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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A U T O R I D A D E / Jeff VanderMeer
A U T O R I D A D E / Jeff VanderMeer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nos sonhos de Controle é de manhã cedinho, e o céu é azul-escuro com apenas uma réstia de luminosidade. Ele está parado numa falésia olhando para um abismo, uma baía, uma pequena enseada. Sempre varia. Ele é capaz de ver quilômetros de profundidade naquelas águas mansas. Pode observar os leviatãs do oceano deslizando lá embaixo, como submarinos ou orquídeas em forma de sino, ou os cascos amplos dos navios, silenciosos, sempre se movendo, seu tamanho transmitindo tal impressão de poder que, mesmo olhando de tão alto, é capaz de sentir o tumulto que provocam com sua passagem. Ele fica horas examinando as formas, os movimentos, escutando os sussurros cujos ecos sobem até ele... e então ele cai. Devagar, bem devagar, cai silenciosamente na água escura, sem perturbá-la, sem produzir ondas. E continua a cair.
Às vezes isso acontece quando está acordado, como se não estivesse prestando suficiente atenção, e então começa a repetir o próprio nome em silêncio, até que o mundo real reaparece.

 

 

 

 

001: CAINDO

Primeiro dia. O começo de sua última oportunidade.

— Estes são os sobreviventes?

Controle estava ao lado da diretora assistente do Comando Sul, por trás de um espelho falso, observando três pessoas sentadas numa sala de interrogatório. Elas tinham voltado da décima segunda expedição à Área X. A primeira leva da décima segunda expedição, ou X.12.A, para ser mais preciso.

A diretora assistente, uma negra alta e magra com cerca de quarenta anos, não respondeu, o que não surpreendeu Controle. Ela não dissera uma palavra além do necessário desde sua chegada naquela manhã, depois de ter aproveitado a segunda-feira para se organizar. Também não lançou mais olhares em sua direção que o necessário, exceto quando ele disse a ela e a toda equipe que o chamassem de “Controle”, não “John” ou “Rodriguez”. Ela fez uma pausa breve, e então replicou: “Nesse caso, me chame de Paciência, não de ‘Grace’, por favor”, o que fez os presentes reprimirem o riso. A substituição do seu nome verdadeiro por um que também tinha um significado lhe pareceu interessante. “Tudo bem”, disse ele, “posso chamá-la apenas de Grace”, certo de que ela não ia gostar. Ela contra-atacou ao passar a tratá-lo por diretor “em exercício”. O que era verdadeiro: entre a administração dela e a ascensão dele existia um vazio, um cânion de tempo e de formulários a preencher, procedimentos a seguir, demissões e contratações de funcionários. Até isso ser resolvido, a questão da autoridade ficaria indefinida.

Mas Controle preferia pensar nela como alguém sem paciência nem graça. Preferia considerá-la uma abstração, se não uma obstrução. Ela o obrigara a assistir até o fim a um antigo vídeo explicativo sobre a Área X, e devia saber que era algo básico e já datado. Tinha deixado claro que a relação entre os dois se basearia na animosidade. Da parte dela, pelo menos.

— Onde elas foram encontradas? — perguntou ele, quando o que realmente queria questionar era por que não tinham sido mantidas separadas umas das outras. Porque vocês não têm disciplina, porque seu departamento está entregue aos ratos há muito tempo? Eles estão lá no porão, roendo tudo. Ou talvez já venham por dentro das paredes.

— Leia os relatórios — respondeu ela, deixando claro que ele já deveria ter lido tudo.

E então saiu da sala.

Deixou Controle sozinho, observando os documentos na mesa à sua frente e as três mulheres do outro lado do espelho. Claro que ele tinha lido os relatórios, mas sua esperança era transpor as defesas da diretora assistente, talvez descobrir o que ela pensava. Lera parte dos relatórios sobre ela, também, mas ainda não sabia muito a seu respeito, exceto as reações dela à sua presença.

Após quatro horas do seu primeiro dia oficial de trabalho, ele já se sentia contaminado pelo ambiente encardido e bizarro do edifício, com seu surrado tapete verde e as opiniões retrógradas das pessoas com quem conversara. Tudo ali parecia sofrer uma espécie de empobrecimento, até mesmo a luz do sol que penetrava sem muita força pelas janelas altas e retangulares. Ele estava usando seu típico blazer preto e calça social, camisa branca com gravata azul-clara, e sapatos pretos que ele mesmo engraxara pela manhã. Agora se perguntava por que tinha se dado o trabalho. Esses pensamentos não lhe agradavam, pois não estava indiferente àquele ambiente — na verdade pertencia a ele —, mas era difícil evitá-los.

Controle ficou algum tempo observando as mulheres, embora sua aparência dissesse pouco. Todas tinham recebido os mesmos uniformes genéricos, lembrando levemente trajes militares, mas também parecendo trajes de zeladores. As cabeças foram raspadas, como se elas tivessem sofrido algum tipo de infestação, como piolhos, em vez de algo mais inexplicável. Seus rostos tinham todos a mesma expressão, ou, melhor dizendo, a mesma falta de expressão. Não pense nelas pelo nome, ele disse a si mesmo durante o voo. Deixe que de início estejam ali apenas pela função que exercem. Depois vá preenchendo o resto. Mas nunca fora fácil para Controle se manter distante. Gostava de mergulhar, de alcançar um patamar onde os detalhes trouxessem esclarecimentos sem atordoá-lo.

A topógrafa fora encontrada em casa, sentada numa cadeira no pátio dos fundos.

A antropóloga fora encontrada pelo marido, batendo na porta dos fundos do consultório médico dele.

A bióloga fora encontrada num terreno baldio coberto de mato, a vários quarteirões de onde morava, contemplando um muro de tijolos em ruínas.

Tal como aconteceu com os membros da expedição anterior, nenhuma delas tinha a menor lembrança de como voltara pela fronteira invisível que cercava a Área X. Nenhuma delas sabia como conseguira transpor os bloqueios, as cercas e outras formas de proteção que os militares construíram ao longo da fronteira. Nenhuma delas sabia o que havia acontecido com o quarto membro da expedição — a psicóloga, que, na verdade, era também a diretora do Comando Sul, e que tinha enfrentado todas as objeções para liderar, incógnita, aquela expedição em particular.

Nenhuma delas parecia ter muitas recordações do que quer que fosse.

* * *

No refeitório, ao tomar o café da manhã, Controle ficou olhando pelas grandes janelas envidraçadas que ocupavam toda a extensão da parede e avistou o pátio com sua profusão de mesas de pedra. Depois observou as pessoas avançando devagar em filas —pareceu-lhe pouca gente para um edifício tão grande — e perguntou a Grace:

— Por que não está todo mundo eufórico com o regresso da expedição?

Ela lhe lançou um olhar paciente e estoico, como se ele fosse um estudante particularmente lento numa turma para crianças especiais.

— O que você acha, Controle?

Ela já tinha encontrado uma maneira de pronunciar seu nome de forma irônica, de modo que ele se sentia como o peso de chumbo nas varas de pescar do avô, fadado ao sedimento no fundo de dezenas de lagos. Grace continuou:

— Já passamos por tudo isso com a expedição anterior. Eles tiveram que suportar nove meses de interrogatórios, e nunca descobrimos nada. E durante todo esse tempo eles estavam morrendo. Como você se sentiria?

Longos meses de desorientação, e em seguida a morte causada por um tipo de câncer especialmente maligno.

Controle assentiu devagar em resposta. Claro que ela tinha razão. O pai dele morrera de câncer. Não havia pensado que tipo de impacto isso podia ter sobre a equipe. Mesmo para ele era somente uma abstração, simplesmente palavras num formulário que se lê durante o pouso do avião.

Ali, no refeitório, o verde do tapete agora mais escurecido, um padrão de setas em verde-claro se destacou, todas apontando para o pátio lá fora.

— Por que não há mais luzes aqui? — perguntou ele. — Para onde vai toda a luz?

Mas àquela altura Grace já tinha parado de responder a suas perguntas.

* * *

Quando uma das três — a bióloga — virou a cabeça só um pouquinho, encarando o espelho como se pudesse vê-lo, Controle desviou o olhar com uma espécie de constrangimento tardio. O procedimento de observação era impessoal, profissional, mas provavelmente não era essa a sensação das mulheres, embora soubessem que estavam sendo avaliadas.

Não o avisaram de que passaria seu primeiro dia interrogando os expedicionários da Área X, e as pessoas da Central deviam saber disso quando lhe ofereceram a vaga. Os membros da expedição tinham sido recolhidos havia quase seis semanas. Foram submetidos a testes durante um mês, numa estação de processamento mais ao Norte, antes de serem enviados para o Comando Sul. Assim como ele próprio fora enviado primeiro para a Central, onde suportara duas semanas de reuniões incluindo intervalos, dias inteiros que sumiam no esquecimento sem que nada de fato acontecesse, como se tivessem planejado para ser exatamente assim. E então as coisas aceleraram, e ele pressentiu certa urgência.

Eram detalhes assim que vinham lhe causando uma inútil exasperação desde a sua chegada. A Voz, seu primeiro contato na direção dos escalões superiores, sugerira numa reunião anterior que aquela era uma missão bastante fácil, dado o histórico dele. O Comando Sul tinha se tornado uma agência atrasada, isolada, a guardiã de um segredo adormecido com o qual ninguém parecia mais se importar, uma vez que o foco estava em terrorismo e colapso ecológico. A Voz dissera, com seu tom rabugento, que a missão dele seria “aclimatar-se, avaliar, analisar e depois ir mais fundo”, o que não eram suas instruções-padrão naquela época.

Controle iniciara sua carreira, reconhecidamente de altos e baixos, na área de vigilância de células terroristas domésticas. Depois o jogaram para síntese de dados e análise organizacional — duas dezenas de casos ou mais, banais em suas semelhanças e sobre os quais ele estava proibido de falar. Casos invisíveis ao público: a história secreta do nada. Porém cada vez mais ele tinha se tornado “o consertador”, porque era muito melhor na identificação de problemas alheios específicos do que na administração de problemas genéricos próprios. Aos 38 anos, era assim que passara a ser conhecido, se é que o conheciam por algo. Ou seja, ele não precisava permanecer até o final da missão, mesmo que àquela altura tudo que quisesse fosse isso: acompanhar alguma coisa até o fim. O problema é que as pessoas não gostam de um consertador — “Ei, deixe-me mostrar onde você está errando” —, principalmente quando acham que o próprio consertador necessita de conserto.

Sempre começava bem, o que não queria dizer que o resultado seria satisfatório.

A Voz também deixara de mencionar que a Área X ficava do lado oposto de uma fronteira que, mais de trinta anos depois, ninguém conseguia compreender. Não, ele só tinha tomado conhecimento disso ao examinar os relatórios e assistir às desnecessárias sessões dos registros em vídeo.

Também não sabia que a diretora assistente o odiaria tanto pelo simples fato de ele estar substituindo a diretora desaparecida. Embora ele devesse ter adivinhado; de acordo com os fragmentos de informação no arquivo, ela crescera num lar de classe média baixa, estudara em escolas públicas e trabalhara muito mais do que a maioria para chegar à posição que ocupava agora. Controle, por outro lado, chegava ali cercado de murmúrios sobre seu vínculo com uma dinastia invisível, o que, como é natural, gerou ressentimentos. Ninguém poderia negar esse fato, mesmo que, analisando com afinco, a dinastia não fosse mais que uma franquia atrofiada.

— Estão prontas. Vamos lá.

Grace, que surgiu novamente como por encanto, chamava-o com um gesto enérgico no umbral.

Havia, e ele sabia disso muito bem, inúmeras maneiras de sobrepujar a oposição ou a vontade de um colega. Provavelmente teria de experimentar todas.

Controle apanhou dois dos três relatórios que estavam sobre a mesa e, com os olhos cravados nos olhos da bióloga, rasgou-os ao meio, sentindo a resistência do papel, e largou os pedaços no cesto.

De trás dele veio um som como o de alguém engasgando.

Ele se virou, encarando a raiva muda na expressão da diretora assistente. Mas ele podia ver também em seus olhos certo cansaço. Muito bom.

— Por que você ainda utiliza relatórios em papel, Grace? — perguntou ele, dando um passo à frente.

— A diretora insistiu. Você fez isso por alguma razão?

Ele a ignorou.

— Grace, por que nenhum de vocês se sente à vontade para usar as palavras alienígena ou extraterrestre quando se refere à Área X?

Mas ele mesmo também não se sentia à vontade. Às vezes, desde que lhe tinham revelado a verdade, ele sentia um enorme abismo se abrindo dentro de si, cheio de seus próprios gritos e manifestações de incredulidade. Mas nunca revelaria isso a ninguém. Tinha a expressão de um jogador de pôquer; namoradas, parentes e até mesmo desconhecidos já haviam lhe dito isso. Cerca de um metro e oitenta de altura. Impassível. A estrutura muscular e compacta de um atleta; era capaz de correr quilômetros sem se cansar. Orgulhava-se de manter uma boa dieta e fazer exercícios regularmente, embora gostasse de beber uísque.

Ela não se deixou abalar.

— Ninguém tem certeza. Não devemos tirar conclusões precipitadas.

— Mesmo depois desse tempo todo? Só preciso entrevistar uma delas.

— O quê? — perguntou ela.

A contundência de seu gesto se transferiu para a conversa.

— Não preciso dos outros relatórios porque me basta interrogar uma delas.

— Você precisa de todas. — Era como se ela ainda não compreendesse.

Ele girou o corpo para pegar o relatório restante.

— Não. Basta a bióloga.

— Isso é um erro.

— Setecentos e cinquenta e três não é um erro — disse ele. — Setecentos e vinte e dois também não.

Os olhos dela se estreitaram.

— Tem algo de errado com você.

— Mantenha a bióloga ali dentro — disse ele, ignorando-a, mas adotando sua maneira de falar. Eu sei uma coisa que você não sabe. — Mande as outras de volta para o alojamento.

Grace o olhou como se ele fosse uma espécie de roedor e ela não pudesse decidir se devia ter repulsa ou piedade. Depois de um instante, porém, assentiu secamente e saiu.

Ele relaxou, soltando a respiração. Embora ela tivesse de acatar suas ordens, ainda estaria no controle das equipes por mais uma ou duas semanas, e poderia prejudicá-lo de mil maneiras diferentes antes que ele estivesse completamente integrado.

Aquilo era alquimia ou uma magia verdadeira? Será que ele estava errado? E será que fazia diferença? Se estivesse errado, cada uma delas era, em todo caso, igual às outras.

Sim, fazia diferença.

Aquela era sua última chance.

Sua mãe lhe dissera antes de ele ir para lá.


A mãe de Controle sempre lhe parecera um clarão de luz à distância no céu noturno. Aparecendo e sumindo, sumindo e aparecendo, e sempre na lembrança; talvez deixasse a dúvida sobre o que era, sobre o que produzira aquela luz. Mas nunca se poderia saber com certeza.

Como filha única, Jackie Miranda Severance entrou para a carreira militar seguindo o exemplo do pai, Jack Severance, e acabou se destacando; agora possuía uma patente mais alta do que o próprio pai, um agente cheio de condecorações. Jack a criou para ser brilhante, organizada, pronta para liderar. Controle tinha ouvido dizer que o avô submetera Jackie a corridas de obstáculos quando criança, e a fizera enfiar baionetas em sacos de farinha. Não havia muitos álbuns de família para ele confirmar essas histórias. Fosse qual fosse o processo, ele também criara nela uma espécie de crueldade despreocupada, uma expectativa de alto desempenho e certo calculismo que se manifestava como aparente indiferença pelo destino alheio.

Nesse papel, Controle a admirava fervorosamente, e sem dúvida tinha procurado imitá-la, mesmo que em níveis mais modestos... Mas, como mãe, mesmo quando estava próxima, ela não era confiável em ações como buscá-lo na escola na hora certa, ou lembrar de preparar seu lanche, ou ajudá-lo com o dever de casa. Raramente era consistente quanto às obrigações importantes no mundo das pessoas comuns daquele lado da divisa. Ainda assim, ela sempre o incentivou em sua jornada rumo e pelo serviço militar.

Vovô Jack, por outro lado, nunca simpatizou muito com essa ideia, e um dia olhou para ele e disse: “Eu não acho que ele tenha o temperamento certo.” Foi uma opinião arrasadora para um garoto de dezesseis anos que já tomara sua decisão, mas serviu apenas para deixá-lo ainda mais determinado, mais focado, mais voltado na direção do céu e da luz. Depois achou que o avô dissera aquilo justamente com essa intenção. O avô tinha uma personalidade imprevisível, explosiva, enquanto a mãe era uma chama gelada e azul.

Quando ele tinha oito ou nove anos, foram pela primeira vez ao chalé perto do lago onde passavam o verão — “nosso clube secreto de espiões”, como sua mãe o chamava. Somente ele, a mãe e o avô. Havia um velho aparelho de TV num canto, em frente ao sofá esfarrapado. O avô o fazia mexer na antena para melhorar a imagem. “Um pouco mais para a esquerda, Controle”, dizia ele. “Mais um pouquinho.” A mãe estava no quarto ao lado, estudando alguns arquivos recentemente liberados que trouxera do escritório. E foi assim que ele ganhou seu apelido, sem saber que o avô tinha se inspirado no jargão dos espiões. Sendo garoto, ele se apegou àquele apelido como algo especial, algo que seu avô lhe dera como um gesto de amor. Mas ele era astuto o bastante para não revelar isso a ninguém de fora da família, mesmo às suas namoradas, durante muitos anos. Deixou que pensassem que era um apelido recebido na escola, onde jogava como quarterback na equipe de futebol americano. “Um pouco mais para a direita, Controle.” Arremesse a bola como um astro. O que ele mais gostava era perceber onde estavam os receptores e mandar a bola exatamente lá. Mesmo que se saísse melhor apenas nos treinos, ficava satisfeito com aquele tipo de precisão, a geometria, a expectativa.

Quando cresceu, assumiu “Controle” como seu próprio nome. Podia sentir agora o aguilhão de condescendência que havia na palavra, mas jamais iria perguntar ao avô se ele a pronunciava com essa intenção, ou com alguma outra. Imaginou se o fato de passar tanto tempo lendo quanto pescando teria de algum modo predisposto o avô contra ele.

Então, sim, ele adotou e recriou aquele nome, permitiu que se perpetuasse. Mas esta era a primeira vez que instruía seus colegas de trabalho a chamarem-no de Controle, e na verdade não sabia explicar por quê. Era algo que simplesmente lhe ocorrera, como se daquela forma pudesse recomeçar do zero.

Um pouco mais para a esquerda, Controle, e talvez você acerte aquele facho de luz.


Por que um terreno baldio? Ele ficou pensando nisso desde que vira o vídeo das câmeras de segurança, pela manhã. Por que a bióloga fora para aquele terreno baldio, e não para a própria casa? As outras duas voltaram para um lugar pessoal, um lugar com o qual tinham um laço afetivo. Mas a bióloga permanecera durante horas e horas num terreno coberto de mato, alheia a tudo à sua volta. Tendo visto tantos vídeos de suspeitos, Controle se especializara em detectar os gestos ou tiques nervosos mais inocentes, indicações de que havia algum sinal sendo transmitido. Mas naquele vídeo não existia nada semelhante.

A presença dela ali fora informada ao Comando Sul através de um relatório da polícia local, que a deteve por vadiagem: uma reação lenta, motivada pelas buscas que tiveram início assim que o Comando Sul deteve as outras duas.

E depois havia o problema de concisão versus concisão.

753. 722.

Uma pequena pista, mas Controle já tinha pressentido que a missão girava em torno de detalhes, de um trabalho investigativo. Nada surgiria com facilidade. Ele não podia contar com a sorte; aquele não seria o caso de um terrorista amador com merda na cabeça armado com uma bomba de fertilizantes e uma versão barata de uma ideologia qualquer — o tipo do sujeito que desmorona depois de vinte minutos de interrogatório.

Durante as entrevistas preliminares para determinar quem faria parte da décima segunda expedição, a bióloga tinha, segundo as transcrições em seu dossiê, respondido em apenas 753 palavras. Controle as contara. Isso incluía as palavras café da manhã como a resposta completa a uma pergunta. Controle admirou aquela réplica.

Ele contou e recontou as palavras enquanto esperava que instalassem seu computador, emitissem seu cartão de segurança, lhe entregassem as senhas e os códigos, e refizessem todos os outros rituais a que ele já se acostumara durante sua passagem por várias agências e departamentos.

Ele insistiu em ocupar a sala da antiga diretora, apesar dos esforços de Grace para isolá-lo num cômodo que era uma espécie de armário de vassouras melhorado, longe do centro dos acontecimentos. Insistiu também que tudo fosse deixado na sala exatamente como estava, inclusive objetos pessoais. Era visível que ela não apreciava a ideia de vê-lo remexendo nos pertences da diretora.

“Você está meio por fora”, dissera Grace depois que os outros saíram. “Não está aqui totalmente.”

Ele apenas assentira, pois não adiantava negar que era um pouco estranho. Mas se estava ali para avaliar e consertar algo, precisava ter uma ideia melhor do que havia de errado e, como um sociopata em outra estação tinha dito certa vez, “o peixe começa a apodrecer pela cabeça”. Peixes apodrecem por igual, já que a degradação das células é não hierárquica, não é determinada por castas; mas a mensagem foi registrada.

Controle assumiu imediatamente seu posto por trás da mesa que parecia um aríete, por entre as pilhas e mais pilhas de pastas de papéis, a profusão de bilhetes e post-its. A cadeira giratória lhe proporcionava uma vista panorâmica das estantes de livros nas paredes, intercaladas com quadros e murais cobertos de camadas de papéis pregados e repregados até parecerem mais uma série de instalações artísticas esquisitas, delicadas e caóticas. A sala tinha um cheiro rançoso, com um resíduo de cigarros fumados muito tempo atrás.

O tamanho e o peso do monitor do computador indicavam o quanto estava obsoleto, bem como o fato de que pifara décadas atrás e continha uma espessa camada de pó. Alguém o tinha empurrado descuidadamente para um lado; duas sombras no calendário de papel mata-borrão abaixo indicavam a sua posição anterior, assim como a do laptop que aparentemente o substituíra — embora ninguém fosse capaz de localizá-lo agora. Ele fez uma anotação mental para perguntar se o tinham procurado na casa dela.

O calendário era do final dos anos 1990; teria sido nessa época que a diretora começou a perder o fio da meada? Ele a visualizou na Área X com a décima segunda expedição, vagando pelo mato sem destino: uma mulher alta, robusta, de quarenta anos, mas que aparentava mais idade. Silenciosa, cheia de conflitos, dilacerada. Possuída pelas próprias responsabilidades, permitira-se acreditar que sua obrigação era juntar-se às pessoas que enviara para aquele local. Por que ninguém conseguira detê-la? Ninguém se importava com ela? Ela fora capaz de convencer a todos: A Voz não tinha dito nada. Os arquivos sobre ela, exasperantemente incompletos, não revelaram nada.

Tudo que Controle via à sua volta demonstrava que ela era uma pessoa comprometida, mas que ao mesmo tempo não se comprometera nem um pouco com o funcionamento da agência.

Cutucando seu joelho do lado esquerdo, por baixo da mesa, estava a torre do computador. Ele pensou se também teria deixado de funcionar nos anos 1990. Controle concluiu que era melhor nem ver as salas onde os técnicos consertavam hardwares, os pobres cadáveres abatidos dos computadores de décadas passadas, o museu caótico e involuntário de plástico e fios e placas de circuitos. Ou talvez o peixe começasse mesmo a apodrecer pela cabeça, e somente a diretora tivesse entrado em decomposição.

Assim, sem computador, pois seu laptop ainda não estava suficientemente protegido, Controle dedicara-se a ler por alto as transcrições das entrevistas iniciais com os membros da décima segunda expedição. A própria ex-diretora, na qualidade de psicóloga, as conduzira.

As recrutas tinham se revelado incontroláveis, irreprimíveis, na opinião de Controle: tagarelas, cheias de risadinhas, movendo-se com estardalhaço, produzindo um clichê atrás do outro. Pessoas que, em comparação, pareciam incapazes de controlar a própria língua: 4.623 palavras... 7.154 palavras... E a campeã das campeãs, a linguista que havia desistido no último minuto, e que produzira 12.743 palavras de respostas, incluindo uma recordação de infância estendida heroicamente e “tão divertida quanto um cálculo renal expelido pelo pênis”, como alguém rabiscara na margem do texto. O que fazia com que a bióloga e suas compactas 753 palavras se destacassem. Aquele tipo de autocontrole o levara a prestar atenção não apenas nas palavras, mas nas pausas entre elas. Por exemplo: “Gostei de todos os empregos que tive nessa área.” E no entanto ela fora despedida da maioria deles. Ela achava que não tinha dito nada, mas cada palavra — até mesmo café da manhã — criava uma abertura. O café da manhã não fora muito agradável para a bióloga na infância.

O fantasma estava bem ali, nas transcrições feitas depois do seu regresso, movendo-se através do texto. Coisas que se revelavam nos espaços vazios, fazendo com que Controle não as quisesse repetir em voz alta por medo de não ser capaz de perceber as nuances e as referências ocultas. Uma descrição neutra de um cardo... uma menção a um farol. Uma ou duas frases descrevendo a natureza da luz sobre os pântanos da Área X. Nada disso devia tê-lo afetado, mas ainda assim ele a sentia presente, de algum modo, olhando por cima do seu ombro; algo que ele não sentira em nenhuma das entrevistas com os outros membros da expedição.

A bióloga dizia lembrar tão pouco quanto as outras.

Controle sabia que era mentira — ou se revelaria mentira se ele lhe arrancasse as informações. Valeria a pena fazer isso? Ela estava cautelosa porque acontecera algo na Área X, ou somente porque era do seu temperamento ser assim? Uma sombra passou então sobre a mesa da diretora. Ele estivera ali antes, ou perto dali, tomando essas mesmas decisões, e isso quase o arrebentara, quase explodira dentro dele. Mas não tinha escolha.

Cerca de setecentas palavras depois que ela voltou. Tal como as outras duas. Mas, diferentemente delas, isso mal podia se comparar ao seu laconismo de antes da expedição. E havia os detalhes específicos, ausentes nas demais. Enquanto a antropóloga dizia algo como “A floresta estava deserta e intocada”, a bióloga dizia “Havia cardos cor-de-rosa por toda parte, mesmo onde a água doce se misturava à salgada... A luz ao entardecer era um clarão baixo, um brilho”.

Aquilo, combinado com o detalhe estranho do terreno baldio, levou Controle a crer que a bióloga poderia ter retido mais lembranças do que as outras. Que talvez estivesse mais consciente do que as outras, mas o escondesse por algum motivo. Ele nunca tinha se deparado com uma situação assim, mas se lembrava do caso de um colega que interrogou um terrorista com ferimento na cabeça e retardava ao máximo o interrogatório no hospital na esperança de que sua memória voltasse. Ela voltou. Mas somente os fatos, e não o impulso idealista que tinha originado suas ações; a partir daí estava perdido, tornou-se presa fácil para os inquisidores.

Controle não compartilhou sua teoria com a diretora assistente, porque, caso estivesse errado, ela utilizaria isso para reforçar a opinião negativa que tinha sobre ele. E também para deixá-la na incerteza tanto tempo quanto possível. “Nunca faça algo por uma só razão”, seu avô lhe dissera mais de uma vez, e pelo menos nisso Controle seguira seus conselhos.

* * *

O cabelo da bióloga era longo e castanho-escuro, quase negro, antes que o raspassem. Ela tinha sobrancelhas grossas e escuras, olhos verdes, um nariz delicado e um pouquinho torto (ela o quebrara certa vez, ao cair nas rochas), e maças do rosto salientes que indicavam sua herança asiática de um lado da família. Seus lábios rachados eram surpreendentemente cheios para um rosto tão fino. Ele desconfiou dos seus olhos, das percentagens observáveis, e checou para confirmar que não tinham cor diferente antes da expedição.

Mesmo sentada à mesa ela dava a impressão de ser fisicamente forte, com músculos salientes no ponto em que o pescoço e os ombros se encontravam. Até então, todos os testes em busca de câncer ou outras anomalias tinham tido resultados negativos. Controle não lembrava os dados exatos da ficha, mas tinha a sensação de que ela era quase tão alta quanto ele. Fora confinada na ala leste do edifício havia duas semanas, sem fazer nada senão comer e exercitar-se.

Antes de partir na expedição, a bióloga recebera um intenso treinamento de técnicas de sobrevivência e uso de armas nas instalações que a Central destinava a esse propósito. Certamente fora instruída com todas as meias-verdades que a cúpula do Comando Sul julgava necessárias, baseadas em critérios que Controle considerava misteriosos e até mesmo suspeitos. Fora também submetida a um condicionamento que a tornava mais receptiva à sugestão hipnótica.

* * *

A psicóloga e ex-diretora teria recebido certo número de comandos hipnóticos para usar, palavras que, combinadas, deveriam induzir certos efeitos. Um pensamento cruzou a mente de Controle enquanto a porta se fechava às suas costas: a diretora teria contribuído para a confusão de memória das três, enquanto ainda estavam na Área X?

Controle acomodou-se numa cadeira de frente para a bióloga, sabendo que Grace, no mínimo, estaria observando os dois do outro lado do espelho falso. A bióloga já tinha sido interrogada por alguns especialistas, mas Controle também era um deles ao seu modo e precisava desse contato face a face. Havia algo na dinâmica de uma entrevista presencial que se perdia no vídeo e nas transcrições.

O piso por baixo dos seus sapatos era encardido, quase pegajoso. As lâmpadas fluorescentes no alto piscavam a intervalos irregulares, e tanto a mesa quanto as cadeiras pareciam ter sido trazidas de um refeitório do ensino médio. Ele sentia o cheiro penetrante e metálico de desinfetante barato que lembrava mel estragado. Aquela sala não inspirava confiança no Comando Sul. Uma sala para entrevistas de avaliação — ou feita para parecer uma sala de entrevistas de avaliação — devia ser mais confortável do que uma cuja finalidade única e permanente fosse o interrogatório, a presunção de uma possível resistência.

Agora que Controle estava sentado em frente à bióloga, ela impunha uma presença que o fazia hesitar em olhá-la dentro dos olhos. Mas ele sempre se sentia nervoso antes de interrogar alguém, como se a mãe, aquele clarão no céu, tivesse desviado de sua trajetória e descido para ficar junto ao seu ombro, em carne e osso, observando-o. A verdade é que ela de vez em quando verificava suas atividades. Podia ter acesso àquela gravação. Portanto, não era apenas paranoia ou impressão, era uma parte possível da sua realidade.

Às vezes, enfatizar seu nervosismo, fazer a pessoa em frente relaxar ajudavam o processo. Então, ele pigarreou, tomou um hesitante gole d’água da garrafa que trouxera e mexeu inquietamente no documento que colocara na mesa entre eles, junto do controle da TV à sua esquerda. Para preservar as condições em que ela fora encontrada, garantindo, basicamente, que ela não tivesse sua memória melhorada de modo artificial, a diretora assistente ordenara que não se revelasse qualquer informação pessoal sobre ela. Controle considerou isso maldade, mas concordou com Grace. Ele queria que o documento entre eles parecesse uma possível recompensa, ainda que não soubesse se o entregaria a ela.

Controle se apresentou com seu nome verdadeiro, informou-a de que aquela “entrevista” estava sendo gravada e pediu-lhe que também se apresentasse pelo nome.

— Pode me chamar de Ave Fantasma — disse ela.

Haveria um tom de provocação na sua voz mansa?

Ele ergueu os olhos para ela, no mesmo instante sentiu-se confuso e então desviou o olhar. Será que ela estava usando algum tipo de sugestão hipnótica sobre ele? Foi a primeira ideia que lhe ocorreu, mas logo a descartou.

— Ave Fantasma?

— Ou nada, se preferir.

Ele assentiu. Sabia o momento de deixar passar alguma coisa, pesquisaria aquela expressão depois. Tinha a vaga lembrança de ter visto algo parecido nos relatórios. Talvez.

— Ave Fantasma — disse, testando o nome. As palavras tinham uma textura seca, estranha, na sua boca. — Não recorda nada sobre a expedição?

— Já contei aos outros. Era uma natureza selvagem, intocada.

Ele julgou ter percebido uma nota de ironia em seu tom de voz, mas não tinha certeza.

— Como você definiria sua relação com a linguista durante o treinamento? — perguntou.

— Não muito próxima. Ela era muito loquaz. Não calava a boca. Era... — A bióloga se deteve, enquanto Controle reprimiu uma reação satisfeita.

Uma pergunta que ela não estava esperando. De maneira alguma.

— Ela era o quê? — insistiu ele.

O primeiro interrogador tinha utilizado a técnica-padrão: estabelecer conexão, apresentar os fatos, construir o relacionamento sobre essa base. Sem nenhum resultado concreto para apresentar.

— Não me lembro.

— Acho que lembra, sim. — E, se lembra disso, então...

— Não.

Ele abriu a pasta com gestos ensaiados e consultou as transcrições, desprendendo do clipe as folhas que traziam as informações mais importantes a respeito dela.

— Muito bem, então. Fale-me sobre os cardos.

— Os cardos?

O arqueio expressivo das sobrancelhas mostrou o que ela achara da pergunta.

— Sim. Você se referiu aos cardos de uma maneira muito específica. Por quê?

Aquilo ainda o deixava perplexo, a quantidade de detalhes a respeito dos cardos, numa entrevista gravada na semana anterior, quando ela tinha chegado ao Comando Sul. Fez com que pensasse novamente em sugestões hipnóticas. Fez com que pensasse em palavras sendo usadas como uma sebe protetora.

A bióloga deu de ombros.

— Não sei.

Ele apanhou uma transcrição e leu em voz alta:

— “Os cardos aqui têm florações cor de lavanda e brotam no espaço transicional entre a floresta e o pântano. É impossível evitá-los. Eles atraem uma variedade de insetos, e o murmúrio e o zumbido e o brilho que os cerca impregna a Área X com um clima de atividade contínua, quase como o de uma cidade humana.” A fala continua, mas eu paro por aqui.

Ela voltou a dar de ombros.

Controle não queria pairar num só ponto, mas planar ao longo do território, mapear toda a extensão do espaço que desejava explorar com ela, por isso seguiu adiante.

— O que você lembra sobre o seu marido?

— Isso é relevante?

— Relevante para o quê? — Deu o bote.

Nada de resposta, de modo que repetiu:

— O que você lembra sobre o seu marido?

— Lembro que tive um. Algumas lembranças de antes de cruzar a fronteira, como eu tinha sobre a linguista.

Muito hábil aquela maneira de ligar uma coisa à outra, fazer tudo parecer partes de um mesmo conjunto. Uma vagueza, não uma precisão.

— Sabia que ele também voltou de lá, assim como você? — perguntou ele. — Que estava desorientado, assim como você?

— Eu não estou desorientada — retorquiu ela com aspereza, projetando o corpo, e Controle recuou.

Não sentiu medo, mas por um instante pensou que deveria sentir. Os exames do cérebro dela não tinham apontado anormalidades. Todas as precauções foram tomadas para prevenir qualquer coisa que remotamente lembrasse uma espécie invasora. Ou “um intruso”, como Grace costumava dizer, ainda incapaz de pronunciar qualquer palavra remotamente parecida com alienígena. Fosse como fosse, Ave Fantasma estava mais saudável agora do que quando partiu para a expedição; as toxinas presentes na maioria das pessoas de hoje estavam presentes nela e nas outras, mas em níveis bem menores do que o normal.

— Não quis ofender — disse ele.

E o fato era que ela estava desorientada, ele sabia bem. Não fazia muita diferença o que ela lembrava ou deixava de lembrar, a bióloga que ele viera a conhecer pelas transcrições das conversas pré-expedição não ficaria irritada tão facilmente. Por que ele a havia afetado?

Ele pegou o controle remoto junto da pasta e clicou duas vezes. A TV de tela plana na parede à esquerda iluminou-se com um chiado, mostrando a imagem com pouca resolução e fora de foco da bióloga parada no terreno baldio, quase tão imóvel quanto o calçamento ou os tijolos do edifício em frente. Toda a cena estava envolta naquele verde doentio das escuras câmeras de segurança.

— Por que esse terreno? Por que nós a encontramos ali?

Um olhar de indiferença e nenhuma resposta. Ele deixou o vídeo rodando. A repetição constante, ao fundo, às vezes ajudava a desmontar o entrevistado. Mas normalmente o vídeo mostrava um suspeito pousando um saco no chão ou enfiando algo numa lata de lixo.

— O primeiro dia de vocês na Área X — continuou Controle. — A caminhada até o acampamento principal. O que aconteceu?

— Não muita coisa.

Controle não tinha filhos, mas imaginava que aquilo era mais ou menos o que ele conseguiria extrair de uma adolescente se lhe perguntasse como tinha sido o seu dia no colégio. Talvez fosse melhor não ser direto.

— Mas você se lembra muito bem dos cardos — disse ele.

— Não sei por que você insiste em falar de cardos.

— Porque o que você falou sobre eles indica que recorda de algumas observações que fez durante a expedição.

Uma pausa, e Controle sabia que a bióloga o estava encarando. Queria desenvolver o olhar, mas algo o avisava que não. Alguma coisa lhe dava a sensação de que corria o risco de cair nas profundezas do seu sonho.

— Por que estou presa aqui? — perguntou ela, e ele sentiu que agora já podia olhá-la nos olhos de novo, como se um momento de perigo tivesse passado e ido embora.

— Você não está presa. Isso faz parte de sua readaptação.

— Mas não posso ir embora.

— Por enquanto não — concordou ele. — Mas vai sair, sim.

Mesmo que seja para outras instalações; seriam mais dois ou três anos, se tudo corresse bem, antes de algum deles obter autorização para retornar ao mundo externo. Sua situação legal estava naquela zona cinzenta arbitrariamente definida pela ameaça à segurança nacional.

— Duvido muito — respondeu ela.

Ele resolveu tentar de novo.

— Se os cardos não são importantes, o que seria, então? — perguntou. — Devo lhe perguntar sobre o quê?

— Esse não é o seu trabalho?

— Qual é o meu trabalho? — perguntou ele, embora soubesse perfeitamente o que ela queria dizer.

— Você dirige o Comando Sul.

— Sabe o que é o Comando Sul?

— Sssim. — Num sibilo.

— Muito bem, e o segundo dia de vocês no acampamento? Quando foi que as coisas começaram a ficar estranhas? — Haviam mesmo ficado estranhas? Ele tinha que supor que sim.

— Não me lembro.

Controle curvou-se para a frente.

— Posso colocar você sob hipnose. É meu direito. Posso fazer isso.

— Hipnose não funciona comigo — disse ela, e sua voz indicava a repulsa pela ameaça.

— Como pode saber?

Um momento de desorientação. Ela havia falado inadvertidamente algo que queria esconder ou tinha acabado de lembrar algo que estava perdido até então? Ela saberia a diferença?

— Eu só sei.

— Para que fique bem claro: podemos recondicionar você e depois colocá-la sob hipnose.

Tudo aquilo era blefe, pois necessitava de uma logística muito complicada. Para fazê-lo, Controle teria de enviá-la para a Central, e ela desapareceria para sempre naquele ventre gigantesco. Ele talvez recebesse relatórios, mas nunca mais teria contato direto com ela. E também não queria recondicioná-la.

— Faça isso, e eu te... — Ela conseguiu se conter antes de pronunciar o que pareceu o início da palavra mato.

Controle achou melhor ignorar. Já tinha sido alvo de muitas ameaças e sabia quais devia levar a sério.

— O que tornou você resistente à hipnose? — perguntou ele.

— Você é resistente à hipnose? — Desafiadora.

— Por que estava naquele terreno baldio? As outras duas foram encontradas quando foram procurar os entes queridos.

Nenhuma resposta.

Talvez já tivessem conversado o bastante por ora. Talvez fosse o suficiente.

Controle desligou a televisão, apanhou a pasta, cumprimentou-a com um aceno de cabeça e se dirigiu à porta.

Uma vez lá, a porta aberta deixando entrar mais sombras do que o necessário, ele se virou, consciente da presença da diretora assistente na ponta do corredor, e olhou de volta para a bióloga.

Ele enunciou, como tinha planejado, a fala de encerramento de um ato teatral:

— Qual é a última coisa que você se lembra de fazer na Área X?

A resposta, inesperada, saltou sobre ele como a luz tomando de assalto a escuridão.

— Me afogar. Eu estava me afogando.


002: AJUSTES

“Basta fechar os olhos e você vai se lembrar de mim”, seu pai dissera três anos antes, num lugar não muito distante de onde Controle estava agora, o moribundo tentando confortar os vivos. Mas quando fechava os olhos tudo desaparecia, exceto o sonho da queda e as cicatrizes acumuladas em todas aquelas missões. Por que a bióloga disse aquilo? Por que disse que estava se afogando? Aquilo o fez vacilar um momento, mas também lhe deu a estranha sensação de estar compartilhando um segredo com ela. Como se ela tivesse entrado em sua mente e visto o seu sonho, e agora os dois estivessem ligados um ao outro. Ele se ressentia disso, não queria que houvesse nenhuma ligação entre ele e as pessoas que interrogava. Precisava pairar bem no alto. Precisava escolher quando cairia num mergulho, não ser puxado para a terra pela vontade de alguém.

Quando Controle abriu os olhos, estava nos fundos do edifício em forma de U onde funcionava o quartel-general do Comando Sul. A parte curva era a frente do prédio, tendo diante de si uma estrada e um estacionamento. Construído num estilo de muitas décadas atrás, aquela caixa de concreto, toda em camadas, podia ser tanto um monumento quanto um monturo — ele não conseguia se decidir. As cumeeiras e as fendas eram espantosas; o modo como o teto se projetava sobre o restante da construção lhe dava uma aparência pouco funcional, como arte performática ou uma grande escultura abstrata numa escala grandiosa, mas embrutecida. Para piorar, a área entre os dois braços do U fora transformada num pátio com vista para um lago envolto por velhas árvores. As margens do lago eram enegrecidas, como se a certa altura tivessem sido incendiadas, e um novelo tortuoso de raízes de ciprestes invadia a água negra e salobra. A luz que banhava o lago tinha um tom claustrofóbico de cinza, bem diferente do céu azul lá em cima.

Isso também fora novo um dia, talvez muito tempo antes, durante o período Cretáceo, e mesmo então o edifício já devia existir de alguma forma, dando uma marcha a ré tão acentuada rumo ao passado que era possível olhar pela janela e ver libélulas do tamanho de abutres.

O U que os abrigava não inspirava grande confiança; era sentido menos como um símbolo da sorte do que da incompletude. Pensamentos incompletos. Conclusões incompletas. Relatórios incompletos. As portas nas duas extremidades do U, pelas quais muita gente passava por servir de atalho para o lado oposto, confirmavam uma falha da imaginação. E durante todo o tempo, o pântano abismal continuava a fazer o que quer que fizessem os pântanos, tão perfeito em si mesmo quanto o Comando Sul era imperfeito.

Tudo estava tão parado que, quando um pica-pau mergulhou, cruzando a cena, foi algo tão violento quanto o estouro sônico de um F-16.

À esquerda do U e do lago — que apenas era visível de onde ele estava —, uma estrada sumia por entre as árvores, na direção da fronteira invisível, do outro lado da qual ficava a Área X. Apenas uns 55 quilômetros de via pavimentada e depois mais uns 25 em estrada de terra, passando por um total de dez postos de fiscalização, com ordem de atirar para matar se a pessoa não possuir autorização para entrar, e cheio de cercas e arame farpado e valas e poços e mais pântanos, talvez até colônias de superpredadores aparelhadas pelo Governo, frutinhas silvestres venenosas geneticamente alteradas e martelos para você bater na própria cabeça... Mas, desde que Controle recebera a missão, ficou se perguntando: Por quê? Porque é isso que se faz nessas situações? Manter as pessoas longe? Ele tinha lido os relatórios. Se você conseguisse chegar até a fronteira de maneira “não autorizada” e a cruzasse em qualquer outro ponto que não a porta, nunca mais seria visto. Quantas pessoas tinham feito exatamente isso, sem que ninguém tomasse conhecimento? Como o Comando Sul poderia um dia vir a saber? Uma ou duas vezes, um repórter investigativo conseguiu chegar perto o bastante para fotografar o exterior das instalações de fronteira do Comando Sul, mas mesmo assim só serviu para confirmar na imaginação do público a versão oficial de que ocorrera um desastre ambiental, algo que levaria mais de um século para ser resolvido.

Ele chegou a um caminho pavimentado entre as mesas de pedra no pátio de cimento, ao longo do qual pequenos ladrilhos brancos competiam com quadrados de terra endurecida onde tulipas improváveis foram fincadas a intervalos irregulares. Ele conhecia aquele caminho, com seu som característico, especialmente arrastado. A diretora assistente tinha sido oficial em operações de campo tempos atrás; alguma coisa acontecera numa dessas missões e ela machucou uma perna. Dentro do prédio dava para disfarçar um pouco, mas não naqueles ladrilhos traiçoeiros. Saber disso não chegava a dar a ele uma vantagem, porque o fazia sentir empatia por ela. “Toda vez que você diz ‘operação de campo’ me vem a imagem de vocês, um grupo de espiões malucos, correndo num trigal”, seu pai dissera a sua mãe certa vez.

Grace foi encontrá-lo ali a seu pedido, para lhe fazer companhia enquanto ele olhava para o pântano e os dois conversavam sobre a Área X. Ele tinha pensado em mudar de ambiente, ficar longe do ataúde de concreto, para arrefecer um pouco daquela animosidade. Isso antes de perceber como a paisagem era infernal e pré-histórica, e, sendo assim, pré-histérica também. Observe essa bacanal de mosquitos e me veja com bons olhos, Grace.

— Você só entrevistou a bióloga. Ainda não sei por quê.

Ela começou antes que ele pudesse demonstrar a mais tímida intenção de amizade... E sua determinação de bancar o diplomático, de procurar algum modo de os dois serem colegas, não inimigos — mesmo que só por um gesto fingido —, dissolveu-se no ar.

Controle explicou sua linha de raciocínio. Ela pareceu atenta, embora ele ainda não fosse capaz de compreender bem suas reações.

— Em algum momento nos treinos ela pareceu esconder alguma coisa? — perguntou ele.

— Deflexão. Você acha que ela está escondendo algo.

— Não sei ainda, para falar a verdade. Posso estar enganado.

— Temos interrogadores mais bem preparados do que você.

— Provavelmente.

— Devíamos mandá-la para a Central.

A ideia o fez estremecer.

— Não — retrucou ele, talvez de forma muito enfática, e na fração de segundo seguinte veio a preocupação de que a diretora assistente percebesse seu interesse pelo destino da bióloga.

— Eu já mandei a antropóloga e a topógrafa.

Agora ele sentia o cheiro apodrecido de toda aquela matéria orgânica se decompondo abaixo da superfície do pântano. Podia sentir as desajeitadas tartarugas e os peixes atrofiados abrindo caminhos por entre camadas de resíduos. Achou melhor não se virar para encará-la. Achou melhor não dizer nada, e ficou ali, suspenso com a própria surpresa.

Ela continuou, jovialmente:

— Você disse que elas não iam servir para nada, então eu as mandei para a Central.

— Com ordem de quem?

— Sua. Você deixou bastante claro para mim que era isso que queria. Se sua intenção era outra, mil desculpas.

Um pequeno estremecimento percorreu Controle, uma sensação quase imperceptível.

Elas tinham sido levadas embora. Ele não poderia trazê-las de volta. Precisava tirá-las da cabeça e engolir a mentira de que Grace fizera aquilo como um favor, para facilitar seu trabalho. E por falar nisso, quanto prestígio tinha ela junto à Central?

— De qualquer modo, posso ler as transcrições, caso mude de ideia — disse ele, caprichando num tom descontraído.

Elas ainda seriam interrogadas, e ele lhe dera margem para agir ao dizer que não queria entrevistá-las.

Grace examinava o rosto dele com atenção, à procura de algum sinal que acusasse o golpe.

Ele tentou sorrir, desarmou a própria raiva com o pensamento de que, se a diretora assistente quisesse mesmo prejudicá-lo, teria dado um jeito de enviar também a bióloga. Aquilo era apenas um aviso. Mas agora ele precisava tirar algo de Grace também. Não para ficar quites, mas para que ela não cedesse à tentação de lhe tirar ainda mais. Ele não podia perder a bióloga. Ainda não.

Naquele silêncio contrafeito, Grace perguntou:

— Por que você está aqui fora, parado no sol feito um idiota? — disse isso em tom brincalhão, como se nada tivesse acontecido. — Vamos entrar. Está na hora do almoço, e você pode conhecer algumas pessoas da administração.

Controle já estava se acostumando à maneira desrespeitosa com que ela o tratava, e odiava aquilo, queria uma chance de virar o jogo. Enquanto a acompanhava de volta ao edifício, podia sentir o peso, a presença do pântano às suas costas. Um tipo diferente de inimigo. Ele já olhara demais para essa paisagem, tendo passado a adolescência perto dali após o divórcio dos seus pais e também depois, enquanto seu pai morria aos poucos. Tinha a esperança de nunca mais ver um pântano novamente.

“Basta fechar os olhos e você vai se lembrar de mim.”

Eu lembro, pai. Eu me lembro de você, mas você está sumindo. Há muita interferência, e tudo isso aqui está se tornando real demais.


O lado paterno da família de Controle vinha da América Central, de sangue hispânico e indígena; ele tinha as mãos e o cabelo negro do pai, o nariz fino e a altura da mãe, e uma cor de pele que era uma mistura da dos dois. Seu avô paterno morreu antes que Controle tivesse idade bastante para conhecê-lo bem, mas ele ouviu todas as suas aventuras épicas. O avô vendia alfinetes de porta em porta pelo bairro, quando garoto, e depois dos vinte anos virou boxeador. Não era bom o suficiente para disputar títulos, mas era bom o suficiente para receber um salário e apanhar. Depois, virou operário de construção e então professor de autoescola até sua morte súbita por problemas no coração, aos 65. Sua esposa, que trabalhava numa padaria, faleceu um ano depois. Seu filho mais velho, o pai de Controle, cresceu e tornou-se artista numa família composta em sua maioria por carpinteiros e mecânicos, e usou essa herança para a criação de esculturas abstratas. Humanizava suas abstrações pintando por cima delas com a paleta de cores brilhantes usada pelos maias e também afixando pedaços de ladrilhos ou de vidros, unindo a arte profissional e a arte dos excêntricos. Essa era sua vida, e Controle nunca conheceu um tempo em que seu pai não fosse aquela pessoa e unicamente aquela pessoa.

A história de como o pai e a mãe de Controle se apaixonaram era também a história feliz de como seu pai, durante certo período, tornou-se uma estrela das galerias de arte mais importantes. Os dois se conheceram num vernissage de uma de suas exposições, e, como contaram, ficaram enamorados logo no primeiro olhar, embora Controle achasse isso difícil de acreditar. Naquela época ela estava em Nova York e exercia o que se pode chamar de função burocrática, ainda que estivesse em rápida ascensão profissional. O pai mudou-se para o norte, para ficar perto dela, e então Controle nasceu. Um ou dois anos depois, ela foi transferida da área administrativa para operações de campo, e esse foi o começo do fim. A história que serviu de âncora para Controle durante a infância revelou-se apenas um breve momento em meio a uma paisagem de desolação. Não que fosse algo único: era como aquelas pinturas melancolicamente familiares que a gente encontra num brechó, mas não compra nunca.

O silêncio era entrecortado por discussões, um silêncio criado não somente pelos segredos que ela carregava consigo, mas também por aqueles que não podia revelar, e, Controle veio a perceber depois de adulto, pela sua introspecção, que depois de certo ponto não cedia passagem. Suas ausências deixavam o pai revoltado e, quando Controle completou dez anos, era este o motivo das brigas, algumas vezes implícito, outras, não: Ela estava matando a arte dele e isso não era justo, embora o mercado da arte tenha seguido adiante e seu trabalho fosse caro e precisasse ser sustentado por mecenas ou bolsas.

Mas o pai continuava ali, sentado em meio a suas ideias, seus projetos para um novo trabalho, tudo aberto e estendido à sua frente como uma prova caso ela aparecesse em casa entre uma missão e outra. Ela ouvia as recriminações, Controle lembrava bem, com calma e uma espécie de empatia fria e distante. Ela era aquela força avassaladora que de repente irrompia casa adentro — ali não, ali — com presentes comprados de última hora em aeroportos distantes e uma versão oficial bastante inocente sobre o que andara fazendo, ou uma história menos inocente que, Controle percebeu anos depois ao se deparar com dilemas semelhantes, só veio a ser mencionada após certo tempo. Algo que acabava de ser liberado da confidencialidade e ela podia comentar em casa, mas que acontecera anos atrás. Essas histórias, além de sua atitude distante, deixavam o pai de Controle inquieto, mas a empatia dela o deixava furioso. Ele não conseguia ver naquilo nada mais do que condescendência. Como a gente pode saber se um raio de luz que corta o céu está sendo sincero?

Quando os dois se divorciaram, Controle voltou para o sul, para viver com o pai, que foi morar numa comunidade em que ele se sentia à vontade, pois ficava próximo de alguns familiares e estimulava suas ambições artísticas, mesmo que sua conta bancária permanecesse magra. Controle se lembrava do choque que sentiu depois da mudança quando percebeu a quantidade de barulho e movimento e cores que podiam ser encontrados dentro de uma casa. A sensação de que agora fazia parte de uma grande família.

Mas durante aqueles verões quentíssimos na cidade pequena não muito distante do Comando Sul, Controle, um menino de 13 anos com uma bicicleta enferrujada e uns poucos amigos leais, vivia pensando na mãe, que estava em campo, em alguma cidade ou nação remota: aquele raio de luz distante que às vezes caía do céu e se materializava à porta em forma de ser humano. Exatamente do mesmo modo como acontecia quando eram uma família.

Um dia, ele acreditava, ela o levaria consigo e ele se tornaria o raio de luz, com segredos que ninguém nunca descobriria.


Alguns dos boatos sobre a Área X eram muito elaborados e, em sua complexidade, lembravam a Controle aqueles cardumes das maiores e mais mortíferas medusas de um aquário. Quando alguém as olhava, em seu avanço ondulante, pareciam tão reais quanto irreais, emolduradas pelo azul profundo da água. Local invadido. Experimentos secretos do Governo. Como um organismo daqueles podia existir? Os mais simples, que confirmavam a versão oficial — variações sobre uma área de desastre ecológico provocado pelo homem —, eram, por sua vez, tão banais que mal chamavam a atenção ou causavam curiosidade. Versões de um zoológico daqueles em que os animais vêm comer na palma da mão.

Mas a verdade tinha uma base muito simples. Uns trinta anos atrás, ao longo de um extenso trecho do litoral ao sul, conhecido por algumas pessoas como “a costa esquecida”, ocorreu um Evento que causou grandes transformações na paisagem e ao mesmo tempo fez surgir ali uma barreira invisível ou muro. Uma espécie de fantasma ou “manifestação permeável pré-fronteira”, como consta dos arquivos — algo tão fino quanto um nevoeiro, quase invisível exceto por uma tremulação sutil —, que tinha emanado de um epicentro desconhecido e se espalhado em todas as direções, detendo-se de repente nos seus limites atuais e impenetráveis.

