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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PEDRA CELESTIAL / Daniel Monteiro
A PEDRA CELESTIAL / Daniel Monteiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O ruído de madeira rangendo com o vai-e-vem não atrapalhava o sono, nem o barulho da chuva agressiva com suas gotas pesadas, mas agora a escuridão da noite trazia, entre as chacoalhadas costumeiras, um impacto maior, ritmado, que fez o Capitão Balboa acordar.
— Mas que diabos? — Ele resmungou coçando a cabeça grisalha, que em três ou quatro anos não teria mais cabelo algum. Olhando pela janela da cabine, havia apenas negritude e o som da água batendo. As batidas não pararam, e logo uma voz se destacou entre elas:
— Capitão Balboa! Capitão Balboa!
Ele calçou suas botas, jogou um casaco sobre os ombros e foi até a porta. Antes de abrir, catou seu quepe que estava pendurado atrás dela.
— O que há com essa gritaria, marujo? Não consegue dormir com uma chuvinha dessas?
— Capitão, o barco vai naufragar! — Era Ivan, o jovem que se voluntariara para a viagem poucos dias antes da partida. Não tinha experiência alguma no mar, como a maioria, mas era alto, tinha as costas largas e um queixo forte, e o Capitão Balboa achou que seria útil ter alguém como ele por perto.
— Mas que bobagem você está falando, garoto? — Os dois protegiam o rosto da chuva com os braços. — O barco não vai virar por causa dessa chuvinha!
— Mas não estou falando da chuva, Capitão! Venha ver! — Ele agarrou Balboa pelo braço e o levou até bombordo.

 


 


Capitão Balboa forçou as vistas, mas nada enxergou. A chuva caía como uma cortina turva, já não bastasse a escuridão da noite. Foi quando o ouvido o guiou para onde devia olhar. A movimentação turbulenta das águas denunciava um redemoinho logo adiante.

— Demônios do mar! Aquele maldito peixe com pernas não está fazendo o seu trabalho? — Gritou enquanto corria para a proa. — Bal-t-Moer! Seu desgraçado! O que vocês estão fazendo aí embaixo? Não viram o redemoinho na frente das suas caras azuis? — O capitão berrava com o corpo inclinado, correndo o risco de cair na água à medida que o ondular da embarcação se intensificava.

À frente do barco, emergiu uma cabeça das águas agitadas. Uma figura de longos cabelos pretos e pele azulada. Ele olhou para o capitão, mas não conseguiu ouvir coisa alguma que ele gritava. Pela rapidez que movia o braço, apontando para o redemoinho, com certeza estava reclamando, não que deixasse de reclamar quando estava quieto.

— Vá se catar, velho! Não te ensino como fazer o seu trabalho! — Ele gritou, e mesmo sem ter ouvido a resposta grosseira, Balboa entendeu o recado pelo gesto que Bal-t-Moer fez antes de voltar a mergulhar.

— Eles não são amadores, garoto! Vamos entrar, deixe essas aberrações fazendo o trabalho deles. — Quando já rumava para sua cabine, o barco se inclinou e um barril tombou. Seguiu rolando e bateu em cheio no Capitão Balboa, fazendo-o se desequilibrar e pisar em falso. Foi tropeçando pé após pé, até que chegou à balaustrada e caiu de vez.

— Não me solte, garoto! — Ele gritava repetidamente. Ivan havia segurado o capitão pelos pés, e agora o velho se encontrava pendurado, com a barriga batendo no navio e os braços soltos no ar, em busca de um quepe já perdido para o mar.

— Eu segurei, Capitão! Está seguro! — Ivan não tinha força para erguer o pesado capitão, mas os braços estavam bem seguros nas botas de couro. Mesmo que não pudesse trazê-lo para o convés, também não deixaria o chefe cair na água. Chegou até a dar uma breve risada ao perceber que os dois estavam presos, mas os gritos do capitão, mais enraivecidos e barulhentos que a chuva grossa, fizeram Ivan pensar numa saída. Com o pé esquerdo, puxou uma corda no chão próximo e a chutou pelo vão do balaústre.

— Segure a corda, Capitão! — Gritou Ivan. Balboa agarrou-se como pôde na corda e teve as pernas soltas. Tentou subir pisando na parede, mas o casco estava muito escorregadio.

— Puxe, garoto! Puxe!

Ivan encetou a tarefa de erguer o pesado Capitão Balboa, e não teve sucesso algum até que recebeu ajuda inesperada de Zelmo, outro tripulante. Não era jovem nem forte, mas o reforço foi o suficiente para que pudessem trazer o capitão de volta para o convés. Ivan agachou-se preocupado com o capitão, e Zelmo deu as costas, saindo de cena tão rápido quanto entrara.

— Obrigado, Zelmo! Sem você eu não conseguiria puxar a corda! — Disse Ivan, aumentando a voz para ser ouvido na chuva.

— Obrigado você, Ivan! Sem você eu dormiria com roupas enxutas! — Ironizou antes de desaparecer na chuva.

— Esse inútil... Não sei o que me deu para colocar essa ratazana dentro do meu barco! — Já resmungava o capitão ainda se levantando.

— Ele ajudou a salvar sua vida, Capitão.

— Porque se não fizesse, não receberia pagamento, apenas por isso! Não se engane, Ivan, um tipinho destes não é digno de confiança alguma.

Os dois levantaram e andaram, com passos lentos e seguros, até a porta da cabine. Uma figura alta esgueirou-se pelo casco do navio pôs os pés no convés, a vinte passos dos navegadores.

— Por que não ficam mais um pouco? — Perguntou Bal-t-Moer. Sua pele azul parecia cinza, graças à falta de iluminação misturada com a água que caía sobre seu corpo.

— Já mudou a nossa rota? Não quero cair dentro de um redemoinho. Posso ficar enjoado! — Balboa retrucou.

— Não duvide de minha competência, seu gordo. Venha logo, e veja o que você tanto queria!

Os três reuniram-se para olhar o horizonte. Mas não havia nada além do escuro da noite e da chuva, então Balboa e Ivan permaneceram quietos e incomodados, mas achando que logo algo aconteceria, e acertaram. O barco penetrou uma névoa densa e escura, escondida pela noite. Talvez ela, e não a pobre noite ou a inocente chuva, fosse a causa da escuridão. Não era fumaça, mas Ivan cobriu seu nariz e seus olhos. Assim permaneceu, pois conseguia sentir com a pele a atmosfera pesada daquela névoa incomum; até que ouviu o Capitão Balboa:

— É o Sol?

Tirou a mão dos olhos e viu uma fonte de luz, algo avermelhado, mais adiante. Quanto mais o navio avançava, mais a luz crescia, penetrando o preto enfraquecido, até que ele virou cinza, e a luz brilhou forte. Haviam saído da névoa negra.

— Aqui está, Capitão Balboa, a terra esquecida de Namal-te-Raan! — Disse Bal-t-Moer.

Deixando a névoa negra para trás, os navegadores se deslumbraram com a paisagem diante deles. O céu tinha uma variada progressão de tons de cores: de um azul claro no alto, passava para um branco que se alaranjava até um vermelho forte emanado do Sol nascente. A luz mostrava todo o horizonte marinho, cintilante em seu resplendor, e ainda longe, porém no curso do navio, uma ilha, a tão falada Namal-te-Raan. Enormes florestas cobriam toda sua extensão, e ao fundo delas, uma alta montanha de pedra preta. O céu logo clareou totalmente, perdendo o tom escarlate que anunciou a chegada do Sol, e os demais tripulantes vieram até o convés, atraídos pela luz.

— Ei, olhem só! Tem uns animais acompanhando o barco! — Um deles gritou. Balboa e Ivan correram para ver.

— Eles são golfinhos — disse Bal-t-Moer — os velhos amigos do povo do mar, vejam só! — Ele pulou de volta na água.

Ivan não conseguiu conter o riso quando Bal-t-Moer deu um grande salto giratório, e logo atrás dele um golfinho fez o mesmo. Depois dois, e após alguns segundos já eram dúzias de golfinhos pulando da superfície, fazendo festa para receber os visitantes, e o espírito de comemoração invadiu o navio.

—Nós conseguimos! — Gritou um, e em seguida, a cantoria dominou o convés.


Com a coragem dos filhos da terra e do mar

Sem Ele ou Ela nós vamos em frente

A força do redemoinho não muda caminho

Para terra do ouro, seguir o golfinho

Quando a noite nos guiar para longe

Sem passado nos rumaremos

A glória dos atrevidos é a alma do barco

Sozinhos ou juntos, nós venceremos


II

Enquanto o barco não chegava até a ilha, os tripulantes conversavam. Eram oito ao todo, uma das maiores tripulações, e das mais ativas também. Quando Ivan se aproximou de uma roda de conversas, Zelmo se levantou:

— Você é bem sortudo, garoto! A gente pensou que não voltaria para casa. Embora você ainda precise sobreviver no caminho de volta, para completar sua primeira viagem inteiro.

— Capitão Balboa é o mais famoso de todo o litoral do Leste. Vocês deveriam confiar mais nele. — Respondeu Ivan.

— Ora, moleque, nem saiu das fraldas e quer dar lição? Essa é sua primeira viagem, você não conhece nem metade da história. Desde que surgiu a navegação, anos atrás, o objetivo de todos é chegar nesse pedaço de terra. Era apenas lenda até esses aquáticos confirmarem a existência. O Balboa vem procurando um aquático de confiança para guiar o barco e só agora ele resolveu arriscar.

— Ele já me falou sobre isso. Alguns aquáticos fecham contratos com os navegadores, e quando chegam a mar aberto destroem o casco do navio, deixando todos para morrer naufragados, ficando com todo dinheiro e mercadorias da embarcação.

— Pois é! A maioria dos aquáticos só faz a travessia Leste-Oeste, e os que aceitavam viajar até esta ilha, eram sempre os mais suspeitos! — Zelmo puxou Ivan pelos ombros, mostrando a ilha, ainda longe. — Mas veja só! Chegamos vivos aqui, e essa belezinha é toda nossa.

— Agora parem de converseiro e se preparem para aportar! — Berrou Balboa. Antes de voltar aos afazeres, Ivan deu uma última olhada no baile dos golfinhos, com o Sol nascente ao fundo.

 

***


A ilha era muito maior que o esperado. Mesmo ouvindo tantas referências, todas passadas por aquáticos, nenhum deles criara em sua mente uma Namal-te-Raan tão colossal. Os homens foram de bote até a praia, de areia branca e fofa. Logo após os primeiros metros arenosos, já se erguiam altas árvores frondentes, com troncos grossos e resistentes, mas de tonalidade clara. A selva parecia dominar toda a ilha, que tinha a parte superior folhuda, de um verde interminável. Ali da margem já não se podia ver o monte que avistaram do mar.

— E então, satisfeito, Balboa? — Questionou Bal-t-Moer.

— Muito bom! Como prometido, aqui está metade do pagamento. — O capitão jogou uma volumosa bolsa para o aquático, que agarrou forte. O som metálico da felicidade se fez ouvir no impacto, arregalando os olhos de alguns dos marinheiros gananciosos. Balboa era o mais rico navegador, e seus homens sabiam que a quantia entregue ao aquático seria motivo para combates mortais entre a maioria das pessoas. Uma ponta de inveja se formou nos corações de alguns deles.

— E o contrato continua o mesmo, então? Aguardo três dias e três noites no barco, se não retornarem até lá, abandono levando tudo que eu quiser?

— Sim, já discutimos isso milhares de vezes antes de você aceitar puxar o nosso barco. Marujos, já sabem: nada de corpo mole, quero voltar com esses baús cheios, com tudo que essa ilha pode oferecer aos nossos bolsos! Vamos explorar! — Bradou o capitão, tomando a dianteira.

Os homens puxaram as sacolas e caixas vazias do bote e seguiram o capitão, entrando na floresta. O clima abafado e a quantidade de mosquitos logo se transformaram num grande incômodo para os que desceram descamisados do navio. As costas quentes eram um verdadeiro banquete para os insetos.

— Ivan, venha cá! — Gritou Balboa, enquanto abria caminho com um facão. Passou a cochichar quando o rapaz se aproximou. — Garoto, nós não estamos sozinhos.

— O que quer dizer, Capitão? — Perguntou Ivan, confuso, não tanto pelas palavras, mas pelo súbito tom de voz do capitão.

— Quer dizer que tem mais gente além de nós, droga! Eu já havia sentido alguma movimentação no mato ao redor, mas achei que fosse algum animal. Um pouco depois, ouvi sussurros. — Ivan ficou alerta, tentando captar algum sinal na mata além do grupo, mas o matagal os envolvia completamente, para ver mais adiante era necessário subir numa árvore. — Agora ouça minhas instruções. Vou deixar os homens de prontidão. Quero você no último lugar da fila. É mais jovem e rápido que qualquer um aqui, se cairmos numa emboscada, corra de volta para o navio e busque ajuda dos aquáticos. Mas preste atenção! Se forem aqueles malditos peixes com pernas que pretendem nos emboscar, prepare-se para lutar conosco.

— Pensei que confiasse no Bal-t-Moer... — Sussurrou Ivan.

— Eu confio, oras. E gostaria de continuar confiando até por meus pés de volta na minha terra! Agora vá para o final da fila.

Ivan diminuiu o ritmo e foi sendo ultrapassado por todos, até que ficou sendo o último dos marinheiros, e mesmo andando por um caminho sem obstáculos, todos retirados pelos que iam à sua frente, ele não conseguia largar a espada curta que levava na mão direita. Às vezes espetava as folhagens que formavam o corredor por onde andava, esperando acertar alguma coisa. Capitão Balboa logo avisou aos homens que ficassem atentos, pois pressentia algum perigo por perto.

— Eu não ouvi nada. — Disse um.

— Talvez o silêncio seja o maior motivo para nos preocuparmos. — Alguém retrucou.

— Estava tudo indo bem demais... — Falou Zelmo, tomado pela desconfiança dos demais, apertando com força o facão que carregava com as duas mãos. De repente, no meio do matagal, o grupo dos oito silenciou totalmente e eles puderam escutar um ruído peculiar. Algo sereno, nem um pouco selvagem. Um som inapropriado para o ambiente, e talvez por isso, soasse tão belo. Uma voz feminina.

Um dos homens se movimentou, lentamente, com o joelho bem alto a cada passada, tentando anular sua presença, e a mão que não segurava a faca estava bem agarrada no cinturão, prevenindo qualquer barulho que o denunciasse. Todos observaram o marinheiro quando ele, com a mesma precaução, afastou com a mão o mato alto da lateral e colocou sua cabeça para dentro do verde.

— Ah! — O grito agudo de uma jovem mulher – certamente com não mais de vinte anos de idade – chamou a atenção de todos. Antes de emitirem a primeira palavra, já saíram correndo em perseguição à nativa.

O marinheiro que descobriu a voz foi na dianteira e os demais em seu encalço. A mata fechada não era mais obstáculo à penetração dos homens, que agora avançavam sem a menor cautela. Pedras foram puladas, alguns se meteram em paredões de folhas, sem saber se um penhasco os esperava do outro lado. Alguns se chocaram com troncos de árvore, e o Capitão Balboa, em sua corrida desordenada, teve até seu braço enlaçado por um cipó, mas instantaneamente se livrou com um golpe de facão bem aplicado.

Após inúmeras subidas e tropeços, finalmente a correria se encerrou. A garota foi encurralada próxima a uma queda d’água, e como era atraente, especialmente aos olhos de homens do mar, tão ávidos por uma companhia feminina. A voz não enganou ninguém, era uma verdadeira beldade. Os olhos verdes assustados gritavam por socorro num silêncio tremulante, de costas para o rio que despencava até uma lagoa abaixo. Os oito já haviam chegado, e rapidamente cercaram a menina.

— Calma, não vamos te machucar...

— Olha só, mas que gracinha, e perdida no meio da selva!

— Menina, não tenha medo. Nós não vamos te machucar. — Disse Balboa, tentando gesticular com muita calma, pois a garota certamente não entenderia a linguagem dele.

— Eu não tenho medo de vocês! — A garota respondeu, para a surpresa de todos. Os olhos medrosos agora sustentavam uma audácia imprevista pelos homens – de ardilosos perseguidores a pobres enganados. De chofre, pulou da cachoeira para a lagoa. Todos se espantaram. Os que estavam mais próximos, timidamente estenderam a mão para impedir a menina de pular, mas nenhum deles era bobo para se arriscar, então nenhum dos braços a alcançou. Até que um sopro de vento passou pelo lado de cada um, e a loucura maior foi presenciada: Ivan correu veloz como um gato selvagem e pulou atrás da desconhecida.

— Ivan!

— O moleque não tem miolo na cabeça!

— E agora? Vamos ver! — Os homens foram até a beirada, onde flagraram a imagem da queda d’água. Vivos ou mortos, os dois tinham conseguido cair dentro do lago, pois não havia nenhum corpo nas pedras.

— Vamos descer! — Comandou o Capitão Balboa. Enquanto os homens desciam pela lateral, Ivan e a estranha emergiram buscando ar. Como não havia caminho demarcado, os homens levaram um bom tempo até chegar ao nível do lago, equilibrando-se cuidadosamente, trocando pés entre pedras ásperas e escorregadias. Os dois jovens já tinham nadado até a margem; ele sentado com a cabeça baixa, tentando processar a loucura que fizera e ela de joelhos, olhando para o chão, ofegante.

Ivan percebeu o jeito estranho da garota se vestir. Estava com o corpo enrolado por uma longa fita de pano, que a circundava em várias voltas, desde as pernas, separadamente, até o dorso e parte do braço, deixando os ombros e pescoço à mostra. Os marinheiros já se aproximavam, observando parte da floresta que ainda os cercava.

— Nora-Celtah! — Um grito invadiu a aparente tranquilidade que se instaurara após a perseguição e desistência da menina corredora. Uma mulher igualmente trajada com uma tira de pano que lhe dava várias voltas no corpo surgiu de dentro da floresta, do lado oposto do lago. Ela correu diretamente para a garota ajoelhada.

A mulher tinha pele negra e cabelos longos e volumosos. Logo os homens não tinham mais para onde olhar, a não ser para suas curvas. A faixa enrolada sobre o corpo nu delineava muito bem a silhueta, o que não tinha sido percebido na menina, porém era notório no corpo voluptuoso da mulher mais velha. Seus atributos não chamavam atenção só pelas formas, mas também pela firmeza atlética. Aquele corpo feminino que unia beleza e força era extremamente incomum.

— Acho que este não é um lugar tão ruim para se ficar. — Disse um dos homens, com malícia. Todos já se alinhavam, deixando os três, Ivan e as duas mulheres, presos entre eles e a margem da lagoa.

— Vocês entendem nossa língua, não é? — Perguntou Balboa. O velho era o mais controlado do grupo, apesar de reconhecer intimamente um forte desejo pelas duas. — Precisamos de ajuda. Acabamos de chegar e...

— Ora! Estou mais preocupada é com este rapaz, agressor de uma menina indefesa! — Ela levantou o braço e desceu com força, num tapa certeiro. A mão estalou no rosto de Ivan, que foi pego de surpresa. Ele agressivamente retrucou:

— Quem te deu o direito de me bater? — Ele respondeu, tentando segurar o braço da mulher.

— Ivan! Deixe a mulher em paz! — Gritou o capitão, com sua voz imperativa. Ivan logo se virou para argumentar, mas calou-se diante do que viu. Os sete marinheiros estavam rendidos, com facas rudimentares apontadas para suas gargantas. Vários homens surgiram sorrateiramente. O tapa havia sido uma distração da mulher para que Ivan desviasse o olhar e não percebesse a aproximação dos homens que saíram da floresta atrás de todos.

— Você nos assustou, se expondo tão facilmente, Baga-Seiu! — Disse um dos homens misteriosos.

— Se eu não aparecesse para chamar a atenção deles, com certeza iam perceber vocês escondidos detrás dos troncos. A minha exposição foi o que poupou vocês de entrar em combate. Amarrem logo esses intrusos!

 

III

O grupo dos viajantes do mar seguiu por dentro da floresta, amarrados com cipós nos tornozelos e pulsos. As três mulheres pareciam comandar o grupo de captores, elas usavam a mesma vestimenta, uma longa faixa que rodeava o corpo diversas vezes. Os homens, longas túnicas. Nenhum deles usava calçados, o que já os denunciava como verdadeiros bárbaros, selvagens sem qualquer instrução.

— Podiam arranjar umas túnicas para nós, hein! Se continuar desse jeito, os mosquitos vão nos matar antes de chegarmos à sua cidade. — Um dos marinheiros reclamou, mas foi ignorado, como vinha acontecendo desde a captura. Pegos de surpresa, logo foram amarrados e postos para caminhar, mesmo após gritaria geral de protestos. O Capitão Balboa, mais resiliente do grupo, tentou conversar com calma, mas nem ele obteve resposta alguma. Os selvagens só conversavam entre si, e muito pouco.

— Esses macacos-do-mato vão ter o que merecem, deixa só eu recuperar minha lâmina... — Disse Zelmo num baixo tom de voz para Ivan.

— Eu já estou providenciando minha fuga sem a lâmina. — Respondeu o rapaz. Zelmo franziu a sobrancelha em dúvida, mas logo entendeu quando Ivan inclinou-se para mostrar o que estava fazendo. Esfregava uma pedra pontuda no cipó que lhe prendia os pulsos.

— Maldito moleque sortudo! — Retrucou Zelmo.

Quando foram capturados, todos tiveram as armas e sacolas confiscadas, mas Ivan, que estava ainda na beirada da lagoa quando os selvagens saíram da mata fechada, foi mais esperto. Catou uma pedra qualquer que estava ao seu lado e enfiou na beirada da calça. Quando já estava sendo levado com os outros, retirou a pedra e começou o lento processo de rompimento do cipó.

Das três mulheres, a única que andava separada era a jovem que pulou no lago, e era ela também a única que portava uma arma, a espada curta de Ivan. Ela parecia estranhamente enraivada, e já tinha espetado levemente alguns prisioneiros com a ponta da espada, coisa que nenhum dos outros selvagens tinha feito, apenas ameaçado.

“Acho melhor deixar a espada com ela, vou ter que arranjar outra”, pensou Ivan. O cipó dos pulsos já tinha sido cortado, ele apenas segurava as beiradas para manter as aparências. Livrar os pés era muito mais complicado. Teria que pegar uma das espadas de volta e cortar o cipó de uma só vez, e precisava ser um golpe certeiro, pois um erro daria aos selvagens tempo de perceber e atacar. Ou até pior, o erro custaria a Ivan o seu próprio pé. Tomando cuidado para não ser ouvido pelos captores, e omitindo suas palavras até os próprios companheiros como consequência, Ivan explicou a Zelmo o seu plano.

— Ei, moleque. Vou te dar uma ajudinha. — Sussurrou Zelmo, e indicou com um sinal de cabeça, um dos homens selvagens. Ele andava desatento, sem qualquer malícia. O facão na cintura dele tinha o cabo apontado para o grupo de aprisionados, totalmente desprotegido. Ivan aproximou-se lentamente, enquanto continuava com a farsa dos pulsos amarrados.

Zelmo e Ivan já se encontravam em cantos opostos do grupo capturado, com Ivan perto do selvagem desatento. Ivan levantou a cabeça para ver o dia claro sobre as folhagens, respirou fundo e sentiu o vento da fortuna chacoalhar os galhos altos. Era suficiente. Piscou o olho para Zelmo. No meio da quietude dos selvagens, e dos resmungos dos marinheiros, um grito se sobressaiu:

— Ai! Ai! AiAiAi! — Zelmo teve uma súbita crise de dores. Dores tão fortes que causaram gritos de agonia contagiosa. Alguns, após o susto inicial, só de ouvir o sofrimento do amigo, sentiram uma pontada de dor mesmo sem saber qual havia sido a causa da lamúria.

— O que é isso? — Gritou Baga-Seiu, a provável líder.

— Zelmo! O que houve? — Todos perguntaram em coro.

Todos se voltaram para Zelmo, caído no chão com uma tremedeira incontrolável. “É um baita ator, este folgado”, pensou Ivan. Os selvagens, levados pela curiosidade, saíram da formação que rodeava os marinheiros, para checar o barulhento Zelmo, e foi esse o momento aguardado por Ivan. Largou o cipó dos pulsos e esticou o braço para alcançar o cabo do facão. Pegou firme e puxou de uma vez.

— Ei! — Gritou o selvagem distraído, antes mesmo de virar o rosto. Quando virou, já era tarde. Ivan descia o braço num golpe mirado entre os pés, que dilacerou as amarras e o deixou livre para correr.

— Vá embora, moleque, e volte mais tarde para nos libertar! — Gritou Zelmo, que ria desenfreadamente enquanto Ivan se afastava do grupo.

— Zelmo! O que vocês fizeram sem a minha autorização? — Esbravejou Balboa, e agora com uma fúria verdadeira, expulsada do âmago pelas cordas vocais potentes.

— Estou apenas nos dando uma chance, velho. Há, há, há...

— Peguem o fugitivo! Você, corra atrás dele! — Gritou a líder.

Um selvagem obedeceu e disparou em perseguição. Quando olhou por entre os troncos para precisar a direção em que Ivan fugia, teve uma surpresa. Nora-Celtah já corria na sua frente, rápida como o vento da noite, atrás do rapaz.

— Nora-Celtah! Volte para o grupo, eu pego o fugitivo! — O grito correu pelo ar, mas não alcançou a garota. Ela era mais rápida.

“Agora eu volto para o barco e faço o quê? Peço ajuda para os aquáticos?”, Ivan pensou consigo. As passadas eram rápidas e longas, por algum motivo ele sentia que se fosse pego novamente, não seria tratado apenas como mais um prisioneiro. Olhou para trás. A garota vinha no encalço. “Com certeza consigo derrubar essa daí”, mas ela estava armada, então Ivan decidiu continuar correndo, pois não tinha mais o facão; escorregara da mão logo que começou a correr.

— Baga-Seiu, vamos ficar aqui até eles voltarem? — Perguntou um selvagem.

— É melhor irmos andando. O garoto é rápido, mas não sabe para onde vai. Se continuar seguindo reto, é provável que morra antes que Nora-Celtah o alcance. — Respondeu a mulher, e retomou a caminhada, liderando o grupo.

— Cadê essa praia que não chega?! — Gritou Ivan. Já estava ofegante. Os perseguidores mantinham a distância, mas não apresentavam cansaço algum, o que fez Ivan pensar em se entregar uma vez. Três vezes, na verdade. Ele já sabia que estava num caminho estranho, pois havia passado por uma região pedregosa, e viu de longe um mangue escuro, que tinha certeza de não ter visto antes. A terra do chão agora era mais rígida, e as árvores mais espaçadas. De chofre, um zunido passou reto à frente do seu rosto. Uma flecha disparada para acertar na cabeça.

— Mas o que é isso?! — Gritou Ivan. Por um segundo parou e tentou ver de onde a flecha havia sido lançada. Com certeza não era a garota, que estava na traseira, e a flecha veio mais pelo lado. Viu um borrão vermelho, mas se lembrou de continuar em movimento, pois parar era morte certa. Voltou à corrida.

Enquanto não via mais flechas cruzando seu caminho, Ivan encetou um pensamento inusitado. “Eu sei que meu pé está sendo judiado, mas nem sinto mais nada, apenas a pisada dura. Estranho como amanhã ele vai estar realmente dolorido”, passou um bom tempo para pensar isso, ao ponto de não perceber o que mudara à sua volta. Definitivamente estava em outro local. As árvores rarearam, e mesmo estando presentes, não era mais apropriado dizer que estavam numa floresta. O chão de terra amarela, com muitos pedregulhos, tornava as passadas mais fáceis que na floresta, que não era plana. Ivan só voltou a si quando notou uma pedra enorme e dois grandes vultos vermelhos encimando-a. Seus olhos focalizaram e no mesmo instante, ele ouviu o grito:

— NÃO! — Nora-Celtah se desesperou, e Ivan sabia que era algo sério. Virou de costas e viu a menina se jogando no chão. Imitou-a sem medo. Caiu de costas e levantou o olhar para as criaturas na pedra. Antes de ver o que faziam, ou o que era a máquina que operavam, um estrondo tomou conta do local.

Pássaros debandaram e uma fumaça branca surgiu da dupla de cima da pedra. Um grito de dor ecoou. Era o selvagem que seguia Nora-Celtah. Ainda pressionando os ouvidos, por causa da explosão, Ivan percebeu mais gritos, desta vez da própria garota.

— Eu vou me entregar! Por favor, não me matem! — Ivan baixou o olhar e viu a sua perseguidora se erguer do chão com as mãos para o alto, largando a espada curta. Ele fez o mesmo, mas antes de se pôr em pé, alguém lhe bateu na nuca e o mundo se apagou.

 

IV

A Lua, o mestre e o professor

— Ei, garoto da Lua! Largue a arma.

— Não vamos começar a treinar?

— Eu vou te ensinar a ser um guerreiro completo, mas por enquanto, nada de armas. Temos que começar por aqui. — Ele apontou a testa com o dedo indicador. — A primeira lição: sempre pensar antes de agir. Quando você entra numa briga, tem que ser para vencer. E a vitória precisa ser definitiva, sem arrependimentos futuros. O que aconteceu não tem volta, por isso nada de dúvidas!

— Falando com conhecimento de causa, Velho? Já se arrependeu de matar alguém, né? — Disse Ivan num tom cômico, sem perceber a maldade entremeada naquelas palavras.

— Eu nunca matei ninguém, que isso fique bem claro!

— Hã? Como assim? Quer que eu acredite que você passou anos sendo perseguido por aquelas pessoas, e nunca matou ninguém?

— Eu não vou me repetir! — Admoestou.

— Certo, então o senhor nunca matou ninguém... Então por que se acha qualificado para me transformar num grande guerreiro? — Ivan questionou. Queria ser um bom aprendiz, mas não podia evitar essas perguntas, e se podia, acaba perguntando do mesmo jeito. Impulsos da juventude.

— Porque eu fui ensinado pelos melhores. — Os olhos do Velho se incendiaram com o fogo negro da verdade, e Ivan tinha certeza que ele falava sério, porém o espírito questionador se manifestou novamente.

— E esses melhores se arrependiam depois das lutas?

O Velho respirou fundo, deu alguns passos para frente, passando por Ivan, e se sentou numa elevação do gramado.

— Meu pai nunca se arrependeu de nada na vida dele. Mas meu mestre... É diferente... Sente aqui na frente, quero te contar uma coisa.

Ivan sentou em frente ao professor e apurou os ouvidos.

— Meu mestre era órfão de mãe, assim como você. Ele cresceu com o pai e um professor. Quando chegou numa certa idade, ele resolveu partir sozinho numa missão, mas para começar, ele precisou passar por um teste... — O velho fez uma pausa, e o silêncio foi tão grave que quase contou a história por si. — Ele teve que duelar até a morte com o professor.

Ouvir aquelas palavras, diretamente da boca do seu professor, deixou Ivan inquieto.

— O professor era um lutador completo. Vencê-lo significava estar preparado para enfrentar as provações que se seguiriam. Mesmo com dúvidas, meu mestre resolveu encarar a briga, e os dois lutaram. Foi uma luta sem igual, uma das mais difíceis, ele me contou. Acabou vencendo, mas a vitória daquele dia se tornou um grande lamento que voltava para assombrá-lo com o passar do tempo. Mais tarde, ele percebeu que a vitória tinha sido uma ilusão. O professor tinha força para matá-lo com certa facilidade, até, mas optou pela vitória do pupilo.

— Ele quis morrer? Não seria melhor apenas dar uma boa lição no aprendiz?

— E ele deu. Ensinar a arte da luta, qualquer um podia fazer. Mas ele decidiu dar algo que apenas um verdadeiro mestre poderia. Ele deu a lição que não fere o corpo, mas a alma. O sofrimento espiritual do meu mestre, durante os anos que se seguiram, era mais significativo que qualquer ferimento físico que ele poderia ter levado naquele dia.

— Acho que entendi...

— Entendeu mesmo? Você é capaz de imaginar o tamanho da dor? Um garoto venceu uma importante batalha, mas não teve júbilo algum, pois acabara de matar o seu mestre. Anos depois, percebeu que o mestre havia se sacrificado, para que seu discípulo pudesse avançar na sua difícil missão. Ele demorou muito tempo para, enfim, encontrar paz interior.

— Eu acho que entendi, Velho. De vez em quando eu me lembro de algumas coisas da minha infância. Coisas que eu odiava com todas as minhas forças. A superação de cada uma delas com certeza me fez crescer. Quer dizer, tudo faz sentido se encararmos as provações e sofrimentos como experiências que nos tornam mais fortes quando encontramos a paz. Só que me assusta pensar que posso viver sem nunca superar algum desses traumas...

— Você não deve evitar o sofrimento. Viva procurando a felicidade, sua e dos próximos a você, mas se tempos ruins chegarem, você tem que encarar o problema de cabeça erguida. Faça o melhor, ganhe experiência e saiba que todo problema tem uma solução. Eu estarei ao seu lado, para que possamos atravessar todas as dificuldades... — O Velho olhou nos olhos de Ivan, e ele soube exatamente como terminar a frase.

— Sem arrependimentos.


Capítulo 2: Pessoas estranhas, num lugar diferente


I

O Sol já havia deitado quando Ivan retomou a consciência. Estava amarrado pelos pés e mãos novamente, mas de um jeito mais incômodo. Estava pendurado por um tronco fino, que era carregado por duas pessoas. Tentou ver quem eram, mas a noite já conseguia esconder os detalhes, embora Ivan não acreditasse que ela estivesse muito avançada. O céu estava claro, as estrelas numerosas e a Lua brilhante, quase cheia. "Não estamos mais na floresta", Ivan percebeu. As pisadas dos homens faziam um barulho seco, quase áspero. Não havia galhos nem copa de árvores por perto. Ivan gostaria de perguntar para onde estava sendo levado, mas não quis entregar que tinha acordado.

Permaneceu quieto, olhos fixos na Lua, quando lembrou da garota que o perseguia. Fechou os olhos, tentando ouvir algum som que indicasse ela estar junto, mas não conseguiu tirar conclusões concretas. Algumas passadas desconexas, o que indicava ter mais gente andando, além daqueles que o carregavam, mas isso não era suficiente para saber se a menina estava sendo levada.

