Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PRINCESA DA TERRA DE NINGUEM / Albert Bonneau
A PRINCESA DA TERRA DE NINGUEM / Albert Bonneau

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A cidade dos nove rios
Desde as primeiras horas da manhã que Miukiang se enchera de ruídos anormais. A multidão comprimia-se ao longo dos cais do Yang-Tsé, pelas avenidas, calçadas e vielas.
Mas não era aquela a gente habitual que estacionava perto dos mostruários dos comerciantes instalados ao ar livre. Um vento de pânico e de terror soprava sobre a cidade. Por vezes, dominando os apelos e as invectivas que não cessavam, ouvia-se para sudoeste a voz profunda do canhão. O pavor apoderava-se de todos, desde o mais miserável coolie até ao poderoso mandarim que passava, levado pelos seus servos, e, procurando evitar os terrores da guerra, fugia para a sua casa de campo.
Através daquele mar humano, Danielle Mercoeur avançava com dificuldade e muitas vezes um remoinho da multidão empurrava-a brutalmente.
Grande viajante, Danielle sentia-se há muito familiarizada com as multidões chinesas; conhecia aquela atmosfera sufocante onde se misturavam todos os cheiros: de urina, de aromas, de curral e de cemitério; paciência, tentaria vencer a corrente e chegar até à porta central, verdadeiro building de branca fechada e impressionantes dimensões, a contrastar fortemente com as miseráveis casotas que o cercavam.
Afastem-se! Deixem-me passar!

#
#
#

#
#

Mas era debalde que a rapariga procurava abrir caminho por entre a turba. Polícias, nem um se via, nem soldados. Parecia que todas as tropas regulares e representantes
da autoridade haviam evacuado Miukiang há muitas horas. Apenas civis, até aonde a vista alcançava, empurrando-se uns aos outros ou rebocando pequenos carros onde
transportavam o que de mais precioso possuíam. As mulheres carregavam com os filhos, que choravam lamentosamente. Passavam rickshaws atestados de caixas e por vezes
de pensionistas das casas de chá. Perdidos naquela barafunda, alguns automóveis buzinavam febrilmente, mas sem êxito. Eram obrigados a marchar a passo, seguindo
a onda da multidão.
O êxodo prosseguia sem descanso. Aqui e ali, no corpo da cidade, distinguiam-se enormes feridas; eram casas derruídas, a estação de caminho de ferro quase pulverizada,
os cais arrebentados em muitos pontos. E, por toda a parte, cadáveres que jaziam abandonados, ao acaso, patenteavam as razões supremas do pânico que se apossara
da população. Os aviões japoneses não cessavam de despejar toneladas de explosivos sobre Miukiang, há dois dias ainda quartel-general das forças chinesas e hoje
foco de incêndios, de pilhagem e de terror. Um cheiro acre a queimado aliava-se aos eflúvios inquietantes da carne morta. Espessas colunas de fumo negro subiam para
o céu no bairro da porcelana e no das sedas, cujos entrepostos ardiam sem qualquer intervenção dos bombeiros. Tinham sido
incendiados pelas bombas dos aviões nipónicos na noite anterior. A grande cidade martirizada parecia entregue a si própria.
Sozinha, no meio de toda aquela barafunda, Danielle Mercoeur não mostrava ter perdido o sangue-frio.
Havia já cinco meses que ela seguia as fases do conflito sino-japonês, na qualidade de correspondente do jornal francês Le Monde, e fora testemunha de muitas cenas
de horror. Quer em Xangai quer em HanKeu, vivera já numerosos dias de angústia e de esperança junto dos não combatentes, as mais desgraçadas vítimas daquela guerra
por declarar que há anos pusera frente a frente os dois grandes povos amarelos.
A rapariga vestia um fato de desporto cinzento, que lhe ficava lindamente, e cobria-se com minúsculo chapelinho de feltro de abas flexíveis. Seu rosto, de feições
regulares, de olhos cor de violeta, exprimia, a um tempo, franqueza, energia e confiança em si. Mechas de cabelos rebeldes loiros soltavam-se do chapéu; de tempos
a tempos, com um rápido movimento de mãos, arremessava-as para trás, mas logo os encontrões a obrigavam a outros cuidados para evitar de ser esmagada.
Por vezes, além da fuga espavorida de homens, mulheres e crianças, os porquitos negros tão vulgares nas ruas da China juntavam-se ao cortejo, grunhindo e chafurdando
na lama das vielas. Outras vezes eram os carros à vela que os seus condutores não conseguiam deter e vinham esbarrar com a multidão. E, sobre aquilo tudo, o pavoroso
concerto dos gemidos, dos apelos e das pragas.
Nunca Miukiang, a cidade dos nove rios, regada pelo Yang-Tsé e por vários dos seus afluentes, essa cidade há pouco tão próspera e sorridente, apresentara tal aspecto
de desolação e terror! Danielle recordava-se
dos massacres de Chapel e Han-Keu, dos implacáveis bombardeamentos que lançavam por terra, nas ruas lavradas pela força irresistível das explosões, muitas centenas
de desgraçados. Encontrava-se ali a mesma atmosfera. Não obstante, com o aparelho fotográfico a tiracolo, Danielle perseverava no seu intuito de alcançar o edifício
central dos correios. Abrindo caminho às cotoveladas, conseguiu chegar à grande escadaria, e, soltando uma exclamação de alívio, começou a subir os seus degraus.
Ia a alcançar a porta, quando uma silhueta se ergueu de súbito na sua frente. Ao mesmo tempo, uma voz bem conhecida perguntava-lhe, em francês:
- O quê, Dany, você aqui? Que feliz surpresa! Danielle parou. Um rapaz dos seus vinte e cinco anos, de rosto risonho ornado de pequeno bigode, e vestido com um impermeável
alvadio, encontrava-se à porta do correio, com um cachimbo curto entre os dentes e armado, como ela, de um bom aparelho fotográfico. A jornalista reconheceu imediatamente
o seu colega Paulin Quartier, o colaborador principal do grande ilustrado Actualité. Alto, magro, desportivo. As cenas de sangue, de pânico e horror que agora se
desenrolavam ante os seus olhos não pareciam impressioná-lo. No entanto, Danielle surpreendeu nas suas pupilas aquele ligeiro fulgor que já tantas vezes notara.
Não se poderia jurar, ao vê-lo, se Paulin estava sério ou se pretendia brincar.
A jovem ia dizer qualquer coisa, quando o colega a antecedeu:
- Que bela surpresa, Dany! Desde Xangai que não nos tornámos a ver! E nunca suporia que você se aventurasse até esta cidade perdida do país dos nove rios!
- Depois lhe explicarei, Paulin - interrompeu a rapariga -, mas agora deixe-me passar, pois estou imensamente apressada. É preciso que por todo o preço envie um
cabograma ao meu patrão!
Um risinho irónico acolheu aquela explicação. Os olhos trocistas do francês fixaram-se insistentes na sua vizinha.
- Um cabograma! Mas nem pensar nisso é bom, minha pobre Dany! Não há um único empregado em todo o edifício dos correios; todos abalaram e creio que o director, espavorido,
foi o primeiro a dar o exemplo! Além de que um avião deixou cair aqui uma atenciosa lembrança. O torpedo deve ter explodido no grande hall e feito umas trinta vítimas;
os restantes funcionários não insistiram, tanto mais que os chineses não possuem um sentimento exageradamente desenvolvido do dever profissional.
- Que importa que não haja empregados? Sempre saberei enviar um telegrama ou mesmo telefonar!
- Criança! Mas se as linhas telefónicas já não existem! Japoneses, chineses e até os famosos bandidos que exercem a sua actividade criminosa entre as duas armadas
encarregaram-se de as destruir.
Danielle compreendeu o bem fundado das declarações do seu compatriota. Além de que ligeiro golpe de vista pela sala dos aparelhos foi suficiente para confirmar o
que ouvira. Numa confusão indescritível de fios quebrados e torcidos jaziam alguns corpos e viam-se enormes manchas de sangue; no sobrado.
Paulin Quartier examinava insistentemente a rapariga; e o tal fulgor que tanto enervava Danielle fez-lhe cintilar as pupilas.
- Você continua o mesmo impertinente, Paulin!
- exclamou ela. - Troça constantemente.
- Há que distinguir, pois não estou troçando. Apenas me recordo de Miguel Strogoff!
- De Miguel Strogoff?
- Pois claro! Julgo que se lembra ainda do célebre romance de Júlio Verne.
- Se me lembro! Eu andei apaixonada pelas aventuras dos seus heróis!
- Então compreende que nesta ocasião não posso deixar de recordar os dois jornalistas, Harry Blount e Alet de Jolivet, lembra-se? O escritório do correio de Kolivan!
"A dez "kopeks" por palavra!" E os fios do telégrafo cortados pelos tártaros!
- Se me lembro? Até vi representar a peça no Châtelet!
- Pois então parece que nos debatemos em igual situação que a desses simpáticos confrades! com a única diferença que a guerra sino-japonesa que presenciámos soube
beneficiar dos progressos da civilização, se assim me posso exprimir! Já não estamos na época das lanças e das pobres espingardas dos cavaleiros tártaros de Feofar-Khan!
Pronunciando estas palavras, Paulin Quartier apontava o interior da estação telégrafo-postal, arrasada por um torpedo de avião.
- Os guerreiros de Feofar-Khan, esses nem sequer tinham metralhadoras, enquanto que os rudes combatentes que nos interessam estão munidos de armas mais perfeitas,
de aviões, de tanques, dominam a electricidade, captam as ondas hertzianas! É espantoso o progresso realizado na arte de matar, nos últimos cinquenta anos!
Danielle acenou afirmativamente com a cabeça; algumas visões de horror, de carnificina e de miséria a que assistira no decurso daquela guerra vinham-lhe
à memória; não obstante, teve que abandonar essas pouco agradáveis evocações quando o seu confrade se inclinou para ela.
- Você nem me apertou a mão, Dany!
- É verdade, desculpe-me. Mas estava com tanta pressa. Pensava poder enviar hoje ao meu jornal a reportagem da batalha do lago Toyang, que os japoneses acabam de
ganhar.
- A sua reportagem terá de esperar, minha amiguinha, como esperarão as fotografias que me é impossível remeter com destino à Actualité, fotografias verdadeiramente
sensacionais que consegui realizar!
- Naturalmente com perigo de vida?
- Na verdade você está indicada para me dar conselhos de prudência, Dany - replicou o rapaz. Conheço e tenho visto muitos colegas exporem-se à morte, mas nunca vi
ninguém tão temerário, nem nenhum imprudente do seu calibre! Não é sem razão que todos os jornalistas acreditados como correspondentes de guerra junto de qualquer
dos exércitos lhe chamam a Princesa da "Terra de Ninguém"! Ingleses, franceses ou americanos, são unânimes em reconhecer-lhe um admirável sangue-frio! Watson, do
Daily Telegraf, deve-lhe a vida; você trouxe-o para as linhas chinesas debaixo do fogo das metralhadoras nipónicas. E foi você também quem prestou os primeiros socorros
a Blumenstein, ferido por um estilhaço de obus; sem a sua rápida e enérgica intervenção o pobre diabo sucumbiria inevitavelmente à hemorragia!
Danielle ergueu os ombros com indiferença.
- Isso são os ossos do ofício, que você conhece aliás. tão bem como eu - replicou ela. - Além de que não devia ser você quem me fizesse esses elogios, Paulin. Não
é a si que se deve o não haver sido destruído
o convento das irmãzinhas de Mao-Sing, salvando centenas de crianças, graças à sua energia? É chique e bem francês esse seu acto!
- Não vá agora recomeçar com a história, Dany; você já fez um enorme estardalhaço no seu jornal a propósito desse episódio sem importância! Fez-me corar como uma
donzela, ao ler tanto elogio!
- Basta! - declarou a jovem. - Ponto final no passado e tratemos do futuro. E, para começar, poderá dizer-me onde se encontram actualmente os nossos restantes confrades
da imprensa europeia ou americana?
- Palavra que me vejo embaraçado para lhe prestar quaisquer esclarecimentos a esse respeito! Saí para Miukiang um pouco à aventura. Consegui arranjar um quarto no
Hotel Excelsior.
- Tal e qual como eu. Já estava farta de passar os dias a ouvir troar a artilharia, que se aproximava cada vez mais. Aluguei dois cavalos e um boy e abalei à cata
de novas interessantes.
- São sempre as mesmas, as notícias.
"Os japoneses avançam; os chineses executam uma retirada estratégica e aguardam, firmes como rochedos, que a imensidade dos seus territórios lhes permita rechaçar
o inimigo, tal como as estepes russas conseguiram aniquilar em 1812 o esforço do Grande Exército de Napoleão! Entretanto, entre as duas linhas inimigas, nessa Terra
de Ninguém tanto da sua predilecção, os bandidos, e em especial o tão famoso general You, vão multiplicando as suas razias e sangrentas proezas.
Danielle nada respondeu. A situação conhecia-a ela tão bem como Paulin Quartier. Naquele momento preocupava-a sobretudo o facto de não poder enviar o seu
artigo. Os seus lindos olhos fixaram-se naquela maré de gente que continuava a rolar na sua frente, dirigindo-se para oeste.
- Todo o bairro sul é agora pasto das chamas observou Paulin. - com a seca dos últimos dias o restante da cidade encontra-se deveras ameaçado!
- Receio bem que os japoneses quando entrarem em Miukiang, já não encontrem grande coisa.
Os dois jovens deixaram o seu refúgio e aventuraram-se de novo pela rua, onde a multidão os absorveu. Paulin ofereceu o braço à companheira e puseram-se a caminhar
lado a lado, fazendo por obliquar, a fim de escaparem à corrente da turba. No rosto de todos os chins que os cercavam lia-se a mesma expressão de error e resignação.
- E dizem que estamos num século que se pretende civilizado!-suspirou Danielle.-Os desgraçados que antigamente fugiam ante a invasão dos bárbaros deviam ter este
aspecto e este ar apavorado.
- E nós nada podemos fazer em defesa desses infelizes que se vêem abandonados pelos próprios que tinham por missão protegê-los. Mas é em si, Dany, que temos agora
de pensar! Você não pode continuar no meio desta populaça e nesta região ameaçada.
- Mas você pode, Paulin! - replicou a rapariga.
- Eu? Isso é diferente, eu sou um homem, ao passo que você.
- Éclaro, eu sou a rapariga frágil, delicada, boa apenas para ficar ao borralho! Pois olhe, com risco de o ofuscar e por mais trágica que seja a situação, confesso-lhe
que você me dá vontade de rir, meu pobre amigo! Se a morte quisesse alguma coisa comigo, há muito tempo já que eu teria morrido!
- É preciso não brincar com o fogo, Dany! Você
conhece o provérbio: "Tantas vezes vai o cântaro à
fonte. ?"
até que lá fica!" Conheço-o muito bem,
meu caro Pauline, aqui entre nós, sempre lhe quero dizer que não é muito gentil da sua parte comparar-me a um cântaro; parece-me que valho mais do que isso! -
Ora, você bem sabe o que pretendo dizer!-protestou o jornalista. - Se assim falo é porque tenho o máximo interesse por si. Porque sou seu amigo, Dany, porque você
me inspira muito mais ainda do que simples simpatia!
Meu caro Paulin! Parece-me que está disposto a
fazer-me a corte no meio desta barafunda! Em geral, os amadores de flirt procuram sítios mais tranquilos. Além de que, desde já o previno, sou muito independente
Para dar ouvidos aos seus ternos discursos. Não estou nada disposta a prender-me por toda a vida!
A intempestiva chegada dum carrinho à vela, que quase a deitava ao chão, interrompeu a rapariga; tropeçand foi cair nos braços de Paulin Quartier, que logo se aproveitou
da oportunidade para lhe murmurar
com malícia:
- Vê? Vê? Repare que há certas circunstâncias em que se torna útil ter um companheiro!
Basta de brincadeiras; deve confessar que é pouco
generoso!
Desculpe! Mas você sustenta uma tese; permita-me pois que defenda a minha!
Durante alguns momentos deixaram de se falar, preocupados unicamente em resistir à pressão violenta dos que se comprimiam à sua volta.
por fim conseguiram chegar a uma rua transversal, caminhando por entre os escombros das casas destruídas
por qualquer bomba de avião e parando a descansar à sombra de paredes esburacadas. Enquanto a jovem enxugava o rosto orvalhado de suor, Paulin Quartier perguntou-lhe:
- E agora, que vai fazer?
Danielle respondeu com uma única palavra:
- Continuar!
- Continuar é bom de dizer! Mas não crê que seja imprudente aventurar-se assim sozinha?
- Tenho os meus papéis em regra!
- Os bandidos do general You pouco se preocupam com papéis e documentos, mesmo que neles vejam os selos dos dois quartéis-generais! Quanto aos japoneses, não esqueça
que já por duas vezes a iam fuzilando como espia!
- Provei-lhes a minha inocência e soltaram-me!
- Sem dúvida, mas nada a autoriza a supor que se dê sempre esse caso!
- E, é claro - replicou Danielle -, você acha que eu seja demasiado nova e fraca para me dirigir e governar sozinha. Basta de bons conselhos, caríssimo Paulin. Mais
uma vez recuso a colaboração que- me ia oferecer pela vigésima vez, pelo menos, desde que vagueamos pela China!
- Mas oiça, Dany! Já que os nossos jornais não são concorrentes: você trabalha para um diário ao qual envia reportagens sensacionais; eu andoà caça de fotografias
impressionantes para um semanário ilustrado. Associando-nos, estou intimamente persuadido de que poderíamos realizar grandes coisas!
- E eu estou também persuadida de que a liberdade e a independência são coisas maravilhosas! É verdade, caríssimo Paulin, fico encantada por o encontrar de tempos
a tempos, mas prefiro caçar as notícias sòzinha,
como caçador solitário. Não é debalde que vocês todos me chamam a Princesa da Terra de Ninguém"! Quero merecer esse nome e, hoje mais do que nunca, sinto-me disposta
a proceder como tenho procedido até qui.
- Mas é uma terrível imprudência, sobretudo agora que a situação está por tal forma embrulhada. Já não há linha de frente, já se não sabe se estamos num ou noutro
dos campos adversos!
A rapariga ia responder, quando desesperadas exclamações se ergueram da multidão; ao mesmo tempo um ruído cada vez mais próximo fazia-se ouvir. Instintivamente os
dois jovens ergueram os olhos para o céu limpo de nuvens. A pouca altura planavam uns vultos rilhantes.
- Os aviões japoneses! - murmurou surdamente
Paulin. - Voltam a bombardear Miukiang!
II
Sob as bombas e os torpedos
Os chineses que pejavam a rua central da cidade dos nove rios compreenderam imediatamente o perigo que os ameaçava, recordando as passadas matanças que tão sangrentos
vazios deixara entre eles, pacífica população de uma cidade aberta. Num abrir efechar de olhos toda aquela massa humana, que caminhava para a porta de oeste, se
desfez; numa correria doida, os amarelos refluíram para as vielas transversais ou para os abrigos que sehaviam estabelecido recentemente na cidade a fim de proteger
a população contra os ataques aéreos. Em poucos minutos, carrinhos de mão, carros, rickshaws (1 e toda a espécie de bagagens ficaram abandonados em plena rua; num
movimento irresistível de fuga, a populaça procurava abrigar-se dos torpedos e bombas que iam chover do céu.
() Ou melhor: jinricksha - pequeno carro de duas rodas puxado por homens que os franceses adoptaram e transplantaram para muitas outras colónias suas e a que geralmente
chamam pousse. - (N. do T.).
os aviões aproximavam-se rapidamente, e os dois jornalistas puderam verificar tratar-se de grandes aparelhos de bombardeamento com a fuselagem pintada de vermelho;
o sol nipónico sobressaía nos extremos das asas daquelas máquinas de guerra que começavam voando sobre a cidade.
- Em nome do céu, deite-se por terra! - aconselhou Paulin à companheira.
- Senhor fotógrafo, dê o exemplo - retorquiu a jovem, que, muito direita, uma das mãos em pala sobre os olhos, seguia atentamente as evoluções daquela forte esquadrilha
de nove aparelhos.
Paulin Quartier foi obrigado a deitar-se de bruços, embora contra sua vontade.
- Éuma imprudência. Você não pode continuar a expor-se desta maneira! Oiça, onde está agora instalada?
- Atenção! Vamos ter molho! Pena não termos chapéus de chuva!
Foi assim que Danielle lhe respondeu enquanto seacocorava a seu lado. E, estendendo a mão, apontoa três dos aviões que então voavam sobre a gare.
- Eu não lhe dizia ?
Várias explosões surdas seguiram as palavras da jovem. Os bombardeiros acabavam, na verdade, de lançar as primeiras bombas, logo assinaladas por espessas colunas
de fumo. Um torpedo deflagrou em plena estação, destruindo o armazém das locomotivas.
Não se ouvia agora em Miukiang o mínimo rumor; o medo tornara a população, nó geral tão barulhenta, calada como ratos; cada qual procurava esconder-se o melhor possível.
Danielle, impressionada, apesar de tudo, por aquela calma pressaga de tempestade, imobilizara-se também, quando de súbito soltou uma exclamação.
antes que o seu companheiro tivesse tempo de esboçar o mais pequeno gesto para a reter, lançou-se na direcção da grande avenida. Gritos angustiosos e apelos vinham
até ela, soltos por uma criança que, abandonada num carrinho, chorava e agitava os bracitos. Era um bebé duns dois anos, perdido no pânico da debandada.
Sem fazer caso dos conselhos de Paulin, a jovem conseguiu chegar até ao carrinho, desprender as correias que ali retinham a criança segundo o uso chinês, e, apertando-a
contra o peito, voltou, a correr, para o seu precário abrigo junto do jornalista.
De repente produziu-se um tremendo estampido, e, antes de perceber o que sucedia, Danielle sentiu-se repelida por irresistível força; incapaz de manter o equilíbrio,
estatelou-se na rua, mas não sem que, num gesto instintivo, protegesse com um braço o corpo da criança. Tudo em volta dela ruía numa chuva de pedras e destroços;
uma nuvem espessa elevou-se e invadiu a avenida.
Daniellle ficou por momentos aturdida, dobrada sobre si mesma. Duas novas explosões se produziram, mas essas mais distantes já. A sombra do enorme pássaro de morte
passou sobre o edifício dos correios. Arrancada, pulverizada, por um torpedo, a branca fachada do building fendeu, derruindo como castelo de cartas. No próprio local
onde, havia pouco, se encontravam os dois franceses ergueu-se do solo um enorme géiser; os canos da água haviam rebentado por efeito da explosão.
A jovem mal voltara a si do tremendo choque produzido pela deflagração, quando se sentiu erguida pelos sovacos. Era Paulin que acudia, mortalmente inquieto a seu
respeito, esforçando-se por tirá-la dali.
- Ela primeiro!
As primeiras palavras que a valorosa jornalista pronunciava -referiam-se à sua protegida, que recomeçara a chorar perdidamente. Paulin pegou na criancinha enquanto
ajudava Danielle a erguer-se.
-Meu Deus, está ferida? - perguntou o repórter, aflito.
- Sossegue, meu caro amigo, que não tenho a mais ligeira beliscadura! E continuando: - Já tem aí muita fotografia a tirar. Chega para fazer reflectir todos os militaristas
do mundo inteiro, se é que eles alguma vez reflectem! É extraordinário como os homens são desajeitados para pegar em crianças! E depois tomam um ar de ama seca!
Danielle tirou-lhe o bebé. O sangue-frío da jovem, numa tal ocorrência, desconcertava Paulin Quartier, que, quase maquinalmente, tirou alguns clichés.
Ninguém, reconheceria agora aquela avenida de Miukiang. As chamas irrompiam de todos os lados e um cheiro insuportável espalhava-se no ar. Apanhado pelos escombros,
um cão gania desesperado. Perto, na calçada, vários corpos trucidados em todas as posições, como que mumificados pela explosão. Alguns porcos grelhavam no braseiro
da antiga estação dos correios e, por toda a parte, bagagens, detritos e ruínas pejavam a bela artéria.
Um fraco gemido veio arrancar Danielle à sua contemplação. Era a pequenita, que tinha fome. No céu, os aviões desapareciam já longe. Pouco a pouco, várias silhuetas
aventuraram-se nas ruas. Os pobres cidadãos tinham os olhos apavorados e lia-se-lhes no rosto uma fatal resignação. Insensíveis aos brados de socorro que partiam
das ruínas, tratavam de se afastar e pouco a pouco recomeçou o êxodo para a porta de oeste, impacientes
por fugirem daquela cidade maldita onde a morte pairava sem descanso.
- Danielle, onde vai agora?
Paulin via a sua companheira afastar-se em direcção à avenida, sempre com a criança muito apertada a si, tentando descobrir nos grupos que chegavam os possíveis
pais da sua protegida. Mas foi debalde.
Paulin Quartier, em dado momento, viu-a desaparecer na multidão, sem que conseguisse abrir caminho e alcançá-la.
Enquanto o seu confrade se desesperava por a ter perdido, Danielle metera por uma rua transversal onde se viam apenas porcos e cães vadios, a fariscar nos montes
de ruínas, e carregando o seu precioso fardo foi caminhando, saindo duma rua para uma viela, desta para um beco, atravessando pontes e tentando orientar-se e descobrir
o hotel onde deixara o boy e o cavalo. Em todos os rios e braços de água, a bordo dos juncos, ia azáfama igual à das ruas daquela cidade que todos procuravam abandonar.
Evitando os palaces sumptuosos, a jovem preferia albergar-se nas hospedarias indígenas. Assim, fugia à importuna curiosidade dos seus confrades e imbuía-se de cor
local. Quantas aventuras inauditas e quantos pormenores pitorescos não surpreendera ela levando aquela vida nómada e despida de toda a espécie de conforto!
Baldadamente os colegas todos, e Paulin Quartier em especial, lhe haviam patenteado os inconvenientes e os riscos de tão perigoso método, que a punha por vezes à
mercê dos mal afamados bandidos amarelos que infestavam os bairros populares. Nada conseguia demover Danielle e, em Miukiang, optara por pequeno albergue onde alugara
um quarto apenas aceitável.
Agora, a jornalista procurava orientar-se. De polícias, nem a sombra. Tão prolongada ausência de qualquer representante da autoridade civil ou militar mostrava-lhe
haverem sido estes os primeiros a fugir, vergonhosamente, abandonando homens, mulheres e crianças aos piratas, mais perigosos ainda do que o próprio inimigo.
Já pelas ruas inteiramente evacuadas se lobrigavam vultos suspeitos que se aventuravam através do fumo e dos montões de ruínas. Aqui e ali surgiam focos de incêndio
que não haviam sido causados pelas bombas dos aviões, mas sim pelas tochas dos- incendiários. Indivíduos esfarrapados, de caras patibulares, lançavam-se à pilhagem,
incendiando as casas onde haviam descoberto mais preciosa presa. Gritos dilacerantes que por vezes se ouviam provavam que os miseráveis assassinavam também as suas
vítimas indefesas, quando estas pretendiam defender os seus haveres.
Agora, embora sem passeantes, as ruas tornavam difícil o avanço, pois Danielle tinha que se precaver contra a queda de fachadas em ruínas ou evitar os braseiros
ardentes que tornavam a atmosfera sufocante. Por vezes era forçada a retrogradar, para evitar a asfixia.
A criança continuava a chorar e as suas mãozitas agarravam-se desesperadamente a Danielle, parecendo compreender as intenções da sua protectora e como que implorando
o seu socorro.
Danielle chegou assim a uma espécie de rio que pagava através de uma rua bastante estreita; seguia pelo rebordo daquele canal que servia de passeio; dois metros
acima do nível das águas cheias de detritos, imundícies e cadáveres, quando um grito selvagem se fez ouvir.
Embora valente, o sangue da francesa gelou-se-lhe nas veias quando viu na sua frente uma grande avantesma brandindo um punhal. Era um bandido que andava na pilhagem,
com as mãos ainda a escorrer sangue e seguido de mais três ou quatro.
- Morra a estrangeira!
Punhos odientos ergueram-se para ela. Danielle julgou-se perdida. Não podiam cruzar-se duas pessoas naquele ponto. Esquecida dos conselhos de prudência que havia
bem pouco tempo lhe dera Paulin, a jovem deu meia volta e desatou a correr na frente dos bandidos, esperançada em conseguir distanciar-se e cortar-lhes as voltas.
Mas atraídos pelos gritos dos seus camaradas, outros bandidos acorreram em sentido inverso.
Vendo-se entre dois fogos, a jovem soltou uma surda exclamação e olhou em todas as direcções; um clarão de esperança fulgurou-lhe nos olhos: a três metros de distância
balouçava-se ligeira embarcação.
Sem hesitar, a jornalista tomou balanço e saltou para o barco, que quase se virava com o seu peso. Sem perder tempo, soltou a amarra, pousou a criança no fundo da
embarcação, pegou na vara e curvou-se sobre ela.
Clamores de raiva acolheram aquela proeza da rapariga; o grande diabo amarelo, porém, não parecia muito resolvido a largar a presa e preparou-se para saltar sobre
Danielle. Rápida, esta levou a mão à cinta e, puxando pela sua automática, fez fogo sobre o bandido. Atingido no ombro, o homem vacilou e- caiu na água amarela do
rio. Os companheiros recuaram e Danielle bradou-lhes:
- Um só passo, um só gesto, e atiro!
Os amarelos não compreendiam o francês, mas a atitude da jovem era suficientemente clara e significativa.
Não insistiram. Então, Danielle, livre dos seus perseguidores, afastou-se rapidamente.
Ajudada pela corrente, rio abaixo, teve que atravessar zonas de fumo pestilento e de intenso calor, ao passar perto das casas incendiadas. À força de energia, conseguiu
vencer todos os obstáculos, e meia hora mais tarde atracava junto dum embarcadouro meio desconjuntado, num ponto da cidade que por sorte bem conhecia.
Foi-lhe fácil alcançar o albergue onde se hospedara, agora completamente abandonado por hóspedes e patrões. Também o seu boy abalara sem esperar pela sua chegada.
Danielle teve um gesto desolado. A criança continuava a chorar e, esquecida dos próprios riscos, a jornalista só pensava agora em obter com que lhe matar a fome,
indiferente aos grupos de bandidos que infestavam a cidade. Só quando as forças nipónicas entrassem em Miukiang voltaria o sossego e tranquilidade. Todo o indivíduo
suspeito ou apanhado a roubar era imediatamente fuzilado. Por isso eles se aproveitavam daquelas horas de liberdade absoluta para se dedicarem activamente à pilhagem
e ao saque.
Por fim, Danielle descobriu um púcaro de leite na cozinha. Por meio de um frasco fez com que a sua protegida o bebesse e deitou-a na cama, onde breve adormeceu sorrindo.
- Vamos, que agora já estás mais contente! murmurou a corajosa rapariga.
Depois desceu à cocheira, onde teve a alegria de encontrar Chi to, a sua fiel montada, que começava a impacientar-se com todos aqueles gritos e estampidos vindos
do exterior. O valente animal puxava desesperadamente pela corda que o prendia, martelando o solo
com os cascos. Um relincho alegre saudou a entrada da
jovem.
- Coragem, Chito! Vamos partir!
Gratificando o animal com algumas festas, Danielle certificou-se de que arreios e sela estavam ainda ali e, dominando a sua fadiga, pôs-se a arrear o animal. Quando
terminou conduziu-o para fora da cavalariça e amarrou-o a uma árvore. Voltou ao primeiro andar do albergue, meteu no seu saco de viagem todas as provisões de boca
que conseguiu descobrir, deixou uma nota para pagar ao estalajadeiro, caso voltasse à sua casa, e, pegando na criança profundamente adormecida, desceu à rua.
Em Miukiang o espectáculo não mudara. Filas de habitantes seguiam para oeste, abandonando a cidade aos salteadores, que prosseguiam a sua triste tarefa de assassínio
e rapina!
Novos incêndios se erguiam agora do bairro rico, já tão castigado pelo bombardeamento.
Danielle comeu rapidamente um resto de arroz, bebeu alguns goles de água, montou a cavalo e, segurando a criança nos braços, partiu em direcção ao norte.
III
O oásis na tormenta
Chito mantinha um andamento rápido e breve chegou à grande avenida onde Danielle estacionara havia pouco. A leva dos fugitivos já quase que completamente se escoara,
e agora só se divisavam as silhuetas dos bandidos ocupados em despojar os cadáveres ou pesquisando entre as bagagens abandonadas na precipitação da fuga.
A jornalista conservava na mão o seu revólver e por isso os piratas se não atreveram a assaltá-la. Tinham à mão tanta presa inofensiva!
Danielle chegou assim à porta do norte, abandonada pelos soldados que habitualmente a guarneciam.
Os militares haviam dispersado logo que Miukiang fora ameaçada; alguns bandearam-se com os bandidos e tratavam também de se apropriar do maior número possível de
objectos de toda a ordem; outros, em fuga pelas estradas, iam reintegrar-se no exército de qualquer general que os tomasse ao seu serviço, até que novos acontecimentos
os incitassem a defender causa diferente.
Naquele abandono, Danielle via uma das razões da actual ruína da China. Em face da organização nipónica, disciplinada e dispondo dos mais recentes inventos da ciência,
os exércitos chineses lembravam os bandos dos condottieri que, nos tempos da Renascença, manobravam na Europa e prestavam os seus serviços ao Estado que melhor lhes
pagasse. Nem a mais ligeira noção de patriotismo nesses generais feitos à pressa. Cada um procurava o seu interesse próprio e o seu prazer, disposto, caso as coisas
se complicassem, a passar-se com armas e bagagens para o campo adverso.
