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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PLANTA / Stephen King
A PLANTA / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Senhores,

Escrevi um livro que vocês vão querer publicar. É muito bom. Tudo é assustador e é tudo verdade . O título é True Tales of Demon Infestations. Tudo que sei é em primeira mão. Estão incluídas estórias de “The World of Voodoo”, “The World of the Aether” e “TheWorld of the Living Dead”. Incluí também receitas para algumas poções, que poderiam ser “censuradas” se vocês sentirem que elas são perigosas, apesar de não funcionarem para a maioria das pessoas, e no capítulo chamado “O Mundo dos Feitiços”, eu explico porquê.

Estou oferecendo este livro para ser publicado agora. Estou disposto a vender todos os direitos (exceto os direitos de filmagem; eu mesmo dirigirei o filme). Há fotos se vocês quiserem ver. Se estiverem interessados nesse livro (nenhum outro editor o viu, estou mandando a vocês porque são os editores de Casas Sangrentas, que é muito bom), por favor, responda com o envelope incluso. Eu mandarei o manuscrito com posta restante no caso de não gostarem (ou não entenderem-no). Por favor, responda o mais breve possível. Eu acho que “várias consultas” são antiéticas, mas quero vender True Tales of Demon Infestations o mais rápido possível. Há alguma “p***a assustadora” nesse livro! Se é que entendem o que eu quero dizer.

Sinceramente, Carlos Detweiller

147 E. 14th St., apto E

Central Falls, R.I. 40222

 

 

 

 

m e m o r a n d o i n t e r n o

 

para: Roger

de: John

ref.: submissions/ 11 – 15 de janeiro de 1981

 

Um novo ano, e os montes de neve derretida nunca foram tão grandes. Eu não sei o que o resto dos seus editores puxa-sacos anda fazendo, mas eu continuo rolando a “pedra existencial” dos aspirantes a escritores da América – pelo menos, a minha parte dela. Tudo isso é para dizer que eu li minha parte de matéria bruta esta semana (e não andei fumando o que W.C. Fields chamava de “o ilícito spon-duix” – apenas estou tendo um dia prolixo).

Com a sua concordância, mandei de volta manuscritos do tamanho de 15 livros, que chegaram sem ser pedidos (veja Devoluções, próxima página), 7 “esboços e exemplos de capítulos”, e 4 besteiras não identificáveis parecendo um pouco letra de forma. Um deles é um livro de alguma coisa chamada “evento poético gay”, intitulado Suck My Big Black Cock, e outro, chamado L’il Lolita, sobre um homem apaixonado por uma garota de primário. Eu acho. Estava escrito a lápis e é difícil ter certeza.

Também com sua concordância, pedi para ver rascunhos e exemplos de capítulos de 5 livros, incluindo o daquele genioso bibliotecário de Minnesota (os autores nunca bisbilhotam seus arquivos, certo, chefe? Habitualmente, seria uma avaliação superficial, mas o desempenho pobre de His Flaming Kisses não poderia ser justificado sempre por nosso horrível sistema de distribuição - por falar nisso, alguma notícia sobre o que acontece com o Sindicato dos Distribuidores?). Sinopses para seus arquivos (abaixo).

 

Por último, e provavelmente de menos, estou anexando uma estranha cartinha de questionamento de um Carlos Detweiller de Central Falls, Rodhe Island. Se eu estivesse na Brown University, planejando escrever grandes romances, e acreditando no equívoco de que editores devem ser brilhantes ou, pelo menos, “muito espertos”, eu jogaria fora a carta do Sr. Detweiller imediatamente. (Carlos Detweiller? Eu me pergunto se ouço sons de seu Rei ancestral – pode ser um nome real? Claro que não). Provavelmente, eu usaria pinças para segurar a carta, apenas para o caso da óbvia dislexia do homem ser contagiosa.

Mas dois anos na Zenith me mudaram, Roger. Os conceitos baixaram sob meus olhos. Você não consegue futuros pesos-pesados como Milton, Shakespeare, Lawrence, e Faulkner até ter almoçado no Burger Heaven com o autor de Rats from Hell ou ajudado a autora de Gash Me, My Darling a superar o seu actual bloqueio para escrever. Você começa a perceber que o grande edifício da literatura tem mais porcaria no subsolo do que você esperava quando fugiu do primeiro acesso em cima da cama (não, eu não andei fumando erva!).

Então, ok. Esse cara escreve como um aluno de primário ( todas as frases testemunhais – a carta dele tem a subtileza de um cara pesadão descendo escadas com botas de construção), mas isso é tão Olive Baker, e considerando nosso horrível sistema de distribuição, sua série Windhover vai muito bem.

A frase no primeiro parágrafo que diz que ele sabe todas essas coisas “em primeira mão” sugere que ele é maluco. Você sabe. A afirmação que ele vai dirigir o filme sugere que ele é um maluco com delírios de grandeza. Acho que ambos sabemos disso. Além disso, apesar do que ele afirma, cada casa editorial em Nova York viu True Tales of Demon Infestations. Já vai longe o tempo de lealdade a uma só empresa; nem mesmo um aluno regular do primário começaria pela Zenith. Acho que esta carta foi pacientemente reescrita e enviada pelo incansável (e provavelmente obsessivo) Mr. Detweiller no mínimo 40 vezes, começando por Farrar, Straus & Giroux, ou talvez por Alfred A. Knopf.

Mas eu acho que há uma possibilidade – extremamente frágil – que Mr. Detweiller tenha pesquisado suficiente material para realmente fazer um livro. Terá que ser reescrito, é óbvio – sua carta deixa isso extremamente claro - e o título fede, mas nos temos vários escritores em nossos arquivos que ficariam mais do que satisfeitos de fazer um trabalhinho como ghost-writer e ganhar $600 rapidinho. (Eu vi você estremecer– faça por $400. Provavelmente, a incansável Olive Baker seja o melhor deles. Também, acho que Baker tem uma queda por Valium. Viciados dão mais duro que pessoas normais, chefe, eu acho que você sabe. Pelo menos até morrerem, e Olive é durona. Ela não parece tão bem depois do derrame – eu odeio o jeito como o lado esquerdo da cara dela fica pendurado lá – mas ela é durona).

Como eu disse, as chances são pequenas, e sempre é um risco encorajar um louco tão óbvio, porque é tão difícil se livrar deles ( lembra do General Hecksler e seu livro Twenty Psychic Garden Flowers? Por um tempo eu pensei que o cara era realmente perigoso, e com certeza, ele é grande parte do motivo pelo qual o pobre Bill Hammer desistiu.) Mas realmente, Bloody Houses foi tão bem, e todo o resto – fotos desfocadas e tudo – veio da Biblioteca Pública de Nova York. Então, me diga: colocamos Carlos nos retornos ou pedimos a ele que envie uma sinopse e amostras de capítulos? Fale rápido, ó grande líder, o destino do universo está na balança.

John.

 

Do escritório do editor-chefe

 

Para: John Kenton

Data: 15/01/81

 

Mensagem: Por Deus, Johnny! Você nunca cala a boca? Esse memorando tem três páginas! Se você não estiver chapado, não tem desculpa. Rejeite a maldita carta, diga para esse Carlos Sei-lá-o-quê para mandar o manuscrito, compre um pónei para ele, o que você quiser. Mas me poupe da porra das suas teorias. Eu não aguento isso do Herb, Sandra ou Bill, e não vou aguentar de você. “Empurre a merda e cale a boca”, porque você não faz disso um lema?

Roger

 

P.S. Harlow Enders ligou de novo hoje – continuamos recebendo nossos salários por mais um ano pelo menos, parece. Depois, quem sabe? Ele diz que haverá um “realinhamento de posição” em Junho, e “uma total revisão da posição da Zenith no mercado” em Janeiro – eu menciono aquelas duas extensas frases pra dizer que nós podemos estar à venda em Janeiro a menos que nossa posição no mercado melhore, e graças ao nosso sistema de distribuição actual, eu não vejo como. Minha cabeça dói. Acho que eu tenho um tumor no cérebro. Por favor, não me mande mais memorandos tão longos.

 

P.P.S. L’il Lolita é agora um um título muito bom, você não acha? Poderíamos ganhar comissão. Estou pensando em, talvez, Mort Yeager, ele tem um dom pra esse tipo de coisa. Lembra-se de Teenage Lingerie Show? A garota em L’il Lolita podia ter onze anos, eu acho – a Lolita original não tinha 12?

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Re: possível tumor cerebral

 

Soa mais como uma dor de cabeça causada pela tensão. Tome 4 comprimidos e me ligue de manhã. A propósito, Mort Yeager está na cadeia. Receptação de coisas roubadas, eu acho.

John

 

Do escritório do editor-chefe

Para: John kenton

Data: 16/01/81

Mensagem: Você não tem nada para fazer?

Roger

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Re: falta de compaixão de um superior insensível.

Sim, vou escrever para Carlos Detweiller, o ganhador do Prémio Nacional do Livro do ano que vem.

John.

p.s. – Não se preocupe em me agradecer.

 

16 de Janeiro de 1981

Sr. Carlos Detweiller

147 E. 14th Street, apt. E

central Falls, Rodhe Island 40222

 

Caro Sr. Detweiller

Obrigado por sua interessante carta de 4 de Janeiro, com uma breve, mas intrigante descrição do seu livro True Tales of Demon Infestations. Eu gostaria de receber uma sinopse completa do livro, e peço que envie algumas amostras de capítulos (prefiro capítulos 1-3) junto. Ambos, a sinopse e a amostra devem ser datilografados e com espaço duplo, em papel branco de boa qualidade (não do tipo “apágavel”, onde o capítulo encontra um jeito de simplesmente desaparecer no correio).

Como você deve saber, Zenith é uma editora pequena, e nossa lista, actualmente, combina com seu estilo. Como só publicamos originais, analisamos uma grande quantidade de propostas; por sermos pequenos, as propostas que recebemos são, na maioria, devolvidas por não servir as nossas necessidades do momento. Esta é a maneira de lhe dizer que você não deve encarar esta carta como uma promessa de publicar seu livro, porque este, definitivamente não é o caso. Gostaria que você enviasse a sinopse e os capítulos com a ideia de que vamos rejeita-los. Assim, você estará preparado para o pior...ou terá uma agradável surpresa se nós acharmos que o livro serve para a Zenith.

Finalmente, aqui está o procedimento padrão, com o qual nosso departamento jurídico (e os departamentos jurídicos, até onde eu sei, de todas as editoras) insiste: você dever incluir um envelope de retorno adequado para assegurar-se de receber de volta seu manuscrito (por favor, não mande dinheiro para a postagem), você deve saber que a Zenith não aceita nenhuma responsabilidade pela segurança do retorno do seu manuscrito, apesar de tomarmos todos os cuidados, e que, como eu disse acima, nosso acordo em ver o livro não é um compromisso de publicação.

Aguardo receber notícias suas, e espero que esta o encontre bem.

 

Atenciosamente,

John Kenton

Associate Editor

Zenith House, Publishers

490 Park Avenue South

New York, New York 10017

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Re: após estudo mais detalhado…

...eu concordo. Eu escrevo demais. Anexada a este está uma cópia da carta para Carlos Detweiller. Parece a sinopse de The Naked and the Dead, não parece?

John

 

21 de Janeiro de 1981

Sr. John Kenton, Editor

Zenith House, Publishers

490 Park Avenue South

NewYork, NewYork 10017

 

Caro Sr. Kenton

Obrigado por sua carta de 16 de Janeiro, a qual acabo de receber. Estou enviando o manuscrito completo de True Tales of Demon Infestations amanhã. Meu dinheiro é pouco hoje, mas minha patroa, Sra Barfield, me emprestou 5 dólares para jogar na lotaria.

Cara, ela é maluca por aquelas raspadinhas!

 

Eu poderia lhe enviar uma “proposta de sinopse”, como você diz, mas não há sentido em fazer isso quando você pode ler por si mesmo. Como o Sr. Keen do meu prédio diz, “ Porque descrever uma pessoa quando você pode vê-la”. O Sr. Keen não tem nenhuma sabedoria profunda, mas ele diz coisas assim de tempos em tempos. Uma vez eu tentei instrui-lo (Sr. Keen) nos “mistérios profundos” e ele simplesmente disse, “Isso é coisa sua, Carlos”. Eu acho que você provavelmente concordará que este é um comentário bobo que apenas soa engenhoso.

Como não temos que nos preocupar com “proposta de sinopse”, usarei esta carta para contar um pouco sobre mim. Eu tenho 23 anos (apesar de todos dizerem que pareço mais velho). Trabalho na Floricultura Central Falls para a Sr. Tina Barfield, que conhecia minha mãe quando minha mãe ainda era viva. Eu nasci em 24 de março, o que faz de mim um ariano. As pessoas de Áries, como você sabe, são muito intuitivas, mas selvagens. Felizmente para mim, eu estou sob a “égide” de Peixes, que me dá o controle que eu preciso para lidar com o universo da intuição. Eu tenho tentado explicar isso para o Sr. Keen, mas ele só diz, “tem alguma coisa meio louca (fishy) em você, Carlos”, ele está sempre fazendo piadas e algumas vezes pode ser bastante irritante.

Mas chega de mim.

Eu tenho trabalhado em True Tales of Demon Infestations por 7 anos (desde os 16). Muitas das informações eu consegui em uma tábua “OUIJA”. Eu costumava fazer o OUIJA com minha mãe, a Sra. Barfield, Don Barfield (ele já morreu), e de algumas vezes com um amigo meu chamado Herb Hagstorm (também já morreu, coitado). De vez em quando, outros vinham se juntar ao nosso pequeno “círculo”. Nos velhos tempos, minha mãe e eu éramos bastante “sociais”!

Algumas das coisas que nós achamos na OUIJA estão descritas em “detalhes sangrentos” em True Tales of Demon Infestations: 1. O desaparecimento de Amélia Earhart foi realmente coisa de demónios! 2. Forças demoníacas agiram no H.M.S. Titanic. 3. “Tulpa” infestou Richard Nixon. 4. Haverá um Presidente vindo do ARKANSAS! 5. Mais.

Claro que isso não é “tudo”. “Não me esfrie, estou apenas esquentando”, como diz o sr. Keen. De muitas formas True Tales of Demon Infestations é como The Necronomicon, exceto que este ultimo é ficcional (escrito por H. P. Lovecraft, que também é de Rodhe Island), e o meu é verdade. Eu tenho estórias incríveis “lugares” de magia negra que eu freqüentei, tomando uma poção e voando até esses “lugares” através do éter (recentemente estive em Omaha, Neb., Flagstaff, Ariz., e Fall River, Mass., sem ter deixado “o conforto do meu lar”). Você provavelmente está se perguntando, “Carlos, isto quer dizer que você é um estudioso das ‘Artes negras’?” Sim, mas não se preocupe! Afinal, você é minha “conexão” para a publicação do meu livro, certo?

Como eu lhe disse em minha última carta, há também um capítulo “O mundo dos feitiços”, que muitas pessoas acharão interessante. Trabalhar numa floricultura tem sido especialmente bom para fazer feitiços, pois muitos requerem ervas frescas e plantas. Eu sou muito bom com plantas, a Sra. Barfield sempre diz isso, e agora estou cultivando umas muito “estranhas” nos fundos da loja. Provavelmente, é muito tarde para coloca-las nesse livro, mas o Sr. Keen às vezez me diz, “Carlos, a hora de pensar no amanhã é ontem”. Talvez pudéssemos fazer uma continuação, Strange Plants. Me diga o que você acha disso.

Vou terminar agora. Me avise quando receber o manuscrito (um cartão postal serve), e me abasteça, tão logo seja possível com royalties, etc. Eu posso ir a N.Y.C qualquer quarta-feira de trem ou de ónibus se você quiser ter um “almoço editorial” ou venha até aqui e eu o apresentarei à Sra. Barfield e ao Sr. Keen. Eu também tenho mais fotos além das que eu estou mandando. Estou feliz em tê-lo como editor de True Tales of Demon Infestations.

Seu novo autor,

Carlos Detweiller

147 E. 14th St., Apt. E

Central Falls, R.I. 40222

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Re: True Tales of Demon Infestations, de Carlos Detweiller

 

Acabei de receber uma carta de Detweiller em atenção ao sue livro. Eu acho que, convidando-o a mandar o livro, eu cometi o maior erro da minha carreira editorial. Oooh, minha pele está começando a doer...

 

Do escritório do editor chefe

Para: John Kenton

Data: 23/01/81

Você fez a cama. Agora deite nela. Afinal, sempre podemos ter um ghost-writer, certo? Hee-hee.

Roger

 

25 de Janeiro de 1981

Querida Ruth,

Eu sinto quase como se eu estivesse no meio de um maldito arquétipo – pedaços do New York Times de domingo pelo chão, um velho álbum de Simon e Garfunkel no estéreo, um Bloody Mary na mão. Chuva batendo na janela, fazendo tudo isso mais aconchegante. Estou tentando fazer você ficar com saudade de casa? Bem... talvez um pouco. Afinal, a única coisa faltando na cena é você, e você provavelmente deve estar além da arrebentação numa prancha de surfe enquanto eu escrevo essas palavras (e usando o menor biquíni que existe).

