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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Sra. FIRMIANI / Honoré de Balzac
A Sra. FIRMIANI / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A um leitor já familiarizado com a maneira de Balzac, A sra. Firmiani (em francês, Madame Firmiani) dá a impressão de um exercício de técnica, antes que de uma obra realmente acabada. A novidade consiste na apresentação da personagem principal, feita de modo muito original: cada um dos interlocutores imaginários do autor—pertencentes a outras tantas “espécies” sociais, dessas de que Balzac fala em seu prefácio à A comédia humana — revela uma das faces desse caráter misterioso que tanto menos compreendemos quanto maior o número de testemunhos a seu respeito. Aguarda-se, pois, com impaciência a chave do enigma.

Uma vez explicado, porém, este não nos interessa bastante. Ao relatar a generosa ação praticada por Otávio de Camps sob a influência da sra. Firmiani, em vão Balzac afirma tratar-se de episódio realmente acontecido: não ficamos bastante persuadidos. Achamos que a novela fornece mais uma prova da afirmação (transformada em acusação, mais de uma vez, por críticos incompreensivos) de que Balzac, realmente grande na pintura do vício, é inferior ao retratar a virtude.
Repare-se na última frase do conto, acrescida a este sem necessidade orgânica, pois serve para explicar muito menos a virtuosa Firmiani do que as grandes cortesãs de A comédia humana, esses esplêndidos monstros do vício. Dir-se-ia que o autor, acossado mais de uma vez por suas leitoras femininas, descontentes de ver tantas mulheres imorais em seus romances, resolveu mostrar-lhes um milagre de virtude, arrematando a sua palinódia com esta cômoda desculpa: a mulher é naturalmente boa; quando é má, é por ação do homem.
Entrevê-se em A sra. Firmiani um romance não acabado, talvez nem começado, de A comédia humana, a história de como o pai de Otávio de Camps reunira a sua fortuna espoliando outra família. Este, sim, era um assunto para um verdadeiro romance de Balzac, irmão digno de A prima Bete ou de O primo Pons.

 


 

 

A meu caro Alexandre de Berny (A dedicatória é endereçada a Alexandre de Berny, um dos filhos da Dilecta e que sucedeu Balzac na direção da sua malograda tipografia.)
Seu velho amigo, De Balzac
Muitas narrativas, ricas em situações ou tornadas dramáticas pelos inúmeros lances do acaso, carregam consigo mesmas seus próprios artifícios e podem ser contadas
artisticamente ou com simplicidade por quaisquer lábios, sem que o assunto perca a mais insignificante das suas belezas. Existem, porém, algumas aventuras da vida
humana às quais somente as vozes do coração restituem a vida; existem certos detalhes, por assim dizer, anatômicos cujas delicadezas não revivem a não ser sob as
mais hábeis infusões do pensamento; existem também retratos que querem uma alma e nada são sem os traços mais sutis de sua fisionomia móvel; enfim, encontram-se
coisas que não sabemos dizer ou fazer, sem não sei que harmonias desconhecidas que são presididas por um dia, uma hora, uma conjunção feliz nos signos celestes ou
por secretas predisposições morais. Essas espécies de revelações misteriosas eram imperiosamente exigidas para contar esta história simples, à qual quiséramos poder
interessar algumas dessas almas naturalmente melancólicas e sonhadoras que se alimentam de emoções suaves. Se o escritor, semelhante a um cirurgião junto a um amigo
moribundo, se deixou penetrar por uma espécie de respeito pelo assunto que manejava, por que o leitor não partilharia esse sentimento inexplicável? Será coisa difícil
o iniciar-se nessa tristeza vaga e nervosa que espalha tintas pardacentas em torno de nós, uma quase doença, cujos sofrimentos toleráveis, por vezes, agradam? Se
por acaso pensais nas pessoas queridas a quem perdestes, se estais sós, se é noite ou se o dia morre, continuai a leitura desta história; de outra forma, atiraríeis
fora o livro, neste ponto. Se ainda não enterrastes alguma boa tia inválida ou sem fortuna, não compreendereis estas páginas. Para alguns, elas parecerão impregnadas
de almíscar; para outros, parecerão tão descoloridas, tão virtuosas como o pode ser uma página de Florian (Florian: Jean-Pierre-Claris de Florian (1755-1754), autor
de fábulas de tendências moralizadoras.). Para sermos completos, diremos que o leitor deve ter conhecido a voluptuosidade das lágrimas, ter sentido a dor silenciosa
de uma recordação que passa suavemente, carregada com uma sombra querida, mas sombra longínqua; deve possuir algumas dessas lembranças que fazem ao mesmo tempo ter
saudade daquilo que a terra nos devorou e sorrir por uma felicidade que se esvaiu. Agora, crede que, mesmo pelas riquezas da Inglaterra, o autor não quereria extorquir
à poesia uma única das suas mentiras para embelezar sua narrativa. Esta é uma história verdadeira, pela qual podereis despender os tesouros de vossa sensibilidade,
se é que a tendes.
Nossa língua, hoje, tem tantos idiomas quantas variedades de homens existem na grande família francesa. Por isso, é uma coisa verdadeiramente agradável e curiosa
ouvir as múltiplas acepções ou versões externadas sobre um mesmo objeto ou sobre um mesmo acontecimento por todas e cada uma das espécies que compõem a monografia
de parisienses, sendo o parisiense considerado para generalizar a tese.
Por exemplo, perguntaríeis a um indivíduo pertencente ao gênero dos Positivos:
— Conheceis a sra. Firmiani?
E ele vos retrataria a sra. Firmiani com o seguinte inventário: um grande palacete situado na rue du Bac, com salões bem mobiliados, belos quadros, cem boas mil
libras de renda e um marido, outrora recebedor-geral no departamento do Montenotte. Tendo dito isso, Positivo, homem maciço e redondo, quase sempre vestido de preto,
faz um pequeno trejeito de satisfação, ergue o lábio inferior, franzindo-o de modo a cobrir o superior, e meneia a cabeça como quem diz: Aí está uma gente sólida
e da qual nada há a dizer. Não lhe pergunteis mais nada! Os Positivos tudo explicam por algarismos, pelas rendas ou pelos bens ao sol, um dos termos de seu léxico.
Virai-vos à direita, ide interrogar aquele outro que pertence ao gênero dos Flanadores e repeti-lhe vossa pergunta:
— A sra. Firmiani?—diz ele.—Sim, sim, conheço-a bem, vou às suas recepções. Seu dia é quarta-feira; é uma casa muito decente.