Então foi criado o Comando Sul para investigar o que teria ocorrido, com pouco sucesso e muitos sacrifícios de vidas em suas expedições. E mesmo a perda dessas vidas era algo insignificante se comparado à possibilidade de alguma descoberta sobre a barreira, que os cientistas ainda estavam estudando e tentando entender como funcionava. Alguma descoberta sobre por que seus equipamentos, quando recuperados, estavam misteriosamente inutilizáveis, muitos se decompondo com assombrosa rapidez. E havia o modo inconsistente e inquietante como algumas expedições voltavam totalmente saudáveis, o que parecia a Controle mais inexplicável do que o resto.

— Começou antes do aparecimento da barreira — disse-lhe a diretora assistente depois do almoço, no novo-velho escritório dele.

Ela tinha assumido uma postura profissional agora e Controle decidiu pagar para ver, deixar de lado, por enquanto, a raiva que sentia pelo ataque inicial de banir a antropóloga e a topógrafa.

Grace desenrolou, na ponta da mesa, o mapa da Área X: a silhueta da costa, o farol, o acampamento, as trilhas, os lagos e rios, a ilha muitos quilômetros ao norte que assinalava o ponto mais remoto da... incursão? Invasão? Infestação? Que palavra serviria? A pior parte do mapa era o ponto preto que a diretora registrara de próprio punho como “o túnel”, mas que era referido em geral como “a anomalia topográfica”. Era a pior parte, porque nem todas as expedições cujos membros sobreviveram para fazer relatos o tinham encontrado, até nos casos em que mapearam a mesma área.

Grace atirou pastas em cima do mapa. Controle ainda pensava, com uma espécie de nostalgia raramente concedida a alguém de sua geração, o quanto era anacrônico trabalhar com papel. Mas o receio de repassar tecnologia para dentro da barreira infectara a diretora anterior. Ela proibiu certas formas de comunicação, exigiu que todos os e-mails fossem impressos e as versões originais eletrônicas, arquivadas e escaneadas com regularidade, e introduziu protocolos herméticos e confusos para o uso da internet e outras formas de comunicação eletrônica. Será que ele acabaria com isso? Não podia saber ainda, tinha uma vaga simpatia por esse procedimento, por menos prático que fosse. Usava a internet apenas para pesquisa e administração. Acreditava que certa fragmentação tinha se instalado na mente humana nos tempos modernos.

— Começou bem antes...

— Antes? Quanto antes?

— O pessoal da inteligência indica que possivelmente houve atividades... estranhas naquela costa pelo menos um século antes de a barreira aparecer.

Antes de a Área X se formar. Uma natureza selvagem e intocada. Ele nunca ouvira a palavra intocada ser usada tantas vezes.

Ele devaneou um pouco, imaginando que nome eles dariam àquilo — quem ou o que quer que tivesse produzido aquela bolha intocada que já matara tanta gente. Talvez o considerassem um refúgio para um feriado. Talvez o considerassem uma cabeça de ponte. Talvez “eles” fossem tão incompreensíveis que ninguém jamais pudesse entender como o chamavam, ou por quê. Ele tinha perguntado à Voz se precisaria de acesso aos arquivos de outras grandes ocorrências não explicadas, e a Voz fizera o “Não” soar como uma falésia de granito, tendo por trás de si somente o céu faiscando azul.

Controle já vira pelo menos parte do material bruto que agora ameaçava soterrar a mesa onde as pastas eram depositadas. Sabia que a maioria das informações que o espreitavam por cima das capas bege vinha dos diários abandonados no farol e de relatórios policiais — e que as partes inexplicáveis tinham de ser extraídas com cuidado, empurradas para a frente até emergir à luz, tal como o derradeiro resíduo de pasta de dentes no tubo ressequido e enrolado na pia do banheiro. O tipo de “ocorrências estranhas” mencionado por marinheiros rudes e barbados nos velhos filmes de terror, enquanto contemplam com olhos assombrados a impiedade do mar. Desaparecimentos não resolvidos. Luzes surgindo na noite. Histórias de salvamentos estranhos, de falsos faróis, uma centena de lendas que vão se fixando num litoral solitário e num farol distante.

Criou-se até mesmo um grupo informal — a “Brigada da Paranormalidade e da Ciência” — dedicado a aplicar “a realidade empírica aos fenômenos paranormais”. Membros da Brigada P&C tinham escrito vários livros, todos autopublicados, que agora acumulavam poeira nos balcões do comércio local. Foi na verdade a Brigada P&C quem deu o nome à Área X, identificando aquele trecho da costa como “particularmente ativo” e chamando-o de “Sítio Ativo X” — um nome proeminente nas suas bizarras cartas de Tarô inspiradas na ciência. O Comando Sul desde muito cedo tinha descartado a P&C, descrevendo-a como “não um catalisador ou um agente ou um instigador” do que quer que tenha produzido a Área X. Se os arquivos estivessem certos, a P&C não passava de um grupo de “amadores” com (ou sem) sorte apanhados no meio de algo que estava muito além do alcance de suas imaginações. Exceto que todos os terroristas que Controle já conhecera eram, tecnicamente, “amadores”.

“Vivemos num universo governado pelo acaso”, dissera seu pai certa vez, “mas os artistas do lero-lero só querem saber de causalidade.”

Artistas do lero-lero naquele contexto significava a mãe dele, mas o termo tinha numerosas aplicações.

Então, será que tudo aquilo, ou pelo menos uma fração, era coincidência aleatória, ou parte de alguma conspiração vasta e pré-Área X? Era possível passar anos mergulhado naqueles dados, tentando encontrar a resposta, e aos olhos de Controle era exatamente isso que a diretora anterior estivera fazendo.

— E você acha que isso é uma prova confiável? — Controle ainda não sabia até que ponto a diretora assistente tinha afundado na montanha de lero-lero. Se fosse demais, dada a sua animosidade natural, ele não estaria muito inclinado a puxá-la de volta.

— Nem tudo — admitiu ela, um leve sorriso desmanchando a expressão tensa habitual. — Mas quando traçamos um histórico retroativo partindo dos eventos desde o surgimento da barreira, padrões começam a aparecer.

Controle acreditou em Grace. Teria acreditado se ela dissesse que visões apareceram nas voltas do seu sorvete de morango em dias quentes de verão, ou no modo como o gelo se fraturava em outro dos seus aperitivos favoritos, rum com refrigerante diet e limão (o arquivo a respeito dela estava abarrotado desses detalhes irritantemente irrelevantes). Era parte de sua natureza como analista. Mas quais seriam os padrões que tinham colonizado a mente da antiga diretora? E quanto disso se infiltrara na diretora assistente? De certo modo, Controle tinha esperança de que a bagunça deixada pela ex-diretora fosse algo deliberado, com o intuito de ocultar algum tipo de avanço mais racional que tivesse feito.

— Mas qual é a diferença entre esse local e qualquer outro trecho maldito da costa que já está quase fora do mapa?

Ainda havia dezenas deles espalhados por todo o país. Lugares que para os agentes imobiliários eram veneno puro, com pouca infraestrutura e uma longa história de desconfiança por parte do governo.

A diretora assistente o encarou de um modo que o fez sentir-se pouco confortável, como se fosse de novo um estudante do ensino médio sendo repreendido por insolência.

— Sei o que você está pensando — disse ela. — Será que estamos sendo influenciados pelos nossos próprios dados? A resposta é: claro que sim. Isso é o que acaba acontecendo com o passar do tempo. Mas se existe alguma coisa útil nesses arquivos, talvez você encontre porque tem olhos desimpedidos. Portanto, posso arquivar tudo, se você quiser. Ou podemos usar você do modo como achamos mais necessário: não porque você sabe de algo, mas justamente porque sabe tão pouco.

Uma espécie de orgulho ressentido brotou em Controle, algo que ele sabia não lhe ser muito útil, que vinha de sua consciência de que um dos seus pais parecia realmente saber de tudo.

— Eu não quis dizer que eu...

Amigavelmente, ela o interrompeu. Sem tanta generosidade, seu tom de voz destilava desdém.

— Já estamos aqui há muito tempo... Controle. Muito, muito tempo. Convivendo com isso. Incapazes de fazer muita coisa a respeito. — Uma quantidade surpreendente de dor surgiu agora na sua voz. — Você não volta para casa toda noite levando isso no seu estômago, nos seus ossos. Daqui a algumas semanas, quando tiver visto tudo, também estará convivendo com isso há certo tempo. Vai ser como nós, só que um pouco mais, porque a situação está ficando pior. Cada vez menos diários são recuperados, e cada vez mais zumbis aparecem, como se tivessem sofrido uma lavagem cerebral. E ninguém nos altos escalões tem tempo para nos dar atenção.

Poderia ter sido o momento adequado para os dois se queixarem juntos dos caprichos e das injustiças perpetradas pela Central. Controle percebeu isso depois, mas na hora ficou apenas olhando para ela. Achava seu fatalismo um estorvo, especialmente quando impregnado, como ele erradamente avaliara de início, com uma satisfação tão sombria. Uma combinação claustrofóbica da qual ninguém precisava, que não ajudava ninguém. E que também era inexata em suas progressões.

Já na primeira expedição, de acordo com os arquivos, seus membros experimentaram horrores tão inimagináveis, que era de espantar que tivessem enviado mais pessoas depois. Mas não tinham escolha; sabiam que estavam ali para um esforço “a longo prazo”, como a ex-diretora, ele sabia pelas transcrições, gostava de repetir. Nem sequer permitiram que as expedições subsequentes tivessem conhecimento do que aconteceu com a primeira; criaram uma ficção sobre o encontro com uma natureza selvagem e intacta, e depois começaram a colocar novas mentiras em cima destas. Isso provavelmente fora feito tanto para apaziguar o trauma experimentado pelo Comando Sul quanto para proteger o moral das expedições seguintes.

— Daqui a trinta minutos você tem um tour pelo setor de ciência — disse ela, erguendo-se diante dele, as mãos apoiadas na mesa. — Acho que consegue achar o caminho sozinho.

Isso daria a ele o tempo necessário para, antes, verificar se havia câmeras de vigilância escondidas na própria sala.

— Obrigado — disse ele. — Pode sair agora.

Ela saiu.

Mas não adiantou. Antes de chegar ali, Controle se imaginara voando livre acima do Comando Sul, dando de vez em quando um mergulho vertiginoso para cuidar de algum detalhe. Isso não aconteceria. Suas asas já estavam pegando fogo, e ele se sentia agora como uma criatura pesada soltando gemidos e afundando no lamaçal.


À medida que se acostumava com o espaço, o escritório da antiga diretora não revelava nada novo aos olhos experientes de Controle. A exceção era o seu computador, finalmente instalado, que parecia um objeto de ficção científica no meio do resto.

A porta de entrada ficava na extremidade esquerda da sala longa e retangular, de modo que era preciso percorrer toda a extensão do aposento para chegar à mesa de mogno rente à parede oposta. Ninguém poderia se aproximar da diretora por trás e espiar por cima do seu ombro. Todas as paredes estavam cobertas por estantes ou arquivos, com montanhas de papéis e mais alguns livros formando uma segunda camada à frente dos livros nas prateleiras. Nas partes mais altas, ou em molduras ridículas, equilibrando-se em cima das pilhas, viam-se quadros e murais com pedaços de papel e diagramas pregados por alfinetes. Ele se sentia um prisioneiro no interior da mente de uma pessoa desorganizada. Perto da mesa dela, à esquerda, descobriu uma coleção de espécimes naturais. Pedaços estragados e poeirentos de cones de pinheiro espalhavam-se pelas prateleiras. Havia no ar a vaga sugestão de um odor de decomposição, mas ele não conseguia descobrir de onde vinha.

Do lado oposto à entrada via-se outra porta, situada no espaço entre duas estantes, mas se encontrava bloqueada por pilhas e mais pilhas de pastas e caixas de papelão; tinham-lhe dito que a porta abria direto para uma parede, resultado de uma reforma do prédio realizada sem muitos cuidados. De frente para a mesa, na parede mais afastada a cerca de oito metros, havia uma espécie de interrupção na desordem para dar lugar a duas fileiras de quadros, todos naquelas molduras baratas compradas em liquidações. Da parte inferior esquerda, fazendo um círculo no sentido horário: uma gravura quadrada representando o farol por volta de 1880; uma fotografia em preto e branco de dois homens e uma menina, tendo ao fundo o farol; uma aquarela grande e meio amadorística, mostrando um panorama de quilômetros de juncos interrompido apenas por ilhas isoladas de árvores escuras; e uma foto colorida da torre do farol, em toda a sua glória. Não havia ali nenhuma sugestão de algo mais pessoal, nenhum retrato da ex-diretora com sua mãe indígena e seu pai branco, ou com qualquer pessoa que pudesse ter importância em sua vida.

De todas as informações que Controle precisaria examinar nos dias seguintes, o que ele menos tinha pressa de analisar era o que se encontrava em seu próprio escritório; achava que podia deixar isso para o fim. Tudo ali dentro parecia indicar uma diretora que se tornara selvagem. Uma das gavetas da mesa estava trancada, e ele não conseguia achar a chave. Mas percebeu que a gaveta emanava umidade, dando a impressão de que há muito tempo algo apodrecia ali dentro. Um mistério que não incluía as pilhas de papéis desmoronando das bordas da mesa.

Sempre prestativo, o espião pouco prestativo que era seu avô costumava dizer, pensativo, fosse enquanto lavava os pratos ou se preparava para uma pescaria:

“Nunca pule uma etapa. Se pular, vai achar mais cinco logo à frente.”

A busca por equipamento de espionagem acabou levando mais tempo do que imaginava, então contatou o setor de ciência para avisar que se atrasaria um pouco. Ouviu-se um grunhido visceral em resposta do outro lado, e a linha ficou muda. Ele não fazia ideia de com quem estava falando. Uma pessoa? Um porco amestrado?

Finalmente, depois de uma busca infernal, e para sua própria surpresa, Controle achou vinte e dois microfones plantados no escritório. Duvidou que a maioria estivesse transmitindo alguma coisa e, mesmo que estivessem, duvidou que houvesse alguém escutando ou avaliando os sinais. O fato era que o escritório da ex-diretora continha um verdadeiro museu histórico de câmeras e microfones — tipos diferentes fabricados em épocas diferentes, progressivamente menores e mais difíceis de arrancar. Os leviatãs da espécie, com trinta anos ou mais de fabricação, eram engenhocas de metal inchadas como se tivessem caxumba, se comparadas aos alfinetes esguios e etéreos da era moderna.

Cada uma daquelas descobertas o ajudou a ficar num estado de espírito mais otimista e jovial. Grampos de espionagem faziam sentido de um modo que as outras coisas associadas ao Comando Sul não faziam. No treinamento completo a que fora submetido, Controle já tivera pelo menos meia dúzia de missões que envolviam a espionagem eletrônica de pessoas ou lugares. Espionar pessoas não lhe trazia a euforia sentida por alguns, ou se o fazia, a sensação se dissipava quando ele conhecia melhor suas vítimas e desenvolvia por elas um sentimento de proteção, de querer resguardá-las. Mas os aparelhos em si, ele sempre os achou fascinantes.

Quando deu a busca por encerrada, Controle divertiu-se arrumando os microfones ao longo do papel de mata-borrão que cobria a mesa, dispondo-os no que ele julgou ser a ordem cronológica. Alguns tinham um brilho prateado. Outros, negros, absorviam a luz. Havia fios presos a alguns deles, como cordões umbilicais. Um exemplar, escondido no interior do que parecia uma bolinha pegajosa de papel machê ou cera de abelha colorida, o fez pensar que alguns poderiam muito bem ser estrangeiros; intrusos atraídos até ali pela curiosidade sobre a caixa-preta que era a Área X. Era claro, no entanto, que a ex-diretora sabia, e mesmo assim permitia que continuassem ali. Ou talvez pensasse que era mais seguro mantê-los. Talvez alguns fossem obra dela mesma. Controle se perguntou se seria esta uma das razões da sua falta de confiança na tecnologia moderna.

Quanto a instalar o seu, ele viu que teria de deixar para depois: não ia ter tempo agora. Não havia tempo, também, para dar àqueles microfones o outro uso que acabava de lhe ocorrer. Controle os arrastou para dentro de uma gaveta, com todo cuidado, e foi procurar o seu guia do setor de ciência.

* * *

Os laboratórios ficavam no subsolo da ala esquerda do U, para quem olhasse o edifício do estacionamento em frente. Ficavam do lado oposto à ala isolada que servia como área de preparação das expedições, onde naquele momento a bióloga estava sendo monitorada. Controle tinha recebido a indicação de um guia, um dos faz-tudo do setor de ciência. Isso significava que, apesar de seu histórico — estava na agência há mais tempo do que qualquer outro funcionário —, Whitby Allen era um maria-vai-com-as-outras que, em parte devido à redução do número de funcionários, de vez em quando sacrificava seus estudos na qualidade de “naturalista coesivo e cientista holístico com especialização em biosferas” para digitar os relatórios de um ou prestar um favor a outro. Whitby se reportava ao chefe do setor de ciência, mas também à diretora assistente. Ele era o delfim da aristocracia intelectual, vinha de uma longa linhagem de professores, homens e mulheres que se tornaram mestres catedráticos em faculdades particulares com colunas coríntias falsas. Talvez tivesse virado a ovelha negra da família. Aquele estudante de artes que larga tudo e só muito mais tarde tira um diploma de verdade.

Whitby vestia um blazer azul com camisa branca e uma gravata cor de vinho que nem chamava muito a atenção. Parecia mais jovem do que era, com o cabelo eternamente castanho e aquele tipo de rosto tenso, contraído, que permite a um cinquentão passar por trinta a certa distância. Suas rugas vieram na forma de rachaduras finíssimas. Uma vez, Controle o encontrou no refeitório, na hora do almoço, sentado à mesa e tendo diante de si um leque de uma dúzia de notas de um dólar, aparentemente sem motivo. Estava fazendo contas? Criando uma obra de arte? Projetando uma biosfera monetária?

Whitby tinha uma risada desconfortável, mau hálito e dentes que precisavam de um trato. Bem de perto, sua aparência era a de quem não dorme há anos; um jovem prematuramente murcho, o rosto sugado de tudo que fosse umidade, a ponto de seus olhos azuis parecerem grandes demais para a cabeça. Apesar disso, e de seu modo pouco usual de manipular dinheiro, Whitby parecia um sujeito competente, e embora tivesse sem a menor dúvida o talento necessário para o papo furado, não demonstrava inclinação para isso. Era um motivo tão bom quanto qualquer outro para que Controle, enquanto os dois cruzavam o refeitório, começasse a crivá-lo de perguntas.

— Você conheceu as participantes da décima segunda expedição antes de partirem?

— Não diria propriamente conhecer — respondeu Whitby, visivelmente pouco à vontade com a pergunta.

— Mas você as via por aí.

— Sim.

— E a bióloga?

— Sim, eu a via.

Por fim deixaram o refeitório e seu pé-direito altíssimo e entraram no salão inundado de luz fluorescente. Ao longe, o alarido monótono de música pop brotava de uma ou outra sala.

— O que achava dela? Qual era sua impressão?

Whitby concentrou-se, o rosto tornando-se carrancudo pelo esforço.

— Ela era distante. Séria, senhor. Trabalhava mais do que todas as outras. Mas não parecia estar focada naquilo, se entende o que quero dizer.

— Não, não entendo o que quer dizer, Whitby.

— Bem, não importava para ela. O trabalho em si não importava. Ela estava enxergando algo além dele. Estava enxergando outra coisa.

Controle ficou com a impressão de que Whitby avaliara atentamente a bióloga.

— E a antiga diretora? Você viu se ela costumava interagir com a bióloga?

— Vi-as juntas duas ou três vezes.

— Elas se davam bem?

Controle não sabia por que fizera a pergunta, mas pesca é pesca. Onde a linha cair já serve como começo.

— Não, senhor. Mas, senhor, a verdade é que ninguém se dava muito bem com ninguém. — Ele disse isso quase num sussurro, como se temesse ser escutado. — Ninguém, a não ser a diretora, queria a bióloga na décima segunda expedição.

— Ninguém? — perguntou Controle, astutamente.

— Ninguém.

— Nem mesmo a diretora assistente?

Whitby lançou-lhe um olhar perturbado. Mas seu silêncio bastou.

A diretora estava incrustada no Comando Sul havia muito tempo. Era uma influência poderosa. Mesmo desaparecida, ainda exercia essa influência. Talvez não totalmente sobre Whitby, não de verdade. Mas Controle podia sentir esse poder de qualquer maneira. Ele já se flagrara pensando nesta ideia estranha: de que a diretora olhava para ele através dos olhos da diretora assistente.

* * *

Os elevadores estavam parados e só seriam consertados quando um técnico da base do exército aparecesse nos próximos dias. Então, eles se dirigiram para as escadas. Para chegar até lá, era preciso acompanhar a curva do U até uma porta lateral que se abria para um corredor paralelo com mais de vinte metros, o piso coberto pelo mesmo tapete verde desgastado que comprometia o valor de venda do edifício. As escadas os esperavam no fim do corredor, depois das portas largas de vaivém que eram mais apropriadas para um matadouro ou uma sala de emergência. Whitby, em desacordo com seu temperamento, sentiu-se impelido a irromper por elas como se fosse um astro de rock invadindo o palco — ou talvez para alertar e afastar quem pudesse estar do lado oposto —, e então se deteve timidamente, segurando a porta enquanto Controle contemplava o primeiro passo.

— É por aqui — disse Whitby.

— Eu sei — respondeu Controle.

Do outro lado, os dois entraram numa espécie de queda livre, o tapete verde sumiu e o caminho tornou-se uma rampa de concreto que conduzia a um pequeno patamar com uma escada — que, por sua vez, logo mergulhava em sombras produzidas pelas lâmpadas brancas de halogênio nas paredes, pontuadas pelo vermelho piscante das luzes de emergência. Tudo isso sob um pé-direito alto, o qual, naquela escuridão, parecia emoldurar mais uma caverna feita pelo homem ou um armazém do que a descida para um subsolo. O corrimão da escada, refletindo a luz, faiscava manchas de ferrugem. O ar frio, à medida que foram descendo, trouxe à sua memória uma excursão escolar a um museu de história natural que, com um sistema artificial de cavernas, tentava imitar os tempos modernos, e cujos destaques eram verdadeiros absurdos: reproduções de uma preguiça gigante pré-histórica e um tatu gigante prestes a atacar, megafauna que acabou pegando o caminho errado.

— Quantas pessoas há no setor de ciência? — perguntou ele quando seus olhos se acostumaram à penumbra.

— Vinte e cinco — disse Whitby.

A resposta correta era dezenove.

— Quantos havia cinco anos atrás?

— Mais ou menos o mesmo, talvez um pouco mais.

A resposta correta era trinta e cinco.

— Como é a rotatividade?

Whitby deu de ombros.

— Temos alguns resistentes que ficarão aqui para sempre. Também vem muita gente nova, que traz ideias novas, mas não chegam a mudar nada.

O tom de voz dele sugeria que ou eles iam logo embora, ou então se adequavam... Mas se adequavam a quê?

Controle deixou que o silêncio se prolongasse e os passos dos dois fossem o único som. Como ele tinha imaginado, Whitby não gostava muito de silêncios. Depois de um momento, ele disse:

— Desculpe, desculpe. Não quis dar nenhuma ideia errada. É que às vezes é frustrante quando aparecem pessoas novas com vontade de mudar as coisas, mas sem conhecer direito a nossa... situação. Se eles simplesmente lessem o manual antes... Se tivéssemos um manual, claro.

Controle ficou pensando naquilo, e produziu um som não comprometedor como resposta. Sentia-se como alguém que tivesse interrompido uma discussão entre Whitby e outras pessoas. Será que seu guia fora em algum momento uma voz nova? Será que Controle não seria agora o novo Whitby, dessa vez aplicado ao Comando Sul por inteiro, e não somente ao setor de ciência?

Whitby parecia mais pálido do que antes, quase doente. Estava com o olhar perdido, enquanto os pés faziam ruído ao descer os degraus. A cada passo ele parecia mais inquieto. Tinha deixado de dizer “senhor” ao fim de cada frase.

Uma espécie de piedade ou solidariedade se produziu dentro de Controle; ele não sabia dizer qual. Talvez mudar de assunto fizesse algum bem a Whitby.

— Quando foi a última vez que vocês recolheram alguma amostra da Área X?

— Uns cinco ou seis anos atrás.

Essa resposta de Whitby soou mais confiante, se não mais robusta, e ele estava certo. Fazia seis anos que nada novo era descoberto pelo Comando Sul a respeito da Área X. Exceto os membros da décima primeira expedição, transformados para sempre. Os médicos e cientistas tinham examinado exaustivamente tanto eles quanto suas roupas, apenas para encontrar... nada. Nada fora do comum. Uma anomalia apenas: o câncer.

Nenhuma luz chegava até o porão a não ser as que eram produzidas pelo próprio setor de ciência. Eles tinham ali um gerador particular, sistema de filtragem e reservas de alimentos. Vestígios, sem dúvida, de algum protocolo perdido no passado, que se resumia a “numa emergência, salvem os cientistas”. Controle tinha dificuldade em imaginar aqueles primeiros dias, quando a portas fechadas o governo estava em pânico e quem trabalhava no Comando Sul acreditava que o que quer que tivesse chegado ao mundo naquele litoral remoto não tardaria a voltar seu interesse para o continente. Mas essa invasão nunca aconteceu, e Controle às vezes pensava se a quebra de expectativas não teria dado início ao declínio do Comando Sul.

— Gosta de trabalhar aqui, Whitby?

— Se eu gosto? Sim. Devo admitir que é algo fascinante, e com certeza instigante.

Whitby estava suando agora, gotas brotando na testa.

Podia realmente ser fascinante, mas Whitby, de acordo com os registros, mantivera uma constante de pedidos de transferência até cerca de dois anos atrás — um por mês, e depois um a cada dois meses, como um pedido intermitente de socorro, até que tudo foi se dissolvendo em nada, como a linha de óbito de um eletrocardiograma. Controle aprovava a iniciativa, mesmo não apreciando o desespero revelado pelo grande número de tentativas. Whitby não queria ficar preso naquele fim de mundo, e estava bem claro que a diretora ou outra pessoa não queria que ele saísse.

Talvez fosse por sua qualidade de jogador versátil, pois era claro para Controle que, tal como ocorria com cada departamento do Comando Sul, o setor de ciência estava sendo “canibalizado”, como diria sua mãe, pelo setor de antiterrorismo e pela Central. De acordo com os registros de pessoal, houve uma época em que havia cento e quinze cientistas ali, representando quase trinta disciplinas e vários subdepartamentos. Agora, havia apenas sessenta e cinco pessoas em todo aquele edifício assombrado. Houvera até uma proposta, Controle sabia, para transferir tudo para outro local, mas o edifício era perto demais da fronteira para ter outra finalidade.

Foi então que ele voltou a sentir aquele cheiro desagradável de decomposição, como se o zelador tivesse acesso ilimitado a todo o edifício.

— Esse cheiro de detergente não está muito forte?

— Cheiro? — A cabeça de Whitby girou depressa, os olhos parecendo maiores com círculos à sua volta.

— Esse cheiro de mel, meio rançoso.

— Não estou sentindo cheiro nenhum.

Controle franziu a testa, mais por causa da veemência de Whitby do que qualquer outra coisa. Bem, era isso mesmo. Estavam acostumados. Era uma tarefa bem menos importante, mas ele fez uma anotação mental para determinar que o material de limpeza fosse trocado por algo orgânico.

Quando dobraram uma esquina que pareceu desnecessariamente brusca, no hall amplo do setor de ciências e seu pé-direito incrivelmente alto, Controle ficou surpreso. Uma alta parede de metal se erguia à sua frente, e no meio dela uma porta pequena, onde um sofisticado sistema de segurança piscava sem parar.

Só que a porta estava aberta.

— Essa porta fica sempre aberta, Whitby? — perguntou ele.

Whitby pareceu pensar que talvez fosse perigoso arriscar um palpite e hesitou antes de dizer:

— Isso aqui era antigamente os fundos das instalações. Só colocaram essa porta há um ou dois anos.

O que fez Controle se perguntar qual teria sido o uso daquele espaço antes. Um salão de dança? De casamentos e bar mitzvahs? De cortes marciais realizadas às pressas?

Ambos tiveram de se curvar para cruzar a porta e se depararam com duas escotilhas hermeticamente fechadas, modelo espaçonave, sem dúvida para prevenir contaminações. As portas internas tinham sido abertas parcialmente, e de dentro brotava uma intensa luz branca que, por alguma razão, se recusava a se projetar para além do umbral.

Ao longo das paredes, à altura dos ombros, os aposentos exibiam longas e flácidas luvas negras penduradas de um modo que despertou em Controle a ideia de abandono. Ele teve a impressão de que há muito tempo não eram enfiadas em nenhuma mão ou braço. Aquilo era uma espécie de mausoléu, sepultando a curiosidade e a diligência.

— Para que servem, Whitby? Para assustar as visitas?

— Ah, não usamos há anos. Nem sei por que são deixadas aí.

E não melhorou muito, depois disso.


003: PROCESSANDO

Mais tarde, já de volta ao escritório, tendo deixado Whitby em seu mundo, Controle fez mais uma vistoria à procura de novos grampos. Em seguida preparou-se para ligar para a Voz, que exigia relatórios a intervalos regulares. Ele tinha recebido um celular especial para isso, só para deixar sua mochila mais pesada. Na Central, antes de ir para o Comando Sul, ele falara com a Voz umas dez vezes; sabia que ele(a) podia estar em qualquer lugar nas proximidades. Ele(a) podia tanto o estar observando o tempo inteiro através de câmeras ocultas como podia estar a mil quilômetros dali, um operador remoto usado para vigiar um único agente.

Controle não lembrava muito daquela fase mais antiga, a não ser as informações básicas, mas conversar com a Voz o deixava nervoso. Estava suando por dentro da camiseta ao digitar o número, após ter checado se o corredor estava vazio e trancado a porta. Nem sua mãe nem a Voz tinham lhe dito o que se esperava de cada um desses relatórios. A mãe afirmara que a Voz podia removê-lo de seu posto sem consultá-la. Ele duvidava que isso fosse verdade, mas achou melhor acreditar por enquanto.

A Voz estava, como sempre, rouca e distorcida por algum efeito de som. Alterada meramente por segurança, ou porque Controle talvez fosse capaz de reconhecê-la? “Você provavelmente nunca vai saber a identidade da Voz”, sua mãe dissera. “Tire essa pergunta da cabeça. Concentre-se no que está diante de você. Faça o que sabe fazer melhor.”

Mas o que era? E como isso levaria a Voz a ter uma boa impressão sobre seu trabalho? Ele já tinha imaginado a Voz como um megalodonte ou outro leviatã, instalado num tanque cheio de água salgada, em algum porão de operações secretas tão escondido e labiríntico que ninguém mais lembrava de sua função, mesmo que continuassem praticando seus rituais. Um tanque de lavar roupa, na verdade. Ou um tanque de guerra. Controle duvidou que a Voz ou sua mãe achassem que isso valia uma risadinha.

A Voz usou o nome verdadeiro de Controle, o que a princípio o confundiu, como se ele já estivesse tão mergulhado em “Controle” que seu verdadeiro nome pertencesse a outra pessoa. Ele tamborilava com o indicador esquerdo no papel mata-borrão sobre a mesa.

— Faça o relatório — ordenou a Voz.

— De que modo? — foi a resposta imediata, e claramente idiota, de Controle.

— Com palavras seria ótimo — retorquiu a Voz, e soou como cascalho rangendo embaixo de uma bota.

Controle deu início a um relato de sua experiência até o momento, que começou como um resumo do resumo que ele recebera sobre a situação atual do Comando Sul.

A certa altura, porém, ele começou a perder o fio ou o ímpeto — será que já tinha falado sobre os grampos no escritório? — e a Voz o interrompeu.

— Fale dos cientistas. Me diga alguma coisa sobre o setor de ciência. Você esteve com eles hoje. Como estão as coisas por lá?

Interessante. Isso significava que a Voz tinha outro par de olhos a seu serviço no Comando Sul?

Então, ele relatou a visita feita ao setor de ciência, embora sempre usando linguagem diplomática para exprimir suas opiniões. Se estivesse sendo entrevistado pela mãe, Controle lhe diria que os cientistas eram uma grande bagunça, mesmo para os padrões dos cientistas tradicionais. O chefe do departamento, Mike Cheney, era um homem branco de cinquenta anos, pequeno, troncudo, usando jaqueta de motoqueiro, camiseta e jeans, com cabelo branco cortado rente e uma voz tonitruante, jovial. Um sotaque de alguém do norte, mas que de vez em quando relaxava e se permitia uma arrastada bem sulista. As linhas dos lados da boca conspiravam com as sobrancelhas inclinadas para produzir no seu rosto um X, uma sina que ele combatia perpetuamente sendo o tipo de pessoa que sorri sem parar.

Sua assistente, Deborah Davidson, também era física: uma mulher magra, atlética, que na verdade tinha perdido peso devido ao cigarro. Ela se deslocava ruidosamente, usando uma camisa vermelha de mangas curtas e calças cotelê justas e marrons, presas com um cinto de couro grosso e excessivamente grande. A maior parte da roupa ficava oculta por um paletó preto cujas ombreiras revelavam sua idade. Ela tinha um aperto de mão frio como um peixe morto e do qual Controle mal conseguiu se desvencilhar.

Sua capacidade de guardar novos nomes, no entanto, tinha se esgotado em Davidson. Ele cumprimentou distraidamente o químico pesquisador, bem como o epidemiologista titular, o psicólogo e o antropólogo, que foram todos amontoados na pequena sala de reuniões para aquele encontro. De início Controle se sentiu um tanto desrespeitado pela escolha do espaço, mas lá pelo meio da discussão percebeu que estava com uma ideia errada. Eles estavam agindo como um gato que enfrenta um predador — apenas tentando parecer maiores do que eram aos olhos dele, nesse caso, reduzindo o tamanho do ambiente.

Nenhum dos novos figurantes tinha muita coisa nova a dizer, embora ele ficasse com a sensação de que poderia extrair algo mais de cada um numa conversa a sós. Afora isto, o show era totalmente de Cheney e Davidson, com um ou outro comentário do antropólogo. Pelo modo como falavam, se as titulações acadêmicas fossem medalhas, eles as usariam pregadas na lapela de algum tipo de uniforme científico quase militar — tal como, por exemplo, os jalecos de laboratório que não usavam. Mas Controle entendeu esse impulso, compreendeu que fazia parte de uma narrativa maior: o que um dia fora um vasto território nas mãos do setor de ciência tinha sido, pouco a pouco, tirado de sua jurisdição.

Aparentemente Grace lhes pedira (ou dera ordens?) para que contassem a história habitual, o que ele considerou um subterfúgio, ou, na melhor das hipóteses, um desperdício de tempo. Mas eles não pareciam se incomodar com a repetição. Ao contrário, entregaram-se a ela com prazer, como mágicos entusiasmados com a presença de uma plateia. Controle percebeu que Whitby estava constrangido, pelo modo como tentou se tornar pequeno e insignificante num canto da sala.

A cereja do bolo, como seu pai costumava dizer, foi um vídeo de coelhinhos brancos desaparecendo através da barreira invisível, algo que já deviam ter exibido muitas vezes, a julgar pelos comentários que faziam.

O evento tinha ocorrido em meados dos anos 1990, e Controle tomara conhecimento examinando os dados relativos à barreira invisível entre a Área X e o mundo exterior. Como consequência da frustração pela falta de progresso, os cientistas soltaram dois mil coelhos a cerca de vinte metros da barreira, numa área limpa e bem delimitada, e os arrebanharam naquela direção. Além da importância de observar de que forma os coelhos poderiam fazer a transição de um espaço para o outro, o setor de ciência trabalhava também com a perspectiva de que a passagem simultânea ou quase simultânea de tantos “corpos vivos” pudesse provocar uma “sobrecarga” no “mecanismo” que mantinha a barreira, provocando um curto-circuito, mesmo que “localizado”. A premissa era de que a barreira pudesse receber uma sobrecarga, como um sistema elétrico.

A passagem dos coelhos foi registrada não apenas por câmeras convencionais, mas também por microcâmeras presas à cabeça de alguns animais. As imagens resultantes foram editadas, usando uma técnica de tela subdividida para aumentar o efeito dramático, além de câmera lenta e acelerada, e os artifícios ganhavam um ar estranhamente frívolo quando vistas em conjunto. Como se o editor do vídeo quisesse tornar mais leve o evento que documentava, para ser capaz, através dessa irreverência implícita, de não vê-lo de fato. No total, Controle sabia, a biblioteca digital e de vídeos continha mais de quarenta mil gravações de coelhos desaparecendo. Saltando. Contorcendo-se uns sobre os outros enquanto formavam pirâmides desajeitadas de corpos, em seu esforço para não serem empurrados através da barreira.

A sequência principal do vídeo, tanto em velocidade normal quanto em câmera lenta, tinha um impacto abrupto e direto. Os coelhos corriam em ziguezague diante das pessoas vestidas em trajes anticontaminação, que tentavam fechar um semicírculo à sua volta. Os humanos tinham a estranha aparência de uma tropa de choque em trajes brancos, segurando longos escudos brancos de modo a formar uma parede e com ela empurrar os coelhos. Uma linha vermelha traçada no chão delimitava a zona de transição de cinco metros entre o mundo e a Área X.

Alguns coelhos fugiram pelas extremidades do semicírculo ou conseguiram dar saltos mortais por cima da muralha humana que avançava. Mas a maioria não pôde escapar e foi empurrada adiante. Fosse correndo, fosse saltando, desapareceram ao chegar à beira daquela fronteira. Não houve nenhuma onda de choque, nenhuma explosão de sangue e vísceras. Sumiram, apenas. Planos em close e câmera lenta revelaram um microssegundo de transição em que metade ou um quarto do coelho aparecia na tela, mas bastava um frame para registrar de fato o momento entre o estar ali e não estar mais. Em uma imagem, isso aparecia sob a forma dos traseiros de quatro coelhos alvoroçados, a maior parte no meio de um salto, desprovidos de cabeças e troncos.

O vídeo que os cientistas exibiram não tinha som, apenas uma narração em off, mas Controle sabia, pelos relatórios, que uma gritaria terrível se elevara da multidão de coelhos depois que os primeiros foram empurrados através da barreira. Uma espécie de lamento fúnebre e histeria coletiva. Se o vídeo fosse exibido até o fim, Controle veria os últimos coelhos se rebelando a tal ponto contra aquele arrebanhamento que se viravam contra os humanos e lutavam, saltando para morder e arranhar... Teria visto os escudos brancos salpicados de rubro, os agentes tão surpresos com essa reação que muitos recuaram e cerca de duas centenas de coelhos acabaram escapando.

As microcâmeras revelavam ainda menos. As imagens pareciam trechos cortados de uma intensa cena de batalha: mostravam apenas os quadris e as patas traseiras de coelhos que corriam desesperados, e uma paisagem sacolejante, até que tudo escurecia de repente. Não havia nenhum registro em vídeo dos coelhos que cruzaram a barreira, embora os fugitivos munidos de câmera acabassem por confundir os pesquisadores, uma vez que os pântanos de ambos os lados da barreira eram muito semelhantes. Depois daquela experiência, o Comando Sul passou um bom tempo caçando os coelhos fugitivos, para se assegurar de que não estavam captando imagens do outro lado da barreira.

Do mesmo modo, a expedição seguinte enviada à Área X, uma semana após a experiência com os coelhos, não foi capaz de encontrar o menor indício da presença dos animais, mortos ou vivos. Tampouco experimentos em menor escala produziram qualquer resultado apreciável. Controle não deixou de reparar numa observação superdetalhada de um ecologista sobre o episódio, dizendo: “Mas que diabo foi isso? Coelhos são uma espécie invasiva. Eles iriam contaminar a Área X!” Poderiam mesmo? Quem quer que estivesse controlando a Área X permitiria isso? Controle tentou afastar da mente a imagem risível da Área X, anos depois, mandando de volta um coelho do tamanho de um ser humano incapaz de recordar qualquer coisa a não ser a função que fora executar. A maior parte dos mágicos, em todo caso, já estava rindo nos momentos menos apropriados, como se revelassem o segredo de seu truque mais famoso. Mas ele já tinha escutado risos nervosos antes. Sabia que, mesmo depois de tanto tempo, aquele vídeo ainda os perturbava.

Alguns dos responsáveis foram demitidos, e os demais, transferidos para outros setores. Mas, aparentemente, a passagem do tempo tinha transformado aquela farsa numa imagem icônica, pois ali estavam os remanescentes do setor de ciência, exibindo com visível entusiasmo o que antes fora sentenciado como um fracasso total. Eles tinham mais coisas para mostrar — dados e amostras da Área X protegidos por um tampo de vidro —, mas isso tudo já estava nos arquivos, informações que ele poderia checar mais tarde, sem pressa.

De certo modo, Controle não se incomodava de assistir ao vídeo. Era até um alívio, considerando o que estava à sua espera. Os vídeos da primeira expedição, cujos membros tinham morrido, exceto um, teriam de ser examinados ainda naquela semana como provas de primeiro grau. Mas ele não conseguia se livrar da impressão de um eco de uma cumplicidade estudantil durante a presente exibição, aqueles gritos subentendidos de “Olha só o que a gente mandou pela fronteira! Olha que merda a gente aprontou!” Passe a cerveja barata. Tome um gole sempre que avistar um coelho branco.

Quando Controle saiu, eles ficaram de pé em fila, pouco à vontade, como se prontos para tirar uma foto, e, um de cada vez, apertaram-lhe a mão. Somente depois que ele e Whitby voltaram pelas escadas, passando pelo local daquelas horríveis luvas negras, Controle percebeu o quanto tudo era peculiar. Eles tinham se postado muito rigidamente, e com uma expressão bastante séria. Deviam ter pensado que ele estava ali para mandar ainda mais gente embora do departamento. Que estava ali para julgá-los. Mais tarde, inspecionando mais alguns grampos em sua mesa, enquanto se preparava para outra missão cruel antes de ligar para a Voz, pôs-se a imaginar se não estariam com medo de algo completamente diferente.

* * *

Controle narrou a maior parte disso à Voz com uma sensação crescente de irrelevância. Não havia muita coisa que fizesse sentido ou que pudesse ser novidade; estava apenas concatenando frases para ter o que dizer. Não relatou à Voz que alguns dos cientistas se referiam à Área X com a expressão “privilégio ambiental”, deixando subentendido o perturbador e desmoralizante “Devemos mesmo combater isso?”. Era uma “natureza intocada”, afinal de contas, de onde toxinas humanas estavam agora ausentes.

— PORRA! — gritou a Voz quando Controle se aproximava do fim do relatório, interrompendo o próprio murmúrio persistente com que acompanhava o relato.

Controle afastou o celular do ouvido, sem saber o que tinha feito de errado, até que ouviu:

— Desculpe, derramei café na minha roupa. Continue.

A referência ao café prejudicou a imagem de megalodonte que Controle formara em sua mente, e ele demorou alguns segundos para retomar o fio da meada.

Quando terminou, a Voz atacou de vez, como se a conversa estivesse começando naquele instante.

— Qual é o seu estado de espírito neste momento? Acha que a casa está em ordem? O que acha que será necessário para isso?

Que pergunta devia responder primeiro?

— Otimista, talvez? Mas não posso saber ao certo até eles terem mais foco, mais estrutura, mais recursos.

— Qual é a sua impressão sobre a ex-diretora?

Uma acumuladora. Uma excêntrica. Um enigma.

— A situação aqui é complicada, e é só o meu primeiro di...

— QUAL É A SUA IMPRESSÃO SOBRE A EX-DIRETORA?

Um grito, um berro, como uma chuva de cascalho.

Controle sentiu o coração acelerando. Já tinha lidado com chefes com problemas para controlar a raiva, e o fato de que o atual estava na outra extremidade da linha telefônica não melhorava em nada a situação.

Jogou todas as suas primeiras impressões para fora.

— Ela perdeu os parâmetros. Perdeu o fio da meada. No final seus métodos foram ficando cada vez mais excêntricos, e vai levar algum tempo para desenrolar...

— CHEGA!

— Mas eu...

— Não deprecie os mortos.

Dessa vez a Voz era um sussurro pedregoso. Mesmo com o filtro de áudio, ela transparecia uma sensação de luto, ou talvez Controle estivesse apenas projetando suas impressões.

— Sim, desculpe, eu estava apenas...

— Da próxima vez — prosseguiu a Voz —, espero que tenha algo mais interessante para me dizer. Algo que eu ainda não saiba. Pergunte à diretora assistente a respeito da bióloga, por exemplo. Os planos da diretora para a bióloga.

— Sim, faz sentido — concordou ele, mas tudo que queria era desligar o mais depressa possível. Então uma ideia lhe ocorreu. — Bem... por falar na diretora assistente...

Ele fez um breve resumo do que ocorrera pela manhã, quando Grace mandara levar embora a antropóloga e a topógrafa, e o fato de que parecia ter contatos na Central que poderiam causar problemas.

A Voz disse:

— Vou dar atenção a isso. Eu cuido disso. — E então disse algo que parecia gravado, já que era uma fala sempre repetida: — E lembre-se, estou sempre vigiando. Então, pense de verdade em alguma coisa que eu não saiba ainda.

Clique.

* * *

Havia algo dito pelos cientistas que fora útil e inesperado, mas ele não comentou com a Voz porque parecia ser um Segredo Compartilhado.

Ao tentar mudar de assunto e deixar de lado a experiência fracassada com os coelhos, controle perguntou a eles quais eram suas teorias atuais sobre a barreira, por mais despropositadas que fossem.

Cheney tossira uma ou duas vezes, depois olhou ao redor e finalmente falou.

“Eu gostaria de ter um pouco mais de certeza a respeito disso, mas, você sabe, é algo que discutimos com frequência, porque há muitas incógnitas... Mas, bem, não creio que a barreira necessariamente tenha a mesma origem daquilo que, seja lá o que for, está transformando a Área X.”

“O quê?”

Cheney fez uma careta.

“Essa é uma reação típica, e não o culpo. Mas o que estou querendo dizer é... que não há provas de que a... presença... na Área X tenha produzido a barreira.”

“Sim, entendi isso, mas...”

Foi Davidson quem se interpôs para explicar:

“Não conseguimos fazer com a barreira os mesmos testes que fizemos com as amostras recolhidas na Área X. Mas pudemos fazer leituras, e, sem querer encher sua cabeça com números, a barreira tem uma composição diferente o bastante para dar algum apoio a essa teoria. É possível que tenha ocorrido um Evento que criou a Área X e depois um segundo Evento criou a barreira invisível, mas isso...”

“Eles não são relacionados?”, perguntou Controle, incrédulo.

Cheney fez que não com a cabeça.

“Apenas no sentido de que o Evento Dois é quase certamente uma reação ao Evento Um. Mas talvez alguém...”, e aqui Controle percebeu, mais uma vez, a relutância em dizer ‘alienígena’ ou ‘alguma coisa’, “...criou a barreira.”

“O que significa”, completou Controle, “que é possível que essa segunda entidade estivesse tentando conter os efeitos do Evento Um?”

“Exatamente”, disse Cheney.

Mais uma vez Controle precisou reprimir o impulso de simplesmente levantar-se e sair andando, cruzar a porta de saída e nunca mais pôr os pés ali.

“E...”, continuou ele, demorando-se na palavra enquanto a mente trabalhava, “...o que me diz da passagem através da barreira para dentro da Área X? Como vocês conseguiram criá-la?”

Cheney franziu a testa, relanceou um olhar aflito pelos colegas e depois retraiu-se para o X do próprio rosto quando nenhum se dispôs a responder.

“Nós não a criamos”, respondeu. “Nós a achamos. Um dia, simplesmente... ela estava lá.”

Controle sentiu-se tomado de raiva. Em parte porque as informações iniciais de Grace tinham sido vagas demais, ou ele havia feito suposições demais. Mas principalmente porque o Comando Sul mandara expedição após expedição através de uma porta que não criaram, para dentro sabe-se lá do quê, esperando que tudo ficaria bem, que eles voltariam para casa, que aqueles coelhos brancos não tivessem simplesmente se desmanchado em átomos, possivelmente sofrendo uma dor indescritível ao retornar ao estado mais primitivo da matéria.

“Entidade Um ou Entidade Dois?”, perguntou a Cheney, pensando como seria bom que a bióloga estivesse presente àquela conversa, e já preparando novas perguntas para fazer-lhe.

“O quê?”

“Foi o criador de qual Evento que produziu essa abertura na barreira, em sua opinião?”

Cheney deu de ombros.

“Bem, receio que isso seja impossível de responder. Porque não sabemos se sua função principal é permitir que alguma coisa entre, ou que alguma coisa saia.”

Ou ambas. Ou Cheney não fazia ideia do que estava falando.

* * *

Controle encontrou a diretora assistente enquanto cruzava um dos corredores cuja relação com os demais ainda não havia ficado muito clara. Estava em busca do departamento pessoal para preencher alguns papéis, mas ainda não tinha o mapa do prédio inteiro claro em sua mente, e continuava meio abalado pela conversa com a Voz.

Os fragmentos de conversas que ouvia durante a caminhada também não ajudavam muito, porque sugeriam pistas para as quais ele ainda não dispunha de contexto. “Até que profundidade você acha que vai?...” “Não, não estou reconhecendo, mas em todo caso não sou especialista...” “Acredite em mim se quiser, ou não.” Grace também não colaborou muito. Assim que se aproximou dela, ela começou a encurralá-lo, talvez para deixar claro que era tão alta e forte quanto ele. Controle aspirou um forte perfume de lavanda que o obrigou a reprimir um espirro.

Depois de rebater ponto por ponto um interrogatório sobre sua reunião com os cientistas, ele contra-atacou antes que Grace pudesse ir embora.

— Por que você não queria que a bióloga fizesse parte da décima segunda expedição?

Ela parou e deixou que certa distância se abrisse entre eles, para olhá-lo com desconfiança. Ótimo. Pelo menos estava disposta a aceitar o desafio.

— O que você tinha em mente? — insistiu ele. — Por que não queria que ela tomasse parte na expedição?

Funcionários continuavam a passar por eles, em ambas as direções. Grace abaixou a voz e disse:

— Ela não tinha as qualificações certas. Foi demitida de meia dúzia de empregos. Possuía algum talento em estado bruto, certa fagulha, sim, mas não tinha as qualificações. E a posição do marido dela na expedição anterior... Isso também a prejudicava.

— A diretora não concordou com isso.

— Aliás, como é que Whitby está se saindo? — perguntou ela a título de resposta, e ele sentiu que a expressão em seu próprio rosto confirmara sua fonte.

Desculpe, Whitby, por tê-lo entregue. No entanto, isso também lhe indicou que Grace estava preocupada com o fato de Whitby conversar com ele. Significaria que Whitby era alguém do grupo de Cheney?

Ele insistiu:

— A diretora não concordou.

— Não — admitiu ela. Controle ficou imaginando que tipo de traição aquela resposta acarretava. — Não concordou. Ela achava que tudo isso eram pontos positivos, que estávamos nos preocupando demais com os parâmetros rotineiros de adequação. Então, obedecemos.

— Mesmo ela tendo ordenado que exumassem e reexaminassem os corpos da expedição anterior?

— Quem lhe disse isso? — perguntou ela, com surpresa genuína.

— Isso não sugere algo sobre a adequação da própria diretora?

Mas a surpresa de Grace já tinha se transmutado em resistência, de modo que se pôs novamente em movimento enquanto respondia:

— Não, não sugere.

— Ela suspeitava de alguma coisa, não suspeitava? — perguntou Controle, alcançando-a depressa.

Segundo a Central, os arquivos indicavam que, mesmo se a singular amnésia vista na expedição anterior não indicasse uma mudança na situação da Área X, poderia indicar uma mudança na diretora.

Grace suspirou, como se estivesse cansada de tentar se livrar dele.

— Ela desconfiava que eles poderiam ter... se modificado desde as autópsias. Mas se você está perguntando, já sabia disso.

— E é verdade? Estavam mesmo modificados?

Desaparecidos. Ressuscitados. Decolados, subindo rumo ao céu.

— Não. Tinham se decomposto talvez um pouco mais rápido do que era de se esperar, mas não, não mudaram nada.

Controle imaginou quanto aquilo teria custado à diretora em termos de respeito e de favores. Imaginou se, quando anunciou que se juntaria à décima segunda expedição, alguns membros da equipe não teriam sentido, em vez de alarme ou preocupação, uma espécie de alívio carregado de culpa.

Ele tinha mais uma pergunta, mas Grace se deu por satisfeita, virou-se e desapareceu num corredor transversal do labirinto.

* * *

O que veio a seguir foram algumas tentativas inúteis e não muito esforçadas de arrumar o escritório, além da leitura e anotação de alguns relatórios básicos que Grace jogara em sua mesa, provavelmente para retardar seu avanço. Ficou sabendo que o Comando Sul tinha o próprio departamento para fabricação de equipamentos, cuja tarefa era a produção de material para as expedições que não violasse os protocolos. Em outras palavras, fabricação de tecnologia antiquada. Ficou sabendo que, nas instalações onde os membros das expedições se alojavam após seu retorno, o sistema de segurança estava passando por um upgrade; o obsoleto modelo de câmeras de segurança que vinham utilizando sofreu uma pane generalizada. Chegou até a jogar fora um DVD que lhe foi entregue por uma “bióloga de ciclos vitais” que mostrava uma secção transversal, feita por computador, do ecossistema daquele trecho da costa. As imagens tinham sido produzidas como uma série de linhas topográficas numa variedade de cores. Tudo muito bonito, mas num nível de detalhamento que não tinha utilidade para ele.

No final do dia, ao deixar o escritório, cruzou novamente com Whitby no refeitório que parecia ser o ponto central de seu mundo, como se ele não gostasse de ficar no porão com os outros cientistas. Ou como se os outros o mandassem o tempo todo executar tarefas para mantê-lo afastado. Um pequeno pássaro escuro tinha de alguma maneira penetrado no recinto, e Whitby olhava para o alto, acompanhando o voo da ave de uma claraboia a outra.

Controle fez a Whitby a pergunta que ia fazer a Grace antes de ela sumir no corredor.

— Whitby, por que foram recuperados tão poucos diários das expedições?

Vinham em número muito, muito menor do que os membros que regressavam.

Whitby ainda estava hipnotizado pelo voo do pássaro, virando a cabeça como um gato que acompanha cada movimento de uma ave. Seu olhar tinha uma intensidade que Controle achou desconcertante.

— Dados incompletos — disse Whitby. — Muito incompletos para se ter certeza. Mas a maior parte dos que voltam nos diz que simplesmente não pensaram em trazê-los. Não acreditam que seja importante, ou não sentem a necessidade. Sentir é o aspecto mais importante disso. Você perde a necessidade de dizer, de comunicar, um pouco como os astronautas perdem massa muscular. De qualquer forma, a maior parte dos diários acaba sendo encontrada no farol. Durante algum tempo isso não foi considerado uma prioridade, mas quando começamos a pedir às expedições que os recuperassem, em geral nem sequer tentavam. As pessoas perdem o ímpeto, ou então aparece alguma outra coisa mais urgente e ninguém nem percebe. Até ser tarde demais.