Mal Danielle passou as portas da cidade, achou-se envolvida por outros grupos de desgraçados. Pela calçada poeirenta ia o lento e lamentável desfilar dos fugitivos.
Procurando escapar da zona de guerra, nem atenção prestavam àquela estrangeira que passava por eles a cavalo. Iam espantados, tendo no olhar a visão de cenas de
horror e morte, chorando parentes ou amigos, incertos do seu destino e do próprio dia de amanhã. Fugiam silenciosos, fatalistas, sem um queixume.
Apenas, dominando o rastejar dos pés, se ouvia o gemer das rodas dos carros e rickshaws. Por vezes, incapaz de dar mais um passo, algum velho ou doente deixava-se
cair à beira da estrada; ninguém procurava socorrê-lo ou sequer olhava para ele. Para ali ficava, miserável destroço daquele êxodo.
De começo, quando datava de Xangai as suas crónicas, Danielle sentira-se atrozmente impressionada por tão trágicas cenas e pelos quadros de morticínio que a toda
a hora se renovavam ante seus olhos. Depois fora-se familiarizando; além de que aqueles pobres-diabos não pareciam esperar comiseração, qualquer gesto de socorro
ou piedade; curvavam-se ao peso do destino, resignados com a tristeza da sua sorte, sem
qualquer reacção, como rebanho de carneiros marchando inconsciente para o matadouro.
A jornalista, de tempos a tempos, animava Chi to, obrigando-o a um andamento regular; a criança, essa continuava dormindo nos seus braços. Mais tarde ou mais cedo
seria preciso tomar uma decisão a seu respeito. Não era certamente com um bebé ao colo que ela poderia escrever as suas reportagens. Mas faria tudo o necessário
para que a sua protegida ficasse entregue a boa protecção.
Uma hora mais tarde a jornalista notou à esquerda da estrada uma enorme construção de muros caiados de branco para onde afluíam muitos dos foragidos de Miukiang.
A cruz que se destacava no céu, no cimo da fachada, indicou-lhe tratar-se duma das muitas missões católicas dispersas pelo vasto império agora devastado pela guerra.
Desde a sua chegada ao Extremo-Oriente, Danielle Mercoeur pudera verificar, por si própria,- todo o valor da obra benfazeja e fecunda das Missões e em particular
daquelas que eram dirigidas pelos franceses, quer fossem franciscanos, lazaristas ou jesuítas. Sem desânimo ante os inúmeros obstáculos, haviam criado oásis em meio
de territórios constantemente ameaçados pela guerra e outros flagelos. Renovavam-se, por vezes, naquelas regiões cenas que o Ocidente conhecera na Idade-Média, no
período da invasão dos bárbaros; as populações, oprimidas e ameaçadas, vinham agrupar-se à sombra tutelar da cruz de Cristo; iam ali reclamar asilo e ali aguardavam
que passasse a tempestade.
A jornalista pôde observar, enquanto se aproximava, que enorme multidão de refugiados se espraiava em volta dos muros da Missão. Sabiam que os padres eram caritativos,
que se condoíam da miséria dos
pobres; por isso corriam para ali, e ao longo do caminho o aperto era tal que Danielle se viu obrigada a fazer parar o seu cavalo.
Desesperava já de alcançar a porta da Missão quando notou um padre que se aproximava olhando-a com certa curiosidade.
- Meu padre, poderia autorizar-me a entrar?
O rosto do religioso iluminou-se quando ouviu falar a sua língua no meio daquela algaraviada e depressa se aproximou da viajante.
- Meu Deus, que faz por aqui, minha filha? interrogou o bom do padre, com doçura.
Em poucas palavras, a francesa relatou os acontecimentos que a haviam forçado a ir ali naufragar com a sua protegida.
- Não queria abandoná-la por caso nenhum declarou ela. -Se vós a pudésseis receber aqui!
- Compreende que estamos completamente a transbordar, não é verdade, minha filha? Mas, não obstante, siga-me. vou conduzi-la até junto do nosso superior, o reverendo
padre Eudes - que decerto ficará muito satisfeito por receber uma compatriota tão corajosa!
Danielle, com Chi to pela rédea, seguiu o bom do
padre. Na sua frente, os fugitivos afastavam-se,
abrindo caminho, e a jornalista pôde notar o respeito
e a veneração que os religiosos sabiam impor àquela
multidão desvairada e primitiva.
No pátio, gente e carros formavam uma massa compacta. A maioria aguardava, acocorada, que lhe distribuíssem alguns alimentos. Não obstante, um movimento de receio
agitou a multidão quando se ouviu o ruído de alguns aviões que passavam no alto.
Habituados a sofrer os ataques aéreos dos japoneses, os desgraçados apertavam-se uns contra os outros; mas os pássaros da morte passaram para o norte sem lançarem
qualquer bomba.
Dez minutos depois Danielle encontrava-se em frente do superior da Missão dos lazaristas, o reverendo Eudes. A figura daquele velho impunha respeito. Diziam-no santo.
Quantos doentes não curara! Quantas almas não ganhara para Deus, durante os cinquenta anos que passara já na Missão de Fah-Tinh, a mais próxima de Miukiang! Amava
os pobres chinas, que lhe pagavam na mesma moeda e vinham, na hora do perigo, agrupar-se à sua volta, implorando auxílio e protecção.
- Se soubesse o prazer que me dá encontrar uma compatriota, minha querida filha! - declarou ele apertando comovido a mão que a jovem lhe estendia. Há dois anos que
não vejo alguém vindo de França, exceptuando os meus Irmãos, bem entendido. Como gostaria de falar consigo da nossa terra, se não fossem estes acontecimentos trágicos
que me não permitem descanso! Desculpar-me-á se não posso trocar consigo mais que curtas palavras, pois aguardo a chegada dum mensageiro do comando japonês que prometeu
estabelecer comigo uma zona de protecção onde os bombardeamentos e outros actos de hostilidade serão rigorosamente interditos! Que quer, minha filha, antigamente
éramos apenas apóstolos, agora temos que nos improvisar diplomatas! É claro que me ocuparei da criança que teve a caridade de recolher e salvar duma morte certa,
mas temos tempo, pois ficarão aqui por todo o tempo que for necessário.
- Tenho imensa pena, meu padre, mas necessito de abandonar já o seu oásis! - declarou a jovem. - Devo pôr-me de novo a caminho!
- Pôr-se a caminho! E porquê? - interrogou o religioso, admirado.
- Muito simplesmente porque devo pôr os meus leitores ao corrente do que se passa na região!
O rosto do lazarista carregou-se ao ouvir tal afirmativa.
- Mas isso seria uma loucura, minha filha! A zona compreendida entre os exércitos regulares chineses e japoneses está actualmente na posse dum bandido sem fé nem
lei, o qual se outorga pomposamente a categoria de "general". Chama-se You. Contam a seu respeito as coisas mais abomináveis. Se pela minha parte tenho algum crédito
junto das autoridades japonesas e do governo chinês, devo declarar-lhe que nada posso junto desse maroto cuja cabeça há muito foi posta a prémio nos dois campos.
Aguarde ao menos, antes de deixar esta casa, que a situação se aclare, isto é, que a região se encontre na mão dos nipónicos e seja policiada e protegida por destacamentos
de forças regulares suficientemente numerosas!
- Agradeço-lhe infinitamente os seus bons conselhos, meu padre, mas é forçoso que me encontre justamente nos sítios mais perigosos, pois, caso contrário, qual seria
o mérito das minhas reportagens? Quanto mais sensacionais forem os acontecimentos, mais alegria terei em os comunicar aos meus leitores.
E como o lazarista esboçasse um gesto de desânimo, a rapariga insistiu:
- Além de que nada receie por mim, Conservo ainda inabalável confiança na Divina Providência, que constantemente me tem protegido. A Fé, vós bem o sabeis, transporta
as montanhas; ela me ajudará decerto a triunfar das maiores dificuldades!
- Decerto, minha filha, mas reflita bem! A mais elementar prudência aconselha-a a que fique aqui por algum tempo. Entretanto, acompanhe o irmão Bastien ao refeitório.
Deve estar muito fraca e cansada da sua expedição. Vamos confiar a criancinha que salvou a uma das nossas alunas, que se ocupará dela com todo o zelo necessário.
Uma jovem chinesa, duns quinze anos, aproximou-se e Danielle entregou-lhe a sua protegida ainda adormecida, beijando-a com ternura. Depois seguiu o irmão Bastien
ao refeitório, onde uma turba imensa rodeava as mesas. Três lazaristas procediam à distribuição de arroz e era uma luta em volta dos pratos para ver qual era servido
primeiramente.
Danielle sentou-se à parte e comeu com apetite, certa de que Chito, na cocheira, não era também esquecido pelos bons dos padres.
Por mais duma vez, durante aquela refeição, Danielle apurou o ouvido. O canhoneio aproximava-se; de olhos brilhantes, a jovem pensava que a batalha prosseguia e
que haveria ali, certamente, muitas e interessantes informações a colher. Ansiava por se encontrar de novo naquela "Terra de Ninguém" que lhe dera o nome e onde
já experimentara tão movimentadas aventuras.
Mal acabara de comer quando o irmão Bastien a veio prevenir de que o reverendo padre Eudes lhe desejava falar.
A jovem apressou-se em obedecer e breve se encontrou com o superior da Missão, numa pequenina sala contígua ao locutório.
- Acabo de receber a visita do comandante japonês Jemitsu - declarou-lhe o padre. - Os pormenores que lhe ouvi, relativos às operações militares e à situação
desta zona, incitaram-me a pedir-lhe que desista do seu projecto de partida.
A jovem esboçou um gesto de protesto, mas o padre prosseguiu:
- O comandante Jemitsu, que partiu daqui com a sua escolta há apenas dez minutos, informou-me de que as forças nipónicas operando no sector sul de Miukiang ganharam
uma importante batalha e puseram em fuga, completamente derrotado, o exército chinês do general San-Tsi-Ming.
- Se assim é, tudo vai bem-respondeu a francesa.
- A região vai serenar, pois o comando militar japonês encarrega-se de fazer reinar a mais completa tranquilidade nos territórios que ocupa!
- Desengane-se, minha filha! Por completo que seja o êxito dos nipónicos, não procederão por enquanto à ocupação dos territórios; o comandante Jemitsu disse-me até
as razões: os espiões a soldo do seu governo informaram-no de que os chineses se preparam para fazer saltar os diques da região dos nove rios, na esperança de aniquilar
todo o exército japonês que derrotou o general San-Tsi-Ming ou pelo menos fazer-lhe retardar o avanço.
Danielle nada respondeu, pois sabia que o processo não era novo; em tempos de Luís XIV haviam-no adoptado os holandeses para se oporem à investida das tropas francesas;
no Yser, em 1914, os belgas utilizaram-no para reter o avanço alemão. Não obstante, os territórios belgas e holandeses, então invadidos pelas águas, estavam bem
longe de se comparar com a imensa superfície das regiões ameaçadas. Tal decisão arriscava-se a produzir milhares de vítimas, arruinando férteis territórios.
- Receia certamente pela sua Missão, reverendo? -. interrogou a rapariga.
O lazarista abanou negativamente a cabeça:
- A Missão de Fan-Tinh nada tem a recear, pois encontra-se situada numa eminência. O único perigo que nos poderia vir a ameaçar seria a falta de víveres, mas Deus
nos ajudará, espero-o da sua infinita misericórdia. Para mais, o comandante Jemitsu prometeu-me que estaríamos, sem cessar, sob a protecção das forças nipónicas.
Se alguma coisa receio, é por si, minha filha. Pode crer-me, se se obstina em partir vai arriscar-se aos maiores perigos, sem falar da inundação, que lhe pode ser
fatal. Refiro-me ao já tristemente célebre general You!
- Bem sei, o chefe dos bandidos salteadores que tanto dá que falar. Já por mais duma vez tive ocasião de relatar os seus feitos.
- Parece ligar-lhe pouca importância - retorquiu o lazarista.-Pois deixe-me pô-la ao corrente. Há poucos meses ainda, You não passava dum improvisado general das
forças chinesas, desses que continuamente mudam de cor e de opinião, segundo as circunstâncias e, sobretudo, segundo o seu próprio interesse. Tendo começado por
reunir à sua volta uma centena de bandidos da pior espécie, esse número foi rapidamente acrescido de todos os que preferiam a rapina aos louros das batalhas. Breve,
entre os dois campos adversos, chinês e japonês, formou-se um terceiro exército que age nos territórios já abandonados pelos chinas e ainda não ocupados pelos nipónicos.
No momento presente, o seu número deve orçar por uns oito mil. Evitando aventurar-se nas linhas de fogo, invadem as cidades e aldeias indefesas. Desgraçado daquele
que lhes caia nas mãos; nem os europeus conseguem escapar à crueldade
desses selvagens! Três padres jesuítas que regressavam à sua Missão foram degolados por esses miseráveis.
Danielle, longe de se inquietar, parecia interessadíssima; por fim, não pôde conter-se:
- E se eu conseguisse entrevistar esse general You, meu padre?
- Enlouqueceu, minha filha! Ora pense e diga-me se o lugar de uma jovem tão encantadora e delicada é no meio daquela escória de bandidos. Não, deixe-se ficar aqui,
que está em segurança. Se sai da Missão, se persiste no seu temerário projecto, não respondo por nada, e a sua vida, a sua honra, poderão correr os maiores riscos!
Mal supunha o bom do padre que pronunciando tais palavras ia acordar a curiosidade da jovem jornalista, a ponto de lhe fazer esquecer todos os perigos. A ideia louca
e perigosíssima de entrevistar o general You enraizava-se-lhe no espírito e idealizava já as belas reportagens de tanta actualidade e sensação que poderia produzir.
- Já não sou nenhum bebé, meu padre, e já assisti a horas mais trágicas, como as da agonia de Chapel; acompanhei o padre Jacquinot, que cem vezes arriscou a vida
para salvar desgraçados chineses ameaçados pela metralha nipónica. Cem vezes, também, desafiei eu já a morte. O general You.
- O general You é um demónio vomitado pelo Inferno, minha filha - interrompeu o religioso, sentindo-se impressionado no entanto pela confiança que lhe manifestava
a sua interlocutora. - Oxalá a Providência a impeça de se encontrar jamais na presença de You. Peço-lhe oiça o que lhe diz um velho habituado
à vida nestas regiões perdidas e não abandone o nosso tecto até que a segurança seja completa!
- Agradeço-lhe de todo o coração a hospitalidade que me oferece e os seus bons conselhos, padre, mas a minha resolução está inabalàvelmente tomada. Partirei amanhã,
de madrugada. O dever impele-me. Peço-lhe apenas que olhe pela minha protegida.
- Descanse, que a pequena será criada e crescerá com as nossas!
O padre Eudes, lendo nos olhos da rapariga uma obstinação irredutível, não insistiu.
- Pedirei a Deus por si. Possa a Providência protegê-la e sua misericórdia afastar de si todo o perigo! Em todo o caso, se parte, é com perfeito conhecimento de
causa e fico em paz com a minha consciência. Faço votos para que a noite lhe traga melhor conselho e a torne mais razoável.
O lazarista inclinou-se. Danielle sabia que todo o tempo do padre Eudes era precioso e não retorquiu. Despediu-se, pois, e dirigiu-se para a sala onde devia dormir
aquela noite, antes de se aventurar no desconhecido em busca de novas aventuras, ao encontro de um perigo infalível.
IV
A inundação
Danielle Mercoeur cavalgava solitária, ao longo da estrada ravinada pelas chuvas e pelo rodar das inúmeras campanas de todo um povo em êxodo. Nessa manhã o céu estava
carregado de nuvens e os corvos voavam baixo, com sinistra gralhada. A chuva que caíra durante a noite encharcara o terreno; a todo o momento os cascos de Chito
faziam esguichar a água em todos os sentidos.
Pela última vez, a jovem voltou-se na sela, olhando a Missão de Fah-Tinh, cujos alvos muros se esbatiam já na distância. Rápida apreensão fê-la arrepender-se de
não ter dado ouvidos aos prudentes conselhos do padre Eudes. A solidão, o silêncio impressionante que a envolvia, a contrastar tão violentamente com a agitação da
véspera, inquietavam-na. Parecia-lhe aquilo a calma precursora da tempestade.
Não obstante, tais apreensões foram de curta duração; Danielle pensou que novas aventuras a aguardavam e que, mais do que nunca, devia merecer o título de Princesa
da Terra de Ninguém", que os seus colegas lhe haviam dado. E sorriu ao lembrar-se que esses jornalistas
a esperavam na retaguarda, onde vigiavam o decorrer das operações. Nenhum deles se lembrara do ilustre You! Que triunfo para ela, se conseguisse entrevistar o bandido
amarelo e apresentar informes seguros a seu respeito e sobre a organização do seu bando!
"Desta vez, julgo que chegarei à meta em primeiro lugar! .- disse para consigo, esporeando a montada. Os meus confrades vão fazer uma cara! Paulin Quarter, sobretudo!"
Até então, absorvida pelas palavras do padre Eudes, Danielle não recordara ainda o seu camarada da véspera, de quem se separara nas ruas de Miukiang, bombardeada
pelos aviões japoneses. Agora, que caminhava sozinha pela imensidão deserta, começava a sentir certa pena. Embora afectasse indiferença, a verdade é que Paulin lhe
era simpático e colocava-o na sua estima, muito acima dos outros. E a jovem deixou vagabundear o espírito, alheada do caminho que percorria. Pela primeira vez, desde
que viajava na China, sentia uma sensação de isolamento. Ser-lhe-ia agradável um companheiro de viagem para poder trocar com ele as suas impressões, para lhe declarar
o seu ardente desejo de entrevistar o general You.
Brusco desvio do cavalo veio arrancar a jovem às suas meditações.
- Então! Chito, que é isso?
Breve a amazona compreendeu as razões que enervavam o seu companheiro de quatro patas. Um cheiro nauseabundo, um cheiro a cadáver em decomposição, vinha até ela
trazido pela aragem. A menos de cinquenta metros, à sua direita, estavam estendidos uns quinze corpos. Eram pobres camponeses massacrados pelos bandidos. Uma nuvem
de corvos encarniçava-se sobre os cadáveres e levantou voo mal a jornalista se
aproximou. Pouco distante, três casas acabavam de ser consumidas pelo fogo, e o fumo, negro e espesso, alastrava pelo céu.
Muitas vezes já, desde que se encontrava na China e assistia ao deplorável conflito que tantos milhões de vítimas inocentes fazia, Danielle contemplara cenários
como aquele. Não obstante, o coração confrangeu-se-lhe. É porque nunca vira uma solidão assim; habitualmente, quando se não cruzava com filas de refugiados abandonando,
espavoridos, qualquer cidade bombardeada ou incendiada, encontrava sempre camponeses ocupados nos seus trabalhos jornaleiros, apesar da proximidade dos exércitos.
Mas hoje, tão- longe quanto a vista alcançava, não se distinguia um único ser vivo. Apenas, aqui e ali, manchas escuras rodeadas de corvos mostravam que havia mais
corpos disseminados pela campina. E o ar parecia inteiramente impregnado daquele cheiro peculiar dos cemitérios, que ela encontrava agora tão frequentemente na China!
Passaram assim duas horas. Avistando uma cabana abandonada, a jovem apeou-se; comeu um biscoito, um pouco de chocolate, bebeu alguns goles de água, e, sentindo-se
revigorada, pulou- de novo sobre Chito, que ela montava escarranchada como um homem.
Pela rápida análise feita ao seu mapa verificou encontrar-se na região do lago Toyang. E não tardou muito que não surgisse no horizonte a superfície amarelada da
enorme extensão das suas águas.
"O que me admira - pensou Danielle - é não descobrir um único grupo de cavaleiros! Decididamente, o padre Eudes iludia-se quando me garantiu que You e os seus milhares
de bandidos deviam acampar algures na planície! Dir-se-ia que esses senhores evitam prudentemente aventurar-se na Terra de Ninguém!"
A passagem duma esquadrilha de bombardeamento veio distrair por momentos a atenção da jovem. Eram nove aparelhos, e certamente os mesmos que na véspera haviam bombardeado
Miukiang. Voavam baixo e Danielle pôde até notar que um dos pilotos agitava a mão com insistência, como se estivesse fazendo qualquer sinal. Respondeu-lhe, a jornalista,
acenando um adeus, e retomou o seu caminho a galope, enquanto a esquadrilha se afastava na direcção das linhas chinesas. A jornada prosseguia, embora Danielle reparasse
na inquietação do seu cavalo, o qual cada vez mostrava mais relutância em avançar. Dir-se-ia, na verdade, que o nobre animal pressentia um perigo. Depois a chuva
começou a cair; mas envolvida no seu impermeável, com o chapéu puxado para os olhos, a francesa teimava em continuar a marcha, direita ao lago, quando de súbito,
parando o cavalo, não susteve uma exclamação. Na sua frente parecia-lhe ver a superfície do lago alargar-se
rapidamente.
Chito empinou-se e nitriu. Três vezes a jovem o esporeou e três vezes ele se recusou a avançar. Danielle começava a impacientar-se quando de súbito se lembrou:
-"Meu Deus!-murmurou ela.-A inundação! Recordou-se então das palavras do padre Eudes e da resolução tomada pelos chineses, a fim de suspenderem ou pelo menos demorarem
a invasão: destruir os diques da região dos nove rios! Agora, a água amarelada ia sair do seu leito e invadir a planície. Dentro de dez minutos, o mais tardar, a
onda apanhá-la-ia e estaria irremediavelmente perdida.
Danielle fez dar meia volta à sua montada e lançou-se a toda a brida pelo caminho que tão obstinadamente tinham trilhado pouco antes em sentido contrário.
Não precisava, porém, de incitar o cavalo. Chito galopava como se o instinto o prevenisse de que tentava escapar à morte e só a poder de velocidade o conseguiria.
A água subia; chegava absolutamente como se surdisse do solo; em poucos momentos, os cadáveres, que jaziam ao acaso, foram levados pela inundação; os corvos, interrompidos
no seu macabro festim, traçavam agora grandes círculos no céu cinzento.
Incansavelmente, a fugitiva picava o cavalo, mas a água progredia e ganhava terreno, apesar do rápido andamento do animal.
A desgraçada teve a impressão de que todos os seus esforços seriam nulos. A inundação venceria. De um momento para o outro seria arrastada, com o haviam sido os
cadáveres abandonados.
Procurava com os olhos um refúgio, pois desistira já de alcançar as colinas que se desenhavam ao longe. A menos de quinhentos metros, à sua esquerda, erguia-se uma
cabana meio arruinada. Sobre o tecto de colmo, Danielle sempre estaria dois metros acima das águas!
A jornalista não tinha por onde escolher em tão crítica situação; era aquela a única tábua de salvação que se lhe oferecia, desde que Chito conseguisse deitar até
lá. O animal estava esgotado e algumas centenas de metros depois ia-se abaixo. Projectada fora da sela, Danielle deu um mergulho na água barrenta.
Aquele acidente não a descoroçoou e foi andando até que lhe faltou o pé e teve de nadar na direcção da choupana, sem mais se preocupar com o seu cavalo.
Admirável nadadora, sentia as suas forças multiplicadas pelo instinto de conservação. Por fim atingiu o muro meio destruído da choupana e após múltiplos e desesperados
esforços conseguiu a custo içar-se até ao tecto e equilibrar-se no ponto mais alto.
A jornalista deixou-se para ali ficar alguns momentos sem se mexer; o fato encharcado colava-se-lhe ao corpo e a água escorria por todos os lados à sua volta. Perdera
o chapéu e a máquina fotográfica. Não obstante, mirava a planície agora completamente inundada, sem conseguir descobrir o desventurado Chito. As águas vinham embater
contra a fachada da cabana e subiam, lenta mas continuamente. O seu refúgio não distava dentro em pouco, da superfície das águas, mais de oitenta centímetros.
A inundação pareceu não aumentar desde então, mas a chuva continuava a cair. A jovem tinha os pés e as mãos enregelados e sentia-se fatigadíssima; o desânimo apoderou-se
dela e mais uma vez lastimou não ter seguido os prudentes conselhos do padre Eudes.
Mas eram inúteis todos os arrependimentos e mais valia examinar a situação corajosamente. De momento escapara de morrer afogada, mas o futuro não se apresentava
nada risonho; na sua precipitação fora obrigada a despojar-se dos poucos alimentos que ainda lhe restavam; quanto a armas, tinha consigo a automática, no seu estojo
impermeável. Tudo o mais desaparecera nos alforjes do pobre Chito!
Danielle correra já muitos perigos desde o seu desembarque na China, mas nunca se encontrara em tão desesperada situação. Não desanimou, apesar de tudo; não era
das que se deixam facilmente abater pelas circunstâncias fossem elas quais fossem. Imóvel, continuou inspeccionando o horizonte.
A casa onde se refugiara estava agora transformada numa ilhota minúscula, perdida no meio da imensidade da água. Uma extensão pelo menos tão vasta como um departamento
francês estava completamente inundada.
"Decididamente, é este um sítio sinistro para se
brincar aos Robinson - murmurou a jovem, tomando o partido de se rir da situação. - Faltam as palmeiras, é verdade, e receio bem não encontrar nenhum Sexta-Feira
para me fazer companhia!"
Começava a noite a cair quando se produziu um incidente que veio redobrar as preocupações da náufraga. Minada e roída pela água, uma parte da frontaria da choupana
esboroou-se e caiu. Felizmente, Danielle mantinha-se agarrada no ângulo oposto. Aguardou pois os acontecimentos, evitando o mais ligeiro movimento que pudesse apressar
a destruição total do seu abrigo.
A jovem não se iludia. A dar-se a derrocada, seria para ela a morte inevitável; por melhor nadadora que fosse, as alturas libertas da inundação estavam muito longe
para que fosse possível alcançá-las a nado.
"Seja o que Deus quiser!" - murmurou corajosamente.
Tal como o declarara o padre Eudes, à sua saída da Missão, Danielle colocara todas as suas esperanças na Providência, que até então a tinha protegido. E, por crítica
que fosse a sua posição, esperava ser socorrida.
A noite caiu, no entanto, sem que nada surgisse à superfície das águas. Nem um simples barco se aventurava à descoberta do imenso lago. O grasnar dos corvos não
se ouvia já, mas o silêncio que sucedera ao seu concerto intempestivo, que por tantas horas se prolongara, era mais tétrico ainda. Envolvida pela solidão e pelo
silêncio, rememorou as palavras de Paulin Quartier. Na verdade, seria bem mais agradável se fossem dois naquele precário refúgio, podendo trocar duas palavras, unir
os seus esforços e tentarem fugir ao perigo, que aumentava de minuto a minuto.
"Como fui estúpida! - dizia para consigo a rapariga.
Pauline e o padre tinham razão! Eis-me agora em bons lençóis para entrevistar o respeitável general You! Danielle, minha menina, parece-me bem que aproximaste a
conclusão das tuas reportagens! Acabou-se com o: "Segue no próximo número!" Desta vez vais ter que escrever: "Fim" e voltar a página!"
A morte não a assustava sobremaneira. A vida, até então, fora para ela das mais agradáveis. Órfã de tenra idade, vivera até aos dezassete anos num internato, onde
terminara a sua educação. Durante meses, habitara depois em casa de uma tia no Limousin. Mais tarde, graças a uma amiga de colégio, encontrara aquela situação de
repórter no grande, diário de Paris Le Monde.
Uma série de felizes artigos sobre Portugal, uma outra sobre a situação económica dos Estados Unidos, e ei-la colocada entre as melhores descritoras do noticiário.
Uma vez declaradas as hostilidades na China, haviam-lhe pedido que seguisse para ali. As reportagens que, enviara tinham obtido tal celebridade que em breve os seus
colegas, franceses e estrangeiros, lhe haviam dado aquele título de Princesa da Terra de Ninguém".
Agora, Danielle sentia-se invadida pela melancolia. As possibilidades de se escapar daquele passo tornavam-se mais problemáticas de minuto para minuto. Não podia
evidentemente contar com ninguém que a socorresse. Paulin Quartier, só Deus sabia onde parava!
Ao passo que a noite se fazia mais escura, a jornalista sentia esvaírem-se-lhe as derradeiras esperanças. Tinha que se resignar. De um momento para o outro a choupana
derruiria, arrastando-a na queda para as águas lamacentas que de todos os lados a cercavam. E seria o fim da Princesa da "Terra de Ninguém", um fim incógnito, inglório,
pois o seu corpo não seria certamente encontrado.
E como tantos outros, como o seu herói favorito, Guynemer, cavaleiro do céu, tombado em pleno azul, e cujos restos mortais nunca mais apareceram, a -jovem tornar-se-ia
uma figura de lenda, como que uma fada que houvesse passado por aquelas desertas regiões ensanguentadas pela guerra, deixando apenas, de si, uma graciosa e encantadora
visão na memória dos seus colegas.
V
Salvadores. perigosos
Agora, Danielle já nada via; a noite envolvia toda a planície inundada. Transida de frio, ouvia apenas o marulhar das águas contra as paredes que restavam do casebre.
Em torno dela mantinha-se o mesmo cheiro a morte e cemitério que parecia tudo impregnar e insinuar-se por toda a parte.
A jovem já não pensava; os seus lábios moviam-se, rezava; depois, pouco a pouco, a sonolência apoderava-se dela. Foi-se-lhe apagando a recordação nítida dos últimos
acontecimentos. A fadiga dominava-a, a cabeça descaiu-lhe para o peito e os olhos fecharam-se-lhe. Ia adormecer, incapaz de uma reacção , até que o derruir da choupana
a lançasse à água, onde morreria afogada.
Passaram-se assim algumas horas, até que bruscamente Danielle estremeceu e conseguiu arrancar-se ao torpor que a invadira. com o coração precipitado, a jovem apurou
o ouvido. Num abrir e fechar de olhos fora-se-lhe a sonolência, pois ouvira nitidamente um ruído que se aproximava pouco a pouco e logo reconheceu: era o que produziam
os remos entrando na
água e o gemer das toletes na borda de uma embarcação.
Então Danielle não se pôde conter; ergueu-se, levou as mãos à boca e, reunindo todas as forças que lhe restavam, gritou:
- Socorro! Acudam-me!
O apelo da jornalista foi ouvido; por alguns minutos, os remos cessaram de bater na água e vozes ecoaram no silêncio da noite: falavam em chinês, mas a jornalista
compreendia já alguma coisa dessa língua.
- Quem chama? - perguntaram por fim em inglês.
- Sou eu! Danielle Mercoeur, correspondente dum jornal francês!-respondeu a jovem com quanta força tinha.-Encontro-me refugiada no tecto duma choupana. Mas venham
depressa! O1 meu poiso vai cair!
A rapariga exprimira-se o melhor que pudera. Pareceu-lhe no entanto que as suas declarações provocaram certa hesitação nos recém-chegados, que ela procurava descortinar
no meio das trevas. Discutiam. Então, ela recomeçou a gritar:
- Acudam-me, peço-lhes! Terão boa recompensa, prometo-lhes!
Aquele argumento decerto bastou para convencer a tripulação do barco, porquanto os remos recomeçaram o seu compassado bater e um feixe de luz percorreu um grande
círculo, procurando o ponto onde a jornalista se encontrava.
Primeiramente o foco iluminou a superfície espelhenta da água. Do lugar onde se encontrava, Danielle notou que o barco se achava ainda a uns sessenta metros do seu
refúgio; então repetiu o seu apelo para melhor orientar os recém-vindos, mas depressa soltou uma surda exclamação. Os raios luminosos
acabavam de se deter sobre ela. Deslumbrada, fechou os olhos Uma voz gritou em inglês:
- Cuidado! Vamos atracar!
A luz que se fixara impedia-a de distinguir os rostos dos quatro homens que tripulavam o bote. Três remavam vigorosamente; quanto ao quarto, que parecia ser o chefe,
esse mantinha-se de pé, à proa, e segurava na mão uma fateixa. Alguns volumes amontoavam-se à ré, indicando que o pequeno grupo devia estar ocupado em pescar salvados
quando a francesa ouvira o ruído dos seus remos.
Breve a embarcação acostava. Danielle viu uma silhueta erguer-se perto de si e um braço rodeou-lhe a cinta. Apoiando-se ao ombro daquele salvador, cujas feições
não conseguiu distinguir, em menos de um minuto a jornalista pulava para dentro da embarcação. O homem da proa emitiu uma ordem seca e os três remadores afastaram
o barco.
Durante largo espaço de tempo, aquela navegação prolongou-se para o desconhecido, sem qualquer palavra. Danielle sentia-se tão cansada que nem procurava compreender
o que se passava ou observar os seus salvadores. Mal a haviam recolhido, logo o chefe apagou a lanterna eléctrica. Acendeu-a passados momentos para projectar o feixe
luminoso sobre a superfície da água.
Do seu lugar, Danielle, que erguera ligeiramente a cabeça, pôde assistir a um espectáculo tão macabro como inesperado. O barco aproximava-se dum corpo que boiava
na corrente. O chefe, com a fateixa, fisgou o cadáver do chinês e içou-o ligeiramente para bordo. Tinha as órbitas vazias; o nariz roído, mas vestia ricos trajes
de seda.