O balançar trouxe à memória algumas noites passadas no convés do barco. Quando não estava muito frio, Ivan sempre se deitava numa rede para relaxar e olhar o céu escuro, o que invariavelmente o fazia pensar em trivialidades, memórias desconexas, e pensamentos que sempre o levavam ao sono. Desta vez, ironicamente foi nisso que ele pensou antes de voltar a dormir, acalentado pelo ninar cruel dos sequestradores.

— Muito bem, Rubal!

— Bela captura, garoto!

Alguns gritos e saudações despertaram Ivan. Fogueiras de um lado e do outro, homens e mulheres circundando-as. Alguma gritaria, passos apressados, outros lentos e despreocupados. Estava num povoado, com certeza.

— Ei, onde estamos? — Perguntou Ivan.

— Cala a boca, intruso. Quando entrou correndo no nosso território sabia bem aonde ia chegar! — Respondeu o que segurava a ponta dianteira do tronco.

— Não dê atenção a essa gente, Rubal — Disse outro homem, que esvaziou uma tigela jogando o líquido no rapaz. Era sopa e estava saborosa, mas fria. Com o cabelo e rosto molhado, Ivan resolveu não fazer mais perguntas. Mais algum tempo de caminhada, mais fogueiras e rostos animados passando pelos lados. "Não está tão frio, para quê os agasalhos e ainda a fogueira?", pensou Ivan quando percebeu que na vibrante iluminação alaranjada, todos os homens e mulheres estavam vestidos com peles grossas. De chofre, uma elevação. Os pulsos e pés torcidos passaram a incomodar bastante. Ivan agarrou o tronco com as mãos, visando diminuir o peso pressionado na corda dos pulsos.

— Vão se arrepender disso tudo! — Uma voz gritou. Ivan sorriu ao reconhecer o tom de voz agudo. Não porque tivesse alguma simpatia pela pessoa que o enganara, prendera e depois passara a persegui-lo empunhando a espada que outrora era dele. Apenas era recompensador saber que ela também sofreria o mesmo destino dele. "Ela merece!", pensou, mesmo que na realidade não a desejasse mal.

Os homens pararam a caminhada. Deitaram os dois no chão e abriram uma grande porta. Pelo som, era metal. Uma grande jaula de metal. Cortaram a corda que os prendiam ao tronco e jogaram os dois lá dentro.

— E não façam barulho! Estamos cansados de carregar vocês! Se não nos deixarem dormir, entramos aí e esmurramos os dois — Disse um deles.

— Quem vai ficar vigiando? — Perguntou o outro.

— Eu não sei! Hoje você que estava guardando o posto, eles são seus prisioneiros, não meus. Meu trabalho é apenas te ajudar na captura.

— Bom... Daí eles não saem. Vamos descer — Os sequestradores deram as costas e foram embora. Apesar de não ter nenhuma fonte de luz próxima, a luminescência das fogueiras no nível mais abaixou formou a silhueta dos homens, e uma coisa intrigou Ivan. Quando se viraram para fazer o caminho de volta, delineado junto a seus corpos, no traseiro ele pensou ter visto grandes caudas felpudas.

— Malditos, quando eu sair daqui, eles não perdem por esperar! — Disse a garota, lembrando a Ivan que ela estava ali ao lado dele.

— Você está machucada? Não se preocupe, quando pudermos contar com a luz do sol, daremos um jeito de sair daqui! — Ele foi até ela, solícito. Pegou a mão da menina para ver se o pulso estava ferido, mas um tapa acertou seu rosto em cheio.

— O que está fazendo? Solte meu braço! — Ela ordenou. Ivan estava de olhos arregalados, impressionado com a falta de gratidão da menina. Mesmo depois de ser preso, agredido e capturado, alí estava ele, pronto para ajudar e ela reagiu dando um tapa no rosto dele. TAP! Mais um.

— Já disse para me soltar! — Ele largou o pulso dela.

A garota se afastou até chegar ao canto mais ao fundo da jaula. Ivan virou-se para a porta e deu passos lentos. Com os dedos agarrados às barras da jaula, ele se perguntou em voz baixa:

— Que droga de lugar é esse?

Enquanto olhava a amplitude escura ser quebrada por feixes vermelhos e amarelos vindos de algum lugar lá embaixo, Ivan percebia que aquele lugar, aquela gritaria, aquela iluminação, alguma coisa dali estava criando nele um fogo feroz e selvagem, que quase o fez revidar um tapa de uma garota que não oferecia perigo algum. Uma chama feroz se formava dentro dele, e a permanência dele naquele lugar com certeza serviria de alimento para o fogo. Quando subiu o olhar para admirar a Lua, ele lembrou:

— Nora-Celtah. Foi assim que a chamaram.

 

II

O despertar aconteceu ainda com o vermelho do Sol nascente. Ivan cerrou os olhos para admirar através das barras o que o havia fascinado tanto no dia anterior. Nora-Celtah estava acordada, mas não disse uma só palavra. Tinham ido dormir cada um no seu canto na noite anterior.

— Preciso ir ao banheiro...

— Eles logo vão vir aqui nos retirar da jaula. — A menina respondeu.

— Então você acordou querendo conversar? — Perguntou Ivan. A beleza da garota tinha chamado sua atenção no dia anterior, mas agora ela tinha os cabelos castanhos desgrenhados, a pele suja e estava abatida.

— Eu nunca disse que não podia conversar. Você que se atreveu me agarrando! — O aspecto selvagem se adequou à valentia da menina, casando perfeitamente imagem e atitude.

— Eu só segurei o seu pulso, não tem nada de atrevimento nisso! — Tentou explicar.

— Claro que tem! Eu não posso me misturar a homens se quiser ser a Ligeia! — Retrucou incontinenti.

— Tudo bem — Ivan preferiu não levar a discussão adiante — mas como você sabe que eles vão nos libertar?

— Sempre fazem isto. Primeiro tentam tirar informações, e quando não conseguem, trocam a nossa vida por uma tentativa. — Disse Nora-Celtah, convicta.

— Espera, espera... Para começar, quem são eles? E quem é você? Por que nos emboscaram? — Perguntas demais, e ainda insuficientes. Interrompendo a busca de Ivan por respostas, surgiram passos. Alguém estava subindo a ladeira.

— Ainda bem que já estão acordados. — A voz não tinha nada especialmente estranho ou anormal, por isso o abalo de Ivan foi tão grande ao se virar e encarar a monstruosidade. O captor era um homem com quase a altura de Ivan, um pouco mais alto, com menos musculatura, porém seu corpo tinha uma pelagem vermelha que o cobria por inteiro, escurecida na região das mãos. Uma longa cauda volumosa saía do traseiro. Os olhos dourados completavam o conjunto de estranhezas que fizeram Ivan recuar na jaula.

— Exijo ser devolvida! — Nora-Celtah aumentou a voz sem perder tempo.

— Não está falando com os covardes submissos que vivem no seu território, garota! Adiantem! Não quero perder a manhã inteira lidando com vocês! — Ivan, acuado no canto da jaula, não se recuperou da visão assustadora do monstro que andava e falava como homem, e acabou sendo novamente amarrado com Nora-Celtah, porém agora eles saíram do cativeiro de pé, andando.

Desceram a ladeira até chegar aos arredores do vilarejo. Uma vasta área aberta, de barro endurecido e chão firme, com diversos buracos no chão, cada um grande o suficiente para entrar uma pessoa, ou fosse o que fosse aquela criatura que os guiava. Todos eram iguais, até mulheres e crianças, cobertos de pêlo vermelho, mãos escuras e olhos dourados. Eram aberrações, sim, mas definitivamente aberrações humanas, pois não se comportavam como animais.

Alguns saíam de suas casas, e ao ver os monstros saindo dos buracos Ivan logo pensou intrigado: “Eles vivem mesmo nessas tocas...”. Outros já caminhavam pelo local, conversando, martelando e até montando estranhas estruturas de madeira, que Ivan nunca vira. Quando um grupo de infantes chegou perto, fazendo caretas e provocações, o marinheiro pôde notar que em alguns havia uma saliência no rosto, que ele só pode descrever como um focinho.

— O que vai fazer com eles, Rubal? — Perguntou uma.

— O que parece? Estou levando para o professor. Vá correr por aí, que eu não posso ficar brincando.

— Ora, mal se graduou e já está se achando parte dos Conhecedores! Mas que atrevido! — Zombou um deles, antes de saírem correndo. Ivan percebeu que usavam roupas parecidas com a dos selvagens de antes, as túnicas. Não eram tão comportadas, mostravam boa parte do corpo, e o pano usado tinha um trabalho bastante refinado, mas a composição das vestes era praticamente a mesma. Ali, todos usavam as túnicas, diferentemente das mulheres selvagens, como Nora-Celtah, que vestiam algum tipo de bandagem por todo corpo.

A cada buraco – ou casa – Ivan tentava espiar, mas não conseguiu ver nada além de caminhos cavados na terra. “Qual será a profundidade dessas tocas?”, pensou. Os três pararam em frente a uma das tocas. Rubal levantou duas hastes de madeira, com uma larga tira de couro esticada entre elas. Bateu uma, duas, três vezes. Com o funcionamento parecido com um tambor, Ivan percebeu que o som das batidas se propagava ampliado pelo túnel no chão. Alguns segundos depois, alguém saiu do buraco.

— Oh. Já está aqui tão cedo? Muito bem, Rubal! — Um bem velho, com pêlos de cor prateada no lugar do vermelho vivo das crianças. Rubal fez uma reverência exagerada, quase se pondo de joelhos.

— Obrigado, professor. Como esta é a minha primeira captura, estou um pouco ansioso, perdoe-me se cheguei cedo demais. — Disse com certa timidez. Ivan não pôde deixar de se incomodar, ao ver aquela criatura – até então um verdadeiro monstro – coberta de embaraço. Mais ainda ao ver que o outro era chamado de professor.

— Pois, se conservar este entusiasmo, eu garanto que em poucos anos será um dos uroncions de maior prestígio. De qualquer forma, não há nenhum tratamento especial, leve-os para o Professor Simoé e deixe que ele se encarregue de tudo.

Após uma reverência de despedida, Rubal retomou a caminhada com os prisioneiros, e antes de virar-se completamente para andar, Ivan percebeu um semblante interessado no rosto do velho, algo direcionado para suas vestimentas. “Devo estar me destacando, realmente!”, Ivan pensou. Enquanto seguiam, Ivan notou várias elevações de terra, como o lugar em que foi mantido aprisionado. Eram essencialmente pequenos morros, com finalidades diversificadas. Avistou três que serviam de prisão e nada mais eram que jaulas erguidas em terreno suspenso. Em outras não era possível deduzir a utilidade, pois eram apenas montes comuns, com um portal de madeira arqueado na base, indicando o local de subida, e um símbolo curioso estampado no topo do portal. Cada um desses montes tinha um símbolo diferente, que nunca se repetia. Mais adiante, onde os buracos na terra já eram esparsos, e já podia se ver uma vegetação mais presente, Ivan encontrou duas das criaturas arrastando uma pesada estrutura cilíndrica, e depositando num pequeno toco de madeira inclinado.

— Ei, o que eles estão fazendo? — Perguntou à Nora-Celtah.

— O mesmo que tentaram fazer com a gente, ontem. — Ela retrucou.

— Calados! Não estamos aqui para conhecer a cidade! — Vociferou Rubal. “Isso aqui é uma cidade? Quanta pretensão...”, Ivan resmungou baixinho. Olhou ao redor e só viu um vasto terreno plano totalmente esburacado, com pequenos morros em alguns pontos e algumas praças onde a maioria das pessoas se juntava para construir engenhocas de funcionalidade duvidosa. Definitivamente não se encaixava no perfil de cidade que Ivan conhecia.

BUMMM!!!

Um grande estouro fez Nora-Celtah e Ivan se assustarem, mas Rubal permaneceu a caminhada como se nada tivesse ocorrido. Quando olhou para trás, Ivan notou uma grande fumaça branca saindo do cilindro, e os dois que o haviam posicionado, estavam afastados, com as mãos cobrindo as orelhas. Quando a fumaça se dissipou no ar, um deles correu, aparentemente procurando o local que fora atingido, contando os passos para chegar ao ponto exato. O outro escreveu alguma coisa num grosso pedaço de papel.

— O que diabos foi aquilo? — Perguntou Ivan, diretamente para Rubal, que não se importou em responder. — Você conhece aquilo? — Perguntou para Nora-Celtah.

— Eu sei que é uma arma, mas não sei como funciona. Eles produzem esses trovões, e usam para afastar invasores como você! É uma arma muito poderosa, mas ninguém do meu povo conseguiu explicar ou imaginar um jeito de reproduzir algo parecido.

— Ora, você fala como se também não tivesse invadido o território deles! E se eu soubesse que em algum lugar dessa ilha se produziam nuvens que disparam trovões, seria o último lugar para onde eu iria!

— Calados! Estamos chegando, não quero ouvir a voz de nenhum dos dois!

O trio se aproximava de uma área com várias mesas circulares de pedra. Diferente do resto das aglomerações, ninguém ali parecia empenhado em construção de coisa alguma, apenas estavam sentados conversando. Rubal liderou a fila até uma das mesas, a que só possuía figuras velhas de pelagem prateada ao seu redor. Após parar um pouco afastado, ele fez mais uma reverência.

— Nobres professores, peço a atenção dos senhores.

— Ora, se não é o jovem Rubal — disse um dos velhos — o que o traz até o Círculo de Conhecedores tão cedo?

— Nunca tive intenção de interromper as discussões dos senhores, mas é que o dever me obrigou. Estou com estes prisioneiros, e preciso que me deem permissão para levá-los de volta para suas terras e tentar negociar algo pela liberdade deles. Caso o Professor Simoé possa ceder um pouco do seu tempo...

— Mas é claro que sim — disse um dos velhos, levantando-se — com todo prazer. Meus caros debatedores, peço licença para sair.

Após o consentimento dos companheiros de mesa, o velho se encaminhou para o trio. Era bem baixo e barrigudo, com um grande focinho no rosto e longos bigodes espetados. A cauda se movia lentamente, algo bem diferente do que havia sido visto nos outros.

“Que estranho, está me dando sono? Acordei há pouquíssimo tempo.”, pensou Ivan. O movimento da cauda era quase hipnótico, e Nora-Celtah também sentiu certa tontura após observar o movimento não usual da cauda do velho cinzento.

 

III

Simoé levou os três a uma toca isolada, guardada por três jovens portando lanças de cobre. Os três fizeram reverência ao velho professor, que lhes pediu ajuda com os prisioneiros.

— Primeiro a menina. Quando eu terminar com ela, podem descer o rapaz.

Dito isto, dois dos guardiões seguraram Nora-Celtah enquanto o terceiro a desamarrava. Escoltaram-na para dentro da toca, deixando do lado de fora apenas Ivan, Rubal e o terceiro guardião.

— Ei! O que pensam que vão fazer com ela?! Nora! No... — O guardião acertou um soco no estômago. De barriga vazia há sabe-se lá quantas horas, o golpe teve efeito imediato no rapaz. Uma dor aguda instantaneamente se propagou por todo tronco fez Ivan cair de joelhos, demonstrando a fraqueza em que ele se encontrava. Em nenhum momento Nora-Celtah se manifestou. Desceu calmamente pela toca sem criar confusão.

O chão de terra e poeira escorava um lado do rosto de Ivan. Ele respirou bem forte, cansado do que tinha acontecido desde que desceu do maldito navio. “Até que a situação não está tão ruim. Vou fugir daqui e voltar para o barco. Com certeza o capitão já deve estar lá me esperando.”, pensou cheio de otimismo. No fundo sabia que era bem improvável, mas o que resta para um homem que fracassou em superar os desafios e adversidades, senão a esperança? Uma pequena nuvem de poeira se levantou quando ele expeliu o ar dos pulmões pelas narinas, e se deu conta que aquele chão duro era o único a lhe acolher – e quem sabe, se ele ficasse comportado o suficiente, até dizer palavras consoladoras – na atual situação.

Minutos longos se passaram, cada um mais demorado que o anterior, e Ivan permaneceu estático, piscando lentamente, sem pensar em nada além da sua respiração, quando ela levantava mais poeira.

BUMMM!

O barulho estava mais longe, mas Ivan percebeu o trovão mágico saído do cilindro metálico. De chofre, algo mudou próximo a ele, e o fez esquecer o longínquo trovão artificial, por mais fascinante que fosse. Uma nuvem amarelada começou a se elevar do buraco que abrigava Nora-Celtah.

— Ei, algo está queimando lá embaixo! — Apesar da exclamação preocupada, mais uma vez foi ignorado.

A nuvem estranha cresceu, e logo a toca parecia uma chaminé queimando madeira da Floresta dos Troncos Amarelos. Na realidade, a fumaça daquela madeira não era diferente das demais, porém foi o que Ivan imaginou no momento.

— Por que não fazem nada? — Ivan levantou-se com rapidez, mas antes de atingir o equilíbrio sobre as duas pernas, Rubal deu uma rasteira que o fez cair de lado.

Novamente no chão, ele ouviu passos, e em seguida Nora-Celtah surgiu, carregada pelos braços. Os dois guardiões a deixaram sentada no chão e foram até Ivan. O marinheiro não cooperou, se debatendo enquanto tentavam segurar seus braços.

— Além de fraco, é imprudente! Eu devia abrir um buraco em você, para ver se assim fica quieto de uma vez! — Rubal ameaçou, tomando a lança de um dos homens e pressionando contra a pele de Ivan, que se conteve. Não pela ameaça da lança, pois a teimosia de Ivan chegava ao ponto de se confundir com burrice, em certos casos; mas porque notou o estado de Nora-Celtah, que apesar de desnorteada, fez sinal para Ivan que estava bem.

— Levem ele! — Ordenou Rubal.

Já desamarrado, Ivan pensou que poderia se soltar e tentar fugir, mas a curiosidade de conhecer aquelas tocas falou mais alto, e ao que parecia, nada de ruim ia acontecer a ele, apenas um pouco de tontura, talvez.

O caminho não era muito íngreme, mas bastante intimidador. Mal dava para os três andarem lado a lado, e a altura era um pouco maior que Ivan. “Pelo menos tem luz lá embaixo.”, pensou quando avistou o fim do túnel. Os três chegaram num salão subterrâneo. Não era grande, vinte pessoas seriam o suficiente para preenchê-lo totalmente. Três archotes iluminavam o salão, que parecia uma sala de ritual religioso. Ivan não gostou nem um pouco, não tinha boas recordações desse tipo de lugar.

— Aproxime-se! Vamos ver se tens algo a nos ensinar. — Disse o velho Simoé, a cauda escondida atrás do corpo largo ainda deixava a ponta visível, oscilando lentamente.

Apenas terra cercava Ivan, na frente, dos lados, acima da cabeça e abaixo dos pés. Dois archotes na parede e um na mão de Simoé eram a única fonte de luz dentro da toca. Ivan não viu nada demais no ambiente, apenas algumas sacas contendo um pó amarronzado jogadas nos cantos e ao fundo uma bancada. Sobre ela, do lado esquerdo, um objeto oval. Apesar do tamanho estranhamente avantajado, era apenas um ovo de pássaro com símbolos desenhados na casca. Do lado direito, quatro discos de metal vazados no centro. Um dos soldados forçou Ivan a se ajoelhar perante a bancada, e de joelhos ele viu o objeto no centro da mesa, que o separava de Simoé. Uma rocha translúcida de cor marrom, com cerca de sessenta centímetros de diâmetro.

Qualquer coisa que Ivan havia imaginado acontecer, se esvaiu da mente. “O que poderiam fazer com uma pedra, um ovo ou discos de metal?”, se perguntou. Tortura não era resposta, pois ele já tinha ouvido Capitão Balboa contando alguns métodos, e não parecia ser o caso. Mas algo de bom não ia acontecer, isso Ivan tinha certeza, só de olhar o tom severo no rosto de Simoé e a conduta reticente dos soldados ajudantes.

— Vamos, coloque logo no lugar, ou vamos ficar sem ar, com todas essas tochas acesas aqui embaixo! — Ordenou Simoé. O soldado levantou a pedra da bancada e pôs em frente aos joelhos de Ivan. Olhando de perto, ele percebeu que existia um núcleo negro e rígido no centro da massa translúcida, e não percebeu que agora os dois soldados o cercavam bem de perto, cada um segurando um archote próximo à sua nuca.

— Invasor, você já tem idade para saber o que vai acontecer. Sendo assim, sabe também que se obedecer, sairá daqui ileso.

— Eu não sei do que você está falando! — Respondeu Ivan, preocupado com o tom da voz, pois não queria levar uma chamuscada no pescoço por parecer insolente. Estava rendido e teria que jogar segundo a vontade dos seus inimigos.

— Calado! — Simoé apanhou uma quantidade do pó marrom numa das sacas e andou até a frente de Ivan. — Deite o rosto na Pedra Cataclismo. Feche os olhos.

Ivan fechou um dos olhos, temeroso do que estava para acontecer.

— Respire, rapaz, encha o peito e solte lentamente. — A voz de Simoé tinha agora um tom acalentador, como falasse por sussurros no ouvido, o que claramente não estava fazendo, pois Ivan não o viu se mover. — Com os olhos fechados, lembre-se de tudo que passou na sua vida. Coisas importantes e irrelevantes, coisas do passado e do presente, seus amigos e inimigos...

Sem perceber, Ivan deixou-se levar pela voz, que já considerava familiar, tal era o poder hipnótico. Estava com os dois olhos fechados, a respiração profunda e contínua. Na sua mente apareceram imagens do passado. Seu pai. A vila em que cresceu. A fuga para longe. O mar. Monstros. Capitão Balboa. A Lua. Lua cheia, com o peculiar brilho verde que só ele podia invocar. Subitamente, a Lua perdeu seu brilho e a figura alva foi lentamente passando para uma tonalidade escura, marrom. Enfim, negra. Mais negra que qualquer céu noturno. E o brilho voltou, mas não era verde, e sim castanho. Quando o brilho castanho envolveu toda a esfera negra, ele lembrou que estava olhando a Pedra Cataclismo; e que era prisioneiro numa aldeia de monstros com pêlo vermelho cobrindo todo o corpo. Despertou do transe sem fôlego, levantando a cabeça com a boca aberta, sugando o pouco ar do local.

— Agora! — Gritou Simoé. Os homens baixaram os archotes para a Pedra Cataclismo e dela subiu uma enorme labareda que se dissipou numa fumaça escura. Simoé estava ajoelhado diante da pedra, no lado oposto ao de Ivan. O velho enfiou o rosto na fumaça negra e a inspirou com toda força, deixando o rosto cair no local onde segundos antes estava a cabeça do prisioneiro.

Ivan já estava recuperando o fôlego, e a leve tontura já tinha passado, mas ainda estava fraco, sem poder sequer levantar os braços. Viu Simoé levantar o rosto da pedra, e percebeu um semblante de surpresa, estampado nos olhos arregalados dele.

— Você nasceu em terras além-mar! — E, virando-se aos soldados jovens, começou a dar ordens. — Vamos, levem-no daqui de uma vez! Preciso ver Edin.

Do lado de fora da toca, Ivan chegou carregado pelos soldados, e Simoé veio logo atrás. Nora-Celtah já estava bem e aguardava junto com Rubal.

— Rubal, você sabia de onde esse homem veio?

— Não, professor. Capturei os dois juntos, correndo pelo nosso território. Tem algo de errado com ele?

— Ele veio da terra da Pedra Celestial! — Respondeu Simoé, com os olhos brilhando e as sobrancelhas arqueadas. Ivan não compreendeu o que aquilo significava, mas notou certa importância na revelação, pois tanto Rubal quanto os outros – Nora-Celtah, inclusive – ficaram surpresos e o encararam com certa distância.

— O que devemos fazer, professor? Não podemos deixar ele ir, como pretendíamos fazer.

— Claro que não, garoto. Leve-os de volta para a cela. Chame Edin o quanto antes para o círculo de debate, estou voltando para lá. Tenho que deixar todos a par de tudo que vi na mente deste prisioneiro.

— Agora mesmo, professor! — Rubal abaixou-se para amarrar os pulsos de Ivan, enquanto ele recobrava a força do corpo.

— Quem diria... Minha primeira captura e é logo alguém do além-mar. Você vai me ajudar bastante, camarada. — Murmurou Rubal, perto do ouvido de Ivan. — Vamos indo!

O caminho de volta foi silencioso. Os canhões não atiravam mais e as pessoas estavam mais preocupadas com seus afazeres que em espiar os prisioneiros. Entre os três também não havia conversa, e apenas Ivan pareceu se incomodar com isto. Ivan sabia que algo de ruim tinha sido descoberto, mesmo que ele mesmo não soubesse o quê. A preocupação de Simoé foi transmitida para o marinheiro, que passou a matutar um jeito de fugir. Na vestimenta de alguns, Ivan notou que havia bolsos grandes, do lado da frente e atrás, principalmente nos que trabalhavam com construção, e desta observação ele tirou uma ideia.

— Ei, Nora!

Ela ouviu e virou-se para ouvir Ivan, que chegou mais perto para sussurrar:

— Nós já estamos quase chegando ao monte da nossa jaula, preciso de uma ajuda sua, para nos libertar. Está vendo aquele grupo de construtores? Preciso que crie uma distração para poder pegar uma ferramenta daquelas que levam nos bolsos das túnicas.

Nora observou o grupo trabalhando e respondeu, também em voz baixa:

— Eu, não! Eles vão me liberar logo, não quero me arriscar por causa de um invasor. — Ivan percebeu que, mesmo estando juntos há um bom tempo na mesma condição, ainda não eram amigos.

Continuaram a caminhada até que, com um grito inesperado, Ivan e Rubal se viram surpreendidos com a queda de Nora ao chão. Com gritos agudos, ela segurava a barriga e pedia ajuda.

— O que você fez com ela? — Perguntou Rubal. O grupo que se ocupava com a construção de uma pequena embarcação foi atraído pelos gritos.

— Eu não fiz nada, ela caiu sozinha! — Ivan se defendeu.

Em poucos segundos, Nora estava deitada no chão, rodeada por curiosos. Ivan percebeu um martelo rudimentar no bolso traseiro de um deles e furtivamente aproximou a mão.

— Ora, ela só está fingindo, provavelmente está com fome e só! — Disse um dos construtores.

— É, vamos embora. — Concluíram, voltando para o trabalho. Rubal, desconfiado, deu uma boa olhada nos dois prisioneiros, antes de retornar a escolta para a jaula. Sem encontrar nada suspeito em Ivan, Rubal deixou de lado a desconfiança, mas Nora-Celtah se viu bastante enraivecida.

— Fiz isso tudo e você não pegou nada? — Nora reclamou baixinho.

— Não se preocupe, amanhã estaremos livres. — Disse Ivan.

De volta à prisão, Nora exigiu saber o que Ivan havia feito durante a “Genial distração orquestrada pelo meu talento”, segundo ela. Ivan disse que contaria mais tarde, pois Rubal informou que logo voltaria trazendo comida, e não queria ser pego com a mão na massa.

Quando retornou, trazendo uma jarra de água e uma cumbuca cheia de frutas e peixe assado, Rubal avisou:

— Amanhã levarei você ao seu povo, e terei minha chance de pegar a lança dourada! E você aí? Acho que essa vai ser a sua casa por um longo tempo, há, há, há. — Rubal trancou os dois e desceu a ladeira.

— Nossa, da comida não posso reclamar! Está melhor que lá no barco!

— Eles só estão trazendo isto porque eu estou aqui. Não vá pensando que teria esse tratamento se estivesse sozinho.

— Hã? Pensei que suas tribos fossem inimigas. Não são?

— É complicado — disse Nora-Celtah com uma risada típica dos que zombam os ingênuos — a gente não se bate muito, mas eles não podem fazer mal a nós. Pelo menos nós, mulheres. Já você, eu não garanto nada.

Após devorar as frutas e peixes, Ivan levou Nora até um canto da jaula e ela o viu passar o braço entre as barras e pegar o martelo, que estava do outro lado das grades da prisão.

— Você arremessou lá de baixo até aqui? — Perguntou impressionada.

— Sim, imaginei que era mais seguro que trazer na mão. Acho que eles não deixariam barato se me revistassem e encontrassem o martelo escondido. Amanhã de manhã, quando eles vierem, já estaremos bem longe...

 

IV

A Lua, o mestre e a estratégia

— Já estou sendo seu aluno há vários dias e não me ensinou um golpe sequer. Estou começando a duvidar sobre o que dizem do senhor...

— Não quero me arrepender de ter salvado você naquele dia, garoto da Lua!

— Não, Velho. O senhor nunca vai se arrepender daquilo. — Retrucou com um sorriso malicioso, cuja intenção o Velho logo percebeu.

— Muito bem, pelo visto a lição passada entrou na sua cabeça, hein! Está pronto para o próximo ensinamento.

— Pelo local em que estamos, não será um ensinamento prático, não é verdade? — Comentou Ivan, olhando o terreno irregular do local onde estavam. Era uma região íngreme da floresta com solo fofo e cheio de galhos, pedaços de troncos e folhagens espalhadas.

— Exatamente. Antes de começarmos o treino físico, tenho que ter certeza de que sua cabeça grande já assimilou toda a parte teórica. E você começou bem a aula! Vamos falar sobre estratégia, e você teve a sagacidade de tirar conclusões sobre o que eu pretendia ensinar apenas notando o ambiente.

— Minha cabeça é grande? Isso significa que sou inteligente, não acha? — Brincou.

— Essa deve ser sua maior preocupação. A mente vence o músculo. — O Velho desandou a falar. — O mundo é feito de opostos, onde há o bem, há o mal; a felicidade anda de mãos dadas com a tristeza; a força sempre acompanha a fraqueza. O homem inteligente sempre usa a qualidade do inimigo, que está sempre visível, para encontrar o defeito dele, que está sempre oculto. E o homem mais inteligente evita mostrar as suas qualidades, enquanto evidencia ao máximo os seus defeitos. Está entendendo?

— Acho que sim. Está falando de ataque surpresa, não é?

— E de análise do oponente. Vou contar uma história que aconteceu com meu mestre, ele devia ter a sua idade na época... Ele participou de um torneio junto com vários oponentes, uma briga até a morte, dentro de uma arena de combate. Ele sabia que não era o mais habilidoso no manejo de armas, então usou a inteligência. — O Velho apontou para a própria testa. — Logo antes da luta ser iniciada, ele lançou um desafio a todos. Um insulto tão inesperado que pegou todos de surpresa, abalando a condição mental dos concorrentes, mas este insulto trouxe um problema ainda maior.

— Ofendidos, todos os inimigos se uniram para matar ele? — Perguntou Ivan, tentando preceder o final da história.

— Pior. Um gigante se ofendeu e resolveu participar da luta também. Entrou na arena e desafiou todos os guerreiros.

— Ah, qual é?! Gigante? Essa história está me parecendo invenção sua, Velho.

— O homem inteligente nunca nega a veracidade de uma informação, sem antes refletir a respeito, aprenda isto, garoto da Lua. O gigante era obviamente superior aos demais, e começou a esmagar um a um. Meu mestre só saiu vivo porque usou a cabeça. Afinal, que prejuízo um homem sozinho pode causar a um gigante? — O Velho sorria enquanto contava, com a emoção da luta narrada envolvendo-o a cada palavra proferida. — Ele conseguiu articular a união dos que antes eram inimigos, procurando acertar uma estratégia eficaz contra o gigante. Com cada habilidade individual, montava-se uma tática diferente, e aos poucos o gigante foi sofrendo um golpe de cada vez, e se enfraquecendo até que meu mestre encontrou a abertura necessária para usar a maior qualidade dele.

— E que qualidade era essa, Velho? — Ivan perguntou, salivando com a curiosidade.

— O arremesso da lança. Esta mesma lança que está na minha mão. Afinal, um gigante é apenas um homem crescido; do mesmo jeito que um homem pode morrer se ferido pela ponta de uma lança, o gigante caiu abatido, após levar o golpe.

Ivan atentou para a lança dourada, impressionado.

— Então a maior qualidade dele não servia para nada até achar o momento oportuno para revelá-la, não é? E a estratégia que permitiu isto!

— Exatamente. Vamos passar vários dias aqui, estudando muitos tipos de estratégia. Vai ser bom, principalmente para você, o inimigo número um das raposas. — Disse o Velho com uma risada zombeteira.

— Eu sou o inimigo número um? Achei que esse posto era seu! — Ivan retornou a risada.

— Era, mas agora você é o detentor do título, então trate de prestar atenção às aulas se quiser continuar vivendo.


Capítulo 3: A fuga


I

A brisa noturna arrepiava Ivan. Ele aguardou pacientemente o momento fortuito para escapar, sem se deixar levar pela ansiedade que volta e meia dominava o seu espírito, clamando por liberdade.

— Ainda acho que você não vai conseguir. — Disse Nora-Celtah , enquanto Ivan esticava o braço para fora da jaula, tateando o chão em busca do martelo. Ele havia sido deixado ali, do lado de fora, como medida de precaução. Caso um dos uroncions – este era o nome dado a eles, segundo Nora – aparecesse durante o dia, o martelo não podia estar à vista.

— Aqui! Não seja ingênua, Nora. Você mesmo viu a reação deles quando descobriram que vim de fora. Vão me manter aqui preso por muito tempo, não tenho dúvidas. Você também ficou chocada quando eles disseram.

— É que isso é um assunto muito sério aqui. Todo mundo vai correr atrás de você, agora que sabem que veio do mesmo lugar que a Pedra Celestial. — Ela tentou se justificar.

— E eu já te disse que não sei o que é essa pedra, nunca nem ouvi falar dela.

Ivan caminhou até a porta da jaula, com o martelo firme na mão. Apertou o cabo, como se estivesse se certificando do poder de destruição da ferramenta, sentindo o peso e o balanço.

— Você está mentindo. A Pedra Cataclismo revela todos os segredos, até os que a pessoa esconde de si mesma.

— Então eu devo estar escondendo de mim mesmo, pois não sei o que é, e garanto que estou dizendo a verdade. — Disse, levantando as mãos no ar e dando de ombros.

Os dois chegaram até a porta e, com olhares receosos, espiaram a ladeira que servia de entrada e saída. Sem sinal algum de qualquer uroncion, Ivan levantou o braço e deu a primeira martelada. Com o barulho, parou e apurou os ouvidos para notar alguma mudança no ambiente. Nora-Celtah fez o mesmo. Sem qualquer barulho, estava claro que poderia continuar martelando que não seria descoberto, contanto que fizesse um trabalho rápido.

