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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DA AURORA / S. L. Farrell
A MAGIA DA AURORA / S. L. Farrell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

 

 

 

 

 

                         LAMENTAÇÕES

 

          Allesandra ca’Vörl

          Varina ca’Pallo

          Sergei ca’Rudka

          Allesandra ca’Vörl

          Nico Morel

          Brie ca’Ostheim

          Allesandra ca’Vörl

          Rochelle Botelli

          Sergei ca’Rudka

          Jan ca’Ostheim

          Varina ca’Pallo

          Niente

 


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.


CONTINUA

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

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LAMENTAÇÕES

Allesandra ca’Vörl

Varina ca’Pallo

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Brie ca’Ostheim

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Ostheim

Varina ca’Pallo

Niente


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.


CONTINUA

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

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LAMENTAÇÕES

Allesandra ca’Vörl

Varina ca’Pallo

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Brie ca’Ostheim

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Ostheim

Varina ca’Pallo

Niente


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.


CONTINUA

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

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LAMENTAÇÕES

Allesandra ca’Vörl

Varina ca’Pallo

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Brie ca’Ostheim

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Ostheim

Varina ca’Pallo

Niente


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.


CONTINUA

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

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LAMENTAÇÕES

Allesandra ca’Vörl

Varina ca’Pallo

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Brie ca’Ostheim

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Ostheim

Varina ca’Pallo

Niente


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.


CONTINUA

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

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LAMENTAÇÕES

Allesandra ca’Vörl

Varina ca’Pallo

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Brie ca’Ostheim

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Ostheim

Varina ca’Pallo

Niente


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.


CONTINUA

Ela testemunhou o florescer de toda a sua prosperidade e beleza durante o longo reinado da kraljica Marguerite. Nesse magnífico meio século, a longa infância de Nessântico, e sua ainda mais longa adolescência, culminaram em uma mistura de elegância e poder inigualável em qualquer lugar do mundo conhecido. Por cinquenta anos, ela não teve outra igual. Por cinquenta anos, ela acreditou que esse presente glorioso seria eterno, que sua ascensão iria — não, deveria — continuar.
Sua superioridade era consagrada. Era predestinada. Duraria para sempre.
Não durou.
A kraljica Marguerite, assim como todos aqueles que governaram dentro das fronteiras de Nessântico, era humana e mortal; Justi, seu filho, e depois Audric, filho de Justi, herdaram o Trono do Sol, mas não os talentos de Marguerite. Sem o pulso firme da matriarca, sem sua lábia e sabedoria, o florescer de Nessântico teve, lamentavelmente, vida curta. O desabrochar do futuro promissor de Marguerite murchou e morreu em muito menos tempo que levou para florescer.
Ainda pior, rivais se ergueram contra Nessântico. Firenzcia a traiu; Firenzcia, a cidade-irmã que sempre a invejou; Firenzcia, que sempre fora sua companheira, sua força, seu escudo e sua espada. Firenzcia a abandonou para formar seu próprio império.
E do desconhecido oeste impôs-se um novo, e mais cruel, desafio: um império estrangeiro, desconhecido, tão forte quanto a própria Nessântico. Mais forte, talvez; porque os tehuantinos — como eram chamados — não só arrancaram o controle de Nessântico sobre seu litoral, como mandaram um exército pelo mar para saquear, estuprar e destruir as cidades dos Domínios e despedaçar as muralhas da própria Nessântico.
O ataque deixou Nessântico abalada e amedrontada. Ela ficou manchada com a fuligem do fogo mágico e foi duas vezes pisoteada pelas botas de soldados estrangeiros: primeiro as dos tehuantinos, depois as dos firenzcianos. A beleza arquitetônica de seus prédios transformou-se em colunas em ruínas, domos quebrados e carcaças sem teto. O A’Sele ficou apinhado de cadáveres e lixo.
Nessântico... uma mulher esgotada por suas lutas, envelhecida pelas preocupações, e vestida com os farrapos rasgados da sua antiga supremacia. Seu senso de segurança e inevitabilidade foi perdido, talvez — temia ela — para sempre. O cheiro ainda permanecia em suas ruas: um fedor nauseabundo de carne podre, sangue e cinzas.
Uma entidade menor teria entrado em colapso. Uma entidade menor teria olhado para seu pobre reflexo nas águas imundas do rio A’Sele e visto a máscara esquelética da morte devolver o olhar. Uma entidade menor teria desistido e cedido sua supremacia a Firenzcia ou às incomparáveis cidades tehuantinas.
Mas ela não.
Não Nessântico.
Ela recolheu os farrapos em volta de si. Empertigou-se e limpou-se o melhor que pôde. Envolveu-se no orgulho, nas memórias, na convicção e na promessa de que um dia, um dia, todo o mundo se curvaria novamente diante dela.
Um dia...
Mas hoje ainda não.

 

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LAMENTAÇÕES

Allesandra ca’Vörl

Varina ca’Pallo

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Brie ca’Ostheim

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Ostheim

Varina ca’Pallo

Niente


Allesandra ca’Vörl

O Gschnas — o Baile do Falso Mundo — agitava-se sob Allesandra no Grande Salão do Palácio da Kraljica. O salão ainda se encontrava parcialmente sob construção, mas isso só intensificava o ambiente.

Afinal, o Baile do Falso Mundo era o lugar onde a realidade virava do avesso. Fantasias — quanto mais estranhas e criativas, melhor — eram exigidas de todos os participantes. As rachaduras nas paredes foram preenchidas por esculturas de demônios ou cenários pastoris em miniatura, como se os alicerces da própria realidade tivessem se quebrado e as rachaduras permitissem vislumbrar novos mundos dispostos em seus próprios e excêntricos ângulos. Um bando de aves não voadoras foi trazido da distante Namarro: tão altas quanto um homem, traziam tufos de plumagem esplendidamente colorida nos traseiros; caminhavam entre os foliões. Vários ténis do Templo A’téni foram destacados para manter um rio de água cristalina fluindo em uma curva, e com enormes peixes dourados nadando placidamente nas correntes mágicas, sobre a cabeça dos dançarinos. Os músicos estavam sentados em cadeiras empoleiradas dentro de uma enorme armação dourada, pendurada em uma das paredes do salão com uma linda paisagem ao fundo para dar a impressão de uma pintura de músicos magicamente materializada.

Gschnas: uma fantasia criada para entretenimento dos ca’ e co’ — as pessoas ricas e importantes da cidade e dos grandes Domínios. Eles vinham com os convites de luxo da kraljica em mãos; lotavam o piso abaixo do de Allesandra, enfeitados em seus trajes reluzentes: a’téni ca’Paim, a téni de maior patente da cidade; o comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji; o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile; Sergei ca’Rudka, antigo regente e agora embaixador dos Domínios em Firenzcia; todos os integrantes do Conselho dos Ca’, exceto a numetoda Varina ca’Pallo, que estava em casa com o marido gravemente doente...

— Kraljica, a senhora está deslumbrante!

Talbot ci’Noel, o assistente de Allesandra, surgiu ao seu lado enquanto ela olhava sobre o balcão para a multidão. Ele estava vestido de macaco, uma fantasia irônica para um homem que sempre foi exageradamente educado e elegante, e que comandava os funcionários do palácio com punho de ferro e voz de fogo. Por trás do focinho peludo da máscara, ele sorria.

— Pronta para a sua entrada?

Cerca de uma dezena de ténis já haviam começado a entoar cânticos. Talbot testou — pelo que parecia ser a centésima vez — as cordas presas à armação escondida sob o vestido de Allesandra: uma fantasia esvoaçante de chiffon e fitas de renda, de forma que, quando a kraljica se movia, trilhas de cores cintilantes ondulavam em vã perseguição.

— Estou pronta — respondeu ela para Talbot.

Dois criados aproximaram-se, cada um com uma bola de vidro encantada com feitiços numetodos — o próprio Talbot era um numetodo, e a própria Varina, a a’morce dos numetodos, havia colocado os feitiços nas bolas de vidro. Allesandra pegou uma em cada mão. Talbot gesticulou para outro criado no piso de baixo, que por sua vez sinalizou para os músicos. A gavota que estava sendo tocada foi abruptamente interrompida e seguida de um lento e sinistro ribombar de tambores. O cântico dos ténis aumentou, e o teto do palácio foi subitamente obscurecido por nuvens negras e agitadas, de onde raios estalavam e arqueavam. Allesandra pronunciou a palavra mágica dada por Varina, e os globos em suas mãos brilharam com luz branca pura — tão intensa que Allesandra, que usava óculos escuros como proteção, mal conseguiu enxergar por causa do brilho coruscante. Quem quer que olhasse para os inesperados sóis gêmeos ficaria momentaneamente cego. Allesandra sentiu as cordas puxarem e erguerem-na: ela pairou sobre o peitoril do balcão e desceu lentamente na direção do chão. A magia numetoda mantinha os globos de vidro nas mãos de Allesandra frios, e agora deixavam um rastro brilhante de fagulhas, como se dois lentos meteoros descessem dos céus para a terra, e uma figura humana estivesse presa em seu intenso esplendor. Allesandra ouviu os aplausos e vivas aumentarem para saudá-la. Seus pés tocaram o piso de mármore (ela estava certa de ter ouvido o suspiro de alívio de Talbot), e a luz no interior dos globos floresceu em um azul iridescente, quase angustiante, seguido de um dourado puro e inflamado: as cores dos Domínios. Simultaneamente, criados correram das laterais do salão para tirar as cordas das presilhas na armação e pegar os globos. As cordas foram rapidamente puxadas para o alto enquanto os globos mantinham seu esplendor até finalmente se apagarem.

E lá, conforme a visão dos espectadores retornava lentamente, estava a kraljica, com sua coroa na cabeça. A ovação foi agradavelmente ensurdecedora.

— Obrigada a todos — disse ela enquanto o público se curvava e aplaudia. — Obrigada. Agora, por favor, aproveitem o baile!

Ela gesticulou e a música recomeçou. Os casais fizeram mesuras uns para os outros e retomaram a dança. Fantasiados, os ca’ e co’ aglomeraram-se em volta da kraljica, fazendo mesuras e murmurando sua aprovação enquanto Allesandra sorria em resposta e passava pelos convidados.

A kraljica viu Sergei e gesticulou para que ele se juntasse a ela. Ele fez uma mesura desajeitada, seu corpo artrítico já não era tão elástico e flexível como quando Allesandra o conheceu, e veio até ela, apoiando-se pesadamente sobre a bengala. Ele sorriu para ela, e a reluzente tinta prateada em seu rosto craquelou levemente ao fazê-lo. O nariz de prata de Sergei — o falso, que ele sempre usava para substituir o de carne que ele perdera na juventude — quase parecia fazer parte dele nesta noite. Um retalho de pequenos espelhos cobria a bashta que ele usava. Reflexos fendidos e partidos da kraljica, dos dançarinos e da multidão atrás dela moviam-se desordenadamente em volta dele. As luzes do salão flamejavam e reluziam nos pequeninos espelhos dançando na parede próxima.

— Essa foi uma entrada e tanto — disse Sergei.

Allesandra diminuiu o passo conforme eles se moviam entre a multidão.

— Obrigada por sugerir o método, embora o pobre Talbot tenha ficado com medo de que algo desse errado. Mas devo dizer que terei que me ausentar um momento para que meus criados tirem a armação, que está arrancando minha pobre pele.

Ele sorriu.

— A entrada da kraljica deve ser sempre dramática — falou Sergei sorrindo. — Um pequeno desconforto é um preço justo a pagar pela esplêndida apresentação. A senhora já devia saber disso.

— Isso é fácil de dizer, Sergei, quando não é você que tem que passar por isso.

— Eu sempre adorei o Gschnas. Estou feliz que a senhora tenha trazido de volta a tradição, kraljica. Nessântico precisa de suas tradições, especialmente depois dos últimos anos.

Especialmente depois dos últimos anos. O comentário fez Allesandra apertar os lábios e estreitar os olhos.

— Desnecessário trazer esse assunto à tona agora, embaixador.

A história nunca saíra da memória de ninguém em Nessântico: o terrível custo da recuperação após os ocidentais destruírem a cidade quase por completo, a persistente separação das nações dos Domínios e da Coalizão e, mais recentemente, o desastre político e militar na Magyaria Ocidental.

— Não trarei, portanto — respondeu ele. — Embora eu precise falar com a senhora a respeito do espião firenzciano que Talbot acredita ter descoberto...

Enquanto Sergei falava, Allesandra afastava o olhar de seu próprio reflexo na roupa do embaixador para olhar para multidão aglomerada em volta deles. Ela percebeu um homem a encarando. Era bonito, a pele um pouco mais escura que a da maioria dos presentes no salão, e tinha a cabeça completamente raspada, embora a barba fosse espessa e muito escura. Usava uma roupa solta e multicolorida com plumas nos ombros, como se ele fosse uma ave exótica. Seus olhos — por trás de uma meia-máscara bicuda — eram estranhamente azuis e brilhantes, e seu olhar penetrante e atento. Ele notou a atenção de Allesandra e acenou com a cabeça levemente na sua direção.

Sergei continuava falando.

— ... o criado traidor já está na Bastida e, portanto, ele não será mais um problema. Mas ainda há os morellis... — Ele parou quando a kraljica ergueu a mão.

— Quem é aquele homem? — ela sussurrou para Sergei, com o olhar novamente no sujeito. — Ele parece magyariano.

Sergei acompanhou o olhar.

— De fato, kraljica. Aquele é Erik ca’Vikej. Ele chegou em Nessântico ontem. Há, sem dúvida, uma mensagem em sua mesa em que ele solicita uma audiência. Ainda não tive a oportunidade de falar com ele pessoalmente.

— O filho de Stor ca’Vikej?

O homem realmente tinha olhos lindos. E continuava a encarar Allesandra, embora não fizesse menção de se aproximar.

— O próprio.

— Eu o verei — disse ela para Sergei. — Na alcova sul, daqui a uma marca da ampulheta. Diga a ele.

Sergei talvez tivesse franzido a testa, mas abaixou a cabeça.

— Como queira, kraljica.

Sua bengala estalava no piso de mármore conforme ele se afastava de Allesandra, e sua fantasia lançava partículas de luz tremeluzentes. Allesandra se virou e passou a caminhar lentamente pelo salão acenando e conversando com as pessoas. Talbot veio a seu encontro, após ter pago para se livrar dos ténis que a ajudaram a descer, e Allesandra mandou que ele liberasse a alcova sul. Ela continuou a procissão ao redor do salão. A a’téni ca’Paim, a líder da fé concénziana em Nessântico, vestida nesta noite como um dos moitidi vermelhos, estava se aproximando.

— Ah, a’téni ca’Paim, que bom que a senhora veio, seus ténis fizeram um serviço maravilhoso hoje...

Uma marca da ampulheta depois, Allesandra completou o circuito do salão e passou pela fileira de criados que Talbot tinha postado em torno da alcova para afastar a multidão. Ela sentou-se ali, ouvindo a música. Alguns momentos depois, Sergei aproximou-se, com ca’Vikej bem atrás dele.

— Kraljica, deixe-me apresentar Erik ca’Vikej...

O homem deu um passo à frente e fez uma longa e elaborada mesura. Ela se lembrou do gesto: um cumprimento magyariano. Os ca’ e co’ da Magyaria Ocidental curvavam-se da mesma forma para seu falecido marido, Pauli, que se tornara o gyula da Magyaria Ocidental após sua rancorosa separação, para ser assassinado por seu próprio povo oito anos depois. Há dois anos, o vatarh de Erik, Stor, tentou preencher o espaço deixado pela morte de Pauli.

Allesandra tomara a decisão de apoiá-lo. Escolha essa que se revelou péssima, e sua verdadeira dimensão ainda estava por ser determinada. Ela decidiu mandar apenas uma pequena parte do exército dos Domínios para apoiar as tropas do próprio Stor ca’Vikej. Isso foi sua ruína, e a tentativa culminou em uma derrota militar para os Domínios, sob o comando de seu filho, o hïrzg Jan.

“Especialmente depois dos últimos anos...” O comentário de Sergei ainda incomodava.

— Kraljica Allesandra, é um prazer conhecê-la finalmente.

A voz dele era tão impressionante quanto os olhos: baixa e melíflua, embora ele não parecesse notar seu poder. Erik manteve a cabeça baixa.

— Eu queria lhe agradecer por apoiar o meu vatarh. Ele sempre foi grato por defender a nossa causa e sempre falou bem da senhora.

Allesandra procurou por um sinal de sarcasmo ou ironia em sua voz; não havia nenhum. Ele parecia totalmente sincero. Sergei estava voltado cuidadosamente para o lado, escondendo o que quer que estivesse pensando. De perto, a kraljica pôde notar os tons grisalhos na barba de ca’Vikej e as rugas em volta dos olhos e da boca; ele não era muito mais jovem do que ela — o que não era de se admirar, visto que Stor ca’Vikej tinha tentado tomar o trono do gyula em idade já avançada.

— Eu gostaria que os acontecimentos tivessem se dado de outra forma — disse Allesandra —, mas não foi a vontade de Cénzi.

O homem fez o sinal de Cénzi ao ouvir a declaração — ele seguia a fé concénziana, então.

— Talvez tenha sido menos culpa de Cénzi do que das circunstâncias, kraljica — respondeu Erik. — Meu vatarh era... impaciente. Eu o aconselhei a esperar por um momento em que a kraljica e os Domínios pudessem nos apoiar mais abertamente. E disse que os dois batalhões que a senhora enviou eram o máximo que ele poderia contar a não ser que esperasse, mas... — Ele deu de ombros; o gesto foi tão gracioso quanto seus modos. — Eu alertei a ele que o hïrzg Jan viria com toda a fúria do exército firenzciano.