- Atenção, vou içar! - declarou ele.
Sem se preocuparem com a jornalista, os quatro
homens ergueram o cadáver. Depois esvaziaram-lhe os bolsos, tiraram-lhe da cinta alguns objectos de ouro e, como os anéis riquíssimos que tinha nos dedos não saíssem
facilmente, devido ao inchado das carnes, o chefe tirou a sua navalha da cinta. À luz da lâmpada brilhou a lâmina, que cortou os dedos de um só golpe. Depois, dedos
e navalha, tudo desapareceu no bolso do bandido.
Danielle não conseguira reter uma exclamação de horror. O corpo, meio putrefacto, foi lançado pela borda fora, mergulhou na água lodosa e foi surgir mais além. E
a misteriosa embarcação prosseguiu a sua marcha através da noite.
Para a jornalista, não era na verdade animador o espectáculo a que acabava de assistir. Qual seria o destino que lhe reservavam aqueles indivíduos que assim tão
bárbara e selvàticamente andavam despojando os cadáveres abandonados? Não obstante, esforçava-se por não perder o sangue-frio e a calma. A nova aventura que começava
anunciava-se fértil em surpresas.
Duas horas durou aquela navegação nocturna; os quatro homens remexiam todos os objectos, pescavam, todos os cadáveres que lhes passavam ao alcance da fateixa e iam
acumulando os salvados. Danielle era para eles como se não existisse, ou, antes, consideravam-na como fazendo parte, da presa dessa noite. Felizmente que, apesar
da fraqueza, Danielle sentia-se capaz de resistir ainda por algum tempo. Esperava, intimamente intrigada. Por vezes, a sua mão procurava a coronha da automática,
que apertava nervosamente. Disposta a todas as eventualidades, estava resolvida a vender caro a vida em caso de necessidade. Mas ninguém lhe dirigiu a menor ameaça.
Quando a embarcação se achou suficientemente carregada, os homens
remaram para as colinas que surgiam da planície inundada. Pouco depois o barco tocava em terra; tinham chegado.
Então o homem da fateixa saltou para terra, amarrou solidamente a embarcação e com a lanterna verificou o ponto onde aportara. A chuva continuava a cair, mas com
isso ninguém se preocupava.
Danielle desembarcara também. Curta discussão se estabeleceu entre os quatro desconhecidos. Graças ao foco eléctrico da lanterna, que por vezes os iluminava, Danielle
pôde verificar tratar-se de quatro chineses de fronte estreita, maçãs salientes, vestidos de peliças, que lhes tombavam até aos joelhos, e calçados de botas à russa.
Um pormenor impressionou a rapariga: os quatro homens usavam todos carabina a tiracolo e, sob as peliças, viam-se-lhes as cinturas bem guarnecidas de diverso armamento,
Danielle poderia supor tratar-se de soldados chineses, não obstante o macabro trabalho que os vira desempenhar ser antes de molde a apresentá-los como simples bandidos.
Mas eles não lhe deram tempo para mais reflexões. O mais alto dos quatro indivíduos voltou-se para ela e declarou em mau inglês:
- Vais agora seguir-nos!
- Aonde vão vocês?-interrogou Danielle.
- Depois saberás. Em todo o caso, farás bem se não tentares fugir-nos!
E antes que a jovem tivesse podido esboçar o menor protesto tirou-lhe a pistola que a jornalista conservava à cintura.
- Cobardes! Vocês são todos uns cobardes!
- Não estavas assim tão zangada quando gritaste para que te acudissem - replicou o chefe sarcàsticamente. -Vamos, nada de cenas e toca a seguir-nos!
Danielle compreendeu ser inútil qualquer resistência. Acompanhou portanto os bandidos, até ao local não muito afastado onde quatro cavalos os aguardavam.
- vou levar-te à frente, na minha sela - declarou então o chefe para a jornalista. - E, sobretudo, nada de quereres fugir.
Depois, sem mais aquela, aproximou-se da jovem, fê-la cambalear com um empurrão e ergueu-a nos braços. Antes que tivesse podido precisar o que se passava, encontrou-se
sentada no pescoço dum dos cavalos. O seu companheiro saltou de seguida para a sela e o seu punho pesou no ombro da jovem.
Os outros três montaram igualmente e, a um sinal do chefe, o pequeno grupo pôs-se em marcha. Terrivelmente sacudida, Danielle era obrigada a segurar-se ao seu raptor
para evitar ser arremessada ao chão.
A chuva redobrara de violência; as rajadas fustigavam o rosto da prisioneira, que se via forçada a fechar as pálpebras. Imóvel, deixava-se conduzir para o seu misterioso
destino.
Quanto tempo terá durado aquela galopada através da noite? Danielle não o saberia dizer. Sentia umas horríveis dores de cabeça e, incapaz de reflectir, via-se sacudida
pelo corcel, que desfilava veloz.
Finalmente, a jornalista, que sentia os membros e todo o corpo moído, julgou divisar alguns fogos vacilantes entre as colinas; quis erguer-se, mas um brutal safanão
obrigou-a a imobilizar-se de novo.
E a cavalgada prosseguiu. No entanto, a jornalista notou que os cavalos diminuíam o galope, dominados pelos cavaleiros. Segundo todas as probabilidades, aproximavam-se
do termo da viagem. Por precária que fosse a sua situação, a jovem felicitou-se por isso. Estava ansiosa por terminar aquela estranha excursão,
e com pressa de se deitar, pois necessitava agora, e acima de tudo, de repouso. Sobre ela, o vulto do seu companheiro exalava um forte cheiro a cabedal e a cão molhado
e o ranço parecia impregná-lo.
Por fim, dominando o ruído do cair da chuva, uma voz fez-se ouvir alguns metros à frente. De comum acordo, os quatro cavaleiros sustiveram as montadas. Uma sentinela
surgiu e interpelou-os.
Esse homem estava vestido como os quatro cavaleiros; tinha na mão uma carabina do último modelo, que se dispunha a meter à cara, quando aquele que parecia o chefe
do bando pronunciou algumas palavras que Danielle não conseguiu compreender. Era o santo-e-senha. Imediatamente a sentinela se afastou. Os quatro cavaleiros e a
náufraga continuaram o seu caminho.
A jovem pôde então verificar que estava num acampamento. Os fogos fumavam, aqui e ali, no intervalo das barracas. Estas tinham, por vezes, a forma dos yourtes mongóis.
Um cheiro característico informou Danielle de que grande número de cavalos se encontravam certamente muito próximo. Sem palavra, os quatro homens desmontaram. A
jornalista sentiu-se de novo erguida pelas mãos robustas do companheiro e depois colocada em terra.
- Fica aí e não te mexas até que eu volte!
Danielle viu que era a altura de obedecer mais uma vez; a sua fraqueza era tal que se sentia impossibilitada de dar uma dezena de passos. Quando os homens voltaram,
depois de haverem encurralado os cavalos, ela esperava-os ainda no mesmo lugar.
Dirigiram-se todos cinco para o lado das barracas de campanha. Fizeram entrar Danielle numa delas e lançaram-na sobre uma manta.
-Dorme até amanhã-declarou um deles.-O chefe
amanhã te interrogará e determinará o que pretende se faça de ti!
E foi tudo! Os amarelos afastaram-se, pelo fundo da barraca, deixando a jornalista absolutamente só naquele abrigo que cheirava a coiro e a odre molhado.
Meu Deus! Onde estarei? - perguntava a si própria a rapariga. - Quem será o tal chefe a que eles aludem?"
Danielle sentia-se muito enfraquecida para que pudesse tentar a resolução daquele problema. Morta de cansaço, sacudiu a água que pingava dos seus vestidos e deitou-se
na manta, adormecendo quase que imediatamente, enquanto a chuva, lá fora, continuava a cair incessantemente.
Durante horas, a jovem permaneceu assim, imóvel, reparando as perdidas energias, esquecida da triste situação em que se encontrava.
Um encontrão acordou-a pela manhã do dia seguinte. Na sua frente estava um homem, o mesmo que na véspera a salvara da inundação. O amarelo esperava, imóvel; os seus
olhitos, oblíquos, fixavam a jornalista com uma expressão pouco animadora.
- Quem é? Que me quer?-interrogou a rapariga, esfregando os olhos, ainda inchados de sono.
- Vais comer e acompanhar-me depois!
O tom era rude e o homem continuava a expressar-se em mau inglês. A sua mão apontava uma bandeja que acabara de colocar a seu lado, com uma travessa de carne fumada,
uma espécie de bolo de arroz, um bule e uma chávena.
- Aqui está também, para mudares de roupa!
O visitante apontava agora, a Danielle, uma peliça e calças de homem, bem como um par de botas altas. Antes que a jovem tivesse tempo para formular qualquer
pergunta já o homem virara costas e desaparecera, deixando cair atrás de si o pano que fechava a barraca.
A jornalista resignou-se. Tinha a intuição de que brevemente seria elucidada. Por lastimável que fosse o seu destino, sabia que se iria encontrar em presença do
famoso chefe e começava a desconfiar tratar-se do célebre general You, o terror da "Terra de Ninguém"!
Danielle conseguiu comer com apetite e bebeu o chá que lhe haviam preparado. O líquido quente, sobretudo, animou-a, dissipando os pensamentos pessimistas que desde
o acordar começavam a povoar-lhe o espírito. Em menos de um quarto de hora terminou a sua frugal refeição. Então ergueu-se, não sem custo, pois tinha os membros
entorpecidos em consequência das peripécias da noite anterior. Enfiou as calças rapidamente, calçou as botas altas e envergou a peliça que lhe haviam posto à disposição.
Estava tudo um pouco largo para ela, mas teve que se conformar, lastimando não ter um espelho para avaliar do efeito da sua indumentária. Mal acabara quando o amarelo
reapareceu.
Vendo a francesa, o visitante esboçou um ligeiro sorriso de ironia, mas logo se conteve; afastando a lona que protegia a entrada da barraca, voltou-se para Danielle
e declarou-lhe com simplicidade:
- Segue-me! O chefe espera-te!
VI
O respeitável general You
Danielle acolheu com satisfação aquelas palavras. Estava ansiosa por desfazer o equívoco que a rodeava e conhecer finalmente em poder de quem se encontraria. com
passo firme franqueou, pois, a saída do seu abrigo, mas teve de parar, deslumbrada pelo sol que a feria em pleno rosto,
Tão mau estivera o tempo na véspera como agora se apresentava radioso. No céu, o vento desfizera e afastara as nuvens; apenas largas poças de água se estendiam no
chão lamacento, lembrando a péssima noite decorrida.
Não obstante, não foi o estado do tempo aquilo que mais prendeu a atenção da jornalista; os seus olhares examinavam as barracas que se aglomeravam no seu trajecto.
Um estremecimento percorreu-lhe o corpo quando notou que todos aqueles homens tinham caras patibulares e que os seus olhares convergiam para ela com inveja e desejo;
apreciavam a beleza e o encanto da prisioneira, mas, ao mesmo tempo, o disfarce que a mascarava divertia-os, pois ouviu muitos começarem às gargalhadas à sua passagem.
Arredem-se todos! O chefe quer ver a prisioneira!
Os chinas recuavam ao ouvir aquelas palavras ditas pelo companheiro de Danielle. O homem exprimira-se em chinês, mas a jornalista compreendera. Prisioneira! Então,
não tinha que duvidar, consideravam-na cativa; e como tal iria ser tratada!
A jovem percorreu uns cinquenta metros, até que o seu guia se deteve defronte duma barraca mais vasta do que as outras; perto dali, sobre um montículo, pequenas
caixas estavam suspensas duma vara. Não sem um estremecimento, Danielle verificou que cada gaiola continha uma cabeça decepada e exangue que horrivelmente contorcia
a boca, num esgar de ódio e pavor. Aquela exibição de tão macabros trofeus provavam que o chefe não brincava em questões de disciplina: os cobardes e traidores sujeitar-se-iam,
implacàvelmente, à pena de morte!
Mas já o guia lhe pegava na mão e introduzia a jornalista no interior da tenda. Sentado ao fundo, sobre um tapete, estava um homem de forte estatura. O lábio superior
orlado de pequeno bigode cuidadosamente aparado, vestindo um uniforme de caqui que lembrava imenso o do fardamento chinês, arvorava na gola e nos punhos magníficas
folhagens de carvalho, em canotilho de ouro.
- Seja bem-vinda, minha senhora, à tenda do general You!
O homem levantara-se com um sorriso de exagerada amabilidade. Por momentos, Danielle imobilizou-se, como medusada pela figura que dela se aproximava e que, na verdade,
nada apresentava de rebarbativa.
O quê! Era então aquele o tão famoso general You de quem o padre Eudes e tantos outros lhe haviam relatado
as sinistras e sangrentas proezas? Era aquele o chefe de bandidos que alguns não haviam hesitado em comparar a Átila?
O bandido inclinara-se respeitosamente diante da jovem e exprimia-se no melhor francês.
- Noto que está admirada por me ouvir falar a sua língua - declarou You, tomando a mão que Danielle deixara descair ao longo do corpo e apertando-a cortesmente .
- Não queira ver nisso nada de extraordinário. É que sou um velho parisiense, aqui onde me vê! O boulevard Mich! Montmartre! Montparnasse! O quartier Latin! Por
vezes caio em nostalgia e desejaria voltar a ver esses cenários da minha mocidade; mas estamos longe e a vida tem tantas exigências! Quando Li me preveniu que você
era francesa, senti o coração estremecer de alegria. É por isso que lhe desejo as boas-vindas com a máxima sinceridade; você é a primeira francesa que penetra na
tenda do general You! Tivemos três americanas, duas inglesas, uma alemã. Mas nunca tivera a honra de receber uma mulher do seu país!
Danielle retirara a mão. Não sabia que pensar de tudo aquilo; o seu imprevisto interlocutor estava tão longe do retrato que dele imaginara pelo que ouvira contar!
Mas já, obsequioso, You lhe apontava uma cadeira:
- Sente-se, peço-lho! Li contou-me que a encontrou numa difícil situação! Mais uma desse imbecil de San-Tsi-Ming! Em vez de derrotar totalmente os japoneses, prefere
abrir os diques, arruinando uma enorme região, próspera e fértil! San-Tsi-Ming é um cobarde; não é digno sequer de usar uma espada de pau!
O rosto gordo e cheio do general You esboçou uma expressão de altivo desprezo; a mão direita, fina e nervosa,
acariciou o punho da espada. Mas de novo o sorriso lhe animava o rosto:
- Deixemos esse cretino e falemos de si. Estou ainda como que interdito, por ver uma representante da graça parisiense perder-se nestas regiões inóspitas e bravias
do Toyang! Por que veio para aqui?
- Para o entrevistar, general!
Danielle ia direita à meta, sem subterfúgios, com a magnífica coragem que tão apreciada a tornava dos seus colegas.
You emitiu um grunhido de pasmo. Depois sentou-se a dois passos da sua visita e, tirando um cigarro da cigarreira de prata, estendeu esta à rapariga.
- Um cigarro? - interrogou ele. - Você com certeza que fuma, não?
- com muito prazer!
Pouco a pouco, a jornalista ia recuperando o seu habitual sangue-frio; seus olhos sustentavam, altivos, o olhar que o chinês demorava sobre ela. O general puxou
dum isqueiro e acendeu o cigarro que Danielle levara aos lábios.
- É decerto a primeira vez que alguém me pretende entrevistar! - declarou You, instalando-se confortàvelmente no seu fauteuil. - No entanto permita-me que lhe faça
uma observação. Antes de se dirigir para o meu acampamento, você deveria ter tomado algumas precauções a respeito das condições!
-. Das condições? - repetiu a jovem.
- Evidentemente! Você não supõe com certeza que eu vá conceder uma brilhante entrevista, com fotografias ainda por cima, só pelo prazer de que falem de mim no seu
jornal. Todos os dias esses jornais se encarregam de expor a minha actividade com notável perseverança! E sem que eu desembolse um tostão para
efeitos de publicidade! É certo que quase tudo daquilo que dizem é invenção, mas no fundo não me desagrada ver-me rodeado duma atmosfera de lenda. Tenho a impressão
de me tornar num herói de cinema! E bem vê que não me engano, porquanto você veio, tão gentilmente, procurar-me; dentro de pouco tempo hão-de pedir-me retratos com
dedicatória!
You expressava-se com a máxima tranquilidade; o seu à-vontade, a sua afabilidade, contrastavam flagrantemente com o aspecto bravio dos bandidos amarelos que o cercavam.
Não obstante, a jornalista sentia-se cada vez mais desassossegada. Aquela atitude do seu interlocutor fazia-a recear qualquer cilada. Bem calculava que o general
nada faria para a hospedar e proteger sem que primeiramente impusesse certas condições.
O chinês pareceu adivinhar as apreensões da jovem.
- Esteja descansada - declarou-lhe com o mesmo tom de adocicada lhaneza. - Certamente lhe contaram muita patranha a meu respeito e lhe pintaram o respeitável general
You como um desses bandidos amarelos do cinema, um Warner Oland qualquer dos Mistérios de Nova-York e do Shangai Express. Pois bem! nada disso! Comigo, a sua honra
não corre o menor risco. Sou sensível à sua beleza, sem dúvida, mas as mulheres deixam-me positivamente indiferente. Compreende, não é verdade, que um chefe de exército
tem que conservar todo o seu sangue-frio e lucidez. Convém que ele anteponha, a tudo o mais, duas coisas: o seu interesse e a sua segurança. Por mais duma vez esse
velho patife de San-Tsi-Ming ensaiou vencer-me à falsa-fé; mandou até ao meu acampamento lindas espias. Só voltou a ver-lhes as cabeças, cortadas com toda a limpeza
pelo meu carrasco.
E enquanto uma ruga de inquietação se vincava na testa da jornalista, You prosseguia:
-Não, não sou um general de opereta e não lhe irei representar a cena da bela cativa perseguida e ameaçada! Negócios são negócios, dizem os nossos amigos americanos.
E têm razão! Uma vez que deseja de mim uma entrevista, conceder-lha-ei. Mas antes disso quero dizer-lhe quais as minhas condições. São cinquenta mil dólares!
-. Cinquenta mil dólares! É uma loucura!
A jovem chegou a convencer-se de que o amarelo estava a brincar; mas You apressou-se a desenganá-la.
- Para chegar até mim, você arcou com os maiores perigos e isso prova o empenho que tinha em me encontrar e conseguir uma entrevista; isso confirma também que as
minhas palavras valem muitos dólares. Mantenho-me pois no meu papel, eu, o solicitado, expondo-lhe condições que aliás considero perfeitamente aceitáveis.
E como a jovem parecesse querer protestar:
- Como se chama você exactamente? Sei que c francesa, mas ignoro o seu nome.
- Chamo-me Danielle Mercoeur.
- E é repórter do jornal.
- Do jornal Le Monde! You emitiu um leve assobio:
- Grande tiragem. uma das maiores tiragens da França, mesmo, se não a maior! A redacção pode pagar bem aos seus colaboradores. É inútil protestar, menina Mercoeur,
pois mantenho as minhas condições!
- Nunca o meu director aceitará!
- Nesse caso pode-se afoitamente apostar que o patrão não voltará a ver a sua colaboradora!
Irónico sorriso iluminava o rosto do amarelo, que manifestava tanta fleuma como Danielle irritação.
- É bem o que eu pensava! - protestou a jornalista. - Quer guardar-me aqui como refém!
- Não é isso precisamente, há uma pequena diferença! A situação apresenta-se por outra forma! Chama-se refém à cativa que se roubou ou capturou no decurso dum combate.
O seu caso é diferente, pois, segundo me declarou, veio deliberadamente ao meu encontro, ao meu acampamento, para me pedir uma entrevista! Não é assim?
- Perfeitamente.
- Nesse caso parece-me que nada justifica os seus queixumes. Quer uma entrevista? Apresento-lhe as minhas condições, eis tudo!
- Mas deve compreender que não possuo meios de fortuna que me permitam pagar-lhe a décima parte sequer do que me pede!
- Absolutamente! E tanto assim que não é a si que me dirijo, mas antes ao seu jornal. Esse pode bem pagar a importância que eu exijo!
- Não pense nisso! O meu director recusará!
- Aceitará, estou persuadido, pois pretende sem dúvida continuar obtendo a sua valiosa colaboração! Estou certo de que não consentirá que toquem sequer num cabelo
da sua linda colaboradora!
- Que quer dizer com isso? - inquiriu Danielle, cujo rosto se crispava cada vez mais.
You fumava, olhando as espirais de fumo do seu cigarro, e um sorriso voltou a brincar-lhe nos lábios.
- Quero dizer que Danielle Mercoeur me vai redigir imediatamente um telegrama endereçado ao seu director. Estamos a 7. Pois bem: se até 10 do corrente não receber
qualquer resposta relativa aos cinquenta
mil dólares que exijo pela concessão da entrevista, o executor de que há pouco lhe falei, e que com tanta limpeza mandou desta para melhor as espias de San-Tsi-Ming,
encarregar-se-á de lhe cortar uma orelha; a 20, será a outra, e assim, sucessivamente, lhe cortarão o nariz, os lábios, até que a 30, como derradeiro prazo, me verei
obrigado a ordenar-lhe que separe a sua linda cabeça do restante do corpo, para que a possa remeter, cuidadosamente conservada, à direcção de Le Monde. Talvez então
o seu director amaldiçoe tão criminosa negligência. Mas descanse; quero pensar que não será necessário chegarmos a isso: o director do seu estimável jornal avalia-a
pelo seu justo valor e não deixará chegarem as coisas a esses extremos. Dentro de poucos dias os cinquenta mil dólares ser-me-ão entregues e então, prometo-lhe solenemente,
fá-la-ei conduzir a Xangai ou a Han-Keu, conforme prefira; levará consigo a entrevista mais sensacional da sua carreira!
Danielle ficou por momentos sem dar resposta. A calma que You manifestava causava-lhe, a um tempo, desespero e estupefacção.
- É inútil acrescentar - continuou o china - que durante a estadia, mais ou menos prolongada, que fizer no meu acampamento será tratada com todas as atenções que
são devidas! Seja quem for que ouse faltar-lhe ao respeito será imediatamente punido de morte. Pela minha parte farei por lhe tornar a existência aqui o mais agradável
possível. Posso arranjar-lhe alguns livros e servi-la-ão dos melhores manjares. Além disso, se tiver tempo poderei ainda ditar-lhe as minhas Memórias. Cedo-lhe os
direitos de edição como suplemento, pois estou certo de que elas irão apaixonar os seus respeitáveis leitores!
A jovem recuperava por fim a sua calma.
- Asseguro-lhe - declarou - que está imensamente enganado. Nunca o meu director consentirá.
- Aceita, tão certo como dois e dois serem quatro! É um homem de senso prático! Mas não percamos um tempo precioso com inúteis conversas! Aqui tem a minha permanente
e papel; vai redigir-me um cabograma no qual precisará as condições mediante as quais lhe concederei a entrevista!
-Sempre gostava de saber como conseguirá fazê-lo seguir ao seu destino -. não pôde a jovem deixar de observar.
- Não se preocupe com isso. Tenho fiéis emissários que conseguem assegurar sempre o bom funcionamento do meu correio.
Danielle compreendeu ser inútil insistir. Escreveu pois a mensagem que o próprio You ditava e ia verificando por sobre o ombro da jovem.
- Óptimo! - declarou por fim. - Só falta a sua assinatura!
A jornalista assinou enraivecida e, com todo o cuidado, o general secou e dobrou o papel.
- Eis-nos portanto absolutamente de acordo. Dentro de alguns minutos fá-la-ei acompanhar à sua barraca. Mas antes disso desejo dar-lhe ainda alguns conselhos indispensáveis.
Aqui, dentro do meu acampamento, estará em absoluta segurança, razão por que lhe não aconselho que tente evadir-se. vou tomar todas as precauções nesse sentido.
A sua encantadora pessoa é-me demasiadamente preciosa para que admita sequer a ideia de que pretenda aventurar-se novamente em plena "Terra de Ninguém".
A jovem nada respondeu, exasperada pela imperturbável calma do general.
- Você já não é a primeira a ser hospedada pelo general You - prosseguiu o chinês. - Como há pouco lhe dizia, outros estrangeiros se avistaram comigo nesta barraca.
Alguns não eram muito ricos, mas pode crer que todos conseguiram pagar a modesta continha que lhes reclamei pelos cuidados prestados no decurso da sua estadia no
meu acampamento! Apenas uma americana, em consequência dum malfadado atraso do seu emissário, foi forçada a deixar-nos com as orelhas e o nariz a menos; mas fui
correcto e reduzi-lhe o resgate, fornecendo à jovem a direcção dum bom instituto de beleza de Nova York. Estou persuadido de que agora é ainda mais formosa do que
antes desse acidente. Em resumo, nenhum dos meus hóspedes se arriscou à degola; quero crer que não, será você quem me force a tão desagradável extremo! Mas, desculpe-me,
o tempo urge e vejo-me obrigado, com grande pesar meu, a deixá-la; aceite o caso com resignação. Garanto-lhe que mais tarde, dentro de poucas semanas, se recordará,
com interesse, do tempo que haja passado no meu acampamento. Levará daqui impressões que recordará com prazer toda a sua vida!
O general bateu num gong que se encontrava ao seu alcance sobre a mesa. Li reapareceu.
-Encaminhe esta senhora. E, sobretudo, olhe por que a tratem o melhor possível. Se alguém se atrever a faltar-lhe ao respeito, entregue-o ao carrasco! A sua pessoa
deve ser sagrada!
O bandido inclinou-se e Danielle seguiu-o, enquanto You se inclinava respeitosamente na sua frente.
A afluência, em volta da tenda do general, era enorme; a nova da presença da estrangeira tinha corrido e os jovens bandidos comprimiam-se no caminho, para a verem.
Danielle esforçava-se por manter absoluto sangue-frio, caminhando com passo firme e olhar altivo. Algumas graças eclodiram à sua passagem, mas umas breves palavras
de Li depressa reduziram ao silêncio os graciosos. O simples facto de a jovem se encontrar debaixo da protecção do general You bastava para os tornar circunspectos.
Sabiam que ele não brincava com a disciplina e, para mais, ali estavam aquelas cabeças decepadas para lhes lembrar.
Por fim, a jornalista encontrou-se de novo na barraca que lhe servia de prisão. Uma bandeja bem guarnecida fora ali colocada na sua ausência. com um gesto, Li deu-lhe
a perceber que poderia almoçar. Depois foi-se, deixando-a só com os seus tristes pensamentos. A jovem, rememorava a entrevista que acabava de ter com o general You;
pensando nos perigos que correra e nos obstáculos que vencera até ali, reanimou-se. Afastando todo o pessimismo, sentou-se à mesa e comeu com apetite.
Perto dela, no acampamento, vozes lentas e compassadas erguiam-se cantando. Os bandidos preparavam-se alegremente para qualquer nova expedição pela "Terra de Ninguém".
E mais distante, para a banda das colinas, a voz impressionante do canhão fazia-se ouvir de tempos a tempos. Danielle pensou que talvez em breve o famoso You se
visse obrigado a levantar o acampamento para procurar refúgio mais ao norte.
VII
Atribulações dum fotógrafo
- Danielle! Onde está? Danielle, responda-me! E Paulin Quartier esforçava-se em vão por descobrir onde pararia a colega, de quem se perdera por entre os encontrões
da multidão, nas ruas de Miukiang. Após dez minutos de inúteis esforços, Paulin compreendeu ser-lhe impossível romper a multidão e encontrar a sua gentil camarada.
Restava-lhe voltar para o hotel Excelsior, onde se hospedara com outros colegas, e isso o mais depressa possível.
Foi-se afastando- portanto da turba e, dominando o aborrecimento que lhe causava aquela súbita separação, fez algumas fotografias dos pontos mais atingidos pelos
torpedos aéreos.
Por toda a parte se viam cadáveres e sangue derramado, ouvindo-se gritos de agonia e apelos de socorro a que ninguém acudia. Embora estivesse na China já há vários
meses, Paulin Quartier não conseguia compreender aquele completo desprezo pela vida humana professado por todos os amarelos, quer dum quer doutro campo!
Dominando a sua repulsa, estava fotografando as ruínas do Correio Central, quando junto de si ouviu protestos indignados. Um grupo armado aproximava-se, estendendo
para ele punhos fechados e enraivecidos:
- Morra o estrangeiro!
- Anda a espionar por conta dos japoneses!
- Tira fotografias para o inimigo saber onde deve lançar as bombas!
bom número de chinas, refeitos do seu terror pânico, acabavam de surpreender Paulin todo entregue ao seu habitual trabalho. Bruscamente, o rapaz ergueu-se. A sua
primeira ideia foi a de tentar convencer os importunos. Mas logo compreendeu ser impossível dissuadir semelhantes fanáticos, sequiosos de vingança. O francês representava
agora para eles o verdadeiro responsável de todas as calamidades de que haviam sido vítimas.
Paulin Quartier não perdeu portanto o seu tempo a explicar-lhes que era jornalista fotográfico, conforme o provavam os seus papéis. Antes de ter podido elucidá-los
seria irremediavelmente massacrado. Foi por isso que deu meia volta e, vendo uma travessa na sua frente que lhe pareceu deserta, meteu-se por ela, seguido de perto
pela malta exasperada.
Alguns tiros soaram e as balas assobiaram-lhe aos ouvidos. com as forças dobradas pelo instinto de conservação, Paulin Quartier fugia veloz como uma seta.
Os gritos de morte não cessavam nas costas do fugitivo e o grupo dos seus perseguidores aumentava a cada passo.
A caça ao homem prolongava-se, semeada de episódios trágico-cómicos; por vezes o jornalista tinha que saltar sobre um cadáver ou meter-se através dos escombros de
qualquer casa destruída pelos torpedos aéreos. Acontecia ter que se meter por qualquer casa abandonada, e então era um verdadeiro jogo das escondidas.
Furiosos, os perseguidores farejavam em todos os recantos e os seus clamores elevavam-se de todos os lados, com as eternas ameaças:
-Morra o estrangeiro! Morra o espião!
Nunca Paulin Quartier se encontrara em tão crítica situação. Até então, sempre que se vira envolvido em qualquer litígio com a populaça, pudera recorrer às autoridades,
que, após verificação dos seus documentos, o haviam deixado seguir em paz e mesmo protegido. Hoje, porém, encontrava-se reduzido aos seus próprios recursos, e só
da rapidez e resistência das suas pernas poderia esperar salvação.
Embora fosse um desportista em toda a acepção da palavra, ao fim de dez minutos começou a sentir-se fatigado. Por quatro vezes julgou haver despistado os seus perseguidores
e por quatro vezes os grupos ululantes volveram a persegui-lo pelas diferentes ruas e becos de Miukiang devastada.
com a respiração ofegante e o corpo a escorrer suor, enfiou por uma travessa e logo verificou ter-se metido em beco sem saída. Já um colosso se aproximava, brandindo
enorme faca e soltando exclamações de triunfo. com extraordinário sangue-frio, Paulin Quartier, vendo que ia ser alcançado, afastou-se para o lado, ao passo que
estendia a perna esquerda, fazendo com que o chinês se fosse estatelar na valeta que corria a meio da rua. Antes que ele tivesse tempo de se erguer, o francês, vendo
uma porta aberta na sua frente, entrou por ela e galgou a escada escura que subia em espiral até às águas-furtadas.
Muitos clamores acolheram aquela nova fuga; em poucos instantes, a casa foi invadida pela malta, mais empenhada do que nunca em alcançar e massacrar o fugitivo.
Ouviram-se novos tiros e uma bala atravessou o chapéu do jornalista fazendo-o cair sobre os degraus. Paulin perdeu aí o seu Kodak, mas conseguiu chegar ao último
andar. Uma clarabóia abria para o telhado. Paulin introduziu-se por essa fresta, que estava aberta, e, com um violento pontapé dado para trás, conseguiu ver-se livre
do seu mais próximo perseguidor.
Uma vez no telhado, observou os arredores. Perto corria o Yang-Tsé. Três casas o separavam do rio. Saltando de uma para a outra conseguiria, sem dúvida, atingir
o cais e a margem; talvez depois encontrasse qualquer barco que lhe permitisse escapar definitivamente aos seus perseguidores.
com risco de quebrar a espinha, Paulin pôs-se a correr; da rua subiram novos clamores; exasperados pela proeza do jornalista, que conseguira esquivar-se mais uma
vez quando o julgavam já agarrado, os amarelos invadiam as casas próximas. Eram agora uns duzentos, pelo menos, grande número dos quais armados de revólveres e velhas
espingardas. E como que a ver qual deles gritava mais.
Já alguns haviam seguido atrás dele pelo telhado e de novo numerosas balas lhe passaram perto. Então não hesitou. Até ali, no desejo de não aumentar o furor dos
seus inimigos, limitara-se a fugir; levando a mão à algibeira, tirou o revólver. E, como três energúmenos pulassem pelo telhado, dispostos a deitarem-lhe a mão,
Paulin virou-se e atirou por várias vezes; dois dos amarelos rolaram pelo telhado inclinado e foram-se estatelar na rua, enquanto o terceiro se baixava uivando de
dor e segurando o braço quebrado por uma bala.