A sra. Firmiani já se metamorfoseia em casa. Essa casa já não é mais um amontoado de pedras superpostas arquitetonicamente; não, essa palavra, na linguagem dos Flanadores,
é um idiotismo intraduzível. Aqui, o Flanador, homem seco, de sorriso agradável, a dizer lindos nadas, tendo sempre mais espírito adquirido do que espírito natural,
inclina-se a vosso ouvido e com ar sutil vos diz:
— Nunca vi o sr. Firmiani. Sua posição social consiste em administrar bens na Itália, mas a sra. Firmiani é francesa e gasta suas rendas como uma parisiense. Oferece
um chá excelente. É uma das casas, hoje tão raras, onde a gente se diverte e onde o que nos oferecem é delicioso. Aliás, é dificílimo ser admitido em sua casa. Por
esse motivo, em seus salões, encontra-se a melhor sociedade!—Depois o Flanador comenta esta última frase, tomando gravemente uma pitada de rapé, que introduz no
nariz com pequenos golpes, e parece dizer-nos: Frequento a casa, mas não conte comigo para apresentá-lo.
A sra. Firmiani mantém para os Flanadores uma espécie de hospedaria sem tabuleta.
— Que diabo quer ir fazer em casa da sra. Firmiani? Se a gente lá se aborrece tanto como na corte! Para que serve ter espírito senão para evitar os salões onde,
pela poesia que corre, se lê a mais insignificante balada recentemente publicada?
É a resposta à pergunta que fizestes a um dos nossos amigos, classificados entre os Pessoais, gente que desejaria ter o universo debaixo da chave e não deixar fazer
coisa alguma sem o seu consentimento. Torna-os infelizes toda a felicidade alheia, não perdoam senão os vícios, as quedas, os defeitos e só querem protegidos. Aristocratas
por tendência, fazem-se republicanos por despeito, unicamente para encontrar muitos inferiores entre seus pares.
— Oh! A sra. Firmiani, meu caro, é uma dessas mulheres adoráveis que servem de escusa à natureza por todas as feias que por engano ela criou; é encantadora! É boa!
Eu só queria estar no poder, ser rei, possuir milhões para (aqui três palavras ditas ao ouvido). Queres que te apresente?...
Esse rapaz é do gênero Colegial, conhecido por sua grande ousadia entre os homens e sua grande timidez em alcovas fechadas.
— A sra. Firmiani?—exclamou um outro, fazendo molinetes com a bengala.—Vou dizer-te o que penso dela: é uma mulher de trinta a trinta e cinco anos, um pouco passada,
belos olhos, busto chato, voz de contralto gasta, muita toillete, um pouco de rouge, maneiras sedutoras, enfim, meu caro, os restos de uma linda mulher que, entretanto,
bem merecem ainda o incômodo de uma paixão.
Essa sentença é devida a um sujeito do gênero Fátuo que acabou de almoçar, não pesa mais suas palavras e vai montar a cavalo. Nesses momentos, os Fátuos são impiedosos.
— Há em casa dela uma galeria de quadros magníficos, vá vê-la!—responde-vos um outro.—Não há nada tão bonito!
É a resposta de um gênero Amador. O indivíduo nos deixa para ir à casa de Pérignon ou à de Tripet (Pérignon e Tripet: pessoas reais, o primeiro, retratista; o segundo,
floricultor.). Para ele a sra. Firmiani é uma coleção de telas pintadas.
Uma mulher:—A sra. Firmiani? Não quero que vá à casa dela.
Essa frase é a mais rica das traduções. A sra. Firmiani!, mulher perigosa!, uma sereia!, veste-se bem, tem gosto, provoca insônia em todas as mulheres. A interlocutora
pertence ao gênero Implicante.
Um adido de embaixada:—A sra. Firmiani! Não é ela de Antuérpia? Vi essa mulher, que era belíssima há dez anos. Ela estava então em Roma.—Os indivíduos pertencentes
à classe dos Adidos têm a mania de dizer frases à moda de Talleyrand; seu espírito é por vezes tão fino que seus ditos são imperceptíveis; assemelham-se a esses
jogadores de bilhar que enviam os bolos com habilidade infinita. São tipos pouco faladores, mas quando falam só se referem à Espanha, a Viena, à Itália ou a Petesburgo.
Os nomes dos países são neles como molas; apertando-os, a campainha vos cantará todas as suas árias.
— Essa sra. Firmiani não frequenta muito o Faubourg Saint-Germain?—Isso é dito por uma pessoa que quer pertencer ao gênero Distinto.—Dá o de (A partícula de, anteposta
ao nome, indicava nobreza; muitas pessoas, entre elas o próprio Balzac, a adotavam abusivamente.) a todo mundo, ao mais velho dos srs. Dupin (O mais velho dos srs.
Dupin: André Dupin (1783-1865), conhecido como Dupin aîné, jurisconsulto e magistrado de talento, mas de caráter versátil, que serviu sucessivamente a todos os regimes,
do primeiro ao segundo Império.), a La Fayette (La Fayette: trata-se do famoso general, o marquês Marie-Joseph La Fayette (1755-1834), herói da guerra da independência
americana, alvo da antipatia do legitimista Balzac pelo papel que desempenhou na Revolução de 1830.), atira-o a torto e a direito, desmoraliza com ele as pessoas.
Passa a vida preocupada com o que é bem, mas, para seu tormento, mora no Marais, e o marido foi notário, mas notário da corte real.
— A sra. Firmiani, senhor? Não a conheço.
Esse pertence ao gênero dos Duques. Não conhece senão as mulheres apresentadas na corte. Desculpai-o, foi feito duque por Napoleão.
— A sra. Firmiani? Não é uma antiga cantora dos italianos?
É um homem do gênero Tolo. Os indivíduos dessa classe querem ter resposta para tudo. Preferem caluniar a calar-se.
Duas velhas damas (mulheres de antigos magistrados). A primeira (usa uma touca com laçarotes, tem o rosto enrugado, nariz pontudo, voz áspera e segura na mão um
Livro de Horas):—De onde procede ela, essa sra. Firmiani?—A segunda (pequeno rosto avermelhado, lembrando uma camoesa roxa, voz meiga):—Uma Cadignan, minha querida,
sobrinha do velho príncipe de Cadignan (Cadignan: família da alta aristocracia, inventada por Balzac. Já encontramos o velho príncipe de Cadignan na brilhante caça
organizada pelo duque de Hérouville (Modesta Mignon).), por consequência prima do duque de Maufrigneuse (O duque de Maufrigneuse, personagem balzaquiana, era o filho
mais velho do príncipe de Cadignan; chefe do regimento em que serviam o visconde de Sérisy e Oscar Husson (Uma estreia na vida).).
A sra. Firmiani é uma Cadignan. Não tivesse ela, embora, nem virtudes, nem fortuna, nem mocidade, seria sempre uma Cadignan. É como um preconceito, sempre rico e
vivo.
Um Original:—Meu caro, nunca vi tamancos na sua antecâmara, podes ir à casa dela sem te comprometeres e jogar sem temor porque, se há larápios, são pessoas de categoria,
portanto não há brigas.
Velho pertencente ao gênero dos Observadores:—Se for à casa da sra. Firmiani, encontrará lá, meu caro, uma bela mulher negligentemente sentada ao canto da lareira.