Aquilo sugeriu a Controle a incômoda imagem de alguém ou alguma coisa na Área X entrando no farol, sentando sobre a pilha de diários e lendo todos eles para o Comando Sul. Ou os escrevendo.

— Posso mostrar algo interessante numa das salas perto do setor de ciência relacionado a isso — disse Whitby, com uma voz sonhadora, ainda acompanhando a trajetória do pássaro. — Gostaria de ver?

Seu olhar distraído focalizou-se de repente ao se fixar em Controle, que teve a impressão súbita e desconfortável de que havia dois Whitbys, um escondido dentro do outro. Ou mesmo três, cada um oculto no interior de outro.

— Por que você simplesmente não me conta?

— Não, tenho que lhe mostrar. É um pouco estranho. É preciso ver para poder entender.

Whitby dava agora a impressão de que não ligava a mínima para o fato de Controle ver a tal sala ou não, e ao mesmo tempo parecia dar muita importância.

Controle deu uma risada. Muita gente já tinha lhe mostrado coisas bizarras desde o tempo em que trabalhava contra o terrorismo doméstico. Muita gente já tinha lhe dito coisas bizarras só naquele dia.

— Amanhã — disse ele. — Vejo amanhã.

Ou não. Nada de surpresas. Nada de satisfazer esses guardiões de segredos estranhos. Não queria mais nenhuma revelação esquisita antes da hora. Já tivera o bastante para um dia, e apertaria o cinto durante a noite preparando-se para o embate do dia seguinte. O problema de pessoas que queriam mostrar algo fora do comum é que geralmente misturavam o interesse em proporcionar uma revelação com um pouco de sadismo voyeurístico. Ficavam esperando o Olhar, a Reação, não ligavam muito em saber qual, desde que implicasse algum tipo de desconforto. Controle se perguntou se Grace não teria induzido Whitby àquilo depois da conversa que tiveram, e se todos não estariam se preparando para lhe pregar uma peça elaborada, algo que o fizesse enfiar a mão num pote e senti-la rodeada de vermes, ou abrir uma caixa e ver uma serpente de molas saltar de dentro.

O pássaro estava agora fazendo um trajeto errático, num voo rasante difícil de acompanhar na penumbra crescente do fim de tarde.

— Era melhor que visse agora — disse Whitby, num tom meio esperançoso, meio magoado. — Antes tarde do que nunca.

Mas Controle já tinha dado as costas e caminhava na direção da porta e do (bendito) estacionamento.

Tarde? E exatamente quão tarde Whitby achava que era?


004: REENTRADA

O automóvel proporcionava um pouco de espaço e alívio, uma chance de relaxar e se transformar em outra coisa. A cidade de Hedley ficava próxima ao Comando Sul, apenas quarenta minutos de carro. Estava situada ao longo da margem de um rio que desaguava no oceano uns trinta quilômetros à frente. Hedley era grande o bastante para ter certa personalidade, certa cultura, sem chegar a ser um viveiro de turistas. Havia gente se mudando para lá mesmo que não fosse propriamente “uma boa cidade para viver com a família”. Entre o alvoroço das lojinhas amontoadas num canto das calçadas à beira-rio e das ruas arborizadas, havia indicações de alguma qualidade de vida, obscurecida em parte pelos shopping centers que se erguiam nos arredores do perímetro urbano. Havia ali uma faculdade particular, com um centro de artes cênicas. Era possível correr ao longo do rio ou caminhar em vias verdes. Ainda assim, Hedley estava contaminada por uma lassidão que, principalmente nos verões, podia passar de encantadora a monótona do dia para a noite. Quando a brisa do rio parava de soprar, baixava ali uma imobilidade que sinalizava uma mudança de espírito, e alguns dos bares de frente para o rio eram conhecidos por explosões súbitas e inexplicáveis de violência; lugares aonde não era aconselhável ir a menos que se fosse branco ou se pudesse passar por branco, e mesmo assim nem sempre. Uma cidade que parecia aprisionada no tempo, não muito diferente do que era durante a adolescência de Controle.

A localização de Hedley era conveniente para ele. Controle preferia estar perto do mar, mas não exatamente no litoral. Algo na incerteza que rodeava a Área X tinha produzido nele determinada insistência quanto a isso. De algum modo, seu sonho o intimidava. Seu sonho lhe dizia para manter certa distância. No avião, rumo àquela nova missão, tivera pensamentos estranhos sobre os habitantes das cidades costeiras de ambos os lados da Área X, a ideia de que de alguma forma sofriam mutações por baixo da pele. Comunidades inteiras que já não eram mais o que foram, embora ninguém pudesse perceber com um simples olhar. Eram pensamentos que necessitavam ser ao mesmo tempo mantidos à distância e alimentados, se tal façanha fosse possível. Não se podia ser devorado por eles, mas era preciso dar-lhes atenção. Porque de acordo com a experiência de Controle, eles refletiam algo que emanava do inconsciente, um instinto ao qual era melhor não se opor. O fato é que o Comando Sul sabia tão pouco sobre a Área X, mesmo depois de três décadas, que uma precaução irracional talvez não fosse algo a se desdenhar.

E Hedley era um ambiente familiar para Controle. Era a cidade onde ele e os amigos iam se divertir nos fins de semana quando começaram a dirigir, mesmo sabendo que era um cu de mundo, só que um cu de mundo um pouco maior do que aquele minúsculo onde moravam. Um lugar isolado e sem saída. Sua mãe o tinha até mencionado na última vez em que se viram. Ela pegou um avião e foi até o local onde Controle trabalhava, ao norte, no qual fora gradualmente rebaixado, passando de responsável por análise e gerenciamento até exercer funções administrativas. Devido à sua bagagem, pensou ele. Devido ao fato de que tudo começava bem, mas então, se permanecesse no cargo por tempo demais... Sempre acontecia alguma coisa, algo que ele era incapaz de definir. Ele se envolvia demais. Tornava-se excessivamente empático, ou então o contrário. Ficava confuso sempre que as coisas não davam certo, porque não conseguia lembrar em que momento tudo tinha começado a degringolar. E ainda estava convencido de que um dia encontraria a fórmula.

Mas sua mãe tinha vindo da Central, e os dois se encontraram numa sala de reuniões que, ele sabia, provavelmente estava grampeada. Será que a Voz tinha viajado junto com ela e estaria acomodada num tanque de água salgada na sala vizinha?

Lá fora estava frio e ela vestia um casaco, um sobretudo, um cachecol por cima de um terno executivo e sapatos pretos de salto alto. Tirou o sobretudo e o deixou dobrado sobre as pernas. Mas não tirou o cachecol. Dava a impressão de que poderia levantar-se da cadeira a qualquer momento e estar fora da sala antes que ele pudesse estalar os dedos. Fazia cinco anos que os dois não se viam; estava previsivelmente incomunicável quando ele tentou mandar-lhe uma mensagem sobre o funeral de seu ex-marido. Mas tinha envelhecido muito pouco, o cabelo castanho volumoso com um corte da moda, como sempre, e os olhos de um azul calculista examinando-o de um rosto onde as rugas aumentaram apenas nos cantos dos olhos e, ocultas pelo cabelo, na testa.

Ela disse:

“Vai ser como voltar para casa, John, não é mesmo?” Provocando-o, insistindo para que ele concordasse, como se fosse um molusco agarrado a uma rocha e ela, uma gaivota tentando convencê-lo a se soltar. “Você vai se sentir à vontade naquele ambiente. Vai se sentir à vontade entre as pessoas.”

Ele precisou reprimir uma raiva misturada com ambivalência. Como ela podia saber se estava certa ou errada? Ela raramente estava presente, mesmo tendo direito a visitas. Eram apenas ele e o pai, que começava a desmoronar, a comer demais, beber demais, em meio a uma sucessão de casos amorosos depois que o divórcio foi concluído... E então voltou-se completamente a uma arte na qual ninguém mais tinha interesse. Manter a casa em ordem e ir para a universidade fora para ele um alívio carregado de culpa, por não ter de viver mais naquele ambiente.

“E, uma vez que eu esteja confortavelmente instalado nesse mundo que conheço tão bem, o que devo fazer?”

Ela sorriu. Um sorriso genuíno. Ele podia perceber a diferença, tendo sofrido tantas vezes sob o brilho amarelado de sorrisos falsos que tentavam requentar seu amor por ela. Quando ela sorria de verdade, quando o fazia com sinceridade, seu rosto adquiria uma espécie de beleza capaz de surpreender qualquer um que a visse, como se ela até então tivesse escondido seu verdadeiro eu por trás de uma máscara. Pessoas que eram sempre sinceras jamais eram elogiadas por essa qualidade.

“É uma chance para você crescer”, disse ela. “Uma chance de apagar seu passado.”

O passado. Que parte do passado? O trabalho no norte tinha sido seu décimo emprego em quinze anos, o que fazia o posto no Comando Sul ser o décimo primeiro. Havia incontáveis motivos; sempre havia. Ou um único motivo, no caso dele.

“O que eu teria que fazer?” Se ele conseguisse extrair dela essa resposta, sabia que talvez não fosse algo do seu agrado. Mas já estava cansado da natureza repetitiva de seu cargo atual, que no fim consistia menos em consertar coisas do que em repintar fachadas. Estava cansado também da política interna da repartição. Talvez no fundo fosse esse o seu problema.

“Já ouviu falar no Comando Sul?”

Sim, ele ouvira, principalmente por meio de dois colegas que tinham trabalhado lá durante algum tempo. Alusões vagas, sempre mantendo-se fiéis à versão oficial de um desastre ambiental. Boatos sobre procedimentos de comando excêntricos, na melhor das hipóteses. Boatos que variavam de modo significativo, sugerindo que havia muito mais coisas por trás. Mas o fato é que sempre havia mais. Ele não sabia, ouvindo sua mãe dizer aquelas palavras, se aquilo o deixava animado ou não.

“E por que eu?”

O sorriso que antecedeu a resposta dela era um misto de tristeza e desapontamento, ou alguma outra coisa que fez Controle desviar o olhar. Quando ela estava em missão, antes de partir de casa para sempre, houve um curto período em que ela gostava de lhe escrever longas cartas, mesmo que ele nunca encontrasse tempo ou vontade para lê-las. Ele as guardava, no entanto, sabendo que a mãe exercia uma profissão perigosa, e que um dia aquilo talvez se tornaria a única coisa dela ao seu alcance. Agora, contudo, quase desejava que ela tivesse escrito sobre o Comando Sul, em vez de vir dizer-lhe pessoalmente.

“Porque eles estão reduzindo este departamento, embora você não devesse saber disso, e você pode ser a bola da vez. Seria a colocação ideal para você.”

Aquele aperto na boca do estômago. Mais uma transferência. Mais uma cidade. Ele nunca tinha a chance de se estabilizar. A verdade é que desde que Controle entrara para o serviço, raramente se sentira um raio de luz. Em geral sentia-se pesado, e percebeu que provavelmente sua mãe também se sentia assim. Que ela vivia fingindo uma espécie de distanciamento e leveza, escondendo dele o peso de tanta informação, tanta história, tanto contexto. Todas aquelas coisas que esmagam uma pessoa, mesmo quando contrabalançadas pela sensação eletrizante de estar do outro lado de uma fronteira onde se sabe de coisas que ninguém mais sabe.

“Essa é a única opção?”

Claro que era, já que ela não tinha mencionado nenhuma outra. Claro que era, já que ela não teria viajado toda aquela distância só para dizer oi. Controle sabia que ele era uma espécie de ovelha negra, que sua estagnação profissional manchava um pouco a reputação dela. Não fazia ideia das batalhas que ela travava nos níveis mais altos dos departamentos secretos, tão distantes de acesso pessoal que era como se estivessem nas nuvens, por entre os anjos.

“Pode não ser muito justo, John, sei disso. Mas talvez seja sua última chance”, disse ela, e agora já não sorria mais. Não sorria nem um pouco. “Pelo menos é a última chance que posso conseguir para você.”

Última chance para um posto permanente, para o fim daquela vida nômade, ou de um modo geral? Para continuar na agência?

Controle não se atreveu a perguntar. Aquele medo turvo e gelado que ela instilara era profundo demais. Ele não sabia que precisava de uma derradeira chance. O medo era tão intenso que afastava de sua mente todas as outras questões. Naquele momento, não tivera um tempo para pensar se, talvez, ela não estivesse ali apenas para fazer um favor ao filho. Que talvez precisasse que ele dissesse sim.

A isca tentadora foi-lhe oferecida para neutralizar o medo, com bom humor, e no momento preciso:

“Não tem vontade de saber mais do que eu sei? Vai saber, se aceitar essa posição.”

E ele não tinha resposta. Era verdade. Ele queria.

Ela o abraçou quando ele aceitou a transferência para o Comando Sul, e isso o deixou surpreso.

“Quanto mais perto você estiver, mais seguro estará”, murmurou ela ao seu ouvido. Mais perto do quê?

Ele sentiu vagamente nela um perfume caro, como o aroma das ameixeiras no quintal da casa onde moraram no norte. Um pequeno pomar que ele esquecera por completo até aquele momento. O balanço na árvore. O cão malamute do vizinho, que costumava persegui-lo sem muito interesse pela calçada.

Quando as primeiras perguntas começaram a surgir em sua mente, era tarde demais. Ela já tinha vestido o sobretudo e sumido, como se nunca tivesse estado ali.

Certamente não havia nenhum registro de que ela entrara ou saíra daquele local.

* * *

O crepúsculo, o começo do alívio do calor que vinha todas as noites, já tinha pousado sobre Hedley no momento em que ele acessou a rua principal. O imóvel que alugara ficava a cerca de um quilômetro e meio, ao longo de uma subida suave das colinas, que acabava lá embaixo, junto à margem do rio. Uma casa de cedro, com 120 metros quadrados, pintada de azul-claro, com persianas brancas nas janelas, um tanto abauladas pelo calor do sol. Tinha dois banheiros, um quarto, uma sala de estar, uma cozinha e um escritório, com um pátio nos fundos protegido por telas de arame. A decoração interior era num estilo vintage, enjoativo mas confortável. Na frente, um jardim de plantas e petúnias que dava lugar a um gramado beirando a rua.

Ao subir os degraus que conduziam à porta da frente, El Chorizo irrompeu dos arbustos e se enroscou nas suas pernas. El Chorizo era um gato de pelo preto e branco, que parecia grande como um cavalo, batizado assim pelo seu pai. A família tivera um porco chamado El Gato quando ele era criança, e esse era o tipo de piada que o pai gostava de fazer. Controle o adotara cerca de três anos atrás, quando o câncer do pai chegou a tal ponto que o impediu de cuidar do animal. Era um gato habituado a entrar e sair da casa, e Controle permitiu que fizesse isso em sua nova residência. Parecia ter sido a decisão mais acertada: El Chorizo, ou “Chorry”, como Controle o chamava, parecia alerta e confiante, mesmo estando com o pelo longo sujo e emaranhado.

Os dois entraram juntos, Controle serviu um pouco de comida na cozinha e brincou com o gato por alguns minutos, depois foi ouvir suas mensagens na linha telefônica “para os civis”. Havia apenas uma, de Mary Philips, sua namorada até seis meses atrás, querendo saber se correra tudo bem com a mudança. Ela sugerira ir visitá-lo, embora ele não tivesse informado o endereço e já tivesse se reacostumado a dormir sozinho. Separaram-se sem mágoa, e na verdade ele nem lembrava mais se tinha terminado com ela ou ela com ele. Raramente ficavam mágoas nesses episódios, o que às vezes lhe parecia estranho e um pouco errado. Não deveria haver? Sempre arranjava uma namorada quando era transferido para um novo posto, mas o relacionamento não sobrevivia às novas mudanças, ou ao jeito reservado dele, ou aos seus horários irregulares; ou talvez ele ainda não tivesse achado a pessoa certa. Ele não sabia, mas tentava extrair de cada ciclo o máximo possível de intimidade nos primeiros meses, já sabendo como iria acabar. “Você é um tipo estranho de galinha”, disse uma garota com quem ele dormiu certa noite, antes de Mary, no momento em que ele se preparava para fazer sexo oral; mas ele não era um galinha. Na verdade não sabia o que era.

Ele não retornou o telefonema. Em vez disso, foi para a sala e se deixou cair no sofá. Chorry foi se aninhar ao seu lado, e ele alisou distraidamente o pelo do gato. Ficou sentado ali por um longo tempo, ouvindo o ruído de uma cambaxirra ou outro pássaro qualquer do lado de fora da janela. Escutou também o canto de um tordo e o chilrear dos morcegos que começavam sua busca noturna por insetos. Os morcegos já não eram tão comuns quanto antes.

Tudo se parecia muito com suas lembranças da adolescência. Ele decidiu ver nisso um consolo, juntamente com a casa, algo para lhe dizer que este emprego iria durar. Mas a frase “tenha sempre uma estratégia de fuga” era uma coisa que sua mãe repetia sem cansar desde seu primeiro dia de treinamento, de modo que ele tinha um kit padrão escondido no fundo falso de uma valise. Ele não havia trazido apenas sua arma de costume, e uma das armas estava guardada no kit, junto com o passaporte e algum dinheiro.

Controle já havia desfeito as malas. A ideia de deixar a maior parte de suas coisas num depósito era dolorosa. Sobre a lareira de tijolos, que na verdade servia apenas para decoração, tinha colocado o pequeno tabuleiro de xadrez com peças brilhantes de madeira que fora a última produção de seu pai. Ele vendeu peças às lojas de artesanato locais e trabalhou para um centro comunitário depois que sua carreira artística chegara ao fim. Durante sua última década de vida, aparecia de vez em quando um colecionador de arte para comprar uma das enormes instalações que enferrujavam por baixo de uma cobertura de lona no quintal, mas isso era mais como a aparição de um fantasma ou de um viajante no tempo do que um sinal de reavivamento do interesse por sua arte. O tabuleiro de xadrez, congelado no tempo, reproduzia o momento em que o último jogo entre os dois fora interrompido.

Foi ao quarto, trocou a roupa por short, camiseta e um par de tênis de corrida. Chorry o observava como se quisesse acompanhá-lo.

— Eu sei, eu sei, mal cheguei em casa... Mas eu volto.

Saiu pela porta da frente, deixando o gato trancado, pôs os fones de ouvido, botou para tocar uma das suas músicas clássicas preferidas e partiu pela rua, sob a luz mortiça dos postes de iluminação. Àquela altura o crepúsculo já tinha caído, e havia apenas um leve tom azulado remanescente sobre o rio lá embaixo e a luz das casas e das lojas, enquanto no alto o brilho da cidade fazia as estrelas no céu parecerem mais distantes. O calor tinha diminuído, mas o trilar insistente dos grilos e de outros insetos mantinha seu fantasma sempre presente.

Ele sentiu uma pontada no lado esquerdo do quadril, mas sabia que logo passaria. Começou devagar, permitindo-se absorver as imagens da vizinhança, que consistia principalmente em pequenas casas como a sua, com fileiras de moitas em vez de cercas e ruas que corriam paralelas à crista da colina, com algumas transversais descendo até lá embaixo. Ele não ligava para as voltas do caminho; queria correr de cinco a sete quilômetros. O perfume espesso da madressilva o alcançava em ondas quando ele passava diante de algumas casas. Havia pouca gente do lado de fora, exceto pessoas nas cadeiras de balanço, outras levando o cachorro para passear, dois skatistas. Muitos o cumprimentavam com um aceno quando ele passava.

Quando começou a forçar o passo e estabeleceu um ritmo, sempre descendo na direção do rio, Controle entrou finalmente num estado de concentração em que se sentiu capaz de refletir sobre o seu dia. Ficou rememorando cada uma das reuniões e o interrogatório da bióloga em particular. Ficou dando voltas em todas as informações que foram derramadas sobre ele, que tinha deixado entrar na sua mente. Haveria mais no dia seguinte, e no outro, e sabia que novas informações continuariam a aparecer antes que algum tipo de conclusão emergisse.

Ele podia tentar não se envolver demais, naquele estágio. Podia tentar exercer suas responsabilidades de gerenciamento e administração de forma distante, mas não acreditava que a Voz quisesse isso dele, ou que a diretora assistente o deixasse proceder assim. Como ele podia ser o diretor do Comando Sul se não fosse capaz de compreender, até o âmago, o problema que as pessoas dali estavam enfrentando? Já tinha marcado pelo menos mais três sessões com a bióloga para aquela semana, além de uma visita ao ponto de entrada na barreira da Área X. Sabia que a expectativa de sua mãe era que estabelecesse suas prioridades com base na situação concreta.

A barreira, em particular, fixou-se na sua mente enquanto ele corria. O absurdo de algo assim existir no mesmo mundo que a cidade que ele atravessava, a música que escutava. O crescendo dos sopros e das cordas.

A barreira era invisível.

Não parecia ter meio-termo. Se alguém a tocasse, era arrastado para dentro (ou “através”?).

Tinha limites bem nítidos, inclusive o que ficava a mais ou menos um quilômetro e meio no oceano. Os militares instalaram boias no perímetro, e patrulhavam a área incessantemente.

Ele continuou pensando nisso enquanto saltava um muro coberto de kudzu para pegar um atalho entre duas ruas, através de uma ponte de pedra meio esboroada. Pensou naquelas patrulhas intermináveis, se elas avistavam algo de vez em quando por entre as ondas, ou se as suas vidas eram apenas a dissecação insuportável dos mesmos detalhes azul e cinza, dia após dia.

A barreira se estendia até cerca de treze quilômetros para dentro do continente a partir do farol, e mais de sessenta para o leste e para o oeste ao longo da costa. Interrompia-se logo abaixo da estratosfera e, sob a terra, um pouco acima da astenosfera.

Apresentava um portal ou uma passagem de acesso à Área X.

O portal talvez não tivesse sido criado pelo mesmo agente que criara a Área X.

Ele passou por um mercadinho de esquina, uma farmácia, um bar. Atravessou a rua e escapou por um triz de esbarrar numa mulher de bicicleta. Deixou a calçada e correu no acostamento quando necessário, querendo chegar logo ao rio, tentando não pensar na corrida de volta subindo a ladeira.

Não era possível cruzar a barreira de nenhum modo pelo lado do oceano. Não era possível atravessá-la com um túnel pelo lado do continente. Não era possível penetrá-la com instrumentos sofisticados ou com radar ou sonar. Dos satélites em órbita, tudo que se avistava era a mata selvagem em tempo real, sem nada fora do comum. Embora isso fosse uma ilusão de ótica.

Na noite em que a barreira apareceu, arrastou navios, aviões e caminhões consigo, tudo que por acaso se encontrasse naquela linha imaginária (mas demasiado real) no momento de sua criação. Isso continuou por muitas horas depois, antes de alguém perceber o que estava acontecendo ou entender que devia permanecer afastado. Antes que o exército invadisse o local. O gemido plangente do metal e a vibração dos motores que continuavam funcionando enquanto desapareciam... no interior de alguma coisa, de algum lugar. A visão apocalíptica de uma combustão sem chamas, as torres de um destróier mandado para investigação, guiado por dados equivocados, “deslizando para dentro do nada”, como relatou uma testemunha. As últimas transmissões assustadas dos homens e mulheres a bordo, através de vídeo e rádio, enquanto a maior parte corria para a parte traseira, em alvoroço, numa onda repentina que, no vídeo em baixa resolução feito por um helicóptero, parecia uma enorme criatura saltando para dentro da água. Porque sabiam que iam desaparecer e não podiam fazer nada a respeito, e tudo isso piorado pela presença do nevoeiro. Alguns, no entanto, simplesmente ficaram ali, olhando enquanto seu navio se desintegrava, e então passaram também para o outro lado ou morreram ou foram parar em outro lugar... Controle não conseguia entender.

A colina deu lugar ao plano e ele voltou a correr pelas calçadas, dessa vez passando diante de galerias, lojas de departamentos, pessoas atravessando no sinal, motoristas entrando em seus carros nos estacionamentos. Até que chegou à rua principal antes do rio — um borrão de luzes e mais pedestres, alguns deles embriagados —, atravessou a rua e alcançou um quarteirão tranquilo de trailers residenciais e pequenas casas de alvenaria. Estava suando bastante àquela altura, apesar do frio. Alguém preparava um churrasco e as pessoas pararam para olhar quando ele passou correndo.

Seus pensamentos se voltaram mais uma vez para a bióloga. Para a necessidade de descobrir o que ela tinha sentido e experimentado na Área X. Bem consciente, agora, de que a diretora assistente podia fazer mais do que ameaçar mandá-la para outro local. Consciente de que a diretora assistente queria usar essa incerteza para fazê-lo tomar decisões precipitadas.

Uma rua de mão única, com vegetação dos dois lados e coberta do cascalho espalhado sobre os buracos, conduziu-o na direção do rio. Ele passou por um trecho coberto de galhos e chegou a uma doca frágil, curvando um pouco os joelhos para não perder o equilíbrio. Ali finalmente se deteve, no fim do atracadouro, perto de uma lancha que estava amarrada a um pilar. Viam-se algumas luzes na outra margem do rio, pequenos grupos aqui e acolá, nada que se comparasse ao brilho feérico à sua esquerda, onde o calçadão à beira-rio estava à espera, iluminado por lampiões, em falso estilo vitoriano para enganar turistas, encimados por globos de luz que pareciam cheios de ovos malpassados.

Do outro lado do rio, para a esquerda, ficava a Área X — a muitos quilômetros de distância, mas ainda visível de certo modo como um peso, uma sombra, o bruxulear de uma luz. Expedições regressavam de lá, ou não, quando ele ainda estava no colégio. A psicóloga provavelmente assumiu a direção do projeto naquela época. Toda uma história secreta estava se desenrolando ali no tempo em que ele e seus amigos iam de carro para Hedley, pensando apenas em tomar umas cervejas e encontrar alguma festa, não necessariamente nessa ordem.

Ele recebeu um telefonema da mãe na véspera de pegar o avião para o Comando Sul. Falaram um pouco sobre a conexão que tinham com Hedley. Ela disse: “Conheci a região somente por sua causa. Mas você não se lembra.” Não, ele não lembrava. Tampouco sabia que ela trabalhara algum tempo no Comando Sul, um fato que o surpreendia, e ao mesmo tempo não. “Trabalhei lá para estar mais perto de você”, disse ela, e algo no coração dele relaxou, mesmo não sabendo se devia acreditar nela.

Porque era difícil ter certeza. Naquela época ele estava tomando conhecimento, com atraso, de histórias das missões anteriores da mãe. Tentou acelerar as lembranças, tentou descobrir se em algum momento ela lhe contara alguma versão disfarçada sobre o Comando Sul. Não conseguia encontrar, ou talvez sua memória não estivesse ajudando. “O que você fazia lá?”, perguntou, e a única palavra de resposta equivalia a uma parede: “Confidencial.”

Ele desligou os fones e ficou escutando o coaxar das rãs, o espadanar da água batendo na lateral da lancha quando a brisa soprava mais forte, encrespando a água do rio. A escuridão era mais profunda ali, e as estrelas pareciam mais próximas. A correnteza do rio já tinha sido mais forte em outros tempos, mas agora o despejo de resíduos das indústrias agrícolas a retardava, deixava-a mais morosa, alterava as criaturas que viviam nela. Na margem oposta, ocultas pela escuridão, havia fábricas de papel e as ruínas de indústrias ainda mais antigas, que continuavam poluindo os lençóis de água do solo. E tudo fluindo na direção de um oceano com acidez cada vez maior.

Ouviu-se um grito ao longe, do outro lado do rio, e uma resposta ainda mais distante. Alguma coisa pequena passou através dos juncos à sua direita, fungando, grasnando. Uma lufada de brisa veio impregnada do cheiro do pântano, leve mas perceptível. Aquele era o tipo do lugar para onde seu pai o levava para andar de canoa, quando ele era adolescente. Não era a natureza selvagem propriamente dita, pois ficava próxima da civilização, mas estava afastada o bastante para criar uma fronteira. Era isso que a maioria das pessoas queria: estar perto, mas sem fazer parte. Eles não queriam o medo do desconhecido que vinha com a “natureza selvagem”. E também não queriam uma vida artificial e sem alma.

Agora ele era novamente John Rodriguez, e “Controle” desaparecia. John Rodriguez, filho de um escultor cujos avós tinham vindo para este país à procura de uma vida melhor. Filho de uma mulher que vivia num reino bizantino cheio de segredos.

Quando começou a subir de volta a colina, pensou se já devia adotar uma estratégia de fuga. Jogar todas as coisas no carro e partir, sem ter que encarar de novo a diretora assistente, ou tudo aquilo.

Sempre começava bem.

Talvez não acabasse bem.

Mas ele sabia que, quando o dia amanhecesse, acordaria como Controle e seguiria novamente para o Comando Sul.


R I T U A IS


005: A PRIMEIRA RUPTURA

—O que é isso? Está em mim? Cadê? Isso está em mim? Cadê? Você consegue ver? Você consegue ver? Cadê?

Manhã, após uma noite cheia de sonhos no alto da falésia, olhando para baixo. Controle estava parado no estacionamento de uma lanchonete, com um copo plástico cheio de café numa mão e um saquinho de biscoitos para o desjejum na outra, olhando a dois carros de distância para uma mulher branca, de trinta e poucos anos, num terno roxo. Mesmo girando o corpo para alcançar a vespa pousada em sua nuca, ela parecia uma corretora de imóveis, cuidadosamente maquiada e o cabelo louro cortado curto. Mas a roupa não lhe caía muito bem, suas unhas eram desiguais, com o esmalte vermelho já bem descascado, e ele percebeu que seu estresse ia muito além da presença da vespa.

A vespa estava pousada bem na sua nuca, e por um instante ficou imóvel. Ele percebeu que, se lhe dissesse isso, ela a esmagaria com um tapa. Às vezes era preciso evitar dizer certas coisas às pessoas, para que não fizessem a primeira coisa que lhes viesse à cabeça.

— Fique parada — disse ele, pousando o copo de café e o biscoito no porta-malas do carro. — É inofensiva, vou tirá-la rapidinho.

Ninguém mais parecia disposto a ajudar. A maioria das pessoas a ignorava, enquanto alguns, indo na direção de seus automóveis, riam abertamente. Mas Controle não ria. Não estava achando aquilo engraçado. Ele também não sabia onde nele estava a Área X, e todas as perguntas em sua mente pareciam naquele instante tão frenéticas e inúteis quanto as que a mulher estava fazendo.

— Está bem, está bem — disse ela, ainda agitada, enquanto ele dava a volta e colocava a mão bem ao lado da vespa, que, depois de algumas cutucadas sutis, moveu-se.

O inseto estivera tentando avançar ao longo dos pelinhos louros da nuca da mulher. Com uma faixa vermelha no corpo e delicada, embora dotada de ferrão, ela vagou pelas costas da mão dele, meio sem rumo.

A mulher balançou a cabeça, virou o pescoço como se quisesse olhar-se por trás, deu um sorriso hesitante e disse:

— Obrigada.

E foi às pressas para o carro, como se estivesse atrasada para um encontro, ou com medo de Controle, aquele estranho que tocara em sua nuca.

Controle levou a vespa até a vegetação que cercava o estacionamento e a soltou numa estaca de madeira da cerca. A vespa orientou-se e caminhou na direção da faixa arborizada entre o estacionamento e a rodovia, guiada por uma noção de onde estava e para onde queria seguir, algo que ia além do entendimento de Controle.

“Enquanto você não disser às pessoas que não sabe de algo, elas provavelmente pensarão que você sabe.” A frase, surpreendentemente, era do seu pai, não de sua mãe. Ou talvez nem fosse tão surpreendente assim. A mãe sabia tantas coisas que talvez achasse que não precisava fingir.

Ela não sabia se era a mulher que não fazia ideia de onde estava a vespa, ou se era a vespa que provavelmente nem sabia que pousara numa mulher. No entanto, se as duas fossem de repente transportadas para a Área X, a vespa ficaria muito mais satisfeita do que a mulher.


Controle passou os primeiros quinze minutos de sua manhã de trabalho procurando a chave para a gaveta que estava trancada em sua mesa. Queria resolver logo esse mistério, antes da reunião com o mistério maior que era a bióloga. Seus biscoitos do café da manhã, agora amolecidos, o copo de café já frio e sua pasta estavam largados junto ao computador. Ele não estava com fome, de qualquer forma; o cheiro rançoso de desinfetante já invadia o escritório.

Quando achou a chave, ficou sentado por alguns instantes, olhando para ela, depois para a gaveta trancada e a mancha úmida e terrosa no canto inferior esquerdo. Ao girar a chave na fechadura, suprimiu o pensamento ridículo de que deveria ter mais alguém presente, Whitby talvez, quando a abrisse.

Havia algo morto dentro dela, e algo vivo também.

Uma planta estava crescendo no interior da gaveta, vinha se desenvolvendo ali no escuro durante todo aquele tempo, raízes escarlate cravadas num nódulo de terra. Como se a diretora a tivesse arrancado do chão e depois, por algum motivo, trancado dentro da gaveta. As folhas delgadas eram de um verde quase néon, os talos estendiam-se como segmentos de minúsculos cachimbos, com espirais em forma de olho, negras ou de um azul bem escuro. Sua aparência era a de uma criatura tentando escapar, com um par de membros finalmente libertos enroscando-se sobre a borda da gaveta aberta.

Na base, parcialmente preso ao torrão de terra, estava o corpo ressequido de um pequeno rato marrom. Controle não podia saber com certeza se a planta havia se alimentado dele de alguma maneira. Junto à planta, estava um velho smartphone, numa capa desgastada de couro negro, e por baixo tanto da planta quanto do telefone, viu camadas empilhadas de pastas de papel, estragadas pela umidade. Quase como se alguém, de modo bizarro, tivesse ido ali de vez em quando e regado a planta. Como a diretora não estava mais lá, quem poderia ter feito isso? Por que o fizera em vez de remover tanto a planta quanto o rato?

Controle olhou por algum tempo para o rato morto e depois, com relutância, estendeu a mão para retirar o celular. A capa parecia um pouco derretida, como se alguém tivesse tentado queimá-la, e, com a ponta de uma caneta, abriu algumas das folhas de papel. Não eram arquivos oficiais, pelo que pôde observar, mas estavam cheios de notas manuscritas, recortes de jornal e outros materiais de menor importância. Viu de relance palavras que o deixaram alarmado e deixou as páginas caírem de novo em sua posição.

O efeito geral era de que, estranhamente, a diretora tivesse a intenção de criar uma pilha de adubo para a planta. Uma pilha repleta de informações esquisitas. Ou então algum ridículo projeto científico: “Sistema de irrigação movido a rato para retransmissão de dados e manutenção de biosfera”. Tinha visto coisas ainda mais bizarras nas Feiras de Ciência do colégio, embora a própria falta de treinamento científico fizesse com que, sempre que se colocava diante dele a possibilidade de ganhar um ponto extra na média, ele se mantivesse na área dos trabalhos clássicos, consagrados pelo tempo, como vulcões em miniatura ou batatas que cresciam de outras batatas.

Talvez, admitiu Controle enquanto voltava a remexer na gaveta, a diretora assistente estivesse certa. Talvez tivesse sido melhor para ele ocupar outro escritório. Saindo de trás da mesa, procurou alguma coisa onde pudesse colocar a planta, e encontrou um vaso por trás de uma pilha de livros. Talvez a diretora tivesse procurado por ele também.

Usando algumas folhas que pegou ao acaso num bolo junto à mesa — se estivesse ali a chave para o segredo da Área X, que assim fosse —, Controle soltou cuidadosamente o rato do bloco de terra e o jogou no lixo. Depois encaixou a planta dentro do vaso e o colocou na beira da mesa, tão longe de si quanto possível. Mesmo assim ela ainda tinha a aparência de uma forma humana contorcida.

E agora? Removera os grampos e o rato do escritório. Só lhe restava, além do trabalho hercúleo de limpar as prateleiras e examinar seu material, a segunda porta trancada, que não conduzia a lugar nenhum.

Muito bem. O último mistério a ser solucionado. Ele hesitou um instante, irritado com a ideia de que todas essas pequenas peculiaridades teriam de ser relatadas à Voz.

Abriu a porta.

Olhou para lá durante vários minutos.

Depois, fechou-a novamente.


006: ANOMALIAS TIPOGRÁFICAS

A mesma sala de interrogatório. As mesmas velhas cadeiras. A mesma luz vacilante. A mesma Ave Fantasma. Ou não? Havia o resíduo de um brilho ou lampejo pouco familiar nos seus olhos, ou na sua expressão... Ele não sabia bem qual. Algo que não tinha captado na primeira sessão. Ela parecia ao mesmo tempo mais suave e cortante do que na primeira vez. “Se alguém parece ter mudado de uma sessão para outra, primeiro se certifique de que não foi você quem mudou.” Uma advertência de sua mãe, muito tempo atrás, pronunciada como quem abre uma caixa de biscoitos da sorte com conselhos para espiões e escolhe um ao acaso.

Controle pousou de maneira casual o vaso sobre a mesa, à sua esquerda, e colocou a pasta de relatórios entre os dois, como uma sugestão de recompensa. A sobrancelha dela se ergueu levemente diante da visão do vaso? Ele não tinha certeza. Mas a bióloga não disse nada, mesmo que aquilo despertasse a curiosidade de uma pessoa normal. Num impulso, Controle tinha pegado de volta o rato na lata de lixo e o colocado no vaso junto com a planta. Num cômodo deprimente como aquele, parecia lixo.

Controle sentou-se. Deu um pequeno sorriso para ela, mas mesmo assim não recebeu resposta. Já tinha decidido não retomar do ponto em que pararam da última vez, ou seja, a questão do afogamento, embora isso significasse combater sua própria necessidade repentina de ser o mais direto possível. As palavras que Controle vira rabiscadas na parede por trás da porta no escritório continuavam circulando em sua mente, de modo desagradável. De onde jaz o fruto asfixiante que veio da mão do pecador eu trarei as sementes dos mortos... Uma planta. Um rato morto. Uma espécie de litania insana. Ou algum tipo de brincadeira ou piada. Ou uma prova persistente de uma queda em espiral, um salto do alto da falésia para dentro de um oceano cheio de monstros. Talvez no fim, antes de ter se engajado à força na décima segunda expedição, a diretora estivesse praticando algum quebra-cabeças perverso.

A diretora assistente também não podia estar inteiramente alheia aos fatos. Mais uma razão para Controle se alegrar por ela não estar observando a cena por trás do espelho falso. Usando uma manobra aprendida com um colega, que a utilizara contra ele em seu último emprego, ele informara a Grace que a sessão ocorreria à tarde. Depois, dirigiu-se até o setor onde estavam alojados os membros da expedição, falou com o chefe da segurança e fez com que a bióloga fosse conduzida até a sala de interrogatório.

Quando abordou o assunto, dessa vez sem nenhum preâmbulo, Controle ignorou as marcas de umidade no teto, que às vezes lembravam uma orelha e um enorme olho subaquático voltado para eles.

— Existe uma anomalia topográfica na Área X, perto do acampamento. Você ou algum membro da sua expedição encontrou essa anomalia? Se sim, chegaram a entrar?

Na verdade, a maioria dos que a encontraram a chamou de torre ou de túnel, ou mesmo de poço, mas ele insistiu no termo “anomalia topográfica” na esperança de que ela lhe desse um nome específico, escolhido por ela mesma.

— Não me lembro.

Seu uso constante dessas palavras estava começando a irritar, ou talvez a irritação fosse pelas palavras escritas na parede, e a consistência da postura adotada por ela apenas a aumentasse.

— Tem certeza?

Claro que ela tinha certeza.

— Acho que eu lembraria, se tivesse esquecido.

Quando Controle a encarou novamente, deparou-se com os cantos daquela boca levemente erguidos, os olhos com uma luz bem diferente da que tinham na sessão anterior. Por motivos que não entendia, aquilo o deixava frustrado. Aquela não era a mesma pessoa de antes. Ou será que era?

— Não estou brincando — disse Controle, decidindo ver como ela reagiria se ele parecesse irritado.

Só que estava de fato irritado.

— Não lembro. O que posso dizer?

Cada palavra foi dita devagar, como se ele fosse meio lento e não a tivesse compreendido da primeira vez.

Teve uma breve visão do sofá na sua casa nova, Chorry enroscado no seu colo, música tocando, um livro nas mãos. Um lugar muito melhor do que onde estavam agora.

— Pode dizer que lembra. Que está escondendo alguma coisa.

Pressionando. Algumas pessoas gostavam de satisfazer seus interrogadores. Outras não se importavam, e tentavam deliberadamente atrapalhá-los. Tinha-lhe ocorrido a ideia, depois da primeira sessão e da leitura das três sessões anteriores à sua chegada, de que a bióloga talvez oscilasse entre esses extremos, não conseguisse decifrar os próprios pensamentos ou tivesse algum grave conflito interno. O que poderia fazer para convencê-la? Um rato morto num vaso não a influenciara. Uma mudança brusca de assunto também não.

A bióloga continuou em silêncio.

— É muito improvável — disse ele, como se ela tivesse negado novamente. — Muitas outras expedições encontraram essa anomalia topográfica.

Termo difícil de falar, “anomalia topográfica”.

— Mesmo assim — respondeu ela —, não lembro de nenhuma torre.

Torre. Não túnel, ou poço, ou caverna, ou buraco no chão.

— Por que você a chama de torre? — perguntou ele na ofensiva. Ávido demais, percebeu um instante depois.

Um sorriso apareceu no rosto da Ave Fantasma, e uma espécie de afetividade remota. Por ele? Por causa de alguma lembrança despertada pelo que ele dissera?

— Você sabia que o caracol do gênero Phorus aglutina à própria casca as cascas vazias de outros caracóis? — perguntou ela. — O resultado disso é que o Phorus de água salgada é muito desajeitado. Ele tropeça e cambaleia por causa de todas aquelas cascas vazias. Elas lhe proporcionam camuflagem, mas ele paga um preço por isso.

A profunda alegria secreta por trás dessa resposta o atingiu em cheio.

* * *

Ele talvez esperasse, também, que ela compartilhasse seu desdém pelo termo anomalia topográfica, que surgira durante suas primeiras reuniões com Grace e outros membros da equipe. Enquanto certo especialista em “anomalias topográficas” recitava sua ladainha, basicamente estabelecendo um perfil de tudo que ainda desconheciam, Controle sentiu uma irritação crescente dentro de si. Um monólogo inteiro brotando ao mesmo tempo. Evocando o espírito do seu avô Jack, que quando queria era capaz de explodir em fúria, sobretudo ao ser confrontado com a estupidez do mundo. Seu avô ficaria de pé e bradaria algo como: “Anomalia topológica? Anomalia topológica? Não quer dizer feitiçaria? Não quer dizer o fim da civilização? Não quer dizer alguma coisa mal-assombrada sobre a qual não sabemos nada, porra nenhuma, além de tudo o mais que não sabemos?” Somente uma sombra numa fotografia fora de foco, um pesadelo em espiral exprimido pelas anotações de algumas testemunhas não confiáveis, tornadas ainda menos confiáveis pelo emprego da hipnose, a despeito dos protestos da Central. Um fio da meada espiralado que se perdeu e que poderia ou não ser feito de algo completamente diferente — algo menos compreensível em sua excentricidade do que um caracol invasor das cascas alheias que vacila pelo chão como se estivesse bêbado. Não havia esperança de descobrir o que era aquilo, nem de fazê-lo ir pelos ares como fazem os macacos inteligentes. Era apenas uma coisa ali no chão, a ser mencionada tão casualmente quanto “tampa de bueiro”, ou “bomba d’água”, ou “facas de churrasco”. Anomalia topográfica.

Mas ele já dissera isso tudo às estantes do seu escritório, na terça-feira. Dissera tudo ao fantasma da diretora enquanto avançava, em passo de caracol, na leitura das anotações dela. Para Grace e o resto dos outros, perguntara apenas: “Há algo mais que possam me dizer a respeito?” Não podiam.

Tal como a bióloga.

* * *

Controle ficou olhando para ela por alguns instantes, uma ameaçadora estratégia que os interrogadores usam para intimidar. Mas a Ave Fantasma o encarou com aqueles olhos verdes e vivazes até que ele desviou os seus. Continuava achando que ela estava diferente. O que tinha mudado nela nas últimas vinte e quatro horas? A rotina era a mesma, e a vigilância não tinha informado nada de anormal em seu estado mental. Concederam-lhe um telefonema (cuidadosamente monitorado) para os pais, mas ela não tinha nada a dizer-lhes. Isso não podia ser atribuído ao tédio de ficar trancada, tendo apenas um aparelho de DVD e uma coleção de filmes e livros sob censura. Suas refeições eram feitas no refeitório, de modo que Controle podia se solidarizar com ela nesse ponto, mas isso também não era motivo suficiente.

— Talvez isso ajude a avivar sua memória.

Ou a fazer você parar de mentir. Ele começou a ler os relatórios das expedições anteriores em voz alta:

“Um poço sem fim, descendo pelo chão. Nunca conseguimos chegar ao fundo. Nunca paramos de cair.”

“Uma torre enfiada no interior da Terra e que produzia uma sensação de extremo desconforto. Ninguém queria entrar, mas alguns de nós acabaram entrando. Poucos voltaram.”

“Não havia uma entrada. Somente um círculo de pedra que pulsava. Uma impressão de enorme profundidade.”

Somente dois membros daquela expedição voltaram, mas trouxeram consigo os diários dos seus companheiros. Estavam repletos de desenhos de uma torre, um túnel, um poço, um ciclone, uma série de escadarias. Isso quando não apresentavam imagens de coisas mais mundanas. Não havia dois diários idênticos.

Controle não prosseguiu por muito tempo. Tinha começado a recitação na expectativa de que a leitura pudesse interferir naquela amnésia... se é que ela estava mesmo com perda de memória... e essa impressão logo ficou mais intensa. Mas foi sua própria sensação de desconforto que o fez se interromper e depois parar de vez. Sua sensação de que, tornando a torre-poço mais real em sua imaginação, ele também a tornava mais real de fato.

Mas a Ave Fantasma ou não foi influenciada, ou percebeu seu breve momento de tensão, porque perguntou:

— Por que parou?

Ele a ignorou, então trocou uma torre pela outra.

— O que me diz do farol?

— O que tem o farol?

Primeiro pensamento: ela está me arremedando. O que trouxe de volta uma lembrança da escola, uma memória de ser humilhado pelos valentões antes de sua transformação no ensino médio, quando começou a se dedicar ao futebol americano e a pensar em si mesmo como um espião num mundo de aspirantes a atletas. Ele percebeu que aquelas palavras escritas na parede o tinham desconcertado. Não muito, mas o bastante.

— Lembra-se dele?

— Sim — foi a resposta, para sua surpresa.

Ainda assim, foi obrigado a arrancar dela o resto.

— Lembra o quê?

— Lembro de me aproximar dele, por um caminho entre os juncos. Olhar pela porta.

— E o que viu?

— O lado de dentro.

Continuou assim por mais algum tempo, e Controle começou a ter dificuldade de acompanhar as respostas. Quando passava para o assunto seguinte, ela dizia que não se lembrava, o que fazia a conversa adquirir certo ritmo que ela parecia achar confortável. Ele disse a si mesmo que estava percebendo os tiques nervosos dela, algo capaz de denunciar seu estado mental ou seus verdadeiros propósitos. Na verdade, não era perigoso encará-la de frente. Nem um pouco perigoso. Ele era Controle, e estava no controle.

* * *

De onde jaz o fruto asfixiante que veio da mão do pecador eu trarei as sementes dos mortos para partilhar com os vermes que se reúnem nas trevas e povoam o mundo com o poder das suas vidas enquanto nos salões mal-iluminados de outros lugares formas que nunca poderiam existir se contorcem pela impaciência dos poucos que jamais viram ou jamais foram vistos. Na água negra e com o sol brilhando à meia-noite, aqueles frutos amadurecerão e naquela escuridão dourada se partirão para expor a revelação da suavidade fatal da terra. As sombras do abismo são como as pétalas de uma flor monstruosa que desabrochará dentro do crânio e expandirá a mente para além do que qualquer homem pode suportar... Assim prosseguia, e Controle tinha a impressão de que, se a diretora não tivesse ocupado todo o espaço disponível, não tivesse juntado àquilo um mapa da Área X, ainda teria mais palavras a escrever.

A princípio ele pensou que a parede do outro lado da porta tinha linhas escuras. Mas não, alguém a havia coberto por inteiro com uma série de frases estranhas escritas com uma caneta negra de traçado incrivelmente grosso. Algumas palavras foram sublinhadas em vermelho e outras, circuladas por uma linha verde. O peso daquilo o fez dar um passo para trás, e depois ficar ali de pé, com a testa franzida.

Teoria inicial, descartada como ridícula: As palavras eram uma ode psicótica da diretora dedicada à planta guardada na gaveta. Depois, ele atentou para as leves semelhanças entre a cadência das palavras e o discurso de algumas das milícias antigovernistas mais religiosas que ele monitorara durante a carreira. Após isso, julgou ter detectado um eco distante do tom daqueles lunáticos preguiçosos e meticulosos, que se trancam no porão da casa da mãe e cobrem as paredes com recortes de jornal e páginas impressas da internet. Criando, tubo de cola a tubo de cola, tachinha a tachinha, seus universos particulares. Mas esses tratados, essas filosofias, raramente adquiriam um tom tão melancólico ou tão terreno, apesar de etéreo, quanto o daquelas frases.

O que tinha ardido mais intensamente em Controle enquanto ele contemplava a parede não fora confusão ou medo, mas a irritação que ele acabara levando para o interrogatório com a bióloga. Uma emoção que se manifestou de surpresa: água fria derramada ao acaso num copo.

Aspectos irrelevantes podiam levar ao fracasso, uma pequena falha conduzindo a outra. Então se tornavam maiores, e logo você estava em queda livre. Podia ser qualquer coisa. Esquecer de fazer anotações no fim de um dia de trabalho. Chegar perto demais de alguém que está sendo vigiado. Passar os olhos num arquivo que deveria ser lido com máxima atenção.

Controle não ouvira nada sobre as palavras na parede do escritório da diretora, e não vira nenhuma menção a elas nos arquivos que lera e relera minuciosamente. Aquele era o primeiro sinal de uma falha em todo o processo.

* * *

Quando Controle achou que a bióloga estava confortável e satisfeita consigo mesma e talvez bastante espertinha, disse:

— Você falou que sua última lembrança da Área X era de estar se afogando no lago. Do que você lembra especificamente?

Ele imaginou que a bióloga iria empalidecer, ficar com o olhar perdido e dar um sorriso triste que o deixaria triste também, como se ele a houvesse desapontado de alguma maneira. Como se até ali tivesse se portado bem e agora cagasse tudo. Então ela protestaria. Diria: “Não foi no lago, foi no oceano”, e revelaria todo o resto da história.

Mas nada disso aconteceu. Ele não recebeu sorriso algum. Em vez disso, ela manteve tudo ainda mais trancado dentro de si, e mesmo o seu olhar desviou-se para um local remoto — um farol, talvez —, no qual ela o observava de uma distância segura.

— Eu estava confusa ontem — disse ela. — Não foi na Área X. Foi uma lembrança de quando eu tinha cinco anos e quase morri afogada num chafariz. Bati com a cabeça. Levei pontos. Não sei por quê, mas foi isso que me veio à mente, fragmentado, quando você fez aquela pergunta.

Ele quase aplaudiu. Quase ficou de pé, aplaudiu e lhe estendeu a pasta com os arquivos.

Ela passara a noite sentada no quarto, totalmente entediada pela falta de estímulo, e tinha antevisto aquela pergunta. Não apenas isso; Ave Fantasma decidiu tratar o assunto como uma reação plantada ali por Controle. Entregou de bandeja uma história pessoal menor, para proteger algo mais importante. O incidente da fonte era uma parte bem documentada dos arquivos sobre ela, já que tinha sido levada ao hospital para receber pontos. Algo capaz de confirmar, aos olhos dele, que ela lembrava alguma coisa da própria infância, mas não mais que isso.

Ocorreu-lhe que ele talvez não tivesse o direito de espionar as lembranças dela. Talvez ninguém tivesse. Mas afastou aquele pensamento, como um astronauta que se move empurrando a parede na espaçonave. Onde iria parar era uma pergunta sem resposta.

— Não acredito em você — retrucou ele, com firmeza.

— Não me importo — disse ela, recostando-se na cadeira. — Quando vou poder sair daqui?

— Ah, você sabe como funciona... Tem que contribuir com a equipe — respondeu ele, usando o clichê para driblar a pergunta, tentando soar ignorante ou estúpido. Nem tanto por estratégia, mas para se punir por não estar empregando sua melhor técnica. — Você assinou o acordo e sabia que essas entrevistas iam levar algum tempo. — E sabia, também, que corria o risco de voltar com câncer, ou de não voltar.

— Eu não tenho computador — disse ela. — Não recebo nenhum dos livros que peço. Estou sendo mantida numa cela em que há somente uma janelinha lá no alto da parede. Só consigo ver o céu. Se eu tiver sorte, vejo um falcão passar, de tantas em tantas horas.

— É um quarto, não uma cela — respondeu ele.

Era as duas coisas.

— Eu sou proibida de sair, então é uma cela. Me deem pelo menos os livros.

Mas ele não podia fornecer os livros sobre perda de memória que ela havia pedido. Não enquanto não conhecesse melhor a natureza de sua perda de memória. Ela pedira também todo tipo de texto sobre mimetismo e camuflagem. Controle teria de tocar nesse assunto em algum momento.

— Isso significa alguma coisa para você? — perguntou ele, empurrando sobre a mesa o vaso com a planta e o rato.

Ela ficou empertigada na cadeira, parecendo se tornar não apenas mais alta como mais larga, mais imponente, e se inclinou na direção dele.

— Uma planta e um rato morto? É um sinal de que vocês precisam me entregar a porra do meu computador e dos meus livros.

Talvez não fosse descontração o que havia de diferente nela agora. Talvez fosse um senso de imprudência.

— Não posso.

— Então você sabe o que pode fazer com sua planta e seu rato morto.

— Certo, muito bem.

A risada desafiadora dela o acompanhou até o corredor. Ela tinha um riso agradável, mesmo quando o usava como uma arma.


007: SUPERSTIÇÃO

Vinte minutos depois, Controle conseguiu juntar Whitby, Grace e a linguista da equipe, Jessica Hsyu, no apertado espaço diante do pedaço de parede coberto pela caligrafia inconfundível da diretora. Ele não se deu o trabalho de afastar as pilhas de livros ou o resto dos objetos. Queria que ficassem sentados bem perto uns dos outros, numa proximidade até desconfortável. Sim, vamos nos apertar aqui nesta cabine telefônica, com nossos joelhos se tocando. O roçar das roupas, a respiração pela boca, o ruído dos sapatos, odores inesperados, tudo ali era ampliado. Pensou naquilo como uma experiência para estreitamento de laços. Quem sabe.

A diretora assistente foi a única a receber uma cadeira de tamanho normal. Desse modo, podia manter a ilusão de que mandava ali; ou, talvez, Controle tivesse a esperança de que isso a impedisse de alegar futuramente que ele estava sendo mesquinho. Ele já tinha ignorado a sua observação incisiva de “que bom que isso está sendo feito de acordo com o planejamento”, o que significava que Grace já sabia que ele interrogara a bióloga. E ela o deixou esperando enquanto fazia piadas com alguém no corredor, o que ele interpretou como uma discreta retaliação.