Aquele tríplice êxito acalmou desta vez o ardor homicida dos perseguidores, que não esperavam tão mortífera resposta do perseguido. Paulin Quartier aproveitou
a acalmia para acabar de transpor os restantes telhados que o separavam do cais. Alegre exclamação soltou-se-lhe dos lábios ao verificar que tudo ali se encontrava
ainda deserto. Avistando uma goteira, deixou-se escorregar pelo cano que seguia ao longo da parede e, com desconcertante agilidade, rápido chegou à rua.
Os clamores recomeçaram com maior vigor e o francês dispunha-se a alcançar o cais quando notou um grupo que já ali o esperava. Pareciam não ter ainda dado por ele,
mas estavam preparados a cortar-lhe toda a veleidade de fuga por aquele lado.
Então o jornalista não insistiu e procurou outro refúgio por onde escapar ao furor dos fanáticos. Uma rica propriedade estava ali, mesmo ao pé do rio; a porta escancarada
convidava a entrar; sem notar o grande número de instrumentos de música que juncavam a entrada, parecendo terem sido para ali abandonados ao acaso, na precipitação
da fuga, quando do bombardeamento, Paulin também não reparou numa espécie de arco de triunfo fabricado com esteiras coloridas, que se erguia à entrada. E penetrou
no palácio.
Mas mal dera alguns passos no interior, logo parou interdito. Acabava de entrar numa vasta sala inteiramente forrada de branco. Numa mesa estava servido um autêntico
banquete, no qual ainda ninguém havia tocado. Pelos bancos e cadeiras deitados por terra via-se que os convivas tinham seguido o exemplo dos músicos, pondo-se em
fuga logo ao rebentar das primeiras bombas do ataque aéreo.
Paulin não prosseguiu nas suas investigações; fortes clamores e apelos sucessivos multiplicavam-se à entrada do palácio.
Decidido a vender caro a vida, o jornalista abrigou-se
a um canto, de revólver em punho. Mas, lá fora, os clamores diminuíam. Os chineses, em vez de invadirem a casa, pareciam discutir, designando os diversos instrumentos
de música espalhados à entrada. Dentro em pouco começaram mesmo a falar baixo. Dir-se-ia estarem possuídos de respeito, tomados de certo terror supersticioso. Nenhum
deles se atrevia a penetrar naquela habitação.
Intrigado, o francês perguntava a si próprio o que quereria dizer aquela hesitação, quando por acaso os seus olhares deram com a decoração especial da casa. Ao fundo
viu um enorme retrato representando abastado chinês revestido de rica cabaia de seda. com uma pena de pavão a ornamentar-lhe o cabelo, o china parecia sorrir para
o intruso. Na sua frente estava disposto o altar dos antepassados e as figurinhas dos deuses tutelares.
Paulin Quartier estava já suficientemente familiarizado com os costumes e ritos chineses para compreender agora os motivos da mudança de atitude dos seus perseguidores.
É que tinha vindo parar, muito simplesmente, à habitação de um defunto. Como é de uso, entre a gente rica, os familiares e amigos do morto haviam-se reunido para
procederem ao funeral, precedido, segundo o rito, de grandioso banquete acompanhado pela música de instrumentistas. Fora então que o bombardeamento nipónico viera
interromper a cerimónia.
Lá fora, os chineses, que não haviam visto o jornalista procurar abrigo na casa, não ousavam aventurar-se em pesquisas, no receio de ofender a memória do defunto.
Em todos aqueles homens que, sem escrúpulo, se haviam lançado na caça ao homem, a superstição vencia o desejo de capturar o estrangeiro, pois os maus
espíritos poderiam apoquentá-los, mesmo depois de mortos. Persuadidos de que o fugitivo tivesse também tomado outro caminho, pouco se demoraram ante o palácio.
Paulin Quartier respirou aliviado. No entanto não se entregou ainda a um completo optimismo. A situação, embora muito melhorada, continuava deveras embaraçosa. Primeiramente
estava persuadido de que os amarelos continuariam as buscas nas imediações, o que lhe cortava toda a possibilidade de fuga. Em segundo lugar, introduzindo-se naquela
casa mortuária cometera uma ofensa sacrílega. Convinha pois se refugiasse em lugar seguro, antes do regresso da família do morto, dos convidados e músicos.
O jornalista notara que a casa devia dar directamente para o rio e que, por qualquer janela, lhe seria talvez fácil deixar-se escorregar até à água. Caso fosse preciso,
mergulharia e deixar-se-ia levar pela corrente até que descobrisse qualquer embarcação.
Procedeu pois a pesquisas. O quarto contíguo, notou-o com certo arrepio de mal-estar, era a câmara-ardente onde repousava o cadáver. Um largo caixão de madeira lacada
e ricamente trabalhado descansava sobre cavaletes. Em volta haviam deposto travessas com iguarias, segundo o uso: barbatanas de tubarão; um cãozinho de leite com
molho de arroz e pimenta; ninhos de andorinha e algas cozidas. Mais além, cestos com frutas e gomis de vinhos finos. Segundo o hábito e os ritos milenares, o defunto
que repousava no fundo da urna devia participar no festim. Aqueles alimentos eram-lhe destinados e os que o carpiam na sala contígua estavam absolutamente persuadidos
de que a sua alma viria provar de todos os pratos, em cuja confecção o cozinheiro se esmerara.
Dominando o mal-estar que experimentava com tão macabra vizinhança, o jornalista dirigiu-se para a próxima janela, cuja abertura fora dissimulada em sinal de luto
por estofos brancos que tamisavam a luz e faziam reinasse na quadra uma quase completa obscuridade.
Paulin Quartier afastou os panos e arriscou uma olhadela para fora. O Yang-Tsé ali estava, correndo contra os muros do palácio.
O jornalista esperava poder deixar-se escorregar até à água, mas viu que várias embarcações, tripuladas por muitos dos que o haviam perseguido, vigiavam as imediações
e o cais. Toda a fuga por aquele lado lhe estava igualmente cortada. Afastou-se para trás, deixando recair os panos. À porta do palácio, as discussões prosseguiam
e pareceu-lhe até ouvir alguns acordes harmoniosos; eram os músicos que, regressando, recomeçavam com os seus hinos fúnebres.
"Maldição!-murmurou o francês. - A família e os amigos voltam para o funeral! Se me vêem aqui, estou perdido!"
Paulin Quartier podia na verdade ajuizar da responsabilidade em que incorria se ali o descobrissem! Estava em jogo a sua existência. Por momentos ficou perplexo
e pensativo, procurando uma maneira de se evadir e escapar daquele vespeiro onde caíra.
"Só vejo uma maneira, uma só! - murmurou ele.
- Mas repugna-me tanto servir-me dela.
Mas era para ele uma questão de vida ou de morte; com rápido volver de olhos, certificou-se de que a sala vizinha continuava vazia; pegando então numa faca de lâmina
curva que estava na mesa, dirigiu-se deliberadamente para junto da urna funerária.
VIII
Esconderijo macabro
Paulin Quartier tomara uma decisão extrema: uma vez que toda a fuga para o exterior lhe estava vedada, ia muito simplesmente tomar o lugar do morto. Só esse estratagema
lhe permitiria escapar à sanha de tão encarniçados adversários.
Paulin sabia que os chineses ricos nunca se faziam enterrar na própria cidade, pois possuíam monumentos fúnebres em pleno campo. Esperava assim, aproveitando-se
da lentidão do cortejo, poder escapar-se do seu esconderijo. O que importava, agora, era agir com rapidez.
Os acordes da orquestra, já refeita e organizada, produziam agora, na frente da casa, uma cacofonia ensurdecedora. Aproveitando-se do barulho, o rapaz aproximou-se
do caixão e, armado com a sua faca, atacou a tampa.
De começo esta pareceu resistir, mas Paulin carregou com toda a força sobre a faca e fez saltar os parafusos. Um quarto de hora depois tinha conseguido abrir a tampa.
Segundo caixão estava metido dentro do primeiro, mas esse cedeu facilmente. O jornalista ergueu-lhe a tampa e escondeu-se debaixo dos paneamentos. Sem se preocupar
com os aromas, afastou as bandagens e descobriu o corpo. O defunto surgiu-lhe impressionante; o corpo rígido estava envolto num amplo manto de seda; o rosto protegido
por uma máscara representando uma cara serena e sorridente, emblema de felicidade e de suprema beatitude da alma enfim liberta do seu invólucro corpóreo.
Por momentos, o francês ficou imóvel e os seus olhares não se desfitavam da forma imóvel do defunto. Não obstante, o instinto da sua conservação venceu quaisquer
outras considerações:
- Mil desculpas, meu velho! Mas vejo-me forçado a tomar o teu lugar; e, como não sei onde te alojar, terás que dar um mergulho!
Aquela macabra tarefa repugnava ao jornalista, embora soubesse que não tinha outra maneira de escapar à morte e aos horríveis suplícios que certamente lhe estavam
reservados para antes da execução. Despiu rapidamente o cadáver, reduzido ao estado de múmia, tirou-lhe a máscara, e o rosto cor de cinza do morto apareceu-lhe.
Não sem custo, ergueu o corpo e arrastou-o até próximo da janela. Mas as embarcações continuavam a rondar a casa e não poderia precipitar o corpo sem que fosse visto
pelos seus inimigos.
Recuou com o seu fardo, na altura em que os convivas voltavam para a sala do festim. Estava pois isolado na câmara fúnebre e isso apenas por um espaço de tempo restrito.
Uma vez o banquete terminado, proceder-se-ia à organização do cortejo. O ruído distante
do canhoneio não impediria os celestes de proceder aos ritos milenários do funeral.
Paulin Quartier examinou, febrilmente, todos os recantos, todos os móveis, na esperança de encontrar um sítio onde esconder o cadáver do chinês. Por fim, ao erguer
um dos estofos que decoravam a sala, descobriu um vão suficientemente amplo para conter um homem.
Paulin teve uma derradeira hesitação. Pensou que também ele se poderia ali esconder, mas lembrou-se de que da mesma maneira lhe ficava fechada a retirada. Uma vez
o cortejo fúnebre em marcha, nada impediria os seus perseguidores de procederem na casa a uma pesquisa em forma e, então, seria certamente descoberto.
- Tanto pior! Não há pois por onde optar, meu velho! Livraste-te do mergulho, mas terás que adiar o dia do teu funeral. Por agora, vou tomar o teu lugar. Quando
aqui te encontrarem, penso que já eu tenha conseguido pôr-me a salvo!
O jornalista tratou portanto de esconder o cadáver no vão da parede que descobrira. Depois, com o auxílio do seu canivete, fez uns furos nos lados do caixão, a fim
de poder respirar durante a viagem, que esperava fosse curta. Uma vez tomada aquela indispensável precaução, o francês enfiou a màscara do morto, afivelou a máscara
e, sem hesitar, tomou o lugar do defunto dentro da urna. Puxou a tampa para si e, com os parafusos que conservara, tentou fechá-la e pôr-se ao abrigo de qualquer
curiosidade intempestiva. Mas não conseguiu o seu intento na difícil posição em que se encontrava.
"Seja o que Deus quiser! - murmurou ele. - Ora, espero que ninguém dê por nada, mas, se surgirem complicações pelo caminho, representarei a esta gente
a comédia da ressurreição. Julgo que se ponham em fuga ao ver o morto erguer-se do caixão. Mas não antecipemos e toca a ter paciência!
Passaram-se muitos minutos e Paulin foi-se acostumando aos aromas e ao pouco ar de que dispunha para respirar no interior do caixão.
Do seu esconderijo, o francês ouvia por vezes o ruído do canhoneio e pensava nos seus colegas que deviam estar àquela hora próximo da linha de fogo. Pela primeira
vez, o repórter fotográfico da Actualité não estava no seu posto.
"Não importa - disse para consigo o jornalista -, pois mal supõem eles que a estas horas estou a fazer de morto! As minhas aventuras são mais de romance de que
da vida real ou banais reportagens! Basta saber como tudo isto acabará! Danielle vai fartar-se de me troçar quando nos encontrarmos!"
O coração do jovem apertou-se-lhe. Pela primeira vez, desde que os amarelos andavam em sua perseguição, deixava vagabundear o espírito para a sua encantadora colega.
Esquecendo por momentos a própria situação e os obstáculos que o cercavam, perguntou a si próprio, cheio de ansiedade, o que seria feito da gentil Princesa da "Terra
de Ninguém".
"Por que não quis ela ouvir os meus conselhos? Sozinha arrisca-se às piores aventuras no meio destes territórios sem cessar percorridos por grupos de bandidos" .
Enquanto assim monologava, o jornalista estava longe de supor que a colega pusera em acção o seu projecto de partida e se iria expor a grandes perigos.
Entretanto, pelo ruído do arrastar de cadeiras, Paulin compreendeu que o banquete terminara.
"Diabo!-disse o recluso.-Vamos ter que jogar
forte, aqui! Desde o momento que não dêem pelo meu estimável predecessor, tudo irá bem!"
Felizmente, as complicações que o jornalista temia não se produziram. A porta que comunicava com a sala mortuária abriu-se lentamente. A passo processional, parentes
e amigos penetraram, precedidos pelos bonzos, que psalmodiavam as suas orações em volta do esquife do ilustre defunto.
Decorreram vinte minutos que pareceram séculos a Paulin Quartier; a todo o momento o rapaz supunha que haviam descoberto a sua manigância, dado pela falta dos parafusos,
por qualquer pormenor revelador esquecido por ele na sua precipitação; a mais pequena coisa podia provocar, dum momento para outro, irreparáveis complicações.
Dominando os nervos, ouviu as rezas e cânticos dos bonzos prolongarem-se em volta do seu caixão.
Se o francês tivesse podido olhar para o que se passava cá fora ter-se-ia certificado de que ninguém pensava em examinar o féretro. Os parentes, vestidos de branco,
baixavam a cabeça, manifestando a mais profunda aflição. Não obstante, Paulin estremeceu ao ouvir gritos agudos elevarem-se à sua volta. Um suor frio inundou-lhe
a testa.
"Desta vez, estou perdido! Acabou-se!" - disse para consigo o desventurado jornalista.
Mas tratava-se apenas de carpideiras que vinham chorar e nomear as virtudes do defunto.
A um sinal do mestre-de-cerimónias, os músicos aproximaram-se e foi em volta do esquife uma ensurdecedora cacofonia. Depois, bruscamente, fez-se completo silêncio.
Ia começar o desfile fúnebre.
Silenciosamente, a família saiu da câmara-ardente para enfileirar perto da porta. Na rua juntavam-se os
ociosos que apesar dos bombardeamentos sucessivos e dos grupos de malfeitores teimavam em não deixar Miukiang.
Os portadores dissimularam o caixão sob enorme pano bordado de dragões, enquanto na outra quadra os bonzos carregavam com as estatuetas dos deuses tutelares e altares
familiais que deviam acompanhar o morto à sua última morada.
Ouviu-se uma ordem breve. Dez portadores alinharam à direita do palanquim, enquanto dez outros se colocavam à esquerda. Â um sinal do mestre-de-cerimónias ergueram
o caixão. Vinte outros carregadores, todos vestidos de branco, formavam a equipa que transportaria o defunto. Tudo fora organizado, apesar dos bombardeamentos, para
que o cortejo seguisse na melhor ordem e compostura, segundo os velhos ritos.
Paulin sentiu que o levantavam, ouviu uma pancada tocada num gong, e o cortejo pôs-se em marcha, ao longo das ruas cheias de escombros.
À cabeça seguiam os porta-estandartes e duzentos portadores, com quadros erguidos no alto de varas, onde se liam as virtudes, méritos e acções honrosas praticadas
pelo morto. Em seguida vinham os músicos, decididamente infatigáveis; o som irritante das flautas unia-se ao das trompas barulhentas, ao dos tamboris, dos timbales.
Por fim aparecia o caixão.
Quando Paulin Cuartier percebeu que chegara à rua, soltou um suspiro de satisfação. Estava vencida uma primeira etapa. Agora, onde o conduziriam? Que faria ele quando
saíssem da cidade e se aproximassem do túmulo da respeitável família?
Parentes e amigos seguiam o corpo nos seus palanquins, esforçando-se por se ocultarem dos olhares curiosos; a humildade e a discrição eram de regra em tais
circunstâncias. Os clientes e conhecidos fechavam a marcha.
Em tempos normais, o cortejo estender-se-ia numa distância superior a três quilómetros. A guerra, que tanta gente afastara de Miukiang, fazia com que a assistência
fosse muito mais diminuta e a fila não cobria mais de setecentos metros.
Um observador atento teria notado que, apesar do seu recolhimento, muitos dos componentes do cortejo fitavam o céu de tempos a tempos. A mesma preocupação os dominava;
todos receavam a chegada possível dos aviões nipónicos, que tantas vezes já haviam semeado a morte e a destruição naquelas ruas.
Mas o cortejo prosseguia normalmente. O religioso silêncio que rodeava o esquife era apenas cortado pelos pouco harmoniosos acordes dos músicos e pelos urros frenéticos
das carpideiras, as quais, arranhando o rosto e arrancando os cabelos, as lágrimas escorrendo-lhes pelas faces, tomavam os transeuntes por testemunhas da perda irreparável
que a família sofrera e representavam na perfeição o seu papel. Dir-se-ia que era o próprio pai que choravam, não obstante nunca terem visto, sequer, o respeitável
defunto!
Por seu lado, Paulin Quartier continuava a desempenhar o papel de morto sem que ninguém, ainda houvesse suspeitado a substituição. De trezentos em trezentos metros,
os portadores mudavam.
Assim chegaram às portas da cidade, que continuava sem guardas; três indivíduos de aspecto patibular estavam a um canto, e, mal o cortejo se afastou para o campo,
trocaram entre si um olhar de inteligência. Depois montaram a cavalo e executando uma larga volta, para contornarem o préstito, galoparam em direcção ao norte,
Os membros do cortejo não ligaram a menor atenção ao enigmático trio; nenhum deles supunha na verdade que aqueles estranhos lhe iam suscitar os mais desagradáveis
contratempos.
O túmulo de família onde o defunto devia ser inumado ficava a uma dezena de quilómetros, pouco mais ou menos, de Miukiang. Até então aquela zona não fora atingida
pelos bombardeamentos dos japoneses, e por isso a família do morto esperava ter todo o tempo preciso para proceder à cerimónia antes que se produzissem novas complicações.
Sabiam que os nipónicos eram muito respeitadores dos manes dos defuntos para que tivessem a temer da sua parte a menor tentativa de pilhagem.
Em volta do cortejo estendia-se agora ? a planície ligeiramente ondulada que marginava a vasta extensão do lago Toyang. Por toda a parte se viam macabros e lúgubres
quadros. Nuvens de corvos passavam no céu e juntavam o seu gralhar às insuportáveis melopeias dos músicos. No ar pairava um cheiro repugnante a cadáver. Os bandidos
do general You haviam por ali passado, pilhando os grupos e caravanas. Não obstante, a gente do cortejo parecia não temer o terrível bandido, julgando-o respeitador
dos ritos milenários. Mas enganavam-se redondamente, conforme os acontecimentos se iriam encarregar de comprovar dentro de pouco tempo.
Paulin Quartier sentia-se alquebrado, morto de fome e sede. Por mais duma vez tentara soerguer a tampa do caixão, mas nada conseguira, no receio de se tornar notado
por um esforço mais violento. Resignou-se, pois, mais uma vez, preocupado com a ideia de como tudo aquilo acabaria. Como sair do caixão e do túmulo, uma vez terminado
o funeral?
Incapaz de se figurar o itinerário seguido, o rapaz
estava agora decidido a erguer a tampa mal o depusessem, em terra e fazer de ressuscitado para se aproveitar do terror religioso que certamente suscitaria.
Mas ai! Paulin Quartier não estava ainda a meio dos seus trabalhos! O ruído dum motor veio em breve perturbar os gemidos e lamentações das carpideiras. Ouviu-se
uma voz imperiosa ordenar:
- Alto! Não ireis mais longe!
E o cortejo fúnebre parou em meio da desolada planície.
IX
O resgate dum cadáver
Maou-Han, o mestre-de-cerimónias, que marchava à frente do cortejo, imobilizou-se interdito. Acabava de parar um automóvel na sua frente, impedindo-lhe o caminho.
Mais atrás, uma tropa duns cem cavaleiros aproximava-se a galope. Na primeira fila figuravam os três indivíduos que havia pouco tinham encontrado à saída das portas
de Miukiang.
- Vejamos que significa. - balbuciou o mestre-de-cerimónias, dirigindo-se àquele que se mantinha à direita do motorista e acabava de lhe ordenar tão rudemente que
parasse. - Deixem passar os restos mortais do muito ilustre e venerável Liang-Hi! Não vêem que o conduzimos à sua última morada?! Arreceiem-se do seu espírito, que
pode, encolerizado pela vossa irreverência, atormentar-vos nesta e na outra vida!
Em condições normais, uma tal ameaça teria domado as mais fortes determinações; não obstante, o homem não pareceu impressionado de forma alguma. Os seus olhitos
do feitio de amêndoa brilhavam por detrás dos óculos que os protegiam. No banco traseiro estavam dois homens de aspecto pouco tranquilizador e, pormenor
que reteve em especial a atenção da gente do séquito, ambos traziam a carabina a tiracolo e estavam armados até aos dentes.
- Nós dirigimo-nos para Lau-Fen - insistiu o mestre-de-cerimónias já inquieto com a atitude pouco tranquilizadora dos recém-chegados.
O homem dos óculos nada respondeu e limitou-se a fazer, para trás, um sinal aos cavaleiros, que, executando um rápido movimento envolvente, cercaram por completo
todo o cortejo. Ouviram-se alguns protestos. Os parentes do defunto curvaram-se dos seus palanquins, perguntando, receosos, o que significava a intervenção daquela
escolta imprevista.
Por fim, Maou-Han teve um gesto de impaciência:
- Pela última vez peço que nos deixem passar; vamos para Lau-Fen!
- Não irão para Lau-Fen, pela simples razão de que os soldados de San-TsiMing vão abrir os diques que barram as águas do lago Toyang e dentro em pouco toda a região
se encontrará inundada. Vocês arriscavam-se a ser surpreendidos e arrastados pelas águas!
Aquele comunicado deixou os membros do cortejo estarrecidos. Era certamente a primeira vez que tal contratempo sobre vinha a um préstito fúnebre. Mas não se podiam
infringir os ritos seculares sem se exporem à vingança do espírito do morto.
A voz autoritária do homem dos óculos veio no entanto pôr ponto nas suas hesitações:
- Vocês vão seguir-nos imediatamente!
- Aonde nos conduzireis?
- Não importa! Recebi ordem de trazer todo o cortejo e vão por isso acompanhar-me, ou então ós meus cavaleiros se encarregarão de os fazer marchar à força.
Entretanto esses cavaleiros haviam pegado nas suas carabinas e apontavam-nas para a gente do séquito.
- É uma infâmia! -protestou um personagem todo vestido de branco que acabava de se apear da primeira cadeirinha. - Eu sou M. Liang, o filho mais velho do respeitável
defunto. O meu dever obriga-me.
- O seu dever obriga-o apenas a evitar que o cadáver deseu pai sofra irremediáveis profanações! interrompeu o desconhecido com voz dura. - E você está interessado
no mais alto grau em que os seus companheiros obedeçam imediatamente às minhas ordens, que são as do muito ilustre general You!
Um arrepio de pavor percorreu toda aquela gente ao simples enunciado daquele nome temido.
- O general You quer ser o próprio a inclinar-se ante os despojos do mui ilustre Liang-Hi - continuou o desconhecido, contente com a impressão que as suas palavras
acabavam de produzir nos componentes do cortejo. - Eis a razão por que todos me seguirão até ao seu acampamento!
- Permitam-me que proteste - declarou Liang -, mas é conveniente que os ritos milenários sejam respeitosamente seguidos!
- E quem lhes diz que nós queiramos violá-los, respeitável Liang?-objectou o bandido amarelo.- A alma de seu pai pode dar-se por feliz por ter encontrado uma escolta
importante que vem engrossar as fileiras dos seus fiéis amigos, aqui reunidos para lhe prestarem a derradeira homenagem!
- Nós temos que ir a Lau-Fen. que fica apenas a três milhas daqui. Iremos até ao fim!
-.Nestas condições, honrado Liang, tenho o desgosto de lhe anunciar que conduzirei ao acampamento, não um, mas dois cadáveres! Seguirá o seu respeitado pai
ao reino dos espíritos! Eu mesmo me encarregarei de lhe fazer iniciar a viagem!
Enquanto pronunciava estas palavras, o homem dos óculos tirava do bolso uma enorme pistola automática que apontou ao filho do defunto. O rosto do infortunado tornou-se
cor de cinza. Leu nos olhos do bandido uma fria resolução. Aterrorizado, voltou-se para o mestre-de-cerimónias:
- Que devo fazer? Em nome de Buda todo-poderoso. que deverei fazer?
Os bonzos, tão aparvalhados de medo quanto indignados pelo desacatado dos bandidos, trocavam grandes gestos entre si e amaldiçoavam os piratas da planície. E não
havia a esperar qualquer socorro. O general You era agora o senhor daquela Terra de Ninguém" onde se aventurara o cortejo fúnebre.
O desventurado Liang compreendeu que tinha de ceder ante a força, tanto mais que nenhum deles estava armado. Habitualmente, os mais ferozes bandidos curvavam-se
diante da morte. Era preciso que aquele You fosse dum desconcertante cinismo para proceder assim, por forma tão atentatória das coisas mais sagradas que existiam
na China.
No seu caixão, Paulin Quartier, de começo intrigado pela paragem, tinha compreendido o que se passava, pois ouvira certas frases do homem dos óculos e as réplicas
e comentários dos assistentes.
"Que pena não esteja aqui a pequena Danielle! disse para consigo. - É com certeza a primeira vez que um enterro se vê atacado e capturado pelos piratas! Que maravilhoso
assunto para uma reportagem!"
Ao caso não faltava na verdade imprevisto, e vinha complicar mais a já tão complicada situação do repórter
fotográfico. Mas o homem dos óculos tinha pressa e ordenou:
- O ilustre general You empenha-se sobretudo em que nada seja alterado na ordem do cortejo! Devem portanto seguir-me, mas desde já os previno de que a menor tentativa
de fuga será impiedosamente reprimida. Os meus homens não hesitarão em atirar sobre os imprudentes que procurem comprometer a boa harmonia do cortejo!
- Mas, afinal, que pretende o general You? - protestou o filho do defunto, desesperado pela atitude ameaçadora do seu interlocutor.
- Ele mesmo lho dirá, quando chegarmos ao seu acampamento. Estou aliás persuadido de que se poderão entender amigavelmente. Mas já perdemos muito tempo! A caminho!
Volte para o seu palanquim, estimável Liang, e pense somente em rezar pelo eterno descanso da alma do seu ilustre progenitor!
Satisfeito ou não, o infortunado voltou para a sua cadeirinha. O mestre-de-cerimónias, ainda a tremer de medo, ergueu o seu bastão, e o cortejo, precedido agora
pelo automóvel, escoltado pelos cavaleiros de You, pôs-se em marcha.
Depressa os bandidos deixaram a estrada principal, metendo por um caminho transversal, sulcado de regueiras. Bonzos, carpideiras, músicos, gente do cortejo enterravam-se
por vezes até aos joelhos na lama espessa; muitos olhavam para trás, no receio de verem as águas crescerem e atingi-los. Em todos os olhares se lia profundo receio.
Apenas os cavaleiros se mantinham impassíveis, guiando as montadas com mão firme.
Pouco a pouco foram alcançando as alturas de Lu-Fei-Fu, onde You estabeleceu momentaneamente o seu acampamento, pronto a abalar para o norte logo
que se iniciasse o avanço das tropas nipónicas vitoriosas.
Ao cair da noite o cortejo fúnebre alcançou as vanguardas do exército do bandido. As vestes brancas dos bonzos, dos músicos e outros componentes do préstito estavam
em lamentável estado. Todos se sentiam extenuados. Até os músicos haviam cessado de tocar e as carpideiras só de tempos a tempos soltavam uns gemidos, agora bem
sentidos.
Foi por esse motivo que, por pouco seguros que se sentissem no acampamento de You, o mestre-de-cerimónias e os seus companheiros se consideravam felizes por terem
chegado à vista das tendas e dos fogos do bivaque. A sua chegada provocou sensação; abandonando as tendas, os bandidos que não haviam tomado parte na expedição vieram,
em grande número, ao encontro do préstito. Respeitosamente, inclinavam-se à sua passagem; e era pouco vulgar aqueles jovens, de natural selvagem, tornarem-se tão
humildes e deferentes.
Todo o cortejo parou nas proximidades da tenda do general You. O caixão foi deposto a uma dezena de passos do refúgio do chefe.
Vestido de grande uniforme, You apareceu à entrada da sua barraca, a saudar também os despojos do ilustre LiangHi. Depois de permanecer por algum tempo inclinado
ante o esquife, o general trocou algumas palavras em voz baixa com o homem dos óculos que escoltara o cortejo e este dirigiu-se para o palanquim- onde esperava Liang,
o filho mais velho do defunto.
- O muito ilustre general You deseja falar-lhe na sua tenda, estimável Liang! - declarou ele. inclinando-se.
Liang viu-se obrigado a aceder ao convite, mas queria levar consigo os três irmãos e demais membros da família, o que não foi, porém, consentido.
Tremendo de emoção, penetrou na barraca do general, que já o aguardava, de pé, muito digno, no centro da sua tenda. O seu rosto exprimia o mais sincero pesar quando
Liang parou, interdito, a três passos do general. De novo se inclinou:
- Ninguém lastima tanto como eu, estimável Liang, a cruel perda que acabais de experimentar! Do fundo do coração saúdo os manes do desaparecido, sábio entre os sábios!
Não havia naquelas palavras mais do que cumprimento banal e semelhante a muitos que o filho do defunto já ouvira desde a morte de seu pai. Dominando a comoção que
dele se apoderara, Liang atreveu-se a responder:
- Sinto-me sensibilizado pelos cumprimentos que acabais de me dirigir, ilustre general. Confesso mesmo que não esperava tal homenagem!
- É verdade! Não pertenço de perto nem de longe à família do defunto, cuja reputação conhecia. Sabia que ele dirigia, com todo o êxito, um banco dos mais consideráveis
de Miukiang. Também não ignoro que ele deixa aos seus herdeiros, a si principalmente, uma enorme fortuna!
- Isso são bens terrenos!-protestou Liang Para
quê falar dessas ninharias em semelhante ocasião?
- Desculpará, magnânimo Liang, se me revelo indiscreto, mas julgo absolutamente indispensável aludir a tudo isso. A vizinhança da morte faz revelar-se a inanidade
dos bens deste mundo!
Liang calava-se, interdito, sem saber que atitude tomar, e o general You pôs-se a caminhar de um para
outro lado, até que parou em frente de Liang, fitando-o com insistência entre os olhos:
- Se bem me informaram, a fortuna que lhe lega o seu estimável progenitor eleva-se pelo menos a três milhões de dólares?
- Torno a repetir-lhe, ilustre general - protestou Liang -, numa situação tão dolorosa a fortuna pouco conta!
- Sinto-me encantado por o ver ligar tão pouca importância à sua herança - murmurou You com um malicioso sorriso. - Isso facilitará imensamente as transacções que
projectei.
- A que transacções se refere?
- Calculo, estimável Liang, que não suponha haja feito conduzir até aqui o cortejo fúnebre de seu venerável pai somente para me inclinar na sua frente.
- Suponho na verdade exista uma outra razão do seu procedimento.
- Acaba de me declarar, estimável Liang, que a fortuna pouco representa para si. Por meu lado, estou longe de compartilhar da sua opinião. É por isso que lhe peço
me faça remeter, por intermédio do seu banco, a quantia de um milhão de dólares. Isso constituirá o direito de passagem dos despojos de seu ilustre pai e do numeroso
cortejo que o escolta.
Liang não pôde reprimir um sobressalto: -- Um milhão de dólares! Não pense nisso, ilustre general. Já computou o valor de semelhante quantia? You teve um gesto de
indiferença:
- Evidentemente, para muitos, um milhão de dólares mexicanos (é a única moeda que aceitarei) representa uma considerável fortuna. Mas tal não acontece com o riquíssimo
Liang, que, por morte de seu pai, o
banqueiro, pode dispor duma quantia três vezes superior!
- O general ignora que não sou o único herdeiro; tenho três irmãos!
- Pois nesse caso terão que contribuir para esse milhão, da mesma forma como compartilham da herança! Mantenho o meu pedido de um milhão! Arranjem isso em família,
como quiserem, na certeza, porém, de que, enquanto essa quantia me não for entregue, os despojos mortais do venerável Liang-Hi aguardarão repouso em terra sagrada
e não irão para o túmulo dos seus antepassados!
O rosto do mais velho dos Liangs crispou-se: -. O ilustre general não pensa que pode assim atrair sobre si o furor do espírito de Liang-Hi? Não receia represálias
pelo horrível sacrilégio que representa o negócio que propõe?
- Deixemo-nos de divagações, amável Liang! Não se trata dum negócio, mas dum resgate, que exijo pelo cadáver do vosso respeitável pai, tal como o tenho exigido de
alguns vivos que têm caído em meu poder!
O bandido sabia bem que Liang lhe estava assim mais nas mãos do que se exigisse dele qualquer resgate pela sua própria liberdade.
- O mais sagrado dever de um filho consiste em prestar as derradeiras homenagens a um pai estremecido - insistiu You. - Se falta a esse dever, arrisca-se às mais
graves maldições. É por isso que não será demasiado insistir obedeça às minhas ordens. As propostas que lhe fiz são razoáveis. Vai pois assinar-me um cheque dum
milhão de dólares e aguardar tranquilamente no meu acampamento com toda a gente do cortejo. Até que o meu emissário regresse com o dinheiro, sereis os meus hóspedes
de honra e como tal
sereis tratados. Será reservada uma barraca para o caixão do respeitável Liang-Hi. Uma vez o resgate em meu poder, não somente lhes darei inteira liberdade, mas
eu mesmo providenciarei para que o funeral se realize com a devida pompa. Os meus homens farão a guarda de honra ao defunto, acompanhando o cortejo!
- E se eu recusar aceder às suas exigências, ilustre general? - ousou perguntar Liang.
- Se recusar, o caixão será queimado com o seu conteúdo.
Estas palavras provocaram em Liang profunda indignação. Perdendo a calma até então manifestada, fez menção de se lançar sobre o general, mas este, levando a mão
ao cinto, apontou-lhe a pistola:
- Espere aí, estimável Liang! Você ia a cometer a maior das imprudências e os seus três irmãos ver-se-iam forçados a pagar o resgate de dois cadáveres, em vez do
de um só!
O desgraçado imobilizou-se ante a ameaça da arma e murmurou algumas incompreensíveis palavras. Nunca supusera que o bandido levasse tão longe a sua infâmia.
- Não receia então a maldição eterna?
- O general You nada receia! - respondeu tranquilamente o bandido. - Faz por salvaguardar os seus interesses, eis tudo!
E como Liang se calasse, insistiu conciliador:
- Assine o cheque, vamos, ou dê ordens equivalentes, para que eu receba o milhão do seu representante em Han-Keu. Digo Han-Keu, percebe, e não Miukiang, que não
tardará a cair em poder dos japoneses. Gosto dos negócios certos! Procedendo assim, evitará muitas sensaborias e poupar-se-á um remorso eterno.
Liang compreendeu nada poder tentar para resistir e inclinou-se.Um clarão de vitória fulgurou nos olhos do general; vagarosamente, meteu a pistola no estojo. Compreendera
que, doravante, Liang estava completamente à sua discrição.
- vou trazer-lhe o papel para que o assine - disse ele.
- Permita-me que lhe objecte, mas a minha assinatura só tem validade devidamente rubricada por meus irmãos!
- É bem verdade! Dou-lhe portanto meia hora para convencer seus respeitáveis irmãos da vantagem que terão em aprovar a sua atitude! São mais novos e decerto se conformarão
com os desejos daquele que é de futuro o seu chefe de família!
You inclinou-se, deixando passar o seu visitante. Acompanhou Liang até à entrada da barraca, donde o viu dirigir-se para as cadeirinhas de seus irmãos. Animada discussão
se efectuou entre eles.
Sem dúvida, o mais velho lograra convencer os irmãos da necessidade de obedecerem ao ultimato do bandido, porquanto dez minutos depois regressavam os quatro. Silenciosos
e enraivecidos, penetraram na tenda do general You, que os aguardava fumando um cigarro.
com a caneta do general assinaram as instruções destinadas a pagar ao emissário de You o resgate do cadáver de seu pai.
x
O morto-vivo
Enquanto estas transacções prosseguiam, Paulin Quartier aguardava, pacientemente, no seu caixão.
Pelos rumores que se elevavam de tempos a tempos, julgava ter chegado ao acampamento do general You e, de começo, pensou que o bandido procedesse à abertura do caixão,
a fim de roubar as jóias e anéis que o defunto pudesse levar consigo para a sepultura. Se assim fosse corria os maiores perigos e arriscava-se a ser descoberto.
Por felicidade, ninguém pensava em abrir a urna, e mal os irmãos Liang assinaram as ordens do bandido, logo este foi ter com o mestre-de-cerimónias. Em menos de
cinco minutos foram tomadas as disposições precisas para assegurar aos restos mortais do respeitável Liang-Hi uma permanência condigna no acampamento enquanto se
aguardava o regresso do emissário que partira para Han-Keu com a carta que o general remetera.
Ouviram-se algumas ordens e os portadores, que até então haviam aguardado em medrosa expectativa, ergueram o caixão e levaram-no para a barraca que You fizera preparar
com esse fim. O jornalista sentiu que
depunham a urna sobre uns cavaletes e ouviu as preces dos bonzos.
"Se ficarem aqui sempre ao pé de mim, estou perdido!" - disse o francês para consigo, sentindo-se cada vez menos à-vontade dentro da sua estreita prisão.
Durante uma hora as orações prosseguiram. Paulin começava a desesperar, sofrendo de fome e sede, apoquentado de cãibras, devido à forçada imobilidade. Ignorando
em absoluto qual era a sua situação, receava novas complicações. Deviam com efeito ter já descoberto o corpo do verdadeiro Liang-Hi, na casa de Miukiang, e dum momento
para outro a família podia ser prevenida da substituição.
Não obstante, o repórter confiava em que ninguém se atreveria a ir comunicar o caso ao campo do famoso bandido. com o rosto e o corpo alagados de suor, ouviu idas
e vindas à sua volta. As orações haviam cessado e ligeiros choques repercutiam-se nas tábuas do caixão. Dir-se-ia que depunham vários objectos em torno do esquife.
"Que diabo de manigâncias serão estas agora? perguntava a si próprio o morto-vivo. - Bem gostaria poder sair daqui e desenferrujar um pouco as pernas!"
Por fim, o ruído dos passos cessou e estabeleceu-se absoluto silêncio. Paulin Quartier apurou o ouvido, angustiado. Durante alguns minutos esperou ainda, mas depois,
certo de que o haviam deixado só, encurvou-se dentro do caixão até fazer saltar a tampa, que não conseguira aparafusar ao sair de Miukiang.
Ainda tolhido da forçada imobilidade, Paulin arriscou uma olhadela pelo local onde se encontrava. Os primeiros haustos de ar livre causaram-lhe tonturas, mas depressa
reagiu. À luz vacilante duma lâmpada de azeite pôde verificar achar-se ao abrigo de uma barraca
de campanha e rodeado de pratos copiosamente guarnecidos.
"Olá! -disse o francês. -Estes simpáticos bonzos tiveram o cuidado de servir o repasto ritual aos manes do desaparecido! Excelente ideia! vou poder restaurar as
minhas forças!"
E embora cônscio da imprudência, pois os bonzos não deixariam de notar a brecha que abrisse nos comestíveis, o repórter não pôde resistir à fome. Lutando com a paralisia
momentânea dos membros, encaminhou-se até à entrada da tenda e espreitou para fora. Sentados e imóveis, os bonzos dormiam ou rezavam ao pé da tenda, junto ao fogo.
Evitando produzir o menor ruído, deslizou para junto do primeiro prato e provou o seu conteúdo, cujo gosto a caviar podre lhe fez fazer uma careta. As barbatanas
de tubarão e a sopa de seng-seng pareceram-lhe melhores, embora muito apimentadas.
O morto-vivo alimentava-se o melhor que podia e, descobrindo um jarro ali perto, bebeu alguns goles duma bebida bastante azeda mas refrescante.
Acabada a estranha refeição, Paulin Quartier fez por dissimular o melhor que pôde as falhas produzidas nos diferentes pratos e, sentindo-se mais bem disposto, sentou-se
no tapete. Flutuava na barraca um cheiro a ervas aromáticas, mas isso era mil vezes preferível ao calor sufocante da sua macabra prisão!
Durante horas, o francês assim se manteve. Diante da barraca, os bonzos dormiam abrigados, com oleados, da chuva que continuava a cair. E o pensamento de Paulin
voou para longe dali, para aquela Terra de Ninguém onde Danielle devia vaguear conforme os seus hábitos imprudentes. Que de riscos não correria ela? Não obstante,
sorriu ao lembrar-se do estranho
papel de morto-vivo que estava representando. Restava saber como tudo aquilo acabaria!
"Seja como for, estava longe de prever que esta viagem ao som da música me havia de trazer ao acampamento do general You!" - monologava o repórter.
?E entregou-se a todas as conjecturas. Por que razão o esquife ficava assim exposto a coberto da tenda? Aquele diabo de general amarelo era bem capaz de ter maquinado
qualquer combinação que lhe desse dinheiro!
O rapaz estava tentadíssimo a aventurar-se fora da barraca; era-lhe fácil sair erguendo o pano da tenda, do lado oposto àquele onde descansavam os bonzos. Não obstante,
fazia um tempo tão desagradável que o repórter preferiu deixar-se ficar ao abrigo da barraca.
Pela madrugada foi forçado a regressar rapidamente ao seu caixão. Mal fechara a tampa sobre si e afivelara a máscara de cera no rosto quando o barulho de passos
lhe veio provar terem os bonzos acordado e regressado à tenda para rezar. Teve que se resignar a novo período de inércia. Do fundo do caixão ouvia o estranho ranger
dos moinhos de orações que os padres budistas faziam rodar.
O francês esperava que, dum momento para outro, os seus vizinhos descobrissem que ele tocara nos pratos, mas essas apreensões não se realizaram. Os bonzos estavam
totalmente absorvidos nas suas rezas. Lá fora, a chuva parecia querer diminuir e percebiam-se os vários ruídos do acampamento que despertava.
Durante todo o dia a barraca foi muito visitada. Eram os parentes e amigos do defunto que vinham inclinar-se ante a urna e suplicar ao espírito do morto que os não
perseguisse com a sua cólera.
Já à tardinha ouviram-se, a pouca distância, rumores
insólitos que Paulin Quartier se esforçava por adivinhar de que provinham. Discutia-se com calor. E, mais uma vez, a fome apoquentava o jornalista.
Foi preciso aguardar a retirada dos bonzos e que o silêncio caísse de novo sobre o acampamento para então ousar sair novamente do seu refúgio. com alegria, Paulin
Quartier descobriu que lhe haviam trazido novas vitualhas. Como na véspera, comeu alguma coisa de cada prato e bebeu a tal bebida fermentada, sentindo-se logo mais
bem disposto.
Como agora já não chovia, resolveu-se a tomar um pouco de ar. À luz indecisa da candeia libertou-se da máscara e do manto de seda, que escondeu no fundo do caixão,
cuja tampa fechou cuidadosamente. Depois, pegando no seu revólver, dirigiu-se a rastejar para o fundo da tenda.
Tranquilizado pelo sossego que o cercava e pelo ressonar plácido dos bonzos, o francês deslizou para fora da barraca, arrastando-se como uma cobra.
Primeiro respirou deliciado o ar da noite, que vinha refrescar-lhe o rosto encandecido. Contornando cuidadosamente a barraca, verificou não terem posto qualquer
sentinela. You tinha pensado que os bonzos chegavam bem para vigiar um cadáver e só estabelecera sentinelas ao redor do acampamento.
Paulin ignorava em que ponto dos arredores de Miukiang viera parar e nada sabia dos acontecimentos daquelas vinte e quatro horas, nem da inundação produzida pelo
rompimento dos diques, inundação essa que colocara Danielle Mercoeur em tão crítica situação após a sua partida da Missão dos lazaristas.
O repórter caminhava cauteloso, parando de tempos a tempos para se orientar, a fim de poder regressar rapidamente à sua barraca em caso de alerta.
Mas repugnava-lhe a ideia de ter que voltar para o seu caixão. Preferia arriscar-se, tentando evadir-se do acampamento logo que a ocasião se lhe proporcionasse.
Logo de entrada, o repórter notou a importância do acampamento e admirou-se do grande número de homens de que dispunha o general. Assim, a tal evasão não se tornava
tão fácil como supusera. Sem desesperar, apesar de tudo, o repórter ia avançando sobre o terreno húmido e lamacento. Pouco a pouco pôde verificar que o bandido amarelo
soubera aproveitar-se das sucessivas derrotas do exército chinês, apropriando-se de grandes quantidades de material. Tanks, canhões, autometralhadoras e até peças
de artilharia acumulavam-se no campo. Só os aviões faltavam àquele exército de piratas, mas, com o general You, todas as ssurpresas eram admissíveis e seria possível
que brevemente os possuísse.
Paulin teve que suspender as suas considerações e fazer alto, pois perto dele acabava de se erguer uma sentinela. Um segundo soldado aproximava-se de carabina em
punho. O repórter deitou-se rapidamente no chão e empunhou o revólver, julgando-se descoberto e resolvido a defender-se.
Mas não era disso que se tratava. Os amarelos, julgando-se sós e cansados de uma vigilância que certamente reputavam escusada, vinham conversar um com o outro.
- És tu, Lao. Fizeste-me apanhar um susto!
- disse o primeiro.
- Venho da barraca da prisioneira - explicou o outro.
Paulin Quartier apurou o ouvido, profundamente intrigado pelas palavras do china. As duas sentinelas continuavam a conversar, sem desconfiarem que perto alguém as
escutava; exprimiam-se em chinês, mas o
repórter compreendia e falava já regularmente aquela língua para que, prestando boa atenção, os pudesse -compreender. Retendo a respiração, escutou atento.
- A cativa ainda dorme?
- Há pouco não se mexia. Parecia resignada com a sua sorte!
- Será bom desconfiarmos, Lao! Essa francesa é o diabo vestido de saias! Já ouvi alguns dos nossos camaradas declararem que os estrangeiros lhe chamam a Princesa
da Terra de Ninguém" e que a admiram sobretudo pela sua audácia. Seria bem capaz de nos fugir e então o general fuzilava-nos imediatamente! Não admite negligências!
- Tanto mais que a francesa vale para ele cinquenta mil dólares!
- Não é tanto como o corpo do honrado Liang-Hi, mas sempre é qualquer coisa!
Paulin Quartier perguntou a si próprio se não estaria sendo o joguete dum sonho. O quê! Era de Danielle Mercoeur que as duas sentinelas estavam falando? Por que
conjunto de circunstâncias a jovem que ele perdera de vista em Miukiang se encontraria agora prisioneira no campo do general You?
O rapaz sabia no entanto que com Danielle Mercoeur se não deviam admirar de coisa alguma. Conhecia o seu carácter empreendedor, ávido de aventuras, de perigo e de
imprevisto!
Mas Paulin interrompeu as suas reflexões para prestar atenção à conversa, que prosseguia:
- Acredita, Lao. É preciso vigiar com cuidado em frente da tenda da prisioneira! Se o general soubesse que estavas aqui arriscavas-te a ser decapitado!
O china compreendeu o bem fundado dos conselhos
do camarada; deu meia volta e afastou-se, encolhendo os ombros filosoficamente.
O repórter esperou que a primeira sentinela estivesse de costas para ele e lançou-se no encalço da outra. Esquecido dos próprios infortúnios e do papel inaudito
de morto-vivo que representava, só pensou que aquela sentinela, cujos passos seguia no escuro da noite, lhe iria indicar o ponto exacto onde Danielle se encontrava
detida. Passaram defronte da barraca do general You e pouco distante o bandido parou ante uma outra tenda mais modesta.
Não há dúvida-pensou Paulin-, é aqui mesmo!"
O jovem parou no escuro, felicitando-se por não haverem, acendido ali qualquer fogueira. A sentinela estava agora apoiada à sua carabina.
De começo, Paulin ainda pensou em a atacar de surpresa, mas breve reconsiderou nos perigos que isso representava para ele e para aquela a quem queria socorrer.
Após ter estudado a situação, decidiu-se a penetrar na tenda onde Danielle estava retida prisioneira.
Para isso teve que dar volta à barraca, a fim de entrar pelo lado oposto àquele onde estava o bandido de vigia.
Devagar, com o fato encharcado e cheio de lama, foi-se arrastando lentamente na sombra. Mas a simples ideia de que Danielle corria perigo e de que a iria encontrar
afastava de si todo o receio. Dominando a fadiga que o acabrunhava, resultante da sua longa imobilidade e deficiente alimentação, continuou progredindo nas terras.
XI
Colóquio imprevisto
Danielle não conseguira adormecer. A infortunada compreendia na verdade a sua absoluta impotência; não obstante, embora reconhecesse o fundamento dos conselhos que
lhe haviam dado Paulin Quartier e o padre Eudes, não se arrependia da forma temerária como agira. Também se não resignava a ter que se sujeitar ao cativeiro imposto
pelo general You. Oh! aquele bandido! com que prazer o teria castigado de tanta impudência e da ironia que lhe manifestara!
"Não! Aquilo não podia ser! É preciso que me evada daqui, custe o que custar, para prevenir o patrão de que não deve pagar nem um cêntimo para a minha libertação!"
A simples ideia de que pudesse ser libertada a troco de um resgate desesperava a rapariga. Considerava essa transacção uma desonra para si. É claro que estava certa
de que o director de Le Monde não hesitaria em pagar a quantia pedida pelo bandido, a fim de salvar a sua audaciosa colaboradora. Danielle não corria portanto nenhum
perigo, mas repugnava-lhe a ideia de que
o seu patrão poderia ceder à chantagem. E supunha já as censuras que não deixaria de lhe dirigir ou de lhe telegrafar! com que então, ela, a Princesa da "Terra de
Ninguém", deixara-se colocar em tão grotesca situação! Não era ela a mais fervorosa e entusiasta adepta dos sistemas audaciosos, aquela que destruía os mais terríveis
obstáculos? Os colegas haviam de a troçar, quando voltassem a reunir-se em Xangai ou em Han-Keu!
Danielle, incapaz de dormir, ia arquitectando numerosos planos de fuga, mas todos se lhe afiguravam irrealizáveis. Já verificara as rigorosas medidas de vigilância
ordenadas pelo general You! Para conseguir escapar-se precisava de ter um aliado dentro do acampamento !
Por mais duma vez, passeando na barraca, foi espreitar pela abertura da entrada. E sempre o perfil da sentinela lhe surgia. Além de que, admitindo mesmo que conseguisse
ludibriar a sua vigilância, que poderia ela, só, em meio do acampamento?
Deixando de reflectir, ia conformar-se e deitar-se sobre a sua manta quando de súbito estremeceu. Um leve arranhar fizera-se ouvir no extremo da barraca oposto à
entrada.
De começo a jornalista supôs tratar-se de algum rato ou cão vadio. Mas, aproximando-se, verificou que o arranhar se produzia a um metro do solo. Então, cada vez
mais admirada, viu uma mão que surgia por debaixo da lona da barraca. Incapaz de se conter por mais tempo, aplicou a face contra o tecido e murmurou:
- Quem está aí?
A resposta não se fez esperar. Do outro lado alguém sussurrava:
- Sou eu, Paulin Quartier! É você, Danielle?
- Sou eu, com efeito!
Durante alguns momentos a jovem ficou como que petrificada. A presença ali do seu confrade Paulin era para ela tão desconcertante que chegou a julgar-se vítima de
qualquer alucinação; mas os seus olhos, habituados à semiobscuridade, viram uma segunda mão surgir por baixo da lona que se esforçavam por erguer.
Então Danielle compreendeu quais as intenções daquele visitante inesperado; tentava praticar uma abertura suficiente para por ela se introduzir na barraca. Foi por
isso que, arrancando-se ao seu torpor, ajoelhou no chão e juntou os seus esforços aos daquela visita inesperada. Dentro de poucos segundos, e sem que tivessem despertado
as suspeitas da sentinela postada do lado oposto, conseguiram erguer a lona o suficiente para que Paulin deslizasse, coberto de lama, para o interior da tenda.
Logo ao primeiro golpe-de-vista Danielle reconheceu o seu colega Paulin, embora a aparência deste fosse deveras lamentável. O repórter fez-lhe sinal para que apagasse
a luz, pois temia a vigilância da sentinela.
Paulin Quartier estava também agora bem seguro de que era de facto Danielle quem ali se encontrava.
- Mas como pôde, você entrar no campo de You?
- interrogou logo a jornalista.
- Foi muito simples. Cheguei aqui dentro dum caixão!
- Dum caixão?
Então Paulin contou à sua companheira, em voz baixa e o mais resumidamente possível, a sequência de factos que o tinham trazido até ali. Quando terminou, a jovem
declarou-lhe:
- Decididamente, você é o herói do mais extraordinário romance de aventuras!
- Um herói não se pode conceber sem uma heroína
- retorquiu Paulin. - Julgo que você também aqui não terá vindo parar de passeio e com as mãos nos bolsos!
- Eu decidira entrevistar o general You - explicou Danielle. - Você bem sabe que quando se me mete qualquer ideia na cabeça não a largo mais. Assim, o caso é simples:
vim!
E enquanto o seu companheiro escutava, admirado da audácia da jovem, esta foi-lhe narrando as peripécias da sua extraordinária odisseia. Paulin Quartier não pôde
deixar de apertar convulsivamente os punhos quando Danielle lhe enumerou as condições impostas por You para lhe conceder a liberdade.
- Esse homem é o último dos miseráveis - murmurou ele. -
- Sou inteiramente da sua opinião - retorquiu-lhe a jovem - e pergunto como se poderá pôr fim a tão tenebrosa e sangrenta carreira! A Providência, que consentiu
nos encontrássemos, não o fez certamente sem poderosas razões. Ouça, meu caro, tenho uma ideia. Devemos capturar o respeitável general You!
- Que diz? Você não pensa nisso, Dany! Examjine bem qual é a nossa actual situação. Você está prisioneira, e de sentinela à vista, pode-se dizer!
- Perdão! A sua presença aqui parece antes provar que essas sentinelas de You não são assim tão vigilantes como supõe!
- Pois sim! Mas eu estou ainda reduzido ao meu papel de morto-vivo!
- Porque quer! Nada o obriga a voltar para dentro daquelas tábuas! A não ser que aprecie a profissão de faquir! Mas cuidado com as articulações! Se elas enferrujarem
não se deve queixar!
Paulin Quartier via naquele espírito esfuziante a Danielle de sempre, indiferente ao perigo e disposta a correr todos os riscos. E sentiu a mão da sua companheira
apoiar-se-lhe no braço, enquanto lhe murmurava ao ouvido:
-.Oiça, meu Paulininho: há pouco entreguei-me à minha neura, confesso, mas a sua chegada imprevista fez-me o efeito dum tónico! Sinto-me mais calma. E parece-me
que entre ambos poderemos realizar coisas maravilhosas!
- Tá, tá, tá! Que pressa com que você vai, Dany! E que memória tão fraca você tem! - ripostou o rapaz, que no entanto parecia muito mais optimista.
- E porquê?
-. Lembre-se de que em Miukiang, pouco antes do bombardeamento nipónico, me declarou que adorava a sua independência e parecia desprezar toda e qualquer colaboração!
Tive até a impressão de que me tornava para si um importuno. E não obstante, Dany, se você soubesse todo o interesse que me desperta!
A jornalista cerrou os lábios e, se não fosse a escuridão, Paulin teria notado que corava. Mas não quis declarar-se vencida.
- Sei adaptar-me às circunstâncias - respondeu a jovem. - Foram elas que nos reuniram aqui e eu seria a maior das estúpidas se deixasse passar esta ocasião excepcional
de realizar um golpe-de-mestre. Oh! general You, pensas ter já Danielle Mercoeur à tua mercê! Mas toma cuidado! Breve aprenderás à tua custa a conhecer todas as
minhas habilidades!
Paulin esforçou-se por temperar, de certo modo, o entusiasmo da sua interlocutora:
- Cuidado! É preciso não passarmos de um extremo ao outro. Não se esqueça de que You continua
sendo o senhor dos acontecimentos. Para mais, admitindo que nós pudéssemos ambos evadir-nos, que direcção havíamos de tomar? A inundação provocada pelas tropas chinesas
deve ter transformado a configuração do terreno!
- Quer um bom conselho, Paulin? - disse a rapariga. - Agora, que nos encontrámos, é preciso que nos não tornemos a separar!
- O quê? - perguntou o repórter, estarrecido.
- Para que ficasse ao pé de si seria preciso ter um sítio onde me escondesse!
- Mas é que eu tenho um esconderijo onde o posso abrigar até nova ordem!
A jovem designava uma espécie de divã que You pusera à sua disposição.
- Estendido ao comprido ali debaixo escapará aos olhares indiscretos e ficará muito melhor do que dentro do seu caixão!
De facto, a ideia não tinha nada de impossível e, convencido, o jornalista aceitou a oferta.
- Bem vistas as coisas - concluiu a rapariga mesmo que o descubram aqui, a sua vida não correrá o menor perigo. O general You é demasiado prático para o mandar fuzilar
e certamente preferirá trocá-lo por um resgate de cinquenta mil dólares, pois julgo você não valha mais do que esta sua humilde serva. O director da Actualité pagaria,
e estava o caso arranjado! Quanto à questão de comida, não se deve preocupar:
As avezinhas do céu, Deus não falta com o pão E suas bênçãos abrangem toda a criação!
Você já deve ter notado isto, quando viu ao pé de si, em volta do caixão, a comida precisa ao seu sustento.
A alimentação que me fornecem é farta. Talvez o guarda se admire do meu muito apetite, mas a verdade é que chegará para ambos!
- Terei grande prazer em almoçar e jantar consigo, Danny!
- E se qualquer ocasião se apresentar para fugirmos, agarrá-la-emos pelos cabelos, pois não me conformo com o ser tratada como moeda de troca! Quero fazer qualquer
coisa que mostre a esse general You que não foi sem razão que chamaram a Danielle Mercoeur a Princesa da .Terra de Ninguém!
- Que pena eu ter perdido o meu Kodak!
Os dois jovens suspenderam a conversação e baixaram de novo a lona da barraca. Depois, às apalpadelas, Paulin deslizou para debaixo do divã. O esconderijo não era
dos mais confortáveis, mas Paulin preferia-o, ainda assim, à reclusão exasperante do caixão. Estendeu-se, pois, e Danielle deitou-se também.
Todavia, se durante o resto da noite o repórter dormiu um sono reparador, já outro tanto não sucedeu à sua companheira. Aquela intervenção do colega abria-lhe novos
horizontes. Mais do que nunca, desejava uma desforra sobre o bandido. Que maravilhosa reportagem não apresentaria depois, capaz de consagrar a sua reputação, colocando-a
muito acima dos colegas!
Desgraçadamente, Danielle teve que se resignar à realidade, que era bem diferente! Não estava ela em poder do bandido? E não teria já o emissário de You dado começo
às negociações? Àquela hora, já o seu director em Paris devia ter recebido as condições do resgate, referentes à sua colaboradora.
- Meu Deus, fazei um milagre! Não me deixeis nesta situação. Se ao menos eu pudesse fazer qualquer
coisa antes que os cinquenta mil dólares chegassem às mãos do general!
Enquanto assim implorava a Deus, Danielle ia pensando no grande reconforto moral que representava para ela a presença a seu lado de Paulin Quartier. Aquilo já tinha
aspectos de milagre, aquela chegada dum colega com quem tanto simpatizava e que de tanto auxílio lhe podia vir a ser. A noite quase terminara quando finalmente Danielle
adormeceu. Imóvel, o seu companheiro não bulia no esconderijo.
E dois dias, com duas noites, decorreram assim, parecendo intermináveis aos prisioneiros. Muitos planos de fuga foram arquitectados e abandonados por irrealizáveis,
à segunda análise. Durante aquelas noites, Paulin deslizara para fora da barraca e procedera a diversos reconhecimentos nos arredores. A todo o momento temia que
notassem que o caixão estava vazio. Mas, felizmente, os bonzos que vigiavam os despojos do venerável Liang-Hi de nada suspeitavam. Todas as manhãs renovavam os alimentos
do defunto. E aquela demora no prosseguimento das cerimónias rituais do funeral fazia recear aos membros do cortejo as iras implacáveis, talvez, do espírito do morto.
Durante o dia, os quatro irmãos Liang encontravam-se muitas vezes com o general You; este manifestava sempre a mesma fleuma, enquanto os quatro herdeiros perguntavam
a si próprios se teria acontecido qualquer percalço ao emissário do general ou se as negociações em Han-Keu seriam conduzidas a bom fim. Quanto à forma como eram
alimentados e tratados, não tinham razões de se queixar. A vida, ali, era até mais tranquila do que em Miukiang, continuamente bombardeada pelos aviões nipónicos.
Aguardavam portanto.
E três vezes por dia iam com os músicos assistir às orações fúnebres, em volta do caixão do velho Liang-Hi. Ao longe, o canhoneio fazia-se ouvir com intervalos compassados;
mas You não parecia querer levantar o acampamento, o que denotava que as tropas japonesas deviam estar retidas pela inundação. Por vezes, alguma das suas esquadrilhas
passava muito alto no céu, dirigindo-se para as linhas chinesas. Depois, tudo recaía na calma e a vida do acampamento prosseguia monótona. Patrulhas de cavaleiros
partiam em reconhecimento e regressavam horas depois, sem que nada de extraordinário tivessem notado.
Não obstante, à medida que o tempo decorria, o general manifestava nervosismo; não recebera qualquer resposta referente à jornalista, da mesma forma como não entrara
nos seus cofres o milhão dos irmãos Liang. Ao terceiro dia, porém, encontrava-se ele na sua tenda, entretido a estudar num mapa as posições chinesas e japonesas,
quando um dos seus lugares-tenentes entrou de repente na barraca:
- Vitória, general! - exclamou o recém-chegado, com o rosto a transbordar de alegria.-O nosso emissário acaba de regressar de Han-Keu. Traz o milhão exigido pelo
resgate dos despojos mortais do respeitável Liang-Hi!
XII
O milhão dos irmãos Liang
Um homem desesperado, se o havia no mundo, era, decerto, o estimável Maou-Han, mestre-de-cerimónias encartado, que até então presidira à organização do cortejo fúnebre
do venerável Liang-Hi. De começo, armado com o seu bastão, aquele imponente personagem tinha caminhado à frente do cortejo, como um chefe à cabeça do seu exército.
Maou-Han sentia-se orgulhoso duma prerrogativa que o tornava invejado e admirado. Não obstante, era aquela a primeira vez, no decurso de catorze anos de profissão,
que se via aprisionado com todo o seu cortejo. O pouco afortunado mestre-de-cerimónias, ao passo que os dias iam decorrendo, perguntava a si próprio o que diriam
os seus patrões de Miukiang de tão prolongada ausência.
À angústia da sua incoerente posição, Maou-Han juntava as preocupações que lhe suscitava o cerimonial do enterro, assim diferido para nova data. Dia e noite, para
acalmarem o espírito do venerável Liang-Hi, bonzos e carpideiras cercavam o caixão e não cessavam as suas orações.
Uma bela tarde, porém, os irmãos Líang foram-no procurar à barraca e anunciaram-lhe que o general You recebera a importância estipulada pelo resgate e que, portanto,
o cortejo fúnebre podia recomeçar a sua marcha no dia seguinte!
- Peço-lhe por que tudo se organize e esteja pronto a horas. O general You prometeu-nos uma escolta, de forma a evitar-nos qualquer nova complicação! - acrescentou
o mais velho dos Liang.
- Tudo estará pronto - assegurou o mestre-de-cerimónias, louco de alegria.
-. Devido à inundação a estrada de Miukiang está cortada e, por isso, o cortejo terá que efectuar uma grande volta. A escolta acompanhar-nos-á até próximo das linhas
japonesas.
Aquelas precisões do jovem Liang provocaram grande consternação no espírito de Maou-Han. O novo percurso obrigava-o a um atraso de mais alguns dias.
- E nada terá a reclamar-nos, porquanto ficou estipulado que estaria à nossa disposição até que os respeitáveis despojos do meu venerável pai fossem depositados
no túmulo familiar. Ninguém podia prever os incidentes de que fomos vítimas! - acrescentou ele.
Tais palavras do mais velho dos Liang fizeram curvar-se o mestre-de-cerimónias, que nada podia objectar:
- Que seja feita a vossa vontade - murmurou simplesmente.
Enquanto isto se passava, outra cena bem diversa tinha lugar na tenda do general. You acabava de contar as notas que o seu emissário lhe trouxera, e as pupilas do
bandido brilhavam de cobiça.
- Está certa a conta! - rosnou finalmente. - Pela primeira vez que peço resgate por um cadáver, o negócio
não foi mau. Parece-me que os mortos rendem mais do que os vivos!
Cuidadosamente, aferrolhou as notas num pequeno cofre que estava enterrado debaixo da sua cama. Voltando para junto da mesa, tocou o gong, e dois minutos depois
apresentava-se à porta um dos seus auxiliares.
- Vai buscar-me a prisioneira, San; preciso falar-lhe imediatamente.
O interpelado fez a continência e saiu. Durante momentos, You passeou, agitado, na barraca. Parou, quando San regressava acompanhado por Danielle Mercoeur, a quem
fora buscar à tenda que, não longe dali, lhe servia de prisão.
A francesa aparentava uma calma absoluta. Havia três dias que se encontrava com o seu compatriota e ninguém suspeitara de que ela o alojava na sua própria tenda.
Decerto os guardas teriam estranhado o formidável apetite da jovem, pois repartia com Paulin as refeições e, por vezes, era obrigada até a reclamar mais comida.
Mas o general recomendara que tratassem com especiais atenções a prisioneira e por isso os guardas prontamente satisfaziam os seus pedidos.
- Queira sentar-se - disse You para a rapariga, inclinando-se cerimoniosamente na sua frente.
Danielle acedeu, enquanto San se retirava obedecendo a um gesto do general.
- Mandei-a chamar para a pôr ao corrente da situação - declarou ele, oferecendo um cigarro à jornalista.
- Como sabe, enviei um emissário com a mensagem para o seu jornal e, até agora, não recebi resposta!
A jovem acendeu o cigarro com o isqueiro que You lhe estendia, e, erguendo os ombros com indiferença, retorquiu:
- Se me dá licença, meu general, ainda não estamos a 20! Resta-nos uma certa margem!
- É possível, mas o atraso do meu mensageiro afigura-se-me de mau agoiro. Já devia estar de regresso ao acampamento! Não esqueça que, se ele cair em poder da polícia
chinesa, a sua vida responderá pela dele!
O tom ameaçador que acompanhou aquelas últimas palavras pareceu não impressionar demasiadamente a jovem. Deixou escapar uma fumaça e furtivo sorriso ergueu-lhe os
lábios.
- Tome cuidado - insistiu You -, pois o que lhe estou dizendo é muito sério! Não se trata de um simples cenário destinado a iludir os espectadores! Já alguns imprudentes
tentaram brincar comigo, mas pagaram com a vida a sua temeridade!
- Mas eu não estou brincando, meu general! Admiro-o, até, pois há uma grande diferença, não acha?
- Gosto dos negócios rápidos. E se quer um exemplo, veja aquele que acabo de liquidar com os irmãos Liang, dos quais recebi agora mesmo um milhão de dólares!
E, ainda debaixo do contentamento que esse milhão lhe causava, You contou pormenorizadamente à rapariga aquilo que ela já conhecia, em parte, pela narração de Paulin
Quartier.
- O general You manteve sempre a sua palavra .- concluiu o bandido. - A importância exigida foi-me entregue e, portanto, amanhã, depois do meio-dia, o corpo do respeitável
Liang-Hi abandonará o meu acampamento. Como a inundação cobre a maior parte das vias de comunicação, os meus homens conduzirão o cortejo até às proximidades das
linhas nipónicas. Uma vez ali, os irmãos Liang desenvencilhar-se-ão como puderem com o comandante japonês.
- Os meus parabéns general! Cumpriu assim um feito invulgar!
You ficou todo orgulhoso. Parecia muito sensível aos elogios e Danielle logo adivinhou o proveito que poderia tirar daquela predisposição do general. E, com prudência,
insinuou:
- Oiça, general, eu desejava pedir-lhe um pequeno favor!
Imediatamente os sobrolhos de You se franziram, ao passo que respondia:
- Desde já a previno de que não me deve pedir nada sobre a sua libertação!
- Não se trata de forma alguma da minha libertação, general. Mas sou curiosa de natureza e por profissão. Assim, estou ansiosa por penetrar, embora por poucos momentos,
na tenda mortuária do pobre Liang-Hi. Se me autorizasse a lá ir, na sua companhia, dava-me grande prazer! Amanhã já será tarde!
O bandido pareceu ficar bastante surpreso, pois estava longe de esperar semelhante pedido.
- Confesso-lhe que não sou supersticioso, conforme provei, pedindo o resgate de um cadáver, e seria com o máximo prazer que acederia ao seu pedido, embora o ache
bastante estranho. Mas há a família do morto, que quer velar o defunto e nunca consentiria que uma estrangeira entrasse na tenda fúnebre.
- Isso não quer dizer nada! - ripostou a jovem.
- Leve-me lá durante a noite, a coberto duma das peliças e do quépi de qualquer dos seus ajudantes. Ninguém me reconhecerá e a partida fica feita!
You estava indeciso. Aquele estranho capricho da sua prisioneira suscitava-lhe graves apreensões.
- Mas oiça lá uma coisa! Que diabo de jogo é esse? - interrogou desconfiado.
- Nenhum, ora essa! Desde que desembarquei na China, nunca pude entrar numa casa fúnebre. Oferece-se agora esta ocasião e, por isso, peço-lhe me consinta a aproveite.
Serei eu, seguramente, a primeira mulher que trate este assunto? As minhas colegas vão ficar furiosas!".Vamos, general, não seja severo! Será uma grande gentileza
da sua parte, e mais tarde, nas minhas reportagens, direi que afinal o general You é um tipo admirável!
A atitude da jovem desconcertou o bandido. Parecia que aquela estrangeira esquecera absolutamente que se achava em jogo a sua existência! E o sorriso que floria
nos seus lábios era na verdade irresistível!
- Então? Aceita! - insistiu ela com gentileza. You acenou afirmativamente com a cabeça.
- É bem o que eu pensava! -murmurou Danielle como que para consigo. E logo mais alto: - O general é simpático herói e um grande cérebro!
- Espere! - interveio You lisonjeado. - Iremos ali ao cair da noite, e você levará o quépi e a samarra de Feng, o meu lugar-tenente. Mas fica entendido que se não
afastará de mim nem um passo. Como eu deva ir inclinar-me mais uma vez ante os restos mortais do respeitável defunto, você aproveitará a oportunidade. E tanto menos
a reconhecerão quanto a essa hora não estará ninguém na tenda mortuária.
- Mil vezes obrigada, general - declarou a francesa, erguendo-se da cadeira. - Desejo de todo o coração que o meu director lhe conceda o resgate exigido.
- É esse também o meu desejo, pois custar-me-ia muito ter que proceder à execução duma prisioneira tão encantadora e agradável!
E como a jovem se encaminhasse para a saída, You tocou o gong. Logo San apareceu.
- Conduza a prisioneira à sua barraca! - ordenou o general.
Depois, voltando-se para a rapariga, declarou:
- Mandá-la-ei chamar ao cair da noite; quando a ocasião for apropriada iremos onde sabe!
Danielle aquiesceu, esboçou um último sorriso para o bandido e saiu precedida de San.
O general ficou por algum tempo absorto nos seus pensamentos. A juventude e despreocupação de Danielle Mercoeur divertia-o e desconcertava-o simultaneamente.
Depois, pegando na permanente, escreveu algumas linhas e tocou novamente o gong.
San reapareceu.
- A prisioneira já regressou à sua tenda, meu general.
- Está bem; traga-me cá agora os quatro irmãos Liang; tenho uma última comunicação a fazer-lhes.
Dois minutos depois, os quatro irmãos, sempre vestidos de branco, estavam em frente de You.
- Eis-vos agora perfeitamente em regra! - declarou o general indo ao seu encontro. Doravante farei tudo o que for preciso para que os restos mortais do vosso ilustre
progenitor recebam as supremas honras a que têm jus.
Os quatro irmãos ficaram impassíveis e nada nos seus rostos revelava dos sentimentos que lhes iam nas almas.
- Acabo de redigir um. salvo-conduto que vos permitirá, bem como a todo o vosso cortejo, alcançar as linhas nipónicas!
- O muito respeitável general permitir-me-á que lhe observe mais uma vez que teríamos preferido regressar a Miukiang!
- Mas já lhes disse que tal viagem se torna presentemente impossível, dados os estragos causados pela inundação - ripostou You. - Podem experimentar, se assim o
pretenderem, mas nesse caso declino toda a responsabilidade. Além de que a situação em Miukiang está tão precária como no momento em que o cortejo de lá saiu. As
águas do Toyang transbordaram e cercam a cidade completamente.
- Nesse caso - objectou o Liang mais velho, cujo rosto se crispou ligeiramente - o local onde se encontra o túmulo dos nossos antepassados deve encontrar-se coberto
pelas águas?
- Não posso responder-lhe sobre esse ponto. Não fui eu quem abriu os diques do Toyang e do Yang-Tsé. Portanto, só têm que se armar de paciência. com certeza encontrarão
um ponto conveniente para inumar o corpo de vosso pai até que a calma volte à região. É assunto a resolver entre os senhores e o comandante nipónico!
Os quatro irmãos consultaram-se com o olhar. A resposta de You não os satisfazia, mas, não obstante, compreenderam pelo seu aspecto carrancudo que seria inútil insistir.
Inclinaram-se.
- Podem ler esse papel - declarou-lhes o general.
- Dá-vos autorização para passarem através da "Terra de Ninguém". Todos os valentes que agora se encontram sob as minhas ordens verificarão a ordem formal que aí
escrevi de vos darem o seu apoio e, se necessário for, vos defenderem contra toda e qualquer agressão. Mas julgo que nada tereis a recear. Os habitantes desta região
são respeitadores dos mortos!
O cinismo daquele bandido desesperava os quatro visitantes. Não obstante, não pronunciaram uma única palavra de protesto. Recordavam-se das pequenas gaiolas
de bambu e das cabeças que lá estavam dentro! A perspectiva de sofrerem a mesma sorte incitava-os a uma prudente reserva.
- Agradeço ao honrado general - balbuciou o mais velho dos Liang. - Contamos apenas com a sua protecção para que possamos cumprir o nosso sagrado dever!
- Volto a repetir-lhes: com esse papel nada tereis a temer. E agora podem sair!
com uma simples mesura, os quatro irmãos despediram-se do general. You voltou a ficar só, instalou-se à sua mesa e recomeçou o exame dum mapa da região inundada,
que tracejava com lápis de várias cores. A inundação forçara os japoneses a recuar alguns dos seus postos avançados, mas, mesmo assim, os pontos de refúgio que os
dois exércitos inimigos deixavam ao bandido eram bastante precários.
Portanto, o general entendeu dever convocar o conselho-de-guerra.
Quando os seus lugares-tenentes, em número de uns vinte, aproximadamente, se encontraram reunidos na barraca, o general ergueu-se.
- Convoqueios - declarou ele - porque em breve teremos que retirar para as altitudes do Ku-tFiang. Os relatórios dos meus espias confirmam o avanço da ala direita
do exército nipónico; se esse avanço se acentuar, arriscamo-nos a ser cercados. Nestas condições é preferível manobrar enquanto é tempo e evitar a catástrofe!
- Tanto mais que já nada temos para raziar nesta região - apoiou Feng, o primeiro lugar-tenente de You.
- Não vejo por que razão perderemos aqui um tempo precioso, quando para o norte se estendem férteis países; mal os habitantes os tenham evacuado, poderemos nós
ocupá-los e proceder a uma pilhagem em regra-. E, segundo o nosso método, recuaremos depois rapidamente, de forma a evitar sermos surpreendidos pelas avançadas nipónicas!
- Fica, portanto, assente! Amanhã, mal o cortejo fúnebre do venerável Liang-Hi se tenha afastado para o sul, começaremos a levantar o campo. A evacuação far-se-á
por destacamentos, seguindo a linha das colinas, de forma a evitarmos qualquer surpresa!
Tal resolução mereceu geral aplauso. Uns atrás dos outros, os ajudantes foram saindo da tenda. Feng ficou para o fim e ia finalmente sair quando o general o reteve.
- Tenho um pequeno favor a pedir-te, Feng declarou o bandido.
- Às suas ordens, meu general!
- Poderás ceder-me, por esta noite, a tua samarra e o teu quépi?
Feng ficou atónito, sem saber o que tal pedido significava. Mas You não lhe deu tempo para reflexões:
- Vamos, despacha-te, não tenho tempo a perder! Feng despiu a samarra, tirou o quépi e estendeu-os
ao general.
Sem procurar conhecer as intenções do seu chefe, saiu da tenda e foi juntar-se aos camaradas.
XIII
O plano de Danielle
Assim que Danielle regressou à sua barraca, a primeira coisa que fez foi curvar-se sobre o divã que servia de guarida ao colega.
- Depressa, Paulin! - tenho uma nova importantíssima a anunciar-lhe!
Mais uma vez o repórter fotográfico abandonou o seu refúgio e sentou-se no chão. A jovem assegurou-se de que San, depois de a reconduzir até ali, se afastara e instalou-se
perto do companheiro:
- Adivinha, se é capaz, o que acaba de suceder? Aposto o que quiser!
- Qualquer coisa que nos deverá trazer felizes modificações! vôcê está com um ar tão contente.
Malicioso sorriso iluminou o rosto da rapariga.
- Quente! Quente! Mas não é ainda isso! O repórter pareceu enervado.
- Oiça, Dany, acabemos com isso! Como quer você que eu adivinhe as propostas que esse miserável You lhe poderá ter feito?
- Calma, meu Paulininho! Não se trata de nenhuma oferta ou pedido em casamento. Apenas o muito ilustre general You consentiu que eu o acompanhe,
quando for esta noite à tenda mortuária do venerável Liang-Hi!
-. Se quer que lhe diga, Dany, não percebo por que
motivo o simples facto de ir visitar um morto lhe pode
causar tanta satisfação. Quanto à barraca mortuária,
conheço-a bem, Dany, e posso-lhe assegurar que nada
apresenta de especial ou de divertido!
- Pois sim, meu caro Paulin, mas é que eu tive uma ideia formidável, uma ideia que poderá modificar a face das coisas.
-. Isso não me admira, Dany! Você teve sempre ideias formidáveis; embora eu não perceba como essa a que alude possa modificar seja o que for.
- Basta que tenhamos um pouco de audácia e decisão. Se tivermos estas duas qualidades, poderemos não só evadir-nos, mas até operar a captura do invulnerável general
You, que tão procurado é pelos dois exércitos adversos!
Paulin Quartier considerava a rapariga com perfeito pasmo.
- É claro - continuou a jovem. - Adivinho o que está pensando! Julga certamente que apanhei alguma insolação e estou doida varrida! Pois desengane-se! Nunca estive
tão lúcida como agora! Mas a verdade é que encontrei o meio de nos pormos a andar daqui, meio esse que me permitirá escrever um artigo sensacional debaixo de todos
os pontos de vista!
- Se assim é, diga-me do que se trata, em vez de me estar a fazer crescer água na boca.
- Antes de lhe confiar os meus planos quero fazer-lhe uma pergunta.
- Fale. Sou todo ouvidos.
- Sente-se por acaso com coragem para se introduzir mais uma vez na tenda mortuária?
- O quê! Quer que eu volte para o caixão e desempenhe mais uma vez o papel de defunto?
- Não é bem isso. Oiça-me. Há pouco, quando me encontrava em presença do bandido amarelo, ocorreu-me uma ideia e não tive hesitações; aproveitei-me da boa disposição
que You manifestava para lhe pedir que me acompanhasse até junto do caixão. Um tal desejo podia-se bem explicar pelo simples facto da minha profissão de jornalista,
e ser portanto profissionalmente curiosa. Como as mulheres são, na China, afastadas das câmaras fúnebres, fingi-me muito intrigada pelo fruto proibido. Não me foi
difícil convencê-lo!
- Está bem; mas que espera você obter dessa visita e que papel me destina nos seus projectos?
- Vai já compreender. O general You acedeu a acompanhar-me até junto do morto. É noite. Os bonzos já se retiraram de ao pé do cadáver. Graças à samarra e ao quépi
que me disfarçam, ninguém me reconhecerá e tomar-me-ão por um dos lugares-tenentes do general!
- Muito bem, e depois?
- Depois? Será preciso, para a realização do meu projecto, que você já se encontre dentro da barraca quando eu lá entrar acompanhada por You.
- Ah! Já sei! Quer que eu enlouqueça o general, representando de ressuscitado?
- com licença, meu caro Paulin, mas não se deite a adivinhar. Você deve estar dentro da barraca, mas não dentro do caixão. Convém, na verdade, que lá esteja, mas
é para me dar uma ajuda. Não me interrompa e siga o meu raciocínio. Eu entro em companhia de You. Já verifiquei que o general traz um cinturão bem guarnecido de
armas. De cada lado saem as coronhas de dois revólveres. Eu ponho-me à sua frente ao entrar e manobro depois de forma a colocar-me mesmo
por detrás do general, quando ele se curvar ante o caixão. Então, e antes que ele possa esquivar-se, apodero-me dum dos seus revólveres e aponto-lho ao coração.
Sob a minha ameaça de morte, obrigo-o a erguer os braços e a observar o mais religioso silêncio. É então que você intervém e me dá auxílio. Acocorado em qualquer
recanto escuro, pula para ele e amarra-o com a corda que já aqui tenho de parte, pois a cortei, ao entrar, de um dos suportes da tenda.
Paulin pegou na corda que a jovem lhe apontava sobre o divã e enrolou-a à cintura.
- É muito original e muito cinematográfico o seu cenàriozinho! - declarou o repórter. - Não obstante, permita-me lhe diga que não vejo bem o resultado. Admitamos
que You se encontre absolutamente à nossa mercê, amarrado e amordaçado. Como o faremos sair dali? As imediações da barraca estão vigiadas pelos bonzos, pelos músicos
e carpideiras; além disso, os bandidos amarelos andam por ali, numerosos e bem armados. Mal façamos menção de sair com o respeitável general, seremos massacrados
sem piedade.
- Nada de nervosismo, Paulin, e deixe-me acabar, se faz favor! Não se trata de fazer sair o general. O mestre-de-cerimónias e a gente do cortejo se encarregarão
disso sem qualquer acidente!
O rosto de Paulin Quartier iluminou-se com um alegre sorriso.
- Você é, na verdade, muito arguta, Danielle! Quer que metamos o general no caixão de Liang-Hi, uma vez o bandido reduzido à impotência!
- Até que enfim que compreendeu! Custou, mas sempre conseguiu! Lembra-se de que foi você mesmo quem teve a ideia de viajar daquela maneira e me provou que qualquer
homem pode suportar uma estadia
prolongada no interior do caixão. Portanto, já sabe: amarramos You e depomo-lo dentro do caixão, mas, desta vez, temos que aparafusar solidamente a tampa. Paulin
Quartier, que ainda há pouco imaginara que a sua interlocutora divagava, sentia-se agora cheio de admiração pela jovem.
- Sabe que você é extraordinária, Dany?
- Não é agora ocasião de me fazer elogios. O que importa é preparar cuidadosamente esta delicada manobra! Eis como eu encaro o projecto. com o revólver que surripio
ao general mantenho-o em respeito.
- E se não o conseguir?
- Então, será a você que competirá o principal papel. Tem ainda a sua pistola com dois cartuchos. Deve chegar para mandar o bandido desta para melhor, em caso de
complicações. Mas bastará a surpresa de o ver surgir a meu lado para emudecer o general e o colocar à nossa mercê.
- No entanto, parece-me que o mais seguro seria atordoar o bandido com uma forte coronhada, por exemplo! É indispensável que não ofereça resistência e não desperte
durante algumas horas!
- Sou inteiramente da sua opinião.
- Ainda bem!
- Portanto, uma vez o nosso bandido dominado, você despe-lhe o casaco e os calções, que servirão para si. Já vi que têm aproximadamente a mesma corpulência. E embora
se não pareçam, de noite. todos os gatos são pardos! O que é essencial é que duas pessoas entrem e duas pessoas saiam da barraca fúnebre. Pelo que me diz respeito,
não haverá novidade. E persuado-me de que você fará um general You muito apresentável! Assim, ninguém suspeitará quando sairmos da barraca. Então, que me diz você
a tudo isto?
- É formidável! É simplesmente colossal - respondeu Paulin. - Mas, admitindo que saímos sem novidade, que faremos depois?
- Já falaremos de nós, daqui a pouco. Por agora basta que imagine o cortejo fúnebre saindo do acampamento e afastando-se na direcção das linhas japonesas, devidamente
autorizado pelo general You. Você conhece o grande respeito dos nipónicos pelos mortos. É pois de prever que os irmãos Liang não sejam ali incomodados. O estado-maior
japonês, indignado com a atitude de You e com a sua escandalosa conduta para com os despojos do venerável Liang-Hi, colocar-se-á cortesmente à disposição da família
do defunto.
- E You será sepultado em vez de Liang-Hi!
-. Nada disso! É exactamente aí que o nosso papel se tornará mais difícil. É absolutamente necessário que alcancemos as guardas avançadas japonesas, e isso pelos
nossos próprios meios. É forçoso que o cortejo fúnebre não ultrapasse as linhas nipónicas antes de o general Magamoyo ter sido informado de que no caixão viaja o
célebre bandido e general You, cuja cabeça foi há muito posta a prémio!
- Maravilhoso! Você é na verdade estupenda! -, murmurou Paulin, a quem o sangue-frio, inteligência e decisão da sua colega deixavam inteiramente estupefacto. Você
faria uma escritora de romances de aventuras fenomenal!
- A todos os romances, prefiro uma boa aventura vívida, meu caro Paulin! Vai ver como os nossos colegas se vão morder de inveja. Até os americanos hão-de ficar amarelos!
No entanto, e apesar do seu entusiasmo, a jornalista acrescentou:
- Lembre-se, meu caro Paulin, do velho ditado:
"Não é bom vender a pele do urso antes de o ter morto". Admitindo pois que o cortejo saia do campo, resta-nos evadir-nos nós próprios. Julgo que o desaparecimento
de You, uma vez verificado, provocará nos bandidos tal sensação que nos permita aproveitarmos esse pânico para fugir.
- Tem razão, Danielle, e penso a mesma coisa. Na verdade, a segunda parte do nosso programa torna-se mais difícil do que a primeira.
- Mas havemos de vencer, pode estar certo! Seria estúpido deixar escapar uma ocasião como esta!
Paulin imaginava as consequências daquele golpe-de-mestre. Era um êxito para eles se conseguissem entregar o bandido amarelo, de pés e mãos ligados, às autoridades
nipónicas!
- Convém primeiramente preparar a captura do general; o resto ver-se-á depois!
Os dois jovens tiveram que interromper o seu colóquio. Aproximava-se alguém da sua barraca.
- Esconda-se!-murmurou a jovem.-Depressa! Vem aí gente!
Paulin acabava de desaparecer sob o divã e Danielle de se sentar numa atitude de perfeita indiferença, quando San entrou na tenda com uma bandeja carregada de vitualhas
de toda a espécie.
- Ponha a bandeja em cima da mesa - disse a jovem para o chinês. Este inclinou-se e saiu sem palavra.
Dois minutos depois, Paulin e Danielle jantavam com grande apetite.
As horas decorreram lentamente. Logo que a noite invadisse o acampamento, Paulin deslizaria para a barraca do defunto, onde aguardaria a visita de You e da jornalista.
Por fim, chegou a hora da separação.
- Até já, e boa sorte! -murmurou o repórter.
Apertaram-se demoradamente as mãos. Não obstante a sua calma aparente, sentiam-se ambos comovidos. Por fim, Paulin afastou-se, deslizou por baixo da lona da barraca
e desapareceu no escuro.
Danielle Mercoeur ficou só, mas mais decidida que nunca a vencer e evadir-se.
XIV
You escamoteado!
Durante toda a manhã foi grande o movimento em volta da tenda do chefe. Feng e os outros ajudantes de campo tomavam as medidas necessárias para assegurar a retirada,
em boas condições, de todo o "exército de You".
Para mais, cavaleiros e motociclistas chegavam ao acampamento a todas as horas, pedindo para serem imediatamente recebidos pelo chefe dos bandidos. Traziam notícias
referentes ao avanço nipónico, que recomeçava com incessante vigor. Os japoneses encontravam-se agora às portas de Miukiang, que devia ser ocupada a todo o momento,
apesar do rompimento dos diques, que produzia a inundação e lhes retardara o avanço. Dotados do mais moderno material, tripulando barcos automóveis, progrediam derrotando
os grupos que resistiam ainda entrincheirados nas casas dos arrabaldes.
You compreendeu que seria perigoso demorar-se mais tempo naquelas paragens; os japoneses eram adversários extremamente terríveis. As tropas chinesas,
muito menos disciplinadas, constituíam o grosso do efectivo do bandido amarelo e o exército da China dispunha do mesmo pessoal, sempre disposto a fugir ante as ofensivas
nipónicas.
Pela vigésima vez, pelo menos, depois do início das hostilidades, You propunha-se retirar dos territórios que iam ser sujeitos à disciplinada organização japonesa,
implacável para com os actos de banditismo. A confusão que agora reinava nas regiões setentrionais, ameaçadas pelo futuro avanço dos exércitos do Sol-Nascente, favorecia
as intenções de pilhagem daquele general de criminosos e facínoras.
Enquanto tranquilamente almoçava, You estava longe de suspeitar que imprevistas dificuldades surgiriam no seu próprio acampamento, capazes de pôr em risco a sua
segurança pessoal. Furtivo sorriso pairava-lhe nos lábios. Pensava no milhão dos Liang, aquele belo negócio" que fizera, e no dinheiro que esperava receber pelo
resgate da jornalista.
You almoçava só, deixando aos seus lugares-tenentes a liberdade de se reunirem às horas das refeições. Tinha horror às discussões que sempre se levantavam nesses
momentos. O silêncio e a quietação permitiam-lhe arquitectar novos e frutuosos projectos.
Nessa tarde ninguém veio incomodar o general durante o jantar. Aguardou que caísse a noite, fumando um bom havano, e depois, pegando na samarra e no quépi que lhe
entregara Feng havia pouco, You parou à porta da sua barraca.
O ar fresco acariciava-lhe o rosto. Respirou a longos haustos, olhando o céu sombrio e coberto de nuvens. Anoitecera e os fogos do acampamento brilhavam, aqui e
ali, perto das tendas, vendo-se as formas alongadas dos bandidos que junto delas repousavam. No ar passava,
relentos de fumo e aquele cheiro a morto tão característico da "Terra de Ninguém".
Alegre e satisfeito sorriso perpassou na cara do general. O ver-se rodeado de tantos milhares de homens sujeitos às suas ordens dava-lhe uma grata sensação de segurança
e poderio. Japoneses e chineses, bem podiam pôr a prémio a sua cabeça! Não era fácil capturá-lo!
Interrompendo as suas reflexões, You encaminhou-se para a tenda da prisioneira. A sentinela ali postada noite e dia apressou-se a retirar-se quando reconheceu o
vulto do seu chefe. O general ergueu a lona da entrada e à luz fumarenta da lâmpada de azeite viu Danielle recostada no divã, na atitude de quem despreocupadamente
repousa.
- Como vê, Danielle Mercoeur, cumpro a minha promessa. O general You só tem uma palavra!
- Não esperava menos de si, general!
A jovem sorria amável, e, ao vê-la assim tranquila e serena, ninguém suspeitaria o golpe de audácia que preparava. Imóvel, a dois passos da entrada, o chefe dos
bandidos amarelos observava-a. Mas a rapariga erguia-se com sossego e, notando a samarra e o quépi que lhe trazia o seu visitante, exclamou:
- Vamos! Julgo que farei um lugar-tenente muito apresentável!
- Daria certamente um encantador oficial às ordens, e assim espero que os bonzos e as carpideiras não dêem pelo subterfúgio; você tem quase a mesma altura de Feng.
Além de que deverá caminhar atrás de mim e dessa forma toda aquela boa gente pouco reparará em si!
O conselho não era necessário; desde há muito que Danielle concebera o seu plano. You, sem reparar no
fulgor malicioso do olhar da rapariga, ajudou-a galantemente a vestir a samarra. Quando a viu pôr depois o quépi do seu ajudante não pôde suster uma forte gargalhada.
- Um pouco largo talvez, mas ninguém dará por
isso!
E após breve pausa, o general acrescentou brincando :
- Não sei se sabe que vai tornar-se culpada dum verdadeiro sacrilégio e expor-se à vingança do espírito encolerizado do respeitável Liang-Hi! Nenhuma mulher deve
entrar ou permanecer no local onde repousa um caixão e, muito menos, quando essa mulher é uma estrangeira!
- Não me sinto de forma alguma impressionada, garanto-lhe - declarou a jornalista sorrindo. - A profissão que exerço familiarizou-me há muito tempo com toda a espécie
de riscos e perigos. Tenho curiosidade de ver como os bonzos dispõem os manjares, em volta do esquife, para a alimentação da alma do defunto e quais os pratos que
cozinham. É esse um hábito que foi praticado pelos egípcios do tempo dos faraós!
- Pouco me importa com egípcios e faraós, e se ali vou é apenas para me inclinar ante os restos mortais do venerável Liang-Hi, antes da sua partida. Convém salvar
as aparências, não acha?
- O quê, vai deixar sair o cortejo? - insinuou Danielle, fingindo-se admirada.
- Uma vez que todas as condições que impus pelo resgate foram cumpridas, não seria bem da minha parte impedir se cumprissem os ritos milenários. O respeitável Liang-Hi
deve repousar no túmulo dos seus maiores.
- Evidentemente, é muito compreensível e só tenho
a louvá-lo pela sua maneira de proceder! Dou graças a Deus por poder verificá-lo pessoalmente.
- O emissário que aguardo com uma resposta a seu respeito ainda não regressou, mademoiselle Mercoeur!
- interrompeu o bandido.
- Que quer o general que eu lhe diga? A esse respeito sei ainda menos do que qualquer dos seus homens!
Longe de a inquietar, aquela notícia alegrou a jovem; o que desejava era que qualquer acidente tivesse impedido o emissário de enviar o telegrama para o director
de Le Monde. Dessa maneira esperava libertar-se a tempo de poder enviar contra-ordem.
- É extraordinário, mas você parece esquecer-se de que a sua vida depende do êxito das negociações que propus ao seu director - insistiu o general. - Garanto-lhe
que não estou nada disposto a brincar. Os reféns que aqui tive anteriormente fizeram, por vezes, a experiência à sua custa!
Entretanto a jornalista, enervada, pensava em Paulin Quartier. Teria o repórter conseguido já introduzir-se na barraca do caixão e, escondido a um canto, aguardaria
o momento de saltar sobre You?
A calma que reinava fora fazia supor à jornalista que o seu companheiro lograra realizar a tentativa. Então, dissimulou o melhor que pôde a sua inquietação e, como
o general se afastasse delicadamente, para a deixar passar, saiu da tenda.
- Voltarei dentro em breve - declarou You para a sentinela.
O homem aquiesceu com a cabeça. You dirigiu-se directamente para a tenda de Liang-Hi, imediatamente seguido de Danielle, que marchava quase colada a ele.
Mal se aproximaram da barraca fúnebre, Maou-Han, o mestre-de-cerimónias, que velava juntamente
com duas dezenas de bonzos, ergueu-se, veio-lhes ao encontro e interrogou com voz áspera:
- Quem é que vem assim perturbar o derradeiro sono do venerável Liang-Hi?
Mas a sua voz modificou-se apenas reparou que se encontrava em presença do general You. Fazendo-se muito humilde, inclinou-se profundamente.
- Como poderia eu adivinhar, senhor!
Mas You não lhe deu tempo para longos discursos.
- .Venho aqui com um dos meus lugares-tenentes
- declarou ele - prestar uma derradeira homenagem à memória do ilustre defunto. Poderemos entrar, creio eu?
Como resposta, o mestre-de-cerimónias brandiu o seu bastão, fazendo sinal aos bonzos e carpideiras para que se afastassem, e curvou-se até ao chão numa reverência
respeitosa, abrindo passagem a You, seguido por Danielle.
O coração da jovem batia célere naquele momento. Parou ao entrar, logo por detrás do general. A tenda estava mergulhada em profunda escuridão que uma lamparina não
conseguia romper. O cheiro penetrante das ervas aromáticas incomodou a jornalista, mas bem depressa reagiu. Em volta do caixão, deposto sobre cavaletes e cercado
de pratos com iguarias, tudo estava como Paulin o descrevera à rapariga.
Danielle atreveu-se a lançar em torno um rápido olhar. Paulin Quartier estaria ali, escondido no escuro? Teria ele conseguido penetrar na barraca e dissimular-se
perto do esquife? As trevas quase totais que rodeavam a jornalista não lhe permitiram certificar-se. Então, dominando as suas inquietações, resolveu tentar, o golpe.
You estava imóvel perto dela, levemente curvado. O revólver com que a jovem contava para conseguir
os seus audaciosos projectos tinha a coronha ligeiramente saída para fora do estojo, pendente da anca direita do general. A jornalista não hesitou. com uma rapidez
desconcertante estendeu a mão direita. You não pôde esquivar-se a tempo. Sentiu o cano da arma apoiar-se-lhe na nuca, enquanto a sua prisioneira lhe murmurava:
- Erga as mãos, general! Uma simples palavra, um só gesto, e faço-lhe saltar os miolos!
You estremeceu. Estava longe de esperar semelhante desenlace. A sua estupefacção aumentou quando, do outro lado do esquife, segunda silhueta surgiu. Um homem esperava
ali, armado com uma pistola automática. Antes que o general tivesse podido recuperar a fala já esse homem dava a volta e se dirigia para ele.
O rosto de Danielle serenou imediatamente. Paulin Quartier estava ali! Tudo se iria portanto passar segundo as suas esperanças e previsões.
O chefe dos bandidos quis falar. Os sons estrangularam-se-lhe na garganta e julgava-se vítima de terrível pesadelo. Mas os dois jovens não lhe deram tempo de se
recompor do abalo sofrido. Violenta coronhada em plena nuca prostrou no chão, inanimado, aquele chefe de quadrilheiros. As pernas fraquejaram-lhe e pesadamente tombou
sobre o tapete. Rápido, os dois jornalistas estenderam-no ao comprido.
- Você trouxe a corda, Paulin? - interrogou a jornalista num murmúrio.
O repórter acenou afirmativamente com a cabeça. Ajoelhando-se no chão, Paulin despiu-lhe a capa, tirou-lhe o quépi e o cinturão. Depois, em menos de dois minutos,
ataram-no solidamente e amordaçaram-no de forma a não poder emitir o mínimo som. A pancada que Paulin lhe assentara na nuca fora tão violenta que
o general não deu por nada e era provável que tão cedo não voltasse a si.
- Agora é preciso estendê-lo no caixão! - insinuou a jovem.
Rápidos e silenciosos, os dois jornalistas ergueram o corpo e colocaram-no na urna, que Paulin abrira. Este entendeu cobri-lo ainda com os panos mortuários e afivelar-lhe
no rosto a máscara de cera de que ele próprio se servira. Findo o que aparafusaram a tampa solidamente, servindo se dos parafusos e do canivete que Paulin trazia
consigo havia vários dias.