Mal e mal se levantará da poltrona, coisa que só faz completamente para as mulheres ou os embaixadores, os duques, as pessoas de alta posição. É muito graciosa,
encanta, conversa bem e quer fazer de tudo. Há nela todos os indícios da paixão, mas lhe atribuem demasiados adoradores para que tenha um favorito. Se as suspeitas
pairassem somente sobre dois ou três íntimos, nós saberíamos quem era seu cavalheiro às ordens, mas é uma mulher completamente misteriosa, casada, mas nunca lhe
vimos o marido. O sr. Firmiani é uma personagem inteiramente fantástica, como aquele terceiro cavalo que se paga quando se faz uma viagem com mudas, mas que nunca
se vê. A senhora, na opinião dos artistas, é o primeiro contralto da Europa, e desde que está em Paris não cantou três vezes. Recebe muita gente e não vai à casa
de ninguém.
O Observador fala como um profeta. Temos de aceitar suas palavras, suas anedotas, suas citações como verdades, sob pena de passarmos por um homem sem instrução e
sem meios. Seremos caluniados alegremente em vinte salões, onde ele é essencial como uma primeira peça no cartaz, essas peças tantas vezes representadas para as
massas e que outrora obtiveram êxito. O Observador tem quarenta anos, nunca janta em casa, afirma ser pouco perigoso para as mulheres; usa pó, veste uma casaca cor
de castanha, tem sempre um lugar em vários camarotes nos Bouffons; é confundido, às vezes, com os Parasitas, mas desempenhou funções demasiado elevadas para que
o tomem por um filante de jantares e, ademais, possui uma propriedade rural num departamento cujo nome jamais lhe escapou.
— A sra. Firmiani? Mas, meu caro, é uma antiga amante de Murat (Murat: o general Joachim Murat (1767-1815), cunhado de Napoleão. Foi nomeado rei em 1808 e permaneceu
no trono até a queda do Imperador. Foi fuzilado em 1815, quando quis reconquistar o seu reino.).
Este pertence à classe dos Contraditores. Essa espécie de gente faz a errata de todas as memórias, retifica todos os fatos, aposta sempre cem contra um, tem certeza
de tudo. Podereis surpreendê-los na mesma noite em flagrante delito de ubiquidade: dizem ter estado em Paris por ocasião da conspiração Mallet, esquecendo que, meia
hora antes, tinham atravessado Beresina (A conspiração Mallet (ou, antes, Malet) foi uma tentativa de revolta republicana contra Napoleão I durante a retirada da
Rússia, em 1812. O general Claude-François de Malet (1754-1812) tentou seu golpe de Estado exibindo notícias falsas em que se anunciava a morte de Napoleão, chegou
a deter ministros da Guerra e da Polícia e até a instaurar um governo provisório no Hôtel de Ville de Paris. Descoberto o logro, foi preso e fuzilado. Beresina:
rio da Rússia, afluente do Dnieper cuja travessia, em fins de novembro de 1812, custou a Napoleão a metade do seu exército em retirada.). Quase todos os Contraditores
são cavalheiros da Legião de Honra, falam muito alto, têm uma testa fugidia e jogam paradas grandes.
— A sra. Firmiani, cem mil libras (Cem mil libras de renda. Nessa expressão, libra é sinônimo de franco.) de renda?... Está louco! Realmente há pessoas que dão cem
mil libras de renda com a liberalidade dos autores, para quem isso nada custa, quando dotam suas heroínas. Mas a sra. Firmiani é uma coquete que ultimamente arruinou
um rapaz e o impediu de fazer um belo casamento. Se não fosse linda, não teria um vintém.
Oh! Este vós o reconheceis, é do gênero dos Invejosos, e não descreveremos uma única de suas feições. A espécie é tão conhecida como o pode ser a das felis (Felis
(em latim): gato.) domésticas. Como explicar a perpetuidade da inveja? Um vício que nada rende!
Os mundanos, os beletristas, homens de bem e gente de toda espécie espalhavam, em janeiro de 1824, tantas opiniões diferentes sobre a sra. Firmiani que seria fastidioso
consigná-las todas aqui. Quisemos unicamente estabelecer que um homem interessado em conhecê-la, sem querer ou sem poder ir à sua casa, teria iguais motivos para
julgá-la viúva ou casada, tola ou espirituosa, cheia de virtudes ou dissoluta, rica ou pobre, sensível ou desalmada, bonita ou feia; havia enfim tantas senhoras
Firmiani quantas classes na sociedade, quantas seitas no catolicismo. Pensamento espantoso! Somos todos como tábuas litográficas das quais pela maledicência se tiram
inúmeras cópias. Essas provas se parecem com o modelo ou dele diferem por nuanças de tal forma imperceptíveis que a reputação, salvo as calúnias de nossos amigos
e as chalaças de um jornal, depende do balanço feito individualmente entre a verdade que vai coxeando e a mentira, a quem o espírito parisiense empresta asas.
A sra. Firmiani, semelhante a muitas mulheres cheias de nobreza e de altivez, que fazem do próprio coração um santuário e desprezam a sociedade, poderia ter sido
muito mal julgada pelo sr. de Bourbonne, velho proprietário que, durante o inverno daquele ano, muito se preocupara com ela. Por acaso, esse proprietário pertencia
à classe dos Plantadores de província, gente habituada a se dar conta de tudo e a fazer negócio com os camponeses. Nesse ofício um homem se torna perspicaz, queira
ou não queira, como um soldado, com o tempo, adquire uma coragem de rotina. Esse curioso, vindo de Touraine, e que não se satisfazia com os idiomas parisienses,
era um gentil-homem muito honrado que gozava da sorte de ter, por único herdeiro, um sobrinho para o qual plantava choupos. Essa amizade ultranatural motivara muita
maledicência, que os tipos pertencentes às diversas espécies de tourangeaux (Tourangeau: natural da província de Touraine.) formulavam muito espirituosamente; mas
é inútil referi-las, pois empalideceriam em comparação com as maledicências parisienses. Quando um homem pode pensar sem desprazer em seu herdeiro, vendo todos os
dias se aformosearem belas fileiras de choupos, a afeição é aumentada a cada golpe de pá que ele dá ao pé de suas árvores. Conquanto esse fenômeno de sensibilidade
seja pouco comum, é encontrado ainda na Touraine.
Esse sobrinho querido, que se chamava Otávio de Camps, descendia do famoso abade de Camps (O abade de Camps: François de Camps, abade de Ligny (1643-1723), antiquário
colecionador de medalhas e historiador.), tão conhecido pelos bibliófilos ou pelos sábios, que não são a mesma coisa. A gente da província tem o mau hábito de assinalar,
com uma espécie de reprovação decente, os jovens que vendem suas heranças. Esse preconceito medieval é nocivo para a agiotagem que até agora o governo anima por
necessidade. Sem consultar o tio, Otávio tinha, de improviso, disposto de uma terra em favor do Bando Negro (O Bando Negro: denominação que se dava, durante a Idade
Média, a certas tropas da infantaria alemã que adotaram a bandeira negra após a morte de um chefe querido; no começo do século passado foi, depois, dada ironicamente
pelos arqueólogos e pelos amigos das antiguidades às companhias de especuladores (“companhias do martelo”) que, depois da Revolução, compraram os castelos antigos,
os conventos, os parques, os bens dos emigrados, para demolir e vender-lhes os materiais.). O castelo de Villaines teria sido demolido, não fossem as propostas que
o velho tio fizera aos representantes da companhia do martelo. Para aumentar a ira do testador, um amigo de Otávio, parente afastado, um desses primos de pequena
fortuna e grande habilidade, que fazem com que as pessoas prudentes de sua província digam deles: “Eu não quisera ter um processo com ele!”, fora por acaso visitar
o sr. de Bourbonne e lhe revelara a ruína do sobrinho. O sr. Otávio de Camps, depois de ter dissipado a fortuna com uma tal sra. Firmiani, estava reduzido a se fazer
professor de matemática, enquanto esperava a herança do tio, ao qual não se atrevia a confessar seus erros. Esse primo segundo, espécie de Carlos Moor (Carlos Moor:
protagonista da peça romântica Os bandidos, de Friedrich von Schiller.), não tinha tido vergonha de dar essas fatais notícias ao velho camponês no momento em que
ele digeria, diante de sua enorme lareira, um copioso jantar provinciano. Mas os herdeiros não dão cabo de um tio tão facilmente quanto desejariam. Graças à sua
teimosia, este, que se recusava a acreditar no primo segundo, saiu vencedor da indigestão causada pela biografia do sobrinho. Alguns golpes caem sobre o coração,
outros sobre a cabeça: o golpe desferido pelo primo segundo caiu sobre as entranhas e causou poucos danos, porque o velho tinha excelente estômago. Como verdadeiro
discípulo de são Tomás (Discípulo de são Tomás: isto é, homem incrédulo.), o sr. de Bourbonne foi a Paris sem que Otávio o soubesse e quis tomar informações a respeito
do descalabro do sobrinho. O velho fidalgo, que tinha relações no Faubourg Saint-Germain, pelos Listomère (Listomère: família aristocrática de A comédia humana.
A marquesa de Listomère é a heroína da novela que se segue, Estudo de mulher.), pelos Lenoncourt (Lenoncourt: família aristocrática de A comédia humana. Um irmão
de Luísa de Chaulieu (Memórias de duas jovens esposas) casou com uma Lenoncourt.) e pelos Vandenesse (Vandenesse: família aristocrática de A comédia humana. Emília
de Fontaine, heroína de O baile de Sceaux, acabará por casar com o marquês Carlos de Vandenesse; uma das filhas do conde de Granville (Uma dupla família) casará,
por sua vez, com o conde Félix de Vandenesse (Uma filha de Eva).), ouviu tanta maledicência, tantas verdades e mentiras a respeito da sra. Firmiani que resolveu
fazer-se apresentar em casa dela sob o nome de sr. de Rouxellay, nome da sua propriedade. O prudente velho tivera o cuidado de escolher, para ir estudar a pretensa
amante de Otávio, uma tarde em que ele o sabia ocupado na conclusão de um trabalho pago por alto preço, porquanto o amigo da sra. Firmiani era sempre recebido em
casa dela, circunstância que ninguém podia explicar. Quanto à ruína de Otávio, essa, infelizmente, não era uma fábula.
O sr. de Rouxellay não se parecia absolutamente com os tios do teatro de Gymnase (Gymnase ou Gymnase Dramatique: teatro inaugurado em 1820 em que durante muito tempo
se representavam quase exclusivamente vaudevilles.). Antigo mosqueteiro, homem da alta sociedade, que tivera outrora muitas aventuras amorosas, sabia apresentar-se
cortesmente, lembrava-se das maneiras polidas do seu tempo, dizia palavras graciosas e compreendia quase toda a Carta (Carta: a Carta Constitucional da França, outorgada
em 1814 por Luís XVIII, modificada num sentido mais liberal após a queda de Carlos X, em 1830. Balzac está troçando dessa Carta liberal, votada pela Câmara e aceita
por Luís Filipe.). Embora gostasse dos Bourbons com nobre franqueza, acreditasse em Deus como os gentis-homens acreditam e não lesse senão o Quotidienne (La Quotidienne:
jornal monarquista, fundado em 1792.), não era tão ridículo quanto o desejariam os liberais de seu departamento. Podia ombrear com os cortesãos, contanto que não
lhe falassem de Moisés (Moisés: famosa ópera de Rossini.), nem de drama, nem de romantismo, nem de cor local, nem de estradas de ferro.Tinha ficado em Voltaire,
no sr. conde de Buffon (Conde de Buffon: grande naturalista (1707-1778), autor de uma famosa História natural.), em Peyronnet (Peyronnet: o conde Charles-Ignace
Peyronnet (1778-1854), ministro reacionário de Carlos X, autor das Ordenanças de Julho de 1830; era também escritor, tendo publicado, entre outras obras, uma História
dos francos.) e no cavalheiro Gluck (O cavalheiro Gluck: Christophe-Williabald Gluck (1717-1787), famoso músico alemão, autor das óperas Orfeu, Armida etc.), o músico
do grupo da rainha.
— Minha senhora—disse ele à marquesa de Listomère, à qual dava o braço ao entrar em casa da sra. Firmiani -, se essa mulher é amante de meu sobrinho, lastimo-o.
Como pode ela viver no seio do luxo, sabendo-o em uma água-furtada? Não tem alma, então? Otávio é um louco em ter posto o preço da terra de Villaines no coração
de uma...
O sr. de Bourbonne pertencia ao gênero Fóssil, e não conhecia outra linguagem que não a dos velhos tempos.
— Mas e se ele o tivesse perdido no jogo?
— Ora, minha senhora, pelo menos teria tido o prazer de jogar.
— Acredita então que ele não teve prazer? Olhe, veja a sra. Firmiani.
As mais antigas recordações do velho tio empalideceram ante o aspecto da pretensa amante do sobrinho. Sua cólera expirou numa frase graciosa, que lhe foi arrancada
pela vista da sra. Firmiani. Por um desses acasos que só acontecem às mulheres bonitas, ela se achava num momento em que todas as suas belezas brilhavam com um esplendor
particular, talvez devido ao clarão das velas, a uma toilette admiravelmente simples, a não sei que reflexo da elegância em cujo seio ela vivia. É preciso ter estudado
as pequenas revoluções de uma recepção nos salões de Paris para apreciar os matizes imperceptíveis que podem colorir um rosto de mulher e transformá-lo. Há um momento
em que, satisfeita com os seus adornos, achando-se espirituosa, feliz por ser admirada, ao ver-se rainha de um salão cheio de homens notáveis que lhe sorriem, uma
parisiense tem consciência de sua beleza, de sua graça; ela se embeleza então com todos os olhares que recolhe e que a animam, mas cujas mudas homenagens são entregues
por um olhar sutil ao bem-amado. Nesse momento, a mulher está como que investida de um poder sobrenatural e torna-se uma adorável feiticeira; coquete sem o querer,
inspira involuntariamente o amor que a embriaga em segredo e tem olhares e sorrisos que fascinam. Se esse estado, que vem da alma, dá atrativos mesmo às feias, de
que esplendor não revestirá ele uma mulher nativamente elegante, de formas distintas, alva, fresca, de olhos vivos e, sobretudo, vestida com um bom gosto confessado
pelos artistas e por suas mais cruéis rivais!