Acomodaram-se em torno da menor mesa de reuniões do mundo, um banquinho no qual Controle posicionou o vaso com a planta e o rato. Tudo no tempo certo, no lugar certo, embora o celular da diretora não fizesse mais parte do cenário. Grace o confiscara.

— Me digam o que é isso. No meu escritório — ordenou ele, apontando a parede coberta de frases.

Não estava disposto a fazer concessões quanto ao pensamento que irradiava de Grace como um campo de força: que o espaço ainda era o escritório da ex-diretora.

“Isso” incluía não apenas as palavras, mas o mapa tosco da Área X desenhado abaixo delas, em verde, vermelho e preto, mostrando os pontos conhecidos: farol, anomalia topográfica, acampamento... e também, afastada da orla, a ilha. Algumas palavras aleatórias haviam sido rabiscadas com esferográfica nas margens — ilegíveis — e havia duas vigorosas marcas a uma altura um pouco acima da cabeça de Controle, datadas com três anos de intervalo. Uma vermelha. Outra verde. Com as iniciais da diretora anotadas abaixo. Ela estivera medindo a própria altura? De todas as coisas estranhas naquela parede, essa parecia a mais estranha.

— Pensei ter ouvido você dizer que leu todos os arquivos — retrucou Grace.

Nada nos arquivos mencionara uma parede repleta de frases bizarras, mas ele não quis se deter nesse ponto. Sabia ser altamente improvável que tivesse descoberto algo desconhecido por eles.

— Vamos, diga, para me agradar.

— A diretora escreveu isso tudo — revelou Grace. — São palavras que foram encontradas nas paredes do túnel.

Controle esperou alguns instantes enquanto digeria a informação.

— Mas por que deixaram aqui?

Por um momento muito intenso, as palavras e o odor de mel estragado se combinaram com uma intensidade que o fez se sentir fisicamente mal.

— Um memorial — respondeu Whitby depressa, como se tentasse defender a diretora assistente. — Sentimos que retirar isso seria algo desrespeitoso.

Controle tinha notado que Whitby não dera muita atenção ao rato, embora de vez em quando olhasse naquela direção.

— Não, não é um memorial — corrigiu Grace. — Não é um memorial porque a diretora não está morta. Não acredito que tenha morrido.

Ela disse isso num tom de voz baixo mas firme, provocando um sussurro entre Whitby e Hsyu, como se Grace tivesse externado em voz alta uma opinião constrangedora para si mesma. De qualquer maneira, a manipulação cuidadosa que Controle fizera no termostato já deixara todos suando e se remexendo de desconforto.

— E o que significa? — perguntou Controle, para fazer passar logo aquele momento. Por trás da vontade de Grace em atrapalhar, ele podia perceber uma espécie de dor crescente dentro dela que ele não desejava explorar.

— Para isso trouxemos uma linguista — respondeu Whitby com benevolência, embora fosse claro que a presença de Hsyu tinha sido uma surpresa para a diretora assistente.

Mas a influência de Hsyu vinha crescendo na mesma proporção que o Comando Sul encolhia. Em breve, estariam vivendo uma situação em que haveria departamentos de uma única pessoa enviando memorandos de advertência para si mesma, concedendo-se aumentos de salário e prêmios, comemorando sozinha seu aniversário com um bolo de cenoura no formato do prédio do Comando Sul.

Hsyu, uma mulher pequena, esguia, com longos cabelos negros, falou em seguida.

— Em primeiro lugar, temos 99,9 por cento de certeza de que o autor desse texto é o faroleiro, Saul Evans. — Uma leve inflexão ascendente de sua voz dava um tom de otimismo mesmo à mais séria ou mais insípida de suas declarações.

— Saul Evans...

— Ali está ele — disse Whitby, apontando as imagens emolduradas na parede. — No meio, naquela foto em preto e branco.

A foto diante do farol. Então aquele era Saul. Ele mais ou menos já sabia disso, estava em algum lugar da memória.

— Você afirma isso porque encontraram esse texto impresso em outro lugar? — perguntou Controle a Hsyu.

Ele não tivera tempo para mais do que uma rápida olhada no arquivo relativo a Evans. Estivera muito ocupado familiarizando-se com as equipes do Comando Sul e com a situação geral da Área X.

— Não. É porque confere com sua sintaxe e suas escolhas verbais em alguns dos sermões que temos gravados em fita.

— Por que ele faria sermões se é um faroleiro?

— Na verdade, era um pastor aposentado. Largou o clero subitamente quando morava no norte, sem registrar o motivo, então veio para o sul e assumiu a função de faroleiro. Já a exercia havia cinco anos quando a barreira surgiu.

— Acha que ele trouxe consigo seja lá o que for que criou a Área X? — arriscou Controle, mas ninguém pareceu disposto a endossar sua sugestão.

— Já foi descartado — respondeu Whitby.

Pela primeira vez percebia-se um indício de condescendência em sua voz ao se dirigir a Controle.

— E essas palavras foram encontradas dentro da anomalia topográfica?

— Sim — disse Hsyu. — O texto foi reconstruído a partir dos relatos de várias expedições, mas nunca conseguimos uma amostra do material de que são formadas as palavras.

— Material vivo — disse Controle. Agora começava a se lembrar de tudo, aos poucos. As palavras não foram transcritas no resumo que lera, mas ele vira relatos sobre o texto na parede da torre, escrito com tecidos vivos. — Por que essas palavras não aparecem nos arquivos?

A linguista novamente, com certa relutância:

— Para ser honesta, não gostamos de reproduzir essas frases. Então devem ter ficado ocultas no meio da documentação, como um mero resumo no arquivo relativo ao faroleiro.

Grace aparentemente não tinha nada a acrescentar, mas Whitby interveio:

— Não gostamos de reproduzir as frases porque ainda não sabemos com precisão o que deflagrou a criação da Área X... ou por quê.

No entanto, deixaram as frases na parede por trás de uma porta que não levava a lugar nenhum. Controle tinha dificuldade em entender essa lógica.

— Isso é superstição — protestou Hsyu. — Superstição total e completa. Não devia falar isso.

Controle sabia que os pais dela eram bem tradicionais e vinham de uma cultura em que espíritos se manifestavam e as palavras tinham significado diferente. Hsyu não compartilhava essas crenças — negava-as com veemência, praticando uma fé cristã mais relaxada, a qual trazia consigo outros elementos inexplicáveis e uma fantasmagoria própria. Mas ele concordava com sua avaliação, mesmo que essa antipatia pudesse estar contaminando a análise da linguista.

Ela teria continuado com uma crítica feroz da superstição, mas Grace a interrompeu.

— Não é superstição — disse.

Todos se voltaram para ela, girando sobre os banquinhos onde se sentavam.

— É superstição — admitiu ela. — Mas pode ser verdade.

* * *

Como pode uma superstição ser verdadeira? Controle ficou se questionando mais tarde, com a atenção voltada para a viagem que faria a fim de conhecer a barreira invisível, ao mesmo tempo que folheava um arquivo entregue por Whitby com o simples título “Teorias”. Talvez “superstição” fosse o que se infiltrava pelas fendas, pelas frestas, quando você trabalha num lugar onde o moral está em baixa e as verbas minguando. Talvez superstição fosse o que acontece quando sua diretora desaparece em ação e sua diretora assistente ainda está chorando essa perda. Talvez fosse quando você começa a recorrer a fórmulas mágicas e rituais, e seu cérebro diz ao resto da mente: “De agora em diante eu assumo o controle. Você já teve sua chance.” Na verdade nem era tão despropositado assim. Quantas encantações invisíveis e transcendentes não governavam o mundo para além do Comando Sul?

Mas nem todo mundo aceitava as mesmas versões. A linguista acreditava na superstição da lógica, por exemplo, talvez porque estivesse no Comando Sul há apenas dois anos. Se as estatísticas fossem confirmadas, nos próximos dezoito meses ela sofreria um esgotamento nervoso; por alguma razão, a Área X exigia muito dos linguistas, talvez da mesma forma que fazia com os padres, tanto que não havia mais nenhum no Comando Sul.

Então, talvez ela estivesse a apenas alguns meses de se converter à crença da diretora assistente, ou à de Whitby, seja lá qual fosse. Porque Controle sabia que acreditar na ciência só levava alguém até certo ponto. Os zigurates de ilógica erigidos por um terrorista doméstico comum, quando ele ou ela comprava fertilizante ou fabricava um detonador, tinham o próprio tipo instável de energia e poder. Quando essas torres vinham abaixo, ainda existiam por inteiro na mente de seu criador, e na de todas as outras pessoas, se bem que por diferentes razões.

Mas Hsyu fora inabalável, por motivos que deixavam Controle ainda mais desconfortável com relação à Área X.

Imagine (ela lhe disse) que a linguagem é apenas parte de um método de comunicação. Imagine que ela não seja nem sequer a parte mais importante, mas apenas um duto, o trajeto por onde a comunicação escoa. Uma tubulação apenas; “infraestrutura” foi a palavra que Controle usou mais tarde, em seu relatório para a Voz.

O verdadeiro núcleo da mensagem, o significado, seria transmitido por combinações de matéria viva que compunham as palavras, como se a “tinta” fosse a mensagem propriamente dita.

— E se uma mensagem é semifísica, se um tipo de código é semifísico, então palavras escritas numa parede não significam tanto assim, na minha opinião. Eu poderia passar anos analisando esse texto, o que, aliás, é o que suponho que a diretora fez, e isso não me ajudaria a entender nada. O tipo de veículo ajuda a determinar a velocidade com que a mensagem chega e talvez forneça um pouco do contexto, mas é tudo. Além disso... — E aqui Controle percebia Hsyu migrando para o discurso monocórdio de uma aula já ministrada muitas vezes, talvez acompanhada por uma apresentação de Power Point. — Se alguém ou alguma coisa está tentando enfiar informações na sua cabeça com palavras que você entende, mas com um sentido que não entende, o problema não é que a mensagem está numa frequência que você não capta. É muito pior. Por exemplo, como se a mensagem fosse uma faca e ela produzisse significado cortando carne, e sua cabeça fosse o receptor e você sentisse a ponta da faca sendo enfiada repetidamente dentro da sua orelha...

Ela não precisou falar mais para que Controle imaginasse as expedições sendo aniquiladas antes de banirem o uso de nomes próprios e tecnologia moderna de comunicação. E se o destino da primeira expedição, em especial, tivesse sido selado por algum tipo de interferência que eles trouxeram consigo, e que os deixou incapazes de ouvir, de perceber?

Ele voltou a falar do faroleiro.

— Então, estamos considerando que Saul Evans escreveu essas frases muito tempo atrás, certo? Contudo, ele não poderia estar escrevendo mais nada agora. Seria velho demais, a esta altura.

— Não sabemos. Simplesmente não sabemos.

Esse comentário tão inútil veio de Whitby, enquanto todos o olhavam com o ar de animais pegos de surpresa no meio da estrada, à noite, por um carro vindo a toda velocidade.


008: O TERROR

Cerca de uma ou duas horas depois, chegou o momento de partir para a barreira, e Grace lhe disse que Cheney o levaria até lá. “Ele pediu, por algum motivo.” Grace visivelmente não queria ir. Guiado por Whitby, Controle caminhou de novo pelo corredor na direção da enorme porta dupla, como se não recordasse o trajeto — e foi saudado jovialmente por Cheney, cujo casaco de couro marrom não parecia apenas ser usado o tempo inteiro ou ser adequado a ele; era como se também fizesse parte dele, como a carapaça de um besouro. E Whitby sumiu da cena atravessando as portas com uma audível e profunda aspiração de ar, como quem se prepara para mergulhar num lago.

— Achei melhor subir logo e poupar você de ver aquelas luvas horríveis — disse Cheney, apertando a mão de Controle, que se perguntou se haveria segundas intenções por trás de tanta afabilidade, ou se era apenas a paranoia resultante de sua relação com Grace.

— Por que vocês as mantêm lá? — perguntou Controle, enquanto Cheney o conduzia por um atalho, passando pela guarita de segurança e indo na direção do estacionamento.

— Acho que por causa do orçamento. É sempre a resposta por aqui — esclareceu Cheney. — Fica muito caro removê-las. E acabou virando uma piada. Ou melhor, nós fizemos com que virasse.

— Uma piada? — Ele já ouvira muitas naquele dia.

Na saída, Whitby já o esperava ao volante de um jipe militar com o motor ligado e a capota arriada. Parecia um personagem de cinema mudo, daquele tipo que sempre cai de bunda no chão, e seu gesto exagerado convidando-os a subir no veículo só fazia aumentar essa impressão. Controle revirou os olhos e Whitby piscou para ele. Será que ele teria participado de algum grupo de teatro na escola? Seria um ator frustrado?

— Sim, uma piada — continuou Cheney, com simpatia, enquanto os dois pulavam para a traseira do jipe; Whitby, ou alguém, tinha propositalmente colocado uma grande caixa cheia de papéis no banco do carona, impedindo que sentassem ali. — Como se tudo que há de estranho e precisa ser analisado viesse do interior do prédio, e não da Área X. Já conversou com esse pessoal? Somos um bando de lunáticos. — Deu um sorriso irônico. Outra piada. — Whitby, siga pelo caminho mais bonito.

Mas Controle mal o escutava; estava torcendo o nariz diante do incômodo fato de que o cheiro de mel estragado os acompanhara até o jipe.

* * *

Durante um longo tempo Whitby permaneceu calado, e Cheney falou coisas que Controle já sabia, assumindo o papel de guia e aparentemente esquecendo que repetia o que já dissera na reunião da véspera. Logo, Controle dirigiu sua atenção para os arredores. O “caminho mais bonito” era a rota habitual que Controle vira nos mapas: a estrada cheia de curvas, os postos de vigilância, as trincheiras que surgiam como vestígios de uma guerra antiga. Floresta e pântano tinham sido preservados onde fora possível, como proteção ou barreira natural. Mas também surgiam, a intervalos, trechos inteiros de pântanos drenados e florestas desmatadas, às vezes para abrigar barracas ou postos de vigia, mas em outros casos apenas para dar lugar a longas extensões cobertas de capim amarelado. Controle sentiu um arrepio na nuca que o fez pensar em atiradores de elite e observadores ocultos. Talvez aquilo ajudasse a localizar algum intruso para depois ser alvo dos drones. A maior parte dos soldados do exército que avistou vestia uniformes camuflados, e era difícil avaliar o número total. Mas sabia que todas as pessoas com quem tinha cruzado após o último posto de vigilância achavam que o que havia à frente era uma área de risco devido à poluição ambiental.

Em “cooperação com” o Comando Sul, o exército recebera a incumbência de descobrir novos pontos de entrada para a Área X, e incansavelmente — ou talvez com tédio crescente — monitorava suas bordas à procura de fendas. Também testava a barreira com projéteis de vez em quando. Além disso, Controle sabia que havia artefatos nucleares escondidos junto à Área X, trazidos dos silos mais próximos e vigiados do alto por satélites militares.

Mas a função principal do exército era manter as pessoas afastadas e dar prosseguimento à ficção a respeito de um desastre ambiental. Os militares tomaram todo o território que incluía a Área X, e outra área equivalente em volta como expansão de uma base um pouco acima, na costa. Isso ajudou a isolar a região, assim como as placas advertindo sobre exercícios de tiro por toda parte. Podia-se dizer que o papel do exército aumentava na mesma proporção em que o do Comando Sul minguava. Todo o pessoal médico e de engenharia estava alojado com os militares, por exemplo. Se uma privada quebrasse no Comando Sul, o encanador precisaria vir da base militar para fazer o conserto.

Whitby jogou o jipe de um lado para outro para desviar dos buracos, trazendo Cheney para bem perto. Examinando-o mais atentamente, Controle podia ver que tinha o corpo de quem praticou fisiculturismo, como se alguma vez na vida já tivesse estado em forma, mas essa condição, como todas as outras condições humanas, acabara involuindo e se transformando num “pneu” em volta da cintura; mesmo assim, ele possuía um torso ainda sólido, que se projetava de dentro da camiseta justa e do casaco marrom de modo tão triunfante que quase ocultava a barriga. Ele era também, de acordo com sua ficha, “um cientista de primeira ordem com um fraco por cerveja”, o tipo de mente que Controle conhecia bem. Precisava se embotar um pouco para desacelerar ou para se distanciar da possibilidade do desespero. Cerveja versus cientista representava uma espécie de cisão entre a banalidade da fala versus a originalidade do pensamento. Uma batalha incessante.

Por que Cheney bancaria o palhaço diante de Controle, quando na verdade possuía uma inteligência ímpar? Bem, talvez fosse mesmo um palhaço fora de sua área de atuação, mas Controle também não era propriamente o primeiro sujeito que alguém convidaria para uma festa.

* * *

Assim que deixaram para trás as interrupções causadas pelos postos de vigilância e entraram nos mais de vinte quilômetros de estrada de cascalho — que pareciam exigir toda a atenção de Whitby, de modo que ele permaneceu calado —, Controle perguntou:

— Este é o mesmo caminho usado pelas expedições quando vão para a fronteira?

Ao longo da viagem, a imagem em sua mente do deslocamento das expedições pela mesma rota, cada membro quieto, sozinho na vasta extensão de seus pensamentos, era a toda hora interrompida pelas formalidades da parada em cada posto de vigilância. A destruição do consolo.

— Claro — respondeu Cheney. — Mas eles vêm num ônibus especial que não precisa parar no posto.

Um ônibus especial. Nada de paradas. Nada de limusine para a expedição, não numa estrada como aquela. Será que tinham direito a uma última refeição especial? A última noite era dedicada a devaneios alcoólicos ou a sombrias meditações? Qual teria sido a última vez em que receberam autorização para ver a família e os amigos? Recebiam orientação religiosa? Os arquivos não falavam nada sobre isso. A Central descia sobre o Comando Sul como um superparasita de muitos membros e se encarregava de tudo.

Iam com tudo que conseguiam carregar, ou partiam sem bagagem?

— E já vêm com suas mochilas e equipamento? — perguntou.

Estava imaginando a bióloga naquele ônibus especial, passando sem parar pelos postos de controle, brincando distraidamente com a mochila, ou então apenas sentada em silêncio com a bagagem no banco ao lado. Nervosa ou calma? Não fazia diferença qual o seu estado de espírito naquela hora; Controle sabia que não estaria batendo papo com as companheiras.

— Não. Eles recebem tudo nas instalações junto à fronteira. Mas já sabem o que há lá dentro, é o mesmo que há nas mochilas de treinamento. Só a quantidade de pedras que é menor.

Mais uma vez, aquele olhar meio que à espera de uma risada, mas Cheney, sempre cordial, riu ele mesmo no lugar de Controle.

Muito bem. A fronteira estava próxima. Como estaria a Ave Fantasma? Animada, indiferente? Ele se sentia frustrado ao perceber que, para ele, era mais fácil imaginar o que ela não sentiria do que o que poderia sentir.

— A gente costumava fazer piadas — disse Cheney, interrompido por um buraco que Whitby não conseguiu evitar. — Dizíamos que seria legal mandá-los para lá com um ábaco e um pedaço de sílex. E talvez um ou dois pedaços de elástico. — Vendo a reação de Controle à brincadeira, Cheney sentiu algum sinal de desaprovação ou de perigo, porque completou: — Sabe como é, humor negro. Como na emergência de um hospital.

Só que ele não tinha sido internado em hospital algum. Ficara em seu escritório para analisar o material coletado pelos poucos que conseguiram voltar. Um porão inteiro atulhado de amostras inúteis, obtidas às custas de sangue e de carreiras, porque praticamente nenhum dos sobreviventes conseguira voltar a ter uma vida tranquila e produtiva. Será que a Ave Fantasma se lembrava de Cheney, e, se lembrava, o que pensaria dele?

A ondulação incessante dos troncos marrons e rugosos das árvores. O perfume das agulhas de pinheiro misturado ao odor pungente de podridão e ao escapamento do jipe. O céu cinza-azulado acima de tudo, através do dossel irregular da ramagem. A parte de trás da cabeça de Whitby balançando. Whitby. Invisível e ao mesmo tempo excessivamente visível. Uma cifra que entrava e saía de foco, parecendo ao mesmo tempo próximo e distante.


“O terror”, dissera Whitby durante a reunião da manhã, contemplando a planta e o rato morto. “O terror.” Mas estranhamente, com a fala arrastada, usando o tom de quem fornecia uma informação, não de quem reagia a algo ou expressava uma emoção.

Terror causado pelo quê? E por que dito assim, com tal entusiasmo aparente?

Mas a linguista se interpôs e conduziu a conversa para tão longe que Controle não teve como retornar àquele ponto.

— Um nome carrega consigo toda uma série de correlações — dissera Hsyu, iniciando uma versão mais antiga do seu Power Point, criada numa época diferente e, talvez, dirigida de início a uma plateia que consistia da megafauna congelada, da qual Controle lembrava de ter visto no museu de história natural. — Um conjunto de ideias relacionadas, de fatos etc. Tais associações não existem apenas na mente da pessoa que recebe o nome (formando sua identidade), mas também nas mentes dos outros membros da expedição e, assim, tornam-se disponíveis a quem quer que possa acessá-las na Área X. Mesmo que fosse por um processo que desconhecemos, e de natureza puramente especulativa. Por outro lado, “bióloga” é uma função, um subconjunto de identidade plena.

Não se fosse feito de modo correto, como a Ave Fantasma, que encarnava seu trabalho de maneira total e completa, para começo de conversa. Hsyu continuara:

— Se você pode se tornar sua função, então, teoricamente, nesse caso essas associações se afunilam, se estreitam, e isso interrompe os caminhos que dão acesso à personalidade. Talvez.

Controle, no entanto, sabia que não era essa a única razão para que os nomes fossem omitidos: era para subjugar a personalidade, com o propósito mais importante de garantir lealdade e tornar mais eficazes os condicionamentos e comandos hipnóticos. O que, por sua vez, ajudava a atenuar ou dissolver os efeitos da Área X — pelo menos essa era a justificativa que Controle encontrara nos arquivos, expressa dessa forma por James Lowry, o único sobrevivente da primeira expedição, e um homem que permanecera no Comando Sul mesmo após ter sido muito afetado e levado anos para se recuperar.

Assaltada por um pensamento súbito que não quis revelar, Hsyu virou-se bruscamente, como Grace fazia em pleno corredor:

— Sempre dizemos que “isso”, e por “isso” quero dizer o que quer que tenha dado início a esse processo e talvez utilizado as palavras de Saul Evans, parece com uma coisa ou com outra, mas não: “isso” é apenas isso mesmo. Seja lá o que for. Porque nossas mentes processam informação quase que exclusivamente através de analogia e de categorização, portanto fracassamos muitas vezes quando nos deparamos com algo que não se encaixa em nenhuma categoria e que está situado além do domínio de nossas analogias.

Controle imaginou o Power Point chegando ao fim, a série de molduras cor de mármore dando lugar a uma tela branca com a palavra “Perguntas?”.

Ainda assim, Controle entendeu a questão. Ela ecoava, de maneira distinta, em certas coisas que a bióloga dissera durante o interrogatório. Na universidade, algo nunca abandonara sua mente, algo de que ele tomou conhecimento nas matérias básicas de Astronomia: os primeiros astrônomos que consideraram aqueles pontos luminosos não como parte da tapeçaria celestial que girava em torno da Terra, mas como planetas, tiveram de desprender sua imaginação (e com ela todas as suas analogias e metáforas) de uma linha de raciocínios que vinha sendo percorrido por todas as mentes humanas há centenas e centenas de anos.

Quem ali, no Comando Sul, possuía a mente necessária para perceber algo novo? Cheney provavelmente não, àquela altura. O intelecto desassossegado dele não descobria nada novo há bastante tempo, talvez não por deficiência. Um pensamento ocorreu a Controle: a disposição de Cheney de ficar batendo com a cabeça na parede, embora nunca pudesse publicar qualquer artigo científico a respeito de tudo aquilo, era, de modo perverso, uma demonstração do quanto a diretora fora competente.

Musgo acinzentado colado aos troncos das árvores. Um falcão voando em círculos sobre um prado, por baixo de um céu que escurecia. Calor e umidade no ar, lutando contra o vento que os açoitava no trajeto.


O Comando Sul chamava a expedição mais recente de décima segunda, mas Controle fizera a contagem total e aquela tinha sido na verdade a trigésima oitava tentativa, incluindo seis “décimas primeiras” expedições. A hagiografia era clara: depois da quinta expedição real, o Comando Sul “emperrou”, como um CD arranhado, e começou uma série de repetições. A Expedição 5 tornou-se X.5.A, que foi seguida pela X.5.B e pela X.5.C, e isso se prolongou até a X.5.G. Todas as expedições, daí em diante, foram divididas por um sistema particular de medidas e introduziram variáveis na equação, a cada nova letra. Por exemplo, a série de décimas primeiras expedições foi composta exclusivamente de homens, enquanto a décima segunda, se chegasse a X.12.B e assim por diante, continuaria a ser composta apenas por mulheres. Ele se perguntou se sua mãe tinha conhecimento de algo semelhante àquilo em operações especiais, se haveria estudos secretos indicando algo a respeito de gênero que lhe escapava ao considerar a irrelevância daquele tipo de classificação. E o que fariam com alguém que não se identificasse nem como homem nem como mulher?

Controle ainda não era capaz de dizer, pelo seu exame dos relatórios naquela manhã, se essas repetições tinham se iniciado por causa de algum erro de registro e o processo fora assimilado à codificação (o que era pouco provável), ou se tinha sido uma decisão consciente da diretora, sorrateiramente incluída nas atas das reuniões. Foi algo que surgiu como se sempre tivesse estado ali. Uma necessidade de agir como se não estivessem há tanto tempo envolvidos e sem obter resultados concretos. Ou a necessidade de traçar um arco narrativo para cada conjunto de expedições, um que não revelasse como tudo aquilo estava se tornando fútil.

Durante a quinta, também, o Comando Sul começara a mentir para os participantes. Não era revelado a nenhum deles que na verdade faziam parte da Expedição 7.F ou 8.G ou 9.B, e Controle se perguntava como conseguiam manter aquilo organizado, e como a verdade teria corroído o moral de todos ao invés de estimulá-lo, trazendo para o Comando Sul uma espécie de fatalismo cínico. Que coisa peculiar essa decisão de continuar preparando a “quinta” expedição, rolando aquela pedra ladeira acima, incessantemente.

Grace apenas deu de ombros quando ele lhe perguntou sobre a transição entre a Expedição X.11.K e a X.12.A durante uma conversa na segunda-feira, que àquela altura, na quarta, parecia ter acontecido um mês atrás.

— A bióloga sabia a respeito da décima primeira expedição porque seu marido fora descuidado. Então, passamos para a décima segunda.

Seria esse o único motivo?

— Foram feitas muitas concessões em função da bióloga — observou Controle.

— Ordens da diretora — retrucou Grace —, e eu a apoiei.

E esse foi o fim dessa linha de questionamento. Grace se recusava a admitir que houvesse qualquer distância entre ela e a diretora.

E, como tantas vezes acontecia, uma mentira grande acabara conduzindo a uma série de pequenas mentiras, sob o disfarce de “mudar a codificação”, de modificar o experimento. De maneira que, quando começaram a se deparar com resultados cada vez mais insatisfatórios, a diretora passou a interferir mais e mais na composição das equipes e nas informações que lhes transmitia, e quem podia saber se isso tinha ajudado em alguma coisa? Quando se alcança determinado nível de desespero, talvez se pense que o trem está se aproximando mais depressa do que pensam os outros, e você procura embaixo do banco qualquer coisa que pareça útil, seja uma arma ou um clip de papel.


Se você fala como um cientista e anda como um cientista, em pouco tempo, para os não cientistas, você se torna um objeto de discussão, e não uma pessoa. Alguns cientistas desempenham esse papel, quase se entregam a ele, transformam-se em teses ou manuais ambulantes. Isso, porém, não se aplicava a Cheney, a despeito de suas escorregadas em jargões do tipo “entrelaçamento quântico”.

A certa altura da viagem para a fronteira, Controle começou a colecionar cheneyismos. Muitos vinham sem ser solicitados, porque ele descobriu que Cheney, depois que esquentava, detestava silêncio, e preenchia esse silêncio com uma estranha combinação de erudição e sintaxe desleixada. Tudo que Controle precisava fazer, tendo Whitby como cúmplice inocente, era não responder a uma piada e logo Cheney se apressava a respondê-las com suas próprias palavras. Meu Deus, que viagem longa.

— Sim, toleramos muito a estupidez uns dos outros. É quase tudo que nos resta.

— Não entendemos nem sequer como funcionam os organismos em nosso próprio planeta. Nem sequer identificamos todos eles. E se não tivermos a linguagem adequada para isso?

— Somos obsoletos? Acho que não. Mas não pergunte a opinião do exército. Um círculo olha para um quadrado e tudo que vê é um círculo mal desenhado.

— Como físico, o que pode ser feito quando se depara com algo que não liga para o que você faz e não é afetado pelas suas ações? Aí você começa a pensar em energia escura e fica meio maluco.

— Sim, sempre pensamos sobre isso: como podemos saber se algo está fora dos padrões comuns quando não sabemos se nossos instrumentos podem registrar a progressão? Lasers, detectores de ondas gravitacionais, raios x... Nada é útil lá. E aqui estou eu munido de uma pá, um balde, uns pedaços de elástico e de fita crepe... Sabe como é?

— E também nenhum cientista lá na Central. Não estou certo?

— Acho que é algo meio esquisito. Viver praticamente do lado disso. Eu mesmo posso dizer. Mas aí você vai para casa, e pronto, está em casa.

— Você entende de física? Não, claro que não. Como poderia?

— Buracos negros e ondas têm uma estrutura semelhante, sabia? Muito, muito semelhante, já se descobriu. Quem poderia esperar?

— Quer dizer, a gente esperaria que a Área X colaborasse pelo menos um pouco, certo? Eu teria apostado minha reputação em que ela iria cooperar pelo menos a ponto de nos permitir algumas medições precisas. Uma alteração anormal de temperatura, algo assim.

Depois, um refinamento dessa afirmação:

— Existe certo consenso entre nós, agora, por mais que sejamos poucos, de que para analisar certas coisas um objeto precisa deixar-se analisar, concordar com isso. Mesmo que implique apenas algum tipo de resposta, de reação.

Essas duas últimas declarações de Cheney foram feitas de modo meio triste, porque o fato é que apostara sua reputação no projeto da Área X, e de maneira geral o Comando Sul era agora toda sua carreira. A glória inicial do processo, a de ser escolhido, e depois as restrições, começaram a sufocá-lo como uma serpente chamada Área X, sem falar no que devia existir apenas nos seus pensamentos mais secretos, ou mesmo agitando-se nos limites de sua mente. O Comando Sul tinha sem dúvida destruído sua carreira, e talvez fosse também a razão do seu divórcio.

— Como se sente quanto a todas as informações errôneas dadas à expedição? — perguntou Controle a Cheney, para pelo menos reduzir aquele jorro de cheneyismos.

Ele sabia que Cheney exercera alguma influência nessa tática de desinformação.

Cheney franziu a testa, dando a entender que a pergunta de Controle equivalia a criticar a pintura de um carro que acabara de sofrer um acidente terrível. Seria ele um desmancha-prazeres, querendo acabar com sua jovialidade criativa e incontrolável? Jovialidade era algo que deixava Controle quase sempre incomodado. Parecia sempre um pretexto, desde os vestiários de futebol da escola, para um blá-blá-blá que tanto podia ocultar pequenos quanto grandes crimes.

— Na verdade... não era... desinformação — respondeu Cheney, e ficou com uma cara sombria por algum tempo, escolhendo as palavras. Talvez achasse que aquilo era um teste. De lealdade, de comportamento, de rigidez moral. Mas as palavras vieram logo: — É mais uma questão de criar uma história ou narrativa, para lhes servir de guia nas partes mais difíceis. Uma âncora.

Como um farol que os distrai das anomalias topográficas, um farol que pela sua própria função parecia feito para oferecer segurança. Talvez Cheney usasse essa história como justificativa para aquele conto, ou esse conto como justificativa para aquela história, mas Controle duvidava que a diretora tivesse visto as coisas daquela maneira, assim como uma bióloga com apenas parte da memória.

— Meu Deus, que viagem longa — disse Cheney em meio ao silêncio.


009: PROVAS

Eles acabaram abordando o assunto do rato e da planta, durante a reunião em que discutiram a parede por trás da porta.

— O que me dizem desse rato e dessa planta? — perguntara Controle para ver se alguém fraquejava. — Será outro memorial?

Tanto a planta quanto o rato continuavam no vaso, não tinham ainda saltado para abocanhar o pescoço de ninguém, mas mesmo assim Hsyu não tirou os olhos deles durante toda a reunião. Whitby, no entanto, limitou-se a ignorá-los, e parecia um gato pronto para pular na outra direção ao menor sinal de agressividade vindo do recipiente.

— Não, não era bem isso — admitiu Grace, depois de um silêncio. — Ela estava tentando matar a planta.

— O quê?

— A planta não morre.

Ela disse isso com revolta, como se fugir à ordem natural das coisas não fosse um milagre, mas uma afronta.

A diretora assistente fizera Whitby listar todas as tentativas horripilantes de destruí-la que empregaram, as quais incluíam punhaladas, queimaduras, privação do solo e da água, inoculação de parasitas, negligência, emanação de vibrações hostis, violência verbal e física, e muito mais. Whitby reencenou algumas dessas tentativas com uma energia descomunal, maníaca.

Registros detalhados foram enviados às pressas para a Central, e talvez naquele mesmo instante houvesse cientistas envolvidos na decifração dos segredos da planta. Mas a Central não dera nenhum retorno, e nada que a diretora fizesse era capaz de matar a criatura, nem mesmo trancá-la numa gaveta. Só que alguém tinha se apiedado e dado água para ela, talvez até posto ali um rato morto por valor nutricional. Controle olhou com suspeita para Whitby e Grace. A ideia de que um deles tivesse realizado um gesto de piedade fazia apenas com que simpatizasse com eles mais um pouquinho.

Hsyu interrompeu:

— Ela a retirou das salas de amostras, acredito. Originalmente é da Área X. Uma planta bastante comum, mas não sou botânica.

Então vamos lá, por favor, para as salas de amostras.

Mas Hsyu, por ser linguista, não tinha permissão da segurança.


A alguns quilômetros da fronteira a paisagem começou a mudar, e Whitby teve de diminuir a velocidade para uns quinze quilômetros por hora, à medida que a estrada se estreitava e se tornava mais traiçoeira. Os escuros pinheiros e as terras pantanosas foram dando lugar a uma espécie de floresta subtropical. Controle podia avistar os talos das samambaias na forma de pontos de interrogação e as surpreendentes nuvens de delicadas efeméridas de asas pretas, conforme atravessavam as sucessivas pontes de madeira que cruzavam um emaranhado de ribeirões. O cheiro da terra também tinha mudado, de úmido e saturado para algo tão interrogativo quanto os talos das samambaias: um cheiro fresco, causado por um dossel de folhas mais espesso. Estavam, ele só percebeu depois, circulando um enorme sumidouro, o tipo de “anomalia topográfica” que produzia um hábitat completamente diverso. Parques em volta de sumidouros naquela área eram, por algum motivo, um passatempo muito apreciado entre os adolescentes; às vezes eles vinham de Hedley com latas de cervejas e iam direto para lá encontrar as garotas. Os únicos sumidouros que ele lembrava de ter visto eram vastas lixeiras com latas de cerveja vazias e camisinhas usadas. O tipo de lugar em que a polícia está sempre de olho, porque era raro o final de semana que não acontecia uma briga.

Ainda mais surpreendente: era possível ver coelhos brancos esgueirando-se com presteza pelas margens das pequenas lagoas de água parada, entre espaços úmidos onde a decomposição acontecia à vontade e de onde se erguiam cogumelos rosa de aspecto ancestral.

O que fez Controle interromper um dos monólogos gaguejados de Cheney.

— Isso aí é o que estou pensando?

O alívio de Cheney ficou evidente por Controle ter feito aquela pergunta.

— Sim, são os verdadeiros descendentes do experimento. Os que fugiram. Eles se reproduzem... bem, como coelhos. Houve uma tentativa de erradicação, mas estava consumindo muitos recursos, de modo que agora deixamos rolar.

Controle acompanhou o avanço de um bicho enorme, mais corpulento ou corpulenta que os demais, que tentava escalar o terreno com pulos e saltos de todo tipo. Havia algo de desafiador em seus passos. Ou talvez fosse Controle que estivesse projetando isso nele, assim como parecia estar projetando nos demais uma imobilidade e atenção peculiares.

Whitby entrou na conversa inesperadamente:

— Coelhos de três olhos, e que não vomitam.

Por um instante Controle, pego de surpresa, atribuiu àquilo mais significado que o necessário.

— Sabe, é um bom lembrete para agirmos com humildade — disse Cheney, como um rolo compressor avançando para passar por cima de Whitby. — Muda a nossa perspectiva. Faz a gente se sentir muito pequeno. Algo assim.

— E se alguns deles tiverem voltado lá de dentro?

— O quê?

Controle achou que Cheney tinha escutado, mas repetiu a pergunta.

— Está querendo dizer do outro lado da barreira? Que eles entraram e voltaram? Bem, isso não seria nada bom. Situação delicada. Porque sabemos que a esta altura eles já se espalharam bastante. Os mais espertos, capazes de sobreviver. E o fato é que alguns conseguiram fugir da zona de confinamento e foram capturados por gente que os vendeu como animais de estimação.

— Você está me dizendo que é possível que a prole desse experimento de quinze anos atrás pode estar nas residências das pessoas? Como animais de estimação? — Controle estava atônito.

— Eu não usaria exatamente esses termos, mas a ideia é mais ou menos essa.

— Formidável. — Foi o único comentário de Controle, horrorizado.

— Nem tanto — retrucou Cheney com firmeza. — O mundo funciona assim. Ou pelo menos as espécies invasoras de todos os cantos. Posso lhe vender um píton mortal que tem a mesma motivação.

Instantes depois, Whitby falou de um só fôlego mais palavras que durante toda a viagem:

— Os poucos que são marrons e brancos são filhotes dos coelhos brancos com coelhos nativos do pântano. Nós os chamamos de Especiais da Fronteira, e os soldados atiram neles e os comem. Mas não os totalmente brancos, o que para mim não faz sentido. Por que atirar em qualquer um deles?

Por que não atirar em todos? Por que comê-los?


Cinquenta mil amostras repousavam nas compridas salas que formavam o lado esquerdo do segundo andar do U, para quem olhava do estacionamento. Foram lá antes do almoço, deixando Hsyu para trás. Tiveram de vestir trajes brancos de proteção contra ameaças biológicas, com luvas pretas, de modo que Controle vestiu luvas similares às que o tinham inquietado tanto no setor de ciência. Esta era sua vingança, enfiar as mãos nelas e fazê-las de fantoches, mesmo sem gostar da textura emborrachada.

A atmosfera lá dentro lembrava o interior de uma catedral, e, como se o setor de ciência tivesse funcionado como um ensaio para aquele momento, a sequência de escotilhas era a mesma. Deveria estar tocando uma música etérea, celestial, e a maneira como a luz fendia o ar fazia com que Controle visse, em alguns dos fachos transversais, partículas flutuantes de poeira. Havia algumas arcadas e paredes de apoio que davam ao recinto uma dimensão numinosa, intensificada pelo pé-direito muito alto.

— Este é meu lugar preferido no Comando Sul — dissera Whitby, o rosto brilhando por dentro do elmo transparente. —Existe aqui uma sensação de calma, de segurança.

Será que ele se sentia inseguro em outras áreas do edifício? Controle quase fez essa pergunta a Whitby, mas percebeu que ela cortaria o clima. Desejou ter sua música neoclássica nos fones de ouvido para completar a experiência, mas as notas já soavam em sua cabeça de qualquer forma, como um anseio estranho.

Ele, Whitby e Grace caminharam em seus trajes espaciais, como deuses vindos de longe pisando num território escolhido. Mesmo que as vestimentas fossem volumosas, o tecido leve parecia nem tocar-lhe a pele, e Controle se sentia quase flutuar, como se a gravidade fosse diferente ali. O traje tinha um cheiro de suor e menta, mas ele tentou não pensar nisso.

As fileiras de amostras proliferavam e se estendiam, num efeito multiplicado pelos espelhos que forravam as divisórias entre cada dois corredores. Todos os tipos de plantas, pedaços de casca, libélulas, carcaças secas e congeladas de raposas e ratos-almiscarados, cocô dos coiotes, uma seção arrancada de um velho barril. Musgo, líquen e fungo. Raios de rodas e por entre eles os olhos reluzentes de três rãs encarando o nada. Ele tinha esperado, de certo modo, um laboratório como o de Frankenstein, cheio de bezerros de duas cabeças preservados em formol e algum mordomo horrendo e corcunda caminhando apressadamente à frente, explicando-lhes tudo com frases incompreensíveis cheias de boas intenções. Mas ali estavam apenas Whitby e Grace, e numa catedral como aquela nenhum dos dois se sentia impelido a explicar coisa alguma.

A análise realizada pelos cientistas do Comando Sul das amostras mais recentes, recolhidas seis anos antes e trazidas pela expedição X.11.D, mostrava que nenhum traço de toxicidade produzida pelo homem podia ser encontrado na Área X. Nem um só traço. Nenhum metal pesado. Nenhum resíduo industrial ou agrícola. Nada de plástico. O que era impossível.

Controle espiou pela porta que a diretora assistente abriu para ele.

— Bem, aqui estamos — disse ela.

Inexpressivamente, ele achou. Mas lá estavam de fato na sala principal, com um pé-direito ainda mais alto e com mais colunas, olhando as fileiras intermináveis de estantes e mais estantes abrigadas em um único cômodo enorme.

— O ar é puro aqui dentro — disse Whitby. — Você pode ficar chapado somente respirando o oxigênio.

Nem uma só amostra havia apresentado qualquer irregularidade: estruturas celulares normais, bactérias, níveis de radiação, tudo que fosse aplicável. Mas ele tinha lido os estranhos comentários feitos por cientistas que receberam um convite e compareceram ao local, cercados de segurança, e examinaram as amostras sem receber muitas informações sobre sua origem. A ideia geral desses comentários era de que, quando afastavam o rosto do microscópio, os espécimes se modificavam; e quando observavam de novo, eles se reconstituíam para parecer normais.

— Aí está.

Para Controle, naquele rápido vislumbre, olhando por cima dos objetos espalhados à sua frente, aquilo parecia um mostruário de curiosidades: cascas de besouro ressequidas, estrelas-do-mar quebradas e outras coisas em vasos, garrafas, frascos e caixas de todos os tamanhos.

— Alguém já tentou comer alguma amostra? — perguntou ele a Grace.

Se tivessem simplesmente devorado a planta imortal, ele tinha certeza de que ela não teria voltado.

— Shhh — disse ela, exatamente como se estivessem numa igreja e ele tivesse falado muito alto ou atendido o celular.

Mas ele percebeu que Whitby o olhava de um jeito estranho, a cabeça inclinada para um lado dentro do traje. Será que Whitby tinha experimentado as amostras? Apesar do seu terror?

Ao mesmo tempo, ele lembrava que Hsyu e outros não biólogos jamais tinham visto a catedral das amostras. Imaginou o que seriam capazes de observar nas estrias do pelo de um rato-do-pântano morto ou nos olhos vítreos e opacos de um falcão, com seu bico recurvo. Que sussurros e falas se verbalizariam inesperadamente por causa do corte transversal de um musgo de árvore ou uma casca de cipreste. Os padrões que poderiam ser encontrados em galhos e folhas.

Era uma ideia absurda demais para ser colocada em palavras, pelo menos enquanto ele ainda era um recém-chegado. Talvez, até mesmo depois de algum tempo no cargo — se é que teria essa sorte, ou esse azar.

Então ali estava ele.

Quando a diretora assistente fechou a porta e eles se encaminharam para a próxima seção da catedral, Controle teve de morder o polegar para reprimir uma risada. Tivera a visão de amostras dançando do outro lado da porta, livres do terrível escrutínio do olhar humano. “Nossa imaginação banal e assassina”, como a bióloga dissera num raro momento de descontração diante da diretora, antes da décima segunda expedição.

* * *

Depois, no corredor com Whitby, ainda meio esgotado pela experiência, Controle perguntou:

— Era essa a sala que você queria me mostrar?

— Não — respondeu Whitby, sem dar mais explicações.

Será que ele ofendera o sujeito quando se recusou a acompanhá-lo na primeira vez? Mesmo que não fosse esse o caso, Whitby tinha claramente retirado o convite.


A visão fugaz de antigas vilas agora cobertas de kudzu e outras trepadeiras se decompondo: um pequeno campo de golfe com temática pirata abandonado há muito tempo. Os gramados foram cobertos por folhas e lama. Os conveses das naus piratas se erguiam em ângulos excêntricos como se fossem ondas compactas de vegetação, mastros quebrados ao meio e que desapareceram na penumbra quando a chuva se abateu. Um posto de gasolina desmoronado surgiu adiante, o teto partido pela queda de troncos, o calçamento tão arrebentado pelas raízes nodosas que se dividira em pedaços com a textura e consistência lembrando a de brownies. As silhuetas difusas e irregulares das casas e os prédios de dois andares vistos através das árvores mostrava que houvera moradores ali antes da evacuação. Interferia-se o menos possível no terreno nas imediações da barreira, portanto esses lugares abandonados só poderiam ser destruídos ao longo de décadas pela chuva e pelo apodrecimento.

No trecho final até chegar à barreira, Whitby guiava por um terreno tão baixo que Controle teve certeza de estarem abaixo do nível do mar, antes de voltarem a subir um pouco e galgar uma colina baixa sobre a qual espalhavam-se barracas verdes e desmazeladas, um prédio de tijolos com aparência um pouco mais oficial para a administração e o controle militar, e a base local do Comando Sul.

De acordo com labiríntico gráfico hierárquico, que lembrava várias serpentes robustas fodendo umas com as outras, o Comando Sul estava ali sob jurisdição do exército, razão pela qual suas instalações, que ficavam fechadas entre uma expedição e outra, pareciam uma fileira de tendas fabricadas com glacê de limão. O que equivale a dizer que pareciam com as igrejas que Controle conheceu na adolescência, em geral por causa de uma garota com quem estivesse saindo. A calcificação dos revivalistas e renascidos assumia muitas vezes essa forma: a de alguma coisa temporária que foi ficando mais sólida e tornou-se permanente. Assim, ora uma série de tendas feitas de pergelissolo os saudavam, ou então enormes ondas congeladas para sempre. Essa visão era extraordinária e surpreendente, como se as instalações fossem um bando de biscoitos recheados enormes e fossilizados, uma iguaria dos saudosos anos da juventude.

O quartel-general do exército ficava numa seção em forma de redoma entre as barracas, depois do último posto de controle, mas parecia não haver ninguém em volta, exceto alguns soldados de pé no lamaçal revolvido que extraoficialmente servia de estacionamento. Caminhavam sem dar atenção à chuva fina que caía, falando de maneira entediada, mas intensa, enquanto fumavam cigarros com cheiro de cereja. “Como quiser.” “Ah, cai fora.” Tinham a aparência de homens que não sabem por que estão montando guarda, ou sabem, mas tentam esquecer.

A comandante da fronteira, Samantha Higgins — instalada num aposento não muito maior do que um almoxarifado e igualmente deprimente —, estava temporariamente fora quando eles a procuraram. Seu ajudante de ordens apresentou um pedido de desculpas, declarando que ela precisou “ausentar-se” e não poderia “vir recebê-los pessoalmente”. Quase como se eles fossem uma encomenda postal cujo recibo ela tivesse de assinar.

O que foi até bom. Ocorreram conflitos entre as duas instituições após o retorno da última das décimas primeiras expedições: os procedimentos foram alterados, as gravações de segurança examinadas vezes sem conta. Tinham voltado a checar toda a barreira à procura de pontos de saída, monitorando sinais de temperatura, oscilações nos fluxos de ar, qualquer coisa. Não encontraram nada.

Portanto Controle pensava que “comandante da fronteira” era um título inútil ou inadequado, e não se importava muito se Higgins estava ou não ali, por mais que Cheney parecesse tomar aquilo como uma afronta pessoal:

— Eu disse a ela que era importante. Ela sabia muito bem que era importante.

Enquanto isso, Whitby aproveitava a oportunidade para acariciar uma samambaia, demonstrando uma sensibilidade para texturas até então despercebida.


Controle sentiu-se meio idiota perguntando a Whitby o que ele queria dizer com “o terror”, mas não podia simplesmente deixar passar. Sobretudo depois de ler por alto os arquivos de teorias que Whitby lhe entregara pela manhã, sobre os quais também queria falar. Controle pensou nas teorias como “morte lenta por”, cada uma num contexto: Morte lenta por alienígenas. Morte lenta por universo paralelo. Morte lenta por força maligna de natureza desconhecida, viajando no tempo. Morte lenta por invasão de um planeta alternativo. Morte lenta por tecnologia radicalmente divergente ou por biosfera oculta ou simbiose ou iconografia ou etimologia. Morte por isso e aquilo. Morte por indiferença ou por inferência. Sua favorita: “Organismo terrestre habitante da superfície, previamente desconhecido.” Escondendo-se onde, durante todos esses anos? Num lago? Numa fazenda? Nas máquinas de cassino?

Mas ao ouvir a própria risada, percebeu que era um princípio de histeria, e entendeu a natureza de seu cinismo: um mecanismo de defesa para não ter de pensar em nada daquilo.

A morte por erguimento de sobrancelha, também: uma boa dose de, implícito ou ditos diretamente, “sua teoria é ridícula, sem base, não serve para nada”. Ressurgiam fantasmas de antigas rixas entre departamentos, e eles brotavam sem ninguém esperar, no meio de uma frase. Ele se perguntava em que medida o companheirismo imperava ali ao longo dos anos — se a careta de reprovação de um arqueólogo diante de uma afirmação aparentemente razoável por parte de um cientista ambiental valia de alguma coisa, ou significava apenas que ele estava observando o desenrolar de um fim de jogo, o desfecho de uma série de acontecimentos iniciados vinte anos antes.

Antes da viagem para a fronteira, abrindo mão do seu horário de almoço, Controle decidira chamar Whitby à sua sala para esclarecer aquela história do “terror” e falar sobre algumas das teorias.

Whitby sentara na beira da cadeira em frente à mesa de Controle, na expectativa, atento. Chegava quase a vibrar como um diapasão. Isso deixou Controle pouco à vontade para perguntar o que planejava, mas mesmo assim perguntou.

— Por que falou em “o terror”, ainda há pouco? E depois repetiu?

Whitby exibiu uma expressão totalmente vazia. Em seguida seu rosto se iluminou, a ponto de parecer que ele levitaria a qualquer momento. Parecia um beija-flor em plena polinização quando explicou:

— Não é “terror”. Não é “terror” de modo algum. É “terroir”.

Dessa vez ele caprichou na pronúncia da palavra para não haver confusão.

— O que é... terroir, então?

— Um termo relativo a vinho — dissera Whitby com tal entusiasmo que Controle imaginou se teria um emprego paralelo como sommelier em algum restaurante pretensioso às margens do rio em Hedley.

No entanto aquela animação súbita animou Controle também. Havia tanta indiferença e tanta coisa recitada de cor no Comando Sul que ver Whitby tão empolgado com uma ideia lhe deu algum ânimo.

— O que quer dizer isso? — perguntou, embora ainda sem saber se encorajar Whitby era uma boa ideia.

— O que quer dizer isso? — repetiu Whitby. — Quer dizer o conjunto de características específicas de um lugar. Sua geografia, geologia e clima, que, ao reagirem com as tendências genéticas de um tipo de uva, produzem uma safra extraordinária, profunda, original.

Controle estava se sentido simultaneamente confuso e entretido.

— E como isso se aplica ao nosso trabalho?

— De todas as formas — respondeu Whitby, e seu entusiasmo no mínimo duplicou. — A tradução mais direta de terroir é “senso de lugar”, e isso quer dizer a soma dos efeitos de um ambiente específico, na medida em que influencia as qualidades de um produto. Sim, pode se aplicar a vinho, mas imagine aplicar esse critério quando pensamos na Área X?

Controle pegou no ar a empolgação de Whitby e disse:

— Quer dizer que você estudaria tudo a respeito da história tanto natural quanto humana daquele lugar, além de todos os demais elementos? E talvez pudesse, quem sabe, achar a resposta na confluência disso tudo?

Comparadas à ideia do terroir, as outras teorias que foram apresentadas a Controle pareciam espalhafatosas e obtusas.

— Exatamente. O ponto crucial no conceito de terroir é que não existem dois terrenos iguais. Não há duas vinhas que sejam exatamente a mesma coisa, porque a combinação de elementos nunca é a mesma. Algumas variedades não podem ocorrer em determinados locais. Mas para chegar a conclusões é preciso conhecer o terreno a fundo.

— E isso já não está sendo feito?

Whitby deu de ombros.

— Em parte. Só em parte. Não estão levando o espaço inteiro em consideração, eu acho. Acredito que há uma ênfase exagerada no farol, na torre, no acampamento, nesses elementos isolados que parecem se destacar em relação à paisagem, enquanto a paisagem propriamente dita continua ignorada. Assim como a teoria de que a Área X não poderia ter se formado em nenhum outro local... Embora essa teoria seja altamente especulativa e talvez se baseie principalmente nas minhas próprias observações.

Controle assentiu, incapaz de se livrar de um ceticismo inflexível. Será que terroir podia ser uma abordagem mais útil que as outras? Se algo fora do alcance da humanidade decidira iniciar um processo sem intenção de permitir que os humanos o reconhecessem ou entendessem, então o terroir significaria apenas uma espécie de autópsia, ou admissão dos limites dos sistemas humanos. Era possível mapear um processo por inteiro — digamos, um desembarque numa praia, ou uma invasão — somente depois de acontecido, e ainda assim não saber quem ou por quê. Controle teve vontade de dizer a Whitby: “Uma plantação de parreiras é mais simples do que a Área X”, mas se conteve.

— Posso lhe mostrar alguns dos meus achados pessoais — disse Whitby. — Posso mostrar o começo de tudo.

— Excelente — respondeu Controle, concordando com entusiasmo um tanto exagerado, aliviado quando Whitby tomou o comentário como o encerramento da conversa e saiu sem demora, mas não tão aliviado ao ver que ele levara o elogio ao pé da letra.

Toda grande teoria unificada é passível de falhas. Por exemplo, o esforço excessivo da Central em fazer conexões entre milícias de extrema-direita sem qualquer relação entre si. Ele lembrou que seu pai costumava inventar explicações sobre como um detalhe das suas esculturas heterogêneas remetia a outro detalhe, e como todos eles faziam parte de uma narrativa mais ampla. Todos ocupavam o mesmo espaço, tinham sido postos ali pelo mesmo criador, mas não foram feitos para dialogar uns com os outros. Assim como não foram feitos para enferrujar e estragar no fundo de um quintal. Mas era o modo que seu pai tinha encontrado para racionalizar o fato de eles continuarem juntos, sob o sol quente e a chuva, mesmo protegidos por lonas.

