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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PROFECIA DE MIDRIA / Denise Flaibam
A PROFECIA DE MIDRIA / Denise Flaibam

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Onde tudo começou...
O Sol surgia preguiçosamente por trás dos picos rochosos que se expandiam em alturas titânicas, escondendo o palácio dos visitantes inoportunos. Eles, geralmente viajantes, buscavam entradas clandestinas pelo mar. As gigantescas montanhas encaixavam-se perfeitamente no terreno árido, contrastando com a paisagem inóspita ao seu redor. O castelo havia sido construído sobre um dos picos menores.
Todos naquele Reino, e igualmente em todo o continente, conheciam a história daquela magnífica estrutura, mas não deixavam de admirar cada vez que a viam, em especial por se tratar de uma construção feita com tanto zelo. A precisão em cada pilastra, em cada detalhe dos intrincados desenhos que enfeitavam as tapeçarias, tudo havia sido minuciosamente trabalhado em favor da perfeição.
Uma figura solitária encontrava-se parada no jardim. As plantas e flores que enfeitavam o pátio eram exuberantes, e a criatura que as observava desejou nunca mais sair dali. Tinha, porém, uma importante missão a cumprir, e o dever sempre vinha em primeiro lugar.
Seus olhos expressivos concentravam-se nas cores ricas que pintavam o céu em torno do astro rei. Era uma honra para ela observar tão exótico fenômeno da natureza, pois, de onde vinha, o Reino onde as águas tudo dominavam, não havia oportunidade de apreciá-lo. O oceano era infinito e sempre escuro, sem a riqueza de cores da vida terrestre.
Um suspiro fraco escapou por seus lábios. Seu coração ansiava por jamais retornar ao caos que se mostrava sua vida longe daqueles muros. O curioso era que seres da sua raça deveriam detestar uma região como aquela. Sua reação era contrária.
Abismava-se ao pensar que, a cada dia que se passava, mais se sentia inclinada a desacatar as ordens que lhe haviam sido dadas.
Toda vez que tais pensamentos apareciam, um insistente palpitar em sua mente a fazia se lembrar de seu dever. Aquilo que mais importava em toda a sua existência! Dar-se ao luxo de realizar seus próprios desejos não fazia parte da vida de alguém como ela. Tinha de fazer o que lhe fora ordenado. O destino daquele mundo dependia dela... E de mais três companheiros.
Ela passara dias observando o horário em que os guardas trocavam a ronda, e descobrira que o melhor momento era ao amanhecer. Agora, aproveitando a distração da maioria deles, caminhou pelos corredores do palácio. Conhecia-os bem desde sua última estadia naquele exótico Reino. Na verdade, bem até demais.
Ah, se alguém suspeitasse o quanto tinha se envolvido com aquele lugar... Se alguém de sua família imaginasse as histórias que ela guardava em seu âmago, sabia que sofreria eternamente. Ela conhecia as consequências e, por isso, desejava partir. Um choque na confiança era a única maneira de quebrar os vínculos deixados ali.
Com uma corrida ágil, logo as escadarias de mármore branco surgiram ao alcance de seus olhos. Ao parar para examinar o local, não pôde deixar de pensar que aquele era um importante caminho. Ter realizado aquela viagem dava início à contagem regressiva.
E, surpreendentemente, ao descer as escadarias, seus passos mostraram-se precisos. Havia entendido que não podia voltar atrás. Todo o plano estava correndo bem e, com sorte, fugiria dali sem que ninguém a atrapalhasse. Principalmente sem que ele aparecesse.
Após um longo lance de degraus, encontrou-se no nível um. Havia decorado facilmente o lugar onde estaria o alvo de sua missão, portanto, continuou descendo e só parou no final, no nível cinco. Ali, as celas escondiam criaturas temidas, capturadas em sangrentos combates, e também aquele que tanto procurava. Ao andar pelo corredor, tentou ignorar a aura negra que emanava de cada minúsculo espaço compreendido entre as paredes de pedra bruta.
A maldade corroía as grades de prata – metal utilizado apenas para guardar os monstros mais mortíferos – e também o ar ao seu redor, que estava muito mais denso. Era como se uma força poderosa estivesse se erguendo vagarosamente. No fundo, sabia que tal suposição era verdadeira.
Quando um dos monstros a viu, começou a uivar e urrar, seus berros guturais ecoando pelas frias paredes daquele calabouço, o que fez com que os outros despertassem. Logo o caos estava instalado.
Correu cela por cela até o fim do corredor, e na última delas encontrou aquele que deveria ser resgatado. Sem as chaves, o processo para libertá-lo foi mais demorado. Ele parecia relutante em fugir. Não conhecia a criatura que o estava salvando. Como confiaria nela? Porém, ao ouvir um simples nome ecoando da boca de sua salvadora, percebeu que estavam do mesmo lado naquela luta. Deveriam apenas fugir para que a missão fosse cumprida. Ao menos parte dela.
O problema maior se deu quando eles terminaram de subir as escadas, com os ecos monstruosos acompanhando-os passo a passo. Parados na única saída daquele calabouço estavam soldados armados com flechas, as pontas prateadas reluzindo ao brilho das tochas. No meio deles, havia também aquele que não deveria estar ali. A traidora não queria encontrá-lo naquela situação. E, em seu olhar, ela pôde ver a mais pura incredulidade.
Havia confiado tanto nela para receber uma punhalada nas costas como aquela... Mas não havia tempo para explicações. A missão era mais importante.
– Deixe-nos passar – ela solicitou com firmeza.
– Primeiro deverão passar por nós.
– Temos uma missão a cumprir – retrucou o resgatado, incrivelmente impaciente. O homem que os bloqueava encarou-o com asco.

– Por quê? – A pergunta se dirigia à traidora, que sentiu seu coração comprimir-se em tristeza. O olhar do homem que confiara nela, o homem que lhe entregara o coração, era de puro pesar.
– Porque foi necessário. – Ela desembainhou uma espada, lançando em seguida um punhal longo para o ex-detento.
O combate teve início. E a conclusão dele decidiria parte do futuro de Warthia.

 


 


Capítulo 1

Estranhos Visitantes

O Sol brilhava alto no céu, exibindo-se repleto de esplendor. Não havia nuvens nem a possibilidade de tempestades, para a sorte dos lavradores da região. A época era próspera para a colheita e qualquer indício de chuva atrapalharia tudo. Imaginavam que o governante do Reino ficaria bem satisfeito com o resultado das plantações daquele ano.

Considerando-se que, meses atrás, tudo havia sido destruído com a passagem de furiosos ventos, a sorte estava ao lado deles naquela primavera. E que melhor época para se ter muito dinheiro? Principalmente para um dos lavradores; na verdade, o mais célebre lavrador da região. A Vila do Sol era conhecida por hospedar sua grande fazenda de grãos, os quais eram vendidos para todas as vilas próximas, até mesmo para a Cidade da Muralha, aquela que abrigava o gigantesco palácio real. Era uma honra para qualquer fazendeiro, porém, naquela cidadezinha, apenas Alanor Delay era detentor de tal privilégio.

A família Delay tinha lá seu status. Alanor, o patriarca, descendia de um dos lordes do Conselho de Tytos, o mesmo do Rei soberano de Warthia, o Grande Demetrius, cuja sede se encontrava no Reino das Florestas. Um pouco distante do Reino em que o próprio Alanor morava, de fato, mas a distância não excluía a nobreza de seu sangue.

Alanor era casado com uma doce e simpática cidadã chamada Mégara. Ela havia nascido na Cidade da Muralha, mas se mudara para a Vila do Sol quando se unira a ele. Curiosamente, não se tratara de um matrimônio arranjado. Geralmente as jovens, até, no máximo, dezoito anos, eram prometidas para rapazes de boa índole com quem deveriam se casar. Os pais procuravam por bons partidos, mas a pobreza nas famílias daquele Reino era sempre predominante. Mégara conseguira apaixonar-se e casar-se com o próspero fazendeiro, obtendo um futuro com algumas regalias, além de ser dona do coração do cultivador de grãos.

Os dois casaram-se ainda jovens, mas não conseguiram o herdeiro tão desejado. Perguntavam-se por que os Deuses estavam sendo tão maldosos. O que havia de errado em dar-lhes a alegria do nascimento de um filho?

Certa noite, porém, os Deuses pareceram ouvir suas preces. Uma pequena cesta foi deixada na entrada de sua casa. Leves batidas na porta chamaram a atenção de Mégara, que trabalhava na cozinha desde o crepúsculo. Assim que a abriu, encontrou um bebê.

Não havia ninguém, exceto a criança. Quem a abandonara havia fugido sem deixar qualquer vestígio. A pequenina não tinha mais do que alguns meses de vida e, sozinha, comoveu o coração dos Delay. A partir daquele dia, eles passaram a ter uma herdeira.

Uma filha que chamaram de Serafine.

Uma filha que veio para alegrar seu mundo como nenhuma outra criatura pôde.


***


Era uma época especial aquela do início da colheita, pois faltava apenas um dia para o aniversário de Serafine.

Dezoito anos, uma idade que muitos considerariam avançada. Ela ainda estava solteira e morava com os pais, afinal. Contudo, Alanor não desejava interferir na vida da jovem, dizendo que Serafine poderia encontrar o marido que desejasse. Era uma garota incrivelmente bela e madura, capaz de arranjar um bom partido quando considerasse o momento certo.

Naquela tarde, como sempre, Mégara estava na Vila, que ficava meia hora distante da grande fazenda. Era dona de uma estalagem, a única da cidadezinha.

Serafine, por sua vez, dividia-se entre ajudar o pai com a colheita e a mãe com os hóspedes. Era uma jovem ativa e muito animada, que fazia de tudo para tornar o trabalho dos pais menos pesado.

Podia-se dizer que Serafine era uma garota diferente de tudo o que aquele Reino já vira. A começar por sua personalidade, que era curiosamente excêntrica para os padrões esperados: em vez de delicadeza e dedicação a se tornar a perfeita futura dona de casa, Serafine tinha o espírito de uma guerreira. Quando pequena, havia pedido ao pai que a deixasse ingressar no exército real. O pedido foi recusado, mas Alanor achou graça na atitude da menina.

Além disso, tinha qualidades que a tornavam ainda mais inesperada, como o fato de sua teimosia ultrapassar a de qualquer outra jovem na Vila. Comumente metia-se em brigas contra outras garotas, fato que sempre trazia dor de cabeça aos pais. Ela nunca voltava atrás no que dizia.

Era complicado fazê-la acatar ordens de pessoas que não fossem Alanor e Mégara, e se mostrava muito questionadora com tudo o que lhe despertasse o interesse. Devido a esse temperamento forte, ela não frequentou a única escola da região. Era uma espécie de internato, comum na maioria dos Reinos, mas ficava muito longe do vilarejo.

Os Delay consideravam perda de tempo ter de viajar para ouvir reclamações sobre o comportamento inadequado da filha, ainda mais porque viam suas atitudes como aceitáveis na maioria dos casos. Serafine, então, foi educada em casa; sua mãe era uma ótima professora, e tratava de passar todos os seus conhecimentos para a garota. Além disso, Mégara também fazia com que a filha lesse livros de mitologia e de literatura fantástica, como uma maneira de fazê-la se sentir incluída no mundo mágico.

Outra peculiaridade na jovem era sua aparência, algo desconhecido por todos, exceto seus pais. Eles notaram a estranha característica no dia em que a bebê foi deixada em sua porta, e tentavam esconder dos outros desde então. Sabiam o que aguardava Serafine caso a população da Vila descobrisse a verdade.

Serafine era uma jovem magnificamente bela. Alta, com um corpo delineado por sinuosas curvas e feições delicadas. Sua pele morena possivelmente ditava uma ascendência cigana, ou quem sabe de andarilhos do Oeste. O padrão da região Leste eram as peles pálidas. Peles escuras vinham de lugares como o Norte ou o Oeste.

As madeixas, cujo tom podia ser comparado ao ébano das noites sem Lua, caíam por suas costas como longas cascatas, as mechas brilhantes formando pequenos cachos nas pontas.

A face exibia lábios volumosos e naturalmente avermelhados. O sorriso de dentes brancos, quando sincero, formava covinhas em suas bochechas. Era um sorriso raro, até porque Serafine geralmente apresentava-se mais questionadora do que sorridente.

Os olhos oblíquos tinham incomparáveis íris cor de âmbar, e os cílios escuros chegavam a tocar as maçãs de seu rosto quando as pálpebras se fechavam.

O contraste que aquela aparência proporcionava às suas ações era um fato notável. Serafine conseguia ser tão bela quanto assustadora e misteriosa. E os mistérios que cercavam a garota iam além do seu olhar.

No entanto, por trás de toda essa beleza, existia algo diferente, algo que seus pais desejavam esconder de todos: a pele de Serafine era coberta por desenhos. Intrincados espirais formavam símbolos estranhos, elaborados arabescos arrastavam folhas ou flores pela tez, embrenhando-se nas marcas desconhecidas. Em uma coloração perolada, começavam nos pés, enrolando-se em suas pernas e quadril, subindo pelas costas e abdome, prosseguindo pelo busto e pescoço, contornando os ombros para descer pelas mãos. Os desenhos em seu rosto eram menores que os do corpo, mas não deixavam de ser notáveis. As marcas acabavam em sua testa, circundando o rosto pelas têmporas e laterais do queixo.

Serafine não era humana, e tal descoberta chocaria as pessoas da Vila. Havia ali um forte preconceito em relação a criaturas fantásticas.

Warthia, afinal de contas, não era um continente habitado apenas por seres humanos. Todos conheciam as histórias da Grande Batalha, sobre como os seres místicos haviam lutado por aquele lugar, sobre como a Luz derrotara as Trevas. Os Quatro Reinos tinham como governantes os Magos, grandes conhecedores da magia. Ali, porém, tratava-se de uma situação diferente. Os seres mágicos estavam longe e não interferiam na normalidade em que a população adorava viver.

Descobrir que uma garota tinha o corpo coberto por desenhos místicos causaria repulsa nos moradores da Vila.

Quando os Delay descobriram os arabescos, seus corações já haviam sido arrebatados pelo doce olhar do bebê. Quem poderia saber dos planos criados pelos Deuses para ela, afinal de contas?

Mégara, como ótima pesquisadora, procurou em diversos livros qual a melhor e mais eficiente maquiagem a ser usada. A nobreza, como a população bem sabia, gastava rios de dinheiro para encher seus quartos com esse tipo de produto. Com o tempo, Mégara conseguiu finalizar um creme que encobria o rosto marcado pelos misteriosos desenhos espiralados. Os vestidos que costurava para a garota ocultavam o corpo, e Serafine usava lenços enrolados no pescoço, braços e mãos. A fantasia que escondida seu verdadeiro eu era trabalhosa, mas se mostrava a única maneira de evitar que a menina passasse por situações constrangedoras.

Eles sabiam que ela era especial. Talvez fosse um sinal dos Deuses, depois de tanto rogarem por um filho. Agora eles tinham um tesouro.


***


– Tem certeza de que está tudo sob controle, papai? – A voz altiva de Serafine chamou a atenção de Alanor.

Ele ergueu seu rosto suado e marcado pelo Sol, assentindo com um aceno. Os empregados o ajudavam na colheita: as três carroças enchiam-se de latões com grãos em perfeitas condições, que seriam levados até o Vale das Rochas, para de lá seguirem pelo largo rio Cristal, conhecido por ser o caminho mais curto até a Cidade da Muralha, onde ficava a sede do governo do Leste. Era naquela cidade que os melhores alimentos eram vendidos. Lá vivia o mais exigente Rei dentre os quatro que governavam Warthia.

Como não era necessária ali, Serafine pediu ao pai permissão para ir até a cidadezinha, a fim de ajudar a mãe com a estalagem.

Alanor sabia que levaria uma bronca da mulher por ter deixado a filha espiar os preparativos da festa de aniversário, mas Serafine já havia descoberto o segredo há tempos. Ela era uma boa investigadora, assim como Mégara.

A festa seria realizada no próximo dia. A data de nascimento da garota havia sido decidida pelos pais como a mesma data em que a encontraram. Foi o dia em que ela nasceu para eles.

Como completar dezoito anos era muito importante, todos estavam ajudando nos preparativos. A grande festa seria realizada na Vila, onde arrumariam a praça para abrigar os convidados; mais precisamente, os duzentos habitantes da cidadezinha.

– Vá, mas diga a sua mãe que você fugiu. Sabe que ela brigará comigo se descobrir que a deixei ir! – Alanor gritou, fazendo a filha rir.

Serafine estava livre, enfim!

Não que reclamasse por ter de ajudar o pai. A jovem tinha uma curiosa resistência natural ao Sol. A pele raramente se queimava e ela não sentia calor como os outros. Seu pai dizia, apenas para irritá-la, que era uma filha do deserto.

Às vezes se perguntava se não era de fato verdade. Ao contrário das pessoas da Vila, Serafine sabia que fora adotada. Passava-se por filha dos Delay por causa da pele negra de Alanor, que descendia de uma família do Norte, e também por ter um sorriso parecido com o de Mégara.

No entanto, ao contrário do que os outros esperariam se soubessem do fato, Serafine não desejava procurar seus pais verdadeiros. Não desejava nem ao menos pensar que existiam.

Eles a haviam abandonado, afinal de contas. Qualquer que fosse o motivo, não achava ser digno o suficiente para que saísse em uma busca desesperada por desconhecidos. Tinha pais que a amavam de verdade e não acreditava que fosse necessário conhecer o seu passado – também pelo certo medo que sentia. Se o descobrisse, com certeza entenderia o porquê das estranhas marcas em seu corpo. E Serafine temia entender por que era diferente dos outros. Crescer naquela Vila havia lhe ensinado uma coisa: os humanos podiam ser cruéis.

Ela se lembrava da única vez em que vira uma criatura não humana; mais precisamente, um centauro. Havia lido histórias sobre a raça e reconheceu-o de imediato. Metade humano e metade equino, ele trajava uma armadura de batalha no tórax forte e trazia flechas guardadas na aljava em suas costas. O rosto estava castigado pelo Sol e coberto de poeira. Possuía acolhedores olhos azuis e um sorriso amigável. Buscou por abrigo, mas não encontrou. Mégara foi a única a lhe ceder mantimentos, e sua atitude bondosa foi vista com maus olhos pelos cidadãos frios daquela cidadezinha. O centauro, ao contrário do que todos imaginavam, foi gentil e agradeceu o gesto de Mégara, e até cumprimentou Serafine, sempre sorrindo atenciosamente para ela. Deu um presente bastante simples em retribuição ao favor de Mégara, mas precioso aos olhos da garotinha: um pingente, feito de uma pedra esverdeada, polida e brilhante, com um símbolo estranho entalhado nela.

Serafine ficou encantada com a pedra e, desde então, passou a usá-la em um colar. Ao contrário do resto do vilarejo, ela não sentiu medo. Quando o centauro partiu, pouco tempo depois de chegar, foi acompanhado por olhares de repulsa. Nenhuma outra criatura mágica apareceu por ali depois disso.

Para a garota, qualquer outro não humano já conhecia o tratamento que receberia em Vila do Sol. Por isso, ela estava satisfeita com a incerteza de ser uma criatura comum.

Quanto à pedra presenteada pelo centauro, jamais a havia retirado de seu pescoço. Carregava-a consigo o tempo todo, como um amuleto da sorte.


***


O corcel estava à sua espera para a viagem até a Vila quando Serafine chegou aos estábulos. Montou nele sem sela, já acostumada com aquele tipo de viagem. Grão foi um apelido dado ao animal por Alanor, mas acabou virando o nome real do cavalo.

– Volte antes do anoitecer para me ajudar com o jantar! – Alanor acenou de longe. Serafine respondeu com outro aceno. Grão saiu em disparada pela estrada, deixando um rastro de poeira atrás de si.

Enquanto cavalgava, sentindo o vento bagunçar seus cabelos, Serafine sorriu. Para ela, a sensação de liberdade era a maior dádiva divina. Estar em uma estrada isolada do mundo era maravilhosamente relaxante. Era nesses momentos que não se sentia uma aberração. Pelo menos não se deixava sentir, já que tinha uma reação bem forte quando as pessoas a achavam esquisita... Mas ao menos ficava aliviada por saber que eles reagiam às suas atitudes, e não à sua aparência.

Olhou para baixo, só para conferir a peça que havia sido selecionada naquele dia. O vestido tinha diferentes tons de azul. No lugar de mangas, lenços num tom mais escuro encobriam seus braços e mãos. As botas pretas escondiam os pés e uma faixa enrolada em seu pescoço finalizava a vestimenta inadequada, porém salvadora, de Serafine. Todos na Vila diziam que Alanor e Mégara eram superprotetores, escondendo a beleza da filha, mas Serafine não se importava. Já havia se acostumado com os comentários.

Longos minutos após o início da cavalgada se passaram, até que avistou a cidadezinha. A Vila do Sol tinha esse nome graças aos antigos. Diziam que o Sol sempre aparecia primeiro para os habitantes daquele lugar. Portanto, a construção das casas e comércios da pequena região fora feita em forma circular, homenageando o astro luminoso.

Bem no centro estava a grande praça, repleta de flores. As poucas árvores que ali cresciam eram pequenas frutíferas. As construções aparentavam simplicidade. As cores de suas pinturas variavam, deixando o ambiente bastante alegre. As telhas eram avermelhadas graças ao barro em que haviam sido moldadas, uma terra vermelha só encontrada no Reino das Montanhas. Ruas de terra circundavam a praça e seguiam lateralmente para os becos.

A estalagem de Mégara, muito conhecida pelos viajantes, ficava no centro. Era uma construção de dois andares, com as paredes externas pintadas de azul claro. Possuía seis quartos aconchegantes e um pequeno restaurante, onde Mégara servia sua deliciosa comida.

Serafine trabalhava atendendo os hóspedes, situação que desafiava sua paciência, já que os visitantes ou eram resmungões ou ingratos demais. Vez ou outra, no entanto, andarilhos de muito longe buscavam repouso ali, trazendo consigo histórias ricas sobre suas aventuras nos outros Reinos.

Um grande sonho da jovem era viajar pelos quatro cantos do continente. Certa vez, um homem lhe contara sobre os elfos que viviam escondidos no Reino das Florestas. O Castelo deles jamais havia sido encontrado, mas havia rumores de sua existência, graças à aparição de seus moradores em algumas épocas do ano. E dali a imaginação da garota voou longe, recheada de imagens sobre como deveriam ser os elfos e o lugar onde moravam. Seus pais, logicamente, reprimiam suas ideias de viajar. Ela não os desobedeceria, mas a vontade de sair explorando Warthia era muito grande, quase incontrolável.

Parou seu cavalo em frente à estalagem, notando dois outros também parados ali. Eram corcéis incrivelmente belos e bem cuidados, imponentes em suas pelagens escuras.

Quando se aproximou deles, um pareceu encará-la. De maneira diferente da comum aos animais, ele estava muito mais atento do que deveria. Parecia quase curioso.

Serafine franziu o cenho enquanto amarrava Grão, mas o cavalo permaneceu onde estava, mantendo seus grandes olhos negros presos aos da jovem. Ele tombou a cabeça de lado ao ver a expressão de choque da garota.

Surpresa e um pouco amedrontada, Serafine apressou-se pela varanda e entrou na estalagem, dando uma última olhadela naquele cavalo esquisito. Logo se encontrava lá dentro, contemplando a simplicidade cheia de aconchego do local.

Quatro mesas quadradas estavam dispostas no canto direito. Três daquelas mesas eram ocupadas pelos hóspedes, ou talvez por viajantes que buscavam alimento. Do lado esquerdo havia um balcão pequeno, sobre o qual ficavam disponíveis um caderno com anotações e o chaveiro com o número dos quartos dos hóspedes. A mãe de Serafine estava ali, terminando de anotar alguma coisa. O cheiro de comida invadiu as narinas da jovem. A cozinha ficava atrás de uma porta ao lado esquerdo da bancada, onde provavelmente as empregadas de sua mãe terminavam de aprontar os pratos.

Bem no final daquele cômodo, que era largo e com teto alto, uma escadaria levava para o segundo andar, onde havia um grande corredor com sete portas. Cada quarto tinha espaço suficiente para dois hóspedes, com camas de solteiro e guarda-roupas. O lavatório ficava atrás da sétima porta, no fim do corredor, e era usado por todos que escolhiam a estalagem.

– Olá, mamãe! – Serafine exclamou sorridente, aproximando-se da bancada em que estava Mégara. A mulher ergueu os olhos para a filha, surpreendendo-se com sua visita. Imaginara que Serafine ficaria o dia todo na fazenda, ajudando o pai, e não viria até ali para investigar sobre os preparativos da festa.

– Olá, querida – cumprimentou-a. Seu olhar demonstrava desconfiança. – Seu pai a deixou vir até a Vila?

– Não, eu fugi.

– Muito bem – Mégara suspirou. – Já que está aqui, pode ficar na bancada uns minutos? Preciso servir os pedidos dos hóspedes.

– Claro – assentiu, afastando-se para que a mãe saísse do cubículo apertado. Ficar ali era mais do que tedioso, então Serafine começou a rabiscar alguns desenhos aleatoriamente.

O barulho do sininho da estalagem soou, chamando sua atenção. Sorriu quando se deparou com sua grande amiga, Mahiry. Ela geralmente vinha visitar Serafine durante os turnos em a morena trabalhava com a mãe, e aquele dia não seria diferente.

– Bom-dia, flor do dia! – cumprimentou com a animação de sempre. Mahiry era dois anos mais nova do que Serafine e, ao contrário dela, já estava prometida para um jovem comerciante da Vila. Ela não se importava, ainda mais quando o partido era o rapaz adorável que cuidava da venda de frutas.

– Como vai? – Serafine animou-se ao ver que não ficaria mais entediada.

– Bem, como sempre. Eu acho. – Mahiry era muito desigual em suas respostas. – Você viu aqueles dois estranhos que chegaram à Vila?

– Como poderia ter visto? – Serafine replicou com bom humor. – Estava trancada na fazenda até agora há pouco.

– Tem razão. – Mahiry riu da própria pergunta. Serafine arqueou uma sobrancelha para a jovem, esperando que ela começasse a falar. – Pois bem, eu estava na praça essa manhã, ajudando a preparar você já sabe o quê. – Fez um bico para Serafine, que riu por sua astúcia. Ter descoberto sobre a festa lhe garantira alguns pontos na dianteira e também a fizera receber uma bela bronca da amiga.

– E como andam os preparativos? – Serafine perguntou, mas recebeu um olhar feio pela interrupção. – Desculpe-me.

– Então... Eu estava lá, solitária, quando ouvi o som de galopes. Curiosa como sou, você sabe, fui até a calçada e avistei dois cavaleiros aproximando-se da estalagem de sua mãe, que estava na praça, cuidando de arrumar algumas bandeirolas e... – Parou de falar, notando o interesse nos olhos grandes de Serafine. A morena suspirou frustrada, pedindo a Mahiry que prosseguisse. – Então eles pararam.

– Os tais estranhos? E você viu os rostos deles?

– Não, e é aí que começa a parte estranha. Os dois vestiam capas grandes e pretas. Um era muito alto e parecia ser forte, provavelmente um homem, e o outro era bem pequeno e magricela, o que indica uma mulher. Ou um anão. – Ela coçou o queixo, claramente indecisa. – Mas, pelo que sei, anões estão extintos aqui em Warthia, então...

– E eles estão por aqui? – Serafine olhou em volta, procurando avistar alguém com o tipo físico descrito pela amiga. Mahiry negou, balançando a cabeça.

– Eles saíram logo depois de se instalarem. Deixaram os cavalos... Então, provavelmente, ainda estão na Vila – concluiu a garota. – Ei, podíamos dar uma olhada por aí, o que acha? Não é lá uma cidade muito grande para perdermos eles de vista... E considerando que são viajantes, devem estar próximos do comércio.

– Considere que eles podem ter parentes para visitar – Serafine replicou, mas a curiosidade explodia dentro dela.

– É, mas, se eles tivessem parentes, ficariam hospedados na casa deles em vez de pagar algumas moedas de ouro para sua mãe – Mahiry retrucou. A conclusão dela podia ser verdadeira, pensou Serafine. Não custava tentar.

– Mamãe! Importa-se se eu for para a venda por uma meia hora? Mahiry precisa da minha ajuda para comprar alguns legumes. Sabe como ela é, sempre escolhe os estragados.

– Pois é, dona Mégara. Sabe como eu sou. – Mahiry pareceu relutante em assentir, lançando um olhar mortal para Serafine e um sorriso amarelo para a mulher mais velha.

– Claro. – Mégara estava desconfiada, mas o fato de ter permitido animou a garota. Serafine passou pela bancada e saiu arrastando Mahiry com rapidez, acenando para a mãe enquanto corria porta afora.

– Viu só esse corcel? – Serafine apontou para o cavalo. – Ele me olhou nos olhos quando cheguei!

– É animador perceber que o animal não é cego – Mahiry replicou. Serafine bufou, sabendo que não conseguiria explicar o que acontecera para a amiga.

Seguiram pela rua da estalagem, olhando atentamente cada comércio pelo qual passavam. A maioria das lojas vendia frutas e legumes, apenas uma comercializava roupas feitas à mão; havia também uma artesã e um sapateiro por ali. A loja de ferramentas estava vazia e o ferreiro aproveitava para martelar qualquer coisa contra uma grande bigorna.

Suspirando, as duas sentaram-se num banco de mármore na praça, frustradas por terem circundado toda a rua principal sem encontrar quem procuravam. Se fossem ruas adentro, poderiam verificar os poucos comércios restantes, mas acabariam demorando muito a voltar e Mégara suspeitaria do passeio delas.

– Desisto – Mahiry disse, alisando seu vestido. Serafine assentiu, irritada. Odiava desistir, ainda mais curiosa como estava, mas procurar por aqueles dois estranhos seria como vasculhar por uma agulha num palheiro.

Mahiry ofegou e a esperança cresceu em Serafine. Ela olhou na direção em que a amiga olhava e depois franziu o cenho. Era apenas o futuro marido de Mahiry, o rapaz bonitinho que vendia frutas.

Ele e Mahiry com certeza formariam um belo par, pensou Serafine. A amiga era baixa e magricela, com um rosto em forma de coração e bochechas rosadas. Tinha olhos expressivos e cabelos castanhos cacheados. Já Henry era alto e tinha um sorriso marcante.

Por um momento, Serafine imaginou-se no lugar da amiga: prestes a casar com um bom partido, feliz pela escolha que os pais haviam feito, com uma vida simples e aparentemente perfeita pela frente. Tudo planejado. Sem emoções ou distrações pelo caminho.

Não, pensou Serafine, não é a vida que eu quero.

Foi com esse devaneio que a garota desviou o olhar do noivo de Mahiry para o lado oposto, bem próximo da estalagem de sua mãe. Surpreendeu-se ao avistar duas figuras misteriosas, usando capas longas e negras. Prendeu a respiração ao notar que tais figuras a encaravam de volta. Apesar da sombra formada em seus rostos, ela conseguiu identificar a silhueta de um homem e uma mulher.

O encontro de olhares durou pouco, até porque eles pareciam apressados. Mas o nervosismo tomou conta de Serafine quando se sentiu observada. Por que a estavam encarando? Estaria sua maquiagem desaparecendo? Suas vestes haviam deixado alguma marca descoberta? Olhou para si mesma, encontrando todas as vestes em seus lugares.

– O que está olhando? – Mahiry encontrou apenas o contorno do último estranho, o homem, entrando na estalagem. – Ah, meus Deuses! Por que não me chamou?

– Porque você estava ocupada babando pelo seu noivo – retrucou Serafine. – Vamos comprar alguns legumes, Mahiry. Precisamos voltar para a estalagem.

– Para que os legumes? – a garota indagou.

– Para minha mãe acreditar que saímos para fazer compras!

Apesar de o clima ter ficado menos tenso, a jovem Delay ainda sentia o coração acelerado pela breve troca de olhares.

Só não tinha ideia do motivo daquele nervosismo. Ao menos, não por enquanto.


Capítulo 2

Tesouro em Vila do Sol

 

 

Mégara acabava de lavar os pratos na cozinha quando Serafine entrou pela porta, surpreendendo-a. Era muito cedo para a garota ter despertado, mas ela parecia mais acordada do que nunca. Naquele dia, o vestido da jovem era cor de pêssego e os lenços em seus braços e pescoço eram marrons.

– Bom dia, querida – Serafine sorriu para a mãe, respondendo ao cumprimento. – Feliz aniversário, minha filha! – Mégara bradou alegremente, abraçando-a desajeitada por conta das mãos molhadas. A jovem retribuiu ao abraço com força, sorrindo enquanto agradecia.

Sentou-se numa das cadeiras e deixou o olhar vagar pelo cômodo familiar. A cozinha da grande casa da fazenda tinha teto alto e paredes pintadas num tom claro de marrom. A mesa de madeira rústica ficava no centro, com seis cadeiras à sua volta. Como todos naquela região, havia um fogão a lenha pronto para ser usado. A pia era feita de pedra e Mégara trazia água do poço para lavar as louças sujas. A única janela no cômodo dava visão para a extensa plantação ao lado da fazenda. O cultivo estendia-se ao longe, encobrindo quilômetros com grãos. Alanor provavelmente terminaria a colheita até o fim da semana, bem a tempo de viajar para o Vale das Rochas e vender todo o estoque.

– Mamãe, conhece aqueles dois viajantes estranhos que chegaram ontem na estalagem? – Serafine parou ao lado de Mégara, encarando-a com curiosidade. A mulher era muito menor do que a filha, mas seu olhar era austero e sério quando encarou a jovem.

– Sabe que não posso ficar falando dos hóspedes, querida. – Serafine rolou os olhos para a mulher. – Mas, mesmo que pudesse falar, não os conheço. Nem tenho informações suficientes sobre eles.

A jovem suspirou, mas sua curiosidade persistia. No dia anterior, ao retornar para a estalagem com Mahiry, não encontrou sinal dos estranhos. Eles haviam subido para o quarto e permanecido lá. Quando sua mãe terminou o turno e deixou o controle da estalagem com sua empregada mais velha, Serafine teve de ir embora com ela. Durante a noite, porém, determinou-se a perguntar para a mãe sobre aqueles dois inquietantes indivíduos.

E, agora, a decepção...

– Poderia me ajudar hoje lá na estalagem, querida? Seu pai vai dormir um pouco mais, pois precisa continuar a colheita até o fim da tarde. – Serafine assentiu prontamente.

Uma hora depois, estava cavalgando sem pressa até a Vila do Sol. Odiava ter que andar lentamente, mas Mégara não permitia que a jovem corresse pelo caminho. A viagem foi cheia de tédio e silêncio.

A Vila estava mais quieta do que na tarde anterior. Os habitantes dali costumavam abrir o comércio e circular pela rua lá pelas nove horas da manhã, e mal passava das oito. Serafine perguntou-se o porquê de ter acordado tão cedo, afinal. Nem dormira direito, tamanha a curiosidade sobre os dois estranhos.

Jamais havia ficado interessada em um assunto a ponto de passar o dia pensando nele. Porém, nada naquela pacata e comum Vila era tão interessante quanto o centauro que passara por ali, e isso havia acontecido há oito anos! Era normal que ficasse curiosa.

Depois que entraram na estalagem, Serafine seguiu para o seu posto na bancada de hospedagem. Sua mãe aproveitou o silêncio do recinto para retirar as cadeiras colocadas de ponta-cabeça sobre as mesas e também arrumar as toalhas. Seguiu até a cozinha, onde começaria a preparar o café da manhã para os hóspedes. Serafine iria se aproveitar disso, obviamente. Ter uma mãe que cozinhava bem como Mégara não era uma oportunidade a ser desperdiçada. Serafine adorava a comida que ela preparava.

Distraída com o tédio do lugar silencioso, a garota abriu o livro de anotações da estalagem e começou a ler os nomes dos hóspedes daqueles dias. Infelizmente, todos os nomes eram estranhos: Hans, Jenr, Ývela, Jarek, Senny, Lius, Máyra. Identificar aqueles dois viajantes não seria possível.

Bufando de frustração, começou a rabiscar desenhos nas bordas da folha. Imaginou se Mahiry já havia despertado, mas era pouco provável. Ela costumava dormir até tarde, principalmente quando não tinha aula com seu pai. Sua amiga também recebia ensinamentos em casa.

Desistiu de entreter-se com os desenhos e resolveu fazer uma caminhada na estrada. Com certeza, ninguém procuraria hospedagem àquela hora. Se viesse a acontecer, poderia ser visto de lá.

– Mãe, eu já volto!

Os raios de Sol daquela manhã estavam fracos e algumas nuvens anunciavam que iriam arruinar o belo dia ensolarado. Serafine só rezava para que a chuva esperasse mais alguns dias. Sabia que a plantação seria destruída caso houvesse uma mudança drástica no clima. E a festa também.

Duas lojas de verduras haviam aberto as portas, e apenas isso. Serafine cumprimentou os vendedores, Henry era um deles. Mahiry saltitaria de alegria se estivesse presente, por isso Serafine agradeceu a solidão. Os escândalos da amiga podiam ser dispensados em certos momentos.

Sentada em um dos bancos da praça, Serafine contemplou a bela festa que seria realizada naquela noite. Sua mãe havia enfeitado os topos das árvores com bandeirolas coloridas e mesas de madeira tinham sido dispostas em vários cantos da larga praça. Provavelmente haveria bandejas com diversos pratos espalhadas por ali mais à tardinha. Algumas folhas caíam conforme a brisa passava, mas não foram elas que atraíram a atenção de Serafine.

Havia algo parado do outro lado da praça. Algo que aparentemente não deveria estar ali.

Era apenas uma sombra encoberta pelas árvores, mas os contornos de sua silhueta alta e forte ficavam visíveis na penumbra. Serafine ergueu-se do banco imediatamente, tomada pelo susto.

A pessoa ou o que quer que fosse não mostrou o rosto. A distância escondia bem a sua fisionomia. Algo no modo como se ocultava fez com que Serafine ficasse arrepiada.

Havia algo de errado. Aquela coisa... Não parecia humana.

Curiosa, a jovem deu alguns passos à frente, aproximando-se da figura imóvel. A criatura não parecia disposta a se aproximar de Serafine, mas a garota estava determinada a descobrir o que era aquilo.

Estava na metade do caminho quando estacou. A poucos metros de distância, conseguiu distinguir suas formas. Não era humana. Nem um pouco humana.

Serafine geralmente se mostrava corajosa, mas naquele momento temeu pelo que a aguardava se continuasse andando. A curiosidade podia ser mortal, diziam.

A criatura, notando a pausa de Serafine, deu um passo lento à frente. Seu corpo continuava encoberto pela sombra, mas seus pés ficaram visíveis. Eram patas grandes, caninas, com certeza, de pelo avermelhado. As garras inclinavam-se contra o chão, mortalmente afiadas.

Sua incoerência estava de acordo com a falta de crença no que estava prestes a encarar, mas a sorte estava ao seu lado. Quando a pata cheia de garras alcançou a luz, uma voz chamou a atenção da jovem.

– Serafine Delay! – Sua mãe estava parada na porta da estalagem, o olhar zangado denotando seu humor. Serafine virou-se para ela, assombrada, tencionando pedir ajuda. Então seus olhos voltaram para a sombra, e não havia mais nada ali.

Talvez se tratasse de uma alucinação, pois, o que quer que fosse aquele bicho, havia desaparecido.


***


– Que emocionante! Sua festa de dezoito primaveras, Serafine! – Mahiry exultou, saltitando ao lado da amiga.

O crepúsculo já passara havia muito tempo e as duas dirigiam-se arrumadas para a comemoração. Serafine ganhara dos pais um belo vestido de festa, coisa que raramente tinha graças ao fardo que carregava marcado na sua pele.

Era feito de um tecido macio e maleável, caindo por seu corpo com perfeição. Era roxo escuro, com detalhes azulados bordados em harmonia com a cor principal. O vestido tinha, para sua surpresa, um decote generoso no busto, onde a jovem foi obrigada a passar maquiagem também. O pingente de pedra verde pendia no espaço entre seus seios, escondido pelo decote da peça. Por sorte, as mangas eram longas e cobriam seus braços. Nas mãos, colocou luvas pretas que seriam pouco notadas durante a noite.

A praça, como Serafine imaginou, estava bem mais enfeitada do que naquela manhã. Tochas iluminavam o local, dispostas por todos os lados, deixando poucos cantos escuros, como aquela árvore onde Serafine tivera seu delírio pela manhã. Desviando a atenção daquele estranho incidente, a morena continuou observando os detalhes. Pingentes de vidro nas folhas de algumas árvores, toalhas belíssimas bordadas à mão colocadas sobre as mesas, e mesas que exibiam pratos exuberantes com diversos quitutes. O estômago de Serafine roncou em resposta.

Quando os convidados avistaram a aniversariante, gritaram uma palavra conhecida por todos ali na região. Na Língua Antiga, significava Felicidade.

– RASTYNY!

Serafine sorriu, agradecendo com uma pequena reverência. E logo o barulho de conversas e risadas ecoou pela praça. Mégara e Alanor vieram até a filha, abraçando-a pela décima vez no dia. A mãe tinha lágrimas nos olhos, mais uma vez orgulhosa em ver a sua preciosa garota completando dezoito anos.

– Olá, Mahiry. – Alanor cumprimentou a amiga de Serafine, sempre muito quieta e tímida perto dos outros. Mahiry sorriu, acenando para Mégara em seguida.

– Acabamos de encontrar Henry – Mégara comentou casualmente. – Ele estava procurando por você.

Um sorrisinho meigo surgiu no rosto arredondado da garota, que encarou Serafine como que pedindo permissão para deixá-la sozinha. Serafine sabia que isso resultaria em ser acompanhada pelos pais para cumprimentar todos os convidados da festa, mas não podia impedir a amiga de ser feliz seguindo o noivo.

– Nos vemos depois – disse, assustando-se com o gritinho de felicidade da baixinha. Mahiry desapareceu tão rápido que nem deu chance de Alanor e Mégara despedirem-se.

– Serafine, acredito que queira comer alguma coisa. – Foram até uma mesa reservada, onde Serafine pôde experimentar diversos pratos preparados pela mãe e por outras cozinheiras da cidade. Vez ou outra era interrompida para receber os cumprimentos de um convidado, mas teve sossego durante sua alimentação.

– Querida, tenho uma notícia que vai deixá-la animada – Mégara disse discretamente, sentando-se ao lado da filha. Serafine notou como sua mãe estava elegantemente arrumada. Usava um vestido longo em tons perolados que destacava o seu belo rosto.

– Pode dizer.

– Os estranhos que tanto despertaram sua curiosidade estão aqui na festa. – Serafine parou o que estava fazendo e encarou a mãe. Mégara sorriu, sinalizando para duas figuras paradas a duas mesas da delas.

Serafine perdeu um longo tempo admirando os estranhos visitantes. Demorou-se, principalmente, ao encarar o visitante que fazia parte daquela dupla.

A baixinha magricela, descrita por Mahiry, era diferente do que Serafine imaginava. Não aparentava anormalidade, mas tinha uma beleza exótica e atrativa. Detalhes que capturavam a atenção quase que instantaneamente.

Ela era, realmente, muito pequena. Seu corpo magro estava encoberto pela mesma capa negra que usara no dia anterior. O capuz havia sido retirado e expunha sua face.

As feições eram delicadas e levemente infantis, dando-lhe uma aparência surreal e encantadora. Os olhos grandes e expressivos apresentavam íris de uma incrível coloração azul, tão claras quanto as águas de um lago límpido. Cílios louros circundavam aqueles olhos brilhantes e chamativos. Tão dourados quanto eles eram suas sobrancelhas, quase imperceptíveis na pele branca.

Os cabelos que emolduravam seu rosto eram brilhantes e longos, aparentemente macios. Sua cor lembrava cevada misturada ao brilho pálido de um amanhecer. Caíam em ondas perfeitas até a metade de suas costas, e Serafine notou que algumas mechas estavam trançadas com fios de contas, e outras com penas. Havia também tranças simples misturando-se ao dilúvio de madeixas sedosas.

A loira encarava o seu companheiro de viagem. Aquele que havia despertado o interesse de Serafine.

Ela não costumava prestar muita atenção aos rapazes da Vila, até porque já havia enjoado do rosto deles, mas um viajante como aquele era digno de ser observado.

Deveria ter em torno de vinte e cinco anos, talvez um pouco mais. A pele era bronzeada, dizendo sobre o contato que ele tivera durante um bom tempo com o Sol. O rosto anguloso era muito bonito, com feições fortes e sedutoras. Os olhos apresentavam uma incrível coloração azul, de um tom tão escuro quanto o do céu em noites bem iluminadas pela grande Lua. Serafine imaginou como deveria ser olhar dentro daqueles olhos. Mergulhar numa imensidão digna de um mistério sem fim.

O nariz era reto e os lábios tentadores, mas pareciam pouco inclinados a sorrisos simpáticos. A garota observou que, pelo modo como conversava com a animada garota loira, o estranho não era um exemplo de simpatia. As sobrancelhas estavam franzidas, a mandíbula travada, as feições sérias.

Curiosamente, o modo como ele se portava atraiu um pouco a garota. Serafine se indignou logo depois. O estranho era bonito, mas se sentir atraída por ele quase que imediatamente não fazia o menor sentido. Não parecia atitude sua.

O cabelo castanho escuro do viajante exibia um corte irregular. As madeixas lisas desciam até o pescoço, alguns fios sombreando suas feições.

Tinha um porte mais selvagem. Parecia um guerreiro. Alguém que não se preocupava com a aparência e, mesmo assim, conquistava a atenção das pessoas com seu ar rebelde.

Ele não usava uma capa como a loira, e sua vestimenta realmente confirmou aquilo que Serafine imaginava: era um guerreiro. Vestia calças e botas de tecido preto. O cinto não exibia muitas armas, mas Serafine enxergou a bainha onde o cabo de uma espada se mostrava visível. Encobrindo o tronco estava um colete sem mangas, que também servia para marcar com surreal perfeição os músculos definidos de seu abdome, deixando os braços fortes expostos. Não era a constituição física que se esperaria de um rapaz do campo, Serafine pensou. Havia rigidez nos contornos daqueles músculos, uma força atraente.

O braço direito estava enfaixado com uma tira de couro desde o cotovelo até o punho. Um bracelete cor de bronze estava no outro antebraço, com algo imperceptível entalhado na peça.

Depois de encará-lo, Serafine reparou que a atenção da garota loira havia se desviado do companheiro e agora se concentrava nela. Seus olhos grandes e brilhantes desafiavam Serafine a encará-la de volta com um misto de simpatia e desconfiança, mas ela não teve coragem quando viu que o belo moreno também a observava.

Voltou-se para a mãe, que conversava com um dos convidados.

– Um brinde! – Ela ouviu o pai exclamar a algumas mesas de distância. – Ao tesouro de Vila do Sol! À minha filha Serafine!

– Viva! – gritaram os convidados, erguendo suas taças ao brinde.

Serafine sorriu em agradecimento, mas o sorriso durou pouco tempo. Seus olhos desviaram-se para uma sombra parada ao lado de uma árvore. Um calafrio horrível percorreu sua espinha ao notar que era a mesma silhueta que avistara naquela manhã.

Conforme olhava em volta, viu dezenas de outras criaturas idênticas ainda ocultas pelas sombras.

Ergueu-se, mas não soube o que fazer de imediato.

Apenas quando um dos convidados gritou e apontou para a imagem de uma das bestas que aparecia à luz das tochas é que Serafine se viu em um completo caos.

A normalidade tão aclamada em Vila do Sol estava prestes a ser extinta.


Capítulo 3

Ataque e Fuga

 

 

Serafine jamais havia se imaginado em meio a um ataque, ainda mais na Vila do Sol, um ambiente tão pacífico e acolhedor. E mesmo assim lá estava ela, vendo as criaturas distanciando-se das sombras e revelando suas verdadeiras e assombrosas formas. Nada humanas.

As pessoas ficaram congeladas até perceberem que os monstros eram racionais e portavam armas muitíssimo afiadas. Foi então que o caos se instaurou.

Ninguém acreditava em tais criaturas, pois pertenciam a histórias de uma assustadora lenda antiga. Os monstros eram os chamados Amaldiçoados. Lobisomens era um nome pelo qual também atendiam.

Dizia a lenda que certos homens, durante as noites de Lua cheia, transformavam-se em lobos gigantescos, buscando por sangue e morte. Era uma crença incorreta, porque Lobisomens eram mais do que bestas sanguinárias, e não se transformavam apenas na noite de Lua cheia. A primeira transformação era definitiva, condenando-os a uma vida sobrenatural até a morte. A mente permanecia humana, mas a aparência era a de um monstro.

As bestas tinham dois metros de altura, algumas até mais, e erguiam-se nesse comprimento com um corpo musculoso coberto de pelos. Os braços fortes manejavam as armas com perfeição. Muitos carregavam espadas; outros portavam machados afiados, martelos e até mesmo lanças.

Um dos monstros prendeu de imediato a atenção de Serafine. Ele tinha o pelo avermelhado e espesso cobrindo cada centímetro do corpo. O focinho à frente do rosto lupino escondia uma boca cheia de dentes afiados. Ele exibiu as fileiras de dentes no que parecia ser um sorriso. Seus olhos eram dois círculos redondos e escuros em meio aos fios avermelhados do pelo. As orelhas pontudas moviam-se como as dos cachorros, acompanhando cada ruído ao seu redor.

A garota observou um largo e envelhecido bracelete cor de bronze em um dos pulsos. Parecia vagamente familiar, mas o momento de pânico não lhe trouxe recordação alguma. O monstro usava na cintura um saiote de couro rasgado, o que teria sido curioso e meio cômico se não fosse pelo momento assustador. Trazia na mão uma espada com a lâmina manchada por um líquido vermelho.

Sangue.

A constatação nauseou Serafine, mas ela sabia que não podia ficar parada em choque. Tinha que reagir e correr dali, uma vez que o gigantesco lobo aproximava-se com rapidez. Os passos eram precisos e seus olhos vidrados não se desviavam do alvo.

E o alvo era ela.

– Serafine! – ouviu o pai gritar. Ele se colocou entre a filha e o monstro, no rosto uma expressão de tensa bravura. O Lobisomem parou perigosamente próximo a Alanor.

O fazendeiro brandia uma pequena faca, que de nada serviria para enfrentar a besta de dois metros e meio de altura.

– Não toque nela! – gritou, atacando o lupino com uma estocada. Não surtiu efeito, nem mesmo um arranhão. Em resposta, o gigante estalou um forte tapa contra o rosto de Alanor, lançando-o contra uma árvore a vários metros de distância.

– Papai! – berrou Serafine desesperada. Esqueceu-se de que era perseguida pela criatura e correu até o pai. Sangue escorria pelo seu rosto, e ele não reagia aos chamados dela.

– Desista... – Uma voz rouca e gutural, de timbre grave, disse altivamente. Serafine virou o rosto para encarar aquele par de olhos medonhos. – Você vem conosco, criança.

– Ei, Totó! – Outra voz chamou a atenção dos dois. O Lobisomem rosnou, expondo as assustadoras e afiadas fileiras de dentes. Isso assombrou Serafine, mas não abalou quem tinha a atenção do monstro. – Brigue com alguém do seu tamanho!

– Certamente não está falando de você... – retrucou o monstro com escárnio.

O guerreiro, o mesmo da estalagem, estava de pé numa das mesas restantes. Parecia alheio ao caos de pessoas correndo e lobos gigantes uivando. Só parecia interessado no maior deles, o mesmo lobo ruivo cujo foco recaía sobre Serafine.

O humano trazia nas mãos duas espadas compridas e afiadas. Uma delas tinha a lâmina encurvada, e lembrava muito a arma usada pelo monstro. O fato de estar manchada por sangue negro mostrava que ele a havia conquistado de uma das bestas. A outra fora removida da bainha em seu cinto.

Sem esperar por mais gracinhas do atacante, o Lobisomem avançou em sua direção. Para surpresa de Serafine, o rapaz nem se moveu, esperando enquanto a besta corria para o ataque. Apenas quando a lâmina do lobo ergueu-se para acertá-lo com um golpe foi que ele reagiu.

Impulsionou um salto mortal com os pés, girando com habilidade sobre o lobo e caindo de pé atrás dele. Desnorteado momentaneamente, o Lobisomem não conseguiu bloquear o ataque, recebendo um forte golpe no ombro direito. Ele moveu-se com rapidez, retirando a espada do lugar ferido e lançando-a longe.

– Jarek... Ainda com problemas na pontaria – disse o lobo, tentando distrair o oponente. Não pareceu funcionar tão bem. Concentrado, o rapaz desferiu outro ataque contra o gigante, sendo bloqueado pela espada do mesmo. Uma sucessão de golpes seguiu-se, enquanto Serafine lutava para erguer o pai e correr dali. Procurou pela mãe ao mesmo tempo, mas só viu borrões de pessoas desesperadas tentando escapar da praça.

Os outros lobos demoraram a vir em auxílio de seu líder. Enquanto o gigante ruivo estava ocupado com o guerreiro, seus aliados avançaram em sua direção. Por mais habilidoso que fosse o guerreiro, não conseguiria suportar um ataque de três monstros, e foi a vez de Serafine intervir.

Logicamente, ela não tinha qualquer treinamento em batalha e o máximo que se aproximara de uma espada fora um facão que o pai tinha, mas precisava tentar qualquer coisa ou todos ali morreriam.

A segurança de Alanor dependia dela e de sua coragem.

A garota pegou um pedaço de uma das mesas arrebentadas pelos lobos e ergueu-o atrás de si. Quem sabe com um impulso o golpe não saia mais forte?, pensou ela. Avançou na direção do Lobisomem que a perseguira, aproveitando que ele estava de costas e concentrado na luta que travava com o rapaz.

Jogou todo o seu peso contra ele, pronta para cravar a lasca no monstro, mas foi detida. A criatura virou-se e agarrou a madeira, uivando pela tentativa de ataque. Serafine foi puxada, não conseguindo largar o objeto de ataque. O rosto da criatura estava perigosamente próximo do dela e o seu hálito exalava um nauseante cheiro de sangue.

– Vai sofrer por isso, Serafine! – Ele a lançou contra o chão e ergueu a espada. Serafine fechou os olhos e esperou a dor, cobrindo o rosto com os braços, mas o impacto não veio. Como resposta, ouviu um uivo de pesar e encontrou o Lobisomem encarando seu próprio abdômen, onde se via uma espada traspassada.

O guerreiro humano estava de pé, com sangue escorrendo pelo nariz e pela lateral do rosto, segurando com firmeza a lâmina contra a besta. O Lobisomem grunhiu diversas vezes até cair de lado, ainda com a espada cravada em seu corpo. O rapaz encarou Serafine ofegante, e ela conseguiu sustentar o olhar dele.

Não se sentiu nervosa, mas com medo por tudo o que estava acontecendo.

– De nada – disse o desconhecido.

– Pelo quê?

– Por salvar a sua vida.

Serafine recuou ultrajada.

– Eu salvei a sua vida! – ela retrucou.

– Precisamos ir. – O tom que ele havia usado com o lobo era diferente do usado naquele momento. Aquele se mostrava autoritário e firme. Serafine, porém, desacatou a ordem e ergueu-se, correndo na direção do pai, só para descobrir que ele havia desaparecido.

Em desespero, ela andou em círculos, os olhos vasculhando todos os cantos à procura do corpo de Alanor.

– Papai? – gritou. O massacre acontecia ao seu redor, com corpos mutilados espalhando-se pelo chão.

Sangue inocente inundava a outrora pacata Vila do Sol.

– Serafine! – Virou-se para o grito do seu pai. O guerreiro mandão, que a havia alcançado, estava ao seu lado e também encarava a cena, mas não havia em seu rosto o terror que inundava o olhar da jovem.

Alanor estava sustentado por um dos lobos, mas o modo como pendia trouxe choque e desespero para a filha. Uma das mãos da criatura estava encharcada de sangue e atravessava o abdome do fazendeiro, erguendo-o ao alto.

O lobo uivou, um uivo misturado a uma terrível gargalhada. Para maior choque da garota, era o mesmo gigante que acabara de ser morto. O olhar sádico estava lá e não havia qualquer resquício de ferida em sua barriga.

– Precisamos ir. – A voz do guerreiro soou raivosa e Serafine sentiu um puxão no braço, mas não conseguiu se mover. As únicas coisas que tinham sua atenção eram o pai desfalecendo pela dor do ferimento e os olhos impiedosos do Lobisomem.

– NÃO! – O seu grito foi alto e estridente, cheio de horror. Tentou correr na direção do pai, mas o guerreiro a deteve, segurando-a pela cintura e puxando-a na direção contrária.

– ÝVELA, O BRANCO! – O desconhecido gritou para alguém, mas Serafine não sabia quem era. Continuava em desespero, urrando enquanto se debatia, tentando escapar do aperto que a puxava para longe. Precisava alcançar seu pai! Precisava matar aquele monstro.

Um lobo um pouco menor entrou no caminho dela e do guerreiro, mas uma flecha certeira acertou a criatura bem no meio da testa. O monstro caiu de costas no chão, pisoteado pelo moreno enquanto passava por ali. Outra pessoa correu até eles, com tanta rapidez que não passou de um borrão claro. Era a pequena garota loira de antes.

Serafine não se importou, na verdade. Os olhos estavam embaçados pelas lágrimas que escorriam por seu rosto, manchando a maquiagem que escondia sua verdadeira pele.

Nada importava agora.

Seu pai estava morto! Sua mãe tinha desaparecido... E onde estariam Mahiry e Henry? E seus conhecidos? Todos estavam condenados naquele massacre, e ela não conseguia escapar para voltar e ajudar.

– Escute aqui, garota! – O guerreiro puxou-a, colocando-se entre ela e o caminho de volta à praça. – Eu preciso tirá-la daqui, goste ou não. Então pare de espernear, seu pai está morto e nada vai mudar isso!

A jovem loira lançou um olhar duro, mas ele não se importou. Serafine estava determinada a se livrar deles antes. Agora, com tanta falta de sensibilidade e respeito, não hesitaria.

Com uma destreza impressionante, ela desviou-se dele e correu, mas poucos metros depois foi içada. Sacudiu-se no abraço do rapaz, tentando machucá-lo, mas ele foi mais rápido. Deu-lhe uma pancada forte na cabeça, fazendo Serafine perder a consciência. Todo o pesadelo à sua volta desapareceu em segundos, engolido pela escuridão.


Capítulo 4

Demonstrações de Confiança

 

 

A dor em sua cabeça não era nada comparada à que assolava seu coração. Serafine despertou lentamente, sentindo pingos caindo contra seu corpo. Estava deitada em algum lugar descoberto, o que dava livre acesso à chuva. Gemeu quando tentou se levantar, percebendo que a cabeça latejava ainda mais do que antes. Maldito guerreiro!, grunhiu em seus pensamentos. E então sua garganta travou, com uma tristeza terrível abatendo-se sobre ela.

Seu pai estava morto.

Alanor Delay havia morrido, e tudo porque ela não o protegera no momento certo. Se tivesse ficado com ele e fugido daquela praça, talvez estivesse vivo. Toda a culpa recaiu sobre ela, arrastando-a ao choro. Serafine virou-se de lado, sem abrir os olhos, e soluçou durante longos e angustiantes minutos.

– Serafine? – Uma voz austera e fina chamou-a. A menina ignorou, fechando-se mais ainda em seu mundo repleto de dor. Só queria sentir culpa por ter sido tão estúpida. Alanor, aquele que a criara com tanto amor e zelo, havia morrido de maneira trágica por descuido seu. – Querida, não foi sua culpa. – A dona da voz murmurou e tocou a cabeça da jovem. Serafine retraiu-se, erguendo-se com dificuldade. A cabeça ainda latejava, principalmente por causa da pancada que o guerreiro lhe dera. Com a vista meio embaçada, ela ajoelhou-se para ficar de pé.

A viajante loira entrou em seu campo de visão. Ela exibia uma expressão de profundo pesar.

– Fique calma, sua cabeça deve estar doendo – disse a loira, afastando-se de Serafine para lhe dar espaço. Estava toda molhada, mas não parecia incomodada. O espaço em que se encontravam não era nada familiar para a jovem antes desacordada, o que a apavorou.

Parecia um bosque – ou talvez floresta – cheio de árvores muito altas. Erguiam-se em seus troncos grossos, alcançando alturas incomparáveis às das que existiam na Vila do Sol, com folhas encobertas de sombras.

Era noite, Serafine reparou. Mas seria a mesma noite do ataque? O Sol não parecia prestes a subir, o que indicava que, para onde quer que tivessem ido, ou tinham se passado dias, o que significaria que a pancada daquele infeliz fora forte, ou ainda estavam na companhia da noite trágica. Seu coração se apertou ao lembrar a horrível cena envolvendo a morte de seu pai. Pigarreou e indagou à loira desconhecida:

– O-onde estamos? – Sua voz saiu rouca. A loira lhe estendeu um cantil velho. Serafine relutou em aceitar, mas o sorriso sincero de sua salvadora a convenceu.

– Em algum lugar no Reino das Florestas. Atravessamos a fronteira faz algumas horas. – A morena se afastou para olhar em volta. Estavam numa pequena clareira, e a escuridão que as cercava era amedrontadora. Serafine se lembrou do gigantesco monstro ruivo que matara seu pai, e lágrimas embaçaram sua visão.

– Quanto tempo faz desde...

– Um dia. – A loira baixou o olhar. – Você acordou antes e entrou em pânico, então lhe dei uma poção para dormir. A dor de cabeça é pela pancada, mas culpe Jarek quando ele voltar.

– Jarek? – Uma visão da lista de nomes na estalagem veio à mente confusa de Serafine, mas ela não se concentrou muito nessa lembrança.

– Meu nome é Ývela e aquele indivíduo sem educação que você conheceu é Jarek Hargon. – A desconhecida estendeu-lhe a mão.

Serafine notou que Ývela parecia ser mais jovem do que ela. Seu rosto tinha traços finos, o corpo magro não era muito curvilíneo, mas sua beleza parecia sobrenatural.

– Muito prazer. – Cambaleante, Serafine sentou-se numa pedra escorregadia e apoiou-se para não cair. Sua cabeça girava muito e ela sentia que logo vomitaria. Ývela entregou-lhe um frasco contendo um líquido verde musgo.

– O gosto é horrível, mas vai tirar a tontura. – Fez um aceno positivo quando Serafine hesitou, mas logo a morena havia engolido toda aquela coisa nojenta. Sua náusea tinha a ver com o gosto indefinido de todas as substâncias ruins que já havia provado. Ela podia jurar que tinha até uma ponta do sabor de um ensopado de pato de sua mãe que estragara na panela certa vez.

Suspirando, agora com a tontura melhorando, Serafine conseguiu enxergar com mais clareza. Notou, então, peculiaridades na aparentemente comum Ývela. Com o cabelo louro preso, ela deixava expostas suas orelhas, que não eram nada normais. Eram pontudas e divididas diagonalmente na ponta, abrindo uma pequena fenda bem no topo.

Outro detalhe incomum eram os desenhos que enfeitavam seus braços. Desciam por ali espirais azuladas parecidas com as peroladas que haviam nos braços da própria Serafine. Eram belíssimas e tinham a mesma cor dos olhos de Ývela.

A loira pareceu notar que Serafine a encarava e sorriu, exibindo covinhas nas bochechas rosadas.

– Pois é. Você não está sozinha nesse mundo – Ývela deu de ombros. Passos alertaram as duas de que havia mais alguém por perto, e uma figura apareceu entre as árvores. Serafine gritou pelo susto, mas assumiu uma postura rígida e a expressão mais furiosa que conseguiu em seguida.

Lá estava ele! O guerreiro frio e rude em toda a sua glória, com o rosto encharcado pela chuva que desabava. O cabelo caía sobre o rosto belo, mas o sorriso cínico exibindo seus dentes brancos tirava o encanto. Havia qualquer coisa prepotente no jeito como se portava.

– Ah, ela finalmente despertou – disse Jarek. Ývela encarou-o com firmeza, como se pedisse para não causar confusão. Mas foi Serafine quem avançou. Em passos rápidos, pôs-se à frente dele, os punhos em riste acertando-o com socos fortes no peito. Jarek era bem mais alto que ela, mas isso não a impedia de tentar machucá-lo. Não pela pancada em sua cabeça, mas por tê-la impedido de lutar por seu pai; por tê-la impedido de vingar a morte de Alanor.

– Você, seu maldito traiçoeiro insensível!

– Serafine, por favor! – pediu Ývela, tentando apartar a briga. A pobrezinha não conseguia se enfiar entre Serafine e Jarek, mas fazia o que podia. Jarek mantinha a morena presa pelos pulsos, mas ela se debatia tentando acertá-lo. Com força, ele a empurrou para longe e franziu o cenho.

– Qual é o seu problema?

– Você! Foi culpa sua!

– Minha culpa? Eu salvei sua vida! Duas vezes – exclamou ele indignado, dando ênfase ao fim da frase. Serafine bufou, sentindo lágrimas em seus olhos.

– Não me salvou. Condenou meu pai à morte!

– Ele sabia que uma hora isso aconteceria.

– Cale a boca! – berrou de volta. – Ele jamais teria sofrido se você não tivesse aparecido. Aqueles monstros... Eles devem ter seguido vocês! Não havia motivo para um ataque na Vila do Sol.

– Ah, não? Então por que o líder deles queria levar você dali, princesa? – retrucou Jarek, deixando o local em completo silêncio. Ývela lançou a ele outro de seus olhares zangados, mas Jarek não pareceu se importar. Seus olhos escuros estavam fixos em Serafine, desafiando-a a retrucar. A garota, por sua vez, estacou onde estava. Toda a sua raiva por ele havia se dissipado, substituída por intensa confusão.

Ele tinha razão.

A voz do lobo ecoou em sua mente, apavorante: Você vem conosco, criança.

Mas o que queriam com ela? Era uma simples cidadã de uma vila pacata. Não tinha nada que lhes interessasse. Suas marcas eram um segredo guardado a sete chaves na fazenda, e seus pais jamais teriam revelado a alguém, ainda mais a uma alcateia de monstros.

Serafine sentiu as pernas bambearem pelo medo, mas não pensou duas vezes. Precisava sair dali. Livrar-se daqueles estranhos e voltar para a Vila. Sua mãe ainda estava lá, com certeza! E viva. E ainda havia Mahiry e todos os outros conhecidos. Aquela era sua casa e todos ali haviam sofrido aquele tormento por sua culpa. Tinha que arcar com as consequências.

Aproveitou o fato de Ývela e Jarek terem começado uma discussão em voz baixa, ambos de costas para ela, para escapar. Já estava no começo da trilha quando ouviu a voz de Ývela:

– Serafine, espere!

Com rapidez ela se distanciou deles, embrenhando-se na floresta. Que tolice fugir assim, mas é melhor do que ficar perto destes estranhos, pensou. Por mais que tivessem salvado sua vida, ela não se sentia segura.

Depois de correr por longos minutos, ziguezagueando em meio às enormes árvores, tropeçou num galho e caiu no chão. A terra estava molhada e lamacenta, o que a sujou por completo, mas ela não se importou com aquilo. Colocou as mãos no pescoço, confirmando que seu colar, a maior ligação com sua casa, ainda estava ali, e levantou. Só pensava em continuar fugindo o mais rápido que conseguisse.

Infelizmente, aqueles dois não desistiam tão facilmente. Com habilidade, ergueu-se e correu para trás de uma das árvores, prendendo a respiração enquanto os ouvia passar por perto. A densa floresta parecia interminável. Para onde quer que olhasse, encontrava árvores e mais árvores.

– Garota teimosa – Jarek resmungou indignado. Ele estava próximo. Próximo demais. Serafine apertou-se contra o tronco de seu esconderijo, sem nunca soltar o ar que mantinha preso. Estava imóvel, rezando para que os Deuses a ajudassem com aquela fuga. – Estamos aqui para protegê-la e ela age deste jeito! Deveríamos ir embora. Como ela correu tão rápido? Não deveria ser páreo para nós!

– Se mostrasse mais respeito, talvez tivéssemos um bom começo – retrucou Ývela, impaciente. – Vá procurá-la, seu resmungão. Precisamos tirá-la dessa floresta. Aqui não é seguro.

E, por mais que aquele aviso tivesse ecoado por sua mente, Serafine correu para longe deles, embrenhando-se mais e mais na escuridão.


***


Quanto mais corria e procurava, mais parecia que a floresta não tinha fim.

Não havia estrada que indicasse o caminho de volta, não havia ninguém por perto para dar qualquer informação. As histórias que ouvira dos viajantes, enquanto hospedados na estalagem, eram verdadeiras.

O Reino das Florestas não tinha aquele nome à toa. Era uma terra habitada basicamente por centenas de espécies vegetais, mas pouquíssimos animais. A civilização ficava em áreas descobertas, longe do misterioso e silencioso interior do Grande Bosque.

Aquela área estendia-se por quilômetros, percorrendo todo o Reino do Norte. E, acostumada à falta de árvores e vegetação característica do reino do Leste, conhecido por suas cadeias montanhosas e pelo excesso de rochas, embrenhar-se naquele lugar estava se mostrando uma experiência cada vez mais apavorante para Serafine.

Onde é que fui me meter?, indagou para si mesma, olhando ao redor para ver se encontrava algum caminho. A chuva continuava a cair, mas estava fraca. A escuridão, porém, não dava indícios de que desapareceria. O céu prosseguia encoberto pelas nuvens tempestuosas.

Os pés de Serafine estavam encharcados de lama, assim como seu vestido. O rosto havia sido lavado e ela sentia o hematoma do tombo começando a doer.

Ela já não ouvia os gritos de Ývela e Jarek havia um bom tempo... Mas não sabia especificar quanto.

Talvez tivesse ido longe demais. Ou talvez estivesse dando voltas e voltas e acabasse voltando sempre ao mesmo lugar. As árvores eram todas iguais, não havia como identificar o caminho. Seus pés apontavam para uma linha reta, mas sua mente tinha certeza de que se tratava de um círculo.

O silêncio estava ficando mais e mais sufocante. Aquela região inóspita não dava indícios de que algo bom aconteceria a Serafine. Ela estava sozinha, caminhando sem saber para onde.

Barulhos de passos ecoaram até ela, fazendo-a estacar. O chão recoberto por poças de água e galhos caídos a ajudou a identificar que estava sendo seguida.

Virou-se na direção do som, mas tudo o que encontrou foram sombras. O aspecto sinistro da floresta começou a perturbá-la, e infelizmente não havia como voltar. Estava perdida, largada à própria sorte, que, se dependesse dos últimos acontecimentos, acabaria em morte. Não avistou nada, mas sentiu a presença de alguém. Ou de alguma coisa.

As sombras e o pânico da solidão a fizeram correr sem rumo certo. Só sabia que não podia continuar parada como um alvo fácil para o seu seguidor. A melhor maneira de despistá-lo seria surpreendendo-o, mas foi notável como a criatura a acompanhou. Os passos aumentaram de ritmo e se tornaram uma corrida. Serafine contou mais de duas patas fazendo aquele incessante barulho, mas não parou para averiguar. Os galhos baixos das árvores cortavam seu rosto, estalando contra sua pele. A dor, porém, era ignorada por ela naquele momento. A iminência da morte deixava-a num torpor tão grande que nada mais parecia importar.

Foi tarde demais que Serafine percebeu a depressão à sua frente. Soltou um grito agudo enquanto rolava ladeira abaixo. Quando parou de cair, ergueu-se com dificuldade, sentindo dores por todo o corpo. Encontrava-se numa vala funda, uma espécie de armadilha muito bem bolada. Havia sido coberta por uma cortina de folhas, o que camuflava o buraco. Agora, coberta de lama e hematomas, Serafine estava encurralada em sua própria cova.

Ficou em silêncio quando ouviu passos apressados aproximando-se. Quem quer que fosse, logo estaria rolando por aquela ladeira também, caindo sobre ela. Tentou pensar com rapidez, mas não carregava nenhuma arma para enfrentar um oponente. O espaço em que se encontrava deveria ter uns três metros de largura e era muito alto, quase impossível de se escalar.

Não havia saída.

Um uivo alto ecoou pela floresta, gelando a espinha da garota. Serafine não ousou respirar ou fazer movimentos bruscos, porque reconheceu aquele barulho. Era uma das bestas que invadira a Vila, mas estava sozinha. Ao menos ela não seria um banquete para a matilha.

Se ao menos tivesse sido coerente e permanecido com Ývela e Jarek... O arrependimento irradiava por toda a sua consciência, deixando-a irritada. Por que vinha cometendo tantas idiotices? Primeiro havia abandonado o pai em meio ao ataque, o que acabou por condená-lo a morte, e agora condenara a si mesma por recusar a maior chance de proteção que tinha!

Talvez fosse um castigo divino. Morreria da mesma maneira que Alanor morrera. Não chegava a ser injusto.

– Sinto seu cheiro, garota. – A voz era arrepiante e trazia consigo um forte poder de pânico. Seus olhos cor de âmbar voltaram-se para cima, bem na entrada da vala, onde uma silhueta começava a ficar visível. – Mas o mestre não está por perto, o que significa que você é minha.