Enquanto procediam a estes preparativos, os jovens receavam a visita dos bonzos, possivelmente intrigados com a demora.
- Vamos! Depressa! Vista o capote, ponha o cinturão e o quépi de You - ordenou Danielle.
A rapariga compôs a nova vestimenta do seu colega e murmurou:
- Atenção! Sobretudo, não diga nada! Eu vou seguir logo atrás de si.
O repórter aquiesceu e, segundos depois, saía da tenda, com a gola da capa levantada, a pala do quépi descaída sobre os olhos. Parecia tão absorvido nos seus pensamentos,
que tanto o mestre-de-cerimónias como os bonzos se não atreveram a dirigir-lhe a palavra; afastavam-se na sua presença, bem longe de suporem qual o drama que acabara
de ter lugar na tenda que estavam encarregados de vigiar.
Durante minutos os dois jornalistas foram caminhando um pouco ao acaso por entre as diversas barracas, procurando aquela que lhes servia de prisão. Até que finalmente,
graças à sentinela postada à entrada, conseguiram reconhecê-la.
- Que faremos agora? - perguntou Danielle, parando e voltando se para o seu companheiro.
- Deixe-me proceder e, sobretudo, não perca o sangue-frio!
A sentinela, ao vê-los aproximarem-se, empertigou-se em continência, julgando tratar-se do seu general. Então o falso You, evitando dirigir-lhe a palavra, estendeu
a mão e fez-lhe sinal de que podia ir-se embora.
O chinês, de começo, pareceu admirado, mas, não obstante, obedeceu. Era bem mais agradável, para ele, sair dali do que manter-se de sentinela toda a noite. com passo
rápido esquivou-se portanto, enquanto os dois jovens penetravam na barraca.
- Como vê, Dany, isto não foi difícil!-disse o francês sorrindo.
- Eis-nos regressados ao nosso domicílio. Danielle sentou-se no divã. A primeira parte do seu
programa realizara-se sem dificuldade. Tratava-se agora de abordar a segunda parte, muito mais arriscada e contingente. Até então, na verdade, pudera contar com
um grande trunfo no seu jogo: a presença do colega, facto que os bandidos desconheciam totalmente. A mesma ideia surgiu no espírito de Paulin, que se sentara à direita
da jovem. Um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
- Por que é que se ri? - perguntou Danielle intrigada. - Você tem cara de quem está troçando de mim!
-. Nada disso, Dany! Mas recordava-me de algumas das suas palavras a respeito da solidão, da independência e das suas vantagens! Parece-me que se tem estado sozinha
e se a Providência não tem consentido no nosso encontro.
A jovem sorriu por seu turno.
Mas a situação tornava-se crítica; a ocasião parecia mal escolhida para brincar.
- Que vamos fazer agora? Parece-me que poderei ficar aqui sem correr grande perigo. O desaparecimento de You provocará certamente uma profunda sensação, quando se
tornar conhecido, isto é, dentro de algumas horas, quando muito.
- Você não pode ficar aqui - interrompeu Paulin.
- Esquece a sentinela que consegui afastar e foi o último china a ver quem supõe ser o seu general, e isso na sua companhia! Esse facto pode acarretar-lhe alguns
dissabores. Para mais, dentro de algumas horas, o cortejo fúnebre deixará o acampamento, sob uma escolta de bandidos e a caminho das linhas japonesas, para onde
transportam, sem o saber, o seu general desmaiado e metido num caixão!
- Nesse caso, não percebo como.
- Até aqui deixei-lhe a iniciativa das operações interrompeu o repórter - mas de futuro sou eu quem toma o comando. Para começar vou fazer um pequeno reconhecimento
lá fora. Espere-me um momento.
- As sentinelas são numerosas em volta do acampamento; You tomara as suas precauções!
- Pouco importa! Se você tem uma ideia, também a mim me ocorreu uma, na ocasião em que entrava sem dificuldade.
- E qual é essa ideia?
- Dir-lhe-ei mais tarde; por agora vou ver se será realizável!
E antes que Danielle pudesse retorquir uma palavra, Paulin Quartier afastava-se na noite!
XV
Evasão audaciosa
Danielle esperou mais de meia hora pelo regresso do companheiro. A paciência da jornalista foi assim submetida a dura prova. A todo o momento esperava qualquer intempestivo
alarme; mas o silêncio continuava lá fora. Incapaz de se conter, dirigiu-se para a entrada do seu refúgio e olhou com atenção para o escuro. Começava a desesperar
quando ligeiro ruído lhe deu a perceber que Paulin regressava finalmente.
- E então ? - inquiriu Danielle mal Paulin penetrou na tenda.
- Então, creio que descobrimos o que precisávamos! Salvo imprevisto, dentro de meia hora devemos estar fora do acampamento!
- Mas as sentinelas?
- Nada temos a recear das balas desses senhores!
O rapaz apressou-se então a expor à sua companheira de aventuras qual o plano que gizara. Observara que o bando de You arrastava consigo importante material de guerra.
Não longe do cercado onde estavam abrigados mais de mil cavalos viam-se vários canhões, auto-metralhadoras
e até um tank de fabricação russa, certamente apreendido pelos bandidos após qualquer derrota do exército chinês.
- Oiça-me bem, Dany - prosseguiu o rapaz -, marquei com exactidão o ponto onde esse tank se encontra, bastante afastado dos fogos do acampamento.
Não tem qualquer sentinela a vigiá-lo. Trata-se portanto de nos fecharmos lá dentro.
- Mas depois? Julgo que não ficaremos lá para sempre.
- Evidentemente! Você não sabe, Dany, que fiz o meu serviço militar nos carros de assalto em Versalhes! O engenho de que tratamos é de fabricação diferente dos carros
Renault, mas estou certo de que o saberei conduzir!
- Sim, senhor, mas um tank não prima pelo silencioso da sua marcha! Mal tenha posto o motor a funcionar, logo todo o acampamento acordará.
- É verdade, mas esquece que esse tank está armado duma metralhadora Maxim. Se se julga capaz de a manobrar, caso seja preciso, enquanto eu conduza, teremos certas
probabilidades de fugir sem grandes danos. A blindagem do carro é suficientemente espessa para poder arrostar com a fuzilaria que certamente nos aguarda à partida!
- Saberei servir-me da metralhadora!-assegurou a jovem. - Basta que me explique o seu funcionamento!
- Óptimo! Uma vez fora do campo, rumamos para o sul, em direcção às linhas japonesas!
- Mas você não sabe ao certo onde elas se encontram!
- Pouco importa! Breve daremos com elas!
- Devemos tomar todo o cuidado em não irmos
parar à planície inundada, pois tenho boas razões para supor que o seu tank não seja anfíbio!
- Não lhe dê cuidado! Mas basta de tagarelarmos sobre este assunto! Está pronta? É preciso que nos despachemos, pois a sentinela pode lembrar-se de voltar a esta
barraca!
- Estou pronta.
- Nesse caso só lhe resta seguir-me! Tenha coragem!
- Esteja descansado, que tenho bastante provisão desse artigo!
Os dois jovens saíram. A noite mantinha-se sombria; Danielle agradeceu a Deus essa circunstância que lhes ia favorecer a evasão. Contornaram as tendas, evitando
aproximarem-se dos fogos em torno dos quais os chinas dormiam estendidos e enrolados nos seus cobertores. A linha das sentinelas encontrava-se ainda distante.
Por várias vezes Paulin parou, fazendo sinal à sua companheira para que o imitasse. Esperavam então, de ouvido atento aos menores rumores, deitando-se na terra húmida
sempre que notavam qualquer vulto suspeito. Mas conseguiram alcançar o seu ponto de destino sem o menor acidente.
O tank ali estava entre outros engenhos recolhidos pelos bandidos nas suas excursões pela "Terra de Ninguém" .
Paulin, tacteando acabou por descobrir a porta do carro, colocada a boa altura do chão. com uma elevação verdadeiramente digna dum ginasta conseguiu alcançá-la e,
dando a mão à sua companheira, em breve Danielle, também corajosa desportista, estava a seu lado.
Uma vez dentro do tank, verificaram ser muito
estreito o reduto. com o auxílio duma lâmpada eléctrica que providencialmente haviam encontrado no bolso do capote de You, procederam a um exame atento da metralhadora.
Tanto esta, como as respectivas munições, tudo estava em ordem e pronto a ser utilizado.
- Dir-se-ia que os chinas previram e trataram de nos facilitar a fuga! - murmurou a jovem.
O jornalista não respondeu. Sentado no posto de comando, verificava as alavancas, assegurando-se de que tudo funcionava normalmente. Quando se achou tranquilizado
a esse respeito voltou-se para a jovem, que esperava fremente de impaciência, e perguntou:
- Está pronta, Dany? -. Estou, sim!
- Então, à graça de Deus!
Um ensurdecedor ruído de explosões e de ferragem quebrou o silêncio que pesava sobre o acampamento , adormecido. O motor do tank começara a funcionar. e a sua trepidação
era tanta que os fugitivos não ouviram os apelos e exclamações que se levantaram de todos os lados. Estupefactos os chinas erguiam-se tontos de sono e olhavam aparvalhados
para o ponto donde provinha aquele ruído absolutamente anormal. ?
O tank arrancava, conduzido por mão hábil, e o seu rasto contínuo aferrava-se ao terreno lamacento; tomava a direcção do sul e caminhava já pela extensão do acampamento
que se estendia para aquele lado.
Ergueram-se alguns vultos perto dele, mas logo se afastaram para não serem esmagados. Feng, avisado do que se passava, corria para a tenda do general, a fim de o
informar. Mas foi em vão que procuraram o chefe; You desaparecera. Ninguém sabia onde poderia estar. Durante este tempo o engenho continuava a sua marcha, direito
aos fogos, causando grande pânico entre
os bandidos, que prudentemente se afastavam à sua passagem. Já alguns tiros haviam crepitado, ricocheteando contra a espessa blindagem do carro.
Danielle e Paulin, violentamente sacudidos, mantinham-se firmes nos seus postos. A jovem, pelas frestas abertas na torre da metralhadora, via os bandidos correr
pelo acampamento, crentes de que se trataria de qualquer estratagema de guerra da parte dos adversários e receosos de um breve ataque em forma.
A surpresa afirmava-se completa. As sentinelas que vigiavam a periferia do campo nada haviam notado de anormal. Aquela partida inesperada do seu próprio tank, manobrado
por mãos misteriosas, juntamente com o desaparecimento de You e da prisioneira, acabava por os deixar de todo desamparados.
Aproveitando-se de tal estado de espírito dos seus adversários, os dois jovens atingiam em poucos minutos a zona onde se encontravam dispostas as sentinelas. Ouviram-se
vários brados, logo seguidos de muitos tiros, o que não impediu o tank de prosseguir na sua marcha, com os passageiros absolutamente indemnes!
Agora, Paulin dirigia o carro quase ao acaso. Só tinha uma ideia: afastar-se o mais possível do acampamento e evitar a planície inundada, onde o tank se podia enterrar
para sempre.
No seu posto, Danielle dificilmente conseguia aguentar-se, embora animada pela voz de Paulin, que por vezes dominava o ruído infernal do motor:
- Coragem, Dany! Isto pega! Estamos quase safos!
Os dois fugitivos seguiam por um terreno nu, ravinado, onde um ou outro arbusto se erguia e era por vezes esmagado pelo enorme peso daquele veículo de guerra.
Danielle julgava já que os amarelos tivessem desistido
da perseguição, e não ter que se servir da metralhadora, quando uma centena de cavaleiros, acorrendo a todo o galope, interveio na acção. À ordem de Feng, cada vez
mais admirado pelo desaparecimento do general, os bandidos haviam-se lançado em perseguição do tank. O próprio Feng tomara o comando daquela tropa. Passando à frente
dos seus homens, foi colocar-se diante do tank e gritou:
- Pare! Pare, general! Porque foge assim com
a francesa?
Paulin, que conseguira apanhar aquelas palavras,
soltou uma gargalhada.
- Você está a ouvir, Dany? -exclamou ele. Estes macacos amarelos pensam que eu seja o estimável You e que fugi na sua companhia.
A jovem sorriu por seu turno. Pensava no general, fechado no caixão. A ignorância em que estavam os bandidos da verdadeira situação do seu general ia facilitar-lhes
a fuga.
Não obstante, o caso complicava-se. Cansados de chamar em vão pelo seu chefe, os bandidos colocavam-se diante do tank, resolvidos a fazê-lo parar. Paulin parou de
facto o motor e gritou-lhe em chinês:
- Afastem-se!
Mas tal ordem não foi respeitada, antes pelo contrário, os cavaleiros juntaram-se em grupo compacto, de carabinas na mão.
- Parece-me que vamos ser forçados a combater
- disse o repórter para a sua companheira. - Está a
postos?
Danielle acenou afirmativamente com a cabeça; não estava nada decidida a deixar-se cair de novo em poder dos bandidos. A sua mão, nervosamente, introduziu a primeira
fita de projécteis na metralhadora.
- Afastem-se! - berrou Paulin pela segunda vez.
- Juro-lhes que.
Uma salva impediu o repórter de terminar. As balas vieram achatar-se contra as chapas da couraça que protegia o carro, mas os seus ocupantes continuavam invulneráveis.
- Fogo à vontade, agora! - ordenou Paulin Quartier. - Tanto pior para estes imbecis!
A jovem obedeceu, bastante desajeitadamente. Algumas detonações fizeram-se ouvir. Depois o fogo da Maxim tornou-se mais regular. Os cavaleiros que se encontravam
na primeira fila tombaram das montadas, enquanto os que se mantinham mais atrás viam os seus cavalos abaterem na lama.
Em poucos momentos só se ouvia um concerto de uivos de dor, de gemidos, imprecações e nitridos de agonia. Feng volteava de um para outro lado, esforçando-se por
levantar o moral dos seus homens, muito abalado por aquela réplica mortífera; o ruído do tank dominava porém a sua voz. Alguns cavaleiros demoraram-se ainda a disparar,
mas, apavorados pelas baixas que se multiplicavam à sua volta, abalaram a toda a brida direitos ao acampamento, seguidos por Feng, que não desejava perder a vida
naquele inglório combate.
Em menos de três minutos só ficaram no terreno os mortos e os feridos.
- E agora para a frente! - clamou Paulin. Danielle não respondeu. Parara de disparar e um
sentimento de repulsa apoderou-se dela. Mas fora preciso não hesitar, porquanto o mais leve desfalecimento podia comprometer tudo! A jornalista pensou nos crimes
cometidos por aqueles miseráveis que cem vezes haviam merecido a morte. Os balanços do tank, porém, obrigaram-na a interromper as suas reflexões, para só
pensar em se agarrar com toda a força. Imóvel no seu posto, Paulin continuava pilotando o carro, como o fizera em tempos no campo -de Sotory, quando das grandes
manobras.
Enquanto o tank prosseguia na sua doida correria através da noite, o astucioso Feng reunia à pressa, na tenda do desaparecido general, todos os oficiais e chefes
de grupo que se tinham ligado ao bando de You. Havia muito tempo já que o amarelo ambicionava o posto do seu chefe. Dera pois ordem para que não continuassem a perseguir
o tank, o que poderia levá-los demasiado perto das linhas nipónicas.
- Não podemos conservar quaisquer dúvidas declarou Feng -, é o próprio general You quem conduz o carro e assim foge de nós, levando consigo a prisioneira europeia!
O miserável atraiçoa-nos e passa-se vergonhosamente para o inimigo com todo o ouro que amealhou!
Tal acusação provocou, como era de esperar, viva emoção em todos os bandidos ali reunidos. Feng estava encantado por apanhar aquela oportunidade de se ver livre
do chefe detestado. Compreendeu, além disso, que os seus colegas aceitavam de bom grado a tese da traição do general. Verificavam-se duas desaparições: a de You
e a da prisioneira; ora, como as sentinelas não haviam notado qualquer presença suspeita no acampamento, só podiam aceitar uma solução para o problema: You, desejoso
de pôr ponto numa vida arriscada, concluíra qualquer acordo com o estado-maior japonês e fugira com a prisioneira e com o tesouro, produto das suas rapinas. Na sua
precipitação, os bandidos não haviam pensado em procurar no esconderijo que You praticara sob a cama de viagem.
Protestos indignados eclodiram de toda a parte;
vários chineses falavam em se lançarem na perseguição de You, a fim de o supliciarem, mas Feng moderou-lhes o ardor vingativo:
- Se nos afastamos do campo arriscamo-nos às mais graves complicações, até talvez a sermos cercados. A única solução que se impõe é substituirmos o chefe incapaz,
que fugiu, por outro mais valente e que melhor vos saiba conduzir ao êxito!
Como Feng ultimamente se houvesse mostrado hábil político e tivesse captado algumas simpatias, logo várias vozes se fizeram ouvir:
- Ninguém melhor-do que o valoroso Feng é capaz de nos comandar! A sua ciência estratégica é admirável!
Depois de curta discussão, Feng foi designado como sucessor do miserável You, trânsfuga criminoso e traidor. O novo general decidiu que o plano primitivamente traçado
pelo seu antecessor fosse posto em execução e se começasse o movimento de recuo na direcção das montanhas do norte. O grupo dos oficiais e chefes ia destroçar, quando
San veio anunciar que Maou-Han, o mestre-de-cerimónias das pompas fúnebres, insistia por ser recebido.
Tal visita provocou ligeira indecisão entre os bandidos. O desaparecimento inexplicável de You fizera com que momentaneamente se esquecessem da presença do caixão
e do seu cortejo no interior do acampamento. Logo novas discussões se levantaram. Alguns pretendiam que as promessas feitas pelo general You em nada interessavam
o general Feng e que, portanto, o novo chefe devia impor novas condições aos irmãos Liang, tanto mais que nada recebera do resgate primitivamente exigido. Não obstante,
Feng opôs-se a cobrar novo resgate. Ao contrário do seu predecessor, Feng era algo
supersticioso e a presença daquele cadáver no seu campo inspirava-lhe sérias apreensões.
- Convém que nos mostremos benevolentes! afirmou ele. - Os irmãos Liang cumpriram as suas promessas e portanto deixarão o acampamento dentro de algumas horas. Não
quero de forma alguma chamar sobre mim a cólera dos espíritos malignos!
Numerosas aprovações acolheram tal sugestão, tanto mais que todos viam ser a presença de tão numeroso grupo de estrangeiros sério obstáculo ao movimento de rápida
retirada que iam iniciar. Era perigoso alimentar
tantas bocas inúteis.
- Que introduzam o estimável mestre-de-cerimónias! - ordenou Feng.
Instantes depois, Maou-Han comparecia, sempre munido do seu inseparável bastão. Depois dos inevitáveis salamaleques, declarou na sua vozita de falsete que acabara
de ser informado do desaparecimento de You. Inquieto com tal notícia, vinha saber se o cortejo sempre poderia partir, tal como lhe prometera o general trânsfuga
após ter recebido dos irmãos Liang o resgate que exigira.
- A promessa que vos foi feita será mantida respondeu Feng. - Os nossos valentes prestarão as devidas honras aos restos mortais do venerável Liang-Hi. Cheio de alegria,
Maou-Han saiu da barraca, onde logo se notou viva animação que breve se estendia a todo o acampamento.
Tomavam-se as derradeiras disposições para levantar o campo. À hora fixada o cortejo fúnebre do respeitável Liang-Hi pôs-se em marcha, segundo os ritos milenários,
em meio de duas alas de bandidos que apresentavam armas. O préstito largou do campo, e quando Feng se curvou numa última reverência estava
longe de supor que, naquele caixão coberto de rico pano bordado de dragões, em vez dos despojos mortais do venerável Liang-Hi seguia amarrado, amordaçado, a caminho
dos postos japoneses, o corpo vivo do muito ilustre general You, seu predecessor à testa daquele bando de criminosos, o qual certamente iria passar um mau quarto
de hora quando os nipónicos fossem informados da verdadeira personalidade de quem por tão estranha maneira os visitava!
XVI
A bandeira branca
O tank prosseguia no seu caminho através da noite, levando os dois fugitivos. Depois que tinham conseguido romper o círculo dos cavaleiros, os jornalistas não haviam
trocado uma só palavra. As suas vontades tendiam para o mesmo fim: alcançar os postos avançados japoneses, comandados pelo general Magamoyo, e preveni-lo imediatamente
da próxima chegada do enterro e, portanto, do general You.
O ronco do motor continuava a quebrar o silêncio nocturno e, por entre as nuvens, a Lua surgiu finalmente. Paulin agradeceu à Providência aquela circunstância que
lhe ia permitir orientar-se melhor e evitar as regiões devastadas pela inundação. O avanço tornava-se cada vez mais difícil e por vezes as lagartas do carro enterravam-se
perigosamente no solo, arriscando-se a deixá-lo atolado. Também acontecia que a água esguichava para dentro do tank e até chegou a alcançar os joelhos do condutor;
transidos, redobraram de esforço e breve conseguiam subir a encosta suave duma colina. Desde então consideraram-se fora de perigo. A região que abordavam era pedregosa
e dura; ali tornava-se impossível ficarem atascados.
Ao fim de mais uma hora de marcha, Paulin resolveu parar. Sentia-se deveras extenuado.
- Julgo que não devemos estar já muito longe das linhas nipónicas - declarou, voltando-se para a sua companheira.
- Só temos agora que continuar marchando para o sul. Mas devemos apressar-nos! É preciso contar sempre com o imprevisto. Não esqueça que temos de ganhar a partida,
custe o que custar!
Paulin Quartier era da mesma opinião. Após um quarto de hora exigido pela necessidade de repararem as forças e verificarem o estado da sua máquina-de-guerra, puseram-se
de novo em marcha.
O luar permitia-lhes agora dirigirem-se. Por vezes, o pesado engenho erguia-se todo, para logo tombar em qualquer ravina, imprimindo aos seus passageiros terríveis
abalos. Danielle era forçada a agarrar-se com quanta força tinha, mas, mesmo assim, viu-se por vezes projectada contra o seu vizinho.
O caminho era tão pedregoso e ravinado que foram forçados a fazer nova paragem. A pouca distância, no céu, brilhara um foguetão que descrevera luminosa parábola.
- Coragem! Estamos chegados! - gritou Paulin.
Danielle ergueu-se e, apoiando-se nos ombros do companheiro, espreitou pela abertura do comando. Na verdade, o foguete, em vez de acabar a sua parábola no escuro,
rebentava a certa altura, produzindo uma chuva de faíscas luminosas que iluminou todo o terreno.
- Um foguete luminoso! -exclamou o repórter. -. As linhas japonesas estão ali! Para a frente! Estamos salvos!
O carro ia recomeçar a sua marcha quando surda detonação se ouviu dominando o ruído do motor. A uns trinta metros aproximadamente do ponto onde os fugitivos se encontravam
produziu-se uma explosão que fez estremecer o carro violentamente.
- Maldição! Estão a atirar contra nós com uma peça de artilharia!
A jovem dissera a verdade. As sentinelas nipónicas tinham localizado o tank, mercê do foguete luminoso, e agora os artilheiros que se encontravam com as suas peças
na vanguarda tomavam-no por alvo dos seus projécteis, supondo tratar-se de qualquer ataque imprevisto da parte dos chineses.
Quase sem intervalo, mais quatro obuses caíram perto do tank. Os artilheiros rectificavam, os tiros e os fugitivos compreenderam que estariam irremediavelmente perdidos
se não assinalassem aos japoneses as pacíficas intenções que os levavam às suas linhas.
- Tem um lenço, Dany? - perguntou o repórter. A jovem procurou nos bolsos do capote e mostrou um trapo de limpeza duvidosa que estendeu ao seu companheiro de desditas.
Paulin imediatamente o colocou numa vareta de ferro que para ali se encontrava e, erguendo-se, introduziu aquela bandeira de paz improvisada pela seteira superior
do carro-de-assalto. Quase no mesmo momento, novo obus, rebentando muito próximo, ia virando o tank com a deslocação do ar e cobria-o de terra e pedregulhos. Paulin,
segurando-se como podia, agitava desesperadamente a sua bandeira. Novo foguete luminoso subiu na noite, iluminando espectralmente a paisagem. Sem dúvida os nipónicos
notaram aquela bandeira branca que se agitava, pois o fogo das peças parou imediatamente.
Fez-se uma curta trégua. Danielle persuadira-se de
que haviam terminado as suas atribulações. Os japoneses iam intervir e não teriam mais a fazer do que contar a sua história. O general, avisado, procederia à captura
de You logo que o enterro ultrapassasse as primeiras linhas.
- Atenção! Ei-los que chegam!
Os japoneses aproximavam-se, com efeito, cobertos com capacetes de aço iguais aos da infantaria francesa. Os recém-chegados pareciam recear qualquer emboscada e,
enquanto rodeavam o carro, apontavam as espingardas-metralhadoras para todos os pontos em que ele podia ser mais vulnerável às balas.
O oficial comandante do destacamento aproximou-se e, erguendo a mão, pronunciou algumas palavras em japonês.
Paulin Quartier nada compreendeu, mas apressou-se a gritar em inglês:
- Socorro! Somos jornalistas franceses evadidos das linhas chinesas. O general You tinha-nos aprisionado.
-All right! Saiam cá para fora!
O tenente respondera também em inglês e logo os dois reclusos experimentaram uma indizível sensação de alívio. Daquela vez era verdade! Estava tudo acabado!
Paulin abriu a pequena porta e, a custo, ele e Danielle saltaram para o chão. Por momentos ficaram imóveis, expondo os rostos cobertos de suor à fresca brisa nocturna.
Uma curta ordem veio chamá-los à realidade:
- Aproximem-se!
O tenente não estava armado, mas os seus homens rodeavam-no, prontos a intervir ao menor gesto suspeito. As capas e quépis chineses que os jornalistas
vestiam deviam na verdade fazê-los passar por inimigos.
- Quem são e donde vêm? Paulin apressou-se a responder:
- Somos dois jornalistas franceses, perdidos na Terra de Ninguém". Vimos directamente do campo do general You.
- Terão que se explicar com o coronel. Por agora tratem de marchar na minha frente e nada de resistir.
- Garanto-lhe que não pensamos em fugir - protestou o rapaz. - Arriscámos até a vida para alcançar as vossas linhas.
- Está bem! Recebi ordem de vos aprisionar. Por agora vão deixar-se apalpar.
Em poucos minutos, a pistola de Paulin, o revólver que Daniel escamoteara a You, bem como todo o restante conteúdo das algibeiras dos dois jornalistas, tudo passou
para as mãos dos soldados nipónicos.
Enquanto isto se passava, uma dúzia de homens vistoriava conscienciosamente o tank. Depois, escoltados pelo destacamento, os dois jovens foram conduzidos às linhas
japonesas e dentro em pouco, depois de terem atravessado uma funda trincheira bem guarnecida de redutos de metralhadoras, caminhavam para o abrigo subterrâneo que
servia de alojamento ao comandante daquele posto avançado.
Chegados finalmente à entrada do abrigo, o oficial entrou e os prisioneiros aguardaram fora com a escolta. Estavam ambos alegres e esperançados que breve todos os
seus trabalhos cessariam e que o facto de haverem aprisionado e entregue aos japoneses o general You viria a ser para eles um consolador e apoteótico triunfo.
Mas bem cedo tiveram que se desiludir. O tenente reaparecia e fez-lhes sinal para que entrassem no interior
do abrigo. Mal ali se introduziram viram um homem de pequena estatura, com o rosto emoldurado por curta barba castanha e de óculos de tartaruga, que parecia imensamente
ocupado na leitura dum relatório escrito à máquina.
À luz do fotóforo, Paulin Quartier notou as insígnias de coronel e compreendeu que se achava em presença do comandante de sector a que o tenente aludira.
Danielle também observava, mas estava tão fatigada que o oficial que os conduzira o notou e lhe ofereceu um caixote onde a jovem se deixou cair, prostrada de fadiga.
Quando finalmente o coronel pôs de lado o seu relatório e os fitou, o rosto de Paulin iluminou-se. Estava impaciente por contar as suas aventuras e as da companheira
e a forma como haviam conseguido escamotear o famoso general You antes de se evadirem do acampamento dos bandidos amarelos.
- Chamo-me Paulin Quartier, da Actualité, meu coronel! A minha companheira chama-se Danielle Mercoeur e escreve para o jornal Le Monde. Já certamente ouviu falar
nela, pois conhecem-na muito bem no grande quartel-general! - apressou-se o rapaz em informar antes mesmo de ser interrogado.
O coronel nada respondeu; os seus olhitos penetrantes examinavam os recém-chegados.
- É inútil exprimirem-se em inglês -declarou ele, após ligeira pausa; - falo regularmente o francês!
Depois absorveu-se no exame de todos os objectos pertencentes aos dois jornalistas, que um soldado acabava de colocar sobre a mesa de campo. Rápido fulgor luziu-lhe
aos olhos quando viu um envelope que fora encontrado no bolso secreto da capa que Paulin trazia
vestida. Abriu-o e leu-o com toda a atenção. O francês pôde verificar que tinha apenso um plano.
Até então, ocupado em preparar e executar a sua evasão, o jornalista não se dera ao trabalho de inventariar o conteúdo da capa que roubara ao general You. Mas agora
sentia que novas complicações iam surgir. Estremeceu até ligeiramente, quando o coronel, voltando-se para ele, lhe disse, apontando o plano:
- Sabe, sem dúvida, do que se trata?
- Não faço a mínima ideia, meu coronel - respondeu ele.
- É pena! Poderia assim avaliar da gravidade do seu caso!
- A capa que trago comigo não me pertence, e bem pode verificar que a vesti sobre o meu fato de civil!
- Quem é então o seu proprietário?
- O general You!
- Não brinque comigo, peço-lhe, Sr. Quartier! Não quererá decerto persuadir-me.
- Garanto-lhe, meu coronel, que chegámos em linha recta do campo do general You; posso mesmo afirmar-lhe que poderá capturar o bandido. Conseguimos, a minha colega
e eu, fechá-lo dentro do caixão dum digno chinês que brevemente chegará às linhas japonesas!
Por profunda que fosse a força de convicção de Paulin, e por mais afirmativos que se mostrassem os acenos de cabeça de Danielle, o coronel continuava a sorrir.
- vou contar-lhe tudo - insistiu Paulin Quartier.
- É claro que confesso serem as aventuras por que acabamos de passar absolutamente extraordinárias, mas nem por isso são menos verídicas.
O jovem começou a sua narração; disse em que condições se encontrara com Danielle no decurso do bombardeamento de Miukiang pelos aviões nipónicos, o que depois se
passara com cada um deles, até de novo se encontrarem no campo de You, a forma como haviam escamoteado o bandido e conseguido fugir em direcção às linhas nipónicas.
Danielle aprovava vivamente com a cabeça os pontos culminantes da narrativa. Mas o sorriso incrédulo do coronel subsistia. Entre ele e o tenente trocaram-se, por
vezes, certos olhares de subtil ironia.
Quando, por fim, Paulin terminou, o coronel soltou um suspiro:
- Sempre tenho ouvido dizer que os franceses são dotados de grande imaginação, mas verifico hoje que os factos ultrapassam todas as suposições! O que acabo de ouvir
é mais inverosímil que a mais fantasista das histórias!
- Pois asseguro-lhe que se trata de pura verdade!
- interrompeu a jovem. - Nós não mentimos!
- Vejo-me obrigado a contradizê-la, minha senhora; suponho no entanto que me não julgue tão ingénuo que a possa acreditar.
- Mas não se trata de fantasias, meu general! Bastar-lhe-á dar mostras de um pouco de boa vontade para contribuir para a prisão de You, o famoso bandido cuja cabeça
está posta a prémio pelos dois exércitos! Pense que é uma circunstância providencial que fez o pudéssemos colocar ao seu alcance!
- Circunstância providencial, Sr. Quartier, considero eu aquela que nos permite, lançar hoje a mão a dois perigosos espiões que vieram cair de cabeça nas nossas
linhas!
E apontando o plano que acabara de consultar havia pouco, o japonês declarou:
- Eis aqui a cópia de todo o nosso sistema de organização em volta de Miukiang! Este plano foi roubado anteontem ao nosso grande Estado-Maior e é hoje encontrado
no bolso da sua capa! Os espiões que dele se apoderaram tinham conseguido, até à data, escapar-nos. Mas sabíamos da sua presença nestas paragens! Por mais subtis
e romanescos que sejam os vossos subterfúgios, vejo-me forçado a proceder desde já à vossa captura. Sereis meus prisioneiros até nova ordem!
XVII
Em perigo de morte
Desta vez a situação complicara-se terrivelmente. O novo sorriso que o coronel esboçava nada de bom prometia para os dois franceses. Antes que tivessem podido arriscar
qualquer protesto, o oficial voltou-se para eles e perguntou-lhes:
- Os senhores afirmam exercer a profissão de jornalistas e eu não pretendo senão poder acreditar na vossa boa-fé; no entanto, não encontrei nenhum papel que estabeleça
a vossa identidade, nenhuma foto, nenhum passaporte!
- Tudo perdemos no decurso da nossa estadia no campo de You. A minha colega foi despojada de tudo quanto trazia, e eu lembro-me de ter deixado a carteira na cabaia
de seda que envolvia o venerável Liang-Hi no caixão!
- Essa história do caixão é talvez muito engenhosa
- interrompeu o coronel -, mas não julgue que a aceitamos como verdadeira. Os únicos papéis importantes que encontramos em si são estes planos roubados ao nosso
Estado-Maior e que, para nós, são de capital importância! E uma vez que já se encontra na China
há longos meses, Sr. Quartier, deve saber qual o destino que reservamos aos miseráveis convictos de espionagem. Passamo-los pelas armas! Convém fazer alguns exemplos!
- Sobre tudo o que há de mais sagrado, juro-lhe, meu coronel, que não sou um espião!
- E eu também não - apoiou Danielle com todo o calor. - Somos vítimas dumas desconcertantes circunstâncias, eis tudo. Quando o meu colega se apoderou da capa do
general You estava longe de pensar que ela contivesse um documento de tão excepcional importância.
E como o japonês continuasse de mármore, a jovem prosseguiu:
- Em vez de nos acusar dessa maneira, coronel, devia antes dar-se por feliz com o acaso que assim lhe faz cair em seu poder os tão famosos planos.
- Julgo que estamos perdendo tempo com palavras vãs. Os senhores não têm os seus papéis, mas sim um documento comprometedor!
- Consinta que lhe faça notar - respondeu a jovem, exasperada - que se fôssemos espiões não teríamos vindo directamente para aqui. Quando a sua artilharia abriu
fogo, até alguns dos vossos homens pensaram se tratasse de qualquer ataque!
- É possível, mas nada me garante que se não tenham enganado no caminho, devido à inundação que transformou a topografia da região, e, assim, teriam caído em nosso
poder, bem contra vontade!
- Coronel, não admito tal calúnia, é odioso.
Danielle sentia-se incapaz de se conter; a sua excitação contrastava com a fleuma imperturbável do nipónico, que a observava friamente com os seus olhitos piscos
e cheios de cruel ironia.
- É inútil levantar a voz, minha senhora - declarou categórico. - As provas da falsidade das vossas alegações estão aqui na minha frente.
A discussão continuou. Por um lado Paulin e Danielle narraram mais pormenorizadamente todo o conjunto de circunstâncias que os levara, a um e a outro, até ao campo
do general You. O japonês ouviu-os, escandalizado do pouco respeito de Quartier pelos mortos, pois ousara introduzir-se no caixão. Por fim, acabou por declarar:
- Lastimo muito, mas tudo isso não afasta as acusações que pesam sobre os dois. Aqui não se brinca nem se planeiam romances de aventuras, mas antes perseguimos os
espiões sem piedade, sejam eles quais forem!
- Mas eu conheço o general Magamoyo! - insistiu a jovem. - Ele poderá afiançar.
O comandante-em-chefe nada tem que ver neste caso; admitindo que o conheça, só poderá lastimar vê-la na companhia dum espião!
- Paulin não é um espião, juro-lhe; é um carácter leal e valente que acaba de arriscar a vida para me tirar das mãos do general You!
- De tudo isso que me contam, só acredito no que vejo, isto é, que tinham em vosso poder os documentos roubados!
- Peço para ser conduzido à presença do general-em-chefe! - disse o francês com energia. - Estou certo que consentirá em nos ouvir.
- Além de que - declarou Danielle - se quiser convencer-se da nossa boa-fé poderá consultar o padre Eudes, que certamente conhece, o lazarista superior da Missão
de Fah-Tinh.
- O padre Eudes também para aqui não é chamado; é uma alma boa e corajosa, que faz imenso bem
e se esforça por salvar o maior número possível de vidas humanas, no meio desta tormenta. Sei-o incapaz de se intrometer numa história destas!
- Então - insistiu a jovem - se não quer também interrogar o padre Eudes, a fim de se certificar da nossa boa-fé, é-lhe fácil colher outra prova, desde que esteja
disposto a esperar algumas horas. E é uma prova irrefragável, essa!
- Qual é ela?
- Peça que abram o caixão de Liang-Hi! Dentro em breve deverá o cortejo fúnebre alcançar as linhas japonesas. Poderá então verificar que ele contém um ser vivo,
que não é outro senão o respeitável general You! Então, espero que se persuada da nossa sinceridade!
O coronel pareceu meditar. Os dois franceses trocaram um furtivo olhar. Ambos pensaram ter ganho a sua causa, mas o japonês, voltando-se para eles, tirou-lhes essa
ilusão.
-. Não pensem que me deixarei enganar por essa diversão que lhes permitiria ganhar tempo. Primeiramente, a aproximação do cortejo ainda me não foi assinalada e apenas
recebi ordem para resistir a todos os ataques do inimigo. Nestas condições, e nas circunstâncias particularmente graves que atravessamos, só devemos obedecer ao
nosso dever, por penoso que ele seja. Dentro de duas horas rompe a manhã. Resta-vos, a ambos, prepararem-se para bem morrer!
- Mas isso é impossível!-protestou Danielle.- com certeza não iria cometer um crime tão monstruoso!
- Pode crer que muito me custa ter que proceder assim, sobretudo para com uma mulher, mas deve saber que nós, os japoneses, pouco caso fazemos, no geral,
dos representantes do vosso sexo. Os meus chefes deram-me rigorosas ordens; e essas ordens executá-las-ei, por mais dolorosas que sejam, quer para a minha consciência,
quer para a simpatia que sinto pelos franceses!
- Perdão! - interveio Paulin. - Mas o senhor não nos pode fuzilar sem que antes nos faça comparecer ante um tribunal competente! Conheço as leis da guerra: por cruéis
que sejam, reconhecem o direito a todo o indivíduo, acusado de espionagem, de se justificar ou defender.
- Esse direito não lhes será negado, mas receio que nada possam alegar para vossa defesa, ante as provas esmagadoras que pesam sobre vós! Será uma simples formalidade!
- Pode crer que terá que prestar contas quando o nosso cônsul souber desta infâmia!
O coronel ergueu desdenhosamente os ombros.
- Mesmo aos olhos do vosso cônsul, não tereis razão. Ao aventurarem-se através da "Terra de Ninguém", arriscavam-se a tudo. por vossa conta e risco. Todos os diplomatas
imparciais o reconhecerão!
Os dois jornalistas compreenderam que as suas objecções esbarravam contra a fria determinação do oficial amarelo. Deixaram portanto de discutir. O coronel, depois
de ter dado algumas ordens em japonês ao seu subordinado, voltou-se de novo para os dois jovens e prosseguiu:
- Dentro de alguns minutos comparecerão ante um tribunal militar que vou constituir imediatamente.
- É ante o general Magarnoyo que pretendo comparecer e justificar-me - insistiu Danielle. - Estou certa de que ele compreenderá.
Pela atitude negativa do coronel, a jornalista compreendeu que nunca conseguiria demover o nipónico.
Resignou-se portanto e saiu do abrigo pelo braço do seu companheiro de desventura. Escoltados pelos mesmos homens, foram conduzidos para uma tenda onde os deixaram
sem que lhes ligassem as mãos.
-. E então que pensa você de tudo isto? - perguntou a rapariga, sentando-se numa caixa.
- Penso que o meu estratagema faliu, é o que penso! - retorquiu o repórter. - É pena, no entanto. Julgava ter ganho a partida e ter-lhe proporcionado a ocasião de
escrever uma formidável reportagem!
- Mas, então, pensa que esse coronel se não deixará comover? Se ao menos ele prevenisse o general-em-chefe!
- Não o fará! Li-lhe nos olhos uma fria resolução! Que quer, Dany, é preciso resignarmo-nos; desta vez jogámos mas perdemos.
- O respeitável general You será enterrado vivo em vez de ser enforcado!
- A menos que se descubra a tempo que foi encontrado o verdadeiro corpo de Liang-Hi no seu palácio de Miukiang!
- É claro que seria essa a prova evidente da nossa inocência, mas o facto, a dar-se, será demasiado tarde.
Por desesperadas que parecessem as circunstâncias, Danielle não cedeu ao desânimo.
- Sejamos valentes, Paulin, e encomendemos a nossa alma a Deus! Não receio a morte e julgo que você também não.
- Como a posso temer, se ela me vem buscar a seu lado e uma vez que cairemos juntos?
O rapaz calou-se e, por momentos, apesar de toda a sua coragem, pareceu imensamente comovido.
- Não era isto, no entanto, o que eu sonhara. Teria querido viver, e não morrer, perto de si!
Paulin sentara-se ao lado da sua companheira e as palavras que por tanto tempo contivera soltaram-se-lhe dos lábios.
- Sim, minha princesinha da "Terra de Ninguém", amo-a perdidamente! O mais belo sonho da minha vida era tornar-me seu marido! Agora, que esperamos a morte, atrevo-me
a confessar-lho.
Paulin sentiu que a mão da companheira procurava a sua. Imediatamente correspondeu àquela pressão. E a voz da jovem murmurou comovida ao seu ouvido:
- Eu era cega, Paulin! Pensava poder caminhar sozinha, mas, desde que o conheci e que juntos corremos tantos perigos, compreendi que nunca poderia encontrar melhor
companheiro e mais seguro amparo na vida!
- Querida princesinha!
As suas mãos apertaram-se novamente, sem que conseguissem soltar uma só palavra. Extenuada por tantos trabalhos e emoções, a jovem apoiou a cabeça no ombro do seu
companheiro. Para ali ficaram, naquela posição, com o peito oprimido por uma idêntica amargura, pela visão duma felicidade possível que apenas entreviam no limiar
da morte!
Um ruido de passos e armas que se entrechocavam veio arrancá-los do seu torpor; o pano da tenda ergueu-se e o tenente que os aprisionara fez-lhes sinal para que
o seguissem.
- Coragem, Dany! - murmurou simplesmente o repórter.
- Não se preocupe, Paulin! Saberei mostrar a estes amarelos, que sabem o que é ser-se valente, que uma francesa sabe ir para a morte sem tremer!
Ao longe, ligeira claridade anunciava o despontar do dia. com a alvorada, duas vidas iam acabar.
Mas os prisioneiros pouco mostravam inquietar-se com o fatal destino que os aguardava; caminhavam, de cabeça erguida, apoiados ao braço um do outro.
Levaram-nos para uma casamata, onde cinco oficiais, pela sua simples atitude, bem mostraram aos dois jornalistas que nada tinham já a esperar. Além de que o caso
foi rapidamente resolvido; em menos de vinte minutos, defesa e acusação terminaram a sua polémica e o veredicto do coronel condenava os réus de espionagem a serem
passados pelas armas.
Quando a sentença foi lida, os soldados prestaram continência. Depois, enquadrando os condenados, dirigiram-se para uma colina pouco distante, onde seria consumada
a sentença.
- É então ali?-perguntou Danielle.
O oficial comandante do pelotão acenou afirmativamente com a cabeça. A tranquila serenidade de que davam provas os dois franceses naquela ocorrência provocava a
sua admiração. Não suposera nunca que uma mulher se pudesse mostrar tão corajosa em face da morte e sentia-se mal disposto por ser obrigado a intervir naquele drama.
- Em frente, marche! - ordenou o coronel, que acabava de aparecer por seu turno em frente da casamata.
O pelotão abalou, num impressionante silêncio. Danielle dava o braço a Paulin e o rapaz sentia que a pressão da sua companheira se tornava mais forte, à medida que
se aproximavam do local do suplício. Agora que ele sabia ser amado, que podia aspirar à felicidade tanto tempo ambicionada, seria forçoso sucumbir?
O supremo passeio acabava; não foi sem certa emoção que os dois jovens viram à sua direita o tank que
os trouxera e que para ali jazia, sem a metralhadora, abandonado na "Terra de Ninguém". O mesmo pensamento lhes ocorreu. Haviam esperado que o carro os conduzisse
a porto de salvação e, afinal, conduzira-os à morte! Mais alguns minutos e cairiam sob as balas do pelotão encarregado de os executar.
Os dois condenados aproximavam-se do local escolhido pelo coronel quando oficial e soldados pararam subitamente. Um foguetão branco subia no céu, onde as estrelas
empalideciam e as nuvens negras se afastavam sopradas pelo vento da manhã.
XVIII
Inspecção oportuna
Uma ordem seca; os quinze soldados nipónicos que acompanhavam os prisioneiros deram meia volta. Absolutamente estupefactos, os dois franceses perguntavam a si próprios
o que significava tal manobra. O pasmo que os invadia subiu de ponto quando o oficial ordenou o regresso.
- Que quer dizer esta comédia? - perguntou Paulin Uuartier.
- Não julgo que se trate de alguma comédia declarou o tenente.-O foguetão branco é um sinal. Ordena-me que suspenda de momento a vossa execução!
Os dois jovens trocaram um olhar cheio de esperança. Aquela inesperada decisão revelara que algo de importante se produzira desde a sua saída das linhas
nipónicas.
Dentro em pouco, Danielle e o seu companheiro ficaram inteirados da situação. Um soldado corria ao seu encontro, falava com o tenente, e este, voltando-se para os
dois franceses, declarou-lhes:
- O general Magamoyo acaba de chegar às nossas linhas em visita de inspecção! Prevenido do que se
passava a vosso respeito, quis interrogá-los antes de darem execução à sentença.
- O general Magamoyo! - exclamou logo Danielle. cujo rosto se tornou radiante. - Então estamos salvos!
A jovem tivera já ocasião de entrevistar o general nipónico e mútua simpatia se estabelecera entre eles.
- Pois é caso para se dizer que chega mesmo a tempo esse valente general! -continuou a jovem. Louvado seja Deus, que o conduziu até aqui, às primeiras linhas. Cinco
minutos mais tarde e tudo estaria acabado!
Algumas silhuetas desenhavam-se na sua frente, saindo dos entrincheiramentos. Entre elas, Danielle depressa descobria a do general Magamoyo, baixo e robusto, com
farto bigode caído, lembrando o do velho Clemenceau.
- Para lhe falar com franqueza, general, nunca senti tanta alegria em o ver!
A jovem já se não preocupava com a escolta. Por seu lado, o general japonês reconhecia a jornalista e o seu rosto iluminou-se; sorrindo, inclinou-se na sua frente:
- Encantado por a tornar a ver, mademoiselle Mercoeur! Confesso-lhe que vindo de madrugada inspeccionar os meus postos avançados estava longe de supor que encontraria
aquela que todos nós conhecemos pelo gentilíssimo sobrenome de Princesa da "Terra de Ninguém"!
O general estendeu a mão, que Danielle apertou, apresentando o seu companheiro, que, imóvel, aguardava:
- O meu colega Paulin Quartier, que o general decerto já terá encontrado também!
- O Sr. Quartier veio na verdade tirar algumas fotografias ao meu quartel-general, quando combatíamos em torno de Xangai.
Então o general explicou que, tendo sabido pelo coronel das suas aventuras, tinha ordenado suspendessem a execução, certo de que se trataria de algum mal-entendido.
- Que você seja de facto temerária e adore o perigo não é novidade para ninguém, mas estou persuadido de que não é uma espia. Foi por isso que pedi imediatamente
ao coronel Yaramata que suspendesse tudo, evitando um erro irreparável! Nunca me consolaria, na verdade, se soubesse da morte da Princesa da "Terra de Ninguém" falsamente
acusada do crime
de espionagem!
- Confesso que as aparências eram contra nós declarou Danielle -, mas imagino que desta vez não tome a nossa odisseia por qualquer romance fantasista.
- Ignoro ainda exactamente todos os pormenores do vosso caso. Sei que vieram aqui parar tripulando um tank de fabricação russa, como os empregados pelos nossos inimigos,
e que nos bolsos do seu colega se encontraram documentos dum grande valor estratégico, cujo desaparecimento muito lamentávamos.
- Se o permite, general, vamos contar-lhe toda a sequência dos factos - respondeu Danielle. - E estou certa de que verificareis estarmos de facto inocentes.
- Está dito! vou ouvi-los, mas, entretanto, servir-lhe-ão qualquer coisa, pois parece-me estar muito enfraquecida.
- Pois se nada comemos há vinte e quatro horas!
- retorquiu a jovem.
A um sinal do general trouxeram alguns pratos de
arroz e vitualhas.
Então, e depois de saciada a fome que os devorava, os dois jornalistas expuseram ao general todo o rosário das suas aventuras. Tanto este como o coronel ouviram,
interessados, a narrativa.
Quando os jovens deram por finda a sua história, Magamoyo voltou-se para Yaramata:
- Então! Que pensa de tudo isto, coronel?
- Penso que deve haver aí muito de imaginação, meu general! - respondeu o oficial.
- É porque não conhece a Princesa da "Terra de Ninguém"! Eu acho tudo quanto ela acaba de me expor muito natural e por isso nada tenho a elogiá-lo sobre a maneira
como procedeu.
- Mas, general, os planos que o francês trazia consigo? E o tank russo?
- Tudo isso nada prova, ante as explicações que acabamos de ouvir. Além de que esta senhora tinha apelado para o meu nome!
- Mas as ordens que eu recebera.
- Essas ordens apenas respeitavam aos espiões, e estes franceses não o são!
- Se não cumpri o meu dever, meu general, estou pronto a receber o castigo, mas peço apenas que me não retirem da linha de fogo! O meu maior desejo é morrer honrado
em face do inimigo!
- Não se fala em castigos, coronel. Fez o que pôde e julgou ser o seu dever. E como felizmente me lembrei de fazer esta inspecção, não há nada perdido!
Danielle e Paulin apressaram-se então em estender as mãos ao coronel, garantindo-lhe a sua simpatia.
A discussão terminou assim amigavelmente e Danielle avisou:
- Depressa, general. É preciso tomar as necessárias medidas, pois antes da noite o funeral do respeitável
Liang-Hi deve chegar às vossas linhas! Terá que proceder à abertura do caixão e aprisionar o bandido que lá se encontra!
Magamoyo fez uma careta.
- Tenho certo escrúpulo em perturbar o descanso dum morto, e de forma alguma aprovo o acto do Sr. Quartier fazendo-se substituir a um cadáver. Eu por coisa alguma
o teria feito! Mas uma vez que me garantem estar You dentro do caixão, julgo o caso diferente e vou tomar as medidas precisas para vistoriar o cortejo mal chegue
aos nossos postos avançados.
O general pôs então um abrigo à disposição dos dois jornalistas, para que pudessem descansar algumas horas.
Antes porém de se abandonar ao repouso, Paulin, com o auxílio de uma carta da região e depois de ter subido a uma colina donde inspeccionou o horizonte, indicou
a Magamoyo o local exacto onde na véspera se achava acampado aquele que dava pelo nome de general You.
Magamoyo pôde assim verificar que, para bater em retirada, aquele exército de bandidos tinha apenas uma passagem livre, e fácil seria dizimá-lo. E, com os olhos
a brilharem de contentamento, resolveu tentar aquele golpe-de-mestre, uma vez You aprisionado.
- É um serviço de limpeza que se impõe antes de seguirmos a nossa marcha para a frente.
Desde então começou reinando grande efervescência nas linhas japonesas. Preparavam-se para o ataque.
Pelas quatro horas da tarde ouviram-se ao longe estranhas melopeias.
- Desta vez são eles! É o cortejo que chega!
E Paulin correu pelo talude da trincheira, perscrutando na direcção do norte.
Via-se ao longe uma fila de brancas figuras que caminhavam lentamente. Era o cortejo que chegava, com o mestre-de-cerimónias à frente, com os músicos, carpideiras,
carregadores, bonzos, divindades tutelares, etc.
Paulin voltou-se; uma mão pesava no seu ombro. Era o general que vinha observar a chegada do cortejo.
- Meu general, vamos agora jogar os trunfos!
- Dado que You se encontre dentro do caixão.
- Se tivessem dado com ele, pensa que o cortejo manteria esta disciplina ritual? Pode estar certo! Temos o nossohomem!
Paulin correu a prevenir Danielle.
Cinco minutos depois, o general, com os dois jornalistas e o coronel, caminhavam ao encontro do cortejo, precedidos por forte escolta de soldados, ansiosos também
por assistirem ao desfecho daquela aventura.
O cortejo não estava a mais de duzentos metros das trincheiras quando o tenente, erguendo o braço, ordenou com voz tonitroante para o mestre-de-cerimónias:
- Alto!
Maou-Han, bonzos, carpideiras, porta-estandartes, todos os participantes do funeral numa palavra, pararam como por encanto. Os restos do desventurado e muito respeitável
Liang-Hi pareciam destinados a não terem mais sossego!
XIX Conclusão
O que se passara no campo dos bandidos após a partida dos jornalistas resume-se em poucas linhas.
O cortejo saíra, como ficara estipulado, logo às primeiras horas da manhã. Apenas faltava a escolta prometida por You, porquanto a retirada de todo aquele exército
de facínoras impedia que se cumprisse essa determinação.
Mas os irmãos Liang tinham consigo o salvo-conduto passado pelo general You, o que para eles era a melhor das garantias.
Este, passadas duas horas de marcha, despertara do seu desmaio. Pouco a pouco a consciência e a memória haviam-lhe voltado e realizava tudo o que sucedera.
Os desesperados esforços que fez para se desenvencilhar das cordas que o amarravam e da mordaça que o impedia de gritar foram totalmente baldados. Paulin trabalhara
conscienciosamente!
O cortejo prosseguiu pois a caminho das linhas nipónicas sem qualquer acidente. Foi apenas ante o gesto do tenente japonês que Maou-Han compreendeu que alguma coisa
de extraordinário se passava.
Rapidamente, bonzos, carpideiras, músicos e assistentes foram agrupados para lá das segundas linhas. O catafalco foi deposto ao centro e, a uma ordem do tenente,
Maou-Han e os quatro irmãos Liang foram chamados à presença do general comandante-em-chefe nipónico.
Quando em frente de Magamoyo, o Liang mais velho inclinou-se e declarou:
- Eu e meus irmãos vimos respeitosamente pedir a Vossa Excelência a permissão de levarmos o nosso defunto pai até à sua última morada, dever esse que nos foi retardado
pelo general You, em poder de quem caímos. Pelo resgate dos restos mortais de meu venerando pai tivemos que entregar um milhão de dólares.
Magamoyo declarou-lhe então o seu profundo respeito pelos mortos. Não obstante, só poderia conceder-lhes licença para atravessarem as suas linhas quando tivesse
aberto o caixão e verificado ser na verdade o corpo de Liang-Hi que eles transportavam.
Ouvindo tais palavras, o pasmo dos assistentes não se descreve.
Maou-Han protestava que era impossível e de todo inverosímil admitir que não fossem os restos mortais de Liang-Hi que viajavam no caixão, porquanto ele próprio o
amortalhara e colocara ali. Quanto aos Liang, a sua indignação não se descreve.
- Repito-vos que tenho boas razões para supor que não é o corpo de Liang-Hi que vós conduzis. E por isso exijo que o caixão seja aberto na minha presença.
A atitude do general não admitia réplica. com grande pesar, o mestre-de-cerimónias e os irmãos Liang tiveram que se resignar. Ia-se perpetrar um horroroso sacrilégio
e certamente, até ao último suspiro, o espírito do defunto não deixaria de os atormentar.
Bonzos, carpideiras e músicos mantinham-se em grupo compacto, junto do esquife. Quando o general apareceu, seguido de Maou-Han, dos irmãos Liang e dos dois franceses,
e eles perceberam do que se tratava, ergueu-se um coro de lamentações e protestos que os soldados japoneses a custo fizeram cessar.
- Retirem o pano e descubram a urna - ordenou Maou-Han, erguendo o seu imprescindível bastão.
Em menos de cinco minutos o cofre fúnebre ficou à vista, erguido sobre cavaletes.
Impressionante silêncio reinava agora naquele grupo há pouco tão barulhento. Centenas de olhos convergiam para o caixão, na ânsia de ver o que se ia passar.
Mal se retirou o pano bordado de dragões, ouviram-se algumas exclamações de surpresa. Maou-Han e os que estavam mais próximos verificaram que a urna fora forçada,
pois faltavam alguns parafusos. Além disso, vários furos estavam abertos nos lados do caixão.
- Retirem a tampa! - ordenou com voz forte o general.
Novo estremecimento entre os assistentes.
Todos temiam a cólera dos espíritos.
Mas já dois portadores, armados de alavancas, forçavam a urna. A tampa tombou e uma forma imprecisa surgiu, meio dissimulada pelos panos fúnebres, forma essa que
ligeiramente se movia.
Ouviu-se um grito de terror e os assistentes deram um passo à retaguarda.
- Não é o corpo do meu ilustre pai!
Fora o mais velho dos Liang quem soltara tal exclamação.
De facto, o corpo que surgia no caixão, ligado, amordaçado, com o olhar esbugalhado pelo terror, era um corpo vivo que logo todos reconheceram:
O respeitável general You!
Puderam então verificar que Danielle e Paulin não haviam mentido nas suas declarações. Era bem o bandido amarelo que ali jazia!
Estonteado, o mestre-de-cerimónias pronunciava palavras sem nexo, enquanto os irmãos Liang pareciam mudos de desgosto e estupefacção.
Quanto aos dois franceses, esses estavam triunfantes! Danielle, disfarçadamente, lançou ao coronel Yaramata um olhar malicioso que queria dizer muita coisa!
- Vamos, tomem conta desse miserável!-ordenou o general Magamoyo.
Quatro soldados apoderaram-se do bandido e tiraram-no do caixão.
A presença de toda aquela gente e sobretudo do general japonês e da jornalista revelaram a You qual a sorte que o esperava. O rosto contraiu-se-lhe de raiva impotente.
- Guardem-me esse bandido bem guardado enquanto não segue para o quartel-general! - declarou Magamoyo.
Uma escolta seguiu com o prisioneiro, que não soltara sequer uma palavra.
Então o general explicou aos irmãos Liang que, segundo informes dignos de todo o crédito, o corpo de seu venerável pai devia encontrar-se ainda na sua casa de Miukiang,
donde certamente a inundação impedira que fosse retirado.
- Darei as precisas ordens para que vos conduzam até essa cidade - declarou o general. E, sem lhes explicar qual o papel desempenhado pelos dois jornalistas, continuou:
- Permitam que os felicite por terem escapado das
garras de You e ter-se terminado esta triste mistificação, facto esse de que sois devedores aos dois estrangeiros aqui presentes - disse ele apontando Danielle e
Paulin.
Então, os dois jornalistas pediram licença para acompanhar o corpo expedicionário que se ia formar para a acção de limpeza que o general decidira, contra o bando
agora comandado por Feng.
Antes de partir, Danielle quis entrevistar e fotografar You. Desta vez era apenas um prisioneiro que ela tinha na sua frente.
Já ao corrente, por revelações de vários trânsfugas chineses, do procedimento de Feng, You, sequioso de vingança, revelou à jornalista o local onde escondera o seu
tesouro.
- Ao menos aquele infame não gozará o dinheiro que recebi dos irmãos Liang- declarou ele. - Você vence-me, mas foi em guerra leal, ao passo que Feng, que tudo me
deve, não passa dum cobarde e dum traidor! Procure no chão, debaixo da minha cama de campanha. Lá encontrará um pequeno cofre onde guardava o dinheiro. É para si!
Quanto a mim, sei a sorte que me espera. Mas pouco importa, pois já vivi a vida suficientemente e deixo-a agora sem pena!
E foi assim que o general You, chefe terrível de bandidos amarelos, se despediu para sempre dos dois jornalistas.
A operação projectada pelo general Magamoyo foi coroada de absoluto êxito.
Mal comandados, os bandidos foram cercados pelas forças japoneses à entrada dum desfiladeiro e completamente dizimados pelas metralhadoras. Foi um autêntico massacre.
De futuro, a "Terra de Ninguém" estava limpa de piratas e bandidos assassinos.
Mal o combate terminara, Danielle e Paulin dirigiram-se para o local onde existira o antigo acampamento de You. Depois de várias pesquisas acabaram por encontrar
o ponto onde estivera armada a grande barraca do bandido amarelo.
Na precipitação da fuga, Feng nem sequer pensara em retirar os montantes, bem como outras bagagens mais pesadas.
Paulin em breve descobria o célebre cofre do general You!
No seu interior, não somente encontraram o milhão extorquido aos irmãos Liang, como muitos outros valores roubados em bancos que haviam pilhado desde o começo daquela
malfadada guerra.
A jornalista apressou-se a fazer entrega do seu achado ao general japonês, com o qual prosseguia durante alguns dias naquela campanha de limpeza e com o qual regressou,
acompanhada de Paulin, à cidade de Miukiang.
Desta vez, aquela cidade onde haviam começado tão estranha aventura estava já policiada e disciplinada pelas forças nipónicas. Não lhes foi preciso, por isso, fugirem
pelos telhados nem esconderem-se nas casas abandonadas.
A jovem parecia mesmo um nadinha mais calma e distraída pelo seu desejo de aventuras. Muitas vezes foi vista na companhia de Paulin, passeando por pontos onde certamente
não andava à procura de reportagens sensacionais!
Bastava-lhe, talvez, o êxito clamoroso daquelas que enviara a Le Monde: milhões de leitores se apaixonaram pelas proezas da Princesa da Terra de Ninguém", e
igual êxito obtiveram as fotografias que Paulin fornecera à Actualité.
Também para cúmulo da sorte, o emissário enviado com a mensagem de You para Le Monde fora aprisionado pelas tropas japonesas de ocupação e não chegara portanto a
ser enviado o humilhante telegrama que pedia o seu resgate.
Uma tarde estavam os dois jornalistas entretidos a ler um cartaz em que se anunciava a próxima execução do famigerado bandido e famoso general You quando o coronel
Yaramata se aproximou deles e lhes disse:
- O general Magamoyo pede-lhes que me sigam ao palácio do governador da Província!
Uma vez ali, foram recebidos com toda a cordialidade.
- Estou encarregado de lhes anunciar uma boa-nova - começou o general, apontando-lhes um monte de notas que se achava em cima da sua secretária. Este dinheiro representa
o prémio concedido àqueles que aprisionassem You; são cem mil dólares que com toda a justiça lhes competem!
- Cem mil dólares! - exclamou a jovem, divertida.
- É exactamente o dobro do que eu valia quando o estimável bandido me tinha aprisionada!
- Mas não é tudo -prosseguiu o general. - Está aqui este envelope que contém igualmente cem mil dólares que os irmãos Liang lhes oferecem como testemunho do seu
reconhecimento pelo milhão que, devido à vossa interferência, conseguiram recuperar. Tanto mais que o corpo do venerável Liang-Hi foi finalmente encontrado e repousa
agora no seu túmulo de família.
- Perdão, general, mas creio que esta segunda importância compete apenas a Paulin, que foi quem primeiro
se utilizou do caixão. E, sem o seu auxílio, que teria eu podido fazer?
- Para que havemos de discutir agora isso, Dany!
- interrompeu o repórter. - Não é certo que decidimos pôr tudo em comum e isso o mais brevemente possível? Uma parte para cada um, está bem, visto que decidimos
juntar tudo!
E voltando-se para Magamoyo:
- General, tenho a honra de lhe anunciar o nosso próximo casamento!
As pupilas do nipónico brilharam por detrás das lunetas.
- E nunca houve, decerto, um par tão bem equilibrado. Já provaram que, unidos, podem fazer grandes coisas. Resta-me apenas felicitá-los e desejar-lhes as maiores
felicidades. E voltando-se para Danielle:-Veio alguém procurá-la, não há muito tempo, alguém que prometeu voltar breve, quando lhe disse que estava à sua espera!
A jovem parecia admirada, quando uma silhueta escura apareceu entre portas.
- O padre Eudes! - exclamou Danielle correndo ao encontro do lazarista.
- Sou eu, na verdade, minha filha. Durante muitos dias supus não me ser dado voltar a vê-la. Mas Deus quis poupar-me tal desgosto e eis-vos sã e salva, depois de
tão extraordinárias aventuras.
- É verdade, padre. Graças ao auxílio do meu colega Paulin, aqui presente, conseguimos aprisionar o general You! Mas agora dê-me notícias da minha protegida, a chinesinha
que entreguei na Missão de Fah-Tinh.
- Está muitíssimo bem, minha filha. Criamo-la juntamente com os seus pequenos companheiros de
infortúnio. Faremos dela, uma cristã e oxalá o futuro lhe reserve, a ela e a toda a China, dias melhores e mais
tranquilos.
- Oiça, Paulin - disse Danielle voltando-se para o seu colega. - Visto que é uma parte para cada um de todo este dinheiro, dá-me licença que disponha daquela que
me pertence e a ofereça à Missão, para subsidiar a educação da minha protegida?
A resposta não se fez esperar. com um gesto espontâneo, Paulin entregou cem mil dólares ao padre Eudes, que erguia as mãos ao céu, desconcertado por tanta prodigalidade.
- Santo Deus! É demais! É muito mais do que
devo aceitar!
- Nunca é demais o dinheiro quando é tão bem
utilizado - insistiu Paulin Quartier.
- Não sei como lhes possa agradecer - murmurava o bom do padre, comovido.
- Ora essa, meu padre! Tem na sua mão o demonstrar-nos o seu reconhecimento dando-nos uma felicidade maior e mais duradoira do que esse prazer que agora está sentindo!
- Uma felicidade maior! Mas é impossível! balbuciava o lazarista, emocionado.
A Princesa da Terra de Ninguém" sorriu mais uma vez, enquanto o general assistia feliz àquela discussão. Estendeu o braço e apontando Paulin Quartier, que aguardava
intrigado o desfecho da cena, declarou:
- É preciso casar-nos, padre! Simplesmente casar-nos. o mais brevemente possível!

 

 

                                                                  Albert Bonneau

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades