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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NEVE APAGA TUDO / A. J. Cronin
A NEVE APAGA TUDO / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Merrid sentiu-se invadido por um estranho excitamento no instante em que a moça entrou no trem. Era bem cedo, naquela manhã gelada de fevereiro, e mal dava para se perceber que a estação era Seldkirche. Despertado do sono, Merrid olhou através do compartimento, enquanto a moça se acomodava no canto oposto e ficava imóvel, o rosto ligeiramente virado, indiferente a seu olhar, tão quieta e solitária contra o fundo de neve e pinheiros que havia nela um quase quê de fantasma.
Uma campainha soou. O trem tornou a partir, atravessando a paisagem nevada do Tirol, as rodas silenciosas nos trilhos congelados, o barulho das locomotivas tão abafado pela neve que parecia mover-se fora da realidade. A neve jazia por toda parte, profunda e bela, empilhando-se à beira dos trilhos, sobrecarregando os pinheiros e os telhados das cabines de sinalização, cobrindo os pequenos chalés que se encolhiam ao abrigo das montanhas.
Mas Lewis Merrid, agora de todo desperto, não sentia qualquer interesse pelo espetacular cenário alpino. A todo instante seus olhos passavam além do vulto sonolento de sua irmã Conme e se fixavam na nova passageira, com uma intensidade estranha e meio confusa, o olhar de um homem que se sente ao mesmo tempo aturdido e consternado.

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Ele teve um desejo súbito e inexplicável de falar, de dizer alguma coisa à moça. Mas foi Connie quem primeiro rompeu o silêncio. Arrancando-se de sua posição toda encolhida, ela fez uma careta de desconforto, espreguiçou-se, esfregou os olhos e, com ar de impaciência, revelou que não conseguia mais dormir.
- Este trem ainda vai me matar - comentou ela, suspirando. - Só Deus sabe porque não podíamos voltar a Kehl e pegar o Expresso do Oriente. Mas, se não podemos descansar, imagino que pelo menos podemos comer alguma coisa.
Puxando uma mochila estufada para cima dos joelhos, ela se preparou para tirar o melhor proveito possível de uma situação incómoda. Bocejando, desembrulhou o café da manhã - os pães e a manteiga fresca, presunto e salame, os pretzels e uma garrafa térmica grande, cheia de café quente, que haviam requisitado em seu hotel em Munique, na noite anterior. Destampada a garrafa, do café desprendeu-se um delicioso aroma. Connie estendeu a Lewis uma xícara quase transbordando, que ele recebeu maquinalmente. Hesitou por um instante, depois voltou-se de súbito para a irmã. com uma espécie de súplica secreta, indicou a outra ocupante do compartimento. Connie acompanhou-lhe o olhar, surpresa. Sentia-se de fato espantada com aquele interesse, inesperado num homem tão reservado e taciturno como seu irmão. com um leve encolher de ombros, fez aquela careta infantil tão característica nela. Contudo, atendendo ao desejo de Lewis, inclinou-se na direção da moça ao canto, com um gesto amistoso.
- Estamos tomando o café da manhã agora. O Speiswagen não passa antes de Innsbruck. Quer nos acompanhar?
A princípio a impressão foi de que a moça não ouvira, pois ela continuou imóvel e totalmente distante. Por fim, contudo, voltou a cabeça devagar e disse a Connie, em voz baixa:
- Não, obrigada.
Antes de dar por isso, Lewis descobriu-se a entrar na conversa, tentando persuadi-la:
- Aceite, por favor. Não é muita coisa, mas teremos o maior prazer em que partilhe conosco.
Os olhos da moça voltaram-se para Lewis, pela primeira vez, e, como se ele estivesse sob o impacto de uma força desconhecida, um sobressalto percorreu-lhe todo o corpo. Mostravam-se tão arregalados, aqueles olhos, e azuis, de um claro azul de geleira; tão distantes dele, tão perturbados, e dominados por uma tristeza mortal.
- Eu não poderia comer coisa alguma.
- Mas não precisa comer. - A voz de Lewis assumiu um tom jovial. - Apenas uma xícara de café. Faz muito frio e o trem não tem um aquecimento apropriado. Além disso, estamos subindo, subindo sempre, direto para as montanhas.
Uma pausa. O olhar da moça, deslocando-se para além dele, fixou-se por um momento nos picos congelados. Ela sentiu um ligeiro arrepio.
- Tem razão, está muito frio - com um esforço, ela se controlou e obrigou seus lábios a um sorriso. - São muito gentis. Eu aceitaria um pouco de café, se há de sobra.
A aceitação dela proporcionou uma súbita alegria a Lewis, que lhe ofereceu a própria xícara, da qual ainda não bebera. Apesar do franco espanto de Connie, ficou observando a moça, que segurou a xícara com ambas as mãos e tomou um gole do café quente. Uma ponta de calor aflorou em suas faces geladas. Lewis notou como o vestido dela era simples, de sarja azul, muito fino, um pouco puído nos cotovelos. E seus pequenos sapatos pretos estavam um pouco gastos. Ela não tinha peles, apenas um casaco escuro, de tecido ordinário. E a valise, que estava a seu lado no banco, era feita de uma fibra marrom barata. Por instinto, Lewis procurou por um rótulo na valise, pelo qual pudesse descobrir o nome da moça. Mas não havia rótulo, não havia nome. Um silêncio caiu, um silêncio estranhamente contrafeito. Mas não por muito tempo. Era raro que os silêncios se prolongassem quando Connie estava presente. Connie era a campeã do mundo em tagarelice. Acendendo um cigarro, ela sacudiu os cabelos louros para trás e enroscou-se no banco, revigorada e alerta como uma gatinha depois de um pires de leite.
- Permita que nos apresentemos - disse ela, em tom animado. - Eu sou Connie Merrid e este é meu irmão Lewis. Somos americanos. Estamos viajando pela Europa há três semanas... Estrasburgo, Salzburgo e assim por diante. Vamos agora a caminho de Viena, onde nos encontraremos com um amigo, Steve Lennard. Ele é correspondente estrangeiro do Dispatch de Nova York. Estou ansiosa para chegar a Viena, mas - Connie fez um gesto na direção da janela - tenho de admitir que gostaria de passar algum tempo nestas montanhas. - Depois de uma pausa para respirar, continuou: - Não acha que toda esta extensão de neve deixa uma pessoa emocionada?
À pergunta, direta e inevitável, a moça ao canto do compartimento foi forçada a levantar os olhos. Houve uma rápida contração de seus lábios.
- Não - respondeu ela em tom pesado. - Infelizmente, não há qualquer emoção para mim.
E outra vez reinou o mesmo silêncio, quase angustioso. Não houve rudeza nas palavras, apenas uma estranha tristeza, que aprofundou a preocupação de Lewis, embora deixando-o desorientado por completo. Connie, no entanto, era menos sensível à tensão ali reinante. Deu uma tragada prolongada e perguntou:
- Você é inglesa, não?
- Sou, sim. Mas não vivo na Inglaterra. Passei uma grande parte da minha vida no continente. E estou... estou vindo de Munique.
- É mesmo? - O rosto de Connie acusou um novo interesse. - Suponho que sobe as montanhas com muita frequência, não?
O rubor espalhou-se pelas faces da moça. Sua aflição evidente provocou um sobressalto em Lewis, levando-o involuntariamente a interferir. Ele lançou um olhar repressivo à irmã.
- Não acha que é cedo demais para todas essas perguntas, Connie?
Seria uma expressão de alívio aquela que aflorou no semblante da estranha? Lewis não poderia ter certeza disso. Enquanto o trem avançava, de modo penoso, subindo pela encosta com crescente dificuldade, entrando num desfiladeiro rochoso, encimado de neve e encrostado de pesadas estalactites de gelo, como uma comprida gruta azul, subterrânea, misteriosa, os olhos de Lewis a todo instante observavam a silhueta pálida no outro banco. Ele tentou reprimir o fascínio e a confusão em seu coração. Não podia sondar aquela súbita obsessão que o dominara, por alguma estranha circunstância do acaso e do cenário. Era um homem prático, com uma perspectiva firme e equilibrada. Mantinha-se muito acima da estupidez de um romance casual. E, no entanto, não era capaz de aquietar o palpitar em seu peito. Nem podia sufocar o pensamento de que seu encontro com aquela moça adorável, sobre a qual pairava a sombra de algum problema desconhecido, pudesse ser outra coisa senão predestinação.
O silêncio persistiu talvez por meia hora. A moça continuou imóvel, o rosto apoiado na palma da mão, os olhos fixos com resolução num livro que tirara da valise.
De repente, enquanto todos se mantinham em silêncio, a porta se abriu e o condutor enfiou a cabeça pela abertura, em sua peregrinação pelo corredor cheio de vento. E anunciou, com voz monótona:
- Làchen é a próxima parada. Todos os passaportes à mão, por favor. Não esqueçam. Todos os passaportes devem ser apresentados em Làchen.
Em seguida desapareceu.
Lewis era capaz de jurar ter visto os dedos que seguravam o livro se contraírem de súbito. Na verdade, todo o corpo da moça pareceu tornar-se rígido repentinamente.
O trem foi aos poucos diminuindo a velocidade. Houve um ranger de freios e, no mesmo momento, a moça baixou o livro e descansou a mão na alça da valise. Lewis teve a impressão de que ela desejava pô-la na prateleira e perguntou:
- Posso ajudá-la?
- Muito obrigada - respondeu ela, numa voz quase inaudível. - Mas é que deixarei o trem, em Làchen.
Enquanto ela falava a estação comprida apareceu pela janela, cinzenta e desolada. Um repentino solavanco, e depois o trem parou. A moça levantou-se de imediato. Parecia ter de recorrer a todas as suas forças. Muito pálida, segurando com firmeza a alça da valise, ela lançou um rápido olhar de despedida a Lewis e a Connie, e saltou para a plataforma. Em seguida desapareceu, seu apressado vulto perdido no véu da neve que caía.
- Não acha que ela é insensível demais? - perguntou Connie.
Lewis sacudiu a cabeça devagar.
- Insensível não, Connie. Parecia completamente apavorada.
A boca de Connie se entreabriu de repente.
- Seja como for, tinha muita pressa. Até esqueceu o livro. Era verdade. Ali no banco, esquecido, estava o livro que a moça lera durante parte da viagem. Antes que Connie pudesse fazer qualquer movimento, Lewis inclinou-se e pegou o volume. Era um romance alemão, de Heinrich Mann. Lewis abriu-o. E seu coração disparou. Na guarda estava escrito:
Sylvia Ullwin De Karl
E, por baixo, estas palavras:
"No Gasthof Hohne, Kriegeralp."
Enquanto fitava o que estava escrito ali, Lewis ouviu, através do nevoeiro de sua emoção, o som de passos que se aproximavam pelo corredor. Instintivamente, fechou o livro e meteu-o no bolso. Mal acabara de fazer isso e dois agentes da polícia austríaca entraram no compartimento. Depois de um cuidadoso exame da cabine, dispensaram uma significativa atenção aos passaportes que Lewis lhes apresentou. Então, o mais velho perguntou em alemão:
- Estão sozinhos aqui?
- Claro que estamos - respondeu Lewis calmamente.
Lewis podia sentir o agente a esquadrinhar-lhe o rosto. Depois, satisfeito, o policial fez uma pequena mesura e retirou-se, acompanhado por seu parceiro.
- Que queriam eles? - indagou Connie, curiosa.
- Nada - respondeu Lewis, recostando-se em seu canto.
- Apenas as formalidades de sempre.
Mas por trás da indiferença de sua atitude aflorou um sentimento profundo e insuspeito. E, enquanto o trem deixava a estação, o barulho das rodas produzia uma litania que lhe martelava o cérebro, escarnecendo e suplicando. Primeiro, veio o nome da moça: Sylvia Ullwin, um belo nome; depois aquela frase, estranha e ilusória: "no Gasthof Hohne, Kriegeralp".
O Hotel Bristol dá para a Ringstrasse, a um minuto da Ópera, e sua condição de o melhor de toda a Viena é claramente visível desde os alamares do porteiro.
Eram seis horas da tarde. Três dias haviam transcorrido desde aquele episódio matutino no trem saindo de Seldkirche. Sentado muito empertigado na beira de um sofá, na elegante suíte que Conme escolhera, Lewis tentava, com ar sombrio, concentrar-se na edição europeia do Dispatch de Nova York. Estava sozinho na sala. O alto espelho de moldura dourada mostrava sua figura tensa e imóvel, de braços e pernas compridos. Um vinco marcava-lhe, fundo, a testa. Visto assim, seu rosto mostrava um contorno de traços finos e retesados, o rosto de um homem que se empenhara durante a vida inteira para alcançar um ideal físico.
Por muitos anos Lewis Merrid trabalhara para se tornar duro, fortalecer o seu caráter de maneira que o mesmo pudesse subsistir. Herdeiro de uma grande empresa de navegação, mesmo assim não precisara de muita persuasão do pai para entrar no serviço como grumete e aprender, de maneira objetiva, as regras da marinharia e da vida. Como se costuma dizer, ele entrara pelo escovem e saíra pelo paneiro. Dormira em alto-mar, ficara pendurado nos vaus-reais com toda a força do vento nordeste cantando como uma fúria no cordame. Adotara um código espartano.
Agora, aos trinta anos, com pleno controle da Companhia de Navegação Merrid desde a morte do pai três anos antes, ele parecia mais o contramestre de um navio do que o muito bemsucedido homem de negócios que era. As mulheres não haviam desempenhado papel de maior destaque em sua vida. E não porque ele fosse tímido, desajeitado ou grosseiro. Sua indiferença para coi.i as bonitas filhas de muitas matronas da sociedade havia provocado nestas uma intensa pontada de descontentamento.
Porém ali, naquela viagem europeia que empreendera mais por Connie do que por si mesmo, o impossível acontecera, subitamente, inexplicavelmente. Um encontro casual e fugaz. Uma moça que não conhecia, que nunca vira antes, que nunca mais tornaria a ver. Contudo, a centelha faiscara, branca e brilhante, em sua alma. Mesmo agora, enquanto simulava interessar-se pelas páginas do Dispatch, o rosto da moça o atormentava e não o deixava.
Enquanto ele estava sentado ali, furioso consigo mesmo, lutando contra seus pensamentos errantes, a porta do apartamento se abriu. Houve uma explosão preliminar de riso, e Connie e Steve Lennard entraram. Tinham o ar de pessoas que haviam visitado, e tencionavam ainda visitar, lugares interessantes e divertidos.
- Cuidado com o homem que vem a Viena e não sai do quarto do hotel! - exclamou Steve, apontando para Lewis. O que há com você, Lewis? Porque insiste em permanecer aqui? Está perdendo coisas sensacionais.
- Estivemos no Kalzenberg - informou Connie ao irmão em tom jovial. - Que vista maravilhosa! E depois Steve me levou a um lugar espetacular para tomar chocolate e comer pasteizinhos...acho que jamais comi coisa melhor em toda a minha vida...
- E ela soube distinguir-se - acrescentou Steve. - Comeu nada menos que seis. Ou foram sete? Lamento informá-lo, Lewis, que sua irmã não tem a menor vergonha. Ainda estaria lá se eu não a tivesse arrancado à força. Não sei o que há com ela.
Sempre que estou em sua companhia, ela assusta minha delicada suscetibilidade. Apesar disso, periodicamente, desde os seis anos de idade, venho lhe pagando comida e adornos.
- Isso é amor - disse Connie. Steve suspirou.
- Por mais que eu deteste pensar em tal possibilidade, talvez seja verdade.
Tornou a suspirar e acomodou-se, confortável, numa poltrona. Era um jovem bonito, com um ar de causticidade e vivacidade que encobria uma natureza extraordinariamente afável e às vezes quase ingénua. Olhou para Lewis com uma expressão irónica.
- Falando do ponto de vista de um homem trancado em seu quarto de hotel, o que está achando do país?
- Parece bastante agradável, pelo pouco que pude ver.
- Isso é apenas a superfície - disse Steve. - Se descobrisse o que há por trás... se ouvisse algumas das histórias sobre os campos de concentração...
- São de fato tão ruins quanto dizem? - indagou Connie.
- São piores. E estão ficando tão cheios que é provável que acabem explodindo. Cidadãos decentes e inteligentes, em especial professores, são internados por recusar a prestar homenagens ao governo. Mas... Ei! - Steve se empertigou subitamente na poltrona. - Temos de nos apressar. A ópera começará às oito horas e ainda precisamos dar um jeito de jantar antes...
Lewis fez um pequeno gesto de discordância.
- Não estou com vontade de ir à ópera.
- Como? Depois que eu tive tanto trabalho para conseguir os ingressos? Não sei o que se passa com você, Lewis, mas, caso ainda não tenha percebido isso, devo informá-lo de que está se transformando num desmancha-prazeres.
Lewis percebeu que o amigo estava de fato preocupado. E abrandou.
- Está bem, Steve. Irei à ópera.
- Assim é melhor.
- Ficarei pronta num minuto - prometeu Connie, encaminhando-se para o seu quarto -, mais linda do que nunca.
Para ser preciso, ela levou vinte minutos para se vestir. Nem Lewis nem Steve se deram ao trabalho de mudar de roupa. Jantaram no restaurante do hotel e depois atravessaram a rua para o teatro.
A casa se encontrava quase lotada quando eles chegaram. Estava sendo apresentada La Bohème, uma das óperas prediletas dos vienenses. Foi um espetáculo brilhante, mas Lewis não conseguiu sentir qualquer entusiasmo naquela noite. Quando a orquestra iniciou a abertura, ele se deixou arrebatar por um momento pela beleza sublime da música. Contudo, embora a encenação fosse extraordinária e os cantores magníficos, ele descobriu seus pensamentos errando longe do palco feericamente iluminado. Por mais que tentasse, não foi capaz de se concentrar.
Começou a correr os olhos pelo auditório, mergulhado na semi-escuridão, como se procurasse por um rosto desaparecido. Havia muitas mulheres encantadoras no teatro. Cada uma recebeu o olhar de Lewis. Mas logo em seguida ele desviava a vista. Não era ela.
Era impossível vencer a profunda corrente subconsciente de seu destino. Durante o intervalo, enquanto andavam de um lado para outro dofoyer, ele virou-se de repente para Lennard. E a pergunta escapou de seus lábios antes mesmo de perceber que a formulava:
- Diga-me uma coisa, Steve. Que lugar é esse que chamam de Kriegeralp?
Lennard, interrompido no meio de um comentário, fitou-o surpreso.
- É uma montanha. Por quê?
- Onde fica?
- Muito longe daqui. Na fronteira, depois de Burstegg, a quilómetros de qualquer lugar. É rocha maciça, gelo, neve e geleiras. Nem o edelweiss cresce ali.
Lewis sorriu ligeiramente, um sorriso dissimulado, como se tivesse um segredo oculto lá no fundo. Pareceu recuperar o ânimo. E foi uma companhia excelente pelo resto da noite. Apesar de todos os protestos de Steve, porém, ele não quis acompanhálos à ceia, voltando ao hotel assim que terminou a ópera.
Na manhã seguinte, antes que o hotel tivesse acordado por completo, Lewis deixou um bilhete para Connie, dizendo que estaria ausente de Viena por uns poucos dias e exortando-a a continuar passeando com Steve. E então partiu, discretamente, para o Kriegeralp.
Foi fácil refazer o caminho até Làchen. Ali, no entanto, as dificuldades começaram. Quando saltou do trem e parou sob o vento gelado, na mesma plataforma pela qual vira Sylvia desaparecer, Lewis sentiu um ímpeto de exaltação. Mas logo arrefeceu quando, fora da estação, descobriu ser impossível alugar um trenó. Havia apenas dois trenós no galpão, os cavalos envoltos por sacos, ao lado de um braseiro de carvão. E ambos os cocheiros se recusaram taxativamente a empreender a longa viagem até o Kriegeralp. Dando de ombros, sugeriram que talvez Heinrich pudesse ser persuadido a ir, mas eles não eram tolos e não o fariam.
No outro lado da rua sem vida e coberta de neve, em frente à estação, havia um pequeno café, do qual emergia o som estridente de um rádio. E lá dentro, agachado de modo confortável diante da estufa e com um livro a seu lado, estava Heinrich.
A princípio, depois que Lewis apresentou a proposta, o homem não respondeu. Era um camponês lerdo, de olhos pequenos e testa estreita, incrivelmente curtido pelo tempo. Súbito, ele contraiu os olhos, com ar malicioso mas não sem jovialidade.
- É um lugar distante, mein Herr. Um lugar de oito mil metros, o Kriegeralp. E o Gasthof Hohne - ele deu de ombros, como haviam feito os outros cocheiros - não é um lugar para você.
- Por que não?
- Não é como o Burstegg, mein Herr. Nenhum Grand Hotel. Nada de dança. Nada de bar.
- com certeza você recomenda-o - disse Lewis, olhando atento para o homem. - E me deixa com mais vontade do que nunca de ir até lá.
Inesperadamente, Heinrich riu. Parecia perceber a piada.
- Assim é melhor - acrescentou Lewis, acenando com a cabeça. - Só mais uma coisa em relação ao Gasthof. Eu gostaria que você me fizesse chegar lá o mais depressa possível.
Tirou uma nota do bolso e estendeu-a, em silêncio. Os olhos de Heinrich se arregalaram à visão do valor da nota.
- É um lugar distante, um lugar alto - murmurou ele. Duas ou três horas de trenó. E a neve cai. - Ergueu a mão para mostrar o céu. - Muita neve. Durante todo o tempo cai neve...
Ele parou de falar, passou a língua pelos lábios, sem desviar os olhos do dinheiro. Era demais para ele. E, de repente, a nota estava em sua mão. com um gesto, como se estivesse se eximindo de toda e qualquer responsabilidade, Heinrich soltou um som gutural de assentimento. Terminou de tomar a cerveja e se ergueu, brusco e gesticulando para que Lewis se aprontasse para partir imediatamente.
Dez minutos depois o cavalo estava arreado e Lewis e Heinrich, cobertos por tapetes ásperos, se achavam acomodados no trenó. Heinrich gritou uma ordem curta e explosiva para o animal. Partiram.
Logo se afastaram de Làchen e começaram a subir pelo desfiladeiro, através de uma sucessão de rampas em ziguezague, para altitudes cada vez maiores. A paisagem era espetacular. Atrás ficava a aldeia, aninhada como um pássaro no seio branco do vale, enquanto à frente e de ambos os lados se erguia a incomparável majestade dos Dolomitas. Em torno deles, picos enormes e irregulares mostravam-se descontínuos, alcantilados e abruptos, recortados de pontas rochosas e eriçados de pinheiros, elevando-se em grandiosidade infinita, varando a própria abóbada celeste. E havia neve por toda parte. Neve e silêncio. E em meio a essa neve e esse silêncio a sensação da insignificância do homem era total e aterradora. E os dois viajantes eram como formigas que se moviam sobre a superfície de algum vasto e congelado universo.
No trenó pouco se falava. O tempo parecia preocupar Heinrich, que olhava para o céu a todo instante. Perto das onze horas, quando os primeiros e escassos flocos se converteram numa nevasca firme, o olhar que dirigiu a Lewis transbordava de autojustificação e censura.
Pouco antes do meio-dia chegaram a uma pequena estação de muda onde Heinrich descansou e alimentou os cavalos. Era uma cabana miserável, a última habitação humana antes das vastidões geladas e desertas do Kriegeralp, com um mínimo de recursos em termos de alimentos. O cardápio oferecia apenas pão preto e queijo. Enquanto comiam, Heinrich manteve uma conversa em voz baixa com o homem que cuidava do lugar. Lewis não pôde ouvir uma só palavra, mas calculou corretamente que falavam a seu respeito.
Fosse embora miserável, a cabana parecia, quando tornaram a partir, um paraíso de conforto em comparação com a nevasca que agora tinham de enfrentar. Neste momento estavam subindo mais alto, muito mais altO, por uma trilha ainda mais íngreme e estreita. As árvores haviam desaparecido. O vento, uivando nas encostas desoladas, soprava a neve em seus rostos, sufocando, cegando, as partículas tão finas que pareciam jatos de vapor. E eles seguiram em frente. Nos trechos piores, tinham de deixar o trenó e empurrá-lo, encurvados ambos para se protegerem do furacão, cambaleando a cada passo, afundando na neve até os joelhos.
Lewis não pôde calcular por quanto tempo subiram. Estava tão agasalhado e tão enredado que não conseguia alcançar seu relógio. Mas ao final da tarde, no momento em que já começava a temer que seriam em breve envolvidos pela escuridão antes que chegassem a seu destino, enfrentaram uma ravina surpreendentemente íngreme. E lá, como se tivesse deslizado de modo misterioso para seu campo de visão, estava o Gasthof Hohne.
Era uma casa comprida e baixa, toda construída de madeira, com beirais íngremes e salientes, cercada por um amontoado de chalés desmantelados. Uma casa antiga, também, tanto quanto Lewis podia julgar pelas vidraças, pequenas e fixadas de maneira sólida, e pelos peitoris e teto rebaixados. Um lampião a óleo já fora aceso no interior e, através de uma janela inferior, indicava o caminho a quem chegasse. Lewis não lamentou o fato. com o corpo rígido e cheio de cãibras, ele subiu de trenó até lá e bateu à porta.
Um homem muito além da meia-idade abriu-a. Por um momento, ele ficou completamente imóvel, contemplando Lewis com enormes olhos luminosos. Era uma figura estranha - rosto pálido, corpulento, cabelos e barba hirsutos, feições suaves e uma dignidade silenciosa, um porte empertigado e altivo. Lewis foi o primeiro a falar:
- Pode arranjar-me um quarto? Tivemos uma viagem bastante difícil e ficaríamos gratos pelo alojamento.
Por um apreciável segundo o estalajadeiro pareceu aturdido. Depois fez um gesto cortês de desculpas. E respondeu:
- Perdoe-me. É que estou surpreso com sua presença. Esperamos poucos hóspedes com uma tempestade assim. Entre, por favor. Eu o levarei até seu quarto.
Lá dentro, o Gasthof confirmou a impressão inicial de antiguidade. Era um lugar estranho, com corredores estreitos e íngremes escadas de madeira decorados com entalhaduras simples. O quarto de Lewis era pequeno e tosco, mas as paredes e o chão de pinho estavam impecáveis. O estalajadeiro deixou lá a vela acesa com a qual mostrara o caminho.
- Espero que fique confortável - disse ele, com aquela mesma dignidade resignada. - O jantar está quase pronto. Às seis horas. Lá embaixo.
Sozinho, Lewis correu os olhos pelo cómodo escuro, com o ar de alguém acostumado a ficar à vontade nos lugares mais estranhos. Concluído o inventário do quarto, ele abriu a pequena janela. E no mesmo instante todo o impacto da tempestade invadiu o aposento, trazendo consigo uma sensação do isolamento, do infinito afastamento daquele minúsculo posto avançado estabelecido no alto do Kriegeralp, acima do mundo. Mas nada disso desanimara Lewis. "Estou aqui", pensou ele, com uma secreta exaltação interior; "este é o meu atual destino, pois sei que ela também está aqui".
O som de um chocalho, ressoando insistentemente lá embaixo, lembrou-o do jantar. Ele lavou as mãos e o rosto com a água gelada do jarro, enxugou-se na toalha áspera e desceu.
A sala de jantar estendia-se por metade do comprimento da casa e, como esta, era comprida e baixa. Uma mesa estreita de pinho, encimada por dois lampiões oscilantes e cercada por bancos simples, ocupava-a quase toda. Quando Lewis entrou, a expectativa que latejava em seu coração sofreu uma súbita repressão. Havia três pessoas já sentadas à mesa. Mas Sylvia não se encontrava ali. Disfarçando seu desapontamento, cumprimentou os presentes com uma leve inclinação e sentou-se.
As três outras pessoas pararam de comer para fitá-lo de maneira franca. Sentada à cabeceira da mesa, uma moça de rosto pintado e bonito irradiava uma impressão desesperada e macabra de doença. Respirava um tanto depressa, reprimindo de vez em quando uma leve tossidela. Usava uma suéter vermelha e uma saia curta, cor de creme. Embora sua doença fosse evidente, ela ainda mantinha os resquícios de um charme muito cultivado. A seu lado havia um fonógrafo portátil, a seus pés um pequeno bassê. Ela estava fumando e mal tocava na comida.
A um de seus lados sentavam um homem e uma mulher, um casal insípido e sorumbático, com um autêntico matrimónio estampado nas feições inamistosas. Comiam de modo ávido e logo abandonaram a inspeção de Lewis para voltar a concentrar toda a sua atenção na sopa.
O mesmo não se deu com a moça. Mantendo os olhos fixos em Lewis, ela esperou até que ele fosse servido pela pequena criada; depois acendeu outro cigarro e disse num inglês bastante bom:
- Olá!
- Olá! - respondeu Lewis.
- Uma bela noite.
- Linda - murmurou Lewis, sem qualquer entusiasmo.
A moça riu inesperadamente, uma risada curta que de certa forma se misturou com sua tosse. Após recuperar-se, ela disse:
- Não se preocupe. Estou apenas sendo cordial. Talvez fosse melhor eu me apresentar. Fràulein Rudi, de Viena, quando em casa. E este é meu Leedle Billee. - O cachorro sentou, suplicante, os olhos pedintes brilhando acima da língua rosada. - E à minha direita temos Herr e Frau Schatz, de Rosenheim. À menção de seus nomes, o casal levantou o rosto e cumprimentou Lewis com uma mesura uniforme, como um par de brinquedos mecânicos.
- Eles não entendem inglês como eu. Posso dizer a verdade a respeito dos dois. São terrivelmente chatos. Não fazem nada, a não ser comer e esquiar. São fãs do esqui e aprendem com Karl Edler. Todas as pessoas que vêm para cá adoram esquiar... ou então têm uma pequena doença no peito como eu. Não estou muito doente - dirigiu a Lewis um sorriso sério. - Apenas um pouco doente do peito.
- Compreendo - disse Lewis.
Nesse momento a porta se abriu e um homenzinho entrou, garboso e comedido, num terno azul impecável. Exibia umpincenez de aros de ouro e uma corrente de relógio também de ouro. Avançando rapidamente até a mesa, inclinou-se para Lewis com polidez exuberante e muito bater de calcanhares antes de sentar-se.
- Herr Oberholler - Fràulein Rudi apresentou-o com o mesmo desinteresse irónico. - De Innsbruck. Não bebe. Não fuma. Gosta apenas das montanhas.
- Jo, é por isso que estou aqui - confirmou Herr Oberholler, olhando radiante para Lewis através das lentes grossas.
- Sempre venho às montanhas nas minhas férias. No resto do tempo estou sempre pulando de uma cidade grande para outra. É que por ocupação sou caixeiro-viajante.
Lewis inclinou a cabeça em sinal de assentimento. Herr Oberholler tomou uma colher de sopa, estalou os lábios e virou-se paternalmente para Rudi.
- Por que não come, minha cara? Esta sopa é boa para você, numa noite tão fria. Dá forças.
- Já tenho forças suficientes - respondeu Rudi, com uma amargura inesperada. - Quando este maldito Gasthof cair, você saberá que fui eu quem o derrubou.
O homenzinho esfregou os cabelos curtos com uma expressão um tanto pesarosa. Mas logo se recuperou e, lépido, voltou-se para Lewis.
- E o senhor, meu bom amigo, por que veio ao Gasthof Hohne? Está interessado nos esportes de inverno?
- Estou interessado em todos os tipos de esporte - respondeu Lewis em tom amável.
- Mas que ótimo! E ficará por muito tempo?
- Bem, isso depende.
- E de onde vem? Talvez de Munique?
- Não - respondeu Lewis um tanto vago. - Estava apenas viajando pelo país.
- Compreendo.
O homenzinho sorriu. Os olhos, estranhamente reduzidos pelas lentes miópicas, fixaram-se por um momento em Lewis para em seguida se desviarem, afáveis, noutra direção.
Houve uma pausa. Terminada a sopa, o prato seguinte - um guisado simples de vitela com batatas - foi trazido pelo estalajadeiro, cujo nome, sabia-se agora, era Anton. Ele próprio serviu os comensais, mantendo-se hesitante em segundo plano - um vulto maciço e sombrio - por alguns minutos. Em seguida retirou-se, silencioso.
Lewis manteve os olhos em seu prato, plenamente consciente da curiosidade combinada dos outros hóspedes. Mas essa atenção não o desconcertava em absoluto. Contudo, pouco a pouco foi sentindo que uma nuvem opressiva o envolvia. A antiga exaltação da chegada se desvanecera, suplantada por uma sensação de fracasso e desânimo. De repente percebeu a loucura de sua posição. Fora pura insanidade de sua parte ter vindo àquele lugar, ter-se isolado assim com pessoas tão estranhas. Sentiu-se vítima de uma alucinação desvairada, de uma miragem que o levara a um empreendimento condenado ao fracasso desde o início.
E então, quando chegava já ao mais fundo do abatimento, a porta tornou a se abrir. Instintivamente, Lewis levantou a cabeça.
Seu coração deu um salto frenético e sufocante. Duas pessoas entraram na sala. A primeira era um jovem corpulento, em roupas grossas de esquiar. A outra era Sylvia Ullwin.
Enquanto ela se aproximava da mesa, mais real, mais adorável do que a sua fantasia jamais conseguira imaginá-la, as dúvidas de Lewis se extinguiram por fim. Ele sabia agora que fora ela que o atraíra até aqui, que povoara a sua vida secreta ao longo de todos aqueles anos.
Sylvia permaneceu alheia à presença de Lewis Merrid por vários minutos. Seu rosto ainda exibia alguma coisa daquela preocupação triste que o marcara no trem. Os olhos estavam abaixados. Sentada ao lado de seu corpulento companheiro, ela não deu muita atenção às outras pessoas presentes à mesa. Monopolizada pelo jovem, ela escutava a sua fala alta, e respondia de vez em quando em voz baixa.
Observando-os com atenção, Lewis sentiu um lento brotar de hostilidade contra aquele estranho ruidosamente possessivo. Ele devia ter uns vinte e sete anos de idade, aparentava ser suíço, e seu corpo era pesado como o de um touro. O rosto estava marcado pela linha fina e branca de uma cicatriz feita por sabre. E os ombros largos indicavam uma excepcional força muscular.
Súbito, Sylvia levantou os olhos e deparou todo o impacto do olhar de Lewis. O efeito foi surpreendente. Ela parou abruptamente no meio de um comentário. Fitou Lewis, petrificada. Uma onda de espanto pelo reconhecimento inundou-lhe o rosto. Depois, pouco a pouco, foi empalidecendo. O sangue fugiu-lhe dos lábios e deixou-os completamente sem cor. Por um segundo, Sylvia deu a impressão de que desmaiaria. Mas, com um grande esforço, desviou os olhos, tomou um gole de água do copo à sua frente e tentou retomar a conversa interrompida.
Seu companheiro, porém, percebera todo o incidente. Não prestou qualquer atenção ao comentário dela. Em vez disso, virou-se e olhou para Lewis, de alto a baixo, com uma hostilidade deliberada e insolente.
- Meu nome é Edler - disse ele por fim, em tom arrogante. - Karl Edler, de Basileia. Instrutor de esqui do Gasthof Hohne.
Lewis espetou uma batata pequena com o garfo, inspecionoua com vagar e depois levou-a à boca com extremo cuidado. Enquanto mastigava, ele contemplou o instrutor de esqui do Gasthof Hohne.
- Karl Edler, de Basileia. Ótimo!
Edler ficou vermelho como um pimentão. Os músculos do pescoço saltaram. E ele disse, furioso:
- Quando dou meu nome, espero ouvir o seu em resposta. Lewis esperou o tempo suficiente para que o outro pensasse que não iria responder. E depois informou, em tom de indiferença:
- Meu nome é Lewis Merrid.
- Um americano?
- Por que não?
Houve um silêncio. Todos à mesa observavam os dois homens. Até mesmo a gorda Frau Schatz parara de comer, os olhos redondos esbugalhados, consciente da tensão no ar.
- Veio aqui para aprender a esquiar? - indagou Edler, por entre dentes, fazendo com que a pergunta soasse como um insulto.
- Talvez - respondeu Lewis com frieza. - Quanto cobra por uma lição?
Inesperadamente, Fráulein Rudi soltou uma risada. A pele de Edler tornou-se mais vermelha ainda. Ele não esperava uma oposição tão fria e implacável. Sentiu que fora forçado a uma posição ridícula. E alteou a voz de modo fanfarrão:
- Cobro muito menos do que mereço. Já ganhei muitos prémios no esqui. Talvez você não soubesse disso, não é? Pois estou lhe dizendo agora.
- Maravilhoso! - exclamou Lewis, com um sorriso frio.
- Eles devem ser muito persuasivos para conseguirem mantê-lo aqui, com Kitzbuhel, Burstegg e todos os outros grandes lugares clamando por seus serviços.
- Estou aqui porque me convém estar aqui! - berrou Edler.
Furioso, ele começara a se levantar do banco. Mas uma parcela de cautela conteve-o de repente. Tornou a sentar-se de modo brusco, respirando fundo, olhando irado para Lewis. A seu lado, Sylvia permanecia rígida e pálida.
De todas as pessoas presentes, foi Oberholler quem rompeu a tensão. Esfregando a janela atrás dele com a mão branca e macia, espiou para fora e disse, pondo água na fervura com sua voz suave:
- Ora, não está mais nevando. E o vento amainou. Não se esqueça, Herr Edler. Vai me honrar com uma lição amanhã. Às dez horas, não foi o que você disse? Anotei na minha agenda.
Edler soltou um grunhido em resposta. Inclinando-se sobre o prato, pôs-se a comer, apressado, enquanto falava com Sylvia em voz baixa e irritada.
Fràulein Rudi suspirou com suavidade e deixou o corpo magro relaxar. Se estava desapontada por ver a briga desvanecer-se tão depressa, não deixou transparecer isso. Apagando o quinto cigarro, sorriu para Lewis.
- Este é o fim do meu jantar. E agora tocarei um pouco de música para a sobremesa.
Abaixando-se, ela deu corda ao fonógrafo com mão experiente, selecionou um disco do álbum a seu lado e pôs o aparelho em movimento. No clima tenso e soturno da sala ressoaram as notas lentas e vibrantes da Marcha Fúnebre de Chopin.
- Lindo! - Rudi sorriu para Lewis. - Não acha uma beleza? É a minha peça predileta.
Mesmo enquanto ela falava, Edler levantou-se de um pulo.
- Você sabe muito bem que eu não suporto esse maldito disco! Um dia desses, se continuar a tocá-lo, vai encontrá-lo espatifado! - Afastou-se, furioso, virou a cabeça para trás antes de deixar a sala e disse a Sylvia:
- vou para a minha oficina. Poderá encontrar-me lá quando terminar.
Ele saiu da sala. Houve um silêncio prolongado, pois Fráulein Rudi tirara o disco do fonógrafo. Lewis inclinou-se para ela.
- Toque de novo - disse ele em tom suave. - Eu também gosto.
- É mesmo?
O rosto pálido de Rudi iluminou-se. Ela tornou a dar corda ao aparelho e deixou o disco tocar até o fim.
Lewis percebeu que Sylvia aparentemente se vira impossibilitada de comer o resto da refeição. Ela acabou largando o garfo e fez menção de se levantar. Era o momento que ele aguardava há muito. Enquanto ela se levantava, Lewis fez a mesma coisa e deixou a mesa. Seguiu-a para fora da sala, alcançou-a no estreito corredor que fazia uma curva além da escada no sentido da entrada lateral do Gasthof.
- Srta. Ullwin - disse ele - gostaria de lhe falar.
Quando Lewis pronunciou seu nome, ela voltou-se e ficou de frente para ele, comprimindo-se contra a parede do corredor. Sua respiração era acelerada, angustiada.
- Por que está me seguindo?
- Não tenha medo. Quero ajudá-la.
- Não quero a sua ajuda. Por que me falou no trem? Por que veio até aqui?
- Você está em apuros. Posso perceber isso. Tenho certeza disso.
O tom de Lewis, suave e tranquilizador, deixou a voz de Sylvia trémula de lágrimas:
- Não tem o direito de interferir na minha vida. Absolutamente nenhum. Se quer me ajudar, como disse, por favor vá embora daqui. Parta amanhã de manhã, o mais cedo possível.
Lewis sacudiu a cabeça com gravidade.
- Não partirei enquanto não livrar você das dificuldades em que está metida. É uma tarefa para a qual acho que passei a vida inteira me preparando. E há muitas coisas que eu quero descobrir antes de ir embora. Uma delas é Karl. Quem é ele? Sylvia fitou-o com firmeza. Respirou fundo, determinada, e disse:
- Karl é um bom sujeito, o melhor do mundo. Estamos noivos e vamos casar.
Lewis fitou-a, mal compreendendo a princípio o que ela dissera. Era como se ela lhe tivesse aplicado um golpe violento entre os olhos.
- Por favor, vá embora - repetiu Sylvia, no mesmo sussurro suplicante. - Tudo o que lhe peço é que saia daqui. Não pode fazer mais do que isso por mim.
Em seguida, antes que ele pudesse responder, ela afastou-se apressada pelo corredor em direção à porta lateral e desapareceu.
Lewis ficou por um momento a contemplar a porta através da qual ela passara. Reprimiu um impulso febril de ir atrás dela, virou-se e subiu lentamente a escada para seu quarto.
Karl, noivo de Sylvia - o pensamento era exasperante.
Enquanto Lewis ficava parado em amarga reflexão, seus olhos perceberam de repente uma alteração na arrumação da valise. Abaixou-se e, rápido, fez uma inspeção do conteúdo. Nada fora tirado, mas ele constatou que alguém revistara a valise de maneira meticulosa.
Empertigando-se, correu os olhos pelo quarto e ergueu alto a vela para iluminar os cantos mais escuros. Nesse instante, enquanto ele permanecia claramente delineado, houve um estilhaçar de vidro e um estampido distante. Lewis sentiu o zumbido de uma bala passando perto de seu ouvido e indo cravar-se na parede às suas costas.
Cair sobre um joelho e fechar a pesada janela foi obra de um segundo. Depois, levantou-se e pôs a tranca na janela com todo cuidado. Calculou que o tiro fora disparado de uma distância não inferior a duzentos metros. Um bom tiro, refletiu com ar severo. A bala deixara de atingir seu crânio talvez por um centímetro. Mais tarde teria oportunidade de dar os parabéns ao atirador. No momento, porém, sabia que nada podia fazer. Vaguear na escuridão e em meio à neve, naquele terreno desconhecido, seria uma loucura.
com um sorriso fino e tenso nos lábios, Lewis atravessou o quarto. Usando seu canivete, retirou a bala da madeira macia. Reconheceu a procedência, uma Mauser, de um antigo modelo militar.
Contemplando o pedaço de chumbo achatado na palma da mão, Lewis pensou: "Pelo menos tenho uma lembrança de uma visita bastante agradável. Mas não voltarei para casa. Ainda não".
O dia seguinte rompeu claro e bonito. Acordando cedo, depois de um sono leve, Lewis retirou a cadeira com que temporariamente prendera a porta. Abriu a janela que o salvara na noite anterior. A manhã estava tão linda quanto qualquer outra que ele já vira nos mares tropicais, o céu de uma delicada translucidez, as montanhas adornadas pela neve e tingidas pela tonalidade rósea do sol nascente. Era uma manhã para reanimar o coração. Enchendo os pulmões com o ar inebriante como vinho, Lewis sentiu que seu ânimo melhorava. A situação entre Karl e Sylvia parecia menos alarmante, menos inalterável. Havia algo estranho por trás de tudo aquilo e ele precisava sondar... Fez a barba, banhou-se sumariamente com a esponja e a água da bacia, vestiu uma suéter, calça grossa e botas. Depois, desceu para o café da manhã.
Não havia ninguém na sala além de Heinrich, seu cocheiro do dia anterior, e a pequena criada, Anna. Heinrich, entrincheirado atrás de uma tigela de café e metade de um pão de centeio, estava outra vez de bom humor. Enquanto Lewis sentava no lado oposto e Anna lhe servia café e pão, o cocheiro sorriu.
- Voltará comigo?
Ele sacudiu a cabeça na direção da janela, através da qual se podia ver o trenó esperando, com o cavalo já atrelado.
- Ficarei mais algum tempo aqui - respondeu Lewis.
- É melhor partir agora. - Heinrich soltou uma gargalhada debruçado sobre seu café. - Talvez caia da montanha por aqui, acabe se machucando.
- Adoro cair de montanhas - respondeu Lewis, cortando um pedaço de pão. - E não é fácil me machucar.
Heinrich tornou a produzir o ruído explosivo que lhe servia de risada. Mas quando Lewis, puxando conversa, tentou arrancar dele uma informação qualquer, seu rosto se fechou, reassumindo a velha expressão camponesa de astúcia. Se havia algo que ele pudesse dizer, era evidente que não tinha a menor intenção de fazê-lo. Lewis, no entanto, sentiu que o cocheiro poderia serlhe útil mais tarde. E assim que este se ergueu para sair, pôs uma moeda extra na mão dele.
- Isso é para o caso de lhe pedirem que vá apanhar o meu cadáver.
Apreciando o dinheiro e o gracejo, Heinrich desatou a rir. Recuperou-se num instante e declarou:
- É um homem generoso, Herr Americano. Mas tome cuidado. Talvez a piada seja mais verdadeira do que imagina.
Terminado o café da manhã e depois que Heinrich se foi, Lewis resolveu voltar a seu quarto. Tinha a impressão de que sua presença lá embaixo poderia retardar o curso normal dos acontecimentos. Tornou a subir e acomodou-se junto à janela - que oferecia uma vista ideal do pátio da estalagem e de todos os seus acessos - para observar.
Nada aconteceu por um longo tempo, além do afastamento lento e desaparecimento final do trenó de Heinrich. No entanto, perto das dez horas Edler saiu, acompanhado de Oberholler. Era a lição de esqui do homenzinho e, pela expressão do rosto de Karl, o instrutor não tinha a menor vontade de dá-la. Mesmo assim, quaisquer que fossem as suas ocupações nas horas de folga, seu posto ali aparentemente acarretava algumas obrigações rotineiras. Os dois entraram na casa anexa, que era a oficina de Edler, tornaram a sair com esquis e se encaminharam para as encostas baixas do lado oeste da Gasthof.
Meia hora se passou. Lewis quase se resignara ao insucesso quando Sylvia apareceu, bem por baixo dele. Um súbito excitamento pulsou em suas veias. Ele observou-a, atento, enquanto ela se encaminhava para o depósito dos esquis. Escolheu os seus entre aqueles que se achavam numa prateleira por baixo dos beirais, e prendeu-os rapidamente aos pés. Depois ajeitou uma pequena mochila aos ombros, lançou um olhar apressado à sua volta, como que para certificar-se de que não estava sendo observada, e desapareceu no canto da casa anexa.
No mesmo instante Lewis levantou-se. Sylvia dera todas as indicações de que havia uma intenção fixa em sua partida. Ele pretendia fazer dessa intenção a sua própria. Levou apenas meio minuto para precipitar-se até a oficina vazia de Edler. Havia meia dúzia de pares de esquis empilhados junto à janela. Lewis escolheu entre eles um par de excelente qualidade para corrida, feito de nogueira e um tanto estreito, do tipo norueguês que ele sempre usara no Canadá. Tinha a impressão de que se tratava dos esquis de corrida do próprio Edler, pois eram construídos para um homem da altura dele. Mas Lewis não parou para sopesar as sutilezas de sua apropriação. No calor e na pressa da ação, aquilo era sobretudo um incentivo adicional. O acerto poderia ser definido depois.
com os esquis nos pés e empunhando um par de bastões de bambu, uma faixa de lã que encontrara no banco a envolver-lhe a testa, Lewis partiu. Um frémito de exaltação física percorreu-lhe o corpo quando as bordas dos esquis cortaram a superfície crespa e seca de neve solta. Lewis era um esquiador experiente, um expert nessa difícil arte. O corpo esguio e firme, sem o menor excesso de peso, era feito para aquelas altitudes vertiginosas.
Sylvia estava já um quilómetro e meio à frente, seguindo diretamente para o cume da encosta. Ao que tudo indicava, seu objetivo era tão urgente que não olhou para trás uma única vez. Apesar disso, Lewis achou que era mais sensato manter-se fora de vista enquanto a seguia. Num ângulo mais alto da montanha ele se afastou. A subida era difícil, perigosa mesmo. Mas havia entre os dois a elevação do contraforte.
Lewis seguiu por esse curso paralelo superior durante cerca de meia hora; depois, de maneira inesperada e desconcertante, ele alcançou a crista final, descobrindo à sua frente um platô cheio de sulcos, um vasto mar branco de neve a ondular através de quilómetros de contornos varridos pelo vento. Muito à sua frente, uma pequena mancha escura, uma andorinha a deslizar por aquela solidão branca entre os cumes das montanhas, estava Sylvia. No exato momento em que ele olhava atento, protegendo os olhos com a mão, ela desapareceu no horizonte.
Em grande velocidade, Lewis partiu atrás dela. Não precisava de bússola. O rastro de Sylvia surgia nítido e reto na neve. Meia hora se passou... uma hora. Quanto mais a busca demorava, mais aumentava o excitamento de Lewis. Uma curva na neve encapelada proporcionou-lhe uma vista final: ali, plantada ao lado da última escarpa daquela terra de ninguém, havia uma pequena cabana de madeira. O rastro de Sylvia encaminhava-se direto para lá. Lewis respirou fundo. Era este, portanto, o destino dela, o alvo para a sua corrida veloz.
Cautelosamente, ele dirigiu seu curso para a cabana. Ao se aproximar, constatou que ela era tosca, feita de troncos abatidos de pinheiro, apodrecidos e em ruína, uma cabana alpina de alguma época passada. Embora na aparência abandonada há muito tempo, era evidente que tinha algum habitante agora, pois um fio de fumo saía pelo tubo enferrujado da chaminé.
Lewis tirou os esquis para percorrer os últimos dez metros fincando-os verticalmente na neve. Depois aproximou-se devagar da pequena janela da cabana. Sim, lá estava ela, sentada à mesa tosca, a mochila aberta, exibindo algumas provisões: uma galinha fria, dois pães, algumas laranjas e maçãs. No outro lado da mesa havia um homem, idoso, calvo, propenso a engordar, quase venerável em sua aparência. Ele escutava, afável, alguma coisa que Sylvia dizia, de quando em quando assentindo com a cabeça, seu olhar desviando-se na direção da comida.
Lewis não tinha a menor intenção de fazer papel de espião.
Abruptamente ele se desviou da janela, foi até a porta, abriu-a e entrou na cabana.
Interrompida no meio de sua fala, Sylvia virou a cabeça e fitou-o, arregalando os olhos. Afogueada da corrida, a suéter moldando os contornos firmes dos seios, ela nunca parecera mais bonita. Houve um instante de silêncio e depois ela exclamou:
- Você! - com um gesto de desespero, Sylvia virou-se para seu companheiro. - Pai, este é o homem de quem eu estava falando.
Os olhos do homem fixaram-se em Lewis com uma espécie de benevolência. Por trás dessa benevolência havia a insinuação, a vaga sugestão de uma inspeção meticulosa. Contudo ela foi disfarçada com êxito, com humor até, por aquele ar afável, cordial e patriarcal. O velho estendeu a mão com um sorriso de boas-vindas.
- Sr. Merrid? - disse ele. - Sim, sim, imaginei que devia ser o senhor. Falávamos a seu respeito neste exato momento. E deve permitir agora que eu também me apresente. - O homem empertigou-se com comovedora dignidade. - Sou Ullwin, exprofessor de Heidelberg.
Lewis apertou a mão estendida: era úmida e macia.
- Prazer em conhecê-lo, senhor.
- Obrigado, muito obrigado, meu caro rapaz. Sua espontaneidade faz bem ao meu velho coração. Sylvia estava me relatando, se posso divulgar o tema de nossa conversa sem ofensa, algo sobre o seu desejo de ajudar-nos em nossa atual dificuldade... um desejo que, de minha parte, não sou avesso a considerar, embora ela tenha demonstrado certa relutância natural. Ora, ora, estou esquecendo as boas maneiras! Sente-se, por favor. Posso lhe oferecer uma pequena refeição? Nossos suprimentos aqui são dos mais humildes. Mas será um prazer para nós que se sirva de tudo o que temos.
Lewis sentou, recusando a oferta de partilhar a refeição. Embora a atitude de Sylvia permanecesse tensa, havia algo de cativante no professor, um cordial refinamento que se sobrepunha a seu comportamento untuoso.
- Sei, Sr. Merrid, que é um americano que está percorrendo, por prazer, esta pobre terra abençoada. Não sabe como invejo essa sua capacidade de ir e vir, "essa preciosa liberdade", como escreveu o poeta Cowper. Mas sejamos mais objetivos. E espero também que me perdoe se eu comer enquanto conversamos. Em decorrência da tempestade de ontem, minhas refeições se tornaram um tanto irregulares e mais restritas do que se poderia desejar. Sylvia, minha cara, lamento que você não tenha conseguido frutas melhores que estas. Estão deploráveis! - Depois de dirigir este último comentário à filha num tom capcioso, começou a descascar delicadamente uma laranja, enquanto continuava a falar: - Eu me orgulho, Sr. Merrid, de ser um conhecedor de caráter. Para mim, os homens trazem seus passaportes estampados no rosto. Por esse motivo, mesmo que isso pareça uma ingenuidade, estou disposto a confiar no senhor. - Fez uma pausa, com uma expressão solene, e depois acrescentou num tom de extrema nobreza: - Sr. Merrid, quero que saiba que sou um fugitivo. - Houve silêncio. O professor pôs um pedaço de laranja na boca, mastigou devagar, depois sorriu tristemente para Lewis.
- Vítima poderia ser uma palavra melhor, Sr. Merrid... uma vítima do atual regime político. Já lhe disse que sou um professor. Até há pouco era titular da cadeira de Literatura Inglesa na Universidade de Heidelberg. Ah, aqueles dias felizes, em que minha esposa ainda era viva, quando passeávamos ao cair da noite às margens do suave Neckar, com Sylvia, nossa filha, que não chegava à altura de nossos joelhos, correndo pela relva ao lado... Se me é permitido dizê-lo, eu era amado e reverenciado por meus alunos, conhecido e respeitado pela minha largueza de espírito, a liberalidade de minhas ideias. Mas ah, as vaidades deste mundo! Esse liberalismo, esse humanismo, não era aceitável para as autoridades quando o atual governo subiu ao poder.
Sylvia interveio nesta altura com um gesto cansado de protesto:
- Pai, por que deveria...
Ele silenciou-a com um olhar de censura.
- Como eu estava dizendo quando minha filha me interrompeu... com o advento do estado totalitário minha vida foi se tornando progressivamente insuportável. Acabei sendo afastado do cargo e, se é que posso usar a expressão, passei a ter minha cabeça a prémio. Minha querida Sylvia, que tem sido o tempo todo meu esteio e meu amparo, fugiu comigo para Munique. Ali desconfiaram de nós e fomos presos. Mas, por um golpe de sorte, conseguimos escapar e chegar a este lugar remoto, onde em tempos melhores minha filha costumava vir todos os anos para esquiar, e onde, na verdade ela tem a sorte de contar com muitos e admiráveis amigos. - Fez outra pausa e, estendendo o braço, continuou com uma retórica impressiva: - Sr. Merrid, há quase três semanas que eu, um homem de cultura e posição, estou vivendo nesta cabana abominável, subsistindo das minguadas rações que minha filha e Herr Edler conseguem providenciar, levando uma existência de autêntico criminoso. E eu lhe pergunto, meu caro jovem, de maneira franca e aberta, se isso não conquista a sua simpatia.
Lewis contemplou o outro homem, que apesar do corpo volumoso, as roupas surradas e o rosto barbudo ainda conseguia ostentar uma certa dignidade histriónica. Tudo o que Steve Lennard dissera sobre os refugiados políticos e os horrores dos campos de concentração lhe voltou de repente à mente. Então, devagar, Lewis disse:
- Parece-me, senhor, que se encontra numa situação crítica. Não pode entrar em contato com seu cônsul?
O professor deu de ombros, pesaroso.
- A intervenção oficial, meu caro jovem, é a ilusão fatal do expatriado. Pode muito bem vir a ser a minha sentença de morte. Não me livraria da prisão. E o senhor por certo imagina o que pode acontecer da noite para o dia nesses campos de prisioneiros... o cassetete de borracha... uma bala nas costas... o édito enganoso de "morto quando tentava escapar". Não, não. Nesta questão eu devo contar apenas comigo mesmo e confiar na coragem e julgamento de meus amigos.
- Então o que está planejando fazer? - indagou Lewis. O professor inclinou-se sobre a mesa, corrigiu de pronto sua ansiedade e tornou a sorrir, sempre afável.
- Planejo escapar daqui, meu caro Sr. Merrid. Não posso mais esperar. Não é pelo desconforto... isso eu ainda poderia suportar. Mas se eu permanecer aqui por muito tempo, a rede se fechará comigo dentro. Preciso atravessar a fronteira para a Suíça. Uma vez lá, o resto será fácil. Poderei chegar a Paris em poucos dias. Em suma, estarei livre. Mas primeiro terei de chegar à Suíça, o que constitui a verdadeira dificuldade, o verdadeiro perigo. Herr Edler - um jovem dos mais estimáveis e que, como decerto o senhor já sabe, está noivo e vai casar com a minha filha - elaborou um plano que pretendemos pôr de imediato em execução! Mas precisamos de sua ajuda... e precisamos desesperadamente. É por isso que sua chegada se torna tão providencial. E é por isso também que eu me ponho, sem reserva, à mercê de sua generosidade.
Antes que Lewis pudesse responder, Sylvia inclinou-se para a frente e tocou no braço do pai, com ar de súplica.
- Pai, não pode envolver o Sr. Merrid assim. Peço-lhe que não faça isso. Nós mesmos daremos um jeito. E também é... sim, também é muito perigoso para ele participar disso.
- Tenho a impressão de que é de igual modo perigoso para mim não participar - comentou Lewis. - Ontem à noite alguém quase me acertou com uma bala de rifle.
O professor sorriu, à guisa de desculpa.
- Receio que tenha sido Karl. Sujeito estúpido! Ele se mostra entusiasmado demais com a nossa defesa. Mas, pelo amor de Deus, não permita que isso o impeça de nos ajudar.
- Ao contrário - disse Lewis com frieza - isso só me ajudou a tomar uma decisão. Daqui em diante estou a seu serviço.
- Meu querido jovem! - exclamou o professor em tom fervoroso. Ele soergueu-se na cadeira e, estreitando a mão de Lewis entre as suas, elevou os olhos para o céu. - Eu sabia, desde o primeiro momento em que o vi, que havia sido enviado pela Providência em nosso socorro!
Lewis desvencilhou-se do aperto pegajoso tão depressa quanto pôde. Embora simpatizasse com o velho, sua oratória melíflua tinha a insinuação de impostura emocional. O que tencionava fazer seria por Sylvia e ninguém mais. Instintivamente, virou-se para ela e perguntou:
- Vamos trocar um aperto de mão também, já que seremos parceiros?
- Farei isso por meu pai!
Quando ela pegou sua mão, Lewis constatou que Sylvia tremia e seus olhos estavam conturbados e envergonhados. No exato momento em que ele olhou, uma lágrima aflorou e escorreu pela face da jovem.
O professor não percebeu. Satisfeito com a cooperação de Lewis, ele estava, com ruídos de audível satisfação, atacando vorazmente o almoço.
Quando os hóspedes se reuniram para o jantar no Gasthof, naquela noite, Edler exibia uma carranca de enorme tamanho. Era evidente que já fora informado do que acontecera. Inclinado sobre o prato, ele manteve um silêncio opressivo durante toda a refeição. Talvez por causa do retraimento de Edler, os outros tiveram a oportunidade de conversar com mais liberdade. Oberholler, em particular, estava bastante loquaz. Presenteou a mesa com uma descrição detalhada de sua lição naquela manhã. Depois virou-se para Lewis com seu sorriso confiante.
- E o senhor passou o dia inteiro onde, meu amigo?
- Estive aqui e ali, vagueando pelas redondezas. O sorriso de Oberholler alargou-se.
- É a mesma coisa que disse antes. Está sempre vagueando por aí. E nesse passeio matutino aconteceu-lhe alguma coisa interessante?
Lewis virou-se para ele com o rosto impassível.
- E o que esperava que acontecesse, Herr Oberholler?
- Nunca se sabe. - Oberholler soltou uma risada jovial.
- Podem acontecer coisas extraordinárias nestas montanhas.
- Ficarei mais atento na próxima vez - disse Lewis em tom solene. - E, se deparar com alguma coisa extraordinária, não deixarei de informá-lo a esse respeito.
- Isso é ótimo. - O pequeno caixeiro-viajante exibia uma expressão divertida. Até mesmo eu... estou sempre atento. É maravilhoso como os olhos abertos desviam nossos pés de aborrecimentos.
Fràulein Rudi soltou uma exclamação que soou como um suspiro.
- Pois eu bem que gostaria de guiar meus pés para aborrecimentos. Ninguém gostaria de dançar esta noite? - Ela correu os olhos pela companhia. Parecia cansada e ainda mais doente.
- Tive um dia horrível. Todo mundo fora. Não havia nem uma única alma para conversar. Que tal um pouco de diversão depois do jantar?
Frau Schatz levantou os olhos de seu prato com uma expressão carrancuda.
- Depois de comer, eu vou dormir.
- Claro, claro... - Rudi suspirou. - Karl, você não está com vontade de dançar um pouco? - Depois que Edler respondeu com uma negativa brusca, ela virou-se para Lewis.
- Está vendo? Ninguém quer dançar. É lamentável. Mas vamos mudar um pouco. Não gostaria de jogar cartas... talvez piquete? Gosto muito de jogar piquete.
Lewis lançou um olhar rápido para Edler, antes de dizer, de modo afável:
- Sinto muito, Fràulein. Talvez noutra ocasião.
Rudi deu de ombros, acendeu outro cigarro e tossiu suavemente enquanto aspirava a fumaça.
- O que se há de fazer? - murmurou ela. - É muito aborrecido fazer durar um pedaço do pulmão.
Havia tal desamparo em sua atitude que Sylvia saiu de sua imobilidade e inclinou-se para a frente num gesto rápido.
- Jogarei uma partida, Fràulein.
A animação retornou às feições cavas de Rudi.