A barreira surgira de manhã cedinho, num dia, numa data, que ninguém fora do Comando Sul lembrava ou celebrava. Aquele evento único e inexplicável tirou a vida de cerca de mil e quinhentas pessoas. Como isolar fantasmas na composição de um terroir? Será que eles deixam o sabor mais encorpado ou o tornam mais seco, irreconciliável, como pó de giz? O gosto na boca de Controle era amargo.


Se terroir significava uma confluência, então a entrada na Área X através da barreira era a última das confluências. Era também o mais secreto dos segredos, no sentido de que não havia registros visuais do ponto de entrada disponíveis a ninguém. A menos que você estivesse lá, olhando diretamente para ela, nunca poderia experimentá-la. Também não ajudava nada se estivesse olhando para ela através de uma chuva torrencial, os sapatos todos empapados de lama e somente um guarda-chuva para proteger três pessoas.

Eles pararam, encharcados e morrendo de frio, perto do fim de uma trilha que partia da área das barracas na direção da crista que se elevava diante do enorme sumidouro, alcançando um terreno seguro. Estavam olhando para o lado direito de uma estrutura de madeira vermelha, alta, sólida, que assinalava o local exato, a largura e a altura da passagem situada além dela. A trilha por onde chegaram corria paralela a uma linha pintada no chão e constantemente renovada, para indicar que a fronteira começava cinco metros adiante. Se alguém chegasse a três metros dela, lasers de um sistema de segurança oculto transformariam o intruso em churrasquinho. Afora isso, o exército tinha deixado um mínimo de sinais de sua presença; ninguém sabia o que poderia ou não poderia influir no terroir. Naquele ponto, os índices de toxicidade eram quase iguais aos índices de toxicidade do interior da Área X, ou seja, próximos de zero.

Quanto ao terror propriamente dito, o nível de Controle tinha aumentado alguns pontos por causa dos relâmpagos que estalavam no céu, além dos trovões que ribombavam como se um gigante de mau humor estivesse arrancando árvores pela raiz. Mesmo assim persistiram, Cheney segurando o guarda-chuva de listras azuis e brancas, com o braço totalmente esticado para cima, enquanto Controle e Whitby se apertavam contra ele, os três tentando avançar com passos sincronizados, sem tropeçar. Tudo inútil diante da chuva, que caía forte e oblíqua.

— A entrada não pode ser vista de lado — disse Cheney erguendo a voz, a testa molhada e suja de lama e de folhas. — Mas você vai vê-la já. A trilha dá uma pequena volta, para poder chegar a ela vindo bem de frente.

— Ela projeta luz? — perguntou Controle, desferindo um forte tapa numa coisa vermelha de seis patas que subia por sua calça.

— Sim, mas você não vê nada estando de lado. Não é possível perceber nada de sua presença ali.

— Tem cerca de sete metros de altura e quatro de largura — informou Whitby.

— Ou, como costumo dizer, sessenta coelhos de altura e trinta e seis de largura — disse Cheney.

Controle, tomado de uma generosidade repentina, soltou uma gargalhada ao ouvir aquilo e imaginou que isso trouxe um rubor de felicidade às feições de Cheney, embora mal pudessem se ver entre lama e chuva.

A área tinha um aspecto de santuário, mesmo embaixo daquele aguaceiro. Principalmente porque a chuva parou de forma abrupta à altura da barreira, embora o terreno não tivesse sofrido interrupção.

Por algum motivo, Controle tivera a expectativa de um tipo de descontinuidade, como quando uma imagem é impressa em duas folhas e suas bordas não alinham. Em vez disso, parecia apenas que eles estavam patinhando e chafurdando no interior de uma estufa chuvosa, e vendo, por vidros invisíveis, a luz do sol se espalhando além.

Avançaram por entre as plantas exuberantes, num espaço tomado por uma multidão de vida aérea, aves, insetos, e uma ou outra corça visível a meia distância, em meio ao véu da chuva. Hsyu dissera algo durante a reunião sobre presumir coisas a respeito da terminologia, e ele respondeu, envolto em um silêncio ensurdecedor: “Tipo quando chamamos alguma coisa de ‘fronteira’?” E voltando ao não uso de nomes próprios pelos membros da expedição: E se você acrescentasse personalidade e também outros detalhes, além da mera função, e isso produzisse um quadro diferente?

Depois de alguns minutos chapinhando nas poças de lama, fizeram uma curva e então pararam diante da estrutura de madeira.

Ele não tinha se preparado para ver nada belo, mas era belo.

* * *

Além da estrutura de madeira vermelha, Controle podia ver um espaço vagamente retangular formando um arco no topo, através do qual rodopiava uma luz branca, cintilante, rápida, uma luz que zumbia e piscava e parecia sempre prestes a se extinguir, mas nunca era... Havia nela um efeito como de espiral, fazendo-a circular em volta de si mesma. Se você piscasse depressa, teria a impressão de que a luz consistia em oito ou dez raios de uma roda, girando velozes, mas isso não passava de ilusão.

A luz não se parecia com nada que ele já tivesse visto. Não era ofuscante nem suave. Não era de uma beleza irreal como as luzes em volta das fadas nos filmes ruins. Não era a luz indefinida dos comerciantes e mágicos ou qualquer um que queira utilizar o recurso das sombras. Não tinha a mesma claridade da luz na catedral das amostras, que revelava tudo, mas também não era sombria, untuosa ou qualquer outro adjetivo que pudesse lhe ocorrer. Imaginou-se contando aquilo ao pai, mas, na verdade, era seu pai que teria sido capaz de descrever para ele a natureza daquela luz.

— Mesmo sendo um corredor bem largo e de pé-direito alto, você tem que rastejar com sua mochila o mais perto possível do meio. O mais afastado possível das laterais — disse Cheney, confirmando o que Controle já tinha lido nos resumos. Como gatos com fita crepe às costas, arrastando-se de barriga para baixo. — Não importa o que você pensa de espaços abertos ou fechados, assim que entrar ali vai achar tudo estranho, porque você se sente ao mesmo tempo como se estivesse atravessando um vasto campo aberto e como se estivesse num espaço muito estreito junto a um abismo, sem grades, como se pudesse cair a qualquer instante. Então você está simultaneamente num espaço confinado e num espaço sem limites. É uma das nossas razões para hipnotizar os membros das expedições.

Sem falar que — e de fato Cheney não falou — o líder da expedição em todos os casos tinha de passar pela experiência sem o benefício da hipnose, e que alguns experimentavam visões estranhas lá dentro.

“Era como estar em um daqueles aquários, a água cobrindo a cabeça, mas era como se fosse uma água mais turva, de modo que não posso dizer o que nadava ali. Ou não era a água que era turva, as criaturas é que eram.” “Eu vi constelações e tudo estava bem perto e bem longe ao mesmo tempo.” “Havia uma planície vasta como aquela onde cresci, e ela não parava de se expandir, até que tive que olhar para o chão porque a minha sensação era de estar inchando mais e mais, e ia acabar explodindo.” Tudo, é claro, poderia muito bem ter ocorrido apenas na mente dos examinados.

O comprimento total daquela passagem tampouco correspondia à largura da barreira invisível. Declarações dos que voltaram de outras expedições indicavam que a passagem fazia várias curvas, enquanto outros diziam que era reta. A questão é que variava, e o tempo necessário para passar por ela e chegar à Área X não podia ser previsto, exceto dentro de um parâmetro, uma “norma” de três a dez horas no total. Justamente por isso, um dos primeiro receios da Central foi que esse ponto de entrada sumisse, mesmo havendo opiniões contrárias. Entre os arquivos sobre a fronteira, Controle tinha achado uma citação significativa de James Lowry: “...quando vi a porta, parecia que ela sempre estivera ali, e que estaria sempre ali mesmo que não existisse a Área X”.

Aparentemente, a diretora achara que a fronteira estava avançando, mas não havia provas dessa ideia. Existia um comentário num despacho feito pelo escalão mais alto da cadeia de comando sugerindo que talvez a diretora estivesse apenas tentando conseguir mais atenção e verbas para uma “agência em estado terminal”. Agora que via a entrada, Controle imaginou como alguém seria capaz de entender o significado de “avançando”.

— Não olhe diretamente para ela por muito tempo — advertiu Whitby. — Ela costuma puxar as pessoas.

— Vou tentar — disse Controle.

Mas era tarde demais, e seu único consolo era saber que, se começasse a caminhar naquela direção, Whitby ou Cheney o impediriam. Ou então os lasers.

A luz revoluteante derrotou todas as suas tentativas de evocar a imagem da bióloga. Ele não conseguia imaginá-la ali do seu lado, seguindo os outros três membros da décima segunda expedição para dentro daquela luz. Na ocasião, ao chegar àquele ponto, ela já deveria estar sob influência hipnótica. A linguista já teria deixado a expedição. Seriam apenas elas quatro, com suas mochilas, prontas para atravessar aquela luz impossível. Somente a diretora estaria vendo tudo com olhos limpos. Se Controle examinasse bem as anotações manuscritas, se escavasse as camadas exteriores até chegar ao seu cerne, seria capaz de voltar aqui e reconstituir os pensamentos da bióloga, suas emoções exatas naquele instante?

— Como foi possível que membros da última décima primeira, assim como os da décima segunda, pudessem sair da Área X sem serem vistos? — perguntou ele a Cheney.

— Deve haver outro ponto de saída que ainda não fomos capazes de localizar.

O objeto, observou, ainda não cooperava com eles. Controle teve uma visão de seu pai na cozinha, quando ele tinha quatorze anos, amassando morangos podres no fundo de um copo e depois pondo nele um cone de papel, para atrair as mosquinhas das frutas que infestavam a casa.

— Por que podemos ver o corredor? — perguntou Controle.

— Não sei se entendi sua pergunta — disse Cheney.

— Se ele é visível, então é porque queriam que o víssemos.

Talvez. Quem podia saber? Cada comentário impensado de Controle parecia trazer (era a impressão que ele tinha) um eco embutido, como se as observações banais feitas no passado por outros visitantes e funcionários novatos continuassem pairando no ar, tentando se misturar com as mais parecidas a elas, e de vez em quando encontrando uma réplica perfeita de si mesmas.

Cheney fez uma careta e depois admitiu, a contragosto:

— Isso é uma teoria. É uma teoria, sem dúvida. Não posso dizer que não é.

Um pensamento perturbador: O que poderia surgir através de um corredor com sete metros de altura e quatro de largura?

Ficaram ali por um longo período, deixando o tempo passar, mas sem dar-lhe atenção, e sem se importar com a chuva. Whitby ficou um pouco afastado, deixando-se ensopar, fazendo pouco do guarda-chuva. Por trás deles, através da trovoada, o ruído das águas dos riachos que escorriam para dentro do sumidouro, do outro lado da colina. E um pouco mais adiante, a luz de um dia ensolarado e sem aguaceiro.

Enquanto isso Controle tentava encarar aquela luz faiscante, aquela luz que dançava.


010: QUARTA FENDA

O terroir voltou a se insinuar em seus pensamentos quando, mais tarde, enquanto se secava, Controle recebeu as transcrições do seu interrogatório da manhã com a bióloga, a ida até a fronteira girando como um caleidoscópio em sua cabeça. Com alguma relutância, acabara de jogar no lixo o rato morto e repatriar a planta à catedral das amostras. Fora preciso bastante força de vontade para fazer aquilo e para fechar a porta, ocultando aquele sermão toscamente garatujado na parede. Ele detestava pensar nas coisas em termos de superstição, mas continuava com uma sensação de dúvida — de que tinha cometido um erro, de que a diretora deixara tanto o rato quanto a planta na gaveta por um motivo, uma espécie de estranha proteção contra... contra o quê?

Controle ainda não sabia, enquanto fazia uma pesquisa na internet à procura de referências sobre o caracol Phorus, a que Ave Fantasma havia se referido. A busca revelou que ela recitara quase palavra por palavra um velho manual de um obscuro vigário e naturalista amador. Algo que ela devia ter lido no tempo de faculdade, associado a alguma lembrança que ressurgira. Ele não considerou que aquilo tivesse qualquer significado, exceto o óbvio: a bióloga o estava comparando a um caracol desajeitado.

Então ele folheou a transcrição, que de algum modo o confortou. A certa altura do interrogatório, Controle, jogando indiretas, desviou o assunto bruscamente para longe da torre e do farol, e perguntou sobre o retorno da bióloga.

Pergunta: O que você deixou naquele terreno baldio?

E se, especulou ele agora em sua mesa — ainda ignorando as páginas manchadas de água na gaveta bem ali do lado —, o terreno baldio fosse um terroir relacionado ao terroir que era a Área X? E se alguma confluência entre uma pessoa e um lugar fosse mais significativa do que uma simples volta para casa? Seria preciso ordenar uma escavação arqueológica completa naquele terreno? E quanto às outras duas, a antropóloga e a topógrafa? Atolado nos mistérios do Comando Sul, ele não tivera tempo de se informar sobre elas nos últimos dias. Sentiu uma gratidão ressentida por Grace ter facilitado seu trabalho, mandando-as para longe.

Enquanto isso, a bióloga respondia à sua pergunta na página impressa.

Resposta: O que eu deixei? Tipo o quê? Um colar com um crucifixo? Uma confissão?

P: Não.

R: Bem, por que não me diz o que acha que eu deixei lá?

P: Sua educação?

Isso lhe valeu uma risada, ainda que sarcástica, seguida por um suspiro longo e fatigado que pareceu expelir todo o ar que ela tinha nos pulmões.

R: Já disse que não aconteceu nada lá. Acordei como se fosse de um sonho sem fim. E eles foram me buscar.

P: Você sonha? Quero dizer, atualmente.

R: E de que isso me ajudaria?

P: Como assim?

R: Eu só sonharia com a minha saída daqui.

P: Quer que eu lhe conte alguns dos meus sonhos?

Ele não sabia por que fizera essa pergunta. Não sabia o que dizer a ela. Seria capaz de lhe contar a respeito de sua queda interminável sobre as águas da baía, na goela dos leviatãs?

Para sua surpresa, ela dissera:

R: Você sonha com o quê, John? Me conte.

Foi a primeira vez que ela pronunciou seu nome, e ele tentou odiar o modo como aquilo produziu uma faísca em seu corpo. John. Ela tinha colocado os pés na borda da cadeira e estava abraçando os joelhos, olhando-o com um ar travesso.

Às vezes é preciso fazer ajustes numa estratégia, abrir mão de uma coisa para conseguir outra. Portanto ele contou sobre seu sonho recorrente, mesmo sentindo-se pouco à vontade e tendo a esperança de que Grace não visse nada disso nos relatórios oficiais, para que não pudesse usar contra ele. Mas se mentisse, se começasse a inventar uma história qualquer, ele acreditava que a Ave Fantasma perceberia. Estava certo de que durante o tempo em que tentava interpretar o que ela dizia, ela própria o estudava. Mesmo ao fazer-lhe perguntas, Controle estava vazando informação. Teve uma visão súbita de informações flutuando ao lado de sua cabeça, numa espécie de névoa feita de pixels vermelhos. Estes são os meus pais. Esta é minha ex-namorada. Meu pai era um escultor. Minha mãe é uma espiã.

Mas ela também baixou a guarda a certa altura da conversa.

R: Eu acordei num terreno baldio e pensei que tinha morrido. Pensei que talvez estivesse no purgatório, mesmo sem acreditar em vida após a morte. Mas tudo estava tão quieto e tão vazio... Então fiquei esperando, com medo de sair dali, com medo de que houvesse algum motivo para eu permanecer ali. Não sabia ao certo se queria saber qualquer outra coisa. Então a polícia veio me buscar, e depois veio o Comando Sul. Mas eu ainda acreditava que não estava viva.

E se a bióloga tivesse acabado de chegar à conclusão, naquela mesma manhã, de que estava viva, e não morta? Talvez isso explicasse sua mudança de atitude.

Quando terminou a leitura, ele era capaz de sentir a Ave Fantasma ainda o observando fixamente, e seu olhar não desviava do dele, segurava-o ali, ou era ele que permitia. Por algum motivo.

* * *

No caminho de volta da fronteira, o silêncio tomara conta de Controle, Whitby e Cheney, talvez sobrecarregado pelo contraste entre sol/calor e chuva/frio. Mas Controle encarou aquilo como o silêncio solidário que se segue a uma experiência compartilhada, como se ele tivesse passado pela iniciação a um clube exclusivo, sem consulta prévia. Não gostava daquela sensação; era um espaço para onde se arrastavam sombras que deveriam ficar afastadas, onde pessoas concordavam com coisas com as quais na verdade não concordavam, acreditando que estavam compartilhando os mesmos objetivos e intenções. Certa vez, numa ocasião semelhante, outro agente o chamara de “caseiro” e fez um comentário casual dizendo que ele “não era o chicano típico”.

Quando estavam a menos de dois quilômetros do Comando Sul, Cheney disse, também num tom excessivamente casual:

— Sabe, correm rumores sobre a ex-diretora e a fronteira.

— É mesmo?

Aí vem, então. Aí está. Como a tranquilidade nos leva a ir longe demais, ou a parcialmente revelar coisas que deviam permanecer ocultas.

— Dizem que ela cruzou a barreira por conta própria, certa vez — continuou Cheney, com o olhar perdido. Mesmo Whitby parecia querer se distanciar daqueles comentários, inclinando-se mais para a frente no banco enquanto dirigia. — Só um boato. Não faço ideia se é verdade ou não.

Mas Controle não se importava com isso, apesar daquele calculado comentário final. A verdade visivelmente não preocupava Cheney, ou então ele já a conhecia e queria apenas manipular Controle para seguir essa pista.

— O boato diz quando aconteceu? — perguntou.

— Antes da última décima primeira expedição.

Parte dele pensou em abordar o assunto com a diretora assistente e ver o que podia extrair dela. Outra parte decidiu que era uma ideia prematura, de modo que ficou ruminando a informação, imaginando por que Cheney decidira passá-la para ele, especialmente na frente de Whitby. Isso significaria que Whitby tinha coragem, apesar dos indícios em contrário, de guardar um segredo mesmo quando sob pressão de Grace?

— Já esteve do outro lado da fronteira, Cheney?

Ele respondeu bufando:

— Não. Está maluco? Não.

No estacionamento, no fim da tarde, Controle se sentou ao volante do seu carro, a chave na ignição, e foi relaxando aos poucos. A chuva tinha passado, deixando apenas algumas poças oleosas e um brilho verde na relva e nas árvores. O único carro que continuava ali era o veículo elétrico roxo de Whitby, estacionado em diagonal ocupando duas vagas, como se a chuva o tivesse arrastado.

Era a hora de ligar para a Voz e fazer o relatório. Muito melhor livrar-se disso logo do que deixar o trabalho se acumular e entrar pela noite.

O telefone chamou várias vezes.

A Voz finalmente atendeu com um “Sim, o que é?”, como se Controle tivesse ligado num momento pouco conveniente.

Ele tinha pensado em perguntar sobre a ida clandestina da diretora para além da barreira, mas o tom da Voz o desconcertou. Em vez disso, ele começou com a referência à planta e ao rato:

— Encontrei uma coisa estranha dentro de uma gaveta da ex-diretora...

* * *

Controle piscou uma, duas, três vezes. Enquanto falava, percebeu algo. Uma coisa minúscula, mas que mesmo assim o abalou. Havia um mosquito esmagado contra o lado de dentro do para-brisa, e Controle não fazia ideia de como ele tinha surgido. Sabia que não estava ali de manhã, e de qualquer forma não se lembrava de ter matado nenhum mosquito. Pensamento paranoico: um descuido da parte de alguém que revistou o carro... ou alguém queria avisá-lo de que estava sendo investigado?

Incapaz de tirar os olhos do inseto, e com a atenção dividida, Controle começou a perceber oscilações em sua conversa com a Voz. Quase como uma turbulência que jogava um avião para cima e para a frente, enquanto o passageiro permanecia atado ao cinto e alarmado. Ou como se estivesse vendo um programa de TV em que o sinal de vez em quando dava um salto de cinco segundos. No entanto a conversa prosseguiu normalmente de onde havia parado.

A Voz estava dizendo, com uma rabugice maior que a costumeira:

— Depois lhe darei mais informações, e não se preocupe, ainda estou cuidando da maldita situação da diretora assistente. Me ligue amanhã.

Uma imagem ridícula invadiu a mente de Controle, a diretora assistente indo até o estacionamento enquanto ele visitava a fronteira, forçando a porta do carro, remexendo no porta-luvas, esmagando sadicamente o mosquito.

— Não sei se seria uma boa ideia a esta altura, essa questão da Grace — disse ele. — Talvez fosse melhor se...

Mas a Voz já tinha desligado, e Controle se perguntou como podia ter anoitecido tão depressa.

Ele observou a intrincada geometria de sangue e membros frágeis. Não conseguia tirar os olhos do mosquito. Tentara dizer outra coisa à Voz, mas acabou esquecendo por causa do inseto e agora teria de esperar até o dia seguinte.

Era possível que ele tivesse esmagado o mosquito e esquecido totalmente? Achou improvável. Bem, para o caso de não ter sido ele, deixaria aquela porcaria ali mesmo, junto com sua mancha de sangue. Talvez servisse como um recado em resposta. Eventualmente.


011: SEXTA FENDA

Em casa, Chorry esperava por ele nos degraus. Controle deixou-o entrar e serviu um pouco de ração que comprou no mercado juntamente com um sanduíche de frango. Comeu na cozinha, mesmo sentindo o cheiro de salmão oleoso da comida de Chorry. Ficou observando o gato mastigar, mas seus pensamentos estavam longe, nos pequenos fracassos daquele dia. Sentia-se como se todos os seus passes tivessem saído no contrapé dos atacantes e ele não parasse de ouvir os gritos do técnico da escola. A parede por trás daquela porta o tinha desorientado. A parede e as reuniões tomaram-lhe um tempo excessivo. Mesmo a viagem até a fronteira não colocara as coisas no lugar, apenas as estabilizara enquanto abria novas linhas de investigação. A ideia de que a diretora tinha cruzado sozinha a fronteira antes que a última décima primeira expedição voltasse continuava a preocupá-lo. Cheney, no trajeto de volta, dissera:

— Nunca achei que a diretora concordasse muito conosco, sabe? Ou ela preferia se guiar pelos próprios critérios, ou era aconselhada por alguém, assim como Grace. Ou então sou eu que não avalio bem as pessoas. O que é bem possível.”

Controle pegou a pasta e tirou algumas anotações que fizera na viagem à fronteira. Ficou surpreso ao encontrar três celulares, e não apenas dois — o mais moderno, usado para as comunicações com a Voz e o outro para uso regular. Havia um terceiro, mais volumoso. Franzindo a testa, Controle tirou todos os três. Reconheceu o terceiro como sendo o aparelho velho e sem uso da mesa da diretora. Ficou olhando para aquilo. Como fora parar ali? Grace o teria colocado na pasta? Um celular de modelo ultrapassado, a capa de couro rugosa como uma carapaça. Ela devia tê-lo deixado no escritório dele, que acabou pegando-o sem querer. Mas por que não tinha reparado nele antes, quando conversou com a Voz?

Controle pôs o telefone em cima do balcão da cozinha, observando-o com desconfiança, e em seguida foi para a sala. O que estava deixando passar?

Depois de algumas séries de flexões, sem muito ânimo, ligou a TV. Logo foi bombardeado por um reality show, notícias de mais um massacre em escolas, reportagem sobre uma ilha de lixo no oceano e um apresentador berrando as preliminares de uma luta de MMA. Ele hesitou entre um programa de culinária e um de mistério, dois dos seus favoritos, pois não requeriam que ele pensasse, e acabou se decidindo pelo de mistério. O gato ronronava no seu colo como um motor pegando.

Enquanto olhava a TV, lembrou-se da palestra de um professor de ciência ambiental a que assistira no segundo ano da universidade. A essência de sua argumentação era que as instituições, inclusive departamentos individuais dentro dos governos, eram a corporificação concreta não apenas de ideias e opiniões, mas também de emoções e atitudes. Como o ódio ou a empatia, teses como “imigrantes têm que aprender inglês ou não serão cidadãos” ou “todos os pacientes doentes mentais merecem nosso respeito”. Era a ideia de que no funcionamento, por exemplo, de uma agência do governo, seria possível descobrir com esforço não apenas o pensamento abstrato por trás dela, mas as emoções reais. O Comando Sul tinha sido montado para investigar (e conter) a Área X e, mesmo assim, a despeito de todos os sinais e símbolos registrando sua missão — todas as discussões e os arquivos e as correspondências e as análises —, existia alguma outra emoção ou atitude na agência. Era frustrante para ele não conseguir identificá-la, como se precisasse de um sentido extra ou uma sensibilidade que lhe faltavam. E no entanto, como dissera Grace, assim que ele começasse a se sentir confortável no Comando Sul, assim que estivesse bem agasalhado no casulo daquele abraço, estaria doutrinado demais para perceber.

Naquela noite ele não sonhou. Ele se lembrava, porém, de ter acordado certa hora, bem antes de amanhecer, com alguma coisa pequena caminhando furtivamente em cima do telhado, mas o barulho logo se aquietou. Não foi suficiente nem para acordar o gato.


012: ORGANIZANDO

Pela manhã, de volta ao trabalho, ele descobriu que uma das lâmpadas fluorescentes no seu escritório tinha queimado, deixando a iluminação mortiça. A mesa e a cadeira, principalmente, estavam envoltas em pesadas sombras. Controle pegou uma luminária de uma das estantes e a pôs numa prateleira apontada para a mesa à sua esquerda. Pôde ver então que Whitby tinha cumprido a ameaça e deixado na sua escrivaninha um documento volumoso, bastante manuseado, com o título Terroir e Área X: Uma Abordagem Completa. Havia algo na ferrugem do clipe encravado na primeira página, no amarelecimento das páginas impressas, nas anotações manuscritas em variadas canetas coloridas, ou talvez nas imagens coladas com as beiradas gastas, que o deixou relutante em embarcar naquela viagem. Teria de esperar sua vez, o que àquela altura queria dizer a semana seguinte ou quem sabe até os próximos meses. Tinha outra entrevista com a bióloga, além de uma reunião com Grace sobre as recomendações feitas pela agência, e depois, na sexta-feira, um encontro onde seriam exibidos vídeos da primeira expedição. Além de outras urgências em sua mente... como a redecoração do ambiente. Controle abriu a porta que escondia as palavras. Tirou várias fotos. Depois, usando uma lata de tinta branca e um pincel requisitados ao pessoal da manutenção, pintou meticulosamente a área: cada palavra, cada detalhe do mapa. Grace e os demais teriam de abandonar a ideia de memorial, porque ele não conseguiria viver com a pressão daquelas palavras pulsando por trás da porta. Também pintou as medições de altura, se é que eram isso mesmo. Duas demãos, três, até que restou somente uma sombra, embora as medições continuassem visíveis, pois foram feitas com outro tipo de caneta. Se realmente eram marcas de altura, então a ex-diretora aumentara cerca de um centímetro entre as medições, a menos que estivesse usando salto alto na segunda vez.

Depois da pintura, Controle posicionou duas peças entalhadas por seu pai do xadrez que tinha em casa, com a intenção de substituir os antigos talismãs, a planta e o rato. Um pequeno galo vermelho e uma cabra azul-marinho, que vieram de uma série intitulada apenas Mi Familia. O galo tinha o nome de um dos seus tios, a cabra, o nome de uma tia. Seu pai guardava fotos tiradas na juventude, brincando com os amigos e os primos no quintal, cercado por galinhas e cabras, com um jardim a se perder de vista ao longo de uma cerca de madeira. Mas Controle se lembrava apenas das galinhas do pai. Para usar um termo generoso, eram galinhas de tradição ou legado. Recebiam nome e nunca eram mortas. “Galinhas homenageadas”, brincou ele com o pai, um dia.

O xadrez era um hobby que podia ser compartilhado durante as sessões de quimioterapia a que o pai era submetido, e também algo que deixaria o pai pensando e se impacientando sozinho, quando Controle não pudesse estar com ele. Antes do câncer, os dois compartilhavam a aflição pela sinuca, na qual ambos eram medíocres, o que não lhes tirava o prazer de jogar. Mas a saúde física do pai logo se tornou algo mais urgente do que sua deterioração mental, de modo que não foi sequer uma questão de opção. Livros para salvá-lo do tédio televisivo? Não, porque logo o marcador do livro estava apenas separando dois mares de páginas não lidas. Mas num regime de alertas constantes, tipo “agora é sua vez”, o xadrez recuperava uma experiência do seu passado, mesmo quando o pai ficava confuso no final das partidas.

Controle tinha recrutado as figuras entalhadas pelo pai para usá-las como peças; formavam uma mistura caótica, com funções não muito bem definidas, uma vez que foram reinterpretadas duas vezes: primeiro passaram de pessoas a animais, e depois a peças do jogo de xadrez. Mas ele evoluiu como jogador, e seu interesse só aumentou porque àquela altura a abstração se tornara algo real, e os resultados, embora cômicos para eles, pareceram ter mais importância. “Abuela come bispo” era uma jogada que sempre deixava os dois aos risos. “Primo Humberto come La Sobrina Mercedez.”

Agora essas peças entalhadas iriam ajudá-lo de alguma forma. Controle colocou o galo no canto esquerdo de sua mesa e a cabra à direita, com o galo virado para fora e a cabra olhando para ele. Ele instalara em cada peça uma nanocâmera quase invisível, transmitindo imagens por rede sem fio para seu celular e laptop. Gostaria que pelo menos seu escritório fosse um lugar seguro, gostaria de transformá-lo num bastião, eliminar dele tudo que fosse desconhecido e colocar ali somente o que pudesse lhe servir de algum conforto. Quem sabe o que poderia descobrir?

Então se sentiu livre para examinar as anotações da ex-diretora.


O preâmbulo para a leitura das anotações da diretora foi quase um ritual de limpeza. Ele retirou do escritório todas as cadeiras, exceto a sua, e as deixou enfileiradas no corredor, onde serviriam de barricada contra quem pudesse interrompê-lo. Então começou a fazer pilhas no meio do recinto. Tentou ignorar as manchas no tapete. Café? Sangue? Molho? Vômito de gato? Era bem claro que faxineiras e outros funcionários foram banidos daquele escritório há um bom tempo. Ele teve uma visão de Grace dando ordens para que o escritório fosse mantido exatamente como era, do mesmo modo como nos programas de TV sobre crimes: os pais de uma criança assassinada não permitiam que um só grão de poeira penetrasse o território sagrado que se tornou o aposento do seu ente querido. Grace o mantivera fechado até a chegada de Controle, escondera a chave reserva, e mesmo assim ele não achava que ela apareceria no seu vídeo de segurança.

Então ele sentou num banquinho, com seu compositor neoclássico favorito tocando no laptop, e deixou que a música preenchesse a sala e criasse certa ordem a partir daquele caos. Sem pular nenhum degrau, vovô, embora às vezes o degrau parecesse ter dado um pulo. Grace enviara os arquivos naquela manhã usando como intermediário um assistente administrativo para que não precisassem se falar diretamente. Os arquivos traziam em detalhe todos os memorandos oficiais da diretora e todos os seus relatórios, com os quais ele teria de comparar quaisquer rabiscos e fragmentos. Uma relação de inventário, foi como Controle viu a tarefa. Ele tinha considerado pedir que Whitby o ajudasse a organizar o material, mas cada documento apresentava uma marcação de segurança diferente, flutuando de secreto a ultrassecreto e até a que-porra-é-essa-secreto, como ações voláteis negociadas no mercado em contrato de futuros.

O título dado por Grace à lista era excessivamente funcional: ARQUIVOS DA DIRETORA — PAD DE MEMORANDOS MAIS E MENOS IMPORTANTES E RELATÓRIOS. PAD, ou Programa de Administração dos Dados, fazia referência ao sistema de arquivamento de fotos e de todas as imagens relativas que o Comando Sul havia montado e financiado na década de 1990. Controle teria optado por algo mais breve e preciso do que a escolha de Grace. Algo como DOCUMENTOS DO DIRETOR, ou, mais dramático, HISTÓRIAS DE UMA AGÊNCIA ESQUECIDA ou O DOSSIÊ DA ÁREA X.

As pilhas tinham de ser organizadas por tópicos, de modo que ele pudesse pelo menos acompanhar os dados catalogados por Grace: fronteira, farol, torre, ilha, acampamento, história natural, história não natural, história geral, desconhecido. Decidiu também fazer uma pilha para “irrelevantes”, mesmo que o que parecesse irrelevante para ele pudesse ser para alguém uma espécie de Pedra de Roseta, se é que essa pedra, ou algo equivalente, estaria mesmo no meio das ruínas.

Aquela era uma posição confortável para ele, uma tarefa cômoda, uma penitência já familiar durante um período de vergonha e degradação, e ele podia entregar-se a ela de maneira tão livre quanto se estivesse lavando os pratos após o jantar ou fazendo a cama pela manhã. Era algo que até o relaxava.

A diferença estava no fato de que, em parte, as pilhas pareciam como se ele tivesse levado para casa lama da rua nos sapatos. A ex-diretora o estava transformando numa nova espécie de fazendeiro urbano, construindo pilhas de compostagem com material censurado que teve origem lá fora, no mundo, e traziam consigo uma rica história prévia. Carvalhos e magnólias tinham provido parte do material bruto em forma de folhas, às quais a diretora juntara guardanapos, recibos, até mesmo papel higiênico, criando uma camada espessa.

A lanchonete em que Controle tomava café fornecera vários recibos dignos de nota, assim com o armazém na esquina, onde a ex-diretora fizera compras muitas vezes por ser uma última opção conveniente. Os recibos mostravam itens aleatórios, inadequados a uma ida às compras rotineira. Um dia carne seca e toalhas de papel; no outro, suco de laranja e cereal matinal; em mais outro, cachorro-quente, leite desnatado, tesourinha de unhas, um cartão de felicitações. Os guardanapos, recibos e folhetos de propaganda de uma churrascaria em sua cidade natal, Bleakersville, apareciam com destaque, e Controle ficou com vontade de saborear costelas. Bleakersville ficava a apenas quinze minutos de carro do Comando Sul, numa transversal da rodovia que levava a Hedley. De acordo com Grace, a casa dela tinha sido revistada e tudo relativo ao Comando Sul fora apreendido. O resultado dessa apreensão estava numa seção especial, CASA DA DIRETORA, nos arquivos PAD.

Uma ideia lhe causou pânico depois de uma hora: e se as superfícies aparentemente aleatórias em que a diretora escrevia suas anotações tivessem algum significado? E se as palavras não fossem a mensagem inteira, assim como o sermão desvairado do faroleiro não era a história completa? Veio à sua mente a catedral das amostras, e, embora parecesse improvável, ele imaginou, paranoico, se algumas daquelas folhas vinham da Área X. Logo descartou essa possibilidade como especulativa e contraproducente.

Não, a variedade de texturas usadas pela diretora revelava “apenas” que ela vivia absorta no cumprimento de uma tarefa, como se tentasse desesperadamente guardar suas observações quando lhe ocorriam, sem querer esquecê-las nem ter algum editor interno capaz de interromper seu avanço rumo ao entendimento. Ou algum hacker para espreitar os mecanismos íntimos de sua mente, mesmo depois de destilados para uso do PAD.

O resultado é que ele precisava abrir caminho não somente através de “documentos primários”, mas também pelo registro desordenado da vida da diretora e o tempo em que vagueou pelo mundo, bem além dos edifícios do Comando Sul. Isso foi útil, porque ele tinha colhido apenas uns fiapos de informação nos arquivos oficiais, fosse devido a alguma interferência de Grace, ou porque a própria diretora já se encarregara de editar esses registros. Ela não tinha irmãos. Seus pais se divorciaram e ela cresceu com o pai no Centro-Oeste. Estudou psicologia numa escola estadual antes de abrir um consultório particular que funcionou por cinco anos. Em seguida se inscreveu na Central, e ali passou por provas cruéis para testar sua resistência vezes sem conta, para assim compensar uma carreira profissional até então pouco notável. Depois, apresentou-se como voluntária para trabalhar no Comando Sul, que na época devia ter parecido um posto atrativo— e foi ali que a informação escassa se transformou em uma avalanche de notas em seu escritório. Controle requisitara mais arquivos à Central, que não enviara nada. Um belo dia, talvez uma folha de papel fosse cuspida na sua direção.

O que lhe restou então foi tentar construir uma visão autêntica do terroir da diretora — suas motivações e sua base de conhecimentos — a partir de tudo que estava organizando e, ao mesmo tempo, criando na própria mente novas seções de categorias não geradas no Programa de Administração de Dados. Ela era assinante de um guia de programação de TV, bem como de algumas revistas de arte e cultura, a julgar não apenas por algumas páginas recortadas, mas por formulários de renovação de assinatura. A certa altura devia ao dentista 72,12 dólares por um tipo de limpeza que seu plano odontológico não cobria, e não estava nem ligando se alguém descobrisse. O boliche fora da cidade era frequente. Recebia cartões de aniversário de uma tia, mas ou não era muito sentimental em relação a cartões, ou não era assim tão próxima da tia. Gostava de costeletas de porco e de camarão com creme de milho. Gostava de jantar sozinha, mas um dos recibos da churrascaria registrava duas refeições. Um acompanhante? Talvez, tal como ele, ela às vezes pedisse um prato extra para viagem, para já ter o almoço do dia seguinte.

Não havia muita coisa sobre a fronteira nas suas anotações, mas aquela espiral branca, aquele espaço enorme, não o abandonava por completo. Havia uma estranha sincronicidade enquanto ele trabalhava, ligando a espiral ao raio de luz cruzando o céu que era sua mãe, o literal e o metafórico entrelaçando-se através da uma extensão tão vasta de tempo e contexto que somente o pensamento podia transpor o abismo.

* * *

As camadas de material por baixo da planta e do rato acabaram se revelando as mais difíceis de manusear. Algumas páginas estavam finas e quebradiças, e os pedaços de papel e as colagens de folhas soltas ficaram guardados uns aos outros, enquanto alguns pontos estavam mais infiltrados e colados pelo resto das raízes translúcidas da planta, manchadas de vermelho. Controle separou meticulosamente cada página, sentindo elevar-se um odor úmido que estivera preso ali, cada vez mais forte e pungente. Tentou não comparar aquilo com o cheiro de meias sujas.

Todas as camadas confirmavam o fato de que a diretora apreciava tanto a natureza quanto um café da manhã com frios. Ele separou cuidadosamente o código de barras recortado de uma caixa de cereais e uma folha de carvalho manchada de tinta azul com palavras quase ilegíveis, e percebeu que o recorte nunca fora separado de sua noiva quebradiça. “Revisar transcrições de X.10.C esp. antrop. sobre descida LH” estava escrito no verso do código de barras. “Recomendar interrupção de uso de caixas pretas para propósito de condicionamento” estava escrito na folha. Ele a colocou na pilha de desconhecido, ou seja, “valor desconhecido”.

Outros fragmentos intrigantes também foram se revelando, alguns brotando por entre os livros nas estantes ou apenas enfiados descuidadamente entre as páginas, não como marcadores, mas como se ela tivesse se irritado com eles e quisesse punir as palavras que acabara de rabiscar. Foi entre as páginas de um livro didático de biologia, que parecia manuseado o bastante para ter pertencido à própria diretora, que Controle achou, em papel de verdade e impressa em impressora matricial — apesar de ser datada de apenas dezoito meses antes —, uma nota sobre a décima segunda expedição.

Na nota, que não fora transposta para o arquivo PAD em poder de Grace, a diretora referia-se à topógrafa como “alguém bastante realista, um bom contraste para equilibrar as outras”. A linguista, dispensada na área de preparação da fronteira, era considerada por ela “útil, mas não essencial; possivelmente uma presença perigosa, um personagem solidário, mas limitado, que pode desviar as atenções”. Solidário a quem? Desviar as atenções do quê? E esse desvio era desejável, ou...? A antropóloga era citada pelo primeiro nome, o que confundiu Controle até que ele reconheceu quem era. “Hildi estará a bordo, vai entender.” Ele ficou olhando o papel por algum tempo. A bordo do quê? Entender o quê?

Além da frustrante falta de contexto, as notas davam a impressão de que a diretora estivera escalando o elenco de uma peça ou de um filme. Anotações para atores. Equipes precisavam de coesão, mas a diretora não parecia tão preocupada assim com o moral e a dinâmica de grupo, mas com... alguma outra qualidade.

As anotações a respeito da bióloga eram as mais longas e deixaram Controle com mais perguntas.

Não é muito boa como bióloga. No sentido tradicional. Mais empatia com ambientes do que com pessoas. Esquece as razões por que foi, quem está pagando seu salário. Mas consegue se integrar de modo extraordinário. Seria capaz de compreender a Área X melhor do que eu, praticamente assim que pusesse os pés lá. Experiência com ambientes similares. Autossuficiente. Sem fardos para carregar. Conexão através do marido. O que seria ela na Área X? Um sinal? Uma chama? Ou invisível? Explorar.

Outra nota, encontrada próxima, no volume 2 de um conjunto de três delgados livretos sobre xenobiologia, dizia: “bio: expo a contamin AT?” Exposição da bióloga a contaminação da anomalia topográfica era seu melhor palpite, uma aposta até simples. Mas não havendo uma data ele não podia saber se se referia à mesma expedição. Do mesmo modo, quando ela anotava “Ocultar de L.” e “L. disse que não, surpresa zero” em dois pedaços diferentes de papel, será que o L se referia a Lowry, ou, num sentido mais esotérico e improvável, seria “lighthouse keeper”, o faroleiro?

Ele foi assimilando aquilo tudo devagar, sabia que era preciso ser paciente. Havia uma enormidade de notas e páginas nos arquivos PAD de Grace, e até agora nem uma palavra sobre a ida da diretora além da barreira. Mas ele já estava captando a vibração de correntes mais profundas, estava descobrindo como, na teoria de terroir explicada por Whitby, havia algo que se aplicava mais ao Comando Sul do que à Área X, algo talvez concebido por uma única mente. A ideia de que um pensamento disfuncional podia criar raízes num vácuo, formando um indivíduo anônimo e espectral, imune ao conhecimento porque, especialmente no início, ele ou ela não teve qualquer interação com outros seres humanos. Porque cada vez mais nesta era da internet nos deparávamos com ocorrências isoladas de um vírus ou verme mental: cérebros que expurgavam a si próprios, embebidos de ideologias impostas que lhes vinham de cima para baixo, ideologias que podiam ficar adormecidas ou ocultas por muitos anos, silenciosas como a morte até o instante de atacar. Qualquer coisa, quase qualquer coisa mesmo, podia acontecer atualmente, e a toda hora acontecia. O governo não tinha como investigar as compras de fertilizante ou fogos de artifício realizadas por cada fazendeiro — não tinha como policiar todos os cérebros degenerados em seus próprios postos.

Um pensamento lhe ocorreu enquanto vasculhava os papéis da diretora: se existe uma agência dedicada a compreender e combater uma força que se arma como insurgente, e você acredita que a fronteira, num certo sentido pelo menos, está avançando, então você pode se desviar um pouco das formalidades, dos protocolos. Se os seus supervisores e colegas não concordarem com o que diz, você pode elaborar um plano B e entrar em ação por conta própria. E então, e somente então, você, nervosa e meticulosa, poderia tomar a iniciativa de pedir ajuda a pessoas que acreditavam em você, ou que pelo menos não se opusessem, para levar a cabo esse plano. Quer você lhes revelasse os detalhes do plano ou não. Era possível que fosse um plano que começou como meras anotações no verso de uma nota de restaurante, ou durante um filme na TV ou a leitura de uma revista.

Quando chegou a hora de seu compromisso com Grace, Controle ergueu os olhos e percebeu que estava cercado por altas pilhas de pastas e arquivos amontoados. Quando conseguiu sair dali, a porta, bloqueada por cadeiras e por uma mesinha dobrável, exigiu-lhe tanto esforço para atravessar que ele pensou se inconscientemente não estaria tentando manter alguma coisa do lado de fora.


013: RECOMENDAÇÕES

Controle tinha planejado se impor no território de Grace, mostrar-lhe que estava bem à vontade, mas o que ocorreu foi que, ao chegar lá, ela estava no meio de uma conversa ridiculamente animada com sua assistente administrativa.

Enquanto esperava, Controle revisou o material básico, ou seja, tudo que deram a ele, por nenhuma razão. Grace Stevenson. Homo sapiens. Fêmea. Família originária das Índias Ocidentais. Era da terceira geração nascida no país, e a mais velha de três filhas. Os pais trabalharam muito para que as três cursassem uma universidade, e Grace se formou como primeira da turma, com graduações em ciência política e em história, seguidas de um estágio na Central. Então, durante uma operação especial, machucou a perna — não havia detalhes sobre o ocorrido —, e as marés a levaram para o Comando Sul. Não, não era bem assim. A diretora tinha tirado um papelzinho com o seu nome de dentro de um chapéu? Cheney se referira vagamente a isso, em determinado momento da viagem para a fronteira.

Mas ela devia ter alimentado sonhos mais ambiciosos, não? Então, o que a manteve ali? A diretora, apenas? Porque, desde o início de seu trabalho no Comando Sul, Grace Stevenson repetiu um padrão de comportamento, para não dizer uma queda gradual até a estagnação. O fundo do poço em termos pessoais provavelmente foi o caótico e demorado divórcio quase oito anos antes, um acontecimento que coincidiu com a formatura dos seus filhos gêmeos na universidade. Um ano depois ela informara a Central sobre seu relacionamento com uma cidadã do Panamá, apenas para ser investigada novamente até não haver nenhum risco de segurança, o que de fato não havia. Um novo processo que já se sabia caótico, mas que não deixava de ser traumático. Os gêmeos eram médicos agora, imortalizados também numa foto em que estavam num jogo de futebol. Outra foto a mostrava de braços dados com a diretora. A diretora era uma mulher grande, com aquele tipo de constituição física que nem sempre deixava claro se era gordura ou músculos. As duas estavam numa espécie de piquenique do Comando Sul, uma churrasqueira invadindo a foto pelo lado esquerdo e no fundo um grupo de pessoas com camisas floridas. A ideia de eventos sociais na agência pareceu absurda a Controle, por algum motivo. Ambas as fotos já eram do conhecimento dele.

Depois do divórcio, o destino da diretora assistente se ligara cada vez mais ao da diretora, a quem ela precisou proteger por várias vezes, se é que ele estava lendo corretamente nas entrelinhas. A história terminava com o desaparecimento da diretora e Grace conseguindo o prêmio de consolação: tornar-se a diretora assistente para o resto da vida.

Ah, sim, e como mais uma consequência disso, Grace Stevenson alimentava um sentimento devastador de hostilidade contra ele. Uma emoção com a qual ele conseguia se identificar, embora apenas até certo ponto, o que sem dúvida era falha sua. “Empatia é um jogo onde só se perde”, seu pai costumava dizer, às vezes abatido por eventuais episódios de racismo com que se defrontava. Se era algo a respeito de que você tinha de pensar, então estava fazendo do jeito errado.

Por fim a assistente foi embora, e Controle sentou-se de frente para Grace enquanto ela segurava as folhas com a lista inicial de recomendações feitas por ele, examinando-as a certa distância. Fazia isso não porque estivesse com mau cheiro ou fosse ofensiva de algum modo, mas porque se recusava a usar óculos de leitura.

Ela consideraria aquela lista um desafio? As sugestões eram propositalmente prematuras, mas ele esperava que sim. Embora não fosse um bom sinal o fato de um gravador de voz estar ligado diante dele, reação dela à presença de Controle em seu espaço. Mas ele tinha praticado os maneirismos diante do espelho naquela manhã, para ver até que ponto se exprimia de forma não verbal.

A bem da verdade, a maior parte das suas recomendações administrativas ou gerenciais podia se aplicar a qualquer instituição que tivesse ficado sem rumo — ou, para ser generoso, parcialmente sem rumo — durante alguns anos. O resto eram tiros no escuro, que tanto podiam se perder quanto atingir o tendão de aquiles de alguém. Ele queria que o fluxo de informação se estabelecesse em várias direções, de modo que, por exemplo, a linguista Hsyu pudesse ter acesso a informações confidenciais de outros departamentos da agência. Queria aprovar também a liberação (proibida havia muito tempo) das horas extras e noturnas, já que de qualquer maneira a eletricidade do prédio precisava ficar ligada vinte e quatro horas por dia. Ele tinha reparado que a maior parte dos funcionários ia embora muito cedo.

Algumas das outras coisas eram desnecessárias, mas com um pouco de sorte Grace consumiria tempo e energia brigando por causa delas.

— Rápido, hein? — disse ela finalmente, jogando na mesa diante dele as folhas presas com um clipe.

As páginas deslizaram até seu colo antes que ele conseguisse agarrá-las.

— Fiz meu dever de casa — retrucou Controle.

— Um aluno aplicado. A estrela da classe.

— Só a primeira parte. — Controle concordou parcialmente, sem saber se gostava do modo como ela falou aquilo.

Grace não se deu o trabalho de desperdiçar nem mesmo um sorriso falso em resposta.

— Me permita ir direto ao assunto. Alguém andou impedindo meu acesso à Central durante esta semana, fazendo investigações, bisbilhotando. Mas quem quer que esteja lhe fazendo esse favor não demonstra o menor tato, ou então a facção que está por trás disso não tem muita influência.

— Não sei do que você está falando — disse Controle, sua expressão corporal enfraquecendo com a surpresa, apesar de todo o seu esforço.

Facção. Apesar do seu devaneio a respeito de a Voz ter uma identidade ligada a operações ultrassecretas, não lhe ocorrera que sua mãe poderia muito bem estar chefiando uma facção, o que o conduziu imediatamente à ideia de agentes verdadeiramente secretos — assim como uma força de oposição. Ficou um pouco abalado ao pensar que a Central podia estar tão fragmentada. Quão pouco sutis teriam sido os esforços da Voz para satisfazer os pedidos de Controle? Além disso, o que Grace fazia com os seus contatos quando não os usava diretamente contra ele?

A expressão de desagrado em seu rosto mostrou o que ela achava da resposta de Controle.

— Bem, nesse caso, John Rodriguez, não tenho nenhum comentário a fazer sobre suas recomendações. Exceto que vou começar a segui-las da maneira mais insuportavelmente vagarosa que se possa imaginar. É provável que você veja algumas delas atendidas... Por exemplo, “comprar novo desinfetante de piso”, no próximo trimestre. Possivelmente. Talvez.

Ele teve um vislumbre rápido de Grace sequestrando a bióloga, uma visão de múltiplas tentativas de destruição recíproca, até que, em algum lugar entre as nuvens, no alto de duas longuíssimas escadas rolantes banhadas em sangue, eles continuariam a batalha por anos.

Ele assentiu com um aceno rígido e incômodo, reconhecendo a derrota, um gesto muito diferente do que pretendera usar.

Mas ela não tinha acabado ainda. Seus olhos cintilaram quando abriu uma gaveta e tirou de lá um pequeno porta-joias de madrepérola.

— Sabe o que é isso? — perguntou ela.

— Uma caixa de joias — respondeu ele, confuso, definitivamente perplexo.

— É uma caixa de acusações — prosseguiu Grace, estendendo-a como se a oferecesse a ele. Com essa caixa de joias eu mostro meu desprezo.

— O que é uma caixa de acusações? — Embora ele de fato nem quisesse saber.

Com um clique e um tinido, a tampa de veludo se escancarou e deixou cair meia dúzia de microfones disfarçados, os quais Controle reconhecia muito bem, que quicaram e rolaram sobre a mesa em sua direção. A maior parte parou antes de cair pela borda, mas dois seguiram o mesmo caminho das folhas de papel que estavam no seu colo. O cheiro de mel estragado ficou mais forte.

— Isto é uma caixa de acusações.

Tentando uma reação, mesmo sabendo que era frágil, ele disse:

— Vejo apenas uma acusação aqui, repetida várias vezes.

— Ainda não esvaziei tudo.

— Não quer esvaziar agora?

Ela fez que não com a cabeça.

— Ainda não. Mas farei isso se você continuar a impedir meu acesso à Central. E isso vale para seus espiões.

Ele deveria mentir? Isso anularia o motivo para enviar a mensagem.

— Por que eu grampearia você?

Disse isso com um olhar que, ele sabia, sabotava sua inocência, mesmo quando se ergueu dentro dele a mesma indignação que sentiria um inocente. Porque num certo sentido ele se considerava realmente inocente: uma ação produzia uma reação. Perca alguns membros de uma expedição e ganhe em troca alguns grampos. Ela talvez até reconhecesse alguns deles.

Mas Grace persistiu:

— Você fez isso, sim. E também mexeu nos meus arquivos, revistou minhas gavetas.

— Não. Não fiz nada disso.

Dessa vez a irritação dele tinha uma base verdadeira. Não revistara o escritório, tinha apenas colocado os microfones, mas agora mesmo essa ação o perturbava, quanto mais ele a avaliava. Era algo que não condizia com seu caráter, não servira a nenhum propósito, fora contraproducente.

Grace prosseguiu, com paciência:

— Se fizer isso de novo, vou registrar uma queixa. Já mudei as combinações de senhas da minha porta. Se precisar saber de alguma coisa, basta me perguntar.

Era fácil de falar, mas Controle não acreditou que fosse verdade, então fez um teste:

— Você pôs o celular da diretora na minha pasta?

Ele não conseguiu se forçar a fazer a pergunta ainda mais absurda: “Você esmagou um mosquito no meu carro?”, ou algo relativo à diretora e à fronteira.

— Por que eu faria isso? — perguntou ela, repetindo a fala dele, mas com uma expressão séria e preocupada. — Do que você está falando?

— Pode ficar com os grampos, como suvenires — respondeu ele.

Pode levá-los para o Quiosque Antiquário do Comando Sul e vendê-los aos turistas.

— Não, espere, é sério... Do que você está falando?

Em vez de responder, Controle se levantou e bateu em retirada rumo ao corredor, sem saber se tinha mesmo escutado uma gargalhada lá atrás ou se era apenas um eco distorcido cruzando os dutos de ventilação no alto.


014: HERÓIS HEROICOS DA REVOLUÇÃO

Mais tarde, quando mergulhou de novo no mar de papéis, enchendo os olhos e os ouvidos com eles para tentar se esquecer de Grace — se ele não tinha revistado seu escritório, quem poderia ter sido? —, o telefone tocou. Era um chamado vindo do setor das expedições. Uma voz masculina, muito animada, anunciou a Controle que a bióloga “não estava se sentindo bem e não conseguiria comparecer à entrevista de hoje”. Quando ele então perguntou o que havia de errado, o homem respondeu:

— Ela está se queixando de cólicas e de febre. O médico disse que é um resfriado.

Um resfriado? Um resfriado não é nada.

“Comece o dia com tudo”. As anotações e aquelas entrevistas ainda estavam sob seu domínio. Não queria deixar para depois, então decidiu ir direto falar com ela. Com um pouco de sorte não esbarraria em Grace. Whitby até poderia ser útil, mas quando ligou descobriu que tinha se ausentado.

Ao anunciar que estaria lá num minuto, Controle percebeu que podia se tratar de uma armação, primeiro a mais óbvia, de não fazer o que era pedido, mas também pelo fato de que indo até lá ele talvez estivesse abrindo mão de uma vantagem, ou confirmando que ela tinha algum poder sobre ele. Mas sua cabeça estava cheia de pedaços rabiscados de papel, o mistério da possível ida da diretora para além da fronteira e o eco mortal e abafado no interior de uma caixinha de joias. Ele queria clarear as ideias ou então preencher a mente com outros assuntos durante algum tempo.

Saiu de sua sala, virou à esquerda no corredor. Entre os poucos funcionários com quem cruzou, alguns usavam jalecos de laboratório, uma raridade. Por causa dele?

— Entediada? — Foi a pergunta que um homem pálido e emaciado, vagamente familiar, murmurou para a mulher negra que caminhava ao seu lado.

— Ansiosa para acabar logo com isso. — Foi a resposta. — Você prefere este lugar, realmente prefere, não é mesmo?

Será que ele devia estar se comportando um pouco mais de acordo com o protocolo? Talvez. Ele não podia negar que a bióloga tinha se instalado na sua cabeça: uma leve pressão que tornava o trajeto rumo ao setor das expedições mais estreito, os tetos mais baixos, a língua contínua e sequiosa do carpete verde enrolando-se à sua volta. Os dois estavam começando a existir numa espécie de espaço transicional entre o interrogatório e a conversa, algo para o qual ele não conseguia achar um nome.

— Boa tarde, diretor — cumprimentou Hsyu, a cabeça se erguendo repentinamente de um bebedouro à esquerda, e foi como se um boneco ou uma instalação artística tivesse adquirido vida. — Está tudo bem?

Tudo estivera bem até um segundo antes. Por que estaria diferente agora?

— Você parece muito sério.

Talvez você não esteja muito séria hoje. Já pensou nisso? Mas ele não falou nada, apenas sorriu e continuou seu caminho pelo corredor, afastando-se dos domínios liliputianos do subdepartamento de linguística.

Sempre que a bióloga falava, Controle sentia algo mudando no seu mundo, o que ele considerava suspeito em algum nível e do que se ressentia por ser uma distração. Mas não era um flerte, de jeito nenhum, nem sequer um laço afetivo. Ele sabia com certeza absoluta que não se tornaria excessivamente fixado nela, ou obsessivo, não entraria numa espiral descendente se eles continuassem a conversar, a dividir o mesmo espaço. Isso não fazia parte dos seus planos, não se encaixava no seu perfil.

O setor das expedições possuía quatro níveis sucessivos e óbvios de segurança, com a sala de interrogatório situada no extremo de um deles — logo após o visitante atravessar uma zona de descontaminação na qual seu corpo era examinado e tanto uma bactéria quanto o fantasma do prego enferrujado que perfurou seu pé numa praia rochosa quando você tinha dez anos podiam ser detectados. Levando em consideração que a bióloga ficara num terreno baldio imundo, cheio de mato, metal enferrujado, concreto rachado e cocô de cachorro durante horas antes de chegar ali, isso parecia sem sentido. Mas mesmo assim continuava a ser feito, com uma eficiência calma e sisuda. Além disso, tudo era coberto de um branco quase ofuscante que contrastava com as texturas de cobre descolorido predominantes nos outros aposentos do corredor. Havia mais três portas trancadas entre o resto do Comando Sul e as “suítes”, também conhecidas como áreas de confinamento. Uma textura e um tom, que podiam um dia ter sido futuristas, mas que agora pareciam retrofuturistas, caracterizavam a mobília em preto e branco que tinha um ar abstratamente moderno. Isso é a versão de uma cadeira. Isso é uma aproximação de uma mesa, de uma bancada. As “endemoninhadas” divisórias de vidro, como seu pai teria dito de gozação, exibiam cenas campestres das mais simplistas, incluindo uma fileira de juncos sobrevoada por algo que lembrava um falcão. Como acontece nesses casos, tudo parecia trazido do set de filmagem de uma ficção científica barata dos anos 1970. Não tinha nada da fluidez e da ilusão do movimento que seu pai tentara captar com suas esculturas.

No saguão minimalista e nos salões de recreação que serviam de hall de entrada para as suítes, era possível ver fotografias dignas de um romance e que não possuíam nenhuma relação com a realidade. As fotos foram escolhidas com todo cuidado para sugerir uma missão bem-sucedida, com sorrisos e saudações, quando na verdade mostravam treinamentos preparatórios, às vezes de expedições que resultaram em desastres, ou atores posando para fotógrafos. Os retratos, uma longa procissão que se estendia por todo o caminho até as suítes, eram ainda piores, na avaliação de Controle. Mostravam os vinte e cinco membros que retornaram da primeira expedição, os pioneiros triunfantes que penetraram na natureza selvagem e, com exceção de Lowry, foram mortos por ela. Essa era a realidade alternativa, a versão que tinha de ser corroborada por qualquer funcionário com quem os membros das expedições entrassem em contato. Era uma ficção que vinha já recheada de um repertório de histórias de bravuras e estoicismo, com o objetivo de instilar essas mesmas qualidades nos membros da expedição atual. Como heróis gloriosos da revolução de alguma ditadura socialista.

O que significava? Nada. A bióloga teria acreditado? Talvez. Era um conto que pedia e implorava para ser levado a sério: uma história do bom e velho sentimento de orgulho e eficiência nacional. Arregace as mangas, mãos à obra, e se você se esforçar pode voltar vivo e não como um zumbi alquebrado, com o olhar distante, um câncer no lugar de uma personalidade e uma memória de curto prazo intacta.

* * *

Ele encontrou a Ave Fantasma no quarto, em seu catre, ou, como qualquer outra pessoa teria dito, sua cama. O lugar combinava a ambientação de quartéis caiados de branco, um acampamento de verão, um hotel decadente. As mesmas paredes claras, embora aqui e ali fosse possível ver pichações sob a tinta, tal como nas celas das prisões. O teto alto tinha uma claraboia, e na parede lateral havia uma janela, alta demais para que a bióloga pudesse espiar o exterior. A cama era chumbada à parede oposta, de frente para uma TV e um aparelho de DVD: apenas filmes aprovados e dois canais liberados. Nada muito realista. Nada que pudesse preencher sua amnésia. A maior parte da programação era de filmes antigos de ficção científica ou fantasia, ou então melodramas. Documentários e noticiários eram vetados. Programas sobre animais podiam passar ou não.

— Achei que dessa vez eu devia fazer a visita, já que você não está bem — disse ele, através da máscara cirúrgica.

A atendente informara que ele estava autorizado a entrar.

— Você teve a ideia de invadir minha festinha de doente para aproveitar que não estou cem por cento — respondeu ela.

Estava com os olhos vermelhos e rodeados de olheiras, o rosto encovado. Ainda usava o uniforme indefinido de zelador e soldado, dessa vez calçando meias vermelhas. Mesmo doente, parecia forte. Ela devia fazer flexões ou barra, foi tudo que ele conseguiu pensar.

— Não — disse ele, girando uma cadeira de plástico e sentando-se com as pernas desajeitadamente abertas. Será que proibiam cadeiras de verdade ali pelo mesmo motivo que os aeroportos só usavam facas de plástico? — Não, eu estava preocupado. Não quis arrastar você até a sala de entrevistas. — Ele se perguntou se a medicação estaria deixando a bióloga confusa, e talvez fosse melhor voltar em outra hora. Ou nem voltar. Ele estava totalmente consciente do desequilíbrio de forças entre os dois naquele ambiente.

— Claro. Os caracóis Phorus são famosos pela sua cortesia.

— Se você tivesse avançado na leitura do texto, saberia que isso é verdade.

Recebeu meia risada como resposta antes que ela virasse de costas no leito duro, agarrando-se a outro travesseiro amarelo. Suas costas estavam diante dele, o tecido da blusa bem justo, a penugem na pele macia do seu pescoço visível com uma precisão quase microscópica.

— Podemos ir para a área comum, se você preferir.

— Não, você tem que me ver no meu hábitat não natural.

— Parece agradável aqui — disse ele, e logo desejou não ter dito.

— A Ave Fantasma precisa de um espaço livre diário de vinte a cinquenta quilômetros quadrados, não de um espaço apertado para andar dez metros.

Ele franziu o rosto, assentiu, mudou de assunto.

— Pensei que hoje pudéssemos conversar um pouco sobre seu marido e sobre a diretora.

— Não vamos falar sobre meu marido. E o diretor é você.

— Sinto muito. Quis me referir à psicóloga. Errei. — Xingando-se e ao mesmo tempo perdoando-se.

Ela girou o corpo o suficiente para mostrar-lhe uma sobrancelha erguida, o olho direito oculto no travesseiro, e depois recostou-se novamente, olhando para o teto.

— Errou?

— Quis me referir à psicóloga.

— Não, acho que você falou “diretora”.

— Psicóloga — insistiu ele, teimoso.

Talvez irritado em excesso. Havia alguma coisa de casual naquela situação que o alarmava. Não devia ter se aproximado do espaço pessoal dela.

— Se você diz... — Então, como que se divertindo com o desconforto de Controle, ela virou-se de lado, encarando-o ainda abraçada ao travesseiro. Ela o fitou e falou, com uma espécie de jovialidade sonolenta: — Que tal se a gente trocasse informações?

— O que quer dizer com isso?

Ele sabia exatamente o que ela queria dizer.

— Você responde a uma pergunta, eu respondo a outra.

Ele não respondeu; ficou comparando a ameaça e a recompensa que aquilo significava. Podia mentir para ela. Podia mentir o dia inteiro e ela nunca ficaria sabendo.

— Tudo bem — disse ele.

— Muito bem. Eu começo. Você é casado, ou já foi?

— Não, e não.

— Zero nas duas. Você é gay?

— Essa já é a segunda pergunta. E, não.

— Muito bem. Sua vez.

— O que aconteceu no farol?

— Muito genérica. Seja mais específico.

— Quando você entrou no farol, subiu até o topo? O que encontrou lá?

Ela se sentou na cama, encostada à parede.

— São duas perguntas. Por que está me olhando assim?

— Não estou olhando para você de nenhum jeito especial.

Ele tinha naquele instante tomado conhecimento dos seios dela, o que não acontecera nas entrevistas anteriores, e agora tentava deixar de ter conhecimento.

— Mas foram duas perguntas.

Aparentemente ele dera a resposta certa.

— Sim, quanto a isso você tem razão.

— Qual das duas quer que eu responda?

— O que encontrou lá?

— Quem disse que lembro alguma coisa?

— Você acabou de dizer. Vamos, responda.

— Diários. Uma porção de diários. Sangue seco nos degraus. Uma foto do faroleiro.

— Uma foto?

— Sim.

— Pode descrevê-la?

— Dois homens de meia-idade diante do farol, uma garota de lado. O faroleiro está no meio. Sabe o nome dele?

— Saul Evans — respondeu ele antes de pensar. Mas não viu nenhum problema nisso, e já estava avaliando o que significava a foto pendurada no escritório da diretora estar presente também no interior do farol. — E essa foi sua pergunta.

Ele percebeu que ela estava desapontada, pois franziu a testa, ombros caídos. Viu logo que o nome “Saul Evans” não queria dizer nada para ela.

— O que mais pode me contar sobre essa foto?

— Estava emoldurada, pendurada na parede de um patamar intermediário, e havia um círculo desenhado em volta do rosto do faroleiro.

— Um círculo? Quem o desenhou, e por quê?

— Essa é outra pergunta.

— Sim.

— Então me diga quais são os seus hobbies.

— O quê? Por quê?

Parecia uma pergunta que pertencia ao mundo lá de fora, não ao mundo do Comando Sul.

— O que você faz fora daqui?

Controle pensou um pouco.

— Dou comida ao meu gato.

Ela riu. Na verdade gargalhou, e acabou tossindo um pouco.

— Isso não é um hobby.

— É mais uma profissão — admitiu ele. — Não, mas... Vejamos, eu gosto de correr. Gosto de música clássica. Jogo xadrez às vezes. Assisto à TV às vezes. Leio livros. Romances.

— Nada muito característico — disse ela.

— Eu nunca disse que era diferente dos outros. O que mais você se lembra da expedição?

Ela semicerrou os olhos, as sobrancelhas pressionando o resto do rosto como se isso a ajudasse a lembrar melhor.

— É uma pergunta muito abrangente, Sr. Diretor. Abrangente demais.

— Pode responder como preferir.

— Ah, obrigada.

— Eu quis dizer que...

— Eu sei o que você quis dizer — disse ela. — Quase sempre sei.

— Então responda.

— Isso é um jogo voluntário — explicou ela. — Podemos parar a qualquer instante. Talvez eu queira parar agora. — Era aquele senso de imprudência de novo, ou seria outra coisa? Ela suspirou, cruzou os braços. — Alguma coisa ruim aconteceu lá no topo. Vi algo ruim. Mas não sei bem o que foi. Uma chama verde. Um sapato. É uma coisa confusa, como um caleidoscópio. Uma coisa que vem e vai embora. Como se eu estivesse acessando as memórias de outra pessoa. Do fundo de um poço. Num sonho.

— Memórias de outra pessoa.

— Minha vez agora. Sua mãe faz o quê?

— Isso é assunto confidencial.

— Aposto que é — emendou ela, lançando-lhe um olhar de admiração.

* * *

Ele encerrou a entrevista logo depois. O que era a verdadeira empatia, às vezes, senão virar as costas e deixar alguém em paz? Cansada e em seu próprio quarto, ela se tornou, na mente dele, não propriamente menos atenta, mas quase relaxada em excesso.

Ela o deixava confuso. O tempo todo estava descobrindo novas características que não tinha percebido antes, que não existiam na bióloga que ele conhecera por meio dos arquivos e das transcrições. Hoje, sentira como se estivesse conversando com alguém mais jovem, mais espontâneo, mas também mais vulnerável, caso preferisse explorar essa possibilidade. Talvez fosse exatamente porque ele invadira seu território enquanto ela estava doente. Ou talvez ela estivesse, por algum motivo, testando personalidades. Parte dele sentia falta daquela Ave Fantasma mais disposta ao confronto.

Quando atravessou as sucessivas barreiras de segurança de novo e passou pelo corredor com as fotografias falsas, reconheceu que ela pelo menos admitira que algumas de suas lembranças da expedição estavam intactas. Era uma espécie de avanço. Embora ainda parecesse muito lento; às vezes sentia que tudo acontecia muito devagar e que ele demorava demais a entender as coisas. O tique-taque de um relógio que ele não podia ver, que estava de fato além da sua percepção.

Um dia o retrato dela estaria naquela parede. Quando a pessoa ainda estava viva, precisava posar para um quadro como aquele, ou ele era pintado a partir de fotos? Ela precisaria contar alguma história sobre suas experiências na Área X, mesmo sem ter uma lembrança completa do que aconteceu?


015: SÉTIMA FENDA

Também havia fotografias soterradas nos restos de papéis sobre a mesa da diretora. Muitas eram do farol, de diferentes ângulos, algumas delas tiradas por membros de várias expedições, mas também havia reproduções de antigos daguerreótipos feitos logo após a construção do farol, junto com gravuras e mapas. Havia algumas fotos da anomalia topográfica, embora em menor quantidade. Entre elas estava uma segunda cópia da foto pendurada na parede em frente à mesa, quase certamente a mesma foto descrita pela bióloga. A imagem em preto e branco do último faroleiro, Saul Evans, tendo à esquerda um dos seus assistentes e à direita, com o corpo encurvado ao escalar umas pedras ao fundo, uma menina com o rosto parcialmente oculto pelo capuz do casaco. O cabelo era negro, castanho, louro? Impossível dizer pelas poucas mechas visíveis. Vestia uma camisa de flanela e jeans. A foto tinha uma aparência de inverno, a relva ao fundo era rala e sem brilho, as ondas visíveis por trás da linha de areia e rochas se encapelavam sugerindo frio. Uma menina do local? Como era o caso de tantas outras pessoas, talvez nunca soubessem quem era ela. Aquela costa esquecida não era o melhor lugar de viver para alguém que quisesse ser descoberto pelos dados do censo.

O faroleiro parecia ter quarenta e tantos anos, talvez cinquenta e poucos, mas Controle sabia que eles podiam trabalhar apenas até os cinquenta anos, então devia estar na casa dos quarenta. Um rosto marcado pelo clima, barbudo, como era de se esperar. Um quepe de capitão de navio, embora o homem nunca tivesse sido sequer marinheiro. Controle não conseguiu intuir nada apenas olhando para Saul Evans. O faroleiro parecia um clichê falante e ambulante, como se tivesse passado anos aprendendo a imitar primeiro um pregador excêntrico cujos sermões prometiam o fogo do inferno e em seguida o que quer que alguém imaginasse de um faroleiro. Era possível tornar-se invisível dessa forma, como Controle já sabia de suas poucas missões de campo. Torne-se um estereótipo e você não será mais visto. Ideia paranoica: Que disfarce melhor do que esse? Mas disfarce contra o quê?

A foto tinha sido tirada por um membro da Brigada da Paranormalidade e da Ciência, uns seis meses antes do Evento que produzira a Área X. O fotógrafo desaparecera quando a barreira surgiu. Aquela continuava sendo a única foto de Saul Evans que eles possuíam, exceto por alguns retratos de vinte anos atrás, bem antes de ele ir morar lá.

* * *

À tardinha, Controle achava que ainda não tinha avançado muito. Acabara de se dar uma pausa de suas tarefas como diretor do Comando Sul — embora mesmo isso tivesse sido interrompido (mais uma vez) pelo som de sua reconstruída barricada de cadeiras sendo movida por um vulto que afinal revelou-se como sendo Cheney, inclinando o tronco por cima dos móveis para espiar pela porta.

— Olá, Cheney.

— Olá... Controle.

Talvez por sua frágil posição, Cheney parecia meio perdido, mesmo sendo ele o intruso. Era como se ele tivesse pensado que o escritório estaria vazio, as cadeiras indicando uma mudança na hierarquia.

— Sim? — disse Controle, que não queria encorajar Cheney a entrar.

O X em seu rosto se aprofundou, as marcas de expressão tentando sem sucesso ficar paralelas ou virar uma linha só.

— Ah, sim, bem... Só queria checar se você tinha pesquisado melhor, você sabe, sobre a... a viagem da diretora.

Este último trecho foi dito em voz mais baixa e seguido por uma olhadela rápida à extensão do corredor. Será que Cheney tinha uma facção também? Isso seria muito cansativo. Mas sem dúvida ele tinha: era a única esperança real de todos aqueles cientistas nervosos amontoados no porão, esperando a extinção de cargos, esperando serem agarrados, um a um, em suas salas e cubículos, pela gigantesca garra invisível da Central e arremessados pelos quatro cantos da Terra.

— Já que está aqui, Cheney, tenho uma pergunta para você. Sabe algo fora do comum relativo à antepenúltima décima primeira expedição? — Outra coisa que Controle detestava nessas conversas: uma enorme cadeia de sílabas para pronunciar, mais difícil de lembrar do que o simples número. — X.11.H, não é mesmo?

Cheney, que tinha movido algumas cadeiras, surgiu por inteiro à porta com jaqueta de motoqueiro e tudo.

— X.11.J na verdade. Não, não acredito que haja nada. Os arquivos estão com você.

Mas era justamente isso. Controle lera um relatório bastante tosco, incluindo o detalhe de que a diretora tinha realizado os interrogatórios... que eram espantosamente vagos em suas mensagens felizes de que-bom-que-nada-de-ruim-aconteceu.

— Bem — continuou Controle —, essa foi a expedição que antecedeu a viagem especial da diretora. Pensei que você talvez soubesse de alguma coisa.

Cheney balançou a cabeça, e parecia agora estar lamentando ter ido ali.

— Não, não muita coisa. Nada que me venha à mente.

O fato de estarem no escritório da diretora o deixava desconfortável? Seus olhos pareciam não conseguir se fixar em coisa alguma: ricocheteavam da parede oposta na direção do teto e depois, com a rapidez das asas de uma mariposa, paravam nas montanhas de provas nada profissionais em volta de Controle. Será que Cheney as via como pilhas de ouro que Controle roubaria, ou pilhas de sanduíche de merda que ele seria obrigado a comer?

— Deixe-me perguntar sobre Lowry, então — disse Controle, pensando naquelas ambíguas notas que se referiam a “L.” e o vídeo a que estava prestes a assistir. — Como era o relacionamento entre Lowry e a diretora?

Cheney continuou pouco confortável ao ouvir essa pergunta, mas estava mais disposto a responder.

— Como é que todas as pessoas se relacionam, quando a gente realmente pensa nisso? Lowry não gostava de mim, pessoalmente, mas do ponto de vista profissional nos entendíamos bem. Ele compreendia a natureza do nosso papel aqui. Sabia a importância de dispor de um bom equipamento.

O que significava que Lowry aprovara todos os pedidos de material feitos por Cheney.

— Mas, e quanto a ele e a diretora? — insistiu Controle.

— Sendo curto e grosso? Lowry a admirava, a seu modo, tentou fazer dela sua protegida, mas ela não queria isso. Era uma pessoa muito independente. E acho que pensava que ele recebia poderes demais só pelo fato de ter sobrevivido.

— Ele não era um herói?

Um grande herói da revolução, pintado num muro, recriado através de uma imagem produzida por uma câmera e por documentos alterados. Reabilitado após sua terrível experiência. Tornado produtivo. Depois de algum tempo, despachado para a Central.

— Claro, claro — respondeu Cheney. — Sem dúvida. Mas talvez um tanto superestimado. Gostava de beber. Gostava de intimidar as pessoas. Lembro que uma vez a diretora o criticou, comparando-o a esses ex-prisioneiros de guerra que acham que só porque sofreram sabem de tudo. Então havia certo atrito. Mas mesmo assim eles trabalhavam em conjunto. Respeitavam a posição um do outro. — Deu um rápido sorriso como se dissesse “somos todos bons camaradas aqui”.

— Interessante.

Na verdade, não muito. Outra descoberta tática: provas de conflitos internos no Comando Sul, uma ruptura na harmonia organizacional porque as pessoas não eram robôs, não podiam ser forçadas a agir como robôs. Ou podiam?

— É, se você diz — disse Cheney, e foi se afastando.

— Mais alguma coisa? — perguntou Controle, com um olhar cortante e um sorriso congelado, desafiando Cheney a fazer outra pergunta sobre suas investigações quanto à viagem da diretora.

— Não, acho que não. Não mesmo. Nada que me ocorra — respondeu Cheney, claramente aliviado.

Fez um cumprimento de despedida ao clássico estilo espalhafatoso cheneyano e recuou, esbarrando nas cadeiras, até sumir no corredor.

Depois disso, Controle concentrou-se apenas no exame e seleção do material, até que cada pedaço de papel tivesse sido verificado e as pilhas guardadas em segurança em caixas separadas para futura organização. Embora Controle tivesse encontrado numerosas referências à Brigada da Paranormalidade e da Ciência, havia somente três breves menções a Saul Evans que podiam ser relacionadas à fotografia. Como se os interesses da diretora a tivessem guiado para outra direção.

Ele tinha achado e separado, contudo, uma folha de papel escrita à mão pela diretora, aparentemente frases e palavras aleatórias, que ele só depois percebeu, fazendo uma referência cruzada com o arquivo PAD de Grace, terem sido usadas como comandos hipnóticos sobre os membros da décima segunda expedição. Bem, isso era interessante. Ele quase chamou Cheney para perguntar a respeito, mas alguma coisa o fez pousar de novo o telefone antes de apertar o botão.

* * *

Às seis e quinze, Controle sentiu a necessidade de caminhar no corredor para esticar as pernas. O prédio estava silencioso e mesmo um rádio distante soava como uma canção de ninar engrolada. Afastando-se cada vez mais, ele estava cruzando o refeitório vazio quando ouviu sons que vinham de um depósito perto do corredor que conduzia ao setor de ciência. Quase todo mundo já tinha ido embora, e ele planejava partir em breve, mas aqueles sons o intrigaram. Quem estaria ali? O zelador invisível, pensou. Aqueles horrendos produtos de limpeza tinham de ser trocados. Ele estava certo de que faziam mal à saúde.

Então segurou a maçaneta e levou um pequeno choque quando a girou, puxando-a para fora com toda sua força.

A porta se escancarou, atirando-o para trás.

Uma criatura pálida estava agachada diante das prateleiras de suprimentos, sob a luz de uma única lâmpada que pendia do teto por um fio.

Uma agonia insuportável, mas cheia de beatitude deformava suas feições.

Whitby.

* * *

Arquejando, Whitby olhou para Controle. A expressão de agonia começou a se dissipar, deixando em seu lugar uma expressão mista de ardileza e precaução.

Whitby visivelmente sofrera alguma espécie de trauma, como se tivesse recebido a notícia do falecimento de um parente ou um amigo muito próximo. Mesmo tendo sido Controle quem recebeu o maior choque.

Controle disse, com um tom de voz idiota:

— Depois eu volto.

Como se os dois tivessem marcado uma reunião no depósito de suprimentos.

Whitby deu um pulo para a frente como uma aranha e Controle encolheu-se, recuando um passo, certo de que o outro queria atacá-lo. Em vez disso, Whitby o agarrou e puxou para dentro do depósito, batendo a porta atrás dos dois. Whitby tinha mãos surpreendentemente firmes para um homem tão leve.

— Não, não, venha aqui, por favor — disse ele a Controle, como se incapaz de ao mesmo tempo falar e puxar seu chefe para dentro, provocando um problema de sincronismo labial.

— É sério, posso voltar mais tarde — repetiu Controle, ainda confuso, tentando preservar a ilusão de que não tinha acabado de ver Whitby numa expressão total de desespero... e também a ilusão de que aquilo era o escritório de Whitby e não um depósito de material de limpeza.

Whitby o encarava sob o facho de luz daquela única lâmpada incandescente. Os dois bem próximos um do outro devido ao espaço apertado do recinto, estreito, com um teto tão alto que não podia ser visto através da escuridão, pois a lâmpada tinha por cima uma aba circular de metal, que direcionava o facho de luz só para baixo. As prateleiras de ambos os lados exibiam várias filas de produtos de limpeza com aroma de limão, latas e latas de sopa, esfregões, sacos de lixo e alguns relógios digitais cobertos por uma grossa camada de poeira. Uma longa escada prateada elevava-se até sumir nas trevas.

Controle percebeu que Whitby ainda estava se aprumando, deliberadamente substituindo o cenho franzido por um sorriso, tirando do rosto as últimas contrações do medo.

— Estava só em busca de um pouco de paz e silêncio — disse Whitby. —Às vezes é difícil de achar aqui.

— Você parecia estar sofrendo um colapso nervoso — disse Controle, não muito certo se ele queria continuar a fingir que não tinha visto nada. — Está tudo bem?

Sentia-se mais à vontade para dizer isso agora que tinha certeza de que Whitby não sofreria um surto psicótico. Mas estava constrangido ao perceber com que facilidade Whitby conseguira atraí-lo e trancá-lo ali.

— Não, não — disse Whitby, enquanto o sorriso finalmente tornava-se natural, e Controle esperou que isso fosse uma resposta à primeira pergunta. — Em que posso ajudá-lo?

Controle resolveu fazer o jogo de Whitby, apenas por ter notado que o ferrolho interno da porta tinha sido danificado com um instrumento pesado. Então, Whitby estava precisando de um pouco de privacidade, mas também sentia medo de ficar trancado. Havia uma equipe de psiquiatria à disposição dos funcionários do Comando Sul. Controle não lembrava de ter visto nenhuma referência a esse tipo de consulta no fichário de Whitby.

Levou mais tempo a Controle do que lhe parecia natural, mas então achou uma saída. Algo que seria respondido e depois lhe permitiria retirar-se sem constrangimento. Preservando a dignidade de Whitby. Talvez.

— Não é grande coisa, na verdade — disse Controle. — É sobre algumas teorias da Área X.

Whitby assentiu.

— Sim, a questão dos universos paralelos, por exemplo — disse ele, como se estivessem reatando uma conversa anterior, uma conversa de que Controle não se recordava.

— De que o que causou a Área X veio de um deles — completou Controle, citando algo em que não acreditava e sem questionar a importância dada ao assunto.

— Isso mesmo — disse Whitby. — Mas estive pensando mais em como cada decisão que tomamos vai teoricamente subdividindo tudo, de maneira que ficamos com um número infinito de outros universos por toda parte.

— Interessante — assentiu Controle.

Se ele deixasse Whitby conduzir a dança, talvez ela se encerrasse mais depressa.

— E em alguns deles — explicou Whitby —, nós resolvemos o mistério, e em outros o mistério nem sequer existiu e nunca houve uma Área X. — Isso foi pronunciado com uma intensidade crescente. — E podemos ficar aliviados com isso. Talvez até satisfeitos. — Seu rosto foi murchando à medida que ele prosseguiu: — A não ser por outro pensamento. Alguns desses universos onde descobrimos a solução do mistério podem estar separados do nosso pela mais fina das membranas, a mais insignificante das variações. Isso é uma coisa que não sai da minha cabeça. Qual será o detalhe banal que não estamos vendo, que coisas estamos fazendo que nos afastam da solução?

Controle não gostava daquele tom de confidência, porque parecia que Whitby estava revelando uma coisa para esconder outra, assim como a explicação da bióloga sobre a sensação de afogamento. Tudo misturado a universos paralelos de percepção que se abriam entre ele e Whitby enquanto o sujeito falava, porque Controle começou a sentir como se estivesse se referindo a fendas, as mesmas que ocupavam sua mente no dia a dia. Whitby referindo-se a essas fendas incomodava Controle de um modo territorial, como se Whitby estivesse comentando seu passado, por mais ilógico que isso fosse.

— Talvez seja por causa da sua presença — provocou Controle. Uma brincadeira, mas cruel, para manter o outro à distância e encerrar aquela conversa. — Talvez se você não estivesse aqui a gente já tivesse resolvido tudo.

A expressão no rosto de Whitby foi terrível, mostrando-o dividido entre saber que Controle falara de brincadeira e a certeza de que não tinha importância se era piada ou se era sério. Tudo isto exposto de tal maneira que Controle percebeu que a ideia não era original, mas algo em que Whitby já havia pensado muitas vezes. Seria cínico demais falar “não foi isso que eu quis dizer”, de modo que alguma versão de Controle apenas saiu, correndo o mais depressa possível, sabendo que essa solução radical era pouco ortodoxa, mas incapaz de se conter. Correndo pelo carpete verde enquanto continuava ali e pedia desculpas/achava graça/mudava de assunto/fingia estar recebendo uma ligação... Ou, como ele acabou fazendo, ficando calado e deixando um silêncio incômodo se instalar entre os dois.

Como forma de retaliação, embora Controle não o percebesse na hora, Whitby disse:

— Você já viu o vídeo, não viu? Da primeira expedição?

— Ainda não — revelou ele, como se estivesse admitindo que era virgem.

A exibição estava marcada para o dia seguinte.

Um estremecimento silencioso sacudiu Whitby por inteiro quando fez a pergunta, uma espécie de tentativa de livrar-se de algo ou rejeitar... alguma coisa, mas Controle decidiu que quem iria fazer essa pergunta a Whitby seria outra versão sua, outro dia.

Haveria uma realidade paralela em que Whitby resolvera o mistério e estava lhe dizendo isso agora mesmo? Ou uma realidade em que Controle estava esganando Whitby pelo simples fato de ser Whitby? Talvez em alguns desses universos ele encontrasse Whitby numa caverna após um holocausto nuclear, ou numa loja comprando sorvete para uma esposa grávida ou, indo um pouco mais longe, talvez em alguns roteiros eles já tivessem se conhecido muito antes — Whitby, o insuportável professor substituto que ele teve durante uma semana no ensino médio. Talvez isso fosse um vislumbre dos motivos por que Whitby não avançara mais na carreira, por que sua pesquisa era interrompida a toda hora para ele atender resmungando as solicitações dos outros. Controle queria atribuir a Whitby um trauma localizado que explicasse suas ações. Ele se perguntava se ainda teria de atravessar muitas camadas para chegar ao âmago de Whitby, ou se não havia nenhum âmago para se atingir e eram as camadas que definiam o homem.

— Este é o aposento que você queria me mostrar? — perguntou Controle, para mudar o assunto.

— Não. O que o levou a pensar isso? — Os olhos cavernosos e a expressão súbita de susto coreografado o deixaram parecido com uma coruja emaciada.

Controle conseguiu livrar-se dele um ou dois minutos depois.

Mas não pôde tirar da cabeça a imagem do rosto de Whitby contorcendo-se de agonia. E não tinha ideia de por que Whitby se escondera no depósito de suprimentos.

* * *

A Voz ligou alguns minutos depois, quando Controle estava mais do que ansioso para dar o dia por encerrado. Controle estava pronto, apesar de Whitby. Ou, talvez, por causa de Whitby. Certificou-se de que a porta de seu escritório estava trancada por dentro. Pegou uma folha de papel onde rabiscara algumas anotações para si mesmo. Então, com todo cuidado, colocou a Voz no viva-voz a médio volume, já tendo testado para saber que não havia eco nem a sensação de alguma coisa fora do comum.

Ele disse alô.

Uma conversa se seguiu.

Conversaram durante algum tempo. Então, enquanto Controle continuava consultando suas notas, a intervalos irregulares, a Voz disse:

— Ótimo, estabilize-se, e faça o seu serviço. Paralisia também não é uma opção convincente. Você vai dormir bem hoje à noite.

Estabilize-se. Paralisia. Convincente. Ao desligar, ele alarmou-se ao perceber que sentia de fato que tinha se estabilizado. Que agora o seu encontro com Whitby parecia apenas um estalar de dedos, uma coisa sem maiores consequências quando vista no contexto geral de sua missão.


016: TERROIRS

No balcão da lanchonete na manhã seguinte, a caixa, uma mulher rechonchuda e grisalha, perguntou:

— Você é da turma que trabalha naquela agência do governo na base militar?

Cauteloso, ainda lutando contra o sono e com um pouco de ressaca, ele retrucou:

— Por que pergunta?

— Ah! — disse ela, com simpatia. — É porque todos têm o mesmo jeitão, só isso.

A intenção era que ele perguntasse: “E que jeitão é esse?” Em vez disso, Controle deu apenas um sorriso misterioso e fez o pedido. Não queria saber que jeito era esse que compartilhava, nem qual era o clube secreto para o qual entrara inadvertidamente. Será que ela tinha em algum lugar uma tabela onde anotava cada característica em comum?

De volta ao carro, Controle percebeu que uma espécie de mofo branco cobrira o mosquito morto e as gotas de sangue seco no interior do para-brisa. Com o seu senso de ordem e limpeza ofendido, ele limpou com um guardanapo de papel. Afinal de contas, se aquilo era uma prova de invasão do seu carro, a quem ele iria apresentá-la?

* * *

O primeiro item da sua agenda era a exibição, muito aguardada, do vídeo feito pela primeira expedição. Esses fragmentos ficavam guardados numa sala especial, numa área do edifício adjacente aos alojamentos dos membros das expedições. Um enorme console branco estava instalado junto à parede, num espaço bem apertado. Ele se projetava mais na parte de cima do que de baixo, reproduzindo o aspecto do edifício do Comando Sul. Nesse equipamento — que lembrava uma cabeça cinza fosca escondida por um capuz de aspecto cubista —, uma televisão fora encaixada para exibir aquele vídeo e nada mais. O aparelho era antigo, da época da primeira expedição, com a parte de trás volumosa encaixada num nicho da parede. As costas de Controle ainda lembravam com um gemido o peso desajeitado daquele trambolho quando, em seus tempos de estudante, ele tentou carregar um deles para seu dormitório.

Uma mesa baixa de mármore negro com reflexos de fórmica ficava à frente da televisão, e havia botões antiquados e joysticks que permitiam manipular o vídeo — quase como uma exposição de tecnologia ultrapassada num museu, ou uma daquelas maquininhas para falar com os espíritos. Havia um conjunto de quatro cadeiras de reunião, de couro negro, enfiadas sob a mesa. O espaço ficava apertado quando as cadeiras eram utilizadas, embora o teto estivesse a uns bons sete metros. Isso deveria aliviar um pouco a sensação claustrofóbica, mas servia apenas para reforçá-la com um pouco de vertigem, devido ao modo como o console se projetava. Os dutos de ventilação acima dele, Controle logo reparou, estavam bastante sujos. Um cheiro de painel de automóvel disputava espaço com um de mofo envelhecido.

Os nomes de vinte e quatro dos vinte e cinco membros da expedição foram gravados em grandes placas douradas afixadas na parede.

Grace negava que a parede cheia de palavras escritas pelo faroleiro fosse um memorial para a antiga diretora, mas não poderia negar que esta sala servia de memorial para a expedição, ou que ela mesma fazia ali o papel de guardiã e curadora. Os protocolos de segurança para o acesso àquele vídeo eram tão rigorosos que dos atuais funcionários do Comando Sul somente a antiga diretora, Grace e Cheney tinham acesso liberado. Todos os outros podiam ver reproduções fotográficas e transcrições de texto, mas, ainda assim, sob condições cuidadosamente controladas.

Desse modo, Grace foi seu contato, já que os demais não podiam, e enquanto ela silenciosamente puxava a cadeira e preparava a exibição do vídeo, um procedimento cheio de mistério, Controle percebeu que ela passara por uma mudança. Grace cuidava da sessão não com a expectativa maliciosa que ele teria esperado, mas com uma amorosa devoção, num ritmo mais apropriado para um funeral que para uma exibição de vídeo. Como se ali fosse um espaço neutro, e um cessar-fogo tivesse sido declarado entre os dois sem que fosse previamente comunicado.

O vídeo serviria para mostrar a ele pessoas mortas que se tornaram obscuramente lendárias dentro do Comando Sul, e ele percebeu que Grace levava esta função muito a sério. Em parte, provavelmente, porque tinha sido assim com a diretora — e a diretora conhecera aquelas pessoas, mesmo que sua antecessora os tivesse mandado para seu destino fatal. Dois anos depois que a barreira apareceu. Depois de um ano de preparativos. Com o melhor equipamento de alta tecnologia que o Comando Sul era capaz de adquirir ou de produzir. E isso os condenou.

Controle percebeu que seu coração estava batendo mais rápido, a boca estava seca, as palmas das mãos, úmidas. Era como se estivesse se preparando para um teste muito importante, um teste que teria consequências.

— É autoexplicativo — disse Grace por fim. — O vídeo é rebobinado até o começo e passa a ser exibido, com saltos, em ordem cronológica. Você pode pular de clipe em clipe. Pode avançar e voltar, como preferir. Se não tiver acabado quando completar uma hora, eu virei aqui e encerrarei a sessão.

Eles tinham recuperado mais de cento e cinquenta fragmentos, e a maior parte deles tinha duração entre dez segundos e dois minutos. Alguns foram recolhidos por Lowry, outros pela quarta expedição. Era recomendado não assistir a esse material por mais de uma hora. Poucas pessoas tinham atingido esse limite.

— Ficarei esperando do lado de fora. Pode bater na porta, se acabar antes.

Controle assentiu. Isso queria dizer que ele seria trancado pelo lado de fora? Aparentemente, sim.

Grace levantou-se da cadeira e ele ocupou seu lugar. Ao sair, ela inesperadamente pôs a mão sobre seu ombro, talvez imprimindo no gesto um pouco mais de pressão do que o necessário. Depois ouviu-se o clique da porta sendo trancada por fora, e ele ficou sozinho naquela cripta de mármore coberta com nomes de fantasmas.

Controle pedira para passar por essa experiência, mas agora não tinha certeza de que a desejava.

* * *

As primeiras sequências mostravam acontecimentos normais: pessoas montando acampamento, com o farol distante invadindo de vez em quando a imagem tremida. Os vultos das árvores e das barracas surgiam escuros ao fundo. O céu azul apareceu na tela quando alguém pousou a câmera e esqueceu de desligá-la. Algumas risadas, ruído de vozes conversando, mas Controle já estava, como um vidente ou um viajante no tempo, cheio de suspeitas. Seria aquilo o esperado, a normalidade, a camaradagem demonstrada por seres humanos, ou seria o presságio de comunicados secretos, subcutâneos e impactantes? Controle quis evitar a interferência e a influência das análises e opiniões alheias, por isso não leu tudo que havia nos arquivos. Mas naquele instante percebeu que já estava blindado demais por informações prévias, cínico demais quanto às próprias preocupações para não se achar um pouco ridículo. Se não tivesse cuidado, tudo seria ampliado, mal interpretado, até que cada frame trouxesse em si uma promessa de perigo. Ele tinha a lembrança de uma anotação feita por outro analista, de que nenhuma outra expedição encontrara o que ele estava prestes a ver. Pelo menos não aqueles que conseguiram voltar.

Alguns fragmentos do vídeo-diário do chefe da expedição seguiam-se ao entardecer — filmados em contraluz, com a fogueira do acampamento por trás —, relatando fatos que Controle já conhecia. Depois seguiam-se mais sete fragmentos, cada um com quatro ou cinco segundos, que não mostrava nada além de formas borradas: tomadas noturnas, sem contraste. Ele apertou os olhos examinando aquelas sombras, na esperança de que alguma forma, alguma imagem, se revelasse. Mas, no fim, ficava apenas a profecia autoexplicada de grãos escuros de poeira flutuando nos cantos de seu campo visual, como minúsculos parasitas em órbita.

Um dia se passou, com a expedição se espalhando em ondas a partir do acampamento inicial, e Controle procurando não se apegar a ninguém. Não se deixando seduzir pela maneira como faziam piadas. Nem pela evidente seriedade e competência de todos, algumas das melhores mentes que o Comando Sul foi capaz de reunir. As nuvens se esticavam, longas, no céu. Houve um momento de dura realidade quando encontraram os destroços semienterrados de um comboio de tanques e caminhões militares, enviado para aquela área antes de a barreira se formar. O equipamento todo já estava coberto de terra e trepadeiras. Quando a quarta expedição passou por ali, Controle sabia, todos os vestígios já tinham sumido. A Área X os requisitara para seus próprios planos, como espólio dos vitoriosos. Mas não havia restos humanos para perturbar a primeira expedição, embora Controle visse alguns deles de cenho franzido. Àquela altura, também, se prestasse atenção, era possível ouvir os primeiros sinais da queda de transmissão dos walkie-talkies usados pelos membros da expedição, perguntas cada vez mais frequentes de “alô’, “você está aí?”, seguidos de barulho de estática.

Outro anoitecer, o nascer de outro dia, e Controle tinha a sensação de estar avançando no interior de um clipe acelerado, onde era quase capaz de relaxar no casulo formado por cada momento sem importância e viver para sempre ali, ignorando todo o resto. Mesmo sabendo que alguma interferência já estava se espalhando, de modo que as chamadas por walkie-talkie já tinham se tornado enganos verbais e mal-entendidos. Tanto os que falavam quanto os que ouviam já começavam a ser colonizados por algum poder externo, embora ainda não o percebessem. Ou, pelo menos, ninguém comentava suas preocupações diante da câmera. Controle optou por não rever esses trechos. Eles provocavam um arrepio em sua nuca, davam-lhe uma leve sensação de náusea, aumentavam a impressão desestabilizadora de vertigem e claustrofobia.

Por fim, no entanto, Controle não podia mais se enganar. Estava chegando ao famoso clipe de vinte e dois segundos; de acordo com os relatórios, fora filmado por Lowry, que era o antropólogo da equipe. O início do anoitecer do segundo dia, com um resto de luz do sol. A torre escura e indistinta do farol a meia distância. Na sua inocência, eles não perceberam o perigo de se dividir, e o grupo de Lowry decidira acampar na trilha, entre as ruínas de casas abandonadas a meio caminho do farol. Não eram suficientes para constituir um vilarejo, e não tinham nome nos mapas, mas aquela fora a maior concentração populacional na região.

Um farfalhar, que Controle atribuiu à relva alta e ao vento que vinha da praia, mas bem suave. As ruínas das paredes antigas formavam sombras mais densas contra o céu, e ele podia ver uma faixa larga, o caminho calçado de pedras que cruzava todo aquele espaço. No clipe, Lowry tremia um pouco ao segurar a câmera. Num plano mais próximo, uma mulher, a líder da expedição, gritava: “Faça ela parar!” O rosto dela, sob a luz da câmera, parecia uma máscara com sombras profundas em torno dos olhos e da boca. Do lado oposto, numa mesa de piquenique improvisada que parecia parcialmente queimada, uma mulher, a líder da expedição, gritava: “Faça ela parar! Pare, por favor! Pare, por favor!”. Houve um balanço e um giro da câmera, que se estabilizou em seguida, presumivelmente ainda nas mãos de Lowry. O antropólogo começou a arquejar, e Controle percebeu que o som que ouvira antes era uma respiração surda, um pouco engasgada. Não tinha sido o vento. Agora ele podia ouvir gritos roucos, urgentes, de vozes que vinham de longe, mas não era possível entender o que diziam. A mulher do lado esquerdo tinha parado de gritar e olhava para a câmera. A mulher da direita também parou de gritar e olhou para a câmera. A mesma mistura de medo e súplica e confusão se irradiava das máscaras que eram aqueles dois rostos virados para ele, de um lugar tão longe, de tantos anos atrás. Ele não conseguia distinguir as duas manifestações, não com aquela pouca luz.

Então, empertigando-se no assento, mesmo já sabendo o que estava por vir, Controle percebeu que não foi o anoitecer que roubara as cores da paisagem por trás. Era como se algo brotasse da paisagem, algo tão incrivelmente grande que seus contornos estavam fora do enquadramento da câmera. No último segundo do vídeo, com as duas mulheres ainda imóveis e se encarando, a imagem ao fundo mudou e continuou mudando... e foi seguida por um clipe que deixou Controle ainda mais gelado: Lowry diante da câmera, dessa vez, fazendo brincadeiras na praia na manhã seguinte, e a pessoa que segurava a câmera dando risadas. Nenhuma referência à líder da expedição. Nenhum sinal dela em qualquer dos fragmentos restantes da filmagem, isso ele já sabia. Nenhuma explicação de Lowry. Era como se ela tivesse sido apagada das suas lembranças, ou como se todos tivessem sofrido algum trauma vasto, inimaginável, durante o intervalo naquela noite em que a câmera ficou desligada.

Mas a dissolução prosseguiu, a despeito daquela aparente felicidade e descontração. Porque Lowry dizia palavras ininteligíveis e a mulher por trás da câmera respondia como se pudesse entendê-lo, e com uma voz ainda não deformada.

* * *

A carnificina o acompanhou depois da sessão de vídeo, quando ele finalmente foi, acompanhado por Grace, até a luz, ou um tipo diferente de luz. A carnificina ainda o acompanharia por um bom tempo. Ele não tinha certeza, era difícil pôr aquilo em palavras, não fizera muito além de murmurar coisas aleatórias e fazer um sinal de positivo quando Grace perguntou se ele estava bem, enquanto segurava seu braço como se para evitar que ele caísse. Ele sabia, porém, que aquela piedade tinha um preço, e que iria pagar por ela depois. De modo que soltou o braço, insistiu em seguir à frente, sozinho, e caminhou todo o trajeto de volta isolado.

Ainda tinha pela frente um dia inteiro de trabalho. Precisava se recompor. Seu próximo compromisso era o interrogatório habitual com a bióloga, depois reuniões de rotina, e depois... não conseguia lembrar o que vinha em seguida. Cambaleou, tropeçou, apoiou-se sobre um joelho, percebeu que estava no refeitório e no familiar carpete verde com seu padrão de setas apontando para o pátio. Banhado na luz que se derramava daquelas janelas enormes, ao estilo de vitrais de uma catedral. Fazia sol lá fora, mas ele já enxergava um tom carrancudo de cinza no meio das nuvens brancas, anunciando mais aguaceiros para aquela tarde.

Na água negra e com o sol brilhando à meia-noite, aqueles frutos amadurecerão e naquela escuridão dourada se partirão para expor a revelação da suavidade fatal da terra.

Um farol. Uma torre. Uma ilha. Um faroleiro. Uma barreira com uma porta cintilante. Uma diretora que possivelmente desapareceu do outro lado daquela barreira, através daquela porta. Um mosquito esmagado no para-brisa. O rosto angustiado de Whitby. A luz bruxuleante da fronteira. O celular da diretora em sua pasta. Vídeos diabólicos abrigados com toda honra num altar. Detalhes que estavam começando a esmagá-lo. Ainda não tivera chance de deixar que assentassem, de saber quais deles eram significativos e quais eram triviais.

Ele dava tudo de si, como sua mãe queria, mas isso não o estava conduzindo muito longe. Havia o perigo de que a assimilação de muitas informações novas ultrapassasse seu treinamento, e também todos os conhecimentos que ele trouxera consigo. Já tinha esgotado o que havia naqueles arquivos que memorizou, tinha exaurido as táticas. Então bem depressa começaria a examinar as anotações da diretora, e sabia que novos mistérios iriam aparecer.

Os gritos continuaram até o fim. A pessoa que estava segurando a câmera não parecera humana. Acordem, ele tinha implorado aos membros da primeira expedição enquanto via as imagens. Acordem e entendam o que está acontecendo com vocês. Mas eles não acordaram. Não podiam. Estavam a muitos quilômetros de distância, e ele e seu alerta chegavam com trinta anos de atraso.

Controle pôs a mão sobre o carpete, e as setas verdes, tão próximas, eram compostas de fios de uma fibra toda trançada em espirais, um tecido quase como lodo. Ele sentiu sua aspereza, o quanto estava desgastado pelos anos. Seria aquele o carpete original, de trinta e tantos anos atrás? Se fosse, cada um dos personagens principais daquele vídeo, ou dos arquivos, caminhara por ali, cruzara aquele chão centenas e centenas de vezes. Talvez o próprio Lowry, segurando sua câmera, dizendo gracejos antes da expedição. Estava tão desgastado quanto o próprio Comando Sul, enquanto a agência se movia ao longo dos trilhos que lhe eram destinados naquele trem-fantasma da Área X.

As pessoas olhavam para ele ao cruzarem o refeitório. Era melhor se erguer.

Nos salões mal-iluminados de outros lugares formas que nunca poderiam existir se contorcem.

* * *

Controle se levantou e foi até a sala de interrogatórios encontrar a bióloga, depois de uma rápida passagem no próprio escritório. Precisava relaxar de alguma forma, se purificar. Procurou o dossiê sobre Rock Bay, o emprego mais duradouro da bióloga antes de se juntar à décima segunda expedição. Das suas anotações de campo e seus desenhos, ele podia ver que era seu lugar favorito. Uma floresta tropical no norte, rica, com um viçoso ecossistema. Ela alugou um chalé nas redondezas, e, além das fotografias dos poços de maré que estudara, havia também fotos de seus aposentos, seguindo ao pé da letra os manuais da Central. A cama que mais parecia um catre, a cozinha confortável, o fogão preto no canto, que podia também ser usado como lareira, o largo bico se erguendo até a chaminé. Havia ali uns sinais da proximidade da natureza que o atraíam, que o acalmavam, assim como a aparência doméstica daquela casinha.

Assim que se sentou, Controle colocou uma garrafa de água e a pilha de pastas sobre a mesa entre os dois. Era uma artimanha que já o entediava, mas mesmo assim... Sua mãe sempre lhe dissera que a repetição do ritual tornava ainda mais dramática a revelação daquilo que permanecera invisível. Qualquer dia desses ele poderia apontar para os documentos e fazer uma oferta.

As luzes fluorescentes pulsavam e piscavam. Algo nelas começava a falhar.

Ele não se importava se Grace estava ou não observando-o por trás do espelho falso. A Ave Fantasma estava com uma aparência terrível naquele dia, não propriamente doente, mas como se tivesse chorado, ou seja, com um estado de espírito semelhante ao de Controle. Tinha olheiras profundas e os ombros caídos. Qualquer sinal de animação que tivesse se esgotara, ou então se escondera.

Controle não sabia por onde começar, porque na verdade não queria começar. Tudo que desejava era falar sobre a gravação daquele vídeo, mas seria impossível.

As palavras iam brotar, formar-se em sua mente, mas nunca se transformariam em som, ficariam encalhadas entre sua necessidade e sua vontade.

Ele não poderia falar sobre aquilo com nenhum ser humano, jamais. Se deixasse escapar, se contaminasse a mente de alguém, nunca se perdoaria.

Uma namorada, que teve alguma percepção do que era o trabalho dele, perguntou certa vez: “Por que você faz isso?” Ou seja, por que servir em projetos tão secretos, projetos que não podiam ser compartilhados nem revelados? Ele deu a resposta padrão, com certa pompa, meio que rindo de si mesmo. Para disfarçar a gravidade.

“Para saber. Para olhar o que tem por trás do véu.”

Atravessar a barreira.

No momento em que deu a resposta, já tinha percebido que estava dizendo a ela que não se incomodaria em deixá-la ali, sozinha, do outro lado.

— Gostaria de falar sobre o quê? — perguntou à Ave Fantasma, não porque estivesse sem perguntas, mas porque queria ceder a ela a iniciativa.

— Nada — respondeu ela com voz apática.

A palavra saiu como um murmúrio.

— Deve haver alguma coisa.

Implorando.

Por favor, que haja algo que me distraia dessa carnificina em minha mente.

— Eu não sou a bióloga.

Aquilo trouxe Controle de volta a si, emergindo para avaliar o que acabava de ouvir.

— Você não é a bióloga — repetiu ele.

— Você quer a bióloga. Eu não sou a bióloga. Vá conversar com ela, não comigo.

Seria algum tipo de crise de identidade ou era apenas metafórico?

De qualquer modo, ele percebeu que marcar aquela entrevista tinha sido um erro.

— Podemos tentar de novo hoje à tarde. O que acha? — disse ele.

— Tentar o quê? — rebateu ela. — Acha que isso é uma terapia? Terapia para quem?

Ele começou a responder, mas com um gesto violento ela varreu para o chão as pastas e a garrafa que estavam sobre a mesa, agarrou o pulso esquerdo de Controle com as duas mãos e não o largou mais.

Desafio e medo nos olhos dela.

— O que você quer comigo? O que quer de verdade? Me diga agora.

Com a mão livre Controle acenou, afastando os guardas que entravam na sala. Pelo canto do olho, ele sentiu no recuo dos guardas uma rapidez peculiar, como se tivessem sido sugados através da porta por algo invisível e monstruoso.

— Nada — disse ele para ver o que ela responderia.

As mãos dela estavam pegajosas e mornas, não totalmente agradáveis; com certeza havia algo acontecendo sob sua pele. A febre tinha aumentado?

— Não vou ajudar ninguém a mapear minha patologia — sussurrou ela, arquejando, e depois gritou: — Eu não sou a bióloga!

Ele conseguiu se soltar, se afastou da mesa, endireitou-se e ficou olhando enquanto ela se deixava cair na cadeira. Seu olhar estava baixo, pousado na mesa, sem encará-lo. Ele odiou ver sua angústia, odiou mais ainda ao pensar que era o responsável.

— Bem, seja você quem for, continuamos depois — disse ele.

— Tentando me agradar — murmurou ela, de braços cruzados.

Mas quando ele recolheu a garrafa de água e as pastas espalhadas e foi na direção da porta, algo mudou nela novamente.

Sua voz tremia na crista de uma nova emoção.

— Havia um casal de tuiuiús no lago aí atrás, quando eu saí. Ainda estão lá?

Ele levou um momento para entender que ela se referia à expedição. Outro momento para perceber que isso era quase um pedido de desculpas.

— Não sei — disse ele. — Vou descobrir.

O que tinha acontecido com ela lá fora? O que tinha acontecido com ele ali dentro?

O último fragmento do vídeo estava classificado numa categoria só sua: “Não atribuído”. Todos estavam mortos àquela altura, exceto Lowry, ferido, a meio caminho da fronteira.

No entanto, durante vinte segundos a câmera sobrevoou os juncos dourados do pântano, os lagos de um azul profundo, a crista eriçada do oceano, na direção do farol.

Mergulhava e erguia-se, descia de vez e voltava a subir e a planar.

Com algo que parecia uma forma horrível de entusiasmo.

Uma alegria devoradora de tudo.


017: PERSPECTIVA

Os degraus estavam começando a sumir. Os degraus estavam começando a se degradar. Depois do almoço houve uma reunião rotineira da qual, no momento que acabou, ele não lembrava quase nada, por mais que tentasse. De certa forma estava ali para solucionar um quebra-cabeça, mas sentia como se o quebra-cabeça estivesse solucionando ele.

Controle falara durante algum tempo, ele percebeu, sobre como queria saber mais a respeito do farol e de sua relação com a anomalia topográfica. Depois disso, Hsyu comentou algo a respeito dos padrões verbais do sermão do faroleiro, enquanto o único membro do setor de acessórios, um homem idoso e corcunda chamado Darcy, com uma voz arranhada, ia somando comentários ao longo da fala dela, sempre se referindo ao “papel crucial, agora e no futuro, da divisão de exatidão histórica”.

Árvores rodeavam o acampamento, os membros da expedição em volta da fogueira. Alguma coisa, tão grande que não se consegue ver os seus contornos, rastejava ao fundo, estendendo-se de forma repulsiva entre as árvores e o acampamento. Ele não gostava de imaginar o que poderia ser tão grande e ao mesmo tempo tão leve, de visualizar a imagem de uma parede feita de carne.

Ele devia, talvez, ter continuado a assentir e a fazer perguntas, mas ficara cada vez mais enojado pelo modo como a assistente de Hsyu, Amy-Não-Sei-das-Quantas, ficava mordendo o lábio. Lentamente. Metodicamente. Sem pensar. Enquanto rabiscava notas ou sussurrava alguma informação ao ouvido de Hsyu. O tom esbranquiçado dos seus caninos e incisivos aparecia de vez em quando, a gengiva cor-de-rosa exposta quando o lábio superior se contraía, e então, com uma precisão quase rítmica, ela mordiscava e prendia, mordiscava e prendia o lado esquerdo do lábio inferior, que daí a pouco tempo estava mais vermelho do que o próprio batom.

Por um momento, alguma coisa tinha irrompido ou se interposto ao fundo na tela, enquanto no meio um homem barbado se acocorava — não era Lowry, mas um homem chamado O’Connell. A princípio, Controle imaginara que O’Connell estava resmungando, murmurando palavras em uma língua que ele não entendia. E, tentando extrair algum sentido daquilo que escutava, quase ligou para Grace para contar sobre sua descoberta. Mas poucos fotogramas depois ele já era capaz de perceber que o homem estava mordendo o lábio, e continuou a fazer isso até que o sangue escorreu, o tempo todo olhando resoluto para a câmera, pois não havia, Controle só compreendeu aos poucos, nenhum lugar mais seguro para olhar. O’Connell falava enquanto mascava, mas as palavras não eram novidade agora que Controle tinha lido a parede. Era a mensagem mais primal e banal que se poderia conceber.

* * *

Seguiu-se um almoço previsível no refeitório. Comer para se equilibrar, pensou ele, mas a palavra comer, muitas vezes repetida, virou um som sem sentido, que acabou se tornando correr, que virou coelho, que virou coelho branco saltando, que virou a bióloga naquela mesa depressiva, que virou os membros da expedição em volta da fogueira, sem saber o que os esperava.

Controle caminhou logo atrás de uma versão de Whitby da qual estava ao mesmo tempo receoso e atento, que foi abrindo caminho por entre as mesas. Com Cheney, Hsyu e Grace seguindo logo atrás. Whitby não estivera na reunião, mas Grace o avistou num corredor transversal tentando esconder-se e o pegou no laço para juntar-se ao grupo durante o almoço. Depois, foi somente um caso de todos respeitando Whitby em seu hábitat natural. Certamente não era a comida que fazia Whitby gostar daquele refeitório. Tinha de ser o fato de ficar ao ar livre naquele espaço, com sua vista desimpedida. Talvez fosse apenas pelo fato de que dali dava para fugir em qualquer direção.

Whitby os guiou até uma mesa que imitava madeira, com bancos baixinhos de plástico — tudo isso amontoado no canto mais distante do pátio, onde havia uma escada que conduzia a um espaço vazio conhecido como o terceiro nível, de onde eles acabavam de descer, na verdade apenas um mezanino mais pomposo com algumas salas de reunião. Controle percebeu que Whitby escolhera aquela mesa porque ali podia encaixar seu corpo pequeno e magro no semicírculo onde as paredes se encontravam — um precavido mas inverossímil pistoleiro, avistando dali o refeitório inteiro, todo o pátio e o verde difuso de um pântano se dissolvendo em bolhas úmidas de condensação do outro lado do vidro.

Controle sentou-se de frente para Grace, que estava entre Whitby e Hsyu. Cheney largou-se numa cadeira ao lado de Controle, de frente para Whitby. Controle começou a desconfiar que alguns deles não estavam ali por acaso, ou por vontade própria, pelo modo como Grace parecia estar dominando aquele espaço. As rugas no rosto de Cheney se aprofundaram quando ele, solícito, sugeriu:

— Fico aqui enquanto vocês fazem seus pratos e vou depois.

— Pode me trazer uma maçã ou uma pera, e um pouco d’água, e eu fico aqui no seu lugar — disse Controle.

Estava meio enjoado.

Cheney assentiu, bateu as mãos pesadas na mesa e seguiu a fila dos outros, enquanto Controle contemplava a grande foto emoldurada que pendia na parede. Velha e empoeirada, ela mostrava a direção da equipe do Comando Sul naquela época. Controle reconheceu alguns rostos de vários relatórios, e se concentrou em Lowry, alguns anos pós-expedição, ainda com aparência arrasada. Whitby também estava lá, sorridente, bem no centro. A foto sugeria que, em certo período, Whitby era inquisitivo, rápido, otimista — talvez mesmo espertamente proativo. A ex-diretora não passava de um vulto imponente na borda esquerda. Apenas se erguia, sem oferecer um sorriso nem sequer uma testa franzida.

Àquela época ela devia ser ainda uma presença relativamente recente, uma aprendiz da psicóloga titular. Grace só chegaria uns cinco anos depois, na época em que Lowry estava indo embora. Não teria sido nem um pouco fácil para qualquer um dos dois a escalada na hierarquia, e tampouco manter a posição conquistada. Isso exigira dureza e perseverança. Talvez até demais. Mas pelo menos ambos foram poupados das manifestações mais malucas dos primeiros tempos, das quais a hipnose era a única remanescente. Criptozoólogos, uma quase sessão espírita, a reunião de paranormais que eram informados do básico para produzir... o quê? Informações? Nenhuma informação surgiu da atividade.

Os outros voltaram do bufê. Cheney trouxe na bandeja uma pera e a água que Controle pedira. Controle pensou que, se alguma coisa terrível ocorresse ao longo do dia e os legistas precisassem investigar a partir do conteúdo do estômago de cada um, Cheney pareceria um passarinho irrequieto, Whitby, um porco, Hsyu, uma maníaca por saúde, e Grace, uma simples beliscadora. Ela estava recostada na cadeira, encarando-o com dois pacotes de biscoitos e um café bem arrumados à sua frente, como se tivesse a intenção de usá-los como prova contra ele. Ele se sacudiu e tentou clarear as ideias tomando um gole de água.

— Essas reuniões acontecem toda quinta-feira, ou quinta sim, outra não? — perguntou ele, só para sentir a temperatura da água e quebrar o gelo.

Cedeu a um impulso automático de usar a pergunta para desencadear uma pequena exploração do moral do departamento.

Mas Grace não estava disposta a jogar conversa fora.

— Você quer ouvir uma história — disse ela, e não era uma pergunta.

Ela parecia ter acabado de tomar uma decisão.

— Claro — respondeu Controle. — Por que não?

Enquanto Cheney se remexia ao seu lado, tanto Whitby quanto Hsyu pareciam ao mesmo tempo diminuir e se achatar, desviando o olhar de Grace como se ela fosse um polo magnético que os repelia.

Os olhos de Grace se fixaram nos dele, e Controle perdeu de repente a vontade de cravar os dentes na pera.

— Tem a ver com um agente da área de terrorismo doméstico.

Lá vem, lá vem... lá vai, lá vai.

— Que interessante — disse Controle. — Trabalhei um tempo com terrorismo doméstico.

Ela prosseguiu, como se Controle não tivesse dito nada:

— A história é sobre uma missão de campo que fracassou, a terceira missão desse agente após o treinamento. Não era a primeira nem a segunda, era a terceira, de modo que não havia desculpa possível. Qual era a função dele? Tinha que observar e relatar tudo a respeito dos membros de uma milícia separatista na costa noroeste, com base nas montanhas, mas descendo de vez em quando até duas cidades portuárias para recrutar gente. — A Central tinha avaliado que as células radicais dessa milícia possuíam energia e recursos suficientes para interceptar carregamentos, explodir um prédio, inúmeras coisas. — Não tinham nenhuma visão política ou opinião coerente. Homens brancos e ignorantes, na maioria, com idade para estar na universidade, mas sem estudo algum. Algumas mulheres radicais, e, misturadas a elas, outras que não faziam a menor ideia do que os seus companheiros ignorantes estavam aprontando. Nenhum deles era tão estúpido quanto o nosso agente.

Controle estava imóvel. Começou a sentir como se seu rosto estivesse rachando. Sentia-se cada vez mais quente, uma chama formigando enquanto se espalhava pelo corpo inteiro. Ela estaria tentando botá-lo abaixo, pedra por pedra? Na frente das poucas pessoas em todo o Comando Sul com quem ele considerava ter algum tipo de relação?

Cheney começou a bufar para exprimir sua desaprovação quanto ao rumo que a coisa estava tomando. Whitby dava a impressão de que um estranho viera de longe em sua direção e tentava lhe contar sobre uma conversa muito interessante, mas ele não estava perto o bastante para ouvi-lo — então desculpe, não era culpa sua.

— Parece familiar — disse Controle, porque era mesmo, e ele até sabia o que vinha depois.

— O agente se infiltra no grupo, ou na periferia do grupo — continuou Grace. — Chega a conhecer alguns amigos das pessoas que pertencem ao comando.

Hsyu, franzindo a testa, direcionou o olhar para algo interessante no carpete quando se levantou segurando a bandeja. Conseguiu pronunciar uma despedida alegre e se afastou da mesa.

— Não é justo, Grace, você sabe muito bem — sussurrou Cheney, inclinando-se, como se desse modo pudesse falar apenas com ela. — Uma emboscada.

Mas, pela avaliação do próprio Controle, era justo, sim. Muito justo. Uma vez que não tinham se sentado antes para definir as regras do combate.

— Esse agente começa a seguir os amigos, e cedo ou tarde eles o levam a um bar. A garota do número 2 do grupo gosta de ir ali beber alguma coisa. Ela está na lista; ele memorizou seu rosto na fotografia. Mas em vez de ficar apenas observando e depois fazer um relatório, esse agente muito, muito esperto, ignora as ordens que recebeu, começa a conversar com ela, ali no bar...

— Quer que eu lhe conte o resto da história? — interrompeu Controle.

Porque ele podia. Podia contar, queria contar, sentia um desejo feroz de contar tudo e uma gratidão perversa em relação a Grace, porque aquele era um problema humano, um problema tão banal, tão humano comparado com o resto.

— Grace... — disse Cheney, suplicante.

Mas Grace fez um gesto calando os dois, e virou-se para Whitby numa atitude tal que este não teve escolha senão olhar para ela.

— Não apenas ele começa a conversar com essa mulher, Whitby — e Whitby ficou sobressaltado pela intimidade implícita no uso de seu nome, como se ela tivesse acabado de abraçá-lo —, mas ele a seduz, dizendo a si mesmo que está fazendo isso para ajudar a causa. Porque é um homem arrogante. Porque tem a rédea solta.

A mãe classificara aquilo como um boato, assim como classificara uma porção de outras coisas, mas nesse caso tinha razão.

— Houve um tempo em que a gente tinha colheres e garfos neste refeitório — disse Whitby, com tristeza. — O que temos agora são colharfos. — Ele se virou para a esquerda, depois para a direita, procurando outros talheres ou uma saída honrosa.

— Na próxima vez em que contar essa história, deixe de lado a sedução, que não aconteceu — disse Controle, sentindo uma espiral de cinzas girar em sua mente, e uma campainha distante nos ouvidos. — Podia acrescentar também que o agente não recebeu instruções muito claras do seu superior.

— Vocês ouviram o cara. Ouviram. — Um murmúrio de Cheney, tão sutil quanto o arroto de um burro.

Grace continuou dirigindo-se a Whitby, enquanto o sujeito se virava na direção de Cheney com uma expressão de quem lhe perguntava o que fazer, mas Cheney se mantinha impossibilitado ou desinteressado em lhe dar ajuda. Deixe rolar até o final infeliz. Extraia o veneno. Isso é uma guerra de trincheiras. Vai continuar para sempre.

— Então, o agente leva a garota para a cama — pelo menos não havia nenhum tom de triunfo na voz de Grace —, embora ele saiba que é perigoso, saiba que os membros da milícia podem acabar descobrindo tudo. Seu supervisor não sabe o que ele anda fazendo. Ainda. E então, um dia...

— Um dia... — interrompeu Controle, porque se ela ia mesmo contar aquela história, tinha pelo menos que contá-la direito, porra. — Um dia ele vai ao bar, e esta é apenas a terceira vez, e é flagrado pelas câmeras instaladas na véspera pelo namorado da moça.

Controle nem conversara com ela na segunda vez em que foi ao local. Naquela terceira e última vez, sim. Como desejava não ter feito isso. Não lembrava mais nem o que dissera a ela, e ela a ele.

— Exatamente — disse Grace, uma confusão momentânea impressa na sisudez de sua expressão. — Exatamente.

* * *

Agora já era uma cicatriz antiga para Controle, mesmo se parecesse uma ferida aberta para cada animal que metesse o bico ou o focinho para arrancar uma tira de carniça. A rotina de contar aquela história transformava Controle de uma pessoa em um ator dramatizando um acontecimento antigo da própria vida. Cada vez que precisava encenar aquilo novamente, o monólogo se tornava mais fluido, os detalhes menos complexos e mais bem encaixados, e as palavras eram como peças de quebra-cabeças em sua boca, bastava cuspi-las na ordem certa para formar o quadro. E cada vez ele gostava menos daquela performance. Mas a única alternativa era permitir ser chantageado por uma parte do seu passado que acontecera há dezessete anos e cinco meses. Mesmo sabendo que o acompanharia em cada novo trabalho, porque seu supervisor na época decidiu que Controle merecia, para todo o sempre, uma punição maior do que a que recebera na ocasião.

Nas piores versões, como a que Grace começara a contar, ele tinha dormido com a garota, Rachel McCarthy, e comprometera a operação a um ponto irremediável. Mas a verdade já era ruim o bastante. Ele saíra de uma universidade particular como o protegido de sua mãe: notas excelentes, certa arrogância descontraída, e assim completou o treinamento na Central com uma avaliação bem alta. Obtivera grande sucesso em atividades de campo nas duas primeiras vezes, seguindo sujeitos mais velhos através das planícies extensas e colinas tranquilas no interior do país, acompanhando caminhonetes, mascando tabaco na praça de cidadezinhas pequenas, comendo quiabo frito enquanto observava sujeitos de bonés levando caixas suspeitas para furgões.

— Cometi um erro terrível. Penso nisso todo dia. Hoje me serve de guia em meu trabalho. Me mantém humilde e focado.

Mas ele não pensava naquilo todos os dias. Não era possível fazer isso, porque iria crescer até consumi-lo. Era algo que permanecia ali, sem nome: algo escuro e triste que pesava demais de tempos em tempos. Quando a lembrança ficava muito tênue, muito abstrata, ela se transformava em algo como uma lesão no ombro, uma dor tão fina e ainda assim tão pungente que era possível traçar todo o seu percurso pelo ombro, descendo pelas costas.

— Então... — prosseguiu Controle, Whitby parecendo esmagado pela atenção dos dois e Cheney sumido depois de inventar um habeas corpus qualquer — ...então o namorado vê na fita a garota conversando com um estranho, o que provavelmente seria um belo pretexto para uma surra. Mas ele faz um dos seus camaradas seguir o carro do estranho até um café, a uns vinte minutos de distância. O agente não percebe. Ele se esqueceu de tomar as precauções habituais para não ser seguido, porque está muito satisfeito consigo mesmo, muito confiante na própria capacidade. — Porque ele fazia parte de uma dinastia. Porque ele sabia de muita coisa. — E adivinhem com quem o agente está conversando? Com seu supervisor. Acontece que alguns membros da milícia tinham se confrontado com o supervisor poucos anos antes, razão pela qual era eu, e não o supervisor, que me infiltrava entre eles. Agora, portanto, eles sabem que a pessoa que estava conversando com a garota está trocando informações com um conhecido agente federal.

Nesse ponto ele se desviou do roteiro apenas o bastante para lembrar a Grace o que tinha suportado naquela manhã:

— Era como se eu estivesse flutuando acima de tudo, acima de todos, olhando para baixo, planando pelo ar. Capaz de fazer qualquer coisa que quisesse.

Percebeu que ela registrou a referência, mas sem dar sinal de culpa.

— Agora eles sabem que um membro da milícia tivera contato com as autoridades, e, ainda por cima, o namorado dela era do tipo possessivo, controlador, ciumento. E esse namorado fica furioso quando vê o agente chegar ao bar na noite seguinte, fazendo apenas um leve aceno para McCarthy, mas até onde ele sabe eles têm um método secreto de comunicação. Já basta que o agente esteja de volta. O sujeito bota na cabeça que a namorada talvez faça parte daquilo, que talvez o esteja espionando. Então, o que vocês acham que ele faz?

Whitby aproveitou aquela deixa para responder a uma pergunta totalmente diferente. Levantou-se da mesa e seguiu em frente, acompanhando a curva da parede na direção do setor de ciência, sem nem sequer um “até logo” dito às pressas.

E deixou Controle sozinho com Grace.

* * *

— Vai tentar adivinhar? — perguntou Controle, voltando para a diretora assistente o peso total da raiva e comiseração por si próprio, sem ligar para o fato de que todos os olhos no refeitório estavam voltados para os dois.

Para reavivar as emoções de um roteiro esquecido, ele começara a pensar em termos como “anomalias topográficas”, “vídeo da primeira expedição” e “condicionamento hipnótico”, num processo inverso ao ritual que o fazia pensar em “bócio monstruoso” ou “dever de casa de matemática” durante o sexo para retardar o gozo.

— E então, vai tentar adivinhar essa merda? — sussurrou ele de forma enérgica, sem querer confessar coisa alguma a ninguém naquele refeitório, somente à bióloga.

— Eles matam Rachel McCarthy — disse Grace.

— Sim, isso mesmo! — gritou Controle, sabendo que mesmo as pessoas que serviam a comida no bufê do outro lado podiam escutá-lo, na verdade estavam todas olhando para ele. Talvez restassem no refeitório umas quinze pessoas, a maioria tentando fingir que nada estava acontecendo. — Eles matam Rachel McCarthy — disse Controle. — Mas quando começam a me procurar, eu já estou em casa, em segurança. Depois de quantas? Duas ou três conversas com ela? Uma operação de vigilância padrão, pela minha perspectiva. E lá estou eu apresentando meu relatório enquanto outros agentes veteranos são enviados para seguir a pista. Só que àquela altura a milícia já espancou McCarthy até deixá-la desacordada e a levou para o alto de uma pedreira abandonada. E querem que ela conte a verdade, toda a verdade sobre esse cara que ela encontrou no bar. O que ela não pode fazer, claro, porque é inocente e não sabia que eu era um agente. Mas essa é a resposta errada. Qualquer resposta àquela altura é uma resposta errada.

Será sempre a resposta errada. E enquanto ele está todo entusiasmado porque ajudou a resolver o caso, e um juiz está emitindo os mandados de prisão, o namorado já deu dois tiros na cabeça de McCarthy e a jogou de cima da pedreira, nas águas rasas lá embaixo, onde ela seria encontrada três dias depois pela polícia local.

Aquilo teria encerrado a carreira de qualquer um, embora ele ainda fosse novato demais para saber. Somente anos depois ficou sabendo que sua mãe o tinha resgatado, para o bem ou para o mal. Exigindo retribuição de favores. Mexendo os pauzinhos. Molhando esta ou aquela mão. Todos os clichês habituais para mascarar conluios que são sempre únicos. Porque — ela lhe disse quando finalmente confessou, quando não fazia mais diferença alguma — ela acreditava nele, sabia que tinha ainda muito para oferecer.

Controle pegou uma suspensão de um ano, frequentou uma terapia que foi incapaz de curar aquela ferida e passou por um duro programa de reciclagem profissional, destinado a pegar com peneira grossa um errinho minúsculo que o tempo todo fugia ao alcance de sua mente. Depois, recebeu uma função burocrática, através da qual recomeçou sua lenta ascensão profissional na Agência até alcançar a elogiada não função de consertador, entendendo com clareza que jamais seria enviado novamente para trabalhos de campo.

E foi assim que, um belo dia, ele foi chamado para dirigir uma agência de segunda classe. Para que aquela coisa que ele não conseguia confessar a nenhuma de suas namoradas pudesse ser gritada em pleno refeitório, diante de uma mulher que parecia odiá-lo.

* * *

O pequeno pássaro cujo vulto escuro ele vira através das janelas do refeitório ainda estava por lá, mas o modo como agitava as asas o deixava parecido agora com um morcego. As nuvens escuras voltavam a se acumular no céu.

Grace ainda estava de frente para ele, protegida lá do alto pelas coortes do passado. Controle continuava sentado, enquanto Grace enumerava todos os seus pecados menores, um a um, sem nenhuma ordem específica e sem que ninguém mais pudesse ouvi-la. Ela lera o dossiê dele e tivera acesso a muitas outras informações. Ao citar aquela lista, ela comentou também sobre outros assuntos — a mãe dele, o pai, uma litania que lembrava uma romaria rastejante ou uma procissão que, curiosamente, a partir de certo ponto, deixou de fazê-lo sofrer. Uma espécie de alívio embotado começou a tomar conta de Controle. Sim, ela estava lhe dizendo algo. Ela o via com clareza e o enxergava muito bem, desde os seus talentos até suas fraquezas, desde seus curtos relacionamentos até sua vida nômade, o câncer de seu pai e sua ambivalência em relação à mãe. A facilidade com que aceitara o fato de sua mãe abandonar a família e a religião pelo trabalho. E todo o resto, tudo mesmo, num tom de voz em que habilmente se mesclavam um respeito contrariado com uma exasperação piedosa pela sua recusa em bater em retirada.

— Você nunca cometeu um erro? — perguntou Controle, mas ela o ignorou.

Em vez de responder, deu-lhe de presente um motivo:

— Dessa vez, seu contato tentou cortar meu canal com a Central. Para sempre.

A Voz ainda tentando ajudá-lo como um touro desgarrado.

— Eu não pedi isso. — Bem, se tinha pedido, já não pensava mais assim.

— Você invadiu meu escritório de novo.

— Não fiz isso. — Mas ele não podia ter certeza.

— Estou tentando manter as coisas do jeito que eram para a diretora, não por minha causa.

— A diretora está morta. A diretora não vai mais voltar.

Ela desviou o olhar, ficou observando pelas janelas o pátio e os pântanos ao longe. Um olhar feroz que o manteve à distância.

Talvez a diretora estivesse agora voando sobre a Área X, ou riscando o chão com unhas carcomidas ao se arrastar para longe... de alguma coisa. Mas ela não estava aqui.

— Tente imaginar, Grace, como poderia ficar ainda pior se eles me trocassem por outra pessoa. Porque eles nunca vão fazer de você a diretora.

Uma verdade por outra. Ele era bom nisso também.

— Você sabe que acabei de lhe fazer um favor — disse ela, desviando-se do golpe que ele acabara de desferir.

— Favor? Claro que fez.

Mas ele sabia. Tudo que havia de incômodo ou constrangedor, ela tinha acabado de despejar para fora, sem propósito. Um desperdício de munição, um canhão disparado para o ar. Ela derramara o restante dos itens de seu porta-joias de acusações, e ao livrar-se disso estava dizendo a ele que não voltaria a usá-lo no futuro.

— Você parece muito com a gente — disse ela. — Alguém que cometeu uma porção de erros. Alguém que só está tentando melhorar. Ser melhor.

Nas entrelinhas: Você não vai decifrar o que não foi decifrado em trinta anos. Eu não vou deixar você tomar a dianteira em relação à diretora. Onde estava a manipulação de rumo? Ela o estava puxando para onde, empurrando para onde?

Controle apenas assentiu, não porque concordasse ou discordasse, mas porque estava exausto. Então pediu licença, trancou-se no banheiro do refeitório e vomitou o café da manhã. Imaginou se estaria gripado ou se seu corpo estava rejeitando, da maneira mais visceral possível, tudo que fazia parte do Comando Sul.


018: RECUPERAÇÃO

Cheney tinha voltado e estava rondando o banheiro, preocupado, falando baixo.

— Ei, cara, você está bem?

Como se tivessem se tornado amigos de infância. Mas por fim Cheney foi embora, e logo depois o celular de Controle tocou, no instante em que ele deixou-se cair sentado na privada. Puxou o aparelho do bolso. A Voz. O banheiro parecia o lugar ideal para receber um telefonema como aquele. A porcelana fria depois que ele bateu com força a porta do banheiro foi um alívio. Os pequenos ladrilhos azuis do piso proporcionaram a mesma sensação. Até mesmo o odor distante de urina. Tudo aquilo. Qualquer parte daquilo.

Por que o banheiro dos homens não tinha espelho?

— Da próxima vez, atenda quando eu ligar — advertiu a Voz, dando a entender que era um homem/uma mulher ocupado/a, ao mesmo tempo em que Controle olhava a pequena luz piscante indicando que ele tinha uma mensagem.

— Estava numa reunião.

Estava assistindo ao vídeo. Estava conversando com a bióloga. Estava vendo a diretora assistente me destruir na frente de todos por sua causa.

— A sua casa está em ordem? — perguntou a Voz. — Está em ordem?

Dois mil coelhos brancos sendo empurrados na direção de uma porta invisível. Uma planta que não queria morrer. Imagens impossíveis gravadas em vídeo. Mais teorias do que os peixes existentes no mar. Sua casa estava em ordem? Era uma escolha de palavras curiosa, em se tratando da Voz, como se estivesse aludindo a um código do qual ele não tinha a chave. E no entanto pensar nisso o deixou mais seguro, mesmo sendo algo que ia contra sua intuição.

— Está aí? — perguntou a Voz bruscamente.

— Sim. Sim, minha casa está em ordem.

— O que tem para mim, então?

Controle fez um breve resumo para a Voz.

A Voz considerou aquilo por um momento e então perguntou:

— Então você tem uma resposta agora?

— Resposta para o quê?

— Para o mistério por trás da Área X. — A Voz soltou uma risada estranha, com um tinido de metal. Rá, rá, rá.

Já chega.

— Pare de interferir nos contatos que Grace tem com a Central. Não está funcionando, e está dificultando tudo — disse Controle.

Lembrou o cuidado com que ela tinha preparado a exibição dos vídeos da primeira expedição, já que no almoço estava travado demais para poder processar tudo. A repulsa que Controle sentia diante das táticas extremas e claramente inadequadas da Voz se misturava à súbita convicção, ainda que irracional, de que de alguma maneira a Voz era responsável por sua ida ao Comando Sul. Se a Voz era de fato sua mãe, então pelo menos isso ele teria acertado.

— Escute, John — grunhiu a Voz. — Eu não me reporto a você. Você se reporta a mim, não se esqueça disso.

A tentativa era de produzir convicção, mas de alguma forma falhou.

— Pare com isso — repetiu Controle. — Está me prejudicando. Ela sabe que você está tentando. Pare.

— Torno a repetir, eu não dou satisfações a você, Controle. Não me diga o que fazer. Você me pediu para resolver esse problema, e estou tentando resolver.

Uma microfonia fez Controle tirar o fone do ouvido.

— Assisti ao vídeo da primeira expedição hoje de manhã — disse ele. — Me abalou.

Uma espécie de pedido de desculpas. O avô lhe ensinara isto: mude de assunto dando a impressão de que contempla a queixa do interlocutor. Usaram essa artimanha contra ele até não poder mais, no passado.

Mas por algum motivo isso enfureceu a Voz.

— Você acha que essa porra é desculpa para não fazer a merda do seu trabalho? Assistir a um vídeo? Pare de pensar em merda e me faça um relatório de verdade da próxima vez, e pode ser que eu me disponha a executar o que você quiser que eu execute. Entendeu, cuzão?

Os palavrões eram pronunciados de uma maneira peculiar, sincopados, como se a voz estivesse criando um discurso improvisado em que as únicas palavras já programadas eram porra, merda, cu. Mas Controle compreendeu. A Voz era um imbecil. Já tivera chefes imbecis antes. A menos que a verdadeira Voz estivesse de folga e o substituto estivesse improvisando. Megalodonte bravo. Megalodonte insatisfeito. Megalodonte esperneia.

Desistiu, portanto, e fez uma ladainha conciliatória. Depois começou a falar com mais cuidado e contou a história do seu “progresso”, estruturada e encadeada não como a balbuciante e entrecortada ficção que porra-é-essa que ela era, mas, em vez disso, como uma “jornada” analítica e cheia de nuances, que poderia ser descrita apenas como tendo um princípio e um meio apontando no rumo de um fim satisfatório.

— Pare! — disse a Voz a certa altura.

* * *

Depois:

— Assim está melhor — disse a Voz. Controle ainda não conseguia dizer se aquele tom de raladores de queijo duelando tinha se suavizado. — Por enquanto, continue coletando dados e interrogando a bióloga, mas bote mais pressão.

Ele tentara isso, sem grande resultado. Descobrir informações úteis era muitas vezes um projeto de longo prazo, uma questão de escutar coisas sem importância à espera de um só momento.

Depois de outra pausa, a Voz prosseguiu:

— Tenho aquela informação que você me pediu.

— Que informação? A planta, o rato ou...?

— Posso confirmar para você que a diretora entrou pela barreira.

Controle se empertigou no assento. Alguém estava batendo à porta do banheiro. Teria de esperar.

— Quando? Logo antes da última décima primeira expedição?

— Sim. Sem autorização e sem o conhecimento ou a permissão de quem quer que fosse.

— E escapou.

— Como assim?

— Não foi demitida.

Uma pausa, e depois a Voz respondeu:

— Sem dúvida ela devia ter sido expulsa. Mas não, ela recebeu uma suspensão, e a diretora assistente assumiu o posto durante seis meses.

A Voz parecia impaciente, como se aquilo não tivesse importância.

E ele, o que poderia fazer com aquela informação? Provavelmente mandar algumas perguntas para a mãe. Porque certamente alguém nos altos escalões sabia que a diretora ia cruzar a fronteira e depois a protegeu quando ela voltou.

— Sabe por quanto tempo ela ficou lá? Há um relatório do que ela descobriu?

— Três semanas. Não há relatório.

Três semanas!

— Ela deve ter sido interrogada. Deve haver algum registro.

Uma pausa muito mais longa. A Voz estaria se consultando com outra Voz, outras Vozes?

Finalmente, admitiu:

— Há o registro de uma entrevista com ela. Mandarei a transcrição.

— Você sabia que, para a diretora, a fronteira estava avançando? — perguntou Controle.

— Estou ciente dessa teoria — respondeu a Voz. — Mas é uma preocupação que não lhe diz respeito.

Como não lhe dizia respeito? Como é que alguém minutos atrás o chamava de cuzão e agora usava uma frase como “não lhe diz respeito”? A Voz era um ator incompetente, concluiu Controle, ou tinha um roteiro ruim, ou então aquilo era proposital.

No final da conversa, sem motivo aparente, ele fez uma piada.

— O que é que é, uma coisa marrom e pegajosa?

— Sei essa — disse a Voz. — Um pau.

— Um cagalhão.

Clique.


“Vá na frente e veja se tem moeda caída entre os assentos, John.” Controle, de volta ao escritório, era bombardeado por estranhos lampejos de memória. Uma colega em seu último trabalho, aproximando-se depois de uma reunião e dizendo com voz acusadora: “Você me contradisse.” Não, eu discordei de você. Uma mulher na universidade, uma morena com rosto largo e belos olhos castanhos que o encantavam, e pela qual ele se apaixonara na turma de fundamentos da matemática. Mas quando ele lhe deu um poema, ela disse: “Sim, mas você sabe dançar?” Não, eu escrevo poemas. Vou ser uma espécie de espião. Um dos seus professores de ciência política na faculdade fizera todos eles escreverem poemas, para “deixarem o sangue circular um pouco”. Na maior parte do tempo, porém, ele estava estudando, praticando tiro ao alvo, fazendo exercícios e usando as festas como treinamento para uma vida inteira de relacionamentos curtos.

“Vá na frente e veja se tem moeda caída entre os assentos, John”, disse o avô, Jack. Controle estava com doze anos, visitando a mãe no norte, numa daquelas raras viagens que não incluíam ir para a cabana e pescar. Ainda estavam reaprendendo a se relacionar, o divórcio em fase de finalização.

Na tarde de um fim de semana, num frio congelante, Jack o arrastara para o que ele chamava “carro turbinado”. O carro saiu do estado de hibernação onde estava porque ele concebeu o plano secreto de levar Controle para ver um desfile de lingerie numa loja de departamentos local. Controle tinha uma vaga ideia do que isso significava, mas parecia constrangedor. Mais do que tudo, não queria ir porque a filha do vizinho tinha a mesma idade que ele, e estava interessado nela desde o verão. Mas era difícil dizer não ao avô. Especialmente porque o avô nunca o tinha levado a lugar nenhum sem que sua mãe estivesse presente.

Então, Controle enfiou a mão entre os bancos do carro à procura de moedas enquanto o avô ligava o velho carro turbinado azul brilhante, que ficara exposto ao frio por duas horas enquanto Jack convencia a mãe de Controle a voltar para dentro de casa. Mas ele achou que o avô também estava se reacostumando aos mistérios do funcionamento da máquina. O calor subiu rapidamente e Controle começou a suar por dentro do casaco. Voltou a explorar o espaço entre os bancos, imaginando se o avô teria deixado algum dinheiro ali de propósito. Se tivesse, poderia comprar um sorvete para a garota. Ainda estava em modo verão.

Nada de dinheiro, somente fiapos de tecido, clipes de papel, um ou outro papelzinho dobrado, e algo frio, liso, pegajoso, com o formato de um cérebro pequeno, que o fez recuar: chiclete mastigado. Desapontado, ele ampliou as buscas, explorando o longo banco traseiro e depois a caverna escura sob o banco dianteiro. Estendeu o braço para a frente meio sem jeito a fim de tatear em torno e acabou pegando algo volumoso mas macio, preso com fita adesiva. Não, não era macio. Fosse o que fosse, estava enrolado num pano. Forçando um pouco, ele conseguiu puxar o objeto, e aquele volume desajeitado caiu com um ruído surdo no piso do carro. Dele vinha um cheiro abafado de óleo e metal. Controle o pegou, desenrolou o pano que o envolvia e voltou a sentar, segurando aquela coisa áspera e fria com as mãos, até perceber que o avô o estava observando.

— O que você achou aí? — perguntou o velho. — Onde encontrou isso?

Controle considerou as perguntas idiotas, e depois, mais tarde, fingidas. A expressão ansiosa no rosto de Jack quando ele se virou para observar, um braço ainda apoiado no volante.

— Uma arma — respondeu Controle, embora o avô pudesse ver muito bem.

Mais tarde ele se lembraria principalmente do pretume, o pretume de sua forma e a imobilidade que parecia trazer consigo.

— Uma Colt .45, é o que parece. Pesado, não é?

Controle assentiu, agora com um pouco de medo. Estava suando com todo aquele calor. Tinha encontrado a arma, mas a expressão do avô era a de alguém esperando que o presente recém-recebido fosse desembrulhado e erguido à vista de todos, e ele era novo demais para perceber o perigo. Mas já tinha tomado a decisão errada: nunca devia ter entrado naquele carro.

Que tipo de psicopata dá uma arma a uma criança, mesmo descarregada? Foi o pensamento que lhe ocorreu agora. Talvez o tipo de psicopata que não se importaria em interromper sua aposentadoria em uma cabana remota para trabalhar mais uma vez para a Central como a Voz. Para ser chefe do próprio neto.


Meio da tarde. Tente. Tente de novo.

Controle e a bióloga estavam juntos, apoiados na pesada cerca de madeira que os separava do lago. O prédio do Comando Sul estava às costas, e um caminho de cascalho, como um rio escuro e áspero, cruzava a grama. Os dois ali, sozinhos... e os três seguranças que a levaram para lá. Tinham se espalhado a uma distância de uns dez metros, posicionando-se de modo a cobrir todas as rotas de fuga.

— Eles acham que vou tentar fugir? — perguntou a Ave Fantasma.

— Não — respondeu Controle.

Se ela fugisse, ele colocaria a culpa nos três.

O lago era comprido e vagamente retangular. Do lado de dentro da cerca, na margem oposta, havia um barraco um tanto apodrecido no lado mais próximo do pântano. Um pinheiro sem galhos, com alguns fios e lâmpadas natalinas, aparecia ao lado. A água estava cheia de lentilhas-d’água, hortênsias e lótus. Patrulhas de libélulas se entrecruzavam acima da água cinza, que em alguns pontos chegava a ser negra. As rãs faziam tamanha algazarra pela proximidade da chuva que cobriam o som dos grilos, e, da beira do gramado e do lado oposto do lago, vinha o rumor e o chilrear das cambaxirras.

Uma garça-azul, solitária, estava pousada em silêncio no meio do lago. Nuvens tempestuosas continuavam a se avolumar no céu, e as penas da ave tinham uma cor fosca à luz que sumia.

— Devo lhe agradecer por isso? — perguntou a Ave Fantasma.

Estavam apoiados na cerca. O braço esquerdo dela estava muito próximo do braço direito dele. Controle o afastou um pouco.

— Não agradeça a ninguém pelo que você já deveria ter — respondeu ele. Reagindo a essa colocação, ela virou a cabeça em sua direção com uma sobrancelha erguida por cima de um olho pensativo e uma boca indiferente. Foi seu avô paterno quem dissera isso a ele, no tempo em que vendia alfinetes de porta em porta. — Não fui eu quem sumiu com os tuiuiús — comentou ele, porque na verdade não queria ter dito a primeira frase.

— Os guaxinins são os piores predadores dos ninhos — disse ela. — Sabia que os tuiuiús são anteriores à última Era Glacial? Mais ao sul, eles se agrupam em colônias, mas nesta região correm perigo, e com isso ficam mais solitários.

Controle se informara, e os tuiuiús já deviam ter retornado. Eram animais de hábitos.

— Só posso lhe garantir uns trinta ou quarenta minutos — disse ele.

Levá-la ali parecia agora uma concessão terrível, até mesmo certo risco, embora não soubesse para quem. Mas ele sabia também que depois da entrevista daquela manhã as coisas não podiam continuar do mesmo jeito.

— Detesto quando eles cortam o mato e arrancam toda a lentilha-d’água — disse ela, ignorando-o.

Ele não soube o que responder. Era apenas um lago represado, igual a milhares de outros. Não fora feito para servir de hábitat. Mas, ora, ela tinha sido encontrada num terreno baldio.

— Olhe só, alguns girinos — disse ela, apontando, com uma expressão próxima de contentamento.

Ele estava começando a entender que tê-la mantido trancada fora uma atitude cruel. Talvez agora ela não visse mais a conversa entre os dois como apenas um interrogatório.

— É bom aqui fora — disse ele, só para falar algo, mas estava de fato achando bom.

A sensação de estar fora do edifício era ainda melhor do que ele imaginara. Pretendia interrogá-la, mas o cheiro forte da chuva e o modo como as cortinas de aguaceiro distantes se aproximavam depressa fizeram esse impulso desaparecer.

“Pergunte-lhe a respeito da diretora”, ordenara a Voz. “Pergunte se a diretora em algum momento mencionou já ter atravessado a fronteira.” Afastar aquela ideia. Você é um holograma. É um artifício. Vou jogar isca de tubarão pela amurada até você ficar tão enlouquecido pelo sangue que não vai nem conseguir nadar.

A Ave Fantasma empurrou um grande besouro escuro com a ponta do sapato. O inseto estava agitado, cruzando sem cessar as fendas da cerca, indo e voltando.

— Sabe por que eles ficam assim?

— Não, não sei — respondeu Controle.

Nos últimos quatro dias, ele percebera que não sabia de muitas coisas.

— Borrifaram inseticida por aqui. Estou sentindo o cheiro. Veja, um pouquinho da espuma sobre a carapaça dele. Isso os desorienta e depois os mata, porque não conseguem respirar. Têm o que você chamaria de ataque de pânico. Ficam fazendo de tudo para fugir de algo que já está dentro deles. No fim, se aquietam, mas é porque já não têm mais oxigênio para continuar andando.

Ela esperou até que o besouro estivesse sobre um trecho plano do solo e pisou com o sapato, de maneira rápida e forte. Houve um ruído de esmagamento. Controle desviou o olhar. Perdoando uma amiga que fizera algo para perturbá-lo, seu pai disse certa vez que ela ouvia um tipo de música diferente.

“Pergunte-lhe sobre o terreno baldio”, instruíra a Voz.

— Por que você acha que foi parar naquele terreno baldio? — perguntou Controle, para satisfazer a plateia.

Qualquer um dos três guardas poderia passar informações a Grace.

— Fui parar aqui, no Comando Sul. — Um tom precavido surgiu na voz dela.

— O que aquele lugar significa para você? — O mesmo que este aqui, ou mais?, pensou Controle.

— Não acho que era para eu ter parado lá — respondeu ela depois de uma pausa. — É só uma impressão. Eu me lembro de acordar e não reconhecer aquilo por um momento, mas quando consegui, me senti desapontada.

— Desapontada como?

A Ave Fantasma deu de ombros.

Linhas de relâmpagos desenhavam mapas imaginários no céu. O trovão se ergueu como uma voz acusadora.

Pergunte se ela deixou alguma coisa no terreno baldio. Essa pergunta era dele ou da Voz?

— Você deixou alguma coisa lá?

— Não que eu me lembre — respondeu ela.

Controle falou algo que tinha ensaiado antes:

— Em breve você vai ter que ser sincera a respeito do que se lembra e do que não se lembra. Eles vão levar você para longe daqui se eu não obtiver resultado. Se isso acontecer, não posso interferir nem dizer para onde devem mandá-la. Pode ser um lugar pior do que aqui, muito pior.

— Eu já não disse a você que não sou a bióloga? — Ela falou com calma, mas havia um amargor em sua voz.

Pergunte o que ela é de verdade.

Ele não pôde refrear um impulso de recuo, mesmo tendo sido sincero quando disse que ela não lhe devia nada por tê-la trazido ali.

— Estou tentando ser honesta. Eu não sou ela... E existe alguma coisa dentro de mim que não entendo. Há uma espécie de... brilho... aqui dentro.

Nada nos prontuários médicos, exceto uma temperatura elevada.

— O nome disso é vida — disse Controle.

Ela não deu uma risada, mas rebateu, tranquila:

— Eu acho que não.

Se ela tinha um “brilho” dentro de si, havia uma escuridão correspondente dentro dele. A chuva se aproximava. A umidade era empurrada por uma brisa violenta. Cristas se formaram na superfície do lago, e o barraco emitiu silvos quando o vento começou a passar através dele. O pequeno pinheiro balançava para lá e para cá.

— Você está totalmente solitário aqui, não é, John?

Ele não precisou responder porque a chuva começara, e forte. Queria voltar às pressas para não ficarem encharcados, mas a Ave Fantasma não quis cooperar. Ela insistiu em caminhar com passos lentos, deliberados, deixando a chuva bater em seu rosto, escorrer pelo pescoço, ensopar sua camisa.

A garça-azul não se movia, alerta à procura de uma presa abaixo da superfície da água.


A S S O M B R A Ç Õ ES


000

Em seus sonhos agora, o céu é azul profundo com apenas uma réstia de luminosidade. Ele está na água, olhando para cima, para a falésia lá no alto. Pode ver a silhueta de alguém o observando do alto... Vê como a pessoa se curva sobre a borda para olhar: mais do que um ser humano seria capaz, e no entanto continua se curvando num ângulo mais acentuado, deslocando seixos que caem sobre a água à sua volta. Enquanto ele espera ali, na base da falésia, nadando como algo vasto e indecifrável por entre os outros monstros. Esperando nas trevas pela queda sem som, sem espirrar água, sem produzir ondas.


020: SEGUNDA RECUPERAÇÃO

Domingo. Um furador de gelo enfiado num cérebro já invadido pela aura de uma dor de cabeça surda mas persistente, que se irradia a partir de um núcleo latejante na parte de trás do crânio. Uma espécie de escudo de defesa por satélite, pulsando, protegendo-o de qualquer coisa mais hostil que pudesse invadir sua órbita descendente.

Uma xícara de café. O tampo de fórmica de um balcão, coberto de migalhas, uma vidraça limpa com vista para uma rua suja. Um banco alto e meio bambo que era preciso firmar com mãos inseguras. A lembrança distante do cheiro de desinfetante barato que se elevava do piso, causando um nó em sua garganta. Uma mulher repetia pedidos, enquanto ele tentava se espalhar sobre o balcão para que nenhum dos clientes na fila viesse dividir o espaço.

Pelo que ele podia intuir a partir do cabideiro no canto à sua esquerda, algumas pessoas tinham chegado ali durante o inverno e não tinham saído ainda.

A Voz, como uma percussão distante e insistente, algo de séculos atrás: “Sua casa está em ordem? Sua casa está em ordem? Me diga, por favor, a sua casa está em ordem?”

A casa estava em ordem?

Controle não trocava de roupa nem tomava banho havia dois dias. Podia sentir o próprio odor profundo como o almíscar que se elevava de um animal almejado pelos caçadores. O suor estava brotando dos poros e deslizando pela testa sob o sol de Hedley, cada vez mais forte através da janela, e as hélices do ventilador do salão não eram grande coisa. Tinha chovido na tarde anterior, até o meio da noite, e havia grandes poças cheias de coisinhas semelhantes a camarões marrons que se contorciam e morriam numa agonia ferruginosa depois que a água evaporava.

Controle fora parar ali ao caminhar até o fim da Empire Street, onde ela cortava a extremidade mais distante da Main Street. Quando era adolescente, aquele café tinha sido uma sorveteria em estilo retrô, da qual sentia falta agora. Sentava no ar-condicionado junto à janela com alguns amigos e tomava com gratidão um sorvete ou uma cerveja, enquanto falavam bobagens sobre garotas ou esportes. Era tão bom aquele tempo, uma espécie de refúgio. Mas com o passar dos anos o bairro da ferrovia, como era conhecido, foi perdendo sua vocação boêmia, sendo invadido por cafetões, vigaristas, viciados em drogas e moradores de rua.

Através da vidraça, esperando o telefonema que sabia que viria, Controle dissecava o terroir diário que se desenrolava na rua, em frente ao depósito de bebidas. Dois skatistas, tão morbidamente magros que lhe trouxeram à mente a imagem de galgos desnutridos, estavam na esquina oposta usando camisetas e jeans surrados e tênis velhos sem meias. Um deles trazia um vira-lata preso a uma correia e coleira feitas para um cão muito maior. Ele tinha visto dois skatistas durante a corrida de terça-feira à noite, não? Estava escuro, não dava para ter certeza. Mas quem sabe.

Depois de Controle observá-los por alguns minutos, juntou-se aos dois uma mulher que com certeza ele não vira antes. Alta, usando um quepe militar azul sobre cabelos curtos e tingidos de vermelho e um casaco azul de mangas compridas com franjas douradas nos ombros e nos punhos. A camiseta branca sob o casaco não chegava a cobrir a barriga. A calça, também azul, tinha uma faixa lateral de um dourado mais discreto e acabava no meio das canelas, mostrando mais abaixo pés descalços e sujos, onde se viam as manchas rubras das unhas pintadas. Aos olhos de Controle, parecia o que uma estrela de rock dos anos 1980 usaria. Ou, uma ideia ociosa e estranha: ela podia ser alguma oficial aposentada da Brigada da Paranormalidade e da Ciência, desaparecida, esquecida, desmemoriada, condenada a terminar seus dias fazendo coisas que não tinham nada a ver com ciência ou superstição.

Seu rosto tinha um aspecto ruborizado, avermelhado, e falava animadamente com os skatistas, de um modo um pouco maníaco, e ao mesmo tempo apontava o fim da rua, mas logo se interrompia para abordar qualquer pedestre que passasse, usando expressivamente as mãos enquanto recitava alguma história complexa sobre pobreza ou explicava uma necessidade. Talvez até sugerindo um pouco mais. Ela se afastou dos dois primeiros, que a ignoraram, mas os skatistas falaram alguma coisa, e, quando o terceiro pedestre seguiu em frente, ela saiu gritando atrás, como se ele tivesse sido rude. Logo, um homem negro e muito gordo, com um sobretudo cinza feito de sacos plásticos, quente demais para Hedley em qualquer época, brotou como um objeto de cena atrás de uma enorme lata de lixo na esquina da loja de bebidas. Começou a provocar o homem que se esquivara da mulher ruiva; Controle podia ouvir as obscenidades pela vidraça. Então o gordo recolheu-se de novo à sua posição anterior, evaporando-se tão depressa quanto aparecera.

A mulher podia estar usando uma peruca. O homem de cinza talvez não tivesse nada a ver com a situação provocada por ela. E Controle podia estar totalmente enferrujado em termos de vigilância, também.

A ruiva deu de ombros, dobrou a esquina e parou de frente para o trânsito que vinha pela Empire, à sombra da parede lateral da loja de bebidas. Logo juntou-se a ela um dos skatistas, que lhe ofereceu um cigarro, e então os dois se encostaram na parede e continuaram numa conversa animada. O outro skatista emergiu da loja de bebidas trazendo uma lata já aberta de comida para cachorro — Controle esquecera agora algo que era vital a respeito daquela loja — na qual bateu com força, derramando a comida sobre um pequeno monte inclinado que já havia na calçada em frente. Usou a lata vazia para espalhar um pouco a comida e sem motivo aparente a jogou na direção no negro gordo, fora da visão de Controle, escondido pela lata de lixo. Não houve reação, e o vira-lata tampouco pareceu muito entusiasmado com a comida.

Embora tivessem se aproximado de alguns clientes do café, e mesmo chegado perto da vidraça por onde ele observava a rua, nenhum pareceu notar sua presença. O fato de durante uma hora inteira continuarem ativamente a ignorá-lo fez Controle se perguntar se tinha se tornado um espectro, e se estariam interpretando um ritual concebido para uma plateia de uma só pessoa. O que dava significado mais profundo àquilo tudo, embora Controle soubesse que essa era uma ideia falsa, e perigosa. A Central raramente utilizava amadores, mas isso não queria dizer que fosse impossível. Nada mais parecia impossível agora. “Tem alguma coisa no canto do seu olho de que você não consegue se livrar?” Outra pergunta que a Voz lhe fizera, e que ele encarara como uma provocação meio dissimulada.

Se a cena diante dele era inocente, será que ele poderia desaparecer dentro dela, fazer a transição de um lado do vidro para o outro? Ou havia conspiração até mesmo no ato de comprar comida de cachorro, pedir dinheiro para uma bebida? Sutilezas que lhe escapavam.


A primeira atitude de Controle no sábado de manhã foi ligar, de casa, para a Voz. Em um canto da sua escrivaninha, tinha instalado um megafone a um alarme, que ajustou em seguida. Do lado direito, pôs uma folha de papel em cor de laranja neon, com uma lista de lembretes, e uma caneta ao lado. Virou uma dose de uísque. Cerrou os punhos e os bateu com toda força na mesa, uma, duas, três vezes. Respirou fundo. Então pegou o aparelho e fez a ligação, colocando a Voz no viva-voz.

Sons de algo rangendo e se arrastando antes de a Voz surgir. Sem dúvida estava no andar de baixo da mansão dele ou dela. Ou no porão de uma pensão vagabunda. Ou no estábulo de uma fazenda, disfarçado entre as galinhas.

— Sua casa está em ordem? — perguntou a Voz.

Estava um pouco pastosa, como se o megalodonte tivesse sido despertado de um cochilo em águas geladas. Aquele tom pareceu um insulto; deixou Controle ainda mais frio, e começou a drenar sua energia deixando em seu lugar uma espécie de desagrado tingido de obstinação.

Respiração profunda. Depois, antecipando-se a qualquer coisa que a Voz pudesse dizer, Controle disparou uma sequência de obscenidades sórdidas, contorcendo a garganta, machucando-a. Após uma pausa perplexa, a Voz gritou “Chega!” e começou a murmurar alguma coisa longa, trêmula, encrespada. Controle perdeu o fio da meada. O alarme soou. Controle sacudiu-se todo e leu as palavras do papel laranja-neon. Fez uma marca na primeira linha. Recomeçou a gritaria de obscenidades. “Chega!” E novamente, teimosa, persistente, a Voz voltou a murmurar algo, dessa vez curto e veloz. Controle começou a flutuar, a flutuar, e esqueceu. O alarme soou. Controle olhou as palavras no papel laranja-neon. Riscou a segunda linha. Obscenidades. Murmúrios. Flutuação. O alarme disparando. Controle olhou as palavras no papel laranja-neon. Fez uma marca. Repetiu. Marcou. Repetiu. Quinta vez. Sexta vez. Na sétima vez, o roteiro foi diferente. Reproduziu para a Voz todas as palavras sussurradas, guturais, úmidas e macias que tinha recolhido das anotações da diretora. Ouviu do outro lado o arquejo e o gemido indicando que acertara o alvo, e depois uma torrente desajeitada de palavras na sua direção, mas fracas, desconexas, ininteligíveis.

Deixara uma cicatriz. Duvidou que sua encantação tivesse funcionado plenamente, mas o fato é que agora a Voz estava sabendo, e tinha passado por uma experiência desagradável.

O alarme soou. Controle olhou as palavras no papel laranja-neon. Ele e a Voz estavam quites. Teriam de encontrar outro supervisor, um que não fosse tão manipulador.

— Aqui vai uma piada para você — disse Controle. — Qual é a diferença entre um mágico e um espião? — E desligou.