Na verdade, eu sei que você está trabalhando duro (talvez não tão duro) e eu tenho toda a confiança que o PhD será um teste difícil. Só que essa última semana foi um verdadeiro show de horrores para mim e eu tenho medo que vá piorar. Entre outras coisas, Roger me acusou de ser prolixo (bem, realmente foi na semana retrasada, mas você sabe o que eu quero dizer), e eu acho que outro ataque de prolixidade virá logo. Tente me aguentar, ok?

Basicamente, o problema é Carlos Detweiller (com esse nome não poderia ser outra coisa além de um problema, certo?) Ele está se tornando um pequeno problema, o velho Carlos, como veneno ou amígdalas, mas as duas coisas, conhecendo o problema são fáceis de resolver – apenas continuam enlouquecendo você.

Roger está certo – eu tenho uma tendência a ser prolixo, o que não é o mesmo que logorréia, eu acho. Vou tentar evitar isso.

Os fatos, então. Como você sabe, toda semana recebemos de 30 a 40 cartas “pela janela”. Uma “pela janela” nada mais é do que uma carta endereçada a “Senhores”, “Caro Senhor” ou “A quem interessar possa” – um manuscrito não solicitado. Bem, não são todos manuscritos; pelo menos metade delas são o que os caras do mercado editorial chamam de “query letters” (cansada de todas essas aspas? Você deveria ler a última carta de Carlos – isso a faria tira-las da sua vida para sempre).

De qualquer jeito, devem ser todas “query letters” se esse fosse o melhor dos mundos possíveis. Como 99% dos outros editores de Nova York, nós não lemos manuscritos que não solicitamos – pelo menos, essa é a nossa política oficial. Diz no Writer’s Market, Writer’s Yearbook, The Freelance, e The Pen Newsletter. Mas, aparentemente, um monte de aspirantes a Wolfes e Hemingways não os lêem – ou simplesmente os ignoram – escolha o que você quiser.

Na maioria dos casos nós pelo menos damos uma olhada, se está dactilografada (por favor não espalhe uma palavra disso ou nós vamos ser inundados por manuscritos e Roger provavelmente vai me matar – ele está perto disso, eu acho). Afinal, Ordinary People veio como uma “pela janela” e primeiro foi lido por um assistente editorial que reconheceu que era uma história boa para burro. Mas isso, é claro, é uma em um milhão. Eu nunca vi um manuscrito não solicitado que parecesse mais do que o trabalho de algum aluno da quinta-série. Claro que a Zenith é mais pesada que Alfred A. Knopf (nosso sucesso de fevereiro é Scorpions from Hell,, de Anthony L. K. LaScorbia, o follow-up dele para Rats from Hell), mas, mesmo assim...paciência...

Detweiller, pelo menos, seguiu o protocolo e mandou uma “query letter”. Herb Porter, Sandra Jackson, Bill Gelb e eu dividimos aquilo que vem na semana anterior toda segunda-feira, e eu tive a infelicidade de pegar essa. Depois de ler e digerir na minha cabeça por 25 minutos (tempo bastante para escrever a Roger um extenso memorando sobre o assunto, nas circunstâncias, eu provavelmente nunca vou viver muito), escrevi a Detweiller pedindo que ele enviasse algumas amostras de capítulos e uma ideia do resto. E, na última sexta-feira, recebi uma carta que...bem, não sei como descrever. Ele parece ser um assistente de florista de 23 anos, de Central Falls, com uma fixação pela mãe e a convicção de que pode estar presente em todos os encontros de bruxas da América enquanto viaja na maionese, ou coisa assim.

Acho que True Tales of Demon Infestations, de Carlos (eu acho que só título tem o poder de me deixar pálido) deve ser um hobby de pesquisa de adolescente – algo que poderia ser cortado e espremido e vendido para o público de Amityville

Horror. Sua primeira carta era curta, veja você, e tão cheia dessas pequenas frases – sujeito-predicado, sujeito-predicado, ora, ora, obrigado, senhora – que qualquer um podia acreditar. E apesar de não ter tido nenhuma ilusão de que o cara fosse um escritor, eu tive a presunção de achar que a literatura marginal estava acabada era totalmente infundada. Na verdade, pensar na primeira carta de Detweiller me faz imaginar como eu pude ter achado que há um certo charme na margem...é, eu vejo que sim...

E daí? Você está dizendo. Grande coisa. Dê uma olhada no manuscrito do babaca quando chegar e então mande de volta com uma carta padrão – “Editora Zenith agradece”, etc. Está certo...mas, está errado, também. Está errado porque caras como Carlos Detweiller acabam se tornando um caso de piolho — fácil de pegar, a coisa mais difícil de se livrar. O pior disso tudo, eu mencionei isso enfaticamente, a Roger em meu extenso memorando sobre o livro, lembrando o General Hecksler e seu Twenty Psychic Garden Flowers – você deve se lembrar de eu te contar como ele nos bombardeou com suas cartas registradas e telefonemas depois de rejeitarmos o livro dele (você talvez não saiba sobre o telegrama que Herb Porter recebeu dele – nele Hecksler se refere a Herb como “O Judeu Marcado”, uma referência que nenhum de nós se lembra hoje em dia). Foi muito insultante, e logo antes, a irmã dele tinha internado ele num manicómio fora do estado, Sandra Jackson me confessou que estava ficando com medo de ir para casa sozinha – disse que tinha medo que o General pulasse da escuridão com uma faca em uma das mãos e um buquet de flores na outra. Ela disse que o pior é que nenhum de nós tinha a menor ideia da aparência dele - nós tínhamos exemplos escritos ao invés de um instantâneo para identifica-lo.

E é claro que isso soa divertido agora, mas não foi engraçado quando aconteceu – foi só depois que a irmã dele escreveu-nos que nós achamos que realmente éramos uma das suas obsessões, e é claro que ele não era mais perigoso; assim pensou o motorista que ele esfaqueou.

Eu sabia tudo isso – até mencionei ao Roger – e ainda assim, fui em frente e pedi a Detweiller que mandasse o livro.

Claro, a outra coisa (e me conhecendo como você me conhece, você provavelmente já adivinhou), é simples – me aborrece ter feito uma burrada tão grande. Se um bozo iletrado como Carlos Detweiller pode me tapear desse jeito (eu acho que o livro dele pode ser reescrito, juro, mas isso não é desculpa), quanta coisa boa eu estou perdendo? Por favor, não ria; é sério. Roger está sempre me gozando pelas minhas “aspirações literárias”, e eu suponho que ele tenha razão (nenhum progresso no meu romance esta semana, se você quer saber – essa coisa de Detweiller me deixou muito deprimido), considerando onde o antigo líder da Brown University Milton Society chegou (chegou ao ponto de encorajar Anthony La Scorbia a acertar o trabalho de seu mais novo épico, Wasps from Hell, por exemplo). Mas eu acho que ficaria feliz em aceitar 6 meses de cartas do obviamente louco Carlos Detweiller, completadas com veladas ameaças que se tornam menos e menos veladas a cada carta, se eu apenas pudesse ter certeza que eu não deixaria nenhuma boa oportunidade por causa de uma resposta negativa.

Eu não sei se isso é mais ou menos idiota, mas Roger mencionou em dos seus Famosos memorandos que a Apex Corporations deixará a Zenith pelo menos mais um ano para parar de chutar cachorro morto e começar a mostrar alguma venda. Ele soube das novidades com Harloe Enders, o chefe da Apex que controla Nova York, então, presumivelmente, devem ser verdadeiras. Eu acho que são boas notícias, considerando que não há nada em publicação no escritório por esses dias, nem mesmo um daqueles best sellers da série Macho Man e cujo maior problema são os espiões fazendo cópias para que os estúdios de cinema possam ver antes. Isso pode não ser tão bom, quando você pensa em quão pouco dinheiro nós temos para gastar (talvez você mereça pegar os Carlos Detweillers do mundo quando tudo o que você pode oferecer como adiantamento de royalties é $ 1.800) e a merda que é a nossa distribuição. Mas ninguém na Apex entende de livros ou do mercado de livros – eu duvido que alguém lá saiba porque eles pegaram a Zenith o ano passado, excepto por ter sido vendida tão barato.

As chances de que possamos melhorar nossa posição (2% do mercado, décimo quinto lugar em quinze) no próximo ano não é muito alta. Pode ser que a gente acabe se casando na Califórnia, hein, baby?

Bem, no fim de tudo e de todos – eu vou enviar esta e voltar ao trabalho no meu livro amanhã – e a próxima carta que eu te escrever vai estar cheia de novidades. Devo pedir ao Carlos para mandar umas flores para você de Central Falls?

Esqueça que disse isso.

Meu amor,

John

p.s. – E diga a sua colega de quarto que eu não acredito que fazer “o maior Frisbee do mundo” não é mérito nenhum, Guiness Book ou não. Por que você não pergunta a ela se ela não estaria interessada em bater o recorde mundial de permanência numa banheira de espaguete? O primeiro que conseguir esse prêmio ganha uma viagem com tudo pago para Central Falls, Rhode Island...

 

Memorando interno

 

Para: Roger

De: John

Re: True Tales of Demon Infestations, de Carlos Detweiller

 

O manuscrito de Detweiller chegou esta manhã, enrolado em sacos plásticos, amarrado com barbantes (a maioria quebrados), e aparentemente dactilografado por alguém com sérios problemas motores. É muito pior do que eu temia – abismal, além das expectativas.

Isso poderia e deveria ser o fim de tudo, mas algumas fotos foram incluídas e são intensamente perturbadoras, Roger – e isso não é uma piada, então não trate como se fosse. Elas são um estranho aglomerado de fotos em preto e branco (tiradas com uma Nikon, eu acho), slides coloridos (Nikon de novo), e instantâneos de Polaroid SX-70. A maioria delas é ridícula – homens e mulheres de meia idade usando roupões negros com desenhos cabalísticos costurados ou homens e mulheres de meia idade sem nada, mostrando pelancas, peitos caídos e barrigas salientes. Eles parecem exactamente como você pode imaginar que os caras de Cental Falls imaginariam uma missa negra (em algumas das fotos, há um homem bem mais jovem, Detweiller provavelmente – as fotos dele são sempre de perfil ou seu rosto está coberto por uma sombra) e o lugar parece, na maioria das vezes, ser uma floricultura – associado com a loja de flores onde detweiller disse que trabalha, eu imagino.

Há um pacote de seis fotos, etiquetado como “The Sakred Seance” que mostra manifestações plasmáticas tão obviamente falsificadas (que parece ser um balão pintado flutuando com as digitais do médium).

Um terceiro pacote de fotos (todos instantâneos da SX-70) são naquele género “evidência”, fotos de várias plantas com rótulos que dizem “dama da noite”, belladonna, “cabelo de virgem”, etc.(é impossível pra mim dizer se as etiquetas são verdadeiras – eu não sei distinguir um pinheiro de um eucalipto sem ajuda, Ruth provavelmente saberia).

Ok, a parte perturbadora. Algumas das fotos (4, para ser preciso) da “missa negra” mostram um sacrifício humano – e, para mim, parece que talvez eles realmente mataram alguém. A primeira foto mostra um velho com uma expressão extremamente realista de terror no rosto deitado numa mesa na floricultura. Várias pessoas de roupão o estão segurando. O homem mais jovem que eu presumo que seja Carlos Detweiller está em pé a esquerda, nu, com o que parece ser uma faca. O segundo mostra a faca atravessando o peito do velho, na terceira, o suposto Detweiller está mexendo na cavidade do peito; na última ele está segurando uma coisa pingando para os outros verem. A coisa pingando parece muito com um coração humano.

As fotos poderiam ser uma completa fraude, e eu seria o primeiro a admitir isso – qualquer especialista em efeitos visuais poderia produzi-las, eu suponho, especialmente em sequência... mas o esforço para iludir nas outras fotos é tão dolorosamente óbvio que eu imagino que pode ser.

Só olhar para elas é o suficiente para me fazer sentir arrepios, Roger – nos deparamos com um bando de pessoas que realmente praticam sacrifícios humanos? Assassinatos em massa, talvez? Estou enjoado, mas muito mais apavorado do que jamais estive. Eu poderia ter dito tudo isso a você pessoalmente, claro, mas parece que ganha importância se for escrito, para o caso de isso vir a se tornar um caso judicial. Cristo, eu queria nunca ter ouvido falar nesse maldito Carlos Detweiller.

Desça aqui e venha dar uma olhada nelas assim que for possível, ok? Eu só não ser se eu pego o telefone e ligo para a polícia de Central Falls ou não.

John

 

JONH KENTON, formado em Inglês pela Brown University, e que foi presidente da Sociedade Literária, está tendo um duro despertar no mundo real: ele é um dos quatro editores da Zenith House, uma editora caindo aos pedaços em Nova York. Zenith tem 2% do mercado editorial e a décima quinta entre as 15 editoras. Todos os funcionários da Zenith estão preocupados que a Apex, a matriz, decida colocar a Zenith a venda se não houver retorno de investimento no ano calendário de 1981...e, com o pobre sistema de distribuição da Zenith, isso parece improvável.

Em 4 de janeiro de 1981, Kenton recebe uma “query letter” de CARLOS DETWEILLER. De Central Falls, Rodhe Island. Detweiller, 23 anos, trabalha numa floricultura em Central Falls, e está oferecendo um livro que ele escreveu chamado True Tales of Demon Infestations. É óbvio para Kenton que Detweiller absolutamente não tem talento nenhum como escritor... excepto que nenhum dos escritores da lista da Zenith tem (maior sucesso: a série Macho Man). Ele encoraja Detweiller a mandar exemplos de capítulos e um resumo. Ao invés, Detweiller manda o trabalho completo, que é muito pior do que Kenton – que achava que o livro poderia ser cortado, reescrito, e condensado para o público de The Amityville Horror – poderia acreditar em seus piores pesadelos.

Ainda que o pior pesadelo seja as fotos que Detweiller incluiu. Algumas muito falsas, mas uma série de quatro mostrando um sacrifício humano extremamente realista, no qual o peito de um velho está aberto e um coração humano pingando sangue é puxado para fora da incisão.

A estória, contada no estilo de cartas, é resumida numa carta de John Kenton para sua noiva RUTH TANAKA, que está na Califórnia, tirando seu PhD.

 

30 de Janeiro de 1981

Querida Ruth,

Sim, foi bom falar com você ontem à noite, também. Mesmo estando do outro lado do país; eu não sei o que fazer sem você. Eu acho que esse tem sido o pior mês da minha vida, e sem você para conversar e sem seu apoio, eu não sei como vou passar por isso. O terror e a repulsa iniciais por aquelas fotos foram ruins, mas eu descobri que posso lidar com o terror – e Roger pode estar preso àquela interpretação dele de algum rabugento editor numa história de Damon Runyon (ou talvez, aquilo que Bem Hecht representa), mas o engraçado, é que ele realmente tem um coração de ouro. Quando toda aquela merda chegou, ele foi uma rocha – seu apoio foi incondicional.

Terror é ruim, mas a sensação de você ter sido uma anta é muito pior, eu descobri. Quando você está com medo, você pode voltar a ter coragem. Quando você é humilhado, acho que você só pode ligar para sua noiva e desabar no ombro dela. Tudo que estou dizendo, eu acho, é obrigado – obrigado por estar lá e obrigado por não rir... ou não me chamar de velha histérica com medo da própria sombra.

Eu dei um último telefonema ontem a noite, depois de falar com você – para o Chefe Barton Iverson do Departamento de Polícia de Central Falls. Ele também foi notavelmente solícito, mas antes de eu lhe dar o final disto, deixe-me tentar clarear a sequência de acontecimentos que se seguiram após o recebimento do manuscrito de Detweiller na quarta-feira passada. Sua confusão é justificável – eu acho que posso ser um pouco mais claro agora que eu tive uma noite de sono (e sem nenhuma campainha no ouvido, gastando meu salário de merreca!).

 

Acho que eu já contei a você que a reação de Roger as “fotos do sacrifico foram ainda mais fortes e imediatas que as minhas. Ele desceu ao meu escritório como um foguete, deixando dois distribuidores esperando (e, como eu acredito que Fannery O’Connor disse uma vez, um bom distribuidor é difícil de encontrar), e quando eu mostrei as fotos a ele, ele ficou pálido, pôs a mão na boca, e começou a fazer uns barulhos de engasgo, então acho que você pode adivinhar que eu estava mais certo do que errado sobre a qualidade daquelas fotos (considerando do que elas tratam, “qualidade” é uma palavra estranha para ser usada, mas a única que parece servir).

Ele ficou um ou dois minutos pensando, então disse que era melhor chamar a polícia em Central Falls – mas não dizer nada para mais ninguém.

“Elas ainda podem ser falsas”, ele disse, “mas é melhor não apostar nisso. Coloque-as num envelope e não toque mais nelas. Podem ter impressões digitais.”

“Elas não parecem falsas”, eu disse. “Parecem?”

“Não”

Ele voltou aos distribuidores e eu chamei os tiras em Central Falls – minha primeira conversa com Iverson. Ele ouviu toda a minha história e pegou meu número de telefone. Ele disse que me ligaria de volta em cinco minutos, mas não me disse porque.

Em três minutos, mais ou menos, ele retornou. Ele me pediu para levar as fotos até o 31º Distrito na 140 Park Avenue South, e que a polícia de Nova York enviaria as “fotos do sacrifício” para Central Falls. “Nós devemos tê-las por volta das três desta tarde”, ele disse. “Talvez antes”.

Eu perguntei o que ele pretendia fazer até lá.

“Não muito”, ele disse. “Estou mandando um policial à paisana rodear esta Loja de Flores e tentar ter certeza se Detweiller ainda trabalha lá. Espero fazer isso sem levantar suspeitas. Até que eu veja as fotos, Sr. Kenton, isso é tudo que posso fazer.”

Tive que morder a língua para não dizer que havia muito mais que ele podia fazer. Eu não queria ser dispensado como um típico nova-iorquino esnobe, e eu não queria que o camarada se irritasse comigo. E lembrei a mim mesmo que Iverson não tinha visto as fotos. Sob as circunstâncias, acho que ele estava indo o mais rápido que podia com base no telefonema de um estranho – um estranho que poderia ser um maluco.

Eu consegui dele a promessa de que ele me ligaria tão logo recebesse as fotos, e então eu iria pessoalmente ao 31º. Eles estavam me esperando; um Sargento Tyndale me encontrou na recepção e pegou o pacote com as fotos. Ele também me fez prometer que eu ficaria no escritório até ter notícias deles.

“O Chefe de Polícia de Central Falls –“

“Não ele”, disse Tyndale, como se estivesse falando com um macaco treinado.

“Nós”.

Todos os filmes e livros estão certos, querida – não demora muito até você começar a se sentir um criminoso. Você espera que alguém vire uma luz brilhante na sua cara, coloque uma perna em cima de uma mesa velha, se encoste, sopre fumaça de cigarro na sua cara e diga “Ok, Carmody, onde você colocou os corpos?” Eu posso rir disso agora, mas com certeza, não estava rindo então. Eu queria que Tyndale desse uma olhada nas fotos e me dissesse o que achava – eram ou não eram autenticas – mas ele me deixou com outro lembrete para “ficar por perto”, assim dizia ele. Começou a chover e eu não consegui achar um táxi e pelo tempo que eu andei os sete quarteirões de volta a Zenith House, eu fiquei encharcado. Eu também tinha comido metade de um rolo de Tums. Roger estava no meu escritório. Perguntei se os distribuidores já tinham ido, e ele balançou a mão. “Mandei um para o Queens e outro para o Brooklyn” ele disse. “Inspirador”. Eles venderão outras 50 cópias de Ants from Hell entre eles. Babacas.” Ele acendeu um cigarro. “O que os tiras disseram?”

Eu disse a ele o que Tyndale me dissera.

“Agourento”, ele disse. “Fudidamente agourento.”

“Elas pareciam reais, não pareciam?”

Ele considerou isso, então assentiu. “Reais como a chuva.”

“Bom.”

“O que você quer dizer com bom? Não há nada de bom em nenhuma delas.”

“Eu só quis – “

“Sim, eu sei o que você quis”. Ele levantou, balançou as pernas das calças como sempre faz, e me disse para ligar se eu tivesse alguma notícia. “E não diga nada a mais ninguém.”

“Herb veio dar uma olhada umas duas vezes,” eu disse. “Acho que pensa que você vai me demitir.”

“A idéia tem seus méritos. Se ele perguntar, você –“

“Minto.”

“Certo”.

“É sempre um prazer mentir para Herb Porter”.

Ele parou na porta, começou a dizer alguma coisa, e então, Riddley, o garoto da correspondência, veio trazendo uma cesta de manuscritos rejeitados,

“Cê tava aqui a manhã toda, Seu Adler,” ele disse. “Cê vai dispidi o Seu Kenton?”

“Saia daqui, Riddley,” Roger disse, “e se você não parar de ofender sua raça inteira com esse sotaque nojento, eu vou despedir você!”

“Tá, Seu Adler!” Riddley disse, e pegou a cesta novamente. “Tô ino! Tô ino!”

Roger olhou para mim e girou os olhos em desespero. “Tão logo você saiba...”, repetiu e se foi.

Eu soube do Chefe Iverson logo à tarde. Seu homem tinha garantido que Detweiller estava na floricultura, trabalhando como sempre. Ele disse que a floricultura era uma grande fachada na rua que desce “morro abaixo” (frase de Iverson). Seu homem foi até lá, comprou duas rosas vermelhas, e saiu. A Sra. Tina Barfield, a proprietária de acordo com os documentos da Prefeitura, o atendeu. O cara que realmente pegou, cortou e embrulhou as flores, usava um crachá com a palavra CARLOS escrita. O homem de Iverson descreveu-o como tendo mais ou menos 25 anos, escuro, bem apessoado, decente. O homem disse que ele parecia muito reservado, não sorria muito.

Há um enorme jardim atrás da loja. O homem de Iverson comentou isso e a Sra. Barfield disse a ele que era tão vasto quanto o quarteirão, ela disse que eles o chamavam de “pequena selva”.

Perguntei a Iverson se ele já tinha recebido as fotos. Ele disse que não, mas queria me confirmar que Detweiller estava lá. Só sabendo que isso ia me trazer algum alívio – eu não me importo de contar a você, Ruth.

Então, aqui estamos, Ato III, cena I, e o enredo fica doentio, como se costuma dizer. Recebi uma ligação do sargento Tyndale, do 31º distrito. Ele me disse que Central Falls tinha recebido as fotos, que Iverson tinha dado uma olhada, e tinha mandado trazer Carlos para interrogatório. Tyndale queria que eu descesse até o 31º para dar um depoimento. Eu deveria levar o manuscrito de Demon Infestations comigo, e toda minha correspondência com Detweiller. Eu disse que ficaria feliz em ir até o 31º assim que eu falasse com Iverson novamente; de facto, eu estava pensando em pegar o trem na Penn Station e ir direto para lá –

“Por favor, não ligue para ninguém”, Tyndale disse, “e não vá a lugar nenhum – nenhum, Mr. Kenton – até você colocar os seus pés aqui e dar um depoimento.”

Passei o dia me sentindo chateado e no limite. A condição dos meus nervos estava ficando pior em vez de melhorar, e eu me imaginei sendo esbofeteado pelo cara. “Você fala como se eu fosse suspeito.”

“Não”, ele disse. “Não, Sr. Kenton”. Uma pausa. “Nada por enquanto.” Outra pausa. “Mas ele mandou as fotos para você, não foi?”

Por um momento eu fiquei tão embasbacado que eu só podia mover minha boca como um peixe. Então eu disse, “Mas eu expliquei isso.”

“Sim, explicou. Agora venha até aqui e explique para os arquivos, por favor.” Tyndale desligou, deixando um sentimento de raiva e meio que existencial – mas eu estaria mentindo Ruth, se eu não dissesse que a maior parte do que eu sentia era medo – eu tinha viajado muito, na minha cabeça, e ainda estava.

“Cê tá cum problema com a lei, Seu Kenton?”ele sussurrou quando eu passei – eu te digo, Ruth, isto em nada melhorou minha paz de espírito.

“Não!” eu disse, tão alto que duas pessoas que vinham passando me olharam.

“Que se tivé, meu primo Edie é o mió advogado. Ô, si é!”

“Riddley”, eu disse, “onde você fez faculdade?”

“Cornell, Seu Kenton, e foi a mió!” Riddley riu, mostrando dentes mais brancos que teclas de piano (e tão numerosos quanto, fico tentado a acreditar).

“Se você foi a Cornell”, eu disse, “porque, em nome de deus, você fala desse jeito?”

“Qui jeito qui é esse, Seu Kenton?”

“Deixa pra lá”, eu disse, consultando o relógio. “Eu sempre gosto de ter uma dessas discussões filosóficas com você, Riddley, mas eu tenho um compromisso e preciso correr.”

“Tááá!” Ele disse, mostrando aquele indecente sorriso de novo. “E se cê quisé o telefone do meu primo Eddie – “

Mas eu tinha escapado para o corredor. É sempre um alívio se livrar do Riddley. Eu suponho que seja horrível dizer isso, mas eu queria que Roger o despedisse – eu olho aquele enorme sorriso de piano e, Deus me ajude, eu imagino se Riddley não fez um pacto de beber sangue de homens brancos quando o fogo vier da próxima vez. Junto com seu primo Eddie, é claro.

Bem, esqueça tudo isso – eu estou batucando as teclas da máquina por mais de uma hora e meia, e isso está começando a parecer uma novellete . Eu vou melhorar e correr com o resto. Então...Ato III, Cena II.

Cheguei a delegacia, atrasado e encharcado de novo – não achei táxi e a chuva se tornara um temporal. Só uma chuva de janeiro em Nova York pode ser tão fria (A Califórnia começa a parecer melhor a cada dia, Ruth!).

Tyndale deu uma olhada em mim, ofereceu-me um pequeno sorriso sem humor, e disse: “Central Falls acaba de soltar seu autor. Nada de táxis, hein? Nunca há quando chove”.

“Então eles soltaram Detweiller?”, perguntei, incrédulo. “E ele não é nosso autor. Eu não tocaria nele nem com uma luva de boxe”.

“Bem, não importa o que ele seja, a coisa toda não passa de uma tempestade em copo d’água”, ele disse, me estendendo aquilo que deve ter sido o pior café que eu já tomei em toda a minha vida.

Ele me levou para um escritório vazio, algo como uma condescendência – senti que os outros ali estavam se lixando para o editor prematuramente careca, mas muito perto do consenso.

Para fazer uma longa história mesmo longa, mais ou menos 45 minutos depois que as fotos chegaram, e 15 minutos depois de Detweiller ter chegado (não algemado, mas ladeado por dois homens fortes de azul), o agente a paisana que tinha sido despachado para a floricultura depois da minha ligação chegou. Ele tinha estado do outro lado da cidade toda a tarde.

Eles deixaram Detweiller sozinho numa pequena sala de interrogatório, Tyndale me contou, para amaciá-lo – fazê-lo pensar em todas aquelas coisas nojentas.

O homem a paisana que tinha ido verificar se Detweiller realmente trabalhava na loja de flores estava olhando as “fotos do sacrifício” quando o chefe Iverson chegou ao seu escritório e o levou para a sala de interrogatório onde estava Detweiller.

“Jesus”, o homem disse a Iverson, “isso parece quase real, não parece?”

Iverson parou. “Você tem alguma razão para acreditar que não seja?”, ele perguntou.

“Bem, quando eu fui até a loja de flores esta manhã para checar Detweiller, esse cara recebendo uma cirurgia cardíaca informal estava sentado lá, num canto, jogando paciência e assistindo Ryan’s Hope na TV.”

“Você tem certeza?” Iverson perguntou.

O homem a paisana bateu na primeira das “fotos do sacrifício”, onde se via o rosto da “vítima” claramente. “Sem erro”, ele disse. “Esse cara”.

“Por que, em nome de Deus, você não disse que ele estava lá?” Iverson gritou, sem dúvida com a imagem de Detweiller dando queixa de prisão indevida dançando em sua cabeça.

“Porque ninguém me perguntou sobre esse cara”, disse o detetive, veemente. “Eu fui verificar Detweiller, o que eu fiz. Se alguém tivesse me pedido para verificar esse cara, eu teria. Ninguém pediu. Tchau”. E ele foi embora, deixando Iverson segurando o pacote.

Então era isso.

Tyndale olhou de volta para mim.

Por um momento ou dois ele amoleceu. “Por pior que seja, Sr. Kenton, aquela foto em particular parecia real...real pra caramba. Mas tem esses efeitos em muitos daqueles filmes de terror. Tem um cara – Tom Savini – e os efeitos que ele faz – “

“Então o deixaram ir.” O medo estava emergindo na minha cabeça, como um daqueles submarinos russos que os suecos nunca são capazes de capturar.

“Por pior que seja, seu rabo está coberto por três pares de cuecas e 4 pares de calças, no meio, 2 jogos de ferro” Tyndale disse, e acrescentou, com uma seriedade que era positivamente Alexander Haigian: “Estou falando como um conselheiro legal, você entende. Você agiu de boa fé, como um cidadão. Se o cara pudesse provar malícia, seria alguma coisa...mas, diabos, você nem conhece o cara.”

O submarino subiu um pouco mais. Porque eu senti como se acabasse de conhecê-lo, Ruth, e meus sentimentos sobre Carlos Detweiller não eram e não são agora nada que eu possa descrever como alegria ou bondade.

“Além disso, nunca um informante quer processar por falsa prisão – é o policial que vem e lê os direitos e os pega no centro num carro sem maçanetas nas portas traseiras”.

Informante. Aquela era a fonte do medo. O submarino estava agora flutuando na superfície como um peixe à luz da lua. Informante. Eu não diferenciaria Carlos Detweiller de uma begónia..., mas ele sabia algo sobre mim. Não que eu tinha sido líder de literatura na Brown University, nem que eu estava ficando prematuramente careca, ou que eu estava noivo de uma linda senhorita da Pasadena chamada Ruth Tanaka...nenhuma dessas coisas ( e, por favor Deus, não meu endereço de casa, nunca meu endereço de casa), mas ele sabe que eu sou o editor por causa de quem ele foi preso por um homicídio que não cometeu.

“Você sabe”, perguntei, “se Iverson ou alguém do departamento de Polícia de Central Falls mencionou meu nome para ele?”

Tyndale acendeu um cigarro. “Não”, ele disse”, mas estou certo de que ninguém fez isso”.

“Por que não?”

“Seria antiético. Quando você está abrindo um caso – mesmo um que acaba tão rápido quanto esse – qualquer nome que o cara não saiba ou não deva saber, vira um jogada de risco.

Nenhum alívio que eu já senti foi tão curto.

“Mas o cara tinha que ser muito burro para não saber. Ao menos, ele mandou as fotos para todos os editores de Nova York. Acha que ele fez isso, não?”

“Não”, eu disse desanimado. “Nenhum outro editor em Nova York teria respondido a primeira carta dele, em primeiro lugar”.

“Entendo”.

Tyndale levantou, limpando as xícaras de café usadas, fazendo aqueles gestos de acabou-a-festa que significam que ele queria que eu pusesse um ovo no sapato e batesse.

“Mais uma pergunta e eu o deixarei ir”, ele disse. “As outras fotos eram obviamente falsas. Como elas parecem tão ruins e essas outras falsas parecem tão boas?”

“Talvez Detweiller tenha feito ele mesmo as fotos ‘Sakred Seance’ e alguém mais – o Tom Savini de Central Falls – tenha feito a ‘vítima do sacrifício’. Ou talvez Detweiller tenha feito todas e propositadamente tenha feito as outras parecerem tão ruins para você levar essas mais a sério”.

“Porque ele faria isso?”

“Então você tentaria ir mais fundo, talvez”.

“Mas ele foi preso no processo!”

Ele me olhou, quase pesaroso. “Aqui está um cara num bar, Sr. Kenton, e ele tem uma dessas bombinhas de cigarro. Só de piada, ele coloca uma delas no cigarro de um amigo, quando este está no banheiro ou colocando uma música. Para ele parece a ideia mais engraçada do mundo na hora, mesmo achando que o senso de humor do amigo só comece quando a bombinha explode no cigarro de outro, e o cara está fazendo tudo sabendo disso. Então, o camarada volta, e logo vai pegar o “carregado”. Ele dá duas tragadas e Ka-bang! Tabaco por toda a cara, pólvora nos dedos, e ele derrama a cerveja no colo. E o seu amigo – seu ex-amigo – está sentado no banco do lado, tendo um ataque de riso. Você vê tudo isso?”

“Sim”, eu disse relutante, porque eu via.

“Agora o cara que carregou o cigarro não era um fraco, apesar de eu achar que minha avaliação de um cara que se diverte explodindo cigarros na cara dos outros é que ele é deve ser um pouco deficiente no departamento de senso de humor. Mas mesmo se seu senso de humor comece com algum cara que se assuste e derrame cerveja nas bolas, você pensaria que se o cara estivesse interessado apenas em manter os dentes dentro da boca, não faria isso. Mas eles fazem. Todo o tempo. Agora, sendo um homem literato –“

(Ele obviamente não sabia sobre Gash Me, My Darling, Ants from Hell, e Flies from Hell, Ruth)

“– pode me dizer por que ele segue em frente, e termina perdendo os dentes num bar?”

“Porque não tem perspectiva de futuro”, eu disse abatido, e pela primeira vez, Ruth, eu senti como se eu realmente pudesse ver Carlos Detweiller.

“Hã? Eu não conheço essa expressão”.

“Ele não sabe – ele não é capaz de olhar para frente.”

“Sim, você é um literato, certo. Eu não poderia ter dito desta maneira nem em mil anos.”

“E a minha resposta?”

“Esta é a sua resposta”. Ele bateu no meu ombro e me guiou até a porta. “Vá para casa, Sr. Kenton. Tome um drinque, uma bom banho e outro drinque. Veja televisão. Durma. Você fez seu dever de cidadão, pelo amor de Deus. A maioria das pessoas teria simplesmente deixado aquelas fotos de lado…ou guardado em seus cadernos de rascunho. Soa estranho, mas eu sou um policial, não um literato, e eu sei que a maioria das pessoas faz isso também. Vá para casa. Esqueça isso. Contente-se mesmo com isso – se o livro do cara é tão ruim quanto você diz, apenas mande para ele uma daquelas malditas cartas de rejeição.”