Haveis encontrado, por felicidade vossa, alguma pessoa cuja voz harmoniosa imprime à palavra um encanto que se estende também às suas maneiras, que sabe falar e
calar-se, que se ocupa de vós com delicadeza, cujos termos são escolhidos com felicidade ou cuja linguagem é pura? Suas zombadas acariciam e sua crítica não fere;
nem disserta, nem disputa, mas compraz-se em conduzir uma discussão e detém-na oportunamente. Seu ar é afável e risonho, sua polidez nada tem de forçada, sua solicitude
não é servil; reduz o respeito à simples condição de uma sombra amena, nunca vos cansa e vos deixa contente com ela e convosco. Sua afabilidade, vós a encontrareis
impressa nas coisas de que se cerca. Nela, tudo agrada à vista e nela respirais como que o ar de uma pátria. Essa mulher é natural. Nela nunca há esforço, nunca
há ostentação, seus sentimentos são simplesmente manifestados, porque são verdadeiros. Franca, sabe entretanto não ofender nenhum amor-próprio; aceita os homens
como Deus os fez, condoendo-se das pessoas viciosas, perdoando os defeitos e os ridículos, compreendendo todas as idades e não se irritando com coisa alguma, porque
tem o tato de tudo prever. Terna e alegre ao mesmo tempo, ela favorece, antes de consolar. Sentis por ela tanto amor que, se esse anjo comete uma falta, estais sempre
pronto a justificá-la. Conhecereis então a sra. Firmiani.
Após quinze minutos de conversação com aquela mulher, junto à qual estava sentado, o velho de Bourbanne absolveu o sobrinho. Compreendeu que, falsas ou verdadeiras,
as ligações de Otávio e da sra. Firmiani ocultavam sem dúvida algum mistério. Volvendo as ilusões que douram os primeiros dias de nossa mocidade e julgando o coração
da sra. Firmiani pela sua beleza, o velho gentil-homem pensou que uma mulher tão compenetrada de sua dignidade quanto o parecia, era incapaz de uma má ação. Seus
olhos negros revelavam tanta calma interior, as linhas de seu rosto eram tão nobres, seus contornos tão puros, e a paixão de que a acusavam parecia pesar tão pouco
no seu coração que o ancião a si mesmo disse ao admirar todas as promessas feitas ao amor e à virtude por aquela adorável fisionomia:
— Meu sobrinho deve ter cometido alguma asneira.
A sra. Firmiani confessava vinte e cinco anos. Mas os Positivos provavam que, tendo casado em 1813, com a idade de dezessete anos, em 1825 ela devia ter pelo menos
vinte e oito. Não obstante, os mesmos asseguravam que em nenhum período de sua vida ela fora tão desejável nem tão completamente mulher. Não tinha, e não tivera,
filhos; o problemático Firmiani, quadragenário muito respeitável em 1813, não pudera, diziam, oferecer-lhe mais do que seu nome e sua fortuna. A sra. Firmiani atingia
pois a idade em que a parisiense melhor concebe uma paixão e a deseja, talvez inocentemente, em suas horas perdidas: adquirira tudo o que o mundo vende, tudo o que
ele empresta, tudo o que ele dá. Os Adidos de Embaixada pretendiam que ela nada ignorava; os Contraditores asseguravam que ela podia aprender muita coisa; os Observadores
achavam-lhe as mãos muito alvas, o pé bem mimoso, os movimentos um pouco ondeantes demais; mas os indivíduos de todos os gêneros invejavam ou contestavam a felicidade
de Otávio, convindo em que ela era a mulher mais aristocraticamente bela de Paris. Moça ainda, rica, perfeita musicista, espirituosa, delicada, recebida—em homenagem
aos Cadignan, aos quais pertencia por sua mãe—em casa da princesa de Blamont-Chauvry (A princesa de Blamont-Chauvry: personagem balzaquiana remanescente do reino
de Luís XV, tida como oráculo nas rodas da aristocracia.), o oráculo do nobre Faubourg, querida por suas rivais, a duquesa de Maufrigneuse, sua prima, a marquesa
d’Espard e a sra. de Macumer (A duquesa de Maufrigneuse, a marquesa d’Espard e a sra. de Macumer são três das mais belas mulheres do mundo elegante da A comédia
humana. Já lemos a história da última das três em Memórias de duas jovens esposas.), ela lisonjeava todas as vaidades que alimentam ou excitam o amor. Por isso ela
era desejada por demasiadas pessoas para não ser vítima da elegante maledicência parisiense e das encantadoras calúnias, que se sussurram tão espirituosamente por
trás do leque ou nas à parte. As observações pelas quais começa esta história eram pois necessárias para opor a verdadeira Firmiani à Firmiani da sociedade. Se algumas
mulheres lhe desculpavam sua felicidade, outras não lhe perdoavam sua decência; ora, nada é tão terrível, sobretudo em Paris, como as suspeitas infundadas: é impossível
destruí-las. Este esboço de uma figura admirável por sua naturalidade não dará dela, jamais, senão uma fraca ideia; seria preciso o pincel dos Ingres (Ingres: Jean-Auguste-Dominiqu
e Ingres (1780-1867), pintor célebre, que pintou alguns modelos de beleza feminina, p. ex. em A fonte.) para reproduzir a altivez da fronte, a abundância dos cabelos,
a majestade do olhar, todos os pensamentos que se traíam pelas tonalidades diversas da tez. Havia tudo nessa mulher: os poetas podiam ver nela, ao mesmo tempo, Joana
d’Arc ou Agnès Sorel (Agnès Sorel (1422-1450): favorita de Carlos VII, notável por sua beleza.), mas havia ainda a mulher desconhecida, a alma oculta sob aquele
invólucro enganoso, a alma de Eva, as riquezas do mal e os tesouros do bem, a falta e a resignação, o crime e a dedicação, dona Júlia e Haïdée do Don Juan (D. Júlia
e Haidée: dois amores de Don Juan no poema inacabado de Byron.), de Lord Byron.
O antigo mosqueteiro, muito impertinentemente, deixou-se ficar por último no salão da sra. Firmani, que o encontrou tranquilamente sentado numa poltrona, permanecendo
em sua presença com a importunidade de uma mosca que a gente precisa matar para se ver livre dela. O relógio marcava duas horas depois da meia-noite.