Sim, e Sergei disse o mesmo, e eu não acreditei nele. Allesandra meneou a cabeça, mas não disse nada. Bonito, modesto, educado, mas também havia ambição em Erik ca’Vikej. Ela podia vê-la. E havia uma raiva voltada para a Coalizão devido à morte de seu vatarh.

— Talvez você seja mais paciente do que seu vatarh, vajiki ca’Vikej, mas ainda quer o mesmo. E vai me dizer que ainda há muitos magyarianos que o apoiam.

Ele sorriu: sim, gracioso.

— Evidentemente, minha mente é transparente para a kraljica. — Erik passou a mão sobre seu crânio careca. Ele conseguiu parecer quase comicamente confuso. — Da próxima vez, talvez eu deva usar um chapéu.

Allesandra riu suavemente; e percebeu o olhar estranho de Sergei.

— Apoiar seu vatarh do modo como o fiz quase me levou à guerra com meu próprio filho — falou a kraljica.

— Relações familiares muitas vezes se assemelham àquelas entre países — respondeu Erik, ainda sorrindo. — Há algumas fronteiras que não devem ser cruzadas. — Ele inclinou a cabeça levemente ao ouvir os músicos começarem uma nova canção no salão e ergueu a mão na direção de Allesandra. — A kraljica gostaria de dançar comigo, em nome do que ela representou para o meu vatarh?

Allesandra notou que Sergei fazia uma sutil negativa com a cabeça. E também sabia o que ele estava pensando: A senhora não quer que Brezno receba relatórios dizendo que está entretendo o filho de Stor ca’Vikej... Mas havia algo nele, algo que a atraía.

— Eu pensei que você fosse um homem paciente.

— Meu vatarh também me ensinou que uma oportunidade desperdiçada é uma oportunidade perdida.

Ele sorriu com os olhos, cercados de belas e delicadas rugas.

Allesandra ergueu-se de sua cadeira e pegou a mão de Erik.

— Então, em nome do seu vatarh, nós devemos dançar — ela respondeu e o conduziu para fora da alcova.

Varina ca’Pallo

Era difícil ser estoica, embora Varina soubesse que isso era o que Karl teria esperado dela.

Karl tinha piorado no último mês. Ao olhar para ele agora, Varina às vezes achava difícil encontrar, no rosto emaciado e cadavérico, os traços do homem que ela amava, com quem estava casada há quase 14 anos agora, que tinha tomado seu sobrenome e seu coração.

Por ele ser bem mais velho do que ela, Varina temia que seu tempo juntos terminaria assim, com ele morrendo antes dela.

Parecia que este seria o caso.

— Você está com dor, meu amor? — perguntou ela, acariciando sua cabeça calva, onde alguns fios grisalhos teimavam em permanecer.

Ele balançou a cabeça sem falar — falar parecia esgotá-lo. Sua respiração era demasiada leve e acelerada, quase ofegante, como se agarrar-se à vida exigisse todo o esforço possível.

— Não? Que bom. Eu tenho a poção da curandeira bem aqui, caso você sinta dor. Ela disse que alguns goles acabariam com qualquer dor e fariam com que você dormisse. Diga-me se precisar, e não ouse bancar o corajoso e ignorar a dor.

Varina sorriu para Karl, acariciando sua bochecha chupada e barbada. Ela virou o rosto, pois as lágrimas ameaçavam cair novamente. Ela fungou, respirou fundo, e sua respiração estremeceu com o fantasma dos soluços que a acometiam quando estava longe dele, quando ela se permitia ser tomada pelo sofrimento e pelas emoções. Ela esfregou os olhos com a manga da tashta e voltou-se para ele, com o sorriso fixo novamente em seu rosto.

— A kraljica mandou uma carta dizendo que sentiu a nossa falta no Gschnas a noite passada. E disse que sua entrada foi melhor do que o esperado e que os globos que eu encantei funcionaram perfeitamente. E, ah, esqueci de contar... também chegou hoje uma carta do seu filho, Colin. Ele diz que sua neta Katerina vai se casar no mês que vem e que quer... quer que você... — Ela parou; Karl não iria ao casamento. — De qualquer forma, eu escrevi a ele dizendo que você não está... não está bem o suficiente para viajar para Paeti no momento.

Karl encarou Varina. Era tudo o que podia fazer agora. Encarar. Sua pele estava repuxada sobre os ossos da face; os olhos, afundados em covas profundas e escuras. Varina perguntava-se se Karl sequer a enxergava, se notava que ela também tinha envelhecido, que os estudos da magia tehuantina tinham cobrado um preço terrível sobre sua aparência. Ele não comia quase nada — o máximo que Varina podia fazer era empurrar canja quente goela abaixo. Karl tinha dificuldade de engolir até mesmo isso. Em suas visitas diárias, a curandeira apenas balançava a cabeça.

— Sinto muito, conselheira ca’Pallo — dizia ela para Varina —, mas as minhas habilidades estão aquém da condição do embaixador. Ele viveu uma boa vida, sim, e foi mais longa do que a da maioria. A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Mas ela não estava pronta. E não sabia se algum dia estaria, se conseguiria estar pronta. Depois de todos os anos em que quis estar com ele, depois de todos os anos em que o amor de Karl por Ana ca’Seranta o impediu de notá-la, Varina ficaria com ele por tão pouco tempo? Menos de duas décadas? Quando Karl morresse, ela não ficaria com nada dele. Eles não tiveram filhos; apesar de ser 12 anos mais nova do que Karl, Varina não conseguiu conceber com ele. Houve um aborto no primeiro ano, depois nada, e seu próprio sangramento mensal tinha acabado cinco anos atrás. Havia ocasiões, nas últimas semanas, em que ela invejava aqueles que rezavam para Cénzi pedindo por uma benção, uma dádiva, um milagre. Como numetoda, como ateia, Varina não tinha esse consolo; seu mundo era desprovido de deuses a quem pedir favores. Tudo o que ela podia fazer era segurar a mão de Karl, olhar para ele e ter esperança.

A senhora tem de estar pronta para deixá-lo partir.

Varina pegou a mão dele e a apertou com os dedos. Era como segurar a mão de um esqueleto; não havia pressão como resposta, sua carne estava fria, e sua pele parecia tão seca quanto um pergaminho.

— Eu te amo — ela disse. — Eu sempre te amei; eu sempre vou te amar.

Karl não respondeu, embora ela tenha pensado que viu os lábios secos e rachados abrirem ligeiramente e fecharem novamente. Ele talvez tenha pensado que estivesse respondendo. Ela pegou o pano na bacia ao lado da cama, molhou na água e limpou os lábios de Karl.

— Eu tenho trabalhado em um dispositivo para usar a areia negra de novo. Veja... — Ela mostrou um longo corte em seu braço esquerdo, ainda com crostas de sangue seco. — Eu não fui tão cuidadosa quanto deveria ter sido, mas acho que dessa vez eu talvez tenha descoberto alguma coisa. Fiz mudanças no projeto e mandei Pierre fazer as modificações pra mim, baseadas em meus desenhos...

Varina podia imaginar como Karl teria respondido. “Há um preço a pagar pelo conhecimento, ele dizia, com muita frequência, mas não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer, e ele vai forçar sua entrada no mundo independentemente da nossa vontade. Não se pode conter o conhecimento, não importa o que os fiéis concénzianos possam dizer...”

No andar de baixo, ela podia ouvir os funcionários da cozinha preparando o jantar: uma risada, um ruído de panelas, o leve som de conversa, mas ali na enfermaria o ambiente era quente e imóvel. Varina conversava com Karl principalmente porque o silêncio parecia deprimente. Ela falava principalmente porque tinha medo do silêncio.

— Eu também falei com Sergei esta manhã. Ele disse que vai passar aqui amanhã à noite, antes de ir a Brezno — disse com um tom de voz falsamente animado. — Ele insistiu que, se você não se juntar a ele na mesa de jantar, ele mesmo vai subir até aqui e levá-lo para baixo. “De que serve a magia dos numetodos se não pode se livrar de uma doençazinha?”, ele disse. E também sugeriu que a brisa do mar em Karnmor pode lhe fazer bem. Eu posso ver se conseguimos uma vila lá no mês que vem. Sergei disse que o Gschnas nunca foi tão bom, embora tenha mencionado que o filho de Stor ca’Vikej chegou na cidade e que não gostou da maneira como a kraljica Allesandra deu atenção a ele...

Ela notou que o quarto tinha ficado quieto demais, que já não ouvia Karl respirar há algum tempo. Ele ainda a estava encarando, mas seu olhar ficara vazio e opaco. Varina sentiu seu estômago contrair. Tomou um fôlego que era quase um soluço.

— Karl...?

Ela olhou para o peito dele, desejando que se mexesse, ouvindo o som do ar passando por suas narinas. Sua mão estava mais fria? Varina sentiu seu pulso, procurando sentir alguma agitação sob a ponta dos dedos e imaginando tê-la sentido.

— Karl...?

O quarto ficou em silêncio exceto pelo distante alarido dos criados, pelo pio dos pássaros na árvore lá fora e pelos sons fracos da cidade do outro lado dos muros da vila. Varina sentiu a pressão crescente em seu peito, uma onda que se libertou dela e virou um lamento que soava como se tivesse sido arrancado da garganta de outra pessoa.

Varina ouviu os criados subirem as escadas e pararem à porta. O som da sua dor ainda ecoava em seus ouvidos. Ela ainda segurava a mão de Karl. Que, agora, deixou cair sem vida nos lençóis. Ela estendeu a mão e fechou delicadamente as pálpebras de Karl com os dedos trêmulos.

— Ele se foi — ela disse, para os criados, para o mundo, para si mesma.

As palavras pareciam impossíveis. Inacreditáveis. Ela queria voltar atrás, pegar as palavras e esmagá-las para que jamais pudessem ser ditas novamente.

Mas Varina as dissera, e elas não podiam ser revogadas.

Sergei ca’Rudka

A Bastida a’Drago fedia a bolor e a mofo antigos, a urina e a material fecal, e a medo, dor e terror. Sergei adorava esse cheiro. Os odores o acalmavam, o acariciavam, e ele os inalava profundamente através das narinas de seu frio nariz de prata.

— Bom dia, embaixador ca’Rudka.

Ari ce’Denis, capitão da Bastida, cumprimentou Sergei da porta aberta de seu gabinete enquanto Sergei passava pelos portões arrastando os pés. Ele se movia devagar, como sempre fazia agora, e seus joelhos doíam a cada passo. Sergei desejou não ter decidido deixar a bengala na carruagem. Ele ergueu um pedaço de papel em sua mão direita na direção de ce’Denis. Sob seu braço esquerdo, estava enfiado um longo rolo de couro.

— Bom? — indagou Sergei. — Nem tanto, eu receio.

Ele podia ouvir a idade na sua voz: uma tremedeira incontrolável.

— Ah, sim — respondeu o capitão. — O embaixador ca’Pallo está morto. Sinto muito; sei que ele era um bom amigo do senhor.

Sergei fez uma careta. Sua cabeça doía com as preocupações que o atormentavam: a deterioração da relação entre os Domínios e a Coalizão Firenzciana ao longo dos últimos anos; a recepção fria por parte da kraljica à sua sugestão de reparar esse rompimento definitiva e completamente; a presença crescente de Nico Morel e seus seguidores na cidade; e até mesmo a forma como Erik ca’Vikej dominou a atenção da kraljica durante o Gschnas...

A morte do pobre Karl tinha sido apenas a última gota. Um lembrete da sua própria mortalidade, de que em breve Sergei teria que encarar os juízes das almas e o resultado a que a sua própria vida o conduzira. Ele tinha medo desse dia. Tinha medo por saber o peso que seus pecados emprestavam a sua alma.

— É a morte do embaixador ca’Pallo, sim — respondeu Sergei, erguendo novamente o papel enquanto se aproximava do capitão. — Com certeza, mas também é isto aqui. Você viu isso?

Ce’Denis encarou o papel com os olhos apertados.

— Eu vi alguns desses papéis colados pela Avi no meu caminho para cá esta manhã, sim. Mas eu receio que sou um simples guerreiro, embaixador. Eu não tenho as habilidades das letras, como o senhor deve se lembrar.

— Ah.

Sergei franziu a testa. Ele não lembrara — o analfabetismo de ce’Denis era uma das razões para ele ser apenas o capitão da Bastida e não um a’offizier da Garde Kralji ou da Garde Civile; também era a razão dele não ser um chevaritt e ter apenas status de ce’. O punho de Sergei amassou o pergaminho com um som de fogo estalando e o atirou ao chão. E pisou deliberadamente nele.

— É um lixo repulsivo, capitão. Vil. Uma proclamação daquele maldito Nico Morel, repudiando os numetodos e insultando a memória do embaixador ca’Pallo. Ele tripudia sobre a morte do meu bom amigo...

Sergei fez uma careta. Involuntariamente, as memórias de Nico Morel surgiram em sua mente enquanto ele esbravejava. O garoto que ele conhecera há uma década e meia durante a grande batalha de Nessântico tinha pouca semelhança com o carismático e delirante agitador que surgira recentemente. Mesmo assim, aquele tinha sido um período terrível, e Nico tinha se perdido nele — quem sabe pelo que o menino passou? Quem sabe no que a vida o transformou?

A vida o transformou, não foi? A dor de cabeça de Sergei martelava em suas têmporas.

— Nico Morel acredita ser a reencarnação de Cénzi em pessoa — ele disse, esfregando a testa com a mão. — Eu juro, capitão, um dia eu trarei Morel aqui para a Bastida, e sentirei grande prazer em interrogá-lo.

Ce’Denis apertou seus lábios finos e olhou para a cabeça do dragão suspensa na muralha e voltada para o pátio onde os dois se encontravam.

— Tenho certeza de que o trará, embaixador ca’Rudka.

Sergei se voltou bruscamente para o homem. Ele não sabia se tinha gostado do tom de ce’Denis.

— Quero que o senhor mande todos os gardai que não estiverem de serviço percorrer a Avi — disse para o capitão e empurrou o papel no chão com o pé. — Mande que arranquem todos os manifestos que encontrarem. Este será um pedido do comandante co’Ingres quando eu retornar ao palácio, mas se o senhor puder começar antes de a ordem chegar, eu agradeceria. Quanto menos gente vir esta porcaria, melhor.

— Certamente, embaixador — respondeu ce’Denis, prestando continência. — O senhor ficará muito tempo conosco esta manhã?

Ele olhou para o que Sergei carregava sob o braço esquerdo.

— Não muito — respondeu o embaixador. — Meu dia está cheio, infelizmente. E ci’Bella?

— Está dois pisos abaixo da torre, embaixador, como o senhor pediu.

Ce’Denis inclinou a cabeça para Sergei, voltou para seu gabinete e chamou seu assistente. Sergei arrastou os pés em direção à torre principal da Bastida e cumprimentou os gardai que abriram a porta para ele. Ele desceu lentamente a escada em espiral em direção às câmaras inferiores, apoiando-se com uma mão na parede de pedra e gemendo com a dor nos joelhos, desejando mais uma vez ter trazido a bengala. No patamar, ele enfiou a mão no bolso do sobretudo para retirar um pequeno molho de chaves, que tilintaram sombriamente em sua mão.

Dois níveis abaixo, ele parou e esperou que a dor na cabeça e nos joelhos diminuísse. Quando a dor arrefeceu, ele enfiou a chave em uma fechadura — havia manchas de ferrugem em volta do buraco; ele fez uma nota mental para lembrar mencionar o fato ao capitão ce’Denis antes de ir embora — não havia desculpa para esse tipo de desleixo aqui. Ao virar a chave, ele ouviu correntes farfalharem e rasparem o chão da cela. Ele podia ver a imagem em sua mente: o prisioneiro se afastando da porta, encolhido, pressionando sua coluna contra as antigas paredes de pedra úmida como se elas pudessem se abrir e engoli-lo magicamente.

Sufocar no abraço de uma pedra talvez fosse um destino mais agradável do que o que aguardava o homem, Sergei tinha que admitir.

Ele olhou ao redor antes de abrir a porta da cela. Um garda estava se aproximando, vindo dos níveis inferiores. O homem meneou a cabeça para Sergei sem dizer nada. O capitão e os gardai da Bastida sabiam que Sergei
frequentemente precisava de um “assistente” quando visitava a prisão; e aqueles que tinham suas mesmas predileções muitas vezes o ajudavam. Eles compreendiam, e, portanto, não falavam e fingiam não ver nada; faziam simplesmente o que quer que Sergei pedisse.

O embaixador abriu a porta da cela.

— Bom dia, vajiki ci’Bella — dirigiu-se Sergei ao homem em tom agradável enquanto o garda entrava na cela, atrás dele.

O prisioneiro olhou para os dois: Aaros ci’Bella, um dos muitos assistentes juniores do Palácio da Kraljica. O homem ainda usava o uniforme do palácio, agora sujo e rasgado. Sergei colocou o molho de chaves no gancho da porta da cela, que foi deixada aberta. Ci’Bella estava apoiado contra a parede dos fundos, as correntes que prendiam suas mãos e pés estavam frouxas — presas em argolas grossas na parede dos fundos, as correntes tinham folga suficiente apenas para que ele ficasse a um passo da porta, não mais. Se o homem atacasse Sergei, tudo que o embaixador precisaria fazer era dar um passo para trás para não ser alcançado — embora o garda, sem dúvida, detivesse o sujeito se ele ousasse um gesto tão insensato. Eram raros os prisioneiro que faziam isso. O “Velho Nariz de Prata”, como Sergei era chamado pejorativamente, tinha sua reputação entre os inimigos de Nessântico e aqueles do estrato mais baixo da sociedade dos Domínios. Ele já conseguia sentir o cheiro da apreensão crescente do homem.

— Posso chamá-lo de Aaros?

O homem sequer assentiu. Seu olhar ia do nariz de Sergei para o rolo grosso de couro negro sob seu braço e ao garda calado. O embaixador pousou o rolo perto da porta da cela, desamarrou o nó que o mantinha fechado e o desenrolou com um gesto, grunhindo com o movimento. Dentro do rolo, presos por laçadas, havia instrumentos de aço e madeira, sua pátina de cetim dava sinais de muito uso.

Ao ver os instrumentos, ci’Bella gemeu. Sergei notou uma umidade escurecer a bainha de sua calça e descer pela perna, seguida do cheiro adstringente de urina. O embaixador balançou a cabeça e estalou a língua baixinho, em sinal de reprovação. O garda deu um risinho.

— Embaixador —ci’Bella lamentou. — Por favor. Eu tenho família. Uma esposa e três filhos. Não fiz nada para o senhor. Nada.

— Não?

Sergei inclinou a cabeça. Ele tirou o sobretudo dos ombros, alisou o tecido macio e o pendurou cuidadosamente no gancho com as chaves. Fez careta de novo ao se ajoelhar, seus joelhos estalaram audivelmente e os músculos da perna reclamaram. Antigamente, isso não teria exigido esforço algum... Seus dedos — nodosos e contorcidos pela idade, e com a pele solta e enrugada sobre os ossos e ligamentos — acariciaram os instrumentos. Ele podia sentir a frieza sedosa do metal na ponta dos dedos, e isso fez com que ele respirasse fundo, sensualmente.

— Diga-me, Aaros. O que você faria se um homem machucasse a sua esposa, se a estuprasse ou a desfigurasse? Você não gostaria de machucá-lo em troca? Não se sentiria no direito de se vingar desse homem?

Ci’Bella parecia confuso.

— Embaixador, o senhor não é casado, e eu não fiz nada contra a sua esposa ou outra pessoa...

Sergei ergueu uma sobrancelha branca e espessa.

— Não? — repetiu ele, permitindo-se abrir um sorriso desdentado. — Mas, perceba, eu sou casado, Aaros. Sou casado com Nessântico. Ela é minha esposa, minha amante, minha própria razão de ser. E você, Aaros, você a atacou e traiu. Talbot me contou o que ele descobriu. Você falou com um agente da Coalizão Firenzciana. Você certamente se lembra dele. Garos ci’Merin? Eu tive o... prazer de falar com ele ontem, aqui na Bastida.

Sergei sorriu para ci’Bella; o garda resfolegou de diversão.

— Ele me disse como você foi amável com ele. Prestativo.

— Mas eu não sabia que o homem era um firenzciano, embaixador — protestou ci’Bella. — Eu juro por Cénzi. Ele parecia perdido, eu apenas o acompanhei pelo palácio...

— Você o conduziu pelos corredores dos funcionários do palácio, corredores aos quais somente o pessoal autorizado tem acesso.

— Era o caminho mais rápido...

— Era também o caminho que alguém que quisesse prejudicar a kraljica ou perambular pelo palácio gostaria de conhecer.

— Mas eu não sabia...

Sergei sorriu. Ele esfregou as narinas entalhadas de seu nariz falso, onde a cola que o segurava ao rosto coçava.

— Eu acredito em você, Aaros — Sergei respondeu gentilmente, sorrindo. — Mas não sei se esta é a verdade. Você pode ser um mentiroso habilidoso. Você pode ter guiado outras pessoas pelos corredores do palácio. Você pode até mesmo ser um agente de Firenzcia. Eu não sei.

Ele arrancou uma torquês de seu laço e se ergueu com esforço, seus joelhos estalaram mais uma vez. O garda se afastou da parede e se dirigiu até Aaros.

— Mas eu vou saber — disse Sergei para o homem. — Muito em breve...

Allesandra ca’Vörl

Allesandra sabia que haveria uma reação à sua decisão de fazer um funeral com honras de Estado para o embaixador Karl ca’Pallo. Só não esperava que fosse tão mordaz ou tão rápida.

Talbot, seu assistente, entrou em seus aposentos após uma rápida batida na porta.

— Perdoe-me por interromper seu café da manhã, kraljica — ele disse, fazendo uma meia mesura elegante enquanto as camareiras saíam diplomaticamente do aposento. — A a’téni ca’Paim está aqui para vê-la. Ela insiste em dizer que é “vital” que seja atendida imediatamente. — Talbot franziu a testa. — Eu juro, a mulher não sabe falar de outra forma a não ser por hipérboles. Se o café da manhã está atrasado, é uma crise.

Allesandra suspirou e pousou o garfo.

— É a respeito do pedido de usar o Velho Templo para o funeral de Karl?

— Eu enviei seu pedido para o gabinete da a’téni ca’Paim há menos de uma virada da ampulheta. Então, sim, suspeito que é por isso que ela veio. A a’téni ca’Paim parece... bem, um tanto quanto nervosa e irritada.

Os olhos claros de Talbot reluziram com uma pitada de divertimento, erguendo um canto de sua boca fina. Por outro lado, Talbot era um numetodo, o que significava que ele podia acreditar em outros deuses que não Cénzi, ou não acreditar em deus algum. Ser um numetodo em vez de um seguidor de Cénzi tornou-se quase um modismo em Nessântico nos últimos anos — o fato de ca’Paim ser a líder da fé concénziana em Nessântico não significava nada para ele.

Allesandra afastou a bandeja de prata. Os talheres retiniram e o chá estremeceu na xícara.

— Já que a a’téni veio em pessoa em vez de mandar um dos ténis de baixo escalão, eu suponho que ela considera que o assunto não pode esperar.

— A a’téni ca’Paim disse que estava, nas palavras da própria mulher, “preparada para ficar aqui até que a kraljica encontre um tempo para me ver”. No entanto, se a kraljica desejar fazê-la esperar até a noite de hoje ou mesmo até amanhã, terei prazer em entregar a mensagem para a a’téni ca’Paim.

— Não tenho dúvidas de que teria — falou Allesandra; Talbot sorriu ironicamente. — E que também teria prazer em levar cobertores e um travesseiro para ela. Mas suponho que seja melhor acabar logo com isso. Espere meia virada para que eu termine meu café da manhã, depois traga a a’téni ca’Paim. Empanturre-a com aquelas balas de Il Trebbio, Talbot; isso talvez adoce seu humor.

Talbot fez uma mesura e saiu do aposento. Allesandra ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite, uma obra-prima do pintor ci’Recroix. A pintura, assim como a maior parte da cidade, passou por extensa restauração após os danos sofridos há uma década e meia, quando os tehuantinos saquearam Nessântico. Os rasgos na tela foram meticulosamente colados, as manchas de fumo cuidadosamente limpas, e as seções queimadas foram repintadas, embora o trabalho de restauração fosse visível caso se olhasse com atenção para o quadro: mesmo os melhores pintores não conseguiam igualar a sutileza de ci’Recroix (ou a magia em si, caso se acreditasse na lenda) com o pincel. A archigos Ana, Allesandra sabia, insistia em dizer que o quadro tinha sido enfeitiçado e era responsável pela morte súbita da kraljica Marguerite. Sem dúvida o kraljiki Audric demonstrou uma relação doentia com o quadro de sua vavatarh, tratando-o como se fosse a kraljica em pessoa. Ocasionalmente, Allesandra via-se olhando desconfortavelmente para o quadro instalado sobre a lareira na sala de recepção de seus aposentos do palácio reconstruído. Marguerite sempre parecia devolver o olhar de Allesandra, os realces de luz pintados brilhavam nos olhos e na expressão inescrutável, meio de desgosto, em seus lábios, como se a visão de uma ca’Vörl usando sua coroa e o anel dos kralji lhe doesse.

E talvez doesse mesmo, onde quer que a mulher estivesse. A verdade sobre a história do quadro não importava, Allesandra considerava que a obra servia como um lembrete do que Nessântico tinha sido sobre o reinado de Marguerite e talvez do que poderia se tornar novamente.

— Isso a incomoda, Marguerite? — perguntou ela para o quadro.

Não houve resposta.

A kraljica terminou sua refeição, chamou as camareiras para levarem a bandeja e mandou que trouxessem uma nova, com chá e bolinhos para a a’téni. Talbot bateu na porta externa assim que as criadas trouxeram o chá.

— Entre — respondeu Allesandra, e Talbot entrou.

— A’téni ca’Paim — ele anunciou, fazendo uma mesura mais formal dessa vez.

Talbot se afastou para permitir que ca’Paim entrasse na sala, mas ela o contornou. Somente Allesandra viu Talbot revirando os olhos.

Soleil ca’Paim era uma mulher corpulenta com seus 40 anos, cabelo pintado de preto com raízes brancas aparentes e uma tez que o robe verde-esmeralda tornava pastosa. Ela tinha a aparência atormentada de uma matrona com filhos demais — e, de fato, ela tinha dado à luz dez crianças em seu tempo —, mas Allesandra sabia que seria um erro considerá-la fraca, ineficaz ou desprovida de inteligência; um erro que muitos cometeram durante a sua carreira. Soleil ascendeu rapidamente nos escalões dos ténis, desde o início, como uma humilde e’téni em Brezno, até sua atual posição, como a representante da fé concénziana em Nessântico. Dizia-se que, se o archigos Karrol morresse devido à sua saúde débil, o Colégio A’téni a elegeria como archigos. O archigos Karrol mostrou sua preferência indubitável por Soleil ao lhe passar o comando de Nessântico.

— Kraljica — falou ca’Paim inclinando a cabeça.

A mulher estava um pouco ofegante, e Allesandra apontou para a cadeira a sua frente.

— A’Téni, que bom revê-la. Gostaria de um chá? Estes bolinhos saíram agora do forno, o nosso novo confeiteiro, devo dizer, é excelente...

Allesandra gesticulou para as criadas em pé contra a parede e elas apressaram-se em servir o chá e oferecer um prato para a a’téni cheio de bolinhos diversos, cobertos com mel. A a’téni ca’Paim não era de recusar comida: ela comeu um bolinho, depois outro, enquanto as duas falavam de amenidades, dando voltas no assunto que ambas sabiam que deveria ser abordado.

Finalmente, ca’Paim pousou o prato cheio de migalhas.

— Eu recebi seu pedido esta manhã, kraljica — disse com voz suave, um tanto quanto anasalada. — Embora nós, fiéis concénzianos, reconheçamos sem hesitação os serviços prestados pelo embaixador ca’Pallo a Nessântico e aos Domínios, isto não altera o fato de que nem o embaixador, nem qualquer um dos numetodos acreditam em Cénzi como nós acreditamos, e o uso das instalações da fé concénziana seria uma aceitação de fato de suas crenças hereges.

Allesandra pousou o prato e colocou suas mãos uma de cada lado da louça.

— Eu devo lembrá-la, a’téni, que o Velho Templo foi reconstruído parcialmente com fundos concedidos à Fé pelos Domínios.

Ca’Paim reconheceu o argumento com uma inclinação de cabeça.

— E a Fé é extremamente grata por isso, kraljica. Nós tentamos devolver aos Domínios o que podemos. Eu gostaria de lembrar à kraljica que nossos ténis-luminosos doaram seus serviços aos Domínios por cinco anos, em agradecimento. O archigos Karrol, especialmente, tem sido muito generoso na atenção que dá aos Domínios, certificando-se de que a fé concénziana seja tão bem servida aqui quanto na Coalizão. Mas isso...

A a’téni franziu os lábios, e Allesandra pôde notar que a mulher escondia uma indignação genuína, e não encenação imposta a ela.

— Isso é uma questão de fé, kraljica, como a senhora deve entender. O Grande Salão aqui no palácio certamente pode acomodar as multidões que queiram prestar homenagem ao embaixador.

Allesandra ignorou o comentário.

— A’téni, o embaixador e os numetodos também se dedicaram à fé concénziana. Seus ténis-guerreiros agora usam técnicas desenvolvidas pelos numetodos, em especial aquelas criadas pelo embaixador e pela conselheira ca’Pallo. A archigos Ana certamente enxergava o valor do trabalho deles.

Os lábios de ca’Paim apertaram-se ainda mais com a menção ao nome de Ana, em seguida, ela sorriu, embora com algum esforço.

— Alguém poderia pensar que a senhora está tentando me alfinetar deliberadamente, kraljica.

— Esse alguém estaria correto — falou Allesandra. — E você tem que admitir que funcionou, Soleil. Sempre funciona.

— E você sempre enfia a faca o mais fundo possível, Allesandra — respondeu a mulher, e as duas riram.

Allesandra viu a mulher relaxar visivelmente, recostar nas almofadas da cadeira e pegar outro bolinho.

— Estão muito bons — ela disse para Allesandra. — Diga ao seu confeiteiro que ele tem que mandar a receita para o meu padeiro.

Ela deu uma mordida e engoliu.

— O archigos Karrol lhe diria o mesmo que eu disse.

— Sem dúvida. Mas eu não pedi a ele, pedi? Não que houvesse tempo para fazê-lo, de qualquer forma. Estou pedindo a você.

— Eu realmente não gosto disso, Allesandra, por várias razões. Gostaria que você não insistisse no assunto. Isso coloca a Fé e a mim em uma posição desconfortável.

É com a sua reputação que você está preocupada, não com a Fé. Allesandra sorriu novamente para a senhora.

— O Velho Templo é mais adequado para receber multidões que o Grande Salão aqui do palácio. Você tem que admitir; você viu o salão no Gschnas.

— Sim, mas o Velho Templo é dedicado ao culto de Cénzi e, como um numetodo, o embaixador falava abertamente da sua descrença com relação aos nossos dogmas. Ele acreditava que os deuses não existem.

— No entanto, novamente, ele ajudou a sua Fé e também foi grande amigo da archigos Ana. Seja lá o que você pensa sobre Ana, não pode dizer que ela não era comprometida com os princípios da fé concénziana. Não estou pedindo que você realize o ritual funerário da Fé para Karl – e Varina se queixaria justamente em protesto se eu o fizesse. Estou pedindo para usar o melhor local da cidade para a ocasião. Só isso. Cubra os murais se quiser. Tire todos os paramentos da fé concénziana sob o Grande Domo. O Grande Salão do palácio é grande o suficiente, sim, mas ainda está em construção; funcionou para o Gschnas, mas não para a dignidade exigida por esse funeral. Os fundos que nós conseguimos poupar foram destinados primeiro para a reconstrução do Velho Templo e do Domo de co’Brunelli, não para o Palácio da Kraljica.

Uma careta.

— Eu não posso oferecer-lhe a ajuda da minha equipe. Não abertamente.

Allesandra sabia que tinha vencido. Ela perguntou-se se ca’Paim podia ouvir a satisfação em sua voz.

— Talbot pode entrar em contato com seu assistente para acertar os detalhes do procedimento e decidir quantas pessoas da minha própria equipe nós designaremos para garantir que tudo corra bem. Usaremos funcionários do palácio e a Garde Kralji para controlar a multidão. E você pode dizer ao archigos Karrol que eu a forcei aceitar a situação retendo o último pagamento dos fundos da construção.

— Você faria isso?

Allesandra deu de ombros.

— É necessário?

Um dos dedos de ca’Paim tocou o topo dourado de outro bolinho. E ela suspirou.

— Não, creio que não, embora eu ainda não goste da situação.

— Ótimo — respondeu Allesandra. — E você estará lá, Soleil? Sentada ao meu lado?

Outro suspiro.

— Você ficou descarada com a idade, Allesandra. Absolutamente descarada. Eu estarei presente, já que você insiste, mas não vou me pronunciar. Não posso.

— É compreensível. — Allesandra inclinou-se para a frente e deu um tapinha na mão de ca’Paim. — Obrigada, Soleil. Contarei a Varina o que você fez; ela agradecerá o gesto.

— E quanto aos seguidores de Nico Morel? — perguntou ca’Paim. — É com eles que você deveria se preocupar. Você sabe o ódio profundo que esse homem nutre pelos numetodos. Eles certamente protestarão, e as manifestações dos morellis já se tornaram violentas antes. Você leu os manifestos que ele e seus seguidores colaram por toda a cidade ontem, sobre a morte do embaixador? Eles protestarão contra qualquer demonstração de apoio ao embaixador, e pode muito bem haver mais problemas com eles.

Dessa vez foi Allesandra quem franziu a testa.

— O embaixador ca’Rudka me mostrou o manifesto, e era vil e repugnante. Você provavelmente está certa. O comandante co’Ingres talvez deva oferecer ao vajiki Morel e seus arruaceiros locais alojamento gratuito na Bastida nos próximos dias, supondo que consigamos encontrá-los antes da cerimônia. De qualquer forma, mandarei o comandante destacar gardai suficientes caso haja algum problema. E se você mandar que seus ténis adaptem suas Admoestações hoje e amanhã contra os morellis...

— Está bem — respondeu ca’Paim. — Isso eu terei prazer em fazer. Mas eu devo dizer, kraljica... — Ela franziu a testa seriamente. — Que há ténis aqui, especialmente os mais jovens, e até mesmo entre alguns dos altos escalões da Fé, que nutrem uma simpatia pouco saudável por Nico Morel e sua filosofia. Muito mais do que eu gostaria.

— Eu sei — disse Allesandra. — Essa infecção está afetando a população também, infelizmente. A influência desse homem está se tornando cada vez mais perigosa. Soleil, eu agradeço sua cooperação nessa questão. Eu sei que não é o que você quer, e sei que isso lhe causará aborrecimento com Brezno, e quanto a isso eu realmente sinto muito.

Ca’Paim concordou e tirou outro bolinho do prato.

— Com o archigos Karrol e Brezno eu posso lidar. Eu só espero que seja isso o que você quer, Allesandra.

Nico Morel

Nico olhou fixamente para o jovem que trouxera a notícia.

— Você tem certeza disso? — perguntou ele. — Absoluta?

O homem — um e’téni da fé concénziana, ainda vestido com seu robe verde — fez uma reverência.

— Sim, Absoluto Nico. A a’téni ca’Paim anunciou à equipe nesta tarde.

O e’téni não parava de desviar o olhar, como se tivesse medo de que o humor de Nico explodisse e o transformasse em cinzas. Nico respirou fundo — a notícia realmente ardeu em suas entranhas. Era um ultraje, um insulto a Cénzi que o funeral do embaixador ca’Pallo se desse no Velho Templo. Um numetodo, descansando nesse lugar sagrado, sendo louvado ali... Mas ele conseguiu sorrir sombriamente para o e’téni.

— Obrigado por vir nos contar — falou Nico. — E que a bênção de Cénzi recaia sobre você pelos seus esforços.

Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. O e’téni sorriu brevemente diante do gesto, afastou-se com mesuras e fechou a porta de madeira empenada ao sair. Nico virou-se para a janela: entre os vãos da persiana retorcida, ele olhou para um beco do Velho Distrito, cuja sarjeta central estava entupida com dejetos e lixo. A casa em que eles estavam ficava em uma rua com dois açougues vizinhos, e as vísceras e o fedor das carcaças de carne eram às vezes avassaladores.

Estava quase anoitecendo; os ténis-luminosos em breve acenderiam os famosos postes da Avi A’Parete, a larga avenida que formava um anel em volta dos antigos limites de Nessântico. Nico viu um lampejo verde quando o e’téni saiu da casa para voltar apressadamente para suas obrigações no Velho Templo, disparando entre duas putas que andavam na direção das tavernas da próxima rua. Nico podia sentir o cheiro de mijo e merda nas ruas abaixo: o odor da corrupção.

Esse odor definia Nessântico para ele.

Estranhamente, esses não eram os cheiros que ele se lembrava de sua vida em Nessântico antes dos tehuantinos. Em suas memórias de infância, o Velho Distrito era quente e agradável, tinha cheiro de temperos, do perfume da matarh e de seu suor doce quando ele a abraçava nos dias quentes de verão. E o cheiro das ervas que seu vatarh ocidental usava na tigela de latão que sempre levava consigo. Essa Nessântico era brilhante e colorida, cheia de vida e com esperanças e potencial.

Essa Nessântico estava completamente perdida. Essa Nessântico morreu quando ele fora arrancado de sua matarh.

— Absoluto?

O chamado veio de Ancel ce’Breton, um dos poucos morellis em quem ele confiava cegamente, e uma das duas pessoas no aposento com Nico. Ancel era macilento, tinha um rosto encovado, envolto em uma barba negra desalinhada. Seus dedos compridos coçavam a bashta de linho barato com unhas escuras e lascadas — mais do que Nico, ele tinha a aparência de um asceta.

— Quais são seus pensamentos?

— Eu acho, Ancel, que isso é um tapa na cara de Cénzi — respondeu Nico sem desviar o olhar da janela. — Acho que a alma da a’téni ca’Paim será rasgada e julgada pelos retalhadores de almas e considerada culpada quando ela morrer. E espero que este dia ocorra em breve. Acho que mais uma vez a fé concénziana mostrou sua fraqueza e degeneração.

Ele sentiu uma mão gentil tocar levemente seu ombro: Liana. Ela apertou Nico por trás, e ele sentiu a barriga inchada contra sua espinha.

— O que você quer que façamos? — perguntou ela. — Você pregará contra isso? Nós agiremos?

— Ainda não sei — disse Nico para os dois. — Tenho que pensar, e tenho que rezar.

Ele se afastou da janela. A raiva ainda queimava a boca de seu estômago, como brasas abafadas que jamais se apagariam, mas Nico sorriu para Ancel e ergueu a mão para afastar o cabelo do lindo rosto de Liana.

— Passarei a noite em meditação, e espero que Cénzi venha até mim com Sua resposta até amanhã.

Ancel meneou a cabeça.

— Eu avisarei os demais, especialmente os ténis que estão do nosso lado. Eles estarão prontos para fazer o que quer que o senhor peça, Absoluto.

— Obrigado, Ancel. Sem você, eu não saberia o que fazer.

Nico percebeu que o elogio corou momentaneamente o rosto pálido do homem. Seus olhos se arregalaram ligeiramente enquanto ele se inclinava para fazer o sinal de Cénzi para Nico.

— Eu sou seu servo, assim como o senhor é servo de Cénzi — disse Ancel. — Eu mandarei um de nós trazer a ceia em uma virada da ampulheta.

Nico inclinou a cabeça assim que o homem fechou a porta atrás de si e ouviu Ancel chamar:

— Erin, traga as refeições do Absoluto e de Liana, por favor...

Agora que estavam a sós, Liana acariciou sua barriga redonda e finalmente se aproximou, apertando seu corpo contra o de Nico; ele a abraçou e beijou sua testa e seus cachos castanho-escuros brilhantes. Não tão escuros quanto os cabelos de Rochelle, que eram tão negros quanto a meia-noite, mas os mesmos cachinhos...

Nico afastou a memória. Ele não gostava de pensar na irmã, Rochelle. Ela estava perdida, assim como todo o seu passado. Ele abraçou Liana com mais força e sentiu o puxão irritante das costelas, que ainda estavam se recuperando dos chutes que ele levou da Garde Kralji há dois dias: ele estava pregando para uma multidão perto da Praça do Templo. Os gardai o empurraram na direção do pavimento sujo e o cercaram, suas botas o atacavam enquanto ele cobria a cabeça e os seguidores gritavam invectivas e tentavam afastar os gardai.

— Não! — berrou Nico para os seguidores. — Não se preocupem! Cénzi me protegerá!

Ele quis usar o Ilmodo na ocasião. Quis invocar uma tempestade de raios sobre os gardai, atear fogo neles ou varrê-los com um vento uivante. Nico poderia ter feito qualquer uma dessas coisas facilmente, mas não ousaria — não em público, não com os ténis observando. Se eles tivessem visto Nico usar o Ilmodo, a magia dos ténis, invocariam as leis da Divolonté, o código que regia a fé concénziana. De acordo com esse código, como um téni excomungado, Nico estava sujeito às mais duras penalidades se usasse o Dom de Cénzi novamente: ele teria suas mãos cortadas e sua língua arrancada de sua boca, para que jamais pudesse usar o Ilmodo. Apenas os ténis tinham permissão para invocar a magia do Segundo Mundo.

E porque Nico realmente acreditava na Divolonté, porque era um téni fiel, ele obedecia. Nico já não usava o Ilmodo há três anos, embora tenha sido o melhor entre os ténis: o mais talentoso, o mais poderoso. Até mesmo o archigos Karrol o teria admitido. Mas Nico não tinha orgulho de seu talento: foi Cénzi que o fez daquela forma, Cénzi que o fez Absoluto. Não o próprio Nico.

A Fé o tinha expulsado injustamente. E o fizeram porque tinham inveja dele. Expulsaram-no porque tinham medo. Expulsaram-no porque ele dizia a verdade, a pura palavra de Cénzi, e eles sabiam disso, ainda que negassem. Expulsaram-no porque ouviram o poder em sua voz e viram quão facilmente ele arregimentava seguidores.

Todos os a’ténis, até mesmo o archigos Karrol, em Brezno, agora permitiam que os numetodos inoculassem seu veneno. Eles não eram como o archigos Semini, que havia pendurado corpos de hereges numetodos em forcas na Praça de Brezno. Não, o atual archigos e seus a’ténis podiam reclamar do ateísmo e das falsas crenças dos numetodos, mas permitiam que eles ridicularizassem Cénzi com suas próprias magias. Os ténis adulteravam sua própria magia da fé concénziana usando as técnicas dos numetodos. Toleravam que numetodos integrassem o Conselho dos Ca’ e sussurrassem nos ouvidos da kraljica. Ouviam os absurdos que os numetodos cuspiam, sobre como todas as coisas no mundo podiam ser explicadas sem recorrer à Vucta ou a Cénzi ou mesmo aos moitidi. Os numetodos alegavam que a lógica sempre vencia a fé, e...

A

Não

Dizia

Nada.

Os numetodos enfureciam Nico. Nem eles, nem o povo da própria Nessântico percebiam que o saque da cidade pelos tehuantinos — eles próprios pagãos e hereges que veneravam falsos deuses — foi um grande castigo de Cénzi, um terrível aviso sobre o que acontecia aos que se viraram contra Ele.

Nico mostraria para eles. Nico os guiaria pelo caminho certo. Eles ouviriam sua voz e seguiriam sua orientação.

Era o que Cénzi exigia de Nico. Era o que ele faria.

— Nico, onde está você?

Liana estava olhando para ele com seus olhos da cor de chá forte — também não eram como os de Rochelle, que tinham íris de um azul muito claro. Nico despertou de seu devaneio.

— Ele está falando com você? — perguntou Liana.

Nico negou com a cabeça olhando para ela.

— Ainda não, mas eu sei que Ele está próximo. Posso sentir sua força.

Nico abraçou Liana e se inclinou para beijar sua boca, que cedeu suavemente à pressão. Ele sentiu a agitação da língua dela contra a sua e uma contração embaixo da bashta.

— Então deixe-me confortá-lo agora — sussurrou Liana quando os dois se afastaram. — Por uma virada da ampulheta apenas...

Nico tocou sua barriga.

— Será que devemos...?

Ela riu.

— Eu estou grávida, meu amor, mas não sou de vidro. Eu não vou quebrar.

Liana pegou a mão dele, e Nico deixou-se levar para a cama.

Nesse momento, durante algum tempo, ele perdeu-se em paixão e calor terrenos.

Brie ca’Ostheim

Brie ergueu a sobrancelha para Rance ci’Lawli, o assistente de seu marido e, portanto, a pessoa responsável pelo bom funcionamento do Palácio de Brezno.

— É aquela ali, então? — ela perguntou apontando o queixo na direção do outro aposento.

Era a sala de estar nos níveis mais baixos e de acesso público do Palácio de Brezno. Várias das damas da corte estavam lá, mas uma delas estava sentada no chão com Elissa, a filha mais velha de Brie, ambas trabalhando em um bordado.

Rance meneou a cabeça. Ele era mais alto do que Brie, assim como era mais alto que a maioria das pessoas: era comprido e magro, como se Cénzi tivesse esticado uma pessoa normal. Também era extraordinariamente feio, tinha a pele acneica, olhos encovados e a palidez de trapos fervidos. Seus dentes pareciam maiores que a boca. Mas Rance possuía uma mente aguçada, parecia se lembrar de tudo e de todos, e Brie teria confiado sua vida a ele, da mesma forma que confiava agora.

— Aquela é Mavel co’Kella — ele sussurrou, com um som que mais pareceu o rufar de uma tempestade vindoura.

— Como eu suspeitava; notei Jan prestando muita atenção a ela no baile do mês passado. E você está certo do... estado dela?

Ele meneou a cabeça.

— Sim, hïrzgin. Eu tenho minhas fontes e confio nelas. Já existem alguns rumores entre os funcionários, e quando se começar a notar claramente... bem, não podemos permitir isso.

— Jan sabe?

Rance balançou a cabeça alongada.

— Não, hïrzgin. Eu vim ter com a senhora primeiro. Afinal...

— Sim. — Brie suspirou. — Não é a primeira vez.

Ela encarou Mavel através do tecido fino da cortina entre aposentos. A mulher era mais jovem que Brie uns bons dez anos, tinha cabelo escuro como a maioria das amantes de Jan, e Brie invejou sua boa forma, embora pensasse ter visto o leve inchaço da barriga sob a faixa da tashta. Após quatro filhos, Brie se esforçou para manter sua silhueta. Seus seios caíram com os anos de alimentação de bebês famintos, seus quadris ficaram largos e seu estômago coberto de estrias. Ainda não tinha perdido todo o peso que ganhou com Eria, a filha mais nova, há quase três anos. Mavel possuía a agilidade que a própria Brie tinha tido.

Ela não aguentaria isso por muito tempo. Não agora.

— A família co’Kella possui algumas propriedades de terra em Miscoli. Ela poderia ficar com alguns parentes por lá durante o confinamento — sugeriu Rance. — Eu já fiz negócios com o vatarh dela; ele deveria estar na lista para ser nomeado chevaritt, mas agora... — ele balançou a cabeça. — Isso terá que esperar. Vamos ver se uma das famílias de menor importância de Miscoli tem um filho mais novo que esteja disposto a casar e chamar o filho de seu. Farei a proposta de sempre pelo silêncio da garota e prepararei os contratos para o vatarh assinar.

Brie concordou.

— Obrigada, Rance, como sempre.

Ele se curvou ligeira e desajeitadamente.

— É um prazer servi-la, hïrzgin. Mande a vajica co’Kella ao meu gabinete, e eu falarei com ela. Ela terá ido embora ainda essa noite. Darei aos funcionários uma razão conveniente sobre sua ausência para conter as fofocas.

Ele curvou-se mais uma vez e se retirou. Brie respirou fundo diante da cortina e entrou na sala de visitas. As mulheres se levantaram simultaneamente, fazendo reverências conforme a hïrzgin se aproximava. Elissa, por sua vez, sorriu largamente e correu em sua direção. Mavel levantou-se lentamente, Brie pensou ter visto uma hesitação em sua reverência e uma inveja cautelosa em seus olhos. A mão da jovem permaneceu em seu estômago.

Brie se agachou para abraçar Elissa e pegá-la nos braços para lhe dar um beijo.

— Está se divertindo, minha querida? — ela perguntou a Elissa penteando para trás os fios castanhos-dourados que escaparam de suas tranças.

— Sim, matarh — respondeu Elissa. — Mavel e eu estávamos bordando uma paisagem da Encosta do Cervo. A senhora quer ver?

— Com certeza.

Brie beijou a testa de Elissa e pousou a menina no chão. Ela olhou para Mavel, que baixou o olhar para o tapete de padrões geométricos em preto e prata.

— Mas eu acabei de falar com Rance, e ele pediu que a vajica co’Kella compareça em seu gabinete. Notícias de família.

Isso fez a garota erguer novamente cabeça, e agora seus olhos estavam arregalados e apreensivos.

— Estou certa de que você irá desculpá-la — disse Brie para Elissa.

Houve um momento de silêncio. Brie pôde notar que as outras damas da corte se entreolharam. Então Mavel fez outra reverência, às pressas.

— Obrigada, hïrzgin — disse ela. — Irei imediatamente.

Ela recolheu a costura e saiu da sala, resvalando em Brie e deixando um cheiro de amêndoas e flores.

— Muito bem, então — disse Brie para Elissa. — Vamos ver esse bordado...

Ela sorriu ao deixar Elissa pegar sua mão, e as outras mulheres da corte devolveram o sorriso. Brie perguntou-se o que realmente, por trás dos sorrisos e do papo furado, elas estariam pensando.

Mas isso, obviamente, ela nunca saberia.

Allesandra ca’Vörl

Allesandra compareceu à Terceira Chamada no Velho Templo, como era seu hábito quando na cidade. A Admoestação, pronunciada pela própria a’téni ca’Paim, foi agradavelmente severa, embora Allesandra tenha notado que vários dos ténis presentes pareceram franzir a testa diante da retórica contra “aqueles que seguem os ensinamentos de pretensos discípulos de Cénzi, e não do archigos da fé concénziana”, uma referência óbvia a Nico Morel e seus seguidores.

Ela também se viu contente por ver Erik ca’Vikej na missa, sentado várias fileiras atrás do banco real reservado para os kralji. Embora soubesse que Sergei ficaria irritado, e que a a’téni ca’Paim sem dúvida incluiria esse incidente no relatório semanal ao archigos Karrol, em Brezno, Allesandra pediu que um de seus assistentes voltasse para convidar ca’Vikej para vir sentar-se no banco com ela. Ele fez uma reverência ao sentar-se ao lado da kraljica. Seu sorriso reluziu, seus olhos brilharam. Allesandra sentiu novamente a força de atração do homem — as pessoas para quem ela pediu para averiguar o passado dele disseram que ele era um desses sujeitos que as pessoas seguiam facilmente — um líder natural.

Também disseram que ca’Vikej era viúvo, que sua esposa morrera dando à luz o último de seus três filhos, que atualmente moravam com parentes no exílio em Namarro.

Ele daria um belo gyula, caso o moitidi que governava o destino lhe reservasse isso. E se acontecesse... bem, Allesandra, assim como Marguerite antes dela, acreditava que o casamento era uma excelente arma para se empunhar. E se o esposo fosse pelo menos agradável, isso era um bônus.

Depois da missa, ela permitiu que ca’Vikej lhe tomasse o braço enquanto eles saíam primeiro do templo. Allesandra acenou para aqueles que conhecia enquanto passava.

— Um alerta severo da a’téni — ele comentou; sua voz era quente e baixa, e seu hálito tinha o cheiro agradável de algum tempero oriental. — Obrigado, kraljica, por me dar o privilégio de me sentar com a senhora.

— Fiquei surpresa ao vê-lo aqui, vajiki — ela respondeu.

— Eu já pensei em me tornar um téni. Meu vatarh me fez mudar de opinião, mas desde então... — Allesandra percebeu que ele deu de ombros. — Eu ainda encontro grande conforto na Fé. Além disso, eu sabia que havia uma boa chance de a senhora estar presente.

— Ah? E como isso seria importante, vajiki? — perguntou ela.

Ele riu profunda, gutural e genuinamente. Allesandra gostou da risada, gostou da maneira como acentuava as rugas em volta de seus olhos.

— Eu ainda não tinha tido a oportunidade de agradecê-la devidamente pela dança no Gschnas, kraljica.

— Só isso? Todos os magyarianos são assim tão agressivamente corteses, vajiki?

Outra risada. Eles se aproximavam das portas, que foram abertas pelos ténis ali em postos. O céu ocidental sobre os prédios em torno da praça tinha toques de vermelho e laranja, como se as nuvens estivessem em chamas. Eles adentraram uma noite fria. Havia uma multidão de cidadãos reunidos — alguns saídos das portas laterais do templo para ver a kraljica, assim como os turistas curiosos habituais. A carruagem de Allesandra a aguardava a alguns passos de distância, e o condutor já segurava a porta aberta para ela. O povo vibrou quando a kraljica saiu do templo, e Allesandra acenou para eles.

— Não, infelizmente não — respondeu ca’Vikej enquanto a multidão urrava. — Mas eles não têm o incentivo da sua beleza; como pode ver, até seus súditos foram conquistados.

Foi a vez de Allesandra soltar uma gargalhada, parando momentaneamente.

— Noto que o senhor herdou a lábia de seu vatarh, mas não fico lisonjeada tão facilmente, vajiki. Perdoe-me se eu disser que suspeito que seus motivos são mais políticos que pessoais.

— Neste caso, a senhora estaria...

Erik ca’Vikej começou a responder, mas foi interrompido por um grito na primeira fila da multidão.

— Não traia a sua própria fé, kraljica! — uma voz masculina berrou.

A voz era estranhamente alta, como se ampliada pelo Ilmodo, e todas as cabeças se voltaram para ela. Os gardai destacados para conter a multidão foram bruscamente empurrados, como se uma mão gigantesca os tivesse jogado no pavimento, e um téni vestido de verde passou pela brecha. Allesandra viu que era um o’téni pela faixa da patente e reconheceu o homem, embora não soubesse seu nome; ela tinha vislumbrado seu rosto entre a equipe da a’téni ca’Paim.

— A senhora maculará Cénzi se trouxer o corpo de um herege numetodo para este local sagrado. Cénzi não permitirá isso!

O o’téni se aproximou. Allesandra sentiu o braço de ca’Vikej largar o seu.

— Aqueles que são verdadeiramente fiéis deterão essa farsa se for preciso!

O rosto do homem ficou retorcido enquanto ele gritava, e ele agora começava a entoar um cântico, suas mãos executaram o gestual de um feitiço. Mas Allesandra ouviu o assobio de aço sendo sacado de uma bainha, e ca’Vikej tinha saído de seu lado. Um braço musculoso estava em volta da cabeça do téni e a adaga na mão de ca’Vikej estava pressionada contra a garganta do homem.

— Mais uma palavra — Allesandra ouviu ca’Vikej dizer no ouvido do téni — e você não terá garganta para falar.

As mãos do téni caíram e ele interrompeu o cântico. Os gardai, voltando a se levantar, também cercavam o homem, e vários se postaram entre a kraljica e o téni. Ela ouviu berros e gritos. Allesandra sentiu que mãos a conduziam rapidamente para a carruagem. Por trás dos ombros uniformizados, ela viu o téni ser arrastado, ainda gritando.

— ... traindo a Fé... ela mesma não é melhor que um numetodo...

Allesandra entrou na carruagem e viu ca’Vikej, que teve sua faca confiscada, também ser levado às pressas.

— Não! — ela gritou. — Tragam o vajiki ca’Vikej aqui.

Eles o levaram até a kraljica, sendo carregado por um garda em cada braço.

— Podem soltá-lo — ela ordenou para os gardai, que o soltaram com hesitação. — Deem-me a adaga dele — ela disse, e um garda entregou a arma. — Vajiki, na minha carruagem, por favor.

Enquanto a porta era fechada e o condutor fazia os cavalos seguirem adiante, Allesandra olhou para ca’Vikej. Ele estava desgrenhado, sua roupa rasgada, e havia um longo arranhão em sua cabeça raspada com gotas de sangue escuro. Ela ergueu a adaga de seu colo — uma arma longa e curva, feita em aço firenzciano escuro e acetinado, com um cabo de marfim esculpido. Ela virou a adaga em sua mão enquanto a admirava.

— Muito poucas pessoas têm permissão para portar uma arma na presença da kraljica — informou Allesandra, mantendo o rosto severo, sem sorrir. — Especialmente uma feita pela Coalizão.

Ca’Vikej inclinou a cabeça em sua direção.

— Então eu imploro seu perdão, kraljica. Vou me lembrar disso. Por favor, fique com ela como um presente; a lâmina foi forjada por meu vavatarh; e meu vatarh Stor me deu antes...

Ela viu um breve lampejo de dentes na escuridão da carruagem. As molas dos assentos rangeram quando eles passaram sobre o meio-fio do templo para a rua.

Allesandra permitiu-se sorrir.

— Eu agradeço o presente. Mas, neste caso, acho melhor devolvê-lo. Que isto seja meu presente para você.

Ela entregou a adaga para ca’Vikej. Ele a ergueu na mão e tocou o cabo com os lábios.

— Obrigado, kraljica. Agora essa adaga é mais valiosa do que nunca.

Allesandra observou ca’Vikej guardá-la novamente na bainha de couro gasta sob a blusa da bashta.

— Tem fome, vajiki? Podemos jantar no palácio, e depois... — Ela sorriu novamente. — Podíamos conversar, eu e o senhor.

Ele inclinou a cabeça, à moda magyariana.

— Eu gostaria muito.

Sua voz soou como o ronronar de um gato, e Allesandra sentiu-se agitar com o som.

— Excelente — respondeu a kraljica.

Rochelle Botelli

Ela não esperava voltar a Brezno. Sua matarh disse para evitar aquela cidade.

— Seu vatarh está lá — ela dizia. — Mas ele não vai reconhecê-la, e tem outros filhos agora, de outra mulher. Não, quieta, já disse! Ela não precisa saber disso.

As duas últimas frases não tinham sido dirigidas a Rochelle, mas às vozes que atormentavam sua matarh, as vozes que a levariam afinal à loucura e à morte. Ela agitou os braços diante de si como se, com isso, pudesse afastar as vozes como se fossem uma nuvem de vespas ameaçadoras, com olhos — tão estranhamente claros como os de Rochelle — arregalados e furiosos.

— Não irei, matarh — respondeu Rochelle.

Ela aprendeu cedo que era sempre melhor dizer para sua matarh aquilo que ela queria ouvir, mesmo que Rochelle não tivesse nenhuma intenção de obedecer. Isso ela aprendera com Nico, seu meio-irmão 11 anos mais velho. Nico tinha sido tocado pelo Dom de Cénzi, e sua matarh tinha dado um jeito de ele ser educado na fé concénziana. Rochelle nunca soube ao certo como sua matarh tinha conseguido isso, pois raramente os ténis aceitavam alguém que não fosse um ca’ ou co’ para ser um acólito, e, ainda assim, somente com muitas solas de ouro envolvidas. Mas ela o fez, e quando Rochelle tinha 5 anos, Nico saiu de casa para sempre, deixando a irmã sozinha com uma mulher que estava ficando cada vez mais instável e que ensinaria a filha a única e melhor habilidade que tinha.

Como matar.

Rochelle tinha 10 anos quando a matarh colocou uma faca longa e afiada em sua mão.

— Eu vou lhe mostrar como se usa isso — disse ela.

E assim começou. Aos 12 anos, Rochelle colocou suas habilidades em prática pela primeira vez — um homem na vizinhança que havia importunado algumas meninas. A matarh de uma das vítimas contratara o famoso assassino Pedra Branca para matá-lo pelo que ele fez com sua filha.

— Cubra os olhos dele com pedras — suspirou a matarh ao lado de Rochelle logo depois de esfaquear o homem, depois de enfiar a ponta da adaga desde as costelas até o coração.

As vozes nunca a incomodavam quando ela estava fazendo seu trabalho; ela parecia lúcida, racional e concentrada. Era apenas depois...

— Isso vai absorver sua imagem capturada pelas pupilas, assim ninguém mais poderá olhar em seus olhos mortos e ver quem o matou. Bom. Agora, pegue a pedra do olho direito e guarde-a; esta você deve usar toda vez que matar, para guardar as almas que você tomou e a imagem de você os matando. A pedra no olho esquerdo, a pedra dada pelo cliente, você deixa no corpo, para que todos saibam que a Pedra Branca cumpriu o contrato...

Agora em Brezno, onde ela tinha prometido jamais ir, Rochelle enfiou a mão no bolso de sua tashta fora de moda. Havia duas pequenas pedras lisas ali, cada uma do tamanho de um siqil de prata. Uma delas era a mesma pedra que ela usou naquela ocasião, a pedra de sua matarh, a pedra que ela usou várias vezes desde então. A outra... era o sinal de que ela cumprira o contrato. Fora dada a ela por Henri ce’Mott, um cliente insatisfeito de Sinclair ci’Braun, um goltschlager — um fabricante de folhas de ouro.

— O homem me mandou material defeituoso — sussurrou ce’Mott roucamente na escuridão que escondia Rochelle de seu cliente. — Sua folha quebrou e ficou em pedaços quando tentei usá-la. O desgraçado usou ouro impuro para fazer as folhas, e sua grossura era irregular. Precisei usar o dobro de chapas e mesmo assim o folheado ficou visivelmente imperfeito. Eu estava folheando uma moldura para o decorador-chefe do Palácio de Brezno, para o retrato do jovem a’hïrzg. Disseram que eu poderia receber um contrato para todos os folheados do palácio, e isso me acontece... Ci’Braun me custou um contrato com o próprio hïrzg. Ainda mais insultante, o homem teve o desplante de se recusar a ressarcir o que paguei para ele, alegando que a culpa era minha, não dele. Agora ele anda dizendo para todo mundo que sou um péssimo dourador que não sabe o que faz, e muitos dos meus clientes desapareceram...

Rochelle ouviu a longa reclamação sem expressar emoção. Ela não se importava com quem estava certo ou errado na questão. E se fosse preciso escolher um lado, Rochelle suspeitava que o goltschlager estava provavelmente certo; ce’Mott certamente não a impressionara. Tudo que importava para ela era quem pagava. Na verdade, Rochelle suspeitava que ce’Mott era tão pública e notoriamente inimigo de ci’Braun que a Garde Hïrzg o acabaria prendendo depois que ela matasse o homem. Na Bastida de Brezno, ele certamente confessaria que contratou a Pedra Branca.

Isso tampouco importava. Ce’Mott nunca a tinha visto, nunca tinha vislumbrado seu rosto ou seu corpo, e ela havia disfarçado a voz. Ele não tinha nada para contar a eles. Nada.

Rochelle passou os últimos três dias vigiando ci’Braun, à procura — como a matarh a ensinou — de padrões que ela pudesse usar, de vulnerabilidades que pudesse explorar. As vulnerabilidades eram muitas: ele geralmente mandava seus aprendizes para casa e trabalhava sozinho na oficina à noite, com as persianas fechadas. A porta dos fundos da oficina dava para um beco geralmente deserto, e a tranca era antiga e facilmente arrombável. Rochelle esperou. Ela o observou e seguiu durante o dia. Ceou na taverna onde podia observar a porta da oficina. Quando ele fechou as persianas e trancou a porta, o sol desapareceu atrás das casas e os ténis-luminosos começaram a caminhar pelas avenidas principais para acender os postes da cidade, Rochelle pagou a conta e entrou sorrateiramente no beco. Ela verificou se não havia ninguém à vista, ninguém observando das janelas dos prédios que pairavam sobre ela. Rochelle arrombou a tranca em poucos segundos, abriu a porta e entrou, fechando a porta atrás de si.

Ela se viu em um depósito com finos lingotes de ouro — “zains”, como ela descobriu que se chamavam — em pequenas caixas, prontos para serem prensados em folhas de ouro, que depois podiam ser forjados em chapas tão finas que era possível que a luz as atravessasse; folhas reluzentes de metal precioso que douradores como ce’Mott usavam para cobrir objetos. Na sala principal da oficina, Rochelle viu a luz de velas e ouviu uma batida seca e ritmada. Ela seguiu o som e a luz, parando atrás de uma enorme prensa de rolo. Uma longa faixa de folha de ouro projetava-se entre os rolos. Ci’Braun — um homem provavelmente em seus quase 60 anos, barrigudo e com uma pele grossa e enrugada — estava encurvado sobre uma mesa pesada de madeira, com um martelo de bronze em cada mão, batendo em pacotes de veludo com quadrados de folha de ouro dentro deles e cobertos por uma tira de couro. Ele suava, e Rochelle pôde notar os músculos dos braços incharem a cada martelada no veludo. Ele parou um instante, ofegante, e ela moveu-se nas sombras, deliberadamente.

— Quem está aí? — perguntou ci’Braun assustado.

Ela deslizou sob a luz das velas e sorriu timidamente. Rochelle sabia o que o homem estava vendo: uma jovem lépida prestes a desabrochar, talvez com 15 anos de idade, com o cabelo preto preso em uma longa trança que descia pelas costas da tashta. Ela segurava um rolo de tecido embaixo do braço, como se tivesse comprado uma tashta nova em uma das muitas lojas da rua. Não havia nada minimamente ameaçador nela.

— Ah — exclamou o homem, pousando os martelos. — O que posso fazer por você, jovem vajica? Como entrou?

Rochelle gesticulou para o depósito atrás de si e colocou a outra tashta sobre a prensa de rolo.

— A porta dos fundos estava entreaberta, vajiki. Eu notei ao passar pelo beco. Pensei que gostaria de saber.

O homem arregalou os olhos.

— Eu certamente gostaria.

Ele se dirigiu para os fundos da oficina.

— Se algum daqueles meus aprendizes imprestáveis deixou a porta aberta...

Ci’Braun estava agora a um braço de distância de Rochelle. Ela deu um passo para o lado para deixá-lo passar, descobrindo a arma debaixo da tashta. A faca era a melhor opção: ele era corpulento e forte demais para o garrote, e veneno não era uma tática que ela pudesse usar facilmente com ele. Ela deu um passo em torno do homem enquanto ele passava por ela, quase o movimento de um dançarino, e a faca deslizou facilmente por sua garganta, um corte fundo na traqueia e na lateral, onde o sangue bombeava com mais força. Ci’Braun gorgolejou em surpresa, as mãos foram à nova boca que Rochelle abrira para ele, e o sangue fluiu entre seus dedos. Seus olhos ficaram arregalados e em pânico. Ela se afastou dele — a frente de sua tashta se sujara com uma enorme mancha vermelha — ele tentou persegui-la, tentou pegá-la com a mão ensanguentada. Ci’Braun conseguiu, surpreendentemente, dar dois passos quando Rochelle se afastou, antes de desmoronar.

— Impressionante — ela disse. — A maioria dos homens teria morrido imediatamente.

Rochelle agachou-se ao lado dele e grunhiu ao virar o homem de barriga para cima. Ela pegou as duas pedras lisas e claras no bolso da tashta arruinada e colocou uma sobre cada olho. Esperou alguns segundos, e ergueu a mão para tirar a pedra do olho direito, deixando a outra em seu lugar. Rochelle quicou a pedra na palma da mão e a pousou na prensa de rolo, ao lado da tashta limpa.

Sem pressa, ela despiu a tashta ensanguentada e a camisola, ficando nua no aposento a não ser pelas botas. Limpou a faca cuidadosamente na tashta suja. Havia uma pequena fornalha em uma parede; ela soprou as brasas até que brilhassem, depois colocou as roupas ensanguentadas sobre elas. Enquanto as roupas queimavam, ela lavou as mãos, o rosto e os braços na bacia de água que encontrou sob a bancada de trabalho. Em seguida, ela vestiu a camisola e a tashta novas que trouxe. A pedra — aquela do olho direito de todos os contratos dela e da matarh —, Rochelle colocou de volta na pequena bolsinha de couro cujos longos laços deram a volta em seu pescoço.

Não havia vozes na pedra de Rochelle, como no caso da matarh. As vítimas não a atormentavam. Pelo menos não ainda.

Ela olhou mais uma vez para o corpo. Um olho vidrado e embaçado encarava o teto, o outro estava coberto pela pedra pálida — o sinal da Pedra Branca.

Em seguida, Rochelle voltou calmamente para o depósito. Olhou para as zains de ouro. Poderia tê-las levado facilmente. Elas teriam valido muito, muito mais do que a quantia que ce’Mott lhe tinha pagado. Mas isso era outra coisa que sua matarh a tinha ensinado: a Pedra Branca não rouba dos mortos. A Pedra Branca tinha honra. A Pedra Branca tinha integridade.

Ela destrancou a porta. Abriu uma nesga, olhou lá fora, prestando atenção ao som de passos nos paralelepípedos do beco. Não havia ninguém por perto — a viela estreita estava deserta, como sempre. Rochelle saiu de mansinho e fechou a porta novamente. Movendo-se lenta e tranquilamente, dirigiu-se para as ruas mais cheias de Brezno, sorrindo consigo mesma.

Sergei ca’Rudka

— Você já conseguiu falar com Varina? Pobre mulher... ela está tão abalada com a perda.

Sergei meneou a cabeça.

— Eu jantei com ela ontem, kraljica. Ela não está dormindo bem, a julgar por suas olheiras. Mandei meu curandeiro visitá-la com uma poção.

— Você é um homem muito gentil, Sergei.

Allesandra não estava voltada para ele, e seu comentário foi cuidadosamente enunciado. Ele não soube dizer se as palavras tiveram um toque de ironia ou não. Suspeitava que sim.

— Eu rezo para que, quando os assistentes de Cénzi pesarem minha alma, muito em breve agora, eu flutue em Seus braços, ainda que de forma vacilante, kraljica. Mas esse, infelizmente, será um ato de equilíbrio um tanto ou quanto delicado.

Os dois estavam sentados na sacada dos aposentos externos de Allesandra no Grande Palácio, com vista para os jardins. As trompas soaram a Primeira Chamada há uma virada e meia. Abaixo deles, os jardineiros perambulavam sob o sol da manhã, regavam plantas e arrancavam ervas daninhas que se atreviam a crescer nos canteiros bem cuidados. À esquerda, os operários enxameavam os andaimes onde a fachada da ala norte ainda estava sob construção. A percussão descompassada dos martelos e talhadeiras impedia que os pássaros se aninhassem tranquilamente nas árvores.

Allesandra ergueu sua xícara de chá e suspirou. Ela parecia estar observando os trabalhadores construindo os blocos de granito. Sergei tomou seu chá. Ele tinha poucas dúvidas quanto a Allesandra saber de seus vícios; conforme envelhecia, os vícios iam ficando, de alguma forma, mais fortes e compulsivos. Enquanto estava em Nessântico, ele visitava a Bastida a’Drago quase todos os dias — muitos dos offiziers da Bastida tinham subido de posto enquanto Sergei ainda era comandante da Garde Kralji e depois da Garde Civile; o capitão ce’Denise fora um recruta contratado por ele há quase 40 anos. Eles permitiam que o embaixador perambulasse pelos níveis inferiores, que “visitasse” um prisioneiro ocasional, e caso ouvissem os uivos de dor, ignoravam o som (ou, muitas vezes, estariam com Sergei). Em Brezno, enquanto embaixador especial do hïrzg, ele havia contratado certas grandes horizontales que atenderiam a suas necessidades especiais em consideração a uma remuneração muito mais alta que ele costumava pagar por sua dor e silêncio.

Sergei frequentemente rezava para que Cénzi lhe retirasse esses impulsos, mas Ele nunca havia respondido. Ele tentara parar, mil vezes, e cada vez ele perdera a batalha.

Sergei era capaz de conduzir um exército e à vitória, mas aparentemente não era capaz de comandar a si mesmo.

Para o público, o “Velho Nariz de Prata” era generoso. Era um homem gentil, conhecido por suas contribuições para a caridade, e elogiado por seus serviços prestados e pela dedicação aos Domínios. Para os amigos, ele era leal e se doava ao máximo. Essa característica de Sergei, também, ele tentara melhorar com o passar dos anos, para compensar a outra.

O embaixador se perguntava que lado de sua personalidade seria lembrado quando ele morresse. Imaginava a que lado Cénzi daria mais peso. Em breve ele descobriria, ele suspeitava. Não havia uma articulação que não doesse em seu corpo. Sergei arrastava os pés em vez de andar. Levava vários segundos para se levantar de uma cadeira, e às vezes suas costas se recusavam a endireitar. A prótese de nariz metálico colada ao rosto se destacava mais do que nunca no saco de carne enrugada onde se encontrava. Ele viveu mais que quase todos os seus contemporâneos. Sergei existia em um mundo onde todos pareciam ser mais jovens do que ele. Para essas pessoas, os eventos que ele testemunhou e participou eram história, e não memória.

— Soube que a senhora convenceu a a’téni ca’Paim a permitir que o Velho Templo seja usado para o funeral, apesar do confronto de ontem.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela pousou a xícara e voltou-se para ele.

— Sim, na verdade, o confronto pode ter ajudado; ela se sentiu culpada por um de seus ténis ter se envolvido em tal ataque. Ainda assim, estou contente que o vajiki ca’Vikej estivesse lá.

Sergei fungou desdenhosamente. Ele sabia que ca’Vikej tinha passado muitas viradas da ampulheta no palácio e esperava que não tivesse sido pelo motivo que suspeitava — mas essa era uma pergunta que ele não podia fazer.

— Eu entrevistei o téni junto com a a’téni ca’Paim. O homem é um seguidor de Nico Morel, mas alega ter agido por conta própria. Eu acredito nele.

— Tenho certeza de que você o persuadiu a dizer a verdade — disse a kraljica com uma estranha inflexão na voz, mas ela se apressou em desviar o assunto antes que Sergei pudesse emitir opinião a respeito. — A a’téni ca’Paim parece achar que o archigos Karrol ainda ficará convenientemente indignado pelo uso do templo em honra a um numetodo.

Sergei ergueu um ombro dolorido.

— Ah, ele fingirá estar. Tem que fingir. Mas ele também entende que, sem a ajuda de Karl e Varina, os tehuantinos talvez estivessem festejando nas ruínas de Nessântico ou possivelmente andando pelas ruas de Brezno. Karrol não gosta das crenças dos numetodos, nem eu, mas compreende que eles se tornaram úteis, ocasionalmente.

— Hum.

Allesandra pousou sua mão sobre a de Sergei. Houve um momento, anos atrás, em que ele pensou que a kraljica pudesse estar atraída por ele, apesar da diferença de idade entre eles. Essa teria sido uma situação horrível e embaraçosa, e ele estava feliz por Allesandra nunca ter levado o relacionamento para além da amizade. Agora ele se perguntava se ela tinha encontrado outra paixão em ca’Vikej.

— Eu realmente me preocupo com os morellis, Sergei — disse Allesandra. — Estamos tomando precauções, mas... todos os relatórios indicam que Nico Morel está em algum lugar na cidade, e a atitude dele em relação aos numetodos é bem clara.

— Clara e completamente irracional — disparou o embaixador. — Karl e Varina não fizeram mais do que ser gentis com ele quando garoto, e agora Nico se voltou contra os dois porque eles acreditam em coisas diferentes. Suponho que a senhora tenha alertado o comandante co’Ingres.

— Sim, e sugeri ao comandante que ele intensificasse as buscas a Morel e o prendesse na Bastida até depois do funeral.

A Bastida. Isso reavivava imagens de pedra escura e... outras coisas. Sergei moveu-se de forma inquietante na cadeira.

— É uma ideia sensata. Não queremos que o que ocorreu no último Dia do Retorno se repita. Allesandra, apesar das objeções de Varina, acho que você precisará agir contra nosso autoproclamado profeta e seus morellis em breve. Varina pode achar que ele é remível, mas Nico Morel é muito carismático e perigoso, e pessoas demais estão começando a ouvi-lo. O problema é que o archigos Karrol nutre alguma simpatia pelo garoto; a Fé não fará nada mais que lhe dar um puxão de orelhas. Se o archigos Karrol ou o hïrzg Jan pudessem descobrir uma maneira de usar os morellis contra você, eles usarão. Na melhor das hipóteses, Nico é uma distração desnecessária no momento; e você não vai querer que ele se torne algo mais.

Allesandra concordou, mas não disse nada. Sua mão voltou a seu próprio colo.

— O embaixador ca’Schisler, de Brezno, virá ao funeral — informou Sergei. — Eu falei com ele antes de vir para cá. Fiquei um pouco preocupado que a Coalizão não fosse representada, isso seria um terrível insulto à memória de Karl.

Ela concordou novamente, encarando o jardim.

— No que a senhora está pensando, kraljica? — perguntou o embaixador. — Sua mente está a quilômetros daqui.

Isso lhe rendeu um ligeiro sorriso.

— Nós fizemos coisas horríveis na nossa época, Sergei... coisas que, na ocasião, achamos que deveríamos fazer, mas, ainda assim, horríveis. Uma vez, eu até mesmo...

Allesandra parou. Um músculo de seu maxilar contraiu quando ela fechou a boca. Os anos também estavam começando a cobrar seu preço da kraljica, Sergei pensou, especialmente nos últimos anos. Havia rugas acentuadas em sua boca e em volta de seus olhos, e seu cabelo estava salpicado de tons grisalhos.

— Acho que não se pode culpar alguém por estar disposto a cometer atos violentos em nome de uma causa — completou ela.

— Culpar, não — respondeu Sergei. — Mas deter os que ameaçarem Nessântico? Aprisioná-los ou executá-los se for necessário, para lidar com eles? Sim. E sem nenhum arrependimento.

— Você diz isso com tanta facilidade.

— Eu acredito nisso.

— Sinto inveja das suas convicções, então. — Ela pareceu tremer com o frio matinal, puxando mais a capa fina que usava sobre os ombros da tashta. — Eu quis tanto isso, Sergei. Eu queria ser kraljica. Eu me imaginei como a nova Marguerite, com o Trono do Sol aceso com sua antiga glória e muito mais.

Sergei se remexeu — nos últimos anos, desde o desastre com Stor ca’Vikej e a Magyaria Ocidental, ele vinha insistindo que Allesandra se reconciliasse com o filho. Ela sempre desprezara as insinuações com irritação, mas agora...

— Você ainda tem mais de três décadas para se igualar a ela — respondeu Sergei. — Pergunte aos historiadores como seus primeiros anos foram conturbados, se ainda não tiver perguntado. Você ainda pode ser Marguerite, se é isso o que você quer. Ainda há bastante tempo.

— Eu agradeço a opinião.

— E não acredita em mim.

— Sei o que você vai dizer em seguida, Sergei. Não precisa se incomodar. Não devíamos tentar nos iludir a esta altura. — Allesandra deu um tapinha na mão do embaixador mais uma vez. — Qual será o meu legado? Eu sou a kraljica Allesandra, que traiu o próprio filho para tomar o Trono do Sol. Não é isso o que dirão sobre mim? A kraljica Allesandra, que, se um dia quiser reunificar os Domínios, terá de destruir seu único descendente para fazê-lo. A kraljica Allesandra, que cometeu um erro ao apoiar Stor ca’Vikej e quase nos mergulhou em uma guerra plena com a Coalizão.

— Tome cuidado para não cometer outro erro com o filho de Stor.

Ele tinha ido longe demais; o olhar que Allesandra disparou em sua direção foi tão agudo quanto a faca em seu cinto. Ele se apressou em mudar de assunto.

— É cedo demais para estarmos tão piegas, e nenhum de nós está bêbado o suficiente.

Sergei ficou aliviado ao ouvi-la rir pelo nariz, com a boca fechada.

— Karl está morto. Não sei o que há na morte dele que me abalou mais que todas as outras, mas abalou. De repente, eu me sinto mortal. Sergei, eu não vejo meu filho há cinco anos; ele só fala comigo através de você, meu amigo. Ele está sentado em um trono oposto. Meu filho me chama de inimiga. Enquanto isso, eu pouco fiz com o Trono do Sol a não ser tentar reparar o dano causado pelos ocidentais.

— Piegas — Sergei repetiu. — Vamos pedir aos criados para nos trazer vinho, assim pelo menos temos uma desculpa.

— Não é uma piada.

— Ah, mas é, Allesandra. Só não é engraçada para nós. Mas Cénzi certamente acha tremendamente engraçado. Quanto à mortalidade... olhe para mim. — Sergei abriu bem os braços. — Eu venho sentindo a mortalidade há um bom tempo. Na verdade, é uma maravilha que eu ainda consiga me mover. Comparada a mim, você não tem do que se queixar. Ainda tem todos os dentes. E o nariz.

Ele bateu no próprio nariz falso com a unha para que soasse metálico. Sergei viu que ela estava contendo o riso, o que fez ele mesmo sorrir.

— Quanto ao seu filho — ele continuou —, eu falarei com ele da próxima vez que for a Brezno. Eu já sugeri isso antes, como você sabe: talvez esteja na hora de vocês dois se sentarem para ver se conseguem chegar a um entendimento. Ele realmente ama e respeita você, Allesandra, mesmo que não o diga.

— Ele tem um jeito estranho de demonstrar isso. Quantos conflitos de fronteira já aconteceram, ainda mais numerosos do que nunca desde o desastre na Magyaria Ocidental? Ele achou que me daria o Trono do Sol e continuaria a ver os Domínios desmoronarem. Era isso o que ele queria.

— Em vez disso, a senhora manteve os Domínios coesos — Sergei respondeu —, que é do que eu venho tentando lhe convencer. Os Domínios sobreviveram, apesar do fato de que, sem sua presença orientadora, vários países teriam se separado ou deixado que a Coalizão os absorvesse. Você quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios.

— E isso enfurece meu filho.

— Talvez — admitiu Sergei. — Mas também faz Jan respeitá-la, ainda que de má vontade.

— Você acha?

— Eu sei que sim — respondeu o embaixador.

Era mentira, mas ele estava acostumado a mentir e sabia fazê-lo de maneira convincente.

Ele podia usar esta situação. Podia modificá-la a seu favor.

Depois. Mas agora, ele deu um tapinha na mão de Allesandra e sorriu novamente para ela.

— Eu falarei com Jan — repetiu Sergei. — E veremos.

Jan ca’Ostheim

Jan não sabia se podia acreditar na história.

— Ela está aqui, em Brezno, novamente? Tem certeza?

O comandante Eris co’Bloch, da Garde Brezno, assentiu, cofiando a ponta de seu bigode comprido e rebuscado.

— Parece certamente que sim, meu hïrzg. Ou alguém tentando dar essa impressão. O goltschlager ci’Braun foi encontrado com uma pedra clara sobre o olho esquerdo, exatamente como seu onczio, e nenhuma peça de ouro foi tocada; todos os lingotes foram deixados no lugar. Um assassino comum ou um ladrão teria levado o ouro. Infelizmente, todos os sinais apontam que este foi um assassinato de aluguel cometido pela Pedra Branca.

O archigos Karrol, que estava no palácio quando chegou a notícia, bufou desdenhosamente.

— Não há assassinatos da Pedra Branca há mais de uma década. Acho que isso é uma fraude. A verdadeira Pedra Branca ou está morta ou aposentada.

O comandante co’Bloch voltou seu olhar sereno para Karrol. O archigos, que se aproximava de seu sexagésimo aniversário, tinha sido um dia o a’téni Karrol ca’Asano, de Malacki, até Jan descobrir que o então archigos, Semini ca’Cellibrecca tinha traído Firenzcia. O archigos Karrol fora um homem corpulento, cuja presença e voz tonitruante dominavam um ambiente, embora grande parte da corpulência de outrora tivesse evaporado ao longo dos anos, a não ser pela barriga que ele mantinha. Seu cabelo havia rareado e recuado para revelar seu crânio nu; sua longa barba tornara-se irrevogavelmente branca; sua pele tornara-se pintada de manchas marrons da idade; e sua coluna tão curvada que, ao andar, o archigos parecia encarar eternamente o chão e a bengala que usava para se apoiar. Nesse momento, ele encontrava-se sentado em uma cadeira, franzindo a testa.

— Isso certamente é possível, archigos — respondeu o comandante. — Mas, independentemente disso, no último ano ou dois eu recebi três ou quatro relatórios dentro da Coalizão que condizem com este aqui. Talvez a Pedra Branca tenha se cansado da aposentadoria, ou treinado um substituto.

— Ou alguém quer se aproveitar de sua reputação e está fingindo ser ela.

Co’Bloch deu de ombros.

— Isso também é possível, sim, mas isso importa, de alguma forma?

Jan ergueu uma mão e ambos os homens se voltaram para ele.

— Não é como se a Pedra Branca fosse velha demais. Ela era apenas alguns anos mais velha do que eu quando matou o hïrzg Fynn — comentou Jan, sem conseguir conter a esperança em sua voz; ele notou que Karrol o encarava de maneira estranha. — Ela estaria com quase 40 anos agora, não mais do que isso, no máximo. Ainda pode ser a verdadeira Pedra Branca.

Co’Bloch fez uma reverência para Jan.

— Eu já dei uma descrição da aparência dela na época aos meus offiziers, meu hïrzg, embora 15 anos mudem uma pessoa, especialmente se essa pessoa quiser mudar. A Pedra Branca pode estar bem diferente agora.

Jan lembrava-se muito bem da aparência da Pedra Branca, na época: “Elissa ca’Karina” era como se chamava na ocasião, e ele estivera perdidamente apaixonado por ela. Jan pensou que ela sentia a mesma coisa — acreditou tanto na paixão mútua que pediu para sua matarh, Allesandra, abrir negociações de casamento com a família ca’Karina. Antes que a família respondesse que a filha, Elissa, havia morrido quando era bebê, a Pedra Branca matou o irmão de sua matarh, Fynn, o então recém-empossado hïrzg, e fugiu da cidade. Jan a vislumbrou mais uma vez: em Nessântico, durante a guerra com os tehuantinos.

Na ocasião, ela salvara sua vida, e ele jamais conseguiria esquecer o último olhar que eles trocaram. Ele tinha a certeza de ter visto o amor refletido no olhar dela.

Embora Jan tivesse se casado desde então, embora sentisse uma afeição profunda e permanente pela esposa e pelos filhos, algo ainda se agitava dentro dele quando pensava em Elissa. Ele ainda a procurava em suas amantes.

Por que ela voltaria aqui? Por que retornaria a Brezno?

Jan viu-se dividido entre sentimentos conflitantes — da mesma forma que se sentiu quando pensava nela no primeiro ou segundo ano depois de ter assumido a coroa de hïrzg. Ele sentia repulsa pelo que Elissa fizera com Fynn, a quem Jan amou como a um irmão mais velho, e, ainda assim, se sentia atraído por ela, pela memória do riso, dos lábios, do sexo, da alegria pura de estar com ela. Jan tentou conciliar as imagens conflitantes em sua mente inúmeras vezes.

Ele sempre fracassava.

Jan enviou agentes em busca de Elissa nos anos seguintes. Não sabia ao certo o porquê, não sabia ao certo o que faria com ela se fosse capturada. Tudo o que ele sabia era que queria Elissa, queria sentar-se com ela e descobrir a verdade. A respeito de tudo. Queria saber se ela o tinha amado como ele a amou, queria saber se ela o tinha usado apenas para se aproximar de Fynn, queria saber por que ela o salvara em Nessântico.

Sergei ca’Rudka sugerira que Elissa — qualquer que fosse seu nome real — poderia ter sido a responsável por tirar o jovem Nico Morel de sua matarh durante o Saque de Nessântico. Mas quando Jan entrevistou o jovem téni Morel, que na época tinha sido designado para o Templo do Archigos, em Brezno, ele alegou não ter ideia se a mulher — a quem ele chamava de Elle Botelli — alguma vez tinha sido a Pedra Branca ou onde estaria no momento. “Nós sempre nos mudávamos”, contou Morel para o archigos Semini, quando indagado. “Ela jamais ficava mais que meio ano em um único lugar, geralmente menos do que isso. A mulher tinha sido tocada, isso eu posso dizer — os moitidi a infligiam com vozes. Este era o castigo de Cénzi por seus pecados.”

Morel — ele mesmo era um enigma, não menor que a Pedra Branca: um acólito incrivelmente charmoso e talentoso, e um téni desde o início marcado para rápido crescimento. Mas ele se tornara um agitador obstinado e eloquente, que acabou sendo expulso da Ordem dos Ténis ao declarar que o archigos Karrol e a Fé não apoiavam mais os princípios de Cénzi. O arrivista insistira em que o archigos Karrol admitisse seus erros ou fosse removido à força do trono. O jovem tinha chegado mais perto do sucesso do que Jan ou Karrol poderiam esperar. Ainda havia ténis dentro da fé concénziana que seguiriam o carismático Nico se fossem chamados por ele.

Jan balançou a cabeça para afastar seus pensamentos.

— Encontre essa assassina, quem quer que ela seja — disse o hïrzg para o comandante. — Não me importa que recursos sejam necessários. A Pedra Branca ou alguém fingindo ser ela esteve na cidade há menos de um dia. E talvez ainda esteja. Encontrem-na.

O comandante fez uma reverência, ajeitou o bigode mais uma vez, e se ausentou.

— Não pode ser ela — insistiu Karrol. — Deve ser uma impostora. Pode nem ser uma mulher.

— Por quê? Por que pode nem ser ela?

Karrol balbuciou momentaneamente e limpou a boca com a mão grande.

— Simplesmente não parece verdade — resmungou o archigos.

Jan franziu a testa. Tudo isso não deveria ter importância, de todo modo. Ele era casado há muito tempo, e apesar da afeição que sentia por Brie ca’Ostheim não arder com tanto calor e nem com tanta intensidade quanto seu amor por Elissa, ele a respeitava e gostava de sua companhia. A família de Brie tinha ótimos contatos políticos; ela compreendia os deveres, as obrigações e as sutilezas sociais de ser uma hïrzgin. Ela tinha lhe dado quatro belos filhos. Parecia amá-lo genuinamente. Havia uma amizade entre eles, e Brie sabia fazer vista grossa para suas amantes ocasionais. Jan devia se contentar.

Mas Elissa... Havia mais alguma coisa ali. Ele ainda sentia a paixão arder ocasionalmente, como o incômodo de uma velha cicatriz que considerava há muito tempo curada. Agora, essa antiga cicatriz parecia estar completamente aberta. A Pedra Branca voltou...

Não havia mais nada que ele pudesse fazer a respeito. Co’Bloch a encontraria, ou não. Jan respirou fundo e soltou o ar novamente.

— Já chega. Archigos, do que você queria falar antes de o comandante nos distrair?

Karrol ergueu a cabeça. O movimento pareceu doloroso; os nós dos dedos apertaram sobre o cajado.

— O embaixador Karl ca’Pallo, de Paeti, o a’morce dos numetodos, morreu.

— Eu sei — Jan respondeu com impaciência. — Eu vi a notícia na última mensagem do embaixador ca’Rudka. E daí?

— Eu sei que o senhor relutou que a Fé agisse contra os numetodos, em consideração à ajuda que ca’Pallo deu ao senhor e à sua matarh no passado. Mas... eu me pergunto se agora...

— Se agora o quê? — interrompeu Jan.

Esse era um velho, muito velho conflito — conflito esse no qual o antecessor de Karrol, Semini, havia acreditado; e pelo qual o vatarh-por-casamento de Semini, Orlandi, havia lutado: em que os numetodos eram uma ameaça aos fiéis concénzianos, pelo uso da magia proibida, pela falta de fé em qualquer um dos deuses, pela dependência da lógica e da ciência para explicar o mundo. Uma batalha em que Nico Morel também lutava, com mais rigidez e voracidade que o próprio archigos. Já Jan não estava tão convicto. Para ele, crer na fé concénziana era uma obrigação de seu título, nada mais — era como um casamento político.

— Você quer se tornar um morelli agora, archigos, e começar a perseguir os numetodos de novo? Particularmente, acho isso um pouco irônico, uma vez que isso é o que Morel sempre quis que a Fé fizesse desde o início.

— Morel foi destituído de seu título como o’téni porque não aceitava a orientação de seus superiores — respondeu Karrol. — Ele era insubordinado, impaciente e acreditava que era melhor que qualquer a’téni, até mesmo que eu. Ele alega que fala diretamente com Cénzi. É um louco. Mas até mesmo os loucos dizem coisas que fazem sentido ocasionalmente.

— Você sabe o que eu penso sobre a questão.

— Eu sei. E sei que seu apoio à fé concénziana é forte, meu hïrzg.

Jan riu-se ao ouvir isso; ele já não sabia mais em que acreditar, embora fizesse os gestos à Cénzi.

— Mas, se me permite um pouco de honestidade nua e crua, meu hïrzg, o senhor dá ouvidos demais ao embaixador ca’Rudka. O Nariz de Prata não acredita em nada que não beneficie seus próprios interesses.

— E você gostaria que eu desse mais ouvidos a você, não é mesmo, archigos?

— Eu me gabo de saber mais do senhor que o Nariz de Prata, meu hïrzg.

Jan fungou desdenhosamente. Gabar-se era, de fato, algo que o archigos fazia muito bem.

— Sua matarh se alia aos numetodos — continuou Karrol. — Os relatórios que recebo da a’téni ca’Paim...

— Eu recebo os mesmos relatórios — interrompeu Jan. — E conheço a minha matarh. Melhor do que você.

— Sem dúvida — respondeu Karrol. — O senhor sem dúvida sabe que o filho de Stor ca’Vikej, Erik, também está em Nessântico. Com certeza à procura de ajuda para tomar o trono que seu vatarh não conseguiu tomar. Cada dia que Allesandra permanece no Trono do Sol, ela se torna mais forte, meu hïrzg.

Jan fez uma careta. Ele tendia a concordar com Karrol nessa questão, ainda que nunca admitisse. Ele tinha dado a Allesandra o título que há muito ela cobiçava, quando Nessântico estava derrotada e destruída. Parecia um castigo adequado na ocasião, uma ironia à qual ele não se podia furtar. Mas, de alguma forma, ela conseguira voltar essa ironia contra ele. Jan esperava que sua matarh enfraquecesse e fracassasse, para que percebesse seus erros e implorasse por seu perdão e ajuda; mas Allesandra não o fez. Ela reconstruiu a cidade e conseguiu manter coesas as frágeis conexões entre os vários governantes dos países que compunham os Domínios. No caso de Stor ca’Vikej, ela quase trouxe a Magyaria Ocidental de volta para os Domínios — e teria conseguido, se realmente tivesse enviado todo o exército nessanticano em apoio ao exército desorganizado de fiéis do sujeito. Diante dessa possibilidade, Jan colocou em ação todo o poderio militar de Firenzcia para sufocar a rebelião.

A Coalizão Firenzciana fora incapaz de lucrar com a desgraça de Nessântico. Il Trebbio juntou-se brevemente à Coalizão como resultado da invasão tehuantina para, alguns meses depois, retornar aos Domínios quando Allesandra lhes ofereceu um acordo melhor e casou uma das filhas de ca’Ludovici com o atual ta’mila de Il Trebbio. Nammaro entrou em negociação com Brezno, mas em seguida se afastou também.

Não, a matarh tinha se mostrado muito habilidosa em termos políticos, e Jan deveria ter sabido disso. Ele devia ter ficado com o Trono do Sol, devia ter unido os Domínios à Coalizão à força enquanto o exército ainda estava na cidade. Ele podia ter feito isso tudo, mas era jovem, inexperiente e ficou cego com a chance de humilhar sua matarh.

Não era uma oportunidade que ele deixaria passar novamente. E se o Nariz de Prata ca’Rudka estivesse certo, Jan poderia ter essa oportunidade. Em breve.

Ouviu-se uma batida discreta e suave na porta — era Rance ci’Lawli, seu secretário-chefe e assistente, para avisá-lo que o Conselho dos Ca’ estava na câmara à sua espera. E havia algo que Jan queria perguntar a ele, em todo caso: ele não via Mavel ci’Kella já há dois dias...

Jan sorriu de maneira sombria para Karrol.

— Deixe minha matarh comigo e preocupe-se com o trabalho de Cénzi, archigos. Agora eu tenho outras obrigações...

Karrol levantou-se da cadeira de má vontade. Curvado, fez o sinal de Cénzi para Jan.

— Os trabalhos de Cénzi estendem-se até mesmo aos assuntos de Estado, meu hïrzg.

— Como você sempre diz, archigos — retrucou Jan. — Interminavelmente.

Varina ca’Pallo

O dia do funeral estava apropriadamente sombrio. Nuvens pesadas e preguiçosas pendiam em um céu plúmbeo e açoitavam Nessântico com ocasionais respingos de chuva gelada. A cerimônia no Velho Templo tinha sido interminável, vários dignitários declamaram discursos elogiosos a Karl. Até mesmo a kraljica ergueu-se e fez um discurso. Varina não ouviu quase nada, na verdade. Todas as frases gentis e rebuscadas transformaram-se em um barulho sem sentido.

Ela sentou-se no primeiro banco, com Sergei de um lado e a kraljica do outro, e encarou o esquife onde o corpo de Karl estava deitado. A própria Varina sentia-se morta por dentro. Todas as palavras rebuscadas de admiração teriam o mesmo efeito se tivessem sido ditas em alguma língua estrangeira. Elas não a tocaram. Varina olhou fixamente para o corpo de Karl. Ele parecia errado, como se o cadáver deitado ali fosse alguma estátua de cera malfeita. Karl talvez estivesse em outro lugar qualquer no templo, rindo do que estava sendo dito a seu respeito. Em dado momento, Sergei aproximou-se para cochichar alguma coisa em seu ouvido. Varina não ouviu o embaixador; simplesmente assentiu e ele voltou a se recostar em sua cadeira.

Havia uma máscara de luto em seu colo: uma face branca, sem expressão, feita de porcelana fina, com lábios fechados e muito vermelhos, órbitas cobertas por mechas de tecido preto e uma renda negra colada ao topo que caía sobre a face toda. A máscara estava montada sobre uma longa haste, para que Varina pudesse fechar as mãos sobre o colo e ainda cobrir o rosto com ela caso quisesse privacidade. A máscara parecia ser pesada demais para ser levantada e absolutamente inadequada para cobrir sua dor.

Os murais do recém-reconstruído Grande Domo de co’Brunelli tinham sido cobertos por cortinas de seda: todas as imagens de Cénzi e dos moitidi tinham sido escondidas porque um numetodo — um terrível pagão herege — estava deitado sob elas. Varina o percebeu sem realmente notar. Os vasos sagrados e panos bordados tinham sido retirados do altar no coro, até mesmo os baixos-relevos entalhados nos suportes grossos tinham sido cobertos.

Ela devia ter achado graça ao notar aquilo. Karl teria achado, certamente. Ela achava graça, em algum lugar distante. Ela sentia que “Varina” estava em algum lugar qualquer, observando esse simulacro insensível e inflexível de si mesma.

Varina notou que as pessoas ao seu redor estavam de pé, que vários numetodos se locomoviam para suas posições ao lado do esquife. O plano era que o esquife seguisse em procissão pelas ruas em volta do Velho Templo até o pátio externo do Palácio da Kraljica, onde uma pira aguardaria o corpo. Era uma distância relativamente pequena de cerca de dois quarteirões e meio na Ilha a’Kralji — muito mais curta que as grandes procissões em honra à kraljica Marguerite ou ao kraljiki Justi, que quase completaram o círculo completo da Avi a’Parete em volta da cidade.

Nessântico ainda era cautelosa quanto a celebrar demais os numetodos.

Varina observaria o corpo dele ser consumido pelas chamas, e depois...

Ela não queria pensar sobre isso. Não queria contemplar o resto do dia, voltar à residência do embaixador na Margem Sul, onde o fantasma de Karl assombraria cada canto e cada memória, onde ela seria constantemente lembrada da perda que sofreu.

Varina nunca mais dormiria a seu lado. Jamais o abraçaria de novo. Nunca mais falaria com ele. Ela sentia-se vazia de tudo que tinha importância, sentia-se morta. Se alguém lhe cortasse as mãos ou enfiasse uma faca em seu coração ela não sentiria nada.

Nada.

Varina estava de pé, ao lado dos demais. Ela se deu conta disso tardiamente e perguntou a si mesma se tinha se levantado sozinha ou se alguém a tinha ajudado. Ela não se lembrava. Varina piscou pesadamente. O esquife com o corpo de Karl, com as mãos postas sobre a elegante bashta branca e a faixa verde de Paeti, agora passava por Varina; ela se arrastou imediatamente atrás dele, seguida pelos demais. Sergei permaneceu a seu lado, com sua bengala de ponta prateada batendo nos ladrilhos, seu rosto de ponta prateada olhando rigidamente para frente; a kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim vinham imediatamente atrás deles, em seguida vinham os vários ca’ e co’ da cidade, os representantes diplomáticos residentes em Nessântico e, finalmente, os numetodos.

As portas do Velho Templo foram abertas. Mesmo sob o céu sombrio, a luz fez Varina estreitar os olhos. Ela podia sentir o cheiro de chuva no ar, e os paralelepípedos da praça estavam úmidos. Os curiosos também tinham vindo: estavam apinhados atrás das fileiras da Garde Kralji e de utilinos que mantinham um largo corredor aberto para que os convidados do velório pudessem passar. Varina podia sentir seus olhares voltados para ela, e levou a máscara de luto ao rosto, isolando-se do mundo.

As carruagens estavam ali, à espera, juntamente com a carroça funerária puxada por três cavalos brancos em quatro arneses, o espaço vago à esquerda evidentemente vazio. Atrás da carroça funerária havia duas carruagens da kraljica puxadas por cavalos negros, uma para Varina e Sergei, que iria com ela, a outra, para Allesandra. A carruagem da a’téni ca’Paim vinha a seguir, sem cavalos, apenas com um téni-condutor de robes de luto brancos no assento, pronto para girar as rodas com o poder do Ilmodo. O restante dos convidados do velório viria atrás — aqueles que quisessem acompanhar a procissão até a pira. Muitos não iriam, Varina sabia — eles já tinham sido vistos, essa era a principal razão de sua presença: para que a kraljica e a’téni ca’Paim notassem seus rostos e soubessem que eles tinham cumprido com sua obrigação social e prestado homenagem.

Um criado abriu a porta dourada da carruagem para ela e ofereceu a mão para ajudá-la a subir. Varina sentiu a suspensão da carruagem ceder com seu peso, depois ceder novamente quando ela se ajeitou no assento macio de couro e Sergei colocou seu peso no degrau e abaixou a cabeça para entrar. Varina deixou a máscara de luto cair novamente em seu colo. O embaixador sorriu gentilmente para ela ao se ajeitar no assento soltando um gemido enquanto o criado fechava e trancava a porta.

— Como você está, minha querida? — perguntou Sergei.

Ele gemeu novamente ao mudar de posição no assento. Varina ouviu seu joelho estalar quando ele o flexionou.

Por um momento, ela não ouviu nada além de sílabas sem sentido. Foi preciso um segundo para interpretar a questão e encontrar o sentido.

— Eu não sei — admitiu Varina —, mas estou contente que esteja aqui comigo. Karl... Karl teria apreciado.

Ele inclinou-se para frente e tocou seu joelho levemente por um momento — o gesto de um confidente. Sombras deslizavam sobre seu nariz de prata, em volta do rosto muito enrugado.

— Ele foi um bom amigo para mim, Varina. Vocês dois foram. Vocês literalmente salvaram minha vida, e eu jamais me esquecerei disso. Jamais.

Ela meneou a cabeça.

— Essa dívida, de uma forma ou de outra, foi paga várias vezes entre você e Karl. Não precisa se preocupar.

— Ah, eu não me preocupo — respondeu Sergei, e ela ponderou o comentário antes de deixá-lo ser levado pelo vento como todo o resto. Sem importância. A carruagem deu um solavanco, um dos cavalos bufou, e eles começaram a andar. Varina pôde ouvir as rodas com bordas de aço baterem nos paralelepípedos irregulares do pátio do Velho Templo. Permaneceu em silêncio, sem olhar para Sergei ou para a vista lá fora, mas sim para o interior de sua própria mente, onde o rosto de Karl ainda vivia. Ela se perguntou se começaria a esquecer os traços familiares, o sorriso enrugado e os olhos. Ela se perguntou se ele desapareceria, e se um dia, quando ela tentasse evocar seu rosto, ela não conseguiria fazê-lo.

Varina ouviu vozes do lado de fora da carruagem, mas não lhes deu atenção. Sergei, no entanto, se ajeitou no assento à frente dela, afastou as cortinas com a mão e meteu o nariz de prata no vidro ondulado. Adiante do embaixador, ela pôde notar as filas de espectadores atrás dos gardai, e depois deles...

Uma pessoa enorme apareceu: um gigante vestido de verde, sua cabeça era maior que a carruagem onde os dois estavam, e seus ombros tão largos quanto três homens enfileirados, vestindo uma imitação do robe verde de um téni, os olhos brilhando com um fogo vermelho que fazia as sombras das pessoas entre eles disparar na direção da carruagem. Vozes de um cântico pareciam vir daquela direção, e Varina percebeu que não era uma pessoa, mas sim alguma espécie de boneco gigante, manipulado por hastes. Ele balançava e dava voltas sobre as cabeças dos espectadores, que agora se voltavam para o boneco em vez da procissão funerária.

Varina percebeu quem o boneco deveria representar nesse momento: Cénzi. Ela já tinha visto imagens do deus feitas dessa forma, com olhos brilhando ao lançar fogo nos moitidi que se opuseram a Ele. Mas o deus-boneco não encarava Varina, mas sim o espaço diante da carruagem — o espaço onde o esquife de Karl estava.

— Sergei?

O embaixador tinha aberto a janela da carruagem e chamado um garda da fila, que correu até ele.

— Quem está fazendo isso? — ele perguntou.

— Os morellis — respondeu o garda. — Eles se reuniram atrás da multidão, e quando o esquife se aproximou, aquela coisa de repente se ergueu.

— Bem, abaixe aquilo antes que... — Isso foi tudo o que Sergei conseguiu dizer.

O deus-boneco rugiu.

O som e o calor do berro a invadiram. O boneco ergueu a carruagem — Varina ouviu cavalos e pessoas gritando enquanto sentia ser levantada — e fez Sergei cambalear e cair sobre ela. Seus corpos se chocaram com força, e a carruagem, erguida pelo vento do grito do deus-boneco, caiu no chão com força.

Devem ter havido mais berros e mais sons, mas Varina não conseguia ouvir nada. Ela própria estava gritando; ela sabia disso, sentia pela rouquidão em sua garganta, mas não ouvia nenhum som. Varina sentiu gosto de sangue em sua boca, e Sergei estava se debatendo, tentando se desvencilhar dela, enquanto berrava também. Ela podia ver que os lábios do embaixador murmuravam seu nome — “Varina!” —, mas tudo que pôde ouvir foi o restante do rugido do deus-boneco, ecoando e ecoando.

Então ela se lembrou.

— Karl! — ela gritou silenciosamente, enquanto empurrava Sergei e tentava sair dos destroços da carruagem.

Varina viu a rua e os cavalos caídos de lado, ainda nos arreios e se debatendo violentamente contra o chão, e corpos de pessoas aqui e ali.

Especialmente em volta do esquife, que queimava e soltava fumaça no meio do pátio.

Niente

A cidade insular de Tlaxcala reluzia como um osso branco nas águas cor de safira do lago Ixtapatl, mas a atenção de Niente não estava voltada para ela. Toda a sua atenção estava voltada para a tigela de bronze e sua água tremeluzente diante dele.

A tigela premonitória. A tigela que continha todos os futuros possíveis. Eles nadavam diante dos olhos de Niente, apagando a realidade. Ele viu guerra e morte. Viu uma montanha fumegante explodindo. Viu uma rainha em um trono brilhante, e um homem em outro trono. Viu exércitos rastejando sobre a terra, um com estandartes azuis e dourados, e outro com estandartes pretos e dourados. Viu um exército de guerreiros e nahualli vindo contra eles. Ainda que, para além da guerra, por um longo, longo caminho, havia esperança. Havia paz. Havia reconciliação. Entre em guerra e encontrará a paz. Era o que o deus Axat parecia estar dizendo a ele. As imagens envolveram Niente, quentes e gentis, e ele se deleitou com seu calor...

— Taat Niente?

Vatarh Niente.

A pergunta veio acompanhada de um toque em seu ombro que lhe quebrou a concentração, e Niente, de má vontade, afastou seu olhar dos futuros que nadavam nas águas da tigela. A luz esmeralda que iluminava seu rosto desapareceu com o passar do feitiço, e sua alma retornou à cidade sentindo um estremecimento. Ele estava no topo da Teocalli Axat, a pirâmide alta de degraus que era o templo da deusa-lua Axat. A Teocalli Axat não era a estrutura mais alta da cidade — essa honra pertencia à Calli Tecuhtli, a Casa do Rei, embora o Teocalli Sakal, o templo do deus-sol, fosse apenas alguns palmos mais baixo. Ainda assim, do cume em que Niente se encontrava, toda a Tlaxcala se estendia diante dele: os canais que serviam como estradas e reluziam como lanças, repletos de acals, as pequenas embarcações aquáticas a remo usadas como transporte dentro da cidade insular; as enormes praças repletas de pessoas com seus destinos desconhecidos; o mercado com milhares de barracas. Atrás do mercado surgia o Calli Tecuhtli, com sua fachada decorada com os crânios esbranquiçados de guerreiros conquistados. Além da cidade e do lago onde ela se assentava, o grande vale era cercado por picos nevados, com uma trilha de cinzas fumegantes que saiam do cume do vulcão Poctlitepetl e das montanhas vizinhas sendo levadas pelo vento. O sol já havia se posto atrás das encostas, embora o céu do oeste ainda ardesse, com os flancos das nuvens mais baixas tocados pelas cores do fogo, enquanto o leste tinha um tom púrpura intenso, onde as primeiras estrelas reluziam.

A vista magnífica do cume do Teocalli Axata nunca deixava de emocionar Niente, nunca deixava de fazer seu coração bater mais forte em seu peito. Ele amava esta terra. Sua terra. E Niente era grato a Axat por lhe dar a esperança de que ela ainda se tornaria a sede de um grande império.

— Taat?

Vatarh.

Ele finalmente se voltou para o jovem ofegante após a longa subida pelos degraus do templo, com os braços cruzados sobre o peito — o filho de Niente.

— Eu ouvi você, Atl — respondeu Niente. — É mais tarde do que eu pensei. Sinto muito. Xaria mandou você?

Atl sorriu para ele.

— A na’Xaria disse que, se o senhor não voltar logo para casa, ela dará seu jantar para os cães e o senhor poderá lutar com eles por sua comida. Ela também disse que o senhor dormirá com os cachorros.

Niente devolveu o sorriso. A expressão repuxou as cicatrizes em seu rosto. Ele sabia que aparência seu rosto tinha, sabia o preço que as décadas lançando os feitiços de Axat e olhando sua tigela premonitória tinham lhe custado, assim como tinham custado a cada nahualli que utilizara tão intensamente o poder Dela. Seu olho esquerdo era horrivelmente cego e branco; sua boca também caía para este lado, como se sua pele tivesse derretido. Cicatrizes sulcadas e protuberantes franziam seu rosto e corpo; seus músculos tremiam em sacos de pele como se tivessem murchado dentro dele. Niente parecia ser dois punhados de anos mais velho do que era.

Mas nenhum nahualli ousaria desafiá-lo para tentar arrancar de Niente o título de nahual. Não. Ele era o famoso nahual Niente, cujos feitiços tinham expulsado o exército de orientais da terra de seus primos ao longo da costa, que acompanhara o tecuhtli Zolin na travessia do Grande Mar até a terra dos orientais, o império dos Domínios, que queimara a grande capital dos orientais, e que alertara o tecuhtli Zolin das consequências de sua arrogância, mesmo quando o tecuhtli se recusara a lhe ouvir. Ele era o nahual Niente, que ao lado do tecuhtli Citlali havia destruído a última fortaleza dos orientais nos Hellins — a cidade de Tobarro — e encerrado a ocupação dos Hellins por parte dos Domínios para sempre.

Ele era o nahual Niente, cuja fama se aproximava e até mesmo superava a do grande Mahri.

Não, os nahualli se contentavam em deixar Axat levar Niente quando Ela quisesse. Contentavam-se em ver seu corpo queimar lentamente a mando da deusa, um pouquinho a cada dia. Os nahualli que quisessem o título de Niente se contentavam em serem pacientes, em esperar.

Até mesmo o próprio filho, que também era um nahualli.

Niente esfregou o bracelete de ouro preso ao seu antebraço direito: o símbolo do nahual. No topo do teocalli, os nahualli mais jovens acendiam os caldeirões de óleo que queimariam a noite inteira. Eles inclinaram a cabeça para Niente.

— Boa noite para o senhor, nahual Niente! — clamaram os nahualli.

Niente quase podia acreditar na sinceridade de suas vozes. Os caldeirões já estavam acesos nos outros teocaltin da cidade e no topo da Calli Tecuhtli. Por toda a cidade, lanternas arranhavam a noite. Tlaxcala brilhava com um tom amarelo na escuridão do vale, uma cidade que nunca dormia.

Niente deu um tapinha no ombro de Atl. Com dois punhados de anos de idade, seu filho tinha um corpo atlético, e embora tivesse sido treinado como nahualli, ele poderia ter entrado facilmente na classe guerreira.

— Vamos para casa — disse Niente. — Eu tenho fome suficiente para comer aqueles cachorros se eles se meterem no caminho.

Ele jogou a água da tigela nas pedras e secou o latão com a barra do robe. Guardou o objeto em sua bolsa de couro e pendurou no pescoço. Os dois começaram a descer a longa e íngreme escada. Niente descendo cuidadosamente e observando que Atl se mantivera próximo ao seu cotovelo. Se Atl fosse qualquer outro nahualli, ele talvez se sentisse ofendido, mas estava feliz pela consideração do filho.

Enquanto desciam, Niente viu um jovem com as roupas azuis da equipe do tecuhtli subir a escada em sua direção — um dos pajens do tecuhtli. Niente parou e deixou que o menino se aproximasse. O pajem fez uma mesura e ficou prostrado nos estreitos degraus de pedra, aos pés de Niente.

— Levante-se — mandou Niente. — Qual é a sua mensagem?

— O tecuhtli exige sua presença, nahual.

Niente deu uma gargalhada, o que assustou o garoto.

— Acho que os cães serão bem alimentados esta noite — falou ele para Atl. — Diga para sua na’Xaria que a culpa é do tecuhtli, não minha.


A Calli Tecuhtli ficava no próximo calpulli, os bairros nos quais a cidade era subdividida por canais e grandes alamedas. Niente seguiu o pajem através do flanco de terracota de um dos aquedutos que fornecia água potável para a cidade — as águas do lago Ixtapatl eram um tanto quanto salobras — e por uma das muitas pontes arqueadas da cidade insular que levava à praça diante da Calli Tecuhtli. Diante dele, a pirâmide de Calli surgia como o próprio Poclitepetl, com seu cume também fumegante, não com cinzas e lava, mas com o fogo dos caldeirões de óleo. A praça estava apinhada de gente: visitantes de outras cidades que vinham ver a glória da capital Tlaxcala; cidadãos fazendo pedidos a um ou outro dos inúmeros burocratas que, na verdade, governavam a cidade; guerreiros supremos marcados por cicatrizes e tatuagens que serviam ao tecuhtli. Todos deram passagem a Niente, com cabeças inclinadas e saudações murmuradas, enquanto ele subia a escada e seguia o pajem. Ao terceiro nível da pirâmide, o pajem parou e conduziu Niente a uma alcova acortinada um pouco afastada. Ele bateu no tambor do lado de fora e levantou a tapeçaria pesada e bordada, fazendo sinal para Niente entrar.

A sala — o cômodo mais externo dos aposentos do tecuhtli — era luxuosa. As paredes eram pintadas em cores vivas com imagens de aves de rapina e guerreiros solenes. Tapetes de tecidos quentes e bordados cobriam o chão. Citlali estava sentado em uma cadeira de madeira entalhada, forrada com muitas almofadas, diante de uma mesa com vários pratos fumegantes.

— Ah, nahual Niente. Sente-se. Coma comigo; com certeza a pobre Xaria já desistiu de contar com você para a ceia.

A tatuagem de águia em tinta vermelha, a insígnia do tecuhtli, parecia se contorcer na grande cabeça raspada de Citlali enquanto ele falava. Ele fez um gesto na direção da cadeira posta do outro lado da mesa.

— Obrigado, tecuhtli — respondeu Niente, afundando-se na cadeira e soltando um suspiro. — Infelizmente, eu me esqueço do tempo com facilidade.

— Você parece mais cansado do que o normal.

— Estou — admitiu Niente. — Axat é uma mestra cruel. Ela não se importa com o que acontece ao Seu criado.

— E o que você viu na tigela premonitória hoje?

Niente inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. Ele pegou uma panqueca de milho, espalhou carne sobre ela e a dobrou, mastigando-a avidamente. A batalha feroz nas águas da tigela premonitória... A estranha arquitetura dos prédios... O inimigo de armaduras de aço e escudos... O sangue, o fogo, a morte... E o longo caminho para a paz... E o preço desse Longo Caminho; ele também conhecia.

— Eu vi o suficiente — respondeu Niente enquanto engolia — para adivinhar por que o senhor me chamou aqui, tecuhtli. — Ele suspirou. — Eu não estou ansioso para cruzar o Mar Menor outra vez.

Citlali riu e bateu as palmas de suas mãos uma vez.

— Você adivinhou certo. Pensei que seria suficiente para eu fazer os orientais voltarem correndo para casa como um bando de cães assustados. Achei que estaria satisfeito quando estivesse sobre as cinzas de sua última fortaleza aqui, nas terras de nossos primos nos Hellins. Mas descobri que não estou. Continuo sonhando com suas cidades e com a derrota que sofremos lá. Continuo achando que ainda não compensamos as almas dos grandes guerreiros e nahualli que morreram lá.

— Mais guerreiros e nahualli morrerão se o senhor fizer isso, tecuhtli. Muitos mais.

Embora Niente tivesse visto o Longo Caminho, nenhum futuro era garantido. Ele também viu que haveria paz — por um tempo — se Citlali permanecesse aqui. Mas não para sempre. Os Domínios voltariam, e dessa vez trariam um exército assustador.

— Eu sei. No entanto, não é isso o que um verdadeiro guerreiro deseja? — perguntou o tecuhtli.

— Ainda há guerras para serem travadas aqui. Nem todos os nossos primos atrás da Muralha dos Picos Brancos pagam tributos a Tlaxcala; o senhor pode acrescentar seus crânios à coleção.

Citlali assentiu enquanto Niente falava, mas o gesto foi temperado com um dar de ombros. Niente pôde ver a visão da tigela premonitória nos olhos do tecuhtli, reluzindo em suas pupilas. Quase podia ouvir a risada de Axat. É isso o que Ela quer de você. Você quer negá-lo, mas sabe que é isso.

— Eu ouço o tecuhtli Zolin em meus sonhos — disse Citlali. — Seu espírito me chama da terra dos mortos para que eu termine o que ele começou.

— Zolin é orgulhoso demais mesmo na morte, então — comentou Niente, e Citlali gargalhou ao ouvir isso.

— Zolin se recusou a ouvi-lo, Niente. Eu o ouvirei. Se me disser que Axat pensa que eu não devo ir, não irei.

Niente permaneceu sentado, em silêncio. A Senhora jogou isso para mim como um teste, Axat?, ele perguntou, e pensou por um momento ter ouvido Sua risada sinistra como resposta.

— Não posso lhe dizer isso, tecuhtli.

Citlali gargalhou novamente, desta vez com satisfação. Ele bateu palmas de alegria tão alto que o pajem do lado de fora ergueu a ponta da tapeçaria e deu uma espiada momentânea.

— Eu sabia que você se oporia a isso, Niente — vociferou Citlali. — Eu pensei que você me alertaria sobre o que viu na tigela premonitória, da mesma forma que alertou Zolin, e que me diria que estou sendo tolo. Pensei que diria que eu provoco os deuses e que eles me fulminariam por minha arrogância e orgulho, como fulminaram Zoli.

Niente sorriu, dando outra mordida na carne enquanto Citlali falava. Não, ele não contaria ao tecuhtli o que tinha visto na tigela premonitória porque Axat tinha deixado claro que ele não deveria contar, não se quisesse que a visão do Longo Caminho se tornasse realidade. Niente apenas abaixou a cabeça para o guerreiro.

— Eu estarei ao seu lado, tecuhtli Citlali, como estive ao lado de Zolin. Serei seu nahual e verei novamente a terra dos orientais.

Citlali se levantou — seu corpo ainda era o de um guerreiro musculoso, mas já havia o início de uma barriguinha em sua cintura. Isso explicava muito de sua ansiedade para Niente: ao contrário do nahual dos nahualli, o tecuhtli — o mais supremo dos guerreiros supremos — raramente chegava à velhice antes que um rival surgisse para desafiá-lo e matá-lo. Se Citlali quisesse que seu nome fosse lembrado muito depois de sua morte, ele precisava deixar sua marca no mundo.

Ambição: ela tinha matado muitos tehuantinos ao longo dos séculos.

— Pajem! — chamou Citlali, e o menino entrou na sala. — Chame os guerreiros supremos; diga que venham esta noite. O tecuhtli e o nahual querem se reunir com eles.

O garoto fez uma reverência e foi embora correndo. Citlali voltou-se para Niente, que notou o tecuhtli encolher a barriga conscientemente.

— Esta será uma época de esplendor para os tehuantinos — ele disse. — É isso que você viu na tigela, nahual?

Isso Niente podia assentir.

— De fato. Isso é o que eu vi. Grandeza.

 

 


CONTINUA