Então eu fiz exactamente o que ele disse, querida – fui para casa, tomei um drinque, fiz uma refeição, tomei outro drinque, assisti TV, fui para a cama. Então, depois de três horas sem conseguir dormir – eu continuava vendo a foto, com o corte no peito e o coração pingando – levantei, tomei mais uns três drinques, assisti um filme de John Wayne chamado Wake of the Red Witch na TV (John Wayne fica muito melhor num capacete de soldado do que num de mergulhador, eu queria dizer a você), fui para a cama de novo, e acordei de ressaca.

Isso foi há uns dois dias, e eu acho – acho – que as coisas estão voltando ao normal, na Zenith House e na minha cabeça. Eu acho (acho) que acabou – mas está se tornando um daqueles incidentes que vão me assombrar pela vida inteira, eu acho, como os sonhos que eu costumava ter quando criança, nos quais eu parava para fazer a saudação à bandeira e minhas calças caíam. Ou, melhor que isso, há uma coisa que Bill Gelb, meu ilustre co-editor na Zenith, me contou. Ele disse que contou esta piada a um cara num coquetel: Como você faz para impedir que cinco caras negros estuprem uma garota branca? Resposta: Dando-lhes uma bola de basquete.

“Eu pensei que o cara para quem eu contei a piada fosse dar uma boa risada, até ele jogar seu drinque na minha cara e ir embora”, Bill disse. Este é o tipo de história que eu jamais contaria, sendo uma das razões pelas quais eu ainda não perdi o respeito por Bill, apesar dele ser um lerdo, um preguiçoso, um babaca. Tudo isso é para dizer que me sinto um pouco como um babaca...mas, pelo menos, acabou. Se tudo isso parece fazer de mim um histérico – alguém que parece ter testemunhado os julgamentos de bruxas em Salem – por favor, me escreva e rompa nosso noivado de uma vez...porque, se este é o caso, eu também não ia querer casar comigo.

Por mim, meio que me apego no que Tyndale disse – que eu agi como um cidadão de boa fé. A única coisa que eu não vou fazer é mandar as fotos para você, que não vieram de volta hoje. Elas lhe dariam toda a espécie de sonho que eu tenho tido – e esses sonhos são definitivamente ruins. Cheguei a conclusão de que todos aqueles efeitos especiais são de cirurgiões frustrados. De fato, se Roger deixar, eu vou queimá-las.

Eu te amo, Ruth.

Seu adorável babaca, John.

 

Do escritório do editor-chefe

Para: John Kenton

Data: 02/02/81

MENSAGEM: Vá em frente e queime-as. Nunca mais quero ouvir falar em Carlos Detweiller novamente.

Ouça, John – algum excitamento é bom, mas se nós não começarmos alguma acção aqui na Zenith, todos estaremos procurando emprego. Ouvi que a Apex está procurando compradores. O que é como procurar por pássaros dodos ou pterodátilos. Nós temos que ter um livro que faça algum barulho neste verão, e isso significa que é melhor começar a procurar ontem. Comece a sacudir as árvores, ok?

Roger

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Re: sacudir árvores

Que árvores? A Zenith House existe na Grande Planície da América editorial, e você sabe muito bem disso.

John

 

Do escritório do editor-chefe

Para: John Kenton

Data: 03/02/81

MENSAGEM: Ache uma árvore ou ache um emprego. É assim que é, querido.

Roger

 

04 de fevereiro de 1981

Sr. John “Judas” Kenton

Zenith Asshole-House, Publishers of Kaka

490 Avenue of Dog-Shit

NewYork, NewYork 10017

 

Caro Judas,

Este é o agradecimento que eu tenho por lhe dar o meu livro. Ok, eu entendo. Eu deveria saber o que esperar. Você pensa que você é TÃO ESPERTO. Ok. Eu entendo. Você realmente nada mais é que um bastardo sujo. Quanto você deve ter roubado. Muito, eu aposto. Você se acha TÃO ESPERTO, mas você não é nada além de um “taco empenado” no “GRANDE ASSOALHO DO UNIVERSO”. Existem maneiras de lidar com CARAS COMO VOCÊ. Você provavelmente acha que eu vou até aí pegar você. Mas eu não vou. Eu não “sujaria minhas mãos na sua sujeira”, como o Sr. Keen costuma dizer. Mas eu posso dar um jeito em você se eu quiser. E eu quero! EU QUERO!

Enquanto isso você incomodou todo mundo por aqui então eu acho que você está satisfeito. Não há problema. Estou indo para o Oeste. Eu deveria dizer “foda-se”, mas não vou. Não eu. Eu não faria isso mesmo se eu fosse uma garota e você o Richard Gear. Eu não faria nem mesmo se você fosse uma garota com um corpo “daqueles”.

Bem, eu vou continuar, mas meu material está registrado, e eu só espero que você saiba o que é registrado, mesmo não sabendo a diferença entre “merda” e “graxa de sapato”. Então ponha isso no seu cachimbo e fume o resto do dia, Sr. Judas Kenton. Adeus.

Eu odeio você,

Carlos Detweiller

In Transit

U.S. of A.

 

07 de fevereiro de 1981

Querida Ruth,

Eu tinha esperado uma carta de “foda-se” de Carlos Detweiller – isto estava no fundo da minha mente o tempo todo, de qualquer maneira – e ela veio outro dia. Eu tirei uma cópia na Xerox pré-histórica da Zenith House, e estou mandando junto com esta. Em sua raiva, ele é quase lírico – eu especialmente gosto da parte onde ele diz que eu sou um taco empenado no assoalho do universo...uma frase que até Carlyle admiraria. Ele soletrou errado o nome de Richard Gere, mas talvez seja licença poética. No fim, me senti aliviado – acabou, pelo menos. O cara está no meio do Grande Oeste Americano, sem dúvida com seu cortador de rosas cortando algo, ora, esqueça isso.

“Sim, mas ele foi mesmo?” você pergunta. A resposta é, sim ele foi. Eu recebi a carta e liguei para Barton Iverson na Polícia de Central Falls quase imediatamente (logo depois da aprovação de Roger para o interurbano, devo dizer). Eu achei que Iverson iria checar meu pedido, e ele foi. Parece que ele também acha que as “fotos do sacrifício” eram muito reais, e a última comunicação de Detweiller tinha um tom ameaçador. Ele mandou um homem chamado Riley – o mesmo homem que foi antes, eu acho – para checar Carlos, e ele (Iverson, não Riley) me ligou noventa minutos depois. Parece que Detweiller deu seu aviso logo depois de ser solto, e a mulher Barfield tinha posto um anúncio nos jornais locais pedindo um novo assistente.

Uma coisa bastante interessante: Riley checou o cara nas “fotos do sacrifício”, e voltou com um nome que eu conheço: ele era o Sr. Norville Keen, o mesmo cara, tenho certeza, que Detweiller mencionou nas duas primeiras cartas (“porque descrever um convidado quando você pode vê-lo”, e outras pérolas de sabedoria). O tira fez a ela algumas perguntas sobre o lugar onde as fotos foram feitas, e a mulher Barfield veio para cima dele, ka-bang, num pulo. Perguntou se era uma investigação oficial, ou o quê. Iverson me disse que Riley não pode “arrancar” nada da mulher Barfield sobre as fotos, mas não há duvida de que ela sabe...nada que alguém de Cental Falls quisesse, eu acho. Iverson foi muito franco comigo. “Deixe os malucos para lá”, foi o que ele disse na verdade, e eu concordo duzentos por cento.

Se a nova novela de Anthony LaScorbia for outra Plants from Hell, eu me demito.

Vou te escrever uma carta mais normal durante a semana, eu espero, mas eu achei que você queria saber como estavam as coisas. Enquanto isso, voltei a passar minhas noites no meu livro e meus dias procurando um bestseller que possamos comprar por $ 2.500. Como eu acredito que o Presidente Lincoln tenha dito uma vez, “Good fucking luck, turkey.”

De qualquer modo, obrigado pelo telefonema, e por sua última carta. E, respondendo a sua pergunta, sim eu também sou Q*U*E*N*T*E.

Meu amor,

John

 

19 de fevereiro de 1981

Caro Sr. Kenton,

Você não me conhece, mas eu meio que o conheço. Meu nome é Roberta Solrac, e eu sou uma ávida leitora da série de livros de Anthony LaScorbia. Como o Sr. LaScorbia, eu sinto que ecologia é revoltante! De qualquer modo, escrevi ao Sr. LaScorbia uma “carta de fã”o mês passado e ele me respondeu! Eu fiquei muito excitada e honrada, então mandei a ele uma dúzia de rosas. Ele disse ter ficado excitado e honrado (por receber as rosas) como se nunca tivesse recebido flores antes.

De qualquer modo, em nossa correspondência, ele mencionou seu nome e disse que você era o responsável pelo triunfo literário dele. Eu não posso mandar-lhe rosas porque estou “quebrada”, mas estou mandando uma pequena planta para seu escritório, via UPS. É para trazer boa sorte. Espero que esta o encontre bem, e continue seu bom trabalho!!!

Sinceramente, Roberta Solrac

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Ref: insanidade

Dê uma olhada na carta anexada, Roger. Soletre “Solrac” de trás para frente. Eu acho que, realmente, estou ficando louco. O que eu fiz para merecer esse cara?

 

Do escritório do editor-chefe

Para: John Kenton

Data: 23/02/81

MENSAGEM: Talvez você esteja vendo vultos na sombra. Se não, o que quer fazer sobre isso? Reabrir as coisas na delegacia de Central Falls? Supondo que esse Detweiller – e eu admito que o último nome fica fora dos limites da coincidência e o estilo tem alguma similaridade, apesar da óbvia diferença de dactilografia – é só. Meu conselho é: esqueça isso. Se “Roberta Solrac” mandar-lhe uma planta, jogue-a no incinerador. Provavelmente será hera venenosa. Você está deixando isso abalar seus nervos, John. Eu digo isso seriamente: Esqueça.

Roger.

 

Memorando interno

Para: Roger

De: John

Ref: “Roberta Solrac”

Hera venenosa, uma ova. O cara trabalhava numa loja de plantas. É provavelmente dama-da-noite mortal, ou beladona, ou qualquer coisa assim.

John

 

Do escritório do editor-chefe

Para: John Kenton

Data: 23/02/81

MENSAGEM: Eu pensei em levantar minha bunda da cadeira para falar com você, mas estou esperando um telefone de Harlow “The Axeman Cometh” Enders daqui a pouco, e não quero estar fora da minha sala. Mas talvez seja melhor eu estar escrevendo, porque você parece não acreditar em nada a menos que esteja impresso.

John, deixa para lá. Essa coisa com Detweiller acabou. Eu sei que a coisa toda bateu forte em você – que inferno, em mim também – mas você tem que deixar para lá. Nós temos sérios problemas internos aqui, no caso de você ainda não saber. Está havendo uma reavaliação até Junho, e isso não é muito. Isso quer dizer que vão nos dar um chute na bunda em setembro. Nosso “ano da graça” começou a encolher. Pare de se preocupar com Detweiller e pelo amor de Deus ache alguma que eu possa publicar que traga algum dinheiro. Eu não posso ser mais claro. Eu amo você, John, mas largue isso e volte ao trabalho, ou eu vou ter que fazer algumas escolhas muito duras.

Roger.

 

Memorando interno

Para: Riddley

De: John Kenton

Ref: possível entrega de encomenda

Eu acho que pode ser que eu receba um pacote da UPS de algum lugar do meio-oeste durante a próxima semana ou dez dias. O nome da remetente é Roberta Solrac. Se você vir este pacote, assegure-se que eu não veja. Em outras palavras, jogue-o imediatamente no incinerador. Eu suspeito que você saiba mais do que o que há para saber sobre esse negócio de Detweiller. O pacote pode estar associado a isso, e o conteúdo pode ser perigoso.

Obrigado

John Kenton

 

Memorando interno

Para: John Kenton

De: Riddley

Ref: possível entrega de encomenda

Tá legal, Seu Kenton!

Riddley/Correio

 

Extraído de T HE S A K RE D B OOK OF C A R L O S

SAGRADO MÊS DE FEBBA (Registro #64)

 

Eu sei como pegá-lo. Eu tenho coisas em andamento, glorioso Abbalah. Glorioso Green Demeter. Eu vou pegar todos. Green Green “ must be seen.” (Verde, verde, deve ser visto). Ah! Judas! Quão pouco você sabe! Mas eu sei! Tudo sobre sua namorada, também – só que namorada agora é do diabo (girlfriend is now girlFIEND), quão pouco você sabe do que ela faz! Há outra mula chutando em seu estábulo, Sr. Judas Grande Coisa Editor! OUIJA me disse que o nome da mula é GARY! Em meus sonhos eu os vi e GARY é cabeludo! (GARY is HAIRY!) Não como você, seu pequeno JUDAS careca! Logo eu lhe mandarei um presente! Todos florescem! Cada Judas salvo nos braços de Abbalah! Venha Abbalah! VENHA GRANDE DEMETER! VENHA VERDE!

 

JONH KENTON, formado em Inglês pela Brown University, e que foi presidente da Sociedade Literária, está tendo um duro despertar no mundo real: ele é um dos quatro editores da Zenith House, uma editora caindo aos pedaços em Nova York. Zenith tem 2% do mercado editorial e a décima quinta entre as 15 editoras. Todos os funcionários estão preocupados que a Apex, a empresa que controla a Zenith, venha a tomar medidas extremas para conter a maré de tinta vermelha...e a possibilidade mais provável parece ser o encerramento da Zenith House. A única esperança é a retomada imediata das vendas, mas com o pequeno adiantamento pago pela Zenith e o péssimo sistema de distribuição, isso parece improvável.

 

Entra CARLOS DETWEILLER, primeiro na forma de uma “query letter” recebida por John Kenton. Detweiller, 23 anos, trabalha numa loja de flores em Central Falls, e está oferecendo um livro que ele escreveu chamado True Tales of Demon Infestations. Kenton, com a vaga ideia de que Detweiller pode ter alguma coisa interessante, responde a ele, encorajando Detweiller a mandar exemplos de capítulos e um esboço do livro. Detweiller, ao invés disso, manda o manuscrito completo, junto com um punhado de fotografias. O pacote é muito mais abismal do que Kenton – que pensou que o livro poderia servir para o público de The Amityville Horror – teria imaginado em seus piores pesadelos. Ainda que o pior pesadelo de todos esteja na forma de fotos. A maioria delas incrivelmente falsas, mas quatro mostrando um aterrador sacrifício humano, no qual o coração de um velho está sendo retirado do peito...e parece a Kenton, que o cara que está retirando o coração não é outro senão Detweiller.

ROGER WADE concorda com Kenton de que o assunto ali é policial – muito policial mesmo.

Kenton leva as fotos para o SGTO. TYNDALE, que as envia para o CHEFE IVERSON,em Central Falls. Carlos Detweiller é preso, e então solto, quando o oficial encarregado de investigá-lo vê as fotos em questão e lembra que viu o que eles chamam de “vítima do sacrifício” sentado na Loja de Flores naquele mesmo dia, jogando paciência e assistindo Ryan’s Hope na tv.

Tyndale tenta confortar Kenton. Vá para casa, ele diz, tome um drinque, esqueça isso. Você cometeu um erro perfeitamente justificável em sua tentativa de fazer seu dever cívico.

Kenton queima as “fotos do sacrifício”, mas não consegue esquecer; ele recebe uma carta do obviamente louco Detweiller, prometendo vingança. Duas semanas depois, ele recebe uma carta de uma “Roberta Solrac”, que se diz grande fã dos livros do segundo autor mais quente, Anthony LaScorbia (LaScorbia é o responsável pela série de livros do tipo vingança-da-natureza como Rats from Hell, Ants from Hell, e Scorpions from Hell)

“Ela” afirma que ter enviado rosas a LaScorbia, e quer enviar para Kenton, como editor de LaScorbia, uma pequena planta “como prova de estima”.

Kenton, que não é bobo, percebe de imediato que Solrac é Carlos de trás para frente...e Detweiller, é claro, trabalhou numa floricultura. Convencido de que a “prova de estima” deve ser algo mortal como beladona, Kenton envia um memorando interno a Riddley, instruindo-o a incinerar qualquer pacote que venha de uma “Roberta Solrac”.

RIDDLEY WALKER que respeita Kenton mais que o próprio Kenton jamais acreditaria, concorda, mas intimamente adota uma atitude de esperar para ver. Perto do final de fevereiro de 1981, um pacote de “Roberta Solrac”, endereçado a John Kenton, realmente chega.

Riddley abre o pacote, apesar de ter um sentimento muito forte de que o remetente – Detweiller – é um homem extremamente mal. Ainda assim, o pacote revela nada mais que uma hera comum com uma plaquinha de plástico fincada na terra do vaso. A placa diz:

 

OI!

MEU NOME É ZENITH

EU SOU UM PRESENTE PARA JOHN

DE ROBERTA

 

Riddley coloca a planta numa prateleira alta em seu quarto de zelador e a esquece.

E o tempo passa.

 

25 de Fevereiro

Querida Ruth,

Tive uma privação de sentidos, e eu achei que tinha superado – veja as cópias inclusas, concluídas com uma típica comunicação de Riddley, aquele da pele negra e trezentos dentes brancos.

Eu lhe contei que Roger chutou meu traseiro duramente – não parece muito do Roger, e fiquei espantado com essa reacção. Eu acho que não é preciso ser muito paranóico para ver que ele está falando na possibilidade de me despedir. Se eu estivesse contando isso durante uns martinis no Flaherty depois do trabalho, eu duvido muito que ele fosse tão duro, e é claro que eu não tinha ideia de que ele estava esperando um telefonema de Enders. Eu sem dúvida mereci o chute que levei – eu não tenho realmente feito meu trabalho – mas ele não tem ideia do medo que a carta me deu quando eu percebi que era Detweiller de novo. Eu sou covarde demais para o meu próprio bem, é o que Roger pensa...mas Detweiller é assustador por outras razões menos fáceis. Tornar-se uma ideia fixa na cabeça de um louco é o sentimento mais desconfortável do mundo – se eu conhecesse Jody Foster, eu acho que eu daria a ela uma rima e diria que eu sei exactamente como ela se sente. Há uma quase palpável textura viscosa na correspondência de Detweiller, e oh meu Deus, oh sim, eu desejo que eu consiga tirá-lo da cabeça, mas ainda tenho pesadelos por causa daquelas fotos.

De qualquer modo, eu tenho cuidado das coisas tanto quanto posso, e não, não tenho intenção de ligar para Central Falls. Nós temos um encontro editorial amanhã. Tentarei dar o máximo dentro das minhas limitadas habilidades para trazer de volta o brilho...se bem que o brilho da Zenith House é tão fraco que quase não existe.

Eu amo você, sinto saudades, espero sua volta. Pode ser que você seja parte do problema. Nada para fazê-la sentir-se culpada.

Todo meu amor,

John

 

Do diário de Riddley Walker

23/02/81

Como uma pedra jogada num grande e estagnado lago, o caso Detweiller causou muita agitação no meu local de trabalho.

Eu acho que todos já se foram, ainda esta tarde mais uma lista passou, e quem pode dizer qual será a última?

Eu incluí uma xerox de um curioso memorando que eu recebi de Kenton as 14:35, mais a minha resposta (o memo chegou logo depois de Gelb sair, tendo um acesso de raiva, porque ele deve ter tido muitos, desde o dia que ele trouxe seus próprios dados e eu fiz a cortesia de não examiná-los, mas Ah Jesus, eu nunca vou entendê esses branco). Eu acho que eu tenho coberto o caso Detweiller com simpatia nessas páginas, mas eu devo acrescentar que nada me surpreende menos que Kenton tenha sido aquele que trouxe Detweiller, o cometa, para a errática (e, eu temo, degenerativa) órbita da Zenith House. Ele é mais brilhante que Sandra Jackson, mais brilhante que aquele falador de merda, que usa gravata da Ivy League, William Gelb; muito mais brilhante que Herb Porter (Porter, como anteriormente anotado, não faz nada mais do que vagar pelo escritório da Srta. Jackson depois que sai e cheirar a cadeira dela – um homem estranho, mas não sou ninguém para julgar), e o único que deve ser capaz de reconhecer um livro vendável se ele chegar. Agora mesmo, ele está engasgado pela culpa e pelo embaraço causado por l’affaire Detweiller, e pode ver que ele cometeu um cómico faux pas. Ele seria incapaz de ver que a decisão de dar uma olhada no livro de Detweiller demonstrou que seus ouvidos editoriais ainda estão abertos, e ainda são sensíveis ao som mais doce de todos – as notas celestiais das caixas registradoras nas lojas de livros. Incapaz de ver que isso prova que ele ainda está tentando.

Os outros já desistiram.

De qualquer forma, aqui está o encantador memorando – entre as linhas eu ouço um homem cujos nervos estão temporariamente arrebentados, um homem que tem que ser capaz de encarar um leão, mas que agora não consegue nem olhar para um rato; um homem que está, consequentemente, histérico “Eeeek! Livre-se disso! Livre-se disso!” e esmagá-lo com a vassoura, deixe com o Riddley, que limpa as janelas e entrega a correspondência. Éééé, Seu Kento, eu vou me livrá disso pra você! Vô me livrá desse pacote se a muiè Solrac mandá um!

Pode ser.

Por outro lado, talvez John Kenton deva ter que encarar as consequências de suas acções – esmagar seu próprio rato. Afinal, se você não esmaga por conta própria, talvez você nunca realmente conheça o que é essa pequena coisa fria que é um rato... e não é possível que os dias de Kenton como editor se acabem se ele não puder lidar com malucos como Carlos “Roberta” Detweiller?

Considerarei esse assunto. Eu acho que há uma boa chance de não vir pacote nenhum, mas considerarei assim mesmo.

 

27/02/81

Algo da misteriosa “Roberta Solrac” realmente chegou hoje! Eu não sei se fiquei animado ou enojado com a minha própria reacção, com um terror primal, seguido de uma quase urgente e insana vontade de jogar aquela coisa no incinerador, exactamente como dizia a nota de Kenton. O psiquismo da minha reacção, tão logo meus olhos caíram sobre o endereço do remetente e eu associei o nome com o que estava no memo de Kenton, foi fulminante. Eu tive um espasmo nos ombros. Arrepios subiram pelas minhas costas, eu ouvi um claro zumbido nos ouvidos, e eu pude sentir o cabelo se arrepiando na minha cabeça.

A sinfonia desse atavismo psicológico não durou mais que cinco segundos e então acalmou – excepto que o meu lado esquerdo tremeu num súbito lance de dor na área do coração. Floyd zombaria dizendo que isso é uma “reacção de negro”, mas não foi nada disso. Foi uma reacção humana. Não da coisa em si – o conteúdo do pacote foi somente o anti-climax, depois de todo o som e fúria – mas, estou convencido, as mãos que embrulharam o pequeno pacote branco em que a planta veio, as mãos que amarram o barbante em volta da caixa e cortaram uma sacola de papelão para acondicionar a caixa para o correio, as mãos que colaram e etiquetaram e carregaram. As mãos de Detweiller.

Estou falando de telepatia? Sim...e não. É mais justo dizer que estou falando de algum tipo de paranormalidade passiva. Cães fogem de pessoas com câncer, eles sentem o cheiro. Pelo menos, era o que dizia minha tia Olympia. Da mesma forma, eu senti o cheiro de Detweiller por toda a caixa e agora eu entendo melhor o aborrecimento de Kenton e tenho muito mais simpatia por ele. Eu acho que Carlos Detweiller deve ser um maluco perigosíssimo...mas a planta em si não é nenhuma dessas espécies mortais (apesar de que deve ter alguma dessas coisas bem fatais na mente fervilhante de Detweiller, eu suponho). É somente uma bem pequena e bem conhecida hera comum, num vasinho vermelho.

Se não pela “reacção de negro” (Floyd Walker) – ou pela “reação humana” (seu irmão Riddley) – eu deveria realmente jogar fora a coisa...mas depois que passou a tremedeira, me pareceu que eu tinha que seguir em frente e abrir o pacote ou eu me sentiria menos que um homem. E eu abri, a despeito do número de imagens aterradoras – explosivos nos adesivos, picadas de viúvas negras, um pequeno bebê diabo com chifres. E aqui estava, apenas uma pequena hera com folhas amareladas (quatro delas) estranhamente penduradas num galhinho. A terra do vaso era de um marrom encerado. Cheirava a pântano e era desagradável.

Havia uma pequena placa de plástico enterrada no vaso, onde se lia:

 

OI!

MEU NOME É ZENITH

EU SOU UM PRESENTE PARA JOHN

DE ROBERTA

 

Era aquele flash de medo que me tinha feito abrir o pacote.

Da mesma forma, o mesmo flash me fez decidir ter certeza de que Kenton a teria afinal, o que seria bem fácil de fazer. (“Quela planta, Seu Kenton? Ah, quela lá! Meu Deus, squeci o que cê disse. Eu sou o cara maisquecido!”). Deixe a agitação terminar, deixe-o esquecer Detweiller, se é isso que ele quer. Coloquei Zenith, a hera comum, numa prateleira no meu cubículo de zelador e sala de correspondência – uma prateleira bem acima do nível dos olhos de Kenton (não que ele fique muito tempo aqui, diferente da fixação de Gelb pelos dados). Vou mantê-la até que morra, e então vou jogá-la no incinerador. Será o fim de Detweiller cum certeza.

Tenho 50 páginas do livro prontas esse final de semana.

Gelb agora me deve $75.40

 

Extraído do The New York Post, página 1, 4 de março de 1981

GENERAL LOUCO ESCAPA DO ASILO OAK COVE, MATANDO TRÊS

 


(Especial para o Post) Major General (aposentado) Anthony R. Hecksler, conhecido pelos comandos que o seguiram na França durante a Segunda Guerra Mundial como “Iron-Guts” Hecksler, escapou do Asilo Oak Cove a noite passada, esfaqueando dois assistentes e uma enfermeira até a morte em sua corrida para a liberdade.

General Hecksler foi mandado para Oak Cove, na pequena cidade de Cutlersville, 27 meses atrás, conseguindo a absolvição, por insanidade, das acusações de agressão com arma mortal e tentativa de homicídio. Sua vítima, o motorista de ônibus Herman T Schneur, de Albany, a quem Hecksler acusou em depoimento de ser “um dos doze jurados norte americanos do anticristo”.

Os mortos de Oak Cove foram identificados como Norman Ableson, vinte e seis; John Piet, quarenta; e Alicia Penbroke, trinta e quatro.

O Tenente da polícia estadual, Arthur P. Ford foi surpreendentemente taciturno quando perguntado se ele esperava recapturar o General Hecksler rapidamente. “Nós esperamos por uma prisão rápida, naturalmente”, ele disse, “mas este é um homem que treinou unidades de guerrilha na II Guerra Mundial e na Korea, e que foi consultado mais de uma vez pelo General Westmoreland em Viet Nam. Ele já tem 72 anos, mas ainda é forte e extremamente ágil, como mostra sua fuga de Oak Coves.”

Ford indicou que estava se referindo ao provável método de fuga de Hecksler – uma corda da janela do segundo andar, na ala de administração de Oak Cove até o jardim embaixo (veja as fotos nas páginas 2, 3 e na sessão central).

Ford pediu a todos que se afastem do louco General, se o virem, que ele descreve como “extremamente esperto, extremamente perigoso e extremamente paranóico”.

Na breve entrevista coletiva, Ellen K. Moors, a médica encarregada do caso de Hecksler, concordou. “Ele tinha um grande número de inimigos”, ela disse, “ou assim ele imaginava. Seus delírios paranóicos eram extremamente complexos, mas ele nunca saiu dos trilhos. Ele estava, em seu jeito, como um modelo inanimado...mas ele nunca saiu dos trilhos”.

Uma fonte próxima a investigação disse que Hecksler pode ter esfaqueado Ableson, Piet e Pembrok até a morte com um par de lâminas de barbear. A fonte disse ao Post que não houve gritos, todos foram esfaqueados na garganta, ao estilo dos comandos.

(Mais notícias p. 12)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Extraído do diário de Riddley Walker

05/03/81

Que diferença faz um dia!

Ontem Herb Porter estava em seu estado normal – gordo, relaxado, fumando um cigarro encostado no bebedouro, explicando a Kenton e Gelb como o grande trem do mundo correria se ele, Herbert Porter, fosse o maquinista.

O homem é um Reader’s Digest de soluções rápidas ambulante, um compêndio de respostas prontas que são entregues entre eflúvios de fumaça de cigarro e admirável mau hálito. Fechem as fronteiras e mantenham longe os espiões! Parem o aborto! Construam mais prisões! Aumente a pena para o porte de maconha! Vendam os arsenais bioquímicos! Comprem TV a cabo!

Ele é, desse jeito – ou era, até hoje – um homem maravilhoso: redondo e perfeito em suas afirmações, e possuído de um inata justiça para manter um emprego num lugar como esse, Porter é a evocação do Grande Americano Médio. Mesmo suas subreptícias expedições ao escritório de Sandra Jackson para o assento da cadeira dela me agradam.

Oh, mas hoje! Que diferença quando Herbert Porter veio ao cubículo hoje! A complacente e corada face tinha se tornado pálida e trémula. Os olhos azuis viravam de um lado para o outro tanto que Porter parecia um homem assistindo uma partida de tênis quando ele veio me ver. Seus lábios estavam tão brancos de saliva que pareciam estar desaparecendo. E, apesar dele continuar gordo, ele também parecia ter perdido aquela tensão superficial – como se a essência de Herb Porter tivesse saído da pele, deixando aquela pele caída em lugares onde ela já fora suave e lisa.

“Ele saiu”, Porter sussurrou.

“Quem, Seu Porti?”, perguntei. Eu estava mesmo curioso; não conseguia imaginar que tão forte máquina tinha feito um buraco daquele tamanho no Castelo Herbert. Apesar de supor que eu devia ter imaginado. Ele me jogou o jornal – o Post , é claro. Ele era o único por aqui que lia aquilo. Kenton e Wade liam o Times, Gelb e Jackson traziam o Times, mas secretamente liam o Daily News (a mão que embala o berço conduz o mundo, mas a mão que esvazia as latas de lixo dos brancos sabe os segredos do mundo), mas o Post era feito para camaradas como Herb Porter. Ele joga Wingo religiosamente, e diz que se ele alguma vez ganhar, vai comprar um Winnebago, pintar a palavra WINGOBAGO do lado, e viajar pelo país.

Eu peguei, abri e li a manchete.

“O General escapou”, ele sussurrou. Seus olhos parados balançaram para frente e para trás e por um momento ele ficou lá parado, no mais completo horror.

“É como se o maldito Detweiller tivesse nos amaldiçoado. O General escapou, e eu rejeitei o livro dele!”

“Nem, nem, Seu Porti”, eu disse. “Nem precisa se importar. O cara deve di tê uns quatro ou cinco pra pegá antes de você”.

“Mas eu posso ser o número um”, sussurrou. “Afinal, eu rejeitei o maldito livro dele”.

Era verdade, e era irónico ver como homens tão diferentes quanto Kenton e Porter tinham se levado à mesma situação no último inverno – cada um alvo de um autor rejeitado (a rejeição de Detweiller tinha sido um pouco mais dramática que a do General, mas era, sem dúvida, culpa do próprio Detweiller), que resolve ficar maluco. A diferença – eu sei, embora ninguém mais saiba (e eu acredito que Roger Wade deveria) – é que, enquanto Kenton achava que poderia haver a essência de um livro na obsessão de Detweiller, Porter sabia mais no que dizia respeito ao do General. Mas Porter é um daqueles homens que já leu vorazmente sobre a II Guerra Mundial, sobre aqueles cowboys (cowboys brancos) do século XX, e sabia quem Hecksler era...numa guerra cheia de celebridades militares, Hecksler era do tipo de Hollywood (se é que você me entende), mas para Porter ele era alguém. Então ele pediu para ver o manuscrito completo de Twenty Psychic Garden Flowers, apesar do título abismal, encorajando um homem que era, em suas próprias palavras, um completo psicopata. Eu senti que o resultado e seu atual terror, apesar de inesperado, eram parte do seu próprio erro.

E assenti que era verdade que ele poderia ser o número um na lista do general (se era mesmo verdade que o pobre homem estivesse fazendo outra coisa que não se esconder em alguma vala ou vasculhar latas de lixo a esta altura), mas reiterei que eu não achava provável. Acrescentei que ele deveria ser pego antes que pudesse chegar a 50 milhas de Nova York mesmo se ele decidisse vir pegar Porter, e terminei contando a ele quantos psicopatas soltos num ambiente adverso acabam tirando a própria vida...apesar de que eu não usei exatamente essas palavras. Porter me lançou um olhar desconfiado por um momento, e então disse,

“Riddley – não me leve a mal –“

“Nem!”

“Você realmente fez faculdade?”

“Sim sinhô!”

“E você teve aulas de psicologia?”

“É, eu tive”.

“Psicologia de anormais?”

“É, e eu vi a mais poderosa síndrome familiá associada cum personalidadi paranóica! Por que, esse Genral Hecksler pode tá cortano os pulso ou engasgano com uma lâmpada agora memo, enquanto nós falamo dele, Seu Porti!”

Ele me olhou por um longo tempo e então disse, “Se você esteve na faculdade, Riddley, por que você fala desse jeito?”

“Qui jeito qui é esse, Seu Porti?

Ele me examinou por outro longo momento e então disse, “Esqueça”.

Ele se aproximou – tanto que eu podia sentir o cheiro dos cigarros baratos, do tónico capilar e do líquido acinzentado do medo. “Você pode me arrumar uma arma?”

Por um momento, eu fiquei literalmente sem resposta – o mesmo que dizer (Floyd diria, de qualquer jeito) que a China ficou sem mão de obra. Eu tinha uma ideia de que ele tinha mudado completamente de assunto, e que eu tinha ouvido Você pode me arrumar uma arma? da mesma maneira que poderia ser, na verdade, Você pode me arrumar alguma gata?. Definição de gata: mulher de pele negra que faz por dinheiro o que devia fazer de graça. Minha resposta para ambas não saiu, e eu não sabia se ria ou se o esganava até sua cara ficar tão roxa quanto sua gravata. Então, tardiamente, eu comecei a entender que ele realmente tinha dito arma...mas, nesse meio tempo, ele deve ter lido a recusa em minha mente. Sua cara caiu.

“Você tem certeza?”, perguntou. “Eu achei que lá no Harlem –“

“Eu moro em Dobbs Ferry, Seu Porti!”

Ele acenou com a cabeça, nós dois sabíamos que o meu endereço em Dobbs Ferry era apenas uma conveniente ficção que eu mantinha – eu ia mesmo para lá depois do trabalho, mas é claro que eu ia muito além da 110th depois que o sol se punha.

“Claro qui eu podia consegui uma arma, Seu Porti”, eu disse, “mas não ia sê nem mió nem pió do que se você mesmo conseguisse – um .32...talvez um .38...” Pisquei pra ele.“ E uma arma comprada debaixo dos pano é ruim, nunca se pode sabê se ela num vai explodi na sua cara a primeira vez que puxá o gatilho!”

“Eu não quero nada disso, de qualquer modo”, Porter disse devagar. “Quero alguma coisa com laser. E balas explosivas. Você assistiu O Dia do Chacal, Riddley?”

“É, e achei da hora!”

“Quando ele atira na melancia...plowch!” Porter abriu os braços mostrando como a melancia tinha explodido quando o assassino de O Dia do Chacal está treinando, e uma de suas mãos bateu na hera enviada para Kenton pela misteriosa Roberta Solrac. Eu tinha já esquecido tudo isso, apesar de terem se passado menos de duas semanas desde que eu a colocara lá.

Tentei assegurar a Porter que estava longe do primeiro lugar na lista infinita de paranóias de Hecksler, e que afinal, o homem tinha 72 anos.

“Você não sabe algumas das coisas que ele fez na Grande Segunda”, disse Porter, e seus olhos começaram a se mover, fantasmagoricamente, de um lado para outro novamente. “Se aqueles caras que contrataram o Chacal, tivessem contratado Hecksler, DeGaulle nunca teria morrido de velhice”.

Ele foi saindo então, e fiquei feliz por vê-lo partir. O cheiro de cigarro estava começando a me deixar enjoado. Eu peguei Zenith, a hera comum e olhei para ele (é ridículo usar um pronome masculino para uma hera, mas eu tinha feito isso automaticamente – eu, que normalmente escrevo com o cuidado extremo de uma dona de casa quando escolhe frutas no mercado). Comecei esse registro falando da diferença que um dia pode fazer. No caso de Zenith, a hera comum, que diferença cinco dias tinham feito. O caule caído estava mais firme e ereto, as quatro folhas amareladas estavam quase totalmente verdes, e duas folhas novas estavam começando a se abrir. Nada disso me ajudou em nada. Eu a reguei e notei duas outras coisas sobre o meu velho camarada Zenith – primeiro, estava mesmo se abrindo seu primeiro botão – mal alcançando a boca do vaso barato de plástico, mas estava lá – e, segundo, aquele desagradável cheiro de pântano parecia ter desaparecido. De fato, a planta e a terra em que ela estava plantada tinham um cheiro bem doce.

Talvez fosse uma hera mediúnica. Se o General Hecksler aparecer por aqui, no velho e bom 490 Park, me assegurarei de perguntar, hee-hee!

Escrevi vinte páginas do meu livro esta semana – não muito, mas acho (espero!) que eu esteja me aproximando da metade.

Gelb, que teve uma modesta sorte ontem, tentou forçar hoje – isto foi mais ou menos uma hora depois que Porter esteve aqui, procurando por armamento.

Gelbs agora me deve $81.50.

 

08 de março de 1981

Querida Ruth,

Está mais difícil falar com você por telefone do que o presidente dos Estados Unidos – eu juro por Deus que estou começando a odiar sua secretária eletrônica! Preciso confessar que aquela noite – a terceira noite de “Oi, é a Ruth e não posso atender ao telefone agora, mas...” – eu fiquei um pouco nervoso e liguei para o outro número que você me deu – o super. Se ele não tivesse me dito que viu você por volta das cinco com um monte de livros debaixo do braço, eu acho que teria pedido a ele para checar e ter certeza que você estava bem. Eu sei, eu sei, é a diferença de fuso, mas as coisas têm ficado tão paranóicas por aqui ultimamente, que você não ia acreditar. Paranóicas? Estranhas é uma palavra melhor, talvez. Nós nos falaremos, provavelmente, antes de você receber esta, tornando noventa por cento desta carta obsoleta (a menos que eu mande pela Federal Express, o que faz uma chamada de longa distância parecer uma medida austera), mas se eu não colocar isso pra fora, de um jeito ou de outro, vou explodir. Eu entendo que Herb Porter esteja quase apoplético (uma condição com a qual me solidarizo muito mais do que eu podia imaginar, depois do affair Detweiller), depois que o General Hecksler escapou e as mortes que ele deixou na fuga estiveram nos jornais, em rede nacional, nas últimas duas noites, mas eu acho que você não viu – ou não ligou uma coisa com outra – ou eu teria falado com você por telefone antes (prolixo como sempre, você vê – antes eu pudesse ser sucinto como aquele prisioneiro da Zenith, Riddley). Se você não ouviu nada, estou incluindo um clipping do Post (não me preocupei em incluir a foto central do asilo com a obrigatória linha pontilhada marcando a rota de fuga do General e o X no lugar de cada uma das vítimas), isso vai atualizar você o mais rápido e lugubremente possível.

Você deve lembrar que eu mencionei Hecksler para você numa carta, há seis semanas atrás – algo assim. Herb rejeitou o livro dele, Twenty Psychic Garden Flowers, e provocou uma avalanche de cartas paranóicas de ódio. Brincadeiras à parte, sua fuga sangrenta criou uma atmosfera real de inquietação aqui na Z. H. Tomei um drinque com Roger a noite passada, depois do trabalho, no Four Fathers (Roger afirma que o dono, um homem genial, chamado Ginelli, com uma voz suave e olhos azuis gelados, é um mafioso) e contei a ele sobre a visita de Herb esta tarde. Eu mostrei a Herb o quão ridículo era estar tão apavorado quanto ele obviamente está (é engraçado – debaixo daquele estilo Joe Pyne exterior, o Neandertal interior torna-se Walter Mitty, no fim de tudo) e Herb concordou. Então, depois de uma certa dose de paciente conversa superficial, ele me perguntou se eu sabia onde ele podia conseguir uma arma. Como um idiota – algumas vezes esse seu correspondente é incrivelmente lerdo para fazer as conexões óbvias, meu bem – eu mencionei a loja de caça a cinco quarteirões daqui, na 32nd.

“Não”, ele disse, impaciente. “Eu não quero uma espingarda ou coisa assim”. Ele abaixou a voz. “Eu quero alguma coisa que eu possa carregar por aí comigo”.

Roger assentiu e disse que Herb tinha estado no escritório dele, por volta das duas, inquirindo-o sobre o mesmo assunto.

“O que você disse? perguntei.

“Lembrei a ele que as penalidades por portar uma arma sem licença, neste estado, são extremamente severas”. Roger disse. “Nesse ponto Herb levantou, com toda a sua altura (que não é pouca) e disse, ‘Um homem não precisa de licença para proteger a si mesmo, Roger.’”

“E então?”

“Então ele saiu. E tentou com você. Provavelmente tentou com Bill Gelb também”.

“Não esqueça Riddley”, eu disse.

“Ah, sim – e Riddley”.

“Que deve ser bem capaz de ajudá-lo”.

Roger pediu outro bourbon, e eu fiquei pensando que estava parecendo muito mais velho do que os seus 45 anos, quando ele subitamente riu, um riso tão jovial e tão charmoso como o de quando eu o vi pela primeira vez, numa festa em junho de 1980 – aquela que Gahan e Nancy Wilson deram em Connecticut, lembra? “Você já viu o novo brinquedo de Sandra Jackson?”, ele perguntou. “Ela é alguém que Herb devia ter procurado sobre munições do mercado negro”. Roger realmente gargalhou alto, um som que raramente eu tinha ouvido dele nos últimos oito meses ou mais. Ouvir isso me fez perceber de novo, Ruth, o quanto eu gosto e o respeito – ele poderia ter sido um grande editor em algum lugar – talvez mesmo na liga Maxwell Perkins. É uma pena que ele tenha terminado pilotando um barco afundando como a Zenith House.

“Ela tem algo chamado Rainy Night Friend”, disse ele, ainda rindo. “É prateado, e quase do tamanho de um morteiro. A maldita coisa enche a bolsa dela. De um lado tem uma lanterna. O outro, lança uma nuvem de gás lacrimogênio quando você aperta um botão – e Sandra disse que ela gastou dez dólares a mais para ter o gás trocado por um muito mais forte. No meio dessa coisa, Johnny boy, tem um anel que você puxa e libera uma sirene de não-sei-quantos decibéis. É melhor não pedir uma demonstração. Eles teriam que evacuar o prédio”.

“O jeito como você descreve, soa como se ela pudesse usá-lo como consolo quando não houvesse ladrões por perto”, eu disse.

Sua risada tornou-se quase histérica. Eu me juntei a ele – como se fosse possível não fazê-lo – mas eu estava preocupado com ele. Ele estava muito cansado e muito perto do limite, eu acho – a falta de apoio da matriz estava começando a afetá-lo.

Perguntei a ele se uma coisa como esse Rainy Night Friend era legal. “Não sou advogado, então não posso dizer com certeza”, Roger disse. “Minha impressão é que uma mulher que usa gás lacrimogênio num assaltante em potencial está numa área meio cinzenta. Mas o brinquedo de Sandra, carregado com esse gás super forte...não, eu não acho que uma coisa assim possa ser kosher.”

“Mas ela o tem, ela o carrega”, eu disse.

“Não só isso, mas ela parece extremamente calma sobre tudo isso”, Roger concordou.

“Engraçado – ela foi uma das que mais se assustou quando o General estava mandando suas cartas venenosas, e Herb parecia não se preocupar com nada disso... pelo menos até o motorista de ônibus ser esfaqueado. Eu acho que o que aterrorizava Sandra antes era o fato de que ela nunca o tinha visto antes.”

“Sim”, eu disse. “Ele me disse isso uma vez”.

Ele pagou a conta, recusando minha oferta para pagar minha parte. “Esta é a vingança do povo-flor”, ele disse. Primeiro Detweiller, o jardineiro louco de Central Falls, e então Hecksler, o jardineiro louco de Oak Cove”.

Isso me deu aquilo que os escritores britânicos de mistério chamam de um desagradável start – por falar sobre não fazer as conexões óbvias! Roger, que estava longe de ser um tolo, viu minha expressão e sorriu.

“Não tinha pensado nisso, não é?”, ele perguntou. “É apenas coincidência, claro, mas eu acho que é suficiente para colocar uma fagulha de paranóia na cabeça de Herb Porter – não consigo imaginá-lo ficando tão nervoso de outra maneira. Nós tínhamos a estrutura para um bom romance de Robert Ludlum aqui. The Horticultural Something-or-Other. Venha, vamos dar o for a daqui”.

“Convergence”, eu disse, quando estávamos na rua.

“Hã?” Roger me olhou como alguém vindo de milhões de milhas de distância.

“The Horticultural Convergence,” eu disse. O título perfeito. O enredo perfeito. Veja só, Detweiller e Hecksler são na verdade, irmãos – não, considerando as idades, eu acho que pai e filho seria melhor – no pagamento de NKVD. E – “

“Tenho que pegar meu ônibus, John”, ele disse, não rudemente.

“Bem, eu tenho meus problemas, querida Ruth (quem sabe melhor que você?), mas percebo quando eu começo a me tornar mais chato que os outros (exceto quando estou bêbado). Eu o vi descer até o ponto de ônibus e seguir para casa. A última coisa que ele disse foi que a próxima vez que ouvíssemos falar do General Hecksler, seria provavelmente numa reportagem sobre sua captura... ou seu suicídio. E Herb Porter ficaria tão desapontado quanto aliviado.

“Não é com o General Hecksler que Herb e o resto de nós temos que nos preocupar”, ele disse – seu pequeno arroubo de bom humor tinha passado e ele parecia pequeno e fracassado, parado alí no ponto de ônibus, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. “É com Harlow Enders e o resto dos contadores que estão vindo nos pegar. Eles vão nos esfaquear com seus lápis vermelhos. Quando eu penso em Enders, eu quase desejo ter um daqueles “Rainy Night Friend” da Sandra”.

Nenhum progresso com o meu livro essa semana – relendo essa carta eu vejo porque – toda a narrativa deveria estar em Maymonth acabou vindo para cá. Mas se eu fui tão longo e tão detalhista, não credite tudo isso ao fato de eu ser prolixo, meu bem – nos seis meses, mais ou menos, eu me tornei um autêntico Solitário. Escrever não é tão bom quanto falar com você, e falar não é tão bom quanto vê-la, e ver não é tão bom quanto tocá-la ou estar com você (steam-steam! pant-pant!), mas uma pessoa tem que fazer aquilo que tem que fazer. Sei que você está ocupada, estudando muito, mas estar a tanto tempo sem falar com você está me deixando meio louco (e juntando com Detweiller e Hecksler, mais louco eu não precisava estar). Eu te amo, meu bem.

Sentindo saudades, precisando de você,

John

 

9 de Março de 1981

Mr. Herbert Porter

Judeu Escolhido

Zenith House

490 Park Avenue

New York, NY 10017

 

Caro Judeu Escolhido,

Pensou que eu tinha esquecido você? Aposto que sim. Bem, não esqueci. Um homem não esquece o ladrão que rejeitou seu livro, após ter roubado todas as partes boas. E como você tentou me desacreditar. Eu imagino como você ficaria com seu pênis no ouvido. Há-há. (Mas não é uma piada)

Estou indo te pegar, “garotão”.

Major General Anthony R. Hecksler (aposentado)

P.S. Roses are red. (Rosas são vermelhas)

Violets are blue. (Violetas são azuis)

I am coming to castrate. (Estou indo castrar)

A Designated Jew. (Um judeu escolhido)

M.G.A.R.H. (Apos.)

 

TELEGRAMA DE SR. JOHN KENTON PARA RUTH TANAKA

SRTA. RUTH TANAKA

10411 CRESCENT BOULEVARD

LOS ANGELES, CA 90024

10 DE MARÇO DE 1981

 

QUERIDA RUTH

ISTO É PROVAVELMENTE MUITO ESTÚPIDO MAS PARANÓIA PEDE PARANÓIA E EU AINDA NÃO CONSIGO ALCANÇAR VOCÊ. FINALMENTE DEPOIS DA SECRETÁRIA ELETRÔNICA ESTA MANHÃ SUA COMPANHEIRA DE QUARTO DISSE QUE NÃO TEM VISTO VOCÊ NOS ÚLTIMOS DOIS DIAS. ELA PARECIA ENGRAÇADA. ME LIGUE O MAIS RÁPIDO OU ESTAREI BATENDO NA SUA PORTA ESTE FIM DE SEMANA. AMO VOCÊ.

JOHN

 

10 de Março de 1981

Querido John,

Eu imagino – não, eu sei – que você deve estar imaginando porque não tem ouvido falar muito de mim nas três últimas semanas. A razão é bastante simples, eu tenho me sentido culpada. E a razão pela qual estou escrevendo agora, ao invés de ligar, é que eu sou covarde. E também acho, apesar de você talvez não acreditar, quando ler o resto da carta, que é a carta mais difícil que já escrevi, porque eu amo você muito e queria muito não feri-lo. Ao mesmo tempo, eu sei que vou machucá-lo e saber que não posso ajudar, me faz chorar.

John, eu conheci um homem chamado Toby Anderson e me apaixonei loucamente por ele. Se isso importa a você – e, provavelmente não importa – eu o conheci em um dos dois cursos de Restauração Inglesa que faço. Eu o mantive longe, o máximo que eu pude, por um longo tempo – eu quero e preciso muito que você acredite nisso – mas, no meio de Fevereiro, eu não pude mais ficar longe dele. Meus braços se cansaram. As últimas três semanas têm sido um pesadelo para mim.

Eu realmente, não espero a sua solidariedade, mas espero que você acredite que estou dizendo a verdade. Apesar de você estar na costa leste e eu há três mil milhas a oeste, eu sentia como se eu estivesse pertinho de você. E eu estava. Estava! Oh, não como no sentido de achar que um dia você chegaria mais cedo do trabalho e me encontraria com Toby, mas eu sentia como se fosse. Eu não podia dormir, não podia comer, não podia fazer minhas posições de ioga do vídeo da Jane Fonda. Minhas notas estavam desabando, mas para o inferno com as notas – meu coração estava desabando.

Eu estive evitando suas ligações, porque eu não podia ouvir sua voz – parecia que isso traria a casa até aqui – como eu estava mentindo, e traindo você.

Tudo veio à tona duas noites atrás, quando Toby me mostrou o anel de diamante que ele comprou para mim.

Ele disse que queria me dar o anel, e que queria que eu aceitasse, mas que ele não me daria até que eu falasse ou escrevesse para você. Ele é um homem tão honrado, John, e a ironia é que, sob outras circunstâncias, você gostaria muito dele.

Eu desmanchei e chorei nos braços dele e as suas lágrimas se misturaram com as minhas. O desfecho disso tudo é que eu estarei com aquele lindo anel no dedo antes do fim da semana. Acho que estaremos casados em Junho.