* * *

Na noite de sexta-feira, após uma corrida vigorosa, ele analisara todas as gravações de segurança de suas conversas com a Voz na quarta e na quinta. Estava cheio de suspeitas, e não gostava do modo como sua atenção parecia sumir e reaparecer durante essas conversas, ou como a Voz parecia se infiltrar em seus pensamentos. Com Chorizo no colo e o celular com as gravações plugado na TV, Controle ouviu a Voz executar comandos hipnóticos, viu-se perdendo o foco, a cabeça leve acima do pescoço, as pálpebras se fechando, enquanto a Voz, sem nunca perder aquele disfarce gutural, metálico, lhe dava ordens e sugestões. A Voz lhe disse para não se preocupar com Whitby, deixar de lado suas inquietações, minimizá-las, porque “Whitby nunca teve importância”. Mas depois recuou e demonstrou interesse em que ele descobrisse onde ficava o aposento estranho de Whitby. Será que fora atraído até aquele esconderijo em função de uma mensagem subliminar? Uma referência a Grace, junto com uma ordem para ir de novo a seu escritório; em seguida um pouco de agitação, e um comentário de “arriscado demais” quando Controle falou que as fechaduras foram trocadas. Muita exasperação quanto às anotações da diretora e sua lentidão na tarefa de examinar tudo. O fato de que isso se devia ao processo desorganizado da diretora fez Controle imaginar se não seria essa a razão do caos. Será que a Voz tinha dito a Controle para se apresentar como “Controle” ali naquela agência? Era preciso resistir à loucura de certos pensamentos.

A Voz, enquanto Controle jazia sob hipnose, exibia uma precisão e um foco ausentes em outros momentos, além de uma espécie de perversidade descuidada, dizendo a Controle que queria uma piada para encerrar a próxima ligação, “uma piada com desfecho”. Pelo que podia ver, ele também andara servindo de gravador ambulante para a Voz, que arrancara de Controle a reprodução literal de longos diálogos, o que explicava por que chegara tão tarde em casa na quarta-feira após uma ligação que lhe parecera tão curta.

Ele fizera parte de uma expedição enviada ao Comando Sul e, tal como ocorria com as expedições à Área X, não lhe disseram toda a verdade. Estava correto em sua impressão de que as informações lhe chegavam de forma truncada. O que mais teria feito que nunca viria a saber?

Pensando nisso, Controle pegou o papel laranja-neon, que de jeito nenhum deixaria de chamar sua atenção, e escreveu:

CONTROLE, VOCÊ ESTÁ SENDO VÍTIMA DE SUGESTÕES HIPNÓTICAS DA VOZ.

— Faça uma marca nesta linha e grite palavrões. Desça uma linha.

— Faça uma marca nesta linha e grite palavrões. Desça uma linha.

Marcar, repetir, despertar daquilo com o som do alarme, reiniciar o processo. Até finalmente, alcançar a derradeira linha: “Faça uma marca nesta linha e repita as frases abaixo.” Todas as frases que ele tinha encontrado na mesa da diretora. Grite-as, na verdade.

Está animado, também?... A possibilidade de variações significativas... Paralisia não é uma análise convincente... Consolidação de autoridade... Não há recompensa no risco... Flutuando e flutuando, como algo que não é humano mas é livre para flutuar...

Sobrecarregar o sistema como os cientistas com seus coelhos brancos não conseguiram fazer. Fazer a Voz entrar em uma espécie de colapso.

Ele tinha sido traído, e agora não haveria mais um único instante em que não olhasse por cima do ombro. Viu a bióloga à beira do lago, os dois juntos contemplando a cabana. Conduzindo-a de volta para dentro do Comando Sul. A mãe conduzindo-o pela mão ao longo da alameda que daria no chalé do verão. O avô esperando por eles, um sorriso enigmático cobrindo de mistério seu rosto.


A cura para suas descobertas, para não ter de pensar nelas, tornou-se uma espécie de autoaniquilação enquanto ele explorava sem medo, da tarde de sábado até a manhã de domingo, o pequeno mas viçoso submundo de Hedley, o qual, até onde ele pôde perceber, esquecera a existência de um tal de Comando Sul. Ele se lembrou de um salão de sinuca, o choque de bola com bola, o tum e o taque, a maciez do veludo nas caçapas, a penumbra, o ar cheio de giz e cigarro. Lembrou-se de acertar a bola da vez com a bola oito, por brincadeira, e de dar um tapa na bunda de uma mulher, que deixou um desenho de giz nos jeans que ela usava — ou como ele pensou depois, embora ela mesma tivesse posicionado sua mão, um gesto além da conta. Foi embora logo depois, pois não estava tão interessado quanto imaginara em ver um amanhecer cinzento pela janela do motel, a marca de um corpo nos lençóis, a camisinha usada no lixo. Eram visões para outras pessoas, pelo menos naquele momento, porque parecia trabalhoso demais. Ele ainda estaria no mesmo lugar. Ainda estaria ouvindo a voz de Lowry naqueles vídeos. Ainda assistiria, em câmera lenta, a Grace oferecendo-lhe o conteúdo da sua caixinha de acusações. Sua mente ainda estaria zumbindo à medida que se dilatava e contraía, tentando confrontar a Área X.

Foi assistir a um filme da última sessão de um cinema decadente, com o carpete cheio de chiclete grudado e manchas de refrigerante. Era o único espectador. Aquela sala surpreendentemente sobrevivera desde a sua adolescência até agora. O filme era terrível, o tipo de ficção científica em que os furos no roteiro quase sugerem uma interferência alienígena de outra dimensão. Mas o ar frio e a tranquilidade do lugar fizeram bem aos seus nervos abalados. Até que chegou a hora de levantar e sair se arrastando até o bar mais próximo, o caminho o conduzindo ao longo da beira do rio num trajeto épico de bar em bar. Aquele era Cheney batendo à porta, perguntando se ele estava bem?

Tomou três doses de uísque barato num bar tão decadente que nem nome tinha. Experimentou um drinque local numa festa em que entrou de penetra, não muito longe do cais de onde, muitas eras atrás, ele olhara para o rio. Disse a si mesmo, repetidas vezes, que hipnose era uma bobagem, não era nada demais, não significava nada. Nada mesmo. Um grande exagero. Uma coisa muito pequena. Pensou em ligar para a mãe. Não podia. Pensou em ligar para o pai. Impossível.

Quando entrou no bar seguinte já estava bêbado, e se viu confrontado por um fantasma. Mais cedo, naquela noite, ele tivera alguns vislumbres — na curva de um lábio que provocava uma lembrança, no piscar de uma pálpebra, no modo como a mão de alguém se demorava numa mesa. Aqueles sapatos. Aquele vestido. Mas quando você encontrava um fantasma de verdade — a Coisa Completa —, era um choque... Você ficava sem fôlego. Não, não chegava a ficar, porque a respiração não ia para lugar nenhum. Ainda estava dentro de você, trancada em você, sem uso. Tomava o seu pulso, apenas para fazer previsões sombrias do futuro. E assim, quando você estava de volta ao momento presente, de início duvidava até de si mesmo, porque o Fantasma Completo prendera Controle em algum lugar entre a pessoa que ele tinha sido e a pessoa em que tinha se tornado. No entanto, aquilo ainda não era mais que um espectro. Apenas uma mulher que ele conhecera no ensino médio. Intensamente. Pela primeira vez. Algo tão próximo que Controle se sentiu agindo com desrespeito para com a bióloga, como se o surgimento daquele fantasma interferisse na sua impressão da Ave Fantasma. Mesmo sendo isso um pouco ridículo. E tudo o conduzia cada vez mais para longe do Comando Sul.

Tentando escapar àquela lembrança, ele chegou a outro lugar situado num ponto qualquer da rosa-dos-ventos de suas aventuras. Embriagado e cambaleante, jogou-se no banco de um bar de motoqueiros, e, ao dar um giro completo, deu de cara com a diretora assistente. O bar ainda estava movimentado e barulhento às duas da manhã. Cheirava a mijo, como se gatos tivessem passado por ali marcando território. Controle deu para ela um sorriso bruxuleante, acompanhado de um gesto exagerado com a cabeça. Ela o olhou com neutralidade.

“O arquivo está vazio. Não há nada sobre ela.” Sobre quem? De quem ele estava falando? “Mesmo que você pudesse me jogar dentro do seu inferno todo especial, isso significaria ter que viver no antigo Comando Sul, pelo resto da vida, certo?”

Bem no meio do monólogo, ele percebeu que não podia ser Grace e que as palavras talvez nem estivessem saindo de sua boca.

Ela o deixava nervoso com a inocência daquele olhar impassível.

“Você não precisa me olhar assim”, continuou ele. Talvez tivesse dito mesmo, dessa vez.

“Assim como?”, disse ela, com a cabeça um pouquinho virada para um lado. “Como um homem bêbado para caralho e ainda por cima no meu bar? Vá para o inferno.”

Ele se endireitou no banco após essa sugestão, tentando reunir seus pensamentos como peças num jogo de tabuleiro. Um peso em seu peito, na escuridão e na claridade. Ele tinha pensado que era mais esperto. Achou que ela estava presa a formas antiquadas de pensar. Mas as novas formas também não ajudavam. Hora de tomar mais um drinque, mas noutro lugar. Uma espécie de esquecimento. Depois, se endireitar.

Controle cruzou com o olhar dúbio dela enquanto saía com um sorriso turvo. Estava fazendo progressos. Ela se afastou, empurrada por uma rajada de vento puxado pela porta aberta e o olhar inquisitivo dos postes de luz.


Controle esfregou o rosto e não gostou de sentir a barba crescida. Tentou varrer a confusão da sua mente, a acidez na língua, a dor nas juntas. Estava convencido de que a Voz lhe dissera, a certa altura: “Tem alguma coisa no canto do seu olho de que você não consegue se livrar? Eu posso ajudá-lo a tirar.” Fácil, sem dúvida, se foi você mesmo que a colocou ali.

A mulher de uniforme provavelmente era uma viciada em drogas e com certeza uma moradora de rua ou invasora. Se usavam amadores para vigilância quando o alvo era alguém “da família”, quando se queria usar a paisagem natural — o terroir natural — ou então quando a facção a que você pertence estava sem recursos ou era incompetente. Ocorreu-lhe que ela não o viu porque fora paga para fingir que não o tinha visto.

O skatista com o cachorro tinha claramente demarcado aquela área da esquina como seu território, partilhando o espaço com o bêbado gordo. Havia algo entre os dois que parecia mais natural ainda, talvez porque um gesto muito teatral, como o ato de espalhar comida de cachorro na calçada, não condizia com a ideia de não atrair as atenções. O segundo skatista tinha saído e voltado várias vezes, mas Controle não o vira passando drogas ou dinheiro ou comida para os outros dois. Talvez estivesse curtindo uma de favelado por um dia, ou servisse de olheiro para um bandido mais importante, ou então era um espião da mãe dele, parte da paisagem ao mesmo tempo sem ser. Ou talvez não houvesse nada ali exceto três pessoas que se conheciam e se ajudavam, e que por acaso não estavam num bom momento.

O curioso de ficar no mesmo lugar durante muito tempo era ter a sensação, enquanto se observava, de estar sendo observado, de modo que ele não se sobressaltou quando ouviu o celular tocar. Era a ligação que estava esperando.

— Fui informada de que você está se comportando mal.

— Olá para você também, mãe.

— Você está passando bem? Sua voz está rouca.

— Estou bem. Pleno domínio das minhas faculdades.

— Então por que parece que perdeu o juízo? — Isso foi dito no tom brusco e profissional que ela usava para disfarçar as fraquezas emotivas. Uma sensação de que estava ligada nele, tanto quanto em qualquer outro agente que ela chefiasse.

— Já joguei fora o telefone, mãe. Então nem pense em trazer de novo a Voz.

Se ela tivesse ligado no dia anterior, ele estaria gritando com ela até este momento.

— Sempre dá para conseguir outro.

— Uma perguntinha rápida, mamãe. — Ela detestava mamãe, mal tolerava mãe, teria preferido o severo “Severance”, mesmo sendo ele seu filho único. Que ele soubesse, pelo menos. — Se você tivesse que mandar alguém numa expedição para um lugar perigoso, digamos, o Comando Sul, como faria para que ele se mantivesse tranquilo e focado no trabalho? Que ferramentas usaria?

— As coisas de sempre, John. Mas eu não tenho certeza de que estou gostando desse seu tom.

— As coisas de sempre? Como hipnose, talvez, depois de um condicionamento na Central.

Ele mantinha a voz baixa, por mais que quisesse gritar. Ele gostava daquele balcão do café. Não queria que alguém lhe pedisse para ir embora.

Uma pausa.

— Isso pode ter sido usado, sim, mas sempre sob regras muito estritas e com segurança. Visando apenas o melhor interesse da pessoa em questão.

— A pessoa em questão talvez tivesse preferido ter uma chance de escolher. A pessoa talvez não quisesse ser transformada num drone. — A pessoa talvez preferisse saber que suas esperanças e desejos e impulsos eram de fato suas esperanças, desejos, impulsos.

— A pessoa talvez não dispusesse de informação ou perspectiva suficiente para ser envolvida em tal decisão. A pessoa pode ter precisado receber uma inoculação, uma vacina.

— Contra o quê?

— Contra uma porção de coisas. Embora ao primeiro sinal de que algo sério esteja acontecendo, nós levamos você embora e uma equipe entra em ação.

— Algo sério? O quê? O que você considera sério?

— Qualquer coisa que possa acontecer.

Indiferente a ponto de irritar, como sempre. Tomando decisões por ele, como sempre. Ele agora estava invocando tanto a irritação de seu pai quanto a própria, os espectros de inúmeros bate-bocas na mesa de jantar ou na sala. Resolveu continuar a conversa na rua, e parou à entrada do beco à esquerda do café. Não passava muita gente. A maior parte das pessoas devia estar na igreja ou negociando drogas.

— Jack costumava dizer que não dar a um agente todas as informações que ele precisa é o mesmo que cortar a própria perna — disse ele. — Sua operação naufraga.

— A sua operação não naufragou, John — respondeu ela com a mesma veemência. — Você ainda está lá. Ainda está em contato conosco. Comigo. Nós não vamos a lugar nenhum.

— Bem colocado, exceto que não penso que esse “nós” inclua a Central. Acho que você se refere a alguma facção dentro da Central, e uma que não é muito eficiente. A sua Voz estragou tudo tentando tirar a diretora assistente daquela confusão. Dê-lhe mais uma semana e vou virar o assistente administrativo de Grace. — Ou será que a intenção com isso era fazer Grace gastar com ele grande parte do seu tempo e de sua atenção?

— Não existem facções, existe a Central. A Voz está sob muita pressão, John. Agora, mais ainda. Todos nós.

— Um caralho que não existem facções. — Ele agora era Jack, difícil de tirar do assunto em foco. “Um caralho, que não tem alguma...” “Um caralho que não tem um monte...” “Um caralho tudo que você diz.”

— Você pode não acreditar em mim, John, mas lhe fiz um favor colocando você no Comando Sul.

Todo mundo parecia ter esquecido a definição de favor. Primeiro Whitby, depois Grace, agora sua mãe. Ele achou melhor nem responder, então se calou.

— Tem gente por aí que mataria para receber esse cargo — completou ela.

Ele também não tinha resposta para aquilo. Enquanto os dois conversavam, a mulher tinha desaparecido e a frente da loja estava deserta. No tempo dele, aquele depósito de bebidas fora uma loja de departamentos. Antes de Hedley ser construída, existia um povoado indígena ao longo do rio — seu pai contara algo sobre isso —, e os vestígios estavam preservados por trás da fachada da loja de bebidas.

Sob a loja, havia também um labirinto de calcário se esgueirando por entre os aquíferos, com cavernas estreitas e lagostins albinos cegos e peixes luminescentes de água doce. Cercado pelos despojos maltratados de tantas criaturas, coberto de marga em todo o seu solo, empurrado pelos alicerces das construções. Será que a bióloga avaliaria a rua dessa maneira? — o que ela veria? Talvez veria, também, o único futuro possível daquele espaço, a loja de bebidas se desfazendo sob o ataque de trepadeiras e a fúria do tempo, tornando-se aos poucos igual àquelas colinas afundadas, cobertas de lodo, perto da Área X. Uma perda que ela talvez não lamentasse. Será?

— Está aí, John?

E onde mais ele estaria?


Há muito tempo Controle tinha a suspeita de que sua mãe trouxera outra pessoa para baixo de sua asa, como sua protegida. Parecia algo inevitável. Alguém preparado sob medida, treinado e despachado para consertar o tipo de mancada que Controle costumava cometer. Esse pensamento voltava sempre que ele se sentia especialmente inseguro e vulnerável, outras vezes apenas porque parecia um exercício mental bastante útil. Agora ele estava tentando visualizar o impecável protegido entrando em cena e tirando o Comando Sul das suas mãos. O que essa pessoa faria de diferente? O que essa pessoa faria agora?

Enquanto isso a mãe continuava a falar, prolongando algo que cada vez mais parecia uma mentira.

— Mas liguei na verdade para me informar das novidades, saber se você tem feito progressos. — Era sua tentativa de subverter o silêncio dele com um pedido de desculpas. E uma pequena ênfase em progressos.

— Você sabe exatamente como estão as coisas. — A Voz já teria lhe contado o que sabia até o ponto em que tudo descarrilou.

— Certo, mas ainda não ouvi sua versão.

— Minha versão? Minha versão é que eu fui jogado num poço de serpentes com os olhos vendados e as mãos amarradas às costas.

— Um pouco dramático, não acha? — disse o raio de luz.

— Não é tão dramático quanto o que vocês fizeram comigo na Central. Estou com apagões de horas, talvez um dia inteiro.

— Não chega a ser muito — rebateu ela numa voz indiferente que lhe mostrou como o assunto a entediava. — Não é muito. Preparamos você para seguir sua resolução, e só. Fizemos com que visse algumas coisas com mais clareza e outras com menos.

— Como introduzir falsas memórias, ou...

— Não. Esse tipo de coisa o tornaria um modelo tão caro que ninguém poderia pagar por você. Ninguém poderia bancar sua vinda para o Comando Sul.

Porque tinha gente por aí que mataria por aquele cargo.

— Está mentindo para mim?

— É melhor esperar que não — disse ela, num rompante —, porque agora sou tudo que você tem, devido ao seu próprio comportamento. Além disso, você nunca vai ter certeza absoluta. Sempre foi o tipo de pessoa que fica descascando as camadas da cebola, mesmo depois que não existem mais camadas para descascar. Então, acredite na sua pobre e sofredora mãe.

— Eu posso ver você, mãe. Posso ver seu reflexo no vidro. Você está logo do outro lado da esquina, me olhando, não é mesmo? Não são somente seus emissários. Você também está na cidade.

— Sim, John. É por isso que você ouve esse eco metálico. É por isso que minhas palavras parecem estar entrando por um ouvido e saindo pelo outro, porque você as está escutando duas vezes. Aparentemente, estou interferindo em mim mesma.

Seu corpo vibrou. Sentiu-se mais longo, sendo esticado, e sua garganta estava seca.

— Posso confiar em você? — perguntou ele, cansado de servir como saco de pancadas.

Alguma coisa sincera e aberta que havia na sua voz aparentemente chegou a ela. Ela abandonou o tom distante e disse:

— Claro que pode, John. O que não pode é saber como eu vou chegar aonde quero, mas tem que confiar porque sei para onde vou, sempre sei para onde vou.

Aquilo não serviu muito para ele.

— Quer que eu confie em você? Então me diga, mãe. Me diga quem era a Voz.

Se ela não dissesse, aquele impulso de desaparecer nas entranhas de Hedley, sumir naquela paisagem e não voltar, jamais reaparecer, voltaria. Talvez forte demais para controlar.

Ela hesitou, e sua hesitação o amedrontou. Pareceu verdadeiro, não ensaiado. E então:

— Lowry. Juro por Deus, John. A Voz era Lowry.

Não estava a trinta anos de distância, afinal. Estava ali, ofegando em sua orelha.

— Filho da puta.

Banido, mas ainda assim de volta através dos vídeos que seriam exibidos para sempre em sua memória. Assombrando-o.

Lowry.


“Vá na frente e veja se tem moeda caída entre os assentos, John.” O avô Jack olhando para ele enquanto segurava a arma.

Ouviram-se batidas rápidas na janela do carro. Era a mãe de Controle, inclinando-se para olhar pelo vidro. Mesmo com a condensação de vapor, Controle percebeu o instante em que ela viu a arma em seu colo. A porta foi aberta com violência. A pistola sumiu, e Jack, no lado oposto, tinha saído do carro. A mãe o confrontou enquanto ele estava sentado no meio-fio diante do carro. Controle arriscou-se a baixar um pouco a janela traseira esquerda e inclinou-se para fora, tentando vê-los melhor através do para-brisa. Ela estava falando muito baixo com o avô, de pé diante dele, braços cruzados e o olhar direto para a frente, como se ele estivesse no nível de seus olhos. Controle não conseguiu ver onde a arma fora parar.

Uma sensação de ameaça se irradiava da mãe, algo que ele nunca vira de forma tão concentrada. Sua voz podia estar baixa, e ele podia não escutar metade do que dizia, mas o tom e a rapidez a tornavam uma faca bem afiada, fatiando sem esforço uma carne crua. O avô reagia com um aceno peculiar da cabeça, era mais como se estivesse sendo empurrado para trás por uma força invisível ou como se ela o estivesse açoitando.

Ela descruzou os braços e abaixou a cabeça para olhar para o avô, e Controle ouviu:

“Assim não! Assim não. Não pode forçá-lo a isso.”

Por alguma razão, ele se perguntou se ela se referia à arma ou ao plano secreto do avô de levá-lo para o desfile de lingerie.

Então ela veio até o carro para buscá-lo, o avô entrou no automóvel e foi embora bem devagar. Controle sentiu-se banhado em alívio quando os dois voltaram para casa. Não tinha mais que ir ao desfile de lingerie. Teria uma chance de ir ao encontro com a vizinha mais tarde.

A mãe só falou uma vez sobre esse incidente, quando já estavam em casa. Tiraram os casacos e foram para a sala. Ela puxou um maço de cigarros e acendeu um. Com sua cabeleira grande e ondulada, seus traços finos e a blusa branca, o cachecol vermelho, calças pretas e saltos altos, ela parecia uma modelo de revista, fumando. Uma modelo inquieta. Agora ele estava descobrindo outra coisa, além do fato de que ela era capaz de brigar ferozmente por ele: não sabia que ela fumava.

Só que ela virou-se para o filho como se fosse ele o responsável.

— Que diabo você tinha na cabeça, John? O que estava pensando?

Mas ele não estava pensando. Tinha visto o avô piscar para ele quando se referiu ao desfile e gostou que aquele homem que podia ser severo ou até mesmo acusador tivesse cumplicidade com ele, confiasse nele para que um segredo não fosse descoberto por sua mãe.

— Não toque mais em armas, John — disse ela, indo e voltando pela sala. — E não faça as coisas imbecis que seu avô lhe mandar fazer.

Ele decidiu seguir a segunda regra, mas ignorou a primeira, que ele duvidava que ela tivesse dito a sério, e chegou até a apelidar algumas de suas várias armas de Vô e Vovô. Usava armas, mas não gostava delas e não gostava de depender delas. Elas cheiravam à coisa para que se destinavam.

Controle nunca contou a seu pai sobre esse incidente, temendo que pudesse ser usado contra a mãe. E não reconheceu senão muito depois que toda aquela viagem girara em torno da arma, de ele vir a descobrir a arma. Que talvez ela tivesse se transformado em uma espécie de teste.

Sentado ali no café depois que sua mãe desligou, Controle foi tomado pelo pensamento de que talvez a raiva de sua mãe tivesse sido uma representacão, um terroir, com Jack e Jackie como cúmplices, atores numa cena que já pretendia influenciá-lo, já naquela idade, ou corrigir seu trajeto. Iniciar uma espécie de doutrinação relativa ao império da família.

Controle não podia mais dizer se sabia a diferença entre o que se esperava que encontrasse e o que ele descobrira por conta própria. Uma torre podia se tornar um poço. Interrogar uma bióloga podia se tornar uma armadilha. Um membro de uma expedição talvez reaparecesse trinta anos depois em forma de uma voz sussurrando coisas estranhas em seu ouvido.


Quando voltou para casa domingo à noite, checou a gravação de sua conversa com a mãe e sentiu um alívio enorme ao perceber que não havia lacunas, nenhum indício de que ela também o estivesse enganando.

Ele acreditava que a Central estava uma bagunça e que ele fora usado por uma facção sob hipnose. Agora a casa estava sem dúvida caindo, e o megalodonte inquietava-se dentro do seu tanque de água rachado. Grace derramara sangue ali. Sangue da Voz. E Controle desferira o golpe final.

“Somente Lowry tinha conhecimento suficiente sobre o Comando Sul e a Área X para ser útil”, dissera a mãe, mas o medo transparecia em suas palavras também, e ela discorria sobre Lowry enquanto Controle sentia como se um personagem da História tivesse acabado de pular de um quadro a óleo, vivo, apresentando-se a ele. Uma figura histórica alquebrada, errática, reabilitada, que alegava lembrar muito pouca coisa que já não estivesse gravada nos vídeos. Alguém que conseguira uma promoção, recebida por uma mistura confusa de piedade e remorso ou por alguma outra razão que não a competência.

“Lowry é um babaca”, disse ele, para que ela parasse de falar sobre ele.

Só porque sobreviveu, porque foi chamado de herói, não significava que não pudesse ser um babaca. Ela devia estar muito desesperada, sem escolha. Controle agora via por trás daquilo sussurros que talvez viessem de Lowry: sobre certas instalações da agência, sobre detalhes ligados à hipnose e ao condicionamento, mas ainda mais terríveis.

“Eu sabia que você diria a ele coisas que não diria a mim. Sabíamos que podia ser melhor que não soubesse... algumas das coisas que precisaríamos que você fizesse.”

A raiva dele se misturou à satisfação de tê-los desmascarado, de que pelo menos um dos mistérios fora resolvido. A necessidade de saber estava agora equilibrada pela sensação de ter descoberto coisas demais. E o tempo todo tentando ignorar uma ideia nova e preocupante: a de que os poderes de sua mãe tinham limites.

“Você está escondendo alguma coisa de mim?”

“Não”, respondeu ela. “Não. A missão continua a mesma: mantenha o foco na bióloga e na diretora desaparecida. Mergulhe nas anotações dela. Organize o Comando Sul. Descubra o que está acontecendo lá que nós não sabemos.

Era mesmo essa a missão? Esse objetivo tão fragmentado? Talvez fosse a missão da Voz, e era a sua agora, pensou ele. Controle escolheu aceitar a mentira de que ela tinha lhe revelado tudo, embora talvez o pior ainda estivesse por vir. Ele arrebentara as correntes. Suportara tudo que Grace fora capaz de armar contra ele. Assistira aos vídeos.

Controle foi para a cozinha e se serviu de uma dose de uísque, a única daquele dia, e a virou de um gole só, tentando acreditar nos poderes mágicos da bebida para fazê-lo dormir em paz. Quando pôs o copo vazio em cima do balcão, viu o celular da diretora junto à tomada. Ainda na capa, ainda parecendo um inseto.

Uma premonição o assaltou, e ele lembrou dos ruídos que tinha ouvido no teto dias antes. Pegando um pano de prato, envolveu o celular, abriu a porta dos fundos, com Chorry nos seus calcanhares, e atirou o telefone na parte mais escura e distante do quintal. Ele bateu numa árvore e quicou na penumbra por cima da grama, até o limite do terreno. Vá se foder, celular. Não volte mais. Pode ir fazer companhia ao telefone de Lowry/Voz no além-vida dos telefones. Preferia se achar paranoico ou estúpido do que correr mais riscos. Sentiu-se vingado quando Chorry recusou-se a ir atrás do aparelho e preferiu manter-se dentro de casa. Uma boa escolha.


021: REPETINDO

Quando chegou a manhã de segunda-feira, Controle não foi direto para o Comando Sul. Em vez disso, pegou o carro e seguiu para a casa da diretora. Pesquisou uma rota na internet, pôs a arma no coldre e pegou a estrada. Era algo que estava na sua lista de tarefas para quando as anotações no escritório estivessem catalogadas, só para se certificar de que os enviados de Grace de fato recolheram tudo de importante, como ela afirmava. A confirmação da manipulação da Voz/Lowry, e de sua mãe por extensão, continuava a produzir uma sensação de inquietude, algo que não parava de se agitar lá no fundo. Em matéria de respostas, Lowry não o ajudou muito, nem lhe deu muita munição. Ele sentia que fora manipulado por alguém intangível, etéreo. Lowry, disfarçado como a Voz, assombrando a distância o Comando Sul. E agora Controle se esforçava para fundir os dois numa só pessoa, uma só intenção.

Havia também um impulso, agora que ele estava dirigindo, de não voltar nunca mais para o Comando Sul, passar direto em frente à casa da diretora, pegar dali uma estrada rural, e seguir rumo à casa do pai, cerca de oitenta quilômetros a oeste.

Mas resistiu. Havia novos proprietários e nenhuma escultura guardada no quintal. Depois da morte do pai, elas foram para as casas dos seus tios e tias, sobrinhos e sobrinhas, mesmo que isso o fizesse sentir como se a paisagem dos seus anos de formação estivesse se desmantelando peça por peça. Nenhum alívio ali. Nenhuma história verdadeira. Alguns dos seus parentes ainda viviam naquela área, mas o pai fora a ligação entre eles, e Controle já não via a maioria desde a adolescência.

Bleakersville tinha uma população de cerca de vinte mil habitantes, grande o bastante para abrigar alguns restaurantes decentes, um pequeno centro de artes e os três quarteirões do centro administrativo. A diretora vivia num bairro com poucos rostos brancos. Havia grande quantidade de pinheiros, carvalhos, pés de magnólia, todos pesadamente cobertos de musgo, e galhos encharcados derrubados pelos temporais se espalhavam pela estrada esburacada. Casas sólidas de cimento ou cedro, algumas decoradas com tijolos marrons, azuis ou cinza, com um ou dois carros estacionados em calçadas de cascalho cobertas por agulhas de pinheiro. Ele passou por duas quadras comunitárias de basquete e viu alguns garotos negros ou latinos andando de bicicleta, que pararam e ficaram olhando até ele sumir. As escolas estavam fechadas fazia cerca de duas semanas.

A casa da diretora ficava no fim de uma rua chamada Standiford, no topo de uma colina. Por precaução, Controle estacionou um quarteirão antes, na rua de baixo, e subiu pelo terreno que se estendia pela encosta até a casa. O chão era coberto por um matagal de azáleas e cipós de glicínias, alguns enrolados com força em volta dos troncos de pinheiro. Duas composteiras construídas sem muito cuidado estavam protegidas por cercas de arame de galinheiro. Boa parte da relva estava seca e amarelada, expondo as raízes das árvores.

Três semicírculos de cimento cumpriam a função de terraço dos fundos, cobertos de folhas e do que parecia alpiste apodrecido, e ao lado havia uma tigela redonda com água suja até a borda. As portas brancas com venezianas, cobertas por manchas verdes de lodo, serviam de entrada. Um problema apenas: ele precisaria forçar a porta, uma vez que não havia solicitado oficialmente uma visita. Mas queria fazer isso, ele percebeu. Não queria a chave. Enquanto trabalhava na fechadura com as ferramentas que trouxera, a chuva começou a cair. Gotas pesadas que batiam com força nas folhas secas de magnólia do inverno passado.

Teve a sensação de estar sendo observado — algum movimento no canto do olho, talvez — no momento em que abriu a porta. Endireitou o corpo e virou para a esquerda.

No quintal da casa vizinha, bem atrás da corrente que servia de cerca, uma garota negra, de nove ou dez anos, com tranças cheias de miçangas, olhava para ele com desconfiança. Usava um vestido cheio de girassóis e sandálias brancas de plástico com tiras de velcro.

Controle sorriu e acenou. Em algum outro universo, ele fugiu e abandonou a missão, mas não neste.

A garota não respondeu ao aceno, mas também não saiu correndo.

Ele considerou isso um bom sinal e entrou.

* * *

Ninguém entrava ali fazia meses, mas havia certa agitação no ar que ele preferiu atribuir a algum ventilador que não podia ver, ou a algum ar-condicionado que funcionasse até pouco tempo atrás. Só que Grace mandara desligar a eletricidade até que a diretora voltasse “para não dar mais despesas a ela”. Agora a chuva caía com força e tornava tudo mais sombrio, de modo que ele acendeu a lanterna. Ninguém iria perceber. Estava longe das janelas e as portas de vidro eram cobertas por grossas cortinas. De qualquer maneira, a maioria dos vizinhos estaria no trabalho.

Os vizinhos da diretora provavelmente a conheciam como uma psicóloga com um consultório particular, isso se a conhecessem. Será que a foto no escritório de Grace era uma anomalia, ou a diretora costumava comer churrasco com uma cerveja na mão? Será que Lowry, naquela época, aparecia ali com boné, camiseta e jeans rasgados para os cachorros-quentes e fogos de artifício do 4 de Julho? As pessoas são capazes de se desdobrar em duas ou em três para viverem situações diferentes, mas por algum motivo ele achava que a diretora fora sempre uma pessoa solitária. E era para a sua residência que ela, ao longo do tempo e contra as normas, em alguns casos até de forma ilegal, levara arquivos e amostras da Área X, rompendo a barreira entre vida profissional e pessoal.

Iluminada pelo facho da lanterna, a pequena sala de estar foi revelando seus segredos: um sofá, três chaise-longues, uma lareira. Havia também um aposento que parecia uma biblioteca, atrás de uma divisória e separada da sala por portas de vaivém desgastadas. A cozinha ficava à esquerda, seguida por um corredor; uma geladeira enorme, coberta de ímãs e fotografias e calendários antigos, ocupava um canto. À direita da sala estava uma porta que dava acesso à garagem, e depois outra porta, certamente do quarto principal. A casa inteira não teria muito mais que 150 metros quadrados.

Por que a diretora morava ali? Com o salário que ganhava, poderia morar muito melhor; tanto Grace quanto Cheney residiam em bairros de classe média alta em Henley. Talvez ela tivesse dívidas que ele desconhecia. Precisava se informar melhor. De algum modo, a falta de informações sobre a diretora parecia relacionada a sua travessia clandestina da barreira e sua capacidade de se manter por tanto tempo no cargo.

Há mais de um ano ninguém vivia ali. Ninguém exceto a Central tinha entrado na casa. Não havia ninguém lá, agora. E no entanto aquele vazio o deixou desconfortável. Estava com a respiração curta, a pulsação acelerada. Talvez fosse o fato de dispor apenas da lanterna, e a maneira inquietante como ela reduzia tudo fora de seu feixe de luz a sombras indefinidas. Talvez fosse uma parte de sua mente reconhecendo que aquilo era o mais próximo de uma missão de campo da qual ele participava, em vários anos.

Um copo d’água pela metade estava no balcão da pia, refletindo a luz como um círculo de fogo. Na pia, alguns pratos, junto com garfos e facas que a diretora deixara para trás no dia em que pegou o carro e foi até o Comando Sul para liderar a décima segunda expedição. A Central, aparentemente, não recebera instruções para limpar o espaço depois do desaparecimento da diretora, nem mesmo os indícios da sua própria passagem por ali: o carpete da sala mostrava pegadas de botas, bem como um pouco de terra e folhas secas. Era como um diorama num museu dedicado à história secreta do Comando Sul.

Grace podia ter pedido à Central para entrar e recolher tudo que fosse secreto, mas os objetos pessoais da diretora mal foram tocados. Nada parecia mexido, embora Controle soubesse que tinham levado cinco ou seis caixas de material. Parecia apenas amontoado, que era sem dúvida como já tinham encontrado a casa, a julgar pela aparência do escritório que herdara. Pinturas e gravuras cobriam as paredes acima de algumas estantes repletas de CDs, uma TV plana empoeirada e um aparelho de som barato, no qual havia alguns vinis raros. Os quadros e as fotos não pareciam ter qualquer cunho pessoal.

Um elegante sofá azul e dourado estava encostado na parede que separava a sala da biblioteca, com uma pilha de revistas sobre uma almofada, enquanto a antiga mesa de centro diante dele, em jacarandá, parecia ter sido utilizada como outra mesa de trabalho: toda sua superfície estava coberta de livros e revistas, e o mesmo acontecia com a mesa de cozinha, de fino acabamento, que se via à esquerda. Será que ela preferia fazer a maior parte do seu trabalho ali? Era um ambiente mais acolhedor do que ele imaginara, com boa mobília, e ele não conseguia entender por que isso o perturbava. Será que a mobília vinha com a casa, faria parte de uma herança? Ela teria alguma ligação pessoal com Bleakersville? Uma teoria começava a se formar em sua cabeça, como uma música que ele pudesse cantarolar vagamente de memória, sem conseguir lembrar o nome ou tocá-la com exatidão.

Ele atravessou o corredor que começava junto à cozinha e percebeu outro detalhe que lhe pareceu estranho, mesmo sem razão aparente. Todas as portas ao longo dele estavam fechadas. Teve de abri-las uma a uma, como se passasse por uma série de câmaras de vácuo. Cada vez que o fazia, mesmo não percebendo nenhum sinal de ameaça, Controle ficava pronto para recuar. Descobriu um escritório, um quarto com alguns arquivos de gavetas, uma bicicleta ergométrica e alguns halteres, e um pequeno quarto de hóspedes com banheiro. Havia portas demais para uma casa tão pequena, como se a diretora ou a Central pretendesse conter alguma coisa, ou quase como se ele estivesse caminhando pelos diversos compartimentos do cérebro da diretora. Todos esses pensamentos o assombraram um pouco, e depois da terceira porta ele disse “dane-se”, passando a abri-las com uma das mãos segurando Vovô, que estava no coldre.

Ele circulou por ali até voltar à biblioteca e olhar para fora por uma das janelas da frente. Viu um jardim com mato crescido e coberto de galhos quebrados, uma caixa de correio verde e bastante desgastada ao fim de uma calçada de cimento, nada de suspeito. Ninguém à espreita em um sedã negro com vidros fumê, por exemplo.

Cruzou outro corredor de volta à sala, passou pela porta da garagem e entrou no quarto principal.

De início pensou que o cômodo fora inundado, toda a mobília empurrada pela água para junto das paredes mais próximas da porta. Havia cadeiras amontoadas em cima das cômodas e dos armários. A cama foi parar junto aos armários. Cerca de sete pares de calçados, de salto alto a tênis de corrida, estavam jogados sobre a cama como se fossem destroços flutuantes. As cobertas pareciam ter sido arrumadas às pressas. No lado oposto do quarto, sob o clarão da lanterna, um espelho mandou um reflexo errático através da porta de um banheiro.

Ele sacou Vovô do coldre, soltou a trava e o manteve apontado para onde dirigia o facho de luz. Dos armários até a cama, depois para a parede junto à qual a cama estivera, agora coberta por grossas cortinas roxas. Com cuidado ele as afastou, revelando as palavras agora tão familiares por baixo de uma janela alta e horizontal, que deixava entrar uma luz estagnada.

De onde jaz o fruto asfixiante que veio da mão do pecador eu trarei as sementes dos mortos.

Escrito com uma caneta escura e grossa, a mesma parede de texto, com o mesmo mapa por cima, idênticos ao que ele cobrira de tinta em seu escritório. Era como se no instante em que se livrara das inscrições elas tivessem reaparecido no quarto da diretora. Uma visão sem sentido. Uma ideia sem sentido. Naquele instante uma centena de Controles corriam para longe daquele quarto e fugiam de carro, em uma centena de universos paralelos.

Mas aquilo já estava ali havia algum tempo. Tinha de estar. Muito descuido do pessoal de Grace não ter removido. Muito descuido mesmo.

Ele foi na direção do banheiro.

— Se tiver alguém aí, saia — ordenou ele. — Estou armado.

Seu coração batia muito mais depressa agora, e sua mão estava fechada com tanta força sobre a arma que seria impossível arrancá-la.

Mas ninguém saiu.

Não havia ninguém lá dentro, como ele pôde comprovar, forçando-se a respirar mais pausadamente. Obrigando-se a examinar cada recanto, inclusive um pequeno closet que parecia mais cavernoso à medida que ele avançava em seu interior. No banheiro, encontrou os objetos habituais — xampu, sabonete, uma receita de remédio para pressão alta, algumas revistas. Tintura para cabelos castanhos e uma escova de cabelo com fios grisalhos enroscados. Então a diretora sentia-se desconfortável com os efeitos da idade. A escova reluziu ao ser atingida pela luz da lanterna, como se quisesse dizer algo, da mesma forma que as receitas rabiscadas às pressas e as páginas arrancadas de revistas, que desnudaram partes da vida dela aos olhos de Controle, partes mais carregadas de significado do que as dele próprio.

Voltou para o quarto e projetou a luz de novo sobre a parede. Não, não era o mesmo quadro. Eram as mesmas palavras, exatamente as mesmas palavras. Mas não havia medições de altura. E o mapa, também, estava diferente. Esta versão mostrava a ilha e o seu farol em ruínas, junto com a anomalia topográfica e o farol na costa. Mostrava também o Comando Sul. Uma linha fora traçada entre o farol em ruínas, o farol preservado e a anomalia topográfica. Depois a linha fora prolongada até o Comando Sul. Tinham a aparência de postos avançados numa fronteira, como nos antigos mapas dos impérios.

Controle recuou e voltou pelo corredor até a sala, sentindo-se frio e distante. Não conseguia conceber nenhum cenário em que a Central tivesse visto aquelas palavras, aquele mapa, e não o tivesse removido.

O que significava que ele fora criado após a casa ter sido revistada. O que significava... o que provavelmente significava...

Ele não se permitiu concluir o pensamento. Em vez disso, foi até a porta da frente para confirmar uma suspeita súbita.

A maçaneta girou com facilidade em sua mão. Destrancada.

O que não queria dizer nada.

Mas naquele momento a ideia principal, sua única ideia na verdade, era sair daquela casa. Ainda teve a presença de espírito de trancar a porta da frente e voltar para os fundos.

Empurrou a porta com venezianas e saiu para a chuva.

Andou com passos apressados, quase correndo, de volta para o carro.

* * *

Somente quando estacionou a uma distância segura, na rua principal de Bleakersville, ele ligou para a mãe. Contou o que tinha descoberto e pediu-lhe que enviasse uma equipe para investigar. Se a acionasse ainda na casa, eles o manteriam lá por muito tempo. Enquanto conversavam, Controle esforçou-se para atribuir interpretações benevolentes àquilo que tinha visto, quase tanto quanto sua mãe.

— Não tire conclusões apressadas, John, e não conte nada a Grace, porque ela vai ter uma reação desproporcional.

E estava certa. Qualquer pessoa do Comando Sul poderia ter escrito aquilo na parede. Whitby seria um dos principais suspeitos, além da ex-diretora. E, perturbando aquele relativo conforto, surgia a visão incômoda da ex-diretora, vagando através dos quarteirões e dos parques, atravessando os campos, as florestas. Revisitando lugares aonde costumava ir.

— Mas, John, tem uma coisa que preciso lhe dizer.

— Diga, então. — Será que ela revelara que Lowry era a Voz apenas para esconder outra coisa?

— Sabe os lugares onde a antropóloga e a topógrafa foram encontradas?

— A porta de casa de uma delas e os fundos de uma clínica médica.

— Percebemos algumas... inconsistências nesses locais. As leituras não batem.

— O quê? Como assim, não batem?

— Ainda estamos checando os dados, mas colocamos essas áreas em quarentena, por mais difícil que seja.

— Mas não o terreno baldio? Não onde a bióloga apareceu?

— Não.


022: ARTIMANHA

Final da manhã. Uma tentativa de recuperar o... controle. A velha e familiar sala de interrogatórios, cujas deficiências ele aprendera a ignorar. Esperando uma ligação de sua mãe com novidades sobre a casa da ex-diretora, mesmo sabendo que certamente ainda levaria horas.

Ele informara a Grace que interrogaria a bióloga e queria a presença dela dessa vez. Alguns minutos depois, Grace apareceu num vestido amarelo brilhante com uma estampa florida e um cinto preto — uma espécie de traje dominical —, sem espreitar pela porta, sem parecer esperar uma granada jogada por ele. Controle ficou imediatamente desconfiado.

— Onde está a bióloga? — perguntou Grace, num tom de conspiração.

Controle estava sozinho.

Ele puxou a cadeira que estava em frente à sua com o pé à guisa de resposta, enquanto fingia estar ocupadíssimo tomando notas.

— Sinto muito — disse ele. — Você por pouco não a encontrou. Mas ela tinha algumas coisas bem interessantes para dizer. Gostaria de saber o que falou sobre você, por exemplo?

Por algum motivo, Controle imaginara que Grace veria aquilo como uma armadilha, levantaria e tentaria ir embora, de forma que ele precisaria convencê-la a ficar. Mas ela continuou sentada, observando-o.

— Bem, antes de lhe dizer, devo avisar que todos os gravadores foram desligados. Isso é somente entre nós.

Grace cruzou os braços.

— Por mim, tudo bem. Continue.

Controle sentiu-se desconcertado. Esperava que ela fosse verificar, para ter certeza de que ele não estava mentindo. Talvez ela já tivesse checado antes de entrar na sala. Seu avô Jack sempre dizia que para esse tipo de trabalho era preciso “ter sempre um reforço”. Bem, ele não tinha um reforço. Foi em frente, de qualquer modo.

— Vou direto ao assunto. Antes da última décima segunda expedição, a diretora cruzou a fronteira clandestinamente, por conta própria. Você tinha conhecimento prévio disso? Você lhe deu ajuda material? Você a ajudou a tomar decisões de comando e controle? Você foi, de fato, cúmplice, e a ajudou a cruzar a fronteira de volta? Porque isso é o que a bióloga disse que ouviu da diretora.

Nada disso estava no relatório oficial do incidente, que a Voz lhe enviara por e-mail antes do confronto por telefone. No documento, a diretora alegava ter agido sozinha.

— Interessante. O que mais a bióloga lhe disse? — Nenhuma emoção nas palavras dela.

— Que a diretora deu instruções a você para esperá-la na fronteira todas as noites durante uma semana, em datas bem específicas, cerca de três semanas depois que ela atravessou a passagem. Para ajudá-la a voltar.

De acordo com os registros da segurança, em todas aquelas datas Grace tinha saído mais cedo do Comando Sul, embora não houvesse registro de sua presença nos postos da fronteira.

— Tudo isso é passado — respondeu Grace. — O que está tentando provar, exatamente?

Controle começava a se sentir como um jogador de xadrez que acredita possuir uma grande jogada, mas tem diante de si um oponente que é brilhante, ou está blefando, ou tem algo preparado com quatro lances de antecedência.

— É mesmo? Sua resposta é essa? Porque essas duas acusações seriam o bastante para um adendo no meu relatório para a Central. Informando que você entrou em conluio com a diretora para violar o regulamento e os protocolos de segurança. Que lhe proporcionou ajuda material. Ela recebeu uma suspensão. O que você acha que receberia por mentir?

— O que você quer? — perguntou Grace, sorrindo.

Não era exatamente uma confissão de culpa, mas isso lhe permitiu prosseguir com o roteiro que ele tinha em mente e abafou as sinetas de alarme.

— Não é o que você pensa, Grace. Não estou pressionando para que renuncie, e não quero repassar essa informação para a Central. Não estou aqui para perseguir a diretora. Quero entendê-la, só isso. Ela atravessou a barreira. Quero saber exatamente por que e como, e também o que ela encontrou. O relatório que temos é muito vago. — Ele se perguntou se o documento teria sido redigido ou supervisionado por Grace.

O relatório focava principalmente na punição imposta à diretora e nas providências tomadas para que as medidas de segurança na região da fronteira fossem ainda mais rígidas. Havia uma breve declaração da diretora que parecia ter sido escrita por um advogado: “Embora minha intenção fosse agir de acordo com os melhores interesses do Comando Sul e das exigências do meu cargo, faço meu mais profundo pedido de desculpas pelas minhas ações e reconheço que foram imprudentes, perigosas e em desacordo com os objetivos da missão da agência. Se meu retorno for autorizado, farei todo o possível para me manter dentro dos padrões de conduta que se esperam de mim e do meu cargo.”

O relatório também se referia a “medidas” e “amostras”, mas Controle não conseguira localizá-las. Não foram trazidas para a catedral das amostras, pelo que ele foi capaz de verificar. A não ser que tudo se limitasse a uma planta, um rato e um velho celular.

— A diretora não comentava tudo comigo — disse Grace num tom de irritação, como se esse fato a aborrecesse, mas com um estranho sorriso amarelo no rosto.

— É difícil acreditar que você não sabe mais do que está me contando.

Isso não provocou nenhuma reação em Grace, de modo que ele insistiu:

— Não estou aqui para destruir o legado da diretora, nem o seu. Chamei você não somente por causa do que a bióloga me disse, mas também porque acho que nós dois podemos ter autonomia aqui. Que podemos administrar a agência de uma maneira que sua posição não se altere.

Porque, para ele, a agência estava fodida e ele era agora um agente disfarçado numa missão de campo, adentrando território inimigo. Melhor negociar usando tudo que tinha à mão. Talvez ele desse a Whitby, antes de sair, a transferência que o sujeito desejou um dia. Talvez acabasse voltando para a Central e tomando uma cerveja com Lowry.

— Muito gentil de sua parte — respondeu Grace. — O aluno propõe dividir poderes com o professor.

— Não é bem essa a comparação que eu faria. Em vez disso eu...

— A diretora fez o que fez porque achava que era importante.

— Sim, mas o que foi que ela fez? Qual era o plano dela?

— O plano? — repetiu Grace, com um ruído de incredulidade.

Ele escolheu as palavras com todo cuidado.

— Grace, já estou aqui. Estou metido nisso tudo. Você devia me dizer o que está acontecendo. — Qual olhar podia revelar a ela, sem o reforço das palavras, que ele já tinha visto coisas muito estranhas? — Lembre-se, essa conversa não está sendo gravada.

Grace avaliou por um segundo, com uma expressão de quem parecia estar se divertindo. Então começou a falar.

* * *

— Você precisa entender a posição da diretora — disse Grace. — A primeira expedição deu o tom dentro da organização. Apesar de que o antigo diretor estava tentando mudar isso quando Cynthia chegou aqui.

Cynthia? Por um instante, Controle pensou em quem seria Cynthia, pois por muito tempo só a vira como “a diretora”. Grace prosseguiu:

— Os funcionários daqui acharam que a primeira expedição falhou porque o Comando Sul não sabia o que estava fazendo. Que nós mandamos a expedição para lá e eles morreram porque não sabíamos o que estávamos fazendo, e nunca poderíamos nos redimir desse erro. — A primeira expedição: um sacrifício à falta de contexto. Um equívoco que não foi reconhecido até ser tarde demais. — E a presença de Lowry na agência durante quase uma década — será que ela estava lendo a mente dele, será que de algum modo ela sabia? —, a meu ver, apenas piorou as coisas. Ele era um fantasma ambulante, um lembrete tratado como herói quando não passava de um sobrevivente. Essa condição dava mais peso a seus conselhos, mesmo quando ele estava errado. A diretora só teve a chance de executar os próprios planos quando Lowry foi promovido e transferido para a Central. Mas mesmo isso acabou se tornando um problema. Lowry insistia no envio de mais expedições, embora ela preferisse um número menor, e enquanto no passado ela era capaz de controlar Lowry, agora ele não estava mais subordinado a ela. De modo que continuamos enviando pessoas, arremessando-as para algo totalmente desconhecido. Isso não agradava à diretora, mas ela obedecia as ordens, pois era sua obrigação.

Ele percebeu que estava sendo conduzido por aquela narrativa.

— E como a diretora conseguiu fazer as coisas de acordo com seus planos? Que tática empregou?

— Ela ficou obcecada por métrica, com uma mudança de contexto. Se pudesse dar ênfase à métrica, então Lowry podia, mesmo a contragosto, mandar suas expedições e pôr em prática o condicionamento e a hipnose que ele defendia, embora com o tempo ela viesse a compreender por que Lowry utilizava a hipnose.

Controle via Lowry na gravação da câmera voando pela paisagem: arrastando-se no chão, a câmera no céu, e a verdade talvez num meio-termo entre os dois. E depois Lowry fazendo com que Controle se arrastasse e voasse.

Nada disso trazia esclarecimentos, no entanto, sobre a missão secreta da diretora além da fronteira. Será que Grace estava apenas cuspindo informações para evitar tocar no assunto? Aquilo tudo era mais do que ela já dissera a ele até então.

— E o que mais? — perguntou. — O que mais ela fez?

Ela espalmou as mãos num gesto enfático e o sorriso no seu rosto era quase beatífico.

— Ela ficou obcecada com a ideia de provocar uma reação.

— Da Área X?

— Sim. Ela achava que se pudesse fazer a Área X reagir, então poderia influir na sua marcha. Embora não soubéssemos que marcha era essa.

— Mas ela já vinha reagindo. Matou uma porção de pessoas.

— A impressão da diretora era de que nada do que tínhamos feito impulsionara o que estava por trás da Área X. Que aquilo, o que quer que fosse, tinha enfrentado com excessiva facilidade tudo que fazíamos. Quase sem pensar. Se é que havia pensamento envolvido.

— E então ela atravessou a fronteira para fazer a Área X reagir.

— Não vou confirmar que eu sabia da incursão dela ou que a ajudei de algum modo — disse Grace. — Vou lhe dizer o que penso, baseado no que ela me disse quando voltou.

— Não foi a reação que ela esperava — disse Controle.

— Não. Não, de maneira nenhuma. E ela pôs a culpa em si mesma. A diretora pode ser muito severa, mas nunca mais severa do que com ela mesma. Quando a Central decidiu ir em frente com o projeto da última décima primeira expedição, tenho certeza de que a diretora esperava ter feito a diferença. E talvez tivesse mesmo. Em vez do que sempre acontecia, quem voltou foi um grupo de enigmas tomados pelo câncer.

— E foi por isso que ela forçou a própria ida à décima segunda expedição.

— Sim.

— E foi por isso que os métodos dela pareceram suspeitos.

— Não posso concordar com essa afirmativa. Mas, sim, outras pessoas poderiam dizer isso.

— Por que a Central permitiu que ela fosse na décima segunda expedição?

— Pelo mesmo motivo que a puniu depois que ela cruzou a fronteira, mas não a demitiu.

— E o motivo era...?

Grace sorriu, triunfante. Por saber algo que ele não sabia? Por alguma outra razão?

— Pergunte a sua mãe. Houve o dedo dela em ambas as coisas, até onde sei.

* * *

— Tinham perdido a confiança nela, de qualquer maneira — disse Grace em seguida, com a voz cheia de amargura. — Que diferença faria se ela voltasse ou não? Talvez algumas pessoas na Central até pensassem que isso resolvia um problema.

Como Lowry.

Mas Controle ainda estava com o pensamento voltado para Jackie Miranda Severance, chamada apenas de Severance, e pelo avô sempre de “Jack”. Sua mãe o enviara para o Comando Sul, para o meio daquilo tudo. Ela própria tinha trabalhado para a agência durante algum tempo quando ele era adolescente, pelo que dissera, só para estar perto dele. Agora, enquanto interrogava Grace, ele tentava fazer com que as datas se encaixassem, para ter uma ideia de quem estava no Comando Sul naquela época, quem àquela altura já tinha ido embora e quem ainda estava por vir. A diretora — não. Grace — não. Whitby — sim. Lowry — sim, não? E para onde fora sua mãe depois de sair dali? Teria mantido alguma ligação? