eram maravilhosas, cinzentas, cor de malva e
cor-de-rosa o chão estalava com a geada. Ao longo da estrada, camponeses marchavam para o mercado, as mulheres com os melhores vestidos, alguns de seda espessa e pesada, com corpetes brancos e de grandes mangas, vestidos verdes, cor de alfazema, vermelho-escuros, com alegres lenços na cabeça; os homens embuçados em capotes, andando silenciosamente com suas sandálias pontiagudas; burros carregados, carroças cheias de camponeses, uma vaca vagarosa.
      O mercado estava adorável, ali na borda do desfiladeiro, na cidade velha, naquela manhã gelada de sol. Touros, vacas, ovelhas, porcos e cabras espalhavam-se sob pequenas árvores nuas, naquela plataforma muito acima do vaie; alguém acendera uma grande fogueira e homens aglomeravam-se em volta dela, para fugir da geada azul. Dos burros eram descarregados legumes, das pequenas carroças, toda espécie de coisas, botas, panelas, artigos de lata, chapéus, doces, e montões
de cereais, feijões e sementes. Por volta das oito horas,
na manhã de dezembro, o mercado estava em completa vibração: uma grande multidão de formosa gente montanhesa, todos camponeses, quase todos em trajes regionais, com diferentes chapéus.
      Cicio, Pancrazio e Alvina passeavam calmamente. Compraram potes, panelas, legumes e doces, esteiras de junco e duas cadeiras de braços de madeira e uma poltrona velha e macia, caminhando calmamente e pechinchando modestamente entre a multidão, como fazem os italianos inglesados.
      O sol apareceu sobre o mercado por volta das nove horas, e então, do terraço das portas da cidade, Alvina contemplou
o espetáculo maravilhoso dos vestidos cheios de cor das mulheres, os chapéus pretos dos homens, os montões de coisas à venda, os porcos que grunhiam, o gado de cores pálidas mas formoso, os burros bem seguros pelos cabrestos; e ela perguntava a si própria se teria de morrer antes de se integrar àquilo tudo. Era impossível para ela tornar-se una com aquilo. Cicio tinha de levá-la de novo para a Inglaterra ou para a América. Ele fazia sempre muitas alusões à América.
      Mas afinal a Itália podia entrar na guerra. Mesmo ali, esse era o grande tema das conversas. Ela contemplava o borbulhar do mercado. O sol aquecia-a. Cicio e Pancrazio barganhavam por dois tapetes de couro; ela via Cicio, de pé, com a cabeça um pouco inclinada para a frente. O seu marido! Sentia o coração se extinguindo dentro dela.
      Todas as outras mulheres dali sentiriam o que ela sentia?... A mesma espécie de paixão aquiescente, o mesmo esmaecimento de vida? Parecia-lhe que sim. A mesma paixão
irremediável pelo homem, a mesma distância da realidade do mundo? Provavelmente, sob toda aquela tensão de dinheiro e
de amealhamento de dinheiro e aquela vindicativa moralidade montanhesa e horrível religião, provavelmente sentiam o mesmo. Ela era uma delas. Mas não poderia suportar aquilo toda a vida. Aquilo era apenas um meio de testá-la. Cicio tinha de levá-la para a América, ou para a Inglaterra... para a América, preferivelmente.
      E exatamente quando ele se voltou para olhar para ela, Alvina sentiu um estranho arrepio nas entranhas: uma espécie de arrepio dentro de si, contudo exterior a ela. Apoiou a mão na ilharga. Da parte mais baixa do mercado Cicio a procurava com olhos lestos e vivos. Conseguiu descobri-la. Ela parecia resplandecer para ele com uma luz delicada, destacada de todas as mulheres. Ele veio direto a ela, com seu sorriso lento e enigmático. Não podia admitir perdê-la. Sabia quanto a amava quase inumanamente, elementarmente, sem palavras. E ela lá estava com a mão no quadril, o rosto assustado. Quase nem deu por ele. Parecia-lhe que ia ter um filho. E contudo, em todo o mercado, não via outra coisa que não fosse ele.
      - Compramos as peles - disse ele. - Vinte e sete liras cada uma.
      Ela olhou para ele, para a pele morena, para seus olhos dourados... tão próximo dela, tão unificado com ela, contudo tão incomunicavelmente remoto! Como o ser dele estava distante do dela!
      - Parece-me que vou ter um filho - disse ela.
      - Hã? - exclamou ele bruscamente. Mas compreendera.
Seus olhos brilharam de um modo estranho. Ela sentiu o
terror estranho e a beleza da paixão dele. Sentia desejos
de se deitar ali, junto das portas da cidade, ao sol, e desfalecer para sempre, inconsciente. Viver era quase demais para ela. Os olhos dele, amarelos, luminosos, olhavam-na e
envolviam-na. Não havia outra coisa a fazer senão ceder, ceder, ceder. E contudo não podia afundar-se terra adentro.
      Via Pancrazio conduzindo as peles para a carroça, que estava presa a uma árvore pequena e esbranquiçada, na planície acima do vale. Via-o abrindo caminho apressadamente
através da multidão para alcançá-los.
      - Sentiu alguma coisa? - indagou Cicio.
      - Sim... aqui! - respondeu ela, premindo a mão no lado, enquanto a sensação subia à sua consciência. Olhou para ele com olhos distantes e assustados.
      - Isso é bom - disse ele, os olhos cheios de um significado triunfante e incomunicável.
      - Bom! E agora - falou Pancrazio ao chegar -, se fôssemos comer alguma coisa?
      Trotaram para casa na pequena carroça, na tarde de inverno. Era quase noite quando desatrelaram o burro, perto da casa selvagem e isolada em que Pancrazio guardava a carroça. Giovanni estava lá com a lanterna. Cicio foi na frente com Alvina, enquanto os outros ficaram carregando o burro perto da estrada.
      Cicio olhava para Alvina cheio de atenções. Quando passaram o rio, por entre o matagal escuro, tomou-a nos braços e beijou-a com grande e terrível paixão. Ela via
os cumes nevados resplandecendo com a noite, para além
do rosto dele. Brilhavam à luz da madrugada quando ela atravessara o rio na ida, pareciam cheios de chamas brancas, agora, no crepúsculo, ao regressar. Que estranho vale de sombras estava ela atravessando? Que estranha paixão de um homem a possuía, como um anjo negro? Por que estava ela assim tão fora de si?

      CAPÍTULO 16 - INDECISÃO

      O Natal aproximava-se. Havia um montão de espigas de milho ainda por desfolhar. Alvina sentou-se com Cicio, desfolhando-as no celeiro.
      - Acha que pode ficar aqui até nascer a criança?
- perguntou Cicio.
      Ela olhava as camisas do milho de que, sob os seus dedos, saíam as espigas douradas e ardentes, o longo, áspero cone da fruição. O monte de milho a um lado aquecia como o sol quente, ela sentia-o realmente emanando calor, o monte abrasava, o monte queimava. Do outro lado, as camisas membranosas, quebradiças, secas, estavam também debilmente irradiantes. O falo longo, vermelho-ouro, da espiga aparecia, uma vez a seguir à outra, nas mãos dele e era posto delicadamente de lado. Ele olhava para ela com seus olhos amarelos.
      - Sim, acho que sim - disse ela. - E você?
      - Sim, se eles deixarem. Eu gostaria que ela nascesse aqui.
      - Você gostaria de criar uma criança aqui? - perguntou ela.
      - Você não se sentiria feliz aqui durante tanto tempo
- falou ele, tristemente.
      - E você?
      Ele abanou a cabeça, lenta e indefinidamente.
      Alvina começava a acostumar-se. Tinha o quarto no andar de cima, as xícaras e pratos e colheres, as suas coisas próprias. Pancrazio regressara a seu velho hábito, saía e ia comer com Giovanni e Maria; assim Cicio e Alvina faziam as refeições no seu quarto confortável. Eram felizes sozinhos. Só às vezes a terrível influência do lugar a corroía.
      Todavia, Alvina tinha o seu próprio quarto, asseado, onde podia coser e ler. Tinha escrito à enfermeira-chefe e a Mrs. Tuke, e esta enviara-lhe livros. Ajudava também Cicio
quando podia, e Maria a estava ensinando a fiar a lã branca de ovelha num fio grosseiro.
      Naquela manhã, Pancrazio e Giovanni tinham saído, e Alvina e Cicio estavam sozinhos, desfolhando o último milho. Repentinamente, no cinzento ar matinal, brotou uma música selvagem: o zumbido de uma gaita de foles e a voz aguda de um homem, que meio cantava e meio esganiçava versos rápidos, no fim dos quais vibrava, selvagem, um outro instrumento de sopro. Alvina ficara imóvel com a surpresa. Era uma música estranha, aguda, rápida, esganiçada, a voz autêntica das montanhas. Bela, no nosso sentido musical da palavra, não era, decerto. Mas, oh!, a magia, a nostalgia do passado indômito, pagão, que ela evocava!
      - É por causa do Natal - disse Cicio. - Agora eles virão todos os dias.
      Alvina levantou-se e foi até o terraço. Dois homens estavam parados embaixo, no meio dos flocos da neve que caía, miúda. Um, o mais velho, tinha uma gaita cujo fole estava remendado com pano branco; o mais novo estava vestido de verde, tinha o rosto levantado e estava cantando os versos da ininteligível balada de Natal; versos curtos e rápidos, seguidos de uma brilhante parte musical da flauta de madeira, que segurava na mão. Alvina pensava que lhe iria faltar o fôlego. Mas não, rápido e agudo vinha o verso seguinte, verso após verso, com o grito selvagem dado no instrumento pequeno, que abafava a gaita de foles. E as migalhas de neve eram como
um véu cheio de manchas, levemente voando na atmosfera e empoando a soleira em que eles estavam, uma soleira cheia de gravetos, folhas de árvores, palha, excremento das galinhas, dos patos e do burro, de trapos atirados da casa e de pedaços de papel.
      A cantiga terminou bruscamente, o mais novo tirou o chapéu a Alvina, que permanecia em cima, e sem tomar fôlego partiu, seguido pelo que tocava a gaita de foles. Alvina
viu-os descer apressadamente a encosta, entre os carvalhos frondosos.
      - Agora virão todos os dias, até o Natal - disse Cicio. - Vão a todas as casas.
      E com efeito, quando Alvina desceu ao andar de baixo
da casa fria e silenciosa e saiu em direção ao poço, enquanto a neve caía ainda, ela ouviu o som distante, estranho, esganiçado, maravilhoso; ela era assaltada pelo mesmo anseio, que ela não sabia por que a dominava, a ponto de sentir-se
enlouquecer, ali no silêncio velado daquelas montanhas, no grande vale montanhoso separado do mundo.
      Cicio trabalhava todo o dia no campo ou em redor da casa. Andava construindo uma privada: o lugar óbvio e sem resguardo, lá fora, era impossível. Era curioso como ele ia tão pouco a Pescocalascio, como ele se dava pouco com os naturais da terra. Parecia sempre esconder qualquer coisa deles. Só com os parentes, e tinha muitos, era mais livre, numa certa intimidade familiar.
      Todavia, mesmo então ele estava sempre desconfiado. O tio moleiro, um homem gordo e pouco limpo, casado com uma mulher cheia de ouro e sujeira e que berrava meia dúzia de palavras americanas, insistia em dar a Alvina vinho e uma espécie de bolo feito com queijo e arroz. Cicio, por sua vez, também comia no buraco negro de uma das salas. E marido e mulher pareciam desfazer-se em francas delicadezas com Alvina e Cicio.
      - São tão amáveis! - disse Alvina ao partir. - Tão generosos...
      Mas Cicio deu um sorriso contrafeito e silencioso.
      - Por que é que está fazendo caretas? - perguntou ela.
      - É porque você é estrangeira e pensam que irá embora.
      - Eu julgava que isso os faria menos generosos.
      - Não. Eles gostam de presentear os estrangeiros. Não gostam de dar coisas à gente daqui. Giacomo põe água no vinho que vende. E se eu deixo o burro no seu telheiro, tenho que dar alguma coisa à Marta Maria, ou então nunca mais me deixa pô-lo lá. Ah, o que eles são é manhosos... toda essa gente daqui.
      - São como em toda parte - disse Alvina.
      - Sim. Mas em nenhuma outra parte falam tão mal uns dos outros como aqui, em nenhuma outra parte onde eu tenha estado.
      Era difícil a Alvina compreender a desconfiança profunda e enraizada que todos os camponeses das montanhas pareciam ter uns dos outros. Eram perscrutadores, venenosos,  perigosos.
      - Ah - dizia Pancrazio -, ainda bem que há uma mulher em minha casa de novo.
      - Mas ninguém vinha aqui arrumar a casa antigamente?
- perguntava Alvina. - Por que é que não pagava a alguém?
      - Ninguém viria - falava Pancrazio, no seu inglês lento e aristocrático. - Ninguém viria porque sou um homem, e se alguém visse uma mulher aqui em casa começaria logo a falar.
      - A falar! - Alvina olhava aquele homem rugoso de setenta anos. - Mas que é que poderiam dizer?
      - Muito mal. Muito mal com certeza. Essa gente não é boa. Todos falam mal e todos são invejosos. Não gostam de mim, porque tenho uma casa... acham que eu sou signore demais. Costumam dizer-me "Por que você acha que é um signore?" Oh, é má gente, invejosa, não se meta com ela.
      - Eles são amáveis comigo! - dizia Alvina.
      - Julgam que você vai embora. Mas se ficar, eles logo dirão coisas. Espere. São maus, maus uns para com os outros, para toda a gente, menos para os estranhos que não os conhecem...
      Alvina percebia uma paixão bizarra na voz de Pancrazio, a paixão do homem que vivera muitos anos na Inglaterra e
que conhecia a confiança social da Inglaterra, e que, ao regressar ali, se sentia profundamente ferido pela malevolência antiga dos distantes e um tanto tenebrosos montanheses. Via também o motivo por que ele estava tão contente em tê-la em sua casa, tão orgulhoso, o motivo por que ele gostava de servi-la. Ele parecia ver honestidade e clareza na alma do norte, qualquer coisa de livre e de tocado pela divindade que "a gente daqui" ignorava por completo.
      Quando Alvina ia a Ossona com Pancrazio, sabia que toda gente lhe fazia perguntas sobre ela e Cicio. Começava a pegar o sentido das perguntas... a que Pancrazio respondia sem reservas.
      - E demoram-se muito por aqui?
      Essa era uma pergunta invariável e invejosa. E invariavelmente Pancrazio respondia com um reservado:
      - Uns meses. O tempo que quiserem.
      E Alvina percebia ondas de inveja negra contra Pancrazio, porque ela vivia em sua casa e porque ele se sentava com ela na carroça, quando iam para Ossona.
      Contudo, Pancrazio era, ele próprio, um bom objeto
de estudo. Era magro, andava mal vestido e estava acabado. Apenas nos seus olhos amarelos se escondia um estranho
fogo sardônico e um modo de olhar que a confundiam. Quando acontecia de Cicio não estar em casa, à tarde, ele se sentava junto dela e contava-lhe histórias de Lorde Leighton e de
Millais e de Alma Tadema e de outros acadêmicos mortos e vivos. Havia por vezes uma estranha passividade na face cansada de Pancrazio, um olhar impassível e quase de pele vermelha. E depois o homem excitava-se numa gargalhada curiosa, inquieta e malévola, que a toda gente parecia de
um velho gato sem-vergonha. A sua maneira de contar era assim: ora simples, desataviada, estóica, com uns toques de nobreza; ora satírica, maliciosa, com um estranho e repelente ar de escárnio.
      - Leighton (ele ainda não era Lorde Leighton nessa altura) não me queria por modelo porque a minha figura
era muito seca, não gostava dela. Gostava de homens novos
e bem feitos, com muitas carnes. Mas uma vez, quando ele estava fazendo um quadro... não sei se você o conhece. É a crucificação, um homem na cruz... - Descreveu o quadro.
- Não? Bom, o modelo tinha de ser preso a uma cruz de madeira. E sofria-se com aquilo! Ah! - Nesta altura, o singular, inquieto e diabólico brilho amarelo mostrava-se no estoicismo dos olhos de Pancrazio. - Porque Leighton era cruel com os modelos. Não os deixava descansar. "Ah, maldito, vai ficar aí quieto até eu acabar, diabo", dizia ele. Bom, para aquilo da cruz ele não conseguira encontrar modelo que quisesse. Todos experimentavam, mas não, nenhum queria continuar. Por isso, disseram-lhe que experimentasse Califano, porque Califano era a única pessoa capaz de agüentar aquilo. Por fim, mandou me chamar. "Eu não gosto da sua maldita figura, Califano", disse-me ele, "mas não encontro ninguém senão você. Quer fazer isso?" "Quero!", disse eu. Então atou-me à cruz. E pagou-me bem, por isso eu agüentei. Bem, conservou-me preso, pendendo-me para a frente, compreende? E nu, ali na cruz, durante quatro horas. Aí vinha o almoço. E depois do almoço prendia-me de novo. Bem, eu sofria. Sofria tanto que tinha de me encostar à parede quando ia para casa. E de noite não podia dormir, gritava com dores nos braços e nas costelas, não tinha sono. "Você disse que podia; agora tem de agüentar até o fim", dizia ele. "E agüentarei", dizia eu. E ele me prendia. A cruz estava num lugar mais alto, compreende... não sei como é o nome...
      - Estrado - sugeriu Alvina.
      - Estrado. Ora, um dia, quando ele chegou junto de mim para arranjar qualquer coisa, estando eu preso, meteu-se por trás do estrado e puxou-me, quando eu estava amarrado à cruz. Caímos os dois, eu nu por cima dele e a cruz pesada por cima de nós. Eu não podia me mexer porque estava preso. E ali estávamos os dois, eu em cima dele e com a cruz, e ele sem poder escapar. Então, começou a gritar de baixo de mim até que alguém apareceu e me soltou. Não, não ficamos feridos porque o topo da cruz caiu de modo que não nos esmagava. "Agora o senhor já provou um bocadinho da cruz", disse-lhe eu. "Sim, malandro, mas não julgue que vai embora", falou ele.
      "Para passar o tempo ele me fazia perguntas. Uma vez, disse: 'Ouve lá, Califano, que horas são? Tem direito a três tentativas e, se acertar na primeira, dou-lhe seis pence'. Então eu disse: 'Três horas'. 'Foi a primeira. Então, que horas são?' De novo eu disse: 'Três horas'. 'Foi a segunda, ouviu?, diabo, imbecil. Então, que horas são?' Mas eu estava obstinado e disse: 'Três horas'. Ele tirou o relógio do bolso. 'Ah, seu malandro, como foi que soube? Tome lá um xelim...' Eram três horas, como eu tinha dito, por isso ele me deu um xelim em vez dos seis pence que tinha prometido..."
      Era estranho, na tarde silenciosa de inverno, no andar de baixo e na cozinha negra, sentar-se tomando chá com Pancrazio e ouvindo aquelas histórias de pintores ingleses.
Era estranho olhar para a figura gasta de Pancrazio e pensar em quanto ele tinha sido crucificado durante os longos anos de Londres, para a glória da defunta arte vitoriana. E o mais estranho de tudo era ver, através dos olhos dele, amarelos, muitas vezes melancólicos e raiados de vermelho, esses pintores joviais e prestigiosos. Pancrazio considerava-os com admiração e desprezo, tal como um gato velho e libertino pode considerar esses jovens frívolos e bem-cuidados.
      Com efeito, Pancrazio nunca fora um libertino nem
um desavergonhado, antes conservara a sua moral tímida de montanês. Por isso, causava-lhe estranheza a linha esquisita
e sinistra de suas pálpebras, e metia medo o brilho estranho, perverso e amarelo que aparecia nos seus olhos. Havia nele uma espécie de chama de paixão amarelo-enxofre que lhe iluminava o corpo e lhe dava um aspecto quase diabólico. Alvina sentia que, se fosse deixada sozinha com ele muito tempo, teria necessidade de toda a sua superioridade inglesa para não o temer.
      Foi num domingo de manhã, justamente o domingo antes
de Natal, que Alvina, Cicio e Pancrazio partiram para Pescocalascio pela primeira vez. Caíra neve, não muita,
em redor da casa, mas profunda nos lugares por onde subiam.
O sol estava muito vivo, e as montanhas, inundadas de luz. A neve estava molhada, nas estradas. Caminhavam entre carvalhos e sob giestas bravas, subindo pelo emaranhamento das colinas situadas entre as montanhas, até a aproximação da aldeia. Seguiram por uma picada mais larga, onde o caminho vindo de uma aldeia distante se encontrava com o deles. Iam todos conversando no ar brilhante e claro da manhã.
      Um homenzinho desceu de uma vereda mais alta. Quando
se acercou deles, perto da aldeia, o estranho saudou-os em inglês:
      - Bom dia. Linda manhã.
      - Todo mundo fala inglês aqui? - perguntou Alvina.
      - Moro há dezoito anos em Glasgow. Só estou aqui de visita.
      Era um italiano baixo, lojista em Glasgow. Fez-se
muito amável, teimou em pagar bebidas, café e biscoitos para Alvina. Evidentemente, ele estava também reconhecido à
Grã-Bretanha.
      A aldeia era maravilhosa. Estava situada no cimo de uma elevação, no meio do vale extenso. Do alto da estrada via-se o vale espraiar-se embaixo, com toda a confusão de colinas e dois rios, metido entre as paredes das montanhas, um largo espaço, mas cercado. Cintilava com a neve sob o céu azul. Mas os pontos mais baixos estavam acastanhados. À distância, Ossona dependurava-se na beira de um penhasco. Muitas aldeias ligavam-se como pálidos enxames de aves até os declives longínquos ou empoleiravam-se nas colinas embaixo. Era um mundo dentro de um mundo, um vale de muitas colinas, aldeias e correntes de água, fechado a todo acesso.
      Pescocalascio estava cheia de gente. As estradas estavam molhadas de neve. Mas, apesar disso, camponeses em roupas domingueiras, os pés ensopados nas sandálias, acumulavam-se ao sol, comprando, vendendo, regateando peças de vestuário, conversando. Na loja, que era também um espécie de estalagem, uma velha fazia café num braseiro, ao mesmo tempo que a multidão de camponeses se sentava nas mesas ao fundo, comendo coisas que tinham comprado.
      O correio chegava ao meio-dia. Cicio foi buscá-lo, enquanto Pancrazio levou Alvina ao cimo do monte, ao castelo. Aí, num local plano, rapazes atiravam bolas de neve e gritavam. O velho castelo, cheio de fendas provocadas pelo último tremor de terra, tinha uma linda vista sobre o vale
semeado de colinas, lá embaixo. Califano, uma mancha à esquerda; Ossona, um borrão à direita, suspensa com suas torres e seu castelo bem nítidos naquela luz. Para além de Pescocalascio havia um vale profundo, quase uma garganta, no fundo do qual corria um rio, e Pancrazio mostrou a barragem elétrica da aldeia, ao longe, na obscuridade. Por cima daquela garganta, na extremidade, erguiam-se as altas encostas das montanhas, até atingirem as neves brilhantes... e mais além, ao longe, via-se a muralha dos Abruzos.
      Desceram, passando as casas arruinadas pelo tremor
de terra. Cicio ainda não viera com a correspondência.
Uma multidão agitava à porta do correio, numa rua lateral
escarpada, negra e úmida. Os pés de Alvina estavam ensopados. Pancrazio conduziu-a a um lugar onde pudessem beber café e strega, para aquecer. Na estrada, pessoas passeavam ao sol. Alvina notou alguns rapazes ultra-elegantes. Estes
dirigiram-se a Pancrazio, falando inglês. Alvina não podia suportar aquela pronúncia cockney e a vulgaridade presunçosa de tais rapazes. Também eram modelos. Pancrazio mostrou-se frio com eles.
      Alvina sentou-se, afastada da multidão de camponeses, numa cadeira que a velha ostentosamente limpara para ela. Pancrazio encomendou cerveja para si próprio. Cicio voltou com as cartas, cartas muito atrasadas, que tinham sido censuradas. O coração de Alvina desfalecia.
      A primeira que abriu era de Miss Pinnegar... só guerra, temor e ansiedade. A segunda era uma carta, uma carta verdadeiramente insultuosa do Dr. Mitchell. "Eu nunca pensei, na época em que esperava fazê-la minha mulher, que você andasse metida com um italiano qualquer, porco e tocador de órgão. Assim, a sua cara jovial escondia os desígnios e o vício da sua verdadeira natureza. Pois bem, só tenho que agradecer à Providência por me ter poupado o desgosto e a vergonha de me ter casado com você, e espero que, quando vier a encontrá-la nas ruas de Leicester Square, eu a tenha perdoado o suficiente para lhe poder atirar uma moeda..."
      Ali estava uma linda carta! Apesar do seu esforço, empalideceu e começou a tremer. Olhou de relance para Cicio. Felizmente ele se voltara, conversando com outro homem. Levantou-se e foi até junto do braseiro rubro, como que para aquecer as mãos. E atirou nela a carta amarrotada. A velha disse-lhe qualquer coisa ininteligível. Viu a carta começar a arder... olhou para os camponeses, sentados à mesa, e para o vale vasto e selvagem. O mundo lá fora não podia ajudá-la, antes tinha o poder de ferir uma pessoa. Sentia-se como se tivesse recebido uma bofetada. Um ódio sombrio contra todos os Mitchells do mundo apossara-se dela.
      Dificilmente, conseguiu abrir a terceira carta. Era
de Mrs. Tuke, e, mais uma vez, só guerra. Juntar-se-ia a Itália aos Aliados? Devia fazê-lo porque estava nisso o
seu interesse. Como podia Alvina estar tão longe quando acontecimentos tão horríveis se davam tão perto? Seria possível que ela fosse feliz? As enfermeiras eram tão úteis então... Ela, Mrs. Tuke, alistara-se como voluntária. Faria tudo o que pudesse. Tivera de deixar de ocupar-se de Jenifer, que agora tinha uma excelente enfermeira escocesa, melhor do que uma mãe. Pois bem, Alvina e Mrs. Tuke podiam ainda encontrar-se em algum hospital na França. Era assim que a carta terminava.
      Alvina sentara-se, pálida e tremente. Pancrazio olhava para ela, cheio de curiosidade.
      - Teve más notícias? - perguntou.
      - Só falam em guerra.
      - Ah! - E fez um gesto bem italiano. - O que se pode fazer?
      Falavam da guerra... só se falava da guerra. Os jovens modelos elegantes haviam saído da Inglaterra por causa da guerra, esperando que a Itália entrasse nela. E toda a gente falava, falava, falava. Alvina olhou em redor. Tudo parecia alheio a ela, deixando-a magoada.
      - Parece-lhe que eu poderei vir aqui sozinha fazer compras? - perguntou ela.
      - Não deve vir nunca sozinha - disse Pancrazio, com
a sua amabilidade curiosa e benevolente. - Ou Cicio ou eu viremos com você. Nunca deve vir tão longe sozinha.
      - Por quê?
      - Você aqui é uma estrangeira. Não é uma conta-dina...
- Alvina sentia aqui a concepção oriental da mulher, que ainda conserva a sua marca no Mediterrâneo, ameaçando-a
de vigilância e submissão. Estava sentada na cadeira, com
os pés molhados, olhando para o sol lá fora, para a neve molhada, para as figuras movendo-se sob a luz forte, para os homens bebendo no balcão, para o enxame de mulheres regateando na compra de panos. Cicio continuava de costas, conversando de modo vivo com o vizinho. Sabia que era sobre
a guerra. Notava-lhe o movimento das faces bem modeladas, um pouco pálidas naquela manhã. E levantou-se com ligeireza.
      - Quero tomar sol - disse ela.
      Quando chegou ao lugar de onde se dominava o vale, à
luz forte e brilhante, relanceou um olhar em volta. Cicio, dentro da loja, tinha-se levantado mas continuava voltado para o vizinho, falando e movendo as mãos e o corpo todo.
Ele não falava somente com a cabeça e com os lábios. Todo o seu físico, todo o seu corpo vivo falava e dissertava e se exaltava.
      Uma certa lassidão envolvia Alvina. Começava a compreender um pouco Cicio; a falta de sentido do lar e
 da vida doméstica que nele se notava, ao contrário do que
acontecia com os ingleses. O lar de Cicio nunca seria para ele um castelo. Para ele o castelo era a praça de Pescocalascio. Para ele o lar não era mais do que uma
propriedade e um buraco dentro do qual se dormia. Ele não vivia lá. Vivia ao ar livre e na comunidade. Quando o italiano verdadeiro aparecia nele, o seu lar mais autêntico era a praça de Pescocalascio, aquela espécie de praça de mercado pequenina, onde as ruas da aldeia se encontram, sob o castelo, e onde os homens paravam em grupos e conversavam, conversavam, conversavam. Àquilo é que pertencia Cicio: o ser ativo e pensante de Cicio. Esse ser ativo e pensante em nada pertencia a ela. Ela tinha dele apenas o ser passivo e a paixão familiar. O espírito e a inteligência masculinos de Cicio tinham seu lar no pequeno largo público da sua aldeia.
Ela compreendeu isso ao vê-lo então, falando de política com todo o corpo. Ele não podia parar enquanto não acabasse. E depois, com um aperto de mão rápido e íntimo aos do grupo com quem tinha estado reunido, afastou-se, perdendo todo o interesse.
      Alvina tentou fazê-lo falar e discutir com ela. Mas
ele não quis. Seu espírito obstinado fazia-o recusar melancolicamente qualquer conversa masculina com ela.
      - Se a Itália entrar na guerra, você irá também?
- perguntou ela.
      - Vou - respondeu ele, sorrindo da futilidade da pergunta.
      - E eu ficarei aqui?
      Ele meneou a cabeça, melancolicamente.
      - Você tem vontade de ir? - insistiu ela.
      - Não, não quero ir.
      - Mas não acha que a Itália deveria entrar na guerra?
      - Sim, acho.
      - Então, você quer ir...
      - Quero ir se a Itália entrar... e a Itália deveria entrar...
      Era curioso como ele tinha um certo medo dela, como
ele a semi venerava e semidesprezava. Quando ela procurava
fazê-lo discutir, em conversa masculina, ele fechava-se
obstinadamente contra ela, um pouco como uma criança, e um sorriso lento e débil de desagrado surgia-lhe na face. Instintivamente fugia a qualquer comunicação masculina com ela, particularmente quanto a política e religião. Discutia uma e outra, violentamente, com homens. Em política, era mais ou menos um socialista; em religião, livre pensador. Mas nada disso tinha que ver com Alvina. Não discutiria em inglês.
      Numa parte qualquer da alma, Alvina conhecia o motivo da recusa dele em discutir com uma mulher. Por isso, embora por vezes o coração se lhe endurecesse de cólera, ela deixava-se ficar de fora. Tanto mais que sentia ser ele bastante estúpido em assuntos intelectuais. O melhor era deixar que ele fosse para a praça ou para a taberna, conversar.
      Fazendo-lhe justiça, ele ia pouco. Pescocalascio era apenas pela metade a sua aldeia. A nostalgia, o campanilismo de que os italianos sofrem, a ânsia de ter diante dos olhos
a torre da igreja natal, de parar e conversar no largo ou na praça nativa do mercado, isto só em metade se formara em Cicio, levado como tinha sido de Pescocalascio quando era ainda muito novo. Gastava a maior parte do tempo trabalhando nos campos e nos bosques, a maior parte das noites em casa, freqüentemente tecendo um modelo especial de rede de pesca ou de cesto feito de frágeis tiras de junco. Era um trabalho que ele aprendera em Nápoles havia muito. Alvina, entretanto, fazia roupas para a criança ou fiava lã. Tornara-se muito entendida no puxar das malhas de lã da roca, enrolando-as finas e iguais entre os dedos e, mantendo o fuso rapidamente girando embaixo, balançando-se no extremo do fio. Para dizer a verdade, ela sentia-se feliz naquela tranqüilidade, junto de Cicio, agora que tinham a sua confortável sala própria. Adorava a presença de Cicio. Adorava a natureza do silêncio dele, tão rico e físico. Não o sentia nunca muito longínquo, pois ele era em muito um estranho em Califano, assim como ela o era; pois ele unia-se à presença dela tal como ela à dele. Depois, Pancrazio, também, esforçava-se por servi-la e protegê-la... ele a adorava por estar ali. Ambos a entretinham porque estava para ter um filho. Ela vivia assim cada vez mais num pequeno, isolado, ilusório, maravilhoso mundo, contente, além disso, por a vida custar tão pouco. Tinha sessenta libras de dinheiro seu, sempre intatas no pequeno armário. E no fim das contas a estrada do lado de lá do rio levava a Ossona, e Ossona dava acesso à estrada de ferro e a estrada de ferro conduzi-la-ia a qualquer parte.
      Assim se passou o mês de janeiro com seus dias curtos, seus bocados de neve e seus momentos de sol. Nos dias de sol, Alvina passeava até o leito do rio, que a fascinava. Quando Pancrazio transportava pedra ou cal com o burro, ela o acompanhava. E Pancrazio transportava sempre qualquer coisa, porque gostava muito mais de trabalhos como o de construir uma lareira do que das tarefas pesadas da terra. Então, ela procurava moitas de narcisos bravos entre as rochas, coisinhas pálidas com o centro dourado, muitas num só pé. E
o cheiro deles era potente e mágico, como a voz dos homens que tinham vindo todos aqueles dias e cantado até o Natal. Gostava muito deles. Havia heléboros também, uma planta fascinante... e um ou dois pequenos tesouros, os últimos ciclames alpinos cor-de-rosa, junto à terra, com folhas de pele de serpente, e tão rosados, tão rosados, como a sombra de violetas. Sentou-se e chorou ao encontrar o primeiro: sabe Deus por quê.
      Em fevereiro, quando os dias se tornaram longos, as primeiras amendoeiras floriram por entre as oliveiras cinzentas, em porções de terreno planos e quentes, entre
as colinas. Mas só em março começava a florescência verdadeira. E então havia manchas contínuas de violetas brancas e azuis, havia ramos de flores de amendoeira,
de um prateado quente e brilhante, depois ramos de pessegueiros e de damascos, vermelhos e palpitantes. Era muito agradável passear olhando para as flores. Descobriu
um maciço todo cheio de alfazemas. O sol as iluminava naquele momento e todas se abriam em grandes estrelas lilases de cinco e de sete pontas, com o centro como uma brasa, queimando com uma chama estranha de alfazema, tal como os metais de chama lilás que ela vira arder no laboratório do hospital em Islington. Ao longo do maciço de carvalhos secos elas expunham o brilho das suas grandes estrelas. E Alvina tinha vontade de cair de joelhos e inclinar a fronte para a terra em submissão oriental, pois as flores eram majestosas, adoráveis, supremas. Ela vinha vê-las de novo de manhã, quando o céu estava cinzento e elas eram massas fechadas e bem definidas, maravilhosamente frágeis em seus pés cheios de seiva, no meio de folhas, relva velha e caramujos selvagens. Tinham maravilhosas listras escuras nas faces, as alfazemas, como as listras vivas e orgulhosas do focinho de um texugo ou de algum gato orgulhoso. Ela colheu um maço cheio daquelas chamas seivosas, fechadas e listradas. No seu quarto, as flores se abriram numa grande taça de fogo lilás.
      Março era um mês adorável. Os homens andavam ocupados nos montes, ela deixava-se andar ao acaso, ampliando os seus passeios. Por vezes, sentia um medo estranho. Mas era medo dos elementos mais do que do homem. Um dia, seguiu pela estrada, com suas cartas, em direção à aldeia de Casa Latina. A estrada era desagradável enquanto havia casas. Porque as casas tinham o aspecto sórdido, desmoronado, pobre, quase invariável numa estrada italiana. Eram borrifadas com uma cor verde-terra e repugnante, manchadas como se tivessem lepra. Tal aspecto assustava-a, até que Pancrazio lhe disse que aquilo era somente sulfato de cobre que fora espalhado nas videiras presas às paredes. Mas mesmo assim as casas eram sórdidas, desalinhadas, pobres. Uma casa por si só tornava sujo um bairro inteiro.
      Casa Latina ficava do outro lado do vale, numa região sombreada. Nas proximidades, havia filas de barracos baixos, com aspecto de novos. Eram residências de um só andar, construídas depois do tremor de terra. E tinham um aspecto repugnante. A própria aldeia era velha, escura, na sombra perpétua da montanha. Torrentes de água fria corriam em volta. A praça era triste, abandonada. Mas tinha uma grande igreja de duas torres, maravilhosa quando vista por fora.
      Ela entrou no templo e ficou quase doente com a repulsa que sentiu. A igreja era grande, caiada de branco e cheia de
figuras encerradas em vitrinas e de ex-votos oferecidos. As imagens de aspecto miserável e mal-vestidas, de tamanho natural e enfeitadas, que estavam nas vitrinas; o Jesus raiado de sangue no crucifixo; as camponesas terrosas, murmurantes e imundas, ajoelhadas; todo aquele sentido de vil, repulsiva e degradante adoração idolatra, tudo isso era demasiado para ela. Saiu correndo, contraindo-se para não ser tocada pelo sujo guarda-vento de couro.
      Bastava de Casa Latina. Nunca mais voltaria lã.
Começara a sentir que, se vivesse nessa parte do mundo, teria de evitar os interiores. Nunca deveria, se fosse possível, entrar em qualquer interior que não o seu próprio... nem em casas nem na igreja, nem mesmo nas lojas ou no correio, se fosse possível. No momento em que entrava por uma porta, o sentido de sombria repulsa dominava-a. Se queria guardar o seu perfeito juízo tinha de manter-se ao ar livre e evitar qualquer contato com interiores humanos. Quando pensava nos interiores dos nativos tremia de repulsa, como na igreja grande e degradante de Casa Latina. Eram horríveis.
      Todavia, o mundo exterior era muito belo. O trigo e o milho cresciam, verdes e sedosos, as videiras estavam no começo da germinação. Por toda parte cachos de jacintos
suspendiam as suas campainhas azuis. Era pena que estas lhe lembrassem a Ártemis de muitos seios, cujo retrato ou cuja estátua ela vira em alguma parte. Ártemis, com os seus cachos de seios, parecia-lhe horrível, agora que ela estava no sul; nauseabunda até mais não poder. E os cachos leitosos de jacintos traziam aquela deusa à sua lembrança.
      Virava-se com reconhecimento para as anêmonas magenta, que eram muito alegres. Alguém lhe dissera que em todo lugar em que Vênus vertera uma lágrima por Adônis, uma daquelas flores brotara. Mas não se pareciam com lágrimas. E contudo
o seu aspecto sedoso e vermelho-púrpura tinha em si qualquer coisa do mundo pretérito, no fim das contas. Quanto mais ela vagava, tanto mais a sombra do passado mundo pagão parecia dominá-la. Às vezes, sentia-se prestes a gritar e a perder
o juízo, tão forte era a influência sobre ela, qualquer
coisa do mundo pretérito e, parecia-lhe agora, vingativo.
Parecia-lhe sentir no ar Fúrias estranhas, Lêmures, coisas
que a atormentavam com a sua vingança frenética de
além-túmulo desde os tempos de criança em que esquadrinhava
o Dicionário clássico ilustrado. Andavam no ar presenças
negras e cruéis. Eram furtivas e escorregadias. Enfeitiçavam as pessoas com o seu encanto e ocultavam-se com suas presas para depois as ferir. Era isso: as garras dissimulavam-se
em beleza; primeiro a beleza e depois, horrivelmente, inevitavelmente, as presas.
      Estando muito só naquele estranho lugar, visões possuíam-na, as pessoas tomavam formas estranhas. Até mesmo Cicio e Pancrazio. E começou a não se afastar muito de casa, do quarto, após os primeiros meses. Parecia esconder-se no quarto. Ali cosia e fiava lã e lia e aprendia italiano. Os homens da casa não tinham nenhum desejo de lhe ensinar italiano. De fato o seu primeiro mestre foi um rapaz chamado Bussolo. Era um modelo de Londres e vinha por vezes a Califano, rondando, ansioso por falar inglês.
      Alvina não se importava com ele. Era um jovem de olhos cinzento-pálidos e com uma figura pesada. Contudo, tinha certa inteligência penetrante.
      - Não, este é um lugar para velhos. Só para velhos
- dizia ele, falando de Pescocalascio. - Você não pode ficar aqui. Nenhuma pessoa jovem pode ficar aqui.
      A esquisita e plangente certeza da voz dele penetrava-a. E todas as pessoas jovens falavam da mesma maneira. Todos estavam à espera de poder partir. Mas de momento a guerra não o permitia.
      Cicio e Pancrazio andavam ocupados com as vinhas. Quando os via cavando, abaixando-se, atando os ramos, cuidando das coisas, enxertando, sem pensar em nada e inteiramente absorvidos, hora após hora, dia após dia, só pensando em vinhas, só vivendo das vinhas, ela perguntava a si própria
se não começavam a germinar renovos de vinhas e pés de videira nos cotovelos e nos ombros deles. Havia qualquer coisa que ela não percebia na qualidade de atenção que os homens davam ao vinho. Era uma espécie de culto, quase uma degradação. E Deus sabe como o vinho de Pancrazio era reles, as uvas quase invariavelmente desmanteladas por pedras de granizo e meio apodrecidas em vez de maduras.
      O encanto de abril chegou com o sol quente. Espantosa
a ferocidade do sol quando realmente se decidiu a queimar. Alvina estava assombrada. O dia escaldante arrebatava-a.
Ela gostava: aquilo tirava-lhe todos os cuidados, fazia-a passear com majestade no fluxo poderoso do sol. No fim, sentia que aquela intensa luz de sol tinha sobre ela o efeito da noite; uma espécie de treva e a suspensão da vida. Tinha de se esconder no quarto até que o vento frio soprasse de novo.
      Entretanto, a declaração de guerra aproximava-se e tornava-se inevitável. Sabia que Cicio partiria. E com
ele ia-se a possibilidade de fuga. Fazia-se forte como o
aço para suportar a angústia de saber que ele partiria e
que ela seria deixada sozinha naquele lugar que tantas
vezes odiava com um ódio indizível. Depois de um período quente e intensamente seco, começou a pensar que morreria naquele vale, que se fanaria e se faria em pó como certas rosas de abril murcham e secam, fazendo-se em pó contra uma parede quente. Depois, voltou o vento frio, que veio com uma tempestade; no dia seguinte o céu tornou-se cinzento e o ar, macio. Os gladíolos silvestres, na sua cor rósea, entre o trigo novo ainda verde, eram um sonho de beleza. A manhã do mundo. Adorável, prístina manhã do mundo, antes do começo
da nossa era. Gladíolos cor-de-rosa entre o trigo, entre
as rochas, e íris pequenos, vermelho-escuros e amarelos,
salpicados de castanho, como vespas, nasciam junto à terra, em lugares desertos, e pareceriam abandonados se não fosse aquela sobrenatural, sombria e brilhante magnificência. Depois, havia os íris delgados, só com um dedo de altura, crescendo em lugares secos, frágeis como alfazemas, e muito mais delgados e azuis, azuis como os olhos do céu matinal, que fosse manhã mais cedo, manhã mais prístina do que a nossa. Os adoráveis, translúcidos e pálidos íris, delgados
e cor do azul da manhã, duravam apenas algumas horas. Mas nada havia mais estranho; eram como deuses sobre a terra. Eram as flores que traziam a Alvina a apaixonada nostalgia
do lugar. A influência humana tinha o seu quê de horrível para ela. Mas as flores, que apareciam e saíam da terra em mágica expressão, essas flores a encantavam, enfeitiçavam-na e roubavam-lhe a própria alma.
      Ela dirigiu-se para junto de Cicio, que tirava braçadas de gladíolos cor-de-rosa de entre o trigo meio crescido e cortava as primeiras ervas daninhas cheias de suco. Atirou para o chão os molhos de gladíolos e, com a foice, começou
a cortar a floresta de malmequeres amarelo-vivos. Tinha o ar de quem andava absorvido, parecia
trabalhar febrilmente.
      - É preciso cortá-los todos? - disse ela, chegando junto dele.
      Ele atirou para o lado uma grande braçada de flores amarelas, tirou o boné e limpou o suor da testa. A foice ficou balouçando em sua mão.
      - Declaramos guerra - disse ele.
      Num momento, ela lembrou-se de que tinha visto a figura do velho carteiro caminhando cautelosamente entre os rochedos. O vermelho e o amarelo-ouro das flores dançavam-lhe
nos olhos. Os olhos amarelo-escuros de Cicio fixavam-na. Caiu de joelhos sobre um feixe de malmequeres. Seus olhos, fixando Cicio, estavam vulneráveis, como que atacados de morte. Com efeito, julgava que ia morrer.
      - Você tem de ir? - disse.
      - Sim, temos todos de ir. - Havia certo tom de triunfo na voz dele. Cruel!
      Ela afundou-se ainda mais sobre as flores e sua cabeça pendeu. Mas não podia ser derrotada. Levantou o rosto.
      - Se você demorar muito, irei para a Inglaterra. Não posso ficar aqui muito tempo sem você.
      - Tem Pancrazio... e a criança - disse ele.
      - Sim. Mas continuarei sendo eu mesma. Não posso ficar aqui muito tempo sem você. Irei para a Inglaterra.
      Ele olhou-a fugidiamente.
      - Não creio que a deixem ir - disse ele.
      - Sim, deixarão.
      Em certos momentos ela o odiava. Cicio parecia querer esmagá-la por completo. Ela estava sempre fazendo pequenos planos na cabeça... como poderia sair daquele vale extenso
e cruel e escapar para Roma, para junto da gente inglesa? Procuraria o cônsul inglês e ele a ajudaria. Faria tudo para não ser realmente esmagada. Sabia como seria fácil, uma vez que a coragem se lhe quebrasse, morrer e ser sepultada no cemitério de Pescocalascio.
      E todos mostrariam muito sentimento por ela... tal
como Pancrazio mostrava. Sentia que de certo modo Pancrazio matara a mulher; não conscientemente, mas inconscientemente, como Cicio poderia matar a ela. Pancrazio falara a Alvina da mulher e do seu sofrimento. E parecia sempre desejoso de mostrar que tinha sido muito bom para ela. Sem dúvida, ele tinha sido bondoso. Mas havia qualquer coisa por baixo...
a malevolência do espírito, certa espécie de crueldade enjaulada nele, uma malignidade que ele não podia evitar. Isso ressaltava das suas histórias. E revelava-se no seu terror pela defunta mulher. Alvina sabia que, de noite, aquele homem já entrado em anos tinha medo da defunta mulher e do fantasma vingador ou do espírito dela. Seria capaz de se atirar ao fogo, com medo. Do mesmo modo, o cemitério exercia
sobre ele uma fascinação de horror... como, notava Alvina, sobre a maior parte dos naturais dali. O cemitério era um lugar feio e quadrado, com lajes de pedra e uma espécie de armários embutidos, cercado por quatro muros e situado na parte de baixo de Pescocalascio, como se ficasse sobre um estrado.
      - Ali é o nosso cemitério - dizia Pancrazio, apontando-o a Alvina -, para onde todos havemos de ir um dia.
      E havia medo, horror na voz dele. Contou a Alvina como os homens tinham conduzido a mulher, uma longa jornada pelas veredas das colinas, quase duas horas.
      Aqueles dias foram de expectativa... dias horríveis
na expectativa de que Cicio fosse chamado. Uma fornada de rapazes partiu da aldeia e houve uma espécie de lúgubre
saturnal, homens e mulheres embriagando-se igualmente, partindo os rapazes no meio de gemidos de lamentações e de ais de angústia. Foram acompanhados por multidões de gente até Ossona, de onde marcharam em direção à estrada de ferro. Foi um acontecimento horrível.
      Um calafrio de horror e morte atravessava o vale. Lugubremente, as pessoas pareciam gostar disso.
      - Você só estará satisfeito quando partir - disse ela a Cicio. - Por que será que não o chamam logo?
      - Será na semana que vem - disse ele, olhando para Alvina sombriamente. Chegou-se para junto dela à luz crepuscular, em que ela mal podia vê-lo.
      - Está arrependida de ter vindo comigo, Allaye?
- perguntou. Havia malícia naquela pergunta.
      Ela deixou cair a colher e levantou os olhos
do lume. Cicio estava de pé, figura feita de sombra, a
cabeça inclinada para a frente, a débil luz do lume refletindo-se-lhe na face enigmática, sem idade, meio sorridente.
      - Não estou arrependida - respondeu ela lentamente, apelando para toda a sua coragem. - Porque o amo...
      Alvina abaixou-se, imóvel, sobre o lume. Ele voltou
a face para o lado. Depois de alguns instantes, saiu. Ela mexia a panela vagarosa e tristemente. Tinha de ir ao andar de baixo fazer qualquer coisa.
      E, no patamar, viu-o de pé na obscuridade, com um braço junto do rosto, como que desviando um golpe.
      - Que é? - disse ela, pondo uma das mãos sobre Cicio. Este destapou o rosto.
      - Eu a levaria daqui, se pudesse - disse.
      - Posso esperar por você - respondeu ela.
      Cicio atirou-se para uma cadeira que estava junto da mesa, ali no largo patamar, e enterrou a cabeça nos braços.
      - Não espere por mim! Não espere por mim! - gritava, com a voz abafada.
      - Por quê? - disse ela, cheia de terror. Ele nem fez
um gesto. - Por quê? - insistiu. E pousou os dedos sobre a cabeça dele.
      Cicio levantou-se e virou-se para ela.
      - Eu o amo, mesmo que morra por isso - disse ela.
      Mas Cicio virou-se para o lado de novo, apoiou o braço
à parede e escondeu o rosto, sem dizer uma palavra.
      - Que é? - dizia ela. - Que é? Não compreendo. Ele limpou o rosto com a manga e voltou-se para a mulher.
      - Não tenho esperança nenhuma - disse, numa voz entorpecida e áspera.
      Alvina sentiu que o coração e a criança se extinguiam dentro de si.
      - Por quê? - indagou. Teria ela de dar à luz uma
criança sem esperança? - Você tem esperança. Não faça
cenas - interrompeu ela. E foi ao andar de baixo, como tinha
decidido.
      Mas quando chegou à cozinha esqueceu-se do que ia fazer lá. Sentou-se no escuro, numa cadeira, toda a sua vida tornando-se sombria e imóvel, a morte e a eternidade
fixando-se sobre ela. A morte e a eternidade fixaram-se sobre ela, sentada ali sozinha. E pareceu-lhe ouvir Cicio gemendo lá em cima: "Eu não posso voltar. Eu não posso voltar". Ouviu isso. Ouviu tão distintamente que nunca saberia se tinha sido realmente pronunciado ou se era o seu ouvido interno que tinha ouvido um som interior e inexprimível. Quis responder, chamá-lo. Mas não pôde. Pesada, muda, sem forças, ali estava, sentada como uma massa de sombra, naquela maldita cozinha italiana. "Eu não posso voltar." Ela ouvia isso, como algo fatal.
      Foi interrompida pela entrada de Pancrazio.
      - Oh! - exclamou ele, dando um pulo quando, ao chegar junto do lume, deu por Alvina. E disse qualquer coisa, cheio de medo, em italiano.
      - É você? Por que está no escuro?
      - Ia agora mesmo lá para cima de novo.
      - Assustou-me.
      Ela subiu para preparar a comida. Cicio desceu para junto de Pancrazio. Este tinha trazido um jornal. Os dois homens sentaram-se no banco, com a luz entre eles, lendo e conversando sobre as notícias.
      A classe de Cicio seria chamada na semana seguinte,
como ele tinha dito. A partida pairava sobre eles, como uma
condenação. Aqueles foram talvez os piores dias: os dias da partida iminente. Nenhum deles falava nisso.
      Mas na noite da véspera da partida, ela não pôde suportar mais o silêncio.
      - Há de voltar, não é verdade? - disse ela, estando ele sentado, imóvel, numa cadeira do quarto. Era uma noite quente e luminosa. Vinha ainda do jardim um último perfume de flor de laranjeira, um rouxinol fazia tremer o ar com o seu canto. Noutros momentos, um perfume de mel chegava flutuando das colinas.
      - Volta? - insistiu ela.
      - Quem sabe? - replicou ele.
      - Se se convencer de que há de voltar, volta com certeza. O destino está nas nossas mãos.
      Ele sorriu lentamente.
      - Acha que sim? - perguntou ele.
      - Tenho certeza. Se você não voltar é porque não quis... só por isso. Não porque não pôde. É porque não quis.
      - Quem lhe disse? - perguntou ele com o mesmo sorriso cruel.
      - Tenho certeza.
      - Está bem - falou Cicio.
      Mas continuou sentado, as mãos abandonadas entre os joelhos.
      - Deve convencer-se disso - falou Alvina.
      Ele manteve-se sentado por muito tempo; enquanto ela
se despiu, escovou o cabelo e se meteu na cama. E continuou sentado e imóvel, como um cadáver. Era como ter ali no quarto uma presença desnaturada, maldita, insuportável. Alvina apagou a luz porque não tinha necessidade de vê-lo. Mas no escuro era pior.
      Por fim, ele se mexeu... levantou-se. Caminhou, hesitante, para ela.
      - Eu voltarei, Allaye - disse tranqüilamente. - Malditos sejam todos eles.
      Ela percebeu uma dor indizível na voz de Cicio.
      - Malditos quem? - indagou ela, sentando-se na cama.
      Cicio não respondeu, mas enlaçou-a com os braços.
      - Eu voltarei e depois iremos para a América - falou.
      - Voltará para mim - murmurou Alvina, num êxtase de dor e de alívio. Não lhe competia decidir para onde iriam, desde que Cicio realmente voltasse para junto dela.
      - Eu voltarei - disse ele.
      - Com certeza? - murmurou Alvina, apertando-o contra si.

 

 

                                                                  D.H. Lawrence

 

 

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