Você vê, a maneira covarde de eu cair fora, escrevendo ao invés de telefonar, e ainda me dando os últimos dois dias para fazer isso – eu tenho perdido aulas e praticamente, criei raízes na biblioteca, onde eu deveria estar estudando para uma prova de Gramática. Mas, ao diabo com Noah Chomsky e sua estrutura profunda! E, apesar de você não acreditar nisso também, cada palavra escrita nessa carta que você está lendo é como uma punhalada no meu coração.

Se você quiser falar comigo, John – eu entendo, se você não quiser, mas você pode – me ligue daqui a uma semana...depois que você tiver chance de pensar em tudo isso e conseguir colocar em algum tipo de perspectiva. Eu estou tão acostumada com sua doçura, seu chame e sua gentileza, e com tanto medo que você fique zangado e acusador – mas isso é com você e eu só posso ter um “tenha o que você merece”, suponho. Mas você precisa ter tempo para esfriar a cabeça, e eu preciso de um tempo também. Você deve receber esta carta dia 11. Estarei no meu apartamento, das sete as nove e meia, do dia 18 até 22, esperando e temendo sua ligação. Eu não quero falar com você antes disso, espero que você entenda – e acho que pode ser que vai, você sempre foi o homem mais compreensivo, apesar da sua constante auto-depreciação.

Mais uma coisa – Toby e eu concordamos com isso: não leia esta carta e queira vir voando até o “oeste dourado” – eu não o receberei, se você vier. Não estou preparada para vê-lo frente a frente, John – meus sentimentos ainda estão muito confusos e minha auto-imagem num estado de transição. Nos encontraremos novamente, claro. E posso ousar dizer que espero que você venha ao nosso casamento? Eu ousarei, agora que vejo que já escrevi!

Oh, John, eu amo você, e espero que essa carta não tenha causado muita dor – também espero que Deus seja bom, e que você tenha encontrado seu “alguém” nas últimas semanas – nesse meio tempo, por favor, saiba que eu sempre (sempre!) será alguém para mim.

Meu amor,

Ruth

PS – E, apesar de ser banal, também é verdade: espero que sempre sejamos amigos.

 

Memorando interno

 

Para: Roger Wade

De: john kenton

Ref: demissão

 

Estou sendo bem formal, porque está é, realmente, uma carta de demissão, Roger, em memorando ou não. Estou saindo no final do dia – começarei, na verdade, a limpar minha mesa tão logo eu termine de escrever. Prefiro não dizer minhas razões – são pessoais. Eu percebo, é claro, que sair sem aviso prévio é a pior forma. Se você resolver levar este assunto à Apex Corporation, ficaria feliz em pagar uma indenização razoável. Me desculpe por isso, Roger. Eu gosto e respeito muito você, mas simplesmente, é assim que tem que ser.

 

Do diário de John Kenton

16 de Março de 1981

 

Eu não tentava manter um diário desde que eu tinha 11 anos, e minha tia Susan – que já morreu – me deu um diário de bolso no meu aniversário. Era uma coisa pequena e barata, como minha tia Susan, agora que pensei nisso.

Eu mantive aquele diário, indo e vindo, por quase três semanas. Não deverei conseguir ficar tanto tempo agora, mas isso não importa. Foi ideia de Roger, e as ideias de Roger, algumas vezes são boas.

Joguei meu livro fora – oh, não pense que eu fiz algo melodramático como jogá-lo no fogo para comemorar a combustão espontânea do Meu Primeiro Amor Sério, na verdade, estou escrevendo este primeiro (e, talvez, último) registro no meu diário, usando as costas das páginas do livro. Mas jogar fora um livro que não tem páginas de verdade, de qualquer forma, cujas páginas são como pele morta. O livro realmente se despedaça na sua cabeça, parece, como uma hóstia. Talvez a única coisa boa sobre a carta cataclísmica de Ruth seja ter acabado com as minhas grandiosas aspirações literárias.

Maymonth, de John Edward Kenton, chutado pelo mito do pássaro cabeludo. Quem precisa começar um diário com informações passadas? Esta não era uma questão que me viesse a mente quando eu tinha onze anos – pelo menos, não que eu me lembre. E, a despeito dos grandes cursos de Inglês que eu tive em meu tempo, eu não me lembro de ter tido nenhum que falasse dos protocolos de um diário. Rodapés, sinopses, rascunhos, a colocação própria de modificadores, a forma correta das cartas comerciais – essas eram as coisas nas quais me instruí. Mas em como começar um diário sendo tão por fora quanto eu sou, digo, em como continuar sua vida depois que as luzes se apagam.

Aqui está minha decisão, depois de 30 segundos de profunda consideração: um pouco de informação do passado não machuca. Meu nome, como é mencionado acima, é John Edward Kenton; tenho 36 anos de idade; estudei na Brown University, onde me formei em Inglês, atuei como Presidente da Milton Society, e era excessivamente cheio de mim; acreditava que tudo em minha vida, eventualmente, ia dar certo; desde então, tenho aprendido.

Meu pai já morreu, minha mãe está viva e bem morando em Sanford, Maine. Tenho três irmãs. Duas casadas, e uma que ainda mora em casa, e estará terminando o colegial na Sanford High em Junho.

Eu moro em um apartamento no Soho que eu achava muito agradável até poucos dias atrás; agora parece pouco atraente. Trabalho para uma desgastada editora, que publica originais, a maioria deles sobre insetos gigantes e veteranos do Vietnã que querem reformar o mundo usando armas automáticas. Há três dias atrás, descobri que minha garota me deixou por outro homem. Alguma atitude quanto a isso tinha que ser tomada, então, tentei pedir demissão do meu emprego. Não fazia o menor sentido naquela hora ou agora. Era muito calmo para começar, tinha obrigação de ter um ataque, que eu só posso chamar de Febre Louca no trabalho. Eu posso me aperfeiçoar nesse trabalho mais tarde, mas por enquanto, a importância de Detweiller e Hecksler parece ter diminuído ao nível do chão. Se você já foi deixado abruptamente por alguém que você amava e ama profundamente, você saberá a espécie de dor que eu tenho experimentado. Se não, você não pode. Simples assim.

Eu queria poder dizer Eu me senti assim quando meu pai morreu, mas não posso. Parte de mim (a parte que, escritor ou não, constantemente quer usar metáforas) gostaria de fazer uma penitência, e eu acredito que Roger está parcialmente certo quando fez aquela comparação, no jantar mais liquido que nós tivemos, na noite da minha demissão, mas há outros elementos também. É uma separação – como se alguém lhe dissesse que nunca mais você vai comer sua comida preferida, ou usar uma droga na qual você é viciado. E há algo pior. De qualquer modo que você defina a coisa, eu acho que meu senso de auto-estima e auto-depreciação se misturaram, e isso dói. Dói muito. E parece doer o tempo todo. Eu sempre fui capaz de escapar da dor emocional no meu sono, mas não funciona agora. Dói lá, também.

A carta de Ruth (pergunta: quantas cartas Querido John realmente foram mandadas aos Johns? Devíamos fundar um clube, como o Jim Smith Society?) chegou dia onze – estava me esperando na caixa do correio, como uma bomba-relógio, quando cheguei em casa. Eu rabisquei minha demissão num papel de memorando, na manhã seguinte, e mandei ao escritório de Roger Wade, via Riddley, que é nosso zelador-carteiro na Zenith House. Roger desceu ao meu escritório como se tivesse asas nos pés. A despeito da dor que eu estava sentindo e da confusão que eu estava vivendo, me senti absurdamente emocionado. Depois de uma breve, intensa conversa (para minha vergonha, eu me dobrei e chorei, e apesar de não dizer especificamente, qual era/é o meu problema, ele pareceu advinhar), concordei em retardar minha demissão, pelo menos até o fim da tarde, quando Roger sugeriu que saíssemos para conversar sobre a situação.

“Uns dois drinques e um filé ao ponto podem ajudar a colocar a situação em perspectiva”, foi como ele colocou, mas eu acho que, na verdade, viramos mais que uma dúzia de drinques... cada um, talvez. Perdi a conta. E foi no Four Fathers de novo, naturalmente. Pelo menos, é um lugar onde não há nenhuma associação com Ruth.

Depois de concordar com a sugestão de Roger para jantar, fui para casa, dormi o resto do dia, e acordei me sentindo fraco, tonto e com dor de cabeça – essa sensação de meia ressaca que eu tenho quando vou dormir sem realmente precisar. Eram 17:30, quase escuro, e à luz de um tardio crepúsculo de inverno, eu não conseguia imaginar por quê, em nome de Deus, eu tinha permitido que Roger falasse comigo, e me tivesse feito prometer adiar minha demissão por doze horas. Eu me sentia como uma espiga de milho onde alguém fez um maravilhoso truque de mágica. Tire o milho e a espiga, deixando as folhas e o cabelo do milho, intactos. Eu tenho consciência – Deus sabe que eu tenho lido bastante para ter – do quão Byronic-Keatsian-Sorrows-of-Young-Werther isso soa, mas uma das coisas legais de um diário que eu descobri aos onze anos e estou descobrindo agora, é que você escreve sem um público – real ou imaginário – em mente. Você pode dizer qualquer porra que você queira.

Tomei um longo banho, na maior parte do tempo, parado, tonto, embaixo do chuveiro, segurando o sabonete, e então me sequei, me vesti e sentei na frente da tv até umas quinze para as sete, mais ou menos, quando era hora de sair e encontrar Roger. Peguei a carta de Ruth da escrivaninha e coloquei no bolso antes de sair, decidindo que Roger tinha que saber o que tinha me tirado dos trilhos.

Eu estava procurando solidariedade? Um ouvido terno, como dizem os poetas? Não sei. Mas eu queria que ele tivesse certeza – muita, muita certeza – de que eu não era apenas um rato desertando de um navio afundando. Porque eu realmente gosto de Roger, e eu sinto pelo aperto em que ele está.

Eu podia descrevê-lo – e se ele fosse um personagem em um dos meus livros, suponho que eu o faria tão adorável, com tantos detalhes – mas desde que esse diário é só para mim e eu sei perfeitamente como Roger se parece, não há necessidade disso. Eu acho isso extremamente libertador. O único ponto que importa sobre Roger, é que ele tem 45 anos, aparenta oito ou dez anos a mais, fuma muito, é divorciado três vezes... e eu gosto muito dele.

Quando estávamos sentados numa mesa nos fundos do Fathers, com drinques a nossa frente, ele perguntou o que estava errado, além das óbvias infelicidades desse ano maldito. Eu tirei a carta de Ruth do bolso e atirei para ele por cima da mesa. Enquanto ele lia, terminei meu drinque e pedi outro. Quando o garçom o trouxe, Roger virou o seu de uma só vez, pediu outro, e colocou a carta de Ruth do lado do prato. Seus olhos se viraram para mim.

“’E as lágrimas dele se misturaram com as minhas’?” ele disse baixo, como se estivesse falando consigo mesmo. “’Cada palavra me atravessa o coração’? Jesus, eu espero que pense em escrever orelhas de livros. Deve haver alguma coisa aqui.”

“Corta essa, Roger. Isso não é engraçado.”

“Não, suponho que não”, ele disse, e me olhou com uma expressão de solidariedade que era ao mesmo tempo profundamente confortante e profundamente embaraçosa.

“Duvido que alguma coisa pareça engraçada para você agora”.

“Nem perto”, concordei.

“Eu sei o quanto você a ama”.

“Você não saberia”.

“Sim, eu sei. Está na sua cara, John.”

Bebemos sem dizer nada por um tempo. O maitre trouxe os menus e Roger mal olhou para ele.

“Eu fui casado três vezes e me divorciei três vezes,” ele disse. “Isso não melhora ou facilita. Na verdade, parece piorar, como ficar pulando no mesmo lugar hora após hora. J. Geils Band está certa. O amor fede.”

Seu novo drinque chegou e ele o bebericou. Eu meio que esperava que ele dissesse Mulheres! Não se pode viver com elas, não se pode viver sem elas! Mas ele não disse.

“Mulheres”, eu disse, começando a sentir como uma criação da minha própria imaginação. “Não se pode viver com elas, não se pode viver sem elas!”

“Oh, sim, você pode”, ele disse, e apesar de ter os olhos em mim, ele estava olhando outra coisa. “Você pode viver sem elas facilmente. Mas a vida sem uma mulher, mesmo se ela é uma megera e resmunga, amargura um homem. Transforma uma parte essencial de sua alma em ferida.”

“Roger –“

Ele levantou uma mão. “Você pode não acreditar, mas nós quase acabamos falando sobre isso”, ele disse. “Nós podemos estar bêbados e sentimentais e enrolados, mas nós vamos falar como estamos bêbados, que é o único assunto sobre o qual os bêbados falam, realmente. Eu queria só dizer o quanto eu lamento sinceramente que Ruth tenha deixado você, e o quanto eu lamento por sua dor. Eu dividiria com você, se eu pudesse.”

“Obrigado, Roger,” eu disse, minha voz um pouco rouca. Por um segundo, havia três ou quatro Rogers sentados na mesa, na minha frente, e eu tive que esfregar os olhos. “Muito obrigado”.

“De nada”. Ele tomou um gole. “Por um momento esqueçamos que eu não posso ajudar ou aliviar, e falar falar sobre seu futuro. John, eu quero que você fique na Zenith House, pelo menos até Junho. Talvez até o fim do ano, mas pelo menos, até Junho.”

“Não posso”, eu disse. “Se eu ficar, serei outro fardo sobre seus ombros, e eu acho que você já os tem bastante.”

“Eu não ficaria feliz em vê-lo ir em outra hora”, ele disse como se não tivesse me ouvido. Ele tirou um cigarro da cigarreira que ele usava – era muito velha e malhada para parecer afetação – do bolso da frente da jaqueta e ficou escolhendo um Kent dentre os outros, como se fosse uma coisa muito importante. “Mas eu posso deixá-lo sair em Junho se parecer que estamos conseguindo caminhar com os próprios pés. Se Enders balançar o machado, eu gostaria que você ficasse até o fim do ano e me ajudasse a colocar as coisas em ordem”. Ele me olhou com alguma coisa nos olhos que estava próxima de um apelo. “Exceto por mim, você é a única pessoa sã na Zenith House. Oh, eu acho que nenhum deles é tão louco quanto o General Hecksler – apesar de algumas vezes eu pensar em Riddley – mas é apenas uma diferença de graduação. Estou pedindo que você não me deixe sozinho neste purgatório, que é o que é a Zenith House este ano.”

“Roger, se eu pudesse – se eu –“

“Tem outros planos, então?”

“Não... não exatamente... mas – “

“Não está planejando sair e confrontá-la, apesar do que diz esta carta?” Ele bateu na carta com o dedo, e acendeu o cigarro.

“Não”. A ideia tinha certamente cruzado minha mente, mas eu não precisava que Ruth tivesse dito que era uma má ideia. Num filme, a garota repentinamente, percebe seu erro quando vê seu herói parado na sua frente, com uma mala na mão, os ombros caídos e o rosto cansado do vôo transcontinental, mas na vida real, eu só conseguiria colocá-la contra mim completamente e para sempre ou provocar alguma espécie de reação de profunda culpa. E eu deveria esperar uma provocada e pugilística reação do Sr. Toby Anderson, cujo nome já tinha se tornado cordialmente odioso. E, apesar de eu nunca tê-lo visto (a única coisa que ela esqueceu de incluir, o noiva chutado disse, era uma foto do meu substituto), eu o imaginava como um jovem muito grande, que parecia, pelo menos na imaginação, como se pertencesse ao time do Los Angeles Rams. Eu não tinha problema em me atirar atrás da minha adorada – há, na verdade, uma parte masoquista de mim que provavelmente adoraria isso – mas seria embaraçoso, e eu iria chorar. É ruim admitir, mas eu choro muito facilmente.

Roger estava me observando bem de perto, mas não disse nada, simplesmente ficou mexendo com o dedo no copo.

E há mais alguma coisa, não há? Ou talvez seja apenas uma coisa, e o resto seja apenas racionalizações. Nos últimos meses, eu tinha tido uma grande dose de maluquice. Não a velha louca que aborda você na rua, ou aqueles bêbados de bar que querem convencê-lo de que eles têm um novo e infalível sistema de apostas para quebrar a banca em Atlantic City, mas a loucura real. E estar exposto a isso e como estar parado em frente a uma porta aberta de uma fornalha, onde está sendo queimado um monte de lixo.

Eu poderia ir até lá para vê-los juntos, ela e o novo namorado – com aquele odioso nome de jogador de futebol – provavelmente passando a mão nela com a despreocupação de dono do pedaço? Eu, John kenton, graduado em Brown e presidente do blá-blá-blá? O formidável John Kenton? Poderia eu talvez cometer um ato realmente irrvogável – um ato que se tornaria melhor se ele fosse tão grande quanto seu odioso nome sugeria? Velho e histérico John Kenton, que confundiu um punhado de efeitos especiais com fotos genuínas?

A resposta é, eu não sei. Mas uma coisa eu sei: acordei de um terrível sonho ontem a noite, um sonho no qual eu jogava ácido de bateria no rosto dela. Isso me assustou tanto, mas tanto, que eu tive que dormir o resto da noite com a luz acesa.

Não no rosto dela. No dela. No rosto de Ruth.

“Não”, eu disse de novo, e então virei o resto do drinque na secura que eu ouvia em minha voz. “Não, eu acho que não seria muito esperto”.

“Então você devia ficar onde está”.

“Sim, mas não poderia trabalhar”. Eu olhei para ele com alguma exasperação. Minha cabeça estava começando a zumbir. Não era um zumbido muito agradável, mas mesmo assim, fiz sinal ao garçom, que estava perto, para trazer outro. “Agora mesmo, estou tendo dificuldades para lembrar como amarrar meus sapatos”. Não. Errado. Isso era legal e soava bem, mas não era verdade – meus cadarços não tinham nada a ver com isso. “Roger, estou deprimido”.

“Pessoas enlutadas não devem vender a casa depois do funeral,” Roger disse, e o zumbido parecia ter me deixado extremamente mordaz – pior que H.L. Mencken. Eu ri.

Roger sorriu, mas eu podia ver que ele estava sério. “É verdade”, ele disse. “Uma das poucas matérias interessantes que eu tive na faculdade chamava-se Psicologia do Stress Humano – um daqueles tapa-buracos que eles colocam para preencher o último ano, antes de você se tornar professor estagiário –“

“Você ia ser professor?” perguntei, espantado. Eu não conseguia ver Roger lecionando – e então, de repente, eu pude.

“Eu lecionei por seis anos”, Roger disse. “Quatro para o colegial e dois para o primário. Mas esse não é o ponto. Esse curso discute situações de stress como casamento, divórcio, aprisionamento e luto. O curso não era realmente uma espécie de Viva Melhor, mas se você mantivesse seus olhos abertos, poderia aproveitar um pouco. Uma das coisas era sobre como viver pelo menos os primeiros seis meses de um luto profundo na casa em que você e seu amor moravam quando ele morreu”.

“Roger, não é a mesma coisa”. Virei meu novo drinque, que tinha o mesmo gosto do anterior. Me ocorreu que eu estava ficando bêbado. Também me ocorreu que não estava me importando.

“Mas é”. Ele disse, inclinando-se solenemente para mim. “De uma certa maneira, Ruth está morta agora. Você deve vê-la de vez em quando no futuro, mas se esse fora é tão definitivo quanto parece na carta, a Ruth que poderíamos chamar de Lover-Ruth está morta agora. E você está enlutado”.

Abri a boca para dizer-lhe que ele era um monte de merda, mas fechei de novo, porque a última parte do que ele dissera estava certa. Aquele que carrega a tocha realmente importa, certo? Você está enlutado por um amor que morreu – o amor que está morto para você, pelo menos.

“As pessoas tendem a pensar que “mágoa” e “depressão” são termos intecambiáveis”, Roger disse. Seu tom de voz estava bem mais pedante do que normalmente, e seus olhos estavam avermelhados. Me ocorreu que Roger estava ficando de porre também. “Eles não são. Há elementos de depressão na mágoa, claro, mas há um monte de outros sentimentos também, que vão de culpa e tristeza até mágoa e alívio. Uma pessoa que passa por essa mescla de sentimentos é uma pessoa que está indo de encontro ao inevitável. Ele chega a um novo lugar e descobre que sente exatamente a mesma mistura de emoções que chamamos mágoa – exceto que agora, ele se sente doente também, e um sentimento de ter perdido a ligação essencial que transforma a mágoa em lembrança”.

“Você lembra tudo isso de um curso de oito semanas que você fez dezoito anos atrás?”

Roger bebeu um pouco do seu drinque. “Claro”, ele disse. “Eu tirei um A”.

“Uma porra que você tirou”.

“Também comi a estagiária que deu o curso. Que pedaço ela era”.

“Não é o meu apartamento que eu estava planejando deixar,” eu disse, apesar de não ter ideia se pretendia ficar nele ou não...e eu sei que este não é o ponto.

“Eu não me importo se você vai sair daquele buraco onde você mora ou não,” ele disse. “Você sabe do que estou falando. Seu trabalho é a sua casa.”

“É mesmo? Bem, o teto está com vazamento”, eu disse, e aquilo me pareceu um pouco mordaz. Eu estava ficando de porre, com certeza.

“Eu quero que você me ajude a consertar o vazamento, John,” ele disse, se inclinando para frente com determinação. “É isso que estou dizendo. Por isso o convidei para sair esta noite. E o seu consentimento é a única coisa capaz de diminuir o que, sem dúvida, vai se tornar a pior ressaca da minha vida. Ajude a nós dois. Fique”.

“Você vai me perdoar se tudo isso soa um pouco casual e interesseiro”.

Ele se recostou. “Eu respeito você”, ele disse um pouco frio, “mas eu também gosto de você, John. Se eu não gostasse não estaria arriscando meu rabo para mantê-lo”. Ele hesitou, pareceu a ponto de dizer algo mais, mas não disse. Seus olhos disseram por ele: E me humilhando para você.

“Eu só não entendo porque você está se esforçando tanto”, eu disse. “Quero dizer, fico envaidecido, mas –“

“Porque se alguém pode trazer um livro ou criar uma ideia que mantenha a Zenith fora d’água, é você”, ele disse. Havia uma intensidade em seus olhos que eu achei quase assustadora. “Eu sei a porra do quanto você ficou constrangido com toda aquela estória do Detweiller, mas-“

“Por favor,” eu disse. “Xingue, mas não ofenda.”

“Não tenho intenção de discutir esse assunto,” ele disse. “É só por causa dessa sua atitude de recusa-“

“Era uma recusa, mesmo –“

“Quer calar a boca e escutar? Sua resposta à carta de Detweiller mostrou que você ainda está alerta a uma potencial ideia comercial. Herb ou Bill teriam simplesmente jogado a carta dele num arquivo.”

“E teria sido muito melhor para todos”, eu disse, mas vi onde ele estava querendo chegar e estaria mentindo se eu não dissesse que estava envaidecido...e que eu me sentia um pouco melhor sobre o caso Detweiller pela primeira vez desde a minha humilhação na delegacia.

“Desta vez”, ele concordou. “Mas aqueles caras também teriam largado V. C. Andrews com sua série Toys in the Attic, ou alguma ideia nova em folha. Bum, jogariam dentro de um arquivo e voltariam a contemplar seus umbigos.” Fez uma pausa. “Preciso de você, Johnny, e acho que o melhor seria você ficar – para você, para mim, para a Zenith. Não há outra maneira de dizer isso. Pense melhor e me dê uma resposta. Eu a aceitarei, seja qual for.”

“Você estaria me pagando para cortar bonecas de papel”.

“Esta é a chance que eu estava esperando.”

Eu pensei sobre isso. Tinha começado a limpar minha mesa naquele dia e não tinha ido muito longe – parafraseando Poe, quem poderia imaginar que uma velha escrivaninha guarde tanta porcaria? Ou, talvez por isso, e aquele clique de não conseguir amarrar os cadarços dos meus sapatos sozinho não fosse tão errado, afinal.

Eu tinha pego duas caixas de papelão vazias no quarto de Riddley (que cheirava estranhamente a mato ultimamente, como maconha fresca – e, não, não vi nenhuma) e não tinha feito nada a não ser olhar para uma e para a outra. Talvez, com um pouco mais de tempo eu pudesse, pelo menos, completar o trabalho básico de limpar minha velha vida, antes de começar alguma nova. Por isso eu me sentia tão fudidamente triste.

“Suponha que nós esqueçamos minha demissão até o final do mês”, eu disse. “Fica melhor para você?”

Ele sorriu. “Não tão bom quando eu esperava”, ele disse, “mas não pior do que eu temia, tampouco. Eu topo. E agora, acho melhor pedirmos enquanto ainda podemos sentar direito”.

Pedimos filés, e comemos, mas minha boca estava tão dormente, que nem senti o gosto. Acho que devo ficar agradecido por ninguém ter precisado fazer a manobra de Heimlich em nenhum de nós.

E quando fomos embora – um amparando o outro, observados por um ansioso maitre (não duvido que a única coisa que ele queria era nos ver longe antes que quebrássemos alguma coisa), Roger disse: “Tem outra coisa que eu aprendi naquele curso de psicologia-“

“Como você disse que chamavam o curso? A Psicologia das Almas Danificadas?”

Estávamos do lado de fora então, e a risada dele saía com pequenos jatos de fumaça. “Era Psicologia do Stress Humano, mas realmente acho esse nome que você deu melhor”. Roger acenou energicamente para um táxi, cujo motorista em breve lamentaria ter nos pego. “Eu também disse que ajuda manter um diário”.

“Merda”, eu disse. “Eu não tenho um diário desde os onze anos”.

“Que diabos”, ele disse. “procure por ele, John. Talvez ainda esteja em algum lugar”. E teve outro daqueles acessos de riso que só terminou quando ele se inclinou e ficou olhando para seus sapatos. Ele ainda falou naquilo mais duas vezes no caminho até seu edifício na 20th com a Park Avenue South, inclinando-se na janela o máximo que podia (o que não era muito, pelo fato de estarmos num daqueles Plymouths, onde as janelas traseiras só abrem até a metade, e têm aquele aviso que diz NÃO FORCE A JANELA!) e vomitou num jato e reclinou-se no banco com uma expressão apatetada no rosto. Nosso motorista, um nigeriano ou somaliano, pelo sotaque, estava horrorizado. Ele parou no meio fio e nos mandou descer, e eu já estava obedecendo, mas Roger ficou sentado, firme.

“Meu amigo”, ele disse, “eu sairia se pudesse andar. Como não posso, você vai ter que nos levar”.

“Querer você sair do meu táxi, pelo amor de Deus”.

“Até agora eu tenho feito a cortesia de vomitar do lado de fora da janela”, Roger disse, com a mesma expressão de indiferença no rosto. “Não está sendo muito fácil por causa do ângulo, mas é o que tenho feito. Acho que, em poucos minutos, vou vomitar de novo. Se você não continuar nos levando, vou vomitar no cinzeiro”.

No prédio de Roger, eu o ajudei a entrar e o vi pegar o elevador com a chave do apartamento na mão. Então voltei para o táxi.

“Pegar outro táxi”, disse o motorista. “Você me pagar e pegar outro. Eu não querer mais levar você”.

“Só até o Soho”, eu disse, “e eu vou dar-lhe uma maldita gorjeta. Também estou me sentindo um pouco enjoado”. Era um pouco mentira, receio.

Ele me levou, e vendo minha carteira no dia seguinte, percebi que tinha dado mesmo uma maldita gorjeta. E eu realmente consegui subir as escadas antes de vomitar. Apesar de, uma vez começado a vomitar, não consegui parar por um bom tempo.

Não apareci no dia seguinte – tudo que consegui foi sair da cama. Minha cabeça doía muito, parecia inchada. Liguei por volta das três, e Bill Geb me disse que Roger também não tinha aparecido.

Desde então eu tenho chorado muito e tido muitas noites de insônia, mas talvez, Roger não esteja tão errado – as únicas horas em que me sinto meio vivo, são as em que estou no nono andar da 490 Park. Riddley teve mesmo que me “varrer” para fora, junto com a poeira, nas últimas duas noites. Talvez haja algo no velho “ele se mete com sua própria vida”, afinal. Talvez esse diário seja uma boa ideia...apesar de ser somente um alívio ter feito isso com meu livro. Talvez eu fique, afinal. Para frente e adiante...se é que algum adiante para mim. Cara, ainda não consigo acreditar que ela se foi. E ainda não perdi a esperança de que possa mudar de ideia.

 

21 de Março de 1981

Sr. John “Merdinha” Kenton

Zenith House Publishers, Home of the Pus-Bags

490 Kaka Avenue South

NewYork, NewYork 10017

 

Caro Merdinha,

Você achou que eu tinha esquecido você? Meus planos de vingança contra você avançam, não importa O QUÊ! aconteça comigo! Você e seus amigos “purulentos” logo sentirão a FÚRIA! de CARLOS!

Eu tenho acumulado os poderes do Inferno,

Carlos Detweiller

Em trânsito, USA

PS – Algo está cheirando “verde”, Sr. Merdinha Kenton?

 

Do diário John Kenton

22 de Março de 1981

 

Recebi uma carta de Carlos Hoje. Eu ri até ficar histérico. Herb Porter veio correndo, querendo saber se eu estava morrendo ou o quê. Eu mostrei a carta. Ele leu e só franziu o rosto. Ele quis saber do que eu estava rindo – eu não levava este Detweiller a sério?

“Oh, eu o levo a sério...algo assim,” eu disse.

“Então de que diabos você está rindo?”

“Eu acho que eu devo ser apenas um taco velho no grande assoalho do universo,” eu disse, e isso me fez ter outro acesso de riso.

Franzindo o rosto tanto que as linhas tinham se tornado rugas profundas, Herb colocou a carta no canto da minha mesa e voltou-se para a porta, como se não importa o que eu tivesse, pudesse ser contagioso. “Eu não sei porque você está tão estranho ultimamente”, ele disse, “mas vou lhe dar um bom conselho mesmo assim. Arrume algum tipo de proteção pessoal. E se você precisar de ajuda psiquiátrica, John-“ continuei rindo – tinha entrado num estado de semi histeria. Herb me observou por um instante, então abriu a porta e saiu. Assim, realmente acabei chorando.

Eu esperava falar com Ruth esta noite. Como para exercitar minha força de vontade, eu tinha resolvido não ligar, esperando a cada dia que ela me ligasse. Imaginando Ruth e o odioso Toby pulando juntos. Então, eu liguei para ela. Muita força de vontade.

Se eu tivesse um endereço de resposta, mandaria um cartão postal para Carlos Detweiller: “Caro Carlos – eu sei tudo sobre acumular poderes do Inferno. Seu obediente servo, Merdinha Kenton”.

Por que eu me importo em escrever essa baboseira, ou porque continuo cavoucando nas velhas pilhas de manuscritos na sala de correspondência ao lado do quarto de Riddley, é um mistério para mim.

 

23 de Março de 1981

Meu telefonema para Ruth era um desastre anunciado. Porque eu deveria estar sentando aqui escrevendo sobre isso quando eu não deveria nem mesmo querer pensar nisso desafia a razão. Perversidade além de perversidade. Realmente, eu sei – eu tenho uma vaga ideia de que se eu escrever, vou fazer diminuir o poder que isso tem sobre mim...então, deixe-me confessar, mas quanto menos, melhor.

Já escrevi que tenho chorado facilmente? Eu acho que sim, mas não tenho condições de reler o que escrevi para saber. Bem, chorei. Talvez isso diga tudo. Ou talvez não. Eu acho que não. Passei o dia – os últimos dois ou três dias, na verdade – dizendo a mim mesmo que eu não deveria: a) chorar, ou b) implorar para ela voltar. Terminei fazendo. c) ambos. Tive várias conversas comigo mesmo nos últimos dias (e muitas noites insones), sobre Orgulho. Como em “Quando tudo o mais se foi, um homem tem seu Orgulho”. Tentei confortar-me com esse pensamento, fantasiando que eu era Paul Newman – naquela cena em Cool Hand Luke, quando ele está sentado em sua cela, depois de sua mãe morrer, e ele toca banjo e chora silenciosamente. Tocante, mas frio, definitivamente frio.

Bem, minha frieza durou exatamente quatro minutos, ouvindo a voz dela e tendo uma súbita nostalgia de Ruth – algo como uma tatuagem na imaginação. O que eu estou dizendo é que eu não sabia o quanto ela tinha me deixado até ouvir ela dizer “Alô? John?” – só essas duas palavras – e eu tive uma panorâmica das lembranças de Ruth – Deus, o quanto ela estava aqui, quando estava aqui! Quando tudo o mais se foi, um homem tem seu Orgulho? Sansão deve ter tido o mesmo sentimento sobre seus cabelos.

De qualquer forma, eu chorei e implorei e, depois ela chorou e no fim desligou para se livrar de mim. Ou talvez, o odioso Toby – eu não o ouvi, mas de alguma forma, eu tinha certeza de que ele estava no quarto com ela; eu quase podia sentir o cheiro do perfume Brut – tenha pego o telefone da mão dela e desligado. Então eles poderiam discutir sobre o anel de noivado, ou sobre o casamento em Junho, ou talvez ele tenha misturado suas lágrimas as dela. Amargo – amargo – eu sei. Mas descobri que, depois que o Orgulho se vai, um homem tem sua Amargura.

Descobri mais alguma coisa esta noite? Sim, eu acho. Que tinha acabado – genuína e completamente acabado. Iria me impedir de ligar para ela de novo e me humilhar mais ainda (se é que isso era possível)? Não sei. Eu espero que sim – Deus, espero que sim. E sempre há a possibilidade dela mudar seu número de telefone. De fato, acho que isso é provável, dados os acontecimentos desta noite.

Então, o que há para mim, agora? Trabalho, eu acho – trabalho, trabalho e mais trabalho. Me enfiei de cabeça na pilha de manuscritos na sala de correspondência – manuscritos não solicitados, que nós nunca devolvemos, por uma razão ou por outra (afinal, diz na placa que não aceitamos nenhuma responsabilidade por nenhum órfão.) Eu realmente não esperava achar o próximo Flowers in the Attic lá, ou um futuro John Saul ou Rosemary Rogers, mas se Roger estava errado sobre isso, ele estava muito certo sobre algo muito mais importante – o trabalho mantinha minha sanidade.

Orgulho...daí Amargura...daí Trabalho.

Oh, foda-se. Estou saindo, indo comprar uma garrafa de bourbon, para ficar bêbado para cacete. Este é John Kenton, saindo fora e indo para a grande bomba.

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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