Serafine lembrou-se da reação de Jarek para chamar a atenção do lobo gigante na Vila: agir estupidamente. Havia funcionado para um guerreiro armado, talvez uma provocação pudesse deixar o monstro enfurecido também. Pensamentos irracionais eram destrutivos. Serafine só precisava agir com cautela.

– Ah, é? E acha que eu tenho medo de você, seu filhote de cão sarnento? – Serafine aumentou o tom de voz. Um rosnado raivoso saiu bem do fundo da garganta do monstro, enquanto ele se erguia sobre as patas traseiras.

O Lobisomem era albino. Tinha olhos vermelhos e usava o mesmo tipo de saiote de couro escuro que o lobo ruivo usara. As garras afiadas das patas pareciam mortíferas olhando-se de baixo, assim como o modo com que seus dentes surgiam no sorriso.

– Eu vou fazer picadinho de você, menina.

Serafine afastou-se da ladeira até encostar do outro lado da vala. A escavação erguia-se uns três metros acima dela, e, agora, mais próxima, ela enxergava raízes penduradas por toda a extensão, o que significava uma possibilidade de escape. Se conseguisse se içar por uma delas, alcançaria a outra, e assim sucessivamente.

Com rapidez, a morena adiantou-se até uma delas e deu um impulso com as pernas. O salto lhe proporcionou apoio na parede lamacenta, enquanto lutava para alcançar a outra raiz, que se mostrou resistente ao seu peso. O lobo rosnou, saltando para dentro da vala. Serafine havia acabado de alcançar a última raiz quando um de seus pés foi puxado para baixo. Gritando de raiva, a jovem chutou o focinho do monstro, recebendo um grunhido baixo em resposta. Usando o rosto dele como apoio, ao mesmo tempo em que o chutava, se lançou para cima e agarrou a beirada do buraco.

Não havia nada em que se segurar. Repentinamente, seus olhos passaram por uma rocha na beirada da vala e, sem pensar muito, a garota pegou-a e lançou-a na direção do monstro. Acertou um de seus olhos, que começou a sangrar pelo ferimento. A criatura afastou-se gemendo de dor, com as mãos escondendo o rosto ferido. Serafine cogitou a ideia de tentar fugir, mas uma onda súbita de adrenalina invadiu-a e sua atitude seguinte foi inesperada: ela se jogou sobre o Lobisomem. Agarrou a pedra e a acertou diversas vezes contra os olhos dele.

Em determinado momento, a besta conseguiu levar a melhor e lançou-a contra a parede. Mesmo deformado e machucado, tinha uma fúria assassina. Não havia como fugir.

Serafine estava encurralada.

– Eu deveria fazê-la sofrer, sua insolente. Sofrer enquanto implora por minha piedade. Mas não tenho mais paciência para causar-lhe uma morte lenta, então... Diga adeus.

– Adeus. – A voz conhecida disse do alto, chamando a atenção do lobo. Uma flecha voou certeira, zunindo no ar, e atingiu-o bem no meio do peito, lançando seu corpo do outro lado do buraco com a força do disparo.

Serafine soltou a respiração, sentindo o coração descompassado. A descarga de adrenalina havia acabado e agora restava o nervosismo sem tamanho. Suas pernas bambearam, por isso precisou de ajuda para sair dali. Uma mão forte estendeu-se em sua direção e, depois de escalar com dificuldade diversas raízes, ela a agarrou sem nem pensar.

Teria que aprender a confiar em Jarek. Era a terceira vez que ele a salvava.


Capítulo 5

Um possível início

 

 

– Irresponsabilidade pode ser aceitável, mas se jogar voluntariamente nas garras da morte é demais! – Jarek resmungou enquanto descrevia para Ývela a cena que avistara antes de salvar Serafine. A garota estava sentada próxima à guerreira e ouvia a tudo com inexpressividade, enquanto a loira tratava de seus ferimentos. Jarek nem ao menos se importou em avaliar a gravidade dos hematomas, parecia ter pressa para sair dali. Temia que outros Lobisomens surgissem. Porém, não perdera a oportunidade de humilhar Serafine, aborrecido pelas atitudes dela.

– Não foi minha culpa. Sua grosseria não despertou minha confiança – Serafine retrucou sem encará-lo. Seu rosto moldou uma expressão de superioridade, que ela agora exibia teatralmente. Estava trêmula e com medo por dentro, mas jamais demonstraria para o guerreiro. – Como é que eu poderia confiar em alguém como você? Educação não parece fazer parte do seu vocabulário.

– Não preciso ser educado. – Jarek rolou os olhos, impaciente. As atitudes cada vez mais grosseiras deixavam-na irritada. Quem ele pensava que era para tratá-la como uma criança? Rolando os olhos e dizendo frases curtas como se ela fosse uma menina malcriada que fugiu do castigo.

– Jarek, por favor – Ývela pediu. Havia seriedade e humor misturados em sua voz. O guerreiro deu de ombros, voltando sua atenção para uma adaga que carregava consigo.

Serafine observou o objeto com atenção. Era de tamanho mediano e feito de um metal prateado. Inscrições podiam ser vistas em sua lâmina, mas não eram na língua comum. O cabo da adaga era dourado, com sua lateral adornada por pedras vermelhas. Parecia perigosamente afiada e era surpreendente ver Jarek manejá-la como se fosse uma lâmina cega.

– Sinto muito por tudo o que aconteceu – Ývela disse com certo pesar. Serafine lançou um olhar transtornado. – Deveríamos ter-nos apresentado melhor. Todo aquele mistério só gerou problemas.

– Ah... – A morena não sabia o que dizer. Será que uma apresentação mais decente teria surtido efeito diferente? Com tais pensamentos rondando sua cabeça, Serafine encarou Jarek e imediatamente bufou. O moreno lançou a ela um olhar indagador, arqueando uma das sobrancelhas. Não havia qualquer chance de mudanças nos trejeitos daquele guerreiro, o que acarretava em nenhuma possibilidade de um melhor começo. Havia, porém, a ideia de tentar melhorar o que ela já conhecera deles até aquele momento.

A animação não era das maiores. Serafine estava machucada, física e espiritualmente. Exausta, ela só queria ficar quieta por uns tempos. Sabia que seguiria com eles para onde quer que fossem. Não tentaria mais fugir, porque a última tentativa quase a matara. Confiava em seus salvadores o suficiente para deixar que a levassem até um lugar seguro.

– Está melhor agora. – Ývela terminou o curativo no braço ralado da morena, afastando-se para buscar algo numa pequena bolsa de couro. Trouxe uma capa, que colocou sobre os ombros da menina. – Jarek não vai precisar dela.

Serafine sentiu repulsa ao tocar no tecido que o guerreiro havia usado, mas era um alívio não sentir mais o frio cortante que os pingos de chuva causavam. Suspirando, a morena recostou-se na pedra atrás de si, relaxando por míseros segundos.

– Vamos! – Jarek havia se levantado e marchava floresta adentro, parecendo conhecer bem o caminho que seguia.

– Como assim, vamos? – Serafine perguntou, erguendo-se com dificuldade. As pernas estavam cansadas pela correria e pelo tombo, mas havia força suficiente para correr atrás dele com diversas perguntas. – Eu acabei de sofrer um ataque e você quer seguir viagem? O que há na sua cabeça, afinal?

– Precisamos continuar. – Ývela e sua serenidade surpreenderam Serafine. A loira detinha um fraco sorriso no rosto infantil, mas o olhar era carregado de emoções. Por alguns instantes, Serafine pensou ter visto uma carga de anos muito maior do que imaginara que a pequena guerreira tinha.

– Posso perguntar para onde vamos, exatamente? – Serafine tropeçava nos galhos altos das árvores enquanto passava por elas. Ývela, por sua vez, tinha uma graciosidade sobrenatural enquanto andava. Seus passos eram suaves, sem esbarrar em nenhum obstáculo. Jarek se mostrava apto a caminhar em locais cheios de empecilhos, assim como também se mostrava excelente em ser um irritante guerreiro apressado.

Após longos minutos andando e enroscando-se, Serafine finalmente avistou uma estrada de terra, uma trilha perdida em meio à floresta.

Dois corcéis estavam parados ali, aguardando seus donos. Eram os mesmos animais que ela vira na estalagem, no que parecia ser muito tempo atrás.

Serafine pensou em sua casa. Em sua mãe, seus conhecidos, seus amigos. Em como todos estariam depois do massacre. Talvez tudo e todos tivessem sido arrasados pelos monstros, impiedosos e com sede de destruição. Mas Mégara podia ter escapado do ataque. Ela podia ter fugido a tempo. Ela podia ter se salvado. Aquele pensamento esperançoso fazia seu coração acelerar.

Serafine não perderia a fé de que logo encontraria a sua mãe.

– Precisamos chegar a uma vila deste Reino. – Ývela não foi específica, mas tentou explicar-se melhor. – É para sua segurança, eu lhe garanto. Lá você encontrará algumas respostas.

– Mas eu não tenho nenhuma pergunta. – Serafine indignou-se. Jarek bufou. Seus olhos escuros demonstravam descontentamento, mas ela não se amedrontou. Estava começando a aprender como lidar com o temperamento do guerreiro.

– Escuta, garota... – Ele parou à sua frente com uma expressão entediada. – Pode não ter perguntas agora, mas com o passar do tempo será assombrada por coisas que nem imagina fazerem parte de sua vida. Precisa entender algo: você tem guardiões por um motivo importante. Aqueles Lobisomens foram o começo do que está por vir. Agora, suba no cavalo, sim?

Serafine franziu o cenho, as diversas afirmações do guerreiro ecoando em sua mente. Encontraria dúvidas pelo caminho? Mas que tipo de dúvidas? E ela tinha guardiões? Que história era essa?

– Serafine. – Ývela atraiu sua atenção. A loira olhava zangada para seu companheiro de jornada. – Jarek é sempre direto demais. Tente entender que essa nossa viagem irá lhe ajudar a descobrir coisas sobre seu passado, presente e futuro. Coisas que só lhe serão reveladas se confiar em nós.

– Eu não pretendo descobrir nada sobre o meu passado – Serafine retrucou friamente. Surpresa, Ývela assentiu, mas Jarek apenas balançou a cabeça.

– Pode confiar em nós? Já a salvamos uma vez...

– Três – Jarek corrigiu. Havia crescente arrogância na voz.

– Tanto faz – Serafine resmungou. O guerreiro lançou um olhar abismado em sua direção, mas foi ignorado por ela.

– Poderia prosseguir nessa viagem conosco? Vou acatar sua opinião agora, mas acredite quando lhe digo que você tem muito a descobrir – falou Ývela com calma, seus olhos fixos aos de Serafine. A morena assentiu com um aceno positivo, desistindo de argumentar.

Eles jamais entenderiam o quanto lhe custava pensar no passado. Implicaria em explicações sobre a existência daquelas marcas peroladas em sua pele, no motivo do seu abandono e tantos outros porquês que poderiam ser evitados. Estava certa de que não voltaria atrás. Não abandonaria a ideia de que, o que quer que tivesse acontecido para ter sido largada na porta da casa dos Delay, havia selado outra história em sua vida.

Aquele era um mistério que ela não pretendia desvendar.

– Você está toda suja de lama – Ývela comentou, olhando-a de cima a baixo. Serafine fez o mesmo, encontrando seu vestido e pele num estado maltrapilho.

– Suas roupas não cabem nela – Jarek pareceu divertido. Serafine usou de um olhar carregado, mas ele não se incomodou.

– Estou bem assim.

– Na verdade, eu tenho algumas roupas maiores aqui. O problema é a sua altura. – Ývela começou a remexer a bolsa que vinha pendurada na cela de seu corcel e jogou uma trouxa na direção de Serafine. – Experimente.

– Onde? – a morena indagou. Não iria se trocar na frente de Jarek de jeito nenhum, nem que para isso tivesse que passar o resto da vida coberta de lama.

– Temos que partir – Jarek disse com a maior calma que pôde. – Sua alteza pode provar as vestimentas quando encontrarmos um lugar seguro para acampar.

– Certo – Ývela assentiu, recolhendo a trouxa para guardá-la em segurança numa bolsa, que estendeu a Serafine logo depois. – Ao menos viajaremos sem chuva. – Apontou para cima, onde as nuvens tempestuosas começavam a sumir. Os pingos estavam muito mais fracos, passando quase despercebidos.

– Ótimo. Onde está meu cavalo? – Serafine indagou com as mãos no quadril. Se eles haviam perdido seu querido Grão, ela ficaria muito zangada!

– Não o trouxemos. Ele não era rápido o suficiente. Esses corcéis vêm do Sul, são tão velozes quanto o vento – Jarek explicou com orgulho, dando alguns tapinhas no pescoço do animal. Serafine reparou que se tratava do mesmo cavalo que a havia encarado na estalagem.

– Como ele se chama?

– Darius. – A morena gritou de susto quando o próprio cavalo lhe respondeu. Relinchando, o corcel bateu uma das patas no chão, lançando aquele mesmo olhar intenso para a garota. – Está no mundo mágico agora, Serafine. Nada vai ser como antes.


Capítulo 6

Estadia Temporária

 

 

Aqueles corcéis eram absurdamente rápidos. Seus trotes firmes mal produziam barulho quando as patas tocavam o chão e não havia obstáculo que atrapalhasse a corrida.

Serafine relutou em acompanhar Jarek em Darius, mas não teve escolha. Era o maior cavalo, o que significava ser a melhor opção para carregar dois passageiros. Ývela disse-lhe que, se preferisse, poderia ceder a Serafine seu próprio corcel, mas Jarek acabou com as esperanças da jovem quando disse que ela não estava apta a comandar um cavalo daqueles.

– São selvagens e só obedecem a um dono em toda a vida. Você seria lançada longe com um só coice. – O sorriso irritante surgiu no rosto dele. Agora, encontrava-se sentada atrás de Jarek, segurando-se nele de modo a ter o mínimo de contato físico.

Apesar de toda a confusão e tristeza que se alastrava na mente de Serafine, havia fascinação também.

Conforme adentravam mais e mais o Reino das Florestas, a jovem descobria o esplendor natural que aquela região possuía.

Como seria viajar pelos Quatro Reinos? Como seria atravessar de os famosos bosques do Reino do Norte, conhecido por ser o guardião do Rei dos Reis? Como seria vagar pelo deserto do Oeste, famoso por ser a terra de criaturas místicas desconhecidas por humanos? Ou então viajar pelo Reino do Sul, o mais gélido e inóspito dos quatro... Lá, diziam os viajantes, devia-se ficar atento até mesmo durante o sono. Era uma região perigosa, chamada de Reino das Brumas por um único motivo: a névoa não tinha piedade com aqueles que não sabiam esgueirar-se em seu caminho.

Até seu próprio Reino, o das Montanhas, era desconhecido por Serafine. Ela ficara trancafiada na Vila do Sol desde pequena, sem conhecer os segredos que podiam se estender pelos cantos daquelas terras.

E lá estava ela, viajando com seus dois salvadores por dentro do Reino das Florestas. Cada peculiaridade era absorvida por seus olhos com uma paixão tremenda. E como ela gostaria de compartilhar aquilo com seus conhecidos. Pensou o que Mahiry diria se a estivesse acompanhando: Henry não gostaria de viver nessas florestas. Veja só, meu vestido está coberto de lama! Serafine sorriu tristemente, deixando sua imaginação vagar até em casa. Rezou aos Deuses para que protegessem os sobreviventes, e rezou ainda mais para que Mégara e Mahiry estivessem nesse grupo.

Não suportaria descobrir que as havia perdido também.

Com a luz do Sol iluminando toda a paisagem à sua volta, Serafine reparou em detalhes que a noite não lhe permitira. As árvores pareciam muito mais velhas do que imaginava. Seus troncos estendiam-se dezenas de metros para o alto, parecendo não acabar. As folhas quase tocavam o céu, com seus galhos erguendo-se ainda mais. A natureza gritava, esplendorosa e ancestral.

A viagem durou horas e, com o tempo, Serafine parou de sentir o quadril de tão dormente que estava. Cavalgar em corcéis sobrenaturalmente rápidos não era uma experiência muito confortável. Sem falar que o cavaleiro ficara com a cela, o que deixava à Serafine um pequeno espaço de pano e o contato direto com o lombo do cavalo.

Ývela estava na dianteira com seu corcel menor. Em certo momento, ela disparou à frente, deixando seus companheiros de viagem na poeira.

Jarek bufou irritado, incitando Darius a ir mais rápido. O cavalo reclamou entre um relincho e um xingamento. Quando Darius terminou a grande curva que fazia na estrada, Serafine finalmente entendeu o que se passava.

Estavam próximos de uma vila. Ývela havia se adiantado para certificar-se de que era um território seguro.

A estrada que se esgueirava à frente deles acabava em um gigantesco vale rodeado pela floresta. Não havia indícios de que um desmatamento tivesse ocorrido para dar espaço àquela vila. Bem diferentes das casas simples de Vila do Sol, aquela pequena cidade tinha construções mais antigas e curiosas.

A entrada da cidade era uma larga e comprida ponte de madeira, sem qualquer proteção dos lados, e alta para os padrões normais. Ela fora erguida sob um rio fundo que também rodeava a vila. Depois da ponte, as casas sustentavam-se em tocos grossos de madeira, deixando a parte inferior das construções alguns metros acima do nível do chão. As próprias moradias eram feitas de madeira, sem pintura nas paredes.

Nas ruas, a maioria das pessoas passeava a pé. Nenhuma das construções era baixa, tendo sempre uma escada para levar à entrada. Mesmo os comércios tinham sido construídos um nível acima. Serafine inquietou-se quanto àquele tipo arquitetônico, já que era muito incomum aos seus olhos. Passara dezoito anos numa cidade onde tudo ficava perfeitamente firme no chão, com casas alinhadas entre si para dar harmonia à cidade, e lá estava um lugar que ia contra todas essas normas. As casas não tinham sido construídas em simetria. Podiam estar muito próximas ou muito distantes, mas não seguiam uma proporção.

Respeitavam a natureza, dando um tom civilizado ao selvagem que os rodeava. Era como se os habitantes daquela vila não quisessem se distanciar da floresta, por mais próxima que ela estivesse.

O vale estava iluminado pelo sol que, alto no céu, avisava que entravam no horário da tarde. A sombra produzida pelas árvores enormes deixava o ambiente aconchegante. O som de água corrente produzido pelo rio chegou aos ouvidos de Serafine logo que Darius se deteve.

Haviam parado bem em frente à ponte, ao lado de Ývela, escondidos por uma das árvores.

– O que houve? – Jarek perguntou. Estava com pressa e sem nenhuma paciência para conversas, apesar de não ter impedido Ývela de falar.

– Não podemos entrar aqui dessa maneira, Jarek. A cidade é território deles. – O modo enigmático com que falou atiçou a curiosidade de Serafine, mas ela achou melhor não se intrometer na conversa... Ainda.

– Ora, Ývela. Eles conhecem você, darão abrigo quando souberem nosso destino.

– E você pode provar que vamos para lá? São tempos difíceis, eles não confiarão em qualquer um – Ývela retrucou. Seus olhos grandes exibiam temor. Jarek pareceu compreender o que se passava e não recuou.

– Eu posso aceitar o risco.

– Mas eu não – Serafine falou. Jarek não a encarou, mas ela sabia que em seu rosto havia aquela expressão indignada. – O que há de errado com o povo dessa vila?

– Eles são nativos, Serafine. Não são abertos a visitantes, consideram a cidade sagrada – Ývela explicou. – Se entrarmos sem um convite, isso pode ser visto como um insulto.

– Mas viemos para cá porque era mais seguro, não? – Serafine estava confusa. Aquela cidade aparentava ser pacífica. Será que seus habitantes seriam diferentes?

– Sim. Eu já estive aqui uma vez, eles me conhecem. Sabem que sirvo ao seu propósito, mas...

– Eles não vão gostar de me receber lá – Jarek finalizou a frase.

– Muito bem, você é um sujeito chato e resmungão, mas nada além disso. Vocês me buscaram para encontrar um lugar seguro. Esse é o lugar seguro?

– Temporariamente, sim.

– Então vamos.

Serafine desmontou do corcel, seguindo em passos determinados pela ponte. Ouviu Ývela chamar seu nome, mas não parou.

Que mal poderia haver? Ela não era uma ameaça e, se devia provar isso demonstrando coragem, lá estava. Serafine já tinha aguentado segredos demais até agora para recusar abrigo.

A ponte estendia-se muito mais à frente do que ela imaginava, e também era vigiada, o que não havia passado por sua cabeça. As duas torres sentinelas estavam perfeitamente encobertas pelas árvores, o que ocultou os guardas que ali estavam. Bem no meio do percurso, eles interpuseram-se entre Serafine e a entrada da cidade. O salto deveria ter sido de mais de quatro metros de altura, e eles o fizeram com uma agilidade sobrenatural. Os soldados portavam lanças afiadas e seus olhares pareciam desconfiados pela perturbação.

Serafine reparou que o físico de todos eles era semelhante, por mais que detalhes os diferenciassem. Eram homens robustos, de pele marrom-avermelhada. Tinham as cabeças raspadas, apenas um ou outro exibia um tufo de cabelos em alguma parte da careca. Seus rostos angulosos estavam pintados em diferentes colorações com riscas horizontais que cruzavam suas bochechas e testa. Apenas um deles estava sem qualquer tinta no rosto, mas seu olhar duro desafiou Serafine.

– Quem é você e o que... – O soldado que se manifestou parou de falar assim que encarou Serafine. Ele pareceu surpreso e amedrontado, o que a fez olhar para si mesma.

Sim, ela estava cheia de lama pelo corpo, o vestido estava arruinado e sua maquiagem havia desaparecido por completo. O cabelo deveria assemelhar-se a um ninho de roedores, mas ela não se importou com isso. O que a assustou foi notar que, com a luz do Sol refletindo parcialmente em sua pele descoberta, as marcas peroladas pareciam brilhar.

Parte de seu corpo recebia os raios solares e a outra parte não, mas isso foi suficiente para os guardas observarem os desenhos que tanto envergonhavam Serafine.

Cada espiral tocada pelo Sol parecia mais clara, contrastando ainda mais com sua pele morena. Serafine assustou-se quando viu as armas outrora miradas em seu corpo sendo baixadas.

– Ei! – Os guardas voltaram a si, erguendo novamente as lanças. A morena bufou de irritação, sentindo sua vitória escorregar. Jarek e Ývela corriam em sua direção, sem armas ou cavalos, com as mãos para o alto.

Serafine notou que as marcas de Ývela também refletiam na luz do Sol.

– Venha conosco – ordenou o líder a Serafine, mas Ývela postou-se ao seu lado imediatamente. Jarek ficou um pouco distante, como se apenas avaliasse a situação, parecendo pronto para uma luta.

– Vamos ficar com ela – disse a pequena guerreira. O guarda olhou-a de cima a baixo, estudando-a como se a conhecesse. A diferença de altura entre eles não parecia amedrontar Ývela. Pelo contrário, ela parecia imponente próxima ao homem. Após relutar, o soldado assentiu.

– Muito bem. Vocês três serão levados à nossa líder. Demonstrem respeito. – Ele virou-se e começou a marchar. Os guardas deram espaço apenas para colocarem-se atrás do trio, deixando bem claro que qualquer tentativa de fuga seria interceptada.

– Quem é a líder deles? – Serafine perguntou para Ývela, mas foi Jarek quem respondeu, em seu habitual tom hostil.

– Alguém que eu queria evitar.


***


Serafine não estava acostumada a riquezas, por isso sua surpresa ficou evidente quando entraram no aposento da líder do povoado.

Passaram pela rua principal bem antes de chegarem ali, e foram seguidos de perto pelos habitantes. Serafine sentiu-se como o centauro que um dia buscara ajuda na Vila do Sol. Havia medo e desconfiança no olhar dos adultos, nenhum deles disposto a lhes prestar ajuda. Por sorte, não havia olhares de asco, o que não tirava a sensação de espanto quando as pessoas viam Serafine. Suas marcas pareciam chamar muito mais a atenção do que ela esperava, o que a fez esconder o rosto enquanto caminhava. Uma das crianças saiu de perto da mãe apenas para olhá-la mais de perto.

Sou algum tipo de aberração, percebeu.

Ao fim da rua, seguiram por outra estrada até adentrarem a floresta. Atravessaram uma ponte de madeira, dessa vez menor e menos vigiada. Bem no fim daquele caminho estava uma construção de madeira. Parecia uma espécie de templo, com toras altas sustentando o teto de palha que pendia à frente. Possuía um andar só e, ao contrário da vila, era construída no nível do solo.

Lá dentro, Serafine foi revistada por dois homens altos e amedrontadores. Eles eram muito mais fortes do que os guardas da ponte e não pareciam inclinados a mostrar piedade. Jarek resmungou quando foi apalpado, mas havia retirado todas as armas de seus esconderijos quando desceu do corcel, o que não convenceu Serafine. Ela acreditava que o guerreiro era capaz de esconder armas em lugares improváveis apenas para não ficar despreparado em um combate.

Os guardas não foram tão meticulosos com Ývela, o que irritou Serafine. Eles a haviam apalpado até estarem seguros de que era confiável, mas a loira apenas foi observada. Ývela era tão digna de confiança assim?

Seguiram por um corredor até alcançarem duas portas, com desenhos entalhados na madeira escura. Os guardas adiantaram-se e abriram-nas, dando passagem aos prisioneiros – ou convidados. Serafine não sabia bem como se definir.

Seus olhos arderam pela quantidade de dourado presente no salão.

O teto estendia-se metros acima de suas cabeças, com aberturas que davam passagem para a luz do Sol. Onde ela tocava, o ouro mostrava-se presente. O chão era de terra, indicando que aquela construção fora feita sem deturpar o ambiente que habitava. As paredes eram folheadas a ouro, cada centímetro revestido pelo metal precioso. No fim do salão, três degraus de mármore haviam sido colocados para portar, bem no topo, um gigantesco trono.

Dois homens altos e fortes, parecidos com os guardas que revistaram Serafine, estavam parados ao lado do assento. Olhavam fixamente para os convidados, certos de que qualquer movimento brusco seria considerado uma ameaça, e Serafine apostava como a mira deles era ótima àquela distância.

Uma pessoa repousava no trono, o olhar austero enfeitando suas feições cansadas. A mulher deveria ter mais de sessenta anos, mas poucas rugas habitavam seu rosto. Eram suas íris que revelavam o peso da idade. Círculos pretos se faziam presentes ao redor dos olhos escuros, contrastando com a pele marrom-avermelhada. Os cabelos eram negros, mas fios mais claros apontavam sua velhice. Estavam presos numa longa e complicada trança, e uma coroa ornava o topo de sua cabeça. Era de ouro, assim como as vestes que usava. Trajava um vestido longo, feito de um tecido macio, enfeitado com penas.

Ela se ergueu com calma quando os prisioneiros chegaram, encarando Serafine com curiosidade. Ývela foi a primeira a se ajoelhar, Jarek a imitou nem um pouco contente e Serafine fez o gesto desajeitadamente. Não sabia como se portar diante de uma líder, ainda mais com tantos guardas encarando-a como se fosse um lobo assassino prestes a atacar a velha.

– Não precisa usar esses maneirismos comigo, criança. – A mulher fez um aceno displicente com a mão, descendo os três degraus com lentidão. Ývela ergueu-se, exibindo um sorriso doce. Jarek afastou-se um pouco quando a mulher passou por ele, parecendo, para a surpresa de Serafine, temeroso.

– Ilustre Grímena, sempre tão hospitaleira. – A jovem loira adiantou-se em passos calmos, para não alarmar os guardas. Grímena recebeu-a em um abraço carinhoso, mostrando que sua estatura, apesar de meio encurvada pela idade, ultrapassava a da pequena guerreira.

– E a que devo essa visita, minha velha amiga? – a mulher se aproximou. Serafine surpreendeu-se com o termo usado. Velha amiga? Ývela parecia ser mais nova do que ela.

– Vim pedir abrigo temporário, Grímena. Sabe que os tempos são difíceis e que eu odiaria perturbar a paz de seu povo, mas necessitamos de ajuda – Ývela disse tudo com pesar, suspirando ao fim. Grímena estudou-a com seus olhos escuros, buscando entender o que a frustrava. Seu olhar vagou até Serafine, parada em silêncio próxima a Jarek.

– E posso lhe perguntar qual é o seu nome, minha jovem? – A velha senhora surpreendeu Serafine. Ela engoliu em seco, adiantando-se para se apresentar, mas Ývela o fez.

– Esta é Serafine Delay, e eu sou sua guardiã. Na verdade, somos. – Fez um sinal para Jarek, que permanecia quieto em seu canto. Grímena espiou-o com o canto do olho e cingiu as sobrancelhas, reagindo quase como se o reconhecesse, sem lhe dar muita atenção. Virou-se para Serafine.

– Essas marcas... Parecem-me familiares. – Caminhou em passos curtos até a jovem. Serafine era muito mais alta do que a mulher, mas sentiu-se intimidada por seu olhar, carregado de sabedoria e muito mistério. Ela parecia ser muito mais velha do que havia julgado. Grímena virou-se para Ývela e a jovem assentiu imediatamente. – Compreendo.

– Entende que não há mais fuga? – Ývela parou ao lado da mulher, buscando seu olhar. Grímena estava concentrada em Serafine, delineando com o olhar cada espiral perolado que cruzava o rosto da jovem. Serafine incomodou-se, mas não fez nada para pará-la. Temia que uma lança, a qualquer momento, atravessasse seu corpo.

– É uma situação complicada, minha querida, mas eu compreendo. O Conselho convocou os guardiões para escoltar Serafine, então está começando.

O modo como falavam em meio a enigmas irritou Serafine. Ela estava cansada de tantos segredos. Por que não podiam dizer tudo? Pelo visto, sabiam o que havia de errado com ela, já que a velha encarava suas marcas com reconhecimento. Podiam ao menos explicar o motivo do ataque à Vila do Sol.

O que eram aquelas criaturas amaldiçoadas que haviam matado seu pai e arruinado sua vida?

Serafine soltou um suspiro, o que chamou a atenção da mulher. Ela lançou um olhar intenso, mas sorriu.

– Deseja falar alguma coisa?

Hesitante, a jovem encarou Ývela. A guerreira a observava com temor, pedindo-lhe que não demonstrasse qualquer reação hostil. Ela sabia que Serafine estava prestes a explodir. Tantas informações, e tão poucas ao mesmo tempo, podiam causar um ataque de raiva em qualquer um.

– Não. – A morena engoliu a inquietação. – Só estou cansada.

– Ah, claro, mas que falta de educação a minha! – Grímena ergueu uma das mãos. Duas servas se aproximaram, aguardando ordens. – Levem a nossa hóspede para os meus aposentos, cuidem para que fique confortável. Quanto a vocês... – Apontou para Ývela e Jarek. – Precisamos ter uma conversa particular.

Serafine lançou a Ývela um olhar de temor, mas a guerreira sorriu com confiança.

– Podem ficar o tempo que desejarem em minhas terras. Sua estadia é mais do que bem-vinda – Grímena anunciou. Serafine seguiu com as duas criadas até um corredor lateral, no canto direito da sala do trono. Ele conduzia a uma única porta que, para a surpresa e admiração de Serafine, levava ao quarto mais belo que já vira na vida.

Diferente da sala do trono, o canto direito tinha janelas abertas para a densa floresta. As janelas eram largas, dando uma visão perfeita da natureza ao redor da construção.

A cama feita de madeira era larga, coberta por lençóis dourados. Serafine não se surpreenderia se fossem feitos de fios de ouro também.

Havia, no canto esquerdo, uma bacia de água suficientemente grande para o banho. As serviçais de Grímena apontaram-na para Serafine e fizeram um gesto para que a jovem se apressasse, saindo do quarto logo depois.

Serafine se viu perdida por não encontrar qualquer roupa para vestir, mas se lembrou da bolsa em que guardava as vestimentas cedidas por Ývela algumas horas antes. Depois que retirou as roupas sujas de lama, entrou na água morna e relaxou.

O óleo para banho tinha cheiro de flores, como os que Mégara comprava lá em Vila do Sol, lembrando-a de casa. Puxou os joelhos para perto do corpo, abraçando-se em busca de conforto, a mente embrenhada nas lembranças de seu lar. Agora não. Não posso me lembrar de nada. Ficarei perdida na dor se sucumbir a ela.

Depois de longos minutos esfregando a sujeira de terra de seu corpo, Serafine se viu limpa e perfumada. O cabelo estava lavado e solto sobre os ombros.

Enxugou-se com um pano deixado sobre a cama e vestiu as roupas que Ývela lhe dera.

As calças pretas justas marcavam perfeitamente suas pernas e o quadril, acabando na altura da cintura. Calçou botas de couro, que estavam um pouco amassadas devido ao modo como haviam sido guardadas, e uma camiseta de mangas compridas. De tecido fino e bem mais larga do que deveria, a peça caía de um de seus ombros. O decote da camiseta larga era um pouco maior do que o comum, mas, como uma peça feminina indispensável em, provavelmente, toda Warthia, Serafine usava debaixo da camiseta um corpete muito justo que impedia seus seios de ficarem aparentes. A corrente com a pedra verde que havia ganhado do centauro ainda estava pendurada em seu pescoço.

Com um longo suspiro, Serafine deitou-se na cama, feita de palha e madeira, e acabou deixando seus pensamentos vagarem longe durante a solidão. Enquanto suas pálpebras ficavam mais pesadas, a curiosidade em saber o que sua hospitaleira anfitriã e seus salvadores conversavam ficou mais aguçada, mas não atrapalhou o sono que rapidamente a atacou.


Capítulo 7

O Poço das Almas

 

 

– Serafine, acorde... – Ývela chamou com a maior delicadeza possível, mas o sono da morena estava pesado demais. Sem um pingo de paciência, Jarek adiantou-se até a garota adormecida e sacudiu-a indelicadamente. Serafine abriu os olhos no susto, franzindo o cenho quando viu que era Jarek o causador daquele espanto. Desvencilhou-se dele com um empurrão, afastando-se para ficar de pé. Ývela riu da cena, baixando o rosto quando se viu alvo da indignação de Serafine.

– Não tem educação nem para despertar uma pessoa?

Jarek deu de ombros.

– Você parecia uma velha que não dormia há séculos, para ser sincero.

– Dispenso sua sinceridade – retrucou a morena com escárnio. Ývela interpôs-se, encarando Serafine.

– Grímena convidou-nos para um jantar especial. – A ondina sorriu animadamente. – Hoje é noite da Lua Ímani. – Serafine pouco entendeu ao que a loira se referia. Sabia das histórias contadas sobre a deusa Ímani, mas não via o que ela podia ter a ver com a Lua.

Serafine era leiga em assuntos místicos. Sua educação não incluíra informações sobre lendas, exceto as que existiam em seus livros de fantasia. Por mais que sua mãe lhe contasse histórias mágicas, viver em uma Vila repleta de ceticismo deixava marcas.

– O que seria esse evento? – Serafine desviou o olhar para a guardiã. Jarek bufou impaciente, mas não recebeu atenção.

– É um ritual comum a esse povo. Estamos no povoado de Águas Claras. Sabe por que esse nome? – Ývela sorriu enquanto explicava. – Porque eles cultuam a Deusa das Águas. Ímani.

– Mas achei que o Norte tivesse como deus patrono o grande Thron – Serafine comentou. O pouco que conhecia sobre os Reinos e suas crenças estava totalmente errado?

– Não, você está correta. O Reino do Norte cultua o Deus dos Deuses, mas nem por isso um povo que veio para cá perderia a sua crença original. Na verdade, muitos povos vieram para esse Reino e permaneceram com suas crenças antigas. Estamos no território dos Hunnas, indígenas acostumados a cultuar uma só deusa desde o princípio. Por mais que o Reino do Sul é que tenha Ímani como patrono, os indígenas se mudaram para cá muito antes da divisão de Warthia... E não abandonariam a sua Deusa por essa simples troca de cenário.

– E o que seria essa reunião, exatamente? Eles comem e dançam para a Deusa? – Serafine nunca passara por um culto religioso como aquele, então sua curiosidade ficou atiçada.

– É bem mais do que isso. Grímena é a líder por uma razão: ela tem uma forte ligação com a Deusa. Nessa época, quando a Lua Ímani fica visível para os seus seguidores, ao menos espiritualmente, Grímena realiza uma espécie de conexão espiritual. Com nossa visita, ela tentará se comunicar com a divindade.

– Para quê? – Serafine assombrou-se com tal possibilidade. A mulher iria chamar a Deusa? Tinha tanta desconfiança nos visitantes que tentaria uma conexão com o mundo espiritual apenas para descobrir se suas intenções eram boas?

– Você vai ver. – Ývela sorriu, mas o fato de não saber de nada deixou Serafine incrivelmente irritada. – Ah, que bom que as roupas serviram – a loira disse, surpreendendo Serafine. Ela olhou para si mesma e ajeitou a camiseta que lhe caía dos ombros.

– Bem vestida, até que você não é feia – Jarek comentou com humor. Seus olhos escuros estudaram-na de cima abaixo e, mesmo sem qualquer charme ou sedução na voz, foi o suficiente para deixar Serafine sem graça. Ela lançou um olhar irritado, fingindo não se importar.

O céu estava todo estrelado e não havia indícios de nuvens para atrapalhar o jantar. Os guardas acompanharam o trio por uma estrada lateral até a via principal, onde havia uma pequena praça aberta.

Nesse local, para a curiosidade de Serafine, haviam sido colocadas cinco mesas extensas para comportar toda a população. Sentada na ponta da mesa do meio, em uma cadeira adornada com entalhes dourados, estava Grímena. Ela avistou seus convidados e ergueu-se, o que fez todas as conversas silenciarem.

Serafine engoliu em seco ao sentir os olhos de todas as pessoas em si, mas permaneceu firme. Jarek não pareceu se importar com toda a observação, assim como Ývela. Grímena ergueu os braços e exibiu seu sorriso mais acolhedor, convidando-os a se juntarem a ela.

– Quero que recebam nossos convidados como se fossem de nossa família. Agora, ao banquete!

Serafine foi guiada até o lugar à esquerda de Grímena, enquanto Ývela e Jarek eram levados pelo outro lado da mesa. Eles sentaram-se um pouco distantes, mas suficientemente perto para ouvirem a conversa da líder com Serafine.

A jovem notou, logo atrás da cadeira de Grímena, uma pequena construção feita de pedras brancas. A princípio, parecia um simples poço. Tinha um buraco na parte superior por onde se içava a água. Porém, olhando mais atentamente, ela percebeu que havia uma espécie de tampa. Era um prato de cristal, com a superfície portando alguns centímetros de água. Possuía entalhes de espirais dourados – a cor já começava a parecer tediosa para Serafine – e prateados.

Grímena apontou para Serafine e incitou-a a se servir. A mesa estava repleta de iguarias deliciosas.

Só então a morena percebeu o quanto estava faminta, por isso não hesitou em atender ao convite. A variedade de alimentos e o cheiro exótico que as comidas exalavam fez com que sua barriga roncasse. Aves assadas, suínos recheados, pratos coloridos repletos de frutas e verduras das mais variadas cobriam a mesa. Vinhos e sucos distribuídos em jarras de madeira eram servidos entre os convidados.

Quando terminou sua refeição, notou que era observada pela líder da tribo. Havia curiosidade em seu olhar, como no primeiro momento em que se viram.

– A senhora me chamou para sentar aqui por algum motivo específico? – Serafine tentou demonstrar o máximo de respeito, mas estava cansada de tantos segredos. A anfitriã sorriu, parecendo achar graça na atitude da jovem.

– Preciso lhe contar uma coisa, Serafine, que deve estar atormentando sua cabeça desde que chegou aqui. – A mulher olhou de relance para os dois salvadores da menina, que conversavam entre si baixinho. – Aquelas criaturas são confiáveis. Por mais estranho que possa lhe parecer, deve mantê-los ao seu lado durante a jornada que farão.

– Jornada? Achei que ficaríamos aqui até ser seguro retornar.

– Retornar? – a velha perguntou surpresa.

– À minha Vila.

– Vejo que seus guardiões não foram totalmente sinceros sobre essa viagem – Grímena comentou pensativa. Serafine virou-se para Jarek e Ývela, imaginando o que eles haviam escondido desde que salvaram sua vida. O que eles haviam conversado a sós com aquela mulher... Tantas coisas ainda não reveladas. – Se eles não lhe disseram, é porque não é o momento certo para fazê-lo. Ývela é sábia, sabe o que faz.

– O mesmo não se pode dizer de Jarek. – Serafine disse pensativa, fazendo Grímena rir com animação.

– É um jovem temperamental, realmente. Mas tem um grande coração. – Havia incredulidade no olhar da jovem, o que fez Grímena rir mais uma vez. – Descobrirá isso com o tempo. – Ela se levantou, mas a conversa entre as pessoas não se silenciou. – Gostaria de ver sua Vila, Serafine?

– Como?

– Confie em mim. – A mulher estendeu-lhe a mão e, incerta, Serafine aceitou. A anciã caminhou até o poço de pedras brancas e parou de frente para ele, com Serafine bem ao seu lado. A garota notou que o líquido não era água. Possuía uma coloração esbranquiçada, que dificultava sua definição.

– O que é isso?

– É o Poço das Almas.

– E para que serve?

– Concede-lhe a visão daquilo que sua alma mais anseia. – Grímena afastou-se para que Serafine parasse em frente ao cristal. Seus olhos ficaram vidrados naquele líquido de coloração branca. A mulher tocou-o com um dos dedos e Serafine viu-se encarando um caleidoscópio de cores, até que todas se ajustaram a determinados tons.

Ela conseguiu ver as casas moldando-se no líquido, e também as pessoas presentes na imagem. Era a Vila do Sol! Sua casa estava ali.

Os adornos do Poço brilhavam abaixo das imagens, mostrando que tudo não passava de uma miragem. Serafine sentiu sua visão embaçar pelas lágrimas e quase se deu ao luxo de mergulhar o rosto dentro da peça, mas Grímena a impediu.

A jovem concentrou-se na visão. Algumas casas estavam destruídas, restando apenas destroços. A praça estava vazia, mas pessoas caminhavam até ela carregando corpos cobertos por lençóis.

Se houvesse som, Serafine com certeza ouviria choros.

Procurou algum sinal de sua mãe entre os vivos, mas não a encontrou em lugar algum. O que avistou e fez seu coração gelar, porém, foi um dos corpos sendo colocado numa maca de feno. Mahiry estava com parte do rosto desfigurado, mas Serafine pôde ver que se tratava de sua amiga. A morena apertou a mão sobre a boca, contendo um grito de dor. As pessoas na miragem atearam fogo à cama de Mahiry e tantas outras, e a fumaça que saiu daquele velório foi tamanha a ponto de encobrir a visão do Poço, reduzindo-a novamente ao líquido esbranquiçado.

– Sinto muito, minha querida, mas lhe mostrei isso para que entenda que, por mais que deseje, não pode retornar. O passado deve ser deixado para trás. – Serafine não lhe deu ouvidos, balançando a cabeça negativamente para a mulher. – Esta noite, convocarei a Deusa para que conheça parte do seu destino. Warthia depende de você.

Serafine não entendeu como suas ações poderiam salvar aquele continente, mas não podia continuar ali. Lançou um olhar desesperado a Grímena e correu para longe, sem saber ao certo seu destino.

Só queria ficar sozinha.


***


Passos alertaram-na da presença de alguém, mas ela continuou sentada, escondendo o rosto entre os braços. A pessoa se sentou ao seu lado e permaneceu em silêncio, esperando até que ela se sentisse à vontade para falar. Serafine exibiu surpresa quando encontrou os olhos escuros de Jarek a fitá-la com um brilho diferente.

Parecia que toda a frieza que ele sempre demonstrava havia sido apagada, restando uma singela preocupação.

– Deveria parar de sair correndo por aí. Ývela e eu estamos cansados de persegui-la. – Serafine não esboçou reação, mas ele sorriu. Encostou a cabeça no tronco atrás de si e passou a observar o céu estrelado. Não havia presença de Lua no céu, o que despertou a curiosidade da jovem. Como haveria um ritual para a Deusa?

– O que faz aqui? – ela indagou. Jarek deu de ombros.

– Pensei que talvez quisesse conversar.

– Não com você – ela retrucou, fazendo o moreno sorrir.

– Ao menos você assume que quer conversar. E eu sou a única opção disponível no momento, então... Talvez possamos unir o útil ao agradável.

– Você não é nada agradável. – Um sorriso divertido despontou no rosto marcado pelas lágrimas.

– Mesmo que você não me considere agradável, sou muito útil – ele assumiu. – O poço lhe mostrou sua Vila?

– Sim. – A dor em seu peito retornou avassaladora.

– E você viu o que desejava?

– Não. – Serafine suspirou. A esperança da garota era encontrar sua mãe e Mahiry com vida, ver que talvez o massacre não tivesse abalado tanto aquela área... Fora terrível ver tudo destruído.

Ela vira, no rosto de cada um, sofrimento exacerbado. Ao encontrar o corpo mutilado de sua melhor amiga, a fé de que veria sua mãe de novo transformou-se numa pilha de cinzas. Ela havia desaparecido, ou podia até mesmo já ter sido velada, sem dar a Serafine a chance de se despedir. Lágrimas despontaram em seus olhos ao pensar naquilo.

– São raras as ocasiões em que nossos desejos se realizam – Jarek comentou. Seu olhar não se desviava do céu estrelado, mesmo ciente de que Serafine o encarava. – A vida te ensina isso. Você só é nova demais para entender.

– Tenho dezoito anos.

– Há oitos anos eu também tive sua idade e vivi coisas demais nesse meio tempo – Jarek retrucou. Seus olhos azuis recaíram intensos sobre os de Serafine, mas ela conseguiu sustentar o olhar. – O tempo deixa marcas, ainda mais quando você percebe que o mundo não é cheio de bondade e de pessoas que querem o seu bem. Há sombras por todos os lados. – Jarek entrelaçou as mãos, contornando, com os dedos, aquela tira de couro que envolvia um de seus braços. Serafine seguiu o olhar até lá, curiosa sobre o que havia debaixo da peça.

– Viver em uma Vila cética também deixa marcas. Ninguém esperava por um ataque como aqueles.

– Nós esperávamos – Jarek suspirou. – Fomos até lá por causa disso... Havia indícios de que os Amaldiçoados a buscavam, então precisávamos resgatá-la antes de um ataque. Infelizmente, não fomos rápidos o suficiente.

– E quando é que vocês me contarão o porquê disso tudo?

– Quanto mais você demorar a descobrir a verdade, melhor. – As palavras do guerreiro vieram carregadas de profundidade, mas, daquela vez, Serafine sentiu-se grata por poucas explicações. Sua curiosidade havia levado à revelação da dolorosa marca deixada pelo ataque na Vila do Sol. Não tinha mais tanta certeza se queria descobrir o que a aguardava.

– O ritual não vai mais acontecer, não é? – Jarek encarou-a confuso, mas exibiu um sorriso bem humorado.

– Por que não aconteceria?

– Ora, não há Lua no céu!

– Ninguém disse que a Lua estaria lá, princesa. – Jarek ergueu-se, estendendo a mão para a morena. – Grímena vai convocá-la.

Serafine franziu o cenho, lançando a ele um olhar incrédulo. Mas, depois de tudo o que já vira até aquele momento, só se resignou a dizer:

– Não me chame de princesa.


Capítulo 8

Convocação

 

 

– Hoje saudamos a nossa criadora! A Deusa de nossa raça! Aquela que sempre cuidou para que nosso povo ficasse em segurança. A protetora que abençoou nossas terras com seu toque divino, dando-nos a prova de sua gloriosa bondade! – Grímena dizia todas as palavras com paixão.

Serafine estava parada um pouco longe da multidão, acompanhando respeitosamente a cerimônia. Jarek, por sua vez, estava mais interessado em observar a adaga que carregava consigo.

– Pedimos, ó gloriosa Ímani, que nos fortaleça nesse momento de dificuldade! Olhe para os seus devotos e nos enalteça com sua presença, mostrando que somos de sua confiança. Precisamos que nos honre esta noite, para que receba nossa ilustre e importante convidada com o amor que há em seu coração! – Serafine congelou ao ver que todos a olharam por um momento. Jarek baixou a cabeça e riu pela reação da morena, recebendo dela um olhar nada gentil. – Serafine, venha até aqui – Grímena pediu, estendendo sua mão. A jovem relutou, mas começou a caminhar na direção da mulher. Passou pela multidão, que a encarava com diferentes tipos de olhares. Nenhum deles era ruim, pelo menos.

– Sabe por que pedimos que a Deusa a receba, Serafine?

A morena negou com a cabeça.

– Porque você foi escolhida pelos Deuses. – Ela apontou para a jovem, indicando os desenhos em seu corpo. – Há algo de especial em sua alma, doce Serafine. Os Deuses a tocaram por esse motivo.

– E para que fui escolhida?

E então toda a terra tremeu.

O ar ficou mais pesado, como se uma tempestade estivesse se aproximando. As nuvens flutuavam pelo céu escuro, escondendo as estrelas com suas sombrias formas. O vento soprou diferente, produzindo uivos que passeavam ao redor dos presentes. Serafine foi a única a se desesperar, agarrando-se com rapidez à cadeira utilizada por Grímena.

A sensação de pânico não foi compartilhada, apesar de estar tudo fora de controle. As pessoas ajoelharam-se e estenderam seus braços à frente, se curvando com total devoção. Deveriam estar gritando e procurando por proteção, já que o chão estava descontrolado. Ela estranhou a reação, até porque Jarek e Ývela faziam o mesmo. Quando olhou para o lado, gritou de assombro.

No lugar de Grímena, havia uma incandescente luz branca. Os olhos de Serafine demoraram a se acostumar, mas ela conseguia visualizar a silhueta da anciã ajoelhada atrás daquele feixe luminoso. Havia outra figura moldada pela luz. Era esguia e com rosto feminino. Os cabelos esvoaçavam à sua volta. Quando falou, sua voz ecoou suavemente, tão doce quanto a de uma mãe acolhendo um filho e tão altiva quanto a de uma rainha.

– Serafine...

A jovem estacou, encarando a figura com assombro. O modo como ela brilhava... Era o mesmo brilho suave da grande Lua, nos dias em que ela habitava o céu de Warthia. A mulher incandescente estendeu sua mão na direção da garota, mas ela recuou. Com medo de soar ofensiva, Serafine engoliu em seco, escondendo o medo, e disse o mais corajosamente que pôde:

– Quem é você?

– Eu sou Ímani, minha querida escolhida. E vim até você para ajudá-la a compreender seu futuro...

– O que há de tão especial no meu futuro? Todos parecem saber sobre ele, menos eu.

– É para sua proteção. Saber sobre tudo o que está destinada a fazer a levaria à loucura. O que lhe pode ser dito é que sua alma é especial para essa terra. Warthia depende de você.

– Por quê?

– Não posso responder a isso ainda. Mas tenho permissão para lhe indicar o caminho mais seguro. – A Deusa estendeu novamente a mão e, após muito considerar, Serafine aceitou-a. Sentiu todo o seu corpo tremular e depois ficar calmo, como se pairasse no ar. A figura luminosa havia desaparecido, mas deixara uma imagem gravada na mente de Serafine. Ela sabia agora o caminho que deveria seguir, mesmo que não fizesse ideia do motivo.


***


– A Deusa falou com você? – Ývela exclamou. A reunião havia acabado e todos se dirigiam para suas respectivas casas. Era como se a aparição divina não passasse de um evento comum, levando-os ao cotidiano poucos minutos depois. Serafine ainda sentia sua cabeça girar pelo contato com a divindade, mas estava melhor. O toque da Deusa parecia ter renovado suas forças.

– Ela me mostrou o caminho que devemos seguir.

– Já não era sem tempo – Jarek comentou. Seus olhos escuros não se desviavam da adaga em suas mãos. Serafine irritou-se com sua atitude displicente, mas prosseguiu o diálogo.

– E vocês já não conheciam esse caminho? – retrucou com impaciência.

– Sim, mas agora está confirmado que ele é o que devemos seguir. – Jarek deu de ombros, sem explicar claramente o que queria dizer com aquilo. Serafine não se surpreendeu.

– Ela também me disse que não poderia revelar meu futuro... Ainda. Algo sobre manter minha segurança. – Ývela assentiu, sorrindo.

– Tudo será explicado quando prosseguirmos viagem. – A loira parou de falar quando uma figura silenciosa aproximou-se do trio. Grímena sorria para eles, o mesmo sorriso doce e simpático de sempre. Jarek finalmente guardou a adaga, concentrando-se na anciã.

– Serafine... É uma honra tão grande saber que temos uma escolhida dos Deuses em nossa aldeia. – Ela segurou as mãos da jovem, encarando-a com intensidade. Serafine engoliu em seco, forçando um sorriso. Ainda se sentia estranha quando olhava aquela mulher. Enigmas rondavam suas íris negras, mistérios que ninguém seria capaz de descobrir. – Eu suspeitei quando vi as marcas que carrega, mas agora tudo está mais claro! Finalmente recebi a prova de que precisava.

Jarek franziu o cenho para ela, mas, acostumada com aquelas reações, Serafine não lhe deu atenção. Ývela entrou na conversa:

– Grímena, minha amiga... Sei que é um momento estranho para fazer esse pedido, mas precisamos partir o quanto antes. Serafine recebeu uma visão da Deusa e não podemos perder tempo... O sinal que precisávamos para continuar a viagem nos foi dado, graças a você.

– Ah, claro! – Grímena assentiu , afastando-se para conversar com um de seus guardas. – Providencie tudo para a partida desses jovens... Deixe seus cavalos a postos para a próxima manhã.

– Para a próxima manhã? – Jarek questionou com curiosidade. Grímena não lhe dirigiu o olhar enquanto respondia.

– É perigoso viajar por essas florestas à noite. Os Amaldiçoados estão por toda parte. – Seus olhos negros intensos vidraram na direção do guerreiro. Jarek sustentou por poucos segundos, encarando o chão em seguida. Era um rapaz muito petulante, mas não ousou manter uma troca de olhares tão tensa quanto aquela. Serafine surpreendeu-se. Jarek tinha os seus momentos de fraqueza, afinal.

– Tenho certeza de que os despistamos. – Ývela disse com total respeito, inclinando-se às ordens da anciã. – Mas seguiremos seu conselho. Descansaremos para a viagem.

– Excelente! Já sabem onde ficam seus aposentos. Agora irei me retirar para a meditação. – Grímena lançou um último sorriso e saiu dali em passos lentos. Seguiu na direção da rua principal, que levaria ao seu palácio no meio da floresta.

Serafine acompanhou a mulher com o olhar até que ela finalmente desapareceu na escuridão. Ainda assim, uma sensação estranha se alastrou por seu coração. Sentiu-se observada.


Capítulo 9

Apoio

 

 

– Tenho certeza disso! – A voz era conhecida, mas Serafine não ousou invadir o recinto. Sem qualquer vestígio de sono, ela se revirara na cama de palha daquela estalagem durante duas horas até finalmente desistir e sair para andar. O corredor era largo e cheio de portas. A de Ývela ficava duas depois da sua, e era exatamente lá que ocorria a discussão. Jarek estava exaltado e a guerreira loira tentava acalmá-lo. Aparentemente, sem sucesso.

– Pode ser que esteja enganado, Jarek. É impossível que...

– Eu sei bem quando vejo aquele tipo de olhar, Ývela. Você, mais do que ninguém, deveria confiar em mim!

– Mas a Serafine... – A morena retesou-se no mesmo instante, aguçando os ouvidos para prestar mais atenção e não perder detalhe algum. Sabia o quanto era feio ouvir a conversa alheia, mas ela estava incluída. O que lhe dava algum direito de ouvir.

– Sabe que estou certo. Só que vai descobrir isso tarde demais... – ele retrucou, encerrando o assunto. Serafine só notou que a voz estava próxima quando Jarek abriu a porta com um puxão, fazendo-a ofegar pelo susto. Ývela, parada em frente à janela, lançou a Serafine um olhar desconfiado. Jarek, por outro lado, não pareceu nada contente.

– Boa noite! – Retirou-se dali, passando por Serafine com uma velocidade fora do comum. A garota engoliu em seco, lançando um olhar de desculpas à sua guardiã. Ývela deu de ombros, pedindo que entrasse no quarto com um aceno. Serafine fechou a porta atrás de si.

– Serafine, preciso lhe dizer uma coisa... – A loira sentou-se numa cadeira feita de madeira escura e indicou sua própria cama para a visitante. Serafine, porém, permaneceu de pé, pronta para receber a bronca. – Mais cedo, quando Grímena pediu que Jarek e eu ficássemos para conversar a sós com ela... Lembra-se disso?

– Sim.

– Pois bem. Ela nos contou que seus grupos de caça andaram encontrando coisas suspeitas na floresta. Bem na região em que pretendemos ir... – Ela suspirou, massageando as têmporas. – Por isso, preciso que me diga exatamente o que a Deusa lhe mostrou. Talvez mudanças devam ser feitas.

– Bem... Era uma espécie de vale, cercado por árvores gigantescas, mais altas do que as que nos rodeiam. No fundo desse vale havia picos montanhosos enormes e neve em seus topos. E, entre as árvores, construído com um material reluzente à luz do Sol, estava um castelo colossal. Uma das torres parecia se perder entre as nuvens. O rio desaguava em uma cachoeira próxima ao castelo, seguindo pela floresta. Imagino que seja o mesmo rio que nos rodeia nesta vila.

Ývela estava pensativa, talvez calculando qual a probabilidade de aquela visão ser verdadeira. Serafine, de uma maneira assustadora, sentia que o lugar existia. Havia visto também, em um rápido vislumbre, a estrada que percorreriam para chegar àquele paraíso.

– E então?

– Teremos que seguir pelo caminho que Grímena nos indicou. Se formos pelo conhecido, será arriscado. – A guerreira suspirou enquanto se punha de pé. Serafine achou que deveria se retirar, mas Ývela parou em frente à janela.

– Não há outra opção?

– Não. Nosso destino é aquele castelo, não há fuga. – Ývela sorriu, tentando parecer encorajadora, mas Serafine conseguiu ver uma onda de temor em seus grandes olhos azuis.

– Vamos dar um jeito. – A morena usou as palavras com confiança, parando ao lado da companheira de viagem. Sentia que, por mais estranha que Ývela lhe fosse há tão poucos dias, estavam criando um forte laço de amizade.

A jovem loira assentiu, sorrindo mais animadamente. Serafine notou que as roupas que a guerreira usava eram muito parecidas com as suas. A calça de couro marrom escura era justa, adequando-se à forma física de Ývela. Cobrindo o tronco, um colete sem mangas, também de couro escuro, que demarcava sua silhueta magra e deixava os braços encobertos pelos arabescos azuis expostos.

– Ývela... Se eu lhe perguntar uma coisa, ficará ofendida? – Serafine falou antes que se arrependesse da coragem repentina. Sua guardiã deu de ombros, encarando-a com aquelas íris azuis curiosas. – Qual é a sua raça? – Ela engoliu em seco, sentindo que a pergunta saíra mais estúpida do que pretendia. Ývela pareceu achar graça.

– Bem... Acho que você já ouviu falar de sereias, não ouviu? – Serafine assentiu, procurando imediatamente por algum traço parecido com o das belas figuras do mar na guerreira à sua frente. – Digamos que... Sou parente delas.

– Mas você está fora da água.

– Sereias podem ficar fora da água, bobinha. – Ývela retrucou com diversão. – Sou uma ondina, Serafine. Uma elemental da Água, guardiã de todos os rios, lagos e mares de nosso mundo... Minha raça existe desde o princípio dos tempos e exerce a mesma função desde então. Garantimos que o elemento e suas criaturas aquáticas estejam protegidos.

– E os símbolos? – A garota indicou os braços de sua guardiã. Ývela encarou-os com o cenho franzido, como se nem se lembrasse da presença dos desenhos azuis.

– Ah, desculpe. Eu me esqueci de que temos algo em comum, além da mania de irritar Jarek – Ývela brincou. – São as marcas do meu povo. Cada criatura nesse mundo nasce com uma. Os humanos, por exemplo, têm as marcas em sua própria alma. Por isso, geralmente, se esquecem do quanto são próximos do divino e da natureza... Só porque não as exibem na pele, não quer dizer que não estejam lá.

Serafine pensou em várias coisas para perguntar, mas sabia que esse assunto se estenderia por horas até que sua curiosidade fosse sanada. Uma única pergunta, porém, lhe veio à mente.

– Eu tenho mania de irritar o Jarek? – Ývela caiu na gargalhada, fazendo Serafine rir também. – Não, espere. Você não tem essa mania! Eu vejo como o trata... São grandes amigos.

– Digamos que minha convivência com Jarek gerou uma amizade duradoura. Um ano viajando com aquele cabeça dura é o bastante para se acostumar com seu temperamento difícil.

– Acho que não concordo com sua afirmativa – Serafine replicou com bom humor, fazendo a guerreira rir. Ývela assentiu, pesando as palavras que usaria.

– Jarek é honrado e corajoso. Por mais que use essa carapaça de guerreiro durão, quando quer, consegue mostrar o grande coração que tem. – Serafine pensou no momento em que estivera devastada pela visão de Vila do Sol e em como ele se adiantara até ela, disposto a fazê-la se sentir melhor.

O diálogo tinha sido simples e rápido, mas servira para tirar-lhe um pouco da tristeza.

A morena meneou a cabeça com sutileza, pretendendo não concordar com a frase de Ývela. Ainda não sabia ao certo o que pensar sobre aquele guerreiro teimoso, mas o tempo iria ajudar a entendê-lo... Independente de quanto tempo tivessem pela frente.

– Ah, lembrei-me de uma coisa! Precisa carregar uma arma. Logo iniciaremos o seu treinamento de luta.

– Para quê? – O olhar de Ývela foi simples e compreensível. Serafine não estava mais num mundo comum. Havia monstros em busca dela e um futuro desconhecido. Aulas de defesa, com certeza, seriam mais do que úteis.

Ývela vasculhou uma grande bolsa esfarrapada e logo encontrou o que procurava. Estendeu a arma para Serafine, que se surpreendeu por se recordar de algo parecido com aquilo. Era uma aljava, que continha flechas de pontas afiadíssimas. Havia também um arco de madeira escura, com lindos entalhes em sua superfície, imitando galhos de árvores, de um tamanho que se encaixaria aos padrões de Serafine.

Aquele era o arco que Ývela utilizara durante o ataque dos Amaldiçoados. Serafine se lembrava de ter visto um parecido, anos atrás, no dia em que o centauro buscara ajuda em sua Vila.

– Acredito que você vá gostar dessa arma. Se preferir manejar espadas, pode pedir uma emprestada para Jarek... Ele é o senhor das armas por aqui.

– Mas esse arco é seu! – Serafine exclamou, tentando devolver a arma para Ývela. A ondina deu de ombros.

– Ele é especial para mim, por isso gostaria que o tivesse. Foi com ele que aprendi a atirar. – A loira sorriu suavemente. – Além do mais, sou como Jarek... Prefiro um combate corpo a corpo.

Serafine assentiu, olhando mais atentamente o presente em suas mãos. A aljava era cor de vinho, com desenhos de folhas por toda a sua extensão. Dentro dela, havia vinte flechas prontas para serem usadas, e o arco as receberia com graciosidade. As flechas tinham penas verdes em uma de suas extremidades e triângulos pontudos feitos de uma pedra prateada na outra.

– E acho que precisamos arranjar roupas mais adequadas para você. Essa camisa do Jarek não lhe caiu perfeitamente e...

– Essa camisa é dele?! – Por isso não estava servindo, pensou Serafine resignada. O tronco do guerreiro era marcado por músculos trabalhados e tinha quase o dobro de tamanho do dela.

– Uma camisa minha não caberia em você – Ývela replicou. Havia um sorriso simpático em seu rosto.

Que ótimo! Agora Serafine dependia de uma vestimenta que pertencia a Jarek. A última pessoa de quem ela queria qualquer coisa emprestada.

Depois de conversar mais um pouco com Ývela, a morena se retirou para que sua guardiã pudesse dormir. Em seu quarto, ficou olhando pela janela, procurando qualquer coisa interessante que pudesse encontrar. Viu uma coruja branca e algumas estrelas cadentes cruzando o manto escuro da noite, mas nada mais lhe capturou a atenção.

O ar ficou abafado durante a madrugada e Serafine sentiu calor como nunca antes. Aquela região das florestas tinha um clima muito instável, ao contrário da sua antiga moradia. Durante o dia, o Sol era avassalador e, se não houvesse precipitação pela noite, o ar ficava quente, anunciando que a chuva estava chegando.

Tirou a camisa larga enquanto estava sozinha, examinando o corpete justo que usava por baixo. Ele delineava perfeitamente seu corpo, mas não parecia uma roupa indecente.

Suspirando, a jovem aproveitou o momento de tédio para prender a aljava ao seu tronco. Afivelou-a na altura do peito, deixando as flechas atrás do ombro direito, facilmente alcançáveis. Se estivesse com paciência, poderia até treinar, mas a noite não era convidativa. A floresta densa que os cercava não parecia amigável a uma visitante desconhecida.

Ficar ali seria mais seguro.

Voltou a prestar atenção na paisagem do lado de fora. Seus olhos vasculhavam a floresta, concentrando-se nos troncos altos das velhas árvores. Avistou-as estendendo-se infinitamente, espalhando-se por lugares onde os olhos não mais podiam ver. A estalagem ficava perto do rio e da entrada da floresta.

Tedioso era o termo mais adequado para aquele momento.

A situação se inverteu quando, minutos após observar a calmaria da vegetação, algo despertou sua atenção.


Capítulo 10

Cilada

 

 

Caminhando por entre as árvores, portando uma tocha, estava Grímena. A anciã vestia uma capa branca que se destacava do breu à sua volta, e andava muito depressa. Era uma situação curiosa para uma senhora de sua idade. No início, Serafine não notou nada de incomum. A líder decerto voltava de sua meditação.

Só quando olhou com atenção foi que Serafine viu algo estranho naquela cena. Conforme Grímena caminhava, a escuridão da floresta ao seu lado iluminou-se com o brilho das chamas, revelando gigantescas formas conhecidas. As figuras monstruosas estavam preparadas para uma invasão surpresa. E o pior era que Grímena estava alheia à presença dos monstros. As sombras os deixavam invisíveis...

Serafine ofegou e correu.

Precisava alertar os guerreiros.


***


O tumulto começou rápido demais, mas houve tempo para Serafine avisar Jarek e Ývela. Gritos de pânico foram ouvidos pelo vilarejo, enquanto o povo corria buscando por socorro. Serafine congelou de medo, revivendo as lembranças da noite do massacre em sua vila. Tudo estava para acontecer de novo. Crianças, mulheres e homens perderiam suas vidas, assassinados pelas bestas furiosas.

Os Amaldiçoados eram rápidos e logo estavam do outro lado do rio. Ficou claro que eles haviam abatido todos os guardas que vigiavam o vilarejo.

Jarek agarrou o pulso de Serafine.

– Ei. – O olhar dele foi surpreendentemente suave. – Precisamos ir. – Sem lhe dar chance para pensar demais na situação, ele começou a correr para longe do ataque.

– O que está fazendo? – ela exclamou indignada. – Vai haver um massacre! Precisamos ajudá-los!

– Precisamos sair daqui! Não há nada a fazer. A traição era verdadeira.

– Traição? Do que você está falando? – Serafine libertou-se do puxão, parando no meio da rua.

– Alguém nos traiu, Serafine. Revelou nosso esconderijo para os lobos! – Ývela exclamou impaciente. Olhava ao redor em busca de qualquer sinal de combate, mas os lobos ainda não estavam ali. – Nossa missão é protegê-la.

– Então é melhor me seguirem. – Num ímpeto de coragem, que provavelmente já estava irritando seus guardiões, Serafine correu na direção contrária à que seguiam. Quando alcançou a rua principal, encontrou um pandemônio.

Os Amaldiçoados estavam por toda a parte, destruindo as casas da aldeia enquanto perseguiam habitantes desprevenidos. Os guardas lutavam bravamente, mas não eram páreo para a força e destreza dos lobos. Uivos altos podiam ser ouvidos ao longe, indicando que aquele batalhão era só o começo.

Serafine não sabia manejar o arco, então pegou uma lança caída aos seus pés e partiu para a luta. Pretendia proteger um grupo de adolescentes encurralados por um quarteto de lobos, mas foi interceptada antes do combate. Jarek, com uma velocidade sobrenatural, passou por ela e lançou-se contra as costas de um dos monstros, cravando a espada afiada que carregava.

Ývela correu para lá, mas Serafine não se deixou ficar para trás. Já tinha aguentado pânico demais para ficar parada feito uma idiota, sem nem ao menos tentar ajudar. Se podia se mostrar útil em algo, que fosse ali.

Empunhou a lança e correu na direção dos monstros. Os adolescentes conseguiram fugir, enquanto Serafine lançava-se nas garras do inesperado. Sua lança atingiu o peito de um dos Amaldiçoados, abrindo um talho profundo. A criatura rosnou, avançando na direção dela. Agora desarmada, Serafine agiu em um impulso. Tirou o arco de suas costas e prendeu ali uma flecha afiada, estalando a corda no ar em um disparo contra a besta. O tiro atingiu a coxa do lobo, o que não teria causado estrago algum se não fosse o material de que era feita. A prata queimou a pele, fazendo-o uivar de dor.

Os companheiros da criatura olharam raivosos para a jovem, mas Ývela e Jarek cuidaram deles. O guerreiro decepou a cabeça de um dos lobos num só golpe, enquanto Ývela confundia outros dois com sua rapidez. Ela saltou para o lado quando os monstros vieram ao seu encontro, e um deles acabou por atingir o outro com o machado, fazendo com que sangue jorrasse para todos os lados. A loira terminou encravando sua lâmina prateada no pescoço do monstro que sobrevivera.

– Eu disse que você se sairia bem com o arco! – Ývela sorriu animada, o que fez Serafine rir um pouco. A adrenalina descarregada em seu corpo estava começando a desaparecer, apesar de ainda haver uma gota de coragem para prosseguir com a luta. Jarek não demonstrou sinais de que continuaria.

Em passos rápidos, alcançou Serafine e puxou-a pelo braço. Pareciam excluídos daquele caos todo. Ývela, por sua vez, estava no meio de uma luta com outros Lobisomens, impedindo-os de se aproximarem demais.

– Você gosta de se colocar em perigo ou só faz merda pra chamar a atenção?

– Você gosta de ser chato ou só faz isso porque é o seu natural? – ela retrucou, desvencilhando-se dele. Seu olhar foi capturado por uma figura solitária tentando lutar contra um dos monstros. Grímena enfrentava o mesmo lobo ruivo que havia assassinado o pai de Serafine.

Ira coloriu o olhar da garota, impedindo-a de prestar atenção em qualquer coisa que não a presença do monstro assassino. Serafine alcançou uma flecha em suas costas e mirou no lobo, mas a falta de habilidade desviou o tiro. A ponta do objeto pegou de raspão no braço dele, atraindo sua atenção na direção da atiradora. Serafine lançou à criatura um olhar furioso, que foi recebido pelo mesmo sorriso doentio de dentes afiados de antes.

Um Lobisomem avançou contra a morena, mas Jarek interceptou-o antes que o fizesse.

– Serafine, por favor! – Grímena berrou desesperada. Com o coração preenchido pelo pânico, Serafine correu na direção dela, mirando outra flecha. De repente, parou, baixando o arco. O lobo ruivo havia agarrado Grímena pelo pescoço e a erguia com facilidade. Todos ficaram em silêncio. Serafine estava próxima o suficiente para que suas pernas bambeassem de medo, mas não voltou para trás. Grímena a havia acolhido, tinha sua confiança e precisava ser salva. Ela não perderia mais ninguém para as garras daquele lobo.

– Seu povo deve se render, Grímena! – A voz gutural do monstro ecoou por toda a vila. As pessoas ainda vivas pareciam amedrontadas demais para fazerem qualquer coisa. Já os guardas empunhavam suas lanças com determinação. Estava claro que não iam desistir.

Ofegante pelo sufocamento, Grímena conseguiu balbuciar uma simples palavra:

– Nunca.

– Então o massacre continuará. A menos... – Seus olhos fixaram-se nos de Serafine e ela tremeu. Havia fúria nas íris escuras do monstro, e uma maldade sem tamanho. – Que nos entregue algo que procuramos.

Grímena arfou. Seu rosto estava contorcido em uma careta de dor. O lobo a soltou, fazendo a anciã cair de joelhos no chão. Sua mão ergueu-se e o indicador apontou para Serafine, que deu dois passos para trás. Imaginou que o monstro fosse atacar, mas ele apenas a mostrava para todos.

– Você nos pertence, Serafine! Deve vir conosco.

– Nunca! – dessa vez foi a própria Serafine quem falou. Num gesto rápido, apontou a flecha para o monstro e disparou. A mira foi melhor daquela vez, mas era evidente que precisava de treino. O disparo acertou no ombro direito da criatura, e o uivo de dor que se seguiu congelou a espinha da garota. Serafine correu na direção de Grímena, ainda caída ao chão. Ajoelhou-se para ajudá-la a se levantar quando Jarek parou bem próximo delas. O moreno apontou a espada para a garganta do monstro, a atenção centrada caso ele quisesse reagir. O lobo ruivo se contorceu.

– Obrigada... – mesmo caída, Grímena conseguiu murmurar.

– Vai ficar tudo bem, vamos tirá-la daqui – Serafine tentava controlar a tremedeira das mãos. Grímena estava a salvo, o lobo havia caído... Ao menos naquele momento havia uma chance de fuga.

– Mas... – Jarek congelou ao ouvir aquilo, virando-se para as duas. Grímena havia apoiado as mãos no chão e o cabelo escondia o rosto. Serafine franziu o cenho, sem entender por que ela não tentava se erguer. – Grímena partiu há algum tempo... – Os olhos da anciã ergueram-se, completamente brancos, e o seu rosto transfigurou-se em algo horroroso. Havia um sorriso sádico ali. O tom de sua voz ficou gutural e monstruoso. Serafine arregalou os olhos, lutando para se livrar do aperto repentino em seus braços. Quem quer que estivesse no corpo de Grímena a segurava de tal forma que a garota não conseguia se soltar.

– ÝVELA! – Jarek gritou, adiantando-se para afastar Serafine da mulher. Mas foi tarde demais.

A jovem assistiu estarrecida enquanto a mulher se transformava num monstro. Foram míseros instantes atormentadores, mas pareceram transcorrer com eterna lentidão.

A pele rasgou como um pedaço de pergaminho, e deu lugar a escamas amarelas. O rosto se transformou em algo animalesco, com um rasgo no lugar da boca, e dentes afiadíssimos cresceram instantaneamente. Sua altura triplicou, o pescoço esticou-se, ficando muito maior do que um Amaldiçoado. No lugar de braços e pernas agora haviam patas, com garras afiadas. Uma cauda surgiu, com a extremidade triangular pingando um líquido azulado. No local em que a substância caiu, ouviu-se um chiado e surgiu fumaça.

A criatura ergueu a cauda e atingiu Serafine. A menina só teve tempo de proteger o rosto com os braços enquanto era lançada a metros de distância de onde estava.

Jarek xingou com uma fúria repentina, erguendo a espada na direção do monstro. A criatura rugiu, adiantando sua boca mortífera para o guerreiro. Mas ele era rápido, e desviou-se do golpe com agilidade. Ývela jogou duas lanças na direção do monstro, correndo para acudir a desfalecida Serafine.


***


Jarek saltou nas costas da criatura, acertando repetidos golpes contra a carcaça escamosa. Grunhindo, o monstro lançou o ferrão na direção do guerreiro. Com um rápido movimento da espada, Jarek conseguiu cortá-lo. O grito de dor do monstro pareceu quase humano, mas não havia piedade em Jarek. Ele precisava acabar com aquilo e salvar Serafine, ou toda a missão estaria perdida.

Com passos velozes, lançou-se sobre a cabeça do monstro e desferiu um golpe de espada contra a sua garganta, quase decepando-a.

Jarek nunca havia lutado com uma besta como aquela, mas conhecia o suficiente sobre serpentes do deserto e ouvira histórias sobre dragões, e sabia que o ponto fraco era o pescoço. Aquele golpe bastaria para, pelo menos, deixar a criatura inconsciente. Não tinha tempo para continuar aquela luta. Serafine corria perigo.

Procurou rapidamente pelo Lobisomem ruivo, mas o covarde havia escapado. O ferimento de prata não fora suficiente para matá-lo, mas com certeza o deixaria incapacitado por vários dias.

Jarek sabia que tinham poucos minutos para fugir da aldeia antes da chegada de um batalhão de Amaldiçoados. Tinha que ser rápido e preciso. A única esperança de salvar Serafine da morte era encontrando o Castelo.


***


Os ofegos e resmungos da jovem eram proporcionais ao que sentia. Serafine havia sido atingida pelo ferrão do monstro, mas o corte não fora profundo. O problema era o veneno correndo por suas veias, queimando os seus pensamentos. Nem mesmo Ývela tinha um remédio para aliviar o que a pobre garota sentia. Serafine teria de ser forte e aguentar firme. A viagem até o palácio duraria dois dias.

– Serafine, você precisa me ouvir! – Ývela segurou seu rosto entre as mãos, enquanto Jarek fazia um curativo improvisado no braço atingido. Ela o usara de escudo e agora a sua pele ardia como se pegasse fogo. Serafine revirou os olhos, mas estava consciente das palavras de sua guardiã. – O veneno vai lhe causar muitas alucinações. Vai tentar deixá-la louca. Você tem que resistir... Vamos cavalgar o mais rápido que pudermos.

E logo que a frase foi finalizada, Serafine viu seu mundo rodar. Não era efeito da dor ou de alucinações. Jarek a erguia e corria para longe da vila, e Serafine pôde ver que a maioria dos lobos começava a marchar para longe. A luta naquele lugar havia sido perdida e a cilada falhara, mas eles haviam atingido seu objetivo.

Serafine desfalecia lentamente, enquanto seus guardiões corriam contra o tempo.


Capítulo 11

A Caminho de Líriel

 

 

A chuva veio enquanto o Sol despontava no horizonte, encoberto pelas nuvens negras. Os corcéis de Jarek e Ývela avançavam incansáveis pela floresta, não mais seguindo a trilha que outrora usariam. A preocupação principal estava nos lobos que, mesmo poucos, ainda os caçavam. Serafine continuava desacordada e ardendo em febre, carregada por Jarek. Ývela previa que a situação de sua protegida só pioraria, mas não podia fazer nada para ajudar. Líriel não estava tão distante assim. De acordo com o caminho mostrado pela Deusa, o curso do rio os levaria até o vale místico, pois a trilha mudava o tempo todo. Era um feitiço para afastar aqueles que não eram dignos de repousar no Castelo.

Segundo a visão, o sinal de que estariam próximos do vale era uma cachoeira despencando entre formações rochosas. Apesar de ter visitado o Castelo inúmeras vezes, a ondina não conhecia essa cachoeira. Sentia-se inútil, uma vez que o caminho que percorriam agora era vigiado pelas forças das Trevas. Seria muito mais fácil seguir por uma estrada conhecida, mas precisava confiar na Deusa.

Os cavalos, apesar de extremamente resistentes, pareciam cansados depois do longo dia de corrida. Ývela sabia o quanto os animais estavam exaustos, mas eles precisavam chegar ao Castelo. Somente o Sábio poderia ajudar Serafine, livrando-a da morte dolorosa que a aguardava. Uma rápida olhada para trás mostrou a Ývela que a situação de sua protegida deteriorava-se a cada minuto. O rosto cheio de vida da jovem estava assustadoramente pálido e os lábios começavam a ficar roxos. As alucinações surgiriam em questão de horas. Ývela conhecia bem a ação daquela substância, semelhante ao mortal veneno de um Escorpião Gigante.

Quando a noite caiu e o céu coloriu-se com a densa negritude, a dificuldade para cavalgar se tornou maior. Os corcéis eram hábeis e tinham uma visão privilegiada, mas a líder que os conduzia não era tão boa em viagens noturnas. Um grito de Serafine alertou Ývela de que o risco deveria ser aceito. A protegida tinha o rosto contorcido em uma careta de dor e os olhos, normalmente brilhantes, estavam apagados e preenchidos pelo horror. Jarek não tentava falar com ela, mas a mantinha firme em seus braços.

– Minha senhora. – A voz de seu cavalo chamou a atenção de Ývela. Ele ofegava enquanto mantinha o galope acelerado. O coração da ondina encheu-se de piedade, mas precisavam continuar a viagem sem paradas. – Sinto que nossos perseguidores estão mais próximos.

Ývela ergueu o rosto, procurando qualquer sinal que indicasse a presença dos Lobisomens. A escuridão foi a resposta, sem exibir vestígios de monstro algum, embora ela soubesse que eles podiam se ocultar muito bem nas sombras. Isso a inquietou, o que chamou a atenção de Jarek.

– O que houve? – Ele lutava para manter Serafine parada, mas ela parecia desesperada para se soltar.

– Eles estão perto! – Ývela gritou em resposta, incitando seu corcel a ir mais rápido. – Por favor, amigo. Precisamos chegar a Líriel!

O cavalo balançou a cabeça, assentindo, e logo seu galope ficou mais veloz. Darius também acelerou as passadas. Prosseguiram naquele ritmo durante o resto da noite, cruzando a floresta no caminho certo. Quando amanheceu, Ývela buscava sinais da cachoeira, mas tudo o que via eram árvores enormes e o rio correndo próximo a eles.

– Nada? – Jarek perguntou com frustração. Ývela balançou a cabeça negativamente. Era aquele caminho, a Deusa havia mostrado! Não tinha como errar. O rio estava seguindo seu curso da forma como esperavam. Nada estava fora do lugar.

Serafine havia parado de se contorcer, mas o rosto congelara em um olhar de horror. Ývela sabia que as alucinações continuavam. O veneno enchia sua mente de coisas medonhas, conduzindo a consciência a um mundo dominado pelo caos. O coração acelerava a ponto de entrar em colapso, e então parava.

A sua protegida estava se saindo bem. Aguentava com firmeza, sem sucumbir à loucura. Ývela tremeu, indignada consigo mesma. Deveria ter sido mais atenta à Serafine. Ela era jovem e impetuosa, assim como Jarek, e não sabia dos perigos que o mundo místico apresentava. A coragem para lutar por sua aldeia não fora suficiente para enfrentar o monstro que se passara por Grímena.

E, ao se lembrar dela, Ývela percebeu a idiotice que havia cometido. Confiara na anciã. Confiara em suas palavras, em seu olhar amistoso, sem desconfiar que as Trevas já tinham alcançado aquela região.

Grímena provavelmente morrera há tempos, e o monstro controlara aquela população em seu lugar. Durante sua conversa em particular, a anciã indicara a Ývela e Jarek uma estrada aparentemente inofensiva. O caminho indicado pela Deusa era diferente, e sua palavra pareceu mais segura.

– Ývela! – Jarek gritou de repente, tirando-a de seus pensamentos. O guerreiro a havia alcançado e agora cavalgavam lado a lado. Serafine não havia piorado, mas ainda assim o olhar de Jarek a assustou.

– O que houve?

– Lobisomens! – Ele fez um sinal para trás, enquanto incitava Darius a ir mais rápido. Distantes, mas visíveis, uma dezena de figuras gigantescas avançavam em uma corrida desesperada.

Ývela encheu-se de coragem e disse para Jarek seguir com Serafine. Ele sabia sobre a cachoeira e como encontrar o Castelo. Caberia à guerreira segurar aquelas bestas, dando-lhes tempo para escapar.

– Nem pensar! – Foi a reação imediata do rapaz. – Não posso deixá-la aqui. Você vai morrer. São muitos.

– Vá! – A ordem saiu com fúria e determinação. Quando desejava impor-se, Ývela colocava poder em sua voz, o que surpreendeu seu companheiro de viagem.

Mesmo assim, Jarek negou.

Ele tem um plano, pensou Ývela. Assim que viu o olhar de seu amigo, soube que ele lutaria ao seu lado. Mas ainda havia Serafine, e ela precisava ser salva.

– Sozinha você não os segurará – Jarek disse com convicção e, apesar da frustração, Ývela sabia que ele estava certo. Por isso, o guerreiro falou com seu cavalo:

– Darius, preciso que me escute com atenção...


***


Ývela despistou quase metade do grupo de Lobisomens ao escalar uma das árvores da floresta. As criaturas uivaram e começaram a segui-la, o que deu a Jarek a chance de um ataque surpresa. Ele saltou de outra árvore, que havia escalado muito mais rapidamente, atingindo dois Amaldiçoados com a espada de prata de Ývela.

A guerreira lançou uma flecha contra um lobo albino, acertando a testa da criatura.

O resto do grupo convergiu para eles, esquecendo-se do cavalo que disparava para longe. Darius cavalgava com rapidez, determinado a cumprir sua missão.

Ývela sabia que Serafine estava a salvo, por isso podia se concentrar na luta. Agilmente, saltou da árvore e caiu sobre um lobo marrom. Arrancou uma flecha da aljava e cravou-a no pescoço do monstro. A criatura uivou de dor, e então seus olhos se apagaram. A prata, material abençoado pelos Deuses, conseguia destruir quase todas as criaturas das Trevas. Os Lobisomens tinham uma história mortal com o metal, e seus corpos não eram capazes de resistir às armas feitas com ele.

Jarek havia abatido dois monstros, restando apenas uma dupla. Mas, enquanto lançava duas flechas contra eles, Ývela observou um movimento distante. Um vulto passou pela luta e seguiu adiante. Um dos monstros havia desaparecido, correndo na mesma direção que Darius.


***


Serafine mergulhava em um grau de alucinação tão alto que não sabia mais distinguir a realidade do pesadelo. O céu estava escuro, mas o Sol brilhava sobre sua cabeça. Gritos de horror e desespero enchiam seus ouvidos, junto de risadas assustadoras. A visão capturava sombras e todo tipo de criatura maligna que podia imaginar. Estavam atrás das árvores, no chão ou mesmo rastejando em sua pele.

Não via mais seus guardiões, mas sabia que estava em movimento. O corcel, que em sua visão era apenas o esqueleto de cavalo com olhos muito vermelhos, cavalgava com rapidez entre as árvores circundadas por monstros. Ele seguia para algum lugar por ordem de Jarek, mas Serafine não confiava mais neles. Só queria fugir da dor e do pânico... Warthia estava tomada pelas Trevas.

Quando o cavalo parou subitamente, Serafine foi lançada para frente. Suas mãos estavam moles e ela não conseguiu se segurar. Seu corpo febril e machucado caiu num amontoado de folhas, que para ela se assemelhava a um casulo de enormes insetos, e o corcel relinchou.

– Não pode fugir! – A voz da criatura não era amigável, e Serafine reuniu todas as forças que lhe restavam para se esconder. Não se deixaria levar por aquele esqueleto animalesco.

Circundou a árvore ao lado e esperou. Em sua mente, conseguira despistar o cavalo. Uma violenta tontura quase a fez vomitar. Lentamente, o mundo ruía, e ela não sabia mais o que fazer. Só tinha a noção de que fugir era a melhor opção.

Foi então que ouviu outros passos se aproximando. O som ficou muito mais alto do que todos os outros que o veneno produzia em sua cabeça.

Outro monstro a havia encontrado.


***


O Lobisomem, mesmo a certa distância, pôde ver que o cavalo carregava algo nas costas. A garota estava com ele. Seu líder ficaria satisfeito ao saber da captura da menina. Estava ferido, mas tivera forças para mandar um grupo trazê-la de volta. A Serpente havia feito um bom trabalho ao lançar mão daquele veneno.

A escolhida dos Deuses estava perdendo a sanidade e logo perderia a vida... Mas eles tinham o antídoto. A ordem de seu mestre havia sido clara: Tragam-na com vida. Agora ele corria contra o tempo para salvar a humana.

Impaciente, o Amaldiçoado acelerou o passo. O corcel estava determinado, mas a estrada acabaria logo. Ele se veria encurralado e a garota seria levada. Um sorriso despontou no rosto do lobo.

Quando o cavalo relinchou alto e tropeçou num amontoado de raízes, o que carregava foi lançado à frente e desapareceu atrás de uma árvore. O lobo apressou a corrida. Alcançou o animal e finalmente enxergou o que ele tanto queria.

Seu uivo cortou o silêncio da floresta.


***


Jarek ouviu o uivo de longe e grunhiu. O tom usado pelo Lobisomem indicava que Darius havia sido encontrado.

Ele e Ývela correram, determinados a alcançar o corcel. Darius precisava ser encontrado antes que fosse tarde demais.

Chegaram ao local quando o cavalo se erguia para dar um coice no Lobisomem. O monstro arreganhou os dentes, usando suas unhas para ferir Darius. Ývela foi mais rápida e disparou uma flecha na direção do lobo. A mira foi certeira e a criatura caiu morta, com a ponta de prata transpassada em sua testa.

Jarek alcançou Darius, segurando-o pelas rédeas.

– Fez um bom trabalho, amigo. – Olhou para o chão, onde uma bolsa cheia de frutas do vilarejo de Águas Claras rolara para trás de uma árvore.

No momento, ele e Ývela apostavam tudo no cavalo da guerreira, que tinha a tarefa mais importante daquele dia.

Serafine estava sob sua proteção.


***


O Lobisomem uivou quando encontrou Serafine e ela soltou um grito em resposta. Em sua visão, o monstro estava em carne viva, encarando-a com grandes olhos vermelhos. A besta atacou determinada a agarrá-la, mas Serafine escapou por entre seus dedos, correndo pela floresta. Sua cabeça doía como nunca e as alucinações estavam cada vez piores. A ação do veneno aumentava, restando pouco tempo para que ela fosse salva.

Era seguida pela besta, sem tempo para parar. Ao seu lado, as criaturas sombrias pareciam querê-la também. Toda Warthia estava dominada, Serafine tinha certeza disso, e o céu logo começaria a cair. Ela já conseguia ver rachaduras no tecido negro que encobrira a cor anil daquela tarde. Algo queria destruir o mundo.

As risadas se tornaram mais altas e vinham de um único ser. Um que amedrontou Serafine mais do que qualquer outro.

Tropeçou em galhos no chão, que para ela mais pareciam corpos estendidos, e caiu de bruços. O seu braço machucado bateu com força e a dor gerou um instante de sanidade na jovem. Ela conseguiu vislumbrar a floresta como realmente era, para depois tudo voltar ao pandemônio.

A corrida havia cessado. O Lobisomem agora estava sobre ela. Segurava um pequeno frasco de vidro, provavelmente contendo mais alguma substância mortal, e a imobilizava pelos braços. A garota não conseguia mais se contorcer, tamanha a dor que se alastrava por seu corpo. Não conseguiria impedir o monstro de obrigá-la a engolir o líquido. De repente, uma flecha pequena e afiada atravessou a pata da criatura. Uivando de dor, o lobo deixou o frasco cair e o líquido escorreu para fora, restando apenas algumas gotas.

Todo o mundo tremeu e a vista da garota embaçou.

As Trevas avançaram, impedindo-a de respirar.

Warthia foi engolida pela escuridão... E eu também, ela pensou. Seu corpo estremeceu de medo. Os gritos e as risadas cessaram, deixando o universo mergulhado em uma quietude sepulcral. Até que um grito altivo foi ouvido e Serafine avistou um vulto branco lançando-se sobre o Lobisomem. O monstro já havia se livrado da flecha e agora se embrenhava num combate violento. Novamente a terra tremeu e, dessa vez, a garota não pôde esquivar-se do toque das sombras.


***


– Jarek, o frasco! – uma voz desconhecida exclamou.

Serafine nada via, mas ainda estava viva. Seu corpo não respondia ao impulso de se movimentar, a visão não funcionava mais. A única coisa que conseguia fazer era ouvir o que acontecia à sua volta.

– Não restou quase nada do antídoto.

– Mas será suficiente até a levarmos para o Sábio. – Era Ývela quem dizia isso. Serafine sentiu vontade de ver o rosto amigável da guardiã uma última vez. Assim como desejou poder ver Jarek uma última vez. Eles haviam salvado sua vida... Gostaria de agradecer, antes que fosse tarde demais.

– Ande logo, rapaz! – insistiu a voz desconhecida. Se Serafine pudesse sentir alguma coisa, perceberia seu rosto sendo erguido e o restante do líquido, derramado em sua boca.

Sua boca foi tapada, impedindo-a de expelir a substância. Uma mudança súbita sacudiu o seu corpo, como se um choque percorresse seus músculos. Os sentidos reanimaram-se, mesmo que apenas por um instante.

Depois, sem saber se viveria ou se morreria, sua mente despencou, entrando novamente no mundo habitado pela escuridão.


Capítulo 12

No Castelo das Quatro Luas

 

 

A temperatura estava amena para um dia tão radiante. Seu corpo inteiro doía, mas o lugar em que estava deitada era aconchegante. A maciez da cama contribuiu para que a dor fosse suavizada com o passar do tempo, já que tinha ficado ali mais do que poderia imaginar. Estava consciente, mas ainda não tinha força suficiente para se levantar, ou mesmo para abrir os olhos. Tudo o que podia fazer era relaxar e esperar que suas energias se renovassem.

Infindáveis horas se passaram entre as sonecas os devaneios sobre os acontecimentos dos últimos dias. Serafine nem fazia ideia do intervalo que se seguira desde o ataque, mas presumia que não fosse muito.

Algumas lembranças ainda a atormentavam, como a de Grímena, que, na verdade, era aquele monstro grotesco. Todo o carinho com que tinha tratado seus visitantes desaparecera como a fachada moldada para a armadilha. Ao pensar na verdadeira Grímena, Serafine sentiu-se mal. O seu destino e paradeiro eram desconhecidos.

A partir do momento em que o monstro a ferira, sua memória se mostrava falha. Talvez por efeito do veneno ou mesmo consequência de todas aquelas alucinações. Ao mesmo tempo em que se recordava da dor aterrorizante causada pelo corte no braço, Serafine não conseguia se focar nos fatos. Ela não lembrava, principalmente, do ataque durante a fuga com seus guardiões. Alguém a havia salvado do lobo, mas quem?

Então, quando os raios de Sol que brilhavam em seu rosto finalmente se apagaram e ela teve certeza de que tinha energia suficiente para levantar, abriu os olhos.

Era fim de tarde e, pelas gigantescas janelas que ficavam à frente de sua cama, ela vislumbrou o Sol desaparecendo atrás de picos montanhosos. Tais montanhas erguiam-se ao longe, uma atrás da outra, formando uma cadeia sem fim. Variavam em tamanho, mas pareciam titânicas se comparados às montanhas comuns. Seus picos eram congelados e tocavam o céu, exatamente como Serafine lembrava-se de ter visto na lembrança da Deusa.

O aposento em que se encontrava tinha teto alto e paredes bem afastadas. Cada centímetro daquele lugar era coberto por mármore branco polido. O teto era entalhado com pinturas incrivelmente chamativas. Os detalhes das nuvens brancas em contraste com o azul anil eram tão reais que quase pareciam o céu de verdade.

Um candelabro enfeitado com cristais iluminava o quarto. O efeito da luz sobre as pedras cintilantes era magnífico, e os reflexos produzidos contra as paredes deixavam o aposento banhado por cores belíssimas. As únicas janelas ficavam alguns metros longe da cama. Eram três retângulos altos, com intrincados entalhados na pedra ao redor da borda, que lhe davam visão para a paisagem lá fora. A cama larga e macia estava coberta por um lençol fino, de bordado belamente trabalhado.

Serafine notou que usava roupas diferentes das que se lembrava. Estava agora com calças brancas de tecido leve e uma bata de mangas compridas feita do mesmo material que a calça, porém de coloração mais escura e de costura mais larga, ajeitando-se ao seu corpo confortavelmente. Seus pés estavam descalços, mas havia sapatos de pano próximos da cama.

Depois de observar tudo atentamente, empenhou-se na árdua tarefa de se levantar, mas suas pernas bambearam, devido à fraqueza que ainda sentia. Sentou-se e esperou a tremedeira passar, ainda atormentada pela sensação de moleza. Perguntou-se onde estariam Jarek e Ývela, e, principalmente, se estariam bem.

Ela, curiosamente, se sentia bem. A tontura fraca e a tremedeira não eram nada se comparadas aos horríveis males causados pelo veneno. Serafine sentia que suas energias haviam sido repostas, e livrar-se daquele tormento era como acordar de um pavoroso pesadelo.

Ao lembrar-se da dor, ela ergueu a manga da camiseta para examinar o braço ferido. Estava enfaixado, mas não sentiu qualquer desconforto ao tocá-lo. Lembrou-se do ataque do monstro, da sensação de queimação em sua pele, e deu graças aos Deuses por ter sobrevivido.

Ainda se perguntava se aquele vulto que a havia salvado era realidade ou fruto de sua imaginação envenenada. Queria saber se seu salvador estava bem, e se algo havia ocorrido depois que perdera a consciência. Nada lhe vinha à memória depois do vislumbre.

O chão de pedra gelado de encontro aos seus pés causou-lhe calafrios. Decidiu explorar o lado de fora do quarto, imaginando que, se Jarek ou Ývela estivessem mesmo bem, logo estariam ali para mandá-la de volta ao repouso. Logicamente, isso não a impediria de tentar investigar.

A porta era alta e de madeira clara, com a maçaneta prateada. Não estava trancada e do lado de fora não havia ninguém de vigia, ao contrário do que Serafine imaginara. Dava passagem para um estreito corredor onde não havia janelas. No final, uma porta idêntica à de seu quarto estava aberta, indicando uma escadaria em espiral para baixo. Confiante, Serafine desceu os degraus devagar, torcendo para não sentir-se tonta e cair.

Ao fim da escadaria, a garota foi surpreendida por uma forte luz branca. Estava num jardim gigantesco, iluminado por uma bola de cristal localizada bem no centro. Colocada sobre uma mesa branca, cuja estrutura assemelhava-se ao tronco de uma árvore, ela refletia a luz incandescente em todas as direções. No chão havia um círculo de pedra dividido em quatro partes. O Norte estava representado com perfeitos entalhes em forma de árvores, o Sul, com uma espécie de fumaça branca movendo-se por entre as árvores de coloração clara, o Leste, com grandes montanhas vermelhas, e o Oeste, com diversas dunas de areia.

Foi absurdo, mas, por instantes, Serafine pensou ter visto as árvores do desenho balançando como se o vento passasse por elas. Viu também quando as brumas do Sul esvoaçaram em meio à floresta fantasmagórica...

A garota afastou-se dali, atordoada pela maneira nítida como havia visto o desenho se mover. Sua atenção se desviou para o jardim ao seu redor, enfeitado por arbustos e canteiros de flores de cores variadas e exuberantes. Lá fora, além do jardim, árvores frondosas cresciam em volta do palácio, mas Serafine mal as observou. O que mais a interessou foi a arquitetura do local.

O jardim ficava no pátio central e ao seu redor erguiam-se torres brancas altíssimas, reluzentes sob o toque da Lua presente no céu. A luz da bola de cristal parecia refletir o esplendor daquele lugar, dando ao Castelo uma aparência mágica. Cada torre, por menor que fosse, adequava-se ao estilo magnífico e nobre da construção.

Passos a alertaram da presença de outros indivíduos. Virou-se para o lugar de onde vinham, constatando que do outro lado do jardim havia um corredor descoberto levando a diversas entradas. Ali encontrou os rostos de Jarek e Ývela, e de um velho desconhecido. Seus guardiões também vestiam roupas limpas, sem nenhum indício de haverem passado por tantos combates até chegarem ali. Ývela usava um vestido simples que lhe caía perfeitamente bem. As mangas eram largas e o decote simples, ajustando-se ao ar jovial da garota. Os cachos loiros estavam presos numa trança e um sorriso doce despontava em seu rosto.

Jarek, por sua vez, usava trajes mais comuns ao seu estilo. A calça preta era confortável e levemente justa, a camiseta branca era grande e estava aberta desde o pescoço até a bainha, deixando à mostra o tronco definido do guerreiro, que exibia também algumas cicatrizes de batalha. O cabelo continuava rebelde, com alguns fios caindo sobre o rosto. Ele era atraente. E perigoso.

Por fim, havia o velho desconhecido.

Seus passos lentos tinham o apoio de um cajado de madeira. Sua vestimenta era composta de calça e camiseta de tecido escuro, com uma capa preta cobrindo seus ombros. A pele, em contraste com a cor escura de suas roupas, era branca e aparentava mais palidez sob a luz da bola de cristal. Seus olhos, Serafine reparou, eram grandes e expressivos e tinham uma cor chamativa de azul gelo. O cabelo era tão claro quanto a própria iluminação do local e estava preso para trás num longo rabo-de-cavalo. E foi graças àquele penteado que a jovem percebeu o detalhe mais importante do ancião: suas orelhas eram pontudas. Elas erguiam-se alguns centímetros acima do normal, terminando em ponta.

O velho parou perto de Serafine e a encarou intensamente, o que causou desconforto. Ela sentiu toda a sabedoria do ancião recair sobre seu olhar, porém a sensação incômoda ao manter o contato visual não era tão forte quanto fora com Grímena. Não havia qualquer mistério ou enigma em seu olhar, apenas conhecimento infinito.

– Serafine Delay... – ele disse brandamente. Sua voz era rouca e um pouco baixa. – Eu a aguardava há muito tempo... – O modo como não especificou aquele período perturbou a jovem.

– Fico tão feliz que esteja bem! – Ývela, em sua sempre comovente demonstração de sentimentos, apressou-se até sua protegida e a abraçou. Mesmo tantos centímetros mais baixa, a pequena guerreira tinha força no gesto, mantendo Serafine presa aos seus braços durante longos segundos. A morena retribuiu o abraço, sorrindo pela atitude.

– É, é bom ver que conseguiu sobreviver à paranoia. E pensar que chegou até a declarar o seu amor por mim... – Serafine apenas lançou um sorriso azedo para a voz zombeteira de Jarek. O guerreiro achou graça.

O ancião adiantou-se:

– Acho que deveria conhecer seu salvador, minha jovem.

– Mas... – Ela olhou para Ývela, que negou com um aceno. Jarek deu de ombros, indicando o caminho pelo qual tinham vindo. A luz da bola de cristal iluminou o quinto indivíduo naquele grupo, uma criatura que fez Serafine arfar de surpresa.


***


Guillian, o Bravo.

Era por esse nome que muitos o conheciam, com exceção, é claro, daquela jovem desastrada e imprudente à sua frente.

Guillian soubera que Ývela e Jarek estavam a caminho pela própria ondina, quando ela usou uma de suas magias místicas de comunicação. Eles teriam chegado rapidamente a Líriel se usassem o caminho tradicional, o mesmo apontado pela falsa anciã do vilarejo, mas optaram por confiar nas indicações da Deusa. E era exatamente esse o plano dos malditos lobos. Guillian estava próximo quando ouviu a movimentação das criaturas e os seguiu, sabendo que o ataque era iminente.

Havia dois caminhos para Líriel. Apenas um deles permanecia sempre o mesmo; era o caminho que Ývela conhecia. Contudo, depois de pensar, Guillian entendeu que era uma escolha complicada. O caminho conhecido era o mais seguro, mas indicado pelo monstro, o que podia significar uma armadilha. O outro tinha sido mostrado pela Deusa. Como aquelas criaturas ousavam invocar uma mentira em nome da grande Ímani?

Guillian inflava-se de raiva só de pensar. A aparição da Deusa havia sido uma farsa, um feitiço, e enganara-os completamente. A estrada que ela mostrara os atrasava e acabava num vale sem saída, onde eles seriam atacados pelos Lobisomens. Se não fosse o fato de um dos lobos carregar o antídoto, Serafine teria morrido e toda a missão teria falhado.

Guillian percebera isso antes dos dois. Quando decidira seguir o lobo solitário, imaginara que ele estivesse fugindo. Iria degolá-lo por isso. Uma criatura com covardia em seu coração não tinha o direito de portar uma espada. Esse era o seu lema. E aquele Lobisomem, se fugisse, enfrentaria a ira de sua arma. Ao avistar o alvo pretendido pelo monstro, percebeu que o plano dos jovens guerreiros de fazer com que Serafine fugisse em outro cavalo havia sido descoberto.

Com agilidade, Guillian subira numa das árvores e se lançara sobre o monstro. A criatura, pega de surpresa, só teve tempo de sentir a dor do golpe em sua garganta para então cair morto. A lâmina de prata tirou sua vida com rapidez e dignidade, embora ele não merecesse a última parte.

Guillian alcançou o frasco com o antídoto a tempo e, antes que pudesse administrá-lo a Serafine, Jarek apareceu, causando uma discussão. O guerreiro não confiava no antídoto, mas Guillian tinha certeza de que era a última chance da garota. Fez com que Serafine bebesse e depois ajudou os guardiões a levá-la pelo caminho correto até Líriel. Levaram um dia inteiro, mas a agonia não estava mais presente na mente da escolhida... O antídoto fora suficiente.

Quando chegaram à cidade sagrada, o velho elfo a atendeu e a salvou. E mais três dias se passaram enquanto ela repousava.

Então, naquele início de noite, Guillian finalmente encontrava com sua futura protegida. Estava acordada e o encarava com os grandes olhos curiosos. A cor âmbar estava resplandecente graças à luz, e o modo como os desenhos em sua pele brilhavam deixavam-na com aparência sobrenatural. Agora que estava acordada, ela não lhe parecia tão imprudente assim. Algo em seu olhar demonstrava que sua ousadia ao atacar o monstro, em Águas Claras, vinha de uma grande coragem.

E Guillian admirava corajosos. Mas a surpresa e a incredulidade em seu olhar o irritaram um pouco. Era sempre a mesma reação quando o viam pela primeira vez.

– Ele é fofo, não é? – A guerreira Ývela, por quem tinha tanto respeito, exclamou com animação. Guillian franziu o cenho e sacudiu as orelhas, encaminhando-se até o grupo com passos determinados. Não retrucou ao comentário, mas lançou a Ývela um olhar zangado. Ela não se importou.


***


Serafine via à sua frente, a poucos metros de distância, a criatura mais incomum que imaginou encontrar em toda a sua vida.

O guerreiro que a salvara tinha em torno de um metro de altura e o corpo todo coberto de pelos brancos e macios. Seu nariz redondo era grande e cor-de-rosa, os olhos eram expressivos e as íris de cor azul anil cintilaram quando encararam Serafine. As patas tinham três dedos cada e uma delas segurava uma espécie de lança, poucos centímetros maior do que ele, com uma lâmina prateada afiadíssima na ponta, que brilhou à luz da bola de cristal. Sobre sua cabeça, um tufo de pelos coloridos espetava-se para todos os lados, formando um pequeno topete verde. Duas orelhas cresciam nos lados daquele pedaço de cabeleira verde, descendo até a altura de seus calcanhares.

A criatura usava calça e colete feitos de pano, ambos de cor marrom. Tinha o cenho franzido ao encarar Serafine, talvez pela expressão de incredulidade ainda presente em seu rosto. Aquele animal era fofo, como bem dissera Ývela, mas não parecia ser gentil. Por mais que lembrasse um coelho, Serafine não ousaria fazer carinho nele.

– Serafine, este é Guillian. – O elfo ancião indicou o guerreiro baixinho e o animal fez uma rápida reverência. – Seu terceiro guardião.

A jovem ficou sem reação durante um tempo, sem saber se deveria retribuir a reverência ou cumprimentá-lo com um aperto de mãos. Resolveu sorrir para ele, que sorriu também. Ele tinha dentes quase humanos, diferente das outras criaturas que Serafine encontrara.

– Fico agradecida por ter me salvado – Serafine disse com sinceridade. Guillian deu de ombros, como se não fosse nada de mais, mas seu olhar era sincero.

– Eu fico feliz por minha missão começar a ser cumprida com tanto heroísmo. – Guillian tinha voz forte, o que era surpreendente para um parente distante dos coelhos.

– Então esse é o palácio! – Serafine olhou em volta, absorvendo cada detalhe daquele lugar magnífico. O elfo ancião aproximou-se dela, disposto a se apresentar.

– E eu sou o protetor do Castelo das Quatro Luas – disse. – Chamo-me Lonel. E digo novamente que é uma honra conhecê-la. – Serafine retribuiu a pequena reverência, cheia de dúvidas. Se aquele era o lugar que seus guardiões tanto esperaram para levá-la, então também era ali que suas perguntas seriam respondidas. Provavelmente, todos os seus questionamentos seriam respondidos pela sabedoria no olhar daquele ancião.

– Pelo visto, muita gente esperava me conhecer.

Um sorriso divertido iluminou o rosto do elfo, que assentiu com um aceno.

– De fato, minha cara. Mais pessoas do que você pode imaginar. – Ela crispou os lábios. Estava cansada de só receber enigmas e nunca uma resposta concreta. O elfo notou sua inquietação. – Imagino que tenha muitas perguntas...

– Mais do que eu mesma posso contar – respondeu sem graça. O que havia de errado com ela, afinal? Deveria demonstrar gratidão, e não irritação. – Esperei demais para chegar até aqui, e minhas dúvidas só evoluíram com o passar do tempo.

– Acredito que já tenha ouvido muito isso, mas é um juramento verdadeiro. Prometo-lhe que esses questionamentos serão sanados. Preciso de tempo para organizar tudo para o seu aprendizado e, até lá, as respostas devem ser mantidas em segredo. Seu Ritual acontecerá na próxima semana, uma vez que a Lua Ímani precisa ser realmente convocada. – Ele lançou um olhar intenso para Ývela e Jarek, compartilhando com eles algo sigiloso para Serafine.

Guillian adiantou-se até o ancião.

– Isso significa o que penso, meu senhor?

– Sim, Guillian – o elfo assentiu. – Retorne à sua aldeia e leve Serafine com você. Ela precisa encontrar o Primeiro Mestre.


Capítulo 13

Lua Crescente

 

 

Serafine estava apoiada em uma das janelas de seu quarto, deixando o olhar vagar pelo amanhecer por trás das montanhas. Vinte quatro horas se haviam se passado desde que ela despertara e descobrira que seu estado de quase coma durara três dias, sem contar os outros três que levaram para chegar até a cidade sagrada de Líriel. Mais de uma semana, pensou ela.

Não parecia tanto tempo, apesar de as lembranças do ataque à Vila do Sol se tornarem cada vez mais vagas. Serafine sofria, sem poder buscar pelo apoio de alguém mais próximo. Sabia que Ývela era uma ótima ouvinte, mas ainda não tinha confiança suficiente para desabafar. Suspirando, ela desistiu dos devaneios e resolveu caminhar. O Palácio fora-lhe mostrado por Lonel, mas havia áreas que ela ainda não conhecia.

O Palácio era o lar de toda a raça élfica presente em Warthia. A maioria daqueles seres havia se aventurado nas Terras Desconhecidas juntamente com outros povos, como os centauros, desde que a Era dos Magos se iniciara. Algumas dezenas de elfos permaneceram em Warthia, dispostos a preservar aquele pequeno canto em sua vida imortal. Líriel era o único espaço utilizado pelos imortais desde o início dos tempos, e assim seria até o fim de tudo.

Serafine perguntou-lhe o motivo de tantos terem deixado aquelas terras, mas Lonel não soube responder. Seu olhar estava carregado de melancolia quando comentou sobre o afastamento de seus irmãos e irmãs. Eles resolveram abandonar as raças inferiores, como as denominavam, e poucos se arriscaram a permanecer em terras onde o domínio élfico era tão pequeno. Queriam conquistar seu próprio espaço, segundo Lonel. Desejavam deixar as guerras e os conflitos para trás.

Considerando o modo como Lonel falou daqueles acontecimentos, Serafine compreendeu que ele os havia presenciado. Suas palavras vinham carregadas de pesar e dor, mas ele mantinha o olhar firme enquanto falava. Parecia cansado ao lembrar tudo aquilo, mas satisfeito por poder conversar com alguém interessado.

Serafine, aliás, estava mais do que interessada. Cada detalhe que o ancião contava sobre a história daquele Palácio deleitava sua imaginação, iluminando sua mente criativa com suposições e possibilidades.

Conforme caminhava, enfurnada nas lembranças do passeio do dia anterior, a quietude e paz presentes naquele lugar a rodearam uma vez mais. Era curioso que, depois de tantos dias passando por acontecimentos assustadores e inúmeros tormentos, estivesse em um paraíso como aquele.

Era uma mudança tão repentina que chegava a ser absurda. Só se sentia mal por saber que a Deusa, aquele ser luminoso que lhe mostrara uma visão do Castelo das Quatro Luas, não passara de uma mentira. Por mais que as imagens mostradas tivessem sido reais, o ser divino era apenas um feitiço... Embora ninguém soubesse quem o havia feito.

Esse era mais um de seus questionamentos. Soubera apenas que a Serpente não fora responsável por aquilo. Monstros não controlavam magia. Havia alguém por trás daquela armadilha, alguma criatura capaz de criar feitiços.

Durante o passeio, Lonel explicou alguns detalhes daquele lugar. Serafine descobriu que as pinturas gravadas no enorme círculo, aquelas que subitamente ganharam vida em sua presença, eram de fato encantadas, representações vivas de cada Reino. Mostravam a principal característica de cada um, como as densas brumas do Sul ou as imensas florestas do Norte. No passado, quando os Reinos ainda eram um só, principalmente durante a guerra, elas mostravam os danos causados em cada território, como, por exemplo, a época em que as florestas haviam sido devastadas. As pinturas do Norte também se arrasaram, mostrando em seus detalhes os estragos provocados à natureza.

A garota conheceu as quatro torres principais, imensas edificações cheias de corredores e aposentos belamente decorados.

Lonel contou outras coisas, além da história daquele lugar. A primeira delas foi o nome da criatura que se fizera passar por Grímena. Tratava-se de um Pekrus, ou, como os antigos chamavam, uma Serpente, capaz de enganar todos à sua volta mudando de forma. Quando assumia sua verdadeira aparência, era um monstro escamoso de forma draconiana, dono do veneno que quase levara Serafine à loucura.

O elfo disse ainda que o Castelo das Quatro Luas cultivava uma planta especial em seus jardins, o ingrediente principal do antídoto para o veneno da Serpente. Era a Flor da Lua Azul, ou Lua Ímani, como todos em Warthia chamavam.

Lonel, ao contrário de seus discretos guardiões, parecia ávido por responder suas perguntas. Detinha-se apenas quando os questionamentos elevavam-se demais, como quando Serafine ousou questionar sobre o ataque à Vila do Sol.

Uma pergunta, porém, foi respondida por completo. Uma que, na opinião de Serafine, seria imediatamente recusada. Lonel hesitou um pouco, os olhos cor de gelo fitando o céu da noite como se buscasse as palavras certas. Estavam caminhando por uma estrada de pedras brancas, um caminho encantador até a cachoeira. A mesma paisagem da visão de Serafine. Ela sentiu-se inebriada pela esplendorosa natureza daquele local. O rio, prateado graças à luz da Lua, estendia-se dos dois lados a distâncias inimagináveis. Se fosse o mesmo rio que cercava o vilarejo de Águas Claras, podia-se ter uma ideia de sua dimensão.

A cachoeira nascia de um lago bem próximo ao caminho de pedras, distante alguns metros do Castelo. A água ali era muito límpida, de maneira que Serafine podia ver peixes coloridos nadando no fundo.

Lonel olhava fixamente para os arredores, cercado por árvores magníficas de alturas descomunais. Serafine reparou que o brilho pálido da Lua deixava o rosto do elfo mais velho ainda e, mais uma vez, perguntou-se qual seria sua verdadeira idade. Lógico que, mesmo tentada pela curiosidade, jamais deixaria tal questão escapar de se seus lábios.

– Do que se trata o Ritual, você me questionou – disse ele. – É uma resposta complicada, para ser sincero. Esse Ritual nunca foi realizado. – Tal revelação a assombrou, mas ficou quieta, esperando o elfo responder. – Você sabe que é especial, minha cara, mas não tem ideia do quanto. Livros já falavam sobre você muito antes que você nascesse...

– E como isso poderia acontecer?

– Da mesma maneira como Jarek e Ývela salvaram sua vida antes que fosse tarde demais. Da mesma forma como você ficou protegida durante esses dezoito anos, aguardando por seus guardiões, involuntariamente. Seu espírito nasceu conectado ao mundo mágico de uma maneira que ninguém pode imaginar. – Havia mistério nos olhos claros dele e ainda mais enigmas no modo como falava. – As marcas em seu corpo não são simples desenhos, mas provas de que você é aquela que tanto procuramos. O Ritual ajudará a clarear sua mente, mas precisa ser feito com cautela... Qualquer erro seria perigoso demais.

– E por que me procuraram? – Serafine tentou se livrar das palavras finais da explicação dele. Por que qualquer erro seria perigoso demais?

– Isso, minha cara, é uma pergunta que deve ser ignorada. Seria difícil explicar cada detalhe que a trouxe até aqui. Sei que exigimos demais de sua confiança, mas provamos que estamos aqui apenas para protegê-la. Por mais que a omissão de informações a esteja irritando, quando passar pelo Ritual e finalmente conectar sua alma ao nosso mundo, compreenderá sobre sua jornada.

E lá estava Serafine, na manhã seguinte à conversa, relembrando cada palavra dita pelo elfo. Conectar minha alma? Ela estremeceu, lembrando-se dos viajantes que passavam pela Vila do Sol falando sobre os rituais de sacrifício do Reino do Sul, que envolviam mortes brutais em homenagem aos Deuses. Não eram imagens felizes ou tranquilizadoras sobre rituais de qualquer tipo. Não que aquele elfo parecesse capaz de tamanha atrocidade, mas, desde que se enganara com Grímena, preferia não arriscar.

Quando terminou a descida de sua torre e alcançou o corredor, não soube para onde ir. A garota percebeu que aquele Castelo não recebia muitos visitantes. O silêncio pairava sobre ele. Imaginou que, àquela hora, seus guardiões não estivessem acordados. Não queria ficar vagando sem a companhia de alguém, pois, por mais que fossem poucos e raramente avistados por ela, Serafine tinha os seus receios em relação aos moradores.

Os elfos que avistara na noite anterior tinham se mostrado silenciosos e reclusos, seus olhares discretos demonstrando não estarem dispostos a conversar com a visitante. Todos tinham aparência séria, com feições suaves e perfeitas, e olhos carregados de sabedoria. Não pareciam com os olhos de Lonel, mas também desprendiam intensidade.

Seguiu, então, pelos corredores enfeitados por diversas tapeçarias antigas. Algumas eram tão belas que pareciam ter sido pintadas pelos Deuses, representando a natureza e criaturas fantásticas que nela viviam. Outras eram tão medonhas que Serafine evitava olhar, mostrando cenas de batalhas com monstros que pareciam saídos dos mais horríveis pesadelos.

Sua caminhada a levou até um salão. Mais precisamente, até a ampla biblioteca. Maior do que Serafine jamais sonhou ver, uma vez que estava acostumada com os padrões simples da única biblioteca de Vila do Sol, aquele gigantesco aposento tinha proporções surpreendentes. Suas paredes eram brancas e se erguiam a uma altura colossal. Da abóbada no alto desciam detalhados contornos, tão perfeitos que quase pareciam reais, representando as árvores da paisagem lá fora. As formas entalhadas estendiam seus galhos em todas as direções, enroscando-se umas nas outras. Suas folhas pareciam se misturar.

Ao seu redor, estantes de madeira estavam dispostas em todas as direções, cheias de livros grossos e antigos. A jovem havia vislumbrando aquele lugar mais cedo, e finalmente podia vê-lo de perto.

Serafine conseguia sentir um cheiro que misturava incenso de flores e livros velhos. A brisa daquele início de manhã soprava pelas sacadas dispostas no canto direito da sala.

A garota perdeu-se em deleite enquanto seus olhos passeavam pelos exemplares, a maioria em uma língua desconhecida formada por símbolos. Passando entre as estantes, Serafine logo se viu num labirinto extenso e interminável. Por mais que achasse aquele salão grande, ele parecia se estender sempre mais e mais.

A iluminação no meio dos corredores era fraca, proporcionada por velas penduradas em diversos candelabros. Serafine se perguntou se a visão dos elfos era privilegiada, pois ela tinha de se aproximar muito dos livros para enxergar seus títulos.

Um, em particular, chamou sua atenção. A capa era cor de bronze e não tinha título algum. Era a única obra sem nome no meio de tantas outras. A menina não conteve a curiosidade e resolveu olhar seu conteúdo, mas qual foi sua surpresa quando encontrou as páginas igualmente vazias. Frustrada, buscou por alguma palavra em cada pedaço daqueles pergaminhos, mas não havia uma sequer. Devolveu-o à estante com uma expressão intrigada no rosto.

Perguntou-se o que um livro vazio fazia ali e decidiu, então, perguntar a Lonel. Ele saberia responder. Isso se também não fosse uma informação sigilosa, analisou com frustração.

Com rapidez, encontrou o caminho de volta até a entrada, mas, quando se aproximou da última estante, ouviu vozes conhecidas no centro do salão. Logo após a porta, virando à direita, havia algumas mesas de pedra perto das sacadas. Era lá que as pessoas conversavam.

Duas vozes foram fáceis de identificar: Jarek e Ývela. Lonel também estava lá, e a quarta voz era desconhecida. Não conseguiu espiar através dos espaços entre as estantes, mas a voz era claramente feminina.

– Ela precisa entender o que está em risco. – Jarek disse isto. Sua voz grave estava um pouco alterada, mas Serafine não conseguia identificar o motivo da alteração. Jarek era irritadiço demais, o que dificultava entender seu estado de espírito.

– Ela tem consciência disso. – Calma como sempre, Ývela interveio na conversa. – Não podemos continuar agindo como se fosse um segredo eterno. Sabemos que é temporário...

– Sabe que, quando ela descobrir, não vai aceitar. – Jarek parecia frustrado. – É sacrifício demais para se exigir de alguém tão jovem e inexperiente.

– Ela já tem idade para decidir o que fazer, Jarek – Ývela retrucou. – Warthia está nas mãos dela, por mais que você negue.

Ele não tem fé em mim, constatou Serafine. De fato, não era inesperado. Jarek sempre ficava indignado com suas atitudes, por mais heroicas que fossem. Surpresa, compreendeu que estava decepcionada.

– Não adianta discutir, jovem guerreiro. – A voz cansada de Lonel chegou aos ouvidos de Serafine. Ele parecia ainda mais velho com aquele tom. – Serafine é a escolhida. Sua alma deve receber o Ritual e então ela começará a treinar. Se Serafine desistir, condenará nosso mundo ao caos.

Serafine conteve uma exclamação, sabendo que tal atitude denunciaria sua presença. Estava ficando perita em ouvir conversas alheias e não podia estragar tudo agora. Eles falavam sobre seu futuro e, quem sabe, podiam revelar alguma informação valiosa que tanto vinha sendo escondida dela.

– E quanto aos ataques? Tanto da Vila do Sol quanto de Águas Claras? – A voz da desconhecida pronunciou-se. Apesar da aflição em suas palavras, o tom era suave e delicado.

– Devemos ser cautelosos com essa investigação. – Calmo, Lonel ponderou enquanto falava. – Por mais que tenham sido alarmantes, se ousarmos procurar pelo responsável, denunciaremos nossa posição. O feitiço que nos esconde está fraco, não podemos chamar a atenção.

– Eu poderia investigar – ofereceu a mulher. Ývela começou a protestar, mas não pareceu convencê-la. – Sabe tanto quanto eu que sou a melhor opção. Não estou sendo vigiada no momento e, durante minha fuga, me aproximarei da região.

– É uma ideia a ser considerada – Jarek disse. Ele não disse o restante com preocupação, mas sim como um aviso. – Sabe que, se te encontrarem, não há como salvá-la.

– Sei. – O modo como ela respondeu quase fazia Serafine imaginar um sorriso em seu rosto, qualquer que fosse ele. – Mas é um risco que eu correria por ela.

– Tem certeza? – O tom de Ývela denunciava sua preocupação. – Podemos deixar isso pra lá. Não é importante agora.

– Eles ousaram invocar uma imagem falsa da Deusa para atrair a menina para cá. Deve haver um motivo para a quererem aqui – retrucou a desconhecida, expondo uma ponta de ansiedade na voz. – Cuidem de Serafine.

A garota estacou, sentindo a mente formigar de curiosidade. O modo como ela havia falado seu nome, por alguns instantes, pareceu assustadoramente conhecido.

– Certamente – Lonel se pronunciou.

– Até breve, meus amigos – a mulher sussurrou e, poucos segundos depois, um brilho forte iluminou toda a sala. A fraca luz expandiu-se e todo o salão foi tomado pelos raios. Serafine encolheu-se onde estava, temendo que uma parte de seu corpo fosse exposta à luz, mas a sorte estava ao seu lado e nada aconteceu.

O trio restante permaneceu em silêncio por um tempo, até que Jarek perguntou:

– Acha que ela vai conseguir?

Serafine franziu o cenho. Jarek estava falando da mulher misteriosa?

– Por que não conseguiria? Sabe que ela é forte. – Ývela retorquiu.

– Refiro-me a Serafine...

A expressão de Serafine azedou.

– Ei, eu estava falando dela!

– A garota não está preparada para o que vai enfrentar. Vai ser uma mudança radical. Não acho que seja confiável o suficiente receber tanta responsabilidade...

– Ela é forte e se tornará uma mulher poderosa. – A voz de Lonel estava próxima da estante que servia de esconderijo à Serafine. Ela prendeu a respiração quando viu a sombra dele bem na entrada do labirinto de livros. – Serafine vai provar que estou certo durante o Ritual.

– E está tudo pronto para ele? – indagou Ývela.

– Quase. A Lua está Crescente... E Serafine ainda precisa encontrar seu Mestre. Infelizmente, há um caminho complexo a se trilhar para alcançá-lo... E ela precisará de muita persuasão para convencê-lo a ensiná-la.

Jarek e Ývela assentiram em um muxoxo, inquietando Serafine. Quem seria aquele tão inalcançável Mestre que deveria procurar?

E, acima de tudo, quem era a dona da voz que, por um momento, parecera tão familiar?


Capítulo 14

A Vila dos Atyubrus

 

 

Durante o almoço, foi difícil disfarçar o fato de ter espionado a conversa, mas no jantar já estava mais relaxada. Ninguém havia descoberto que ela ouvira a conversa. Jarek e Ývela agiram normalmente, como se nunca tivessem dialogado sobre a confiança deles em Serafine. Lonel foi o dono dos olhares desconfiados, sempre acompanhados de um sorriso suave ao ver a tensão que se apoderava de Serafine. Ela não sabia disfarçar as emoções. Rezou aos Deuses para que, se o elfo tivesse mesmo descoberto a verdade, não contasse aos seus guardiões.

Quando acabou de jantar uma refeição farta e digna de um salão real, retirou-se para os jardins.

Sentou-se em um dos bancos solitários enquanto observava a luz irradiando da bola de cristal, o vento refrescante soprando seus cabelos soltos para trás. Ouviu passos e, ao erguer os olhos, encontrou Jarek, com as mãos nos bolsos da calça folgada e um casaco escuro por cima da camiseta branca. A expressão solene do rosto dele contrastava com seu olhar agudo, e ela percebeu que estava prestes a ser questionada. Vinha aprendendo a identificar os trejeitos do guerreiro, e aquele não era um bom sinal.

Cruzou os braços quando ele se sentou ao seu lado, sentindo suas emoções confusas graças à conversa que ouvira mais cedo. Jarek não tinha nem um pingo de fé nela e deixara isso bem claro. Então por que ser gentil com ele?

Iria mostrar o quanto ele se enganara a seu respeito. Seria forte dali em diante. Demonstraria não ter medo de enfrentar seu futuro, e muito menos de enfrentar o guerreiro.

– Tudo bem? Parecia alheia durante o jantar...

– Só estava pensando. – Não era exatamente uma mentira. Ela só não se daria ao luxo de puxar conversa. Era um tanto confuso sentir-se tão afetada por uma simples confissão da parte dele, mas a morena estava com o ego ferido. Não gostava quando duvidavam dela.

– Combinei com Guillian que viajaremos para a vila dele amanhã pela manhã.

Ah, então ele só tinha vindo avisar sobre a viagem... Serafine decepcionou-se. Esperava que talvez ele pudesse comentar sobre o Ritual e mostrar uma opinião contrária à exposta pela manhã.

Mas se tratava de Jarek e, em pouco mais de uma semana, Serafine já havia entendido que ele era determinado demais para desmentir algo que dizia com certeza.

Assentiu com um aceno, cruzando os braços com mais força. Se Jarek reparasse bem, veria as pontas dos dedos dela ficando esbranquiçadas. Ela se controlou para manter a boca fechada, para não resmungar o quanto ele tinha sido rude. Levantou-se.

– Diga a ele que estarei pronta para essa viagem ao amanhecer.

– Diga a ele? Eu vou junto, princesa. – Jarek sorriu, mas permaneceu onde estava. Serafine lançou um olhar frio, surpreendendo-o por alguns instantes. Ela não costumava demonstrar suas emoções, mas, naquele momento, estava completamente sem humor. E o apelido também não ajudava.

– Não preciso da sua proteção.

– Foi picada de novo?

– O que quer dizer?

– Por que tanto veneno?

Serafine abriu a boca, mas conteve um insulto. Não começaria uma briga com o guardião que não lhe dava a devida importância. Todos ali pareciam acreditar nela. Não precisava de Jarek.

– Por que Ývela não me acompanha? – retrucou, seca, e foi a vez de Jarek ficar irritado. Ele se levantou, expondo sua estatura superior à de Serafine. Ela não se abalou como ele esperava.

– Porque ela precisa tratar de outros assuntos. Assuntos que não lhe interessam, aliás. Já eu preciso cuidar para que você não faça alguma besteira.

– Por mais estúpidos que tenham sido os resultados das minhas besteiras, eu ao menos tentei proteger aqueles que precisavam. Não quis fugir para poupar apenas uma pessoa! – Calou-se quando Jarek se virou. Viu os punhos dele se fecharam e imaginou que havia tocado num ponto fraco, mas não voltou atrás. Jarek a achava irresponsável e sem capacidade. Ele engoliria aquelas suposições!

– Esse um que seria poupado é chamada de esperança para a salvação desse mundo. – O olhar de Jarek estava surpreendentemente sombrio, mas ela também podia enxergar um crescente brilho de fúria. – Só não estou certo quanto a essa esperança. Ela não demonstra ter a coragem necessária para o que a aguarda, mas um desejo impulsivo de desobedecer a ordens que só servem para proteger sua vida. Por isso, também não é digna de confiança. – Ele jogou a resposta como se não fosse nada, fazendo o rosto de Serafine corar. Não de vergonha, mas de raiva.

– Você está errado, Jarek. – Seu tom era calmo, mas suas palavras saíram como ácido. Ela se aproximou dele, de modo a colocar alguma imponência em sua voz. – Você é o único aqui sem coragem de colocar sua confiança em alguém. Não mostra fé em nada! Vou provar que está errado. Vou provar que você se enganou a meu respeito! – Cutucou o peito dele, afastando-se em seguida. – Porque, ainda que eu nada saiba da minha missão, estou determinada a ser forte. Confiarei que posso realizá-la. Ao contrário de você.

Retirou-se dali em passos apressados, irritada demais para esperar uma resposta do guerreiro. Sentiu os olhos dele seguindo cada passo seu até alcançar a torre.


***


A roupa que recebeu para a viagem era diferente das que usara nos últimos dois dias. As outras eram macias, feitas de tecido confortável. Já as novas eram dignas para uma estadia no meio da floresta. Ao menos foi o que Ývela informou quando trouxe a vestimenta.

Serafine examinou-se num espelho, em seu quarto, e franziu o cenho. O corpo estava mais exposto do que gostaria e muito mais do que imaginou algum dia ficar.

O colete era justo, sem mangas, e marcava seu tronco até a cintura. Amarras cruzavam-se nas laterais da roupa. Era feito de um tecido rígido, quase como couro. A calça era igualmente justa e o cinto tinha uma bainha onde se podia colocar alguma arma. As botas eram altas e pareciam meio desgastadas. Braceletes foram colocados em seus pulsos, um deles ligando-se aos dedos por tiras. Ývela explicou que facilitaria o uso do arco.

Era um visual um tanto selvagem, mas não atrapalharia na caminhada. Vestidos e peças largas seriam inúteis numa viagem como aquela.

Suas madeixas longas estavam presas numa trança firme, jogada sobre seu ombro. Ývela lhe entregou uma capa, feita do mesmo material da calça, que serviria para proteção caso chovesse. Recebeu também o arco e a aljava cheia de flechas, apesar de sua guardiã alertá-la para, em hipótese alguma, apresentá-las na presença do povo de Guillian. A morena sabia muito bem que dificilmente usaria a arma, pois não tivera tempo para treinar. E já começava a ficar receosa em relação àquela viagem, por mais que tentasse permanecer impassível.

– Serafine... – Ela ergueu os olhos cor de âmbar para Ývela, que parecia triste. – Jarek disse que discutiram na noite passada e até me pediu para ir em seu lugar, mas...

– Tudo bem, eu entendi. Você tem compromissos. – Tentando não parecer irritada, Serafine concentrou-se em guardar uma faca de prata na bainha do cinto. Foi só então que reparou como os arabescos perolados estavam aparentes em seu corpo.

O cabelo preso ajudou a expor os desenhos delicados descendo por seu rosto e pescoço e, pela primeira vez, os dos braços e ombros também se expunham. O que antes lhe pareciam apenas símbolos entremeados nas espirais, agora expunham-se como palavras semelhantes às dos livros da biblioteca. Ficou curiosa, imaginando se Lonel não saberia o que significavam, mas duvidou que tal curiosidade fosse sanada. Tinha que esperar o bendito Ritual.

Seguiu Ývela para o café da manhã e não encontrou com Guillian ou Jarek. Informaram-lhe que os dois já a aguardavam na saída do bosque. Iriam andando até a vila do pequeno guerreiro, que ficava a dois dias de caminhada. Os cavalos não podiam seguir para aquela região.

Depois de se alimentar bem, Serafine recolheu algumas frutas em sua bolsa de viagem e encaminhou-se até a saída do Castelo. Usou o mesmo caminho que levava à cachoeira, mas, em vez de seguir nesta direção, virou para a direita e encontrou a continuação da trilha de pedras utilizada para chegar até ali. Alguns metros à frente, visualizou uma figura imponente e distraída encostada a uma árvore.

Jarek usava um colete sem mangas e fechado, que marcava perfeitamente seus músculos. A calça também era escura e as botas eram de couro. No cinto, trazia uma espada com lâmina de prata e a bainha de sua tão preciosa adaga.

A outra figura estava sentada no chão, arrastando suas grandes orelhas peludas ao lado. Vestia uma calça e um colete marrom, além de portar uma lança afiada enfeitada por penas vermelhas.

– Bom dia, milady! – Guillian ergueu-se num salto veloz e fez uma reverência respeitosa a Serafine. Ývela foi cumprimentada com mais intimidade. Ele recebeu um abraço apertado da guerreira loira. Jarek continuou parado em frente à árvore, com a adaga brilhante nas mãos. Encarou Serafine de soslaio quando ela parou ali perto, mas o seu olhar era indecifrável.

Subitamente, ele adiantou-se e começou a caminhar.

– Nos vemos daqui uns dias, Serafine. – Ývela abraçou-a com carinho, lançando um sorriso ao observar Jarek. – Não ligue para ele. Concentre-se no Mestre, use toda sua simpatia e persuasão para convencê-lo a voltar com vocês. Precisa dele para fazer o Ritual.

A morena assentiu e virou-se para onde Jarek estava. Em passos apressados, ele a deixou para trás. Guillian, porém, estava à sua espera. Com um suspiro resignado, ela fez um aceno para o felpudo e começou a segui-lo rumo ao destino desconhecido.

A caminhada, no início, foi tranquila. O silêncio perturbador começou a irritar Serafine, mas ela tentou manter a concentração em outras coisas, como no canto de pássaros típicos da região e na vegetação variada que a cercava. As árvores escondiam os raios do Sol, mas, como bem dissera Ývela, o calor ali era crescente. Não havia brisa alguma, fazendo com que Serafine começasse a suar.

Sua tez morena ficou marcada pelos pingos que escorriam e, por mais que se abanasse e bebesse água, só sentia mais e mais exaustão. Não sabia quanto tempo havia se passado naquela caminhada, mas em certo momento pediu por uma parada. Guillian assentiu imediatamente, gritando para Jarek esperar. O guerreiro resmungou alguma coisa ao ver Serafine se apoiar contra uma árvore.

A garota lançou a ele um olhar zangado e então, só para irritá-lo, voltou a caminhar, levando em seu rosto uma máscara de frieza. Guillian surpreendeu-se com a ação e, com passos ligeiros, logo estava em seu encalço. Quando passaram por Jarek, distraído enquanto observava a inseparável adaga, Serafine virou o rosto. O guerreiro ergueu-se, adiantando-se para acompanhá-los.

– Qual é o seu problema? – Havia indignação em sua voz.

– Você. Você é meu problema – respondeu Serafine. Ela continuou evitando encarar o guardião, até porque sabia que ele a fulminaria com o olhar. Resolveu, então, ignorá-lo. – Guillian, pode me contar algo sobre sua aldeia? Ou sobre seu povo? Eu gostaria de saber como me portar diante deles, como conquistar sua confiança da maneira certa. – Por mais que não estivesse falando com Jarek, serviu como uma indireta.

Não olhou, mas sentiu-se observada.

Guillian animou-se com a ideia de falar sobre seu povo e começou a relatar como era esplendorosa a vila em que morara.

– Foi construída pelos meus ancestrais, que descansem em paz. Primeiro, tentaram viver no alto das árvores, mas os predadores aéreos eram maléficos e impiedosos. Passaram, então, ao chão, mas havia também os predadores terrestres, tão cruéis quanto os voadores. Foi então que meu bisavô resolveu escavar toda a região da nossa vila, construindo entradas pelos troncos das árvores.

– Vocês vivem no subsolo? – Serafine surpreendeu-se.

– É aconchegante e bem mais fresco do que a floresta. Temos guardas por toda a parte, vigiando caso intrusos resolvam invadir nosso território. Água e comida sempre foram abundantes em nossa vida... Somos conhecidos por nossa generosidade, ao menos quando queremos. Imagine quando souberem que você está indo para a vila!

– Eles não sabem? – Jarek e Serafine perguntaram juntos. O guerreiro parecia irritado, mas a morena estava apenas curiosa. Guillian deu de ombros, escondendo um sorriso sem graça. – Guillian, por que não avisou que iríamos para lá?

– Porque não me receberiam – retrucou o felpudo. – Desde aquele incidente, alguns anos atrás, eles...

– O que houve alguns anos atrás? – Serafine intrometeu-se na conversa.

– Digamos que eu causei má fama ao nome de minha família. Não sou o guerreiro mais competente e nem o mais esperto. Com aquela ação, então... – Ele coçou atrás da orelha. – Fui expulso por tempo indeterminado.

– E por que está voltando para lá? Pode ser perigoso! – a jovem exclamou indignada, mas isso só fez Guillian sorrir.

– Ah, milady, não se preocupe com esse humilde Atyubru. Meus irmãos e irmãs me receberão bem quando souberem quem me acompanha. Já ouviram muito falar da sua história.

– Acho que eles sabem mais sobre mim do que eu mesma – ela comentou, fazendo o guerreiro rir. Jarek resmungou alguma coisa, mas foi ignorado por Serafine.

– Sua hora vai chegar. Um pouco mais de paciência a levará até a sabedoria. – Guillian sorriu animador, fazendo Serafine sorrir de volta. Talvez ele estivesse certo, afinal. Ficar se remoendo não adiantava, quanto mais reclamar. – Pois bem, prosseguindo sobre meu lar... – Guillian desatou a falar sobre as construções subterrâneas que Serafine logo conheceria. Ela não se deteve muito nos detalhes, até porque o orelhudo usava termos desconhecidos para a garota. Só voltou a entender o que ele dizia quando ouviu a história da raça de Guillian.

Os Atyubrus, como eram chamados os guerreiros felpudos, foram criados pelo Deus da Terra. Eles sempre viveram no Reino do Norte, por mais que a população dali cultuasse o Deus dos Deuses, Thron, e seguiam estritamente as ordens deixadas aos primeiros de sua raça: proteger as florestas e todos que nela viviam. Eram exímios guerreiros, construíam suas próprias armas e tentavam não depender de qualquer outro povo. A única raça com quem mantinham relações era a dos elfos. Relações puramente diplomáticas, claro, já que os elfos não eram muito dadas a combates. Eles preferiam resguardar-se com sua sabedoria e quietude, enquanto os Atyubrus cuidavam para que nada interferisse naquelas terras.

Guillian era filho da mão direita do Rei, que, pelo que explicou, não era dos melhores líderes que já haviam existido. Ainda que parecesse favoritismo, o felpudo guerreiro desejava imensamente que seu pai assumisse o trono. Por mais severo que seu pai parecesse, era justo e leal, sempre colocando a vontade do povo antes da própria. Fora decisão do pai colocar Guillian no exílio. O motivo, novamente, não foi explicado.

Serafine imaginou que talvez fosse vergonha, ou mesmo medo de um julgamento precipitado. Afinal, o que quer que Guillian tivesse feito, havia ferido a confiança de seu povo. E, ainda assim, lá estava o guerreiro, confiante, encaminhando-se para um destino perigoso.

Serafine mal notou que, com a conversa animada, logo estava anoitecendo.

Jarek avisou, sem perguntar a opinião de ninguém, que montariam acampamento ali. Estavam em um espaço próximo ao rio, com uma pequena clareira para que fizessem uma fogueira e deitassem para descansar. Revezariam os turnos, começando com Guillian, que não parecia cansado. Depois de comer algumas frutas e beber muita água, Serafine esticou sobre si a capa que Ývela lhe dera e usou sua bolsa como travesseiro. O sono veio em seguida.


***


O sonho que teve foi confuso. Estava parada num espaço amplo de terra vermelha, e o chão estendia-se até o horizonte, tirando qualquer noção de onde realmente estava. Foi quando ouviu um sussurro ao longe, parecendo vir do céu. Serafine procurou por alguma presença, mas nada encontrou.

Apenas o insistente ruído que chamava sua atenção. O vento fazia com que ecoasse em sua direção, como um mensageiro fiel trazendo um recado.

– Quem está aí? – gritou, mas sua voz saiu tão baixa que ela mesma teve dificuldade para ouvir. Confusa, levou a mão à garganta. Havia algo de errado.

– Serafine...

– Quem é você? – O medo deslizou um calafrio por sua espinha. Seus olhos buscaram a dona da voz, mas ela reverberou à sua volta, parecendo mais alta.

– Você sabe quem eu sou. Logo irá me procurar...

– Como posso procurar alguém que nem conheço?

– Ah, você conhece. Não faz ideia do quanto... – Para assombro da garota, o chão tremeu e uma larga rachadura apareceu no céu. O manto negro começou a se partir lentamente, indicando que alguma coisa desejava sair dali. – Liberte-me! – gritou a voz, agora próxima demais. O vento soprou com muita força ao seu redor e a escuridão pareceu abraçá-la como uma velha amiga.

– NÃO! – Serafine sentou no meio da floresta, percebendo que era encarada por dois pares de olhos surpresos. Jarek estava recostado numa pedra, alguns metros distante. Guillian, que havia acabado de pegar no sono, acordou sobressaltado pelo grito repentino da garota.

– Está tudo bem, senhorita? – A voz sonolenta do felpudo a fez sorrir sem graça.

– Foi só um sonho ruim. Com... Aranhas. – Hesitou, mas ele estava tão inebriado pela possibilidade de retornar ao descanso que assentiu. Jarek, porém, encarou-a com profundidade, como se soubesse que ela estava mentindo. Foi por isso que caminhou até ele, sentando-se ao seu lado naquelas rochas.

– O que houve? – ele perguntou. Serafine notou que o braço que não tinha aquelas estranhas faixas de couro estava apoiado no joelho e, em sua mão, bem perto do rosto, estava a curiosa adaga. A lâmina prateada tinha inscrições esquisitas, mas, considerando tudo o que vira na biblioteca do Castelo das Quatro Luas, até que pareciam normais.

– Um pesadelo. – Encarou o rio, distante alguns metros. A luz prateada da Lua banhava suas águas claras, deixando-as com um aspecto sobrenatural, ainda mais em meio àquela densa floresta. – Eu nunca tinha... sonhado com uma coisa assim antes. Tive alguns vislumbres de algo parecido quando estava tendo alucinações, mas foi completamente diferente. Eu estava envenenada, quase morrendo. Agora estou sã.

– Você quase morreu. Pode ter ficado com sequelas. – Ele deu de ombros, mas suas palavras não soaram convincentes.

– Tem algo mais. – Ela fitou a Lua. – Foi um pesadelo muito vívido...

– Quer conversar sobre ele?

– E você vai ouvir sem dar sua opinião mesquinha e rude? – Serafine lançou um olhar duro a ele, mas foi recebida com um meio sorriso.

– Posso tentar.

Suspirando, a morena resignou-se a relatar o sonho. Os olhos atentos de Jarek a acompanharam em cada troca de olhares, causando-lhe nervosismo. Fazendo o possível para ignorar aquela sensação, Serafine encerrou a curta narrativa.

– Interessante – ele disse, voltando a encarar a adaga.

– Só isso? Não tem mais nenhuma opinião?

– As que eu tenho não condizem com o que deve ser revelado a você. – Jarek estava sério quando voltou a encará-la. Parecia determinado a ser firme e não levar para o lado divertido. – Talvez possa explicar a Lonel sobre o sonho se retornarmos.

– Eu não entendo como ele pode saber... Espera aí. Se? – Jarek respondeu-lhe com um sorriso sagaz, sem se dar ao trabalho de falar. Serafine bufou, mas, já acostumada àquelas atitudes, ergueu-se para voltar a dormir. Depois de demorados minutos virando para um lado e outro, o sono não veio. Resmungou para Jarek sobre a insônia e a resposta que recebeu foi um olhar animado.

– Ótimo. Então fique de vigia, eu preciso dormir.


***


Serafine apagou a fogueira assim que amanheceu. Seus companheiros de viagem roncavam um em cada canto do acampamento. Resolveu deixá-los descansar um pouco mais, já que logo seguiriam em mais um longo dia cansativo de viagem.

Lavou o rosto na margem do rio e encarou seu reflexo nas águas límpidas. Estava com olheiras, mas a aparência não parecia tão abatida quanto imaginara. Uma noite de sono decente e voltaria ao ar jovial de antes.

Quando retornou ao acampamento, Jarek e Guillian já estavam de pé e arrumavam o acampamento. Comeram algumas frutas misturadas a uma farinha élfica feita de grãos, que encheu o estômago de Serafine durante as longas horas seguintes.

A caminhada foi mais animada do que no dia anterior. Jarek não estava tão quieto e discutia com Guillian sobre o Reino do Oeste, algo sobre uma prisão em um castelo. Serafine estava perdida demais para tentar intrometer-se no assunto.

Seus pés doíam de cansaço, mas ela não queria parar seus acompanhantes. Eles seguiam em passos rápidos, deixando-a para trás. Já passava de meio-dia quando pararam para um almoço rápido. De tarde, com um clima mais ameno, a viagem foi menos exaustiva. O Sol estava quase se pondo e eles andavam por uma trilha idêntica à que usavam há um dia e meio quando Serafine indicou aos guerreiros uma árvore à sua direita. Aparentemente normal, aquela em especial tinha uma marcação bem no alto do tronco: um objeto enfeitado por penas vermelhas amarrado num dos galhos.

– O que é isso?

– Estamos no território dos Atyubrus. – Jarek estava ao seu lado em poucos segundos, surpreendendo-a pela proximidade. Ele guardou a adaga e colocou a mão no cabo da espada. Guillian notou seu gesto e negou com a cabeça.

– Não vamos causar boa impressão assim, jovem guerreiro.

Jarek bufou, largando a arma, o que fez Serafine rir. Imaginou Jarek tendo de agir com diplomacia e viu ainda mais graça na situação. O guerreiro lançou um olhar zangado em resposta.

Guillian ia à frente agora, indicando o caminho certo para os seus acompanhantes. Serafine procurou por qualquer sinal de civilização, mas, desde as penas vermelhas na árvore, não viu mais nada. A Lua já estava alta no céu quando o guerreiro felpudo estacou, fazendo Serafine e Jarek pararem subitamente.

– O que aconteceu? – perguntaram juntos.

– Estamos sendo observados. – O guerreiro ergueu as duas patas, indicando que viera em paz. Serafine buscou qualquer indício de observadores, mas nada viu.

Quando Jarek fez o mesmo sinal que Guillian, erguendo as mãos em rendição, ela finalmente enxergou o que imaginava ser a guarda do território Atyubru.

Vinham em um grupo grande. Só na sua frente havia mais de dez, e portavam lanças parecidas com as de Guillian. As criaturas se pareciam muito, com exceção da cor do pelo, que variava entre branco, bege, marrom e preto, e do topete colorido que enfeitava a cabeça. As orelhas estavam preparadas para serem usadas como membros num combate, enquanto as mãozinhas sustentavam as armas.

– Quem vem lá? – o aparente líder do bando exclamou. Tinha uma voz grave e alta, mas estava oculto pelas sombras da floresta.

– Sou eu, Hemi! Guillian! E trouxe comigo... – As lanças avançaram até o felpudo guerreiro. Serafine arregalou os olhos pelo susto. – Viemos para falar com o Mestre. – A voz do seu guardião ficou fria.

E então outra criaturinha saltou à sua frente. Tinha a estatura de Guillian, mas seus trajes e trejeitos indicaram que era uma fêmea. O topete em sua cabeça era laranja, assim como seus grandes olhos redondos. Ela portava uma espada prateada, era a única com uma arma diferente no grupo.

Serafine achou-a a coisa mais felpuda e meiga que já vira na vida, mas Jarek a deteve.

– Só me prometa uma coisa – sussurrou para Serafine, segurando-a pelo pulso. – Não os chame de fofinhos.


Capítulo 15

Tributo ao Mestre

 

 

A caminhada em fila única deixou Serafine um tanto nervosa. Suas armas tinham sido confiscadas, o que deixou Jarek extremamente indignado. Os Atyubrus marchavam com disciplina, sendo guiados pela guerreira felpuda de topete laranja. Guillian pareceu reconhecê-la quando ela se adiantou para falar, porque seus olhos azuis ficaram arregalados de surpresa. Seguindo à risca as últimas ordens de Jarek, Serafine não se pronunciou sobre os Atyubrus, por mais fofos que eles parecessem ser.

A trilha prosseguiu por longos minutos, até finalmente pararem em frente a uma árvore. Era muito maior do que todas as outras daquela floresta. Seu tronco escuro abrangia uma imensa área e seriam necessárias duzentas pessoas para abraçá-lo por completo. Os galhos mais altos certamente se perdiam em meio às nuvens do céu.

Confusa quanto àquela parada para apreciar a natureza, Serafine se lembrou do que Guillian havia contado: Foi então que meu bisavô resolveu escavar toda a região da nossa vila, construindo entradas pelos troncos das árvores. Quando a guerreira felpuda adiantou-se e colocou sua pata sobre uma saliência do tronco, um leve tremor sacudiu o chão.

– A entrada – Guillian murmurou encantado. Seus olhos brilhavam em alegria e medo. Serafine perguntou-se quanto tempo havia durado o seu exílio e como ele havia aguentado. O guerreiro parecia muito ansioso para rever sua casa, da mesma maneira como ela ansiava por voltar à sua.

– Intrusos! – A voz fina e altiva da guerreira chamou a atenção deles. – Vocês vêm comigo.

– Vamos... Onde? – Serafine sussurrou para Jarek, enquanto eram gentilmente empurrados na direção da árvore. Quando a guerreira fez um sinal com a mão e atravessou o tronco, como se não houvesse ali qualquer obstáculo, Serafine ofegou. Jarek tocou seu ombro, tranquilizando-a, apesar de manter no rosto o sorriso divertido.

– É uma barreira mágica. Há uma escadaria dentro desse tronco. Pode confiar. – Ele deu-lhe uma piscadela marota. – Vou te esperar do outro lado. – E atravessou. Serafine engoliu em seco, pressentindo que a sensação de passar por um tronco de madeira não deveria ser das melhores. Porém, ao sentir os olhares lançados pelos Atyubrus, resolveu não se demorar.

Esticou as mãos à sua frente e deu dois passos hesitantes, mas não sentiu nada. Duas mãos fortes e de pele áspera tocaram as suas e, ao abrir os olhos, deu de cara com Jarek, tão próximo que a surpreendeu. Ele sorriu.

– Viu só? Eu disse que era seguro.

– Certo, sabichão, mas você não pode me julgar por achar isso bizarro. – sussurrou ela, ao notar que a guerreira de topete laranja os encarava com um olhar nada simpático.

– Desçam – ordenou. – Há guardas esperando para levá-los até o Rei.

– Mas e quanto ao Guillian? – Serafine se sentiu içada por Jarek para iniciar a descida.

Virou-se para resmungar com ele pela atitude rude e nesse momento a felpuda falou:

– Ele é um exilado. Deve cumprir a pena por ter invadido terras que não mais lhe pertencem. – Um olhar sombrio passou pelas íris laranja da Atyubra, mas Jarek não deu tempo para Serafine protestar. Colocou-a em sua frente durante o percurso.

A escadaria em espiral, feita na própria árvore, descia em um buraco longo fracamente iluminado por tochas. Serafine cansou-se depois de alguns minutos dando voltas e mais voltas naqueles degraus sem fim. Jarek olhou para cima, mas tudo que avistou foi o brilho fraco do fogo. Ruídos não se faziam perceptíveis. E nem a presença de outra criatura.

– Acha que Guillian vai ficar bem? – Serafine se mostrou apreensiva. Jarek sorriu fracamente, mas havia um pouco de diversão naquele gesto.

– Ele é o guerreiro mais astuto que conheci. Com certeza já se livrou do cativeiro.

– Está me dizendo que ele fugiu?

Ele não respondeu, mas o sorriso em seu rosto se alargou. Serafine surpreendeu-se. Será que Guillian conseguira mesmo fugir? E para onde iria? Aqueles guerreiros pareciam prontos para atirar em qualquer um que tentasse fazer algo errado. Se Guillian realmente tivesse fugido, a atitude o condenaria ainda mais. Mas Serafine não queria que o guerreiro passasse por maus bocados, então desejou que ele tivesse se livrado dos guardas.

Quando chegaram ao fim da escadaria, encontraram-se em uma pequena sala, com o teto baixo para os padrões humanos. Um buraco na parede dava passagem para um corredor escuro. Pingos de luz se aproximavam conforme duas figuras carregando tochas vinham em sua direção.

Os Atyubrus ali presentes não se diferenciavam fisicamente dos outros: orelhas enormes, olhos expressivos e topete colorido. Um deles, porém, tinha uma cicatriz do lado direito da face, expondo a pele cor-de-rosa debaixo dos pelos escuros. Foi ele quem se adiantou para falar com a dupla de invasores, o rosto marcado por uma expressão severa:

– Bem-vindos à nossa morada, viajantes. Sou Urir, filho do Rei dos Atyubrus. Irei guiá-los até a sala do trono para que possam justificar o motivo de sua presença em nossas terras.

Jarek assentiu antes que Serafine perguntasse alguma coisa. A morena ia, realmente, questionar sobre Guillian, mas achou prudente permanecer calada. Urir não demonstrava ser tão gentil quanto seu guardião felpudo.

A caminhada pelo corredor sufocou Serafine, mas ela manteve o passo lento para acompanhar os guardas. As paredes estreitas pareciam escavadas há muito tempo, e vez ou outra se via uma pilastra de madeira colocada de modo a manter o túnel estável. Depois de passarem por uma fissura no fim do caminho, chegaram ao salão.

O lugar tinha um teto altíssimo se comparado aos anteriores, com raízes grossas de árvores pendurando-se por todas as paredes. O chão era de terra escura e estendia-se metros à sua frente. Parecia uma espécie de sala de reuniões, pois dezenas de Atyubrus estavam sentadas em uma grande mesa. Do outro lado, havia um trono entalhado em madeira escura, ocupado por uma figura maior do que a maioria daquele povo.

Assim que Serafine foi iluminada pelas tochas, os felpudos ofegaram de surpresa. Jarek estava à sua frente numa posição defensiva. Ela não conseguiu acreditar que aquele povo fofo lhe causaria algum mal, até porque os olhares eram de admiração, mas não impediu Jarek de protegê-la. Ele estava cumprindo seu dever, afinal de contas, e um pouco de segurança não lhe faria mal.

– Oh, mas que surpresa agradável me aguardava! – O Rei, sentado lá longe, exclamou. Sua voz grave ecoava pelas quatro paredes daquela sala. – Quando me comunicaram que a jovem da Profecia realmente estava entre nós, exigi vê-la com meus próprios olhos. Desculpe-me pelo tratamento, mas estamos pouco acostumados a receber estranhos em nossas terras. – O Atyubru caminhou até eles, fazendo gestos animados com as patas. Serafine reparou que, além de ser mais alto, ele era mais rechonchudo do que guerreiros que encontrara até aquele momento. Os seus olhos eram negros, assim como o topete que se camuflava perfeitamente em seu pelo.

– Muito prazer, majestade. – A garota curvou-se em respeito, mas o Rei pareceu dispensar aquele gesto. A morena ergueu-se um pouco confusa e foi logo recebida por um caloroso cumprimento. As patas pequenas e peludas envolveram a sua mão, chacoalhando-a fervorosamente.

– É uma honra recebê-la – ele sorriu alegremente, deixando-a sem fala. – Soube que a senhorita veio para cá em uma missão, mas o intruso que a acompanhava não ousou explicar nada sobre ela. – Serafine fitou Jarek, mas o Rei negou. – Falo de Guillian, o Exilado.

– Ele é meu guardião. – Serafine levantou um pouco a voz, surpreendendo a si mesma. Viu Jarek apertar a ponte do nariz em uma nítida demonstração de indignação, mas ignorou aquele gesto. Por mais que aquele Atyubru à sua frente tivesse autoridade, não falaria assim do simpático guerreiro que havia salvado sua vida. Ela não aceitaria aquele tratamento até descobrir a razão de seu exílio.

– Seu guardião? – A voz do governante exibiu choque. – Estranho o fato de Guillian ter conquistado a confiança de alguém lá fora – o Rei disse com certo asco, caminhando até seu trono. Com um aceno, pediu que Serafine o seguisse, mas Jarek foi obrigado a permanecer na entrada do salão. Duas lâminas afiadas o impediram de acompanhar sua protegida.

Serafine sentiu-se em pânico, sem saber o que fazer, e Jarek não ajudou muito quando murmurou cuidado. Bufando para ele, a morena seguiu o caminho indicado pelo Rei. Quando ele se sentou, ficou parada sem esboçar qualquer reação. Esperou que o governante desse alguma ordem ou falasse alguma coisa, mas parecia que o Rei a aguardava. Seus olhos estavam vidrados e a impaciência começava a crescer em sua expressão.

– Perdão, majestade, mas quer algo de mim?

– Ora, mas é claro! Você veio para encontrar com o primeiro Mestre, estou correto? – Ela assentiu. – Então onde está o tributo?

– Tributo?

Ouviu passos apressados em sua direção e logo Jarek estava ao seu lado, puxando-a para que ficasse atrás de si. O Rei estranhou a reação, franzindo o cenho pela proximidade do robusto guerreiro, mas, ao notar que ele tinha algo a dizer, dispensou os guardas.

– Meu senhor... Serafine não conhece a história dos Mestres, muito menos dos tributos. Ela mal conhece a própria história, na realidade. – A morena franziu os lábios ao notar o tom de humor na voz de Jarek. – Lonel decidiu realizar o Ritual depois que levássemos o Mestre para Líriel, e acreditei que, nesse caso, o tributo não fosse necessário. – Foi a vez de o guerreiro franzir os lábios, claramente confuso.

– Aquele velho elfo... Sempre mudando as regras. Sinto muito, meu jovem, mas não é assim que funciona. Preciso de um tributo para despertar aquele Atyubru resmungão. Você conhece a história.

– Pelo visto, conhece – Serafine resmungou, mirando no guerreiro seu olhar mais irritado. O Rei, cansado, ergueu as patas.

– Guerreiro, precisa decidir logo. Não posso manter meu conselho reunido se não tiver essa resposta. Há ou não há um tributo para ser entregue?

Serafine perguntou-se que tipo de tributo seria aquele. Ela se lembrava dos tributos entregues ao Rei do Leste, geralmente sacos de grãos que, depois de reunidos por toda a Vila, eram enviados à sede do governo. Não havia remuneração como recompensa, gerando descontentamento nos agricultores. Ela se lembrava do pai ficando furioso quando chegava a época de enviar os tributos.

– Sim, ofereceremos um tributo – Jarek disse. Sua voz demonstrava um pouco de incerteza, mas ele tentou permanecer frio enquanto falava com o Rei. – Mas, primeiro, quero um acordo.

– Acordo?

– De que nos deixará sair daqui livremente depois que tudo acabar.

– Não confia em mim, rapaz? É uma afronta...

– Ora, por favor... Nós dois sabemos que o acordo não é afronta alguma – Jarek retorquiu, lançando ao Rei um olhar insolente. Serafine imaginou que, se fosse sua aquela atitude atrevida, já estaria sofrendo represálias do guardião. Mas, vindo de Jarek, era diferente... Ele tinha esse jeito de não se importar com as consequências de seus atos, apesar de repreender quem o imitava.

– Muito bem. – Para surpresa de Serafine, o Rei concordou. Ele ergueu-se de seu trono e falou com a multidão de felpudos reunida em torno da mesa. – Eu e meus convidados nos ausentaremos. Podem retornar às suas tarefas! Exceto você, Jill. Quero você conosco – acrescentou ao final, indicando a Atyubra silenciosa num dos cantos do recinto.

Serafine observou a criatura de olhos alaranjados, que ostentava uma carranca séria no rosto, aproximar-se dos três. Não portava mais a espada prateada, mas não parecia ter deixado o humor azedo de lado. Enquanto caminharam por um corredor lateral de teto muito baixo, a garota começou a se perguntar onde estaria Guillian. Será que ele conseguira fugir? A preocupação com o guerreiro consumiu seus pensamentos até que finalmente terminaram de atravessar o extenso corredor.

O lugar em que se encontravam era, no mínimo, pitoresco. Ao contrário da sala do trono, que tinha a aparência de um verdadeiro buraco subterrâneo, aquele salão tinha as paredes pintadas. Imitavam a aparência do céu num amanhecer e foi com surpresa que Serafine observou as nuvens se mexerem. A magia ali era idêntica à usada em Líriel. O chão estava coberto por grama verdejante com cheiro de orvalho, e as raízes que desciam do teto exibiam lindas flores coloridas.

– Onde estamos? – Surpresa, Serafine olhava tudo em torno. O Rei encarou-a com um sorriso.

– No lugar de descanso escolhido por seu Mestre enquanto aguardava sua chegada. – Ele apontou para uma das paredes. No começo, além da mágica capacidade em retratar o céu, Serafine nada enxergou. Porém, ao se aproximar, localizou uma fissura escondida. O Rei parou-a antes que a tocasse.

– O que é isso?

– É onde devemos colocar o tributo – Jarek adiantou-se. Seus olhos escuros estavam fixos no buraco da parede, mas havia algo em sua voz que indicava temor. – Posso acabar logo com isso?

– Espere aí! O que você vai fazer? – Serafine colocou-se entre o guerreiro e a fissura.

– O tributo, minha jovem, foi ordenado por um acordo muito tempo atrás. Tempo demais para ser estimado. – O Rei caminhava, observando a paisagem artificial que os cercava. – O Primeiro Mestre deveria aguardar seu aprendiz a partir de certo momento da vida... Muitos passaram anos e morreram na outra dimensão, esperando pelo escolhido. A libertação vai ocorrer através de um tributo. Uma troca pela liberdade do sábio. Nesse caso, Jarek o fará.

– Como assim, você fará o tributo? – Serafine lançou um olhar indignado para o guerreiro. – Quando isso foi decidido?

– Agora há pouco. – Jarek deu de ombros, pouco se importando.

– E você acha que eu vou deixar?

– Sem querer ser chato, princesa, mas eu não preciso da sua permissão. – Um sorriso mordaz surgiu no rosto do guerreiro, mas não abalou Serafine. E ela também não saiu de sua frente enquanto se dirigia ao Rei.

– Que tipo de tributo?

– Sangue. – O Atyubru compreendeu o olhar assustado da jovem. – Sei que é exagerado, mas é o que foi exigido. Ele não está aí há muito tempo, mas a prisão do Mestre é bem poderosa, então é necessário algo igualmente poderoso para libertá-lo... O sangue de alguém como Jarek servirá muito bem. – O Rei sorriu para o guerreiro, indicando-lhe a fissura. – Fique à vontade.

– Você não vai fazer isso por mim. – Serafine esticou os braços, tentando impedir que Jarek passasse. Com um bufo de irritação, ele empurrou-a para o lado e se posicionou em frente ao buraco. Ajoelhou-se para ficar na sua altura e retirou a espada da bainha. Serafine olhou para a adaga e perguntou-se o porquê de ele não usá-la. Não seria muito menos perigosa? Era preciso tanto sangue assim?

A fissura na parede era oca e possuía o interior arredondado, como se tivesse sido moldada para receber algum líquido. Serafine retesou-se, imaginando a quantidade de sangue que caberia ali...

– Por que vai fazer isso? Podíamos simplesmente arrebentar esse lugar. – Ela sugeriu sem encarar o Rei após aquela ameaça. Viu um leve sorriso despontar em Jarek.

– Porque eu fiz uma promessa de sangue, princesa. Não posso voltar atrás. – Ele ergueu o pulso, colocando-o dentro do buraco, e passou a espada sobre a carne. O sangue que jorrou do corte encheu aquele espaço e, para o completo choque de Serafine, começou a esgueirar-se pelas paredes como se tivesse vida.

O líquido escarlate, que não parava de escorrer do pulso do guerreiro, percorreu com rapidez caminhos sinuosos por aquele céu projetado com perfeição. Os desenhos formados por ele lembravam muito os espirais que contornavam a pele de Serafine. Quanto mais sangue recebia, mais os desenhos se expandiam pela sala. Alguns segundos se passaram e as marcas haviam contornado todo o espaço, subindo pelo teto e esgueirando-se pela grama.

– Tudo bem, já chega. – Serafine tentou chegar até Jarek, que estava muito pálido, mas foi detida por Jill. Os olhos alaranjados da guerreira encararam os seus com intensidade.

– Está quase no fim. – A voz da Atyubra não estava azeda como antes. Ela soou solidária.

Então, em um passe de mágica, aquele salão tremeu. Serafine viu-se levada para a noite em Águas Claras, quando a Deusa aparecera. O chão ali tremia da mesma maneira, tirando seu equilíbrio, e logo estava ajoelhada na grama. Aquilo não explicava, porém, a repentina tontura que a fez cambalear. Quanto mais o salão estremecia, mais seus sentidos se perdiam.

Subitamente, o tremor parou. Mãos fortes a sustentaram, ajudando-a a ficar em pé.

Jarek a encarou com diversão, o rosto desprovido da palidez de antes.

– Eu faço o tributo e você perde as forças?


Capítulo 16

Encantamento

 

 

Se soubesse que tudo aquilo era um sonho, talvez o lugar em que se encontrava fizesse mais sentido. A primeira coisa que Serafine constatou foi que o Rei havia desaparecido. Jill, porém, continuava ali, e parecia chocada por isso. Serafine olhou em torno e viu que as paredes contornadas pelo sangue de seu guardião haviam sumido. O espaço era infinitamente maior e encoberto apenas pelo céu azul anil. O chão de grama estendia-se até o horizonte sem a presença de qualquer árvore ou guerreiro felpudo. Quando virou para trás, a morena encontrou os olhos curiosos de um Atyubru. Arquejou pelo susto e surpreendeu-se pela expressão séria dele.

– Serafine?

Afastando-se para olhá-lo melhor, Serafine imediatamente soube que aquele não podia ser quem estava pensando. Apesar da semelhança absurda, que começava no pelo branco, passava pelas íris grandes e azuis e se completava no topete verde, a idade era muito mais avançada, o que se tornava evidente pela sua curvatura, pelo cansaço no rosto e pela bengala de madeira usada de apoio. A criatura usava uma túnica roxa arrastando-se alguns centímetros acima de seus pés e uma longa capa branca.

– Como sabe meu nome?

– Ora, criança, eu sei de tudo por aqui! – ele replicou indignado. Sua voz era rouca e um pouco carregada pela idade, mas tinha um tom arrogante que, imediatamente, irritou a jovem. – Que demora foi essa para vir me encontrar? Temos tanto a fazer... – Fez uma breve pausa, avaliando Serafine com interesse. – Tem algo de errado com você. Não sinto seu espírito.

– Ela ainda não passou pelo Ritual – Jarek respondeu, como se entendesse as palavras do velho Atyubru. Serafine lançou um olhar questionador, mas não obteve resposta. Como assim, ele não sentia seu espírito?

– Como não? Vocês estão mais do que atrasados! Estão excepcionalmente atrasados! Aposto que foi Lonel quem ordenou essa busca, não foi? Aquele elfo velho e preguiçoso...

– Ele disse que o Ritual ocorreria em sua presença, meu senhor – Jarek disse com respeito. Serafine notou que ele tentava esconder um sorriso, mas não via graça alguma naquela situação maluca.

– Desculpe-me, mas... Onde estamos?

O Atyubru exibiu um olhar revoltado. A morena franziu o cenho para ele.

– Aqui é a Segunda Dimensão. Warthia é a primeira. No total, são quatro.

Sem entender nada, Serafine adiantou-se para mais questionamentos, mas foi impedida por Jarek. Estava mais do que frustrada por nunca entender nada.

– Meu senhor, precisamos partir.

O Atyubru fuzilou Jarek com o olhar.

– Há anos estou nesse lugar, aguardando para finalmente receber a aprendiz e, quando a criatura aparece, descubro que ainda é uma humana e que é tão burra quanto esta bengala! E vocês ainda querem me tirar desse recanto de paz?

– Quem você chamou de burra?! – Serafine esbravejou. Jarek segurou-a pelo braço. Serafine encarou o Atyubru com grande fúria, mas o felpudo usou de uma expressão impassível e aguardou.

– É o que ouviu, criança. Você não faz ideia do que vai enfrentar e me pede que viaje até Líriel, confiante de que esta escolha é a correta? Onde está a prova de que esses símbolos foram colocados na portadora certa? Como garantem que o espírito irá realmente escolhê-la? – O olhar do velho era questionador. Serafine não se intimidou com ele. Havia passado por tanta coisa, perdera tantas pessoas e confiara em tantos desconhecidos para ser recebida daquela maneira pelo seu futuro Mestre? Ah, certamente o levaria dali... Por bem ou por mal!

– Eu sou a prova – respondeu impetuosamente. Lançou ao orelhudo um olhar intenso e recebeu em resposta um suspiro.

– Já ouvi tantos jovens acreditando que eram os escolhidos... – Ele apoiou-se na bengala e começou a caminhar, circundando Serafine e Jarek. Seu olhar recaiu na quieta Atyubra. Jill nem ao menos se movera desde o instante em que a paisagem à sua volta mudara. Parecia estupefata, os olhos vibrantes grudados na figura do Mestre.

– Jillune. – Ele, aparentemente, a conhecia. Havia um fraco sorriso em seu rosto quando a cumprimentou. – Faz muito tempo...

– Sim – Jill respondeu. Parecia não ter palavras para expressar qualquer outra coisa, quanto mais para conversar com a criatura que a deixava em estado de choque. O ancião, porém, mostrou curiosidade a respeito da Atyubra.

– Como vai a aldeia? Desde minha última visita... Muita coisa deve ter mudado. – Havia um crescente desamparo em sua voz.

– Na realidade, meu senhor, tudo continua como antes. Exceto, bem... – ela pigarreou, alertando Serafine de que algo naquela conversa não deveria ser revelado.

– Compreendo. É bom saber que as leis continuam rígidas. – O felpudo empinou o nariz redondo e voltou-se para Serafine. – Façamos um acordo, minha jovem. Você passa por um desafio e eu a acompanho até Líriel. Se falhar, ficará presa aqui até o fim dos tempos.

– Sabe que, se ela ficar presa aqui, o fim dos tempos vai chegar muito antes do que imaginamos! – Jarek mostrou-se abismado. O Atyubru ignorou o guerreiro, jamais desviando os olhos dos de Serafine. Incerta, ela engoliu em seco. – Decida rápido, criança. Não tenho a eternidade... Na realidade, eu tenho, mas não irei desperdiçá-la em uma indecisão sua. – Um sorriso presunçoso enfeitou o rosto marcado pela idade.

Com um longo suspiro escapando dos lábios, Serafine lançou um último olhar a Jarek. O guerreiro parecia frustrado, mas, assim como ela, sabia que a única chance de levarem o Mestre para a cidade élfica era vencendo aquele desafio. Assim, a morena deu um passo à frente, resignando-se a dizer:

– Eu aceito.

– Bom – foi tudo o que o Atyubru disse antes de desaparecer em pleno ar. Jill e Jarek não se surpreenderam, mas Serafine ofegou pelo susto. Encarou seu guardião, esperando que ele pudesse explicar o que estava acontecendo, mas Jarek parecia tão perdido quanto ela.

De repente, assim como o sumiço do Mestre, Serafine se viu em um lugar diferente do campo ensolarado de antes. Em um piscar de olhos, estava num terreno cheio de pedras sob um céu pintado de ébano. A escuridão dominava a paisagem sombria e, ao descobrir que seu guardião e a Atyubra ranzinza haviam sumido, Serafine estremeceu.

– Eles estão em perigo, criança... Deve encontrá-los. Você consegue encontrá-los. Use seu instinto. – A voz do Mestre soou ao alto, como se ele a observasse do céu.

– Eu não sei como, seu velho caduco! – ela gritou a plenos pulmões. Não havia luz para guiá-la. Aquele Atyubru era insano.

– Se não sabe, então não é merecedora dos meus ensinamentos. Se não conseguir salvá-los, como salvará todo um mundo?

– Talvez depois do Ritual? – retrucou para o alto. Quase podia imaginar o rosto do ancião enfeitado por um sorriso zombeteiro. Resmungando, ela olhou à sua volta e nada encontrou. – Não tem ninguém aqui.

– Está procurando com os olhos que pouco veem.

– Do que está falando? Não pode ser mais claro?

– Seu tempo está correndo...

– Eu tenho um tempo? – Ela chocou-se.

– Você não acha que o fim do mundo vai esperar, acha?

– Maldito coelho felpudo! – Começou a andar por todos os lados, sentindo-se tão perdida quanto um peixe fora da água. Para onde quer que olhasse, só encontrava escuridão.

Respirando fundo, ela tentou se concentrar na dica dada pelo Atyubru. Estava procurando com os olhos que pouco viam... Que sentido havia naquela frase? Não tinha outro par de olhos, ora essa!

Quanto mais andava imersa naquela densa escuridão, mais se sentia nervosa. Seu coração acelerou aos poucos e ela soube que, se parasse, acabaria perdendo o controle das pernas trêmulas. Tentou imaginar sobre o que o Mestre poderia estar falando, mas nada veio à mente. Não havia passado por aquele misterioso Ritual, o que significava que nada sabia sobre o mundo mágico.

Só tinha certeza de que, se não se apressasse, Jarek e Jill sumiriam para sempre... Ou algo pior viria a acontecer.

Parou de andar, tentando manter os pensamentos centrados. Tinha que se focar em encontrá-los, só isso.

– Concentre-se e acredite.

Serafine fechou os olhos, acalmando a consciência. O que antes parecia um breu sem fim se tornou um mapa navegável. Era estranho saber o que fazer, para onde ir, com apenas seus pensamentos para guiá-la. Soltando um longo suspiro, começou a andar com as pálpebras baixas, deixando o instinto guiá-la. Era incrível como, mesmo sem enxergar onde pisava, não dava qualquer passo em falso. O chão cheio de pedras parecia conhecido aos seus pés e, quando realmente acreditou que podia localizar os dois, acabou tocando em alguém.

Ao abrir os olhos, porém, encontrou o Mestre.

– Foi a mais rápida a quebrar o encantamento – ele disse com sinceridade, a surpresa evidente em seu olhar. – Enganei sua mente com um simples truque e você o desfez sem nem perceber.

Serafine estava de volta ao campo ensolarado, onde Jarek e Jill presenciavam o diálogo com expressões confusas. Pelo jeito, nenhum dos dois estava ciente do que acabara de acontecer. Na verdade, nem a própria vítima daquele truque sabia explicar o que ocorrera. Uma estranha confiança havia se apossado dela durante aqueles instantes, guiando-a pelo caminho certo.

– Serafine, você acreditou que podia achá-los. Confiou em minha palavra. Confiou em si mesma. Não seguiu sua visão, e sim seu instinto. E de onde mais vem o instinto senão da alma? É da alma que também vêm os seus poderes... – o ancião explicou calmamente, deixando a garota absorver suas palavras. – Provou o seu valor. – Um sorriso iluminou seu rosto, até agora cheio de expressões presunçosas. – Será uma honra ensiná-la a nobre arte que domino há tantos anos.

Serafine encarou Jarek estupefata, mas ele deu de ombros. Um sorriso discreto nascia no rosto do guerreiro. Parecia que, pela primeira vez, ele estava confiante quanto às ações de sua protegida.


Capítulo 17

Problema com o Prisioneiro

 

 

Enquanto caminhava por aquela longa campina, na companhia do Mestre e de seus dois guardiões, Serafine se viu perdida em pensamentos. Desde que passara naquele desafio, aparentemente tão simples na concepção do Atyubru, ela percebeu a quantidade de informações que lhe faltavam, e estava confusa sobre como havia correspondido às expectativas dele. Ela havia feito algo que muitos demoraram horas e até dias para realizar. Mas como? Como conseguira retornar até a luz sem nenhum poder ou ajuda? Seus instintos haviam agido involuntariamente? Como quebrara aquele encantamento com tanta facilidade? O que havia de tão incomum com seu espírito que causara aquele efeito estranho? Se, realmente, não era humana... O que poderia ser?

– É curioso – comentou o Mestre, tirando-a de seus devaneios.

– O quê?

– O acontecimento de momentos atrás. – Seus grandes olhos azuis encontraram os de Serafine, causando nela uma incômoda sensação. Havia intensidade faiscando nas íris que pareciam a ela tão familiares.

– E o senhor poderia me dizer o que foi tão inesperado no acontecimento de momentos atrás? – Serafine fez a pergunta sem muita fé de obter uma resposta.

– Veja bem, criança... Sua alma ainda não foi conectada ao nosso mundo. Você não passou pelo Ritual... Eu esperava, então, que você falhasse no teste.

– Ah, então o desafio foi feito para que eu fracassasse? – ela retrucou indignada. O felpudo deu de ombros com um sorriso alegre. Ela irritou-se ainda mais.

– O que posso dizer é que, quando senti algo mudar em seu ser, soube que você conseguiria. Por isso a ajudei a prosseguir.

– Ajudou? Você falou algumas palavras sem sentido! Eu me virei sozinha.

– É para isso que serve o Mestre. Para orientar, não para dar a resposta – ele retrucou, sem de fato convencer a jovem. Serafine estava com raiva por ele estar se gabando tanto enquanto ela havia se desesperado naquela densa escuridão.

– Pois bem... Agora que eu passei no teste, podemos ir?

– Ah, claro, se você achar o portal. – O Atyubru deu de ombros como se aquilo fosse o mais simples dos problemas. Serafine parou de caminhar e encarou Jarek com a mais estupefata das expressões. Ele provavelmente entendeu o que se passava, porque logo estava próximo dos dois, o rosto numa máscara de confusão. A Atyubra Jill aparentou apreensão, pela primeira vez se esquecendo de como agir com bravura.

– Como assim, se eu achar o portal? Você é o Mestre aqui!

– Serafine... – Jarek a repreendeu, mas não parecia determinado a calá-la. O olhar dele estava mais cansado do que irritado.

– Não é o Mestre quem se liberta, é o aprendiz – disse o velho.

– Quer dizer que outro tributo deve ser feito? – Serafine indagou com a voz carregada. Cruzou os braços e olhou feio para o Atyubru.

– Na verdade, não há indicação de como deve ser feita essa libertação – foi Jill quem respondeu. – Pelo que se sabe, ninguém foi libertado desde que a maldição teve início. O Primeiro Mestre sempre esteve preso.

– Ah, que notícia mais animadora! – Frustrada, Serafine distanciou-se do grupo, olhando para a paisagem cada vez mais monótona. Não havia sinal de vida ou vegetação, com exceção da grama verde, e as horas pareciam não passar nunca. Estava ali há tanto tempo e o Sol ainda brilhava no alto. Imaginou que, se houvesse de fato um portal para fora dali, ele estaria minimamente visível, o que a frustrou ainda mais.

De repente, Jarek estava ao seu lado, mas não examinava a paisagem. Seus olhos escuros estavam fixos em Serafine, o que causou certo desconforto.

– O que houve? – Imaginou se havia alguma coisa errada consigo.

– Estou procurando o portal – ele respondeu simplesmente. Serafine o encarou com incredulidade, fazendo-o rir.

– Está louco? Eu não sou um portal!

– Não, mas você tem a chave para ele – Jarek explicou, como se a frase fizesse algum sentido. Jill e o Mestre logo estavam ao seu lado. O Mestre observou o guerreiro com um pequeno sorriso. Ele pareceu entender o que se passava.

– Mas o que está acontecendo? Que maldita chave eu tenho?

– Serafine... – Jarek soltou um suspiro, parando a tarefa e voltando seus olhos para os dela. – Há escritos no seu corpo, símbolos antigos que podem ser traduzidos para a nossa língua atual. Ao menos é o que eu espero. Ouvi histórias onde se diz que a chave é a aprendiz. Então, quando proferida, uma dessas marcas abre o portal para libertar o Primeiro Mestre.

– Claro que abre. – Ela revirou os olhos. Era a coisa mais maluca que havia ouvido desde que iniciara sua jornada. – E agora você vai examinar todo o meu corpo à procura de uma palavra? Saiba que eu não vou permitir.

– Não é todo o seu corpo – o Mestre disse. Jarek voltou-se para ele com expectativa, esperando por alguma informação. Serafine, por sua vez, olhava para os dois com incredulidade. Como eles podiam estar convictos de tal absurdo? Ela não era um livro a ser lido! – Está na área do espírito que domina o primeiro elemento.

– Claro, porque isso explica muita coisa... Ei! – Serafine exultou quando Jarek puxou seu braço direito. A proximidade com o corpo dele a desconcertou.

– Posso ter a sua licença? – o guerreiro indagou em seguida. Bufando, e olhando para o Mestre com um quê de fúria assassina, Serafine anuiu.

Jarek tateou a pele dela, os olhos minuciosos como os de um leitor voraz. Indignada com o tempo que se passava, ela se afastou e deu-lhe um soco no braço. Jarek, porém, sorriu abertamente.

– Maldito seja – Serafine grunhiu.

– Kaily.

O chão tremeu e, num segundo, toda a luz daquele local se apagou. Serafine gritou enquanto seu corpo era arrastado pelo vazio. Surpreendentemente, ao contrário do que ela pensou, afundar naquelas sombras não a apavorou tanto quanto o pesadelo ou a ilusão criada pelo Mestre. Era uma sensação incômoda, mas incrivelmente rápida. Num piscar de olhos viu-se caindo contra uma superfície nada macia, a cabeça desnorteada pela pancada.

– Está tudo bem, criança. – A voz do Mestre a despertou. Abrindo os olhos, Serafine viu-se num cenário conhecido. Era a mesma caverna enfeitada pela grama e pelas paredes que representavam o céu, só que sem a vida de antes.

A grama estava seca e marrom, e o céu estava negro, como uma noite sem Lua ou estrelas. Até mesmo as raízes que brotavam do teto pareciam ter envelhecido. Era como se tivessem passado muitos anos, transformando a paisagem mágica em um lugar inóspito.

Jarek e Jill estavam parados um pouco distantes dela e do Mestre, na companhia do conhecido, e até aquele momento esquecido, Rei. O monarca exibiu uma expressão desgostosa ao encarar o Mestre, apesar de parecer contente pelo retorno de seus hóspedes. Ele fez um aceno com a cabeça para Serafine, mas ela estava zonza demais para retribuir.

– Muito bem, fico feliz por ver que retornaram a salvo! Esses dias foram cansativos demais.

– Dias? – A voz de Serafine elevou-se, ecoando pelo salão.

– É claro. Contei cinco inteiros. Está amanhecendo lá fora, o que significa que foram praticamente seis. – Um sorriso iluminou o rosto do felpudo, completamente contrário ao assombro na face de Serafine. Seis dias que pareceram poucas horas. Não podia ser verdade!

– O tempo naquela prisão é relativo para aqueles que o desconhecem – o Mestre explicou.

– E qual foi a sensação de passar tanto tempo trancado, meu velho amigo? – O Rei adiantou-se até o Mestre, estendendo a pata para o ancião. Ele deu de ombros, jogando as orelhas para trás e apoiando-se na bengala sem responder ao cumprimento. Se Serafine pudesse ver a pele por baixo dos pelos daquele governante, com certeza haveria uma cor vermelha bem forte. Os olhos negros do Rei faiscaram, mas a expressão prosseguiu impassível.

– Foi como o esperado – o Mestre disse caminhando para a saída. – Serafine, venha. Precisamos partir.

Ela apressou-se em segui-lo, assim como Jarek, mas a voz do Rei cortou o silêncio como uma chicotada no ar.

– Precisam?

O Mestre parou onde estava. Seu semblante estava calmo ao virar-se para o governante.

– Precisamente. E vamos.

– Nós fizemos um acordo, caso não se lembre – Jarek replicou ao lançar ao Rei um olhar nada gentil. Serafine encarou a cena com apreensão, sentindo que a situação acabaria mal.

– De fato, jovem guerreiro, mas a situação se modificou durante sua ausência. Considerei você e Serafine dignos de minha confiança, e continuo considerando, mas um terceiro indivíduo acabou por causar uma terrível desordem em meu reino.

Jarek franziu os lábios, em uma clara expressão de quem continha um xingamento.

– O que ocorreu em nossa ausência não altera o acordo.

Em vez de responder, o Rei bateu palmas.

No início, Serafine imaginou que o gesto fosse zombeteiro, mas, quando ouviu passos vindos do corredor, soube que ele havia convocado seus guardas. Iriam mesmo ter de enfrentar um povo tão adorável e aparentemente pacífico por uma confusão que nem lhes dizia respeito?

Quando os guardas aproximaram-se e trouxeram uma criatura consigo foi que Serafine percebeu que a confusão lhes dizia respeito, sim. Jarek soltou um profundo suspiro, levando uma das mãos à ponte do nariz. O gesto estava começando a se tornar típico de momentos como aquele, em que a frustração superava qualquer outra emoção. O próprio Mestre ofegou em surpresa. Ao olhar do ancião para a figura, Serafine finalmente entendeu por que se lembrava tanto daqueles olhos azuis.

– Guillian, o que foi que você aprontou? – Jarek ralhou com o prisioneiro.


***


– Eu acho que não mereço essa punição. – O terceiro guardião de Serafine estava com os pulsos unidos por grossas correntes de ferro. A cabeça pendia para frente, deixando sua voz abafada. As longas orelhas cobriam seu rosto, mas os arquejos de sua respiração mostravam uma crescente fraqueza.

– Por que veio nos procurar? – Jarek jogou os braços para o alto ao adiantar-se até a figura caída. – Deveria ter fugido. Sabe que aqui sua sentença já está decidida.

– Por que voltou? – Serafine também entrou na conversa. Pelo que entendera, agora que Guillian fora preso seria também executado pela traição que causara seu exílio. Raivosa, resmungou com o felpudo. – Não precisava voltar! Estávamos a salvo!

– Eu não sabia! – Ele ergueu o rosto e ela ofegou. Um dos olhos estava roxo e inchado, praticamente fechado por causa do hematoma, e havia um profundo e sangrento corte em sua bochecha direita. – Depois que escapei, fiquei por perto e contatei Ývela. Em certo momento ela deixou de senti-los. Depois de dois dias, resolvi procurá-los e...

– O moleque nunca aprendeu a diferença do tempo entre as dimensões. – A voz do Mestre chamou a atenção de Guillian. Seu único olho são arregalou-se. – Olá, Guillianus.

– Guillianus? – Serafine sussurrou para Jarek, mas ele fez um aceno para que ela se calasse.

– Olá, pai.

Então era verdade, constatou Serafine. A semelhança era indiscutível. Os mesmos olhos claros e expressivos, a mesma cor de pelo e de topete, até o mesmo modo de sorrir. Mesmo ferido como estava, Guillian era a cara do pai.

E imediatamente lhe veio à memória a conversa que tivera com seu guardião dias antes. Guillian disse que fora decisão do pai colocá-lo no exílio. Olhando para o Mestre, todo calmo e centrado na figura assustada do filho, quase pôde imaginá-lo colocando a própria cria em um castigo daqueles. O orelhudo estava disposto a deixá-los presos numa dimensão paralela eternamente, só pelo fato de Serafine não ter realizado um Ritual. O que faria com um filho traidor?

– Não deveria ter retornado – o Mestre proferiu com calma. Não havia temor em seu olhar e muito menos em sua voz.

– Eu retornei para salvar a minha protegida. É meu dever.

– Da última vez em que resolveu cumprir o seu dever, traiu a sua raça – disse o Rei, em tom severo. – E agora você está com problemas, prisioneiro. Sua sentença é certa e irrevogável. Espero que não transtorne nossas vidas implorando pela sua.

– Ele vai ser morto? – Jill indagou. Serafine quase perguntou, mas a Atyubra foi mais rápida. Havia algo de estranho em seu olhar, quase como temor.

– Conhece a lei. Se um exilado retorna a essas terras, a pena é a morte. – O monarca lançou um olhar duro a Guillian, quase parecendo ansioso. – Levem-no para o salão. A sentença será cumprida.

Então, sem a menor piedade, os guardas cumpriram a ordem. Arrastaram Guillian e sumiram com ele pelo corredor. Serafine deu passos apressados naquela direção, mas foi barrada pelo Rei. Ele exibiu um sorriso inescrupuloso. Ela poderia empurrá-lo naquele momento, se quisesse, mas sabia que a desonra complicaria tudo. Lançou a Jarek um olhar em busca de apoio, mas tudo que encontrou foi imenso pesar. Ninguém ali falava e o Rei parecia o único animado com o acontecimento. Para o assombro de Serafine, o monarca ainda teve a coragem de soltar uma pergunta:

– Gostariam de me acompanhar na cerimônia?

– Ora, seu... – Serafine foi puxada por Jarek antes de alcançar o Atyubru. O felpudo deu de ombros.

– Uma pena – disse, e retirou-se dali. Resmungando diversas pragas, Jarek virou-se para o Mestre e encontrou nele a mesma calmaria assustadora. Seus olhos azuis, tão idênticos aos de Guillian, exibiam a tranquilidade nada característica de um pai prestes a perder um filho. Com raiva, Serafine ralhou com ele:

– Como pode ficar parado? Você é um Mestre, faça alguma coisa! Use seus poderes, use sua sabedoria, mexa esse traseiro!

– Não posso salvar um traidor.

– Mas... Ele é seu filho! – Ela perdeu a cabeça. Não conseguiu se conformar com aquela atitude tão estúpida. Um pai não deveria abandonar o filho. Lembrou-se de como seu próprio pai a havia protegido e sentiu asco da expressão impassível do Mestre. Ela conhecia Guillian o suficiente para saber que ele merecia uma segunda chance. Outra sentença deveria ser proferida em relação ao seu crime passado. Qualquer coisa.

– Não é mais – ele replicou. O olhar que lançou a Serafine foi carregado de rancor.

– Você pode ficar aí parado, Mestre, mas eu vou salvar um amigo!

Enquanto se virava e ia para o corredor, ouviu a voz do Mestre chamando-a.

– Quer saber qual foi o crime dele? O motivo desse povo não o tolerar aqui?

– Mestre, não... – murmurou Jill, agora silenciosa e aparentemente abalada. Havia algo em sua voz que não demonstrou determinação para parar o ancião, por isso ele não se importou com ela.

– Guillianus, meu filho, sangue do meu sangue, destinado a se tornar o próximo Mestre caso a criança da profecia não fosse encontrada, traiu a nossa raça da pior maneira possível. Ajudou uma criatura tão indigna que ainda causa vergonha em quem se lembra da história. Ajudou um ser maléfico, cuja alma está condenada ao Abismo desde o princípio dos tempos. Aliou-se a uma criatura das Trevas sem nem ao menos citar o motivo! Ele assumiu que havia ajudado aquele monstro e, quando lhe foi solicitado um pedido de desculpas, Guillian negou! Disse que o que havia feito ainda salvaria esse mundo. Disse que nosso julgamento em relação àquele ser maligno estava errado. A única salvação que encontrei para que ele não fosse morto no mesmo instante foi mandá-lo para o exílio!

– E quem disse que as intenções dele eram ruins? Não há apenas Luz e Trevas nesse mundo! – Serafine retrucou, tentando formular algum argumento para não culpar Guillian. A história contada tinha falhas. Faltavam informações para comprovar se ele havia de fato ajudado apenas um ser das Trevas.

– Guillian não é confiável, Serafine, por mais que ele não tenha se juntado às Trevas. Meu filho traiu sua raça. Nossa lei ordena a morte dos aliados às sombras. Eu optei por uma sentença mais branda, mas sua invasão ao reino é imperdoável.

– Que ridículo! – ela retrucou. – Por que não investigaram os motivos para essa interação com a criatura? Guillian...

– Ele não nos disse nada. Guillian não confiou em seu povo para revelar o segredo. Preferiu se calar e deixar-nos na dúvida do que salvar a própria pele! – o Mestre suspirou. Os olhos azuis pareciam fervilhar como se ali houvesse chamas crescentes. Serafine afastou-se e pôs-se a pensar. Pouco depois, alguém a interrompeu, segurando seu braço.

– O que está tramando? – Jarek estava alerta e seu olhar era inquisidor. – Sei que quer tentar salvar o felpudo, mas não há chance. As execuções nesta raça são costumes muito importantes...

– Cale a boca – a morena replicou, livrando-se do toque dele. Sua determinação estava longe de ser das mais corajosas, mas havia uma pequena possibilidade de entrar em ação. Não deixaria Guillian nas mãos daquele povo. Tentaria salvá-lo e então descobrir porque ele havia traído a própria raça.

Guillian não servia o mal. Se os Deuses o designaram para protegê-la, devia haver um motivo! Não havia qualquer chance de aquele guerreiro ser aliado das Trevas.

– Fique ciente de que não vou te deixar cometer uma loucura – Jarek avisou. Estava parado próximo, dizendo tudo baixo, porque sabia que Jill e o Mestre os observavam. Serafine não se importou. Sua mente trabalhava em todas as maneiras possíveis de fugir dali. Infelizmente, nenhuma alternativa pareceu exequível.

– Não precisa deixar. E não vai ser uma loucura. – O rosto da morena se iluminou com um sorriso. Ela estava de costas para os Atyubrus daquele salão, de modo que apenas Jarek viu o brilho em seu olhar.

Serafine havia acabado de formular um plano que, se bem executado, livraria o felpudo daquela execução.


Capítulo 18

Sentença

 

 

O som dos tambores anunciou que a cerimônia seria marcante. Guillian detestava formalidades, mas não havia como impedir que seu povo comemorasse a captura do maior traidor de toda a história. Desde que sua sentença fora anunciada, tantos anos antes, o guerreiro sabia que um retorno teria aquela consequência.

Seus braços estavam atados e os ferimentos em seu rosto ainda doíam. A lâmina de prata que Jill entregara a um dos guardas causara aqueles cortes. E, graças ao modo como fora feito, aquele instrumento servira para deixar marcas definitivas na pele do traidor. Guillian teria aquelas cicatrizes até a morte, o que, no momento, não parecia tão distante assim. Ele não se importaria se tivessem sido feitas pela guerreira, já que ela era uma oponente honrosa, mas ser espancado durante a captura não havia sido digno.

Enquanto caminhava pelo salão, um largo sorriso iluminou o seu rosto. Ele estava satisfeito. Serafine encontrara seu primeiro Mestre e poderia prosseguir com a jornada. Ele havia cumprido sua missão. E ela ainda tinha Jarek e Ývela para protegê-la.

Um dos guardas cutucou-o com uma lança. Apesar de não ter usado a ponta afiada, não foi nada confortável. O soldado lançou a ele um olhar carregado de frieza, e isso fez o orelhudo inflar-se de fúria. Se Guillian pudesse duelar com Urir, ah... Ele mostraria o que era ser um verdadeiro guerreiro.

Desde sua infância, Urir e Guillian tinham uma complicada relação de inimizade. Começara com o interesse em certa Atyubra e depois se desdobrou em uma disputa para provar quem era o melhor. Guillian sempre se mostrara o mais genial e pacífico da tribo, principalmente por ter sido criado por um futuro Mestre.

Quando pequeno, fora-lhe informado que seu pai estava destinado a ensinar a criança da Profecia. Diziam que seu pai era o mais sábio que o Primeiro Elemento já havia abençoado.

Urir, é claro, tinha o gênio desinibido de seu pai, o Rei, e mostrava-se um guerreiro voraz, sempre em busca de combates. Guillian não teve chance contra ele da primeira vez, mas, determinado como era, treinou até adquirir habilidades suficientes para outro duelo. E venceu.

Urir se tornou o segundo melhor guerreiro da tribo e, antes de procurar uma revanche, a traição aconteceu. Guillian foi exilado, o Mestre retirou-se para a Segunda Dimensão e Urir assumiu o posto de melhor soldado. Guillian quase podia imaginar o sorriso presunçoso no rosto do rival quando recebeu a premiada lança dourada, o símbolo máximo de poder que um guerreiro Atyubru poderia ostentar. E agora parecia determinado a provar quão melhor era rebaixando Guillian ao espancá-lo no caminho até o altar.

O altar havia sido erguido no centro. Fora construído em pedra rústica, com pouco mais de meio metro de altura, e tinha largura suficiente para que um corpo se estendesse sobre ele. No caso, o corpo de Guillian. Ele conhecia bem a execução.

O Rei enumeraria os crimes cometidos pelo sentenciado e o carrasco cravaria uma espada encantada em seu coração. Seu corpo seria reduzido a cinzas. Dali para frente, sua alma vagaria em um tormento eterno, pois aquele que morre pela lâmina encantada não encontra a paz no mundo espiritual.

Suspirando, Guillian procurou por rostos conhecidos na multidão, mas todos haviam mudado com o passar dos anos. Enxergava um mar de criaturas idênticas a si, mas completamente diferentes. Seus olhos coloridos exibiam aversão e raiva, alguns até asco. Um sorriso zombeteiro ergueu-se no rosto do Atyubru. Eles jamais entenderiam o motivo de sua sentença. Ele havia feito uma promessa. Agora, ao menos, morreria orgulhoso. Sua ação passada ainda salvaria muitas vidas.

Fechou o olho quando foi forçado a se ajoelhar e aguardou. Sabia que o Rei se sentaria em seu trono e começaria a declaração de sua culpa. Por mais bizarro que parecesse, Guillian estava sossegado.

O que tinha feito seria revelado algum dia, e então todos iriam, finalmente, entender.


***


– Boa noite, irmãos e irmãs, filhos e filhas, amigos e amigas! – A voz do Rei ribombou pelas paredes do salão. A luz precária proporcionada pelas tochas parecia ter se intensificado para que a cerimônia fosse vista por todos. O Rei sabia que aquele povo conhecia a história do impetuoso guerreiro e de sua traição sem precedentes, e queria se certificar de que tal ato jamais fosse cometido novamente.

Virou-se para o Atyubru ajoelhado perante o altar e, em passos curtos, aproximou-se dele.

– Todos aqui já ouviram a história de nosso outrora irmão, amigo e filho, Guillianus. Este Atyubru, a quem nosso reino acolhia como parte de uma grande família, tornou-se o maior traidor de nossa raça. Aliou-se a uma criatura tão sombria que, se citada, abalaria o coração de nossos cidadãos. Todos aqui sabem de quem falo. – Seus olhos recaíram sobre o calmo condenado. Guillian mantinha os olhos fechados e, em seus lábios, o sorriso escarnecedor despontou. Afrontado, o Rei empurrou-o de lado. As orelhas agora encobriam o rosto ferido do guerreiro. – As leis existem para proteger seu povo e você condenou nossa história a uma eterna vergonha. Como pôde cometer tal ato e assumi-lo? Como pôde olhar nos olhos de seu pai e se negar a nos revelar o motivo de tal afronta? Como consegue viver sabendo que abandonou sua própria raça? – A voz do governante estava excepcionalmente alta e carregada de ódio, os olhos escuros flamejando em labaredas do mesmo sentimento.

– Eu não sinto nenhuma vergonha, majestade. – O prisioneiro não se abalou diante do Rei. – E cedo ou tarde o senhor descobrirá a verdade.

– Se tem tanto orgulho dessa verdade, por que não a revela? – indignado, o monarca ralhou com o Atyubru.

– Porque não é a hora certa.

– A hora não é certa desde seu exílio, Guillian! E isso foi há muitos anos! – o Rei esbravejou. Alguns cidadãos ofegaram, mas imaginavam que tal reação fosse condizente com a situação. – Diga-nos por que traiu seu povo e anulo a sua sentença! – Havia um tom de ansiedade em sua voz, mas a surpresa só ficou presente nos olhos dos outros. Guillian abriu seu olho bom e fez um aceno negativo.

– Ainda não é a hora, majestade.

– Matem-no!

– Não! – Uma voz alta soou na multidão. Guillian e o Rei reconheceram-na imediatamente. O primeiro finalmente esboçava uma reação além da zombaria. Havia pânico em seu rosto. O governante, porém, estava confuso.

– O que quer?

– Quero ser eu a cumprir essa sentença. Deixe-me empunhar a lâmina encantada.

– Pai, saia daqui! – Guillian suplicou.

– Não. – O Mestre caminhou trêmulo para o altar. A bengala parecia sustentar mais peso do que deveria. Estava sozinho e a multidão estarrecida lhe deu passagem. – Seus amigos estão presos. Arquitetavam um plano insano para salvá-lo. Queriam minha ajuda para armar a fuga. Eu recusei.

– Que ousadia da parte deles! – exclamou o Rei. – Fico feliz em ver que ainda está conosco, Mestre.

– Deixe-me cumprir a sentença, majestade. – Os olhos azuis do ancião estavam presos aos do filho. O Rei sentiu a intensidade naquela troca de olhares.

– Há regras...

– Regras podem ser quebradas. Sou o mais habilitado, há magia em meu sangue. Não falharei com aquilo que me dá tanto poder. – Ele encarou o Rei que, por sua vez, encarou o próprio filho. Urir irradiava tensão. Estava animado por realizar sua primeira execução, com toda uma sinistra determinação assassina corroendo seu olhar.

– Muito bem – concordou o Rei. O Mestre agradeceu com uma reverência. A atitude foi inesperada. Por mais horríveis que tivessem sido os atos de Guillian, vê-lo ser morto pelas mãos do pai mostrava-se assustador.

O Mestre, porém, não parecia nem um pouco arrependido.


***


– Não acredito nisso! – Serafine esmurrou a parede com toda a força que pôde reunir. Não exatamente uma parede, mas o feitiço imposto pelo Mestre naquela sala. Jarek estava sentado em um canto, o rosto sereno como se nada estivesse acontecendo, os olhos fechados demonstrando a mais pura calma. Jill havia sumido, provavelmente acompanhando o Mestre até a execução. – Maldita hora em que eu fui confiar naquele velho!

– Ele é seu Mestre.

– Não quero como Mestre alguém que mata o próprio filho! – ela ralhou de volta. Jarek ficou quieto, pouco se importando com a conflituosa situação em que a jovem se encontrava. Estavam presos ali porque Serafine confiara seu plano ao Mestre. – E não me importam os crimes que Guillian cometeu! – ela acrescentou rapidamente, tratando de deixar aquilo bem claro. Como Guillian poderia ser um aliado das Trevas se a havia salvado?

Indignada, continuou a esmurrar as paredes, buscando alguma forma de escapar dali. O Mestre havia criado uma barreira mágica poderosa, ou o que quer que fosse aquilo, e nada era capaz de quebrá-la.

– Sossegue aí, princesa. – Jarek disse por fim, parecendo entediado com as atitudes de sua protegida. Serafine lançou um olhar irado, jogou a trança despenteada para trás e continuou a socar aquela prisão.

– Use esse apelido mais uma vez e eu o faço engolir seus dentes – ameaçou, trazendo um sorriso ao rosto do guerreiro. Ele se levantou e, em passos calmos, parou ao lado da incansável Serafine, que já começava a ficar com os punhos machucados de esmurrar a barreira. Ele segurou suas mãos quando a jovem se afastou, e encarou-a com um de seus olhares profundos.

Serafine desconcertou-se por alguns instantes, atraída por aqueles olhos escuros. O rosto belo de Jarek estava sério, mas os lábios se curvaram em um sorriso cúmplice. Ela encarou-o confusa, sem entender o gesto, e foi então que ele indicou uma área da parede onde a camada transparente de magia se solidificara, formando uma espécie de película protetora.

Ela havia rachado exatamente onde a morena esmurrara com tanta força.


***


Guillian estava estarrecido, suas pernas haviam amolecido e ele precisou de apoio para se levantar e deitar naquele altar. O pai parou bem ao seu lado, exibindo a típica faceta inexpressiva. Ele era bom em não demonstrar sentimentos.

O guerreiro sabia, com uma forte dor no peito, que o pai não voltaria atrás. Havia dito com certeza: não falharei com aquilo que me dá tanto poder. E, citando a magia, Guillian sabia que não havia falhas. O Mestre mataria o próprio filho, cumprindo a promessa que fizera há tantos anos: retorne a essas terras e não haverá piedade. A sentença será cumprida. Lançou um último olhar para o pai, enquanto escutava a voz do Rei soar distante. Tudo naquele instante parecia transcorrer em câmera lenta, como se o tempo deixasse de existir. Aceitando a covardia, sentiu medo.

Não queria morrer pelas mãos de seu pai. Não pelas mãos daquele a quem tanto admirava, aquele por quem criara um imenso respeito, mesmo após seu exílio.

E, no entanto, ali estava o Mestre, nada arrependido da decisão que tomara. Iria transformar o filho em cinzas para que todos vissem. A traição nunca pesara tanto na consciência de Guillian quanto naquele momento.

Não. Sua própria voz o despertou. Não se sentiria arrependido pelo que fizera. Tinha orgulho da coragem que conseguira reunir e iria morrer com dignidade. Para todos, era um traidor. Para ele mesmo, um herói.

Silêncio preencheu o salão. Guillian nada mais ouvia, além de seu próprio coração. Os batimentos estavam acelerados demais para alguém corajoso como ele. O medo corria solto por suas veias.

– Eu agora o sentencio, Guillianus... – Distantes, as palavras do Rei chegaram aos seus ouvidos.

– Por sua traição contra o reino dos Atyubrus, por aliar-se a uma criatura das Trevas e colocar em risco toda a sua raça, a morte virá para levá-lo ao seu julgamento final.

Guillian virou o rosto, sem ousar encarar o pai naquele momento. Vislumbrou a lâmina prateada erguendo-se e foi engolido pelo silêncio. Um silêncio sufocante.

E, no instante em que seu pai baixou a lâmina encantada, eventos se sucederam repentinamente.

Um grito agudo ecoou dos fundos do salão. Um grito muito conhecido por Guillian. Serafine? O Rei esbravejou pela interrupção e, para o espanto geral, o Mestre não parou a espada.

Guillian se viu englobado por uma densa escuridão. Não havia som ou cheiro, nem nada para tocar. Estava perdido nas Trevas. Não havia para onde ir. Sua sentença fora cumprida.


Capítulo 19

Regresso

 

 

Retornar... Uma palavra tão simples e tão desesperadora naquele momento. Retornar ao mundo de luz. Deixar para trás aquela escuridão sufocante que cada vez mais o envolvia, deixando espaço para uma crescente agonia.

Então essa era a sensação de morrer como um traidor? Ser jogado no vazio daquela atormentadora escuridão? Porque, por mais corajoso que fosse, encarar durante a eternidade aquele interminável ébano era aterrorizante. Implorou para que aquele tormento acabasse, mas tinha ciência de que isso jamais aconteceria. Estava condenado para sempre.

Ou talvez não.

Uma voz soou distante, arrebentando o silêncio mortal que o abraçava a indetermináveis minutos, horas ou talvez até dias. Desesperado, buscou por aquela voz. Não havia nada além do breu em que estava flutuando, nada que o pudesse salvar. Aquele som havia sido obra de sua mente. A insanidade, aquilo que tanto temia, começara a despertar.

Então, instantes depois, a mesma voz se repetiu, agora um pouco mais alta e clara. A palavra que gritou ainda era indistinguível para ele, mas saber que havia alguém ali o tirou do pânico. Tateando em volta, buscando qualquer coisa em que se agarrar, nada encontrou, mas a voz ecoou novamente. E de novo.

E, pela quarta vez, bem mais alta, a palavra foi ouvida claramente: Acorde.

Acordar como? Não estava em um sonho. Estava morto e condenado àquele abismo de Trevas. Nada nem ninguém poderia tirá-lo dali. A esperança de que houvesse alguém naquela escuridão foi se esvaindo conforme o silêncio voltava a imperar. Não havia fuga. O retorno para a luz era impossível.

Acorde.

Acorde.

Acorde.

Pareciam três vozes distintas. Três vozes diferentes! Podia ser um bom sinal. Talvez aquele infinito de sombras não fosse seu fim, talvez fosse apenas um caminho. Ele não podia se conformar em ficar preso ali para sempre.

GUILLIANUS!

A voz era conhecida demais para ser verdadeira. Não havia possibilidade de ela estar ali, presa junto com ele. Jill estava viva! Bem viva, aliás. Estava na cerimônia quando seu pai baixara a lâmina encantada e a escuridão o abatera.

Inesperadamente, algo ocorreu. Antes flutuando, ele se viu caindo. Aquele poço de escuridão não acabava nunca. Era apenas uma vasta queda. Com raiva, o guerreiro desejou poder retornar ao estado paralisado. Ao menos ele não sofreria aquela sensação alucinante e assustadora.

Desperte, Guillian.

Fechou os olhos, encontrando a mesma escuridão que o cercava. Conseguiria se concentrar melhor se só sentisse a queda, em vez de olhar para o poço escuro que o arrastava. Tentando buscar controle, ele concentrou-se nas vozes que ainda o chamavam.

Pediam que acordasse, mas como ele faria isso?

Clara como uma luz, a resposta veio. Ele estava vivo!


***


Jarek e os outros estavam lá longe. Guillian estava com eles. Chamavam-no para que fosse salvo do abismo em que caíra graças a um feitiço bem planejado do Mestre. Ele estava vivo, asseguraram a Serafine. Só precisava ser resgatado.

Impaciente como sempre, a garota se encontrava afastada do grupo. Ela ainda sentia desconfiança em relação ao Mestre; portanto, lançava olhares furtivos em sua direção de vez em quando. Não recebia qualquer resposta, já que todos estavam concentrados na figura estendida ao lado deles.

Tudo havia sido tão bem planejado pelo pai de Guillian que nem ela e nem Jarek suspeitaram do plano. Irritada e frustrada, ela andou de um lado para o outro. Ouviu os murmúrios dos que estavam no grupo, mas nenhum deles parecia disposto a prestar atenção nela.

Jarek encarou-a por breves segundos, o suficiente para garantir que tudo corria bem. O Mestre sabia o que fazia. Eles haviam alcançado uma região longínqua do território Atyubru, o que lhes garantia horas de vantagem.

Por isso Serafine fora incumbida de examinar a área, começando pela parte de cima. Ela deveria subir em uma das árvores e encontrar o brilhante cristal que reluzia a quilômetros de distância, aquele localizado no topo da Torre do Castelo das Quatro Luas. Era uma espécie de farol para os perdidos.

Olhando para a árvore mais próxima, Serafine engoliu em seco. Eram todas altas demais. A que fora escolhida exibia galhos firmes em volta de todo o seu tronco. Ela a considerou segura, e tentaria escalá-la. Jogando os cabelos negros, agora soltos, para trás, Serafine adiantou-se até a primeira das ramificações.

Suspirou pesadamente e massageou as mãos. O grupo não a viu se afastar, mas sabia que, caso caísse, seria salva a tempo. Ao menos, era o que esperava.

O começo foi fácil, pois a escalada não exigia muito esforço. Após uns metros de subida, fez a idiotice de olhar para baixo. Uma vertigem a atingiu. Agarrou-se com mais força e prendeu a respiração, temendo que qualquer movimento a desequilibrasse. Por sorte, isso não aconteceu.

Tomando coragem, ela prosseguiu de galho em galho até quase alcançar o topo. Já podia enxergar parte da floresta entre as folhas da árvore e, mesmo tremendo de medo, procurou avistar alguma coisa brilhante.

O Sol estava quase no alto, indicando que o meio-dia se aproximava. O céu estava mais azul do que o normal, e uma pequena silhueta em meio àquela cor chamou sua atenção.

A Lua brilhava no mesmo tom do céu.

Distraída, Serafine observou como a coloração mais forte parecia começar bem onde estava o astro, estendendo-se para longe. O próprio Sol parecia ofuscado por aquela Lua incomum. Era o astro de Ímani, como o velho elfo havia contado. Isso significava que eles deveriam retornar ao Castelo naquela mesma noite, pois o Ritual só poderia ser realizado com a Lua de Ímani no céu.

Concentrou-se, então, na busca pelo cristal. Os olhos da jovem varreram toda a área que conseguiu, mas nada brilhante se destacou em meio ao matagal.

– Encontrou a direção? – A voz de Jarek veio lá de baixo, mas Serafine não teve coragem suficiente para ver o quão abaixo ele estava.

– Não! – gritou de volta. Imaginou que, se pudesse ouvi-lo claramente, teria distinguido um bufo de indignação.

– Muito bem, desça daí que eu cuido da rota!

– D-descer?

Ela não podia mover as pernas. Estavam estrategicamente apoiadas para sustentar seu corpo, e os braços estavam agarrados demais a um galho para se soltarem. Ela sabia que o corpo responderia aos seus comandos, mas havia altura demais a ser considerada. O medo a dominou, paralisando-a por completo, mas não diria isso a Jarek. Ele a considerava fraca, quase nunca colocando fé em nada que fazia. Precisava provar que, mesmo paralisada de medo, podia ser forte.

Inspirando profundamente, moveu um dos pés, buscando apoio. O galho estava longe demais para que ela alcançasse, então teria que mover um dos braços para descer mais um pouco.

– Vamos lá, você consegue – disse para si mesma. Ficou olhando para cima o tempo todo, rezando aos Deuses para que lhe dessem um pouco mais de força nos membros.

– Está com problemas aí em cima, princesa? – zombou Jarek. Ele não fazia ideia de como Serafine estava desesperada, e nem saberia, já que a jovem não se daria por vencida.

– Não preciso da sua ajuda!

Havia subido sozinha. Conseguiria descer sozinha também. Quando pequena, costumava escalar as árvores da Vila do Sol. Eram arbustos, se comparadas àquela, mas o princípio continuava o mesmo.

Seu pé tocou no galho, certificando-se de que era firme, e sua mão arranjou apoio. Ela deslocou o corpo um pouco para baixo. A situação se seguiu por mais alguns metros e logo Serafine se sentiu mais confiante. Durante a descida, tentou manter a concentração em algo que não fosse a altura em que se encontrava. Pensou, então, no brilho esquisito da Lua, e imediatamente se lembrou de quando a Deusa fora convocada em Águas Claras.

Recordou-se de como o brilho da ilusão e aquele que iluminava o céu eram parecidos. Seria assim a verdadeira Deusa? Será que, durante seu Ritual, ela seria chamada? Como seria presenciar a aparição de uma divindade real, se apenas a ilusão já lhe causara tanto alvoroço?

Tantas perguntas... Tão poucas respostas.

Esforçou-se para acreditar que não tinha motivos para se preocupar, nada poderia dar errado. Assim que terminasse sua descida, Jarek e os outros iriam levá-la ao Castelo e então o Ritual finalmente aconteceria. Encontraria todas as respostas que procurava. Quem sabe até para aquele pesadelo que a assombrara dias atrás.

E talvez tal pensamento não devesse ter ocorrido naquela hora. Foi como se um choque percorresse seu corpo. No mesmo instante em que o recordou o sonho, o medo a dominou e ela perdeu a concentração.

Seu pé tocou num galho podre e, acreditando que ele fosse firme como os outros, deixou-se apoiar. A mente estava abalada demais para prestar atenção. Um estalo alto chegou aos seus ouvidos no momento em que sua mão trocava de galho, e seguiu-se um instante de pânico. Olhou para baixo, procurando outro lugar, mas tudo o que encontrou foram metros e metros ainda a separando do chão. Um grito involuntário escapou de seus lábios quando a vertigem forte a dominou. O desespero tirou seu equilíbrio e, quando se deu conta, estava despencando.

Tão mais rápido que sua queda foi o modo como ela acabou.

Fechou os olhos, esperando a dor, mas ela não veio. Sem nem mesmo perceber, estava segura nos braços de seu salvador. Presunçoso, Jarek exibia aquele seu sorriso habitual.

– Tem certeza de que não precisa da minha ajuda?

Serafine ficou surpresa pela rapidez dele. Também ficou irritada, porque não gostou nem um pouco de ver como Jarek estava se vangloriando pelo salvamento. Era o guardião mais irritante que existia naquele mundo.

Desvencilhando-se dele, ficou em pé com dificuldade. Suas pernas estavam bambas pela queda, mas era teimosa o suficiente para manter-se firme.

– Eu disse que não precisava da sua ajuda para descer. – Deu de ombros. – Fiz isso sozinha. – Jarek riu com diversão, mas ela permaneceu com uma carranca mal-agradecida no rosto.

– Claro, princesa. Eu vi como você se saiu bem na sua descida – retrucou com sarcasmo.

– Eu estava me saindo bem! Mas me distraí – com uma idiotice, concluiu ao parar para pensar. Não devia ter ficado tão apavorada com as lembranças daquele sonho. Sempre tivera pesadelos e, por mais que tivesse parecido real, vinha mantendo os pensamentos ligados demais em uma coisa tão banal. Não era real!

– Se distraiu com o quê, se me permite a pergunta? – Um brilho de curiosidade cruzou os olhos escuros do guerreiro, mas ela não lhe deu satisfação alguma. – Ao menos agradeça por eu tê-la salvado! – Jarek, indignado, virou-se na direção dela. Serafine parou e armou um sorriso largo demais para ser sincero.

– Muito obrigada, nobre guerreiro. – Jarek pareceu se divertir, respondendo com uma reverência. Serafine revirou os olhos e distanciou-se dele.

Não foi para perto do Mestre. Queria ficar sozinha por um tempo. Suas atitudes levianas vinham se tornando frequentes demais e isso a frustrava. Estava tentando provar que era capaz de prosseguir dignamente naquela jornada, mas cada ação resultava em um fracasso vergonhoso.

Engoliu em seco e esfregou os olhos, impedindo que lágrimas escorressem por seu rosto. Não seria fraca a esse ponto. Não sucumbiria à tristeza por ter fracassado novamente.

Encostou-se a uma árvore, afastada do grupo, e deixou-se escorregar até o chão. Suas pernas e mãos estavam trêmulas pela queda, mas a tremedeira também era de nervosismo. Não gostava de bancar a metida, mas tinha feito exatamente aquilo momentos antes. Jarek a havia salvado, afinal, e, mesmo com aquela atitude pouco simpática, tivera êxito em protegê-la. Tudo o que ele fazia parecia ter êxito. Bem ao contrário da garota.

Frustrada, bateu a cabeça contra o tronco e fechou os olhos. Não relaxou pelo tempo que queria, infelizmente, já que passos a alertaram de uma presença. Arrependida de seus trejeitos e imaginando ser Jarek, ela ergueu-se para se desculpar, mas, no lugar de íris escuras, encontrou os olhos alaranjados de Jill.

– Ah, olá! – Um sorriso fraco surgiu em seu rosto.

– Guillian acordou. – A Atyubra também estava sorrindo.


***


– Como eu posso estar vivo?

Serafine aproximou-se do grupo a tempo de ouvir a exclamação indignada. Correu até lá e encontrou o seu guardião com a expressão mais incrédula possível. Jarek estava um pouco afastado, só observando a cena. Seus olhares se cruzaram e o rosto do guerreiro iluminou-se com um sorriso.

– Guillian! É tão bom vê-lo! – Serafine exclamou com verdadeira alegria.

– Milady – ele cumprimentou-a com educação, para depois encarar o pai. – O senhor fez um juramento!

– Você não está feliz por estar vivo? – Serafine perguntou. A confusão tomou conta de seu tom de voz. – Seu pai o salvou! Não devia estar reclamando.

– Ele vai ser considerado um traidor quando descobrirem, assim como eu – Guillian argumentou. O Mestre não parecia estar muito preocupado. Estava sentado sobre uma grande raiz, os olhos azuis fitando o filho com um brilho misterioso.

– Mas não importa mais. Estamos longe da aldeia e logo regressaremos ao Castelo – Serafine replicou. Ela buscou apoio de Jarek para sua conclusão, mas ele continuou calado.

– Ela está certa, Guillian. Não podíamos deixá-lo para trás. – Jill, até então quieta, resolveu se intrometer. Recebeu um olhar nada gentil do guerreiro, mas respondeu à altura. Ela recobrou a pose altiva de antes. – Você é o terceiro guardião, não podia ter sido morto. Tem uma missão importante a cumprir.

– Para começo de conversa, um traidor não deveria ter sido escolhido guardião pela Ordem... – começou Guillian, mas a bengala do Mestre acertou com força sua cabeça. O guerreiro gemeu e massageou o local do impacto, e seu pai encarou-o com uma fúria assustadora.

– Nunca contradiga as escolhas da Ordem, menino – o velho Atyubru retrucou. Seus olhos azuis faiscavam com um crescente sentimento de raiva. – O que foi decidido permanecerá até o fim. Você é digno o suficiente para cumprir a missão e ficará nela.

– Mas...

– Não discuta! Eu salvei sua vida criando aquela ilusão, e os riscos de tal decisão são meus. Devemos partir imediatamente. O Ritual será realizado esta noite. – Serafine engoliu em seco, sentindo o nervosismo aumentar. O Mestre a encarou como se entendesse e, pela primeira vez desde que se conheceram, sorriu com compreensão. – Vai dar tudo certo, criança.

– O Castelo está onde imaginávamos? – Jill indagou. Jarek respondeu antes que Serafine pudesse falar.

– Sim.

– E como é que vocês sabem onde ele está? Eu subi até o topo daquela árvore e não vi nada!

– Apenas me siga, princesa.

– Pare de me chamar assim!


***


– Nadar? – Serafine exclamou num misto de indignação e surpresa. Jarek assentiu, indicando a ela a margem do rio. Jill já tinha se adiantado até as águas cristalinas, assim como Guillian e o Mestre.

Pelo que fora explicado, seguiriam o curso do rio e encontrariam o Castelo. Jarek explicara que, quando o cristal não era avistado, significava que o palácio estava próximo. A magia era esquisita demais para ser entendida, mas fazia sentido. Os inimigos não avistariam o brilho e imaginariam que ele estava longe demais para ser encontrado. Só quem conhecesse a barreira mágica poderia atravessá-la. E foi com essa explicação que ela concluiu que subir naquela gigantesca árvore não servira para nada.

– Não é que não serviu para nada... – disse Jarek. – Serviu para você confirmar a certeza de que estávamos próximos.

Indignada, ela reclamou sobre ele tê-la mandado subir numa árvore apenas para confirmar uma suposição! Por que ele mesmo não havia subido, então?

– Porque você tem que aprender a se virar – retrucara Jarek. Havia uma sombra no olhar dele naquele momento. – Não estarei sempre com você. Precisa aprender a procurar o caminho certo.

– Eu só teria encontrado o caminho certo para o chão – ela replicara, fazendo-o rir alto. Jarek balançou a cabeça e usou um de seus olhares intensos ao afirmar:

– Você se saiu melhor do que muita gente. Teve uma coragem surpreendente para subir naquela árvore sem ajuda. Se não fosse a sua misteriosa distração, teria dado tudo certo. – Ele parou um pouco, ponderando. – Eu e Ývela vamos lhe ensinar a não hesitar.

– Mas até lá eu já posso ter morrido.

– É por isso que somos seus protetores. – Não havia qualquer traço de humor ácido no tom de voz do guerreiro. – Você ainda é uma humana, Serafine. Acabou de ingressar em um mundo cheio de perigos que, por enquanto, desconhece. Eu acredito que, com treinamento, não irá mais precisar de guardiões.

Quieta diante do elogio indireto, Serafine parou de andar por alguns instantes. Jarek riu baixinho e prosseguiu a caminhada, deixando-a com uma expressão incrédula. Então ele estava começando a ter fé nela! Era uma boa notícia. Ou não. Na verdade, ela não sabia porque se importava tanto com o que ele pensava.

Voltou a si quando encarou as águas daquele rio. Teriam de nadar até o Castelo, já que o resto do caminho era cheio de pedras escorregadias e árvores entrelaçadas demais entre si.

– Se eu morrer de frio, vai ser culpa sua – resmungou. Jarek não se importou com o resmungo de Serafine e curvou-se quando ela passou. A atitude que deveria parecer de um cavalheiro saiu zombeteira.

A água não estava tão gelada quanto parecia, mas assim que o Sol se pusesse, o que aconteceria em duas horas, aquele rio não pareceria tão convidativo. A correnteza os arrastava com suavidade, sem qualquer turbulência. Passaram muito tempo nadando, um tempo indeterminável para a jovem. Serafine relaxou enquanto dava braçadas lentas. Jarek estava bem à frente do grupo, parecendo impaciente demais para deixar-se levar pelo próprio rio. Seus braços fortes tornavam seu nado rápido e agitavam a água à sua volta. Suspirando, Serafine lutou contra o cansaço para alcançá-lo.

– Vai com calma aí, amigo.

– Não posso ter calma. Temos que chegar ao Castelo antes do anoitecer ou seu Ritual só poderá acontecer daqui a dois meses – ele retrucou. A curva do rio tinha alguns obstáculos, mas não demorou muito para que Serafine avistasse uma agitação estranha na água à sua frente.

– O que tem ali?

– Uma cachoeira. – Jarek parou um pouco, parecendo reconhecer aquele lugar. – Estamos perto! – avisou aos felpudos que os acompanhavam. Serafine reparou que eles não eram muito rápidos na água, exceto o Mestre. Estranhamente, ele vinha boiando e deixava que a água o arrastasse pelo caminho certo. Quando havia pedras no percurso, ele nem se preocupara em parar de boiar. Era como se o rio soubesse o que fazer com ele. Guillian e Jill ofegavam e batiam os braços com firmeza, as orelhas grandes dificultando seus movimentos.

Depois de um tempo, Serafine finalmente pôde ver a cachoeira. Não era a do Castelo, mas ele também estava à frente. As cores do crepúsculo se refletiam na fachada branca da estonteante construção. Os olhos da morena brilharam de expectativa.

Pensou em como era bom voltar. Por mais que aquela não fosse sua casa, era aconchegante como um lar deveria ser.

O cristal brilhava no topo da torre mais alta e a luz azulada da grande Lua finalmente ficou aparente no céu escuro. Era de um azul claro incrivelmente belo, contrastando com o manto de ébano que começava a colorir acima de suas cabeças. Serafine se perguntou porque nunca a havia visto antes; descobriu depois que a Lua só brilhava daquela cor para quem estivesse em lugares mágicos. A Vila do Sol não era um deles.

Jarek foi até a margem do rio e saiu dali um pouco distante do Castelo, onde o terreno já era firme. Estendeu a mão para Serafine, mas ela ergueu-se sem sua ajuda, lançando um sorriso que imitava perfeitamente o sorriso presunçoso do guerreiro. Os Atyubrus foram ajudados pelos dois, com exceção do Mestre. Ele permaneceu deitado na água e se ergueu sem qualquer movimento. Foi como se o próprio rio criasse braços e os estendesse para ajudar o ancião. Serafine sentiu seu queixo caindo e tal reação fez o Mestre sorrir.

– Vamos! – Jarek exclamou de repente, percebendo que o Sol já havia desaparecido no horizonte. Serafine sentiu seu braço ser puxado e se viu correndo com o guerreiro. Jarek parecia nem perceber as raízes que se erguiam do chão e dificultavam a corrida da garota. Ele tinha uma destreza absurda e seus saltos ultrapassavam a capacidade humana de se mover. Serafine ficou para trás.

Alcançaram o Castelo após alguns minutos de corrida. O caminho era o mesmo usado na partida, e foi impressionante notar como isso parecia um acontecimento tão distante. A trilha de pedras que saía para o bosque agora era a trilha para a entrada do Castelo. Havia duas figuras conhecidas à sua espera.

Serafine alegrou-se ao enxergar seus rostos e correu até a figura menor, recebendo de Ývela um abraço caloroso.

– Fico tão feliz que tenha retornado! – Os olhos grandes e azuis brilhavam de expectativa.

– Não temos tempo a perder, Serafine. – Lonel fez um aceno quando avistou o Mestre Atyubru, este um pouco menos humorado do que antes. – Seu Ritual deve ser realizado agora.


Capítulo 20

O Ritual da Lua Azul

 

 

Serafine encarou-se no espelho. Seus trajes não poderiam ser mais estranhos, mas fora obrigada a vesti-los. Era uma das regras do Ritual.

O vestido era feito da mais pura seda e sua cor branca destacava-se contra a pele morena da menina. A veste tinha gola alta e era justa do pescoço à cintura, soltando-se em uma esvoaçante saia até os calcanhares, onde a bainha terminava enfeitada por contas. Apenas a manga do braço esquerdo era longa, enrolando-se em sua pele em várias tiras de tecido, como as tiras de couro que Jarek usava para cobrir o antebraço.

Para completar a esquisitice daquelas vestes tão apertadas, seu braço direito ficava descoberto, deixando os desenhos perolados à mostra. Ela ficou curiosa sobre a razão de usar um vestido tão estranho, mas não fez questionamentos. Eles sabiam o que faziam ao pedir roupas tão incomuns.

Tinha terminado de pentear os cachos negros quando alguém bateu na porta. Ao dar permissão para que a pessoa entrasse, encarou o reflexo de Ývela e sorriu. Era bom poder contar com a guardiã novamente. Sentia-se à vontade com ela. Era como estar com uma amiga, como quando tinha Mahiry. Ela não entendia o jeito de Jarek e conhecia Guillian há pouco tempo, por isso Ývela era a melhor companhia.

A loira usava um vestido de tecido igual ao seu, longo e sem mangas, deixando expostos os braços enfeitados pelos arabescos azuis. Os cabelos loiros estavam presos num coque baixo enfeitado por contas peroladas. O rosto jovial e belo estava iluminado por um sorriso.

– Temos que ir. O salão está pronto.

– Ývela, o que eu vou ter que fazer? – Serafine relutou, mas temor jorrou de suas palavras. Ývela pareceu entendê-la e apertou sua mão.

– Não se preocupe. Não é um Ritual macabro nem nada do tipo. Lonel precisa despertar seu espírito para o mundo mágico e, para isso, precisa convocar os Deuses. Você apenas ouvirá o que eles têm a dizer e saberá o que deve fazer a seguir.

– E eu não tenho que fazer mais nada além de sentar e escutar? – indagou de volta. Ývela assentiu carinhosamente.

Seguiram pelos corredores vazios do enorme Castelo. A Lua enfeitava o céu, colorindo aquela paisagem com seu pálido brilho. Era mais sobrenatural do que as luzes vindas da esfera do pátio. O Ritual aconteceria no salão que, antes, era usado para reuniões e refeições.

O cômodo era amplo, com teto alto, sustentado por quatro pilares de pedra branca polida. Um candelabro de cristal, idêntico ao da biblioteca, pendia bem no centro do salão, lançando luz para todos os lados. A varanda, cujas portas altas e largas estavam abertas, dava visão para o rio e a cachoeira mais à frente. Serafine ficou surpresa ao ver que a mesa comumente utilizada havia sido substituída por um altar de pedra negra, onde ela poderia se deitar com facilidade. Ela estacou na porta, lembrando-se de Guillian deitado na pedra para ser executado.

– O que foi? – Ývela virou-se preocupada.

Serafine nada disse, mas ficou claro em seu olhar que ela estava assustada. Foi só quando vislumbrou o sorriso calmo e acolhedor de Lonel que se sentiu mais leve. O elfo era confiável. Não havia o que temer.

Todos ali eram confiáveis, na verdade, ao contrário do que havia ocorrido em Águas Claras. O medo parecia tolice.

Jarek também estava no salão, ao lado de Jill e Guillian. Os guerreiros usavam calças largas e camisetas de manga comprida feitas de tecidos leves e tons escuros. Jill estava com um vestido feito especialmente para o seu tamanho e a cor era parecida com a das vestes de Ývela.

O Mestre Atyubru estava ao lado do velho elfo, mas o altar quase o escondia. Sua estatura era baixa e, em decorrência da idade, envergava-se um pouco também. Estava apoiado na bengala velha e encarava Serafine com intensidade. Cumprimentou-a com um aceno e alargou um sorriso simpático.

– Serafine, aproxime-se. – A voz rouca do velho elfo ecoou pelas paredes do salão. A menina foi até ele em passos incertos, enquanto Ývela seguia até Jarek, parando ao seu lado. Seus três guardiões a contemplavam com orgulho e simpatia. Mesmo Jarek, sempre tão sério, cultivava um sorriso sutil. Ela responderia ao gesto se não fosse o nervosismo.

Finalmente teria as respostas que tanto desejava. Finalmente entenderia o motivo de tantas coisas estranhas rondando sua vida. Já haviam se passado mais de duas semanas desde que fugira da Vila do Sol, mas o tempo parecia incontável. Sentia como se toda a sua vida tivesse sido deixada para trás durante o massacre.

O ataque dos Amaldiçoados a trouxera para um novo mundo. Um mundo onde Serafine era importante. Um mundo que dependia dela.

– Preciso que fique aqui, de pé, à frente do Primeiro Mestre. – Lonel indicou o lugar. Serafine obedeceu, tentando encontrar conforto nos olhos azuis do velho Atyubru. Ele, porém, estava sério e concentrado. Não havia vestígio de sorriso em seu rosto felpudo. – Serafine Delay, nesta noite, seu espírito ressurgirá. O resquício humano que se concentrou em sua alma durante todo esse tempo será deixado para trás e não haverá mais volta. Você aceita libertar-se disso? Aceita unir-se ao mundo sobrenatural, encontrando seus verdadeiros poderes? E aceita, principalmente, cumprir o que lhe for ordenado pela Profecia de Mídria?

– Sim – incerta, ela balbuciou. Seus olhos estavam fixos nos do Mestre, e ele fez um aceno positivo ao ouvi-la concordar.

Se fosse esse o preço que precisava pagar para entender tudo que estava acontecendo, ela o faria. Serafine sabia que sua humanidade não mais existia. Tinha passado por coisas demais para se sentir humana. Dali para frente, faria parte do mundo mágico. Não voltaria atrás em sua decisão.

– Haius. – Surpresa por ouvir o nome do Mestre pela primeira vez, Serafine virou-se para o elfo. – Você já fez sua promessa de sangue, mas deve reavivá-la. Há muito tempo foi previsto que um espírito nasceria para livrar Warthia do mal que deseja ressurgir e você, como um patrono das águas, jurou ensiná-la quando chegasse a hora. Está pronto para honrar esse juramento?

– Sim. Como prometido aos Deuses, meus conhecimentos serão passados para essa jovem aprendiz. – Os olhos azuis encontraram os dela. Serafine engoliu em seco. – Para que, com eles, ela destrua aquilo que deseja destruí-la. – O tom de voz ficou brando, mas havia um aviso por trás das palavras.

O elfo contornou o altar para ficar frente a frente com a garota.

– Serafine, preciso de uma gota de sangue.

– O quê? – A pergunta escapou inocentemente da jovem, mas não sofreu represália. Lonel sorriu compreensivo.

– Os Deuses precisam de um tributo de quem irá despertá-los para que possam aparecer. Por isso a convocação em Águas Claras não foi verdadeira.

Engolindo em seco, ela estendeu a mão, pronta para ver-se cortada por uma faca afiada, como quando Jarek fizera o tributo. Surpreendeu-se quando o elfo espetou um dedo seu e capturou a gota em pleno ar, como se ali não houvesse gravidade.

Ele guiou Serafine até o altar e a fez deitar-se ali, enquanto a gota de sangue flutuava sobre a palma de sua mão. O elfo caminhou até a varanda, e a gota flutuou até desaparecer no céu. Lonel continuou olhando para o alto, onde a grande lua brilhava. Ele lançou um rápido olhar para Serafine e ela fechou os olhos. Involuntariamente, compreendeu que devia se concentrar, assim como havia feito na ilusão do Mestre.

Assim que esvaziou sua mente dos temores que a rodeavam e do nervosismo que a dominava, Serafine sentiu algo mudar. O chão tremeu, mas foi tão suavemente que não causou susto algum. Um brilho forte se estendeu por todo o salão, clareando a penumbra sob suas pálpebras. Quando a luz diminuiu de intensidade, a morena teve coragem de abrir os olhos, e encontrou o lugar completamente diferente.

A forte luz vinha de uma figura parada na varanda. O resto do salão parecia escuro e sem vida.

Serafine sentou-se no altar e observou o ser próximo dela. Desde que estivera em Águas Claras, imaginava que os Deuses deveriam se parecer com os humanos, mas a criatura ali parada não se assemelhava a homem ou mulher.

Devia ter mais de três metros de altura e as asas largas, envergadas, apresentavam o dobro do seu tamanho. A cabeça altiva estava abaixada para encarar Serafine. Seus olhos eram dourados e tão reluzentes que refletiam o brilho de sua aura. As penas da gigantesca ave eram alaranjadas e sua cauda, que se estendia em diversos tons de vermelho, parecia estar em chamas. Ao observar melhor, Serafine notou que ela, na verdade, era feita de fogo.

O bico fino e triangular abriu-se e, sem movê-lo, uma voz harmoniosa – misturando tons graves e agudos, masculinos e femininos – comunicou-se com Serafine como uma doce sinfonia.

– Aproxime-se, criança.

Trêmula, ela obrigou suas pernas a se moverem. Lentamente, caminhou na direção da ave flamejante, desejando ter mais coragem. Aquela criatura estava representando os Deuses. Deveria ter respeito e admiração.

– Não tema.

Foi como se a ave lesse seus pensamentos.

Era assustador, mas o modo como a ave falou pareceu acalmar Serafine. A garota relaxou um pouco. Sentiu um calor confortável irradiando de seu corpo, como se o fogo cobrindo as penas da criatura não causasse mal algum.

Sem saber o que dizer, Serafine esperou. A ave a encarou, a cabeça inclinada para o lado. Quando abriu o bico, as vozes harmoniosas disseram:

– Esperamos muito tempo por você.

– E são vocês quem responderão minhas perguntas?

– Encontrará as respostas que procura quando o Ritual terminar. Não podemos explicar tudo sem interferir em seu futuro, criança. Você precisa trilhar seus caminhos com certas dúvidas. Seu espírito se conectará com o mundo mágico e, no final, saberá o que precisa saber.

– O que eu sou, afinal de contas? Por que sou tão importante para esse mundo?

– Seu espírito nasceu iluminado, Serafine, por uma força que todos em Warthia desconhecem. Uma força que foi criada para derrotar o mal. Um mal tão poderoso que, se ressurgir, destruirá toda a vida em seu mundo.

– Mas por que sou eu quem irá destruí-lo? Eu sou só... Eu. Não tenho nada de especial.

– Você tem tudo de especial, criança. Só não consegue enxergar. – A ave usou um tom carinhoso, como o de uma mãe. – Há pureza e coragem em seu coração.

– Como vocês podem confiar em mim? Como sabem que eu não vou falhar?

– Não há garantia de vitória, criança. Mas há garantia de luta. Sabemos que você não desistirá fácil e nem se deixará abater pelos obstáculos em seu caminho. Você é forte, Serafine, e seu espírito é ainda mais. Confie em nosso julgamento. Confie em si mesma.

A aura dourada que circundava o ser místico ganhou vida e, lentamente, distanciou-se dela, seguindo para Serafine. Ela arfou e deu alguns passos para trás, mas a ave usou de um olhar agradável e a morena estacou. Naquela criatura estava a essência dos Deuses. Sua presença poderosa e sua bondade podiam ser sentidas pelo coração de Serafine. E eles confiavam nela.

Ela também faria aquilo dali para frente. Tentaria não ter medo. Tentaria não hesitar. Tentaria ser forte.

A luz dourada circundou-a, e euforia tomou conta do seu coração. Era a melhor sensação já sentida, como se revivesse todos os momentos felizes de seu passado. Os raios contornaram seu braço livre e o tocaram. O calor foi reconfortante e o toque, suave como uma carícia.

Serafine sentiu-se diferente. Algo despertou em sua mente e lhe pareceu poderoso demais para ser controlado. Uma força ancestral e arrebatadora, sufocante e impiedosa.

Por um momento, foi tomada por pânico, mas a aura acalmou todo aquele poder. A sensação de quase perder o controle foi apavorante, mas os Deuses estavam ali para protegê-la.

Mais calma, ela percebeu o que havia acontecido.

Não era mais a humana atormentada.

Sua vida antiga fora definitivamente deixada para trás.

Agora, era uma criatura renovada, cheia de força. Estava preparada para encarar seu destino.

Seu espírito havia despertado.


Capítulo 21

Despertada

 

 

Os olhos de Serafine demoraram a se acostumar com a falta de luz. Havia sido arrebatada pela presença da ave de fogo, agora aquele salão parecia escuro demais. Ouviu ofegos e murmúrios enquanto voltava a si, tentando lembrar-se do momento em que ficou inconsciente. Recordou-se como a ave estendera sua aura sobre ela, e do modo como seu espírito acordou. Lembrou-se da força e do poder que sentiu fluindo em cada parte do seu corpo, como se fosse outra pessoa.

Serafine não era mais a temerosa humana de antes. Passara pelo Ritual. Sua alma havia sido mudada pelos Deuses.

– Precisa de ajuda, criança? – A voz conhecida do elfo Lonel chegou aos seus ouvidos. Com um sorriso, ela aceitou e logo estava sentada no altar de pedra. No salão não havia mais a presença dos Deuses.

– Agora sim, seu espírito é o escolhido. – A voz do Mestre também foi reconhecida. Achando graça, Serafine sorriu largamente. Estava ainda eufórica pelo toque dos raios dourados, quase com uma inacabável felicidade.

Olhou para si mesma, buscando alguma diferença, mas nada encontrou. Tocou seu rosto, mas não percebeu qualquer mudança nele, nem em seu corpo. Ficou surpresa apenas quando olhou para o seu braço direito, que ficara exposto. As espirais que enfeitavam sua pele pareciam mais brilhantes e, sobre a palma de sua mão, haviam adquirido um tom azulado. Era muito semelhante ao tom dos desenhos de Ývela.

Observando com mais atenção, Serafine viu que a luz da lua azul se refletia naquelas marcas. Momentos atrás, nem notara tal detalhe. Agora, seus olhos detectavam mais coisas do que antes. Os desenhos pareciam sobrenaturais, e não mais esquisitos.

Serafine compreendeu que as marcas eram importantes e por isso estavam ali. Elas a diferenciavam das outras criaturas. A vergonha que antes tinha ao mostrá-las desapareceu.

No mundo mágico, ela jamais seria vista como uma aberração.

– Fico feliz que esteja bem. – Seus olhos ergueram-se para a conhecida figura de Ývela e ela quase ofegou quando a encarou. Sua visão se tornara assustadoramente mais aguçada. Os olhos claros de Ývela estavam mais reluzentes do que antes e suas marcas brilhavam sob a luz daquela lua mágica. Detalhes minúsculos foram notados em Jarek, como uma pequena cicatriz no canto direito de sua boca e a marca gravada no bracelete que ele sempre usava. Debaixo do dragão havia um intrincado símbolo representando a letra H. Mesmo os olhos escuros de Jarek pareciam mais vivos, como se seu olhar frio e impassível demonstrasse mais emoções do que ele desejava.

Serafine tentou livrar-se daquele estranho sentido, piscando repetidamente, mas não adiantou. Sua visão continuou daquela maneira. Captou os entalhes de cada parte do salão como se estivesse ali pela primeira vez.

Era linda a maneira como a pedra clara das paredes combinava com a fraca luz que vinha do candelabro de cristais, cujos raios desviavam-se em suas superfícies transparentes. As estrias ligeiramente mais escuras encobriam cada centímetro das pedras.

Ao levantar, descobriu que também estava mais ágil. Suas pernas não demonstraram qualquer sinal de tremedeira e seus músculos pareciam mais resistentes. Esticou os braços e testou o aperto de seus punhos, e descobriu que eles também estavam mais fortes. Era como se tivesse passado semanas em um intenso treinamento.

Ao falar com algumas pessoas, notou que sua voz estava diferente, e então concluiu que a sua audição melhorara. Quando Lonel ou o Mestre falaram com Serafine, ela ainda estava inebriada demais para perceber, mas depois tudo ficou mais claro. Sons imperceptíveis mostravam-se audíveis, mesmo à distância. Compreendeu que os murmúrios que pensara ter ouvido vinham de elfos parados longe daquele altar.

Serafine achou graça da situação. Tudo nela parecia estar muito melhor. Talvez fosse parte daquele Ritual, já que ingressaria numa jornada cheia de perigos. Ninguém lhe falara disso, mas, julgando a importância que davam ao seu futuro, sabia que este lhe reservaria situações tensas. Alguém vai tentar me matar, a menina se lembrou bem.

– O que aconteceu comigo?

– Seu espírito foi tocado pela aura divina. Conectou-se à natureza de uma maneira inimaginável – o Mestre disse simplesmente. – Acredito que você tenha se encontrado com a Fênix.

– Fênix?

– É uma ave flamejante, criada no princípio dos tempos. Os Deuses não podiam se comunicar pessoalmente com suas criações; portanto, moldaram um ser que servisse de intermediário entre as dimensões. A Fênix sempre foi alvo de lendas no mundo dos humanos, vista como uma criatura imortal que renasce das próprias cinzas. O que esses humanos desconhecem é que essas histórias são verdadeiras... Foram passadas por seus ancestrais numa época onde seres mágicos eram vistos com mais frequência. Hoje em dia, isso não acontece mais.

– Então essa ave que me encontrou não era, exatamente, os Deuses?

– Não. É um ser iluminado o bastante para estabelecer uma conexão entre a segunda dimensão, o mundo de ilusões, e a terceira, na qual estão os Deuses. Recorda-se o que expliquei sobre as Quatro Dimensões de nosso universo?

– Sim. – Ela lembrou-se da conversa na Vila dos Atyubrus. Ele lhe explicara de maneira simples, mas parecia muito cauteloso. Serafine não mais duvidava das coisas que lhe contavam. Pensar em dimensões e em Deuses era, agora, mais simples e compreensível.

– O que deve saber é que a Fênix é a única e verdadeira ligação com os Deuses. Quando falamos em convocação divina, se feito por alguém realmente poderoso, pode haver uma aura de verdadeira divindade ali... Como aparentava ter acontecido em Águas Claras. Ývela e Jarek não suspeitaram, já que sabiam o quanto Grímena era poderosa.

– E vocês já sabem quem fez aquilo? Quem inventou a Deusa? – Serafine notou uma troca de olhares entre Jarek e Ývela. Agradeceu por ter seus sentidos mais aguçados, porque tal ação não teria sido notada antes. Aqueles dois tinham uma forma sutil de comunicação e, em um simples olhar, podiam dizer muitas coisas. Naquele momento, transmitiam cautela e preocupação.

– Ainda não temos certeza. E não podemos tirar conclusões precipitadas em relação a um assunto tão importante – Lonel interpôs-se na conversa, lançando a Serafine um olhar reconfortante. – Já deixamos a investigação a cargo de uma pessoa. Ela nos trará as respostas.

A morena se viu transportada para aquele dia na biblioteca, quando bisbilhotara a conversa do grupo. A voz da mulher reverberou em sua mente, mas não conseguiu identificá-la. Era uma desconhecida cuja voz lhe parecia assombrosamente familiar.

Suspirando, ela assentiu, preparada para deixar o recinto. Foi uma reação involuntária. Não notou que estava andando até que o Mestre a barrou.

– Onde pensa que vai?

– Na verdade, não sei. Só senti uma estranha vontade de andar. – Suas pernas pareciam ansiar por movimento, como se ela não pudesse mais ficar parada. Jarek, que estava próximo, soltou uma risada baixa.

– Está conectada com a força sobrenatural que move cada ser mágico, princesa. Finalmente está apta a aprender a lutar. – Serafine viu-se hipnotizada pela voz de Jarek. Era estranho, porque ela nunca tinha percebido o timbre rouco e grave que ele tinha. Parecia muito mais atraente agora.

Balançando a cabeça, viu-se em um instante de completa insanidade. Tanta coisa acontecendo, e ela ficava pensando em Jarek?

– Ótimo, então me treine. – Cruzou os braços em uma pose decidida, surpreendendo o guerreiro. Lonel foi o único a sorrir, satisfeito com a fala dela. Serafine esperou por uma reclamação de que aquele não era o momento apropriado, mas ouviu o contrário:

– Acho que será bom para você – o elfo comentou. – Testará suas forças e ficará renovada para a primeira lição do Mestre. – O Atyubru mais velho estava parado um pouco distante, mas encarou o elfo com um de seus olhares afiados. Ele parecia ansioso para treinar sua aprendiz.

– Me encontre nos jardins depois que se trocar. – Nada sutil, Jarek avaliou a morena de cima abaixo, rápido o suficiente para que ninguém além dela notasse, mas marcante o bastante para tirar seu fôlego.


***


Ývela a acompanhou até os jardins. Serafine havia se vestido com uma roupa apropriada para o treino: calças confortáveis e um colete justo igualmente escuro, feitos de um tecido resistente. O cabelo longo estava preso numa trança firme. Levava consigo o arco e as flechas dados por Ývela, mas duvidava que Jarek fosse ensiná-la a usar aquele tipo de arma. Ele já mostrara que tinha força física suficiente para não depender de armamentos como aqueles, o que significava que ela treinaria corpo a corpo.

Enquanto caminhava, tentou obter alguma informação sobre seu guardião. Algo que lhe indicasse qualquer ponta de compaixão por uma garota que nunca tinha lutado na vida.

– Jarek não pega leve, sinto muito. – Ývela tentou ficar séria, mas havia um sorriso em seu rosto.

– Que ótimo.

– Esqueceu-se que é uma de nós agora, Serafine? Com o tempo, você terá tanta força quanto ele ou eu. Todos começamos do zero, apanhamos feio no começo... Jarek carrega cicatrizes de seus primeiros treinamentos, mas não vai fazê-la passar por uma carga tão pesada de lutas. Você só precisa estar ciente de que, para conseguir se tornar uma guerreira forte e preparada, passará por aulas reforçadas. Seus guardiões estão aqui para ajudá-la.

– Certo – foi tudo o que ela conseguiu dizer.

Quando chegaram aos jardins, Serafine avistou Jarek e sentiu um leve temor espalhar-se por seu corpo. Lembrou-se das vezes em que o vira lutando, do modo como ele agia habilmente para derrubar seu inimigo, e perguntou-se quantas vezes ele tivera que cair até se tornar um exímio soldado.

Reparou em seus músculos, que ficavam aparentes enquanto o guerreiro arrumava o colete para colocá-lo. A cor dourada da pele intensificada pela noite. O tronco definido marcado por cicatrizes, como bem dissera Ývela, mas que não pareciam tão assustadoras. Eram linhas e recortes profundos sobre os músculos firmes, marcas evidentes sob a luz pálida da Lua, traços honrosos. Lembranças de suas batalhas.

Serafine sentiu-se um tanto abusiva ao olhar tão descaradamente para ele. Deixou sua mente vagar para um questionamento: um guerreiro como ele estava acostumado a carregar tais marcas, e com elas as histórias. Mas, se Jarek as tinha pelos combates enfrentados, como Serafine ficaria depois dos treinos?

Engolindo em seco, a garota tentou afastar essas ideias. Se mostraria uma aprendiz dedicada e não se importaria com as consequências. Havia começado uma nova vida com seu espírito despertado. Confrontaria qualquer desafio.

– Finalmente – Jarek disse. Ele estava encostado a uma estátua num dos cantos do jardim. A pose descontraída contrastou com seu olhar impaciente. Se ela tivesse que entrar num combate com aquele guerreiro, sairia destroçada.

– Muito bem, o que pretende me ensinar hoje, professor? – a morena indagou com um pouco de sarcasmo, mas não tirou o sorriso zombeteiro do rosto. Jarek pareceu ponderar, encarando Ývela enquanto pensava.

– O que acha?

– Seria ótimo – a loira concordou, parecendo saber o que se passava na mente de Jarek. Serafine olhou de um para o outro, confusa e curiosa.

– O que seria ótimo? – impaciente, ela perguntou. Ývela ia falar, mas Jarek se adiantou.

– Você vai correr.

– Correr? – Seu tom de voz saiu incrédulo.

Serafine não acreditou que seu primeiro exercício fosse uma corrida. Era fato que seus movimentos estavam mais ágeis, mas ela não queria testar como suas pernas funcionavam. Estava louca para aprender algum golpe, para que, em um combate futuro, conseguisse se sair bem. E, acima de tudo, para que não precisasse depender de Jarek ou Ývela. Agora que fora integrada ao mundo mágico, queria ser tratada como um deles. Não importavam as consequências.

– Exatamente.

– Por que você quer que eu corra?

– Porque eu mandei – o moreno disse simplesmente, lançando a Serafine um de seus olhares irredutíveis. Indignada, ela cruzou os braços e ignorou seu guardião.

– Para que me serviria uma corrida? – Mirou seu olhar na ondina.

– Serafine, é mais complexo do que uma simples corrida. – Ývela agiu de forma oposta às atitudes nada gentis de Jarek. Sua voz demonstrava calma e certeza. Jarek era sempre tão mal educado. – Todo guerreiro precisa ser ágil e veloz. Você pode sentir a velocidade sobrenatural em suas veias, mas não pode se comparar a um Amaldiçoado. Há criaturas até mais rápidas do que eles. Antes de um combate frontal, é preciso ver se a melhor opção não seria a fuga.

– Como quando vocês fugiram de Águas Claras. – Não era uma pergunta, mas Ývela assentiu mesmo assim. Serafine franziu o cenho. – E eu vou simplesmente correr por aí?

Um sorriso divertido brotou no rosto jovial de Ývela e, desta vez, ela deixou Jarek falar. O moreno pareceu irritado por ter sido ignorado, mas manteve o sorriso frio.

– Vamos persegui-la.

– Como é? Eu não vou ter chances! – rebateu com raiva. Ývela era tão veloz quanto Jarek. Tendo-os como perseguidores, bem... Serafine imaginou que o treino acabaria rápido. Tivera sorte naquela vez em que fugira deles, mais por tê-los despistado entre o labirinto de árvores do que por ter sido rápida.

– Não se subestime – Ývela disse gentilmente, mas Serafine sabia que as palavras não eram sinceras.

– Certo. E para onde eu devo correr? – Aceitou o desafio. Jarek ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas depois começou a explicar. As instruções foram simples e precisas e, para a irritação da garota, disseram que ganharia uma dianteira.

– E que fique claro que nenhum Lobisomem faria isso – Jarek resmungou. Ývela exibiu um olhar entediado, mas o sermão continuou. – Estamos apenas sendo gentis!

– Agradeço sua gentileza – Serafine gritou de volta. Já estava longe da dupla. Começara a correr pelo caminho de pedras que levava ao bosque quando detectou sons de passos apressados atrás de si.

Eles não estavam brincando quando disseram que a dianteira seria mínima.

A visão que desenvolvera após sua conexão com o mundo sobrenatural transformou a escuridão da floresta em um campo observável. Não havia obstáculos e, mesmo com pouca luz da Lua Azul em meio ao labirinto de árvores gigantes, Serafine sabia por onde devia seguir.

Adrenalina correu por suas veias ao constatar que aquele podia ser um grande desafio. Mesmo sabendo quem a perseguia, o fato de ouvir com clareza seus passos, os sons controlados de suas respirações e até do coração deles batendo era demasiado tenso. Suas pernas se acostumaram ao terreno irregular, com raízes e pedras por toda a parte, e, enquanto mantinha os olhos fixos à sua frente, Serafine reparou que as árvores à sua volta eram deixadas para trás com muita rapidez.

Seus pés, calçados com botas confortáveis, davam passadas longas e ágeis. Os comandos de saltar e desviar eram tão automáticos que passavam quase despercebidos. Uma expressão de surpresa dominou seu rosto no momento em que saltou, sem se apoiar em nada, um enorme tronco tombado.

Mas seus perseguidores eram tão rápidos quanto ela mesma.

Mais à frente, encontrou um pequeno córrego, que provavelmente levava ao rio e ao lago, e lembrou-se das instruções de Jarek: Se encontrar o córrego, vire à direita e prossiga. É uma área segura.

Como as ordens vinham do homem que a caçava, prosseguiu pela esquerda. As sombras ao seu redor não a incomodavam. Era surpreendente que, em tão pouco tempo, algo que antes a assustava tanto tivesse se tornado tão insignificante. Parecia que, além de o seu espírito ter se conectado com a magia daquele mundo, o toque dos Deuses havia afastado alguns temores.

Quanto mais se distanciava do Castelo, mais notava os passos de seus guardiões ficando para trás. Em certo momento, chegou a diminuir sua corrida para ouvir com maior clareza, e surpreendeu-se ao notar que não havia mais ruídos. Eles subiram nas árvores.

O pensamento simplesmente piscou em sua mente, como se outra voz murmurasse aquilo. Serafine aceitou a hipótese e, depois de mais alguns metros de corrida sem ouvir nada além de sua própria respiração, resolveu mudar sua estratégia. Tirou as botas e deixou os pés em contato com a terra, passando a correr com mais cautela. Buscava não pisar em qualquer lugar que não fosse a terra firme, para não ser ouvida. Se eles estavam mais silenciosos agora, não custava fazer o mesmo.

Momentos depois, percebeu que aquela ideia a estava atrasando. Com sorte, Ývela e Jarek a teriam perdido de vista, já que Serafine mudara o curso que lhe fora ordenado. Que mal havia, afinal de contas? Aquela floresta era protegida.

Conforme avançava, uma sensação estranha a acometeu. Começou como um mal-estar curioso, de um tipo que ela nunca tivera antes. Parou de correr, apoiando-se numa árvore enquanto buscava controlar sua respiração. Manteve-se alerta a qualquer movimento próximo, imaginando que sua parada daria uma ótima vantagem para os seus guardiões.

Quando forçou seu corpo a continuar a corrida, foi tomada por falta de ar. A dor fraca atrás de seus olhos se espalhou por sua cabeça. Por que agora, que deveria estar mais resistente, se mostrava tão fraca? A corrida não tinha sido tão pesada, afinal de contas.

Imaginou que Jarek riria ao ver seu estado deplorável, mas não havia nada a fazer. Se tentasse correr mais, acabaria desmaiando. Inspirou profundamente, mas a sensação não passou, e Serafine prosseguiu com aquele exercício durante vários minutos, escondendo-se atrás de uma árvore. Se aquela corrida fosse no mundo real, onde a perseguição não acabaria tão facilmente assim, Serafine seria morta. Os Amaldiçoados não lhe dariam chance, não descansariam, e, como bem dissera Ývela, havia criaturas piores do que os Lobisomens.

Foi então que algo chamou sua atenção. Afastada demais para ser vista com clareza, a figura estava parada em uma pequena clareira da densa floresta escura. A luz azulada a iluminava, deixando-a pálida e um pouco fantasmagórica.

Serafine se aproximou o máximo que seu senso de segurança permitiu, apoiando-se numa das árvores para se manter de pé. A dor de cabeça continuou fraca, mas a falta de ar se tornou insuportável, afetando seu equilíbrio. Mesmo com os reflexos mais rápidos e os músculos mais firmes, sentiu suas pernas bambearem.

Foi quando conseguiu focalizar, metros à sua frente, a figura que estava parada. Serafine deixou toda a sua atenção voltada para a pálida criatura iluminada pela Lua, nem reparando quando Ývela saltou de uma das árvores. Conseguiu pegar Serafine de guarda baixa e caiu em pé ao seu lado. A morena, porém, lançou a Ývela um olhar de temor, e apontou para a clareira.

Serafine deu um passo para trás quando sua guardiã aproximou-se daquele lugar, mas não havia medo nos olhos de Ývela. Ela buscou a coisa que causava tanto medo em sua protegida, mas não encontrou nada.

–Vamos voltar, deve ser o cansaço.

– Ývela... Tem alguém ali. – A voz saiu baixa e incerta, mas sua visão não estava equivocada. Tivera tanta sorte por ter melhorado seu alcance, podendo ver coisas que antes passavam despercebidas, e agora via algo que também não via antes. Alguém que não poderia estar ali. Pois ela, quando Grímena usara o Poço das Almas, vira os corpos sendo cremados, incluindo o dela.

Como se testasse a capacidade de distinguir a realidade da loucura, ainda mais porque só Serafine a podia ver, lá estava sua amiga morta. O rosto impassível, com seus olhos outrora tão expressivos mortificados em um brilho apavorante.

Um fantasma.

Mahiry a encarava com uma intensidade assustadora, como se não fosse mais sua falecida amiga. Como se odiasse Serafine mais do que qualquer outra pessoa naquele mundo.


Capítulo 22

A Profecia de Mídria

 

 

– É compreensível que tal fato tenha ocorrido, mesmo que tão rapidamente. Você se afastou demais das proteções do Castelo, indo para uma área que não era segura... – Os olhos claros de Lonel estavam fixos na assustada Serafine. Ela bebericava uma espécie de chá de efeito de calmante. A tremedeira que acometera seu corpo inteiro havia diminuído. O coração, porém, ainda estava descompassado.

Ela tinha visto um fantasma. O de sua melhor amiga. Mahiry, aquela que conhecera desde criança. A mesma assassinada na noite do ataque em seu aniversário.

– Está me dizendo que vocês esperavam que isso acontecesse? – exclamou com indignação. – Um aviso não teria sido ruim!

– Temíamos por isso, mas não havia certeza. Entendemos tão pouco do espírito quanto você, minha criança. – Lonel explicou calmamente, sentando-se ao lado de Serafine. Ela estava nos jardins. Fora trazida ali em estado de pânico. Jarek e Ývela tiveram um trabalho enorme para arrastá-la para longe do provável espírito que a atormentara.

– E... Por que eu vi Mahiry? – Serafine estremeceu. Lonel suspirou, ponderando suas palavras. Por fim, ergueu-se e fez um gesto para que ela o acompanhasse.

– Podem ir se deitar agora, guardiões. Ela está segura. – Os olhos grandes de Ývela demonstravam preocupação, mas Jarek não hesitou em seguir para o seu quarto. Serafine foi guiada pelo elfo até o corredor principal. Viraram à direita numa bifurcação e, para sua surpresa, depararam-se com uma enorme porta, que levava a uma escadaria de pedra.

Enquanto subia logo atrás de Lonel, deixou seus pensamentos vagarem ao encontro com Mahiry. A expressão de tristeza e ódio no rosto dela causara-lhe um grande pesar.

Sua melhor amiga transformara-se num fantasma, o que indicava que não havia encontrado a paz. Serafine já tinha ouvido histórias sobre espíritos que voltavam para vingar sua morte. Em sua consciência, a morte de sua amiga era culpa sua. Mahiry fora uma das pessoas que, mesmo tão importante para Serafine, não teve salvação.

Nem percebeu quando terminou de subir os degraus e, sobressaltando-se, encontrou o interior de uma torre. Mas não era uma torre qualquer, e sim a mais alta do Castelo. A que tinha um cristal no topo.

Aquela sala era larga, com estrias escuras nas paredes de pedra branca. Por ser a construção mais alta, proporcionava visão privilegiada da floresta e das montanhas ao redor. A luz da Lua deixava toda a paisagem mais sobrenatural, fazendo com que o Grande Bosque parecesse ainda mais mágico. O olhar da garota vagou para os cumes montanhosos, imponentes, com seus picos encobertos por neve.

O que se escondia atrás daquela maravilha da natureza? Que segredos as montanhas guardavam?

– Acho que aqui será o melhor lugar para explicar o que aconteceu com você. – Lonel parou ao lado da garota, deixando seu olhar vagar pela paisagem abaixo deles. – Mudanças virão com o tempo, minha jovem, e não apenas em relação à sua força ou resistência...

Serafine correu os olhos por aquele lugar, avistando um pedestal contendo um grande livro no centro da sala, cujas páginas estavam em branco. A capa era cor de bronze e incrivelmente brilhante.

O elfo seguiu seu olhar e caminhou até a obra, tocando suas páginas com um cuidado. Seus olhos azuis capturaram o olhar da morena, e ela soube que aquele exemplar era algo poderoso. Quando parou ao lado do objeto, sentiu uma vibração peculiar. Era pura magia. Apesar de estar sem qualquer inscrição, parecia contar mais segredos do que qualquer outro livro que já existira.

Um flash iluminou sua mente ao lembrar que já o vira. Era o mesmo que havia encontrado na biblioteca, dias antes. Mas, agora, ele lhe parecia mais impressionante. Emanava força de uma maneira que antes não fazia.

– Eu já vi este livro – Serafine disse. – Na biblioteca, antes da viagem até a vila de Guillian.

– Não sabia que tinha visitado nossa biblioteca – Lonel comentou. Serafine corou ao lembrar-se de que, naquele mesmo dia, havia espionado uma conversa particular entre ele, seus guardiões e uma misteriosa mulher.

– Foi uma visita rápida, mas eu me interessei por esta obra.

O elfo olhou-a com extrema curiosidade.

– Este livro é tão ou mais antigo do que a própria raça primordial. Os Deuses o criaram para que guardasse em suas páginas segredos que, se revelados, causariam o caos em Warthia. Foi dado à raça élfica com o propósito de ficar protegido até a sua chegada.

A expressão de surpresa no rosto da garota o fez rir.

– Por que eu? Por que sempre eu?

– Você busca por respostas, Serafine. Foi-lhe prometido que elas viriam após o Ritual. O livro é a melhor maneira de encontrá-las. – Ele afastou-se um pouco, indicando as páginas em branco. Serafine, sem saber o que fazer, ficou parada em frente ao objeto. – Deseje e receberá.

E foi imediato. Ela tocou nas bordas do livro, roçando seus dedos nas páginas ásperas. Um turbilhão de sensações invadiu-a, ao mesmo tempo em que milhares e milhares de vozes pareciam ressoar em sua mente. Cada uma dizia uma coisa, cada uma recitava algo em uma língua. Serafine fechou os olhos e se viu mergulhada num infinito mar de lembranças.


***


... Jarek e Ývela estavam sentados nos jardins do Castelo das Quatro Luas. Serafine os observou, parada próxima deles. Sabia que não era real quando não foi notada por qualquer um dos dois. Eles conversavam em voz baixa. O guerreiro estava mais abatido e ferido do que quando Serafine o conhecera. Ývela tinha uma expressão piedosa no rosto, parecendo compreender a dor dele. Porém, foi o olhar que assustou Serafine, pois transmitia tanto medo que não parecia com os olhares frios de Jarek. Ele estava diferente.

– O que acha que vai acontecer?

– Você ofereceu a eles uma promessa de sangue em busca de redenção, Jarek. Não há motivo para não aceitarem.

– Diga você. – Ele massageou um dos ombros onde havia um hematoma enorme. Serafine assustou-se ao ver quão ferido ele estava. Era quase impossível imaginar Jarek naquele estado. – Os elfos não costumam ser piedosos com traidores. – Um palpitar em sua mente a alertou de que aquela peculiaridade em Jarek não fora notada antes. Traidor? Ele poderia ser frio e irritante, mas não alguém disposto a quebrar regras. Pelo menos, não em sua maioria.

– Existe traidor maior do que eu? – Ývela usou um humor ácido. Serafine, surpresa, encontrou uma raiva crescente nos olhos sempre tão doces da guardiã. Ývela ficou de pé na frente de Jarek, forçando-o a encará-la profundamente. – Não partirei para essa missão sem você. A visão de Lonel foi bem clara. Ela precisa de nós três.

– Acho que eu não sou tão necessário – Jarek resmungou. Recebeu um tapa forte na testa, o que o fez gemer. – Ei!

– Cale a boca, seu idiota! A Ordem vai ter que acatar sua presença, assim como todos os outros. Você tem um coração valioso, eu sinto isso. – Ela ajoelhou-se para lançar a ele um olhar carinhoso. Se Serafine não os conhecesse bem, poderia achar aquele gesto romântico demais. Mas Jarek nunca olhara para Ývela de maneira apaixonada, assim como a loira também nunca o fizera. – Fui até aquele castelo para buscá-lo, meu amigo. Não partirei nessa missão sem você.


***


A lembrança mudou... Parecia ser mais antiga, pois Ývela estava sozinha... Não exatamente sozinha, mas não havia indícios da presença de Jarek. Ela estava na mesma torre em que Serafine se encontrava agora. Lonel estava parado em frente ao livro, dizendo algo para a loira. Ela parecia entender, mas a língua era desconhecida para a garota.

– Eu acredito, Lonel – Ývela sorriu docemente. – A Ordem também deveria.

– Você sabe, melhor do que ninguém, que a Ordem acredita em fatos. Um velho como eu não lhes é muito útil.

– Não deveria falar assim. – Havia repreensão na voz dela. – Foi o senhor quem previu a grande Profecia há tantos anos.

– Uma Profecia em tantos anos de vida, criança. Já cometi equívocos... – Os olhos azuis pesaram, como se ele estivesse melancólico. Ývela, por sua vez, tocou seu ombro para transmitir confiança.

– Todos nós sentimos o nascimento da criança. Guillian logo virá e nos dirá se tal fato é verdadeiro. Se for mesmo, poderemos nos preparar. – Ela pareceu mais alerta. – A mãe e a criança escolhida fugiram a tempo, por sorte.

– Graças aos Deuses! – o elfo exclamou. – Eu espero que Guillian nos traga boas notícias. Os tempos estão mudando.

– Sim. Não é mais como antes. As Trevas estão se manifestando lentamente, o que significa que a informação é verdadeira. Eu posso sentir a mudança nos ares. A escuridão está começando a agir para o retorno de sua comandante...

– É o meu maior temor. – Os olhos azuis do elfo brilharam com o mesmo medo que havia em sua voz. – Eu rezo para que a criança encontre proteção até que a hora certa chegue. Em meu sonho, os perigos estavam muito próximos.

– Devemos ter fé.


***


E novamente um redemoinho de imagens. Serafine estava agora num espaço desconhecido, sem a presença de Ývela ou Jarek. O salão era tão gigante que fazia o cômodo do Castelo das Quatro Luas parecer um armário de vassouras. Duas pessoas desconhecidas conversavam em meio às sombras daquele lugar.

Eram dois homens, mas ela não conseguiu se aproximar muito. Podia ver suas silhuetas altas e esguias, mas as sombras encobriam seus rostos. Ambas as vozes eram graves, mas uma delas aparentava ser de alguém mais velho.

Seu diálogo chegava em alto e bom som até os ouvidos da garota, por mais que a curiosidade de saber quem eram tirasse parte de sua concentração.

– O que acha que devo fazer, meu irmão? – o mais velho indagou. – A caça à bruxa começou. Se eu oficializar isso, perderei o poder. – Havia aflição em sua voz, mas o mais jovem o interrompeu.

– Não pense nisso agora. Confiou a mim tal segredo. Por que acha que eu o decepcionaria? Já tomei as medidas necessárias para tirá-las daqui...

– Você é tão jovem, mas tão mais sábio do que qualquer um de nós. – O mais velho demonstrou orgulho. Ele abraçou com força o mais jovem, que retribuiu da mesma forma.

– Fico feliz que tenha tomado uma decisão sensata. Qualquer outra poderia ter condenado todos nós.

– Meus senhores! – Alguém irrompeu à porta. Os dois se viraram e viram uma mulher desconhecida e Lonel, meio trêmulo e ofegante. – Há algo de errado.

– O que houve, elfo? – O mais velho ali se adiantou até o elfo, mas ele ergueu as mãos. Serafine quase grunhiu, já que estava a ponto de ver o rosto do misterioso homem. A voz de Lonel não era mais a mesma. Era rouca e aguda, misturada a uma mais grave e nasal.

– Warthia está condenada.

– Criatura das Trevas! Volte para o Abismo, onde é o seu lugar! – o homem gritou. Ele empunhou uma espada e chamas azuis cobriram a lâmina encantada, mas a gargalhada que escapou de Lonel congelou todos ali. Era arrepiante e macabra, quase os sons de um pesadelo. É uma lembrança, murmurou para si mesma. Só uma lembrança.

– Tolo! O espírito perdeu-se. Não há mais esperança para vocês. Assim que eu me reerguer, farei desse mundo uma dominação do caos. Não há mais esperança...


***


A cena desapareceu e deu lugar a uma ainda mais antiga. Lonel era o único conhecido ali. Estava em um pátio estranho para Serafine. Era um jardim, mas as árvores pareciam secas e sem vida. A noite cobria o céu, mas não havia Lua.

O elfo parou em um canto da praça, seus olhos claros refletindo a cor que provinha de algumas tochas. Ele observava alguma coisa, algo que prendia seu olhar. Serafine nada via, mas, pelo modo vidrado com que ele encarava, parecia importante.

Foi então que um ofego alto escapou do ancião. Pessoas que estavam por perto correram para acudi-lo, mas outros apenas observaram, como uma mulher usando um estranho tule vermelho na cabeça, cujos olhos fechados pareciam-lhe estranhos. Ele é um vidente, disse um dos presentes, é comum coisas assim acontecerem.

– Das profundezas surge... Profana e meticulosa... Suas conquistas provaram sua alma ardilosa... – Dessa vez foi diferente. As palavras que saíam por sua boca pareciam melódicas, algo em cada sílaba atraía aqueles que a ouviam. Serafine, mesmo numa memória, conseguiu sentir o poder nelas contido. Seus braços arrepiaram-se, mas ela se manteve parada. – A esperança marcada... Protegida pelo guardião... Das chamas ascende... Encoberta pela escuridão...

Fez-se uma longa pausa. Serafine estranhou, já que ele continuava movendo os lábios. Os outros ainda olhavam fascinados, mas ela nada ouvia. Franzindo o cenho, concentrou-se mais, e que a voz dele finalmente voltou ao normal:

– Patronos primordiais... Revelam então... A palavra final... Para o destino da Nação.


***


E a lembrança esvaiu-se. Serafine arfou e caiu no chão. Ao voltar a si, deu de cara com Lonel. Ele ajudou-a a levantar e imediatamente foi bombardeado por uma torrente de perguntas.

– O que foi que houve? Quem eram os homens com quem você falou? Por que Jarek e Ývela são traidores? E que maluquice foi aquela das palavras esquisitas?

Aparentemente confuso e divertido com a situação, Lonel caminhou até a janela. Ele, então, respondeu ao seu último questionamento:

– O que você me ouviu recitar foi a Grande Profecia. Como um vidente, eu consigo me conectar com o mundo dos Deuses... Ao menos, costumava conseguir. – Seu olhar caiu em melancolia. – E foram-me enviadas tais palavras. Ocorreu há tanto tempo...

– E vocês entenderam alguma coisa do que foi dito ali? – Ela fez o elfo rir. – Não estou brincando. – Cruzou os braços, esperando pela resposta. Não havia nada de divertido em não entender uma sequência de palavras que ditava o seu destino.

– Passamos muito tempo decifrando cada detalhe. Ela recebeu um nome especial, graças ao lugar onde foi concebida. A Profecia de Mídria. É de você que ela fala.

– Ah, é? Eu não reparei em nenhuma Serafine no meio de patronos primordiais e destino da Nação.

– Não? A profecia é como uma canção intrincada com muitos enigmas, criança, muitos deles escondidos para o seu bem... – Ele lançou um olhar estranho, beirando a tristeza. Suspirando, Lonel citou os trechos novamente, enquanto explicava o que eles queriam dizer. Não errou sequer um detalhe das palavras proféticas. – Das profundezas surge, profana e meticulosa, suas conquistas provam sua alma ardilosa... Creio que leve muito tempo para explicar-lhe tudo. O início da profecia cita aquela que você nasceu para derrotar, Serafine. A criatura mencionada é Sharowfox. Você já deve ter ouvido falar na história...

Serafine, de fato, já tinha ouvido falar, mas nunca tinha se interessado. Na realidade, todo cidadão em Warthia já ouvira falar no marco do início da Era dos Magos. Foi quando o grande Neo derrotou a maligna Sharowfox. Eram irmãos, os primeiros em uma linhagem de poderosos Magos e Feiticeiras, mas a necessidade de dominar aquele mundo tomou conta da Feiticeira. Ela combateu os exércitos do Primeiro Rei com destreza, mas acabou derrotada e subjugada pelo irmão, sendo lançada ao Abismo, como contavam as histórias, onde sua alma permaneceria em eterno tormento até o fim dos tempos.

Como podia ser ela a criatura que se tornaria sua inimiga? Como Sharowfox, aquela que não passava de uma personagem histórica de livros, estava destinada a lutar com Serafine, que nada tinha a ver com sua vida? Das profundezas surge... O trecho da profecia reverberou em sua mente. Ela podia retornar.

Espantada, ouviu as outras explicações do elfo. Os outros trechos referentes à Sharowfox condiziam com os crimes cometidos por ela em vida. Tinha uma alma ardilosa e perversa, determinada a atingir seus objetivos. Ela não temera voltar-se contra o irmão, que era o governante supremo de Warthia na época, e nem temera tentar roubar seus poderes. Não havia conseguido, mas algo chamara sua atenção. Uma lenda que contava sobre uma fonte inestimável de poder, algo que seria capaz de torná-la uma deusa. Seu irmão, Neo, impediu-a de alcançar essa fonte... Mas o significado desse objeto valioso não foi dito a Serafine. Lonel não deu indicações de que o conhecia.

– A esperança marcada, protegida pelo Guardião, das chamas ascende, encoberta pela escuridão. Você é a esperança, minha cara Serafine, e os desenhos em sua pele a marcam. Protegida pelo Guardião porque, segundo a profecia, você deveria ser designada a apenas um.

– E por que vocês foram contra a profecia?

– Porque eu tive uma segunda visão... – Ele hesitou por alguns instantes. – Vi que um guardião não seria suficiente para protegê-la de tantos males. Era necessário um trio, cada um deles especializado em uma determinada arte e capaz de lhe ensinar coisas diferentes. Ývela foi a primeira a aparecer. Os Guardiões receberam um chamado especial, uma visão concebida pelos Deuses, de que deveriam abandonar sua terra natal e servir a Warthia. Guillian veio ao meu encontro um pouco depois do seu exílio. – Um sorriso cresceu em seu rosto. – E então houve Jarek. Foi uma grande surpresa para a Ordem, de fato, mas ele acabou provando ser o último que procurávamos. Hesitou, mas aceitou.

– Foi uma das lembranças que eu tive – Serafine comentou casualmente, deixando sua memória voltar àquele momento. – Jarek dizia algo sobre aquela decisão não ser a mais correta e Ývela tentava convencê-lo do contrário.

– Ah, me lembro desse dia. Foi complicado... Jarek e Ývela fugiram de um local, digamos, peculiar. Vieram ao nosso encontro durante uma reunião. Jarek estava marcado como futuro guardião, mas precisava ser aceito pela Ordem. Eles precisavam ter certeza de que os Deuses escolheram a pessoa certa. Sua guardiã foi bem específica quando afirmou que Jarek tinha coragem e bondade suficiente no coração para se tornar um Guardião, o que tornava tudo complicado, já que Jarek não era confiável. Não por ser ele, mas por ser descendente de quem é.

– Imagino que o senhor não vá me dizer. – Lonel negou, frustrando Serafine.

– Deve procurar essa resposta com o detentor dela.

Ela riu secamente.

– Como se Jarek fosse me dizer algo de seu passado.

– Não custa tentar. – O elfo deu de ombros. – Pois bem. A Ordem a que se referiram é aquela que designou seus Guardiões, fazendo-os comprometerem-se pela promessa de sangue. É um ritual específico, que une suas almas a um juramento. Enquanto ele não for cumprido, dificilmente serão libertos.

– E o juramento era...?

– Proteger a esperança de Warthia. – Um sorriso suave iluminou o rosto do ancião.

– E a parte final do trecho?

– Das chamas ascende, encoberta pela escuridão. É um pouco óbvio, na verdade, mas, tratando-se dos Deuses... – Ele fez uma pausa, ponderando. – Pode ser um enigma mais misterioso. Tudo o que sabemos é que Sharowfox, como toda Feiticeira, controlava o fogo. Sendo assim, encoberta pela escuridão que sempre dominou sua alma maligna, ela ascenderia por meio das chamas.

– Essa profecia é tão complexa... Vocês devem ter gastado horas pensando nisso.

– Décadas seria mais adequado. – Ela engasgou, fazendo o elfo rir. – Anos que, para criaturas imortais, não passam de horas, minha cara.

– É bom saber – ela murmurou. Serafine sentiu-se um pouco estranha por absorver tantas informações, e sua mente ainda fervilhava pelo temor de ter que enfrentar uma poderosa bruxa. Não que acreditasse muito nisso, mas Lonel parecia ter fé na Profecia. Talvez eles estivessem equivocados, talvez Sharowfox não ressurgisse.

Sua atenção foi direcionada para uma das lembranças que visualizara e, infelizmente, teve suas esperanças esmagadas pelo peso da verdade. As Trevas estão se manifestando lentamente, o que significa que a informação é quase verdadeira. Eu posso sentir essa mudança nos ares. Elas estão começando a agir para o seu retorno... O pesadelo que tivera no caminho para a Vila dos Atyubrus também podia ter alguma ligação com o retorno da Feiticeira. Aquela criatura tentando libertar-se, transmitindo em suas palavras um mal sem tamanho. Não podia ser coincidência.

– Finalmente, curiosa aprendiz, devo lhe dizer que a parte final é bem simples. Patronos primordiais revelam, então, a palavra final, para o destino da Nação. Os Deuses são nossos Patronos primordiais e a palavra final faz referência à Profecia de Mídria. Ela nos foi enviada para salvar Warthia, para mudar o destino da Nação. Para que soubéssemos que os Deuses haviam escolhido um espírito digno para enfrentar a dominadora das Trevas.

– Como podem ter tanta fé em mim? – Serafine exclamou. Sua voz saiu mais alta do que o esperado, mas sua raiva transparecia nas palavras. Lonel ficou surpreso com a exclamação. – Como podem jogar uma carga dessas nas minhas costas? Eu nem ao menos sei lutar! Se a corrida de hoje fosse uma perseguição de verdade, eu estaria morta! E só porque congelei de medo graças a um fantasma. Eu não posso arcar com uma responsabilidade dessas... Enfrentar uma feiticeira ressurgida das Trevas? É demais para mim!

– Serafine, acalme-se – algo em suas palavras fez a ansiedade da garota diminuir, mas ela continuou fora de controle. Sua respiração estava acelerada e todo o medo das informações pelas quais tanto ansiara vinha à tona. O conhecimento era perigoso. – Não é uma responsabilidade só sua. Os Deuses nunca a deixariam sozinha num lugar escuro sem qualquer luz. Eles escolheram criaturas especiais que irão lhe ajudar a encontrar o caminho certo. Não podem impedir que o medo a domine, mas podem ensiná-la a dominá-lo.

– E quem são essas pessoas? Jarek? Ývela? Eles são guerreiros, não poderiam enfrentar uma feiticeira maligna. Pelo que eu entendi, essa é uma tarefa minha.

– Mas você não agirá sozinha. Por que acha que trouxemos Haius até aqui? – Ela demorou a perceber que ele falava do Mestre. – Quatro almas foram escolhidas para ensiná-la a dominar aquilo que as Trevas mais temem: as forças da natureza. Aquelas criadas pelos Deuses, as mesmas que deram origem a tudo em nosso mundo. As almas descendem dos Primeiros Elementais. São espécies menos divinas, mas nem por isso menos poderosas. Haius é o Mestre da primeira arte. O elemento é simples e tão precioso que, sem ele, não haveria qualquer vida em Warthia. A água, quando dominada, pode ser usada com todo o seu poderio. Aqueles que servem às Trevas temem os seres iluminados, pois eles controlam os elementos. E um desses seres é você, Serafine. – Ele apontou para o braço direito da garota. – Assim como Ývela, suas marcas receberam um leve tom de azul. Azul é a cor que representa as águas. E, assim como todas as criaturas aquáticas mágicas desse mundo, você logo se tornará uma controladora.

– Finalmente, velhote... – A voz rabugenta do Mestre despertou Serafine de seu torpor. – Sem descanso, preciso lhe dar a primeira lição antes que amanheça.

– Como?

– Vou fazê-la aprender a mover um pouco de água com o poder do seu espírito.


Capítulo 23

Primeiro Elemento

 

 

Serafine estava parada na margem do rio, cansada o suficiente para cair no sono mesmo em pé. Sua atenção, porém, centrava-se no Mestre. O Atyubru se encontrava parado em meio à correnteza. As orelhas enormes estavam afundadas na água, assim como mais da metade de seu corpo, mas ele não parecia se importar. Concentrado, com os olhos fechados, ele recitava alguma coisa numa língua estranha. Serafine desejou aprender aquele dialeto, já que todos ali pareciam conhecê-lo.

Guillian, o guardião que a acompanhava, encontrara repouso longe dos dois. Ele não admitiu, mas não parecia à vontade perto do pai, talvez por ter sido salvo por ele ou simplesmente por não suportar os olhares nada gentis do ancião.

Fora explicado a Serafine que a maior fraqueza daqueles que serviam às Trevas era a falta de domínio das forças da natureza. Mais precisamente, os quatro elementos primordiais. O fogo que as Feiticeiras usavam em sua magia não tinha nada de natural. Pelo contrário, era tão corrompido quanto seus espíritos.

A alma de Serafine fora presenteada com o poder que raras criaturas possuíam. Era para isso que tinha a companhia do Mestre. Ele lhe ensinaria a utilizar parte de seus poderes sobre a primeira força elemental: a Água. Lonel explicou que sua jornada prosseguiria para o Oeste, assim que terminassem aqueles exercícios. Serafine só não sabia quanto tempo demoraria.

– Muito bem, preste atenção! – gentil como sempre, o Mestre exclamou com impaciência. – Para controlar a água, você precisa ganhar a confiança desse elemento. Como qualquer outra coisa em Warthia, rios, lagos e até uma simples gota têm consciência. É imperceptível para aqueles que não entendem da magia. Pode-se usar o mesmo conceito para explicar a vida presente nas árvores. Ela existe e pode se comunicar, mas é necessário um longo treinamento e disciplina para que isso seja feito. As criaturas terrestres mais poderosas conseguem tal feito... Talvez até você consiga, se for bem instruída.

Serafine ficou surpresa, encarando uma das árvores ali perto. Era estranho pensar daquela maneira, mas por que não? Estava convivendo há dias com elfos, uma ondina, Atyubrus... Uma árvore falante não seria tão esquisita assim. Ainda assim, pensar na água como um ser consciente desafiava sua imaginação.

– E como eu me comunico com a água? – Tentou não usar sarcasmo, mas ele ficou evidente.

– Não é você quem vai se comunicar. Vai deixar que ela fale. – Parecendo indignado, o Mestre aproximou-se da aprendiz. – É o elemento que dita o poder, e não quem o controla. Se tentar usar mais do que lhe é oferecido, acabará pendendo para o mal. É isso que as Trevas fazem; abusam das forças da natureza, obrigando-as a trabalhar em seu favor. Os elementos não podem ser desafiados pela sua força, devem estimular o poder que existe em você.

– Certo. Então eu devo aprender a ouvir a água e deixá-la fluir pelos meus poderes, é isso? – O Atyubru demonstrou satisfação. – E que dialeto a água fala? – Serafine brincou.

– Sem gracinhas.

– Você diz que eu devo aprender a ouvir a água, mas não me diz como. O que quer que eu faça? – Serafine rebateu com irritação. O Mestre lançou um olhar frio, mas assentiu. Ele esticou sua pata felpuda e, sem saber o que fazer exatamente, Serafine a segurou. Foi guiada pelo ancião até o meio do rio, onde a água morna alcançava suas coxas.

– Qual seria o som das águas para você? – o Atyubru perguntou, deixando de lado sua postura rabugenta. Serafine ponderou, aguçando os ouvidos. Imaginou que ouviria vozes e sussurros, mas tudo o que captou foi o ondular da correnteza. Era um som melódico e delicado, indicando que o rio arrastava-se para longe. A garota também pôde notar a cachoeira que ficava próxima ao castelo. O som mostrava-se mais forte quando a cascata caía contra as pedras, mas não era incômodo. As vibrações da água misturavam-se de tal maneira que deixavam tudo harmonioso.

– Notou como ela se comunica conosco? Não por meio de palavras, mas pelo bem que nos faz. A água proporciona vida a todo o nosso mundo, sem ela não seríamos nada. E, da mesma maneira como ela aparenta ser calma, pode se tornar uma poderosa arma contra aqueles que seguem as Trevas.

– É por isso que os elementos são tão poderosos contra as criaturas do mal? – Serafine indagou curiosa. – Por que eles proporcionam a vida? Terra, água, fogo e ar... Sem eles nós não viveríamos. E imagino que seja isso o que os inimigos mais querem.

– Pensamento correto – ele sorriu brandamente. – Bem no princípio dos tempos, quando os Deuses notaram que as Trevas cresciam em uma alma atormentada, resolveram puni-la por aceitá-las. Qualquer um que tivesse maldade no coração teria os elementos como fraqueza.

– Sharowfox temia os elementos?

– Ainda teme – Serafine estremeceu. Sabia que falar da feiticeira no passado era equivocado, mas não custava tentar. Ao ser corrigida, percebeu que o Mestre estava ciente de seu medo. – Criança, eu sei que seu medo é grande... Mas não está nessa luta sozinha. Tenha fé em seus poderes e em seus amigos. Sharowfox irá se reerguer, sim, mas cremos que estará fraca. Se conseguirmos evitar que ela encontre a fonte de seu poder, impediremos que ela se torne poderosa novamente.

– E que fonte é essa, afinal?

– Muitos consideram um mito – o Atyubru explicou. Usava de uma expressão pensativa, mas havia pesar em seu olhar. – Ela foi uma protegida dos Deuses em um passado muito distante. Era forte e determinada, criada com o único dever de proteger Warthia do mal. Mas ela virou-se contra seus criadores, tornando-se ela própria o mal. As divindades conseguiram pará-la a tempo, mas, para isso, foi necessário criar uma prisão. Seu espírito foi condenado para sempre e sofre até hoje...

– Assim como Sharowfox?

– Sharowfox foi morta e considerada como tal. Com essa criatura é diferente. A prisão em que ela está é mais poderosa. Sabiam o perigo que sua liberação desencadearia, por isso criaram um casulo onde a aprisionaram. Foi moldado com cada elemento pelas mãos dos próprios Deuses. Sua localização é conhecida por alguns poucos escolhidos, e eles juraram jamais revelá-la.

– E você sabe onde fica?

– Não. E agradeço por isso. Carregar tal fardo deve ser devastador... O poder é atraente demais para ficar à vista, pois todos os que conhecem a história e sabem onde a fonte se encontra são tentados por ela. A criatura ainda deseja se libertar, mas não pode fazer isso como Sharowfox vem fazendo. Ela precisa de ajuda.

– E onde eu me encaixo nessa história?

– Você, Serafine, é aquela que deve absorver os poderes dessa criatura para, com eles, destruir Sharowfox. É para isso que seu espírito foi tocado pelos Deuses. Sua força sobrenatural e o domínio dos elementos a ajudarão nessa tarefa. A criatura não será libertada, será destruída, e seus poderes passarão para você. – O Mestre manteve uma expressão impassível, mas pareceu cortar um pedaço da história para terminá-la de uma vez. Serafine ficou atordoada demais para notar.

Ela absorveria poderes de uma criatura das Trevas para destruir outra? Como conseguiria fazer isso e sobreviver? Lonel estava explicando quão poderosa era aquela criatura, então como Serafine suportaria tanto poder dentro de seu corpo?

– Por isso eu estava sendo caçada por aqueles Amaldiçoados? Eles... Servem Sharowfox?

– Seu raciocínio anda bem rápido para uma molenga. – O Mestre riu levemente, mas não obteve reação de Serafine. Ela apenas lançou um olhar aborrecido. – Sim. Os Lobisomens estavam atrás de você a mando das subordinadas de Sharowfox.

– Mas eles não queriam me destruir. Pelo menos não todos eles. O chefe, o mesmo que matou meu pai... – Ela estremeceu com a recordação, mas manteve a postura. – Ele mandou me capturarem. Tem alguma ideia do motivo?

O ancião ponderou, deixando-a ansiosa. Em seu olhar havia algo suspeito. Ele estava pensativo, como se pensasse em alternativas para responder à questão. Serafine perguntou-se se ele não estaria planejando mentir. Encarando-o, a garota tentou transmitir seu desespero. Queria muito que sua dúvida fosse sanada com a verdade, por mais que esta pudesse ser assustadora.

– Sinceramente, minha jovem? Não. – Ele suspirou. – Não consigo imaginar por que aqueles Amaldiçoados a sequestrariam... Seus planos são estranhos, mas talvez façam algum sentido para sua comandante. – Os olhos azuis brilharam com aquela intensidade misteriosa de sempre, porém ela sentiu que suas palavras eram verdadeiras. Com um suspiro, anuiu.

– Acho que tenho dúvidas demais sobre tudo – comentou, tentando usar um pouco de humor em sua voz. Não funcionou. O Mestre a encarou com um pouco de compaixão, causando-lhe irritação. Não queria a piedade de ninguém, só queria que compreendessem o quanto estavam exigindo dela.

– Não existe qualquer criatura sem dúvidas, garota. Você terá respostas para elas com o tempo, não pode querer todas de uma vez. – Um olhar um pouco investigador enfeitou o rosto do felpudo. – Pelo que percebi, você ficou abalada nesse dia com tantas novidades...

Mesmo incomodada, Serafine deu de ombros. O Mestre se divertiu por alguns momentos, mas logo voltou a adotar a postura rígida.

– O senhor disse que iria me ensinar a mover a água, é isso? Vamos lá, ensine-me.

– Paciência é uma virtude – ele resmungou meio zangado, e aproximou-se de Serafine. – Você encontrará força suficiente no mesmo lugar em que a chave para me tirar da prisão foi marcada. Conecte sua mente a essa parte de seu corpo e busque o poder necessário para controlar esse elemento.

– E como eu faço isso?

– Concentre-se.

Serafine fechou os olhos, tentando desligar a mente de todas as coisas confusas que vinham acontecendo desde o Ritual. Focou sua atenção em outra coisa, como a água morna aconchegante ao seu redor e os sons tranquilizantes vindos da cachoeira. Da mesma forma de antes, podia sentir o poder vibrando em cada parte do seu corpo, ansiando por ser usado.

Deveria pedir à sua mente ou ao espírito que libertassem tal capacidade de controle?

Foi quando um formigamento estranho tomou conta de seu braço direito. O mesmo braço em que Jarek localizara a palavra antiga para tirá-los da prisão do Mestre e o mesmo que havia sido tocado pela aura divina. Era uma sensação esquisita, como se estivesse perdendo o controle daquele membro. Sentiu-o balançar ao lado de seu corpo. Sua mão também se moveu sozinha, fazendo alguns espirais no ar com o dedo indicador. A brisa ficou mais quente e vozes tilintaram ao seu redor, como cristais batendo um contra o outro. Serafine teve uma sensação de felicidade quando as vozes começaram a sussurrar e, curiosa, abriu os olhos. Foi quando arfou de surpresa.

Havia um pequeno redemoinho bem ao seu lado, subindo até quase alcançar a sua mão. Quando ela se desconcentrou, seus sentidos voltaram ao normal. O formigamento desapareceu imediatamente e seu braço pendeu. Uma estranha fraqueza a abateu, fazendo suas pernas tremerem. O redemoinho desfez-se no rio.

O Mestre a encarava boquiaberto.

– O quê?

– Não pensei que você fosse capaz de invocar a água com tanta facilidade – ele comentou estupefato.

– Eu... Não sei como fiz isso, na verdade. – Serafine coçou a cabeça, tentando encontrar uma explicação razoável para a possessão temporária. Teria sido uma manifestação real do seu poder? Ele acabaria controlando-a, afinal? Como o Mestre dissera, era a água quem a controlaria, e não o contrário. Encarou o líquido transparente que a banhava e perguntou-se até onde chegaria a consciência daquele elemento.

– Acho que chega por hoje – o Atyubru anunciou. – Você precisa descansar e recompor as energias. Esse exercício foi o primeiro de dezenas.

Serafine arrastou-se para fora da água. A fraqueza diminuiu, mas, no lugar, uma estranha dor atrás dos olhos começou a ser sentida. E, enquanto caminhava na direção do Castelo, uma brisa mais gelada passeou por seu corpo.

Por um momento, lembrou-se do encontro com o fantasma de sua melhor amiga morta. Estremeceu e afastou tais lembranças. Cogitou a hipótese de perguntar a Lonel a verdadeira razão de ter visto aquele espírito.

Será que Mahiry queria vingança por ter morrido? Ou ela iria atormentá-la para todo o sempre?

Ao avistar a torre onde ficava seu quarto, porém, sentiu a exaustão daquele dia. A dor em sua cabeça, apesar de fraca, a incomodava bastante. Decidiu que perguntaria a Lonel sobre aquilo na próxima manhã quando, muito provavelmente, seria forçada a mais treinamentos. Imaginou que Jarek e Ývela ainda fossem lhe dar aulas, além das ministradas pelo Mestre, e suspirou. Precisava dormir.


Capítulo 24

Treinamento

 

 

Jarek terminou de calçar as botas e conteve um bocejo alto. Olhou para sua cama uma última vez antes de dar-se por vencido e seguir para fora do quarto, desbravando aquele início de manhã silencioso no Castelo das Quatro Luas. Tudo por ali era sempre quieto, o que ele considerava, na maior parte do tempo, um tédio.

O quarto dela ficava longe e a caminhada em meio aos corredores vazios era cansativa. Jarek desejou ter entregado a responsabilidade daquele treinamento matinal para Ývela, mas a ondina insistiu para que ele trabalhasse com Serafine nas primeiras horas do dia. Aborrecido por ter ido dormir tão tarde, Jarek subiu os degraus da torre, praguejando sozinho pelo fato de os elfos gostarem tanto de escadas.

Apoiou o ombro no batente da porta e preparou-se para receber uma torrente de insultos vindos de Serafine, sorrindo ao lembrar-se como ela ficava atraente ao se irritar. Jarek bateu na porta do quarto dela repetidas e insistentes vezes.

Quando Serafine a abriu, soltou um grunhido indignado. Os olhos da garota estavam amuados e o olhar cansado, mas Jarek não se abalou pela raiva presente neles. O guerreiro continuou apoiado ao batente da porta, com os braços cruzados e um sorriso no rosto.

– Bom dia, princesa.

– Já mandei você parar de me chamar assim – Serafine ralhou.

Jarek aproveitou que ela massageou os olhos cansados para avaliar sua figura, demorando-se ao observar a camisola fina que ela usava.

– O que faz aqui tão cedo?

– Vim buscá-la. – O rapaz não demonstrou o interesse presente em sua mente. Disse aquilo como se fosse óbvio, enquanto divertia-se ao ver a raiva inflamando o olhar dela.

– Para quê?

– Para o nosso treino. Ývela assumirá à tarde.

– O quê? A essa hora?! Eu acabei de acordar... Ou melhor, de ser acordada – Serafine resmungou. Jarek riu abertamente, contente por ver que ela respondia às suas ações e provocações com respostas afiadas.

– Vá se trocar, esperarei você aqui. – Jarek fechou a porta antes que a morena pudesse resmungar algo mais; ouviu quando Serafine soltou um grito irritado lá de dentro, e um sorriso animado voltou a abrir-se em seu rosto.

Jarek desencostou-se do batente para apoiar as costas na parede, ficando bem próximo à escadaria. Durante os primeiros instantes, observou a tocha que queimava à sua frente, enquanto seus pensamentos perdiam-se, surpreendentemente, na figura de Serafine.

Depois, Jarek balançou a cabeça, dizendo a si mesmo um sonoro nem pensar, e distraiu-se com a adaga de prata que carregava consigo.

Ainda assim, com a arma em mãos e os pensamentos obrigatoriamente voltados para tudo o que aquela adaga representava, Jarek sentiu o olhar de Serafine colorir uma parte de sua mente. Ele cogitou bater com a cabeça contra a parede para afastar aqueles pensamentos estúpidos, e talvez as hipóteses de automutilação tenham surtido efeito, pois ele se perdeu e só retornou à realidade quando Serafine já se encontrava do lado de fora, observando-o com curiosidade e interesse.

Ele guardou a adaga de prata e arqueou uma sobrancelha na direção dela, questionando-a com o olhar. Sem mais delongas, começou a caminhar, deixando que Serafine o acompanhasse.

– Para onde vamos?

– Ývela me disse que treinaria sua corrida, já que deixá-la sozinha não foi uma ideia muito prudente. – Ele a ouviu suspirando, e lembrou-se do pânico nos olhos da garota ao avistar o fantasma. – Então vou ensiná-la a lutar.

– Lutar no sentido de dar socos ou no sentido de usar armas? – Jarek acabou rindo com a pergunta.

– Lutar no sentido de deixar de ser molenga e aprender a se defender sozinha de um Lobisomem – o guerreiro respondeu ainda sorrindo, encarando-a de soslaio. Serafine usou de uma expressão curiosa.

– Há algo que vocês não me explicaram. O que esses Lobisomens são, afinal de contas? – Jarek tentou, mas não conseguiu esconder a hesitação diante da pergunta. – Eu ouvi suas lendas, mas acabei descobrindo o quanto eles são reais. Pode me contar a história verdadeira? E não venha me dizer que não sabe, por que...

– O nome que deram a eles é mais do que explicativo – Jarek a interrompeu. Ele sabia que uma espécie de sombra havia caído sobre o seu olhar, pois o rosto de Serafine assumiu preocupação. – Os Amaldiçoados eram, antes de serem dominados pela maldição, pessoas. Não humanos, mas descendentes de uma raça similar à dos homens. Esses guerreiros tinham em seu sangue uma linhagem poderosa. Possuíam a destreza, a velocidade e a força do povo élfico; a agilidade e a inteligência de si próprios; e a bondade e pureza que pertenciam aos corações humanos. Algumas lendas diziam que o sangue dos dragões corria por suas veias.

– E essa maldição só age sobre eles?

– Foi lançada sobre eles. – Jarek tentou conter o pesar da voz, mas conseguiu. – Na época em que Sharowfox e Neo viveram, houve a Grande Batalha. Todos conhecem a história, mas poucos sabem o que aconteceu àqueles que traíram ou abandonaram o vencedor da guerra.

– Esse povo foi condenado – Serafine disse com convicção. Jarek assentiu, sentindo o sangue ferver enquanto continuava a narrar os fatos.

– O primeiro dos Reis, o Grande Mago, lançou sobre eles um terrível tormento. – Ele ergueu um sorriso enviesado, algo beirando ao escárnio. – Puniu cada cidadão e cada descendente deles eternamente. Enquanto o sangue daqueles traidores ainda corresse em qualquer indivíduo, não importava por quantas linhagens, a maldição persistiria.

– A traição deles foi tão grave assim?

– Eles abandonaram o Mago na batalha, assumindo posição ao lado do exército da Feiticeira – o guerreiro grunhiu mais irritado. – Mas não foi justo lançar essa maldição! Os herdeiros não podiam ser punidos pelo erro de seus antepassados.

– Tem razão – Serafine concordou. Ele não escondeu sua surpresa ao ouvi-la dizer aquilo. Jarek estava tão concentrado em suas exclamações indignadas que perdeu a linha de raciocínio ao vê-la concordar.

Era muito inesperado ouvir aquilo de Serafine, a garota a quem ele tanto infernizava. O rosto dela estava sério, não havia sarcasmo em sua voz, e o olhar estava iluminado pelo pesar, como se ela realmente se importasse com a injustiça. Como se quisesse mudar aquilo.

– Pois bem... – Jarek pigarreou, tentando retornar a postura rígida. Ele ainda a encarava com intensidade, mas Serafine não pareceu notar. – Esses Lobisomens são o resultado da maldição. Foi dito pelo Mago que qualquer homem ou mulher, criança ou jovem que cometesse um crime grave contra as leis da vida e da justiça seria punido com a tormenta de se tornar um monstro, como bem eram aqueles que o haviam abandonado em batalha. Sofreriam eternamente, tornando-se bestas assassinas sedentas de sangue. Foram dadas à população, naquela época, armas feitas de prata, de todos os tipos. Os Lobisomens só podem ser mortos com prata, pois o metal é abençoado pelos Deuses. E então uma caçada começou. Ninguém queria correr o risco de ver o mundo habitado por aqueles monstros. Houve um massacre sem piedade, crianças mortas a sangue frio, famílias destruídas. Tudo isso pelo erro dos mais velhos.

– Crianças?

Jarek assentiu, observando o assombro que se erguia por trás daquelas íris douradas.

– Sim. Se o indivíduo fizesse algo que contrariasse as Leis impostas pelo Mago, sofreria. A maldição assumiria seu espírito e o transformaria em uma besta assassina. Ele teria que buscar refúgio no esconderijo das Feiticeiras, onde criaturas das Trevas reuniam-se, ou então seria morto pelas outras raças. Eram quase obrigados a buscar pelas sombras, e acabavam ficando piores do que antes da maldição.

– Então todos aqueles guerreiros cometeram erros graves e foram punidos por isso, sem qualquer julgamento?

– Nem todos os erros foram tão graves. Conheci muitos que contrariaram leis não tão radicais. Mas houve aqueles que mereceram sua maldição. Aquele Lobisomem ruivo que matou seu pai e lidera o grupo de caça... – Jarek suspirou, tentando ignorar as lembranças. Como chicotadas, elas mutilavam sua mente.

Ele então notou que Serafine havia se abalado, provavelmente recordando o massacre em sua vila, pois lágrimas começaram a surgir em seus olhos. O guerreiro desviou a atenção para si.

– Eu o conheci antes da maldição o atacar. Ele foi tomado por uma insanidade sem fim... Pela primeira vez em minha vida considerei aquela punição merecida. Eu o vi partir, com o brilho sedento de sangue nos olhos, e sabia que sua alma havia sido corrompida pelas Trevas.

– Você o conhecia? – Havia dor na voz dela, além de raiva. Jarek reconheceu aqueles sentimentos. Serafine ansiava por vingança. Mas Jarek não achava prudente alguém como ela alimentar tantas emoções negativas; ele ficou consternado ao perceber o quanto se preocupava com a situação pela qual ela passava.

– Conhecia. – O guerreiro deixou bem claro que aquilo ocorrera no passado. – Jurei a mim mesmo que o mataria. Ele precisa pagar por todos os males que causou. Ele precisa sofrer eternamente no Abismo pelo crime que manchou sua alma.

– Faça isso antes que eu o encontre

Jarek arregalou os olhos. Ainda que inexperiente como guerreira, Serafine falava sério. Sério demais para alguém com um coração tão puro, para alguém que nem ao menos sabia como empunhar uma espada. Ele não queria ouvi-la murmurando tais palavras, mas não conseguiu transformar o sentimento em palavras.

Jarek guiou-a em direção à floresta. Ainda estava mergulhado em pensamentos, tentando encontrar uma maneira de tirar a vingança sanguinária do futuro de Serafine.

– Pode me responder outra pergunta? – A garota quebrou o silêncio.

– Eu não tenho noiva – Jarek disse de imediato. Ergueu um sorriso presunçoso, mas Serafine não o encarou com irritação. Ela acabou sorrindo.

– Fico triste por você, já que parece bem velho. Logo não vai mais arranjar pretendentes – ela retrucou com humor.

– Minha beleza é excessiva para ser desperdiçada assim.

– Claro. – Serafine revirou os olhos. – Quando Lonel me levou à Torre, mostrou-me um livro. Ele me explicou sobre a Profecia de Mídria e algumas memórias que recebi.

– Que memórias? – Jarek mostrou-se curioso e hesitante. Não queria ter que responder àquela pergunta, pois já sabia a que memória Serafine se referia... Assunto complicado.

– Eu vi você e Ývela conversando no dia em que a Ordem estava escolhendo meus Guardiões. Eles avaliavam sua aceitação. – Ele bufou. Ela ficou quieta por um tempo, mas Jarek não se manifestou. Estava tentando conter a irritação por ser questionado quanto àquilo. – E você mencionou algo sobre um traidor não ser escolhido como guardião... Pode me explicar isso?

– Desconfia de mim? – Ele se virou, pesar pulsando em seu olhar. Não queria falar sobre aquilo, mas estava claro na expressão de Serafine que ela não desistiria tão fácil. Nesse momento, Jarek detestou a determinação da garota.

– Eu deveria?

– Diga você. Já tomei alguma atitude indigna de sua confiança? Não salvei sua vida diversas vezes? Sou um guardião tão ruim assim a ponto de você questionar minha vida? – Jarek retrucou irritado, tentando usar um tom amedrontador. Serafine, no entanto, encarava-o questionadora, como se ela soubesse encontrar o temor nas íris de Jarek. Como se estivesse conseguindo ler suas emoções, coisa que ninguém conseguia fazer tão abertamente.

Os dois ficaram daquela maneira por mais alguns instantes, e então a garota se rendeu, erguendo as mãos em sinal de desistência. Jarek estreitou os olhos, aceitando o gesto dela, e voltaram a andar. Ainda abalado pela pergunta, Jarek só parou quando alcançaram a clareira.

Alguns equipamentos, como bastões de madeira, espadas de lâminas retas, arcos e flechas, estavam colocados ali para o treino. Ývela os havia trazido durante a noite.

Ele se pôs a explicar o que fariam naquela manhã, mas foi com desconforto e indignação que contou o número de vezes em que Serafine desviou a atenção para bocejar.

O guerreiro resmungou um xingamento leve na língua antiga quando notou sua falta de atenção, mas Serafine estava alheia. Ou ao menos fingia estar.

– O quê?

Ele calou-se diante da pergunta dela. Cruzou os braços e a encarou com uma expressão cômica, beirando a raiva, mas que não conseguiu ser séria o bastante.

– Se quiser dormir, princesa, vá em frente, mas depois não reclame quando eu não estiver ao seu lado para te salvar.

– Desculpe! Fui dormir muito tarde ontem, enquanto o lorde aí estava deitado confortavelmente em sua aconchegante cama – ela retrucou com sarcasmo. Jarek abriu um sorriso leve, lembrando-se de que fora dormir de madrugada por culpa de pensamentos demais.

– Eu dormia muito pouco quando treinava – ele replicou. – Você está reclamando de barriga cheia, portanto, acostume-se.

– Muito bem. Você me disse que treinaríamos o bloqueio antes do ataque, eu prestei atenção, mas usaremos espadas? – O guerreiro pegou um dos bastões de madeira e jogou-o para a garota, sem dar-lhe a chance de se preparar. Como pensara, os reflexos dela responderam em seguida, e Serafine agarrou o bastão no ar.

O ataque vindo dele, porém, a pegou de surpresa.

Jarek não acreditava em aulas teóricas. Quando se tratava de lutas, o mínimo a fazer era explicar, e o máximo era demonstrar. O ataque surpresa não deu chance a Serafine de se defender, e logo ela se encontrava de costas contra o chão.

– Lição número um: fique sempre alerta. Não hesite nem perca tempo. Seu inimigo não vai esperar.

– Que ótima maneira de se ensinar – Serafine resmungou enquanto erguia-se com dificuldade. Jarek a observou com um sorriso animado, notando o esforço dela ao não reclamar da dor.

– Quer fazer uma pausa para se recuperar do tombo?

– Cale a boca! – Serafine esbravejou. Jarek se divertiu com a tentativa de ataque que se seguiu e recebeu com facilidade os golpes fracos e previsíveis vindos dela. Ela tentou empurrá-lo quando seus bastões se encontraram, mas Jarek nem ao menos saiu do lugar. O guerreiro fingiu uma expressão entediada.

– Mantenha os punhos firmes quando for bloquear algum ataque frontal. Seu inimigo provavelmente estará portando uma espada, dificilmente uma lança. Se for um arqueiro, o melhor a fazer é correr. Ainda não tem controle sobre seus reflexos para se esquivar. Se for um Lobisomem, você pode encontrar um machado, mas eles costumam lançá-lo. – Ele resolveu explicar enquanto ela lutava para derrubá-lo, usando de um tom calmo para provocá-la. – Se ele for burro o bastante para usar uma tática dessas – Jarek se referiu à dela, que grunhiu e jogou mais peso contra ele –, simplesmente saia do caminho.

E assim o fez, dando um passo dramático para o lado. Serafine desequilibrou-se e caiu de bruços, e Jarek gargalhou. Com o rosto vermelho de raiva, ou talvez de vergonha, ela pôs-se de pé com rapidez e voltou-se para ele.

– Pode me ensinar algum golpe decente para depois me ensinar como bloqueá-lo?

– Talvez... – Jarek coçou o queixo, passando a mão pela barba rala, e franziu o cenho. Fingiu indecisão enquanto a via ficando mais e mais impaciente. – É destra?

– Sim.

– Então sempre use sua arma com a mão direita. Não tente gracinhas com duas espadas. Só os treinados conseguem virar-se com duas lâminas. – Pegou uma espada caída ali perto e parou ao lado da garota. Curioso pela ansiedade dela, resolveu ensinar alguns golpes mais simples, lembrando-se de quando o pai e a mãe o haviam treinado para ser um excelente guerreiro.

Depois disso, explicou como funcionava o bloqueio. Jarek fingiu ser o atacante e deixou Serafine com a outra espada para que ela agisse como a bloqueadora.

Jarek golpeou-a repetidas vezes e observou o afinco com que Serafine tentava memorizar os movimentos, assim como notou a força que reverberava pelos músculos agora fortificados da garota.

Ele então a fez repetir aquela longa sequência de golpes e defesas cinco vezes sem descanso. Em um primeiro momento, Jarek a deixou golpeando o ar, ficando próximo para corrigir sua postura. Em outra vez, teve que ficar colado ao seu corpo, instruindo com calma para que Serafine não perdesse o controle ou a concentração. Ele encaixou a mão em sua cintura e a outra deslizou por seu braço, guiando-o no movimento de ataque.

Serafine havia congelado quando Jarek se pôs atrás dela, e ele ouviu claramente quando o coração dela ficou mais acelerado.

Jarek, no entanto, viu-se numa situação curiosa e até então inédita. Ele teve que lutar consigo mesmo para ignorar a maneira com que os fios soltos de cabelo da garota deslizaram até seu rosto, fazendo cócegas em sua pele, assim como lutou para ignorar o perfume de flores impregnado na pele dela. O guerreiro deteve sua mão, que quis escorregar pela cintura fina de Serafine, e balançou a cabeça para afastar os lábios dela de seus pensamentos.

No fim era ele quem estava perdendo a concentração no treino.

Quando Jarek se afastou, Serafine parecia ter memorizado com facilidade o modo para se defender dos ataques desferidos por Jarek, mas ainda tinha certa dificuldade na hora de atacar.

– Muito bom – o moreno elogiou, afastando-se após a sequência final. Ela não o encarou, mas sorriu em agradecimento. – Tente me atacar.

– O quê?

– Ora, vamos. Um simples duelo. – Jarek ergueu a espada e rodopiou-a no ar enquanto aguardava. Serafine engoliu em seco.

Ela avançou, e só pela maneira como caminhou já denunciou o que pretendia fazer. Jarek bloqueou o golpe com rapidez, e usou sua força para empurrar Serafine de volta, mas foi pego de surpresa quando ela desviou-se. A morena sorriu animadamente, mas o sorriso evaporou quando Jarek pôs-se a atacar.

Ele partiu para cima dela, mirando a espada no pescoço da garota, mas Serafine foi rápida e conseguiu conter o avanço. Jarek estacou, seus corpos separados por centímetros, o rosto ligeiramente curvado sobre o dela. Foi então que Serafine ergueu seus olhos, agora surpreendentemente dourados, para os dele, e Jarek perdeu a fala.

Não sabia o motivo, mas o mundo se reduziu àquelas duas pedras de âmbar. Jarek sentiu um estranho arrepio subir por sua espinha, algo irritante e incômodo, algo que ele fez questão de lutar para ignorar. O guerreiro abriu a boca, certo de acabaria dizendo alguma frase de efeito irritante, mas não conseguiu formar nada.

Seus olhos faiscaram por ter perdido a fala diante de Serafine; sua mente se afogou por não ter conseguido direcionar a ela sequer uma frase sarcástica. Seu olhar desceu pelo rosto dela até alcançar seus lábios volumosos, e Jarek precisou lutar com todas as suas forças para não alcançá-los em um beijo.

Apertou seus próprios lábios numa linha rígida, obrigando-se a não deixar que qualquer emoção lhe escapasse pelo olhar.

Ele era seu guardião, e não havia porque nutrir sentimentos por ela. O destino caminhava por linhas cruéis, Jarek bem sabia disso, e ele não queria se envolver naquelas traçadas para Serafine.

Foi então que ela tomou as rédeas da situação e, pegando-o completamente atordoado pelo momento, lançou-o longe. Jarek chocou-se contra o chão, e só isso foi capaz de tirá-lo do torpor em que estivera.

A garota havia se assustado por sua força, mas Jarek não se importou. Tudo o que se passou em sua mente foi como pudera ser ela a afastá-los? Como ele não havia tomado uma iniciativa para se separar, sabendo que era tão errado?

– Você está bem?

– Que força foi essa? – Ele tentou parecer atordoado pelo tombo. – Foi inesperado! Você me lançou longe e...

– Pois é. – Serafine engoliu em seco.

Os dois riram, a risada dela saindo um pouco alta demais, a dele um pouco desengonçada demais. O treino foi encerrado algumas horas depois, pois Jarek alegou estar na hora da refeição.

O guerreiro, no entanto, deixou Serafine no salão e seguiu para o seu quarto. Apoiou-se na sacada , ficando de costas para a floresta ao seu redor, e enterrou o rosto nas mãos, apertando os olhos com força.

Não, não, não, murmurou para si mesmo. Lembre-se do que lhe foi alertado. Lembre-se do maldito destino. Fique longe dela.

Respirando fundo, Jarek apoiou-se na cômoda e afundou o rosto num balde de água fria. O choque reverberou por seus músculos tensos e serviu para trazê-lo de volta a realidade. Seu coração desacelerou, e ele pôde garantir a si mesmo que estava mais calmo.

– Ei. – Enquanto enxugava o rosto, ergueu os olhos para Ývela, que havia batido de leve em sua porta. – Eu e Guillian vamos treinar com Serafine. Quer assistir?

– Não. – ele respondeu bruscamente. Ývela franziu as sobrancelhas claras para ele. – Eu vou treinar sozinho.

– Certo. – Notava-se que ela desconfiava das atitudes dele. – Está tudo bem com você, Jay? – O apelido que ela usava quando estavam sozinhos o fez sorrir.

Ývela era uma amiga maravilhosa e dona de uma alma cheia de bondade. Jarek gostaria de nutrir sentimentos mais profundos por ela, mas jamais a veria além de uma possível irmã mais nova. Ou mais velha... Ele nunca chegara a descobrir sua verdadeira idade.

– Estou ótimo – mentiu. – Bom treino.

Quando ela se retirou, Jarek caiu de costas em sua cama, encarando o teto por longos minutos.

Ah, Serafine... Pensou, consternado. Onde fui me meter ao aceitar ser seu guardião?


Capítulo 25

Histórias

 

 

– Pelo visto, você teve um ótimo avanço com o combate. – Guillian moveu uma de suas orelhas para agarrar um bastão caído. Ele fez algumas acrobacias, saltando alto para cair ao lado de Serafine. Ela, mesmo surpresa, riu das gracinhas. Ývela também pareceu entretida. Era bom saber que, depois de horas com o sarcástico e presunçoso guerreiro, estaria na companhia de criaturas mais sociáveis. – É maravilhoso. Jarek é um ótimo professor.

– Quando quer – Serafine acrescentou, fazendo seus guardiões rirem.

– Logo você aprenderá a conviver com o temperamento dele – disse Ývela. A loira usava uma bata curta sobre a calça larga e os cabelos estavam soltos sobre seus ombros. Os olhos grandes e azuis avaliaram Serafine, parecendo ponderar sobre o treinamento daquele dia. – O que acha, Gui? Ela seria hábil o suficiente para escalar essas árvores?

Serafine e Guillian disseram ao mesmo tempo, cada um com uma expressão e tom diferentes:

– O quê?!

– Não custa tentar.

– Escalar essas árvores? – Serafine apontou para um dos troncos ao seu lado. – Essas são maiores do que as que existem perto da vila de Guillian, e têm galhos mais finos. Caí da última que tentei escalar. Imagine aqui!

– Você se esqueceu de seus reflexos mais rápidos? Como acha que eu consigo subir? – Ývela apoiou-se num dos galhos baixos de uma árvore próxima e alcançou o próximo. Após ter escalado alguns metros, encarou Serafine lá de cima. Havia um sorriso brincalhão em seus lábios.

– Eu tenho medo de altura – disse Serafine.

– Você já escalou uma árvore dessas – comentou Guillian. – E se saiu muito bem.

– Antes ou depois do meu tombo fenomenal? – ela retrucou. O Atyubru riu, dando de ombros. – Eu até consigo subir, mas descer...

– Tente. Eu e Guillian a ajudaremos. – Ývela esticou uma mão, incentivando sua protegida. Serafine franziu o cenho. Lembrou-se de que, antes do Ritual, sua tentativa havia sido bem-sucedida. E imediatamente recordou-se que o tombo fora causado por uma distração ridícula. Bufando, ela balançou a cabeça. Não desistiria. Tinha decidido se tornar uma grande guerreira, escalar árvores não seria um obstáculo.

– É necessário se habituar alturas muito elevadas. – Guillian também escalou, enquanto Ývela aguardava Serafine. A morena mordeu o lábio inferior, concentrando-se na conversa com o felpudo. – Se você visse a altura da Fortaleza do Dragão, ficaria estupefata. Ou mesmo a muralha que cerca parte do território da sua antiga morada. É absurdo o tamanho que algumas construções conseguem alcançar, por isso é bom se acostumar.

– Vocês já visitaram os Quatro Reinos? – Serafine indagou com curiosidade. Distrair-se seria um bom começo para pensar em subir naquela árvore. Já estava parada na base, olhando para cima enquanto sustentava-se num dos galhos. Ývela assentiu.

– Sim. Já andei por cada canto e, Serafine, você ficaria encantada com as maravilhas de cada um. Poderia passar anos aqui citando todas, mas temos trabalho a fazer.

– Não, continue! – a morena exclamou.

– Mas...

– Distrações me fazem bem – ela confessou. Acabava de alcançar o segundo galho, encontrando-se pouco distante do chão. Com coragem, deixou seus braços e pernas trabalharem para colocá-la em um patamar mais elevado. Seus músculos mais firmes não encontraram dificuldade em movimentar-se. O equilíbrio não lhe faltou em momento algum, diferente da última vez.

– Está bem, então... – Ývela pigarreou, preparando-se para começar a história. – Acho que você não vai se surpreender quando souber que eu não tenho a idade que aparento.

– E eu me surpreenderia se soubesse sua verdadeira idade?

– Sim. – A loira riu. – Vamos deixar isso de lado. Só precisa saber que estou aqui há bastante tempo, mas só comecei a viver verdadeiramente quando caminhei por essas terras. Quando eu vim para Warthia e deixei meu povo. Vaguei pelos Reinos, ainda não divididos, e encontrei refúgio em Líriel. Como fazia parte desse futuro, eu deveria permanecer em Warthia para lutar contra os seres das Trevas.

– Você fugiu do seu Reino e nunca mais voltou?

– Mais ou menos. – Serafine havia passado Ývela na escalada, mas parou para que sua guardiã a acompanhasse. Guillian já estava no topo da árvore. – Não voltei a falar com meu povo desde aquela época, mas não me arrependo. Eles têm uma ótima governante e estão em segurança. Warthia precisa de mim. Ou melhor, Warthia precisa de você.

– E sem você eu não estaria viva – Serafine acrescentou, fazendo Ývela sorrir.

– Não exagere... A questão é que, durante o tempo em que aguardávamos o nascimento da criança escolhida, eu pude viajar por aí, conhecer lugares que ainda me eram tão estranhos e interagir com os seres terrestres.

– Você demorou a se acostumar? Quero dizer... Viver na água durante tanto tempo deve ser bem diferente da nossa vida ao ar livre – disse Serafine. Era curioso pensar que a ligeira e pequena guerreira ao seu lado já havia passado anos, nem imaginava quantos, debaixo da água. Ela parecia ser tão terrestre quanto qualquer outro ser.

– Foi bem rápido, na verdade. Lonel me ajudou bastante. Ofereceu abrigo e me ensinou como sobreviver nesse mundo. Antes de conhecê-lo, passei por maus bocados. Logo eu me sentia como se tivesse nascido em terra firme. Com algumas restrições, claro, mas tudo foi se tornando normal. – Deu de ombros, realizando com facilidade uma pirueta para alcançar um galho mais alto. Ela pareceu voar, e aquele movimento jamais poderia ser realizado com tanta graça e velocidade senão por uma criatura pequena como Ývela.

– E como são os outros Reinos? – perguntou Serafine.

– Não há palavras para descrever tudo... – disse Ývela, pensativa. Ela apoiou-se numa ramificação do galho, encarando Serafine com curiosidade. – Prefere saber das pessoas, das criaturas ou do ambiente? Pode descobrir o resto quando for para lá...

– Eu vou para lá? – A garota soou empolgada.

– Ora, é claro! Você encontrará os outros três Mestres nesses Reinos. Um em cada, para ser mais precisa. – Serafine surpreendeu-se, mas Ývela não notou. Então iria viajar por Warthia, como sempre sonhara? Conheceria as maravilhas dos outros três Reinos, assim como estava conhecendo o esplendor natural deste?

– Conte-me sobre as pessoas. São as que mais me assustam – pediu. Ela exibiu uma expressão de verdadeiro temor, já que pensar em viagens a trazia para a realidade. E se todos a tratassem como uma aberração?

– Você não deveria se preocupar com as pessoas. Mesmo no Reino das Montanhas há poucas vilas que repudiam criaturas mágicas. Vila do Sol é uma exceção bem rara, não se aflija. – Havia compreensão na voz de Ývela, algo que sempre acalmava Serafine. A loira sorriu amigavelmente enquanto subia alguns galhos. Serafine encontrou certa dificuldade em continuar o caminho, já que a diferença entre os apoios era muito grande. Ousou saltar e surpreendeu-se ao alcançar uma ramificação. Não foi uma acrobacia como a de Ývela, mas resultou em um avanço.

– Deveria contar sobre os bárbaros do Oeste. Ela vai adorar ouvir a história! – Guillian gritou lá de cima. Serafine viu um olhar nada gentil cruzar o rosto de Ývela, mas a loira deu de ombros ao fim.

– Não é muito interessante, na verdade. Ocorreu um bom tempo depois de minha permanência em Warthia. Eu estava viajando pelo Grande Deserto, voltando de uma visita à toca das sereias lá no Reino Sul. Um grupo de bárbaros, vendedores de escravos, me pegou desprevenida e resolveu me vender num dos vilarejos do Oeste. Eles costumam ganhar muito dinheiro oferecendo meninas aos ricos nobres da região, nojentos! – Sua expressão de desgosto mostrou que a recordação era bem vívida em sua mente. – Havia tantas crianças pequenas e inocentes, e eu não podia fazer nada. Estava desarmada e sozinha.

– Ývela não esperava por um ataque. Ela tinha mais fé nas pessoas antigamente – Guillian comentou. Serafine ficou surpresa ao notar como estava próxima do guerreiro. O topo da árvore que lhe parecera tão distante estava agora a poucos metros.

– Quando chegamos a uma das cidades, haviam se passado dias desde minha captura. Eles me consideravam bela demais para ser uma trabalhadora, então eu fui levada junto com as outras garotas que também seriam vendidas. Iriam me leiloar como... Você deve imaginar – ela grunhiu. Serafine bem entendeu o que ela quis dizer. Ouvira histórias sobre comerciantes de meninas. Eles ganhavam muito ouro vendendo as mais bonitas para velhos colecionadores de mulheres. Era pervertido e asqueroso, mas uma realidade pesarosa.

– E você conseguiu escapar? – Serafine estava ansiosa para saber o restante da história.

– Não tão rápido quanto eu queria – disse Ývela. Um sorriso suave enfeitou seu rosto. – Lembro-me bem do leilão. Estava num palco de madeira improvisada e o Sol era insuportável, e havia tantos homens loucos para comprar mais uma menina... Imagino que ficariam chocados se soubessem quão velha eu sou.

Serafine tentou encontrar algum traço de idade em Ývela, mas, além de seu olhar intenso, nada demonstrava há quanto tempo vivia. Ela tinha o rosto levemente infantil e uma beleza jovial proposital, talvez para enganar os curiosos.

– Foi então que algo inesperado aconteceu – a ondina prosseguiu. – Um menino vestido com uma longa capa negra atacou os vendedores. Estava sozinho e empunhava uma espada bem afiada, mas era fraco demais para enfrentá-los sozinho. Após alguns golpes surpreendentes, foi rendido e colocado contra a parede, pronto para ser degolado pelo insulto. Distraídos, eles nem viram quando me lancei sobre o público. Os compradores fugiram amedrontados pela rebelião e, com a ajuda das outras meninas, consegui afugentá-los. Como não sou uma criatura comum, resolvi retribuir o favor de meu salvador e fazer o mesmo por ele... Ataquei aqueles homens com suas próprias espadas, impedindo que houvesse derramamento de sangue inocente.

– Ela lutou contra bárbaros grandalhões sozinha – disse Guillian. Serafine pôde identificar o júbilo em sua voz. – Os bárbaros do Oeste são conhecidos por descenderem dos gigantes. Imagine qual foi a surpresa deles ao serem derrotados por uma guerreira de um metro e meio de altura! – Ele riu ao fim, recebendo um tapa de Ývela na orelha. Ela já estava sentada num dos galhos altos, esperando para auxiliar Serafine. A história a mantivera parada, com sua imaginação correndo solta.

– E quem era seu salvador, você sabe me dizer?

– Era um garoto com quinze anos. – Ela deu de ombros, fazendo parecer uma informação irrelevante. – Eu o salvei e ele me salvou, ficamos quites. Recebi agradecimentos de seus responsáveis e pude retornar para Líriel depois de passar um tempo por lá.

– Que emocionante! – Serafine exclamou. Ývela sorriu, feliz por compartilhar sua história. – Vocês são tão corajosos... Eu gostaria de ter histórias para contar no futuro. As que vivi até agora são terríveis demais para serem partilhadas.

– Eu não tive lá muitas histórias emocionantes. Essa foi uma das únicas – disse Ývela. Ela ponderou um pouco, encarando Guillian logo depois. – Você é o verdadeiro aventureiro entre nós, Guillianus. Por mais que eu tenha conhecido toda Warthia, quem mais se meteu em confusão foi você.

– Confusões demais – ele murmurou. Soltou um muxoxo desanimado, mas isso só atiçou ainda mais a curiosidade de Serafine. Talvez conseguisse descobrir a história por trás da acusação de traição.

– Guillian... – A morena pensou nas palavras exatas para não soar desconfiada demais. Queria que ele contasse sem se sentir pressionado. Gostaria muito de conquistar a confiança de seu guardião felpudo. – O que você fez de tão mau para ser considerado um traidor? Não quero que pense que desconfio de você, muito pelo contrário! Queria entender porque criticam tanto suas ações.

– Imaginei que uma hora sua curiosidade se voltaria na minha direção. Você pouco sabe de mim, não é mesmo? – Havia um sorriso triste no rosto do Atyubru, mas não pareceu se acanhar. Serafine quase agradeceu quando ele começou a narrar a história. – Nós, Atyubrus, vivemos muito mais do que humanos, e costumamos ter leis muito rígidas. Quebrar qualquer uma delas nos leva até o conselho, onde os mais sábios da raça julgam nossas ações.

– E você foi um desses infratores. Seu pai me contou. Mas por que quebrou uma lei? Você, que me parece tão responsável... – Serafine aguardou enquanto o felpudo pensava.

– Acho que considerei minha atitude a mais sensata no momento. Eu não posso revelar a ninguém o que fiz por conta de uma promessa. Eu sou um guerreiro de palavra e não volto atrás em um juramento. – Serafine assentiu sem questionar. Os grandes olhos azuis demonstravam uma confiança sem tamanho em suas próprias palavras. Ela não sabia se conseguiria guardar um segredo tão grande, não um que a faria ser exilada pelo seu povo.

Era como imaginar sua verdadeira aparência sendo revelada aos habitantes de Vila do Sol. Algo inegável e imutável que causaria raiva em todos aqueles que desconheciam a verdade por trás daquelas marcas.

– Eu tive que escolher entre revelar o segredo que se mostrava tão importante para mim ou aceitar minha sentença. Depois de muito pensar, decidi que passar pela penitência seria o melhor.

– Você ajudou mesmo uma criatura das Trevas? – Serafine pareceu surpresa.

– Não era um ser sombrio de coração. A forma como nascemos ou onde nascemos não influencia o nosso futuro. Somos capazes de escolher nossos caminhos. Como você bem disse, não há só luz ou escuridão numa criatura. Aquela, aliás, tinha mais luz do que qualquer outra... Infelizmente, poucos viram tal verdade.

– É uma pena que nosso mundo seja tão desconfiado – Ývela comentou. Estava pensativa, olhando para o céu. Serafine havia acabado de sentar ao seu lado e enxergou a mesma maravilha que sua guardiã via.

A floresta estendia-se por quilômetros. Os dourados raios do Sol iluminavam cada pedaço daquele infinito mar verdejante. O céu estava anil, sem nuvens, e o calor dos raios solares em sua pele causou-lhe prazer. Era maravilhoso estar em contato com a natureza.

– Eu sinto mais confiança em vocês do que em muitas pessoas que já conheci – Serafine confessou. Guillian e Ývela sorriram de volta, agradecidos pelo comentário. – Nunca consideraria você um traidor, Gui. Muito menos Jarek, mesmo que ele não tenha me explicado o motivo de tal acusação.

– Com Jarek o assunto é mais delicado – disse Ývela. Seus olhos estavam fixos nos de Serafine e, pelo que pôde perceber, sua guardiã estava um pouco apreensiva.

Talvez a história de Jarek fosse realmente mais complexa do que imaginara. Ele parecia alguém que guardava segredos bem obscuros de seu passado, do tipo que ninguém tinha permissão de descobrir. Não que isso pudesse impedir a curiosidade de Serafine, mas havia prometido a ele que não questionaria. Ela confiava em Jarek.

– Logo ele contará o motivo de se considerar um traidor, mas deve ter paciência. Você conhece a figura – disse Ývela. Serafine assentiu com um sorriso.

– Melhor descermos – Guillian avisou. – Temos que treinar.

– Ficar conversando não ajuda a tornar você uma grande guerreira – Ývela brincou. Serafine imaginou que ela fosse fazer o caminho inverso para descer da árvore, mas gritou ao ver que a loira se jogara lá do alto.

Foi um salto surpreendente que levou poucos instantes. Logo Ývela estava de pé, sã e salva, aguardando a descida de seus companheiros. Serafine ofegou pelo susto que levara. Ývela caíra graciosamente, como um felino, sem qualquer lesão corporal. Seus pés pousaram com suavidade na terra fofa. Deveriam estar a uma altura de mais de quarenta metros. Como aquilo era possível?

Serafine avistou a figura solitária da loira lá embaixo e, com a vista mais aguçada, conseguiu distingui-la acenando. Foi então que Guillian se juntou à ondina.

O Atyubru usou dois galhos para se sustentar antes de soltar seu peso. Suas orelhas ergueram-se acima de sua cabeça e ajudaram no impacto, servindo de apoio para suas pernas pequenas. Ele pousou suavemente, olhando para cima quase no mesmo instante. Os dois guardiões aguardavam pela descida de Serafine.

– Nem pensar! – ela ralhou.

– Vamos, nem é tão alto! – Guillian replicou. Os ouvidos dela estavam mais apurados, mas a distância deixava o tom de voz mais baixo. Serafine agarrou-se firmemente ao galho, sem sequer cogitar pular.

– Serafine, seus instintos são sobrenaturais! Um pulo desses não vai matá-la. Você é tão resistente quanto nós! – exclamou Ývela, tentando convencê-la. – Pode confiar!

Serafine engoliu em seco, olhando para baixo. A vertigem veio quase imediatamente, fazendo-a perder um pouco do equilíbrio. Ela concentrou-se em suas forças aumentadas, em como seus músculos estavam rígidos e preparados para uma descida daquelas, mas o medo ainda a dominava.

Se deixar o medo dominá-la, como enfrentará uma Feiticeira das Trevas?

Sua própria voz ecoou em sua cabeça. Serafine viu-se distraída por alguns instantes, pensando naquela questão. Agora era uma criatura sobrenatural. Como poderia temer um pulo daqueles e esperar se tornar a oponente de uma Feiticeira? Seria morta antes que percebesse. Tudo por causa do medo que tão facilmente a dominava.

Havia caído na primeira vez por causa um momento de pânico, então por que não se deixava cair? Confiava em Ývela e Guillian. Precisava confiar em si mesma. Acreditar que sua força seria suficiente para aguentar uma queda daquelas e que, futuramente, seria poderosa o bastante para deter Sharowfox.

Inspirando fundo, Serafine soltou-se do apoio. Conteve um grito enquanto seu corpo despencava por aquela incrível distância. Surpreendentemente, poucos instantes depois de se jogar, sentiu o impacto em seus pés. Não foi doloroso como ela imaginava, foi mais como pular alguns degraus a mais do que o necessário. Sua perna enrijeceu e seu corpo sentiu a vibração que emanou dos seus pés.

Sentiu um leve palpitar na cabeça, como o início de uma dor, mas desapareceu tão rápido quanto havia aparecido. Serafine nem sequer notou, achando que fosse alguma vibração pela queda.

Ergueu o olhar para Ývela, que sorria satisfeita, e não pôde deixar de sorrir também. Por mínimo que fosse o avanço, havia surpreendido a si mesma deixando seu medo de lado.

– Viu? Eu disse que você conseguiria. Tenho fé em você.

Serafine sorriu ao constatar que também tinha fé em si mesma.

Aquele salto lhe proporcionara uma sensação de autêntica confiança. Sabia que seu encontro com a Feiticeira estava distante, mas iria se tornar uma oponente mais poderosa do que ela. Honraria os poderes que os Deuses haviam lhe dado.


Capítulo 26

Evidências

 

 

As semanas passaram tão rapidamente que Serafine logo se viu no início do verão, em uma manhã de domingo, sentada na beira do rio enquanto o Mestre explicava sobre um dos feitiços que possibilitava controlar a água. A chuva, uma característica comum àquela época do ano, estava irritando a moça há mais de uma hora, mas nada fazia o velho Atyubru desistir daquele ensinamento. Segundo ele, só sairiam dali quando ela tivesse algum progresso.

E esse era o problema.

Quanto mais Serafine treinava, mais clara ficava sua dificuldade em realizar magia. As dores de cabeça voltaram a dominá-la diversas vezes, mas, por sorte, nenhuma delas foi acompanhada da aparição de um fantasma. Era curioso, porque as dores só surgiam quando ela se esforçava para acessar o espírito. O treino com os guardiões estava evoluindo, mas com o Mestre o progresso era lento e insatisfatório.

Serafine se saía muitíssimo melhor na luta com espadas do que na utilização de encantamentos. Jarek havia elogiado sua postura em combate, assim como Ývela havia enaltecido seu equilíbrio e controle em evolução. Guillian lecionava coisas mais simples, como corridas e acrobacias. Deixava para os outros guardiões a tarefa de ajudá-la a se tornar uma guerreira. O Atyubru dissera que era um péssimo professor de luta, mesmo sendo um guerreiro tão experiente.

Aproveitavam aqueles momentos para conversar. Ele adorava contar histórias sobre suas viagens, mesmo quando Serafine estava testando uma nova dica de esquiva ou quando corriam pela floresta. Ela encontrou em Guillian uma companhia agradável, e era bom saber que ele sentia o mesmo.

Com Ývela, a situação era ainda mais animadora. Ela puxava conversa quando tinham momentos livres e sempre mantinha o ânimo de Serafine elevado. Mostrava confiança em sua protegida.

Quanto a Jarek... A aprendiz já tinha se acostumado com os trejeitos displicentes e um tanto rudes de seu guardião, mas ele estava diferente, até mais suportável. Eles trocavam sorrisos e dialogavam mais do que antigamente, e não discutiam tanto quanto antes, encontrando interesses em comum antes de derrubar um ao outro com poderosos golpes.

Serafine também passou muito tempo com Lonel. Sempre muito tranquilas, as conversas eram recheadas de explicações sobre aquele mundo. Ela aprendera curiosidades de cada Reino e também como ocorreria a jornada a que fora destinada. A garota sempre estaria acompanhada de seus guardiões, mas enfrentaria desafios e teria de fazer escolhas difíceis no futuro. Era uma condição que o escolhido deveria aceitar. Deveria, principalmente, aceitar aquilo que estava por vir. A jornada seria complicada, mas a aceitação a ajudaria a superar as crises.

Ela tentou esquecer aquele detalhe. Manteve sua mente ocupada com a alegria de finalmente realizar o seu sonho de viajar pelos Quatro Reinos. Conheceria o gigantesco deserto do Oeste, caminharia pelas brumas do Sul e retornaria às famosas colinas do Leste.

Contudo, com o passar dos dias, ela se viu menos inclinada a viajar. Sabia que tinha tal obrigação, mas aquele lugar a encantava cada vez mais.

Passar horas treinando com Jarek e com os outros na floresta dava-lhe a oportunidade de manter contato com as forças naturais. Seu espírito se enchia de felicidade, talvez pela conexão com a natureza. Fora-lhe dito que os elementos, representações poderosas de tudo que dava vida àquele mundo, estavam profundamente ligados ao seu coração e ao seu espírito. Seu espírito era iluminado por aquelas forças e, quanto mais próxima ficava da vida natural, mais desejava não ter que sair dali.

Pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se em casa.

E foi devaneando que Serafine recebeu uma pancada na cabeça. Uma pancada e um jato de água extremamente gelado. Ela gritou de susto enquanto esfregava os olhos. Encontrou a figura zangada do Atyubru, cujos olhos estavam semicerrados em uma careta de indignação. Ele vinha se irritando muito com Serafine nos últimos dias, mais do que o normal.

– Preste atenção!

– Eu estou prestando atenção! – replicou, massageando o local atingido. O Mestre sabia da mentira e, com um rápido movimento do cajado, fez com que o rio esguichasse mais água em Serafine. A chuva havia cessado, mas a garota continuou molhada.

– Vou me vingar quando aprender a fazer isso – a morena resmungou. Ergueu-se enquanto espremia os cabelos longos, fazendo uma boa quantidade de água cair aos seus pés.

– Se você aprender – disse o velho.

– Se?

– Do jeito que anda se esforçando, até uma pedra aprenderá mais rápido. – Havia ira na voz cansada do Atyubru. Serafine grunhiu.

– Eu tento! Acha que é fácil aprender tudo isso em três semanas?

– Não, é claro que não é fácil. Mas você não se esforça o suficiente! Controlar um elemento não é como aprender a ferver uma sopa! Leva tempo e exige grande dedicação. Você mal aprendeu a levitar uma pequena quantidade de água! Como quer dominar os outros elementos?

– Temos tempo para treinar – ela rebateu, defensiva, o tom não tão determinado quanto antes.

– Não, não temos. As forças das Trevas estão se reerguendo com rapidez e cada segundo conta. Se avançarmos antes deles, teremos uma chance, mas, continuando nesse ritmo, nosso fracasso será inevitável. – O ancião caminhou até Serafine, parando bem à sua frente. A diferença de altura não pareceu abalar o Atyubru. Ele tinha uma expressão austera e controlada. – Devo cumprir minha missão nesse mundo, Serafine, e você também. Discipline sua mente! Ývela já me contou as façanhas que você realiza quando está controlada, mas você se distrai muito facilmente.

– Não faço nada de mais.

– Você saltou de uma árvore gigantesca só porque alguém teve fé em você. Foi preciso incentivo para estabelecer confiança. Seu espírito é forte, prove isso! Torne-se aquela que tantas gerações esperaram, prove que pode derrotar a Feiticeira das Trevas! As lições são difíceis, mas você não está se dedicando como deveria. Esvazie sua mente e concentre-se em minhas palavras.

Franzindo os lábios, ela se esforçou para seguir as orientações do Mestre.

Serafine respirou fundo e fechou os olhos, aguardando enquanto sua mente relaxava. Tentou colocar em prática aquele mesmo exercício de quando estava na ilusão do Mestre: manter o foco e deixar que seu espírito comandasse. Apesar de não funcionar tão bem dessa vez, ela viu-se mais atenta durante a aula.

O Mestre chegou a sorrir quando ela avançou num dos exercícios. Havia conseguido criar um pequeno redemoinho de água bem próximo deles. O redemoinho circundou sua criadora, assumindo logo depois a forma de um peixe de tamanho médio. Ela estava quase o transmutando em uma serpente quando uma voz a distraiu. A água voltou ao seu estado natural e despejou-se no rio.

Frustrada, Serafine voltou-se para o causador da interrupção e encontrou Jarek parado um pouco distante dali. Seu rosto exibia um semblante tenso.

– O que houve? – ela indagou, mas a resposta foi direcionada ao Mestre.

– Lonel precisa falar com você. – O moreno aguardou enquanto o Mestre assentia. O ancião encaminhou-se com lentidão até a margem do rio e virou-se para Serafine.

– Prossiga seu treinamento.

– Sozinha?

– Jarek ficará com você. – O Atyubru se retirou dali. Serafine encarou Jarek, que ergueu as mãos em sinal de rendição.

– Vou ficar bem quieto no meu canto. Magia aquática não é comigo. – Ele se recostou numa das árvores afastadas do rio e dirigiu sua atenção à adaga prateada que sempre trazia consigo. Serafine demorou alguns instantes observando os gestos do guerreiro, sem entender porque estava tão interessada no modo como os lábios dele se franziam quando se concentrava.

Quando viu que Jarek lhe direcionava um olhar questionador, virou-se e tratou de esvaziar sua mente. Foi difícil desviar daquele par de olhos escuros enigmáticos, mas, com esforço, conseguiu. Demorou alguns minutos para se lembrar das palavras ditas na língua antiga. Quando a magia era muito poderosa, era necessário um reforço verbal por parte do feiticeiro. Serafine murmurou com convicção:

– Dax Aqua!

Nada aconteceu. Irritada, ela repetiu mais algumas vezes aquelas palavras, até que ouviu um insistente riso próximo de onde estava. Jarek a assistia com diversão. Seu sorriso misturava-se ao riso animado, coisa que ele raramente expressava.

– O quê? – ela indagou com raiva.

– Está falando errado, princesa. É Dix e não Dax.

– E por que a graça? – Serafine bufou. Ele riu novamente, apenas para tirar o resto de paciência que restava na garota.

– Porque Dax significa carinho na língua antiga. E sua frase soou excepcionalmente engraçada – ele explicou em meio a risos. Serafine não esboçou reação. Cruzou os braços e aguardou enquanto ele parava de gargalhar. – Oh, me desculpe se coisas engraçadas não tocam o seu humor inabalável!

– Não quando eu preciso praticar essa magia. Eu nunca vou controlar a água desse jeito. – Ela puxou os cabelos em um gesto frustrado e crispou os lábios em um muxoxo. – Nem ao menos sei a palavra certa!

– Fique sossegada, princesa, você é poderosa. Vai conseguir... – Ele piscou um dos olhos de uma maneira marota. Serafine virou o rosto. Esqueceu-se de que Jarek a observava e deixou sua atenção vagar para as palavras corretas.

Dix Aqua.

Uma voz ecoou em sua mente, de maneira assustadora, mas Serafine sentiu um formigar familiar em seu braço direito. Foi uma sensação breve que surtiu um efeito mínimo em seus poderes. Da última vez que aquilo acontecera, algo mais esplendoroso havia sucedido. Ali, a água ondulou em volta de seu corpo. Suspirando pela frustração, Serafine ergueu os olhos para a margem oposta do rio.

Não havia nada além das altas árvores, coloridas pelos raios do crepúsculo, mas ela procurou extrair um incentivo da natureza. Concentrou-se na beleza dos troncos esguios daqueles vegetais e no modo como a harmonia entre eles parecia reverberar para qualquer um que os olhasse. A mistura de cores que pintava aquela paisagem pareceu quase sobrenatural, algo que só acontecia ao redor do Castelo. Nunca antes o pôr-do-sol do Sol se mostrara tão colorido.

E, então, inesperadamente, voltou a sentir seu braço formigando, mas dessa vez uma resposta mais forte e perceptiva. Serafine fechou os olhos como da última vez e sentiu as águas à sua volta balançarem com força. Foram segundos que duraram pouco, mas ela conseguiu ver o que tinha ocorrido assim que abriu os olhos.

Um redemoinho muito maior erguera-se à sua frente, tomando a forma de uma serpente, tal e qual ela havia imaginado quando estava com o Mestre. A criatura gingou de um lado para o outro, como se aguardasse um comando. A água espiralava no contorno da criatura, tão magnífica que hipnotizou Serafine. A serpente alcançou quase três metros de altura e seus olhos brilharam em um lindo tom de branco, como estrelas no manto da noite. Espirais radiantes espalhavam-se pelo corpo aquoso da criatura, parecidos com os de sua conjuradora.

Instantes depois, uma sensação de exaustão a dominou e Serafine caiu de joelhos no rio. A serpente mergulhou, espalhando água por todos os lados. A cabeça da garota latejou pelo esforço repentino, uma dor que a incomodava demais. Criar uma imagem feita de água era absurdo, mas seu espírito vinha treinando há três semanas. Deveria estar mais apto àquilo.

Quando braços fortes a ergueram pela cintura, Serafine pôde ver o rosto embaçado de Jarek. Seu olhar estava preocupado, mas havia um sorriso discreto em seus lábios. A garota viu-se encarando a boca do guerreiro mais tempo do que o necessário.

– Tudo bem, princesa? Se continuar assim, vai acabar em coma quando criar um monstro marinho – brincou ele. Serafine foi sustentada enquanto apoiava os pés no chão, mas a dor que sentia não passou. Ela chacoalhou a cabeça e viu a paisagem ao seu redor girar. – Calminha aí! – Jarek apertou as mãos ao redor da cintura dela, mantendo-a firme contra seu corpo. – O que houve?

– Eu... Não sei. Minha cabeça está doendo demais... – murmurou, apoiando uma das mãos na testa. Seus olhos latejavam, uma sensação familiar que congelou sua espinha.

Seu olhar vagou até a margem oposta do rio, onde mantivera a atenção enquanto invocava forças. Quando seus olhos encontraram os de outra figura, um grito sufocou sua garganta.

Jarek olhou para lá, mas, assim como acontecera com Ývela da última vez, nada viu. Serafine engoliu em seco enquanto trocava olhares com as íris de sua melhor amiga morta. Mahiry havia voltado.


***


– É impossível – Jarek disse pela milésima vez. Estavam caminhando pelo corredor principal do Castelo enquanto Serafine era levada para seus aposentos. Lonel e os outros estavam ocupados demais para uma interrupção. O guardião a levaria a um local seguro e garantiria que não fosse incomodada.

– Não é impossível. Eu a vi! – Serafine ralhou de volta.

Ela estava certa de que tinha visto Mahiry em toda a sua fúria encarando-a do lado oposto do rio. A sensação de mal estar viera depois do encontro, mas passara com rapidez assim que a imagem sumiu. Serafine viu-se rangendo os dentes enquanto andava, pois a dor de cabeça persistia. Cada passo parecia pesar ainda mais na agonia que atormentava sua mente.

– Não tem como um morto cruzar as barreiras do Castelo – Jarek argumentou. – São muros invisíveis que os próprios Deuses criaram milhares de anos atrás. Fizeram isso para proteger os guardiões que aqui viviam. É por isso que proclamam Líriel como sagrada – ele citou com firmeza, mas não convenceu Serafine. Ela estava convicta de que Mahiry estivera na margem do rio.

– Falarei com Lonel.

– Por que ele acreditaria? Lonel sabe, tão bem quanto eu ou qualquer outro, que você só viu Mahiry da outra vez porque tinha se afastado demais do Castelo. Não tem como ter acontecido dessa vez.

– Ela pode ser mais poderosa que os outros fantasmas – argumentou, mas Jarek lançou um olhar que excluiu essa hipótese. Não havia motivo para Mahiry ter se tornado uma poderosa alma em busca de vingança.

– Esqueça essas ideias, princesa, e durma um pouco. Vou falar desse episódio com Lonel quando a reunião acabar. Talvez ele saiba o que atormenta sua mente.

– Um fantasma! – ela resmungou, não obtendo resposta. Jarek limitou-se a suspirar, indicando que aquele diálogo o deixara irritado.

Subiram as escadarias da torre em silêncio e, assim que Serafine entrou em seu quarto, Jarek fechou a porta. A morena bufou. Uma crescente onda de ira a dominava por conta da atitude de Jarek. Por que ele não acreditava no que ela dizia? Não tinha motivos para inventar a aparição de Mahiry, e também tinha certeza de que não eram alucinações. Lonel lhe dissera que ver fantasmas era comum, já que seu próprio espírito conectara-se ao mundo sobrenatural.

A razão de um deles a atormentar devia existir. Ela só precisava descobrir qual era.

Suspirando, Serafine esticou-se na cama e tentou tirar um cochilo após engolir um gole da poção. Lonel havia lhe dado um vidro consideravelmente grande e disse-lhe que tomasse sempre que se sentisse mal, mas, mesmo sem a dor de cabeça, sua mente agitada não permitiu que descansasse. Ela queria pesquisar mais sobre fantasmas e tentar entender por que Mahiry a perseguia. Talvez houvesse uma explicação razoável sobre a travessia das barreiras mágicas.

Algo que só ela poderia entender.

Adiantou-se até a porta e moveu a maçaneta, que estava destrancada. Como não havia ninguém do lado de fora, disparou pelas escadas.

Jarek havia descido e provavelmente seguido para o seu próprio quarto, já que não fora convidado a se juntar à reunião. Serafine, por sua vez, aproveitaria para conseguir algumas informações.


***


A Lua cheia deixava a biblioteca mais iluminada. Serafine encontrou alguns elfos sentados nas mesas de pedra e cumprimentou-os com um sorriso discreto, tentando disfarçar o nervosismo. Não fazia nada de errado, mas sabia que levaria uma bronca caso Jarek descobrisse sua fuga.

Lonel a ensinara a ler os símbolos principais da escrita antiga. Cada um deles equivalia a uma letra, formando sequências que revelavam uma palavra. Vasculhou entre as obras mais antigas de uma seção afastada e encontrou referências a fantasmas e espíritos atormentados. Uma das capas, feita de couro em um tom de vinho, trazia um único símbolo desenhado. Era um Sol, pintado de prateado, com oito raios dispostos ao seu redor. Os raios eram moldados com espirais alinhadas.

Já tinha visto esse símbolo em sua antiga Vila.

Por isso aquele desenho lhe parecia familiar. Não condizia com a pouca informação do livro, mas de outro lugar. Frustrada, ela resolveu averiguar o conteúdo da obra depois. Naquele momento, descansaria em seu quarto.

Enquanto se retirava do aposento, foi tomada por curiosidade. Onde estariam Lonel e os outros? Ela poderia chegar ao escritório do elfo em pouco tempo, conhecia o caminho, e não estaria fazendo nada fora do comum.

Estava começando a se tornar incrivelmente bisbilhoteira, mas não parecia tão ruim assim. Ela só queria encontrar com o ancião e perguntar-lhe sobre sua visão. Sabia que Jarek demoraria muito mais a fazê-lo. Portanto, não iria inspecionar uma conversa alheia. Aguardaria até que eles estivessem disponíveis.

Caminhando calmamente pelo corredor, Serafine tentou não fazer barulho. Com passos apressados e suaves, ela não seria notada. Os elfos tinham ouvidos sensíveis, mas ela podia ser imperceptível quando queria. Foi assim que alcançou a primeira da porta, que levava ao corredor lateral do escritório de Lonel, e se escondeu perto da entrada da sala.

Era um lugar amplo, como todos os outros no Castelo, de teto alto e paredes bem afastadas. O mármore branco estava presente em todos os cantos daquele cômodo, combinando com os móveis de madeira clara. Estantes com livros tão antigos quanto os da biblioteca estavam dispostas ao redor do escritório, e as janelas desciam do teto ao chão, expondo a paisagem da bela floresta mística.

Lonel estava sentado atrás da mesa principal, pensativo e um tanto cansado. A luz amarelada das velas deixava sua aparência bem mais envelhecida do que o normal, e o Mestre Atyubru observava-o com a mesma expressão ponderadora. Havia outros participantes naquela reunião, mas Serafine não os viu com clareza. Ela identificou alguns elfos e, encobertas por capas escuras, criaturas menores.

Alguém se pronunciou em meio àquele breu silencioso.

– Podemos confiar nessa informação?

– É claro que não podemos! – outra voz desconhecida retrucou com impaciência. – Ela não é verdadeira.

– Não podemos afirmar isso também. – Era Ývela quem falava. Sua costumeira calma estava carregada de indecisão. Ývela raramente demonstrava incerteza nas palavras, quanto mais nas atitudes. – Foram apresentadas provas verídicas de que a informação não é falsa. Não devemos perder essa chance.

– Você gostaria de aceitar esse risco? Um ataque surpresa baseado nas informações de uma criatura sombria?

– Não tenho medo dos riscos que enfrentaremos, tenho medo dos riscos que Serafine enfrentará. Juramos protegê-la pelo fato de ela ainda não estar preparada. – Como vinha fazendo nos últimos tempos, Serafine apurou seus ouvidos. – Eu me arriscarei nessa missão.

– Ninguém precisa se arriscar! – Serafine prendeu a respiração. Era a voz que lhe parecera tão familiar tempos atrás, da mesma mulher que ouvira conversando com seus guardiões e Lonel na biblioteca. – Eu lhes provei que o acampamento existe. Observei-os por dias sem que notassem minha presença. São desatentos.

– Mas estão preparados. Não ficariam por aí simplesmente esperando – outra voz retrucou. Havia irritação nela.

– As criaturas não estão esperando, estão armando um ataque. Elas sabem que se aproximam de nossas barreiras, sabem que não podem ultrapassá-las. Criaturas das Trevas podem sentir isso...

– Você entende bem disso. – Alguém a interrompeu, usando um tom sarcástico, mas a mulher ignorou.

– Se seguirmos meu plano, com certeza sairemos na frente. Serafine ficará a salvo e os pegaremos de surpresa. – Ela finalizou seu discurso. Havia uma pontada de orgulho em sua voz. Serafine desejou poder ver seu rosto.

– Não tenho certeza, minha cara – disse Lonel. Pelo vão da porta aberta, Serafine o viu erguer-se em sua escrivaninha. Havia certo pesar em suas palavras, como se aquele momento lhe fosse muito temido. – Mas, como os fatos são verdadeiros, dou-lhe permissão para usar o acordo. Acompanhe-os até a aldeia. Procure o Rei Atyubru e diga que precisamos de reforço. O conflito é inevitável.

Serafine afastou-se rapidamente quando o diálogo teve fim. Passos foram ouvidos bem próximos da porta. Ela teve tempo de cruzar o corredor lateral quando todos saíram da reunião, e, com sua velocidade desenvolvida, correu pelo outro corredor e pelos jardins, alcançando a porta de sua torre. Dentro do quarto, ela suspirou aliviada.

De que conflito eles estavam falando? Havia tanto temor na voz de Lonel, então talvez fosse uma batalha perigosa... Não poderiam estar comentando sobre sua luta com Sharowfox. Ela estava longe, não estava?

Seu coração acelerou.

Se de fato fosse esse o tal conflito comentado por Lonel, Serafine não poderia lutar. Não seria páreo para deter uma Feiticeira, por isso rezou durante um longo tempo para que suas suposições estivessem equivocadas. O que quer que fosse, quando revelado, provavelmente se mostraria um acontecimento estarrecedor.


Capítulo 27

Combinados

 

 

Era manhã quando Serafine acordou. Preguiçoso, o Sol iluminava um pouco acima das montanhas, lançando seus raios dourados sobre parte da área verdejante. Nuvens sutis encobriam o céu anil, provocando sombras sobre determinados lugares da região. Serafine encostou-se a um pilar ao lado de sua janela alta e deixou-se devanear enquanto seus olhos perdiam-se na paisagem. Tinha dormido bem aquela noite, coisa que vinha acontecendo com uma frequência cada vez menor. Ninguém viera interromper seu sono antes que ela própria resolvesse levantar. Estranhou aquela anormalidade em seus dias, mas não reclamou. Talvez todos estivessem cansados por tanto tempo treinando sem descanso. Lonel provavelmente lhes dera um dia de folga.

Escolheu um vestido na altura dos joelhos feito de um fino linho azul claro e desceu as escadarias da torre. Achou curioso não encontrar qualquer alma viva nos jardins, já que os elfos costumavam aproveitar as manhãs frescas como aquela para passear pelo pátio. Continuou sua caminhada, olhando dentro das portas do corredor principal. Não havia ninguém em qualquer um dos aposentos também. Encontrou todos reunidos quando adentrou o salão principal, o mesmo onde fora realizado o seu Ritual.

A maioria dos elfos estava naquele recinto, além de seus guardiões. Jarek e Ývela conversavam num canto afastado, enquanto grupos variados de imortais trajando armaduras espalhavam-se pelo salão. Jill, seu Mestre e alguns convidados inesperados também estavam ali: Atyubrus conhecidos, como o sucinto e carrancudo Urir, e outros que pareciam intimidadores. Eles eram tão altos em comparação à normalidade da raça que lembravam rígidos soldados. O filho do Rei reconheceu-a, com os olhos brilhando, e caminhou em sua direção:

– É um prazer revê-la, milady. – Ele fez uma breve reverência que pareceu um tanto quanto exagerada. Ela viu Guillian rolar os olhos, a expressão claramente indignada, e riria daquilo se não fosse a tensão que se instalara naquele salão. – Uma pena que não seja uma ocasião muito honrosa para um encontro.

– Como assim?

– Ah, pelo visto ainda não soube do ocorrido. Dessa vez, não é meu dever explicar. – Ele deu passagem à garota, indicando-lhe Jarek e os outros. Guillian, que estava mais próximo, adiantou-se para falar com Serafine.

– É uma situação complicada, minha querida amiga, mas logo a informaremos. – Ele puxou seu pulso com delicadeza, fazendo um sinal para que ela se abaixasse. A garota estreitou o olhar, desconfiada, mas ajoelhou-se para que o felpudo sussurrasse. – Esses meus parentes não sabem como guardar um segredo desses, sinto muito.

– Se alguém começasse me dizendo o que aconteceu, talvez eu entendesse todo este caos.

Não gostava de segredos. Será que aquilo não estava mais do que claro para todos ali? E, por mais que suspeitasse do que se tratava o assunto, não deixaria transparecer que havia bisbilhotado a conversa deles. Guillian assentiu e, numa atitude gentil, guiou sua protegida até o maior grupo reunido. Jarek ergueu o olhar para a recém-chegada e Serafine viu-se momentaneamente hipnotizada por ele.

Cada troca de olhares trazia-lhe uma incrível sensação desconhecida. Arrepios cruzavam sua pele, seu coração descompassava e, de repente, a cor púrpura dos olhos de Jarek era a mais intensa entre todas.

Serafine vagou seu olhar para os outros presentes naquele grupo, fixando-se em Lonel. O elfo pareceu compreender a dúvida que tanto inquietava a morena e, fazendo sinal para que ela se aproximasse, começou a explicar:

– Sinto muito que esteja passando por isso, minha cara. Preparações para combates não são tão excitantes quanto podem parecer. – Havia dor em sua voz, transparecendo uma tristeza tão grande que tocou o coração de Serafine. – Devo lhe contar desde o início para que compreenda. – Ele pigarreou e Serafine aguardou. O elfo então começou a narrativa:

– Logo que soubemos do ataque em Vila do Sol, ficou claro que os Amaldiçoados não estavam sozinhos. Eles tinham conhecimento sobre sua existência. O líder deles é um dos aliados das Feiticeiras, que são as verdadeiras interessadas em você e, como prova do que temíamos, a transformação da bruxa que se passava por Grímena mostrou a verdade. Águas Claras foi uma escolha surpreendente, já que seu território sagrado nos parecia bastante seguro. Houve, então, a convocação divina. Nenhum deles suspeitou da falsidade daquele ato. Foi perfeitamente realizado, e nem Jarek ou Ývela haviam presenciado um Ritual para estranharem a veracidade do que acontecia. Jarek chegou a suspeitar do olhar de Grímena, mas não havia prova concreta... Ela, uma Feiticeira até então disfarçada, criou um feitiço perfeito, como eu lhe expliquei antes. Então a Serpente tomou seu lugar e a Feiticeira se foi sem deixar qualquer rastro.

O elfo suspirou.

– Depois que vocês chegaram aqui, recebi uma visitante. Essa pessoa me garantiu que vinha seguindo os lobos há vários meses e não tinha ideia de que o grupo se dividira para cobrir os dois ataques. Foi então que descobrimos que as duas vilas não eram o alvo principal deles. Líriel era. Minha informante me ofereceu sua ajuda para espioná-los. Aceitei, pois temia encontrar atividade hostil de Feiticeiras perto daqui. Não tive notícias dessa visitante até ontem, quando ela apareceu bastante abalada... – Ele parou de falar, provavelmente reunindo coragem para contar a parte que mais o perturbava.

Serafine enfim entendeu quem ajudara os lobos a invadir o vilarejo. A falsa Grímena era uma Feiticeira. Ela invocara a imagem da Deusa apenas para chamar a atenção de seus perseguidores, como uma espécie de bússola para que eles a seguissem. Com sua destreza sobrenatural, chegaram rápido a Águas Claras. Serafine se lembrou da retirada de Grímena para a meditação naquela noite e de como ela pareceu estranha enquanto caminhava pela beirada da floresta tempos depois. A Feiticeira tivera tempo suficiente de encantar a Serpente e fugir dali antes que o ataque acontecesse.

– A nossa ajudante usou magia antiga para localizar o Lobisomem que lidera aquele grupo e encontrou-o com um batalhão de monstros. Eles estão acampados perto demais para permitirmos que continuem onde estão. Os Amaldiçoados sentem as barreiras mágicas que nos cercam. O perigo é evidente, por mais que essas fortalezas mágicas existam. – Ele suspirou mais uma vez. – Não podemos deixá-los assim, na nossa porta, e por isso nossa espiã teve uma brilhante ideia. Uma ideia que pode servir para nos salvar.

– E qual seria?

– Vamos atacar o acampamento deles. – Jarek respondeu. Havia um sorriso mordaz em seu rosto. Ele estava parado ao lado de Serafine; entre seus corpos, havia pouca distância. – Um ataque surpresa – acrescentou com animação. – Conseguimos o apoio dos guerreiros Atyubrus. Guillian não será preso porque está sob nossa proteção, mas não permitirão que ele lute ao nosso lado.

– Ele vai ficar aqui. – Não era uma pergunta. Serafine encontrou raiva nos olhos azuis de seu guardião felpudo.

– Com você – Jarek concluiu. Ela chocou-se e deixou isso bem claro em sua expressão. O guerreiro esboçou um novo sorriso, mas havia preocupação em seu olhar. – É perigoso manter você aqui sozinha enquanto partimos com um batalhão, mas é ainda mais perigoso se a levarmos conosco. Está segura, é claro, mas não custa prevenir.

– E quem disse que eu vou ficar? Eu treinei para um combate durante quase um mês, sou mais do que capaz de...

– Ficar aqui – Jarek a interrompeu. O sorriso havia desaparecido de seu rosto, restando apenas o semblante sério. – Ao menos por um dia. Ývela também vai ficar... Vou avisá-la quando puderem partir.

– Partir para onde?

– Vamos levá-la para o Reino do Oeste. O Mestre irá conosco, assim você terminará seus exercícios de controle lá – respondeu Ývela, até então quieta.

– E quanto a você? – Serafine exclamou para Jarek. O moreno deu de ombros, parecendo não se importar com seu futuro. Ela não queria nem entrar na questão de como ele avisaria Ývela sobre o momento mais seguro para a fuga, só queria entender onde é que aquele plano parecia ser bom.

Fugir não era honroso! Lutar era. Da última vez que fugira, seu pai fora assassinado bem ao alcance de seus olhos. Não importava o quanto suas lutas tivessem fracassado, tudo havia mudado naquelas últimas semanas. Queria mostrar que tinha força. Queria mostrar que tinha coragem.

– Temos que nos preocupar com a sua segurança, escolhida – Jarek disse. Seu olhar demonstrava a mesma sensatez de suas palavras. Ele estava certo de que aquela era a melhor opção. – Você vai ficar e partir com Guillian e Ývela. Já está decidido.

– Eu não deveria ter três guardiões? – argumentou com acidez, mas só serviu para fazer Jarek rir.

– Você ainda tem, aproveite enquanto pode – piscou maliciosamente, mas finalizou a discussão ali mesmo.

Lonel intrometeu-se, lançando um de seus olhares intensos para Serafine.

– Jarek disse que você me procurou na noite passada. – Serafine assentiu, ainda confusa pela súbita revelação. Haveria um confronto e ela estava proibida de participar? Dezenas de soldados partiriam para aquela distração e, se queria proteger aquele palácio, deveria cumprir as ordens. Vidas seriam sacrificadas se ela fizesse alguma besteira. – Pode me dizer o que a perturba, minha querida, tentarei ajudá-la. – O elfo a guiou por entre a multidão de seres imortais.

Os dois acabaram na sacada do enorme salão onde Serafine havia encontrado a Fênix. A brisa soprou ao seu redor e, com a iminência de um combate, ela pareceu mais fria. Serafine não sabia dizer se era apenas o temor, ou se a própria natureza avisava sobre o conflito.

– Eu vi Mahiry. De novo. – Tremeu ao acrescentar o final. Lonel ficou calado, esperando que Serafine prosseguisse. – Passei pelas sensações estranhas de dor de cabeça e mal-estar, e então ela estava parada do outro lado da margem... Olhando para mim com uma raiva crescente e assustadora. – A garota suspirou, tentando encontrar palavras para descrever a sensação. Era horrível ver um conhecido seu morrer, ainda mais alguém tão querido quanto ela. Ver sua assombração era ainda pior. Mahiry havia sido sua melhor amiga, mas, na vida após a morte, parecia não ter o mesmo sentimento. Aparentemente, queria fazê-la sofrer. Sofrer com seu olhar melancólico e sua expressão irada. Sofrer por tê-la abandonado.

– Jarek comentou comigo tal fato... E, para ser honesto, não sei o que pensar. – Serafine surpreendeu-se pela resposta do sábio. Ele aparentava frustração. – Nossas barreiras foram dádivas divinas, construídas com o intuito de impedir que qualquer criatura morta ou seguidora das Trevas pudesse invadi-las. Não há como quebrá-las, são poderosas demais.

– Ninguém poderia destruí-las?

– Nunca ouvi histórias de uma criatura tão poderosa assim. Só os Deuses...

– E Sharowfox?

– Ela ainda não retornou – ele respondeu imediatamente.

– Mas há uma chance de...

– Serafine, me escute... – O rosto austero do elfo adquiriu uma expressão preocupada, detendo qualquer outra ação de Serafine. – Você está amedrontada, eu posso ver isso. Não busque explicações lógicas para suas visões, elas não existem. Seu espírito possui dons que nenhuma outra criatura jamais imaginou possuir, e ver fantasmas faz parte disso. De alguma maneira, esses vislumbres vão além do que é considerado real aqui no mundo mágico, mas não se apavore... Vamos ajudá-la a entender esse fardo com o tempo. Agora deve manter seu foco no treinamento com o Mestre. Se Mahiry aparecer novamente, avise o Atyubru, ele saberá espantá-la.

– Como?

– Fantasmas odeiam coisas vivas. Quer maior representação da vida do que um elemento da natureza? – Um sorriso suave surgiu no rosto do ancião. Serafine assentiu lentamente, tentando mostrar que havia esquecido aquela preocupação, mas infelizmente não havia.


***


– Mais uma vez! Quanta moleza, menina! – o Mestre exclamou.

Serafine suspirou, lançando ao felpudo um olhar nada gentil, mas ele não esboçou reação. Permaneceu parado na margem do rio, o cajado de madeira em suas mãos, observando Serafine invocar seus poderes. Ou tentar...

Ela não conseguia se concentrar, com medo de que uma manifestação de seu controle chamasse a atenção do fantasma. Era um temor ridículo, considerando o que havia conversado com Lonel, mas não conseguia impedi-lo.

– Se quer aprender alguma coisa, deve ao menos tentar. O que havíamos combinado?

– Eu sei! – ela exclamou, raivosa. O rio ondulou na região em que ela se encontrava, mas Serafine não notou. Estava concentrada em não afogar o velho rabugento. Quanto mais tempo passava perto dele, mais sentia falta de Jarek e seu temperamento insuportável.

Frustrada, ela jogou a trança para trás enquanto o Mestre explicava mais uma vez como dizer o feitiço que controlaria o elemento. Assim como aquele que invocava, era necessária uma ordem de palavras que manteria o consciente daquela força da natureza sob seu controle.

O Mestre demonstrara tal encantamento algumas horas antes. Transformara um redemoinho em uma sereia. Depois de murmurar outras palavras, a sereia adquiriu vida e lançou-se contra a correnteza. O ancião explicou que, com o encanto certo, Serafine poderia controlar todo o rio. Já tinha a força do espírito consigo, algo que nenhum Mestre tinha no começo de seu aprendizado. Só faltava a persistência.

Pela décima vez, a morena tentou invocar um redemoinho para que se transformasse em qualquer imagem, mas nada se ergueu do rio. Parecia que o primeiro elemento a ser a dominado não cooperava nem um pouco. Se ele tivesse mesmo consciência, estaria rindo da tentativa patética da moça. Serafine bufou e jogou as mãos para o alto.

– Mantenha a calma, não é um controle fácil.

– Diga isso por você, já sabe como fazer uma sereia – ela retrucou. Toda a irritação que vinha contendo escapou de repente. – Não é você quem vai lutar com uma feiticeira poderosa e ver todo um mundo ser destruído porque fracassou com sua tarefa.

– Não é um fracasso! – Houve uma súbita onda de fúria na voz imponente do Mestre, mas Serafine não se abalou. Seu estado era de aversão pelas tentativas falhas e patéticas que vinha realizando. – Você é uma aprendiz, o que significa que ainda está entendendo como se domina essa magia.

– Uma simples aprendiz que em pouco tempo enfrentará a criatura mais maligna e poderosa de todos os tempos! Uma covarde que morre de medo de fantasmas! – ralhou consigo mesma. Estava ficando cada vez mais indecisa. Por um lado, queria lutar e defender aqueles com os quais se importava, mas, por outro, temia o futuro que a aguardava. A confiança em si mesma ia e vinha conforme o tempo passava.

Grunhindo, ela chutou um pouco de água para longe.

Nem notou quando a mesma água despejou-se no rio em forma de pequenos peixes, ganhando forma por alguns segundos. O Mestre sorriu ao notar aquele acontecimento, mas ficou quieto enquanto a garota explodia.

– Acabou agora?

– Sim – ela bufou.

– Talvez queira vir me desejar sorte. – Serafine voltou-se para a voz conhecida de Jarek. O guerreiro estava parado um pouco longe, com uma das mãos no cabo da espada em seu cinto.

Vestia a armadura de batalha completa: calças escuras e botas de couro até os joelhos e um colete feito de pele de Escorpião Gigante, que se assemelhava ao couro mais forte dos Quatro Reinos, porém cem vezes mais resistente. Podia suportar uma flecha atirada à distância ou mesmo o ataque frontal de alguma criatura com garras afiadas. O colete cobria seu tronco, mas deixava os braços expostos. O bracelete cor de bronze estava ali, além das tiras marrons que cobriam seu braço do pulso ao cotovelo. Uma aljava cheia de flechas estava amarrada às suas costas e o arco pendurado em um de seus ombros.

– Vocês já vão partir?

– Infelizmente sim, princesa – disse com bom humor. Serafine parou ao seu lado, vislumbrando a figura um pouco encurvada do velho Atyubru. O Mestre afastou-se, acenando para Jarek. O guerreiro franziu os lábios quando o felpudo se afastou. – Criaturinha mais antissocial.

– Olha só quem fala – Serafine replicou.

– Eu sou o ser mais social que existe. Qualquer pessoa gastaria seu tempo precioso para receber um pouco da minha atenção. – Um sorriso galanteador iluminou seu rosto. Serafine arqueou uma sobrancelha para ele.

– Por que vão tão cedo assim?

– Urir quer que encontremos com o batalhão de Atyubrus na floresta – ele falou, interrompendo-se para ajeitar a fivela da aljava. Serafine adiantou-se para ajudar.

Jarek estacou com a distância, mas manteve o rosto impassível. Serafine, por sua vez, ergueu o olhar para ele. O cheiro de Jarek a inebriava, e só havia reparado nisso pouco tempo atrás. Era uma mistura de hortelã e terra molhada, quase como o aroma que permeava pelos ares depois de uma tarde chuvosa. Selvagem e atraente, assim como Jarek. Aqueles olhos enigmáticos assemelhavam-se a lagos com profundidades imensas, onde segredos se escondiam por todos os cantos.

Serafine afastou o olhar e os pensamentos. Armando um sorriso simpático, a morena fez um aceno ao avaliar toda a preparação do guerreiro.

– Tome cuidado. – ela nem ao menos sabia o que dizer, e talvez por isso tenha soado tão débil. Não tinha ideia do que eles enfrentariam naquela viagem e nem se conseguiriam pegar os Lobisomens de surpresa. O risco dali para frente seria grande demais.

Ficou combinado que, se Jarek não avisasse sobre a progressão do ataque em meio dia, Serafine e seus outros dois guardiões partiriam com o Mestre para o Reino do Oeste.

A ideia era fazer parecer que Serafine estava naquele batalhão de ataque, por isso a presença de um de seus guardiões. Assim que eles tivessem se afastado da área, o grupo de ataque voltaria aos esconderijos e aguardaria até que os Lobisomens se dispersassem.

Jarek franziu o cenho pela atitude da garota. Desejar sorte para alguém como Jarek? Ele riria. Um simples conselho para se cuidar não era tão anormal assim. Serafine se importava com ele, mais do que gostaria. Importava-se a ponto de manter a curta distância entre eles, a mão ainda repousada sobre o peito do guerreiro, sentindo os batimentos controlados de seu coração. Serafine engoliu em seco, amedrontada com o que estava por vir.

– Nos vemos logo, princesa – Jarek garantiu, buscando o seu olhar. Os dedos dele se encaixaram debaixo do seu queixo, erguendo o rosto dela com delicadeza. Um sorriso charmoso enfeitava seu rosto, mas Serafine estava nervosa demais para reparar naquilo. – Cuide-se até o nosso encontro. Não estarei aqui para salvar sua vida de novo.

– Como se eu precisasse! – Serafine replicou bem humorada. Jarek deu de ombros e afastou-se um pouco. Abraços não serviriam naquele momento. Era sentimental demais para alguém como ele. Até mesmo para Serafine, que nunca tivera uma relação amorosa longa na vida. A mais demorada delas fora aos doze anos, quando beijara um garotinho de sua Vila.

Serafine nunca mais procurara por um relacionamento, então não era agora, prestes a entrar numa jornada de vida ou morte, que o faria.

Foi com esses pensamentos que viu Jarek se afastar, rumo ao caminho que o levaria à Vila dos Atyubrus. O moreno fez um último aceno, lançando uma piscadela, e Serafine sorriu de volta.

– Nos veremos antes que possa sentir minha falta! – ele gritou. Infelizmente, parecia que já começava a sentir.

Respirando fundo, ela colocou tais pensamentos de lado. Não perderia tempo pensando em um homem. Tinha que se preocupar com o futuro de Warthia. Querendo ou não, eles ainda dependiam dela.


Capítulo 28

Antes da Tempestade...

 

 

Os elfos mais preparados marchavam para derrubar os lobos antes que eles chegassem perto demais. Serafine tinha certeza de que aqueles imortais e centrados temiam um ataque frontal dos Amaldiçoados e fariam qualquer coisa para impedir que aquele paraíso fosse dominado.

Com a partida deles, o Castelo das Quatro Luas nunca parecera tão vazio. Os mais velhos haviam ficado para proteger as dependências do palácio, mesmo que não houvesse um perigo tão iminente. Os outros atrairiam a atenção dos Lobisomens com aquele ataque surpresa e, com sorte, exterminariam as centenas de monstros que havia no acampamento. Serafine havia visto alguns elfos treinando vez ou outra e se surpreendera pela rapidez e eficiência de seus golpes. Eles eram muitíssimo mais rápidos do que Jarek, e tinham uma leveza que excedia a de Ývela. Infelizmente, o Mestre não participaria de um segundo combate, já que acompanharia Serafine e seus guardiões até o Reino do Oeste.

Serafine, por sua vez, estava agora sentada na entrada do Castelo, observando as fileiras de elfos marcharem para longe dali. Todos vestiam armaduras resistentes, feitas em cores camufláveis para aquela noite sem Lua. As lâminas de prata de suas espadas seriam a única cor de destaque naquela penumbra, mas os monstros só as veriam pouco antes de serem enviados para o Abismo.

Uma figura solitária parou ao seu lado e só foi notada quando suspirou. Serafine encarou Guillian, que, por sua vez, assistia à partida soldados. Era mais do que desejo dele participar da luta, mas fora proibido.

– Jill foi para lá? – indagou Serafine.

– Sim. – Os olhos azuis continuavam fixos nas figuras cada vez mais afastadas. – Ela insistiu em lutar e Urir não a impediu. Jill é uma guerreira incrível.

– Vocês se conhecem há muito tempo? – Serafine não estava muito inclinada a conversas, mas Guillian pareceu-lhe tão deprimido que resolveu tentar distraí-lo. Era exatamente disso que ela mesma precisava. Distração.

– Desde que nascemos. – Um sorriso fraco iluminou o rosto do felpudo. Suas orelhas extensas abanaram-se. – Nós treinamos juntos para ingressar na elite de guerreiros dos Atyubrus. Éramos os melhores em tudo o que fazíamos, apesar de Jill sempre me superar. Um pouco irritante, admito, mas ela sempre se mostrou muito promissora nos combates.

– E vocês eram namorados? – Serafine brincou, mas, pela reação de assombro do guardião, havia algo que ele queria esconder. A morena não ficou surpresa, principalmente por já ter notado o quanto Jill parecia se importar com Guillian. Na despedida deles, alguns minutos antes, ela o havia abraçado com força e murmurado alguma coisa que só Guillian pôde ouvir. Havia temor nos olhos alaranjados da Atyubra, mas ela partiu mesmo assim.

– É um assunto particular, milady... – Guillian pareceu nervoso e um tanto encabulado. Serafine desculpou-se pela intromissão e pediu que ele prosseguisse com a história. – Nos tornamos guerreiros esplêndidos, e o próprio Rei nos convocou para a guarda real. Tudo estava muito bem, até que eu os traí. A ação de meu exílio ocorreu durante uma viagem minha e de um grupo, e Jill estava nele. Tentei lhe explicar que havia tomado a decisão certa quanto a fugir e prosseguir com minha missão... Ela não acreditou, porém... Deixou-me ir.

– Você fugiu? De onde?

– Eu salvei uma vida nessa fuga e perdi a confiança do meu povo por isso. – Ele não mencionou qualquer detalhe, mas Serafine contentou-se com aquilo. O Atyubru ainda não se sentia à vontade para falar sobre o que o condenara ao banimento, e ela se lembrou da promessa que ele havia feito.

– E você só encontrou Jill novamente semanas atrás? Deve ter sido doloroso ficar separado de uma, hã, amiga tão próxima... – comentou Serafine, tentando usar as palavras certas para não causar outra reação nervosa no guardião. Ele assentiu, parecendo sofrer com a afirmação.

– Todos esses anos foram muito difíceis para mim – disse o felpudo. – Se não fosse por Lonel e Ývela, eu teria sucumbido a uma tristeza profunda. Eu jamais voltaria atrás na minha decisão, pois acredito que ela é digna o suficiente, mas adoraria reviver os anos em que era um Atyubru livre. Gostaria de poder retornar à época em que eu vivia treinando combate com Jill, Urir e tantos outros amigos.

– Sinto muito – ela disse com sinceridade. – Mas sabe... Você ainda pode treinar com uma amiga. – Um sorriso sincero surgiu no rosto do guerreiro, e ele pareceu se animar. Encarou Serafine como quem encara um grande amigo e fez uma ligeira reverência.

– Obrigado por essa conversa, milady. São poucas as criaturas com tanta consideração quanto a senhorita, e eu fico honrado em ser considerado seu amigo – Serafine imitou a reverência dele quando ficou em pé.

– E eu ficaria honrada se você me concedesse um duelo, caro guerreiro. Jarek garantiu que os truques que me ensinou são páreo para derrotar um orelhudo. – Guillian armou uma expressão incrédula. Com um aceno, ele aceitou seu desafio e rapidamente desembainhou a espada. Serafine fez o mesmo e logo as lâminas se encontraram.


***


Serafine acabara de tomar banho e se trocava quando alguém bateu na porta de seu quarto. Terminou de colocar o vestido e caminhou até a porta, dando de cara com um Mestre bastante impaciente.

– Pois não?

– Vamos logo – exclamou ele.

– Vamos para onde?

– Treinar! Não acha que só porque sairemos em viagem amanhã deixaremos nossos treinos de lado. – Serafine bufou em resposta, mas assentiu.

Caminharam em silêncio até o rio, Serafine sempre atenta aos detalhes à sua volta. A floresta parecia bem menos viva, como se estranhas sombras emergissem de todos os cantos. Talvez a invasão daqueles seres terríveis a estivesse afetando. A noite estava bastante fria para aquela época do ano, gerando uma espécie de neblina baixa em meio aos troncos que cercavam a região. Serafine deixou sua mente vagar até aquelas dezenas de soldados que marchavam, juntamente com outras dezenas de Atyubrus, até o acampamento. Eles atacariam durante a noite, pois todos tinham velocidade o suficiente para alcançar a área em algumas horas. Os Atyubrus, tão velozes quanto os elfos, atacariam simultaneamente pelo lado oposto.

Ývela receberia o aviso de quando poderiam partir. Como criatura sobrenatural, ela tinha um poder psíquico capaz de alcançar outras mentes. A loira, aliás, estava sentada bem próximo à margem do rio, com Guillian ao seu lado, quando Serafine chegou para o treino.

Os olhos azuis de Ývela estavam fixos em algo além de sua visão, como se ela não estivesse consciente. Guillian adiantou-se até Serafine antes que ela interrompesse sua guardiã.

– Ývela está tentando contatar Jarek – Serafine encarou-o com curiosidade. – Ela pode criar uma conexão mental com algumas criaturas deste mundo. Tem a habilidade de encontrá-los onde quer que estejam e, contanto que essa mesma criatura saiba de seus poderes, ela pode responder. Foi assim que eu soube como encontrá-los depois de Águas Claras.

Serafine avaliou a figura de Ývela e observou que aquela paralisia em seu olhar só podia ser em decorrência desse poder. Ela estava tentando chamar Jarek, mas por que ele não respondia? A face da pequena guerreira estava congelada em uma expressão séria, os lábios levemente franzidos por uma possível frustração.

– Vamos! – o Mestre interrompeu qualquer outro pensamento de Serafine. Puxando-a pela bainha do vestido, arrastou-a até a metade do rio, onde a água gelada causou calafrios na pele da morena, que desejou intensamente ter vestido algo mais quente.

A lição era bem mais complexa do que Serafine imaginou que seria. O Atyubru mandou que ela duelasse com ele. Lutar usando todos os ensinamentos que ele havia lhe passado... Enfrentá-lo até que um deles se rendesse. Indignada, ela protestou, mas não recebeu piedade. O Mestre lançou um jato de água contra a garota, encharcando-a completamente. Calafrios a sacudiram enquanto as gotas geladas escorriam por seu corpo.

Com uma carranca de indignação, Serafine encarou-o, procurando encontrar controle para invocar seus poderes. A água ao seu redor estava calma e não mostrava indícios de que se ergueria para obedecê-la. Aquele rio adorava vê-la frustrada.

Fechou os olhos no exato momento em que o Mestre invocava uma figura esguia. Era uma espécie de guerreiro, que portava uma longa espada, e avançou com rapidez na direção de Serafine. Assustada, ela viu-se sem qualquer arma para enfrentar a criatura aquática. A lâmina feita de líquido pareceu-lhe afiada, e a garota não quis comprovar se aquela suposição era verdadeira.

Quando ele estava a apenas um metro de distância, desceu a lâmina em sua direção e, por impulso, Serafine mergulhou. O rio não era fundo naquela parte, mas ela nadou para longe até que seus pés não mais alcançassem a terra debaixo da água.

Estava prestes a emergir quando viu o mesmo soldado mágico à sua frente. Ele não se desfizera ao mergulhar, como deveria acontecer, e parecia ainda mais resistente do que antes. Serafine encontrou-se num momento de puro choque, mas, com agilidade, conseguiu desviar de um golpe desferido pela criatura.

Emergiu no mesmo instante em que o guerreiro. Ele não tinha rosto e nem mesmo voz, mas, com seu espírito conectado ao elemento, ela conseguia vislumbrá-lo como um ser humano.

– Isso é um duelo, Serafine. Lute! – A voz do velho Atyubru chegou aos seus ouvidos um tanto distante. Ela estava bem mais afastada da margem e batia os pés com rapidez para não submergir. O fundo do rio estava fora de seu alcance.

Serafine tentou se lembrar do combate que tivera mais cedo com Guillian. O Atyubru havia vencido, mas a menina o pegara de surpresa com uma série de golpes bem orquestrados. Quase o derrubara, mas perdeu a espada quando tentou saltar em uma das árvores, e Guillian acabou vencendo a luta.

Infelizmente, sua tentativa de concentração estava se tornando frustrante. Serafine não conseguia invocar seus poderes enquanto tentava se esquivar dos golpes daquele guerreiro. Após longos instantes de nado e saltos para fugir, ela ergueu uma das mãos e pediu um tempo ao Mestre. Imediatamente, o soldado se desfez.

– O que há de errado? – Havia irritação na voz rouca do felpudo, mas Serafine não se importou. Ofegante, nadou até a parte rasa e sentou-se na margem do rio. Não gostaria de voltar a fugir de um guerreiro daqueles, e estremeceu ao perceber quão patético havia sido seu desempenho.

– Não sei. Eu não consigo me concentrar – confessou. O Mestre analisou-a com atenção, buscando alguma explicação para aquele comportamento. Nem mesmo Serafine sabia o que havia de errado.

Talvez fosse a preocupação pelo ataque, pois sua atenção ainda estava em Ývela e em qualquer reação que demonstrasse um sinal de Jarek. Ou talvez fosse apenas medo. Medo do futuro que a aguardava. O medo que vez ou outra conseguia ser controlado, mas que parecia cada vez mais preso à sua vida. Serafine encarou a guardiã e encontrou o mesmo olhar paralisado de antes.

– Deixe-a respirar, pai. – Guillian, que estivera quieto até aquele momento, pediu com educação. O Mestre lançou um olhar severo, mas não surtiu efeito algum. O guardião continuou firme.

– Ela precisa treinar. Já tivemos essa conversa milhares de vezes, e é sempre a mesma coisa! Você deve se tornar uma guerreira poderosa ou jamais destruirá aquela que vem para destruí-la. – Foi uma afirmação convicta, jogada contra Serafine, mas ela ficou impassível. – Vejo avanço quando você se concentra e se dedica, mas sua atenção sempre foge ao essencial. Você se preocupa com coisas que estão além do seu alcance.

Suspirando, Serafine assentiu. Tentou manter sua mente ligada em algum outro detalhe naquele lugar e, mais ainda, tentou afastar os pensamentos daqueles que haviam partido. Infelizmente, os rostos de Jarek, Jill e tantos outros ainda roubavam-lhe a atenção. Assim como o medo prosseguia em seu âmago.

Ao olhar à sua volta, Serafine encontrou aquela paisagem estranha. A floresta continuava mais sinistra do que antes, o silêncio presente era sepulcral. Não havia qualquer ruído. Era como a tranquilidade que se arrastava antes de uma grande tempestade, e tal comparação gerou um calafrio na espinha da morena. Ela ergueu-se, procurando por algo que a tivesse amedrontado. Só encontrou aquela fraca neblina pairando sobre o chão e o ébano presente mais ao fundo da floresta.

O Mestre notou sua inquietação, mas ficou calado.

E, então, em meio a todo aquele silêncio que já estava gerando nervosismo em Serafine, todos se sobressaltaram com um único som. Virando-se na direção de onde vinha o ruído, Serafine encontrou Ývela de pé. Seu olhar, outrora paralisado, agora estava em pânico. Ela havia gritado, mas o não de medo ou de raiva. Era choque.

Serafine imaginou coisas terríveis acontecendo no ataque. Jarek e Jill poderiam estar mortos. Todos poderiam estar mortos. Os monstros os haviam atacado? O ataque não conseguira surpreendê-los, talvez. Eram criaturas muito sensitivas, aliadas das Trevas, não poderiam cair numa armadilha daquelas, poderiam?

– O que houve? – foi Guillian quem perguntou. Ývela arfou, levando as mãos à cabeça.

– Eles... – ela ofegou, a garganta travando como se a notícia fosse pesada demais, e Serafine fez o mesmo. Eles não podiam estar mortos! – Caíram em uma armadilha.

– Quem?

– Os nossos. Não há ninguém na floresta! – ela gritou e levou as mãos às orelhas, como se algo reverberasse por sua mente. Serafine aguardou, tentando entender o que se passava. – Jarek me disse que...

Mas não houve razão para mais explicações.

Serafine congelou pelo som que vinha do outro lado da margem do rio, o mesmo lugar em que ela vira Mahiry dias atrás. Virou o rosto naquela direção, assim como todos os presentes, quando um uivo alto ecoou por toda a floresta. Foi questão de segundos até que uma figura esguia se destacasse em meio às árvores e, lentamente, dezenas e dezenas de figuras iguais a ele surgiram. Suas gargantas espalhavam um horrível murmúrio ao vento. Com sua visão fortalecida, Serafine viu em seus rostos expressões assassinas. Expressões monstruosas.

– Eles estão aqui – Serafine completou a frase por Ývela, no mesmo instante em que o ataque começou.


Capítulo 29

Fulgor de Chamas

 

 

Serafine e os outros foram pegos de surpresa. Correram floresta adentro, rezando aos Deuses para que os Lobisomens encontrassem algum empecilho durante a travessia do rio.

Isso não aconteceu.

Seus corpos transpassaram a profundidade da correnteza, cruzando em poucos segundos a distância que antes parecia tão longa. Os monstros haviam invadido a terra sagrada. Ývela conseguiu enviar uma mensagem psíquica a Lonel, mas todos ali sabiam que não havia defesa suficiente para conter o batalhão que saía da mata fechada.

Ývela também avisou a Jarek o que estava acontecendo, mas eles demorariam a chegar ali, e isso só aconteceria se não encontrassem algum impedimento. Serafine imaginou que os Lobisomens não seriam tolos de marchar com todo o seu batalhão para Líriel. Eles sabiam sobre os guerreiros que haviam partido. Com certeza haveria alguma armadilha esperando por Jarek e pelos outros. Por enquanto, os poucos protetores daquela região estavam sozinhos.

Serafine perguntou-se como tal ataque podia estar acontecendo. Lonel e os outros estavam seguros de que as provas eram incontestáveis. A informante havia mentido, então? A pessoa em que Lonel confiara era tão ruim quanto a falsa Grímena e os havia traído? Com tantas traições assim, era difícil confiar em qualquer criatura que entrasse em seu caminho.

– Vão buscar ajuda, eu os manterei ocupados! – O grito veio do Mestre. Ele parou de correr e ergueu as patas. O rio atendeu ao seu comando.

Dezenas de soldados foram erguidos, portando lanças e espadas. Surgiu ali um batalhão poderoso o suficiente para distrair os lobos, mas o Mestre pareceu fraquejar. Era magia demais, e Serafine não sabia quanto tempo ele aguentaria contra tantos monstros.

Os uivos daqueles que os perseguiam puderam ser ouvidos quando o combate começou. Os soldados de água eram tão reais quanto os próprios Lobisomens. Serafine conseguiu ouvir o som de suas lâminas engajando-se na batalha.

Acompanhada dos outros, seguiram em frente, deixando o Mestre desprotegido naquele lugar, ou partindo para um lugar desprotegido, já que os Lobisomens espalhavam-se por todos os cantos. Serafine avistou um grupo de mais de dez monstros invadindo o Castelo, ecoando seus rosnados noite adentro.

– A sala das armas! – Ývela avisou Guillian. O Atyubru assentiu. Serafine recordou-se de que tinha um arco e diversas flechas, que estavam em seu quarto. Não havia possibilidade de subir na torre para buscá-los.

– Lonel! – ela chamou de repente. O elfo estava sozinho numa das torres e, por mais sábio que fosse, Serafine temia por ele. Ývela compreendeu quando a morena se separou do trio e partiu na direção da torre em que vira Lonel entrar. O elfo já sabia do ataque, e ela rezava aos Deuses para que já tivesse saído dali.

Serafine usou sua velocidade normal para chegar até lá, já que não sabia quando precisaria dos poderes sobrenaturais. Não imaginava o que faria caso fraquejasse ou passasse mal durante a luta. Os Lobisomens que se encontravam no pátio usavam suas armas para destruir tudo em seu caminho. Estavam determinados a causar um pandemônio naquele recanto de paz, fortificados pelas sombras.

Se ao menos ela tivesse suas flechas...

Assim que alcançou a escadaria, encontrou a característica escuridão. Fechou a porta com força e iniciou a subida. Lonel estava parado em frente a uma das janelas, trazendo algo em suas mãos, quando Serafine o encontrou. Ofegante, ela puxou-o pelos braços, mas o elfo permaneceu parado.

Ele encarava o caos que começava a se espalhar lá embaixo com uma culpa excessiva. Serafine compreendeu o que ele sentia. Lonel achava que a invasão era responsabilidade sua. Havia confiado naquela espiã e deixado o Castelo desprotegido. Mas bastou um olhar para Serafine constatar que ele também estava em choque, pois aquelas criaturas estavam pisando em um território sagrado, indigno para seus corações tocados pelas sombras. Estavam deturpando o equilíbrio que existia ali. Estavam ofendendo aos Deuses.

– Vamos. – Serafine puxou o elfo pelo braço. Só então viu que ele abraçava o livro que havia encontrado na biblioteca dias atrás. Aquele com o familiar símbolo do Sol.

– Você encontrou isso na biblioteca? – Mesmo com a pressa de correr dali, Serafine acenou positivamente. A curiosidade se alastrou por sua mente, enquanto uma vibração indicava que sua memória se recordava daquele símbolo. – Sabe como é raro alguém encontrar esse livro?

– Por que seria?

– Ele contém ensinamentos mágicos escritos por todos os Magos desde o primeiro deles. – Lonel franziu o cenho, direcionando seu olhar para o objeto em suas mãos. – O livro a encontrou por algum motivo, Serafine. Guarde-o bem.

– Mas... – ele não lhe deu chances de falar mais nada. Puxando-a pelo pulso, entregou-lhe o livro e seguiu para as escadas com súbita rapidez. Serafine fez o mesmo trajeto, deixando sua mente absorver o que lhe fora dito. Como o livro poderia tê-la encontrado? Livros não podiam encontrar pessoas! Com um suspiro, ela se recordou de todas as coisas irracionais que vinham acontecendo e esqueceu o assunto.

Na saída da torre, Lonel ofegou pelo susto. Um Lobisomem acabara de abrir a porta, rosnando furioso para eles. Empunhava um machado coberto de sangue.

– Criatura das Trevas! – Lonel ergueu o cajado que sempre carregava consigo e apontou-o para o monstro. Uma luz arroxeada saiu da ponta da peça e atingiu em cheio o peito da criatura, que foi lançada longe, caindo sobre um punhado de pedras.

Serafine distanciou-se ao constatar que o elfo conseguia se cuidar sozinho e partiu para encontrar seus guardiões. Antes, porém, escolheu uma sala vazia e escondeu seu livro atrás da porta. Tinha medo de que os Lobisomens o achassem, mas não podia lutar com um livro nas mãos. Quando encontrou Ývela, a guerreira estava acabando de decepar a cabeça de um dos monstros. O sangue jorrou pelo chão de pedra polida, marcando o branco puro com a cor vibrante.

Uma espada foi lançada para Serafine e ela a agarrou habilmente. Pôde ver Guillian lidando com um Lobisomem albino de quase dois metros e meio e, mesmo com a diferença de altura, o orelhudo levava a melhor.

Utilizando uma lâmina prateada, ele arranhou diversas partes do monstro enquanto se desviava dos golpes desferidos pelo gigante. Serafine alcançou-os, lançando sua espada contra a nuca da criatura distraída. Uivando pela dor, o Lobisomem caiu de joelhos e teve a cabeça decepada pela morena.

Guillian sorriu satisfeito.

– Formamos uma bela dupla, milady! – Ele correu para o caos. Ývela havia partido para a floresta, onde o Mestre ainda detinha boa parte do batalhão de gigantes. Serafine fez o mesmo, procurando nos mortos alguma aljava com flechas. Sentia-se muito melhor atirando do que duelando. Não seria páreo para uma investida daqueles monstros.

Pensou em Jarek e lembrou-se dos treinos que tivera com ele. Por mais alto e forte que ele fosse, não conseguia ter a flexibilidade que a garota tinha. Serafine geralmente se desviava dos golpes do guerreiro, assim como Guillian fizera com seu oponente, o que poderia ser utilizado na batalha. Se encontrasse um inimigo, usaria tudo que havia aprendido com seu guardião.

Foi com irritação que percebeu o plano dos Lobisomens: eles aproveitavam a escuridão e a neblina crescentes para se infiltrarem na floresta. Dezenas de monstros corriam para as sombras, aguardando seus oponentes. Os poucos elfos guerreiros que estavam no Castelo não conseguiriam segurar aquele ataque até que os reforços chegassem. Se a fortaleza fosse tomada, dificilmente a recuperariam. Os colossais muros que circundavam o palácio eram impenetráveis, e uma vitória das bestas sanguinárias resultaria na perda daquela região.

Quando os aliados chegassem, seria tarde demais. Eles viriam pela mesma área em que os monstros se escondiam e certamente seriam pegos de surpresa.

Serafine não deixaria que os Lobisomens triunfassem. Antes a honra da luta do que a covardia da fuga. Ela iria atrás deles. Não desistiria. Lonel era um dos que jamais abandonaria a luta. Sua imortalidade e força não eram invencíveis, já que seres como ele podiam morrer se fossem feridos, mas sua vontade de auxiliar os companheiros excedia o medo da morte.

– Serafine, cuidado! – A morena ouviu o aviso tarde demais. Um lobo saltara de cima da árvore bem atrás dela, lançando-a longe com um golpe. Ela sentiu sua cabeça girar ao bater contra o tronco, mas seu espírito fortalecido compartilhou forças para o início do combate. A vista embaçada entrou em foco.

O Lobisomem à sua frente possuía pelagem espessa, saiote de couro amarrado na cintura, músculos proeminentes e olhar assassino. Carregava consigo uma espada curva, como aquela com a qual Jarek às vezes treinava.

Ele dizia que aquela era uma arma de combate frontal, sua resistência se dava a ataques diretos. Se Serafine usasse a agilidade, conseguiria transpor a defesa do monstro. Por mais que a arma fosse assustadora, não conseguia bloquear ataques laterais, ainda mais se empunhada por uma criatura que só queria degolá-la.

A morena avançou, erguendo a espada acima de sua cabeça. Seu golpe foi esperado pelo Lobisomem, mas não o seguinte. Após o bloqueio, a criatura tentou atacá-la, mas Serafine girou o corpo e saiu de seu alcance. A lâmina em suas mãos entrou em ação e atingiu o lado esquerdo do corpo do lobo. Com um urro de dor, o monstro balançou freneticamente sua espada na direção da garota, que saltou longe e correu, veloz, enquanto era perseguida.

Avistou um galho baixo o suficiente para ser alcançado e iniciou uma escalada na árvore escolhida. O monstro, ainda atordoado pelo golpe, não conseguiu escalar com a destreza da morena. Quando ela se encontrou numa distância segura, ergueu a lâmina da espada, mirou no lobo cambaleante e lançou a arma em seu ombro. Com um uivo alto, a besta caiu sem vida após poucos instantes.

A prata era o horror para as criaturas das Trevas. Serafine jamais se esqueceria disso.

Serafine viu-se em meio à densa escuridão da floresta. Sabia que uma boa quantidade de Lobisomens estava escondida naquela região, aguardando por oponentes. Se conseguisse pegá-los de surpresa, talvez aniquilasse alguns. Gostaria de voltar e auxiliar o Mestre, mas sabia que ele estava se saindo melhor do que todos os protetores do Castelo.

As folhas no chão estalavam sob os pés de Serafine, e então o espírito agiu sozinho em seu auxílio. Seus passos passaram a ter peso de plumas, e os borrões das árvores ficavam visíveis enquanto ela buscava por cheiros ou barulhos que indicassem um Lobisomem escondido. O tempo perdeu o sentido para Serafine, que só se concentrou na caçada. Sua sorte veio de repente, quando se deparou com uma das criaturas espreitando atrás de uma árvore. Sem lhe dar chance de reagir, a morena saltou sobre seu pescoço e cortou sua cabeça com a espada de prata.

Mais duas outras criaturas foram pegas desprevenidas pela garota antes que ela mesma tivesse fosse surpreendida. Um monstro albino saltou de trás de uma das árvores e a atacou. Portava um enorme punhal que por pouco não foi cravado no peito de Serafine. Ela estacou pela surpresa e abaixou-se, recebendo um corte no canto direito do rosto.

Raivosa pelo ferimento, ela atacou seu oponente com vários golpes desenfreados. Um deles decepou a mão que portava o punhal, mas não impediu o lobo de agarrar seu pescoço.

Serafine engasgou pela sensação de sufocamento e deixou a espada cair. A garganta do monstro vibrou com uma gargalhada sinistra. Se concentrar na dor atordoava sua mente, então ela procurou uma saída. Fechou os olhos, buscou concentração e o espírito imediatamente respondeu. Seu braço direito formigou pela força e, sem pensar, acertou um soco poderoso no rosto da besta.

O Lobisomem a soltou no mesmo instante em que o estalo de sua mandíbula sendo quebrada foi ouvido. Serafine ofegou pela súbita demonstração de força, mas não hesitou. Agarrou a espada caída e cravou-a bem no peito do gigante. Depois que seu corpo despencou, a garota encarou o próprio punho.

Não havia sinal de ferimento e nem de um crescimento dos músculos, o que não lhe pareceu comum em vista do soco que havia desferido contra o monstro.

Um barulho longe dali chamou sua atenção. Parecia um trovão, mas as nuvens no céu não brilharam com um raio, e o som não acabou rápido como deveria. Aquele rugido prosseguiu lentamente, parecendo cada vez mais próximo. Junto dele, sons de coisas despencando foram ficando mais evidentes. Serafine apurou os ouvidos. Foi quando um brilho alaranjado foi avistado ao longe na floresta.

No começo, pareceu a mesma luz do centro dos jardins do Castelo, produzida por aquela bola de cristal. Abrangia uma grande área e direcionava seus raios para todos os cantos, mas tinha tons de um vermelho vivo, e o som do crepitar ficou ainda mais claro conforme os minutos se passavam.

Serafine ergueu a espada e correu, sem coragem para averiguar o que causava aquele som, e então, um pouco mais longe do que esperava, seus olhos foram tomados pelo brilho flamejante de um enorme incêndio.

O calor infernal chegou tão rápido quanto os sons assustadores provocados pelas chamas. Ela nunca havia visto um incêndio de perto, quanto mais aquele que, em segundos, já tomava as árvores ao seu lado. As chamas consumiam áreas enormes em instantes, devastando a vida daquela floresta com seu brilho ofuscante.

Serafine nem percebeu que tinha estacado pelo pânico quando algo quente bateu em seu ombro. O topo da árvore acima de sua cabeça estava tomado pelo fogo e um galho caiu sobre ela, produzindo, além do hematoma, uma queimadura agonizante. O fogo continuou se alastrando com rapidez, movido por uma força sobrenatural. Troncos despencavam no chão, enquanto o rugido alto provocado pelas labaredas ecoava em todas as direções. Serafine estremeceu ao perceber que o incêndio começava a cercá-la.

O espírito fez Serafine subitamente compreender: aquele não era um incêndio comum. As chamas a perseguiam! Assustada, começou a correr o mais rápido que podia. Pelo que pode avistar, as vastas labaredas não vinham desde o início da grande floresta. Tinham começado em um vale próximo da curva do rio, alguns quilômetros longe de onde estava.

Seus pés moviam-se com precisão enquanto as chamas alcançavam tudo ao seu redor. Onde quer que fosse, via-se cercada pela fumaça e pelas coloridas línguas de fogo. Não havia saída. Quanto mais avançava, mais se encontrava encurralada.

– Ývela! – Recorreu ao conhecimento que adquirira sobre o poder psíquico da guardiã e tentou contatá-la. Sem a certeza de que tinha sido ouvida, ela gritou novamente. – Ývela! Tem um incêndio! – Sua própria voz reverberou em sua mente, desesperada para que a ondina a escutasse.

Estava longe demais do Castelo, mas sabia que a fumaça já podia ser vista em meio ao manto da noite, e a luz alaranjada produzida pelo fogo também. Ela grunhiu pela dor que latejava em seu ombro ferido, além do corte em seu rosto, mas prosseguiu com sua corrida. Avistou uma saída alguns metros à frente e suspirou de alívio, mesmo não sabendo onde aquele caminho daria.

Com um grito de surpresa, parou onde estava. As chamas contornaram o local e estenderam-se à frente, bloqueando a saída. Serafine tossiu pela fumaça que a cercava e, mesmo com a visão apurada, não conseguiu enxergar outro lugar para ir.

Uma risada ecoou em meio às chamas, como se elas estivessem vivas. Serafine arfou, buscando pelo dono daquela gargalhada, mas não encontrou ninguém. Deu alguns passos à frente, mas voltou assim que um galho quebrou e caiu aos seus pés. O crepitar furioso das chamas chegou aos seus ouvidos cada vez mais forte e, de algum modo, Serafine conseguiu ouvir mais do que o simples som natural do fogo.

Havia algo sobrenatural no modo como as línguas de fogo a rodeavam.

– Finalmente a encontrei, Serafine.

Era uma voz assustadoramente familiar. A garota reconheceu o tom usado pela falsa Deusa em Águas Claras, mas mudado o suficiente para se tornar sinistro. Tinha desespero e ferocidade, exibindo também euforia. Ela cogitou a ideia de ser Sharowfox, mas não tinha certeza. Eram suposições de uma mente entorpecida pela fumaça que a rodeava.

Tossindo, ela abanou as mãos para espantar a fumaça sufocante. O incêndio estava mais forte, o que significava que os outros já o haviam visto, mas Serafine não tinha como escapar.

Ela tentou falar mais alguma coisa para Ývela, mesmo sem saber se ela a ouviria, mas nada lhe veio à mente. Sua boca recusava-se a abrir e engolir mais fumaça do que já estava sendo obrigada. Fechou os olhos e tentou encontrar uma solução, mas não conseguiu pensar em nenhuma.

Queimaria, sozinha ali. Sua velocidade e força de nada funcionavam, e a água estava distante demais para ser invocada. As chamas a haviam empurrado para uma armadilha, arrancando-lhe qualquer esperança de continuar viva.

Quando seus joelhos cederam e a tosse ficou insuportável, Serafine imaginou que fosse o fim chegando. Sua mente estava em um torpor alucinado. Um círculo suficientemente grande foi deixado à sua volta, de modo a fazê-la sofrer com a lentidão da morte.

Ficou ainda mais certa de que morreria quando alguém atravessou as chamas na sua direção. A criatura não fora atingida pelas labaredas, e ela esperou pela dor de um golpe. Mas a voz que inundou sua audição foi calorosa, despertando a jovem para o seu guardião.

O rosto dele, suado e marcado por um pouco de sangue, ficou visível quando Serafine o encarou. Havia um sorriso mordaz enfeitando seus lábios e ela não tinha palavras para explicar o quanto estava grata por vê-lo.

– Eu sabia que precisaria salvar sua vida de novo.


Capítulo 30

Sanzur

 

 

Serafine arfou quando ouviu a voz familiar de Jarek. Ela abraçou-o com força ao ser erguida do chão, esquecendo-se da dor no ombro e no rosto. A expressão preocupada do guerreiro foi a melhor coisa que poderia ter visto naquele momento. Enquanto ele caminhava para longe das chamas, distanciando-se do lugar antes cercado por elas, Serafine pegou-se imaginando como ele estava inteiro depois de ter atravessado o fogo. Jarek não exibia sinal de queimadura ou ferimento, apesar de estar suado e aparentar exaustão. Se ele havia corrido para o falso acampamento e voltado em poucas horas, fazia sentido estar tão cansado.

Quando alcançaram o lado de fora da floresta, Serafine foi posta no chão. O ar fresco chegou aos seus pulmões, e ela tossiu para se livrar da fumaça que havia inalado.

Ergueu os olhos quando um grupo apressado passou por eles em direção ao Castelo, e reconheceu mais de uma dezena de Atyubrus, todos portando armas mortíferas. Eles urraram, mostrando aos Lobisomens que haviam chegado para a batalha.

– Por que se enfiou naquela floresta sozinha? – Jarek esbravejou assim que Serafine recuperou-se da tosse. Havia indignação em sua voz. Ela lançou-lhe um olhar nada gentil, mas respondeu com um tom vitorioso.

– Matei vários Lobisomens sozinha. Não sabia do incêndio.

– Eles trouxeram uma Feiticeira – Jarek resmungou, desembainhando a espada. A lâmina brilhou devido às chamas que se erguiam atrás deles. O fogo se espalhava na direção contrária do Castelo, atingindo cada vez mais a floresta. – Elas conseguem controlar o fogo.

– Precisamos achar o Mestre, ele pode deter esse incêndio – Serafine exclamou, puxando Jarek pelo braço. Enquanto se apressavam na direção do rio, a garota avistou vários grupos de elfos combatendo os furiosos Lobisomens.

A floresta estava tomada pelas labaredas. Não podiam fazer nada para impedir que a devastação avançasse sobre as árvores, porém, de alguma maneira, o ritmo das chamas estava diminuindo. Serafine acreditava que os espíritos milenares daquela área estivessem combatendo as chamas. Podia sentir a vibração emanando da floresta, como se parte dela estivesse consciente e enraivecida pela invasão das Trevas. A força das sombras já não era tão densa ali quanto havia sido momentos antes.

Os monstros não contavam com a aparição de aliados naquele ataque surpresa. Os batalhões de felpudos e de imortais cresciam sempre mais, vindos de uma área da floresta ainda não atingida pelo fogo.

Serafine sorriu de alívio ao ver Jill lutando com um trio de Lobisomens ao lado de Guillian. Os dois tinham uma sincronia perfeita, um completando o que o outro havia acabado de fazer. Se eles não estavam juntos, Serafine podia jurar que tinham alguma conexão. Não precisavam nem se olhar para saber como dar sequência ao golpe do outro. Era algo impossível de se realizar sem uma forte conexão.

– Serafine, abaixe! – Uma voz altiva chamou a atenção da morena e, por reflexo, ela obedeceu. Uma machadinha zuniu acima de sua cabeça e acertou um Lobisomem que a perseguia. Ývela, de pé numa rocha próxima ao caminho para o rio, soltou uma alta gargalhada. Ela estava suja de sangue e poeira, mas o seu rosto continuava jovial. Ela saltou na direção da besta caída e lhe decepou a cabeça antes que despertasse, uma vez que a machadinha não era de prata.

– O incêndio... – Serafine murmurou, e a loira assentiu.

– Não encontrei o Mestre, mas tentarei dar um jeito. – Quando Serafine não entendeu, Ývela sorriu. – Sou uma criatura das águas, esqueceu?

E ela saiu correndo dali, com uma graciosidade que só mesmo Ývela poderia ostentar durante uma batalha. Jarek, que lutava com um Lobisomem negro, acabou com a besta e voltou-se para Serafine. Seu rosto exibia a adrenalina desencadeada pela batalha.

– Vá atrás do Mestre, eu te cubro! – E partiu para cima de uma dupla de Amaldiçoados. Aproveitando que aquela parte da floresta ainda não tinha sido alcançada pelas chamas, Serafine atravessou-a para chegar mais rapidamente ao rio. Logo conseguia ouvir os sons das águas em meio aos urros da luta.

Estacou na margem, atônita. Seus pés mergulharam na água gelada, que parecia mais agitada do que o normal. Em meio às ondas, iluminadas pelo brilho alaranjado das chamas, duas figuras duelavam.

O Mestre estava flutuando sobre o rio. Havia em seu rosto a expressão mais solene e centrada de todas, como se o pandemônio cobrindo Líriel em nada o afetasse.

À sua frente, moldada pelas chamas que comandava, estava outra figura. Assim como os soldados de água criados pelo Atyubru, ela não tinha rosto, mas seu corpo curvilíneo indicava ser uma mulher. Os cabelos desciam até a cintura, e cada centímetro do seu corpo era feito de fogo. As labaredas balançavam ao seu redor, criando a aura avermelhada sobrenatural.

Ela notou a chegada de Serafine e parou o duelo. A espada flamejante que portava desapareceu, deixando para trás um rastro de fumaça.

O próprio Mestre esqueceu-se da disputa e virou-se para a aprendiz. Parte de seu rosto estava queimada, um dos olhos nem se abria, mas havia força em sua atitude. Ambos, mulher de fogo e Mestre, flutuavam sobre as águas.

– Serafine... Eu a aguardava. – Repentinamente, a voz assumiu um só tom e Serafine foi levada ao sussurro em meio ao incêndio da floresta. Era a mesma mulher.

– Quem é você?

– Aquela que você tanto teme. Acho que já a alertaram sobre mim. – A doçura na voz se tornou pegajosa. – As Trevas são minhas filhas, e o caos é o meu reino.

Serafine engoliu em seco e tentou passar uma imagem de força, mas suas pernas fraquejaram ao compreender que aquela figura flamejante era uma representação de Sharowfox. A Feiticeira não estava ali, mas era ela quem controlava o incêndio, da mesma forma que controlava a fantoche de fogo.

– Mestre... – Serafine hesitou, sem saber o que fazer.

– Cuide dela, Sanzur, mas com carinho. – A voz altiva da mulher chegou aos ouvidos de Serafine muito rápido.

E então a garota foi arremessada longe.

Mãos fortes com garras afiadas se cravaram em sua pele e a jogaram alguns metros distante do duelo, livrando-a da visão do Mestre assustado pela brusquidão do ataque.

Quando recobrou seus sentidos, guinchando pela dor em seu ombro, Serafine ergueu o olhar para a criatura que havia sido mandada até ela. Um ofego involuntário escapou de seus lábios ao reconhecer o monstro.

O Lobisomem ruivo que havia assassinado seu pai estava parado a alguns metros de distância. Seus dentes afiados se exibiram em um sorriso mortal. Os olhos escuros refletiam a luz do incêndio, o que acabou despertando na morena uma terrível sensação de pânico.

Não havia hesitação nos passos da criatura. Conforme o lobo se aproximava, Serafine podia sentir a energia emanando de seu corpo. Ele ansiava por sangue. Pura maldade brilhava em seu olhar assassino.

– É bom encontrá-la novamente, Serafine. – A voz, misturada ao rouco grunhido animalesco, saiu pela garganta do lobo. – Você é muito escorregadia...

– Você vai me matar? – Tentou distraí-lo. Havia deixado a espada cair no meio do incêndio e encontrava-se sem armas para lutar com aquele gigante. Mas as mãos dele também estavam vazias. O lobo não estava ali para lutar. Estava ali para levá-la.

– Tenho outras ordens, infelizmente. Mas, assim que você não for útil à minha senhora, pessoalmente apertarei esse lindo pescoçinho até que o último indício de vida desapareça de seu corpo... – A ameaça causou um calafrio na garota, mas ela ficou rígida. Não demonstraria medo diante daquele monstro. – Até lá, minha Rainha deixou que eu me divertisse. A falta de um braço não causará danos aos planos que ela tem para você.

Serafine ergueu-se em um salto e, no instante em que ele se lançou contra o seu corpo, desviou e correu. Sua ideia era chegar até o rio, onde tentaria invocar as forças das águas, mas a exaustão se alastrava por seu corpo. Seus passos foram lentos demais e logo se viu içada pelo monstro. Ele agarrou seus cabelos e a puxou para trás com força.

– Quieta, ou arranco mais do que um braço! – A voz saiu carregada de uma felicidade doentia, e ele aproximou o seu rosto do da morena. Serafine encarou aqueles olhos escuros durante um longo tempo, vendo neles, além da alma cruel e assassina, um brilho curioso e incrivelmente familiar.

O tom principal das íris tinha traços azulados. Eram intensos e ela apostava que, em algum momento do passado, haviam sido cheios de vida.

Um uivo escapou dos lábios da besta quando aproximou a mandíbula do ombro ferido de Serafine. A ação foi impedida por uma flecha certeira, que cruzou o ombro de Sanzur e ficou enterrada ali. A carne chiou pelo contato com a prata, e o lobo soltou sua vítima, deixando Serafine cair.

Sem pestanejar, a garota se arrastou pelo chão e ficou de pé. Apesar das pernas bambas e fracas de medo, e mesmo sem a força concedida pelo espírito, Serafine conseguiu correr. Agradeceu aos seus guardiões por todas as vezes em que a fizeram atravessar aquele terreno, aumentando a sua resistência.

Precisava alcançar o rio para ajudar o Mestre.

Quando se afastou o suficiente para não ser alcançada pelo Lobisomem, virou-se para encará-lo. A besta estava uivando pela dor da flechada enquanto tentava ferir seu oponente. Jarek havia parado ali, portando uma espada prateada, e esgueirava-se das mãos furiosas do lobo conforme a luta prosseguia. Um sorriso discreto estampou o rosto de Serafine, e ela agradeceu aos Deuses por ter Jarek ao seu lado naquele momento.

Recordou-se da conversa com o guerreiro, quando Jarek dissera que conhecia a pessoa por trás daquele assassino e que o mataria pelas terríveis crueldades cometidas no passado. Serafine implorou para que as divindades dessem força ao guerreiro, para que conseguisse destruir aquela criatura.

Os dois lutaram ferozmente. Enquanto Sanzur parecia guiado pela fúria, Jarek tinha um toque de cautela em cada movimento. Ele realmente conhecia o Lobisomem. Seus golpes eram bem calculados. Serafine parou sua corrida, indecisa quanto a ficar e ajudar seu guardião ou alcançar o Mestre. Tinha o pressentimento de que Jarek precisaria da sua ajuda, assim como quando ele se atracara com o mesmo Lobisomem na Vila do Sol. Por mínima que tivesse sido sua intervenção, servira como distração.

Porém, algo que Serafine não esperava aconteceu, desviando sua atenção do duelo que ocorria a alguns metros de distância. Olhando para trás, ela viu o rio, e, nele, a disputa que prosseguia entre o controlador de água e a Feiticeira flamejante. Uma gargalhada alta ecoou por toda a área, alcançando até mesmo locais mais distantes. O próprio barulho da batalha pareceu diminuir durante aqueles instantes, deixando Serafine concentrada na criatura que soltava aquela risada.

A Feiticeira estava parada próxima do Mestre. Perigosamente próxima. Um de seus braços estava erguido, portando um escudo de fogo, e o outro não podia ser visto. Só quando se aproximou Serafine entendeu o porquê da gargalhada mortal. Sua espinha congelou e todo o seu corpo ficou paralisado, fitando a espada de fogo transpassando o corpo do velho Atyubru.

– Viu só, Serafine? O seu poderoso Mestre foi aniquilado! – a guerreira de fogo disse com sua voz carregada. A frase ecoou pela mente de Serafine, mas o assombro era forte demais para que ela retrucasse alguma coisa.

A cabeça do Mestre pendeu para frente e seu corpo pequeno foi solto no rio. Serafine pôde ver as águas abraçando a criaturinha, mas sua atenção estava vidrada na Feiticeira em chamas.

Uma faísca de ira começou a acender em seu coração, enquanto a impassível mulher de fogo mantinha seu rosto fixo no da garota. A fúria descontrolada alastrou-se pelo corpo de Serafine, a sensação de poder desestabilizando cada pensamento coerente, cada fio de controle que havia em sua consciência.

Seus punhos cerraram-se com tanta força que as unhas cravaram-se na própria pele. Os pés moveram-se em direção ao rio, mas a água não chegou a tocá-los. Serafine viu a correnteza arrastar com cuidado o corpo do desfalecido Mestre até a margem do rio, e ficou aliviada por ainda sentir a vida pulsando dentro dele.

Não era tarde demais.

– Não há esperança para aqueles que não entendem o poder das Trevas, criança!

Serafine ignorou o comentário da Feiticeira. Só queria destruí-la. Queria causar àquela criatura todo o sofrimento que vinha passando naquelas últimas semanas, que se iniciara com a morte de seu pai e de Mahiry, passava pela incerteza de onde estava sua mãe, e prosseguia na traição envolvendo a falsa Grímena e na a mentira da mulher em que Lonel confiara.

Não sabia de onde vinha a energia tomando todo o seu corpo, mas sentiu seu poder. Assim como quando controlara a água, aquela força pareceu se manifestar sozinha. Como o sangue que corria em suas veias, a energia pulsou em cada centímetro de seu corpo. Serafine sentiu a mente clarear, deixando todas as emoções de lado.

Toda a vibração que corria por seu corpo se expandiu e pulsou, criando uma barreira mágica ao seu redor, como a aura prateada que a contornava, brilhante. Diferente da luz avermelhada da Feiticeira, a de Serafine vinha do mais puro poder.

Serafine via muito e entendia pouco, com furiosa energia guiando suas ações. A Feiticeira de fogo recuou, intimidada pela aura circundando a escolhida dos Deuses. O poder emanando daquele espírito era esplendoroso e incontrolável. Aquela era uma força da natureza.

E a Feiticeira pagaria por ter provocado alguém com um poder tão vasto.


Capítulo 31

Espírito Provocado

 

 

Assim como não tinha consciência da força que emanava de seu espírito, Serafine também não sabia quão assustadora poderia ser a demonstração de seu verdadeiro poder. Todos imaginavam as maravilhas que o escolhido faria quando controlasse os quatro elementos, mas nunca haviam imaginado como seria presenciar uma batalha com o portador daquele espírito. Os Deuses haviam presenteado a sua essência com dons inacreditáveis, inimagináveis até para aqueles que conheciam a lenda. O Mestre ainda estava consciente quando vislumbrou a verdadeira dominação do elemento. A garota mantinha seu foco na Feiticeira, e havia uma fúria sem precedentes em seu olhar.

Se mais alguém assistisse aquilo, não acreditaria que se tratava de Serafine. Seus olhos estavam vidrados, ausentes. A garota fora dominada pelo espírito.

Ao invocar as forças do espírito, uma estranha explosão ocorreu. O Mestre teve de fechar os olhos, tamanha a luz que iluminou aquele espaço. As águas se agitaram debaixo de seus pés, aguardando as ordens. O Mestre, agonizando, sentiu o poder ascendendo do rio. Milhares de vozes ecoavam uníssonas em respeito à Serafine. Ela estava preparando um ataque.

A Feiticeira encarava a garota, parecendo avaliar as transformações que ela sofria. Mesmo sem a luz da Lua, os arabescos perolados adquiriam um brilho sobrenatural. Os de sua mão direita, um pouco mais azulados, ficaram expostos quando Serafine ergueu o braço. Não era nenhum movimento de invocação ou de dominação, ela apenas apontou a mão para a Feiticeira e parou.

Lentamente, em meio à calmaria depois da explosão de luz, o corpo da morena começou a erguer-se no ar. O vestido flutuava ao seu redor e a aura resplandecente seguia e circundava cada centímetro de seu ser. Ao ficar suficientemente alta, Serafine estacou. A Feiticeira afastou-se e aguardou.

Serafine respirou fundo e ergueu os dois braços dessa vez. O gesto seria inofensivo, não fosse a mudança no ar. Um silêncio arrepiante preencheu tudo ao redor, e até mesmo o incêndio que se alastrava pela floresta pareceu aguardar seu próximo movimento. O crepitar do fogo extinguiu-se no instante em que a jovem cantarolou em um som suave:

– Dix Aqua.

E a água ganhou vida.

Serpenteando lentamente, como se despertassem de milênios de descanso, redemoinhos ergueram-se juntos, circundando a figura de sua convocadora. As águas despertaram, seguindo as ordens da escolhida pelos Deuses. A força daquela invocação era muito maior do que qualquer outra que o Mestre já fizera.

Serafine continuou imóvel, encarando a criatura flamejante. No momento em que aqueles redemoinhos se ergueram, assumindo a forma de diversos soldados, a Feiticeira desapareceu e voltou a aparecer no mesmo nível em que a garota estava. A espada e o escudo haviam retornado às suas mãos, mas ela não atacou. Aguardava o próximo feitiço da garota.

Serafine sabia que sua inimiga a atacaria e não podia desperdiçar aquele encantamento. Podia ouvir os sussurros das águas, como se milhares de vozes estivessem presentes em cada gota daqueles soldados, e sabia o quanto eles queriam exterminar a criatura das Trevas, mas precisava esperar.

A mulher de fogo serpenteou as mãos e invocou as chamas que cruzavam aquela floresta, e elas, como se também ganhassem vida, ergueram-se e abandonaram o incêndio, assumindo a forma de uma serpente gigantesca.

Os soldados de Serafine avançaram contra a serpente, unindo-se em uma criatura semelhante. A cobra de água tinha em seu corpo arabescos brilhantes, como os desenhos na pele de Serafine, e os dois répteis moldados pelos elementos se atacaram, produzindo fumaça pelo encontro da água com o fogo.

Serafine rangeu os dentes quando sua magia sofreu o ataque, sentindo dor junto com a cobra. A Feiticeira de fogo riu, partindo para cima da morena, que a recebeu com um poderoso golpe no rosto. A espada de fogo não foi capaz de transpassar a aura brilhante da garota, deixando a Feiticeira vulnerável. Serafine desferiu um soco em sua direção e, apesar de ser protegida pelo fogo, a mulher voou longe, impedindo-se de mergulhar no rio. A morena ficou parada, aguardando.

Protegida pela aura prateada, sua mão não se feriu ao tocar a Feiticeira de fogo. Mas, para sua surpresa, sua serpente foi aniquilada, sufocada por um abraço da cobra de fogo. A cobra flamejante flutuou e caiu sobre a margem da floresta, cobrindo árvores que o incêndio ainda não atingira. Serafine gritou em resposta. Seu espírito estava conectado à natureza e, quando o fogo tocou as árvores, a dor delas foi a sua dor.

Mas não mais agonizante do que a visão que teve ao olhar a batalha abaixo delas.

Os Lobisomens tinham a vantagem. Todo o esforço dos guerreiros Atyubrus e elfos estava sendo esmagado pelas poderosas criaturas das Trevas. Talvez a presença da líder ali aumentasse suas forças, deixando-os mais poderosos. O número de lobos diminuíra consideravelmente, mas ainda eram muitos.

Ela viu Jill e Guillian encurralados por um enorme grupo de Lobisomens. Ývela estava caída e desarmada em um canto, ainda consciente, mas terrivelmente ferida, e Jarek lutava com Sanzur.

O lobo ruivo levava a melhor depois de tanto tempo de combate. Seu guardião se ferira e perdera a espada, lutando agora a socos contra o monstro. Suas forças estavam acabando, e logo não haveria mais como se defender de Sanzur, assim como todos os outros que protegiam aquele lugar sagrado. O esforço que Jarek fazia para continuar de pé era evidente, e em seu rosto transparecia a dor dos numerosos ferimentos. Serafine encontrou a determinação característica dele quando utilizou sua visão apurada, no mesmo instante em que Sanzur desferiu um golpe violento contra o rosto de Jarek.

Talvez isso tenha sido a gota d’água para a garota, ou então a raiva que se aumentara ao ser derrotada no duelo de encantamentos com a Feiticeira. Algo muito intenso fez sua aura se expandir. Não como antes, quando ela surgira, mas de uma maneira estranhamente nova. Expandiu-se, como uma bolha crescendo sem parar. A energia pulsou mais e mais vinda daquela esfera luminosa e, quanto maior ela ficava, mais Serafine se fortalecia. O escudo de energia começou a brilhar com mais intensidade e o medo voltou até a mulher de fogo.

Os olhos de Serafine ganharam uma cor brilhante de azul gelo, como os de Lonel, mas exibiam uma força muito mais antiga do que a dele. Não havia sentimentos bons ou maus, emoções negativas ou positivas; era mortal. O que restava de consciência em Serafine desapareceu magicamente, englobado por uma presença mais poderosa.

E foi então que as águas do rio ergueram-se.


***


Jarek foi jogado contra uma pedra e, por sorte, não bateu a cabeça. O lobo gargalhou alto quando a milésima tentativa de Jarek falhou. O guerreiro sabia que o Lobisomem poderia tê-lo matado, mas a besta queria se divertir. Queria fazê-lo sofrer até o último momento, ferindo-o até que implorasse pela morte.

– Achou mesmo que poderia me matar?

– Não custa tentar – retrucou Jarek. Ele gemeu quando ficou de pé, erguendo os punhos à sua frente. Era débil e inútil, mas morreria tentando. Não desistira do duelo, assim como seus companheiros continuavam resistindo ao ataque dos lobos. Jarek já estava posicionado, aguardando o próximo golpe, mas Sanzur não se moveu.

Seus olhos escuros, tomados por sentimentos malignos e cruéis, pelas sombras da escuridão que habitava a sua alma, fixaram-se em algo atrás de Jarek, algo que fez o monstro temer. O enorme e mortífero Lobisomem parecia um cão amedrontado, recuando trôpego. Jarek virou-se na mesma direção e congelou.

– Deuses – ele murmurou, sem saber o que viria em seguida.

Estaria Serafine ciente do que acontecia? Será que ela tinha escondido todo aquele poder, aguardando o momento certo para usá-lo?

Jarek recusou as suposições. Ele sempre via, nos olhos de Serafine, que a garota ainda não tinha dominado a sua força. Esforçava-se, sim, mas tais esforços não geravam grandes mudanças. Eram mínimas as que apareciam, e agora ele entendia o incentivo necessário para despertar o espírito. Ou melhor... Para provocar o espírito!

Serafine estava flutuando bem acima de suas cabeças, longe o suficiente para que Jarek a visse com clareza. A aura prateada que a circundava crescia cada vez mais.

Os Deuses sabiam o que faziam, porque aquela era a melhor demonstração de controle sobre o elemento. O rio se elevou por completo. O chão ficou seco e vazio. As águas passaram a serpentear magicamente em pleno ar. Serafine abriu os olhos e, mesmo distante como estava, o guerreiro pôde ver um brilho azulado neles.

Aquela não era Serafine. O olhar doce e inocente, às vezes carregado de um humor revoltado, fora substituído por uma presença mortífera. Os arabescos na pele morena resplandeciam a cor de sua essência sobrenatural; o espírito dominara aquela que o carregava.

A garota ergueu os braços e as águas cumpriram a ordem silenciosa. Esgueirando-se como raízes, parte do rio comprimiu-se e, velozmente, enrolou-se em volta da figura flamejante da Feiticeira. Ela tentou fugir do abraço mortal, mas falhou. Os braços comprimiram-se mais e mais, esmagando a pele de fogo. Quanto mais aquelas tiras apertavam o corpo da Feiticeira, mais ela gritava. Mesmo sem rosto, a voz que antes exibira escárnio agora transmitia dor e agonia. Serafine continuou imóvel, com os braços erguidos e os olhos azuis brilhando.

A Feiticeira lentamente sucumbiu ao poder do Primeiro Elemento.

Quando a água serpenteou no rosto da criatura flamejante, encobrindo a face sem detalhes humanos, seus gritos cessaram e ela desapareceu. O corpo de fogo extinguiu-se numa nuvem negra. Um grito ecoou pelos ares, deixando claro que a Feiticeira maligna havia partido, mas voltaria. Fosse Sharowfox ou não, aquela invasão estava perdida.

Jarek quase sorriu, mas o Lobisomem, que ficou ainda mais raivoso pela perda de sua mandante, agarrou-o pelo pescoço e ergueu seu corpo exausto pelas lutas. Jarek arfou e tentou se livrar do aperto, mas o monstro não o largou. Seus olhos escuros brilharam mordazmente, enquanto dentes afiados como cacos de vidro expunham-se num sorriso.

– Últimas palavras? – A mão afrouxou levemente, apenas para deixar Jarek murmurar. Ele pensou bem, olhando fixamente para algo atrás do monstro, abriu um sorriso e disse:

– Espero que saiba nadar. – A voz saiu rouca e ofegante, mas a mensagem foi transmitida. Um segundo de pânico foi o suficiente para que Sanzur entendesse o que estava acontecendo.

As águas do rio, que agora formavam uma imensa onda, arrastaram seus corpos para longe. Serafine controlava com precisão onde o rio deveria atacar. O incêndio que ainda tomava a floresta foi extinto pela fúria das águas. Os Lobisomens foram arrastados para longe pelas ondas, enquanto a correnteza era delicada e suave com aqueles que lutavam ao lado de sua controladora.

Ývela e Jarek foram carregados até algumas pedras e ali ficaram, enquanto as águas voltavam toda a sua ira contra aqueles que haviam violado a paz do Castelo. Longos momentos seguiram-se enquanto as águas circulavam pela região, arrebatando as Trevas que ousaram pisar no solo sagrado. Os Lobisomens que morreram afogados foram arrastados para longe; os que conseguiram sobreviver, foram sensatos e fugiram.

Quando o fogo apagou e não havia mais indícios de que os Amaldiçoados estavam vivos, o rio retrocedeu calmamente ao seu local de origem. Estava sujo, mas sem vestígios das Trevas. Com sorte, a floresta ficaria bem de novo. A fumaça escura erguia-se em incontáveis locais e a outrora paisagem verde fora dominada pelas cinzas das árvores queimadas. O caos era evidente, mas vida ainda pulsava daquele lugar. A essência da natureza estava salva.

Assim que tudo se acalmou, o corpo de Serafine estacou. Toda a energia que antes havia nele congelou seus movimentos, o brilho em seu olhar, o calor em sua fúria. Ela continuou flutuando, mas o olhar mortal desapareceu. Havia medo em seus olhos, agora com a cor natural de âmbar. Um ofego alto escapou de seus lábios, ecoando em meio ao silêncio que pairava no lugar. Ela pareceu amedrontada, mas, após o rápido arfar, seu corpo despencou. O baque na água foi rápido e todos que estavam suficientemente perto puderam visualizar o abraço caloroso que o rio proporcionou à sua controladora. Ele havia acolhido a garota.

Jarek e Ývela, mais próximos, correram até a figura desmaiada da protegida. O guerreiro nadou até ela, arrastando-a com cuidado até a margem. Colocou o corpo desacordado de Serafine ao lado do Mestre e o Atyubru suspirou de alívio. O peito da garota subia e descia com lentidão. Ela estava viva.

A respiração do Mestre era lenta e entrecortada. Serafine não recuperou a consciência para ver, mas um sorriso e um olhar de orgulho iluminaram o rosto mutilado do felpudo. O espírito havia acolhido a sua aprendiz. A escolha dos Deuses não poderia ter sido melhor para aquele mundo.


Capítulo 32

Nobre Alma

 

 

A dor em seus músculos era irrelevante se comparada à que atingia sua cabeça. Mil vezes pior do que o latejar que acompanhava os surgimentos de Mahiry, Serafine sentiu seu mundo girar em um torpor de agonia. Nem mesmo foi capaz de abrir os olhos, tamanho o seu tormento.

Seus sentidos estavam fraquejando, como o zumbido latente que a impediu de ouvir o que ocorria ao seu redor. Quando um fraco gemido escapou de seus lábios, alguém ergueu levemente sua cabeça e pediu que ela abrisse a boca. A mesma poção curativa que Lonel lhe dera tantos dias atrás foi despejada ali. Serafine aguardou demorados minutos enquanto esperava o efeito chegar até seu cérebro. Tentou movimentar os membros, mas eles continuavam dormentes. Nunca tinha se sentido exausta daquela maneira. E tão dolorida. Mesmo os treinos com seus guardiões não surtiam um efeito tão agressivo.

Lentamente, as memórias falhas da batalha retornaram à sua mente, enquanto ela continuava tentando se movimentar. Havia diversos cortes em meio às lembranças, como se ela não tivesse presenciado todos os acontecimentos. Contudo, a sensação de que algo de extraordinário havia ocorrido reverberava em sua consciência. Sua última recordação era de encarar a Feiticeira de fogo, com uma crescente labareda de ira surgindo em seu âmago. Depois disso só havia um breu de incerteza.

Conforme o latejar em sua cabeça desaparecia, Serafine encontrou forças para abrir os olhos. A dor era mais forte naquela região, exatamente como das outras vezes. Algumas tinham sido mais fracas, de fato, mas, quanto mais utilizava seus poderes, mais incômodas essas dores se tornavam.

Foi recebida pela luz fraca do amanhecer, o olhar fora de foco vislumbrando tudo embaçado. O Sol ainda não havia aparecido, mas tudo indicava que ele logo se ergueria atrás das montanhas. A manhã apresentava um clima frio, nuvens de coloração acinzentada encobriam o céu melancólico, e o vento produzia sons estranhamente familiares. Seriam vozes aqueles sons que chegavam aos seus ouvidos? Para Serafine, os sussurros lembravam um coro suave, como cristais balançando em meio à brisa.

Quando a morena finalmente conseguiu se sentar, notou que ainda estava do lado de fora do Castelo, sobre um lençol de seda estendido no chão.

Seu olhar desfocado direcionou-se para o local de onde vinha o som. Havia elfos em diversos pontos da floresta, entoando uma canção sem palavras, contando com o ressoar de suas vozes. O tom da música era desolador, tristeza irradiava de cada brado. A floresta, embora destruída, parecia compartilhar da melancolia exposta pelos imortais. O suave eco daquela harmonia dava ao amanhecer um toque lastimoso.

Sem que percebesse, Serafine sentiu lágrimas escorrendo por seu rosto.

– As canções élficas cantam sobre emoções, e nem os corações mais antigos deixam de fraquejar diante delas. – Ývela disse próxima a Serafine. Ela encarou os olhos azuis da guardiã e encontrou ali a mesma tristeza da canção. Havia também exaustão e preocupação, mas foram suavizados quando as duas trocaram olhares. – Ficamos preocupados com você... – Ela abraçou Serafine, em uma atitude calorosa, e a garota retribuiu o gesto. Serafine sentiu-se estranhamente frágil, atingida pela melancolia do lugar. Quando se afastou da amiga, localizou também Jarek e Jill. Jill parecia a mais abalada entre eles. Algo em seus olhos alaranjados despertou a atenção de Serafine. O seu guardião estava sério, no rosto a mesma máscara fria que costumava usar quando não queria externar emoções muito fortes.

– O que houve? – A voz de Serafine saiu rouca.

– Perdemos muitas vidas nessa invasão. – Lonel se aproximou dela. O elfo vinha do lado oposto ao local em que aquele pequeno grupo se encontrava, próximo ao rio. – A canção serve para ajudar as almas a seguirem seus caminhos para a outra dimensão.

Serafine assentiu, observando os elfos à sua volta. Estavam espalhados, alguns em grupo e outros sozinhos, todos com os olhos fechados e as palmas das mãos viradas para cima. Eles faziam uma prece aos Deuses. Rogavam para que os mortos pudessem encontrar paz no outro mundo, tendo lutado com tanta bravura neste. O Castelo estava intacto, com exceção da destruição causada pelos Lobisomens em algumas partes, e, mesmo com o incêndio, havia vida na floresta.

Jarek, com alguns cortes no rosto e outros pelos braços, encarou-a firmemente. Ela sabia muito bem o quanto ele estava sofrendo. Tanto quanto os outros, Serafine podia afirmar. Ývela era a mais emocionada, além da própria Serafine. Jill estava chorando. A ranzinza e forte guerreira não parecia ter vergonha de soluçar ali, na frente de tantas outras criaturas, e foi nesse momento que o choque abateu Serafine.

Ela sentiu a ausência de duas criaturas.

– Onde está o Mestre? E Guillian?

Ninguém respondeu, mas seu tom alterado foi ouvido por todos. Ela ergueu-se cambaleante, sentindo as pernas débeis por tanto esforço. Lonel a encarou com aquele par de olhos sábios, tão claros e tão tristes. Fez um aceno suave com a cabeça, um pedido silencioso para que ela se acalmasse.

– Serafine... Lembra-se do que aconteceu ontem?

– Só algumas coisas – confessou. – Minha memória não está funcionando direito. Só lembro de relances, o resto é vazio.

– Compreendo. – Sem fazer qualquer outro comentário, o elfo começou a caminhar na mesma direção da qual tinha vindo. Serafine o seguiu, forçando para que seus olhos não começassem a embaçar. Tinha certeza de que ele sabia o motivo de sua amnésia.

– O que aconteceu?

– Seu Mestre explicará. É o último pedido dele. – Estavam próximos da margem do rio. O coração da garota comprimiu-se quando ela avistou uma figura pequena e frágil deitada no raso, com água até a altura do peito. O rio parecia abraçar seu corpo, deixando-o da maneira mais confortável possível.

Outra criatura estava ao seu lado, tão pequena e frágil quanto ele. O segundo indivíduo estava ajoelhado ao lado do corpo estirado, com uma das orelhas longas arrastando-se atrás de si. A outra estava caída sobre seu rosto, encobrindo as lágrimas que escorriam de seus olhos azuis.

Serafine chegou a tempo de ouvir o murmúrio da conversa entre os dois. Sua audição apurada captou os sons do diálogo assim como uma estranha vibração vinda das águas, como o lamento presente na canção dos elfos. Pareciam milhares de vozes sussurrando coisas em outra língua.

O Primeiro Elemento, representado ali pelo extenso rio, sofria.

– Você é um orgulho para mim, filho. – A voz rouca do Mestre foi ouvida. Havia dor em suas palavras. Não pelo que ele sentia, e sim pelo que murmurava. – Passei anos me recriminando pelo que havia lhe feito e estava certo...

– Pai, não foi sua culpa. Eu quebrei as regras do nosso povo. Mereci a punição.

– Você quebrou as regras para proteger o maior de todos os milagres. Se tivesse compartilhado antes, talvez eu pudesse ter feito algo...

– Não, pai. O senhor não podia saber do que eu fiz ou também seria punido.

– Sinto que a nossa Ordem se orgulharia muito se descobrisse o que me contou – o Mestre falou. – Mas entendo os seus motivos, uma promessa não pode ser quebrada. Eu a levarei comigo para o túmulo. Warthia um dia saberá o herói que você é. Não poderia me orgulhar mais de tê-lo como filho... – Uma tosse longa e carregada foi ouvida e Guillian adiantou-se para ajudar seu pai. O Mestre, porém, respirou fundo e conteve aquele acesso.

– Pai, sinto muito se fui covarde demais para lhe contar.

– Você não é covarde! – Havia autoridade na afirmação do ancião. – Mesmo nos anos de seu exílio, eu sentia que algo estava errado naquela sentença, algo que não se encaixava. Era verdade, então. Você julgou com o coração, e eu duvidei de sua capacidade. Você tem o direito de ser o guardião de nossa esperança. – Ele tossiu, perdendo o fôlego. De onde estava, Serafine pôde ver o corpo do Mestre tremendo compulsivamente. Ela abraçou o próprio corpo, sentindo um frio arrepiante cruzar seu caminho.

Ela queria tanto se lembrar do que havia acontecido, mas os espasmos em sua memória não ajudavam. Eram pequenos fragmentos que continham um combate entre serpentes de fogo e água ou e um grito de agonia vindo dos céus. Nada fazia sentido se não tivesse onde se encaixar.

– Serafine... – A voz de Guillian despertou-a. Imediatamente, a garota adiantou-se até o local em que os dois estavam. A água estava morna, como se o clima frio ao seu redor não fizesse parte da temperatura do rio. – Meu pai deseja lhe falar.

– Ah, a escolhida! – Havia uma ponta de humor nas palavras do Mestre. Serafine sentiu sua garganta travar quando finalmente encarou o Atyubru, e tentou não demonstrar seu desespero. O corpo estendido na margem daquele rio estava tão machucado e frágil que lhe causou dor. O rosto sempre expressivo e altivo fora queimado e um dos olhos nem se abria devido a um hematoma. O pelo claro tinha sido chamuscado em diversas partes, mas a túnica roxa escondia o pior dos ferimentos, a região que a lâmina de fogo havia transpassado. Sangue manchava a área do tecido que cobria a barriga da criatura.

– Mestre. – Ela não conseguiu dizer mais nada, somente se ajoelhou ao lado dele e aguardou. O olho bom do Atyubru exibia um pouco de desconfiança, como se ele não estivesse de acordo com as atitudes de sua aprendiz. – Eu... Sinto muito.

– Não tem o que sentir, não foi culpa sua. – Ele parou de falar, parecendo pensativo. – Você não se recorda do que ocorreu, não é? – Ela negou com a cabeça. – Curioso...

Serafine tentou, novamente, ultrapassar a barreira que fora criada em sua mente, mas as lembranças não vinham.

– O que é curioso? – perguntou ao felpudo. O Mestre pareceu se animar com a dúvida da garota, mas também ponderou as palavras que usaria.

– Você controlou esse rio como se fizesse isso há décadas, menina. Eu vi quando seu espírito se manifestou, quando a aura dele dominou o seu corpo e quando ele destruiu aquele avatar de fogo. Foi uma cena magnífica.

– E por que eu não me lembro?

– Não sei. – Ironia e sinceridade estavam bem claras na voz do Mestre, fazendo Serafine sorrir. Mesmo mortalmente ferido, o velho Atyubru continuava com o humor característico. – Cabe a você descobrir. Imaginei que estivesse consciente quando o espírito se manifestou, mas, pelo visto, ele é mais imprevisível do que todos supõem.

– O senhor acha que isso acontecerá toda vez que eu tentar invocar a água?

– Por que você não tenta? – ele rebateu a pergunta. Serafine olhou para trás, onde o rio se estendia com calma sobre uma vasta extensão, e hesitou. Ela havia mesmo dominado aquele elemento? Não havia qualquer recordação, exceto uma enorme serpente feita de água... Teria sido ela a moldá-la? Como no exercício ordenado pelo velho Mestre, quando Serafine tentara transformar o redemoinho numa pequena serpente...

Olhando para o ancião, que a aguardava com expectativa transbordando de seu olhar, Serafine resolveu tentar realizar o encantamento. Fechou os olhos e murmurou as palavras memorizadas. Sem invocar a força do espírito, ela deixou que a energia fluísse através do corpo. Não clamaria por aquela força, deixaria que ela despertasse sozinha.

Ouviu um ofego silencioso do Mestre no momento em que uma vibração conhecida desceu por seu braço direito. Ao abrir os olhos, vislumbrou uma pequena elevação da água à sua frente. Um redemoinho havia ganhado vida e transmutara-se na forma de uma linda sereia, que agora flutuava sobre o rio. Não parecia com a serpente, tomada pela fúria de sua controladora. Talvez, em respeito ao Mestre, todo o rio estivesse sereno naquele dia. Serafine baixou a mão e a sereia voltou a deslizar para as águas, formando ondas suaves no local onde mergulhou.

Uma incessante tosse trouxe Serafine de volta à realidade. Sua felicidade momentânea por ter controlado a água, sem a convocação do espírito, desapareceu.

O Mestre continuou a tossir, recebendo auxílio de Guillian para que se sentasse, e sangue escorreu por seus lábios feridos. Serafine levou as mãos à boca quando viu aquela cena, sentindo o coração martelar forte no peito.

– Não fique assim... – A voz do velho Atyubru saiu assustadoramente fraca. – A morte não deve ser vista como algo atormentador, pois, em outra vida, nos encontraremos de novo.

– Os Deuses o receberão de braços abertos na outra dimensão – disse Lonel. Ele estava próximo o suficiente para que Serafine enxergasse lágrimas em seus olhos claros. – Sua bravura e coragem se mostrarão dignas para que caminhe entre as divindades.

– Obrigado por tudo, meu amigo. – A mão pequena do ancião esticou-se na direção do elfo, mas outro acesso de tosse impediu que se tocassem. – Guillian, ajude-me a levantar.

– Mas, pai...

– Preciso ir até o rio. – Havia autoridade em sua voz, além de um forte carinho.

– Para quê? – Serafine não pôde deixar de perguntar. Apreensiva, observou enquanto Guillian erguia o pai com esmero. A fina linha entre a vida e a morte nunca parecera tão real quanto naquele momento. O Mestre, um poderoso controlador da água, estava morrendo.

– Estou destinado a me entregar ao elemento que domino. Meu espírito será absorvido pelas águas e, então, restará no mundo apenas uma criatura verdadeiramente digna a invocá-las em todo o seu poder. – Seu olhar recaiu sobre Serafine. Ele ainda tinha o poder de deixá-la pensativa e intimidada, mas sempre transmitia bondade. Ela assustou-se ao se dar conta de que seria a única controladora das águas dali para frente.

– E quanto aos seres que pertencem à água? Como Ývela?

– Isso é natural deles. Você e eu não somos aquáticos e possuímos a mesma habilidade de dominar que uma sereia ou uma ondina. – Um sorriso leve, mas carregado pela dor, brotou na face dele. Tendo Guillian como apoio, ele parou bem em frente à Serafine e segurou seu rosto entre as patas felpudas. – Cuide-se, Serafine, e lembre-se: sempre que precisar, eu estarei por perto. Pode sempre me encontrar em seu coração.

O mais delicadamente que pôde, ela o abraçou, e ele retribuiu ao abraço com carinho, sentindo o peso da despedida. Em tão pouco tempo de convivência, ela nunca pensou que fosse se importar tanto com sua ausência. Assim como havia sido penoso abandonar seu pai para a morte, também estava sendo separar-se do Mestre. Quando ele deixou o seu abraço e prosseguiu o caminho para o rio, lágrimas já escorriam pelo rosto da garota.

Ela ergueu-se e sentiu a presença dos outros ao seu redor. Os elfos haviam parado de cantar e observavam a cena. Jarek estava próximo o suficiente para que seus braços se tocassem, mas nenhum dos dois falou qualquer coisa. Trocaram um rápido olhar, tristes, e continuaram concentrados na última caminhada do nobre Atyubru.

O Mestre separou-se de Guillian assim que a água ficou na altura de seu peito. O filho pareceu relutar, mas, após um abraço vindo do pai, assentiu e afastou-se.

O Mestre ficou de costas e ergueu seus braços para o céu. O Sol já podia ser visto acima das montanhas, ao leste, e lentamente extinguia a aparência melancólica daquele amanhecer. Apesar do vento, o frio havia diminuído.

Serafine conseguiu ouvir os sussurros vindos do rio. Milhares deles, uníssonos pelo pesar da perda de uma vida tão preciosa. Havia também a euforia. A nobre alma seria entregue em suas mãos naquele momento. A consciência das águas estava tão absurdamente exposta que Serafine conseguiu ouvir palavras em sua própria língua: Caminho. Poder. Amor. Sacrifício. Tesouro. O Elemento clamava por seu Mestre. Conforme aquelas palavras ficavam mais e mais altas, o rio finalmente se manifestou.

As águas, moldando-se como se fossem raízes de árvores, serpentearam para cima e rodearam o corpo mutilado do velho Atyubru. Ele baixou as mãos e, enquanto uma onda formava-se ao seu redor, deu uma última olhadela na multidão.

Fixou os olhos grandes e azuis em sua aprendiz, que, por fim, acabou sorrindo. Viu orgulho estampado no olhar de seu Mestre e ficou imensamente grata por ter conquistado aquilo. Ele estava feliz por tê-la ensinado. Feliz por ver que a escolhida seguia o caminho certo.

Segundos depois, em uma explosão de água e som, como a queda de uma cachoeira, o corpo do Mestre desapareceu. Vapor subiu do local em que ele estivera e o silêncio dominou a paisagem. A brisa foi levada para longe e perdeu-se nas nuvens. Serafine fechou os olhos e murmurou uma prece aos Deuses, pedindo que acolhessem aquela alma com toda a dignidade que ele merecia.

Com uma confiança extrema, seu coração encheu-se de alegria. De algum modo, ela sabia que as divindades a haviam escutado. Sabia que o Mestre estaria em paz.

– Uma nobre alma está sendo levada aos Deuses. Descanse em paz, Haius, último Mestre da Água. Loma Kaily – murmurou Lonel.

Serafine sentiu a exaustão dominando o seu corpo. Suas pernas bambearam, mas ela foi sustentada por Jarek. Ele olhou-a com extrema preocupação, o que era raro no guerreiro, mas Serafine nada disse.

Talvez aquela sensação estivesse misturada ao desgaste da batalha durante a noite. Agora, depois de ver o Mestre deixando aquele mundo, uma explosão de tristeza tomou seu corpo. Ela ficou feliz por vê-lo partir em paz, mas a dor em seu coração recaiu forte demais para ser ignorada.

Portanto, fechou os olhos e, escondendo o rosto no peito do guerreiro que a segurava, deixou que lágrimas e soluços escapassem, sem qualquer tentativa de contê-los.


***


Serafine caminhou pelo jardim, tentando ignorar o cheiro de caos e destruição deixado para trás. Uma fogueira alta ardia ao longe, e ela sabia que os corpos dos inimigos estavam sendo consumidos pelas chamas. Não sabia quantos eram e não pretendia descobrir, por enquanto.

Moveu os dedos, testando a sensibilidade dos músculos, e sentiu a estranheza de momentos atrás. A sensação de impotência, de perder o controle sobre si mesma. O que havia ocorrido no rio, quando o espírito ascendera sobre sua consciência, era assustador. Serafine preferia não pensar nisso; o medo que a abatia era grande demais para se compreender. O poder era grande demais. E estava só começando. Havia dominado apenas o primeiro elemento. Como ficaria ao fim dos quatro ensinamentos?

Balançou a cabeça, afastando tais ideias. Não era o momento para se preocupar. Havia coisas demais ao seu redor, dor e destruição a serem superadas.

Baixou o rosto quando passou por alguns elfos, incapaz de sustentar seus olhares. Não deveria se culpar, mas o fazia. Era a esperança de Warthia, mas trouxera ruína para aquele lugar. Salvara vidas, mas tantas haviam sido perdidas.

Suspirou, sentando-se no chão, distante dos elfos que trabalhavam para arrumar aquele lugar. Abraçou os joelhos, sentindo-os trêmulos. Viu Ývela e Guillian seguindo até o castelo e agradeceu por estar nas sombras; não queria conversar. Não queria receber carinho ou palavras de consolo, e sabia que eles lhe ofereceriam isso. Eram bons amigos, afinal.

Foi então que outra figura surgiu ao alcance de sua visão. Jarek passeou os olhos pelos arredores, buscando alguma coisa, e então os repousou na menina. Serafine travou a mandíbula, desviando o olhar; lembrou-se de quando o guerreiro a havia abraçado depois da morte do Mestre. De quando a havia sustentado em seus braços, deixando que Serafine fraquejasse.

Jarek, seu rude, indomável e frio guardião, havia deixado todas aquelas características para trás para abraçá-la e confortá-la, como um amigo faria. Diferente de Ývela e Guillian, no entanto, ele não a havia consolado com palavras animadoras. Havia deixado que desabasse, que ruísse frente à dor, e havia assegurado que Serafine tivesse um pilar para se apoiar em meio a desolação.

O guerreiro hesitou ao observá-la, o rosto sério, compenetrado em alguma emoção profunda, do tipo que Serafine nunca seria capaz de identificar. Por fim, ele andou até ela.

A morena apertou os braços ao redor dos joelhos, seguindo-o com o olhar, até que Jarek sentou-se ao seu lado. Ele apoiou as costas numa rochas e cruzou as pernas. Lançou a Serafine um olhar enigmático e então se pôs a observar os arredores.

Jarek estava marcado pela batalha. Serafine encontrou alguns cortes em seu rosto e hematomas por toda a extensão de seus braços. Em seu colete, os riscos que certamente haviam sido feitos pelas garras de um Lobisomem cruzavam seu tronco, e a garota viu-se grata pela resistência da armadura. Sem ela, Jarek teria sido destroçado.

O guerreiro respirou fundo, parecendo incomodado pela intensa observação dela. Serafine desviou o olhar.

– Se está esperando que eu puxe algum assunto, melhor desistir – ela murmurou com falso humor, poucos minutos depois. Viu um sorriso fraco dançar nos lábios dele, enquanto o guerreiro batia os ombros.

– Vim ver se estava bem. – Jarek respirou fundo. – Mas sei que não está.

– Não, não estou – ela confessou num sussurro, apoiando o queixo nos joelhos. – É assim, então, que você se sente depois de uma guerra? Esse vazio?

– Para ser sincero, princesa, não sei. Não sei se entendo o que uma guerra significa, não sei se sou capaz de afirmar que já participei de uma. – O tom dele ficou mais baixo e, Serafine percebeu com espanto, melancólico. – Estamos constantemente em guerra, não estamos? O bem e o mal, Luz e Trevas, coragem e medo... Se for isso, já passei por muitas.

– Dói tanto assim? – Ela virou-se para encará-lo. – Não deveria ser... Gratificante? Quantas almas eu condenei ao Abismo? Boas ou más? Foram tantas mortes e nós nem ao menos começamos essa jornada... Os Deuses previram isso? Previram que meu destino seria acompanhado de tanta dor? Por que não me avisaram? – Ela fechou os olhos, mas não antes de capturar uma expressão sombria no rosto do guerreiro. O quanto ele sabia sobre o futuro?

– A guerra é dolorosa. A maioria de nós acha que tem o espírito preparado para enfrentar o que vem pela frente, mas não. Nunca se está pronto. Minha mãe costumava dizer isso. – Ele se aproximou, deixando seu corpo tocar no dela. Serafine abriu os olhos, encontrando o rosto do guerreiro assustadoramente próximo. – Sinto muito, princesa.

– Não é culpa sua – ela respondeu num murmúrio desolado. – É minha. Diga o que quiser, Jarek, mas, enquanto me caçarem, a culpa vai me seguir.

– Tem razão. Assim como a culpa por não ter evitado essa armadilha vai destroçar minha consciência, a de Ývela e a de Guillian. Assim como Lonel vai se culpar por não ter percebido que as barreiras haviam caído. Assim como as Trevas vão se culpar por não terem sido capazes de enfrentar você. – Jarek estendeu a mão e segurou a dela, um gesto gentil e surpreendentemente íntimo, que trouxe calor às bochechas da menina. Serafine viu-se entrelaçando seus dedos aos dele, sentindo a pele áspera e calejada da mão do guerreiro confortável sobre a sua. – É uma guerra, princesa, e que atire a primeira pedra aquele que não se sentir culpado por ela.

– Não é ruim sentir medo, é? – Serafine se deixou aconchegar a ele, apoiando a cabeça em seu ombro, aproveitando aquele momento em que as barreiras entre eles haviam sido derrubadas. Jarek soltou sua mão para rodeá-la com o braço. – Vai passar, não vai?

– Você é forte, Serafine. Seu futuro é grandioso. Seria tola se não tivesse medo. – Ele sorriu abertamente. – Tenho medo também, sabe?

– O grande Jarek Hargon sente medo de alguma coisa? – Ela zombou, fazendo-o rir com falsa irritação.

– Medo de não ser forte o suficiente. De não cumprir meu dever. – O cenho dele estava franzido numa expressão consternada. – No passado, isso já aconteceu, e eu luto cada dia para que não volte a se repetir. Quero ser um bom guardião.

Serafine ergueu o rosto para encará-lo. Observou suas feições fortes, marcadas pela sombra do castelo. Prendeu-se aos seus olhos azuis, sempre tão intensos, mas, no momento, cobertos por um brilho frágil. Lembrou-se das dezenas de vezes em que ele a tirara do sério com seu humor ácido, mas lembrou-se também de quando a havia salvado, de quando a protegera, de quando a ensinara a se fortalecer para não depender dele.

Em um ímpeto de coragem, Serafine segurou o rosto do moreno e beijou sua bochecha delicadamente.

– Você é um ótimo guardião – sussurrou, mantendo os lábios próximos a pele dele. Jarek retesou-se sob seu gesto, mirando-a com os olhos arregalados. Serafine identificou ligeiro encanto nas íris agora púrpura dele.

Jarek deixou um sorriso pequeno nascer em seu rosto, enquanto a encarava com gratidão. Serafine voltou a apoiar a cabeça no ombro dele, deixando-se ser abraçada com um pouco mais de força.

– Jarek! – Os dois voltaram-se para Ývela, parada na entrada do salão. Ela os encarou com curiosidade e escondeu um sorrisinho. – Precisamos... Hã... De você, lá dentro.

– Tudo bem. – O guerreiro soltou a morena. Encarou Serafine com aquele olhar enigmático de antes, mas o sorriso continuava em sua boca.

– O que foi?

– Você podia ter caprichado mais naquele beijo. – Ela engoliu em seco quando ele se aproximou. Jarek baixou o rosto até que seus lábios estivessem roçando no canto da boca dela. Beijou-a ali, rápida e suavemente. O toque quente contra a pele dela trouxe um calafrio à menina. Jarek se afastou para contemplar uma Serafine envergonhada. – Vou esperar até que esteja mais inspirada.

– Foi um beijo amigável, seu abusado.

– Veremos por quanto tempo vai afirmar isso. – Ele se pôs de pé, lançando um olhar profundo antes de se afastar.

Ela revirou os olhos, indignada e constrangida demais para retrucar qualquer coisa. Levou a mão ao local beijado, sentindo-o formigar debaixo dos dedos. Balançou a cabeça, afastando pensamentos desconexos.

Não se atreva a se apaixonar por ele, disse a si mesma, pouco convencida.


Capítulo 33

Decisão

 

 

A floresta sofreu muito mais do que eu imaginava, Serafine constatou. A área atingida pelo incêndio era extensa e o fogo tinha deixado sua marca até onde os olhos podiam alcançar. Lonel, porém, disse que a floresta mágica se curaria sozinha. O coração do Grande Bosque ainda estava intacto e as árvores centenárias, mesmo destruídas pelo fogo, brotariam de outras sementes e começariam um novo ciclo.

A garota estava apoiada na lateral da janela de seu quarto, deixando seu olhar vagar sobre a destruição causada pelos Amaldiçoados. O pátio dos jardins havia sido destroçado, não restando uma planta intacta. Esculturas e bancos de mármore estavam quebrados. A bola de cristal luminosa havia sido jogada longe, mas não podia ser quebrada, o que certamente deixou os Lobisomens frustrados. Salões e quartos também haviam sido destruídos. Cada pedaço do Castelo fora pisoteado por aqueles monstros. A própria biblioteca sofreu danos irreparáveis, perdendo volumes preciosos da História daquele mundo. Seu livro, porém, estava a salvo. A sala onde ela o escondera fora ignorada pelos lobos, talvez por estar vazia. Logo que retornou ao Castelo, Serafine recuperou o enigmático livro.

Os elfos passaram o resto do dia tentando reparar alguns danos usando magia. Eles trabalhavam em equipe e com rapidez, fazendo desaparecer qualquer sinal de invasão do pátio principal. A grama, antes devastada pela passagem dos monstros, crescera magicamente.

Mais cedo, a garota se assombrara com o desenho que representava o Norte. Os outros Reinos continuavam iguais, mas aquele, que antes mostrava uma floresta verdejante, estava destruído. A magia o mudara após o ataque. As árvores estavam negras e o chão, coberto por cinzas. No céu escuro, a fumaça ainda irradiava do devastador incêndio. Lonel lhe dissera para ficar calma, pois a restauração faria o desenho voltar ao normal.

Serafine estava muito curiosa sobre seu livro, mas deixou-o sobre a cama e optou por um momento de paz. Observar a paisagem, mesmo que destruída, acalmava seus ânimos. Seus ferimentos haviam sido tratados pelos elfos e a poção que lhe deram diminuiu as dores que sentia. Asseguraram-lhe que o Mestre passara as últimas horas de vida sem muito sofrimento. O contato com a água, seu elemento, anulara a maior parte de sua dor.

– Atrapalho? – A voz conhecida de Jarek despertou Serafine de seus devaneios. O guerreiro estava encostado na lateral da porta, com os braços cruzados e o rosto limpo. Ele trocara os trajes de batalha por calças confortáveis e camisa larga, de coloração escura, e os cabelos recém-lavados caíam bagunçados sobre sua face.

– Sem problema. – Ela deu de ombros, afastando-se das janelas. – Aconteceu alguma coisa?

– Não. Só queria ver se estava tudo bem... – O moreno parou ao seu lado, encarando a mesma paisagem que havia prendido a atenção de Serafine. Ela, por sua vez, viu-se observando o guerreiro. Os traços marcantes de seu rosto pareciam mais e mais familiares. O alívio por vê-lo bem, a salvo e recuperado era indescritível.

– Estou melhor, na medida do possível. É difícil aceitar todas as coisas horríveis que aconteceram desde que eu parti de Vila do Sol. – Jarek assentiu, desviando o olhar para o rosto da garota. – Mas vou me acostumar. Além do mais, coisas boas também aconteceram...

– Ficar se sentindo mal seria desperdício de tempo. Os mortos não querem ouvir lamentos daqueles que ainda vivem... – Ele suspirou, pensativo. Serafine continuou a encará-lo, esperando que dissesse algo. – Os elfos contabilizaram os corpos arrastados pelo rio. Todos os Lobisomens foram deixados numa vala longe daqui.

– Foram muitos?

– Garota, você exterminou mais de cem Amaldiçoados sem nem se dar conta! – Jarek brincou, um sorriso iluminando seu rosto.

Serafine não achou graça. Pensar nisso a assustava. Havia matado mais de cem Lobisomens... Seu coração ainda se dividia entre a culpa e a exultação. Tivera tanto poder assim? O suficiente para aniquilar mais de uma centena de monstros? Não era justo que seu maior ato de poder tivesse resultado em uma vasta perda de memória.

– E a Feiticeira?

– Sumiu. Eu vi quando você a derrotou. Ela virou fumaça e desapareceu. Mas aquilo era apenas um avatar, um fantoche. Se estivéssemos mesmo lidando com Sharowfox... – Ele fez uma pausa considerável. Serafine sentiu quando seus braços se arrepiaram. – Ela estava longe o suficiente para não sofrer danos. – Serafine assentiu, decepcionada. Era muita inocência pensar naquele pequeno combate como o que estava destinada a realizar. – Você não se lembra de nada? Nem depois que o espírito descansou?

– Não me lembro de nada. Por que será?

– Foi assustador – Jarek comentou. – E magnífico. Lembro-me da expressão no rosto de Sanzur e de como ele pareceu amedrontado como um filhote de cachorro. – Serafine riu pela graça do comentário, fazendo o guerreiro rir também.

Os dois se encararam intensamente. Serafine viu-se perdida no infinito do azul escuro dos olhos dele, algo que causou um calafrio delicioso em sua espinha. Jarek soltou um longo suspiro e desviou o olhar, afastando-se da janela e indo até a porta. Foi um movimento tão rápido que pegou a morena de surpresa.

– Aliás, de nada por salvar sua vida – Jarek disse, usando um de seus sorrisos sarcásticos. Serafine tentou não se abalar. A troca de olhares parecia não ter sido ignorada por ele, mas Jarek deu a entender que não queria que se repetisse.

– Acho que nunca lhe agradeci decentemente por ter salvado minha vida – Serafine comentou, apoiando as costas na parede. – Então... Obrigada. De verdade. – Jarek fez uma ligeira reverência, colocando nos lábios um sorriso charmoso. Ela ignorou-o, ainda magoada pela fuga da troca de olhares.

O silêncio permaneceu entre eles alguns instantes. Instantes que pareceram uma eternidade.

Jarek era um caso complicado demais. Em um momento, ele a estava abraçando e confortando, beijando o canto de seus lábios e flertando com ela. No outro, era frio e evasivo. Era como lidar com um animal selvagem, que escondia todas as emoções em um canto inalcançável de seu coração, usando do perigo e da frieza para espantar quem se aproximasse. Só se conseguia a confiança necessária para receber algum sentimento de volta depois de muito tempo. Tempo que Serafine não fazia ideia de quanto duraria.

Ao ver-se observado por Serafine, Jarek cruzou os braços, pigarreando para chamar sua atenção:

– Lonel precisa falar com você, aliás – comunicou pouco antes de sair do aposento. Serafine encarou-o curiosa, lutando contra as emoções. Jarek continuou impassível. – Ele pediu para que eu a avisasse.

– Certo. – Serafine foi igualmente fria ao virar-se de costas, voltando a olhar pela janela. Esperou até ouvir o eco dos passos dele, enquanto o guerreiro descia as escadas, e depois suspirou. Não sabia o que havia de errado com ela, mas precisava parar de dar ouvidos àquela emoção estranha.


***


– Pediu para me chamar? – Serafine colocou a cabeça para dentro do salão, encontrando Lonel sentado atrás da mesa. Ele assentiu, acenando para que ela entrasse. Naquele momento, o escritório do elfo estava iluminado pelas janelas localizadas ao fundo. O crepúsculo lançava suas cores exuberantes sobre o aposento, diferente da noite em que ela havia espionado uma reunião, quando aquele salão estava quase todo escuro.

– Como vai, minha querida?

– Melhor. – Ela sorriu pela consideração dele. Lonel estava cansado, isso era evidente em seu olhar, mas parecia mais alerta do que antes. O ataque dos Amaldiçoados havia deixado uma profunda marca no elfo. Ele caíra numa armadilha e não se esqueceria disso. Serafine queria muito saber quem era a fonte que armara a traição. Iria pessoalmente até a mulher para fazê-la sofrer a dor que vinha sofrendo.

– Fico feliz em ouvir isso. Aquela invasão deixou, em muitos, feridas que o tempo não poderá apagar. – O elfo ergueu-se, afastando a cadeira, e caminhou até estar frente a frente com a garota.

Serafine sempre se surpreendia ao olhar nos olhos daquele ancião. Havia tanta sabedoria e exaustão pelos anos imortais que ele vivera, incontáveis memórias marcantes. A pele alva tinha minúsculos sinais de rugas e o cabelo claro preso no rabo nunca mostrava imperfeições. Ele parecia um senhor de cinquenta anos que ostentava a sabedoria de milênios.

– Lonel, como os Amaldiçoados invadiram essas terras? Dizem que as barreiras mágicas afugentam qualquer criatura das Trevas, mas tanto eles quanto Mahiry ultrapassaram-nas.

O elfo suspirou, e culpa ficou evidente em seus olhos.

– Mahiry foi a maior prova de que as barreiras estavam destruídas. Quando você a viu na área desprotegida, imaginamos que estivesse tudo bem, pois, por mais assombrosa que fosse a ideia de ter uma alma penada em seu encalço, você estava segura. Quando você a viu novamente no rio, porém, tive medo de que fosse um mau sinal.

– Como barreiras foram quebradas? Não foram feitas pelos Deuses?

– Sharowfox estava com os Amaldiçoados. Muito antes de qualquer ataque, ela veio até nós e convocou as sombras. Foi no dia em que você avistou o fantasma. Foi a Feiticeira quem extinguiu parte do poder que existia ali. As Trevas, quando invocadas no momento certo, instantes após a Lua Azul, destroem aquilo que a Luz criou. A magia dos Deuses é forte, sim, mas as barreiras não foram suficientes para impedir a invasão, talvez por existirem há centenas de anos, ou talvez por terem sido atacadas pela própria Rainha da escuridão. Era apenas um avatar de fogo, mas sua presença foi suficiente para trazer os monstros até o nosso território sagrado. O fato de Mahiry ter cruzado a área de segurança mostrou que o ataque estava planejado há muito tempo. E você deve estar se perguntando por que eles demoraram a atacar... – Ela anuiu em resposta. – Para nos pegar de surpresa. E agora estamos vulneráveis, pois nossa proteção não mais poderá ser erguida. – Ele massageou as têmporas ao chegar àquela parte, a pior da história. – Aquela pessoa em quem confiamos informou a localização do Castelo e também a entrada secreta que poucos conhecem. Fica depois do rio, num caminho em meio à mata não desbravada.

– Foi por lá que os Lobisomens entraram.

– Se tivéssemos escutado e investigado quando você falou sobre Mahiry, notaríamos a falta da magia. Notaríamos que o Castelo estava visível, que qualquer um poderia transpassar. Que os Deuses nos perdoem por tamanha afronta...

– Não se pode mudar o passado – Serafine murmurou, tentando aliviar a situação. O erro, infelizmente, já fora cometido, e eles deviam seguir em frente. É uma guerra, princesa, e que atire a primeira pedra aquele que não se sentir culpado por ela... A voz de Jarek voltou até ela.

– Tem razão – Lonel concordou e se animou, parecendo lembrar de algo. – Agora vamos ao assunto pelo qual a chamei aqui. Você sabe que, caso esse ataque não ocorresse, partiria para o Reino do Oeste com seus guardiões e lá continuaria treinando com o Primeiro Mestre. É preciso dominar um elemento antes de prosseguir para o próximo, mas, felizmente, você completou seu treinamento como controladora da água.

– E qual será o próximo elemento?

– Você descobrirá quando vislumbrar o Reino do Oeste. – Havia um pouco de diversão naquele enigma. – Conversei com Ývela, Jarek e Guillian e, como manda a promessa de sangue feita, eles aceitaram dar prosseguimento à sua jornada.

– Então nós partiremos para o Reino Árido? – Era outro nome dado ao Reino do Oeste. Tinha a ver com a fama do Grande Deserto de Mídria. Serafine lera histórias e ouvira vários viajantes comentando sobre os perigos que aquela terra inóspita guardava.

– Sim. Vocês devem passar pelo Deserto de Mídria para finalmente conhecer seu Segundo Mestre.

– Mídria... – Ela arriscou, perdida em pensamentos. Sua mente ligou uma palavra à outra e ela estacou. Como não havia percebido antes? – A Profecia tem algo a ver com aquelas terras?

– É claro. Ela foi proferida lá.

– Por isso o nome – ela murmurou consigo mesma.

– Sim. Eu estava no Reino do Oeste quando os Deuses me enviaram a visão. A Profecia recebeu o nome da região em que foi proferida. – Uma expressão de frágil alegria iluminou seu rosto, como se lembranças o fizessem voltar até aquele dia. – Vai adorar aquele lugar, minha querida.

– Quando partimos?

– É aí que está a questão. Os guardiões seguem suas ordens, então você decide. Assim que resolver deixar esse Castelo, iniciará sua jornada.

Serafine sentiu-se abalada com as palavras dele. Deixaria aquele paraíso para aventurar-se em terras perigosas? O que a aguardava em meio às dunas traiçoeiras? Mesmo sabendo que teria a companhia de seus três guardiões, o temor ainda se fazia presente.

Lembrou-se da história de Ývela, sobre os bárbaros que vendiam escravos. O que mais o Reino do Oeste poderia esconder? Seria capaz de deixar o paraíso de lado para embrenhar-se nas garras do desconhecido?

Lonel pareceu compreender a discussão interna que a consciência de Serafine travava. Seu olhar austero mostrou que esperaria pacientemente pela decisão da garota.

Serafine lutou consigo mesma. Era o dever contra a vontade. Ela não queria escolher, mas sabia o caminho que deveria tomar. A dúvida não podia prosseguir em seu coração, pois ela tinha de agir como a escolhida.

– Partiremos assim que eles estiverem prontos.


Capítulo 34

Fragmento

 

 

A última refeição foi realizada no grande salão, com novas homenagens aos mortos daquela batalha. Serafine ouviu elfos que nem conhecia exaltando a bravura dos que haviam partido e também daqueles que ainda viviam. Todos os que estavam ali tinham mostrado honra e dignidade ao proteger aquele santuário, orgulhando os Deuses.

Serafine perguntava-se se, realmente, os Deuses estariam orgulhosos de sua conduta. Depois de tanto tempo exercitando, havia conseguido dominar a água. Estariam as divindades satisfeitas com seu desempenho? Gostaria de receber algum sinal de que estava agindo da maneira esperada, de que vinha fazendo o certo. Ela não podia afirmar que a luta havia sido magnífica, mas sentia que havia algo de perigoso escondido atrás daquele muro de incerteza em sua memória.

Depois do banquete, Serafine foi chamada por Lonel para acompanhá-lo numa caminhada. O manto de ébano encobria o céu pipocado por estrelas, e algumas nuvens ousavam passear pela paisagem, muitas delas encobrindo a Lua. O clima estava quente, como normalmente ficava naquela época do ano, e não havia sinal de brisa. Já fazia três dias desde a batalha e a partida de Serafine e seus guardiões até o Reino do Oeste seria na manhã seguinte.

Era fato que ela não se sentia preparada para viajar, mas confiava nos seus protetores e sabia que eles a manteriam em segurança, por mais desconhecidos que fossem os caminhos. O Deserto de Mídria era traiçoeiro, diziam os viajantes que já haviam passado por lá.

Lonel permaneceu em silêncio até parar num determinado espaço, o mesmo que dava visão para a cachoeira e o rio além. Serafine percebeu que ele carregava algo em suas mãos, algo pequeno o bastante para não ter sido notado antes. O elfo encarou as montanhas ao longe. Seus cumes cobertos de neve escondiam os mistérios que as Terras Desconhecidas guardavam. O elfo suspirou, demonstrando o cansaço que ostentava desde a invasão, e voltou-se para sua acompanhante.

– Tenho um presente para lhe dar antes de sua partida. Algo que a ajudará a encontrar o caminho mais seguro até seu destino final.

Ele devia estar se referindo à localização de Cílion, Serafine pensou. Ela deveria destruí-la no fim de tudo.

O elfo estendeu a mão, deixando o objeto à mostra para Serafine. Ela surpreendeu-se ao ver do que se tratava.

Era um fragmento de pedra dourada, polida e perfeitamente arredondada, que cobria parte da mão do ancião. Serafine encarou aquilo com curiosidade, sem entender como tal pedrinha a ajudaria a seguir seu caminho. Lonel, parecendo compreender o olhar de dúvida da garota, explicou:

– É um fragmento da própria Pedra Cílion. – Serafine arfou, assombrada pela revelação. A poucos centímetros de sua mão estava um pedaço daquilo que ela deveria destruir. – Eu o recebi das mãos de uma criatura especial, e ela me disse que a magia presente nessa pedra passaria para a escolhida, de modo que, por maiores que sejam os seus desafios, sempre poderá contar com o auxílio de uma guia.

– E eu poderei usá-la o tempo todo?

– Não. Você, por ter uma conexão com as Divindades, vai criar um laço com essa pedra. Sempre que precisar, ela lhe auxiliará. Mas, para isso, usará sua própria energia. Se me permite um conselho, deixe-a para momentos de extrema necessidade. E guarde-a até que se aproxime do Leste. Ela não será necessária nessa viagem ao Reino Árido.

– Conexão?

– Quando o escolhido nela tocar, seu caminho irá encontrar... – O elfo recitou, utilizando um tom suave e harmonioso. Serafine engoliu em seco, preparando-se para receber a pedra em suas mãos, mas o elfo hesitou.

– O que houve? – perguntou, temendo algum acontecimento fora do comum.

– Acredito que seja melhor não tocar na pedra ainda, minha querida. – Ela mostrou-se confusa. – Você passou por muitas turbulências nesses últimos dias, Serafine. Sua mente ainda é incapaz de recordar os acontecimentos da batalha. Se passar por mais um choque, talvez as informações se acumulem e resultem em algo ruim. Muito poder pode confundir. – Ele pegou um pequeno lenço de veludo no bolso de suas vestes e enrolou a pedra nele, não a deixando em contato direto com Serafine. Entregou o embrulho para a garota. – Use somente no momento necessário.

Ela ficou pensativa quanto ao aviso que ele repetira diversas vezes. Sabia que seguiria o conselho do elfo, mas não podia excluir a curiosidade. O que iria sentir? Qual seria a sensação ao conectar-se a uma pedra mágica? Como seria guiada pelo caminho certo?

Afastando os pensamentos animados, ela concentrou-se na realidade: aquela pedra a esgotaria e não poderia mostrar-se fraca naquela viagem. Colocou-a no bolso de seu casaco, decidindo pedir a Ývela que guardasse o artefato e só a deixasse tocá-lo quando realmente precisassem.

Lonel se despediu dela, dizendo que pretendia meditar um pouco antes de retornar ao Castelo, e Serafine fez sozinha o caminho de volta. Andou lentamente para lugar algum, olhando para o chão, concentrada em contar seus passos para espantar o tédio, quando um vulto passou ao seu lado e a dor em sua cabeça começou.

Foi apenas um instante, que teria passado despercebido a alguém sem os poderes sensitivos de Serafine. Lentamente, ela voltou seu olhar para a figura translúcida parada próxima de si. Mahiry continuava com a expressão de raiva e mágoa, os olhos grandes queimando em emoções ruins, mas sua figura estava menos aparente agora.

– Mahiry – Serafine murmurou. Havia piedade em sua voz, assim como em seu coração, e foi isso que a incitou a caminhar em direção ao fantasma. Sua melhor amiga continuou paralisada. – Sinto muito, por tudo. Eu gostaria... Eu daria qualquer coisa para mudar o que aconteceu. Você e meu pai e tantos outros que morreram... A culpa nunca vai me abandonar, e acho que é por isso que você continua me seguindo.

Mahiry balançou a cabeça. Serafine arfou por receber uma resposta da sempre silenciosa alma. Não houve palavras, mas aquilo foi suficiente. O fantasma negou o que a garota havia dito.

– Você não está me seguindo porque sente raiva?

Novamente uma negação.

– Então por que me atormenta? O que há de errado? – Serafine desesperou-se, ansiando que a alma dissesse algo. Mahiry não esboçou reação. – Diga-me! Talvez eu possa ajudar. Eu... É estranho dizer isso, mas tenho poderes agora. Não sou mais uma humana. Esses desenhos no meu corpo são símbolos que marcam meu espírito. Eu nasci destinada a derrotar uma poderosa Feiticeira maligna... O que não significa que eu vá derrotá-la – acrescentou, amargurada. – Mas vou tentar, prometi que tentaria.

Serafine viu-se conversando como sempre fizera com a melhor amiga. Apesar da faceta fria e zangada, Mahiry prestava atenção em cada palavra sua. Suspirando, a morena massageou a ponte do nariz, sem saber o que fazer.

– Por favor, Mahiry, me dê um sinal. Qualquer coisa que possa ajudá-la.

– Não há salvação para mim... – A voz do fantasma era idêntica à de sua amiga, mas estava fraca, como a de um enfermo. – Meu espírito agora serve a outro. Cuide-se, Serafine...

Sua imagem desapareceu, transformando-se em fumaça.

Serafine cambaleou para trás, como se tivesse sido atingida por um forte empurrão. Mahiry podia não estar com raiva, mas com certeza havia tirado seu equilíbrio. O latejar insistente e o mal-estar desapareceram, e Serafine arfou, vendo-se sozinha naquele caminho. O Castelo estava visível ao fundo, com o cristal no alto da maior torre sendo tocado pela luz das estrelas.

Nem parecia, mas já fazia um mês que estava vivendo naquele paraíso. Fazia, então, quase dois meses que partira de Vila do Sol. Era estranho pensar que tanta coisa mudara em tão pouco tempo, mas já estava acostumando.

Era impossível impedir mudanças em sua vida nova.


Capítulo 35

Partida

 

 

A bolsa de couro que Ývela entregou a Serafine estava cheia de suprimentos. Todo tipo de comida que, segundo Lonel, demoraria a estragar. Aquele estoque duraria pouco mais de duas semanas. Guillian dissera que, se seguissem um ritmo constante de viagem, alcançariam o Deserto após uma semana; portanto, seria bom que economizassem o máximo de comida.

A bolsa de couro também guardava alguns livros, inclusive aquele com o desenho elaborado na capa, com seu conteúdo misterioso ainda indecifrável para Serafine. Lonel prometeu que o Oeste traria respostas.

O Sol despontara no horizonte há uma hora e Serafine não havia parado desde então. Ajudou sua guardiã a carregar as coisas até os corcéis, auxiliou Guillian com a escolha de armas para levarem, onde ela, obviamente, optou pelo arco e flecha que ganhara da guardiã. Jarek estava preocupado com a quantidade de espadas que levaria, o que, depois de muitas discussões, tornou-se um assunto irritante.

Serafine ganhou um cavalo do lorde elfo, um animal altivo, de pelagem marrom escura, com olhos negros e inquisidores, assim como os de Darius, o corcel de Jarek. Aliás, Darius pareceu feliz ao reencontrar Serafine. Ele havia sido solto na floresta, livre para vagar até que fosse necessário novamente. Fora chamado por Ývela, com aquele curioso dom psíquico, e balançou a cabeça em animação ao reencontrar seus companheiros de viagem.

– Pegou o suficiente? – Lonel indagou com suavidade, colocando-se ao lado de Serafine. Ela ergueu seus olhos para ele, encontrando um sorriso discreto nos lábios do ancião. – É bom ver que a profecia está se cumprindo.

– Não sei por quanto tempo.

– Não tema o futuro, Serafine, e se concentre no presente. Tenha fé em si mesma, assim como seu primeiro Mestre teve. Ele confiou em suas atitudes, sabia a força que havia em seu espírito. Você também deve acreditar. – Ela assentiu, deixando o olhar vagar até seus três guardiões.

Jill também estava ali, mas apenas para ajudar Guillian a arrumar sua montaria. Todos ajustavam algumas coisas em suas respectivas montarias. O de Guillian era um pônei, mas ele o tratava como um gigantesco e imponente cavalo. Como sempre acontecia depois de um devaneio sobre a fé em si mesma, Serafine conseguia resgatar coragem para acreditar em seu futuro. Precisava acreditar que faria a coisa certa. O sucesso dependia da sua coragem. Jarek parou o que fazia e espreguiçou-se, encarando Serafine logo em seguida.

O guerreiro vestia-se com roupas próprias para uma longa viagem: calças de coloração marrom, colete sem mangas que cobria o tronco e as costas completamente, feito de couro de Escorpião Gigante. Os elfos haviam usado coletes idênticos durante a batalha, dias atrás, e isso salvara a vida de muitos combatentes. O bracelete cor de bronze estava em um de seus braços, enquanto o antebraço estava coberto por aquela faixa de couro marrom. Ele nunca lhe explicara o motivo de esconder aquela parte do corpo, mas Serafine não ousava perguntar. Jarek não era gentil com informações pessoais.

Mas não foi a vestimenta dele que chamou a atenção da garota, e sim seu olhar. A expressão no belo rosto era impassível, e o canto esquerdo da boca estava levemente curvado, um sorriso discreto. A imensidão escura de seus olhos foi capturada por Serafine, que identificou uma evasão de emoções. Ele temia encará-la. Desde a visita ao seu quarto eles não haviam se falado direito. Serafine suspirou, desviando seu olhar para o céu. Não queria ter de encarar o guerreiro a não ser que fosse estritamente necessário; ele causava-lhe emoções confusas demais.

– Acho que está tudo pronto.

Ývela parou em frente aos dois com seu sorriso simpático. Vestia uma roupa simples e confortável, composta por uma calça bege e um colete igual ao de Jarek, adaptado ao seu tipo físico. Os cabelos cor de trigo estavam presos em uma trança alta, sem deixar os fios escaparem, e seu cinto continha uma afiada espada de prata.

Serafine olhou para si mesma, vestindo uma roupa parecida com a de sua guardiã. A calça era justa e as botas altas. O colete era de coloração mais escura do que a dos guardiões, quase do mesmo tom de sua pele, e os braços e pescoço e as laterais do rosto expunham os desenhos que os Deuses haviam marcado em seu corpo. Era curioso observar como havia mudado de ideia sobre aquelas marcas; agora, elas traziam-lhe orgulho. Serafine nunca mais se envergonharia por ser diferente.

Os longos cabelos negros estavam soltos, com algumas mechas trançadas entre si, e a aljava cheia de flechas fora firmemente amarrada ao seu tronco.

Guillian também levava arco e flechas, além da lança que sempre carregava. O felpudo usava apenas calças largas, apesar de carregar um casaco; o Deserto ficava gelado durante a noite.

– Devemos partir – Jarek anunciou de onde estava, aumentando o tom de voz. – Temos um longo caminho pela frente.

– Ele está certo.

Lonel aproximou-se de Ývela para abraçá-la e desejar boa sorte naquela viagem. A ondina, sentimental como era, emocionou-se com a despedida. A incerteza de um retorno era clara, de modo que aquele era um adeus definitivo.

Sem querer, Serafine ouviu um sussurro do elfo em uma língua estranha. Era um segredo impossível de ser decifrado, mas despertou a sua atenção. Ývela fez um aceno positivo, como se compreendesse o pedido.

Serafine abraçou seu próprio corpo, temendo perder o controle como quando o Mestre morrera. Jarek a mantivera em seus braços naquele dia, durante longos e incansáveis minutos. Agora ele estava distante, inalcançável pelo muro insensível que haviam reerguido entre si.

– Serafine... – O elfo abriu os braços, recebendo a garota num caloroso abraço. Ela afundou o rosto no ombro dele, concentrando-se naquele momento. A amizade que havia criado com o compreensivo e atencioso imortal jamais seria esquecida. Ela seria eternamente grata por tudo que recebera. – Cuide-se lá fora, criança. E saiba que, assim como aqui, encontrará criaturas crentes na profecia, que lhe concederão abrigo e ajuda para prosseguir em sua jornada.

– Espero voltar a vê-lo, Lonel. Sua amizade se tornou muito importante, e sempre agradecerei por tudo o que fez – disse Serafine com sincera simpatia. Um sorriso alegre iluminou o rosto do imortal, trazendo brilho aos seus olhos.

– Fico grato por ter tido sua companhia nesse tempo, minha querida. E que seu espírito seja guiado pelos Deuses daqui para frente. – Ele afastou-se, acenando para Guillian. O felpudo fez uma reverência e dirigiu-se ao pônei.

Serafine adiantou-se até Jill, que acabara de ser esmagada num abraço amigável de Ývela, e sorriu. A guerreira ranzinza parecia um pouco abalada pela partida deles, sem poder acompanhá-los. Precisava ajudar seu povo depois daquela batalha, e também tinha assuntos pendentes na capital do Reino. Contudo, prometera a Serafine que logo voltariam a se encontrar. Seu maior abalo, no entanto, era a partida de Guillian, com quem tivera uma rápida troca de olhares. Havia mais emoções ali do que todos podiam imaginar.

Jarek foi o único que recebeu apenas um olhar intenso do elfo ancião. Não houve troca de palavras, mas aqueles olhos claros levaram informações preciosas ao guerreiro. Ele fez um aceno rápido e montou em Darius. Serafine olhou de um para o outro, curiosa. Eles provavelmente já tinham conversado. Mais segredos estavam sendo guardados, e ela já estava acostumada.

Quando já se encontrava sentada no corcel que a guiaria, de nome Renk, ela encarou uma última vez aquela paisagem paradisíaca.

Seu olhar vagou pelas torres do Castelo de mármore branco e a memória reavivou a imagem dos jardins tal como os vira ao chegar. Naquela manhã, olhara para o Norte e vira pequenos pontos de cor verde em meio à negritude da floresta ferida. Também observou as montanhas ao fundo da floresta, seus picos de gelo tocando as nuvens do céu. Lembrou-se das histórias contadas por Lonel, das raças que haviam viajado para as Terras Desconhecidas, e pensou como seria aquele lugar.

Pensou como seria viver longe daquele mundo... Quais seriam os perigos de uma civilização tão diferente da sua.

Quando Jarek incitou seu corcel a cavalgar, os outros dois guardiões o seguiram e, relutante, Serafine fez o mesmo. Enquanto adentrava mais e mais a floresta, deixou para trás uma grande parte de sua história. E pensar que, em um passado não tão distante, considerava-se uma garota normal, vivendo em um vilarejo comum, cheio de humanos preocupados com suas vidas pacatas.

Agora, seu espírito precisava ser forte para proteger aquele mundo. A viagem a levava rumo à outra parte de sua vida. Cavalgaria pelo Deserto de Mídria para encontrar o Segundo Mestre.

Tinha ao seu lado três poderosos guardiões. Os Deuses acompanhariam cada passo seu. Estava certa, não importava o que o futuro lhe reservasse, de que estaria pronta. Estaria pronta por si mesma e por Warthia.


Epílogo

Mensagem ao Rei

 

 

O céu anil nunca parecera tão vazio. Seus olhos âmbar, de uma coloração forte que em certos momentos podia ser comparada ao dourado, buscavam algo em que se concentrar para não perder o controle.

Estava parado na sacada da Sala do Trono, com visão para o Mar do Norte. As águas calmas estendiam-se além do horizonte, carregando consigo a dúvida do que existia após a linha que unia mar e céu. A alta floresta vinha antes, colorindo a paisagem com seus diversos tons de verde.

O Reino das Florestas era conhecido por ostentar as mais variadas belezas naturais. Rico em vegetação, água e diversidade de raças, o Norte era um Reino abençoado pelos Deuses. Todos eram, mas cada Rei sentia apreço pelo seu Reino em particular.

Demetrius, porém, sabia o quanto era errado pensar daquela maneira. Era o Rei dos Reis, soberano de Warthia. Seu dever era amar os Quatro Reinos daquele enorme continente. Havia nascido no Norte, mas seu coração pertencia a cada canto daquele mundo.

De fato, o Reino do Sul era o mais perigoso, o do Leste o mais pobre, e o do Oeste, o mais misterioso, mas cada um apresentava diversidade em suas riquezas naturais. Era isso que sempre despertava a atenção do governante: a natureza de Warthia. Aquela que era sentida tão intensamente por um Mago como ele, descendente do Primeiro Rei, aquele que derrotara a maligna Feiticeira das Trevas.

O sangue que corria em suas veias, herdado de seu pai, era o motivo de seu maior orgulho.

Warthia estava em paz há tanto tempo... Tempo demais até para alguém que via os anos passarem lentamente. Os Magos, assim como alguns outros povos, descendiam de elfos e de misturas com várias outras raças poderosas. Viviam mais do que os humanos. Para um mortal, sessenta anos para um mortal, mas um Mago demorava a envelhecer. Sua aparência permanecia jovem por um longo tempo.

A notícia que acabara de chegar abalava o rosto jovial do Mago. A ideia de que as Trevas haviam sido derrotadas fora abandonada. Havia provas de que as forças de Sharowfox despertava. Demetrius passara sua infância ouvindo as histórias da gloriosa noite em que seu antepassado condenara a Feiticeira ao Abismo e, desde pequeno, acreditou que o retorno dos mortos era impossível. A necromancia era um mito. Tal notícia provava quão errado ele estava. Sharowfox estava ascendendo para destruir aquilo que o seu antepassado construíra.

Ela queria vingança.

Com um suspiro resignado, Demetrius afastou-se da janela e caminhou pela gigantesca Sala do Trono. Havia muita gente ali, mas ele ignorou a todos. Não gostava de apresentar-se rigidamente, mas aquele momento mexera com suas emoções. Não podia entrar em pânico, nem demonstrar o temor que crescia no coração martelando fortemente contra o peito.

Havia algo que o atormentava naquela notícia, um detalhe muito importante. Como aquela centena de monstros fora eliminada, restando apenas um? Precisava contatar os elfos o mais rápido possível. Aquela dúvida precisava ser sanada.

Subiu os três degraus de pedra até seu trono. Uma construção feita de prata, um metal tão precioso para os Magos. O elaborado entalhe na prata lembrava galhos longos enfeitados por folhas. O Grande Sol, símbolo do Reino do Norte, estava pintado em ouro bem no topo, com oito raios perfeitamente alinhados ao redor do círculo central.

Aquele trono era o símbolo máximo de poder em Warthia, pois, além de representar o governo do Norte, mostrava também que o homem sentado ali era o soberano do mundo. E lá Demetrius se sentou.

Sua mãe, compreensiva e calma como sempre, estava em pé ao lado de alguns lordes da Corte, aguardando o pronunciamento do Rei. Ele, porém, não sabia o que dizer.

Gostaria de ter a companhia de seus irmãos, ou ao menos de um deles, já que o jovem Rei do Oeste era o mais sábio. Demetrius tinha fé no que Jon dizia, por mais louco que parecesse qualquer conselho seu. Ele o havia ajudado anos atrás na decisão mais importante de sua vida.

Se não fosse o jovem Rei, Demetrius teria condenado duas vidas inocentes à morte. Mesmo com a incerteza do destino levada por aquelas duas pessoas, havia o alívio de que a escolha fora a mais correta.

– Meu soberano? – Ele viu-se trazido de volta à realidade. Apoiando as mãos nas laterais do trono, Demetrius ficou de pé. Os presentes fizeram uma reverência.

Todos ali podiam encontrar a preocupação no olhar do austero Rei. Ele era sábio e controlado, mas a informação o abalara. Não havia como esconder a verdade de seus confiáveis lordes. A conspiração estava começando. A guerra se mostraria inevitável.

A figura alta e robusta de Demetrius transmitia calma quando ele começou a falar. Seu rosto anguloso tinha pele branca como a de sua mãe, marcada por um bronzeado suave, e os olhos cor de âmbar herdados do Primeiro Rei. Era um tom raro aquele, variável de acordo com a luz. Naquele momento, uma sombra pairava sobre sua face.

O cabelo era curto e desgrenhado. Um cavanhaque bem aparado contornava os lábios fartos. O tom era escuro, como os cabelos do falecido pai. O sorriso, embora suave e pouco usado, deixava o Rei ainda mais belo do que o normal. Sua idade contrastava com a jovialidade de suas feições. A imortalidade fraca em seu sangue o deixaria com aquela aparência por um longo tempo.

– Meus amigos – ele iniciou. A voz grave e recatada era encantadora em certos momentos, mas altiva quando necessário. – Rogo para que se acalmem, pois esta notícia também abalou meu coração. Torçamos para que ainda haja tempo de impedir que aquele monstro alcance a fronteira, apesar de duvidar disso. O Amaldiçoado corre com o poder das Trevas.

– Vossa Graça... O que faremos?

– Buscaremos auxílio dos outros Reinos. Reúna o Conselho de Tytos, preciso da opinião dos quatro lordes deste Castelo. Se, assim como eu desejo, for dada a ordem, partirei imediatamente para encontrar um de meus irmãos. Preciso do apoio deles caso a guerra bata à nossa porta. Sharowfox não pode ascender.

– E quanto à Profecia?

O Rei retesou-se, o olhar congelado em preocupação. Todos os olhos da sala estavam nele, até os de sua mãe. Inquisidores, porém discretos.

– A Profecia será cumprida quando os Deuses desejarem. Se Sharowfox está retornando, então o espírito escolhido está entre nós.

Sem mais nada a dizer, ele marchou até as portas de saída. Os soldados se alvoroçaram, buscando avisar os outros lordes sobre a importante reunião. Demetrius foi parado no corredor por mãos suaves. Sua mãe exibiu um olhar curioso.

Era meio-elfa. Ainda considerada a Rainha, já que Demetrius nunca se casara.

A história do pai dos Quatro Reis só ficou conhecida por todos quando seu filho mais querido, Demetrius, resolveu, ao assumir o trono, dividir Warthia em quatro Reinos distintos. Dizia ele ser a melhor opção, já que o fulgor de monstros ainda se fazia presente. A paz poderia ser alcançada se houvesse quatro governantes, cada um cuidando de um determinado espaço.

O grande problema, desconhecido pela população, era a existência de um quarto irmão. O pai dos grandes Reis, antes de se casar com a Rainha, havia caído de amores por uma desconhecida e com ela teve um filho. Não o assumiu e também não assumiu o possível caso com a mulher, já que estava prometido para a nobre garota que viria a se tornar sua esposa.

Depois do nascimento dos três outros filhos, quando Demetrius completara dezoito anos, foi-lhe dado o trono. Seu pai, enfermo, morreu após a coroação. Então o Rei Demetrius anunciou sua decisão: dividiria Warthia e daria um Reino para cada irmão, incluindo o bastardo. Todos consideraram sua atitude nobre, já que o quarto filho não tinha direito sobre o trono, e outros viram aquilo como uma loucura. O Rei, porém, parecia ter fé de que o sangue real dominava as atitudes do irmão ilegítimo.

Demetrius governou, então, no Reino das Florestas. Ao segundo irmão, Red, foi dado o Reino das Montanhas. Ao mais jovem, Jon, foi entregue o Reino Árido. Na época, ele era apenas uma criança, mas seu tutor tomou conta das decisões até ele ter a idade necessária. Por fim, Maltrus, o bastardo, recebeu a posse do Reino das Brumas, o mais longínquo, talvez para mostrar que ele não pertencia ao mesmo patamar que seus três meio-irmãos.

Demetrius não tinha confiança excessiva em Maltrus, mas escolheu-o por ver em seus olhos a força de um líder. Maltrus, de fato, veio a se tornar um excepcional Rei e nunca causou confusão. Era muito ausente e nunca saía do Sul para visitar os outros, mas ninguém se incomodava, já que sua personalidade reclusa e misteriosa era muito conhecida. Assim como o Reino que ele comandava, seu rosto estava encoberto pelas misteriosas brumas.

O Grande Rei agora encarava sua mãe. Seu rosto belo era pouco marcado pela idade avançada, por mais que seus olhos transmitissem sabedoria. Demetrius sabia o quanto a Rainha desprezava o filho ilegítimo que carregava o sangue de Tytos, mas nunca fora contra as decisões de seu primogênito. Ela confiava no julgamento de Demetrius mais do que em qualquer outro.

– Acha que seu sonho naquela noite, mês passado, relacionava-se a isso, meu filho?

– Do que está falando, minha mãe?

– Na noite em que a Lua Azul brilhou mais forte. Na noite em que todos nós sentimos uma energia estranha emanando por essas florestas. Acha que Lonel encontrou o espírito escolhido?

Demetrius não demonstrou reação, mas a mãe sabia que aqueles olhos dourados ocultavam alguma coisa. Algo que ele mesmo tentava esconder. O Rei tinha a resposta para aquelas perguntas, mas foi evasivo.

– Não posso confirmar nada, minha mãe, pois os planos divinos são incertos. Se o espírito escolhido renasceu, cabe a nós tomar as medidas necessárias para ajudá-lo em sua difícil missão.

Enquanto o Rei se retirava, dirigindo-se aos seus aposentos, a mãe o observou. Pensativa, ela deixou a memória retornar a anos atrás, a uma noite em particular.

Era o fim da primavera, época de colheita. Fazia frio, e o vento cortava o céu com uma velocidade surpreendente. Estava caminhando pelos corredores quando ouviu uma voz masculina cheia de alegria, desconhecida, exclamando para outra pessoa:

– A esperança vive!

A mãe do Rei teve que correr para não ser vista quando os soldados marcharam na direção daquele aposento. A discussão que ocorreu lá dentro foi silenciosa e impossível de ser ouvida. Uma caçada tinha sido ordenada mais cedo; uma bruxa estava nas redondezas, e a ideia de tê-la próxima da escolhida dos Deuses perturbou os soldados do Grande Rei. Sua mãe não permaneceu para ouvir o que ele disse, mas, naquela época, temeu pela criança marcada. Nada mais foi informado, mas sua curiosidade persistia. Ela não descobriu o que havia se passado depois daquela noite.

Qualquer que fosse a esperança, ela rezava para que pudesse impedir o domínio do mundo em que viviam. As Trevas não podiam retornar.

Warthia precisava ser salva.


***


Longe o suficiente do enorme Castelo de Tytos, mancando e ofegante, o monstro corria sobre as quatro patas. Apesar dos ferimentos, utilizava sua velocidade sobrenatural. Precisava atravessar a fronteira. Ouvia, ao longe, os gritos dos soldados, mas riu da tolice deles.

Jamais o alcançariam.

As Trevas o auxiliavam. As sombras encobriam seus passos e seu cheiro. Deixavam um rastro falso para aqueles humanos tolos.

Sangue escorria de um corte em seu braço, mas ele ignorava. Na hora certa faria aquele guerreiro pagar com a vida. Faria com que Jarek sofresse as mais inimagináveis dores. Sua senhora já tinha planos para o guardião, afinal de contas.

Tinha sido tão deliciosamente fácil espionar aqueles tolos. Sua tropa levou um mês para armar o plano perfeito e a invasão ocorrera com sucesso.

Sua Rainha ficara furiosa ao ver que a escolhida despertara seus poderes, mas o recado fora dado. Por mais que o espírito já tivesse despertado, ainda podiam impedi-la de prosseguir. A controladora das Trevas tinha mais poderes do que eles podiam imaginar.

O Rei dos Reis agora sabia do ataque e logo desvendaria os planos de Sharowfox. Quanto mais tempo se passava, mais sua ascensão se tornava evidente. A alma de sua Rainha já tinha poder suficiente para controlar um avatar, mesmo presa ao Abismo. Dali a alguns meses estaria liberta e pronta para absorver a força necessária. As Trevas triunfariam, massacrando a bondade daquelas criaturas nojentas. Sanzur estava ansioso para ver o império de caos que Sharowfox traria sobre aquela terra.

Ele riu e uivou para a Lua no céu. Estava cheia, como os Lobisomens gostavam. Seus poderes ficavam revigorados após a Lua de Ímani, pois, a partir do momento em que o brilho azulado da Deusa deixava o céu, o brilho perolado de um poder desconhecido pelos outros iluminava a alma dos que fossem merecedores.

Acelerou o passo de repente, avistando o largo rio à sua frente.

Precisava chegar até o Rochedo Sombrio. Precisava avisar que o plano correra conforme o esperado.

A menina não sabia o que a aguardava assim que avançasse pelo Reino do Oeste. Sua vida corria riscos e ninguém suspeitava disso. Era um plano de mestre, Sanzur tinha que admitir. Tão sutil e bem escondido, não havia como descobrirem sobre ele. Quando descobrissem, seria tarde demais.

Com a glória quase ao seu alcance, o enorme Lobisomem ruivo saltou o extenso rio que marcava a fronteira do Reino das Florestas com o das Montanhas. Logo alcançaria as Brumas e, então, o espírito de Serafine seria fisgado.

 

 

                                                   Denise Flaibam         

 

 

 

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