— Chega um pouco para trás, Nora. — Ela se afastou, mas continuou olhando. Enquanto batia, Ivan perguntou: — Essa Pedra Cataclismo tem algum valor? Parecia bem importante...

— Mas é claro que tem valor! — Ela se exaltou, mas logo calou a boca com as mãos, assustada com a própria estupidez. Em seguida, continuou com a voz mais baixa: — A Pedra Cataclismo é um dos três artefatos dos grandes ancestrais. Não acredito que estou tendo que explicar isto.

— Hum... Então acho que seria uma boa ideia levar ela comigo, não acha? Posso conseguir uma boa grana, mas você vai ter que me ensinar como usá-la. — Ivan parou as batidas e olhou para a ferramenta. Havia uma pequena fissura se formando no local do impacto.

— Está louco? A pedra do meu povo foi roubada já faz muito tempo. E mesmo se eu soubesse como usar, jamais ensinaria a um ladrão. — No escuro, a face pálida da garota se enrubesceu com o disparate proposto por Ivan, como se alguém em sã consciência fosse ensinar os segredos da pedra a um bandido.

— É agora ou nunca! — Ivan ergueu seu braço, o máximo que pôde e desceu de uma vez. Nora-Celtah espichou o olhar para ver. Um som quebradiço surgiu do impacto, e com certeza algo havia sido destruído.

— Não foi desta vez... — Disse Ivan, segurando o martelo partido em dois.

— Acho que isto só serve para trabalhar com madeira... — A garota deduziu. — Agora não tem mais jeito. Vai ter que ficar aqui.

Ivan apertou o martelo com força, e o jogou para longe, com rebeldia.

— Eu não vou desistir! Vou quebrar com minhas próprias mãos!

— Vai acabar quebrando as mãos, desta vez... — Ela retrucou, mas Ivan não deu ouvidos. Estava ajoelhado, com os olhos fechados, face virada para cima, e sua boca murmurava alguma coisa. Algo sem sentido, que numa segunda observação Nora-Celtah percebeu se tratar de um mantra.


Mesmo depois de tudo

Existirá uma Lua

Seu brilho perdurará acima da colina

Iluminando as terras negras dos homens

Quando apenas espíritos vagarem

Existirá uma Lua

Seu brilho perdurará além da costa

A Lua brilhará para todo o sempre


A pele de Ivan começou a se tornar verde. Nora-Celtah, viu então que o reflexo do metal da jaula também aparentava um tom esverdeado. A pele dela também tinha a mesma coloração. Os olhos se moviam rapidamente em confusão. Diante daquela mudança inesperada, ela voltou os olhos para aonde Ivan parecia rezar. A Lua. A luz branca tinha dado lugar a algo novo. Brilhava verdejante no céu escuro. Com a voz trêmula, ela virou para Ivan e chamou, ainda sem tocar nele:

— Ei, Ivan! O que você está fazendo?

Abrindo os olhos com a serenidade de quem acorda renovado de uma boa noite de sono, Ivan mostrou seus olhos, agora com luz própria. A mesma coloração do novo brilho da Lua.

— Calma, está tudo bem, Nora. — Ele olhou a palma das mãos e fechou-as com força. Em seguida segurou a porta da jaula, respirando fundo. Com um rugido abafado, Ivan forçou o metal e quebrou a tranca.

— Pela saúde da Ligeia! O que é você? — Perguntou, espantada.

— Eu não posso explicar agora, você vem comigo? — Ivan estendeu a mão.

Nora-Celtah afastou-se com passos tímidos, sem nada dizer. Enquanto o brilho dos olhos desaparecia e aos poucos voltava ao castanho original, Ivan se despediu.

— Desculpe, eu tenho que ir. Apesar do nosso começo, eu gostei muito de você. Até outro dia, Nora!

Ivan saiu da jaula, mas não fugiu pela ladeira. Rodeou a prisão e, do lado oposto, desceu, escorregando pelo barranco. Nora olhou seu companheiro de cela fugir, e mais uma vez fitou a Lua, agora voltando a ter sua luz branca costumeira. Num lugar afastado, dentro da floresta, um homem velho estava deitado no gramado. Com cabelos compridos e prateados, e olhos completamente negros, como os olhos dos aquáticos, ele vislumbrou a Lua dissipar toda a iluminação virente. Com um sorriso no rosto, ele levantou e encetou uma caminhada floresta adentro.

 

II

Com a iluminação noturna de volta ao normal, Nora foi até a beirada do barranco por onde Ivan fugira. O marinheiro já caminhava longe, e ela se perguntava para onde ia seu companheiro de cela. Quando Ivan acabara de sumir de vista, ela pensou em voltar para seu cativeiro, mas algo inusitado a fez mudar de ideia. Um dos pequenos uroncions passou com passos furtivos, seguindo a trilha de Ivan.

“Não posso gritar, senão arrisco acordar ainda mais gente.”, pensou enquanto mordia o lábio inferior.

— Era só o que faltava, não vou arriscar meu pescoço por ele! De jeito nenhum! — Repetia com a voz baixa, mas com um tom firme, buscando se convencer. Chegou a dar os primeiros passos para voltar até a cela, mas acabou cedendo, e quando pulou para descer o barranco, escorregando desajeitadamente pelo solo íngreme, ela exclamou:

— Droga!

Ivan corria sem peso algum nas pernas, as costas arqueadas, quase agachado. Um verdadeiro espírito errante, passando despercebido pelo local. “E agora? Acho que foi por aqui...”, ele ia se guiando pela memória, tentando achar o caminho que usara durante o dia para a toca que guardava a Pedra Cataclismo.

O clima noturno estava agradável, apesar do vento ocasional, que esfriava as extremidades. Nada que Ivan já não conhecesse da viagem marítima. Enquanto seguia apurando as vistas, se deparou com uma das várias mesas circulares de antes, que serviam de palco para os uroncions mais velhos debaterem sobre assuntos diversos.

— Se eu cheguei por aqui... Então é para a direita. — Ele forçou o olhar, tentando confirmar se era a direção correta, mas não viu nada além do preto. Sem muita alternativa, retomou o andar silencioso. Mesmo precavido, Ivan não conseguiu notar seu perseguidor logo atrás. Um pequeno uroncion, dotado de uma astúcia natural e de pés sorrateiros inigualáveis, vinha na cola do fugitivo, com olhar curioso, mas já cheio de vontade de ser o bravo menino que impediu a fuga do invasor. Seguindo a cadeia da perseguição, atrás dele vinha Nora-Celtah, ainda mais cuidadosa que os dois à sua frente, esperando o momento certo de agir – torcendo para que esse momento não chegasse e que Ivan pudesse escapar sem problemas.

Finalmente, guiado pela fraca luz da Lua, sua eterna companheira, Ivan avistou a toca que procurava. Um guarda se encolhia próximo à abertura no chão, em sono profundo. Mais cauteloso que nunca, Ivan esperou alguns minutos até ter certeza de que o guardião estava completamente desacordado, prostrou-se no chão e rastejou vagarosamente até a entrada. O dorminhoco respirava fundo e expelia o ar com certa graça, de forma que Ivan até pensou que aqueles monstros, quando dormindo, podiam se passar por bons animais de estimação. Entrou na toca, já orgulhoso e convicto que conseguiria pegar tudo que quisesse.

E assim o fez. Após acender um dos archotes, Ivan esvaziou uma das sacas que continha pó e colocou dentro a Pedra Cataclismo, o ovo gigante e os discos de metal vazados no centro. Quando se preparou para subir de volta, sua mente não podia imaginar o que encontraria do lado de fora. O silêncio continuava o mesmo, e quando chegou bem próximo da superfície, ele suspendeu a cabeça, para poder olhar em volta. O guardião continuava em seu mundo de sonhos, então logo se pôs de corpo inteiro sobre o solo, pronto para fugir; mas tão logo saiu da toca, teve uma visão que o paralisou de susto, e por pouco não deu um grito. A expressão boquiaberta, no entanto, de tão exagerada, estava exprimindo todo o pensamento dele. Nora-Celtah segurava um pequeno uroncion no colo, cobrindo-lhe a boca com a mão. Enquanto a criança se debatia bravamente, com braços e pernas circulando pelo ar, Ivan perguntou – por meio de gestos – o que estava acontecendo.

Nora e Ivan se afastaram do guardião, e ela explicou, com a voz quase inaudível:

— Eu vi esse pequenino seguindo você. Tive que vir e te ajudar — após dizer isto, ela logo tentou explicar — afinal, se te capturassem, podia complicar minha situação, não é?

— Sei... — Respondeu Ivan, com um sorriso vitorioso no rosto, debochando de Nora, que não era tão indiferente quanto tentara parecer. Ela já estava com a resposta na ponta da língua, preparada para se justificar, quando ouviram uma voz fina gritando.

— Ali, viu? Eu avisei que ela estava fugindo! — Disse um pequeno uroncion, trazendo pela mão o guardião, ainda ébrio de sono.

— Parados, os dois! — Grunhiu o guardião, apontando sua lança para Nora e Ivan. — Vá chamar mais gente!

O pequeno saiu uivando e desapareceu enquanto se afastava, deixando-se perceber apenas pelo uivo prolongado na noite estrelada. Pegando Nora-Celtah distraída, o outro pequeno uroncion agarrou o braço que lhe segurava e puxou para baixo, em seguida, para se ver livre, mordeu com força a mão de Nora, que gritou desesperadamente.

— Nora! — Ivan socorreu, mas o garoto já havia corrido para detrás do guardião. — Seus malditos! — Gritou, pegando um dos discos metálicos e arremessando no guardião. O disco percorreu uma linha plana no ar e o uroncion precisou desviar o curso dele com a lança, para se defender. Foi então que Ivan percebeu que aquelas eram valiosas armas de combate. Levantou Nora – que estava sentada e começando a chorar – e puxou-a pelo braço, começando uma corrida de fuga.

Os dois não chegaram a percorrer muito chão, pois Ivan estava lento devido ao peso que carregava, e Nora-Celtah teve seu corpo dominado pela dor da mordida que levou. Ivan não queria tratá-la com severidade, pois já tinha sido mordido por um cão selvagem na infância, e sabia bem o quanto doía, mas a situação era emergencial.

— Nora, temos que acelerar, ou vamos ser pegos!

— Parados, já mandei! — O guardião, na cola dos dois, chegou com a lança pronta para ser arremessada.

— Vá embora! Eles não vão fazer nada comigo, mas você precisa correr! Vai logo! — Ela gritou, olhos já cheios de lágrimas.

Ivan retirou os discos restantes no saco. Atacou o guardião com um, e a estranha arma se mostrou bastante efetiva. O disco atravessou o ar numa velocidade enorme e atingiu o inimigo no peito, fazendo-o cair e derrubar a própria lança. Logo após a queda, outros uroncions apareceram, todos armados. Para evitar a aproximação deles, Ivan arremessou os dois discos que tinha à mão e correu em seguida, olhando para trás apenas para ver Nora sentada no chão de terra seca, cercada pelos inimigos. Continuou correndo e gritou:

— Eu vou salvar você, Nora!

Aos prantos, segurando com força a mão ferida, Nora-Celtah ouviu uma voz que logo reconheceu:

— Você mandou ele fugir? Como é perversa... Sabe muito bem que somos mais rápidos que humanos, ainda mais ele, que está carregando peso. — Era Rubal. — Vamos pegar aquele fugitivo! — E seguindo a ordem, os uroncions se puseram de quatro, como raposas, e correram na direção de Ivan.

 

III

Apesar do peso que ainda carregava, Ivan não encontrou muitas dificuldades para correr, já que Nora-Celtah escolheu ficar para trás. Ainda que decidido a voltar para buscá-la, a prioridade dele era sumir de vista pelas próximas horas. O terreno aberto e de chão firme foi de grande ajuda, principalmente pelas áreas de declive, que o jovem aproveitava como impulso, acelerando durante o trecho.

Com o coração agitado e o pulmão trabalhando com toda força, Ivan direcionava sua atenção toda à frente. Não porque achava que já escapara, muito pelo contrário, procurava acreditar que estavam no seu encalço e que não podia diminuir o ritmo. A preocupação dele era cair em algum buraco no chão, por isso não tirava os olhos do caminho adiante.

Por sorte, não encontrou nenhuma toca – um sinal de que estava indo no caminho certo, para longe da moradia dos uroncions. Após quase meia hora de corrida, com o rosto quente e as bochechas vermelhas, pulsando junto com o sangue, Ivan se deparou com o início de uma área florestal. Olhou para trás, certificou-se que já estava seguro, e parou.

— Será que entrando aqui eu chego na praia? — Falou com si mesmo. Foi então que se lembrou do acordo com Bal-t-Moer. “Três dias para voltar, ou ele vai embora e abandona o barco”. Já era a segunda noite, ele não tinha mais tempo a perder. Para complicar ainda mais seus pensamentos, seus companheiros estavam presos num lugar que ele sequer sabia a localização.

— Mas que droga! Eu vou ter que conversar com o Bal-t-Moer. Pedir mais tempo, algo assim... Mas para isto acontecer, tenho primeiro que alcançar a praia. — Ivan olhou o céu estrelado, tentando se situar. Olhou para um grupo de estrelas num canto, depois um aglomerado do outro lado, viu algumas solitárias no céu escuro.

— Não tem jeito! Me nortear pelas estrelas está fora de cogitação. — Era a primeira viagem marítima de Ivan, mas mesmo que tivesse mais experiência, seria difícil para o rapaz se localizar pelo céu. Para ele, as estrelas não tinham diferença alguma entre si. “Quando se trata do céu noturno, só tenho afinidade com você!”, pensou olhando para a gigante Lua redonda. Ainda incerto, mas sem querer dar meia volta, Ivan passou pelos primeiros troncos.

Coberto pelas árvores, o caminho agora estava completamente escuro, e Ivan caminhava em passos lentos. Barulhos rasteiros, pios de corujas, e um assobio frio que circundava os troncos e chegava aos ouvidos do marinheiro eram os sons que envolviam Ivan, até que, após muitos escorregões, pisadas em falso e tropeços, o ruído de pegadas de terceiros e de folhas sendo quebradas interrompeu a sinfonia da natureza.

De olhos arregalados, Ivan procurava o causador do barulho. Mais pisadas ecoaram. Agora mais leves, contidas. O peso dos corpos se movendo não era mais ouvido, apenas as folhas sendo arrastadas pelo movimento dos pés. Era mais de um, e estavam perto. Na aflição de só encontrar escuridão, mesmo com os olhos abertos, Ivan sentiu duas gotas de suor frio escorrendo pelo rosto. Com pernas trêmulas e desobedientes, ele se preparou para correr, quando uma mão o agarrou pelo ombro e uma voz rouca disse:

— Achou que ia fugir, espertinho? — Era um dos uroncions. Ivan não respondeu, nem pensou nisso. Apenas apertou forte o saco que vinha carregando e girou, golpeando cegamente o inimigo. O impacto foi forte, e o som confirmou que o monstro caíra com o golpe, mas o jovem estava longe da salvação. O local encheu-se de agressividade. De quatro lados diferentes, Ivan ouviu movimentação, e um deles exclamou:

— Ele está reagindo, vamos derrubá-lo de uma vez!

Do lado direito, o vento denunciou o ataque, e Ivan conseguiu se esquivar do agarrão, mesmo desajeitado. Seguindo o primeiro, outro uroncion pulou em cima de Ivan, conseguindo levá-lo ao chão. Os dois rolaram por alguns metros, acertando alguns socos e errando outros muitos. O saco com a Pedra Cataclismo e o ovo tinha ficado para trás, escapado das mãos de Ivan quando este caiu. Enquanto se atracava ferrenhamente com o adversário, Ivan percebeu uma saliência na lateral da cabeça do uroncion. Era a orelha comprida. Segurou com os dedos e puxou para trás com força.

— AAAAAAAAAHHHHHH!!!!

A dor paralisou o monstro por alguns segundos, o suficiente para Ivan acertar um soco diretamente no focinho. O grito havia mostrado a localização do rosto, e Ivan não tinha como errar. O oponente estava desmaiado, mas não era hora de descansar. De pé, Ivan manteve uma postura de luta, bastante amadora, mas alerta para qualquer ataque. Um grito de aviso ecoou:

— Fique preparado! — Um dos monstros estava preparando algo. Subitamente uma explosão eclodiu no alto. O estouro não foi o que mais chamou atenção, o trovão artificial do dia anterior fora muito mais assustador. A diferença é que a bomba causou um clarão dourado que momentaneamente deixou todos à vista. O uroncion caído, um armado com arco e flecha à distância, pronto para atirar, e um bem próximo de Ivan, que pulou no instante em que a explosão iluminou a área.

Ivan foi agarrado pelos braços, e se debater era inútil. O uroncion anunciou:

— Está preso! Pode atirar! — Ivan, imobilizado, virou o olhar para a posição em que vira o arqueiro, esperando receber o projétil a qualquer segundo, mas aconteceu algo inesperado. Um estranho velhote se aproximou, segurando o arco que, segundos antes, Ivan tinha visto na mão do uroncion.

— Velho Cid! Maldito, não se intrometa na nossa caçad... — O velho, alto e forte, deu um gancho de direita que arremessou o uroncion que segurava Ivan. O monstro voou desacordado por alguns metros até cair no chão, de braços e pernas abertas.

— Você está bem, garoto? — Perguntou Velho Cid. Um rosnado seguiu a pergunta e o velhote armou um golpe com o punho, aparentemente mirando o nada. Quando aplicou o soco, pegou em cheio no uroncion que surgiu das trevas, num salto selvagem.

— Você pode enxergar no escuro?

— Responda à pergunta, garoto! — Exclamou.

— Sim, sim. Estou bem...

— Então vamos andando. Ainda tem mais deles aqui na floresta, se ficar aí parado, será uma presa fácil. — Velho Cid deu um tapinha no ombro de Ivan, convidando-o para acompanhar.

— Não, você não está entendendo. Eu fugi da cidade deles, mas eles estão com uma pessoa ainda... Eu, eu preciso... Eu tenho que voltar para libertar ela.

Velho Cid continuou andando com calma. Era mais alto que Ivan, e era forte também, especialmente os braços e costas.

— Ei, eu estou falando sério. Tenho que voltar lá. Você não sabe nem metade da história!

— Então me conte enquanto andamos. — Respondeu despreocupadamente.

 

IV

Não cruzaram com nenhum uroncion. Ivan explicou tudo que aconteceu desde o momento em que pisara na ilha. Velho Cid não se abalou com os acontecimentos, nem com a expressão persuasiva incessante de Ivan, almejando alguma ajuda do Velho para resgatar Nora-Celtah. Irredutível, ele apenas soltava um breve riso e pedia para o jovem se acalmar.

— Ela não vai sofrer nem um arranhão, pare de se preocupar. — Ele repetia. Ivan optou por acreditar no seu salvador, mas a preocupação continuava existindo, oculta do mundo externo, nos cantos aflitos da mente do rapaz.

— É aqui que você vive? — Perguntou Ivan, quando chegaram a um pequeno acampamento a céu aberto. O jovem nem acreditou no que perguntara, afinal era impossível alguém viver naquelas condições. Era apenas um local aberto na floresta, como tantos outros, demarcado por uma pequena fogueira construída com pedras retangulares e madeira. Uma mochila de pano grosseiro estava pendurada numa protuberância de uma árvore próxima, e havia uma aglomeração de folhagens reunida em um pequeno monte ao lado da fogueira. Provavelmente aquela era a cama.

— Eu tenho uma casa, mas não uso. Eu gosto de vagar, entende? A natureza é muito bela, para você ficar preso entre paredes. Especialmente à noite... — Velho Cid estacou por alguns minutos, olhando para o céu. O que se podia ver entre as copas das árvores não tinha nada de anormal, apenas estrelas. “O que será que está prendendo tanto a atenção dele?”, Ivan se perguntou.

— Vou dormir lá em cima — Velho Cid apontou para o alto, onde Ivan notou um emaranhado de cipós entre os galhos de uma árvore — e você se ajeita no meio dessas folhas. Tente dormir logo, que amanhã eu te levo até a Nora-Celtah.

Confuso, mas confiante nas palavras do Velho, Ivan deitou-se entre as folhagens, próximo da fogueira apagada.

— Tem certeza que os uroncions não vão me atacar durante o sono? — O rapaz perguntou. Velho Cid, já se ajeitando nos cipós, amarrados como uma rede, respondeu:

— Eu não quero você me incomodando enquanto durmo. Se eles aparecerem, você pede ajuda para a Lua de novo, garoto.

Sem entender como o velho sabia da sua relação com a Lua, Ivan se questionou se deveria inquirir o estranho sobre aquela informação. Acabou por não fazê-lo, afinal era um assunto particular, que o envergonhava e, dentre todas as pessoas que Ivan podia escolher para desabafar, definitivamente não escolheria um velho misterioso que acabara de conhecer.


***


De volta à morada dos uroncions, um grupo estava reunido, ânimos exaltados de raiva. Nora-Celtah, em evidência, estava sentada num banco de pedra. As tochas e archotes iluminavam os rostos preocupados dos captores que a cercavam, mas a garota não fraquejou uma vez sequer.

— Menina, é a última vez que vou te perguntar. Onde o forasteiro está se escondendo?

— E é a última vez que vou responder. Não faço a mínima ideia! Já disse tudo que sabia sobre ele, não tenho mais nada a dizer! Por que não usam a Pedra para ter certeza? — Nora-Celtah lançou um olhar agressivo ao seu inquiridor.

— Ora, sua insolente! — O uroncion levantou o braço em ofensiva.

— Não faça nenhuma bobagem, Lando! — A voz veio do ancião Edin. Ele caminhou até Lando, abaixou a mão dele e colocou-a sobre o próprio peito. Depois, no peito dele.

— Viu a diferença? Em você o sangue bate com fúria, o coração pulsa causando uma distorção no seu julgamento. Você me contou uma vez que pretendia me substituir e liderar o nosso povo, mas um coração furioso não pode substituir uma mente serena. Vá descansar, acabei de saber que Velho Cid está com ele.

Lando acatou as palavras de Edin, e era notável o desapontamento que tinha consigo. Não obstante ser um exemplo pelas aptidões físicas e intelectuais, Lando tinha uma personalidade muito emocional, o que o deixava abaixo das expectativas que os anciões tinham de um bom líder. Antes de se afastar, ele retornou o olhar para a face de Nora-Celtah e viu ainda nos olhos dela o brilho de confiança e desafio que lhe tinha feito perder a cabeça.

Edin chegou até a garota e disse com muita calma, quase paternalmente:

— Você não precisa se preocupar, menina. Acreditamos no seu relato. Acabamos de saber que Velho Cid está com esse rapaz, Ivan. Isso já nos leva a crer que há alguma ligação entre eles, afinal eles vêm do mesmo lugar, além-mar. Talvez sejam até amigos. Sendo assim, as questões envolvendo esse invasor ficam entre o Velho Cid e os uroncions. Você não será penalizada por nada.

— Posso ir embora, então? — Perguntou Nora.

— Você sabe que não. Você violou a fronteira, sabe que vamos trocar a sua liberdade por uma tentativa de alcançar a lança. Dito isto, espero que não haja mais problemas entre nós. Você será levada a uma nova prisão, e amanhã de manhã partiremos para a sua cidade. Por favor, acompanhem a menina e depois voltem para suas casas!

— Espere, por favor, Edin! — Nora chamou.

— Mais alguma coisa, menina?

— É verdade que você pode ver o futuro das pessoas? — Perguntou, encabulada de dizer tão alto.

— É o que dizem dos líderes uroncion, não é? — Respondeu evasivo. Nora-Celtah foi até Edin e sussurrou em sua orelha:

— Pode dizer se eu serei a Ligeia? — A menina tinha olhos suplicantes, quase úmidos, tão diferentes dos olhos de minutos antes.

— He, he, O sonho de toda garotinha... Vou tentar descobrir alguma coisa sobre você. Tente não piscar os olhos, e olhe somente nos meus olhos, não desvie o olhar por nada.

Bem próximos um do outro, Nora arregalou os olhos e fitou aqueles círculos dourados, iluminados pelo fogo quente e vermelho. Por um instante ela se sentiu sugada para dentro daquelas esferas brilhantes, e se viu cercada de água cristalina, cheia de pequenas bolhas de ar percorrendo o seu corpo e lhe fazendo cócegas. Um animal veio nadando pela água. Ele não tinha expressão facial definida. Parecia sentir dor, e no segundo seguinte, estava alegre. O terror estampou-se na cara do bicho e logo após, tinha um semblante de desconfiança. O animal – inicialmente do tamanho de um gato selvagem – esfregou o pêlo nos pés de Nora, e foi crescendo até envolver seu corpo por inteiro numa pelugem aconchegante e aquecida que estranhamente não estava molhada. Coberta de todos os lados, como se estivesse encolhida nas costas de uma raposa gigante, Nora pensou: “Descobri, esse animalzinho é uma raposa, tenho certeza!”. Uma voz do meio do calor perguntou: “Você quer ser a Ligeia?”.

Nora-Celtah voltou a si. Os olhos dourados ainda continuavam na sua frente.

— Você fará coisas que nenhuma pessoa do seu povo tem coragem de fazer. Mas ainda não posso dizer se será Ligeia. A pessoa ainda não decidiu.

Nora-Celtah foi levada para outra prisão, e os uroncions voltaram a dormir.

 

V

A Lua, o mestre e a política

— Está crescendo rapidamente, garoto da Lua! Hoje acho que não vou te dar aula, é mais um conselho. Isso! Vamos apenas conversar sobre algumas coisas.

— E aprender a duelar, mais uma vez fica para a próxima lição, estou certo? — Perguntou Ivan, com uma ironia leve. — Conselho sobre o quê, Velho? Acho que já sei bem as regras básicas para viver aqui na ilha.

— Exatamente isto: regras para viver, ou dependendo do caso, sobreviver. Você já mostrou que tem uma cabeça boa, é esperto, aprende com facilidade. Mas de nada isso adiantará se o seu temperamento for dominante na hora de tomar alguma atitude. A conversa de hoje é sobre política.

Os dois estavam andando enquanto conversavam. Passavam por uma área de poucas árvores longas e de troncos finos, quase sem galhos. O céu estava azul e com poucas nuvens, e os raios do Sol ameno chegavam sem muitas barreiras ao corpo dos dois, dando uma sensação de bem estar. O solo era quase totalmente plano e coberto por uma grama baixa. Areia espalhada indicava a praia próxima, que já podia ser vista no horizonte, brilhante e convidativa.

— Bem, eu tenho um comportamento exemplar. Nunca discuti com a Ligeia, e respeito completamente os Conhecedores.

— Mas não foi sempre assim, não é? Quando chegou aqui na ilha, levantou acusações e ameaças contra tudo e todos. Quando falo política, não estou restringindo o sentido a apenas ser governado obedientemente pelos superiores. A política existe em qualquer lugar, é o instrumento que surge definindo regras entre as pessoas, sejam elas escritas ou não.

— Como nós dois, aqui mesmo?

— Exatamente. Somos aluno e professor. Eu disse que o ensinaria a lutar. O que você acha se durante um treino, eu deliberadamente lhe arrancar a mão? Ou furar os olhos?

— Um absurdo completo, além de ser cruel e desnecessário.

— Sim, eu não devo fazer isso, jamais. Não preciso que alguém venha me dizer isto, ou escrever em um código de conduta. A grande percepção política é esta. Não se resume a entender as leis escritas e determinadas, mas de perceber as leis não escritas e determinadas.

— Mas eu não estaria fazendo um juízo de valor? Isso me parece muito arbitrário.

— E é! Por este motivo não se aprende da noite para o dia! É uma característica muito difícil de obter. Eu mesmo já tive muitas dúvidas quanto a coisas que percebi. Neste aspecto, jamais subestime os uroncions. Edin e Simoé estão num nível de perspicácia fora do comum. Aquelas raposas são mais astutas que nós, humanos normais, e aqueles dois são a prova.

— Nós? Não acho que o senhor seja um humano normal, Velho. Não enquanto tiver esse olho escuro e puder respirar debaixo d’água. — Ivan comentou com um riso.

Os dois chegaram à praia e fizeram curva para andar paralelamente à costa.

— Meu mestre não contou muitos detalhes, mas eu sei que durante um período ele precisou aprender política na marra. Em certa idade, ainda jovem, alcançou um importante posto burocrático. Ele achava que poderia fazer tudo que tinha planejado assim que conseguisse a autoridade necessária, mas não funcionou bem assim. Acima dele havia pessoas com autoridade ainda maior, e essas pessoas não deixariam mexer com o que era delas.

— Agora está falando de hierarquia, não é?

— Sim. Meu mestre passou longos anos aprendendo com os superiores. Adiou a realização de suas vontades para fazer o jogo político. Acho até que este período fez com que ele mudasse o jeito de pensar ou de executar as coisas que tinha em mente. Nós dois não vivemos sob as leis da Ligeia, nem dos Conhecedores. É imprescindível que aprenda a entender estas regras, ocultadas dos manuscritos. — Após dizer aquilo, Velho Cid parou na areia, e ficou olhando para Ivan. Após dar três passos, ele notou a pausa do velho.

— Por que parou? — Perguntou Ivan, olhando para trás. Velho Cid continuou imóvel, apenas olhando para Ivan. Alguns metros do lado esquerdo do velho, a onda batia sem força na areia, e logo escorria de volta para o mar. Do lado direito além da areia da praia, uma pedra enorme em formato triangular. Aquela pedra demarcava a terra dos uroncions.

— Agora entendeu, não é? — Perguntou o professor.

— Mas você entra nos domínios dos uroncions, já vi tantas vezes!

— E sempre que entro, sei que posso arranjar confusão. Hoje o dia está bonito, estou aproveitando uma caminhada com meu aluno, há alguma necessidade de passar para o lado de lá?

Ivan parou para pensar durante alguns segundos. Virou completamente e andou na direção do mestre, que lhe deu um tapa nas costas, e os dois continuaram a caminhada, pisando nas próprias pegadas.


Capítulo 4: Revolta e isolamento


I

Na manhã seguinte, uma surpresa aguardava Ivan. A primeira coisa que ele perguntara ao velho era se ele podia enxergar no escuro, e quando acordaram, ele compreendeu o como aquilo era possível. Sob a luz do Sol, Ivan conseguiu ver com detalhes o físico de Velho Cid. O velho usava calças, o que já era diferente dos outros nativos que Ivan tinha visto, mas era visivelmente do mesmo material que as túnicas dos companheiros de Nora-Celtah. Pés descalços, corpo alto e forte, os cabelos prateados desciam até as costas. No rosto enrugado, um nariz grande e afilado e olhos escuros como os de Bal-t-Moer.

— Você é um aquático? — Perguntou Ivan logo que fitou os olhos de Velho Cid.

— Deu para perceber? — Respondeu, zombeteiro.

— Mas... Seu cabelo não é preto! E sua pele não é azul. Como é que... — Ivan estava genuinamente confuso.

— Não sou exatamente um aquático, garoto da Lua. Minha mãe era uma. Meu pai, não. Meu sangue é meio humano, meio monstro. Ficou com medo? — Continuou, provocativo.

— Hum... Que estranho, eu não sabia que existia gente como você...

Ivan notou o jeito que fora chamado: “garoto da Lua”. Mais uma vez, o Velho tinha algo oculto que parecia querer dizer, mas não explicava. Ivan também não queria entrar no assunto, então só deixou passar, mas prometeu ficar atento a tudo que aquele estranho fazia ou dizia.

— Olha, de manhã eu normalmente pesco alguma coisa, mas se você quiser, podemos ir atrás de algo diferente. Sei onde podemos achar umas galinhas selvagens, são bem saborosas...

— Não! Vamos buscar a Nora. Você disse que ia me ajudar quando passasse a noite. Já é dia e temos que resgatar ela. Podemos comer qualquer fruta que encontrarmos pelo caminho. — Ivan encetou a busca, decidido.

— Tudo bem, garoto! Mas o caminho é aquele ali! — Velho Cid apontou a direção, e Ivan mudou seu curso, levemente constrangido.

Na selva, Nora-Celtah era escoltada por dois uroncions: Rubal e Lando. Sem amarras ou troncos, os dois caminhavam sem muita interação com a prisioneira. Nora-Celtah apenas ouvia a conversa, com uma postura esnobe demais para falar com os dois irmãos.

— Você realmente não precisava vir, Lando. Sabe que sou eu quem vai tentar o mergulho, não é?

— Claro que sei. Já tentei uma vez e não cheguei nem perto do fundo do poço. Ainda não consegui pensar em um jeito de voltar lá e pegar a lança, mas estou torcendo por você e acredito que será capaz! Aliás, é por torcer tanto que eu insisti para vir junto. Quero estar presente na hora de ver você emergindo com a lança em mãos. — Disse Lando, com certo orgulho na voz.

— Se você conseguir, eu viro sua escrava particular. — Nora desafiou.

— Você está fazendo pouco do meu irmão, sua fedelha? — Lando exaltou a voz. Nora, de face imutável, continuou andando em frente. Rubal arregalou os olhos, com medo que Lando fizesse algo contra a garota. Sabia que eles já tinham brigado na noite anterior, e não tinha força física para deter Lando, caso ele perdesse a cabeça e atacasse. Lando cedeu ao impulso:

— Não vire o rosto quando eu estou falando! — Ele agarrou o braço da prisioneira. Rubal já se articulou para acalmar o irmão, mas antes que pudesse dizer as primeiras palavras, uma voz surgiu do alto. Os três levantaram a cabeça para descobrir de onde vinha, e foram pegos desprevenidos por um homem caindo do alto de uma árvore.

— LARGUE A MENINA! — Velho Cid deu um chute giratório em plena queda, que acertou as costelas de Lando. Em menos de um segundo, Lando já tinha sido lançado para o lado, deixando Nora-Celtah ilesa. Ato contínuo ao chute, Velho Cid pousou no chão agachado, tranquilo como quem sofre uma queda de apenas um metro de altura. O barulho do impacto não enganava, tinha sido uma altura monstruosa, mas pelo visto, os joelhos do velho não sentiram nada. Ivan correu de onde estava escondido, uma árvore de tronco largo, e agarrou Rubal pelos ombros, tentando jogá-lo ao chão.

O movimento foi rápido, mas Rubal evitou a queda. Enquanto era puxado para trás, levantou as mãos de um jeito que serviram de apoio para ele se impulsionar e dar uma cambalhota. De quatro no chão, pelos eriçados e com a cauda abanando rapidamente, Rubal rosnou e pulou em cima de Ivan como um cão raivoso.

— Cuidado!

Velho Cid deu uma passada longa e rápida na direção de Ivan e quase não impediu o golpe. O velho estendeu o braço e alcançou o pescoço de Rubal antes que ele chegasse ao corpo de Ivan.

— Está vendo só? Com eles o segredo é segurar pelo pescoço, pois não conseguem te morder. — Rubal rosnava alto. Estava pendurado. Os pés agitados sem tocar o chão, a voz odiosa tentando falar enquanto se esforçava para se manter respirando. Rubal agarrou o braço de Velho Cid com as duas mãos, e as unhas afiadas logo se cravaram na pele do velho. Lando se erguia ao longe.

— Seu velho maldito! Estávamos indo devolver ela, por que não para de se meter nos assuntos alheios? — Tomado de raiva, Lando retesou todo o corpo e levantou a cabeça para cima, liberando da garganta um longo uivo. O corpo musculoso de Lando se pôs de quatro e o homem-raposa começou uma corrida impulsionada pela ira do uroncion.

— Garoto, jogue esse pau! — Ivan olhou para seu pé e logo ao lado tinha um pedaço de madeira. Pegou e arremessou para Velho Cid. Quando o rapaz levantou o pau do chão, notou que era bem leve, e aparentava estar podre. Não seria uma arma eficiente contra Lando, mas não teve tempo algum de avisar ou procurar um pedaço de madeira melhor.

Velho Cid agarrou a arma com a mão livre e posicionou para trás do corpo, preparado para atacar Lando que vinha em linha reta e numa velocidade assustadora. O uroncion chegou rugindo odiosamente, já ciente do ataque do velho. Nos metros finais da corrida, tomou um impulso e caiu com os dois pés servindo de apoio, deixando os braços livres para combater. Já sabia do golpe com o pedaço de pau, então deixou o braço direito levantado em defesa. Já tinha quebrado galhos muito maiores que aquele facilmente. A mão esquerda estava recuada, pronta para contra-atacar. Rasgaria a barriga despida do velho num só golpe. Ele não podia se defender pois a mão estava ocupada segurando seu irmão. Uma briga rápida, calculada e sem falhas.

Mas o golpe com a madeira não veio. Tudo aconteceu em questão de segundos. A poucos centímetros um do outro, Lando não viu o braço esquerdo do Velho Cid se mover. Quando entendeu o que ia acontecer, já era tarde demais. Levantou os olhos para o braço direito erguido do velho, e só teve tempo de ver o próprio irmão descendo diretamente em sua cabeça.

BAM!

Com um único golpe, Velho Cid desacordou os dois. Ivan e Nora, que viram tudo a menos de dois metros de distância, estavam impressionados.

— Acho que não era necessário tudo isso... — Ela disse.

— Era sim. Essas raposas são muito altivas. Orgulham-se das suas emboscadas, ao fazê-los cair em uma, eu causei um ferimento muito maior que este outro golpe de agora.

— O que vai fazer? — Perguntou Ivan ao notar Velho Cid segurando o tornozelo de cada um.

— Evitar que acordem e nos sigam.

Velho Cid começou a girar, segurando um uroncion em cada mão. Após adquirir certa velocidade, arremessou os dois bem alto.

— Não precisava matar! — Gritou Nora.

— Calma, menina. Eles vão cair no mar, não precisa chorar.

— Então que avisasse antes! Só a Ligeia para aguentar você, Cid! — Ela saiu andando e os dois salvadores seguiram a garota.

 

II

Após cinco horas de viagem, os três chegaram às proximidades da morada de Nora. As pessoas que notavam a presença de Ivan junto de Nora e Cid encaravam-no com desconfiança. As crianças, com curiosidade. A garota fazia questão de pedir a todos que não se preocupassem, e logo o trio chegou ao fim da floresta, onde Nora fez questão de dizer:

— Bem vindo a Namal-te-Raan!

O choque foi maior que o imaginado. A cidade não era maior que as pequenas cidades por onde Ivan viajou durante muito tempo, antes de entrar para a tripulação do Capitão Balboa. Nada de impressionante, mas a surpresa veio da forma que a cidade foi construída. Num gigantesco campo aberto, dezenas de amontoados de casas, uma por cima outra, criando abominações estéticas. Essencialmente usando madeira das árvores, algumas das casas amontoadas eram feitas de barro endurecido. Não havia uma linha reta constituindo nenhuma das construções, deixando na contemplação de Ivan um desejo, uma busca por qualquer elemento civilizado.

Das portas disformes saíam pessoas, alegremente conversando; crianças corriam para as ruas, saindo por algo que era ao mesmo tempo o caminho da sua porta até a rua e o telhado de vários outros moradores do aglomerado.

— Nossa... Eu imaginava algo muito diferente. — Respondeu seriamente.

— E esperava o quê? Queria que vivêssemos embaixo do chão, como os uroncions? — Nora-Celtah estava um pouco decepcionada. Realmente aguardava uma reação mais positiva de Ivan.

Enquanto andavam, Ivan – ainda curioso – viu de relance um grupo de homens oportunamente trabalhando numa construção. A casa era construída usando a parede de um dos aglomerados como apoio. Era de fato uma casa montada em cima da outra.

— Parece um grupo de colmeias humanas... — Falou sozinho.

—Colmeias, que é isso? — Perguntou, interessada na opinião de Ivan sobre seu povo.

— Ah, é um tipo de casa que tem no lugar de onde eu venho. — O garoto tentou disfarçar e esconder que estava falando de uma casa de insetos, mas Velho Cid não segurou a risada.

— Parece mesmo! Eu nunca tinha feito essa comparação! — E tornou a rir.

— Vocês estão zombando da minha casa?

— Não, não! Colmeia é uma casa, sim! Falo sério. Velho Cid, você não está ajudando, rindo deste jeito!

— Desculpe, então. É que a fome me deixa meio bobo. Menina, por que não nos leva para comer?

— Hum, está bem... Venham por aqui!

Nora-Celtah guiou os dois para uma das colmeias. Bem na base de uma delas, havia um grande salão, com várias entradas dispostas lado a lado, o que deixava o interior bem ventilado.

— É uma mistura de bar, com praça, com escola... tudo em um só lugar! E tem umas cinquenta casas sobre nossas cabeças? Isso não me passa muita segurança. — Disse Ivan olhando para o teto do local.

— Pare de bobagem e vamos comer. — Chamou Cid, já rumando para uma larga mesa de pedra, rodeada de pequenos troncos de árvore cortados, servindo de assento. Apesar de inicialmente aparentar uma rudeza estrutural, os objetos eram feitos com uma precisão artesanal assustadora.

— Esperem que vou buscar algo para comermos! — Disse Nora-Celtah, já saindo de perto da mesa. Ivan resolveu pedir um pouco de água, pois estava com a boca seca.

— Ei, Nor... — Ivan levantou a mão para chamar a garota com um tapinha nas costas, mas Velho Cid reagiu e segurou a mão dele. Nora virou e viu o que tinha acontecido. Algumas pessoas também pararam o que estavam fazendo para olhar.

— Eu só queria pedir água... — Ivan sabia que tinha feito algo de errado, olhou para Nora pedindo ajuda, mas ela só respondeu que pegaria a água. Após um olhar direcionado a Cid, ela desapareceu por uma porta na parede mais próxima.

— O que eu fiz? — Ivan perguntou baixo.

— Essa ilha não é como a terra de onde a gente veio, garoto da Lua. Eles têm muitas regras de como tratar mulheres, especialmente as que podem vir a se tornar Ligeia. A garota é uma delas.

— Olha, eu não entendi nada, mas eu ouvi certo quando você disse “de onde a gente veio”? Você por acaso sabe de onde eu vim?

— Não sei o lugar exatamente... Mas com certeza é algum pedaço de Maciaan.

Ivan percebeu que Velho Cid tinha muito mais mistérios do que ele imaginara.

— Ei, ela já está vindo. Nada de tocar nela, nem discutir, não importa o assunto. Você pode até perder a cabeça por algo assim.

— Que lugar mais estranho...

Junto com Nora-Celtah, um homem veio trazendo cuias e algumas cestas. Nora pôs uma jarra com água e uma com um líquido viscoso feito de alguma fruta vermelha. Ivan achou melhor não perguntar o que era, e apenas bebeu água. Para comer, tinham verduras e raízes cozidas, e uma carne branca que definitivamente não era nenhum tipo de galinha, mas Ivan achou muito saborosa.

— Estou satisfeito. Acho que vou indo. — Disse Velho Cid.

— Na hora de pagar, saindo de fininho, hein, Velho?

— Não precisam pagar nada, vocês me trouxeram de volta sã e salva! — Respondeu Nora-Celtah. Uma senhora se aproximou do trio, virou para Velho Cid e fez uma súplica.

— Olá, Velho Cid. Há quanto tempo que o senhor não aparece aqui em Namal-te-Raan. Se não for te incomodar, eu gostaria de pedir uma benção para o meu filho. Ele é pequeno, Velho Cid... Há mais de quatro dias que não consegue levantar da cama, está mal, mal de verdade.

Ivan e Nora se entreolharam, sem muito o que pensar. Qualquer um que pudesse, ajudaria aquela mulher no problema com o filho, principalmente Velho Cid, que os ajudou sem pedir nada em troca, desde o dia anterior.

— Olha, senhora, eu não posso fazer muita coisa. Você já pediu ajuda à Ligeia?

— Sim, Velho Cid. Ela foi ver meu filho logo no primeiro dia que ele passou mal, mas até agora nada. Juro que não quero incomodar, mas você é o único que pode ajudar. A Ligeia não tem o Prisma Pulsar. Mas o senhor tem a Pedra Celestial, por favor, não me negue este pedido, Velho Cid...

— Eu prometo que vou rezar pelo seu filho, se for da vontade dos Ancestrais, ele vai ficar forte e saudável.

— Muito obrigado pelo seu apoio, Velho Cid. Eu tenho certeza que vai ajudar muito.

— Ei, Nora... Onde estão meus companheiros? O pessoal que ficou amarrado? — Perguntou Ivan, com a voz baixa, tentando isolar a conversa pessoal de Cid com a senhora.

— Eu não sei, ué... Normalmente, pessoas de fora da ilha são levados para interrogatório. Ei, senhora. O grupo de homens que chegou dias atrás, onde estão?

A mulher virou-se para Nora-Celtah e respondeu:

— Não está sabendo? Descobriram que eram bandidos, vieram para roubar. Um deles confessou. A prova de redenção estava programada para hoje, acho que já foi executada, até.

— Bandidos? Não, vocês entenderam errado! Nem sabíamos que vivia gente aqui na ilha!

— Você é um deles? — A senhora perguntou. Com medo responder e ser enjaulado novamente, Ivan hesitou. Olhou para Nora-Celtah, pálido, clamando por ajuda.

— Não. Quer dizer, ele veio, mas ele me resgatou dos uroncions, eu tenho uma dívida com ele! — Nora estava exaltada, tentando a todo custo aliviar a desconfiança que a mulher passou a ter de Ivan.

— Bom, você não é nenhuma boba, Nora-Celtah. Para quem quer ser Ligeia, espero que não arrisque tudo por um estranho. Se eu tivesse a sua chance, não desperdiçaria. — Disse a senhora. — De qualquer maneira, acho melhor correrem até o Poço de Gadu. Ainda podem pegar a provação antes de terminar.

— Temos que ir! AGORA! — Nora-Celtah olhou agitada para Ivan, e ele entendeu que havia certa gravidade na situação. Os dois saíram correndo a toda velocidade.

 

III

Deixando Velho Cid na cidade, Ivan e Nora-Celtah correram para dentro da floresta, rumando para uma direção diferente da que vieram. Não tiveram dificuldade em terminar o percurso, pois havia uma trilha muito bem definida na selva, aparentemente era usada com frequência. A garota foi a primeira a chegar ao fim da trilha. Ivan veio logo atrás e não acreditou no que viu. Seus companheiros de viagem, deitados no chão, sem vida.

Flechas cravadas nos peitos, cabelos e roupas encharcadas de água, rostos inexpressivos. Capitão Balboa era o único que se mantinha de pé, mas amarrado pelos punhos. Vários homens estavam fazendo a guarda dele. Ivan se viu numa clareira de chão úmido, e mais pedregoso que o caminho trilhado até ali. O local tinha uma profunda depressão circular no centro, e da ladeira que fazia a descida do buraco, mais dois homens subiram, carregando o corpo de Zelmo, também alvejado por flechas. Deitaram-no ao lado dos outros.

— Você é o último, Balboa. — Uma mulher esbravejou. Era Baga-Seiu, a mesma que estava no momento da captura dos marinheiros. — Sua chance de anular a pena capital é agora. Vai tentar?

— Capitão Balboa! — Ivan correu até o velhote. Nora, pega de surpresa, tentou segurar Ivan, em vão. — Capitão, o que houve? Por que estão todos mortos? — O rapaz já estava entregue aos prantos. Um dos homens agarrou Ivan, tentando conter o rapaz.

— O que é isto? Este é aquele que fugiu? — Perguntou Baga-Seiu. Ela estava na beirada do buraco, com um arco na mão, e a aljava de flechas presa às costas. Era a única usando alguma arma. Nora correu até ela.

— Baga-Seiu! Espere! Ele foi preso comigo na aldeia dos uroncions. Ele me ajudou a fugir, não é uma pessoa ruim! — A menina começou a falar rápido, mas Baga-Seiu, imponente, tratou de calar a garota com a palma de sua mão, e disse calmamente:

— Nora-Celtah. Não esperava ver você sozinha aqui, e imunda desse jeito! Fomos atrás do seu rastro, e vimos que tinha entrado no território dos uroncions. Já estava imaginando quando eles iam te trazer de volta. Por que fugiu? Eles te trariam em segurança, em troca de uma tentativa de pegar a lança.

A menina retirou a mão da mulher de sua boca, e tentou explicar.

— Eu sei! Mas tudo aconteceu muito rápido. Ivan fugiu, e eu acabei sendo resgatada por ele e pelo Velho Cid. Eu juro pelos Ancestrais, pela Ligeia, ele não é uma pessoa ruim! — Vendo o esforço de Nora para livrar-lhe a cara, Ivan entendeu que tinha conquistado a confiança dela, apesar do gênio difícil da garota.

— Nora-Celtah... Você sabe que a fuga deste sujeito ocasionou a morte de um dos nossos? Nós achamos o corpo seguindo o seu rastro. Ele não é inocente coisa alguma. Nós descobrimos que vieram de longe para buscar riquezas. Sempre é assim. Esses homens surgem do fim da linha do mar, apenas para destruir o que temos, e levar embora o que há de mais precioso em Namal-te-Raan.

— Senhora! — Gritou Ivan. — Por favor, não temos intenção alguma de lhes prejudicar! Se libertar o Capitão, nós vamos embora agora mesmo!

— Do que está falando, garoto? A pena capital cai sobre todos os invasores. Você pode não ter participado do julgamento, mas a punição será aplicada assim mesmo! — Baga-Seiu fez um gesto e o homem que segurava Ivan passou a fazê-lo com mais severidade, e o pôs atrás do Capitão Balboa.

— Mas... Que justiça é essa?

— Não adianta, moleque. — Capitão Balboa falou. Estava notadamente cansado, com a voz abatida e o semblante exaurido de qualquer esperança. — Eu tentei explicar de todo jeito no tal julgamento. Ao que parece, não somos os primeiros navegadores a chegar aqui, e os que vieram antes de nós fizeram um grande estrago no povo desta ilha. Eles não confiam em ninguém de fora... — Cabisbaixo, Balboa sussurrou: — No final das contas, aquela mulher só quer proteger seus filhos de estranhos.

— Baga-Seiu... — Nora estava arrasada, mas não tinha como ir contra sua tutora. Seus olhos umedeceram quando Balboa foi escoltado pela ladeira e Ivan deu um passo à frente.

O buraco era muito largo e tinha cinco metros de altura até a superfície de água cristalina. A ladeira descia pela parede do buraco e parava numa pedra plana, na altura da água. Só cabia um homem nela, de forma que o capitão foi desamarrado quando colocou seus pés na pedra, e o homem que o acompanhou fez o caminho de volta.

O capitão agora estava sozinho. Cercado por um paredão circular de pedra, água à sua frente. No alto, viu um pedaço do céu e lembrou os seus dias tranquilos no barco. Muitas vezes foi para sua cabine e, da mesa onde escrevia seu diário, olhava pela janela para o céu. A visão da janela circular por onde via o azul do céu era muito parecida com o que estava vendo agora, com exceção da mulher que emergia rígida na beirada. A negra de braços fortes e cabelo volumoso, que mantinha a postura ereta e os olhos firmes. Timidamente, atrás dela, Balboa viu uma cabeça. Era a menina que correu atrás de Ivan, dois dias antes.

— Intruso! Você foi sentenciado à morte pela Ligeia de Namal-te-Raan. Diante de você, está a sua chance de mudar o destino. Aqui, no Poço de Gadu, existe uma lança dourada. Ela está submersa há mais de duas décadas. Segundo a profecia, a pessoa que alcançar a lança será o herói que trará a harmonia para nosso mundo desequilibrado. Seja feita a vontade dos céus, com a benção dos Ancestrais. Você aceita o desafio?

— Aceito! — Respondeu o capitão, embora na sua cabeça pensasse “Harmonia para seu mundo uma ova! Vou pegar esta lança e me mandar com o moleque. Teremos dificuldade em navegar em dois, mas agora não tem mais jeito!”. O velho mergulhou na água, que estava mais fria que o imaginado.

Ele olhou mais uma vez para a mulher no alto, e mergulhou. Conseguiu manter os olhos abertos. A água era clara e estava limpa, mas o fundo não estava visível. O velho começou a nadar para baixo. A luz se tornou escassa. Ainda tinha fôlego, mas o fator mental falou mais alto. “Estou descendo muito, não vai dar para voltar.”, pensou. Emergiu e viu Baga-Seiu com a flecha pronta para ser disparada.

— Pelo visto, não conseguiu...

— Um momento! — Balboa levantou os braços, desesperado. — Estava apenas tomando conhecimento da profundidade! Agora vou descer!

Respirou fundo dez vezes, encheu o peito e mergulhou. Um, dois, três metros... Quanto mais descia, mais escuro ficava. Em certo ponto, não adiantava mais deixar os olhos abertos. Os ouvidos se encheram d’água. A cada segundo, Balboa percebia alguma mudança sutil no seu corpo, indicando o perigo da morte inevitável. Mas não podia se desesperar, afinal só precisava chegar ao fundo e a subida ficaria mais fácil, só de ter a certeza que não seria executado. O fundo insistia em não surgir, e a profundidade chegou a tal que a pressão fez a água entrar pelo nariz do velho. Não tinha mais volta. Tentou subir batendo os braços, destrambelhado. Achou que não ia morrer quando alcançou um pouco de luz, mas ainda faltava muito para a superfície. A garganta cheia de líquido tentou tossir, e esse foi o fim.

No topo do buraco, Baga-Seiu viu o corpo do Capitão Balboa emergir, boiando.

— Tire ele dali. Realmente pensei que ele fosse conseguir... Os outros cometeram o erro básico de deixar fôlego para voltar, mas o velho teve coragem, foi até o limite ainda na descida... Mas não foi suficiente. Você é o próximo, garoto!

Ivan viu o corpo do capitão passar carregado, ao lado dele. Acompanhou o falecido chefe até que ele foi deitado junto dos outros. O lacaio que lhe segurava o braço manteve a firmeza na mão, mas não tinha receio de qualquer tentativa de fuga por parte do rapaz. Ivan estava chorando desoladamente, Nora-Celtah também notou que ele tinha perdido qualquer motivação, até mesmo para sobreviver.

— Capitão, você sempre brigava comigo, me dava ordens absurdas... Nosso tempo junto não foi muito longo... Mas eu sentia pelo senhor o que eu não consegui sentir pelo meu pai. — Ivan deitou a cabeça na barriga do velho e suspirou.

— Já está na sua vez, garotinho! — Era Baga-Seiu, severa como de costume. Ivan enxugou as lágrimas com o antebraço, ficou de pé e encarou a negra nos olhos. Ele faria o possível e o impossível para pegar a lança. Não deixaria Balboa morrer em vão. — Vamos, você é o último, desça de uma vez.

O guarda puxou o braço de Ivan, indicando que levaria o garoto de qualquer jeito. Ivan olhou para ele e pediu que o soltasse. Ele iria sozinho. O homem consentiu, mas Baga-Seiu assestou a ponta da flecha para Ivan, já precavida. Ivan deu os primeiros passos para a borda do buraco, olhou para o céu e não viu nada. Nenhuma nuvem. Nenhuma estrela. Nenhuma Lua. Estava por conta própria. Subitamente, começou a correr, mas não para fugir; correu na direção do Poço de Gadu. Impressionada, Nora viu quando Ivan se jogou da beirada até a água, tomando fôlego durante o pulo.

Um alto barulho decorreu do mergulho. Os homens que estavam no local foram até a beirada, curiosos. Nora-Celtah também chegou mais perto, ajoelhando-se ao lado de Baga-Seiu.

— Esse moleque é inteligente. Usou a velocidade da queda como impulso, só de fazer isso já ganhou alguma distância na descida. Mas será que vai ter fôlego? Passei os últimos anos vendo todo tipo de gente tentando alcançar essa tal lança, nem os uroncions conseguiram. Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, jamais acreditaria que ela existe. — Comentou um dos homens para o amigo ao lado. Ambos olhando para o rastro de ondas deixado por Ivan na superfície da água.

Na água, Ivan descia verticalmente, sem hesitação. Chegou ao escuro. Seus ouvidos se encheram com água. Mais um pouco e conseguiria. Os olhos abertos não viam nada, mas o fundo não podia estar muito longe. Seria impossível de alcançar?

Então aconteceu. A pressão da água empurrou líquido para dentro do seu nariz, mas Ivan foi veloz. Tapou o nariz com os dedos, e continuou a nadar com apenas uma mão. Ainda tinha fôlego, mas o pequeno jato de água que entrou pelas narinas era suficiente para quebrar sua concentração. Sentia uma coceira interna no nariz, que descia até a garganta. Não era possível continuar. “Vou subir e tentar de novo.”, pensou. Girou na água e preparou a subida, mas algo o impediu. Uma mão agarrou seu pé.

“Mas que diabos?”. Ivan se desesperou. Tentou chutar quem quer que fosse, mas não enxergava nada àquela profundidade. Sem controle, já não tinha certeza que subiria com vida. A pessoa que agarrou seu pé subiu até sua altura. Segurou a mão de Ivan e pôs algo nela. Ele segurou, era algo rígido, algo como o cabo de uma lança. Sem questionar a ajuda, Ivan começou a nadar para o alto, já certo que morreria na subida. O estranho novamente segurou o seu pé, mas desta vez tinha outra coisa em mente. Segurando os dois pés de Ivan, o homem ou mulher deu um impulso ao jovem. Não um impulso comum, algo de força sobrenatural. Ivan passou como uma bala pela altura restante. A chegada na superfície não poderia ser mais gloriosa: foi arremessado para o alto, passando a altura de Baga-Seiu. No ar, enquanto caía de volta na água, perguntou em tom de escárnio:

— Quem é o garotinho agora?

Nora-Celtah e os demais que cercavam o poço abriram um longo sorriso. “Não pode ser!”, exclamou um deles. Baga-Seiu, apesar da provocação, não se enervou. A verdade é que ela desejava, como qualquer um, o surgimento do herói da profecia.

 

IV

Quando saiu do Poço de Gadu, Ivan era pura soberba. Estava com um olhar ácido, pronto para fulminar todos os seus inimigos, mas assim que chegou no topo da ladeira, encontrou uma algazarra de gente festiva. Três pegaram ele no colo e levantaram acima das cabeças. A surpresa pegou Ivan e transformou seu humor no total oposto; na terceira vez que fora arremessado para o alto em comemoração, ele já estava gargalhando. Juntando-se ao grupo, Baga-Seiu, sorridente e sem o arco na mão; e Nora-Celtah, olhos brilhando com lágrimas de felicidade. Todos se tornaram amigos, contrariando qualquer expectativa.

Interrompendo a gritaria, um vozerio ainda maior surgiu no local, vindo da trilha que unia o Poço de Gadu com a cidade. Homens e mulheres tentavam impedir o avanço de alguém, mais precisamente, duas pessoas. Rubal e seu irmão Lando.

— Eu já disse que não vou esperar! A garota estava comigo e eu terei minha chance de buscar a lança! — Bradou Rubal, demonstrando que também podia ser impaciente como Lando. — Ei! Você aí mesmo, menina, não pense que vou ficar sem a minha tentativa só porque você fugiu! Eu cheguei até aqui e só vou sair depois que mergulhar no poço!

— Pois pode mergulhar quantas vezes quiser, ninguém vai te impedir! Mas só para você saber, a lança não está mais lá embaixo. — Respondeu Nora-Celtah, atrevida como sempre.

Lando e Rubal finalmente pararam para ver o que estava acontecendo, e notaram em cima da multidão uma pessoa girando uma lança na mão. Era Ivan, mais zombeteiro impossível. As reações não podiam ser mais contrastantes; enquanto os homens e mulheres que tentavam controlar os irmãos se regozijaram em júbilo, alguns chegando ao ponto de mostrar certo louvor religioso a Ivan, Lando e Rubal atingiram o limite da revolta e da incredulidade.

— Não pode ser verdade! Não você, moleque! — Rubal exclamou. Lando já rosnava com os dentes à mostra, músculos explodindo. Quando perceberam a ira do uroncion, os homens e mulheres se colocaram à frente de Ivan, de modo a protegê-lo. Rubal percebeu o que estava prestes a acontecer e tratou de acalmar Lando.

— Ei, mano. Não vá perder a cabeça, hein? Eles estão em número bem maior... — O fato é que Lando tinha força suficiente para acabar com todos ali, afinal a única armada era Baga-Seiu, e justo ela tinha largado seu arco quando Ivan saiu do poço. — Vamos embora, Lando.

Antes de sumir no meio da floresta com o irmão, Rubal fez questão de lançar um olhar odioso na direção de Ivan, que ainda estava erguido.

— Vamos comemorar! Alguém vai na frente contar a novidade! — Disse um, e imediatamente um homem baixo saiu correndo para a trilha. Quando finalmente desceram Ivan para o chão, ele viu os seus antigos companheiros de viagem, já cobertos com um pano branco. Ele andou até Capitão Balboa e ajoelhou. Mesmo com o sangue quente, a emoção tomou conta e os olhos novamente umedeceram. “Sinto muito”, pensou.

— Ivan... — Era Nora-Celtah. Colocou a mão no ombro dele, mesmo morrendo de vontade abraçar o rapaz. Ele olhou para ela, e a lágrima rolou pelo rosto. Ela não teve outra reação, senão segurá-lo em seus braços. A cena provocou um súbito silêncio no grupo.

— Não tem problema, ele é o herói da profecia, e está passando por um momento difícil. — Uma pessoa tentou justificar, mas mesmo ela futuramente evitaria de comentar sobre o contato físico da candidata a Ligeia com um homem.

— Tudo bem, pessoal! Vamos indo, que a cidade já deve estar em festa! — Baga-Seiu tomou a liderança. Enquanto as pessoas rumavam para a trilha, ela foi até os dois abraçados. — Ei, vamos indo.

— Desculpem, mas... Eu preciso resolver uma coisa, primeiro. Os aquáticos que nos trouxeram só vão ficar até hoje à noite. Eu preciso ir pedir um pouco mais de tempo, pelo menos até eu sepultar os...

— Tudo bem. Eu também não vou agora, quero tomar um banho antes. — Disse Nora-Celtah. Ela indicou a direção para Ivan, e combinaram de se ver na cidade, antes do fim da tarde. Era o tempo necessário para ele ir até a praia e voltar.

Ivan correu depressa. Passou pelos campos de cultivo e finalmente adentrou a selva. Correu despreocupadamente até que avistou Velho Cid andando em sua direção.

— Velho Cid? O que está fazendo aqui? — Perguntou Ivan. Estranhou o fato de Cid estar molhado, mas não perguntou nada. Nora-Celtah disse que ia tomar banho, Velho Cid provavelmente devia estar fazendo o mesmo. Mas isso não explicava a posição dele, bem entre Namal-te-Raan e a costa.

— Estou indo para a festa na cidade! Tinha ido me refrescar na praia e já estou voltando. Pelo visto, você pegou a lança! Não seria melhor deixá-la guardada? Sair com ela pendurada nas costas não é muito inteligente...

— Não se preocupe com isso, Cid. Esta lança salvou minha vida, não vou esquecê-la em qualquer lugar.

— Como fez com isto? — Velho Cid levantou a mão. Estava segurando o saco que Ivan vinha carregando desde a fuga na noite passada. O saco contendo os artefatos que ele roubara. No final das contas, Baga-Seiu tinha sua parcela de razão; os homens foram movidos por ganância e o único motivo de terem chegado até a ilha era porque sonhavam com os tesouros escondidos. — Ei, não faça essa cara, garoto da Lua! Pode deixar comigo, não vou perder seus bens preciosos. — Velho Cid sacudiu os cabelos de Ivan, deixando-o sem graça como uma criança, e retomou sua caminhada na direção da cidade.

“Tem algo errado nessa história... Com certeza ele podia ter se refrescado em algum lugar da cidade, ainda mais com as pessoas tratando ele daquele jeito, tão respeitosos.”, Ivan pensou enquanto acelerava o passo na direção da praia. Quando chegou, encontrou o bote no mesmo lugar que haviam deixado. O Sol estava forte e o céu claro. Atentou para a superfície do mar, tentando achar Bal-t-Moer ou algum do seu grupo pelas ondas. Sem sucesso, usou o bote para chegar até o barco. Não ter visto ninguém era algo que o preocupava. Subiu a bordo da embarcação e gritou:

— Bal-t-Moer! Alguém aqui?! — Nenhuma resposta. O desespero arrebatou o coração de Ivan e ele correu pelo convés, buscando algum sinal de vida. Ao som do vento forte cortando o mar, Ivan vasculhou o navio sem encontrar algo que o animasse. Desolado, sem acreditar no que estava acontecendo, ele finalmente entrou na cabine do Capitão Balboa, único lugar que evitara fazer a busca. No interior, o balanço do mar deixava a sensação nostálgica tão forte quanto um soco direto no estômago. A cama desarrumada, com o cobertor desfiado, o travesseiro encardido, o cinzeiro em cima da mesa, todos os sinais se combinaram, fazendo Ivan se tocar na verdade irrefutável: estava sozinho.

Ao se virar para sair, viu uma faca pequena prendendo uma folha de papel na porta. Puxou o papel sem tocar no objeto fincado, provocando um rasgo na área superior. Uma frase solitária no papel, escrita em garranchos, dizia: “Garoto, precisamos ir embora”.

Ivan não suportou a dor. Agarrou a lança com as duas mãos e soltou toda a raiva que explodiu. Girou, bateu, empurrou, cortou. A lança cruzou o ar como folhas carregadas ao vento, sem sentido ou direção, cortando o espaço para onde era guiada. Após quebrar a pequena janela circular, partir a cama em três pedaços, retalhar o alto guarda-roupas, Ivan concentrou-se na mesa. Algumas batidas repetidas e precisas com a ponta da lança foram suficientes para reduzir o móvel a um entulho de madeira. Cansado, Ivan deitou no centro do cômodo, na madeira escura e suja, e gritou até sua garganta secar. Nos olhos apertados de raiva, eclodiram gotículas de lágrimas que ele teimava em não deixar rolar. Arremessou a lança na quina do teto, fazendo-a cair nos escombros da cama, e se encolheu no chão, lamentando até cair no sono.

Quando acordou, já era noite. Pelo vidro quebrado da janela Ivan viu a noite densa, por um minuto achou que tinha navegado de volta para a névoa escura. Saiu da cabine e deu de cara com uma cena familiar. O barco em silêncio, na madrugada, aonde só ele vinha até o convés, para deitar e apreciar a beleza da Lua. Desta vez não olhou para a Lua, ela não merecia ver toda a tristeza que ele agora carregava nos olhos. Uma batida no casco chamou sua atenção. De novo, e de novo. Alguém estava mexendo no bote. “Eles estão aqui!”, pensou Ivan, correndo para estibordo.

Estava certo de avistar a cabeça azul e os cabelos escuros de Bal-t-Moer ou algum dos outros aquáticos, mas achou algo diferente. Cabelos prateados, quase brancos, denunciavam quem estava puxando o bote para longe.

— VELHO CID! — gritou. O velho mergulhou e continuou levando o bote para a praia. — DROGA!

Ivan correu para a cabine e começou a tatear os entulhos até encontrar o cabo da lança. De posse da arma, tornou a voltar para o convés, e mesmo sem avistar Velho Cid ou o bote, berrou:

— Não era isso aqui que vocês queriam? Então podem ficar com ela! — arremessou a lança no mar. Sem qualquer resposta ofendida, nem dos nativos da ilha, nem de Velho Cid, nem de qualquer entidade etérea que pudesse estar de passagem no local. A revolta de Ivan não teve expectadores. Sem vontade de continuar vivendo, o rapaz deitou no convés, e ao fitar a Lua, branca e brilhante no céu escuro, ele perguntou: — Por quê?

Após um minuto – ou cem, o tempo não importava mais – Ivan escutou novamente batidas no casco. Não se importava mais se Velho Cid estava arrependido, ou se tudo fora uma brincadeira de mau gosto; para ele, tudo que importava era tomar coragem para se encontrar com o resto da tripulação no além-vida.

O barulho agora era de subida pela corda. Um passo de cada vez, torcendo a escada para a direita, depois para a esquerda, e novamente para a direita. Pés tocaram o chão. Passos leves, ritmados, se aproximaram. A imagem da Lua foi obstruída por outra tão bela quanto. Nora-Celtah estava ao lado de Ivan.

— O que aconteceu, Ivan? — Ela perguntou, receosa da resposta. Ele levantou o corpo e sentou-se. Ela agachou, deixando os olhos no mesmo nível.

— Nora... Aconteceu tudo rápido demais. Eu não tinha entendido muito bem as coisas hoje à tarde, mas agora entendo. Estou sozinho aqui neste lugar. Estou preso aqui. — Os olhos tristes desceram e Ivan pôde ver seus pés e os de Nora-Celtah, lado a lado. Ela tinha lindos pés, quase não acreditou que aqueles pés eram da garota que corria como o vento pelo mato, chão de terra ou areia, sempre descalça.

— Ivan... — Ela puxou o rosto dele de volta para cima. — Você não está sozinho.

Olhando aqueles olhos verdes tão belos quanto duas Luas, Ivan percebeu que aquelas palavras eram a chave que precisava para se libertar da prisão. Avançou o rosto para beijar Nora-Celtah, mas ela colocou a palma da mão sobre a boca dele. Nora-Celtah balançou a cabeça negativamente, em seguida deu um forte abraço no rapaz. Ele não se zangou com isso, pois sabia que naquele lugar, sob regras que desconhecia, o abraço de Nora-Celtah era algo muito significativo.

— Vamos para casa! — Ela disse, puxando Ivan para descer até o bote.

— Casa?! Hum... Ei, espere, Nora. — Ivan tirou as botas e descalçou as meias. Seu pés estavam doloridos e cheios de marcas. — Vamos para casa.

No bote, Velho Cid aguardava os dois. Não era exatamente a pessoa que Ivan gostaria de ver, no momento.

— Você não disse que cuidaria bem disto aqui? — Velho Cid estava com a lança. Ivan não queria discutir, e sabia que estava errado.

— Eu sei... Não se preocupe, sei bem do meu erro, não vai acontecer de novo.

— Não vai mesmo! Ela agora vai ficar comigo, só vou devolver quando você se mostrar merecedor.

Velho Cid pulou na água e puxou o bote a uma velocidade impressionante, mesmo para um aquático. Em questão de segundos, estavam na costa.

 

V

A Lua, o mestre e o desafio

Velho Cid acordou com os raios amarelados do Sol nascente queimando de leve o seu rosto. Dormira no chão da floresta, como era acostumado, mas poucos locais eram tão privilegiados quanto aquele. As árvores eram muitas, porém o terreno era quase infértil, o que as deixava com um aspecto cinzento e com pouca folhagem. A madeira frágil era alvo fácil para insetos se infiltrarem, formando as mais variadas colônias de bichos. Neste dia, quando Velho Cid acordou, teve uma inexplicável sensação de plenitude quando viu, voando vagarosamente num ziguezague que às vezes cortava alguns feixes da bela luz matutina, uma borboleta azul. Ela continuou seu percurso tremulante até pousar na ponta do nariz de Velho Cid.

— Árvores doentes, com tronco infestado de insetos e galhos desfolhados... Parece um cenário triste, mas fiquei feliz em contemplar a sua dança entre os traços de luz e sombra. Será que algum dia veria uma cena tão bela se tivesse me tornado rei? — Perguntou-se o velho, ainda com olhos apertados de sono. Soprou a borboleta do nariz e levantou do chão, espreguiçando-se.

“O que vou comer? E cadê o garoto da Lua? Se ele inventou de dormir muito longe não vou ficar procurando.”, pensou Velho Cid enquanto passeava sonolento. Chegou até a região em que o solo piorava, formando um verdadeiro lamaçal. O lugar parecia uma arena de lama escurecida, mas era plana e tinha geometria oval. A impressão é que alguém tinha contaminado o meio de uma selva frondosa, formando um círculo de podridão, pouco maior que a área de uma casa, que adoecia as árvores que o rodeavam. No meio do círculo, lanceando com uma vara longa, estava Ivan.

— Você não dormiu?

— Não vi o tempo passar. — Disse o rapaz. Agora tinha os cabelos longos, caindo nas costas como os de Velho Cid. — Esse lugar é muito bom para treinar! A lama segura os pés, e ajuda a aumentar a agilidade com o treino. Sem falar que é bem escorregadio, então trabalha muito bem o meu equilíbrio.

— Quando comecei a te ensinar como lutar, percebi que você era empenhado, mas agora vejo que é uma verdadeira obsessão. Venha cá, vamos disputar uma luta amigável. Quero ver a que ponto você já evoluiu.

— Vem você para cá! Quer lutar com um monte de árvores no caminho? — Perguntou Ivan.

— Logo ali tem uma área aberta, dá para usar. Eu não quero é sujar os meus pés com essa lama podre. — Os dois seguiram para dentro da floresta e logo chegaram ao local da disputa. — Você ficou muito forte nesses anos de treinamento, garoto da Lua. Já está com o braço maior que o meu, vou ter que lutar sério.

— É, mas você é um maldito meio-aquático, já vi aquáticos minúsculos levantando pedras enormes... Bom, dá um desconto, né? Fiquei treinando a noite toda, estou cansado.

— E eu estou cheio de sono ainda. Não vou dar desconto nenhum! — Velho Cid terminou a frase avançando em Ivan com um soco de direita. O jovem esquivou habilmente e usou a parte de trás da vara para acertar um golpe no peito de Velho Cid, que se agachou com facilidade.

O contra-ataque era inevitável. Após errar o golpe, Ivan deixou o torso desprotegido, e Cid estava com as pernas flexionadas. Instintivamente, usou a posição para se impulsionar num pequeno pulo e acertar um chute lateral. Se estivesse com uma perna no chão, o chute não teria tanta força, mas por estar no ar, todo o peso de velho Cid foi transferido para o movimento da perna, que jogou Ivan para o lado.

— Bom golpe! — Provocou Ivan, recuperando o ar expelido pelo chute, sem tirar o sorriso zombeteiro do rosto. — Mas agora está longe demais, eu tenho a vantagem!

Mantendo uma base firme, Ivan encetou várias espetadas rápidas com a ponta da lança de madeira. Velho Cid desviava com destreza, o cabelo prateado do velho pairava no ar, seguindo o movimento rápido do corpo.

Ele não seria acertado pelas investidas, mas também não conseguia se aproximar. Velho Cid sabia bem disso, como Ivan também. A chance de Velho Cid era segurar a vara quando Ivan se descuidasse após uma espetada. Após três minutos estudando os movimentos de ataque do aprendiz, Cid resolveu agir. Após o próximo ataque, sabia exatamente onde esticar o braço e agarrar a vara no movimento de recuo. A lança atacou!

Esquivou normalmente e estirou o braço esquerdo para agarrar a lança na volta do ataque. Mas não seria tão simples, pois era aquele movimento que Ivan vinha aguardando desde que começou a série de espetadas. Quando viu o movimento de contra-ataque, Ivan hesitou em puxar a vara, no lugar, arrastou a arma lateralmente para o seu lado esquerdo e fez um giro de corpo inteiro.

O rosto de Velho Cid se assombrou. Tinha certeza que alcançaria a vara, quando foi puxada para o lado oposto do seu braço. Quando levantou o olhar para Ivan, ele já completava um giro, e com isso a lança também retornava à sua origem. Pela primeira vez num ato desesperado, Velho Cid abaixou bruscamente o corpo, tentando desviar do golpe. Escapou por pouco, os tufos de cabelo prateado alastrados pelo ar eram a prova. Mas a luta ainda não tinha acabado. Após o giro e o erro, Ivan estava livre para receber um ataque. Velho Cid deu uma larga passada para frente e disparou um chute direto no peito de Ivan. O aprendiz tentou se proteger desajeitadamente, trazendo a vara para frente do corpo. Foi rápido o bastante para posicionar a lança como escudo, mas a força de Velho Cid era muito superior. A planta do pé quebrou a vara e atingiu o peito do aprendiz, derrubando-o de vez.

— Ei, você está bem? — Velho Cid socorreu.

— Acho que vou sobreviver...

— Você venceu. Vou te devolver a lança, Ivan. A partir de hoje, não tenho mais nada para te ensinar.

Ivan não concordou de ter vencido a luta, mas estava feliz. Finalmente tinha deixado de ser o garoto da Lua.


Capítulo 5: Revelações


I

Enquanto Velho Cid, Ivan e Nora-Celtah caminhavam até Namal-te-Raan, Simoé admoestava Rubal e Lando. Os irmãos, prostrados no chão, recebiam chibatadas severas nas costas, enquanto um grupo de uroncions assistia tudo.

— Espero que isso já seja o suficiente, mas creio que no caso de vocês, só é o bastante para prolongar um pouco o tempo até a próxima decepção.

— Professor Simoé... Sabe que jamais provocaria deliberadamente a sua ira, ou de qualquer outro, se me permite o esclarecimento. — Disse Rubal, com o rosto ainda colado ao chão de terra.

— Eu sei, Rubal. Mas desta vez você foi longe demais. Do seu irmão eu já esperava qualquer atitude impensada, mas de você? Levantem os rostos, quero olhar em seus olhos! — Ordenou Simoé, e os dois se ergueram, ficando de joelhos, mas ainda sem olhar nos olhos do professor. Lando estava a ponto de explodir; não bastasse levar a punição verbal e física, ainda era humilhado na frente de todos.

— Eu disse que quero olhar nos olhos! Isso, muito bem. Vocês dois saíram daqui com a mais simples das missões. Ir até Namal-te-Raan e negociar um mergulho no Poço de Gadu. Quantos que estão aqui olhando para vocês já não foram lá fazer o mesmo? Não só perderam a garota no meio do caminho, como ainda tiveram a petulância de ir pedir o mergulho sem nada em troca! E para piorar a situação, toparam duas vezes com o maldito ladrão fugitivo e não recuperaram a Pedra Cataclismo! Vocês sabem muito bem que só chegamos onde estamos devido à ajuda da Pedra. Agora sem ela, até mesmo a nossa segurança está ameaçada!

Um silêncio se apoderou do local, e os irmãos novamente baixaram os olhos para o chão.

— Sinceramente, não sei como ainda confia nesses dois, Edin. — Disse Simoé ao sair do local, olhando para uma figura entre os que assistiam a admoestação. Edin estava entre eles, e após a saída de Simoé, foi até os irmãos.

— Não se preocupem, amanhã eu vou tentar ajeitar as coisas.

— Ajeitar como, professor? — Questionou Rubal.

— Vocês disseram que o ladrão está com Velho Cid, não é? Pois bem, amanhã vou até Namal-te-Raan. Falarei com a Ligeia e ela não poderá acobertar os dois. Sei que ela é negligente com Velho Cid e os dois até têm certos laços de amizade, mas ao saber que ele está com a Pedra Cataclismo, roubada ainda por cima, não ousará ficar contra mim.

— Como pode ter certeza disso, Professor Edin? — Indagou Lando. Sua voz carregava o desafio de sempre, achando que era tão sábio quanto seus professores. — Pelo que sei, os tais laços que a Ligeia mantém com Velho Cid são puramente estratégicos. Ela quer a proteção da Pedra Celestial que ele tem. Agora que ele tem também a nossa Pedra Cataclismo, ela muito provavelmente vai querer mais ainda a união com ele para nos atacar.

— Não seja ingênuo, Lando. A Ligeia jamais vai arriscar começar uma guerra conosco. Acha que ela arriscaria a vida de seu povo assim?

— É um risco muito baixo. Com as duas Pedras, ela venceria com baixas insignificantes. — Ele teimava.

— Para a Ligeia, a perda de uma pessoa já é dolorosamente insuportável. Não esqueça que ela vê a todos com os olhos amorosos de uma mãe. Vão descansar; se quiserem me acompanhar amanhã, sairei bem cedo. — Edin deixou os dois ajoelhados e foi embora. Os outros, que formavam o círculo de observação, também se dispersaram.

 

***

 

Ivan, após banhar, vestia a túnica oferecida por Nora-Celtah. Era idêntica às outras que havia visto no corpo dos outros homens. Estranhando um pouco o caminhar sem calçado, ele uniu-se a Velho Cid e a garota.

— Já é bem tarde da noite, será que ainda estão comemorando?

— Ora, é claro que sim! Você não imagina o que significa a lança dourada para o nosso povo! Há anos esperamos alguém recuperá-la do fundo do Poço de Gadu.

— É verdade — disse Velho Cid — acho que o Sol vai nascer e ainda vai ter gente cantando e bebendo.

E era verdade. Uma espaçosa arena de dança foi montada a céu aberto, com uma fogueira no centro e vários pontos iluminados ao redor. As pessoas continuavam animadas, mas não eram tantos quanto Ivan imaginara. Pensou que veria a população inteira ainda farreando, mas a maior parte já havia se recolhido. Só ficaram os que não podiam esperar para conhecer o grande salvador, portador da lança.

— É ele! — Gritou um senhor de meia idade, interrompendo o remelexo desengonçado dos que o rodeavam. Todos olharam para o trio recém-chegado, e sorrisos e gritaria pululavam nos agrupamentos à medida que avistavam Ivan.

— Toma, segura isso, mas depois me devolve, viu? — Velho Cid entregou a lança na mão de Ivan.

Ivan recebeu cumprimentos e saudações de toda forma, algumas crianças, ainda acordadas, admiravam-no com esperança no brilho dos olhos. Os adultos parabenizavam o rapaz, alguns até o reverenciavam, apresentando certa postura de inferioridade nos gestos e nas palavras; outros não escondiam a curiosidade de ver a lança dourada, como era, quanto pesava; tudo em Ivan era motivo de alegria para as pessoas.

— Ei, onde está a Ligeia? — Perguntou Nora-Celtah. Informaram que ela já havia voltado para casa, mas a euforia das pessoas falou mais alto, e eles agarraram Ivan pelo pulso e o levaram até ela.

— Não seria melhor esperar até amanhecer? — Velho Cid disse a Nora-Celtah.

— Que nada! Esse é o maior acontecimento de toda uma vida! Você é muito insensível, Velho Cid. Eu hein... Vamos atrás deles.

A comoção levou Ivan até um grande salão espaçoso, como o que ele esteve durante o dia. A iluminação das chamas mostrou que não havia nada ali, nem mesas, balcões ou nada parecido; era apenas um grande salão vazio. Na parede, dezenas de bifurcações fazendo o papel de portas e corredores. O lugar deu novamente a Ivan a impressão de estar dentro de uma colmeia ou formigueiro, e ele estranhou a naturalidade daquelas pessoas vivendo em construções tão esquisitas.

— Ele está aqui! Chegou o salvador com a lança!

De um dos buracos na parede, surgiu uma senhora de pele muito branca e cabelo muito escuro. Segurava um castiçal de pedra com três velas acesas e com ele iluminou a área mais à frente.

— Como se chama, rapaz? — A mulher perguntou seriamente.

— Meu nome é Ivan.

— Ivan, que nome bonito! Acho que a Ligeia vai gostar dele, sim. — Uma voz feminina disse no meio do grupo que trouxera Ivan.

— Venha comigo, por favor, Ivan. — A mulher de pele clara chamou com um gesto de mão. O jovem se aproximou dela e em seguida Velho Cid e Nora-Celtah surgiram à frente da multidão. A mulher notou que ele os conhecia e questionou: — O que foi? Conhece a Nora-Celtah?

— Sim. Eles dois podem ir junto? — Apontou para Nora e Cid.

— Mas é claro. Vamos.

Após passarem pelo corredor – que não era tão longo quanto Ivan imaginava – os quatro chegaram numa pequena sala circular. A mulher pediu que esperassem por um tempo e saiu pela única outra porta do local. Ivan notou do lado esquerdo da sala um grande altar com três pedestais vazios. Os pedestais e o altar eram feitos de uma pedra branca e muito lisa, que ele jamais vira igual. Atrás do altar, uma cadeira esculpida na mesma pedra branca. Enquanto andava com passos tímidos pelo lugar, Velho Cid e Nora-Celtah esperavam quietos, só observando a curiosidade do novato.

— São pinturas? — Ele perguntou sem esperar resposta. Correu para o lado oposto ao altar, para a parede do lado direito. Uma série de retratos pendurados adornava a parede. A pouca luz não deixava ver com clareza, mas pôde notar que eram todas mulheres. Muito lindas, e bastante diferentes uma das outras. Notou algo de semelhante, no entanto, quando alguém chamou seu nome.

— Ivan?

Da porta do lado oposto ao que entrara, chegou uma mulher alta. Ela usava algo que a diferenciava das outras mulheres da cidade, mas a deixava igual às outras dos retratos. O tecido que vestia, também enrolado no corpo, não era branco, mas vermelho com detalhes em dourado. A mulher alta tinha um sorriso claro, pele muito queimada de sol e cabelos de um loiro muito forte. A boca fina e os olhos grandes e expressivos casavam muito bem com o nariz arrebitado. Sem dizer nada, ele se aproximou.

— Eu peguei a lança. — Afirmou com timidez. Não sabia o que pensar, mas não conseguia parar de olhar a Ligeia nos olhos.

— Muito bem. Sei que fará o melhor que puder com ela. Seja muito bem-vindo a Namal-te-Raan.

A Ligeia deu-lhe um abraço carinhoso, e Ivan sentiu pela primeira vez o conforto dos braços de uma mãe quando ela aproximou a cabeça e a encostou no seu rosto. Hesitando um pouco, retribuiu o abraço e fechou os olhos, extraindo daquele momento o máximo que podia de carinho – uma atitude egoísta, mas que foi a única que ele podia ter, e a Ligeia não se importava nem um pouco, pois quanto mais carinho ela esbanjava em Ivan, mas ela se sentia satisfeita. Ao término do abraço, Ivan quase pediu para ficar mais um pouco com ela, mas já estava por demais agradecido com o que conseguiu.

— Mãe! — Exclamou Nora-Celtah correndo até ela com os braços abertos. Recebeu um abraço e beijo na testa. Ainda agarrada com a Ligeia num aperto forte, ouviu as recomendações.

— Eu fiquei sabendo que você aprontou bastante. Por que foi até os uroncions? Sabe que não deve sair sozinha daqui de casa. Olá, Cid! Parece estar muito bem, já tem tempo que não te vejo aqui na cidade.

— Estou só de passagem. — Velho Cid respondeu.

— Você deve estar muito cansado, fique conosco, Ivan. Todos aqui vão te tratar muito bem!

“Vão me tratar bem porque eu peguei a lança... Não, que merda eu estou dizendo! Ela está sendo tão boa e sincera, como posso fazer um juízo desses?”, o rapaz pensou, mas só conseguiu responder com uma voz acanhada:

— Mu... muito obrigado!

— Vou voltar a dormir, mas podem voltar para a festa. — Disse a Ligeia para todos, e voltando o olhar para Nora-Celtah, ainda nos seus braços, se despediu com um beijo no rosto. — E você, menina, comporte-se! Boa noite.

Já sem a Ligeia na sala, Velho Cid chamou os dois para voltar para a festa, e foi embora despreocupado, mesmo quando Ivan e Ligeia se mantiveram um tempo mais ali na sala.

— O que deveria ficar aqui? — O rapaz perguntou apontando para os pedestais vazios. — Parece com aquele buraco que nos levaram para tirar informações com a fumaça amarela.

— É aí que deixavam as dádivas dos ancestrais. Uma delas era a Pedra Cataclismo, que você viu lá. Mas faz muito tempo que não temos mais nenhuma. Há muitas gerações, para dizer a verdade. Ei, vamos voltar para a festa...

Ivan lembrou que a Pedra Cataclismo deveria estar ainda no saco que Velho Cid guardava para ele.

— Espera, e essas pinturas aqui na parede, por que tantas mulheres bonitas nesta sala?

— São as Ligeias, oras! Eu já vou indo. — Nora-Celtah saiu correndo do lugar, e Ivan a seguiu.

— Espera! Você esquece que sou novo nisso tudo. Dá para explicar melhor? Por que não tem a pintura da Ligeia ali no meio? Digo, da Ligeia que acabei de conhecer. — Após saírem para a rua, Nora-Celtah parou de correr e os dois caminharam de volta para o lugar da festa, com a garota explicando tudo desde o início.

— Desculpa, mas é que não fica bem nós sozinhos lá dentro, né? Eu sou uma candidata a Ligeia, preciso evitar problemas com minha imagem.

— Você, Ligeia?! Rá, boa piada. — Ivan notou que não devia ter dito aquelas palavras. Nora-Celtah não reclamou com a voz alta de costume, e esse era o indicativo que realmente tinha sido abalada pelo comentário. Após algum tempo de silêncio, Ivan pediu desculpas.

— Não, tudo bem... É, do início, que você perguntou, não foi? Então... Nosso povo foi criado pelos Ancestrais, três grandes deuses da vida e da morte. Os irmãos gêmeos Draco e Drago, e o mais velho Maim. Eles tinham medo que nós fôssemos ameaçados pelos outros povos, por isso nos cercaram de água por todos os lados, e criaram o mar.

— Mas o mar também tem muitos perigos — Ivan comentou — e os homens também podem atravessá-lo.

— É por isso que eles nos deram as três dádivas do mundo. Maim aprisionou o poder das águas no Cristal Dilúveo. Drago reuniu o poder da terra na Pedra Cataclismo, e Draco, a irmã gêmea de Drago, queria entregar ao nosso povo o poder do céu, mas todo esforço dela não foi suficiente para prender a grandiosidade do céu.

— E o que aconteceu? — perguntou, curioso.

— O poder do céu é comandado apenas pela deusa mãe, e nenhum dos três tinha capacidade para nos presentear com a Pedra Celestial, então Draco teve outra ideia. Ela reuniu todo poder da vida e nos deu o Prisma Pulsar. Mesmo com as três pedras protetoras, os Ancestrais não queriam nos deixar desamparados frente a alguma ameaça maior, então nos ensinaram o caminho de adoração da deusa mãe, e esperaram nascer a portadora do espírito criador da deusa mãe, a quem eles nomearam de Ligeia. Desde então, os Ancestrais nos deixaram, seguindo para as terras além-mar.

— Então a primeira Ligeia era a reencarnação da deusa mãe? — Os dois já desviavam de pessoas que ainda cantavam em comemoração, enquanto procuravam Velho Cid.

— Sim. Foi um tempo de muita paz para o nosso povo, ela governou por várias gerações com o poder do Prisma Pulsar, que lhe garantia imortalidade. Um dia, no entanto, ela disse que precisava ir, e que um dia renasceria em outro corpo. Mas ela não quis nos abandonar, então escolheu uma mulher e passou o Prisma Pulsar, nomeando-a de Ligeia também. Desde então, as mulheres do nosso povo são avaliadas para se tornar a próxima Ligeia, e não pense que é fácil. A Ligeia precisa ter a postura, mentalidade e atitude de uma grande líder. E claro, precisa ter um coração grande o suficiente para amar a todos como seus filhos.

— Para dizer a verdade, senti algo muito bom quando conheci a Ligeia, senti no abraço que ela realmente me queria bem, sabe? Com amor de verdade. Ela devia ter uma pintura na sala também.

— Bom, aí é que começou o problema. A Ligeia da última pintura foi a responsável pela perda das dádivas do mundo.

— As pedras? Mas sendo a Ligeia ela não usava uma delas para ter imortalidade?

— Isso mesmo. Esta Ligeia acabou se apaixonando por um forasteiro, que chegou pelo mar, assim como você. Até então nosso povo era muito receptivo, e nos dávamos muito bem com os que chegavam até aqui. Claro que havia alguns problemáticos, mas esses eram facilmente derrotados, afinal o nosso povo tinha o poder da Pedra Cataclismo e do Cristal Dilúveo. Este forasteiro entrou em Namal-te-Raan e foi muito bem aceito, mas ele fez mais do que devia. A Ligeia se apaixonou por ele.

— E qual o problema com isso?

— Não entende? A Ligeia é a mãe de nós todos. Deixar-se envolver num outro amor é perigoso e vai contra toda a vontade da deusa mãe.

— Mas que exagero, Nora. Uma mulher pode amar outra pessoa sem deixar de amar o próprio filho.

— Verdade, mas você tem que entender que não somos filhos de verdade dela. Eu trato a Ligeia como mãe, e ela retribui não só comigo, mas com todos, porém eu não sou filha de sangue dela, nem ninguém aqui é. Para a Ligeia nos amar como filhos, ela faz um grande esforço em abdicar do amor que sentiria pelos seus próprios filhos. Inclusive já houve casos de Ligeias que passaram o posto adiante para ter seus filhos.

— Mas aquela Ligeia não passou o posto, não é? Ela se apaixonou e continuou como líder de Namal-te-Raan.

— Pior! O monstro a convenceu a fugir, e os dois sumiram levando as dádivas do mundo.

— Agora entendo a ira de vocês pelos forasteiros.

— Exatamente. — Nora-Celtah confirmou.

— Mas o que aconteceu com ela e com as pedras?

— Bom, os dois foram viver do lado proibido da nossa terra, não sei o que tem lá. Dizem que após muitas gerações, ela já não apreciava a companhia do forasteiro, mas não tinha coragem de voltar para cá, pois sabia que não seria aceita. Muitas vezes o meu povo tentou matar os dois, mas eram incapazes de lutar contra o forasteiro, que tinha o poder das pedras. No final das contas, uma raposa conseguiu se infiltrar no lado proibido e lá ele conheceu a Ligeia. Se apaixonou loucamente e prometeu que ia salvá-la das mãos do forasteiro.

— Uma raposa? Venceu o poder das dádivas do mundo?

— Bom, ela roubou as dádivas, na verdade. E os dois fugiram para longe, e deles nasceram os uroncions.

— Raposas, hum... Faz sentido.

— Dizem que a Ligeia ficou enjoada de novo, e que não queria mais ficar com a raposa. Não podia pedir ajuda a nós, então foi atrás do único que ela poderia recorrer.

— O forasteiro! — Ivan se exaltou, já envolvido pela história.

— Sim, os dois tramaram juntos para retomar as pedras, mas só conseguiram pegar o Cristal Dilúveo e o Prisma Pulsar. O forasteiro usou o poder do cristal para matar a Ligeia, mas ela usou a imortalidade do prisma para fugir até onde nenhum poderia alcança-la.

— Que lugar?

— O mar. Desde então, nós escolhemos a Ligeia sem a certeza de que ela seja a reencarnação da deusa mãe, por isso não há pinturas das Ligeias seguintes. Seria blasfêmia colocar imagens de Ligeias escolhidas por nós ao lado de imagens das escolhidas pela própria Ligeia reencarnada para sucessão.

— Entendo... Mas eu tenho certeza absoluta que a Ligeia atual é a deusa mãe. Eu senti isso antes de saber qualquer detalhe. — Nora-Celtah riu da certeza de Ivan e respondeu:

— Eu também acho. Ela é demais, não é?

— Agora, parando para pensar, a história que você me contou parece bastante com a história de Afrodite. — Ao terminar a frase, Ivan viu uma mudança nos rostos que o cercavam. Nora-Celtah parou em pé e algumas pessoas que dançavam ao lado também interromperam o que faziam, e Ivan se viu acuado por vários olhos curiosos.

— Você disse história de quem? — Perguntou a garota, com um nervosismo repentino na voz.

— Afrodite. É uma história da minha terra, sobre uma mulher que seduzia os homens e depois fazia um lutar com o outro por causa dela. É uma coisa meio boba, na verdade, mas por que todos estão me olhando desse jeito? — Os homens se entreolharam, buscando um porta-voz, mas foi Nora-Celtah que respondeu:

— A Ligeia que fugiu com as dádivas do mundo... Ela se chamava Afro-Deity.

Sem saber o que acabara provocando, mas nitidamente encabulado por causar um novo transtorno, Ivan permaneceu quieto quando os homens começaram a gritar e chamar atenção para o fato dele saber algo sobre Afro-Deity. A comoção aumentou e acabou chamando o olhar de Velho Cid, que estava sentado num longo banco, bebendo e conversando com um grupo pequeno. Quando avistou os dois rodeados por demais, pensou ser apenas mais um grupo parabenizando Ivan pela conquista da lança, então acenou e gritou.

— Ei! Garoto da Lua! Estou aqui! — Gritou, com os braços estirados, balançando sob a luz bruxuleante de uma fogueira próxima.

Ivan notou o chamado e correu até Velho Cid, quase puxando Nora-Celtah pelo braço, mas dessa vez ele lembrou de não o fazer. A garota e os que o rodeavam logo seguiram, até que todos pararam diante de Velho Cid.

— Ei, velho, acho que falei algo que não devia...

“Velho Cid! Ele sabe algo da Afro-Deity!”, “Será que ele sabe do Prisma Pulsar?”, “Pode ser esta a razão dele conseguir pegar a lança!”. A todo momento surgiam exclamações de pessoas curiosas e aturdidas com a nova informação, e o grupo aumentava cada vez mais. Percebendo as consequências que aquilo poderia gerar, Velho Cid tentou controlar a multidão, que já se amontoava em grande número.

— Calma, uma coisa de cada vez! Estamos aqui para comemorar a chegada do grande salvador, portador da lança dourada, vamos deixar as perguntas para amanhã!

— Velho Cid, com todo respeito, ele precisa esclarecer o que sabe! — Disse alguém.

— Para você é fácil falar, tem a Pedra Celestial, mas e nós? — Disse outro. Nora-Celtah inclinou-se para Ivan e cochichou.

— Eles beberam demais, acho que não vão aguentar esperar até amanhã para ter alguma resposta. Por que não nos explica logo o que sabe?

— O que sei de quê? É só uma história antig... — Antes de Ivan terminar a frase, um grito desesperado assustou a todos. Um jovem chegava pelo lado escuro, ofegante e descabelado, afoito e clamando por socorro.

— Eu não consegui trazer... Ela... Ataque de mortiços... — O rapaz apoiava-se nos joelhos, cansado.

— Ei, do que está falando, moleque? Minha filha não estava com você agora a pouco? — Um homem de magreza descomunal agitava o rapaz pelos ombros.

— Nós fomos... Até a margem do rio. Eu... não tive culpa — cansaço e medo impediam o rapaz de continuar — eles apareceram de repente...

O homem magro saiu gritando para o meio da escuridão em socorro da filha.

— Ei, venha nos ajudar! — Alguém gritou puxando o braço de Ivan. O forasteiro olhou para Velho Cid em socorro, mas ele retribuiu com um olhar encorajador, dizendo:

— Vai lá, aproveita que a Lua ainda está no céu. Eu fico aqui guardando isto. — Velho Cid levantou o saco que Ivan roubara dos uroncion. Sem pensar duas vezes, Ivan o arrancou da mão de Velho Cid antes de ser levado à força pela multidão. Não arriscaria perder aquilo, já que sabia se tratar de uma das dádivas do mundo.

— Você não vai ajudar, Velho Cid? Eu vou chamar a Baga-Seiu!

— Tudo bem... — Disse o velho, sem muita disposição, mas seguindo o rastro dos outros, com seu passo despreocupado.

 

II

Os gritos de horror ecoavam na escuridão insistente que não cedia lugar aos raios de luz da manhã. A garota clamava por qualquer ajuda, mas foi seu pai o primeiro a chegar ao local, um pedaço pedregoso na margem do rio.

— Minha filha! — Gritou o homem magro. O leito do rio estava parcamente iluminado pela pequena Lua solitária no céu nublado. À margem, a menina chorava de medo, sentada no ponto mais alto de uma rocha alta. Mais abaixo, escalando a pedra com dificuldade, o motivo do terror. Criaturas cadavéricas, de pele cinzenta e magreza anormal, que emitiam um som esguichado de suas gargantas finas. As criaturas, com esquisitas membranas flácidas nos braços, pernas e entre os dedos, estavam completamente despidas, muito vagamente se assemelhavam a uma figura humana.

Ela ouviu o chamado do pai, mas seu medo não diminuiu. A gritaria continuou mais alta. O homem magro, que era bem robusto se comparado às criaturas, correu em socorro, agitando uma vara longa de madeira flexível. Acertou o monstro mais próximo nas costas, e só assim pareceu chamar-lhes a atenção. O mortiço atingido virou e rosnou para o homem, enquanto os outros três ou quatro continuavam a escalada, mesmo após ter notado a presença do homem.

— Morre, seu monstro desgraçado! — Gritava o homem, acertando o mesmo mortiço várias vezes até que o monstro segurou a arma e numa mordida a partiu em duas. Os outros da cidade chegaram logo atrás, mas não se atreveram a chegar muito perto, apenas tentaram agitar os mortiços com gritos e arremessos de pedra.

Disposto a lutar mesmo sem armas, o pai se atracou com o adversário. Sem chance de escapar estando tão próximo, o mortiço aproveitou o agarrão do homem e abocanhou-lhe parte do ombro. Pai e filha agora gritavam. O homem de dor e a garota num choro escandalizado.

— Ei! Vai lá, rápido! — Alguém ordenou a Ivan, que estava atrás do grupo. O rapaz correu, largando o saco no meio do caminho e segurando firme na lança dourada. Acertou em cheio uma pancada com o cabo na cabeça do monstro, que afrouxou a mordedura, vacilante. O homem magro caiu, dando mais um grito breve e voltando seus olhos novamente para sua filha. Estendeu o braço para alcançá-la, mas a perda de sangue o deixou tonto, de modo que não conseguiu nem levantar.

Ivan viu o monstro recuar com a pancada na cabeça e percebeu que o grupo não era lá grande ameaça. Encetou vários golpes no ar, tentando afastá-los o máximo da rocha e a noite ganhou um silêncio efêmero, até a garota gritar novamente em desespero ao ser capturada. Um dos mortiços subiu secretamente pelo lado oposto, e agarrou a menina. Num pulo desajeitado, o monstro passou por cima de Ivan com a garota nos braços e moveu-se para o rio. Outro mortiço emergiu das águas e foi ao encontro dele. Juntos, arrastaram a menina que se debatia em franco descontrole.

Sem poder jogar pedras ou golpear com a lança, Ivan e os demais sofriam em angústia ao ver os mortiços fugindo enquanto usavam a menina como escudo. Nora-Celtah chegou com Baga-Seiu, ambas portando arco e flechas de madeira.

— Raios! Não tem ângulo para pegá-los, com essa menina se agitando desse jeito! — Baga-Seiu exclamou.

— Mas é claro que tem! — Disse Nora-Celtah antes de sair correndo até a margem do rio. Com as canelas submersas, a garota mirou com destreza e acertou as costas dos dois monstros. Ao som de berros inumanos, os dois largaram a refém e viraram para Nora-Celtah, novamente fazendo o ruído esguichado com as gargantas.

— Nora-Celtah! Saia daí agora! — Gritou Baga-Seiu imperativamente. A ação da garota era inesperada para todos, e tudo foi tão rápido, que ninguém teve tempo de pensar no perigo que ela corria. Era tarde demais. Em terra, Ivan puxava a menina pelo braço, e ela levantou-se desajeitadamente com a perna cheia de sangue. Na queda com o mortiço, cortou a perna num dos pedregulhos do chão, mas isso não a impediu de andar ajudada por Ivan, e foi até seu pai, ainda deitado. De chofre, um mortiço saltou da água e agarrou Nora-Celtah.

— Nora! — Ivan voltou sua atenção para a situação da amiga. Sem pensar duas vezes, largou a lança e apanhou do chão o saco que vinha carregando. Correu até a margem do rio e, num pulo alto, ergueu o saco com a Pedra Cataclismo. Desceu num só golpe certeiro. A pancada ecoou até os ouvidos de Baga-Seiu, que estava posicionada mais longe, e levantou muita água. O mortiço caiu desacordado e os dois logo saíram do rio. Antes de qualquer comemoração pelo salvamento, a atenção das pessoas foi roubada novamente para dentro do rio, de onde se iniciou um coro demoníaco com os ruídos esguichados se multiplicando pela superfície.

Muitas caveiras se ergueram lentamente ao longo do rio. Elas emergiam em dúzias. Um homem do grupo se rendeu ao horror da morte e gritou amedrontado. As pessoas ao lado deram os primeiros passos para trás, porém Baga-Seiu não estava preocupada com eles, mas com os dois deitados nas pedras e Nora-Celtah e Ivan, que estavam bem à margem do rio, a poucos metros da terrível ameaça. Uma voz surgiu atrás dela e encheu o coração de todos com esperança.

— Querem tanto brigar dentro da água, por que não me chamaram? — Velho Cid chegou ao local. Apanhou a lança dourada do chão e andou até a água, passando pelo grupo assustado, o pai e a filha caídos e chegando até Ivan e Nora-Celtah.

— Eu vou espantá-los daqui. Voltem para a cidade. Você fica, garoto! — Nora-Celtah e Baga-Seiu correram para socorrer os dois feridos, e antes de entrar no rio, Velho Cid murmurou para Ivan: — Eu achei que ia ver a Lua se colorir novamente...

Os mortiços estavam paralisados no maior silêncio. Velho Cid foi calmamente até o meio do rio e abaixou-se. Quando sua cabeça desapareceu na água, os monstros fugiram com alarido, e em pouco tempo a água do rio voltou a correr calmamente.

Ivan andou devagar até os feridos, e viu a garota da mesma idade de Nora-Celtah em prantos no colo dela, e ao lado o pai, o rosto coberto de lágrimas agradecidas.

— Muito obrigado, Nora... Muito obrigado, mesmo... — Disse a menina em meio aos soluços. Nora-Celtah deu um abraço forte na garota, e só então surgiram os gritos de comemoração, acompanhados dos primeiros raios de Sol. Baga-Seiu percebeu que os ferimentos não eram fatais, mas o homem precisava ser levado logo para a cidade. Foi conferir Ivan:

— Tudo bem com você?

— Sim, não sofri nada... — Respondeu timidamente.

— Essa menina é muito irresponsável. Podia ter morrido... Muito obrigado por salvá-la. Vem conosco?

— Não, Velho Cid pediu para esperar ele aqui. Podem ir, acho que nenhum daqueles bichos vai aparecer.

— Não vão mesmo, eles não aparecem durante o dia. — Ela respondeu com um sorriso, antes de sair com os demais.

Velho Cid voltou não muito depois, e o local já estava completamente iluminado. Ele saiu do rio e foi ter com Ivan, estático sobre a rocha alta que antes abrigara a garota.

— Sério, garoto da Lua, não vou devolver a lança até você aprender a manejá-la. Largar no chão como você fez...

— Eu sei que foi você lá no Poço de Gadu. Você me deu a lança e agora fica fazendo este joguinho sem sentido! — Velho Cid não respondeu, apenas cruzou os braços e permaneceu de pé olhando para o topo da rocha. — Não quer assumir, tudo bem. Mas o que eram aqueles monstros afinal?

— O povo daqui chama de mortiços. Eles são fruto de uma magia negra decadente, e vivem aqui na ilha há tanto tempo quanto os uroncions.

— Eles parecem muito com os aquáticos, sem ofensa...

— Sem problemas. Eles parecem porque foram criados para ser iguais.

— Foram criados? — Indagou Ivan.

— Sim, garoto. Eu entendi o que as pessoas estavam dizendo antes da confusão dos mortiços. Você abriu a boca sobre Afrodite. É tudo real, Ivan. Afrodite é Afro-Deity; é a mãe de todos os aquáticos, tanto quanto dos uroncions, e o povo de Namal-te-Raan a considerava como mãe também. Não descobriu a ligação ainda? Assim como Afrodite usou o Prisma Pulsar para criar os aquáticos, ela usou a Pedra Cataclismo para criar os uroncions, e o Cristal Dilúveo originou os mortiços.

— Ei, espera um pouco. Então não entendi muito bem quando Nora me contou. Achei que o Cristal tinha ficado com o forasteiro.

— E ficou! Após os eventos envolvendo Afrodite, os aquáticos nasceram, e eventualmente chegaram até esta ilha. O portador do Cristal certamente capturou algum, e baseou nele a criação de sua espécie. E desde então eles estão vagando pelas noites, caçando pessoas e animais para se alimentar, embora eu ache que eles nem precisam de comida para viver...

— Velho, tem algo errado nessa história. Como é possível que monstros com a mesma força dos aquáticos estejam vagando por gerações aqui na ilha? Eles já deviam ter matado a todos!

— Não se afobe, eu não disse que eles têm a nossa força. Eles foram criados para ser como nós, disso não há dúvidas. Mas com certeza o criador não foi hábil o suficiente em manipular o Cristal, pois como você viu, os mortiços são muito fracos, lentos, e diferente de meu povo, eles não vivem em águas salgadas e não suportam a luz do Sol.

— Hum... Certo, mas se eles são tão fracos, por que não foram exterminados? As pessoas ficam com medo, eu sei, mas não acho que seja muito difícil, depois do que vi agora há pouco.

— É, em teoria seria possível fazer um ataque contra eles. Até o poder do Cristal Dilúveo poderia ser combatido com a Pedra Cataclismo dos uroncions, mas... Os mortiços venceriam. Eles são muito mais numerosos. Você mesmo viu quantos deles apareceram no rio.

— Nem com o poder da Pedra Celestial? — Ivan perguntou ousadamente. Velho Cid hesitou antes de responder.

— Sim, a Pedra Celestial poderia acabar com eles. Mas a pessoa que me passou a Pedra... Ela pediu que eu esperasse por você. Você salvará Namal-te-Raan dos mortiços, garoto. A Nora-Celtah não te contou como ficou órfã? Os pais dela foram assassinados por esses monstros, e Baga-Seiu passou a cuidar dela.

— Ei, ei, ei! Calma aí... Eu gosto da Nora, mas você está decidindo muita coisa por mim. Eu não sou um lutador muito bom, mal sei usar a lança direito!

— Mas você é o garoto da Lua, não é? — Perguntou Velho Cid, devolvendo a ousadia de Ivan. — Por que reluta tanto em mostrar seu poder?

Ivan tinha sido encurralado. Velho Cid sabia de muita coisa, não só de Namal-te-Raan, mas do próprio Ivan.

— Eu não gosto de falar nisso. Foi tudo culpa de meu pai, sabe? Na minha terra existe uma guerra constante entre povos, cada um tentando dominar o outro. O povo de meus pais era adorador da luz da Lua. Eles acreditavam que ela os abençoava sempre que partiam para guerrear, mas muitas vezes nosso povo era derrotado, o que levou meu pai a fazer uma coisa que nunca perdoarei!

Com a pausa de Ivan, lágrimas incontidas rolaram pelas bochechas do jovem, que tentava esconder abaixando a cabeça. Velho Cid percebeu que era melhor não tocar mais no assunto, mas o rapaz retomou a história sem precisar de incentivo:

— Ele queria que o filho dele nascesse com o poder da Lua, para garantir vitórias em toda e qualquer batalha. Então fez minha mãe participar de um ritual de adoração, quando eu ainda estava na barriga. Ela morreu como consequência, mas eu nasci. As pessoas acreditavam que eu tinha o poder da Lua e me levavam para todas as lutas, mesmo antes de eu aprender a primeira palavra. — Ivan começou a soluçar. Limpou o rosto com as mãos.

— Eles levaram uma criança para o campo de batalha? — Velho Cid espantou-se com a frieza e loucura de um povo tão bestial. — Esse lugar que você nasceu... Foi Casul, o país do oeste de Maciaan?

— Não. Quer dizer, Era antigamente, mas ele foi destruído, agora só restaram vários reinos e alguns povos segregados. Eu odeio aquele mundo, foi por isso que fugi, e acabei virando ajudante do Capitão Balboa.

Ouvindo aquilo sobre o que seu antigo mundo se tornou, Velho Cid sentiu a ira encher seu corpo de um modo que nunca sentira antes. Com o punho cerrado, levantou a cabeça e encarou Ivan nos olhos.

— Garoto, junte-se a mim. Por maior que seja a destruição causada pelo homem, Namal-te-Raan é um lugar que podemos proteger. Venha comigo e, um dia, acabaremos com os mortiços, com ou sem ajuda de pedra alguma!

Aquelas palavras atingiram o coração de Ivan com o que ele precisava ouvir. A vida toda esteve procurando um lugar que o acolhesse. Sentiu que Namal-te-Raan poderia ajudar a esquecer seu passado trágico. E já vinha convivendo com Velho Cid de forma amigável, por que não tentar?

— Eu aceito, Velho.

— Ótimo! Então desça daí e vamos voltar para a cidade.

Ivan desceu e foi buscar o saco que estava largado no chão. Quando pôs a mão, lembrou do que carregava ali dentro. A Pedra Cataclismo, um dos objetos de maior poder no mundo, e que vinha trazendo para cima e para baixo sem que ninguém percebesse. Querendo não manchar o início de sua nova vida com uma mentira, resolveu contar a Velho Cid o que tinha dentro do saco. Retirou a tira de couro que amarrava a boca do saco e um objeto luminoso atraiu sua atenção para dentro do saco, e não era a Pedra Cataclismo.

— Ei, Velho! Olha isso aqui! — Ivan segurou nas mãos um ovo gigante, cuja extremidade superior e uma parte da lateral brilhavam num tom escarlate. Velho Cid se aproximou para observar. Passou o dedo numa área brilhante e retirou um líquido que se apagou assim que foi afastado do ovo.

— Isso é água! — Ele disse ao ver mais de perto.

— Água? Deve ter molhado quando eu acertei o mortiço... — Ivan intuitivamente foi até a beira do rio, límpido e cristalino agora sob a luz do Sol. Mergulhou o ovo gigante dentro do rio e aconteceu o que ele esperava. Todo o ovo começou a brilhar num vermelho que rivalizava com a luz do Sol. Quando retirou o ovo de dentro do rio, estranhas marcas se iluminaram de amarelo e Ivan lembrou que as marcas já estavam pintadas no ovo antes mesmo dele roubá-lo. Velho Cid observava apreensivo e curioso.

A casca do ovo estalou por algumas vezes, e Ivan quase soltou de susto, mas manteve a mão firme. Com mais alguns estalos a superfície trincou em diversos lugares. Ivan sentiu pancadas leves na parede do ovo e foi pego desprevenido por uma batida forte que partiu o ovo. O animal pulou instantaneamente para o rosto de Ivan, que gritou com o choque. Ao que parecia, já era uma ave adulta, mas nenhum dos dois conseguiu identificar a espécie. Ivan estava ocupado protegendo os olhos do ataque e Velho Cid não conseguia discernir bem a forma do pássaro, apenas enxergava o alvoroçar de plumas se debatendo sobre Ivan.

O rapaz se abaixou e Velho Cid estendeu o braço para agarrar o animal, em vão. A criatura moveu-se graciosamente para o lado e pairou, batendo as asas, de frente para os dois. Foi quando eles perceberam que estavam diante de algo inaudito.

— Mas que diabos é isto? — Velho Cid se perguntou.

— Eu não faço a menor ideia... — Ivan se ergueu do chão e os dois admiraram o estranho animal que saíra do ovo. Tinha pouco mais de um metro de envergadura e nada mais. Tratava-se de um par de asas pardas, unidas por uma tira curvilínea rígida que media menos que um pé. Enquanto os dois esperavam alguma ação do bicho, o mesmo fazia a criatura em relação a eles. Ivan então adiantou-se vagarosamente, estirando a mão na direção do bicho.

— Ei, vem cá... Vem, vem aqui, eu não vou te machucar...

— O que está fazendo? Isso não tem nem cabeça, acha que ele vai te ouvir como?

Ignorando Velho Cid, Ivan continuou, e o par de asas atendeu. Aproximando-se devagar, apesar dos impulsos a cada bater de asas, o bicho acomodou-se na mão de Ivan. Na verdade, apenas depositou a tira na palma da mão de Ivan – que segurou firme – e assegurado que não ia cair, recolheu as asas, que fechadas cobriram o braço de Ivan em plumas. Velho Cid se aproximou e Ivan lhe mostrou a tira:

— Eu estava pensando que era algum tipo de osso, mas olha só, é meio flexível.

— Mas também não é couro, é rígido demais para isso. Que criaturinha estranha, hein? Já nasceu com penas e voando, também. O que será que come?

— Ele não tem nem cabeça, acha que vai comer de que jeito? — Devolveu Ivan, que agora acariciava as asas – ou mais propriamente, o corpo – do animal. Enquanto ficaram um tempo apenas olhando para aquele mistério na mão de Ivan, um homem chegou afoito da mata, vindo da cidade.

— Velho Cid! Ivan! — Os gritos assustaram a ave sem corpo, e ela bateu asas tentando fugir. Apesar de estar segurando firme, Ivan sentiu, pelo farfalhar, o medo do animal, então o deixou levantar voo.

— Que coisinha estranha... — Disse Velho Cid enquanto via o bicho subir aos céus. O homem aproximou-se, visivelmente aflito, e não deu muita importância para o pássaro que saíra voando.

— Ei, pessoal! Vocês não vão acreditar! Precisam vir até a cidade. O líder dos uroncions está lá, e parece que está se queixando com a Ligeia sobre você, Ivan.

— E essa agora? Não temos tempo nem de tirar um cochilo? — Resmungou Velho Cid. Ivan recolheu suas coisas e foi junto dos dois para Namal-te-Raan, não sem dar uma última olhada para o céu, procurando a criatura misteriosa.


III

Muita gente estava reunida no amplo salão em frente à casa da Ligeia, apesar do número ser insignificante perante a quantidade de gente que ainda dormia em casa. Quando Ivan chegou, logo se tornou o centro das atenções, e Edin não fez cerimônia antes de iniciar a acusação.

— Foi este jovem! Exatamente ele, Ligeia. Sabes muito bem o respeito e admiração que não só eu, mas todo meu povo tem por ti, não é verdade? E nós sabemos que seu infinito amor materno é ainda mais forte e justo quando tens de corrigir um erro. Pelo que estou vendo, o jovem realmente alcançou a lança do Poço de Gadu, mas novamente, não foi este o motivo a me trazer aqui. — Ivan saiu do grupo de espectadores e deu passos à frente, para a direção da Ligeia. Junto à ela, estavam Edin, Rubal e Lando.

— Sei muito bem que meus garotos intencionavam mergulhar no poço, mas a lança já foi resgatada e não contesto a decisão de entregar a arma a ele, mesmo sendo um forasteiro. O que não admito de maneira alguma é que ele roube nossos pertences mais sagrados e saia impune. Pior, sendo acobertado por vocês, a quem os uroncions sempre tiveram uma convivência pacífica e civilizada!

— Pacífica? Eu quase morri antes de ser capturado por vocês! Eu e a Nora!

— Cale-se diante do Professor Edin! — Lando gritou.

— Nós protegemos o nosso território tanto quanto vocês. Você não vê nenhum uroncion invadindo seus campos e florestas sem motivo. Ligeia, me conheces há quanto tempo? Minha relação sempre amigável e conciliadora com a sua antecessora deveria servir como exemplo para a atitude que estás prestes a tomar... — Num tom de aconselhamento, Edin conseguiu fazer a Ligeia se pronunciar, mirando os olhos de Ivan.

— Ivan! Você recuperou a lança dourada e para nós já é um grande herói, mas não seremos coniventes com esse tipo de comportamento. Você confessa ter roubado a Pedra Cataclismo?

Todos, inclusive Velho Cid, se espantaram com a acusação. Ivan sentiu um aperto no coração ao ver a lamentação no rosto da Ligeia. Tinha certeza que ela já sabia a resposta; provavelmente ela já sabia que Edin jamais faria uma acusação infundada dessa magnitude, mas Ivan não conseguiu responder à pergunta. A vergonha tinha lhe consumido de tal forma que não conseguiu mais fitar o semblante cansado da Ligeia, e ele então se deu conta que, também por conta dele, ela não conseguiu sequer ter uma noite de sono em paz. Baixou o rosto e a tristeza quase o levou ao choro, mas ele então teve uma resposta para toda a situação.

Olhando para baixo, ele via a solução para todo o problema. Ao lado de seus pés, estava a Pedra Cataclismo, e claro como a água mais cristalina, estava o que ele deveria fazer. Sem proferir nenhuma palavra, Ivan empunhou a lança dourada. Pegou o saco com a Pedra Cataclismo e a depositou no chão, logo diante de si. “A pedra está ali!”, pensou Rubal.

Enquanto todos olhavam curiosos para o comportamento de Ivan, Velho Cid descobriu o que ele ia fazer, e com uma voz quase inaudível, ele sussurrou:

— Se você fizer isto, eu saberei que minha busca acabou.

E com todos olhando para ele, Ivan levantou a lança bem alto, e golpeou com toda força. O grito que deu ao desferir o golpe o impediu de ouvir o berro de Rubal e a súplica de Edin, visto pela primeira vez em desespero.

O golpe não fez um barulho alto. Apenas o bastante para todos saberem que a Pedra Cataclismo tinha sido destruída. Diferente dos outros, inertes, Lando tomou a iniciativa e num pulo alcançou Ivan e o derrubou, agarrando-o pelo pescoço. Na queda, o saco foi atirado para longe e todos viram sair dali apenas poeira e uma estranha fumaça amarela.

— Você conseguiu! Ultrapassou todos os limites e fez o necessário para que eu te matasse! Sua cabeça será meu troféu! — Lando clamou ao levantar as garras para acertar o golpe certeiro. Velho Cid temeu pela vida de Ivan, mas não era possível chegar antes do golpe. Quando a Ligeia pôs as mãos na boca, espantada com o que estava para acontecer, um fenômeno afetou a todos do local. O chão começou a tremer com uma força incomensurável. O primeiro abalo levou quase todos ao chão.

— O que é isso? — Lando se perguntou, olhando para todos caídos ao seu redor, e retirando a mão do pescoço de Ivan, para sentir o abalo sísmico no chão. Quando sentiu a tremedeira passar pelo chão, ele imediatamente olhou para o saco vazio no chão, e sabia que era dali que vinha aquele poder capaz de fazer tremer o próprio mundo. Velho Cid caiu no chão. Tinha sido o último a se manter de pé.

— Você matou todos nós! Você matou todos! — Lando gritou, o rosto frente a frente com o de Ivan. Seguindo o abalo sísmico, o chão começou a ruir.

— Lando! — Rubal gritou por seu irmão, e fez sinal para que ele protegesse a Ligeia. O uroncion mais novo já estava ocupado auxiliando Edin a se afastar. Com ela em segurança, os mais preocupados que ainda não tinham corrido não demoraram a fugir, aos tropeços. Ivan, livre de Lando, se arrastava de costas, com o olho fixado na fissura no chão, que se propagava rapidamente. Sentiu a mão de Velho Cid agarrar seu ombro.

— Eles estão sequestrando a Ligeia. — O rapaz apontou com o dedo trêmulo. Velho Cid, de pé, agarrou Ivan pelo tronco e o levantou, para que pudessem correr dali.

— Sequestrando coisa nenhuma! Estão se mantendo vivos, algo que você deveria estar fazendo com mais destreza.

Os dois saíram por último do grande salão. Do lado de fora, avistaram a balbúrdia instaurada bem acima de onde estavam. Os moradores que tinham suas casas construídas ali em cima corriam, alguns ainda sonolentos, mas assustados o suficiente para fugir. Do grande buraco aberto no chão, que já tinha quase o tamanho do salão, uma rocha pontuda emergiu. Atingiu o teto do salão e após esfarelar a ponta quebradiça, deu por romper a construção enquanto continuava seu caminho ascendente. Ao ver que algo destruía o chão sob seus pés, alguns dos moradores passaram do medo para completa loucura, e se jogaram lá de cima, sem se importar com a altura da queda.

Durante os vários minutos em que rochas pontiagudas se elevaram, rompendo todas as estruturas da colmeia humana, Ivan e os demais testemunharam todos os moradores do maior aglomerado de casas de Namal-te-Raan abandonarem suas casas. A maioria correndo pelos caminhos habituais, outros se jogando de alturas que pensassem não ser fatais – e em alguns casos sendo amparados pelos que já estavam no chão. No final, o que sobrou foi uma escultura de pedra colossal, muito assemelhada a uma árvore de galhos secos. Os galhos pétreos se estendiam quase verticalmente, e alguns tiveram a impressão de se tratar de uma mão com incontáveis dedos buscando por algo no céu.

Edin e a Ligeia vieram até Ivan, e o andar seco e decidido evidenciava uma decisão extremamente severa.

— Você tem noção do que acabou de fazer? — Edin perguntou, sem levantar a voz, mas ameaçador o bastante para deixar receosas as pessoas mais próximas. A Ligeia deu três passos à frente, e decepção embebia as suas palavras:

— Ivan... Olhe quantas pessoas tiveram suas casas destruídas... — Os olhos dela se encheram de lágrimas. Ivan correu o olhar para as centenas que o encaravam; percebeu alguns olhos infantis, mas não teve coragem de encarar de volta nenhum deles por mais que um instante. Voltou-se para a Ligeia, e também não conseguiu vê-la em tal estado de tristeza, de forma que só conseguiu encarar a cena logo atrás da Ligeia, a colmeia arrebentada de dentro para fora pela escultura de pedra. Destruição que ele havia causado.

— Acredito que só há um meio de punir este ato. — Edin calou-se, esperando a Ligeia se pronunciar. Ela tocou o rosto de Ivan com doçura, e enxugou os olhos inchados, resultado da noite agitada e das lágrimas que teimavam, umedecendo-os ainda mais.

— Ivan, eu nunca ordenei uma execução de um dos meus filhos, e eu já te amo tanto quanto todos aqui de Namal-te-Raan ou os uroncions, mas...

— Esperem! Não é preciso executar o garoto! — A voz de Velho Cid surgiu em meio às cabeças silenciosas. — Expulsem-no de Namal-te-Raan, eu me responsabilizarei por ele.

— Você não acha que nós vamos recebê-lo nas nossas terras, não é, Velho Cid? — Rubal perguntou, com a voz ácida.

— De jeito algum. Esta possibilidade jamais me ocorreu.

— Então pretende levar o garoto para o mar? Acho que ele não respira debaixo... — Velho Cid não deixou Rubal terminar a frase.

— Nós vamos para o lado proibido! Poupem o garoto e nós viveremos lá, eu o tomarei como discípulo, e prometo aqui, diante dos dois grandes líderes, que nós vamos exterminar os mortiços. Eles e o Cristal Dilúveo.

Ligeia, Edin e Rubal uniram-se à multidão no silêncio de incertezas. Todos concordavam que os mortiços eram uma praga avassaladora, e o Cristal Dilúveo era o que lhes dava poder para continuar existindo. Uma voz respondeu à proposta de Velho Cid. Era o impulsivo Lando.

— Nós aceitamos. Velho Cid e o forasteiro estão formalmente expulsos dos dois territórios. Ficarão confinados ao lado proibido, e deverão recuperar o Cristal Dilúveo.

— Destruir. Nós vamos destruir, não recuperar. — Respondeu Ivan.

— Muito bem. Destruir.

— Lando, o que está fazendo? — Rubal sussurrou na orelha do irmão, apertando o braço dele com força, mas Edin fez um gesto para que não interrompesse, e então voltou-se para a Ligeia.

— Caso estejas de acordo, Ligeia, já podemos voltar para nosso território.

— Eu aceito. — Ela disse, limpando mais uma vez as lágrimas do rosto. Tentando manter uma seriedade, foi até Ivan e olhou atentamente para ele. Enquanto falava, a felicidade de não ter de executar um de seus filhos se mostrou num rápido sorriso trêmulo:

— Você está expulso. Agradeça a Velho Cid, pelo resto de sua vida. — Com um beijo na testa, se despediu do rapaz, que foi embora com Velho Cid e a lança. Antes de sumir do alcance dos olhares agressivos, Ivan notou um que o fez se sentir muito mal com si mesmo. O olhar desconsolado de Nora-Celtah.

Algumas horas depois, no caminho de volta para casa, os três uroncions encerravam uma conversa:

— Não podemos confiar totalmente na expulsão dos dois de Namal-te-Raan. Eles sempre foram coniventes com Velho Cid, mesmo sabendo que ele esconde muita coisa. Mas não importa que eles façam vista grossa, no nosso território a ordem deve continuar sendo de extermínio a invasores. E eu achando que você seria o primeiro a exigir a execução dele. Você me surpreendeu, irmão.

— Eu só pensei o que era melhor para nós. Os mortiços nos atormentam desde que nosso povo nasceu da verdadeira Ligeia, e Velho Cid tem poder para derrotá-los: a Pedra Celestial. E no lado proibido, após eles darem cabo do Cristal Dilúveo, será mais simples de armar um jeito para pegar a lança dourada e a Pedra Celestial, que no território da Ligeia.

— O problema reside nesta última fase. Vocês não tinham nascido ainda, mas quando criança eu vi o poder da Pedra Celestial. Sem o Cristal Dilúveo e a Pedra Cataclismo, não há nada aqui que possa se equiparar em poder. Mas teremos muito tempo para pensar em algo. Comecem desde já, calando a boca e andando mais rápido! E Lando... Parabéns pela sua decisão.

 

IV

A Lua, o mestre e a Pedra Celestial

— O que foi, Ivan? Para que me trazer até esse antro de mortiços? Já viu que tem montes deles de tocaia, né?

Com o pôr do Sol escondido pela copa das árvores, Velho Cid e Ivan estavam próximos a um trecho do rio, com vegetação densa e um tom macabro no movimento das plantas tremulantes. O local ideal para um ataque de mortiços.

Ivan pulou no meio do rio, e com a água acima da cintura, ele sorriu para Velho Cid.

— Olha só...

Como esperado, um grupo de mortiços apareceu das águas, atacando aos montes o isolado guerreiro. Após quatro anos sobre a tutela de Velho Cid, o rapaz tinha se transformado num combatente de habilidade invejável. O corpo alto abrigava músculos treinados até atingir a perfeição. Com movimentos rápidos, socos certeiros e pernas ágeis mesmo sob a força da água corrente, Ivan realizou uma luta impecável. Em poucos minutos, derrotou dezenas de monstros sem ser atingido uma vez sequer. Após a desistência dos mortiços de tentar abater o oponente formidável, ele deu uma grande gargalhada e se declarou vitorioso.

— Velho, eu sou invencível! Seu discípulo não tem adversários à altura. O que acha de irmos atrás do maldito Cristal Dilúveo?

Velho Cid, impressionado de ver que Ivan não precisou da lança ou do poder da Lua para dar cabo de tantos mortiços, bateu palmas e foi até ele no meio do rio.

— Você não é invencível, mas me convenceu. É hora de cumprirmos nossa missão. Me acompanhe.

— Ei, já estamos indo? Não seria melhor fazer uma refeição antes da luta?

— Não seja afobado, rapaz. Não estamos indo agora, só quero que me siga a um lugar especial. Vou te mostrar a Pedra Celestial. — Velho Cid mergulhou e seguiu o curso do rio, nadando sem pressa. Ivan foi atrás, deslocado com o que ouvira. Seu mestre nunca fizera menção alguma de falar sobre a Pedra Celestial, e mesmo que ele tivesse certa curiosidade sobre o assunto no início do treinamento, com o passar dos anos já havia perdido qualquer esperança ou interesse de descobrir do que se tratava aquela que era considerada a dádiva do mundo mais poderosa.

Eventualmente chegando à praia, Ivan continuou seguindo Velho Cid quando ele avançou contra as ondas do mar, e quando o mestre parou, numa distância considerável da costa, ele perguntou:

— Para onde está indo, Velho? Não esqueça que não sou meio aquático...

— Não esqueci. Se agarre em mim, vamos descer bem fundo e bem rápido. — Sem entender muito bem, Ivan abraçou o mestre e tomou fôlego. O mestiço mergulhou e sua descendência do povo do mar se mostrou na mais fina demonstração de nado. Os dois desceram ao nível profundo do mar, e Ivan sentiu Velho Cid mudar algo de lugar, apesar de não poder ver o que era realmente. Entraram numa abertura de pedra e Ivan conseguiu respirar novamente; estavam numa caverna submarina. Velho Cid voltou brevemente ao mar para arrastar uma pedra até a entrada, e Ivan entendeu que fora ela o objeto que ele arrastara para abrir passagem.

Na caverna, os dois seguiram por um caminho estreito e levemente iluminado de uma cor verde. O brilho estranhamente reluzia da parede do lugar. Ivan passou a mão tentando descobrir se era algum tipo de alga luminosa presa às paredes, mas não chegou à conclusão alguma, pelo visto era um tipo de pedra dotada de luminescência natural. Os dois caminharam por um longo caminho, até que chegaram ao final da caverna. Uma câmara vazia, com uma depressão brusca próxima à parede posterior. Velho Cid sentou com as pernas dobradas e esperou Ivan sentar junto para iniciar a conversa.

— Ivan, logo que você chegou aqui, você tentou fugir, lembra? Após conseguir a lança do poço?

— Após eu conseguir ou você me entregar?

— Ah, verdade. Eu entreguei, e você descobriu que era eu, não foi?

— Sim, não foi muito difícil. Você é o único da ilha com força sobre-humana que respira debaixo d’água. Lembro que encontrei contigo quando eu estava indo para o barco procurar o grupo de aquáticos, e você estava todo molhado, e ainda por cima sabia que ia ter uma comemoração na cidade. Não demorou muito para eu juntar os pedaços e descobrir que você estava no Poço de Gadu, observando tudo.

— E eu estava voltando do seu barco, naquele momento. Eu fui falar com os aquáticos, eles ainda estavam lá. Pedi que fossem embora, e depois escrevi o bilhete que deixei na cabine do capitão.

— Disso eu não sabia...

— Eu vim para esta ilha há muito tempo, Ivan. Cheguei aqui com meu mestre. Ele era um dos caídos do céu, o último da geração dele, na verdade. Você conhece a história deles, dos filhos do zodíaco?

— Vagamente. São arautos do poder celestial, não é? Não conheço muito bem os detalhes, quando eu era criança ouvi muito pouco a respeito.

— Eles simbolizam os poderes das constelações zodiacais. Meu mestre tinha o poder de todas elas. E como todos os caídos do céu, ele tinha pedras brilhantes nas costas. Pedras que o povo desta ilha chamou de Pedra Celestial. Eu te contei muitas coisas sobre meu mestre durante nosso tempo juntos. Eu queria que você entendesse o papel dele no equilíbrio e harmonia do mundo, e como você se encaixa na mesma missão.

— Missão, equilíbrio do mundo? Velho, acho que você está imaginando coisas demais. Eu apenas fui um cara idiota que destruiu um artefato mágico, e agora estou buscando me redimir, eliminando uma praga de monstros.

— Não, Ivan. Meu mestre foi escolhido pelos deuses para trazer equilíbrio e harmonia ao nosso mundo. A missão dele era usar a força das constelações unificadas para destruir as dádivas do mundo, pois elas aprisionavam em pedras mágicas a força da natureza. Infelizmente, essa era uma missão que ele não podia realizar.

— Mas se ele tinha tanto poder, por que não concluiu logo a missão? Eu quebrei a Pedra Cataclismo sem usar poder algum.

— Nada disso. Você usou um poder muito maior que qualquer outro, o poder da lança dourada. Meu mestre não podia destruir as dádivas do mundo, porque ele amava Afrodite. Ela o salvou da morte quando era humano, e deu vida nova como um aquático. Meu mestre já tinha muito sangue nas mãos, ele não queria se sujar mais, principalmente matando a pessoa que o salvou e amou incondicionalmente; ela era uma Ligeia, afinal. Quem seria impiedoso o bastante para matar uma? Sem ser capaz de destruir o Prisma Pulsar, em poder de Afrodite, ele se absteve de destruir a Pedra Cataclismo e o Cristal Dilúveo, pelo bem do equilíbrio das energias. Se uma das dádivas for destruída, as outras também precisam ser, ou um lado terá um poder muito superior aos outros.

— E é exatamente por isso que eu passei esses anos treinando. Como eu quebrei a Pedra Cataclismo, preciso destruir o Cristal Dilúveo...

— E o Prisma Pulsar.

— O quê? Velho, eu não faço ideia de onde vive Afrodite, não tenho como respirar debaixo d’água, como vou destruir a última dádiva?

— Essa era a minha missão. Meu mestre incumbiu a mim a tarefa de trazer o equilíbrio das energias e a harmonia do mundo, mas, assim como ele, eu não posso matar Afrodite. Ela também é minha mãe, afinal de contas, antes mesmo de ser do meu mestre. Quando ele criou o Poço de Gadu e profetizou o surgimento do herói, ele imaginava que eu pularia no poço e resgataria a lança. Mas eu não posso matar Afrodite e nunca poderei, então deixei a lança aguardando por outro capaz de realizar a profecia. Quando eu vi a Lua brilhar com o verde celeste, idêntico ao da pedra que meu mestre tinha nas costas, eu sabia: o verdadeiro salvador tinha chegado à ilha. É você.

Ivan levantou as sobrancelhas, sem saber o que dizer sobre aquilo tudo.

— Velho... Eu não sei se quero voltar para Maciaan. Minha vida aqui é a única coisa que me sobrou.

— Eu não vou te obrigar a fazer nada, Ivan. Mas é meu dever pedir que me ajude. Me ajude a cumprir a missão que me foi passada pelo meu mestre. O que você vai fazer, ou onde vai morar depois de acabar com as dádivas do mundo, é seu direito escolher. Mas antes, realize o desejo deste homem no fim da vida, por favor! — Velho Cid baixou o corpo numa reverência exagerada, e foi a primeira vez que Ivan o viu se colocar numa postura de inferioridade. O homem que não baixava os olhos perante a Ligeia ou os Conhecedores, agora implorava por sua ajuda. Ivan levantou o corpo de Velho Cid e, olhando nos olhos do mestre, respondeu:

— Velho, não precisa se humilhar. Dê a ordem e eu lhe dou a minha vida. Eu não esqueci quantas vezes você me salvou da morte certa. Nós vamos destruir o Cristal Dilúveo, e eu lhe garanto que vou terminar a missão. Eu vou destruir o Prisma Pulsar, nem que seja a última coisa que eu faça.


Capítulo 6: O lado proibido


I

Preocupado com o fôlego, Ivan nadava numa estreita passagem de pedra. Segurava pelas paredes e puxava o corpo com força, sendo este método mais eficaz que um nado simples. Não demorou muito e saiu para uma área mais aberta, mas ainda tinha uma longa distância para nadar verticalmente até chegar à superfície. Nadou até os pulmões doerem, ávidos por uma lufada de ar renovado, e obteve sucesso. Ao emergir, não acreditou aonde se encontrava.

— É brincadeira que saí no Poço de Gadu... — Disse, tomando fôlego e tirando os cabelos molhados do rosto. No alto viu a abertura do poço e o céu noturno logo acima. Enquanto subia pela ladeira lateral, Ivan notou que já respirava normalmente; se deu conta de como seu condicionamento físico melhorara nos anos de treinamento.

— Ei, quem é você?! Quando entrou no poço? — Uma voz perguntou assim que Ivan chegou ao topo.

— Calma, amigo. Sou eu, olha! — Ivan levantou a lança dourada. O homem que guardava o local não teve ação imediata. Não sabia se deveria saudar o herói da profecia ou atacar aquele que havia sido banido tempos atrás. No final das contas, permaneceu imóvel, esperando que a ação primeira partisse de Ivan.

— Estou indo para a cidade. Tenho que conversar com a Ligeia. Por favor, não faça nada inusitado, vim aqui em missão de paz.

Ivan tomou o caminho para a cidade, e o guarda o seguiu à distância, sem jamais proferir uma palavra, até que se manifestou ao ver que Ivan não sabia onde a Ligeia residia. O herói parou, já na cidade, e contemplou a macabra árvore de pedra que se erguera quando ele destruiu a Pedra Cataclismo. Estranhas linhas cobriam toda a face do monumento, que traçavam desordenadamente caminhos com um brilho dourado, criando uma aura mágica ao redor da árvore.

— Ela brilha desse jeito todas as noites, e volta ao normal com o amanhecer. Muitos uroncions vêm aqui para visitá-la, desde aquele dia. Venha por aqui, a Ligeia mora daquele lado.

“Será que outra catástrofe vai acontecer quando eu destruir o Cristal Dilúveo?”, pensou Ivan quando desviou o olhar da árvore de pedra e acompanhou o guarda para outro aglomerado de casas. A colmeia que abrigava a casa original da Ligeia não existia mais; após ter grande parte destroçada na catástrofe, teve os destroços removidos numa grande operação de limpeza, com a ajuda de uroncions, inclusive. Antes de chegar na colmeia, entretanto, os dois deram-se de frente com mais dois guardas, e imediatamente após Ivan se deter, Baga-Seiu chegou correndo pelo lado direito.

— Vejam só, o garotinho cresceu! Acho que uma hora ou outra você teria que aparecer aqui, não é, Ivan?

— Boa noite, Baga-Seiu. É bom ver que ainda está no comando. — Disse ele, despreocupado.

— Não podia escolher uma hora melhor para reaparecer? Quase ninguém vai saber que você veio.

— Não tem problema, eu espero amanhecer, então. — Ivan sentou no chão e cruzou as pernas. — Mas não era minha intenção chegar especialmente nessa hora. Eu só saí de uma reunião que tive com o Velho Cid, e quando percebi, já estava aqui no território de vocês.

A guerreira entendeu a postura pacífica que Ivan vinha demonstrando e, num gesto de confiança e fé, ordenou aos guardas que voltassem para seus postos, e fez um convite a Ivan.

— Venha, não vou te deixar esperando no chão. — Ela o levou até a entrada da colmeia, que era idêntica à que foi destruída. Baga-Seiu apontou para o grande salão da frente, e disse que a Ligeia estava ali. Ato contínuo, apontou para uma área lateral, e pediu que Ivan seguisse ela até lá. Os dois subiram por um caminho, passando por várias casas amontoadas e pararam mais adiante, num local aberto que tinha alguns assentos e mesas, e algo que parecia uma fonte seca. Era uma área recreativa, montada acima do grande salão principal.

— E então, o que aconteceu nesses anos todos? — Ela perguntou, sentando-se num dos bancos. Ivan fez o mesmo e respondeu.

— Só levei pancada. Quando não era do Velho, era dos mortiços. — Disse, espirituoso.

— Há. Não foi muito diferente daqui, então. Pelo menos comigo. Nora-Celtah abandonou o grupo de segurança, para se dedicar mais aos estudos. Ela ainda treina comigo de vez em quando, mas não tem mais obrigação de participar nas rondas, nem de combater os mortiços que aparecem.

— Sinto muito. Sei que vocês eram muito próximas...

— Não sinta, ainda somos grudadas uma na outra. Mas ela quer ser a Ligeia, eu jamais discordaria da decisão dela. Para mim, ela é realmente a reencarnação da deusa mãe; segurar ela como uma guerreira seria um ato cruel de minha parte.

— Entendo. — Fez-se um longo silêncio após estas palavras.

— Bom, eu vou voltar para meu posto, aguarde aqui, a vista do amanhecer é linda. De manhã coma algo e procure a Ligeia. Com licença.

Ivan ateve-se a admirar o céu, buscando entre as estrelas o real motivo dele existir, não como pessoa apenas, mas como uma peça chave para a mudança do mundo. Seria ele realmente predestinado a ser discípulo do guerreiro que teve como mestre o homem sem signo? As estrelas estavam mexendo com os seres vivos como se fossem meras peças de tabuleiro, todo esse tempo? O rapaz se perdeu longamente nestes questionamentos, sendo interrompido pela voz que ele tanto recordou durante os anos.

— Ivan? — Nora-Celtah chamou. Ivan virou sem pensar duas vezes, e se encantou com o que viu. A menina crescera um pouco, e seu corpo se desenvolveu bastante. No rosto, covinhas antes escondidas pelas bochechas, agora se evidenciavam, deixando em Nora-Celtah um traço marcante e sedutor. Os cabelos estavam mais longos, e no momento se encontravam presos num coque. A mulher tinha a pele mais clara, ou era apenas efeito da iluminação fraca da noite. Ivan percebeu que estava apaixonado.

— Nora... Você está linda... Está muito linda. — Os dois permaneceram quietos, mantendo a distância que os separava. Nora-Celtah sentou no banco próximo a Ivan, e os dois ficaram um bom tempo sem interagir.

— Você não precisa ficar aqui, Nora. — Ivan disse, solícito.

— Eu quero te fazer companhia, não é problema algum. — Quando amanheceu, os dois admiraram o Sol nascente, sem proferir palavra alguma. Ivan sabia que se ele tinha uma missão a cumprir em nome dos deuses, Nora-Celtah certamente também tinha, e era suceder a Ligeia. Ele desejava aquela mulher mais que qualquer coisa na ilha e por vezes gostaria que ela desistisse de chegar ao posto de Ligeia, contudo se considerava um homem de sorte. Sabia que ela não arriscaria seu futuro ficando sozinha com outro senão ele.

 

II

Não demorou até que chegassem mais pessoas ao local, e quando percebiam a volta de Ivan, prontamente chamavam uns aos outros. Quando uma multidão já se formava cercando Ivan e Nora, a Ligeia apareceu, tomando a frente. Ivan olhou-a nos olhos e disse:

— Está na hora. — A líder do povo se aproximou, prostrou-se em reverência e foi seguida pelos demais à suas costas. Ivan ergueu a mulher, olhando-a nos olhos, e depois virou-se para a multidão, declarando: — Amanhã acaba o terror dos mortiços! — Nada mais precisava ser dito.

Ovacionado por uma salva de palmas, Ivan desceu o caminho até o chão, onde era aguardado por muitos mais, que abriram caminho para ele. O rapaz seguiu até o fim da cidade, quando se despediu de todos, com um grande sorriso no rosto. Na selva, uma voz familiar o chamou novamente.

— Ivan! Você vai sozinho? — Nora-Celtah o seguiu, dominada por uma preocupação irracional. Há tempos sem ver Ivan, a emoção do reencontro certamente a levou a agir impensadamente.

— Eu e o Velho. Não precisa se preocupar, Nora. Eu melhorei muito nesses anos. Posso me cuidar sozinho. — Esta última frase afetou Nora-Celtah com uma força maior do que talvez Ivan quisesse proferir. Ela queria pedir que ele ficasse, que desistisse daquele risco e que escolhesse ela, pois aceitaria sem pensar duas vezes. Ivan, ao contrário, queria vê-la realizando o sonho que tanto lutou para conseguir durante toda a vida. Sem que nenhum dos dois desse o braço a torcer, mesmo ambos querendo a mesma coisa, Nora-Celtah usou um desafio como último recurso:

— Prove que melhorou, e eu permito que você vá! Quatro anos atrás você mal aguentava correr comigo. Tente me pegar hoje! — Ela deu meia volta e disparou correndo.

— Você pode ficar linda, amável e tudo mais que faz uma Ligeia... Mas você ainda é a mesma Nora que eu vi no meu primeiro dia aqui na ilha! — Ele sussurrou para si mesmo e seguiu atrás de Nora-Celtah.

Ivan realmente não teve problemas em acompanhar a garota, que era uma excelente corredora por natureza. Por vezes fez piadas sobre estar com fome, cansado, mas não arrancou riso algum, pois ela estava decidida a não ser pega, e seus olhos marejaram quando percebeu que não era capaz de fugir dele. Mas ela não desistiu; iria até o fim do mundo correndo, se fosse preciso, para que ele não a vencesse. Quando entraram no lado proibido, Ivan ficou preocupado e pensou em desistir da perseguição, mas ela continuou correndo sem parar, e ele precisava continuar, até para garantir a segurança dela naquela área infestada por mortiços.

— Nora! Vamos parar, Nora! — Ele gritou. — Não tem nada desse lado!

Ela não o ouviu, e deu de cara com uma parede negra, que a impediu de continuar. Ivan chegou logo atrás.

— Viemos longe demais, Nora... Desculpe, eu devia ter te alcançado antes e terminado logo com a brincadei... — Ele parou quando se aproximou e viu que ela chorava. Quando chegou perto o suficiente, ela se jogou nos braços dele, e o agarrou com força.

— Por favor, não vai lá, por favor, Ivan...

— Nora, eu não estou mentindo, sou realmente capaz de lidar com eles. Você não tem noção do quanto eu fiquei forte.

— Mas eles têm o cristal... — A voz chorosa tremia de um jeito que Nora-Celtah só tinha experimentado uma vez na vida.

— E o velho tem a Pedra Celestial! — Ivan argumentou.

— Ivan, aqueles monstros mataram meus pais, na minha frente, Ivan... — Ela aproximou o rosto do de Ivan. — Eu não quero que eles levem você também...

E no entrelaçar daquele olhar, nenhum dos dois podia mais se segurar. Ivan e Nora-Celtah se beijaram. O momento tão aguardado intimamente, desde o encontro no topo da queda d’água, se desenrolava carregado com toda a emoção e expectativa acumulada por ambos nos anos que passaram. A paixão tão intensa negligenciou o barulho esguichado que apareceu, denunciando a presença de mortiços. Ao olhar para o lado, os dois se deram conta de que estavam cercados pelos monstros. Nora-Celtah virou para a parede e tentou movê-la sem resultado.

— Afinal de contas o que é isso?! Por que está no meio da floresta? — Ela gritou. A parede era uma superfície reta, negra e lisa, que inexplicavelmente estava sempre úmida, como se a rocha escura transpirasse constantemente. A murada tinha formato triangular, com uma ponta surgindo de dentro do mar e outra – a mais alta – coincidindo com o topo do morro da ilha, o local mais alto de Namal-te-Raan.

— Espera, já sei como a gente vai sair daqui! — Sem aviso prévio, Ivan agarrou os braços de Nora-Celtah e a arremessou por cima da parede. Quando caiu, ela não acreditou no que estava à sua vista. A parede negra era uma das faces de uma gigantesca pirâmide, e ela acabara de pousar em outra face, a mais longa de todas. Assim que ela caiu, a pedra lisa e úmida mostrou-se escorregadia demais para manter a garota parada, e ela deslizou pela face da pirâmide, chamando por ajuda.

— Ivan! Ivan, eu estou descendo! Vou cair na água! Me ajuda! — Nora-Celtah notou que toda a base da pirâmide surgia de dentro do mar, cobrindo uma longa distância, e subia até a ponta do morro. Havia algo de vil e demoníaco em sua estrutura, algo que não sabia explicar, mas sentia fervorosamente uma vontade de ir para longe daquela pirâmide negra. E então chegou o medo. Surgidos do nada, vários mortiços apareceram em cima da pirâmide, e escorregavam junto com Nora, chegando mais e mais perto dela.

— Nora, eu estou indo! Espera por mim! — Gritava Ivan enquanto corria lateralmente à parede da pirâmide, derrubando e saltando sobre todos os mortiços que se colocavam em seu caminho.

— Ivan, eles estão aqui em cima! Socorro! — Os mortiços em cima da pirâmide se multiplicaram de dezenas para centenas, e depois milhares. Ela tentava acelerar sua descida, mas os monstros não cessavam em aparecer, cada vez mais numerosos, e agora surgiam também à sua frente. Desajeitada, se debatendo com os que chegavam a tocá-la, Nora-Celtah desceu até a base da pirâmide, no mar. Ivan não perdeu tempo, pulou na água e foi até ela.

Espetando todos os monstros que ousavam se aproximar, ele retirou Nora-Celtah da água até a praia.

— Eu não sabia que tinha algo assim aqui no lado proibido. — Ela disse, aos prantos.

— O lado proibido foi demarcado justamente para evitar as pessoas de chegar até esse lugar, Nora. Mas não se preocupe, eu vou tirar a gente daqui! — Ivan deu um longo assobio para o céu. Nora-Celtah não compreendeu como ela sairia dali. Os dois estavam isolados numa praia, cercados de todos os lados por milhares de mortiços. Ela não pôde deixar de pensar que as palavras de Ivan eram meras ilusões ditas para confortá-la com tolas esperanças.

— Venha, me abrace. — Ele pediu. A garota agarrou Ivan com força, enquanto ele mantinha os monstros à distância girando a lança dourada. De chofre, Ivan levantou o braço esquerdo, e Nora-Celtah sentiu um enorme impulso puxar o corpo dela junto com Ivan.

— O que é isso?! — Ela abriu os olhos. Os dois estavam voando. Sem saber o que acontecia, ela olhou para o alto, e viu que algum tipo de pássaro erguera os dois do chão. Ao menos parecia um pássaro, pois tinha asas cheias de penas marrons e brancas, mas ela não viu qualquer outra parte do corpo de uma ave. No final das contas, ele não havia mentido para ela. Estavam salvos.

Pousaram próximos à cidade, e Nora-Celtah finalmente conseguiu ver que a ave não era realmente uma ave ou qualquer outro animal. Ivan segurava com o braço numa longa e espessa tira rígida que unia duas grandes asas. Maiores que qualquer animal voador que já vira, as asas tinham lá seu quase cinco metros de envergadura.

— Onde você achou essa coisa? — Ela perguntou, pasma.

— Faz muito tempo, achei quando ainda cabia na minha mão, aqui pela ilha. — Ivan contou, omitindo o fato de ter roubado o ovo da cidade dos uroncions. A criatura subiu até os galhos de uma árvore, onde esperou Ivan terminar a conversa.

— E como você criou isso? Nunca vi igual. — Ela continuava abismada com o bicho.

— Eu não criei, exatamente. Só passamos muito tempo juntos. Ele cresceu, e acho que se afeiçoou a mim. Nós já sobrevoamos a ilha inteira. Acho que eu vou com ele amanhã até a entrada da gruta; a entrada da pirâmide é por uma caverna no morro de pedra. — Ivan exibia um sorriso bobo, típico dos exibidos.

— Ivan, você ainda vai?! Não acredito, depois do que vimos agora mesmo, você ainda tem essa ideia na cabeça?

— Nora, é exatamente por ter visto aquilo, que eu preciso ir. Amanhã ao meio dia tudo isso vai acabar, e quando você for a Ligeia, seus filhos não precisarão temer esse tipo de coisa.

— Você sabe, Ivan. Outras Ligeias já desistiram do posto para ter seus próprios filhos com o homem que amavam...

— Elas certamente não eram a reencarnação da deusa mãe, como você. — Ivan levantou os braços para o alto, e o bicho desceu da árvore, encaixando a tira rígida no peito de Ivan. O rapaz baixou os braços, se segurando, e levantou voo, deixando Nora-Celtah no solo, sem a chance de retrucar.

 

III

Com uma brisa gélida batendo no corpo, Ivan sobrevoou a cidade dos uroncions. Foi desse mesmo jeito que ele um dia percebeu algo muito curioso sobre o modo que a cidade fora construída. A junção dos buracos, que eram entradas de residências, juntamente com os diversos elevados de terra – um dos quais tinha a jaula que Ivan passara a noite cativo – quando vistos do alto, formavam o desenho de uma raposa.

O rapaz não sabia se aquilo era uma improvável coincidência, mas algo lhe dizia que era tão obra do acaso quanto a posição das estrelas na formação das constelações. Quando baixou a altitude, muitos uroncions se aglomeraram no solo, deslumbrados com o homem voador. Ivan finalmente avistou seu alvo, e desceu em meio ao círculo de debates dos Conhecedores. Em meio aos uroncions mais velhos, o rapaz avistou Edin. Soldados chegaram apressadamente e se colocaram entre Ivan e os Conhecedores, armas em punho.

— Chegou o dia de cumprir com minha promessa! Mas preciso da colaboração de vocês, venho aqui com o humilde objetivo de pedir sua ajuda. Espero que não sejamos vítimas de julgamentos equivocados. — Ao dizer isto, Ivan levantou os braços, mostrando que não tinha intenção de brigar.

— Baixem as armas e podem se retirar; nós conversaremos com ele. — Um dos anciões ordenou.

Com a saída dos soldados, os homens-raposa de pelo prateado e olhos profundos – os mais velhos e mais sábios daquela civilização – se aproximaram de Ivan. Edin chegou à frente do rapaz e estacou com olhar sério. Simoé permaneceu mais atrás, com a cara emburrada.

— Vejo que está cuidando bem do Reimi. — Disse Edin. Os Conhecedores cercaram Ivan por todos os lados, interessados muito mais nas grandes asas que no rapaz. Alguns chegaram a pegar nas penas, outros a segurar as asas, balançando e apertando com curiosidade. O bicho então voou para o alto, e Ivan, que estava com os braços levantados, foi deixado no chão.

— Como o senhor pode ver, ele se cuida sozinho. — Ele respondeu.

— Imagino que você finalmente pretende visitar o antro dos mortiços. Por que precisa da nossa ajuda? — Simoé questionou, com um tom nada amigável.

— Bom, segundo Velho Cid, o Morro da Pedra Escura tem uma caverna que leva até o local em que vivem os mortiços, mas muitos anos atrás, ela foi lacrada para diminuir os ataques.

— Sim, há muito tempo atrás o aquático que veio com Velho Cid lacrou a passagem. O que nós temos que pode te ajudar? — Edin perguntou.

— Bom, para entrar, eu preciso reabrir a passagem, e... Eu me lembro de uma arma que vocês usaram quando eu estava aqui. Uma arma capaz de lançar trovões. Gostaria que nos deixasse usar esta arma.

— Não vai sozinho? — Simoé indagou, interessado.

— Velho Cid vai comigo.

— Bom, nós podemos ceder o uso, mas você não saberia operar a máquina. — Disse Edin.

— Será tão difícil assim aprender? Tenho hoje o dia livre, pretendemos ir apenas amanhã pelo meio-dia.

— Nós não vamos entregar a arma a vocês. Isso é inegociável. Agora, podemos ceder sim o uso dela, você só precisa nos indicar o local, e levaremos a arma até lá, no horário devido.

— Edin, não acha que está decidindo isto rápido demais? — Simoé levantou a voz, indignado.

— Eu ainda sou o líder deste grupo, Simoé! Rapaz, como já te disse, não há problemas quanto ao uso da arma. Mas para selarmos o nosso acordo, eu preciso de algo seu. — Ivan levantou as sobrancelhas, já prevendo que se tratava da lança dourada.

— E o que seria?

Edin se aproximou e pediu ao jovem que se abaixasse. Sem baixar a guarda, Ivan acatou o pedido e olhou diretamente nos olhos dourados de Edin, que respondeu com uma voz silenciosa, quase etérea:

— A verdade do seu coração.

Quando Ivan voltou a si, estava caído no chão. Com leve tontura, ele se ergueu para ver os Conhecedores de volta a suas mesas, debatendo. A lança ainda estava com ele, segura. Sem entender o que havia acontecido, Ivan viu Edin se levantar do assento e caminhar até ele.

— Já recobrou as forças, rapaz? Está livre para ir.

— Espera! O senhor não quer saber onde é a entrada da caverna?

— Seguindo norte daqui, cruzando o rio e seguindo a base do morro para o lado direito. Eu vi isso agora a pouco na sua mente. Ivan, aceite minhas desculpas por qualquer desconfiança que tive sobre você. É uma pessoa íntegra, disso não tenho mais dúvidas, e, se for possível, gostaria de contar com a sua confiança também.

— Claro, confio no senhor. — Disse Ivan, sem pensar muito.

— Então deixe a lança comigo. Até amanhã, quero dizer. Será devolvida a você junto com a arma, ao meio-dia. — Ivan riu mentalmente. Sabia que em algum momento a conversa chegaria até a lança. “Essas raposas gostam mesmo de fazer os outros de bobo”, pensou.

— Caso se interesse, eu posso lhe dar informações sobre seu futuro, em troca. Sobre uma jovem chamada Nora-Celtah. — Edin completou, e Ivan descobriu que a malícia dos uroncions era ainda mais vil que ele imaginara. O rapaz, se culpando mais pelas suas emoções que pela ardileza da raposa à sua frente, respondeu:

— O que tem ela? Alguma coisa de ruim vai acontecer?

— Bem, isso depende de você. A menina será escolhida como a próxima Ligeia, mas ela vai abandonar o posto para ficar com você, se, e somente se, você ficar aqui em Namal-te-Raan.

Ivan não sabia se devia acreditar naquelas palavras, mas Edin, o líder dos uroncions, era famoso por seus poderes premonitórios. Naquele momento, sua cabeça girava em preocupações, sobre certo e errado, felicidade e sacrifício. Precisava pensar sobre aquele futuro anunciado, e não se importava se o preço daquela informação era o empréstimo da lança. Ele sabia, afinal, que ela não podia ser danificada, pois sua indestrutibilidade natural a protegeria de qualquer experimento. Sem demora entregou a lança dourada na mão de Edin, e chamou Reimi, que o apanhou e o levou para o alto, num lugar onde ele podia ficar sozinho e pensar.

 

IV

— Ei! Acorda, mano! — Lando chacoalhou o irmão mais novo.

— Não precisa ficar nervoso. — Rubal coçou os olhos e levantou a cabeça. Estava sentado com as costas apoiadas na parede de pedra e a cabeça num barril fechado.

— Trate de despertar, aqui no lado proibido podemos encontrar com mortiços a qualquer momento.

— Acho que eles não vão aparecer tão cedo, depois que você fez aquela matança com os que surgiram lá no rio. Relaxa, já estamos bem longe da margem e eles não são de ficar andando pelo mato durante o dia. Me deixa descansar um pouco, afinal tive que passar a noite ouvindo as instruções dos Conhecedores. Quando os humanos chegarem você me avisa que eu levanto.

— Então pode ficar de pé, irmãozinho. Olha quem está vindo aí... — Detrás do matagal apareceram Velho Cid e Ivan.

— Nossa, parabéns pela pontualidade, senhores. Eles não tinham duas pessoas mais agradáveis para mandar não? — Ivan ironizou. Apesar dos anos sem ver os irmãos, reconheceu os dois no primeiro olhar. Lando estava ainda mais robusto, e pela largura dos braços era capaz de derrubar árvores sem muitos problemas. Rubal não mudara muito, mas o corpo parecia mais esguio, resultado de uma perda de peso, provavelmente.

— Quer perder um braço antes mesmo de encontrar o primeiro mortiço, engraçadinho?! — Lando ameaçou , em seguida rosnou de raiva.

— Estamos aqui como combinado, Velho Cid. Independentemente de desavenças passadas, os mortiços são um problema tão nosso quanto de vocês, então me alegra poder ajudar vocês na investida final contra esses monstros. Se o seu ajudante parar de gracinhas, talvez eu não precise parar a todo momento para acalmar os ânimos do meu irmão.

— Ajudante? Ora, mas que... — Velho Cid interrompeu Ivan com apenas um olhar. O rapaz então calou a boca, pois sabia que estava sendo imaturo.

— Aqui. A lança de volta em suas mãos, como foi prometido. — Rubal estendeu a lança enrolada num pano longo para Velho Cid, que negou:

— A mim não. A ele! — Apontou para Ivan. Rubal entregou a lança a Ivan, e Lando bufou ao ver a cena, quase ofendido.

— Agora só falta a arma de trovão! Onde está ela? — Ivan olhou ao redor e não encontrou nada. Viu uma sacola, quatro barris de madeira no chão e nada mais com os irmãos. Atrás deles, uma grande deformidade na parede de pedra indicava que um agente externo havia modificado o local. Certamente fora o mestre de Velho Cid, anos atrás, com seus poderes sobrenaturais.

— Olha só... Quando você me disse que a entrada tinha sido bloqueada, Velho, pensei que tinham fechado a abertura com uma pedra, ou terra, mas isso? As laterais da caverna parecem ter sido puxadas até fechar o buraco. Seu mestre podia dobrar pedras como se fossem um tipo de borracha?

— Meu mestre podia fazer muitas coisas, Ivan.

— O que é borracha? — Rubal indagou, curioso.

— Estamos perdendo tempo demais. Neste passo vamos ficar aqui até o anoitecer. — Lando rosnou. — Não trouxemos o cadron. Ele não é propriamente uma arma de trovões. A verdadeira arma está aqui! — Lando apontou para os barris. — Pedras de fogo. Esfareladas e armazenadas nestes quatro recipientes.

— O grande barulho provocado pelas explosões das pedras de fogo se assemelha aos trovões, por isso você se confundiu.

— E então, como fazemos? — Disse Velho Cid.

— Nós vamos montar a explosão, mas primeiro deixe-nos dizer uma coisa. Eu e meu irmão fomos enviados aqui para acompanhar vocês. Não vamos dar meia volta após explodir a entrada, que isso fique bem claro.

— Bom, muito bom! Quanto mais gente melhor! — Velho Cid declarou alegremente, antes de virar e lançar um olhar sério para Ivan. O rapaz respondeu com o mesmo olhar, indicando que sabia do que se tratava. Os irmãos foram mandados para dar cabo dos dois, assim que tivessem uma chance. — Podem armar a explosão, então.

Rubal e Lando posicionaram três barris empilhados no chão, bem ao centro da deformidade na parede rochosa. No quarto, abriram um buraco no topo e passaram a despejar o farelo escuro, criando um caminho no chão, dos barris até um local adiante. Lando permaneceu junto à extremidade do rastro de pedra de fogo, enquanto os outros três se escondiam mais longe, atrás de árvores. Com uma pederneira, Lando colocou fogo na trilha e correu levando o barril com a pedra de fogo restante para junto dos outros.

Tampando os ouvidos, os quatro aguardaram até que a explosão ocorresse, e quando aconteceu foi muito mais assustador que o esperado. Junto ao barulho, o chão tremeu com força e uma gigantesca fumaça branca se alastrou pelo local, ocultando as pedras que caíam causando estrondo.

Ivan e os outros voltaram ao local, abanando o que restara de fumaça e poeira, para ver a abertura da gruta, novamente acessível após dezenas de anos. Rubal tirou dois archotes da sacola que carregava e os embebeu em óleo, e antes de acender o seu, retirou da sacola as armas que Ivan tentou roubar anos antes, os discos de metal. Entregou dois a Lando e guardou os dois restantes para si. Acendeu a sua tocha e propôs aos demais que partissem de uma vez.

— Você tem a luz, então guie nosso caminho. — Disse Velho Cid. Os quatro então adentraram a gruta. Rubal liderando, Velho Cid em segundo, Lando atrás deste e por último Ivan. Não deram dez passos e algo já os fez conter o avanço. Alguém chamava por eles – ou pelo menos por um deles.

— Ivan! Ivan! — Nora-Celtah quase passou correndo pela entrada, mas parou a tempo de ver Ivan surgindo do buraco na pedra.

— Nora! O que está fazendo aqui?! — Perguntou atônito.

— Ivan, eu precisava vir. Procurei essa entrada em tudo quanto é lugar, aí ouvi o estrondo e vim para esse lado. Ivan, por favor, eu não posso deixar você entrar aí... — A mulher se calou ao ver os outros três saindo da caverna, ainda mais espantados que Ivan. Com a cara vermelha feito um tomate maduro, ela tentou continuar, gaguejando. — É, eu não posso deixar... Deixar você entrar aí sem isso!

Ivan quase não acreditou quando viu Nora-Celtah lhe entregar uma espada curta. A mesma espada que ele carregava quando pisou na ilha pela primeira vez. Soltou uma risada boba, e depois devolveu. Velho Cid e os irmãos observavam tudo, então ele não podia ser franco. Sabia que ela tinha ido com o intuito de impedi-lo.

— Nora. Eu não preciso dessa espada. Pode ficar com ela.

— Tudo bem, então! Só vim aqui tentar ajudar, sei que você não tem arma nenhuma para se defender além dessa lança, que mais parece uma peça de decoração que uma arma de verdade, mas já que não precisa de ajuda, eu vou embora. — Ela virou-se e andou com passos largos.

— Nora, agora que você está aqui eu não vou deixar você ir embora. Já se arriscou demais andando aqui pelo lado proibido, fica com a gente que é mais seguro. — Disse Ivan, para a alegria dela, que teve que esconder o largo sorriso do rosto antes de virar e retrucar:

— Do que está falando? Acha que não posso me virar sozinha? Pensa que cheguei até aqui e não consigo fazer o caminho de volta sem a sua proteção? Eu já fazia rondas e caçava mortiços muito antes de você aparecer aqui em Namal-te-Raan, está ouvindo?

— Eu concordo com a garota, ela não vai ter problemas em voltar se for depressa e evitar passar pelo lado do rio. Nós já estamos em grande número e não sabemos o que tem aí dentro, se ela for com a gente, pode atrasar nosso avanço ou até atrapalhar nossa missão... — Disse Rubal, tentando esclarecer racionalmente o seu ponto de vista, mas só o que conseguiu foi despertar a ira verdadeira na cabeça de Nora-Celtah, e ela não conteve seu grito de indignação.

— O quê?! Eu vou atrapalhar? Eu não acredito que ouvi isso dessa raposa magrela! — Velho Cid e Ivan prenderam o riso e Lando abriu a boca, espantado. — Quer saber? Agora eu vou entrar nessa caverna de qualquer jeito, e se esse saco de ossos precisar da minha ajuda, é bom que fique calado, porque se me dirigir a palavra, eu vou fazer com ele coisas que vão deixar os mortiços com pena! — Mal terminou de falar, ela passou rápido pelos quatro, arrancou a tocha da mão de Rubal e entrou na caverna, tomando a dianteira do grupo.

— Oi, Nora-Celtah... — Disse Velho Cid, mas não recebeu resposta ao cumprimento. Ivan olhou para ele e deu de ombros. Antes de seguir o grupo, os irmãos trocaram poucas palavras.

— E agora, Rubal? O que vamos fazer?

— Eu tentei tirar ela da situação, Lando. Você viu que eu tentei, mas agora... Ela podia ser a própria Ligeia, eu não dou a mínima! Vamos continuar seguindo o plano, a pedra de fogo não faz distinção entre matar dois ou três! — Rubal deu dois tapinhas no barril restante que levava na sacola, e os dois entraram na caverna.


Capítulo 7: O brilho da Pedra Celestial


I

A caverna tinha o teto baixo, mas se alargava à medida que Nora-Celtah entrava, e logo os cinco já andavam lado a lado. A impressão que Rubal teve observando as paredes e o solo era de que o local não parecia ter sido usado como esconderijo ou nada parecido. Esperava encontrar evidências de permanência dos mortiços ali, como excrementos, restos putrefatos, e, obviamente, mortiços ainda vivos, lutando para defender seus domínios. Mas nada disso foi visto.

Os cinco andaram por um longo tempo, seguindo o caminho único para o interior do morro sem correr riscos. Em certo ponto Ivan afirmou até estar entediado, pois o local não despertava sequer desconfiança, e ele já andava deliberadamente com a guarda baixa.

— Estão ouvindo isso? — Nora-Celtah atentou os demais.

— Sim! Finalmente alguma coisa para chamar a nossa atenção! — Disse Ivan, exaltado mesmo que o ruído fosse apenas o de água corrente.

— Ei, menina! — Lando se aproximou dela com o segundo archote e o acendeu na chama que ela carregava. — Vamos iluminar mais. Pelo visto, vamos encontrar água adiante, e com ela, acho que finalmente veremos os malditos.

O grupo chegou ao que parecia a saída da gruta. Um feixe de luz brotava do meio do teto rochoso, iluminando a câmara que abrigava os recém-chegados. Uma grande corrente de água passava à frente de Lando, que tomou a dianteira, e corria forte até o paredão de pedra do lado direito, escoando por uma abertura na parte inferior da parede. Do outro lado da água, o chão de pedra continuava o caminho.

— E agora, como passamos para o lado de lá? — Nora-Celtah perguntou.

—Não dá para pular. É muito longe. — Lando constatou, ainda observando a água.

— Acho que encontrei um caminho. Ilumine aqui, garota. — Rubal se agachava na parede do lado esquerdo, apalpando o chão próximo ao rio. Ela atendeu, interessada.

— Ei, gente! Aqui tem uma passagem — Nora-Celtah declarou — mas é bem estreita. Pelo menos vai até o outro lado. — Ela concluiu, estirando o braço o mais longe que podia, para iluminar o outro lado do rio.

Juntos, Ivan e Velho Cid trocavam ideias na beirada da pedra:

— Eu acho que consigo pular. Vou tentar.

— Não, espere aqui. Eu vou. Se não conseguir chegar até o outro lado, eu consigo nadar e subir, não quero você sendo carregado pela água para dentro do morro. — Declarou Velho Cid.

— Ora, se você conseguir passar pulando, eu sigo atrás. Não vim até aqui para ser tratado como menino. Nora! Fique desse lado, não vá atrás desses dois! — Ivan pediu, mas o tom imperativo não agradou muito à garota, que resolveu seguir os irmãos. Encostando o peito na parede e dando passos lentos, os dois já estavam quase chegando ao outro lado. Nora-Celtah preferiu passar de costas para a parede, e após as primeiras passadas laterais, viu o que Ivan e Velho Cid estavam preparando. Velho Cid se afastara da beirada para tomar impulso e pular.

— Ei, vocês estão loucos? Não vão passar pulando de jeito nenhum. Ivan! Ivan!

— Segura o sermão para depois que virar a Ligeia, Nora! — Ivan respondeu sem olhar, e Velho Cid pulou. Leve como uma pluma, o corpo do mestiço subiu pela câmara, e com facilidade alcançou o outro lado, mas o pouso não foi amigável. Ao pôr os pés no chão, Velho Cid se desequilibrou e caiu de costas, batendo a nuca. Seu corpo escorregou após o impacto até bater na parede do lado oposto ao que vieram.

Um grito de dor ecoou pela caverna, causando a preocupação dos demais. Ivan e Nora-Celtah gritaram pelo nome de Velho Cid, preocupados com o amigo caído no chão. Lando, prestes a pisar na outra margem, declarou para o irmão:

— Você viu? O velho caiu. Cuidado quando pisar aqui, deve ser muito escorregadio. — Informou a Rubal.

—Ivan! — Velho Cid gritou, com uma voz exageradamente raivosa. — Ivan! Não venha para cá! Voltem todos! Voltem!

A garota estagnou. Já havia passado da metade do caminho, mas nunca vira Velho Cid irado. A ordem enraivecida do velho tinha algo mais a passar que apenas avisar do chão escorregadio.

— Velho, você está bem? Não se preocupe, já vamos chegar aí para te ajudar! — Ivan tentou ser solícito, mas a resposta veio mais agressiva que a ordem anterior.

— Não venham para este lado! Isso aqui não é mais a caverna! Estamos na pirâmide! Eles estão aqui, vão nos atacar! — Declarou, com voz retumbante.

— Ivan?! — Nora-Celtah chamou, com voz trêmula. Estava presa. Não queria avançar, mas as pernas não obedeciam e ela não conseguia voltar. Forçou seu corpo na parede, completamente tomada pela ideia de que a qualquer momento mortiços podiam pular da água que corria sob seus pés e puxá-la para a morte certa.

Lando não conseguiu pôr o segundo pé na superfície. O primeiro passo foi suficiente para desestabilizar a postura do uroncion e ele caiu, derrubando o archote no chão e escorregando em seguida até a parede, como Velho Cid. Rubal, ao ver o acontecido com o irmão, se pôs de quatro, e conseguiu se manter firme, com certa dificuldade.

— Rubal! Isso não é natural! Deve ser obra do Cristal Dilúveo! — Lando disse, enquanto tentava se levantar em vão. Do outro lado, Velho Cid também lutava para se levantar. — Irmão, temos que voltar para o outro lad...

Um som demoníaco reverberou pelo ambiente anunciando o ataque. Um braço cadavérico surgiu detrás de Lando e a mão esquelética calou sua boca.

— Mortiços! Rubal gritou, alertando os outros. Ato contínuo, os monstros começaram sua investida. De dentro da parede e do chão negro e liso os mortiços emergiam, emitindo o som esguichado característico da garganta. Um deles surgiu da água, se apoiando na pequena plataforma junto à parede. Nora-Celtah por pouco não foi agarrada pelo monstro. Por reflexo, atirou o archote no inimigo e pulou assustada para onde estava Rubal. Os dois se entrelaçaram e caíram sem jeito, escorregando para o mesmo local em que Lando estava. Ao chegar junto ao irmão, Rubal não perdeu tempo e mordeu com força a mão que segurava Lando. Se debatendo de dor, o braço entrou novamente na parede. Com o pequeno feixe de luz sendo a única fonte de iluminação, os cinco já não enxergavam quase nada do local, e Ivan era o único que ainda estava em segurança.

— Irmão, me passe a corda! — Lando entregou uma corda que levava na cintura para Rubal, que, desajeitado, tentou fazer um arranjo com o que tinha. Nora-Celtah bufava e forçava os braços, tentando se separar dos uroncions, ou ao menos se pôr de pé. Velho Cid rastejava para chegar até a garota, mas era alvo constante do ataque conjunto de vários mortiços. Usando sua força sobre-humana, o mestiço conseguia se livrar facilmente dos inimigos, porém não escapava completamente dos arranhões e das mordidas.

Ainda deitado, Rubal conseguiu se posicionar de jeito a arremessar o disco de metal, com a corda de Lando presa a ele. O arremesso foi perfeito, e o disco passou pelo buraco no teto da caverna.

— Eu consegui, Lando! — O irmão mais novo se agarrou na corda e começou a puxar. Sentiu que estava segura. — Vamos conseguir sair daqui! — Ele exclamou antes de começar a subir pela corda.

Quando Rubal se soltou de Lando e Nora-Celtah, os dois finalmente conseguiram se separar, e deslizaram para lados opostos. Suspenso, o uroncion conseguiu ver a quantidade de mortiços que subia da água e se somava aos inúmeros que emergiam da pedra preta. A maioria focava o ataque em Velho Cid, mas naquele ritmo, não demoraria até que todos fossem mortos. Decidindo sem consultar Lando, ele pegou o barril que carregava e arremessou no lado de pedra, onde Ivan ainda assistia à cena, impotente. O uroncion pendurado armou o arremesso do outro disco que possuía, e com os olhos incertos, mirou no barril. Quando se preparou para arremessar, Nora-Celtah pediu socorro, aos berros. Mãos ocultas seguravam seu corpo contra a parede negra, e pela frente três mortiços a cercavam, prontos para atacar.

O único capaz de ajudar, Ivan não pensou antes de agir. Empunhou a lança dourada com a mão direita e a arremessou para o outro lado. A lança dourada tocou a parede com a ponta da lâmina, e um barulho quebradiço ressoou, como se abrisse uma fissura na parede. O efeito real, no entanto, foi inacreditável para Rubal, que viu tudo acontecer. A parede negra se balançou como água, e a lança penetrou, criando ondas em sua superfície, antes dura e lisa. A lança desapareceu, mergulhando na parede negra, e num efeito cascata, Velho Cid, Nora-Celtah e Lando também foram puxados. Rubal hesitou em soltar a corda, mas saltou de volta para o chão, atrás do irmão que desaparecera na parede. Sem qualquer resistência, ele também penetrou na parede líquida.

— Nora! Velho Cid! — Ivan começava a lacrimejar. — Droga! Mas que droga! — Ele gritou. Sem os outros na câmara, Ivan agora era o único alvo dos mortiços. O barulho esguichado da garganta de cada novo mortiço que surgia se amontoava ao estrondo já presente. Sem perspectiva, Ivan só viu um caminho a seguir, e não era o que tinha à suas costas. O rapaz correu até a beirada e se atirou para o outro lado. Sem a explosão muscular de Velho Cid, ele não conseguiria chegar ao outro extremo, mas Ivan não precisou chegar até lá. A corda deixada por Rubal estava a seu alcance, e Ivan aproveitou sua velocidade para gerar o balanço necessário e atravessar toda a distância. Quando soltou a corda, passou por cima de todos os mortiços que o esperavam do outro lado, e seu corpo passou direto pela parede negra.


II

Quando terminou de atravessar a parede, Ivan não sentiu nada diferente em si, além de estar com o corpo totalmente molhado. Para sua surpresa, ele pisava em areia, mas essa era toda a informação que tinha. Ivan não presenciara tamanha escuridão nem quando Velho Cid vendava seus olhos para treinar combate cego. Gritou:

— Nora! Velho! — O chamado fez surgir ao redor de Ivan o barulho esguichado dos mortiços. Desta vez, estava multiplicado milhares de vezes; Ivan sentiu que ali ao seu lado, um dos mortiços soprou e o vento tocou seu braço.

— Eles só querem nos conter, Ivan. — A voz de Velho Cid chegou até Ivan pelo lado.

— Nós dois estamos aqui, também. — Disse Lando, um pouco mais afastado.

— Nora? — Ivan perguntou, quase sem voz. Mãos frias e ossudas apertaram os braços de Ivan, que não mostrou resistência.

— Estou bem. Eles não estão me segurando, Ivan. — O rapaz se impressionou com a distância que os separava. Nora-Celtah estava bem à sua frente, a não mais de dois metros, apesar dele não conseguir ver nada.

— O que eles querem?

— Estão seguindo ordens. Não imaginei que fossem capazes disso, mas pelo visto há alguém controlando todos eles. Só precisamos descobrir quem é esse alguém... — Velho Cid afirmou. Sem qualquer aviso, um ponto de luz branca surgiu de um lugar alto. Como uma estrela solitária, o ponto de luz trouxe um pouco de esperança àquele mundo escuro, ou assim Ivan pensou.

Sob a fraca iluminação, Nora-Celtah viu milhares de silhuetas negras se movimentando de todos os lados, até onde chegava a última projeção de luz. Os mortiços mais próximos se amontaram uns aos outros, formando uma escadaria grotesca aos pés da garota, que dava acesso até a pequena fonte de luz.

— Ele quer que eu suba? — Nora-Celtah se perguntou, incerta.

— Nora... Você tem que ir. Você sabe o que fazer... Independente de quem seja, ele é o líder dessas aberrações. Acabe com ele, Nora...

— Mesmo que eu tenha a oportunidade, se eu fizer isso vocês vão... — Os olhos de Nora-Celtah se encheram de lágrimas.

— Nora, você já olhou para a gente? Olhe para eles, são carcaças de ossos! Podemos nos virar, não importa a quantidade. — Ivan tentou animá-la, mas suas palavras soavam como uma verdade fantasiosa demais até para a mais pura das crianças.

— Mas vocês não conseguem enxergar, como vão lutar? — A primeira lágrima rolou pela bochecha de Nora-Celtah. Para convencer a garota, os outros ajudaram Ivan:

— Nós enxergamos mesmo com pouca luz, menina. — Rubal e Lando disseram.

— Eu consigo ver sem luz alguma. — Velho Cid disse.

— E você, Ivan? Você não é como eles.

— Nora. Eu vou dar um jeito de enxergar. Eu prometo que vou. — Tentou encorajar. Nora-Celtah fechou os olhos com força, e as lágrimas correram. Ela virou-se e subiu trepidante pela escada de mortiços.

No topo, Nora-Celtah desvendou o mistério da pedra negra. Um corpo sem braços e pernas pendia do teto negro, seguro pelo líquido maldito que se materializava formando a pirâmide. A pele e órgãos tinham se degradado há centenas de anos, e apenas ossos e carne podre compunham o ser vivo à sua frente. E ela tinha certeza de estar vivo. Na barriga, no lugar aonde Nora-Celtah esperava ver tripas e vísceras mal cheirosas, viu um objeto puro e cintilante, com pontas bem definidas que emitiam faíscas brancas e irradiava o maior bem dado aos seres vivos: o amor. Nora-Celtah sabia exatamente quem era aquele e o que queria.

Ainda observando o corpo, ela percebeu o que era aquele líquido. Nas veias do corpo cadavérico do imortal, ela percebeu muito fracamente a pulsação de um líquido escuro e amaldiçoado. A pirâmide colossal que, escondida no lado proibido, cobria boa parte da ilha e abrigava os corpos de milhares de mortiços em suas paredes; tudo aquilo era o sangue do homem que não aceitou morrer, esperando eternamente pelo retorno da infame Ligeia chamada Afro-Deity.

No chão de areia Rubal, Lando, Velho Cid e todos os mortiços próximos presenciaram a vitória de Ivan sobre seu passado maldito, quando ele finalmente resolveu aceitar como seu o poder dado pelos céus em troca da vida de sua mãe. Ele recitava com paz de espírito:

 

Nós abusamos do que nos é dado

Nós acabamos com o que é eterno

O mundo acaba em estilhaços sob nossos pés

Mas depois de tudo, haverá uma luz na noite mais escura

Fazendo-nos virar para o céu

Existirá uma Lua

Seu brilho perdurará além da costa

A Lua brilhará para todo o sempre


III

Velho Cid era o mais ferido do grupo. Enquanto os mortiços seguravam os invasores com as mãos, para detê-lo os monstros usavam dentes e garras. Coberto por mortiços pendurados pelas mandíbulas, sugando seu sangue, ele teve uma visão nostálgica. A cena da luz do Sol passando pela água, chicoteando o seu corpo com raios de luzes ondulantes e aleatórios ficara marcada na sua memória. Ele vislumbrou a mesma imagem no dia fatídico em que perdera tudo. Seus pais, seus amigos e sua terra; tudo foi levado enquanto ele se escondia no fundo de um lago, olhando impacientemente para cima, sem forças para lutar contra os adultos que invadiram sua casa.

Agora, preso na pirâmide de sangue, ele via os mesmos raios de luz tremeluzindo no líquido escuro que formava as paredes. Apenas a coloração branca da luz Sol era substituída pelos feixes virentes da luz da Lua, que brilhava tão fortemente no céu da tarde ao ponto de ofuscar o Sol soberano. O mundo agora era banhado de verde, e a intensidade deste verde ultrapassava as camadas negras do sangue demoníaco e iluminava a todos dentro da pirâmide. Os olhos de Ivan brilhavam com a mesma cor verde.

Ivan olhou para os lados, ao seu redor viu Rubal seguro contra uma parede por mortiços, ao lado dele, Lando no chão, imobilizado pelos monstros, e do outro lado, mais adiante, seu mestre ajoelhado, com mortiços cobrindo-o do pescoço até os pés enquanto ele, melancólico, admirava o teto. Próximo a Velho Cid ele viu a lança dourada.

— Eu vou libertar vocês. Preparem-se para lutar como nunca. — Ivan avisou.

— Você está vendo o Cristal Dilúveo? — Velho Cid questionou.

— Sim, mas não sou bom com arremessos. A Nora está muito perto dele.

— Bom, eu sei que você é bom com outros golpes. Nós vamos abrir caminho.

— Nora! Agora! — Ivan gritou, chacoalhando os mortiços que lhe seguravam o braço. Munido com a força sobrenatural da Lua, um chute e um movimento de braço foram suficientes para liberar os uroncions de seus captores. Os três facilmente libertaram Velho Cid.

Vendo a comoção, Nora-Celtah voltou-se para o corpo definhado, desembainhou a espada curta e antes de perfurar o coração podre, ela pediu perdão:

— Eu não sou ela. Me perdoe por isso.

Com o ataque da mulher, os mortiços – inclusive os que serviam de chão para Nora-Celtah – sentiram a urgência de atacar desordenadamente, e começaram a se debater histericamente. A queda da garota era iminente.

— Velho! — Ivan gritou. Acabara de recuperar a lança; Velho Cid segurou o corpo de Ivan e arremessou alto, para perto de Nora-Celtah. O herói correu os últimos metros da subida antes de gritar para a garota se abaixar, e ela o fez sem hesitação. Num pulo acrobático, Ivan girou e acertou com precisão um golpe dado formando o traçado da Lua Crescente. O Cristal Dilúveo fora destruído pelo impacto, se esfarelando por completo. Com o estampido, a escada desmoronou, e Ivan caiu com Nora-Celtah em seus braços. O que se seguiu não era tranquilizador. Sem a fonte de poder que sustentava a pirâmide, o teto e as paredes começaram a se liquefazer, e a força da água jorrante varria todos em seu caminho, fosse uroncion, humano, mortiço ou aquático. Em meio a uma horda de mortiços fugitivos, Ivan e Nora-Celtah retornaram ao local em que estavam os outros. Rubal e Lando já entravam na parede líquida que dava acesso ao morro. Velho Cid pediu pressa, pois logo ela também perderia a resistência e se transformaria num forte jato d’água.

Quando os três passaram de volta para a câmara que ligava a pirâmide com o morro de pedra, Lando já estava no topo da corda, e Rubal no meio do caminho. Ivan pulou na corda.

— Venha, Nora. Logo esse chão vai se desfazer também!

— E você vai estar aí para ver! — Rubal disse, antes de cortar a corda com o disco de metal. Sem acreditar, Nora-Celtah e Velho Cid observaram Ivan cair até a água corrente do rio. Os braços e pernas soltos se debatendo, e os olhos ainda com o brilho verde, desesperados.

— Desculpem, mas era nossa missão. Há, há. — Rubal declarou, vitorioso. Ato contínuo, o corpo de Ivan saltou quase momentaneamente após ter caído na água, alcançando o outro lado. Se não tivesse pulado imediatamente, Ivan seria tragado para os túneis fluviais que percorriam o interior do Morro da Pedra Escura. O brilho verde, com esse último esforço, se esvaiu.

— Rubal, seu maldito! Eu vou matar você! — Ivan ameaçou.

— Nós uroncions sempre temos um segundo plano, Ivan! Adeus! — E arremessou o disco de metal no barril próximo a Ivan. A explosão cobriu a câmara com fumaça branca. No alto, Lando percebeu algo que os outros não poderiam. A pirâmide estava se desfazendo cada vez mais rápido, e ele viu, de cima do Morro da Pedra Escura, toda superfície negra ruir, e com a explosão, nem mesmo ele estava seguro. O estrondo abalou toda estrutura rochosa, e se de um lado a pirâmide aquosa ameaçava inundar a todos, do outro o morro pretendia soterrá-los.

— Rubal, pare de perder tempo e suba de uma vez! — Ordenou. Embaixo, Velho Cid acabava de arremessar Nora-Celtah para o lado de pedra, e usando o deslizamento do chão para se impulsionar, ele foi atrás. Agitando a fumaça branca, os dois encontraram Ivan ferido, caído no chão.

— Não acredito nisso! O desprezível ainda está vivo! — Rubal lamentou, apenas para ouvir em seguida seu irmão gritar seu nome. Mas foi tarde demais. A área negra da câmara já começava a se desfazer, e Rubal, que pendia da corda, foi pego em cheio pelo jato líquido. O uroncion caiu no rio que corria para dentro do morro.

— NÃO! — A voz feminina ecoou. Nora-Celtah correu desesperada e pulou na água, agarrando Rubal.

— Nora! Não! — Ivan, sem forças para impedi-la, deu um soco forte em Velho Cid.

— Entre na caverna! — Velho Cid ordenou antes de correr atrás de Nora-Celtah. Os olhos ansiosos de Ivan na beirada da entrada e de Lando no topo da câmara se aliviaram quando o mestiço surgiu com os dois em seus braços.

— Vai! — Ele gritou para Ivan. A fuga entrava na sua reta final. Nora-Celtah e Rubal corriam na frente, na gruta, enquanto Lando corria no topo do morro, se equilibrando no chão vacilante e Velho Cid ajudava Ivan a correr, seguindo os passos da mulher.

Quando a ameaça da água estava quase extinta, a sorte de Ivan acabou, e o teto sobre sua cabeça desabou.

— Ivan! Velho Cid! — Após esperar ansiosamente alguma resposta que não veio, a garota retornou e encontrou o que mais temia. Sob as pedras caídas, Ivan estava deitado no chão e Velho Cid era o único a protegê-lo do esmagamento. Com sua força incomensurável, o velho, ajoelhado, segurava o peso do soterramento sobre suas costas. Os dois não se mostraram felizes em ver a garota de volta, mas ela estava convicta de que podiam sair dali vivos. Bravamente, ela arrastou Ivan e retirou ele debaixo de Velho Cid.

— Velho, consegue sair daí? — Ivan perguntou, sabendo a resposta. Velho Cid respondeu sem fôlego:

— Ivan, eu estava certo. Você é o herói que Amat-Gadu profetizou. Você vai trazer equilíbrio para o mundo! Infelizmente eu não posso sair daqui. Se soltar este peso que está me esmagando, as pedras descem e vocês serão soterrados. Eu estou velho, Ivan, vocês precisam continuar sozinhos.

— Velho, eu não quero ser o herói de nada, só quero que você continue vivo. O que eu vou fazer sem você aqui na ilha? Hein? Eu sou seu discípulo e não quero ser nada além disso, Velho! — Ivan se ajoelhou, desconsolado.

— Não quer ser herói? Então por que passei anos te treinando? Perdi meu tempo à toa? Ivan, lembre-se do que lhe falei ontem. Você precisa destruir também o Prisma Pulsar e eliminar Afrodite. Eu pretendia levar você até lá, mas agora você precisará fazer isso sozinho. No fundo do Poço de Gadu, preste atenção às paredes. Todo o resquício de poder do meu mestre ficou retido nelas depois que ele desapareceu. Quando elas perderem seu brilho verde, é porque a essência do zodíaco terá se dissipado por completo, e então começarão a surgir em Maciaan novos caídos do céu. Procure por eles, vão te ajudar na sua busca. Agora não percam mais tempo! As pedras ainda estão desmoronando, mas não vou ser morto tão facilmente. Eu sou Alcides Grankill, Príncipe de Casul, sucessor ao trono do Império Oceânico e único discípulo de Amat-Gadu, o homem sem signo! Meu destino não será morrer esmagado por uma montanha! VÃO!

Nora-Celtah ajudou Ivan e os dois finalmente fugiram. Antes das últimas pedras rolarem e da poeira turvar a visão, Ivan olhou para trás e – apesar do atordoamento decorrente dos ferimentos – teve certeza de ter visto seu mestre Alcides de pé, ereto e com as mãos erguidas, suportando todo peso do Morro da Pedra Escura sobre si.

 

IV

Do lado de fora, os irmãos uroncions aguardavam por Ivan e Nora-Celtah. Rubal estava no chão, esgotado, e Lando permanecia ao seu lado, de pé.

— Eu não acredito que vocês chegariam a esse ponto. Mas não vou ficar reclamando e nem vou entregar minha vida de mão beijada. Podem se preparar para lutar! — Ivan disse, com a voz elevada, tentando disfarçar sua incapacidade.

— Não estamos aqui para lutar com vocês. — Lando esclareceu.

— E então? — Ivan desafiou.

— Nossa vida é de vocês, se assim quiserem. — Lando se ajoelhou perante os dois. — Eu não tenho dúvidas que você é a Ligeia, a verdadeira Ligeia. Nosso povo tem negligenciado a autoridade das Ligeias por achar que Afro-Deity, em algum lugar, ainda está viva, e que ela possui o verdadeiro espírito da deusa mãe dentro de seu corpo, mas agora eu não tenho dúvidas.

— Então vão se oferecer em sacrifício? Isso é o mínimo que deveriam fazer. Tenho certeza que Edin se orgulhará de saber que vocês se redimiram no final de suas vidas. — Ivan segurou a lança dourada como apoio, pronto para atacar os irmãos.

— Ivan, espere! — Nora-Celtah segurou seu companheiro pelo braço e o deixou se equilibrando na lança para caminhar sozinha até Lando e Rubal.

— Lando e Rubal, vocês vieram aqui hoje sem saber se voltariam vivos para casa. Para mim é muito difícil lidar com esse tipo de situação, mas nós acabamos de perder uma pessoa querida. Independentemente das suas ordens ou de suas vontades, aceitar a vida de vocês para desculpá-los de seus atos seria impossível para mim, pois eu já os perdoei. Podem voltar para casa, e eu ficarei feliz se puderem me visitar de vez em quando.

Com os olhos marejados, Rubal se jogou aos pés de Nora-Celtah, em gesto de adoração. Lando, após longos agradecimentos, levantou seu irmão e voltou para casa.

— Nora... Você não precisava fazer isso. Eu não ia contar a ninguém. — Para Ivan era impossível aceitar que ela não tinha nem mesmo uma pequena vontade de se vingar.

— Ivan, eu gostaria muito que você me entendesse, mas não vou te exigir compreensão. Vamos logo para casa, que você está em péssimo estado.

— Casa?

— Ou você pode voltar a viver como nômade, se já está tão acostumado. — Nora-Celtah riu.

— Acho que eu gostaria de morar numa colmeia. — Ele retrucou.

— Até hoje você não me explicou o que é essa tal colmeia... — Ela disse, e Ivan riu.


Capítulo 8: Previsões e desencontros


I

Após uma caminhada demorada, mas prazerosa, Ivan chegou à cidade dos uroncion. Não usava mais o cabelo comprido e trançado, agora buscava sempre deixá-lo curto, puxado para trás. O penteado o deixava mais jovem, mas as rugas que começavam a aparecer tinham efeito contrário, e bem mais expressivo. Assim que foi avistado, alguns uroncions foram cumprimentá-lo, pelo simples costume que aquilo se tornara ao longo dos anos. Entre eles, um dos pequenos se aproximou, animado:

— Ivan! Deixa eu olhar um pouco a lança? — Perguntou, com olhos brilhantes e um sorriso maroto no rosto.

— Quem sabe outro dia, hoje estou com um pouco de pressa. — Ele afagou a cabeça do pequeno e continuou seu caminho. Numa mesa onde soldados se alimentavam, Ivan avistou Lando. — Olá pessoal, será que posso trocar umas palavrinhas com o Lando?

— Se quiser pode até levar para casa, há, há! — Respondeu um dos que estavam sentados.

— Como você está, Ivan? — Lando perguntou, ao se levantar.

— Estou muito bem. Vim aqui para te fazer um convite. E prestar meus respeitos a Rubal.

— Muito gentil de sua parte. Vamos andando... — Lando sugeriu e puxou a caminhada. — Estou sendo convidado para o quê?

— A Ligeia disse que vai anunciar sua sucessora. Todos estão muito animados para esta noite. A Nora é uma das três favoritas, pelo que eu soube.

— Ela é a única candidata verdadeira, Ivan. — Lando passou mais seriedade do que gostaria, na afirmação.

— É, acho que sim. Mas acho que você deveria aparecer lá. Ela vai adorar rever você.

— Acho que vou, sim. Ela é merecedora, não vou perder a cerimônia, não mesmo.

— Que bom. Só não vá tão confiante assim. Quer dizer, eu também acredito piamente que Nora seja a deusa mãe, mas... Aquele gênio dela pode prejudicar na decisão, você sabe. — Os dois deram risadas. — E queria te avisar também que eu decidi ir para minha terra, finalmente vou atrás da última dádiva do mundo.

— Puxa, finalmente se decidiu? Vai quando?

— Em breve. — Ivan respondeu, evasivo.

— Bom, te desejo toda sorte e proteção divina. Sabe que todos aqui vão sentir sua falta, não é? Tente não demorar muito. Bom, chegamos. — Os dois pararam em frente a uma elevação de terra. Ivan descobriu que aquelas várias elevações tinham diversas utilidades. Além de abrigar jaulas para cativeiro – que há muito tempo não eram mais utilizadas – algumas elevações tinham propósitos de adoração religiosa, e outros eram construídos como túmulos. Após a morte de um uroncion, seu corpo era cremado numa pira e as cinzas eram despejadas no solo. Por cima das cinzas, era jogada terra e batida, para que as cinzas do próximo pudessem ser depositadas.

A elevação que Ivan e Lando visitavam era onde tinham sido deixadas as cinzas de Rubal. O portal de madeira arqueado exibia o símbolo do Círculo dos Conhecedores, o posto mais alto que um uroncion podia alcançar na sociedade deles. Ivan ajoelhou-se e rezou em silêncio, enquanto Lando permaneceu de pé, com a cabeça baixa. Quando o rapaz se ergueu, Lando comentou:

— Ele foi o mais jovem de todos a entrar no Círculo de Conhecedores...

— Eu fiquei sabendo. Não queria te deixar triste, desculpe.

— Não deixou, apenas estou me recordando de algumas coisas. — Após um breve silêncio, Lando retomou o caminho pelo qual vieram; Ivan acompanhou até um certo trecho, em que se despediram. — Encontro você hoje à noite, não é?

— Não vá perder a cerimônia por estar me procurando! — Após se separarem, Ivan avistou Edin pelo caminho, e resolveu convidá-lo também. Com bom humor, o sábio recusou:

— A cerimônia perde a graça quando já se sabe o resultado. — Brincou Edin, sem mentir.

— Ora, vai dizer que nunca errou uma de suas previsões?

— Ainda não... Mas hoje seria uma boa noite para isso acontecer. — Edin sussurrou. — De qualquer forma, estarei em outro lugar na hora da cerimônia, não poderei atender o seu convite. Porém não quero ser rude, amanhã visitarei sem falta a escolhida.

— Isto já será ótimo, Professor Edin! Muito obrigado pela sua atenção. — Os dois se despediram e Ivan finalmente saiu da cidade, mas antes de adentrar a mata fechada, uma figura o impediu.

— Simoé, o que quer comigo?

— Veja os modos, rapaz. Sou o Professor Simoé, não se esqueça. Eu só queria lhe fazer uma pergunta, haja visto sua amizade sincera e de longa data com o Lando. — Ivan desviou o olhar da cauda hipnotizante de Simoé e fitou os olhos dourados do velho uroncion, traiçoeiros como nunca. — Nos últimos anos, ele vem mudando bastante o temperamento dele, principalmente nos anos seguintes à morte do irmão. Se tornou um uroncion exemplar, de temperamento controlado e de julgamento impecável, ao ponto que atualmente o nome dele é muito comentado para entrar no Círculo de Conhecedores. Você sabe que eu tenho muito prestígio no Círculo e não posso correr o risco de incluir um membro indevidamente.

— Simoé, corte o papo furado, o que você quer de mim? — Ivan cruzou os braços e encarou com olhar duro.

— Lando finge acreditar que Rubal foi morto por mortiços remanescentes, mas ele não é idiota, tenho certeza que sabe que o irmão morreu brigando com um aquático. Desde que você destruiu o Cristal Dilúveo, ele se posicionara junto a Edin, com a opinião de que você deveria esquecer o Prisma Pulsar e se estabelecer de vez aqui na nossa terra, mas após a morte de Rubal, a opinião dele sobre você mudou bastante. Ele agora é um dos mais fervorosos defensores da ideia do equilíbrio absoluto, e defende a sua viagem para destruir Afro-Deity e o prisma.

— E então? Qual o problema dele mudar de opinião? Você mesmo acabou de dizer que ele amadureceu muito nos últimos tempos.

— Acontece que essa mudança de pensamento é que vai me dizer se ele está preparado ou não para entrar no Círculo de Conhecedores, Ivan. Caso o motivo dele defender o equilíbrio absoluto seja secretamente um desejo de ver Afro-Deity e seus aquáticos perecer, então o julgamento dele está sendo feito em cima de vingança e ódio, sendo tão deturpado como tantos outros que ele já fizera na juventude. Eu preciso dessa informação para decidir, Ivan, não posso colocá-lo na mais alta casta uroncion sem ter certeza do que se passa na cabeça dele!

Diante da súplica, Ivan sentiu prazer em responder em poucas palavras:

— Simoé, passaram quase dez anos desde que pisei aqui pela primeira vez... Você já deveria ter aprendido a tomar suas decisões sem precisar consultar a verdade na Pedra Cataclismo. — Após vislumbrar Simoé enrubescer de raiva, Ivan passou por ele e seguiu seu caminho.

 

II

A noite festiva teve um toque especial com o presente que Lando levara. As pedras de fogo, que antes causavam apenas terror e morte, foram combinadas com outros elementos para provocar estouros multicoloridos. No momento em que Norah-Celtah foi indicada para ser a Ligeia e apareceu com as vestes rubras e douradas da líder de Namal-te-Raan, Lando coordenou o disparo das pedras com os cadron e a chuva de luzes varreu o céu noturno, provocando mais euforia nos cidadãos.

Nora-Celtah a todo o momento lembrava e esquecia de procurar Ivan em meio à multidão, dada a quantidade de pessoas que vinham parabenizá-la e ela se perdia em longos e sinceros agradecimentos. Mas mesmo Lando, que vinha buscando pelo amigo há bastante tempo, não conseguiu encontrar o herói da profecia. Chegou a deixar outros uroncions de prontidão para avisá-lo assim que Ivan fosse encontrado, mas ainda sim, ninguém na festa tinha visto o rapaz. Na verdade nem poderiam. Com a chuva de luzes, todas as atenções no céu estavam voltadas para as explosões, e ninguém notou quando a Lua mudou seu tom de branco para verde. No céu, testemunhando cada centelha gerada pelas pedras de fogo, Ivan voava apoiando o corpo em Reimi.

— Finalmente eu vou completar a minha missão. Quatro anos atrás, depois que destruímos o Cristal Dilúveo, imediatamente as pedras do Poço de Gadu perderam o brilho verde. Eu sei que devia ter ido naquela época, mas eu não pude. Eu precisava ter certeza de que Nora seria escolhida como a sucessora da Ligeia. Ela herdou o posto, e, segundo as previsões de Edin, abandonaria o título para ficar comigo se eu não fosse embora para Maciaan. No começo eu achei que aquilo era uma bobagem, mas agora eu tenho certeza de que, se olhar nos olhos dela novamente, não hesitarei em pedir para ficar comigo. É por isso que eu vou, mestre. E vou sem arrependimentos. Terminarei a missão passada pelo seu mestre até mim, e uma vez novamente o mundo estará livre para seguir o seu curso sem concentrações e manipulações de poderes divinos. Você disse uma vez que estaria sempre do meu lado para combater as adversidades, e eu não tenho dúvidas que você vai comigo, não é? — Ivan encerrou a conversa que tinha com as estrelas cintilantes e rumou para o sul sem olhar para trás. Se tivesse olhado mais uma vez teria desistido ou, talvez, perceberia uma figura solitária que o observava do topo do Morro da Pedra Escura, agora renomeado para Pedra de Cid. Com lágrimas que insistiam em manchar a reputação dos nervos controlados de Edin, o uroncion prateado lamentou quando viu a silhueta do homem alado passar em frente à Lua virente:

— Apenas desta vez eu queria estar errado, jovem herói. Não passará um dia sem eu rezar para os deuses e pedir que tenham a compaixão de reconsiderar o seu destino nesta viagem. A viagem que findará sua vida após você passar pelas mais cruéis provações.

 

 

                                                   Daniel Monteiro         

 

 

 

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