— Minha senhora—disse o velho gentil-homem, no momento em que ela se levantou na esperança de fazer o hóspede compreender que seu desejo era vê-lo partir -, sou
o tio do sr. Otávio de Camps.
A sra. Firmiani sentou-se rapidamente e deixou transparecer sua emoção. Não obstante sua perspicácia, o plantador de choupos não adivinhou se ela empalidecia e corava
de pejo ou de prazer. Há prazeres que são sempre acompanhados por um pouco de temeroso pudor, emoções deliciosas que o mais casto coração quisera sempre velar. Quanto
mais delicada é a mulher, tanto mais procura esconder as alegrias de sua alma. Muitas mulheres, inconcebíveis nos seus divinos caprichos, desejam com frequência
ouvir pronunciar por todos um nome que, por vezes, quereriam sepultar no coração. O velho de Bourbonne não interpretou completamente assim a perturbação da sra.
Firmiani, mas perdoai-o, o provinciano era desconfiado.
— E então, senhor?—disse-lhe a sra. Firmiani, lançando-lhe um desses olhares lúcidos e claros, nos quais nós homens nunca podemos ver nada, porque eles nos interrogam
um pouco demais.
— E então, minha senhora—replicou o fidalgo -, sabe o que me vieram dizer, a mim, nos confins de minha província? Que meu sobrinho se teria arruinado por sua causa,
e que o desgraçado está numa água-furtada enquanto a senhora vive aqui no meio do ouro e da seda. Vai perdoar-me minha franqueza rústica, porque é, talvez, muito
útil que saiba das calúnias...
— Basta, senhor—disse a sra. Firmiani, interrompendo o gentil-homem com um gesto imperativo -, sei de tudo isso. O senhor é demasiado polido para não deixar a conversação
sobre esse assunto, quando eu lhe pedir que o faça. É demasiado galante, na antiga acepção do termo—acrescentou, dando um leve tom de ironia às suas palavras -,
para não reconhecer que não lhe assiste direito algum para interrogar-me. Finalmente fica ridículo para mim justificar-me. Quero crer que terá uma opinião bastante
boa de meu caráter para acreditar no profundo desprezo que o dinheiro me inspira, embora me tivesse casado sem nenhuma espécie de fortuna com um homem imensamente
rico. Ignoro se o senhor seu sobrinho é rico ou pobre; se o recebi, se o recebo é porque o considero digno de estar entre os meus amigos. Todos os meus amigos, senhor,
se respeitam uns aos outros, sabem que não tenho a filosofia de ver as pessoas quando não as estimo. Será, talvez, uma falta de caridade, mas meu anjo da guarda
conservou-me até hoje numa aversão profunda, quer pelos falatórios, quer pela improbidade.
Conquanto o timbre da voz estivesse levemente alterado durante as primeiras frases dessa réplica, as últimas palavras foram ditas pela sra. Firmiani com o aprumo
com que Célimène (Célimène: personagem do Misantropo, de Molière; mulher bela, coquete e espirituosa.) zombou do Misantropo.
— Minha senhora—retorquiu o conde com voz comovida -, sou um velho, sou quase pai de Otávio, peço-lhe, pois, de antemão, o mais humilde perdão pela única pergunta
que vou ter a ousadia de fazer-lhe, e dou-lhe minha palavra de gentil-homem leal que sua resposta morrerá aqui—disse ele, pondo a mão sobre o coração com um movimento
religioso.—Tem razão a maledicência, a senhora ama Otávio?
— Senhor—disse ela -, a outra qualquer pessoa eu responderia apenas com um olhar; mas ao senhor, e pelo fato de ser quase pai do sr. de Camps, eu lhe perguntarei
o que pensaria de uma mulher se respondesse sim à sua pergunta. Confessar seu amor àquele a quem se ama, quando ele nos ama... Pois... Está bem; quando temos certeza
de sermos sempre amadas, creia-me, senhor, é um esforço para nós e uma recompensa para ele; mas dizê-lo a outro...
A sra. Firmiani não terminou a frase, levantou-se, saudou o velho e desapareceu nos seus aposentos, cujas portas, sucessivamente abertas e fechadas, tiveram para
os ouvidos do plantador de choupos a clareza da linguagem.
— Demônios!—para si mesmo murmurou o velho. Que mulher! Ou é uma esperta comadre ou então um anjo.
E dirigiu-se para o seu carro de aluguel, cujos cavalos escavavam, de quando em quando, o pátio silencioso, enquanto o cocheiro dormia, depois de ter amaldiçoado
mais de cem vezes seu cliente.
Na manhã seguinte, pelas oito horas, o velho gentil-homem subia as escadas de uma casa situada na rue de l’Observance, onde residia Otávio de Camps. Se houve jamais
na Terra um homem espantado, foi ele, o jovem professor, ao ver o tio; a chave estava na porta, a lâmpada de Otávio ainda continuava acesa; ele havia passado a noite
em claro.
— Senhor tratante—disse o conde de Bourbonne ao sentar-se na poltrona -, desde quando é hábito rir (estilo casto) dos tios de vinte e seis mil libras de renda em
boas terras da Touraine, quando se é seu único herdeiro? Não sabe o senhor que outrora respeitávamos tais parentes? Vejamos, tens alguma censura a fazer-me? Desempenhei,
acaso, mal meu cargo de tio? Exigi respeito de ti? Recusei-te dinheiro? Bati alguma vez com a porta no teu nariz sob o pretexto de que vinhas ver como eu estava
de saúde? Não tens o tio mais cômodo, o menos exigente em França? Não digo na Europa, porque seria demasiada pretensão. Escrevas-me ou não me escrevas, vivo sobre
a afeição jurada, e arrumo para ti a mais linda terra da região, um bem que causa inveja a todo o departamento, mas não quero que a herdes senão o mais tarde possível.
Não achas essa veleidade muitíssimo desculpável? E o senhor vende suas propriedades, instala-se como um lacaio, e não tem nem criadagem, nem trem de vida...
— Meu tio...
— Não se trata do tio, trata-se do sobrinho. Tenho direito à tua confiança; por isso confessa-te em seguida, é mais fácil, sei-o por experiência própria. Jogaste?
Perdeste na Bolsa? Vamos, dize: “Meu tio, sou um miserável!” e eu te abraçarei. Mas se me pregas uma mentira maior do que as que eu impingia na tua idade, vendo
meus bens, coloco-os em títulos de renda vitalícia e voltarei às desordens da mocidade, se ainda for possível.
— Meu tio...
— Vi ontem tua sra. Firmiani—disse o tio, beijando os dedos em pinha.—É encantadora—acrescentou.—Tens a aprovação e o privilégio do rei, e o consentimento do tio,
se isso te pode dar prazer. Quanto à sanção da Igreja, é inútil, creio, os sacramentos são sem dúvida caros demais! Vamos, fala, foi por ela que te arruinaste?
— Sim, meu tio.
— Ah! A peste, tinha certeza. No meu tempo, as damas da corte eram mais hábeis para arruinar um homem do que o podem ser vossas cortesãs de hoje. Revi, nela, o século
passado rejuvenescido.
— Meu tio—replicou Otávio com ar ao mesmo tempo triste e meigo -, o senhor se engana: a sra. Firmiani merece sua estima e todas as adorações de seus admiradores.
— A pobre mocidade será então sempre a mesma?—disse o sr. de Bourbonne.—Vamos, toca pra diante, forja-me umas velhas histórias. Deves, contudo, lembrar-te de que
não sou um noviço em coisas de amor.
— Meu caro tio, aqui tem uma carta que lhe dirá tudo—respondeu Otávio, puxando uma elegante carteira, certamente presente dela -; quando a tiver lido, acabarei de
esclarecê-lo, e o senhor conhecerá uma sra. Firmiani que a sociedade não conhece.
— Não trouxe minhas lentes—disse o tio -, lê tu a carta.
Otávio começou assim—“Meu querido amigo...”
— Estás então muito ligado com essa mulher?
— Estou, meu caro tio.
— E vocês não estão brigados?
— Brigados!...—repetiu Otávio, admirado.—Nós nos casamos em Gretna Green (Gretna Green: primeira aldeia escocesa na estrada de Londres a Edimburgo, famosa pelos
casamentos que nela se celebravam durante o século XVIII, segundo a lei romana, sem a exigência dos requisitos de domicílio e de publicação.).
— Mas então—indagou o sr. de Bourbonne -, por que jantas tu por dois francos?
— Deixe-me continuar.
— Tens razão, estou ouvindo.
Otávio retomou a carta, e certas passagens leu-as com profunda emoção.
Meu esposo amado, perguntaste-me os motivos de minha tristeza; será que de minha alma ela se transportou para o meu semblante, ou foi que a adivinhaste? E por que
não seria assim? Estamos tão unidos pelo coração! De resto, não sei mentir, o que talvez seja um mal! Uma das condições da mulher amada é a de estar sempre carinhosa
e alegre. Talvez fosse melhor que eu fingisse contigo, mas isso é coisa que não quero fazer, embora se tratasse de aumentar ou de conservar a felicidade que me dás,
que prodigas, com a qual me esmagas. Oh!, querido, quanta gratidão há no meu amor! Por isso quero amar-te sempre, sem limitações. Sim, quero sempre orgulhar-me de
ti. Nosso orgulho, para nós, está todo ele na criatura amada. Estima, consideração, honra, não pertence tudo isso àquele que de tudo se apoderou? Pois bem!, meu
anjo falhou. Sim, querido, tua última confidência embaciou minha felicidade passada. Desde esse momento sinto-me humilhada em ti, em ti, a quem eu considerava como
o mais puro dos homens, assim como és o mais amante e o mais terno. É preciso ter confiança em teu coração, ainda infantil, para fazer-te uma confissão que me é
horrivelmente penosa. Como, pobre anjo, teu pai apropriou-se indevidamente de uma fortuna, tu o sabes e tu a conservas! E contaste-me esse alto feito de um procurador
num quarto cheio de testemunhas mudas de nosso amor, e és gentil-homem, e julgas-te nobre, e me possuis, e tens vinte e dois anos! Quantas monstruosidades! Procurei
desculpar-te, atribuí tua despreocupação à tua mocidade estouvada. Sei que tens muito de criança. É bem possível que não tenhas pensado, ainda, seriamente, no que
é fortuna e probidade. Oh!, como o teu riso me fez mal! Lembra-te de que existe uma família arruinada sempre em prantos, jovens que talvez te amaldiçoem todos os
dias, um ancião que todas as noites diz consigo: “Eu não estaria sem pão se o pai do sr. de Camps não tivesse sido um homem desonesto!”.
— Como!—exclamou o sr. de Bourbonne, interrompendo-o—cometeste a tolice de contar a essa mulher o negócio de teu pai com os Bourgneuf (O negócio de teu pai com os
Bourgneuf: Esse processo não é contado no resto de A comédia humana.)? As mulheres entendem mais de devorar uma fortuna do que de fazê-la...
— Elas são mestras em probidade. Deixe-me continuar, meu tio.
Otávio, nenhuma potência no mundo tem autoridade para mudar a linguagem da honra. Recolhe-te a tua consciência e pergunta-lhe qual o nome a dar ao ato a que deves
teu dinheiro.
E o sobrinho fitou o tio, e este baixou a cabeça.
Não te direi todos os pensamentos que me importunam; todos eles podem resumir-se num único, e ei-lo: não posso estimar um homem que se enlameia conscientemente por
uma quantia de dinheiro, seja ela qual for. Cinco francos roubados no jogo ou seis vezes cem mil francos devidos a uma trapaça legal desonram igualmente um homem.
Quero dizer-te tudo: considero-me maculada por um amor que antes constituía toda a minha felicidade. Do fundo de minha alma, ergue-se uma voz que minha ternura não
pode abafar. Ah!, chorei por ter mais consciência do que amor. Se cometesses um crime eu te esconderia da justiça humana, em meu seio, se o pudesse, mas minha dedicação
não iria além. O amor, numa mulher, meu anjo, é a mais ilimitada confiança unida a não sei que necessidade de venerar, de adorar o ser ao qual ela pertence. Nunca
concebi o amor senão como um fogo no qual se dependuram mesmo os mais nobres sentimentos, um fogo que os desenvolve a todos. Só mais uma coisa tenho a dizer-te:
vem a mim pobre, e meu amor se duplicará, se possível; do contrário, renuncia a mim. Se não te vir mais, sei o que me resta a fazer. Agora, ouve-me, não quero que
restituas o devido, só porque eu te aconselhei a fazê-lo. Consulta bem tua consciência. Esse ato de justiça não deve ser um sacrifício feito ao amor. Sou tua esposa
e não tua amante, trata-se menos de me ser agradável do que de inspirar-me a mais profunda estima por ti. Se estou enganada, se não me explicaste bem o ato de teu
pai, enfim, por pouco que julgues tua fortuna legítima (oh!, como quisera persuadir-me de que não mereces nenhuma censura!), decide ouvindo a voz de tua consciência,
procede bem por ti mesmo. Um homem que ama sinceramente, como tu me amas demasiado, respeita tudo o que a sua mulher lhe atribui de santidade para que seja desonesto.
Censuro-me agora por tudo isso que acabo de escrever. Bastava uma palavra, talvez, mas meu instinto de pregadora arrastou-me. Por isso quero que me ralhes, não muito
severamente, mas um pouco. Querido, entre nós dois não és tu o poder? Deves por ti mesmo descobrir tuas faltas. E então, meu senhor, direis que não compreendo nada
em discussões políticas?
— E então, meu tio—disse Otávio, cujos olhos estavam rasos de lágrimas.
— Mas vejo que ainda há alguma coisa escrita, termina.
— Oh! Agora só há coisas que não devem ser lidas senão por um amante.
— Bem—disse o ancião -, bem, meu filho. Tive muitas aventuras amorosas, mas peço-te que creias que eu também amei, et ego in Arcadia (Et ego in Arcadia: frase latina
que significa: “Eu também vivi em Arcádia”. Arcádia era uma região da Grécia de que os antigos poetas faziam o país fabuloso da inocência e da felicidade.). Apenas
não compreendo por que dás lições de matemática.
— Caro tio, sou seu sobrinho, e o senhor não disse, em duas palavras, que eu já tinha roído um pouco o capital deixado por meu pai? Depois de haver lido esta carta,
operou-se em mim uma revolução e num momento paguei meus remorsos atrasados. Nunca lhe poderei descrever o estado em que me achava. Ao ir ao Bois de Boulogne no
meu cabriolé, uma voz gritava: “Esse cavalo é teu?”. Quando comia, a mim mesmo dizia: “Não é isto um jantar roubado?”. Tinha vergonha de mim mesmo. Tanto mais recente
era minha probidade quanto mais ardente. Corri logo à casa da sra. Firmiani. Oh!, meu Deus! Nesse dia, meu tio, tive desses prazeres do coração, voluptuosidades
espirituais que valiam milhões. Fiz com ela a conta do que eu devia à família Bourgneuf, e condenei-me a mim mesmo a pagar-lhe o juro de três por cento, contra a
opinião da sra. Firmiani; mas minha fortuna inteira não bastava para saldar a dívida. Nós éramos então bastante amantes, bastante esposos, ela, para oferecer, eu,
para aceitar as suas economias...
— Como! Além das suas virtudes, essa mulher adorável faz economias?
— Não zombe dela, meu tio. Sua posição obriga-a a muitas precauções. Seu marido partiu em 1820 para a Grécia, onde morreu faz três anos; até hoje não foi possível
obter a prova legal de sua morte e conseguir o testamento que ele deve ter feito em favor da esposa, documento importante que foi tomado, perdido ou desviado num
país onde os atos do registro civil não são escriturados como em França, e onde não há cônsul. Ignorando se um dia terá de afrontar herdeiros mal-intencionados,
ela se vê obrigada a ter tudo numa ordem perfeita, porque quer deixar sua opulência como Chateaubriand acaba de deixar o ministério (O visconde François-René de
Chateaubriand (1768-1848): famoso escritor, era também homem político e desempenhou sob a Restauração as funções de ministro do Exterior. Teve de deixá-las em 1824,
em consequência de uma desinteligência com o presidente do Conselho Villèle.). Ora, eu quero adquirir uma fortuna que seja minha, a fim de restituir à minha mulher
sua opulência, se ela ficar arruinada.
— E não me disseste isso, não me procuraste?... Oh!, meu sobrinho, devias lembrar-te de que eu te quero o bastante para pagar dívidas desse quilate, dívidas de fidalgo.
Sou um tio de golpes de teatro, vingar-me-ei.
— Meu tio, conheço as suas vinganças, mas deixe que eu me enriqueça pelo meu próprio esforço. Se quer prestar-me serviço, dê-me uma pensão de mil escudos até o momento
em que eu necessite de capital para algum empreendimento. Olhe, neste momento, sinto-me de tal forma feliz que tudo o que quero é viver. Dou lições para não ser
pesado a ninguém. Ah!, se o senhor soubesse com que prazer eu fiz a restituição! Depois de algumas pesquisas, acabei descobrindo os Bourgneuf, infelizes, privados
de tudo. Essa família estava em Saint-Germain, numa casa miserável. O velho dirigia uma agência de loteria, as duas filhas se ocupavam dos arranjos domésticos e
trabalhavam em escriturações. A mãe quase sempre estava doente. As duas filhas são encantadoras, mas aprenderam duramente o pouco valor que a sociedade atribui à
beleza sem fortuna. Com que quadro deparei ali! Se entrei como cúmplice de um crime, de lá saí um homem honrado e lavei a memória de meu pai. Oh!, meu tio, não o
julgo; há nos processos uma corrente, uma paixão que podem, por vezes, enganar ao mais honrado homem do mundo. Os advogados sabem legitimar as mais absurdas pretensões;
as leis têm silogismos condescendentes para os erros da consciência, e os juízes têm o direito de se enganar. Minha aventura foi um verdadeiro drama. Ter sido a
Providência, ter satisfeito a um desses desejos impossíveis: “Se nos caíssem do céu vinte mil libras de rendas!”, esse voto que todos formulamos a rir; fazer um
olhar cheio de imprecações, dar lugar a um olhar sublime, de gratidão, de espanto, de admiração; atirar a opulência no meio de uma família reunida à noite em torno
à luz de uma lâmpada ordinária, junto a um fogo de turfa... Não, a palavra é impotente para descrever tal cena. Minha extrema justiça lhes parecia injusta. Enfim,
se há um paraíso, meu pai deve estar lá agora, feliz. Quanto a mim, sou amado como nenhum homem ainda o foi. A sra. Firmiani deu-me mais do que felicidade, dotou-me
de uma delicadeza que talvez ainda me faltasse. Por isso, apelidei-a de minha querida consciência, uma das designações de amor que correspondem a certas harmonias
secretas do coração. A probidade traz proveito; tenho a esperança de em breve enriquecer por mim mesmo. Neste momento, estou procurando resolver um problema industrial;
e se o consigo, ganharei milhões.
— Oh!, meu filho, tens a alma de tua mãe—disse o velho, contendo a custo as lágrimas que lhe umedeciam os olhos ao pensar na irmã.
Nesse momento, não obstante a distância que havia entre a rua e o apartamento de Otávio de Camps, o rapaz e o tio ouviram o barulho feito pela chegada de um carro.
— É ela—disse o primeiro -, conheço os seus cavalos pelo modo como param.
Com efeito, a sra. Firmiani não tardou em aparecer.
— Ah!—exclamou, e fez um gesto de despeito ao ver o sr. de Bourbonne.—Mas nosso tio não está demais—disse então, deixando escapar um sorriso.—Eu que ia ajoelhar-me
humildemente aos pés de meu marido, para suplicar-lhe que aceite minha fortuna. A embaixada da Áustria acaba de me mandar uma certidão que atesta o óbito de Firmiani.
O documento, redigido sob os cuidados do internúncio da Áustria em Constantinopla, está perfeitamente em regra, e o testamento que o criado de quarto estava encarregado
de guardar, para me ser entregue, veio incluso. Otávio, podes aceitar tudo. Sim, és mais rico do que eu, tens aí tesouros que somente Deus poderia aumentar—disse
ela, batendo no coração do marido. Depois, não podendo mais suportar sua felicidade, mergulhou a cabeça no peito de Otávio.
— Minha sobrinha, antigamente tínhamos amores, hoje vocês amam—disse o tio.—Vocês são tudo o que há de bom e de belo na humanidade, porque nunca têm culpa de suas faltas, elas vêm sempre de nós.

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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