- É muito gentil, minha amiga. Vamos pegar as cartas depressa... antes que Frau Schatz comece a roncar.
Quando elas começaram a jogar, Edler levantou-se e saiu sem dizer uma só palavra. Lewis seguiu-o um minuto depois. Os dois se encontraram na oficina do instrutor de esqui.
- Parece que, afinal de contas, você está mesmo procurando encrenca - comentou Edler com um olhar agressivo.
- Foi o que eu lhe disse.
- Pois então deixe-me dizer que está no lugar certo para encontrá-la. Estive com Ullwin na cabana esta tarde. E quero deixar uma coisa bem clara: É desejo dele e não meu que você nos acompanhe. - Lewis recostou-se na bancada de trabalho. A atitude de Edler, com sua insolência arrogante, deixava-o irritado. Mas ocultou seus sentimentos com todo cuidado. O jovem suíço, truculento, agressivo e confiante em sua força muscular, era um tipo que ele já encontrara e com que lidara muitas vezes antes. - Há algumas coisas que você deve saber - continuou Edler no mesmo tom rude. - Em primeiro lugar, há Sylvia. Assim que o velho chegar à Suíça nós vamos casar.
- E deseja receber meus parabéns antecipadamente? - perguntou Lewis com ar jovial.
Edler corou de modo sombrio.
- Eu gostaria que pensasse bem no que está fazendo. Não estou neste negócio por causa de minha saúde. Você verificará que é coisa bastante perigosa para que comece a fazer uma das suas comigo.
- Então é perigoso? - perguntou Lewis em tom moderado.
- Pior ainda. Estão procurando por Ullwin... e procurando com tenacidade. Até agora tivemos sorte. Ninguém sabe que ele está aqui. Ainda não. Mas a cada hora espero problemas. Ele lançou um olhar sombrio a Lewis. - Ontem pensei que tivesse vindo à procura dele.
- Foi por isso que atirou em mim?
Um sorriso hostil estampou-se nas feições de Karl.
- Que tiro? Estou metido nisto até o pescoço. E pode haver muitos outros tiros antes de acabarmos. Está entendendo agora?
- Até onde permite a minha limitada inteligência.
- Pois então permita um pouco mais à sua inteligência.
Efetuaremos a nossa tentativa amanhã à noite. Alguém como você pode ser útil. Mas saiba que não será fácil.
- Não gosto das coisas fáceis.
Karl tornou a sorrir com desagrado. Tirou do bolso um pedaço de cera de esqui e começou a riscar a superfície macia da bancada.
- Olhe! - disse ele em tom peremptório. - Esta linha é a fronteira suiça. Esta outra, por cima, é a alemã. Estamos aqui, metidos no canto das montanhas entre as duas fronteiras. Para sairmos, temos dois caminhos: o de cima e o de baixo. O de baixo é simples, indo através da fronteira, passando pela cidadezinha de Breintzen e depois percorrendo setenta quilómetros de estradas fáceis até Zurique. Tão simples! Só que é simples demais. Pois cada guarda, em cada estrada, está à procura de Herr Ullwin. E em Breintzen há mais guardas do que casas. O caminho de cima não é tão simples. É a pior escalada das montanhas. Significa que passaremos sobre o Kriegeralp por um caminho que poucas pessoas já percorreram. E significa também que viajaremos à noite. Mas quando alcançarmos a fronteira, se não formos mortos, os guardas não estarão tão vigilantes e logo nos encontraremos sãos e salvos na Suíça.
- Então é esse o seu plano?
- Isso mesmo. Amanhã à noite. Estávamos esperando pela lua. É preciso, se não quisermos quebrar o pescoço. Mas não poderemos esperar por mais tempo. Logo o Foehm estará aqui, o vento quente que provoca avalanches. Gosta de avalanches, Herr Americano?
- Adoro.
Edler riu desdenhosamente. Sua arrogância incutiu em Lewis o desejo de acertar-lhe um soco no queixo.
- Veremos como você se sai no Kriegeralp. Pode ser que se mostre um pouco diferente antes que eu acabe com você.
Enquanto ele falava, a porta se abriu e Sylvia parou no limiar. Esperando ali, os braços caídos ao longo do corpo, um pouco arqueada, ela não olhava para nenhum dos dois, embora seus olhos estivessem saturados de ansiedade.
Ao vê-la, Karl pôs-se logo em ação. Adiantou-se e passou o braço em torno da cintura dela com exagerado afeto. Sem desviar os olhos de Lewis, perguntou com uma afetada ternura:
- E então, meu bem, ganhou a partida?
- Não - respondeu Sylvia, com uma voz estranha. - Infelizmente perdi.
O dia seguinte arrastou-se lento, um dia cinzento e ameaçador. Quando a noite chegou, a lua brilhou intermitentemente, escondida a todo instante por nuvens em movimento. Lewis pôde sentir a iminência de tempestade quando às oito horas, conforme estava combinado, cruzou o pátio varrido pelo vento e entrou na oficina. Karl já se encontrava lá e ajudava Sylvia a ajustar pele de foca a seus esquis, a fim de impedir que escorregassem para trás nas encostas muito íngremes. Ele parecia demasiado tenso e lançou um olhar irritado para Lewis.
- Você está atrasado.
Lewis ignorou a censura, limitando-se a comentar:
- O vento está aumentando. Já reparou no céu? Não me parece muito propício.
- Nada parece propício quando se deseja ficar para trás - resmungou Karl.
- Imagino que você sabe o que está fazendo, mas para mim as condições parecem inadequadas.
- Eu sou o juiz disso - respondeu Karl. - Vamos partir de qualquer maneira.
Lewis não fez mais objeções.
Depois de ajeitar os esquis, empertigou-se e sorriu de modo tranquilizador para Sylvia. Ela não retribuiu com outro sorriso. No entanto, desta vez não desviou os olhos. Fitou Lewis com firmeza e disse:
- É muito bom que você nos acompanhe. Precisamos de ajuda... com meu pai... na passagem mais alta. Ele é pesado e desajeitado com os esquis. Apesar disso, contudo, ainda não é tarde demais para você desistir.
Lewis não respondeu. Mas seu sorriso continuou. Sylvia voltou a cabeça para o outro lado.
Eles partiram em fila indiana, com Karl na frente. Como Lewis previra, uma brisa forte recebeu-os na crista. Mas Karl imprimiu um ritmo furioso. Forçaram rapidamente o caminho para a frente, e por volta das dez horas alcançaram a cabana.
O professor já os aguardava ali, bem enroupado com sobretudo e cachecol e um sorriso afável, mas vagamente apreensivo no rosto pálido.
- Meus caros rapazes! - exclamou ele, radiante. - E minha querida Sylvia! Isto é o que se pode chamar de genuína devoção. Como podem ver, estou preparado, eu, um pobre fugitivo. Minha humilde cabana está varrida e arrumada, o lampião abafado e eu preparado para o nosso empreendimento.
- Não pode viajar com esse sobretudo - explicou Karl. Não vamos fazer uma excursão turística.
- Mas receio que esteja muito frio lá no alto da montanha, meu bom Karl!
- Pois então sinta frio! É melhor que embaralhar as pernas no sobretudo e cair numa fenda.
O professor ficou tão desconsolado que Lewis não pôde deixar de sentir pena. Enquanto o velho se esforçava para tirar o sobretudo, ele se adiantou.
- Deixe-me levar isso para você. Não vai me incomodar. Eu o prenderei na minha mochila.
Karl olhou furioso para Lewis, murmurando algumas palavras ininteligíveis, abriu a janela e olhou para fora. Embora o vento assoviasse em torno da cabana, o céu limpara por um momento. Virando-se, ele disse:
- Por que estamos perdendo tempo? - Alteou as sobrancelhas para o professor, que já entregara o sobretudo a Lewis e ficara com as mãos cruzadas sobre a barriga. - Por acaso deseja um jantar de sete pratos antes de partirmos? Ou está esperando que uma delegação venha pedir-lhe que volte para Heidelberg?
Não, meu caro rapaz - respondeu o professor, num surpreendente tom de humildade. - Eu esperava por outro motivo bem diferente. Queria fazer uma pequena oração ao meu Criador. Estamos prestes a nos lançar num empreendimento perigoso. Vamos pedir ao bom Deus que o coroe de êxito.
Era um espetáculo estranho e desconcertante. Enquanto as palavras santimoniais fluíam fáceis dos lábios do velho, Lewis experimentou uma arrepiante sensação de desconforto. Tratava-se de fervor religioso ou de pura zombaria? Ele não saberia dizer. Sylvia escutava com uma expressão desolada e triste. Contudo o rosto de Ullwin mostrava-se completamente extático e uma umidade fervorosa brilhava em seus olhos. Por fim, ele deu aquilo por terminado. Assoou o nariz e, num tom de santa resignação, concluiu:
- Vamos embora, meus amigos. Aconteça o que acontecer, estou preparado agora.
Lewis pegou uma corda que se achava em cima da mesa. Karl pegou a outra e enrolou-a no ombro. Deixando a cabana, eles começaram a subir, iniciando a aventura propriamente dita.
O curso que tencionavam seguir era através do contraforte nordeste do Kriegeralp. De início, eles subiram por uma encosta íngreme até a crista inferior, depois deslizaram por uma garganta de gelo escassamente coberta de neve congelada. A lua, cheia, ainda brilhava de maneira intensa, dando à paisagem uma claridade de meio-dia. Lewis compreendeu o quanto dependiam dessa claridade. Atrás e abaixo deles a cabana parecia um pequeno navio escuro num vasto mar branco. Por cima deles, erguia-se a massa assustadora do Kriegeralp.
Descansaram por um momento diante da primeira geleira e depois se ligaram pelas cordas, com Karl na frente, depois Sylvia, seguindo-se Lewis e o professor. No momento em que começou a escalada da geleira Lewis compreendeu porque Karl não fizera muita objeção à sua participação no empreendimento. O professor, como Sylvia informara, não tinha experiência com esquis. Ele se arrastava com dificuldade pelo gelo azulado, e Lewis precisou puxá-lo literalmente, pela encosta.
Era um trabalho extenuante. Lewis cerrou os dentes e recorreu a todas as suas forças para arrastar aquele peso que se movia desajeitado atrás de si, na extremidade da corda.
Depois da primeira geleira eles encontraram algum alívio, deslizando por uma estreita saliência de gelo compacto coberta de neve.
Em seguida enfrentaram a segunda geleira. Para esta, foram obrigados a tirar os esquis e carregá-los nos ombros - um fardo adicional. Subiram com extrema dificuldade. Karl, na frente, usava a picareta para cavar no gelo inclinado apoios para os pés. Iam bem alto agora e o vento, uivando pelos picos irregulares, incidia sobre eles com terrível intensidade.
Durante uns dez minutos eles subiram na vertical e de través. Então, quando atingiram a parte mais árdua da geleira, a lua desapareceu de repente. Antes haviam perdido a sua claridade total apenas por uns poucos e breves períodos. Desta vez foi diferente. A claridade desvaneceu-se como uma vela que se apaga. Todos ficaram imóveis, como vultos de súbito eclipsados. Uma dúvida surgiu, repentina, na mente de cada um. Mas foi uma dúvida de breve duração. Sentiram nos rostos o roçar de asas macias. Começara a nevar.
Mesmo a uma distância de vinte metros Lewis ouviu Karl soltar uma imprecação abafada. Seus próprios sentimentos eram amargos. Conhecia o significado da neve. Maldito Karl, pensou ele, devia conhecer melhor o tempo ali. Adiantando-se pela escuridão e puxando o professor como um cavalo na ponta de uma corda, ele chegou ao ponto em que Karl se encontrava, junto com Sylvia, sob o abrigo escasso de uma formação de gelo saliente.
- Não vai demorar - disse Karl, com uma agressividade que Lewis compreendeu ser defensiva. - E é muito melhor do outro lado. A neve é solta. Efetuaremos uma corrida rápida até a fronteira.
- Enquanto isso, é melhor nos abrigarmos - comentou Lewis calmamente.
Tirando das costas o sobretudo do professor, ele usou-o para cobrir o velho e Sylvia. Ficaram todos agachados por baixo da formação de gelo. O frio era terrível. O vento cortava através da geleira como a lâmina de uma faca. E a neve também era mais intensa. Karl, simulando indiferença, fez uma tentativa de acender um cigarro. Falhou por três vezes. com uma imprecação, ele jogou fora o último fósforo gasto. Ainda estava escuro. E os flocos de neve remoinhavam mais depressa que antes.
Lewis olhou para Sylvia. O rosto dela, quase imperceptível na escuridão, estava contraído de frio. Pelo contato com seu corpo, Lewis sabia que ela tremia. Ansiou por pegar entre as suas as mãos enregeladas da jovem. De repente declarou:
- Não podemos nos demorar.
- Mas que diabo! - exclamou Karl, irritado. - Esperaremos aqui até a neve parar de cair. Depois continuaremos.
Lewis olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso.
- Esperaremos aqui exatamente trinta minutos. Se ainda estiver nevando não vamos continuar. Voltaremos.
- Não podemos voltar. Precisamos fazer a travessia à noite. É a única maneira de atravessarmos a fronteira sem sermos observados.
- Podemos cruzar a fronteira como cadáveres - interveio o professor, estralejando os dentes. - Já estou sentindo as pernas congeladas.
- Não sou um montanhista e sim um marinheiro - disse Lewis, com uma determinação inabalável. - Mas nossa situação é perfeitamente clara para qualquer homem com um olho só: se pararmos aqui, morreremos congelados. Se continuarmos às cegas, com esta nevasca, acabaremos caindo de um penhasco. Repito: se o tempo não clarear, voltaremos à cabana.
Houve uma pausa nervosa. Lewis percebeu o clarão vermelho de fúria nos olhos de Karl. Por alguns segundos reinou ali uma amarga sensação de conflito. Então Karl murmurou uma frase ininteligível e descarregou sua raiva chutando um bloco de gelo com sua pesada bota. Vinte e cinco minutos depois Lewis pôs-se de pé. Disse apenas:
- Vamos voltar!
Era uma estranha inversão no comando do grupo. Num momento de crise, a liderança passara para Lewis. Karl, pelo menos por enquanto, não ofereceu qualquer resistência. Ficou para trás em silêncio, enquanto Lewis reajustava as cordas e iniciava o retorno pela geleira.
Era uma descida perigosa, na mais absoluta escuridão, com toda a fúria da tempestade desencadeando-se em torno deles. Mas Lewis possuía sua rota e o sentido de orientação de um marinheiro. Longas horas de vigia pela madrugada tinham-lhe proporcionado uma visão aguçada no escuro. Ele determinou o curso pelo vento. Um estímulo adicional era o pensamento de que Karl Edler, atrás dele, devia por certo desejar torcer-lhe o pescoço.
Tendo descido pelas duas barreiras de gelo sem maiores problemas, eles tornaram a pôr os esquis e começaram a atravessar o desfiladeiro. E de repente, quando disparava pela neve recente, Lewis sentiu a crosta ruir sob seus pés. Soltando um grito de advertência, ele saltou de modo impetuoso e, por milagre, foi cair na neve sólida. Mas, no mesmo instante, a corda se esticou. Antes mesmo de ser atingido pela força do puxão ele sabia que Sylvia estava na fenda.
Instintivamente, Lewis projetou-se para a frente. Mantendo o corpo inclinado e afastado da fenda, ele se virou e plantou com firmeza os pés na neve. Depois começou a puxar a corda. Ouviu Karl gritar do outro lado, avisando que a corda se rompera, berrando uma ordem. Lewis não deu atenção. Todos os seus esforços se concentravam em salvar Sylvia.
Seu coração parecia subir-lhe até a boca enquanto puxava desesperadamente a corda. Conhecia os perigos de uma queda repentina, do impacto súbito e inesperado contra o gelo duro que nem rocha. Talvez uma perna quebrada. Ou pior ainda. Ele já ouvira falar de esquiadores que caíam assim e eram resgatados com os crânios fraturados.
Um puxão final na corda trouxe Sylvia à superfície.
Dominado por uma apreensão insuportável, Lewis largou a corda e passou o braço em torno dela.
- Está machucada?
Sylvia juntou-se a ele, tão perto que Lewis podia sentir-lhe o subir e descer dos seios contra seu corpo. Os olhos arregalados, de pupilas escuras, fixaram-se nos de Lewis. Por um momento, permaneceram assim; depois, numa agitação súbita, Sylvia afastou-se.
- Estou bem - balbuciou, baixando os olhos. - Não foi nada.
Antes que Lewis pudesse falar, Karl e o professor alcançaram-nos, tendo feito um desvio pela fenda. Karl estava dominado pela raiva.
- Mas que diabo estava querendo? Por que não esperou até que eu desse a volta? Será que não entende? Um passo em falso e vocês dois ficariam nessa fenda para sempre.
Lewis não respondeu. Virou-se e recomeçou a jornada, a cabeça inclinada, observando com atenção o caminho através da garganta. Meia hora depois estavam no platô. Duas horas mais, e eles alcançavam a cabana quando a aurora já rompia. Haviam passado toda a noite fora, e o resultado final era um completo fracasso.
O professor encontrava-se inteiramente exausto. Como um boneco de neve todo encharcado, ele arriou numa cadeira. Lewis, depois de lançar-lhe um olhar rápido, riscou um fósforo para acender o fogo e pôs a chaleira com água para ferver. Como não havia combustível suficiente na cabana, ele saiu para apanhar um pouco de lenha.
No abrigo a sotavento da cabana, onde ficava a pilha de lenha, Lewis inclinou-se para pegar algumas achas quando, subitamente, percebeu a presença de Karl atrás de si. O outro seguira-o até o lado de fora. Lewis empertigou-se, lento. O rosto de Karl tinha uma expressão repulsiva, os lábios contraídos deixando os dentes à mostra, a respiração um pouco pesada.
- Parece que você pensa que se encontra no comando. Mas está cometendo um engano.
Lewis sacudiu a cabeça, vigilante.
- Não desta vez.
Como resposta, Karl lançou-se para a frente e desferiu um soco forte no queixo de Lewis. Foi um golpe desajeitado, mas poderoso. Lewis conseguiu desviar-se para o lado. Enquanto o punho de Karl passava perto de sua orelha, ele pensou, furiosa e friamente, nas duas pessoas dentro da cabana.
- Controle-se - disse ele num tom rápido e enérgico. Não seja idiota.
Mas Karl, de cabeça abaixada e brandindo os punhos, arremeteu como um touro irado.
Lewis largou a lenha que pegara para revidar a agressão do suíço. Do princípio ao fim, ele sabia muito bem o alfabeto daquele estilo de luta. pois já a enfrentara muitas vezes em diversos portos estrangeiros. E tornar a enfrentá-la agora foi pateticamente fácil.
Ele aparou todos os golpes que Karl desferiu. Era como se cada um deles tivesse vindo de um quilómetro de distância. Depois, quando o suíço tornou a avançar, ele encaixou um uppercut rápido e seco. O soco não percorreu uma distância superior a vinte centímetros. Mas foi rápido como um foguete e calculado com perfeição. Enquanto seu punho golpeava o queixo do adversário, o peso total do corpo de Lewis chocou-se contra todo o impacto da arremetida de Karl. Uma expressão aturdida enevoou os olhos deste, que caiu de joelhos, tombou ao chão e rolou para o lado, desacordado.
Lewis esfregou os dedos na suéter encharcada. Abaixando-se, pegou um punhado de neve e começou a massagear a nuca de Karl.
- Vamos - murmurou ele, persuasivo, enquanto Karl apresentava sinais de recuperação. - Você está bem. Foi apenas um pequeno acidente. Volte à cabana como se nada tivesse acontecido.
Karl sentou, atordoado, compreendendo gradativamente o que lhe acontecera. Por um momento deu a impressão de que tencionava renovar a batalha. Mas alguma coisa nos olhos de Lewis, um brilho frio, em contraste com a fala suave, dissipou sua vontade. Ele levantou-se e voltou meio trôpego para a cabana.
Um minuto depois entrou Lewis. A água da chaleira não demorou a ferver, e Lewis pôs na mesa um bule de chocolate fumegante. Todos tomaram uma caneca do líquido quente. Sylvia, desviando o rosto, exibia um ar tenso e abatido. Karl acalentava seus ressentimentos em silêncio junto à janela. O professor, com as roupas molhadas que tirara empilhadas a seu lado, estava sentado junto ao fogão, todo encolhido.
De repente ele espirrou com violência. Ao pegar o lenço úmido, lamentou em voz alta:
- Eu pensava que estaria na Suíça a esta altura. Mas, graças à minha corrida pelo gelo, estou agora cultivando um resfriado particularmente desagradável. - Ele fez uma pausa. - Deveria tomar um banho de mostarda. Só que não tenho qualquer possibilidade de um banho... muito menos de mostarda, claro. Ah, meu Deus... meu Deus! O chocolate está ótimo, Lewis. Mas o que eu não daria por um pouquinho de uísque!
Lewis tentou reanimar o velho.
- Anime-se, professor. Não adianta ficarmos descorçoados só porque esta primeira tentativa falhou. Precisamos nos unir e procurar a solução mais acertada.
- Pois dê-nos essa solução, já que é tão esperto - disse Karl, removendo a mão do queixo inchado.
- Calma, calma, meu bom Karl - censurou-o o professor.
- Eu lhe suplico que não seja precipitado. Afinal, sou o mais prejudicado aqui. Já é bastante ruim ser um fugitivo. E ser um fugitivo com resfriado... atchim!... ultrapassa os limites desta carne mortal.
- Seja engraçado! Seja o homem mais engraçado que já saiu de Heidelberg! Isso não vai durar muito tempo. Não podemos esconder as coisas aqui além de outros dois dias mais. Estou certo de que estarão atrás de nós, tão certo quanto chamar-me Edler.
Súbito, no silêncio que se seguiu a estas palavras, houve uma batida forte na porta. Todos ficaram tensos no interior da cabana. Lewis gritou:
- Quem é?
Bateram de novo. Lewis adiantou-se e abriu a porta. Ao fazer isso, uma lufada de vento empurrou duas pessoas para dentro da cabana. Uma exclamação aflorou aos lábios de Lewis. As duas pessoas eram Steve Lennard e sua irmã Connie.
- Essa não! - exclamou Connie, comprimindo em duas palavras toda uma riqueza de indignação fraternal, por muito reprimida. - Como pôde fazer uma coisa destas, Lewis Merrid? Desaparecer assim, sem uma única palavra! Não acreditamos que você tivesse escrito aquele bilhete. Pensamos que tivesse sido agarrado pelos nazistas...
Karl, que estivera observando os recém-chegados com uma expressão mortificada, interveio de repente, indagando de Lewis:
- Quem são essas pessoas?
- Minha irmã... e um velho amigo.
- Como eles souberam vir até aqui... até a cabana? Connie se encarregou de responder:
- O homem do Gasthof nos contou que poderíamos encontrá-los aqui. Ele falou... depois que Steve deu um jeito de persuadi-lo. Mas você, Lewis, é que deveria estar dando explicações...
Numas poucas frases lacónicas, Lewis explicou a situação. Quando ele concluiu, Connie virou-se impulsivamente para Sylvia.
- Sinto muito, minha cara. Eu não tinha a menor ideia. Gostaria que nos tivesse contado tudo isso no trem. Faremos todo o possível para ajudá-la.
Steve olhava para o professor com uma expressão aturdida.
- Já não nos encontramos antes em algum lugar? Seu rosto me parece familiar.
- Não, meu caro rapaz. Creio que nunca nos encontramos.
- Estranho, mas... Ora, não vou me preocupar com isso. Lewis, diga-nos o que está pensando.
Lewis franziu as sobrancelhas por um momento.
- Eis como vejo as coisas - disse ele. - Das duas maneiras de escapar já tentamos uma e falhamos, o que significa que devemos tentar a outra. Isso implica risco maior de sermos apanhados, mas em menos possibilidade de o professor quebrar o pescoço.
- Obrigado, meu caro rapaz - disse o professor, com modéstia. - Sinto-me comovido por sua preocupação com as minhas vértebras cervicais.
Lewis continuou:
- Não adianta viajarmos em grupo. Seria muito perigoso. E quando viajarmos, terá de ser muito depressa, por isso vamos precisar de um automóvel, e dos bons. vou expor o meu plano. Você e Connie podem nos dar uma ajuda, Steve. Você sai daqui imediatamente... retornando a Viena, se não se importar. É a primeira coisa a fazer. Em Viena você arruma um carro dos mais potentes. com esse carro você sai despercebido, fazendo uma volta para chegar a este local na fronteira. - Metendo a mão no bolso, ele tirou o mapa que pegara no Gasthof e abriu-o sobre a mesa, pondo o dedo num ponto da fronteira. - É este o lugar. Breintzen. É aí que nós o encontraremos. Fica apenas a dez quilómetros de Làchen, e trata-se de local pouco frequentado onde teremos uma chance de efetuar uma arremetida para atravessar a fronteira.
Steve bateu com o punho na mesa.
- Breintzen! Conheço o lugar. Não é muito mais do que uma aldeia, com um posto de fronteira na ponte. E deixe-me dizer mais uma coisa: tenho amigos em Breintzen.
Lewis anuiu com a cabeça, os olhos fitos no mapa.
- Isso torna a coisa ainda melhor. Enquanto vocês dois estão indo para lá de carro, nós podemos seguir de trenó ou mesmo a pé, viajando durante a noite. E nos encontramos lá numa hora combinada.
- E o que acontecerá então? - indagou Karl, com toda veemência. - Também conheço Breintzen. Os guardas na ponte estão triplicados... em ambos os lados. E há ninhos de metralhadoras. Fala em efetuar uma arremetida para cruzar a fronteira. Himmel, Você não conseguiria fazer com que um gato cruzasse ali, mesmo que ele tivesse nove vidas!
- Vamos com calma - interveio Steve. - Há mais coisas em Breintzen do que você imagina. Eu disse que tenho amigos lá. E um deles é extraordinário. Chama-se Johan Schwartz e tem uma loja de antiguidades, alugando alguns quartos na parte de cima. É um homem esperto e, mais do que isso, capaz de fazer qualquer coisa por mim. Prestei-lhe um favor há dois anos. E, para falar francamente, ele ajuda pessoas a cruzarem a fronteira. Portanto, se nós nos encontrarmos como Lewis garante, farei com que vocês atravessem também. E quando tiverem atravessado, estarão a menos de duas horas de Zurique.
O professor emitiu um som de suave assentimento.
- Admirável, meu caro rapaz - murmurou ele em tom afável. - Devo confessar que tenho plena confiança neste novo plano. E se tenho de arriscar a minha indigna pessoa, prefiro que, depois da experiência desta noite, seja com algum conforto.
- Então está combinado. - Foi Connie quem falou, de modo inesperado e suave. - com um acréscimo: Sylvia, por motivos vários, irá conosco para Viena.
Houve um silêncio.
- Por que Sylvia tem de ir com eles? - queixou-se Karl a Ullwin. - Ela deve ficar e nos acompanhar.
- E andar todo o percurso até Breintzen? - disse Connie.
- No escuro? Por cima da neve? Cansada como está? Seria impossível. Ela precisa de algum cuidado e atenção para variar. E vai ter!
Ela passou o braço protetoramente sobre os ombros de Sylvia.
- Não faço qualquer objeção - murmurou o professor.
- Desde que possamos encontrar-nos na loja de antiguidades do bom Herr Schwartz, na cidade de Breintzen. Quando será? Steve olhou para Lewis, que respondeu:
- Pode ser amanhã, às dez horas da noite.
- Combinado.
Karl fez um gesto de contrariedade. com o rosto contraído pela raiva e suspeita, virou-se para a janela, depois aproximouse de Sylvia e disse em tom áspero:
- Parou de nevar. Se você está cansada, como eles dizem, vamos voltar ao Gasthof.
- Boa ideia - declarou Connie toda animada. - Eu também irei. Quero comer alguma coisa e dormir. Em especial se vamos partir para Viena à tarde.
Karl respirou fundo e respondeu, em voz contida:
- Claro que terei o maior prazer em escoltá-la.
A ironia passou despercebida a Connie. Ela estava ajudando Sylvia a vestir sua suéter grossa. Um momento depois os três deixaram a cabana.
Depois que eles saíram, o professor sorriu de maneira simpática para Steve e Lewis, esfregou as mãos e tornou a sorrir.
- Cavalheiros, o grande Talleyrand comentou certa ocasião que o pior inimigo de um homem era um estômago vazio. Ocorre-me que é de manhã e precisamos comer alguma coisa. Na verdade, eu até deveria ter sugerido isto antes - disse ele com uma expressão radiante. - Mas, conhecendo os recursos da minha despensa, compreendi, para meu infinito pesar, que, conquanto pudesse haver o suficiente para três, não havia o bastante para seis. A necessidade, nas palavras de Cícero, é o pai da discrição. Enquanto falava, Ullwin encaminhava-se para o pequeno armário e, com ar de conspirador, tirou dele, um por um, vários objetos que estendeu para inspeção dos outros. - Podem observar, cavalheiros, que minhas rações são de fato minguadas. Item, um ovo. Item, um outro, posto que ligeiramente menor. Item, o remanescente de um saco de farinha de trigo. Item, as sobras de uma lata de café. Item, os deploráveis vestígios de um pote de manteiga. Isso mesmo, meus caros rapazes, podem ficar desconsolados. Mas, quem sabe? com habilidade e paciência, ainda posso surpreendê-los. Podem não estar a par do fato, mas na velha e querida Heidelberg eu era considerado um expert nos refinamentos da nobre arte da culinária. Minhas saladas eram famosas em toda a universidade. Ah, que molhos! Posso lhes garantir que eram extraordinários!
Afastando-se do armário, o professor foi para junto do fogão, onde se manteve ocupado batendo os ovos e a farinha até formar uma massa, despejando o café numa panela, sorrindo, falando e entretendo-os com afabilidade enquanto preparava o café da manhã. Não demorou muito e ele havia feito uma pilha de panquecas quentes e um bule de café sofrível. E, mal terminou, puxou uma cadeira para junto da mesa e pôs-se a provar com extrema rapidez os produtos de sua culinária. Só depois que sua boca estava devidamente cheia é que acenou um convite para os outros, com ar de quem pedia desculpas.
- Sentem-se, cavalheiros, por favor. Devem perdoar minha visível urgência, que é devida menos ao apetite do que à incipiente gripe que agora me ameaça. O que diz o poeta Burns? "Alimente um resfriado e deixe com fome uma cólica". Pois eu me proponho seguir sua exortação.
Eles puseram-se a comer juntos, e por alguns minutos houve silêncio. Durante esse tempo, no entanto, Steve manteve o olhar fixo no professor, a testa vincada em linhas de reflexiva perplexidade.
- Sabe, professor - declarou ele por fim - você me deixa realmente aturdido.
- É mesmo?
O homem mais velho lançou um olhar rápido para Steve por baixo das sobrancelhas.
- A menos que tenha um sósia em algum lugar, já o encontrei antes. Posso jurar. Mas não me lembro onde foi.
O professor levou à boca a última panqueca, lambeu os dedos e, tranquilizador, sorriu para Steve.
- Não se preocupe com isso, meu caro rapaz. Por que sobrecarregar os precários fios da memória? Não tenho a menor dúvida de que existem outras feições, lineamentos e fisionomias, em seu âmbito de conhecimento, que se parecem com o meu humilde semblante. Um nariz, qualquer que seja, deve ser sempre capaz de cheirar. Mas se não é por meu nariz, por que eu haveria de confessá-lo? - Lewis, que estava atento, seria capaz de jurar que o professor piscara para ele de maneira sub-reptícia. Mas, se tal aconteceu, não foi mais que o mover de uma pálpebra. Mas isso logo passou e Ullwin continuou a falar, mais suave do que nunca: - E agora, meus caros rapazes, dispomos de cerca de uma hora antes que tenham de voltar ao Gasthof. Que acham vocês de um joguinho de cartas? Apenas pourpasser lê temps, é claro.
- Cartas? - repetiu Steve. - Não é má ideia. Que tal um pôquer?
- Pôquer - tornou o professor em tom suave. - Ora, ora! Trata-se de um desses terríveis jogos de azar. Devo admitir que já o joguei, em raras ocasiões. Mas o senhor deve ser um expert, não é mesmo, Sr. Lennard?
- Acho que jogo mais ou menos.
- Pois então faremos um joguinho! - exclamou o professor, radiante. - Não sou avesso a apostar um pouco.
O professor apresentou um baralho bastante usado. Os pratos do café da manhã foram empurrados para o lado e o pôquer começou. Usaram fósforos como fichas. E, como o professor se mostrou muito insistente, o valor de cada ficha foi fixado em um dólar. Como moeda da região, nada mais desvalorizado apareceu sobre a mesa.
O professor era aparentemente um noviço. Jogava como uma criança inocente. Fazia perguntas sobre as regras, queria saber quando podia pedir uma carta. Apostava seus fósforos com uma prodigalidade extasiada. Seus comentários faziam Steve sorrir e arrancavam de Lewis um ténue sorriso estranho. Contudo as cartas que ele recebia eram sempre melhores que as dos outros.
O sorriso de Lewis foi se tornando menos jovial, enquanto o professor, apesar de seus manifestos disparates, continuava a ganhar de modo surpreendente. Lewis passou a desistir das jogadas logo que começavam as apostas, e assim o pôquer tornou-se sobretudo um duelo entre Steve e o professor. Steve detestava perder. E, ao final de uma hora, seu sorriso se transformara numa expressão de desgosto.
- Ora, diabos me levem! - Seu rosto tornou-se sombrio enquanto ele arremessava as cartas sobre a mesa. - Nunca vi uma sorte assim. Isso me deixa com um prejuízo de duzentos xelins.
- Sorte de principiante, meu caro rapaz - comentou o professor, radiante. - Lamento profundamente que ela se tenha sobreposto à sua evidente experiência.
- Acho melhor pararmos por aqui - sugeriu Lewis.
- Nada disso - respondeu Steve. - Tenho que recuperar tudo mesmo que isso me mate.
com ar jovial, o professor tornou a dar as cartas. Quando Steve pegou as suas um brilho súbito surgiu em seus olhos, desaparecendo no instante seguinte. Lewis, contudo, viu isso e imaginou que Steve recebera boas cartas. De qualquer forma, as que ele próprio recebera eram péssimas. Saindo do jogo, preparou-se para acompanhar a disputa com interesse.
Steve, com uma indiferença afetada, empurrou duas fichas para a frente. O professor fez a mesma coisa. Steve apostou mais duas. O professor também. Três de Steve. O professor cobriu.
As coisas agora estavam se processando da maneira que Steve queria. Ele assumiu então um ar de imprudência, como se estivesse determinado a enfrentar o pior.
- Mais dez.
- Certo, meu caro rapaz.
- E outros dez.
- Como quiser.
com a maior dificuldade, Steve reprimiu um sorriso de satisfação. Tirou a carteira do bolso, pegou um maço de notas e largou-as na mesa.
- Estou sem fichas. Mas isto fala a mesma língua.
- Meu caro rapaz - protestou humildemente o professor, os olhos brilhando à visão das notas -, você tem a coragem de um leão. Receio que vá arruinar-me.
As notas e as fichas formavam um bolo apetitoso no meio da mesa. Steve, pelo menos, parecia pensar que era suficiente. com um aceno de cabeça ele indicou que estava pronto para mostrar suas cartas. E mostrou sua mão.
- Quatro reis, professor. Lamento ter de fazer isso com o senhor.
O professor sorriu, com ar de quem se resigna. Os dedos brancos acariciaram suas cartas. Quase como se pedisse desculpas, ele pôs as cartas na mesa. Quatro ases.
- Mas que diabo!
Steve mal sussurrou estas palavras. O sorriso enrijeceu-se em seu rosto e ali permaneceu como uma lua pálida. Tentou falar, mas não conseguiu. Engoliu em seco, com grande dificuldade, como se tivesse um caroço na garganta. Sua aparência era tão desolada, tão ridícula, que Lewis não pôde deixar de rir interiormente.
Enquanto isso o professor embolsava, polido, os seus ganhos.
- Obrigado, meu caro rapaz, por me ensinar o jogo. Devo admitir que gostei muito. Talvez depois de mais algumas lições com alguém que tenha a sua indubitável experiência eu possa até me tornar um bom jogador de pôquer. E agora acho que o fogo está ficando muito baixo. E fico imaginando, meus caros rapazes, se não se importariam de me trazer mais um pouco de combustível.
com algum esforço, Steve levantou-se e saiu da cabana. Quando, um momento depois, Lewis o seguiu, foi encontrar o guerreiro vencido refletindo sobre a pilha de lenha.
- Eu gostaria de me lembrar onde o vi antes - murmurou Steve.
- Talvez em alguma partida de pôquer - sugeriu Lewis, abaixando-se para pegar um feixe de lenha.
Steve lançou um olhar aflito para o amigo e, com os nós dos dedos comprimidos contra a testa, tentou lembrar-se. Minutos se passaram. De repente, ele bateu com a palma na coxa e soltou um grito excitado.
- Já sei! - Descendo das achas em que sentara, adiantou-se para Lewis, tremendo de excitamento. - Eu sabia que havia alguma coisa errada com ele. Apenas um pobre fugitivo político! Um nariz qualquer que seja capaz de cheirar! Ele é um escroque... e um escroque internacional. Sua fotografia apareceu em todos os jornais da Áustria. Ele cometeu um assalto em Viena no mês passado, levando esmeraldas no valor de duzentos mil xelins. Não são os nazistas que estão atrás dele. É a polícia!
Houve um silêncio opressivo. Lewis largou a lenha que segurava, o rosto subitamente tenso.
- Tem certeza?
- Se tenho certeza? Absoluta! Ele entrou para a Equitativa, a firma assaltada, como escriturário, depois levou as esmeraldas. Não conhece a Equitativa de Viena? É uma firma antiga de empréstimos e hipotecas. De um modo geral, eles não lidam com dinheiro. Mas na ocasião haviam recebido um par de esmeraldas, uns brincos de esmeraldas famosos, pertencentes outrora à realeza, de uma família antiga cujos bens eles haviam penhorado. Foram essas esmeraldas muito famosas que Ullwin roubou. Seu rosto apareceu por toda a cidade, em cartazes, com o oferecimento de uma grande recompensa. A polícia está à procura dele há semanas!
Outro silêncio tenso. Embora conhecesse a exuberância do amigo, Lewis sabia que desta vez Steve não estava cometendo nenhum erro. O pai de Sylvia era um ladrão - um criminoso que conseguira impor seus préstimos por meio de expedientes fraudulentos. Toda a situação baseava-se numa fraude, num embuste vulgar, em que a própria Sylvia fora conivente.
Por um longo tempo Lewis permaneceu com a cabeça inclinada; depois empertigou-se numa súbita resolução.
- Vamos entrar, Steve. Veremos o que ele tem a dizer.
Na cabana, eles encontraram o professor em mangas de camisa, sem botas e nem meias, os pés mergulhados num balde de água quente. Era um espetáculo muito humano.
- Entrem, meus caros rapazes - disse o professor, soltando uma risadinha. - Estou fazendo o que me é possível sem a mostarda. Não sou a própria imagem da felicidade doméstica? Ah, se ao menos um de vocês soubesse cozinhar!
Lewis não respondeu. Como sempre, percebera que a jovialidade do velho era estranhamente afável. No entanto, ele não estava para mais delongas. Avançando até o casaco do professor, pendurado no encosto de uma cadeira, ele tirou o baralho do bolso. Examinou as cartas com atenção. Estavam marcadas. Ele virou-se para Ullwin.
Trouxe estas cartas da universidade?
Houve uma pausa. O sorriso não deixou o rosto de Ullwin. A única diferença foi que este se tornou mais suave.
- Claro, meu caro rapaz. Sempre viajo com esse baralho.
- Foi o que pensei - murmurou Lewis, balançando a cabeça. - Devem sentir muito a sua falta... em Heidelberg, não é mesmo?
O professor percebeu que haviam descoberto alguma coisa. Diga-se, para seu crédito, que não se deu por achado. Seu sorriso intensificou-se.
- Estão inconsoláveis, meu caro rapaz. O reitor... é um cavalheiro idoso com uma barba branca muito comprida... e um enorme colete... desapareceu por completo em sua Pilsner.
- Não precisa ser tão engraçado, Ullwin. Você roubou aquelas esmeraldas em Viena, não é mesmo?
Os olhos esverdeados do professor piscaram ligeiramente. Afora isso, não vacilou.
- Exato, meu caro rapaz. Roubei aqueles brincos antigos e famosos. Um lindo golpe, se me permitem dizê-lo. Um dos mais belos golpes já dado por mim.
- Quer dizer que já tinha dado outros antes?
- E muitos, meu caro rapaz. Às vezes com mais sucesso, outras com menos.
- É um escroque?
- Absolutamente correto. - O professor tirou um cigarro do bolso do colete e acendeu-o com toda a calma. - Por muitos anos segui uma carreira proveitosa e variada. Comecei com um desfalque de fato sensacional na Inglaterra. Fui para a França. E tive... digamos que tive sorte num banco da França. Trabalhei na Riviera por um longo tempo. Nas mesas de jogo utilizava um sistema próprio. Depois desfechei alguns golpes maravilhosos na Suíça, Alemanha, Áustria. Embora não pudessem adivinhar isso, foi de fato o refinamento de meus métodos que me valeu o apelido de Professor. Tive os meus reveses, é claro. Quem não os tem? Mas, de modo geral, levei uma existência encantadora, lucrativa e emocionante.
- E sua filha? - indagou Lewis com voz dura. - Ela tem partilhado essas aventuras lucrativas?
Desta vez Ullwin corou. O sangue afluiu-lhe ao rosto pálido, e ele lançou um olhar rápido e furioso a Lewis.
- Não! - respondeu ele em tom firme. - Sylvia só veio ao meu encontro porque eu estava em dificuldades. Ela é a única coisa limpa em minha vida. E você sabe disso.
Uma irresistível sensação de alívio envolveu Lewis numa onda rápida e revigorante. Ele encarou o velho e calvo patife, que recuperara a suavidade e fumava calmamente, os olhos falseando, numa expressão de desafio imperturbável. Apesar de tudo, havia nele uma atração especial. Lewis disse, bem devagar:
- Deveríamos entregá-lo à polícia. Mas sabe que não faremos isso. - Depois de uma pausa, continuou: - Se o ajudarmos a chegar à Suíça, você terá de devolver as esmeraldas que roubou da Equitativa.
O professor deu de ombros com um sorriso amargo.
- Eu gostaria de poder fazer isso, meu caro rapaz. Mas as esmeraldas já desapareceram, dissiparam-se, e seu produto foi consumido. O problema é que o receptador me pagou apenas uma fração do valor das jóias.
- E se nós o revistássemos para ter certeza disso?
- Podem fazê-lo, meus caros rapazes, se assim desejarem. Podem procurar por toda essa miserável habitação. Mas dou a minha palavra de honra de que não estou mais com as jóias.
Havia um tom de segurança nas palavras que desta vez transmitia convicção. Lewis suspirou:
- Suponho que devemos acreditar em você. Mas, se o ajudarmos a sair desta encrenca, terá de fazer uma coisa: vai se emendar. E que Deus o ajude se não o fizer.
Ullwin inclinou a cabeça, com uma expressão agradecida.
- Meu caro rapaz, não pode imaginar como essas suas gentis palavras me encorajam e inspiram. Há muito que desejava uma oportunidade assim, a oportunidade de encarar um horizonte diferente, reconstruir uma nova vida com as ruínas da antiga.
Erguendo-se dentro do balde de água quente, o professor agarrou a mão relutante de Lewis e sacudiu-a vigorosamente. Depois, com igual fervor, apertou a mão de Steve.
Houve um silêncio contrafeito. Nenhum dos dois sabia como o velho os conquistara. Contudo, ali estavam, atordoados e comprometidos em ajudá-lo. Lewis olhou para seu relógio.
É melhor descermos agora para o Gasthof, Steve. Você deverá partir dentro de três horas.
Descalço, o velho professor acompanhou-os até a porta.
- Adeus, meus caros rapazes. E que minhas bênçãos os acompanhem.
- Bem que precisaremos delas - comentou Steve com ar enigmático. - E não tente qualquer truque até nos encontrarmos em Breintzen, caso contrário eu lhe darei mais do que a minha bênção.
Já estavam na metade do caminho para o Gasthof quando Steve tornou a falar. O rosto franzido, ele sacudiu a cabeça solenemente.
- Ele pode ser um escroque, Lewis, mas há alguma coisa naquele velho que atrai a gente.
Lewis assentiu, balançando a cabeça. Súbito Steve empertigou-se, a consternação espalhando-se por seu rosto.
- Ei, esqueci de pegar meu dinheiro de volta!
No Gasthof, duas horas depois, foram concluídos os preparativos para a partida de Connie, Sylvia e Steve. O trenó aguardava na porta; haviam comido uma refeição ligeira e Lewis também estava pronto. No último momento ele decidira acompanhar o grupo até Làchen. Dificilmente poderia explicar porque tomara essa decisão. Suas reações em relação a Sylvia estavam fervilhando e sua mente era um turbilhão de dúvidas conflitantes. Contudo, ele só realizava aquela tediosa viagem até a estação porque desejava ficar junto da moça por mais algumas horas.
Ao sair de seu quarto e descer a escada, já de casaco e cachecol, encontrou o caminho bloqueado. Oberholler, o pequeno caixeiro-viajante, estava sentado no primeiro degrau. Ao ver Lewis, exibiu o seu sorriso afável e suave, mas não fez qualquer menção de sair do caminho.
- Boa tarde - disse ele. - Vai sair de novo?
- Isso mesmo.
- Mas já fez uma longa expedição à montanha - comentou Oberholler. - Uma expedição perigosa e, se é que se pode fazer um julgamento, das mais desagradáveis. Por certo não deseja tentar a Providência mais uma vez.
Se não estivesse tão preocupado com seus pensamentos, Lewis teria notado uma insistência particular da parte de Oberholler. Por isso, limitou-se a olhar para o outro homem com ar distraído.
Você é um bom sujeito - acrescentou Oberholler em tom gentil. - Embora só o conheça há pouco tempo, gosto de você. E não me agradaria se algo de mal lhe acontecesse.
- Que espécie de mal?
Quem pode saber? - Oberholler fez um gesto de desaprovação. - Este é um clima incerto, um lugar traiçoeiro, não se pode confiar nas pessoas. Meu bom jovem americano, estou realmente apreensivo por sua causa.
- Pode deixar que sei cuidar de mim mesmo.
Lewis fez menção de passar. Mas Oberholler, pondo-se de pé, ainda lhe bloqueava a passagem. E, ao se levantar, despojou-se de sua mansidão e humildade. Os olhos, por trás dos óculos, adquiriram um ar penetrante. Bem perto de Lewis, ele disse em voz serena e controlada:
- Não estou brincando, Herr Merrid. É um conselho dos mais sérios. Leve já sua irmã e seu amigo para longe daqui. Sigam para Paris, Berlim, Nova York. Podem ir até para Timbuctu, se assim desejarem. Mas não fiquem na Áustria. E não se intrometam em questões que não lhes dizem respeito.
Não havia como se equivocar com o tom solene e a advertência incisiva de Herr Oberholler. Mas Lewis estava muito preocupado e perturbado interiormente para dar a devida importância. E respondeu, de modo tão jovial quanto lhe foi possível:
- Lamento muito, Herr Oberholler. Timbuctu não me interessa. E, infelizmente, sou um intrometido irremediável. Mas, de qualquer maneira, obrigado.
Em seguida, passou pelo homenzinho e se afastou. Lá fora, os outros já esperavam no trenó. Karl, inclinado para Sylvia, despedia-se de maneira prolongada e possessiva. Era como se cobrasse um tributo por lhe permitir que o deixasse por dois curtos dias. Os olhos de Lewis endureceram. Não podia julgar se Sylvia estava sendo uma parceira espontânea ou contrafeita naquele abraço. O espetáculo por si só já era suficiente para fazer seus pensamentos fervilharem de maneira mais angustiosa ainda.
Por fim eles partiram. Durante a maior parte do percurso até Làchen, Lewis manteve-se em silêncio, embora Steve e Conme sustentassem uma conversa interminável. Sylvia também ficou calada. O silêncio parecia unir os dois no frio enregelante. Um desânimo profundo dominou Lewis. Amava aquela moça. Ela era o ideal que procurara por toda a sua vida, como fantasiara afetuosamente. Mas quem e o que ela era? A filha de um escroque insinuante. O próprio silêncio de Sylvia havia mentido para ele. Amargurado, Lewis disse de si para si, como já fizera antes, que devia dominar aquela paixão louca e desesperada, esquecê-la para sempre, libertar-se de uma vez de toda aquela angústia que lhe dilacerava o coração.
Esta era a sua disposição de ânimo quando desceram pela última encosta para Làchen. Embora pequeno, o local contrastava de maneira surpreendente com o isolamento deixado para trás. Havia pessoas nas ruas; o mesmo rádio tocava alto no café; um trem de carga se arrastava ruidosamente e a estação sobressaía com trilhos que se alongavam para a civilização. Desceram no café, onde Steve se dirigiu até o balcão para pedir drinques. E ali, a uma mesa, debruçado sobre o seu inevitável livro, estava Heinrich, o cocheiro que levara Lewis ao Gasthof.
Quando todos entraram, ele contemplou-os com ar grave, depois sorriu dissimuladamente para Lewis, com uma certa reserva.
- Então você voltou? - comentou ele. - Eu lhe disse que voltaria logo.
Lewis concordou, silencioso, balançando a cabeça.
- Aceita um drinque? - perguntou Steve em tom afável, sempre à vontade em qualquer bar.
Heinrich aceitou outra cerveja. Enquanto bebia, seus olhos, ternos e no entanto sagazes, abrangiam, atentos, o grupo, o bar e, em especial, a janela. Ele pôs-se a falar. Falou bastante, bem mais do que o usual. Falou alto sobre o tempo, a neve, o rádio, que estivera quebrado e fora consertado, a linda música que o lindo rádio consertado tocava naquele momento. De repente, no meio daquela conversa insólita e idiota, inclinou-se para Lewis e avisou num tom baixo e que nada tinha de estúpido:
Tomem cuidado. Vocês estão sendo vigiados.
E no instante seguinte passou a comentar ruidosamente a excelência da cerveja.
Lewis sentiu que suas faculdades se concentravam e solidificavam sob o choque daquela advertência inesperada. Fez um esforço para reprimir seu desânimo anterior. Naquele momento Steve, depois de pagar os drinques, saiu do bar com Connie. O trem deveria partir dentro de cinco minutos. Lewis seguiu com Sylvia, poucos passos atrás. Na porta, de frente para a rua, o instinto o conteve. Estendendo o braço, ele puxou Sylvia para a sombra da porta.
Sem terem percebido coisa alguma, Steve e Connie atravessaram a rua a caminho da estação. Na bilheteria, bem em frente, Steve procurou o guichê para comprar as passagens. Nesse momento, dois homens se afastaram da parede contígua à qual estavam apoiados com aparente indolência. Avançando rapidamente até o guichê, eles detiveram Steve e Connie.
Tudo aconteceu de maneira discreta, sem qualquer alvoroço. Num instante Steve e Connie estavam comprando as passagens; no seguinte eram levados presos. E no preciso momento em que as algemas faiscaram, quatro outros policiais saíram de trás da parede, dois de uniforme e dois à paisana, e seguiram para o café.
Lewis compreendeu de imediato que ele e Sylvia eram o alvo daquela diligência conjunta. Nesse mesmo instante, com o canto do olho, ele divisou na linha principal um trem de carga que, com todos os vagões engatados, começava a desenvolver alguma velocidade. Sua mente funcionou como um relâmpago.
Apressadamente, num tom de urgência inconfundível, disse a Sylvia:
- Temos de correr para pegá-lo.
Segurando-a pelo braço, ele saiu com ela em disparada pela rua na direção dos trilhos. Os policiais viram-nos e partiram em sua perseguição. Seria impossível alcançar a estação antes dos policiais. Por isso, Lewis conduziu Sylvia para as linhas de manobra. Por sorte, o portão estava aberto. Eles correram pelos trilhos. Sylvia tinha pés leves e rápidos. Mas o trem estava aumentando sua velocidade muito depressa. Lewis fez um desesperado esforço final. Enquanto o trem passava, ele pulou para o último vagão. Conseguiu segurar-se no balaústre e, puxando Sylvia com toda sua força, ergueu-a até junto de si. Por um segundo, os dois ficaram balançando no estribo; depois, Lewis empurrou-a para dentro do vagão. Ambos' rolaram pelo chão do carro e ali ficaram, na quentura da escuridão, recuperando o fôlego, ouvindo as batidas descompassadas de seus corações, enquanto a locomotiva os levava ruidosamente para longe de Làchen.
Lewis foi o primeiro a se mexer. Sentou-se na palha que cobria o chão do vagão, e, tenso, disse:
- Lamento ter sido obrigado a agir assim. Mas, de outra forma, teríamos sido presos.
Sylvia empurrou para o lado uma mecha de cabelo que lhe caíra sobre o rosto. Seus olhos escuros e lindos estavam fixos nele. com voz abafada, ela disse:
- Eu é que deveria pedir desculpas por metê-lo nesta situação. - Os lábios dela tremiam. - E é tudo inútil agora, não resta mais nenhuma esperança. Eles nos viram. Seria melhor se nos entregássemos.
A aflição de Sylvia derreteu a dureza de Lewis, despertando nele aquela familiar dor de compaixão.
- A situação não é tão desesperadora assim. Ainda estamos livres, não é mesmo? Connie e Steve não falarão. E não há nada que impeça seu pai de chegar a Breintzen, como combinamos. Se também pudermos chegar lá, com um carro, acho que nos será possível fazê-lo cruzar a fronteira.
O rosto de Sylvia desanuviou-se lentamente.
- Acha isso mesmo? Que ainda podemos fazê-lo atravessar?
- Há uma possibilidade. Temos um trabalho difícil pela frente, mas podemos dar um jeito. A primeira providência é sair deste trem. Eles telefonarão para a próxima estação, com toda certeza. Se nos encontrarem aqui, será muito difícil explicar como pegamos a carona.
Ela correu os olhos pelo vagão, que parecia um porto seguro num universo hostil. Havia uma sombra de pesar em seus olhos. Mas ela respondeu com firmeza:
- Farei exatamente o que você ordenar.
Nada mais foi dito. Levantando-se, Lewis foi até a porta do vagão, abriu-a lutando contra a força do vento e olhou para fora. A paisagem era desoladora, coberta de neve, plana. Ele-não tinha a menor ideia sobre que direção estavam seguindo. Mas sentiu-se animado por constatar que o crepúsculo começava a cair.
Lewis permaneceu junto à porta talvez por uns vinte minutos, enquanto uma sucessão constante de postes telegráficos passava por seu campo de visão. De repente, percebeu que a velocidade da locomotiva começava a diminuir. Voltou-se de imediato para Sylvia, os músculos do queixo contraídos.
- Vamos parar. Preste atenção, por favor. Tudo dependerá de que façamos a coisa certa e bem depressa. Pule quando eu pular. E siga-me. Entendido?
Sylvia, com os lábios ressequidos, acenou com a cabeça em sinal de assentimento e foi postar-se ao lado de Lewis. Assim ficaram, na escuridão que se adensava, enquanto o trem se aproximava, lento e ruidoso, de uma estação secundária. Lewis praguejou mentalmente ao verificar que o lugar era muito pequeno", o que tornava a descoberta dos dois muito fácil. Súbito, seu coração disparou. Parado na estação, nos trilhos do outro lado, estava um trem de passageiros - pelos vagões antigos e locomotiva de chaminé comprida tratava-se de um lento trem local, que parecia prestes a partir. Lewis formulou imediatamente um plano. No instante em que o trem de carga parou, ele fez sinal para Sylvia. Saltaram quase juntos. E juntos mergulharam sob as rodas paradas, emergindo do outro lado. Mais trinta segundos e tinham alcançado o trem local, sentando-se num compartimento vazio e cheirando a mofo.
Seguiu-se um período de suspense angustiante. Lewis cerrou os dentes . Por que o maldito trem não partia logo de uma vez? Cada momento de demora aumentava o perigo. Um cabineiro passou pelo corredor. Olhou para o interior da cabine. Sua expressão era de suspeita? Talvez ele tivesse visto os dois atravessarem os trilhos. O cabineiro hesitou, indeciso. E quando Lewis já pensava que o homem ia entrar e interrogá-los, a locomotiva de repente apitou e o trem partiu, com um solavanco. Ao se afastarem da estação, Lewis olhou cauteloso para trás. E o que viu fêlo afundar no assento com um suspiro de alívio. Vários guardas revistavam com meticulosidade o trem de carga.
Segundo parecia, Sylvia também os vira, pois comentou em voz baixa:
- Você escolheu o momento certo para sairmos.
O trem de passageiros avançava pela escuridão. Lewis não tinha a menor ideia acerca do lugar para onde estavam indo. Era indescritivelmente angustiante não saber qual o seu destino. E se estivessem voltando para Làchen? Um calafrio percorreu-lhe o corpo diante de tal perspectiva.
Cerca de uma hora transcorreu. Chegaram aos subúrbios de uma cidade. Pelas numerosas luzes que cintilavam Lewis compreendeu que se tratava de uma cidade grande. Experimentou uma satisfação intensa. Ao entrarem na estação grande e coberta ele viu o nome: Innsbruck. Era o suficiente. com um sinal para Sylvia, abriu a porta da cabine e os dois saltaram para a plataforma. Diversos outros passageiros também desembarcavam. No meio da multidão, Lewis tornou a pegar Sylvia pelo braço, encaminhàndo-se para a saída.
Chovia forte lá fora, uma chuva fria, misturada com neve. Encontravam-se agora no meio de uma praça, com um hotel grande de cada lado. A chuva estava na verdade terrível, e em pouco tempo ficaram completamente encharcados. Mas Lewis não queria pegar um táxi, pois ainda temia que pudessem ser seguidos. Avançaram por uma rua principal, com luzes brilhantes de lojas e cafés, todas embaçadas pela chuva. Lewis avistou de repente, numa rua transversal mais estreita, o tremeluzente letreiro de néon de um pequeno cinema. Logo a seguir, já ele apressava Sylvia até lá e ambos entravam no cinema.
Na escuridão interior, Lewis pôde respirar mais livremente. Esperava que não tivessem sido notados quando entraram. Era um cinema de segunda categoria, os assentos rangendo, estofamentos desbotados, um projetor barulhento. Mas haviam encontrado um santuário, pelo menos por algum tempo.
Lewis dirigiu um olhar furtivo a sua companheira. Mesmo à luz difusa que se refletia da tela, pôde perceber que ela estava demasiado pálida, encharcada e totalmente exausta, pelo esforço e tensão da fuga. Compreendeu que era impossível para Sylvia continuar assim por muito mais tempo sem o risco de algum mal mais sério. Precisavam encontrar um abrigo para passar a noite e o mais depressa possível.
Contudo, as dificuldades eram extremas. Era evidente que, a esta altura, toda a polícia já fora alertada; se usassem o bom senso, já estariam procurando por ele e Sylvia em Innsbruck. Era inútil sonhar em irem para um hotel. Uma complicação adicional insinuou-se na mente de Lewis. Para que toda a aventura não terminasse em desastre, ele precisava encontrar um meio de se comunicar com Karl e o professor.
com os olhos fixos na tela, Lewis recorreu a toda a sua capacidade de concentração. Por um acaso insólito, o filme mostrava a vida ao sol quente de uma ilha do Pacífico. Bastou isso para estimulá-lo à ação. Inclinando-se para Sylvia, sussurrou:
- Pode ficar sentada sozinha aqui por algum tempo? O lugar é bastante seguro. Quero sair para dar uma olhada.
Ela lançou-lhe um olhar rápido; depois, tornando a fitar a tela, balançou a cabeça em sinal de assentimento.
Lewis hesitou, desejando dizer algo mais, ansiando por um pouco de ligeira fluência de fala. Mas, novamente, parecia não haver coisa alguma que pudesse dizer. Acabou se levantando e saiu do cinema.
A chuva se convertera agora em nevasca. com um rápido olhar para um lado e outro da rua, Lewis levantou a gola do casaco e afastou-se decidido. Sabia que corria um grande risco com o que estava prestes a fazer. Mas era um risco que tinha de assumir. Estava à procura da agência dos correios.
A agência ficava na rua principal. Mantendo a cabeça baixa, Lewis entrou no prédio. Foi para uma das pequenas divisões na parede do lado e escreveu um telegrama para Heinrich, na estalagem da Estação, em Làchen. Nesse telegrama, em que não se comprometia de forma nenhuma, Lewis dizia:
CHEGAMOS BEM. POR FAVOR INFORME AMIGOS PARA SE ENCONTRAREM CONFORME COMBINADO. ENVIANDO A VOCÊ ÓTIMO PRESENTE.
Lewis sabia que Heinrich estava favoravelmente disposto para com ele e que a promessa de uma recompensa estimularia mais ainda seu interesse. Mesmo que a mensagem se extraviasse, isso não poderia causar qualquer embaraço. Lewis experimentou um mau momento ao entregar o telegrama no balcão - mas foi uma moça com ar sonolento que o recebeu. Ela agiu com uma apatia mecânica. com uma sensação de realização, ele saiu, apressado para a rua.
Sua parada seguinte foi numa loja de roupas. Comprou uma valise de fibra, um roupão grosso, uma suéter, um cachecol de lã e duas capas. Pôs ali mesmo a capa maior. E guardou as outras coisas na valise.
Até agora, ao que tudo indicava, seus movimentos não haviam despertado qualquer suspeita. Animado, ele tratou de executar a parte mais difícil do que planejara. Carregando a valise e evitando as ruas de grande movimento, procurou a parte mais sossegada da cidade. Vagueou pelas ruas vazias talvez por uns quinze minutos, examinando atentamente as fachadas das casas. Por fim encontrou uma fileira de casas despretensiosas, a maioria das quais exibia na janela da frente o aviso: ALUGAM-SE QUARTOS. Escolheu uma, no meio da fileira. E no minuto seguinte estava batendo à porta.
Houve uma breve espera. Depois uma mulher abriu a porta, uma mulher gorda, de meia-idade, com um rosto afável.
- Boa noite - disse Lewis, exibindo o seu comportamento mais persuasivo. - Tenho a honra de falar com a própria dona da casa? Eu queria alugar dois quartos. Para mim e minha irmã.
- É mesmo?
A mulher olhou um tanto desconfiada para a valise, a figura encharcada e um tanto enlameada de Lewis.
- Somos americanos - explicou ele. - De férias na Áustria. O resto de nossa bagagem está na estação. Esse tempo horrível tornou tudo difícil. Minha irmã ficou esperando num café enquanto eu vejo se arranjo alojamentos para nós.
- Americanos - repetiu ela. - Vocês têm passaportes?
- É evidente que sim.
Sorrindo, Lewis apresentou seu passaporte. Enquanto a mulher o examinava, com uma expressão de patente ignorância, ele acrescentou em tom jovial:
- Minha irmã também tem o dela, é claro.
- Mas é claro. - O rosto obtuso da mulher relaxou. Ela ofereceu um sorriso de resposta e Lewis compreendeu, exultante, que fora aceito. - Já, já, tenho dois bons quartos. Mas tem de pagar uma semana adiantada. É o meu costume. Gostaria de ver os quartos?
- Certamente.
Lewis entrou na casa e seguiu a mulher até o andar de cima. Ela mostrou-lhe dois quartos limpos e agradáveis. Lewis logo demonstrou sua aprovação, pagou os trinta xelins que a mulher exigiu e declarou que ia buscar a irmã.
Agora que o dinheiro estava em suas mãos, a mulher viu suas últimas dúvidas desaparecerem. Contemplou Lewis com uma compaixão bem maternal.
- Está bastante encharcado, meu pobre rapaz. Acenderei um fogo. E deve tomar um bom banho quente.
- Além de um bom jantar - sugeriu Lewis.
- Sem dúvida - respondeu a mulher, concordando com um vigoroso aceno de cabeça. - Vai conhecer as virtudes da minha cozinha.
Desceram a escada juntos. Ao se encaminhar para a porta, Lewis acrescentou:
- Voltarei dentro de vinte minutos.
De novo ela aquiesceu com a cabeça, e retirou-se para a cozinha.
Lewis seguiu para o cinema com renovada esperança.
Haviam superado pelo menos as dificuldades iniciais, encontrando alimentação e abrigo para aquela noite. Estariam relativamente seguros naquela pensão obscura. E no dia seguinte teriam de enfrentar nova partida.
Ele tornou a entrar no cinema. A princípio não conseguiu divisar Sylvia e seu coração disparou. Foi então que a viu empertigada, na mesma cadeira, como uma sentinela de vigia. Deslizando, foi acomodar-se no lugar ao lado dela.
- Já acertei tudo - sussurrou Lewis. - Esperaremos cinco minutos, a fim de não atrairmos atenção. Depois sairemos juntos.
Sylvia voltou-se para ele, com um sorriso triste a contrair-lhe os cantos dos lábios.
- Precisamos mesmo sair tão cedo? Só assisti ao programa três vezes.
Quando chegaram à pensão, Lewis descobriu, satisfeito, que a senhoria cumprira a promessa. O fogo estava aceso nos dois quartos. No cómodo maior havia, arrumada, uma mesinha redonda, coberta com uma toalha branca e talheres simples, o que, de certa forma, parecia prometer uma refeição substancial.
Talvez devido à percepção da existência da porta de comunicação entre os dois aposentos, um silêncio embaraçoso pairou desde o início entre ambos.
Lewis rompeu o silêncio com uma brusca determinação:
- A primeira coisa que você tem a fazer é tomar um banho quente. Mas, por favor, não demore. Depois vista o roupão para o jantar. O momento não é oportuno para convenções idiotas. Não quero ter um caso de pneumonia nas mãos.
Lewis falou deliberadamente em tom incisivo, julgando que era a melhor maneira de obter a aquiescência de Sylvia. Ele estava alarmado com a possibilidade de Sylvia contrair uma forte gripe. Contudo, se esperava alguma oposição da parte dela, não encontrou nenhuma. Sylvia não fez qualquer protesto, mas juntou suas poucas coisas em silêncio e deixou o quarto.
Depois que ela se retirou, Lewis foi para seu próprio banheiro, tirou o casaco e o colete encharcados, despiu a camisa e enxugou-se vigorosamente com a toalha diante do fogo. Vestiu então a suéter que comprara e sentiu-se melhor. Acostumado como estava a permanecer durante longas horas num passadiço encharcado pelos constantes borrifos de água, esta recente exposição à chuva apenas viera estimular a sua já sólida vitalidade.
Cerca de dez minutos depois ele ouviu Sylvia abrir de novo a porta do quarto, ouviu a voz da senhoria numa conversa solidária, ouviu os ruídos do jantar sendo servido. Em seguida fez-se silêncio. Lewis esperou um momento, depois bateu à porta. Um segundo após a voz de Sylvia convidou-o a entrar. Ele abriu a porta, mas permaneceu no limiar.
Ela estava de pé junto a lareira, envolta pelo áspero roupão que ele lhe comprara. Sua palidez proporcionava-lhe uma beleza virginal e surpreendente. Parecia completamente revigorada e aquecida, os cabelos arrumados, os olhos não mais cansados.
- Assim está melhor - murmurou Lewis. - Muito melhor. E imagino que agora você quer ficar sozinha. Levarei meu jantar para o outro quarto.
Ela corou intensamente.
- Isso seria bobagem. Já está tudo arrumado aqui.
Lewis hesitou por um instante, mas acabou entrando no quarto. Esperou que ela se acomodasse para sentar-se também. Iniciaram a refeição em silêncio. A sopa estava excelente, espessa e quente, a autêntica sopa camponesa da região, provocando um calor intenso em ambos. Por uma ou duas vezes, os olhos de Sylvia ergueram-se na direção de Lewis, mas sempre se afastavam diante da imobilidade da expressão dele. Por fim, ela sentiu-se compelida a falar:
- Foi maravilhoso de sua parte encontrar este lugar. - As palavras saíam com dificuldade, eram desajeitadas e banais, mas a gratidão nervosa acrescentava-lhes uma importância mais profunda. - Não sei como lhe agradecer... Oh, jamais poderei agradecer-lhe de modo suficiente.
Ela parou de falar de repente, esfarelando, nervosa, o pão. Lewis não respondeu logo. Estar a sós com ela, em circunstâncias de tal intimidade, era mais do que enervante. Além disso, durante todo aquele dia, seu conhecimento da impostura de Sylvia lhe corroera a própria alma. Agora que todo o perigo imediato passara, ele encontrava uma estranha e deformada satisfação em feri-la... e ferir a si mesmo. Respondeu com um tom de indiferença:
- Já lhe disse antes que não há necessidade de me agradecer. Tenho o maior prazer em fazer qualquer coisa que venha ajudar seu pai. Eu não poderia ficar de braços cruzados vendo um inocente sofrer. - Neste momento, Lewis viu Sylvia morder de repente o lábio. Desviando os olhos, ele continuou: - Eu não me importo nem um pouco com essa caçada. Mas deve ser terrível para você... essa existência de perseguida... depois da vida sossegada que levava em Heidelberg.
Houve uma pausa. Sylvia tornara-se muito pálida. com grande força de vontade, ergueu seus olhos e fitou os de Lewis.
- Eu não vivi em Heidelberg.
- Não?
Lewis afetou surpresa. Ela continuou, com firmeza:
- Vivi sobretudo em Paris. E durante os últimos anos estive lá estudando arte.
- Ah, uma estudante de arte! Que coisa encantadoramente romântica!
Sylvia ficou ruborizada com a ironia. Mas, se bem que sua voz tremesse, respondeu sem vacilar:
- Não é tão romântico como se pode imaginar. Acho que me falta talento. Eu tinha muito pouco dinheiro. Apenas o que conseguia ganhar em trabalho de propaganda, desenhos para cartazes e coisas assim. E descobri que é um trabalho extremamente árduo.
- Você me surpreende. Peço que me perdoe, mas eu pensei que seu pai, com um salário de professor universitário, lhe desse uma mesada tranquila.
Ela estava agora mais pálida do que nunca.
- Por mais que eu o ame, nunca aceitei qualquer dinheiro de meu pai.
Eles se fitaram por um momento de revelação e surpresa. De repente, no meio da tensão reinante, houve uma batida na porta. A senhoria entrou, o rosto amável e brilhante, carregando uma bandeja diante do peito amplo. Ela sorriu-lhes com um interesse gentil.
- Gostaram da minha sopa? Ótimo! Fico satisfeita. E agora tenho um mocotó de vitela, preparado à moda bávara. Um prato excelente! - Trocou os pratos ruidosamente e depois acrescentou: - Ah, pobres coitados... chegaram completamente encharcados e famintos! Mas já estou acostumada a isso. Recebo muitos visitantes que descem das montanhas com qualquer espécie de tempo. Muitos turistas hospedam-se aqui. Por vezes até aqueles que fazem excursões a pé. Contudo, sempre fico feliz com pessoas simpáticas. E dá logo para perceber que vocês são ótimas pessoas! - Após colocar os pratos na mesa, ela ficou esperando que os dois começassem a comer, estudando-os com os olhos pretos e faiscantes. - Vocês não são lá muito parecidos, se bem formem um belo casal assim mesmo. Quem não souber que vocês são irmão e irmã imaginará logo que são namorados.
- Ela pôs as mãos nos quadris, jogou a cabeça para trás e riu do próprio absurdo. - E agora provem a minha vitela e depois me digam se não é mesmo boa.
- É ótima - respondeu Sylvia, a voz tensa.
Depois que a senhoria se retirou, Lewis fez um gesto irónico de pesar.
- Receio que você tenha achado que a velha se mostre um tanto embaraçosa. Fui obrigado a lhe contar aquela história, caso contrário não nos teria alugado os quartos. Mas é um parentesco apropriado. Você acha que Karl se importará?
- Não.
Ela forçou a resposta através dos lábios ressequidos.
- Deve ser uma fonte de pesar para você que ele não esteja aqui no meu lugar.
- Acha mesmo?
- Por que não? - Lewis sorriu. - Vocês se amam. E essa é a receita ideal para uma aventura assim.
Sylvia manteve-se em silêncio. Seu rosto tornara-se outra vez tenso e pálido. À visão daquele pálido semblante, Lewis foi dominado por uma intensa compaixão. Por que pensara em magoá-la daquele jeito? Abandonando sua ironia amarga, ele comentou com voz serena:
- Arrumaremos um carro amanhã. Não deve ser difícil conseguir um de segunda mão nesta cidade. Seguiremos para Breintzen por estradas secundárias. com um pouco de sorte, não haverá nada que nos impeça de chegar lá ao cair da noite.
Mas Sylvia não queria aceitar aquela mudança de assunto. Nem seus olhos se desviaram do rosto de Lewis. Umedeceu os lábios pálidos. Por fim, como se tomasse coragem para uma decisão de suma importância, cerrou as mãos e declarou com voz estranha:
- Há uma coisa que preciso lhe dizer. Mas, primeiro, quero fazer uma pergunta: já pensou no que lhe acontecerá se formos apanhados nesta... nesta aventura?
- Não seremos apanhados.
- Podemos ser. Esta é uma das coisas que compreendo melhor do que você. Sei o quão desesperadamente estão querendo agarrar meu pai.
Lewis respondeu em tom jovial:
- Não vamos falar sobre isso agora.
- Mas devemos falar.
A voz de Sylvia tornara-se rouca, próxima de seu limite máximo de resistência. Por um momento pareceu que ela ia ceder. Contudo, forcejou por continuar, fitando Lewis nos olhos:
- Meu pai não é o que você imagina. Não é um fugitivo político, mas sim um ladrão. - Lewis ficou imóvel. Ela acabara lhe contando, por sua livre e espontânea vontade. Dentro dele aflorou uma profunda e secreta alegria. Mas nada transpareceu em sua expressão enquanto Sylvia continuava: - Tudo não passa de um embuste - Ela falava depressa agora, um pouco histérica, sem controle. - Mas não permitirei que continue assim por mais tempo. Você não imagina como detestei e desprezei a mim mesma por ter guardado silêncio. Fui obrigada a isso pelo acidente de sua chegada e porque amo meu pai. Tencionei revelar tudo uma dúzia de vezes. Mas, quando olhava para ele, descobria que não podia. Sei que ele é um fraco e imprestável. Mas, apesar de escroque, é um homem inteiramente desamparado.
E é meu pai. Se fosse metido numa prisão daqui, nunca mais sairia vivo. Mas tudo isso não tem mais importância agora. Há limites além dos quais não posso ir, além dos quais prefiro vê-lo morto e morrer também. Cheguei a um limite assim agora. Não posso continuar a depender de sua bondade e decência com base numa mentira vil e horrível. - Ela respirou fundo, quase soluçando, depois continuou apressadamente: - Agora já lhe contei tudo. Você deve ir embora. Não será difícil para você durante a noite. Encontrarei o caminho para Breintzen sozinha. Esquecerá em breve que já me conheceu ou a meu infeliz pai.
Seguiu-se um silêncio prolongado. Depois Lewis inclinou-se e pegou a mão de Sylvia. com um sorriso estranho e terno ele respondeu:
- Tudo que me pede é impossível. Não posso esquecê-la, Sylvia. Nem posso permitir que você vá sozinha para Breintzen.
Ela fitou-o atordoada, os olhos enevoados por lágrimas não derramadas. E balbuciou:
- Mas depois de tudo o que contei?
- Eu já sabia.
Houve uma pausa ainda mais prolongada. Aturdida, Sylvia disse:
- Sabia? E mesmo assim quis continuar?
- Claro.
- Por quê?
Sylvia fez a pergunta num sussurro quase inaudível. Lewis respondeu calmamente:
- Porque eu a amo.
Mais uma vez um silêncio tenso se abateu sobre o quarto. Os lábios de Sylvia tremiam. E mal dava para se ouvir sua voz:
- Mas não percebe que não adianta? Eu dei minha palavra a Karl. Era... era necessário.
- Deu sua palavra por que ele a exigiu em troca da ajuda a seu pai?
- Isso mesmo. Mas eu nunca poderia voltar atrás. Uma enorme onda de alegria percorreu Lewis. É claro que ela não amava Karl!
- Compreendo. E a ajuda que prestei a você não exige nada em troca.
Ela abaixou a cabeça. As lágrimas, por tanto tempo contidas, desceram-lhe pelas faces. Ao ver que Sylvia chorava, Lewis sentiu-se angustiado e disse em voz baixa:
- Por favor, não chore. Isso me aflige mais do que qualquer outra coisa.
Como resposta, ela encostou a cabeça na mesa e chorou ainda mais amargamente. Quando ele lhe afagou a mão com ternura, tentando confortá-la, Sylvia soluçou desesperada:
- Não me toque, por favor. Só peço que me deixe sozinha. Não havia mais nada a fazer. Lewis esperou um pouco, contemplando-a com olhos perturbados. Depois, como sua presença parecesse aumentar o sofrimento de Sylvia, levantou-se e saiu do quarto.
A manhã seguinte trouxe uma mudança de tempo. O dia amanheceu claro e suave, com a promessa de muito sol. Lewis, que tivera um sono irrequieto, acordou cedo. Continuou deitado na cama por algum tempo, consciente da presença de Sylvia no quarto ao lado, revisando rapidamente os acontecimentos do dia anterior. A confissão de Sylvia removera um pesado fardo de sua mente. Experimentava um alívio intenso. Estava pronto para a aventura, para qualquer coisa.
Saiu por fim da cama e foi abrir a janela, pensando nas perspectivas do dia. Súbito, enquanto estava parado ali, sua expressão se alterou, tornou-se fixa e dura. Na rua lá fora, não exatamente em frente, mas na esquina um pouco abaixo, havia três homens empenhados numa conversa concentrada: o bilheteiro da estação de Innsbruck, um guarda de uniforme e, por último, uma presença surpreendente - Herr Oberholler, do Gasthof Hohne.
À visão de Oberholler, o rosto de Lewis passou da incredulidade à total consternação. A lembrança de sua recente conversa com o homenzinho, da advertência de Oberholler, atravessoulhe a mente como um relâmpago. Ele compreendeu, tarde demais, que Oberholler não era um caixeiro-viajante, mas sim um detetive.
No exato momento em que ele os observava, os três homens se separaram. Oberholler, comandando as operações, transmitiu as instruções finais e depois se afastou sozinho. O guarda e o bilheteiro permaneceram na rua. E começaram a andar pela calçada, a cerca de cinquenta metros de distância.
Lewis continuou a observá-los mais um pouco; em seguida, saiu da janela resmungando uma palavra de autocensura. Imaginara-se a salvo de qualquer perseguição, co-inquilino de um tranquilo paraíso. Em vez disso, a polícia sabia, ou pelo menos suspeitava, que Sylvia e ele se encontravam naquela área, naquela rua, talvez mesmo naquela casa. Era um golpe difícil de absorver tão cedo. E Oberholler! Qual seria a manobra do detetive, Lewis não podia imaginar. Mas era indubitável que, com sua estranha protelação, se tratava de uma manobra profunda e sutil.
Impelido à ação pela compreensão de sua própria incompetência, Lewis consultou rápido o relógio. Apenas oito horas. com um pouco de sorte poderia encontrar uma garagem aberta. Devia, a qualquer custo, tentar obter um carro. Sem isso, nada poderiam fazer. Pegando o chapéu, ele saiu do quarto de maneira cautelosa e desceu a escada na ponta dos pés. Ouviu ruídos da senhoria, que se movimentava na cozinha. Atravessando rapidamente o corredor, chegou à porta dos fundos da casa. Estava destrancada. No instante seguinte Lewis descia, apressado, um caminho estreito e pulava o muro baixo do quintal. Descobriu-se numa travessa cheia de latas de lixo. Era mais um beco do que uma travessa, um meio de acesso para os vendedores e os lixeiros. Percorrendo-o depressa, Lewis emergiu no lado leste da cidade. Procurando por ali, rejeitando um ou dois estabelecimentos porque chamaria muita atenção, ele acabou encontrando uma garagem que, embora fosse relativamente grande, dava a vaga impressão de que já conhecera melhores dias e se encontrava agora em crise. Decidido, Lewis entrou nela.
Encontrou apenas um homem metido num macacão sujo, lavando um velho Fiat. Mas o homem, que exibia um porte de soldado apesar do traje andrajoso, não lhe deu a menor atenção, de acordo com o costume dos garagistas do mundo inteiro. Contudo, ele condescendeu por fim em levantar os olhos.
- Posso falar com o proprietário? - perguntou Lewis.
- Para quê?
A indagação foi incisiva.
- Quero um carro.
Os olhos do homem contemplaram Lewis de alto a baixo. Para demonstrar que não estava interessado, pegou a mangueira e dirigiu o jato de água contra o velho Fiat. Em seguida, disse com voz lacónica:
- Sou o proprietário. É o que posso garantir. Mas não vendo carros. Não vendo coisa alguma. Se quer latas reluzentes ou caixas de tinta, procure a casa dos Irmãos Schmitz, que fica logo depois da esquina. Eles vendem esse tipo de brinquedo. Eu sou apenas um mecânico. Um mecânico de verdade. Mas não compensa - ele fez uma pausa, correndo os olhos em redor, com um brilho de ódio - com este governo.
O próprio tom do homem denunciava o rebelde.
- É uma pena - disse Lewis, com peculiar ênfase. - Preciso muito de um carro. E posso pagar. Não novo, mas um carro já registrado, em pleno uso, um carro bom e veloz, como só um mecânico de verdade poderia oferecer.
- Ahn... - o proprietário empertigou-se, com um interesse involuntário. - Então é isso?
- Exatamente.
O homem baixou a mangueira e também a hostilidade. Efetuou uma inspeção final em Lewis... e aceitou-o.
- Tenho um carro - disse ele em tom cauteloso. - Mas custaria mais dinheiro do que você possui.
- Não creio... não se for o carro certo.
- O carro certo! - A voz do homem era irónica. - Poderá levá-lo de graça se encontrar outro melhor. Dê uma olhada.
- Ele caminhou até um galpão de pintura descascada e abriu as portas. Lá dentro havia um carro baixo e comprido, de um preto esmaecido, o estofamento de couro velho e rachado, mas com o chassis perfeito, um enorme e sinistro instrumento de velocidade. O proprietário contemplou-o com evidente orgulho. - Aí está o meu carro. Um filho meu. Eu mesmo o fiz. Estrutura de Mercedes, motor de avião, dois carburadores. Na guerra - ele virou-se para o lado e cuspiu - eu estava na aviação. Conheço motores.
E este está tão bem afinado que toca qualquer música. Ele abriu o capo, revelando um motor em condições impecáveis, o cobre e o níquel brilhando. - Já fiz duzentos quilómetros por hora com este carro. O preço para você é de dez mil xelins. Sem dizer uma só palavra, Lewis tirou a carteira do bolso, pegou dez notas e entregou-as ao homem. Houve uma breve pausa. O homem, um antigo às da guerra, ficou olhando para as notas. Um ligeiro rubor espalhou-se por suas faces. - Isto é dinheiro de verdade. Não vejo uma coisa assim há muito tempo. Detesto aceitá-lo. Mas o carro é seu. Peço apenas que não se esqueça de uma coisa - o homem falava agora num tom muito sério, enquanto dobrava as notas - uma coisa de considerável importância: se for encontrado com este carro, não o comprou de mim, Roubou-o.
- Está certo, eu o roubei. E agora, por favor, dê a partida. Estou com pressa.
O homem pegou, na traseira do carro, uma manivela comprida e abaixando-se junto à parte dianteira, ajeitou-a e fê-la girar como se quisesse derrubar uma montanha. O motor pegou, com uma terrível explosão. A garagem parecia tremer até as fundações.
- Está vendo? - indagou o ex-proprietário do carro.
- Estou vendo - respondeu o novo proprietário. Lewis estendeu a mão, apertou a do mecânico e depois foi sentar-se ao volante. O simples contato do pé com o acelerador proporcionou-lhe uma sensação de imenso poder. Passou a engrenagem. Ao sair da garagem, o homem gritou-lhe:
- Tome cuidado, meu amigo. Eu não gostaria que você morresse. Nas curvas ele é como um pássaro. Mas se não ficar bem atento nas estradas molhadas ele o matará.
Lewis levou apenas um minuto para chegar à viela nos fundos da casa. Avançando pela passagem estreita, foi parar atrás do muro, tão discretamente quanto possível, e desligou o carro.
Um minuto mais e ele atravessou a entrada dos fundos, retornando a seu quarto e correndo até a janela. Os dois homens ainda se achavam postados lá fora. Era difícil calcular quanto tempo mais eles continuariam parados ali, antes de tentarem alguma ação mais drástica. Já passava de oito e meia. Sylvia devia com certeza estar acordada. Ele voltou-se e foi bater à porta da moça. Ela abriu no mesmo instante, já completamente vestida.
- bom dia. - Lewis tentou manter uma atitude descontraída. - Dormiu bem?
- Muito bem, obrigada.
Em contraste com a emoção da noite anterior, Sylvia estava formal, de olhos secos e austera.
- Já tomou o café da manhã?
- Não - Sylvia fez uma pausa. - Há dois homens parados lá fora... acho que são da polícia. Tiraram meu apetite.
Lewis sorriu debilmente.
- Não deixe que aqueles idiotas a alarmem. É nosso amigo Oberholler que apareceu... de uma maneira muito original. Deve desconfiar que estamos numa das pensões daqui. Tenho a impressão de que ele foi buscar reforços para vasculhar toda a área. Portanto, se você está pronta, talvez seja melhor partirmos logo. Prometo-lhe o café da manhã no campo.
- Estou pronta - murmurou Sylvia com ar sombrio. Lewis levou apenas um minuto para escrever um bilhete à senhoria, lamentando a partida abrupta e agradecendo todas as gentilezas dela. Sentia um pouco de remorso por aquela cortesia escassa, mas prometeu a si mesmo que voltaria numa outra ocasião para uma reparação adequada. Deixou o bilhete sobre a mesa, de maneira bem visível. E ambos tomaram o atalho que levava até o carro. Quando saíam pelos fundos ouviram uma batida alta e firme na porta da frente. Não demoraram nada, pensou Lewis. Ele ajudou Sylvia a passar por cima do muro, ajudou-a a entrar no carro e girou a manivela da partida.
Fosse porque ele não conhecia o jeito adequado, fosse porque o motor era irracionalmente difícil de manobrar, o fato é que Lewis girou e tornou a girar a manivela sem qualquer resultado. Por um momento angustiante ele pensou que aquele maquinismo se recusaria a pegar. Fez força outra vez e mais outra ainda. Então, quando uma máscara de suor frio lhe aflorava ao rosto, o motor disparou de repente, como uma bateria de morteiros.
Ofegando, Lewis sentou-se ao volante e deu a partida. O carro disparou como um foguete.
Lewis não conhecia a planta do local. Sua ideia inicial era sair de Innsbruck. Mas, em sua ansiedade por se afastar o mais depressa possível de Oberholler, cometeu um erro. Entrando por uma rua transversal, que acreditava levar para fora da cidade, descobriu-se súbita e inesperadamente na rua principal. Não havia possibilidade de voltar. Ele foi obrigado a seguir o lento fluxo de veículos pela rua movimentada. E não demorou muito para que ficasse retido num engarrafamento.
Lewis praguejou baixinho. O carro preto e baixo chamava muita atenção; e mesmo em marcha lenta o motor emitia um ruído que atraía os olhares de quem passava. Sem chapéu, de suéter e capa, sentiu-se o alvo de alguns olhares curiosos. Sylvia prendera um lenço em torno dos cabelos esvoaçantes. Juntos, constituíam um espetáculo que dificilmente passaria despercebido por muito tempo.
A espera pareceu interminável. Mas, depois de um considerável suspense, livraram-se do engarrafamento, avançaram devagar por alguns minutos e afinal saíram para a estrada.
Era uma sinuosa estrada de montanha que, na maior parte de seu percurso, passava por entre florestas de pinheiros. Por cerca de vinte quilómetros Lewis dirigiu velozmente, embora sem calcar o acelerador até embaixo, passando por diversas aldeias pequenas, todas do mesmo tipo de beleza de cartão-postal. De repente, eles depararam com uma cidadezinha com um mercado e lojas bem abastecidas. Sem desligar o motor, Lewis encostou junto a uma das lojas maiores e entrou. Reaparecendo pouco depois, atravessou a praça e encaminhou-se para uma casa de laticínios. Ao sair, trazia os bolsos de sua capa de chuva estufados. Voltou ao carro e tornou a sentar ao volante, como se nunca tivesse saído dali. Ao soltar a embreagem e dar a partida, disse:
- Eu lhe prometi o café da manhã no campo. Pois você o terá daqui a pouco. E, lamento muito, mas leite, queijo e biscoitos foi o melhor que pude conseguir.
Tensa e imóvel ao seu lado, Sylvia censurou-o resolutamente:
- Não devia ter parado para isso. É bem provável que estejam nos seguindo.
- De qualquer forma eu precisava de um mapa, sem o que talvez ficássemos rodando em círculo para acabar voltando, por volta do anoitecer, a Innsbruck e ao homem que adotou o nome de Oberholler.
- Herr Oberholler? - Sylvia repetiu o nome no mesmo tom categórico. - Falava sério quando se referiu a ele esta manhã?
- Claro que sim. O pequeno caixeiro-viajante agora está exibindo uma nova linha de mercadorias.
Um rubor lento e envergonhado espalhou-se pelas faces de Sylvia. Ela hesitou por um instante e depois disse, determinada:
- Noticiou-se que a Equitativa de Viena havia contratado um famoso detetive particular para encontrar meu pai.
Lewis podia perceber o quanto doía a Sylvia falar sobre aquilo. Em tom jovial, ele respondeu:
- É impossível ter certeza, mas acho que é nosso amigo.
- Não consigo entender! - Consternada, Sylvia comprimiu a mão contra a testa. - Por que ele não nos prendeu ou tentou deter-nos de alguma forma quando estávamos no Gasthof?
Lewis sorriu com ar sombrio.
- Perguntarei isso a ele quando nos encontrarmos. - Sylvia tornou a ficar em silêncio. Seu ânimo, todo o seu comportamento, mostrava-se naquele dia distante, demasiado tenso. Ela parecia propensa a reprimir cada palavra, cada gesto. Lewis sentia isso com mais intensidade à medida que o dia ia passando. Ele parou alguns quilómetros adiante, à beira da estrada, numa pequena clareira num bosque. Acomodaram-se, para o café da manhã, sobre as agulhas secas dos pinheiros. E ali ele perguntou:
- Eu a ofendi de alguma forma? Pensei que tudo estivesse acertado entre nós.
- E está.
Os olhos de Sylvia, tal como a resposta, esquivaram-se de Lewis.
- Então por que se comporta de maneira tão estranha, tensa e fria?
Ela corou, depois empalideceu, e sua garganta contraiu-se de maneira convulsiva. Mas fitou-o com firmeza.
- Lamento muito se me acha estranha. Sabe que sou para sempre uma amiga agradecida.
Não havia mais nada que Lewis pudesse dizer, pois o significado oculto das palavras de Sylvia provocou um estranho aperto em seu coração. Ele abandonou por completo o assunto e, lentamente, desdobrou no chão, diante deles, o mapa que havia comprado. Depois de estudá-lo, pôs o dedo sobre o ponto que indicava o lugar em que se achavam naquele momento.
- Esta é a nossa posição atual. Um pouco mais adiante fica a cidadezinha de Garsbad. E aqui está Breintzen. Fica apenas a cem quilómetros de distância em linha reta. Se fizermos este desvio, como medida de precaução - o indicador de Lewis percorreu uma fina linha vermelha de estradas intermediárias - a distância pode chegar a duzentos quilómetros. Podemos cobrir o percurso facilmente em quatro horas. com toda a probabilidade, seu pai não chegará antes do anoitecer. com um pouco de sorte, estaremos em Breintzen antes dele.
Sylvia concordou com um aceno de cabeça. E depois, com sua voz incisiva e controlada, disse:
- Enquanto isso, você não está comendo.
- Eu me recuso a comer enquanto você não comer também. Sylvia cedeu, por fim, com uma sombra de sorriso. Juntos, tomaram o leite, comeram o queijo e os biscoitos, voltando ao carro assim que terminaram. Ali, Lewis entregou o mapa a Sylvia, a fim de que ela pudesse orientá-lo pelo caminho. E de novo partiram.
O carro avançou, rápido, pela estrada vazia. Ali, nas terras baixas, já havia no ar uma insinuação de primavera. O vento que roçava por seus rostos era quase lânguido. Embora eles pouco falassem, Lewis tinha consciência de haver um persistente sussurro de contida emoção. Sylvia sentara longe dele, no seu canto. E Lewis nem ao menos se atrevia a tocar-lhe a mão. Contudo aquela corrente fluida, vibrante, existia entre os dois. E nem todo o controle determinado de Sylvia era capaz de extingui-la.
Evitando as cidades maiores, eles seguiram pelas terras pastoris de Arlenne e Brucken. Pararam num pequeno posto de gasolina nos arredores da aldeia de Halsen, enchendo o tanque com sessenta litros. Sua marcha uniforme e sem incidentes e o zumbido do motor haviam embalado os dois até um ponto de quase sonho. Subitamente, porém, ao passarem pelo vale do Laar, Sylvia inclinou-se para Lewis e disse:
- Acho que há um carro nos seguindo.
Lewis empertigou-se no assento, os olhos esquadrinhando o espelho retrovisor. Nada estava visível na estrada por trás deles. Sylvia apressou-se em acrescentar:
- Não vi nada, mas durante a última meia hora ouvi o barulho de um carro.
- Pode ser o eco de nosso motor.
Ela sacudiu a cabeça, demonstrando a sua dúvida. Lewis pôs-se a escutar com toda atenção. Mas nada pôde ouvir além do barulho de seu próprio carro. Talvez houvesse um ronco indistinto, mas ele não podia ter certeza disso. E foi nesse estado de incerteza que chegaram a um longo declive. Lewis desligou logo o motor. Enquanto desciam pela encosta em silêncio, ele procurou escutar atentamente. E por trás deles, acima do ruído de seus próprios pneus, chegava até eles, nítido e inconfundível, o barulho de um motor de automóvel.
Lewis trocou um rápido olhar com Sylvia.
- Há de fato um carro. Provavelmente de algum fazendeiro local. Mas é melhor nos certificarmos disso.
Ele tornou a ligar o motor, mas reduziu a velocidade para apenas trinta quilómetros horários. Ainda assim não havia qualquer sinal do carro que os seguia, embora aplicando bem o ouvido pudessem escutar-lhe o ronco abafado. Lewis reduziu a velocidade ainda mais, para apenas dez quilómetros horários. Mal ele havia feito isso e o outro carro, que de início também reduzira a velocidade, disparou pela curva e acelerou velozmente na direção deles. Não era nenhum caminhão de fazendeiro mas sim um carro oficial verde-escuro, com vultos oficiais também verde-escuros, visíveis atrás de seu próprio pára-brisa.
- Polícia! - exclamou Lewis.
Enquanto falava, calcou vigorosamente o acelerador. O carro preto disparou para a frente, como um cavalo esporeado. Em poucos segundos Lewis aumentou a velocidade para sessenta quilómetros horários e disparou com uma rapidez cada vez maior.
Mas o carro que os perseguia também era veloz. Agora que ele se mostrara, sua manifesta intenção não era seguir mas sim alcançar sua presa. E, ao mesmo tempo que aumentava sua velocidade para noventa quilómetros horários, ligava também uma sirene contínua que transformou o campo num charivari infernal.
Lewis cerrou os dentes com ar feroz. com aquele carro em seu encalço a situação tornara-se de novo perigosa. Tudo dependia da velocidade de seu carro, da palavra que o proprietário da garagem lhe dera. Ele apertou o volante com mais firmeza e acelerou até o ponto máximo. A reação do carro foi espetacular. A agulha do velocímetro foi avançando com regularidade em volta de sua órbita. Toda a estrutura do carro tremia como uma coisa viva. Mais veloz, cada vez mais veloz ele corria até que o vento do voo deles converteu-se num furacão e as árvores que flanqueavam a estrada não eram mais que um borrão passando como um relâmpago.
O carro da polícia ainda se manteve atrás deles no mesmo ritmo talvez por um minuto e meio. Depois foi gradativamente ficando para trás. Através da ventania que soprava junto de seus ouvidos, Lewis percebeu que o gemido da sirene começava a se desvanecer. Mas continuou a dirigir com a mesma velocidade vertiginosa. E se bem que a menor derrapagem ou o menor erro de julgamento pudesse matá-los, ele não se atrevia a reduzi-la. Sylvia estava sentada como uma estátua, sem mover um único músculo.
Por fim o carro da polícia estava fora de vista e sua sirene não era mais audível. Ainda dirigindo a grande velocidade, Lewis mantinha-se atento à estrada. Súbito, ele avistou uma encruzilhada à sua frente. Freando bruscamente, entrou na estrada secundária. Duas voltas fechadas e ele descobriu-se numa rede de trilhas sinuosas e estreitas, com margens altas e sebes nos lados. As trilhas avançavam emaranhadas por uma região desolada e pantanosa. E Lewis, embora ainda dirigisse com rapidez, sentiu-se momentaneamente satisfeito por poder perder-se nela, pois sabia que inevitavelmente a mesma coisa aconteceria com seus perseguidores.
Mas ele também sabia que Breintzen ficava para oeste. E, enquanto fazia voltas e desvios, dirigia-se com firmeza nessa direção.
Por volta das duas horas da tarde eles chegaram a uma placa no meio das sebes que indicava estarem a cinco quilómetros de Melkeburg. Lewis consultou o mapa. Melkeburg era uma cidadezinha à beira da estrada principal, a pouco mais de cem quilómetros de Breintzen. Dirigindo através do campo, pelos cálculos de Lewis eles não apenas se haviam livrado do carro da polícia como também encurtado o percurso em quase cinquenta quilómetros.
Lewis já dispunha de todas as informações de que precisava. Seguiu lentamente por entre os brejos até a beira de um campo dominado pelo mato, onde havia um galpão deserto. Conduzindo o carro para dentro deste, puxou o freio de mão e então permitiu-se relaxar. Virou-se para Sylvia e disse:
- com toda essa atividade policial, é melhor nos mantermos fora das estradas enquanto o dia ainda estiver claro. Dentro de umas duas horas deve escurecer. Até lá, ficaremos aqui, conversaremos, dormiremos, cantaremos ou faremos charadas um para o outro. Lamento que os biscoitos e o queijo tenham acabado. Poderiam ajudar.
Ainda mantendo a reserva que exibira durante o dia inteiro, Sylvia disse, com uma tristeza pensativa:
- É fácil enfrentar o perigo. Enfrentar e sorrir... isso já é mais difícil. E, se me permite dizê-lo, você dirige muito bem.
Lewis não podia dizer que sua jovialidade era simulada, adotada só para combater a disposição de ânimo que envolvia os dois. E tratou de mudar de assunto.
- O que você pensou quando andávamos tão depressa? Ela respondeu com tranquilidade:
- Apenas que, se fôssemos mortos, seríamos mortos juntos. Isso silenciou Lewis. Ele se pôs a procurar dentro do carro, na esperança de encontrar alguns biscoitos esquecidos. Mas não havia nenhum. Subitamente, porém, durante a busca, ele soltou uma exclamação. Encontrara uma velha gaita no porta-luvas. Mostrou-a a Sylvia, sorrindo.
- Não sabia que eu era músico, não é mesmo? E este é o meu instrumento. Seria muito aflitivo para você se eu tocasse um pouco?
Ainda fitando-o com uma expressão estranha, Sylvia sacudiu a cabeça.
com esse estímulo, ele pegou a gaita meio amassada, percorreu algumas escalas para experimentá-la, e então pôs-se a tocar suavemente os antigos cantos do mar que ouvira quando menino no castelo de proa dos navios do pai. Ele era um perfeito entendedor, tendo dominado aquela arte singela enquanto passava horas e horas insípidas em vários portos estrangeiros.
Ela escutou, sabendo em seu coração que Lewis tocava apenas para distraí-la, mas se deixando arrebatar pelas melodias antigas. Quando ele por fim acabou, Sylvia se achava um tanto abalada. Ela suspirou e murmurou:
- Deve ser maravilhoso estar num navio. - O pensamento simbolizava o seu anseio de fuga. - Viajar para terras estranhas, conhecer lugares distantes...
- Gosta do mar?
- Não sei. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo. - Ela foi dominada por um súbito impulso. - Minha vida nunca foi como a sua. Jamais conheci a liberdade e a paz de espírito. Exceto talvez quando era muito pequena e minha mãe ainda estava viva. Tenho levado uma existência precária, encerrada por muros altos. E às vezes nem sequer vejo as estrelas.
Ela parou de falar abruptamente, a mão pressionada contra a ilharga, como a sufocar o fluxo de confidência.
Lewis manteve-se em silêncio, pensando como a vida dela devia ter sido infeliz e difícil, deslocando-se na infância de um lugar para outro, sufocada pelo ar das cidades grandes, convivendo com pessoas de reputação duvidosa, tentando em vão preservar a sua jovem integridade, sempre receosa de algum novo aviltamento. Era como uma flor abrindo caminho por entre uma selva de ervas daninhas. Ele devia ajudá-la, não importando o quanto isso lhe custasse. E, mais uma vez, Lewis compreendeu que era esse o seu propósito, final e predestinado.
Estava quase escuro agora. Ele ligou o carro, tão suavemente quanto lhe foi possível, deu marcha à ré para sair do galpão e iniciou a última etapa da viagem.
Mantendo um ritmo firme, passou por Melkeburg e pegou a estrada para Breintzen. Embora nada tivessem comido desde a manhã, Lewis não se atreveu a entrar numa loja para comprar alguma coisa. Como já haviam conseguido chegar incólumes até ali, tendo a sorte de se livrarem de seus perseguidores, ele não tinha a menor intenção de tentar ainda mais a deusa volúvel da fortuna. Em Magsner, no entanto, ao passarem pela praça principal deserta, ele avistou uma máquina automática. Ali, com algumas moedas que encontrou nos bolsos, conseguiu chocolate e cigarros. Os cigarros eram horríveis, mas o chocolate apaziguou temporariamente a fome.
Depois, pouco antes das onze horas, subiram até o cimo da última colina e avistaram seu ponto de destino no vale que se estendia à sua frente. Breintzen não era uma cidade grande, mas à luz das estrelas exibia uma beleza medieval e quase mágica, com esguias flechas de torres que se juntavam nas proximidades da beira do rio largo, aléias calçadas com pedras arredondadas e serpenteando por entre as sombras escuras dos muros retos. Enquanto eles olhavam, um carrilhão ressoou e os sinos bateram forçados.
Desceram a encosta devagar e entraram na cidade. As ruas estavam desertas, as lojas fechadas, os cafés quase vazios. Era como se a cidade ainda estivesse sob o toque de recolher e todos os bons burgueses se encontrassem aconchegados em suas camas. Sem muita dificuldade, Lewis acabou alcançando a Robertsplatz, e de lá dirigiu-se para a Blumenstrasse. Parou diante do número 17.
- É esta a casa - disse ele com um ar algo sombrio. E agora vamos correr o risco com o fiel amigo de Steve, Herr Schwartz.
Deixando Sylvia no carro, Lewis atravessou a calçada e bateu à porta do número 17. Era uma casa antiga e exótica, meio loja meio residência, com frontões pontudos e grossas vigas de madeira. A porta, cravejada de tachões, parecia suficientemente espessa para resistir a um sítio. E uma antiga placa de ferro, pendurada em sua parte superior, anunciava: JOHAN SCHWARTZ, ANTIGUIDADES.
Durante vários minutos a batida de Lewis não obteve resposta. E então, quando ele já estava prestes a bater de novo, a porta foi cautelosamente aberta alguns centímetros. Uma criada espiou pela fresta.
- Herr Schwartz está?
- Está sim, senhor.
A voz da criada era trémula, assustada.
- Quero falar com ele. Houve uma pausa.
- São os cavalheiros que ele está esperando?
O coração de Lewis deu um solavanco de alívio. Ele apressou-se a dizer:
- Isso mesmo, minha boa jovem. Sou Herr Merrid. Diga a seu patrão que eu e a moça estamos esperando. E diga também que é urgente.
A criada lançou um olhar sobressaltado para Lewis, depois balançou a cabeça e desapareceu no interior da casa. Houve nova espera. Lewis olhava, ansioso, para um lado e outro da rua.
Súbito, ouviu-se o barulho de passos, e um homem idoso, encurvado e barbudo, observou-os da porta. Houve um instante de silêncio. Em seguida, num tom de melancolia resignada, dirigiu-se a ambos:
- Queiram entrar, por favor. Sou Herr Schwartz. Estava esperando por vocês.
Um minuto depois Sylvia e Lewis estavam no interior da casa. O corredor era escuro e recendia a umidade. A porta fechou-se atrás deles com o ranger de uma ponte levadiça. Dominado por uma sensação de segurança, Lewis estendeu a mão, agradecido.
- Não posso dizer o quanto estamos satisfeitos por encontrá-lo em casa, Herr Schwartz. É muita gentileza de sua parte receber-nos desta maneira.
- Não me agradeçam, por favor - respondeu o velho em tom grave. - Se os recebo é porque estou apenas agindo de acordo com as instruções que me deram.
Schwartz abriu uma porta interna e conduziu-os a uma salinha nos fundos. Ali a expressão de Lewis transformou-se de repente numa máscara de pedra. Sentados em bancos antiquados, com ar consternado, estavam Steve e Connie. E ao lado deles, fitando Lewis com um rosto inescrutável, estava o detetive, Oberholler.
No dia anterior, no Gasthof, quando Lewis não voltou de Làchen, Karl foi dominado por uma raiva intensa. Enquanto perambulava pelo lugar, com tempo de sobra para reconstituir os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, sentiu-se humilhado e enganado. Em especial, mortificava-o a lembrança da briga do lado de fora da cabana. Ele cerrou os punhos e flexionou os músculos, esquadrinhando o caminho que subia do vale.
- Maldito! - Karl repetia baixinho a todo instante. - Por que não volta logo?
A fim de aliviar sua suscetibilidade ferida e abreviar o período de espera, sentiu-se com direito a um drinque. Tomou um kummel e depois outro. E então, rapidamente, tomou diversos kúmmels, um após outro. Sentiu que o licor lhe fazia bem, restaurando seu senso de valores. Karl não bebia álcool com frequência, mas, quando o fazia, servia-se da bebida de maneira tão descuidada como se tomasse água.
Curvado sobre o copo junto à janela da sala de jantar, ele percebeu a presença de Fràulein Rudi no canto, quase obscurecida pelas sombras, contemplando-o um tanto pensativa.
- O que pensa que está fazendo? - perguntou ele.
- Estou pensando.
- Em que está pensando?
- Em uma coisa importante.
- Isso nada significa.
Ela sorriu o seu sorriso sereno e indefinível, balançando a cabeça - enquanto isso, uma figura esquisita e emaciada como uma marionete doente - E agora ela parecia mais abatida do que nunca.
- Ao contrário, significa muitas coisas. Não tenho praticamente nada para fazer estes dias. Talvez seja por isso que meus pensamentos se tornaram tão lúcidos. Ficaria surpreso se eu lhe contasse que estava pensando em você?
Karl soltou uma risada.
- Claro que não, Fráulein. De modo nenhum.
- Não me interprete mal. Eu pensava em como você é tolo. E que é uma pena que seja tão tolo.
- Como? - balbuciou Karl, aturdido.
- Por que você deveria sofrer tanto por uma mulher que não o ama?
A carranca de Karl, curtida pelo tempo, adquiriu um vermelho intenso.
- Isso é mentira!
- É a pura verdade. E você está fazendo com que ela também sofra.
Karl insultou-a. Por um momento, deu a impressão de que jogaria o copo vazio na cabeça de Rudi. Mas controlou-se, serviu-se de outra dose e disse, desdenhoso:
- Mais alguma coisa?
- Há, sim. Você está se embriagando. E logo num momento em que precisa de toda a sua percepção.
- É mesmo? - Ele fez uma careta. - E por que eu haveria de precisar de toda a minha percepção?
- Faça essa pergunta a si mesmo. Ou pergunte a Herr Oberholler, na próxima vez que o encontrar.
- Herr Oberholler? - repetiu Karl, atordoado.
- É claro que esse não é o nome dele - continuou Rudi, calmamente. Seu nome verdadeiro é outro. Ele é da polícia.
- Da polícia? - Karl parecia um papagaio. - Isso é outra mentira nojenta!
Rudi manteve-se inabalável.
- Já o tinha visto em Viena. Ele é importante. Um homem dos altos escalões. Eu poderia ter-lhe dado essa informação há vários dias, se você tivesse sido polido... ou mesmo um pouco agradável comigo.
Karl Edler fitou a moça com o rosto franzido, tentando ordenar seus pensamentos, tentando ler a mente de Rudi.
- Se é isso mesmo, então terei outra coisa para dizer a ele quando aparecer para o jantar.
- Ele não virá - informou Rudi, com serenidade. - Deixou o Gasthof depois do almoço para seguir seus amigos. Mas há outros policiais para tomarem conta daqui. Não sou cega, nem surda e nem muda. Sei o que você está tramando. No entanto, fica sentado aqui, bebendo. Em circunstâncias idênticas o americano alto não beberia.
- Dane-se o americano! - berrou Karl. - E dane-se você também! Não acredito em uma só palavra que sai dessa cabecinha mentirosa.
Ele levantou-se de um pulo do banco, de cara amarrada, e saiu da sala sem dizer mais nada.
Depois que ele se retirou, Fràulein Rudi sacudiu os ombros magros um pouquinho triste. Depois começou a tocar baixinho o seu amado fonógrafo. Uma hora passou, depois outra. Teve de jantar sozinha. A sala estava deserta. O casal Schatz fora embora dois dias antes. Além dela, não havia qualquer outro hóspede no Gasthof. Anton andava de um lado para outro como um fantasma nervoso. Ele nunca falava; era o homem mais silencioso do mundo. Mas havia alguma coisa em sua mente, atormentando-o.
Então, por volta das dez e meia, Heinrich apareceu chamando por Karl.
- Qual é o problema? - indagou Anton, torcendo os dedos compridos e ossudos até fazer estalar as articulações.
- Você saberá - respondeu Heinrich, significativamente e assumindo um ar importante. - Mas, primeiro, onde está Herr Edler?
Em resposta ao chamado de Anton, Karl retornou à sala.
Caminhava um tanto trôpego e fitou Heinrich com os olhos injetados.
- O que você quer?
- Lamento incomodá-lo, Herr Edler - disse Heinrich num tom menos pomposo. - Tenho uma mensagem para o senhor, um telegrama. Vim para cá a toda velocidade, com risco de quebrar o pescoço. E vai verificar que há referência a uma recompensa.
- Mostre-me a mensagem.
- Mas, Herr Edler, a recompensa...
Karl arrancou o telegrama da mão de Heinrich. À medida que lia sua carranca tornava-se mais sombria. Depois ele fitou Heinrich, furioso.
- O que sabe a respeito disso?
De maneira amedrontada Heinrich descreveu em detalhes o que acontecera na estação de Làchen, a prisão de Steve e Conme, a fuga dos outros. Observando a sensação que causava, ele se entusiasmou, pintou um quadro vigoroso. Quando acabou, houve um silêncio.
- com que então aqueles dois escaparam juntos - disse Karl num tom característico.
Anton interveio, com uma súbita agitação:
- Mas o caso é muito grave, Karl. Aquela polícia de Láchen é terrível! E devo dizer-lhe que esta tarde dois homens de Taube estiveram aqui. Estavam esquiando e disseram que tinham perdido o caminho. Mas estou certo que eram...
Anton movimentou as mãos de maneira expressiva.
- Cale-se!
- Mas o bom nome da minha casa...
- Cale-se! - berrou de novo Karl. - Deixarei a sua casa com seu bom nome. Quero ir para Breintzen.
Ele lançou um olhar irado para o telegrama amassado em sua mão, antes de acrescentar:
- Amanhã à noite! Quero muito ter uma conversinha com esse americano que foge com a minha noiva!
- Mas deve tomar cuidado com a polícia, Herr Edler! protestou Anton.
- Por que eu deveria tomar cuidado com a polícia? Sou mais esperto que a maldita polícia! - Virou-se para Heinrich.
- Quero que você suba à velha cabana no Kriegeralp. Como todo mundo parece saber, que sentido há em continuar escondendo? Vá até lá e traga o velho que encontrará na cabana. Diga a ele que está indo de minha parte. E avise-o que partiremos para Breintzen ao amanhecer.
- Mas está dito no telegrama, Herr Edler...
- Já sei, já sei! Você receberá a sua maldita recompensa. Mas vá depressa, caso contrário ganhará uma cabeça quebrada.
Depois que Heinrich se retirou, Karl sentou à mesa e pediu outra garrafa de kúmmel. Continuou a beber, intensificando seu exaltado rancor até uma espécie de grandeza egoísta.
Passou a noite na sala de jantar, acalentando um ressentimento amargo contra Lewis, formulando planos embriagados para a viagem até Breintzen. Eram quase seis horas da manhã quando Heinrich voltou, trazendo o professor. Para variar, Ullwin parecia um pouco assustado. Mas sua atitude continuava tão imperturbável como sempre.
- E então, meu caro rapaz, que história é essa? Estão se tornando mais ativos em círculos que não vem ao caso mencionar? Vamos realizar agora a nossa pequena expedição?
Karl virou os olhos injetados para o professor, fitando-o furioso de alto a baixo.
- Cale-se! - Parecia que essa era agora a sua expressão predileta. - Estou no comando do que você chama de expedição. Eu falarei tudo o que for necessário.
- Mas, meu caro Karl...
- Não sou seu caro Karl. E você não é meu caro professor. É apenas um patife velho e vulgar. Não, é menos do que isso. É uma bagagem que devo entregar em Breintzen a fim de poder me casar com Sylvia. - Ele alteou a voz de repente. - Está me entendendo? Você vai me acompanhar a toda parte, sem qualquer pergunta ou palavra de adulação!
O professor olhou atentamente para Karl e se manteve em silêncio.
- Assim é melhor - disse Karl. - E agora trate de se preparar. E muito bem. Temos vinte e cinco quilómetros pela frente e percorreremos tudo a pé. Himmel! Quando penso no que estou fazendo por você sinto vontade de lhe arrancar o fígado podre!
Anton serviu o café da manhã. Parecia disposto a qualquer coisa, desde que pudesse se livrar daqueles hóspedes indesejáveis. O professor comeu um pouco, Karl não pôs nada na boca, embora encontrasse ampla compensação na garrafa de kiimmel.
- Agora estou pronto! - declarou ele, estufando o peito.
- Santo Deus! Estou preparado para vencer toda a polícia e todos os americanos na Áustria!
Eles partiram por volta das sete horas. Da janela de seu quarto, Rudi observou-os, os olhos contemplando quase com compaixão o vulto patético do professor. Anton bateu a porta depois que eles saíram, aliviado. Era uma manhã amena e fragrante. Já havia no ar a promessa de primavera. A neve no caminho degelava em vários trechos. E, a intervalos, vinha dos picos mais altos um suave farfalhar, como açúcar derramado sobre um tambor. Olhando para cima, eles podiam divisar o açúcar se esparramando, levantando pequenas nuvens brancas. É claro que não era açúcar, mas neve, toneladas de neve derretida, descendo pelas encostas. Eram avalanches e agora continuariam por todas as semanas subsequentes.
Os dois não pegaram a estrada para Láchen, mas sim uma trilha situada a oeste e que acompanhava o vale. Karl marchava alguns passos à frente, sem falar, as botas enormes de esquiar deixando marcas reluzentes no caminho. O professor ia atrás, submisso e ansioso, como um cachorro. Depois de terem andado durante cerca de duas horas, começaram a divisar pequenos chalés e fazendas isoladas na planície lá embaixo. Por fim alcançaram o grupo de casas que constituía a aldeia de Taube. Karl parou, olhou para os telhados íngremes e declarou:
- Vamos descer. Quero tomar um drinque. Consternado, o professor fitou seu companheiro e balbuciou:
- Longe de mim querer interferir, meu caro rapaz. Mas parece-me que aumentaremos o risco de sermos vistos ao  entrarmos na aldeia. Não seria mais sensato continuar por esta crista superior?
- Já, já, pode ser mais sensato. Mas estou com sede. Para dizer a verdade, estou com uma sede terrível.
- Mas, Karl...
- Cale-se. Eu já disse que você não passa de uma mala. Tenho amigos em Taube. Tenho amigos por toda parte que me querem bem e me admiram. Se a polícia estiver por lá, eu lhe darei uma lição.
Ele começou a descer pela ravina.
Não havia alternativa. com resignação e uma expressão de mau augúrio a empalidecer-lhe o rosto, o professor foi atrás.
A aldeia era formada apenas por uma rua solitária, com uma igreja numa extremidade e uma estalagem na outra. Karl ignorou a igreja. com um ar decidido, encaminhou-se para a estalagem.
- Alo! Alo! - gritou ele, batendo com o punho no balcão do bar. - Não há ninguém aqui para me servir um drinque?
Um homem de avental atendeu ao chamado de Karl e respondeu a seu cumprimento efusivo sem muita cordialidade. O professor, sem qualquer entusiasmo, pediu cerveja. Karl ficou com o seu inevitável kúmmel.
Tudo poderia ter corrido bem se Karl se contentasse com um só drinque. Mas quis tomar outro. E, antes que o tivesse bebido, dois homens de uniforme verde entraram na estalagem. Sentaram a uma mesa ao lado da porta.
O professor, depois de um olhar apreensivo, empalideceu de maneira considerável.
- Vamos sair daqui, pelo amor de Deus! - murmurou ele para Karl.
Mas Karl, inebriado pelo kúmmel, era "muito mais esperto que a polícia". Não se achava propenso à cautela. Sua disposição de ânimo não só pedia como até exigia uma encrenca. Ele olhou para os dois guardas com uma truculência desdenhosa. E comentou com o professor, em voz alta:
- Eu nunca tinha visto antes por aqui Schweinhunden verdes.
Aquilo era tão desnecessário, tão insensatamente estúpido que o professor tremeu de terror e raiva.
Os dois guardas não demonstraram ter notado algo, o que era um sinal dos mais suspeitos. O mais alto, corpulento, de nariz grande e olhos claros e frios, disse alguma coisa muito baixo a seu companheiro. Não mais do que isso.
Se não estivesse embriagado quase que por completo, Karl nem sequer sonharia em fazer aquilo. Mas continuou a falar por vários minutos da mesma maneira truculenta e ofensiva. Depois, com um gesto, como se sentisse a maior repulsa pelo fracasso em provocar os dois guardas, largou uma moeda em cima do balcão para pagar os drinques e ergueu-se para sair.
Mas, quando ele se encaminhava para a porta, o policial alto levantou-se.
- Perdoe-me por me apresentar - disse ele num tom de fria polidez. - Sou o Sargento Hubner. E meu amigo é o Cabo Brandt. Posso perguntar o seu nome?
Karl esticou o queixo para a frente.
- Você quer ir para o inferno?
- Não imediatamente - respondeu o guarda de nariz grande. - Primeiro devo avisá-lo de que estamos à procura de dois cavalheiros que correspondem à descrição de vocês.
- É mesmo?
- É, sim. Tão parecidos com vocês que terei de pedir-lhes que nos acompanhem.
À guisa de resposta, Karl desferiu um soco no guarda que, acertando-o no nariz, obrigou-o a cambalear para trás. As longas pernas do policial tropeçaram na cadeira e ele caiu de costas com estrondo, batendo com a nuca no chão, onde ficou convenientemente imóvel. O outro guarda levantou-se de um pulo no mesmo instante, sacando o revólver do coldre. Karl, com um grito de exaltação, acertou-o com um chute na barriga. com um gemido de dor, o homem desabou no chão.
- Está vendo? - gritou Karl para Ullwin. - É essa a minha opinião sobre a polícia!
O professor já passara pela porta e Karl fez menção de seguilo. Mas nesse instante o segundo guarda soergueu-se, apoiado no cotovelo, e, com o rosto contorcido pela dor, disparou um tiro sem tomar qualquer cuidado com a mira.
Karl corria quando a bala o atingiu. Levou automaticamente a mão ao flanco, mas continuou a correr.
- Santo Deus! - exclamou ele. - O demónio me acertou! O professor lançou-lhe um olhar assustado.
- É grave?
- Não - balbuciou Karl. - Eu gostaria de ter-lhe arrancado as tripas com o chute.
Apesar de seus protestos, Karl avançava de maneira lenta e dificultosa. E quando chegaram ao alto da ravina ele teve de parar, a respiração ofegante. Tossiu, e o sangue escorreu-lhe da boca.
- Que coisa esquisita - murmurou ele.
O professor retorceu as mãos, num auge de incerteza, lamentando:
- Se ao menos você não tivesse parado na aldeia!
- Eu queria um drinque! - disse Karl estupidamente. E, por Santo António, quero um agora!
O professor olhou para trás, sua mente trabalhando freneticamente. Até agora, ninguém os seguia. Os guardas estavam fora de ação, pelo menos por algum tempo. Mas, com toda probabilidade, as aldeias da vizinhança estavam de sobreaviso. Tanto quanto ele podia ver, só havia uma coisa a fazer: deviam subir de novo as montanhas, aquelas montanhas que o haviam abrigado por tanto tempo.
Pegando Karl pelo braço, o professor pôs-se a ajudá-lo a avançar pela trilha superior. Tinha uma vaga ideia de como alcançar o Gasthof com o homem ferido. Mas ainda não tinham percorrido um quilómetro quando compreendeu que jamais conseguiriam isso. Karl era como um saco inerte em seu ombro. A mala, agora, era Karl e não ele. Por fim, Karl tropeçou e caiu no terreno macio.
- Minhas pernas - balbuciou ele, tossindo - parecem, sozinhas, removedores de neve.
O professor percebeu que Karl empalidecera com a perda de sangue.
- Deixe-me fazer uma atadura.
A resposta de Karl foi quase inaudível:
- O ferimento é interno. Mas o sangue não pára de sair. Ele tossiu, fazendo subir até à boca um fluxo espumoso e vermelho e revirando os olhos para cima de um modo estranho e inescrutável. Foi nesse momento que o professor compreendeu que Karl estava morrendo. Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Apesar de ser um antigo escroque, não estava acostumado àquele tipo de coisa. Seu rosto contraiu-se numa perplexidade infantil e suas mãos se agitaram, irrequietas. Abaixou-se e balbuciou:
- Posso fazer alguma coisa por você?
- Já tive o suficiente.
Foi a última coisa que Karl disse. Houve uma pausa prolongada e angustiante. Tudo parecia estúpido e inacreditável. Poucos minutos antes Karl ainda estava lutando como um touro no bar. E agora encontrava-se daquele jeito. Súbito, Karl tornou a tossir. A boca se abriu, a cabeça pendeu sobre o ombro, e ele tombou para o lado.
O professor levantou-se, os olhos cheios de um mórbido fascínio. Inconscientemente, lavou as mãos com neve, olhando para baixo, sem se fixar em qualquer coisa determinada. Depois pareceu recordar a sua própria situação. Lançou um último olhar para o corpo de Karl e em seguida afastou-se pela trilha.
Durante uns três quilómetros o professor continuou pelo mesmo caminho que seguira antes com Karl. As pegadas das botas deste provocaram nele uma histeria trémula. Começou a compreender seu dilema. Era inútil retornar ao Gasthof. E era possível que não conseguisse alcançar Breintzen. Sua única esperança se achava naquelas desoladas altitudes. Se atravessasse para o outro lado poderia atingir a cabana. Diante deste pensamento, desviou-se abruptamente da trilha e começou a subir as encostas superiores. A escalada era difícil na neve macia. Mas ele continuou a avançar assim mesmo, tropeçando de quando em quando, subindo cada vez mais alto e aumentando a cada passo a distância que o separava do pesadelo daquele episódio em Taube.
Empertigou-se ao chegar à primeira crista, limpou a testa com um sentimento de triunfo e olhou para trás. Diversos vultos pequenos e escuros deslocavam-se lentamente a distância, atraindo de imediato a sua atenção. Ao mesmo tempo o sino da igreja da aldeia começou a repicar em sinal de advertência.
Despojado de seu falso senso de segurança, o professor afastou-se da linha do horizonte. Precisava agora acelerar a traveSsia. Meio inclinado, ele foi avançando num ritmo apressado, subindo o mais depressa possível. E só se atreveu a olhar para trás após uma boa meia hora de escalada. Foi então que o coração lhe caiu aos pés. O grupo de busca encurtara de maneira considerável a distância que os separava. Cinco homens, espalhados como um leque, aproximavam-se com rapidez. Ele podia distinguir o líder. Era Hubner, o enorme sargento da polícia.
O professor ficou desorientado por completo. Era um homem do mundo; mas, por infelicidade, aquele não era o seu mundo. com a ideia suprema de escapar da vista de seus perseguidores, ele foi subindo pela montanha como um coelho assustado. O percurso era surpreendentemente fácil. Alcançou um caminho que se assemelhava a um leito seco de rio, com enormes blocos de neve congelada que lhe serviam de pontos de apoio. Vez por outra, baforadas de neve passavam por seu rosto, como lufadas de neblina marinha. Mas ele não prestou atenção nelas. Nem ouviu os gritos, que se tornaram cada vez mais fortes, dos homens atrás dele. Porque estava indiferente a tudo, com exceção de sua fuga, o tom de advertência daqueles gritos também lhe escapou.
De repente, houve um grito culminante:
- Lawine! Lawine!
A neblina engrossou em torno do professor, trazendo uma chuva firme de partículas. Um ténue rumor, como uma trovoada distante, aumentou e se aproximou. Depois uma torrente de neve espumou ao seu redor e levantou-o do chão, como se fosse um pau de boliche. Ullwin gritou, mas seus gritos foram tão inúteis quanto os dos homens atrás. Enquanto eles corriam para a esquerda e para a direita, escapando da avalanche, o professor foi empurrado inexoravelmente pela montanha abaixo, submerso sob a torrente branca. Súbito, quando parecia que toda a massa de neve iria engolfá-lo e aniquilá-lo, por algum acaso do destino ele foi empurrado para o lado. Como que por um milagre, ele caiu para fora do curso principal da avalanche e ficou sepultado, atordoado e quase inconsciente, de todo invisível, num monte de neve. Fechou os olhos, enquanto a avalanche ruidosa passava. Depois perdeu momentaneamente os sentidos.
Mais abaixo, numa crista lateral, o sargento e quatro homens observavam a avalanche num silêncio encantado. Eram homens de Taube, camponeses recrutados às pressas por Hubner para ajudá-lo na busca.
- Acabou! - disse um dos homens, por fim. - Foi o fim dele.
- Eu vi quando ele foi alcançado! - murmurou outro homem, fazendo o sinal-da-cruz, temeroso. - Um segundo e ele desapareceu por completo!
- Mein Gotí! - exclamou um terceiro. - E pensar, sargento, que ele e Karl tinham de morrer assim!
- Não tem nada! - resmungou o sargento num tom ríspido. - Edler sempre foi um cão danado, nascido para um fim imprestável. Ele merecia esse fim por chutar o meu companheiro. Mas aquele velho inglês idiota... que necessidade ele tinha de desperdiçar sua vida assim?
- Nós gritamos em sinal de advertência.
- Isso mesmo, gritamos muito.
Todos concordaram com um aceno de cabeça, à guisa de autojustificação.
- Gritando ou não gritando, meus superiores não ficarão satisfeitos - grunhiu o sargento. - E muito menos o pessoal de Viena. Eles queriam o velho de volta. Queriam descobrir onde estão as esmeraldas que ele roubou.
Seguiu-se um silêncio. Depois o terceiro homem comentou:
- Ainda podemos encontrá-lo, morto.
- Que chance teríamos disso... por baixo de tanta neve?
- indagou o primeiro homem. - Se começássemos agora poderíamos encontrá-lo daqui a dez anos, congelado na geleira. E sem dúvida ele dirá então a você onde escondeu seus roubos.
- Mesmo assim, devemos procurar - insistiu o sargento.
- Nem que seja apenas para informar que efetuamos a busca.
Meia hora depois, quando a catarata de neve já acabara, eles subiram cautelosamente pela encosta e iniciaram a busca que, na melhor das hipóteses, foi superficial. Cada homem sabia da inutilidade do esforço; e todos acreditavam que a montanha jamais entregaria aquilo que reclamara.
Pouco depois de o sol ter passado por seu ponto culminante o sargento gritou, impaciente:
- Já chega! É inútil. Vamos voltar. Devemos pegar o corpo de Edler e levá-lo para o Gasthof. É lá que será realizado o inquérito.
E assim, enquanto as sombras se encompridavam pela neve calcada, os cinco homens desceram a montanha, obedecendo às ordens do sargento.
Na sala dos fundos da casa de Herr Schwartz, em Breintzen, o empertigado detetive que dissera chamar-se Oberholler mantinha os olhos firmemente fixos em Lewis. É possível que ele tivesse visto o olhar do jovem americano percorrer desesperadamente a sala, uma vez que disse, em tom grave:
- Não o aconselharia a tentar outra fuga, Herr Merrid. Tenho certeza de que logo descobriria que não vale a pena.
Sem os óculos de aros de ouro e com seus olhos penetrantes ele era um homem completamente diferente, não mais tímido e afável, mas alerta e disciplinado, com todas as características de um militar.
- Gostaria que todos se lembrassem de sua situação aqui. São meus prisioneiros. Se não tomarem cuidado, providenciarei para que sejam removidos. - Seu olhar voltou-se para o negociante de antiguidades; seu tom perdeu um pouco da brusquidão.
- Enquanto isso, Herr Schwartz, quero que leve a Srta. Ullwin para o quarto que lhe reservei lá em cima. Não tenho a menor dúvida de que ela está exausta depois de seus esforços um tanto prolongados hoje.
Sylvia lançou um olhar desamparado e angustiado para Lewis.
Sua cabeça pendeu. Quando se encaminhava para a porta, acompanhando Herr Schwartz, Connie olhou para o detetive com sua maneira suave e indagou:
- Posso ir com ela?
O detetive anuiu com um aceno de cabeça, sem dizer nada. E, a sós com Steve e Lewis, continuou calado por mais algum tempo. Depois, unindo as pontas dos dedos, declarou numa voz firme:
- Herr Merrid, devo informá-lo de que se encontra numa situação extremamente grave. Desta vez não está lidando com a polícia estadual, da qual se esquivou de modo tão hábil, fazendo-a parecer ridícula. Está lidando comigo, um agente particular de Viena. - Ele fez uma pausa cerimoniosa. - Não pode alegar que não o avisei. Fiz-lhe uma advertência no Gasthof, Mas o senhor não deu atenção. com pleno conhecimento das circunstâncias, tornou-se deliberada e voluntariamente o cúmplice de um crime. Herr Merrid, é meu dever informá-lo de que Karl Edler foi baleado e morto esta manhã, em Taube, quando tentava ajudar George Ullwin a fugir. E também - o detetive fez outra pausa, antes de acrescentar com a devida solenidade: - que o próprio Ullwin foi atingido por uma avalanche quando tentava esquivar-se de cinco agentes da justiça. Também ele morreu.
Fez-se um silêncio pesado. Lewis fitava o detetive, atordoado pela dupla tragédia. Por um momento não foi capaz de absorver por completo o que acontecera. Steve interveio então:
- Deve entender agora porque estamos aqui, Lewis. Quando Herr Oberholler nos deu a notícia esta tarde não havia mais sentido em lhe esconder qualquer coisa. E informei que combináramos um encontro em Breintzen. Achei que poderíamos nos encontrar todos aqui e encerrar esse negócio de uma vez por todas. - Lewis continuou em silêncio. Pensava agora em Sylvia e tudo o que prometera fazer por ela. Estudando o rosto do amigo com uma expressão preocupada, Steve acrescentou: - Será terrível para a moça. Ela amava o velho. Mas ficará muito melhor sem ele. E não se esqueça de que ainda estamos metidos numa tremenda encrenca.
Lewis desviou, lento, os olhos para o detetive.
- O que acontecerá com a Srta. Ullwin? O homenzinho deu de ombros.
- Infelizmente acho que será um tanto desagradável para ela. Ainda mais agora que o pai está morto. Fui contratado pela companhia que sofreu o prejuízo. Um dos meus objetivos, e posso dizer o meu principal objetivo, era garantir a devolução das esmeraldas roubadas. Foi por esse motivo que me limitei a observar a situação, durante todos aqueles dias, sem tomar qualquer providência para prender Herr Ullwin. Eu já sabia que ele se encontrava naquela cabana antes mesmo de sua chegada ao Gasthof Hohne. E uma noite, enquanto ele dormia, a cabana foi revistada de modo meticuloso, bem como suas roupas e demais pertences. Mas as jóias não estavam lá. Nem se encontravam nos aposentos que ele ocupara em Viena e que também foram vasculhados. Por isso esperei por uma pista, uma indicação do paradeiro das esmeraldas, a possível chegada de um cúmplice... Ele fez mais uma pausa, com aquele significativo erguer de ombros. - Estou convencido agora de que as esmeraldas foram entregues a algum receptador logo depois do roubo. O dinheiro foi esbanjado e as jóias sumiram. E tudo por culpa de Herr Ullwin. Pode esperar que meus clientes sejam indulgentes com a filha dele?
- Mas ela nada tem a ver com isso - protestou Steve. Foi ele quem gastou o dinheiro. Não podem fazer nada contra ela.
- Não se pode? Devia ter um conhecimento melhor das coisas. Em tempos normais as coisas já seriam muito difíceis para ela. E nos tempos atuais podem ser ainda piores.
Lewis mordia o lábio, a testa contraída em concentração profunda e amarga. Por fim, pareceu chegar a uma decisão. disse, falando bem devagar:
- Qual era o valor... o valor venal... das jóias roubadas? O detetive respondeu, incisivo:
- Cerca de quatrocentos mil xelins. Foram empenhadas por uma quantia consideravelmente inferior. Mas, por causa de sua importância histórica, foram registradas nos livros do meu cliente com a cifra de quatrocentos mil.
- Quanto representa isso em nossa moeda?
- Bem... - o detetive parecia perplexo. - Dá cem mil
dólares.
Lewis sentou à mesa, tirou do bolso interno do paletó uma canetatinteiro e um talão de cheques. com uma expressão impassível, preencheu um cheque.
O detetive pegou o cheque e examinou-o, espantado. E então, gradativamente, sua expressão se desanuviou. Coçou o queixo, olhou para Lewis, depois para o cheque, e de novo para Lewis.
- Meu bom e caro senhor - declarou ele com uma animação inesperada - esta é uma régia restituição. E altera toda a natureza do caso. Mal preciso dizer que...
Lewis interrompeu-o:
- Por favor, não diga. Comprei as suas esmeraldas fantasmas e isso é tudo. A Srta. Ullwin não será mais incomodada, não é mesmo?
- Como eu estava prestes a dizer, meu caro Sr. Merrid, sua generosidade só pode ter um resultado. Estou convencido de que meus clientes não insistirão mais no caso. Melhor que isso, eu lhe dou agora a garantia plena de que posso remover todas as dificuldades oficiais.
- E a Srta. Ullwin estará livre para deixar este país?
- Tem a minha palavra!
Houve uma pausa curta e dramática. E então Lewis perguntou:
- Há mais alguma coisa que queira de mim? Se não, acho que irei deitar-me.
- Mas claro! - O homenzinho estava efusivo. - Deve estar mesmo cansado. E há muitas acomodações nesta casa. Enquanto isso, eu entrarei em contato com Viena. E espero ter amanhã boas notícias para todos os envolvidos.
Lewis concordou com um aceno de cabeça e, murmurando um "boa-noite", saiu da sala. A criada conduziu-o a um quarto no segundo andar. Tirando as botas e o casaco, ele apagou a luz e deitou-se na cama ainda meio vestido. Mas, embora fatigado, não conseguiu dormir. Pensamentos conflitantes guerreavam em sua mente. Tudo aquilo começara como aventura e terminara insensatamente em morte trágica. E todo o seu bravo comportamento, a sua imitação de um cavaleiro andante, se perdera no anticlímax insosso de uma barganha. Se ele fosse o herói de um romance, teria levado Sylvia através da fronteira como um brioso Lochinvar (1). Em vez disso, a verdade nua e crua é que assinara um cheque, para comprar a liberdade de Sylvia, como se fosse um comerciante.
Ele ficou se remexendo na cama estreita, irrequieto. A ideia de que sua ação era valorosa e generosa não lhe passou pela cabeça. Escarnecia de si mesmo. E, no entanto, apesar do seu autodesdém, ele tinha de admitir, contrariado, que não lhe restara outra opção.
Quase ao amanhecer Lewis mergulhou num cochilo leve, do qual despertou às oito horas. Era um dia cinzento e ele levantou-se, fez a barba e, pensando em descobrir o resultado da exposição feita por "Oberholler", desceu tranquilo a escada.
Na sala dos fundos, onde a mesa redonda estava agora coberta por uma toalha branca e o café da manhã, ele encontrou Sylvia. A criada já servira uma xícara de café à jovem, mas esta não prestara qualquer atenção ao mesmo. Estava com os cotovelos apoiados na mesa, olhando fixamente para a frente.
De repente, como que movida por algum estímulo interior, ela voltou-se e deparou com ele parado na porta. As linhas de melancolia de seu rosto não se desanuviaram. Por um momento os dois fitaram-se assim, em silêncio, rompido afinal por Lewis:
- Lamento muito... por seu pai. E também por Karl. As palavras, pronunciadas de maneira hesitante, estavam impregnadas de compaixão. Ela inclinou um pouco a cabeça. Mas, além disso, não ofereceu qualquer outra reação. Algo em sua atitude erguia uma barreira entre os dois, vedava a presença de Lewis na sala. Mesmo assim, ele continuou parado na porta. - Não sei quais são os seus planos, mas gostaria de ajudá-la em qualquer coisa que desejar fazer.
Sylvia fitou-o desolada.
* (1) Jovem herói de uma balada de Walter Scott que rapta sua amada no exato momento em que ela vai casar com outro. - N. do T. *
118
- Não há nada que eu possa fazer. Estou perdida. Eles nem mesmo querem que eu compareça ao inquérito.
- Fico contente - disse ele, tranquilo.
A pose de Sylvia tornou-se ainda mais rígida.
- Mas eu não fico. Gostaria de estar ao lado de meu pai. E de Karl. Eles sofreram. Eu não. Alguém, sem ser convidado, interferiu em tudo. Estou sendo envolta em algodão e saindo às ocultas de todas as dificuldades. Até o detetive me sorri agora. Sua deferência me causa repugnância.
O olhar de Lewis endureceu. Então ela sabia! E, uma vez que sua reação era aquela, a suposição dele fora correta. Manteve-se em silêncio por um momento. Contra a sua vontade, sentia a injustiça da atitude de Sylvia. E se descobriu a dizer:
- Preferia ir para a prisão?
Os lábios de Sylvia contraíram-se numa expressão mais obstinada.
- E assim manteria meu amor-próprio. Isso deixou Lewis mortificado.
- Acha que este é o momento para falsos heroísmos? Ainda existe uma coisa que se chama bom senso.
Ela corou intensamente. Respirava depressa agora, tão transtornada quanto Lewis.
- Não nasci para viver de acordo com o bom senso. Nem para ser comprada e paga!
Houve uma pausa, um momento de terrível tensão. Além das batidas angustiadas de seu coração, Lewis podia ouvir movimentos lá em cima. Era Connie, preparando-se para descer e tomar o café da manhã. Magoado e furioso, ele não podia enfrentar aquela eventualidade cotidíana. Murmurou uma desculpa, voltou-se e saiu da casa.
Dera apenas uns poucos passos pela rua quando esbarrou com o detetive que voltava, apressado, do centro da cidade.
- Ah, Herr Merrid! - A voz do homenzinho refletia triunfo. - Estou contente em vê-lo de pé tão cedo. Sobretudo porque tenho boas notícias para lhe dar. Ótimas notícias! Meus clientes ficaram extremamente satisfeitos com sua generosidade e abandonaram o caso sem mais delongas. Além disso, o ponto de vista das autoridades é de que o crime já foi expiado, tendo em vista a fatalidade de ontem. Haverá apenas a formalidade de um inquérito... a ser realizado no Gasthof Hohne. Mas não precisará comparecer. Já providenciei tudo.
- Está sendo muito atencioso - murmurou Lewis como resposta.
- Está satisfeito?
Lewis forçou-se a acrescentar mais umas poucas palavras de agradecimento. E depois, com um brusco aceno de cabeça, afastou-se do detetive. Caminhou pela pequena cidade, que alegremente despertava, com donas-de-casa lavando suas calçadas e crianças seguindo para a escola. Ele passou pelos velhos muros cinzentos, à beira do rio sereno, com gado pastando na outra margem. E pouco a pouco sua mente conturbada recuperou o equilíbrio e a paz. Sylvia estava sofrendo. Só isso já era suficiente para desvirtuar seu julgamento. E ele a amava. Além desse fato, nada mais importava. Tinha de encontrá-la imediatamente e acabar com aquela briga sem sentido.
Voltando o mais rápido possível, alcançou a casa por volta das onze horas. Steve e Connie estavam na sala de estar. Mas Lewis ignorou os chamados deles. Avistando Herr Schwartz no pequeno escritório nos fundos da loja, meteu a cabeça pela janelinha e perguntou:
- Qual é o quarto da Srta. Ullwin? Quero falar com ela agora mesmo.
O velho levantou os olhos de suas contas, cofiando a barba e contemplando Lewis com uma ligeira curiosidade.
- A Srta. Ullwin? Ela deixou minha casa há cerca de uma hora.
Uma súbita premonição de desastre comprimiu o coração de Lewis como uma mão gelada.
- Para onde ela foi?
- Como posso saber? - respondeu o homem em tom delicado. - Só sei que não voltará. Foi o que me disse.
As palavras atingiram Lewis com uma força terrível. Ele ficou parado por mais um momento, como se estivesse paralisado, depois virou-se abruptamente. O velho continuou a trabalhar.
O inquérito oficial no Gasthof estava encerrado, e as autoridades e testemunhas que haviam participado dele já começavam a se dispersar. O lugar, em geral tão solitário, exibia uma animação insólita. Uma multidão de camponeses de Taube e Làchen se reunia em conversa diante da estalagem. Duas linhas de trenós ocupavam o pátio. "Oberholler" estava no pórtico, acompanhado pelo Sargento Hubner e o Cabo Brandt, que ainda parecia abatido por causa do golpe que recebera na barriga. Três outros agentes da polícia postavam-se por trás deles. Esperavam o transporte para levá-los à estação.
A pouca distância dos policiais, fitando-os de esguelha, havia um casal de meia-idade, usando trajes de camponeses suíços. Eram Herr e Frau Edler, um casal mesquinho e teimoso, primos de Karl e seus únicos parentes. Tinham vindo em parte para assistir ao enterro do infeliz Karl, mas também para se apossar de qualquer propriedade ou pertences que o primo morto houvesse deixado.
Na opinião geral, o inquérito transcorrera de maneira satisfatória, com muitas conversas em voz alta e risos. Anton circulava sem parar, servindo bebidas, bastante aliviado pôr ter recebido apenas uma censura por sua participação no caso. Para Rudi, que olhava da janela de seu quarto, a cena oferecia um interesse melancólico. Condenada à morbidez por aquelas altitudes que a aprisionavam, qualquer contato com o mundo exterior proporcionava-lhe um fascínio insólito. A morte de Karl a comovera estranhamente. E agora, enquanto observava, um súbito silêncio da multidão lá fora forçou-a a olhar com mais atenção. Estavam trazendo, da oficina em que Karl trabalhava, o caixão tosco e recém-acabado. Levaram-no para o interior da estalagem, até onde se encontrava o corpo de Karl - em cima de uma cama e envolto pela mortalha.
Um tremor involuntário percorreu o corpo de Rudi, fazendo com que seu cachorro, encolhido ao lado, levantasse os olhos para fitála, inquisitivo. Mesmo depois que o caixão vazio de pinho desapareceu de sua vista e a conversa e risos lá embaixo recomeçaram, Rudi permaneceu imóvel, sentada junto à janela, olhando, sem ver, para os picos distantes. Depois que a escuridão desceu e que todas as pessoas haviam partido, ela continuou ainda sentada ali, um vulto magro e imóvel, numa comunhão solitária com sua alma.
Por fim, suspirou e mexeu-se, lenta. Acendendo a vela do quarto, lavou o rosto e as mãos, passou um pouco de batom nos lábios pálidos - um gesto espectral do passado - e, plácida, foi jantar.
Anton não estava à vista e Rudi calculou que ele comemorava na cozinha. Mas os dois primos de Karl já se sentavam à mesa. Rudi compreendeu que eles passariam a noite no Gasthof, partindo pela manhã com o corpo de Karl. Ignorando seu cumprimento, o casal fitou-a com uma expressão irritada e desconfiada, continuando sua conversa particular.
Rudi não pôde deixar de ouvir.
- Há seis pares novos de esquis na oficina - disse Frau Edler. - Devem dar algum dinheiro.
- Precisaremos desse dinheiro - comentou o marido em tom sombrio. - A viagem de amanhã sairá muito cara. Por que não podemos enterrá-lo aqui? A sua ideia é absurda.
Os lábios da mulher contraíram-se obstinadamente.
- Ele deve ser enterrado com a família. Não aceitarei outra coisa. Além do mais, não será tão terrível assim. O relógio de ouro é uma beleza. Karl o ganhou numa competição. Só o relógio já é suficiente para compensar nossa despesa. E pense também nas taças. Algumas são de prata. E ele deixou muitas roupas excelentes. Obrigaremos Herr Anton a pagar um mês inteiro de salário. E há também os esquis. Confie em mim. Não teremos qualquer prejuízo.
- É melhor mesmo que isso não aconteça.
Frau Edler pegou um enorme pedaço de queijo na ponta de sua faca.
- Vamos aproveitar para comer bem enquanto estamos aqui. Assim não precisaremos de muita coisa amanhã. Tem todos os documentos assinados?
- Já estou com tudo. O sargento da polícia assinou para mim. Ele exigiu um drinque com o olhar ao assinar. Mas eu fingi que não entendi. A estampilha custou três xelins. Não se esqueça de me pagar.
Rudi não pôde suportar aquilo por mais tempo. Terminando o jantar o mais depressa possível, ela levantou-se e deixou a mesa.
De volta a seu quarto, tentou acomodar-se para ler. Mas estava inquieta, perturbada, não conseguia concentrar os pensamentos. Levantou-se depois de alguns minutos e foi até a janela. Permaneceu ali por algum tempo, os olhos perdidos na noite. Súbito, teve um sobressalto. Lá fora, na escuridão, percebeu o vulto de um homem que se aproximava da estalagem com evidente dificuldade. O vulto encaminhou-se para a sua janela, como que atraído de modo subconsciente pela luz, e desabou contra o peitoril. A princípio Rudi pensou que estava vendo um fantasma. Mas nenhum fantasma podia parecer tão humanamente miserável. com um estremecimento de horror, ela reconheceu naquele espantalho abatido o homem que partira com Karl naquela manhã fatal. Era o professor, ressuscitado, vivo!
No instante seguinte Rudi já levantava a janela e ajudava o velho, com suas poucas forças, a entrar no quarto. Enquanto ele arriava inerte numa cadeira ela fechou a janela. Respirando de maneira apressada Rudi voltou-se e começou a massageá-lo, tentando fazer com que o homem recuperasse os sentidos. Esfregou-lhe as mãos e o rosto sem resultado. Ele estava completamente encharcado. Ela tirou-lhe as roupas, envolveu-o com um cobertor e forçou um pouco de conhaque por entre os lábios dele. O homem foi abrindo os olhos pouco a pouco e fitou-a.
- Obrigado - balbuciou. - Eu precisava mesmo disso. Rudi ainda não podia acreditar no que seus olhos viam.
- Eu pensei... todos ainda pensam... que você estava morto.
- Foi o que eu também pensei - sussurrou ele. - E talvez eu esteja. Peço que me perdoe, mas poderia me dar um pouco mais de conhaque? - Rudi serviu-lhe o resto do conhaque de sua pequena mesa de medicamentos. Depois de agradecer de novo, ele respirou fundo e balbuciou: - Fui derrubado pela avalanche. Não é uma experiência que possa recomendar a quem quer que seja. Não sei dizer quanto tempo fiquei sepultado sob a neve. Mas afinal emergi. Estava congelado. Consegui de alguma forma alcançar a cabana. O que não fez muita diferença. Não tinha comida, nem fogo, nem uma muda de roupa. Durante um dia inteiro fiquei prostrado e tremendo. Não podia mais suportar aquilo. E achei que não devia morrer numa tão terrível solidão. Resolvi então descer até aqui a qualquer custo. E aqui estou.
O depoimento simples e deplorável possuía uma estranha dignidade. Havia algo de patético na figura do professor, despojado de toda a sua astúcia, abalado e derrotado. Rudi sentiu-se comovida. E teve um movimento impulsivo de compaixão.
- Foi uma sorte ter conseguido chegar. Estará se sentindo melhor daqui a pouco, depois da comida. E de uma boa noite de sono.
Ele fitou-a com olhos vazios.
- E depois o quê? O interior de uma prisão. Talvez você pense que é o lugar certo para mim.
- Não, não - protestou Rudi. - Eu o ajudarei.
- Você?
- Claro - confirmou ela acenando vigorosamente a cabeça.
- E a primeira coisa que tenho de fazer é alimentá-lo. Espere aqui!
com essa ordem, Rudi saiu do quarto. Não demorou a voltar, trazendo uma tigela grande de sopa com pedaços de carne, um pouco de pão, queijo e maçãs.
- Foi muito fácil - comentou Rudi, sorrindo de modo tranquilizador, enquanto ajeitava as coisas diante do professor.
- Não havia ninguém lá embaixo. Absolutamente ninguém.
Ele não respondeu. Mas seus olhos umedeceram-se à visão da comida. Rudi observou-o enquanto ele comia, sua compaixão despertada, o cérebro funcionando com um senso de proteção quase maternal.
Depois que terminou, o professor, não havia dúvida, parecia melhor. E declarou, com um vestígio de sua antiga suavidade:
- Mais uma vez devo lhe agradecer, minha cara jovem. Sua gentileza me faz lamentar aquela prisão mais do que nunca.
- Por que tem tanta certeza de que irá para a prisão? Ele deu de ombros, desolado.
- Jamais conseguirei cruzar a fronteira agora. Rudi contemplou-o pensativa, os olhos enormes.
- Sei como você pode cruzá-la. Ele suspirou mais uma vez.
- Tenho a impressão de que já ouvi esse comentário antes.
- Não de mim. - Ela falava sério. - E posso lhe afirmar, com toda a sinceridade, que tem uma oportunidade enviada pelo céu para atravessar a fronteira.
- Mas como?
Ela inclinou-se para a frente, prendendo a atenção do professor por sua maneira incisiva:
- Os parentes de Karl levarão seu corpo de volta à Suíça amanhã. O caixão chegou esta tarde. Está agora tampado. Eles já estão com os documentos prontos e o transporte acertado. Tudo está arrumado - nenhum aborrecimento, nenhuma inquirição na fronteira. Nada. E amanhã à tarde o caixão estará em Menasle.
Rudi parou de falar, com um movimento eloquente das mãos.
- Santo Deus! - exclamou o professor, aturdido.
- Por que não? Você já está morto. Pois continue morto por mais algum tempo. Apenas... tome o lugar de Karl. Podemos consumar juntos os pequenos detalhes da troca. Karl será sepultado aqui. com uma verruma da oficina posso providenciar para que você tenha ar. É tudo muito simples. A única diferença é que sua ressurreição será retardada até que chegue a Menasle.
A engenhosidade do plano ainda mantinha o professor mudo. Mas por fim ele balbuciou:
- Eu não poderia enfrentar isso.
- Mas tem de enfrentar. - Rudi balançou a cabeça em suave persuasão. - Por que deveria temer os aparatos da morte quando vão ajudá-lo a viver? Não existiu um velho monge que dormia em seu caixão todas as noites? Eu teria o maior prazer em fazer a mesma coisa, se ao menos...
Ela parou de falar abruptamente, com uma tristeza imensa a enevoar-lhe o rosto.
- Se ao menos o quê?
- Se ao menos eu pudesse viver. Houve uma pausa.
- Sua doença - murmurou o professor com uma voz estranha.
Ela sorriu.
- Isso mesmo, estou muito doente. E não vou melhorar. Mas por que se preocupar? Farei em breve a minha pequena viagem numa caixa de madeira. Só que não sairei lá de dentro. É por isso que me diverte tanto pregar esta pequena peça na morte.
Houve um silêncio ainda mais profundo. O professor não conseguia desviar os olhos dela. Sentia-se comovido ao extremo por tudo o que Rudi lhe dissera.
- Você é uma boa pessoa - murmurou ele.
E o professor, sempre tão pródigo em palavras, não pôde, naquele momento, encontrar mais nada para dizer.
- Quer dizer que concorda?
- Concordo. - Ele parecia inteiramente diferente do habitual, desprovido de seu falso verniz. - com uma condição.
- E qual é a condição?
Ele tomou uma suprema decisão, contrária a tudo que já fizera antes.
- Que você vá a Viena, até o apartamento que eu ocupava na Felixplatz. Eu lhe darei o endereço. Tem uma coisa lá que quero que pegue para você.
- O quê?
Ele respondeu calmamente:
- Um bastão de sabão de barba.
- Obrigada. - Rudi riu, alegre. - Por certo não imagina que isso tenha algum uso para mim.
Ullwin não riu.
- É o que a maioria das pessoas pensaria. Foi o que a polícia pensou... quando revistou o apartamento. Apenas um bastão de sabão de barba. E o deixaram no armarinho do banheiro. De que serviria? Mas você, minha pequena amiga, pegará esse bastão de sabão. E lá dentro encontrará alguma coisa totalmente inesperada, algo que a fará rica, algo que lhe permitirá tratar-se com os melhores médicos, ir às melhores estações de cura do mundo, ao invés de ser obrigada a ficar num lugar miserável como este. É uma coisa que lhe pode devolver a vida. Leve-a. É o meu presente para você.
Rudi estava prestes a recusar, a lhe dizer como a sua generosidade seria inútil, quando alguma coisa a deteve. Ela refletiu bastante, os olhos remotos e insondáveis. Depois estendeu de repente a mão.
- Obrigada. Eu aceito. Está acertado entre nós.
- Completamente acertado. Rudi tornou a sorrir-lhe.
- E agora você deve deitar na minha cama e descansar um pouco. Depois iremos juntos para o seu transporte.
O professor fitou-a com uma expressão submissa e deitou-se na cama, muito rígido. Rudi cobriu-o. Exausto como estava, mergulhou no sono no instante seguinte. Ela ficou sentada a observá-lo.
Os Edlers levantaram-se cedo na manhã seguinte. E o mesmo aconteceu com Fràulein Rudi. Ao deixar o Gasthof, Frau Edler estava furiosa, em decorrência de uma prolongada discussão com Anton por causa dos salários de Karl e do acerto de contas. Sua disposição de ânimo não melhorara com a visão de Rudi, que apareceu no pátio no instante em que o caixão era levado para o trenó.
- Gruss Gott! - exclamou Frau Edler. - Que é que traz você aqui?
- Desfruto o ar da manhã - respondeu Rudi com polidez.
Frau Edler contemplou-a com uma aversão evidente. Murmurando baixinho, ela apressou o marido a entrar no trenó. Por um momento, ainda fez algum espalhafato, queixando-se de que o trenó era muito pequeno e censurando o cocheiro por causa das mantas de viagem. Depois fez-lhe sinal para partir.
- Adeus - gritou Rudi, enquanto o trenó se afastava. E boa sorte.
Ela despediu-se com um aceno de mão, seu vulto magro estranhamente abandonado no pátio vazio, delineado de maneira desgraciosa contra o amanhecer cinzento.
- Boa sorte mesmo! - repetiu Frau Edler de cima do trenó.
E, lançando um súbito olhar desconfiado para o marido: O que ela estava querendo dizer com isso?
- Como posso saber?
O rosto pálido de Frau Edler se avermelhou.
- Não grite comigo, meu homem. Eu sei muito bem quem você é.
Começou uma querela conjugal que se prolongou por todo o percurso até Taube. Ali eles promoveram uma trégua provisória a fim de pagarem o trenó e se transferirem para um inseguro veículo a motor que os aguardava na estalagem. E foi nesse veículo, um furgão aberto atrás, que seguiram para Breintzen, espremidos junto do motorista, com o caixão e os pertences de Karl atrás. A viagem, que não era das mais longas, transcorreu de maneira mais agradável que a de trenó, com uma renovada discussão sobre os pertences do morto. O relógio, em particular, foi alvo de muita especulação e exibido orgulhosamente ao motorista, que manifestou sua opinião dizendo que valia uma fortuna, pelo menos mil xelins.
- Mein Gott! - exclamou Frau Edler, tornando a guardar o precioso objeto na bolsa. - Que tesouro!
O motorista era um homem do mundo e explicou:
- É por causa do preço do ouro. Está subindo cada vez mais. Como um foguete.
Frau Edler não disse nada, mas lançou um olhar para o marido, como a indicar que as obrigações de família seriam mais proveitosas do que haviam imaginado. E foi assim que chegaram a Breintzen, encaminharam-se para a ponte e pararam diante da barreira vermelha e branca.
A ponte estava fortemente guardada. Um pelotão de infantaria se encontrava postado ali, além do destacamento habitual da polícia de fronteira. A tensão internacional tornara-se crítica. Ninguém tinha permissão para cruzar a fronteira sem a mais atenta inspeção e a mais meticulosa revista. Depois de uma espera de cerca de vinte minutos, dois guardas se aproximaram do veículo em que estavam os Edlers.
- O que estão levando aí? - perguntou um deles.
- Dê uma olhada nos documentos e descobrirá o que estamos levando - resmungou Herr Edler. - É lamentável que pessoas honestas sejam obrigadas a esperar e a esperar, desperdiçando o aluguel deste carro.
O guarda arrancou os papéis da mão de Edler e examinouos com atenção, enquanto seu companheiro espiava por cima de seu ombro. Por fim, ele disse:
- com que então, ao que parece, você está no negócio de carne morta. O que tenciona fazer com a carcaça?
Frau Edler interveio com voz estridente:
- Somos suíços e bons cidadãos. Não viemos aqui para ser insultados.
- É você quem está insultando a si mesma, minha boa mulher - comentou o segundo guarda. - com uma cara dessas.
Frau Edler ficou lívida de raiva.
- É a cara que Deus me deu. E eu prefiro ter uma cara assim aos gambitos que você tem no lugar das pernas.
- Já chega - disse o outro guarda. - O caso é sério e importante. Devemos olhar dentro do caixão. Só temos a palavra de vocês. Pode haver lá dentro um contrabando de armas, munições, qualquer coisa.
com algum esforço Edler conteve a sua irada esposa.
- Façam como acharem melhor - disse ele. - Só acho que devem tomar cuidado para não cometerem um sacrilégio. Isso é um grande pecado. E não nos retardem além do necessário, caso contrário vou responsabilizá-los pelo aluguel do carro.
- Vá chamar o tenente - disse o primeiro guarda a seu companheiro.
Houve uma pausa, enquanto o guarda se afastava. Dentro do caixão, o professor rompeu num suor frio de angústia. Através da madeira que o envolvia ouvia-se cada palavra da conversa. Desde o início, depois de dominar o temor inicial de ficar fechado ali, dera-se os parabéns pela tranquilidade da viagem. Tinha ar suficiente, estava perfeitamente confortável, sem nada para fazer, além de ficar imóvel e acalentar os melhores pensamentos, enquanto os Edlers cuidavam de tudo. Mas agora sua edificante satisfação era frustrada de modo repentino. Ele tremeu ao ouvir passos se aproximarem e a voz do tenente indagando:
O que está acontecendo aqui? O que essas pessoas estão contrabandeando?
- Não sabemos, Herr Tenente. Eles levam uma caixa suspeita. Um caixão.
- Um caixão, hem? E o que tem lá dentro?
- O que você pensa? - gritou Frau Edler, veemente. O que é, em geral, que se coloca dentro de um caixão? Eu diria que só um cadáver, a menos que eu fosse uma lunática.
O professor tremeu mais do que nunca diante da ousadia temerária. Agora, pensou ele, os guardas vão querer dar uma busca de qualquer maneira.
- Já veremos quem é lunático - disse o tenente. - Onde estão seus documentos?
- Nossos documentos? - gritou Frau Edler com voz estridente e apontando para o guarda de pernas finas. - O homem dos gambitos está com eles há meia hora pelo menos.
- Aqui estão, Herr Tenente. Parecem em ordem. Mesmo assim...
Outra pausa. O professor, em sua imaginação, podia ver o tenente, com uma expressão desconfiada, examinando os documentos. O suspense o estava matando. Descobriu-se a rezar, fervoroso, pedindo ao Todo-Poderoso que o socorresse, prometendo em lágrimas manter o propósito de se corrigir.
Súbito, enquanto ele continuava a tremer incontrolavelmente, ouviu a voz do tenente anunciar:
- Está tudo em ordem. Essas pessoas levam o corpo do jovem Edler. Ele foi morto por nosso pessoal há dois dias. Estou a par do caso.
Um momento de silêncio. E depois:
- Está certo, Herr Tenente.
O professor quase desmaiou de alívio. Atordoado, ele ouviu Frau Edler resmungar alguns comentários, sentiu o carro se movimentar, afastando-se. Passaram pela ponte. Ele se encontrava enfim na Suíça...
O resto da viagem transcorreu sem qualquer incidente. Chegaram a Menasle quando os lampiões das ruas começavam a acender e a fragrância aromática do anoitecer impregnava o ar frio.
Até mesmo Frau Edler estava abrandada pela conclusão bemsucedida da expedição. Alcançando sua casa, pequena e comum, numa rua secundária da cidadezinha, ela supervisionou a transferência do caixão, pelo marido e o motorista, para o quarto vago no segundo andar. Depois de despachar Edler para a cozinha, a fim de preparar uma refeição, empenhou-se em arrumar o quarto antes de convidar os vizinhos para uma visita de cerimónia. Primeiro, acendeu uma vela na cabeceira do caixão, sobre o qual estendeu com esmero uma colcha. Depois, ajeitou na cómoda os pertences de Karl, o lindo relógio de ouro com a corrente, as taças, as suas melhores roupas, o dinheiro que conseguira arrancar de Anton pelos salários e esquis do primo. Era uma visão para despertar a inveja sincera de todos os seus mais queridos amigos. Ela contemplou a cena com ar terno, depois desceu para comer um prato quente de carne de porco.
E assim que Frau Edler saiu do quarto o professor concluiu que era o momento de entrar em ação. Sem a menor dificuldade, desatarraxou os parafusos da tampa (que Rudi arrumara para que ficassem virados para dentro), levantou-a e saiu do caixão. Empertigou-se uma, duas vezes, flexionou os joelhos doloridos. O senso de emancipação, de completa liberdade, era mais inebriante do que qualquer vinho. E, de repente, seus olhos caíram sobre o dinheiro na cómoda. Ele parou, atordoado, como um anacoreta diante de comida proibida. Os lábios aguaram um pouco. A luta em sua mente era visível na expressão. Ele tentou afastar a tentação. Mas a tentação recusava-se a ir embora.
Por fim ele suspirou, depois sorriu, suave e inescrutavelmente. Todos os juramentos e resoluções dissolveram-se de repente. Ele deu um passo rápido para a cómoda. O professor voltava a ser como antes.
Sem fazer barulho, ele tirou as roupas esfarrapadas e pôs os melhores trajes que pôde encontrar. Pegou o relógio de ouro e estendeu a pesada corrente por sobre o colete. Depois, pegando açodado a pequena bolsa preta de Frau Edler, guardou o resto das coisas, as taças de prata e um par de ornamentos dourados que se encontravam em cima da lareira para dar sorte.
Também se apossou do documento de Karl. É claro que não se tratava de um passaporte dos mais convenientes, mas serviria perfeitamente para o olhar apressado que, com toda probabilidade, lhe seria dispensado na fronteira francesa.
Depois, houve o toque artístico final. Num pedaço de papel, rasgado do forro de uma gaveta da cómoda, ele escreveu em letras grandes:
SAÍ PARA ALMOÇAR. VOLTO MAIS TARDE.
E colocou-o no caixão aberto. com um último olhar para o quarto despojado, o professor pegou a bolsa, levantou a janela e desceu pelo cano de escoamento. E antes que Frau Edler começasse a comer a sua carne de porco ele já estava fora do pátio e se encaminhava para a estação.
Uma hora depois, expansiva e exuberante, Frau Edler retornou à câmara funerária, acompanhada por diversas amigas, que iam buscar edificação e inspiração. Ela fez uma pausa no limiar, acenou com a cabeça vigorosamente e depois entrou no quarto. E soltou uma exclamação aturdida. Os olhos se esbugalharam e a boca se escancarou como a de um peixe. Sacudiu as mãos. Um grito estridente irrompeu de seus lábios. À visão da cómoda saqueada, ela soltou outro grito. Arrancou os cabelos, roeu as unhas, virou-se e acertou um golpe violento na orelha do marido. Depois arriou no chão, gemendo. Todas as outras pessoas saíram correndo do quarto como se o demónio estivesse em seus calcanhares.
De volta a Viena, Lewis avançava lentamente pela Kartnerstrasse, a caminho do Hotel Bristol. Cinco semanas haviam transcorrido desde aquela manhã em Breintzen quando Herr Schwartz, com uma palavra indiferente, destruíra a sua felicidade. Cinco semanas de busca, em que não conseguira descobrir Sylvia, apesar de seus esforços ingentes. O rosto de Lewis estava contraído e triste, a cabeça abaixada, a gola levantada, enquanto descia pela rua apinhada. Ele emagrecera e os olhos exibiam uma expressão angustiada.
Abrindo a porta de sua suíte no hotel, entrou de modo um tanto abrupto na sala de estar que partilhava com a irmã. E estacou um instante depois, diante do espetáculo com que se deparou. Abraçando-se com entusiasmo no sofá, estavam Steve e Connie.
Lewis ficou imóvel, contemplando a cena com uma contorção amarga dos lábios. Normalmente aquela revelação inesperada o deixaria feliz. Agora, em seu desespero, fazia-o triste. Ele voltou-se em silêncio para sair. Mas, ao fazê-lo, Connie avistou-o.
Ela teve um sobressalto, ficando ruborizada em sua confusão. E Steve, tão vermelho quanto a sua bem-amada, pôs-se a ajeitar a gravata, murmurando:
- Não ouvimos você entrar, Lewis. Quer dizer... isto é... ora, de qualquer maneira, que horas são?
Connie levantou-se e aproximou-se de Lewis, pegando-o pela lapela. E, levantando os olhos para o irmão, disse num tom de profunda afeição:
- Não queríamos contar nada a você no momento, com receio... com receio de transtorná-lo ainda mais.
- Isso mesmo! - exclamou Steve, tornando a cair no sofá e acendendo um cigarro. - Não queríamos que a nossa felicidade se intrometesse em sua dor particular.
Lewis forçou-se a sorrir. Beijou o rosto de Connie, apertou a mão de Steve.
- Parabéns para os dois. Mas devo dizer que nunca pensei que as brigas entre vocês acabariam assim.
Steve revirou os olhos.
- Ainda não acabaram. Mal começaram. Ela me matará antes de chegar ao fim.
- O que não tem importância, pois fico muito bem de preto - comentou Connie.
- Não se iluda, cara de anjo - disse Steve. - Eu a estrangularei antes de partir.
- Terá de voltar para casa se quiser fazer isso - declarou Connie, calmamente. - Não pense que eu deixaria na Europa o homem com quem vou casar em momentos como os atuais. O Normandie zarpa, na próxima semana. O que me diz, Lewis? Não acha que já estamos ausentes há bastante tempo?
Houve silêncio. Connie olhara para o irmão ao falar. E Steve também o fitava, inquisitivo. Lewis pegou um cigarro e encaminhou-se para a janela, irrequieto.
- Talvez você tenha razão, Connie - disse ele, finalmente. - Você e Steve podem embarcar no Normandie. Mas eu... eu acho que ficarei por aqui mais um pouco.
- Ei, espere um pouco, Lewis! - protestou Steve, a voz ansiosa. - Não pode continuar assim. Não há como saber onde Sylvia se meteu. Pode levar uma vida inteira para localizá-la. E o que fará então?
- É isso mesmo, Lewis - acrescentou Connie, com a mesma ansiedade. - Sei que você gosta dela... mas tem outras coisas em que pensar... seus negócios, os amigos, você mesmo.
- É justamente esse o problema - murmurou Lewis. Estou pensando em mim.
Houve outro silêncio. Connie e Steve trocaram um olhar. Depois Connie sacudiu a cabeça, como a indicar que não restava qualquer esperança.
Lewis nunca se sentira tão desolado em toda a sua vida. E desabou numa cadeira.
De repente, enquanto sentava imóvel, sustentando a cabeça nas mãos, houve uma batida alta na porta. Lewis nem mesmo levantou os olhos, mas Steve gritou:
- Entre.
Dois homens entraram. Um deles era estranho, uma figura angulosa, num terno escuro; o outro, algo excitado, era o homem que se apresentara com o nome de Oberholler.
O detetive bateu os calcanhares e fez uma mesura abruptamente, o rosto brilhando com alguma emoção intensa. E falou, rápido:
- Lamento incomodá-los. Mas julgamos que era necessário, bastante necessário. - Ele fez uma pausa para respirar. Permitam-me apresentar Herr Direktor Schuster, da Companhia Equitativa. - O homem anguloso fez uma mesura, e Oberholler acrescentou: - Cavalheiros, Herr Merrid, estamos aqui porque surgiu um novo e muito embaraçoso desdobramento.
- Que desdobramento? - indagou Lewis, com a primeira demonstração de interesse.
- Precisamente isto - declarou o detetive. - O senhor saldou por completo um certo compromisso, com a Equitativa de Viena, relativo a duas pedras preciosas. Meus clientes, se posso dizer assim, naquelas circunstâncias um tanto peculiares, ficaram gratos, em especial, pelo pagamento em dinheiro. - O homem anguloso fez outra mesura e o detetive continuou: - E agora... por favor, vejam isto!
O detetive enfiou a mão no bolso interno do paletó e tirou um rolo de camurça. Abriu-o com dedos nervosos.
Repousadas sobre o couro amarelo, como plácidos olhos esverdeados, estavam duas esmeraldas, enormes e perfeitas. Era estranho vê-las ali, por fim, aquelas jóias fantasmas que haviam alterado suas vidas e tantas outras.
- Santo Deus! - sussurrou Connie. - São lindas!
- Tem razão, madame, são lindas - disse Herr Direktor Schuster, num tom constrangido. - São nossas esmeraldas históricas.
- Não importa a história - interveio Lewis, a voz tensa.
- Onde as encontraram?
O diretor da companhia limpou a garganta e tirou um memorando do bolso do colete.
- Foram entregues em meu escritório ontem, às quatro e quinze da tarde, por uma jovem senhora, ou talvez eu devesse dizer uma jovem mulher, que deu o nome de Frãulein Rudi. Interrogada, ela assumiu uma atitude de extrema frivolidade, alegando que as jóias lhe haviam aparecido milagrosamente num bastão de sabão de barba, que nada podia fazer com elas, pois tinha um encontro marcado com seu agente funerário no Kriegeralp. É claro que mandei logo chamar o nosso bom conselheiro aqui presente. Mas ele, desta vez, nada podia fazer de concreto. Nunca vi meu bom amigo tão desorientado...
- Exato! - exclamou o detetive, ferido em seu orgulho profissional, passando a mão pela testa franzida. - Podemos presumir o que aconteceu. É evidente que Ullwin encontrou algum meio de entregar as jóias a Fráulein Rudi antes de morrer. De qualquer forma, nada podemos fazer contra ela.
- Por favor, expliquem logo o que querem - insistiu Steve, controlando a voz da melhor forma possível.
- Continuando - disse o diretor - fomos obrigados a deixar a moça ir embora e aceitar as esmeraldas. Não havia outra opção, mas a devolução súbita e de todo inesperada coloca a mim e a minha companhia numa situação singularmente difícil.
- Como assim?
- É muito simples, meu caro senhor. Por causa das condições demasiado difíceis do mercado nos dias atuais, já utilizamos os quatrocentos mil xelins que recebemos de Herr Merrid.
Se ele desejasse reclamar o dinheiro, tendo em vista a devolução das jóias, nós ficaríamos, em suma... Steve soltou uma gargalhada.
- Mas isso é muito engraçado! Não percebe, Lewis? É a sua vez agora de pressioná-los.
- Não devemos considerar o caso como um motivo para risos - protestou Herr Schuster com ar nervoso. - Nosso estabelecimento possui a melhor reputação. E agora nos encontramos numa grave situação. A menos...
O detetive interrompeu-o bruscamente:
- Esperamos que talvez Herr Merrid queira considerar as jóias como sua propriedade. Em termos mais simples, deixar o dinheiro e ficar com as esmeraldas.
- Fico com as esmeraldas - informou Lewis em tom suave. - Já lhe havia dito antes que as estava comprando.
- Meu caro e bom Herr Merrid! - exclamou o diretor, com um alívio infinito a espalhar-se por seu rosto. - É uma atitude das mais generosas...
- Não é nada disso - interrompeu-o Lewis. - Eu quero essas pedras. Gostaria de ter alguma lembrança desta aventura.
- O detetive adiantou-se e, com um floreio, entregou-lhe o pacote de camurça. Lewis experimentou uma emoção extraordinária ao pegar as esmeraldas. Contemplou-as com uma sombria fascinação, pensando: "Darei uma a Connie, como presente de casamento. E ficarei com a outra, para o caso de precisar algum dia". De repente, ele indagou: - O que é isto?
Havia um pedaço de papel numa dobra do couro macio.
- Algo que pode considerar mais valioso que as jóias. O detetive acenou de modo expressivo com a cabeça. - Pertence-lhe, de qualquer forma. Mas agora será duplamente bem-vindo.
com um estranho aperto no coração, Lewis pegou o papel. Constatou de imediato que se tratava de um bilhete dirigido a ele. Havia um endereço e, por baixo, as seguintes palavras:
Se ainda está interessado no que procura, eu o aconselho a visitar o apartamento 5-C, no endereço acima. É um apartamento pequeno e agradável, com uma linda vista. A inquilina está em casa depois das seis horas da tarde nos dias úteis. Aos domingos e feriados passa o dia inteiro em casa. De sua amiga do Gasthof.
- Rudi.
Atordoado, Lewis releu a mensagem. Depois, num relance, compreendeu o significado. Soltou um grito e, sem dizer mais nada, encaminhou-se apressadamente para a porta.
- Ei! - gritou Steve. - Ele ficou doido?
- Lewis! Lewis! - chamou Connie. - Você esqueceu seu chapéu!
O detetive reprimiu um sorriso.
- Não creio que seu irmão esteja se preocupando com o chapéu. - Ele afagou a mão de Connie afavelmente. - Mas não se preocupe, minha cara jovem... ele não pegará um resfriado.
A cabeça descoberta, Lewis quase correu pelas ruas. Não tinha a menor ideia de onde ficava o endereço que Rudi lhe indicara. Mas, por fim, obteve uma orientação coerente de um velho. Uma hora de andar apressado levou-o ao distrito de Schõnbrun. Ali, não muito longe do palácio, encontrou uma praça agradável e antiga, com um jardim no meio e casas altas ao redor, despidas já de seu primitivo esplendor, em decadência talvez, descascadas pelo sol, mas ainda harmoniosas e atraentes.
Não foi difícil encontrar a de número 5. Como a maioria das outras casas, fora convertida num prédio de apartamentos. Na frente de uma campainha elétrica de aspecto assustador havia um pequeno cartaz que informava: "Frau Gestner, Zeladora." com o coração em disparada, Lewis apertou a campainha. Um momento depois tornou a apertar. Mas, fosse por culpa de Frau Gestner fosse por culpa da campainha, ninguém atendeu.
Incapaz de se conter por mais tempo, Lewis empurrou a porta e entrou no vestíbulo vazio. Subiu correndo a escada de pedra para o terceiro andar. Ali deparou com a porta em que estava escrito 5-C. Bateu na porta. Vindo lá de dentro, por sobre o martelar em seus ouvidos, ele escutou o matraquear firme de uma máquina de escrever. Depois, uma voz que ele reconheceria entre um milhão de outras gritou:
- Entre.
Lewis girou a maçaneta e entrou. Sylvia estava sentada a uma mesa, junto à janela, inclinada sobre a máquina. Ela estava de costas para a porta e não virou a cabeça para olhar. A seu lado havia um cavalete com diversas figuras esboçadas e projetos para anúncios, além de uma capa de revista.
À visão de Sylvia, toda a pressa e impaciência de Lewis se desvaneceram. Descobriu-se tão nervoso quanto um menino. Ela estava mais magra do que na última ocasião em que a vira, parecia uma imagem de si mesma.
Uns poucos segundos transcorreram. Depois, com voz suave e ainda sem se voltar, Sylvia disse:
- Pode deixar meu almoço aí, Frau Gestner. Em qualquer lugar. - Ela fez uma pausa. - Preciso acabar estes desenhos hoje.
Lewis não se mexeu. Experimentava um pânico repentino pela situação em que se encontrava, um medo mortal de assustá-la. Súbito, ela pareceu perceber que não era a zeladora quem se encontrava no apartamento. Empertigou-se, ficando muito rígida na cadeira. Em seguida voltou-se devagar. Soltou um pequeno grito, abafado na garganta. Houve um longo silêncio. A expressão antiga, séria e paciente, retornou lentamente a seu rosto, e ela murmurou:
- Não deveria ter vindo aqui.
Ela pareceu retrair-se, frustrando o impulso de Lewis de tomá-la nos braços.
- Venho procurando por você desde aquela manhã em Breintzen, Sylvia. Tinha de encontrá-la de qualquer maneira.
Instintivamente, ela sacudiu a cabeça.
- Isso só serve para tornar as coisas ainda mais difíceis para nós dois.
- Para nós dois? Isso significa que você também se importa?
Ela desviou os olhos, mas logo tornou a fitá-lo, resoluta.
- É melhor enfrentarmos a verdade, Lewis. - Ela falava de modo lento e triste. - Pouca diferença faz se me importo ou não. Você conhece a sombra que se interpõe entre nós. Não me refiro a Karl. Isso está acabado. Eu me refiro ao dinheiro, o preço que você pagou para abafar o crime sórdido de meu pai. Detesto falar de meu pai assim, um homem de quem sinto saudade a cada dia de minha vida... mas é a pura verdade. Como as coisas aconteceram é como se ele tivesse roubado todo aquele dinheiro de você. É assim que vejo a situação, Lewis. E nunca poderia esquecer isso.
- Diga-me uma coisa, Sylvia. Você realmente gosta de mim? Ela continuava a fitá-lo com firmeza.
- Eu o amo. E não amarei mais ninguém na vida. Lewis sentiu-se envolvido por uma imensa felicidade. Seu nervosismo desapareceu, e ele disse com voz calma:
- E tudo o que pretende fazer é permanecer aqui, desperdiçando seu tempo...
Sylvia interrompeu-o, num protesto veemente:
- Não estou desperdiçando meu tempo. Ao contrário, estou trabalhando. E continuarei a trabalhar. É verdade que não ganho muito. Mas um dia terei o suficiente para pagar...
- As esmeraldas roubadas?
- Isso mesmo, as esmeraldas roubadas - murmurou Sylvia, baixando a cabeça.
Um sorriso entreabriu os lábios de Lewis.
- É uma pena - ele fez uma pausa. - Porque as esmeraldas me foram entregues esta manhã, através de Fràulein Rudi.
Sylvia empalideceu; as mãos subiram rápido até a garganta. Como se falasse para si mesma, ela balbuciou:
- Então foi por isso que ela veio aqui?
- Certamente - disse Lewis, em tom jovial.
Houve um silêncio prolongado. Enquanto todo o significado da revelação penetrava em sua mente, Sylvia corou, depois tornou a empalidecer. Baixou os olhos. E começou a retorcer, nervosa, um fio solto da blusa de lã simples que usava.
- Está entendendo agora, Sylvia? Você não me deve coisa alguma.
Faltava apenas aquela gentil ironia para fazer com que lágrimas quentes escorressem pelas faces de Sylvia. E no instante seguinte, embora nenhum dos dois soubesse como acontecera, ela estava nos braços de Lewis, soluçando.
- Oh, Lewis, Lewis, você não imagina quanta agonia e humilhação sofri! E durante todo esse tempo sentia tanta saudade de você que chegava a pensar que meu coração se partiria.
A cabeça recostada no braço de Lewis, ela era como uma criança que encontrara um abrigo seguro. Apertando-a com firmeza, ele beijou-lhe os lábios levantados. E, através das lágrimas, Sylvia sorriu-lhe.
O Normandie estava prestes a zarpar para Nova York. Era o final da tarde e caía uma chuva miúda, suave, enevoando o comprido molhe de Cherborug e o horizonte escuro e recortado da cidade mais além. A bordo, havia a intensa movimentação inevitável, o prelúdio para a partida de um grande transatlântico. A última lancha já se juntara ao costado do navio, descarregando os passageiros retardatários e suas bagagens. Os conveses superiores estavam inteiramente molhados, ocupados apenas por umas poucas pessoas. Mas, lá embaixo, nos corredores de intensa iluminação havia alegria e muita confusão. Camareiros em casacos brancos circulavam apressados, levando flores, telegramas, cestos de frutas. Pessoas elegantes também circulavam, procurando por seus camarotes ou pelos camarotes de amigos. Havia conversas, risos, o estampido inefável de uma rolha de garrafa explodindo. Em suma, a promessa de uma viagem bem-sucedida.
Em seu camarote, no convés B, Connie andava jovialmente de um lado para outro, inspecionando tudo, com o ar possessivo de uma mulher recém-casada, enquanto Steve, estendido no sofá, a observava com ar indolente.
- Quer saber de uma coisa, Connie? Tenho de admitir que é maravilhoso voltar para casa.
- Comigo - corrigiu-o Connie.
- Claro, com você. E com Lewis e Sylvia. Connie soltou uma risada.
- Você me faz lindos elogios, querido. Mas concordo que é muito agradável estarmos todos juntos. Devemos fazer uma viagem maravilhosa.
Steve acendeu um cigarro e soprou um jato de fumaça pelo canto da boca.
- Agora que estou casado e entrei para sua família, Conme, acho que posso falar o que penso. Seu irmão é um grande sujeito. Fico contente que tudo tenha terminado bem para ele. Foi muita generosidade da parte dele dar uma das esmeraldas para você.
- Isso foi ideia de Sylvia, meu querido. Sou capaz de jurar que Lewis queria que ela ficasse com as duas.
- Quando penso a respeito de tudo o que aconteceu, Conme, só há uma coisa que lamento.
- E o que é?
Houve uma batida na porta e logo em seguida Lewis e Sylvia entraram no camarote, sorridentes e radiantes. Lewis disse:
- Devíamos subir ao tombadilho para uma última visão romântica da Europa, ao luar. Só que não há lua. E imagino que estamos todos um pouco cansados da Europa. Assim, em vez disso, pensei em tomarmos um drinque aqui.
- Grande ideia, Lewis - aprovou Steve. - Podia ter sido minha. Onde está a imaginação de todo mundo? - Sem se levantar, Steve inclinou-se, pegou o telefone de serviço ao lado da cama e pediu os drinques. - Connie e eu estávamos conversando - continuou ele -, como costumam conversar os velhos casais, a respeito de toda aquela aventura. Foi bastante divertida enquanto durou. Só há uma coisa que me deixa desolado. - Ele olhou para Sylvia, como se pedisse desculpas, antes de acrescentar: - É o professor. Ele podia ser matreiro e impostor... mas não pude deixar de gostar dele. Apaixonei-me pelo velho. E lamento muito que ele tenha morrido.
- Cale-se! - sussurrou Connie, olhando para Sylvia, que empalidecera à menção do pai.
- Estou falando com sinceridade e Sylvia sabe disso. Eu gostava do velho, embora ele me enganasse no pôquer. Quando os drinques chegarem, proponho que fiquemos de pé e façamos um brinde à sua memória. Afinal, ele morreu bravamente.
- Os drinques estão aqui, senhor.
Sem ser percebido, o camareiro entrara no camarote com a bandeja carregada. Um ouvinte atento da parte final do discurso de Steve, ele o culminara com sua intervenção suave e oportuna.
- Obrigado, camareiro - disse Steve.
Depois, voltando-se, ele quase caiu. Todos os olhos se fixaram com um fascínio fatal no camareiro, um homem afável, calvo, rotundo, impecável no casaco branco, fitando a todos com uma expressão radiante e deferente, o perfeito servidor.
- Pai! - exclamou Sylvia, a voz trémula.
- Isso mesmo, minha criança, é o seu indigno pai - declarou o professor, pondo as mãos nos ombros da filha com uma humildade cheia de dignidade.
Steve fez passes no ar, como se tentasse afugentar alguns fantasmas.
- Não pode ser você. Está morto.
- Deveria mesmo estar morto, meu caro rapaz - respondeu o professor, revirando os olhos para cima. - E estaria, não fosse a grande e sublime misericórdia divina. Não fui aniquilado por aquela avalanche, como todos imaginaram. Em vez disso, fui empurrado para o lado. Vocês podem lembrar aquele verso comovente de um poeta cujo nome esqueci: "Uma palha ao vento, uma rolha na torrente". Em resumo, era eu. Mas Deus me poupou, meu caro rapaz. Isso mesmo, Ele me poupou. E depois de dificuldades indescritíveis, consegui escapar para a França. Ao ler na edição europeia do Dispatch a notícia alegre e auspiciosa do duplo casamento de vocês, assim como a informação sobre a viagem no Normandie, consegui obter as mais modestas acomodações neste navio a fim de poder desfrutar a felicidade de reunir-me a todos e talvez, como uma alma reformada, iniciar uma vida nova e melhor naquele grande continente, a América, para onde estamos todos seguindo.
Houve um breve momento de silêncio e depois Connie soltou uma risadinha. E no instante seguinte todos estavam rindo. Ao final, Lewis estendeu a mão.
Muito bem, professor, está aqui. E todos nós sentimos
o maior prazer em revê-lo. E também o ajudarei. Mas lembre-se...
Steve interveio, declarando com firmeza:
- Tem de se tornar honesto.
- Prometo, meu caro rapaz, com toda a emoção do meu coração transbordante, que serei um verdadeiro arcanjo, mesmo que venhamos a jogar pôquer de novo! - Inclinando-se, ele encheu um copo extra e depois levantou-o. - E agora, com o devido respeito, permitam-me propor um brinde. Ao futuro! Que seja feliz e virtuoso para todos nós!
Esperando até que todos levantassem seus copos, o professor tomou um gole e, solene, piscou para o céu.

 

 

                                                                  A. J. Cronin

 

 

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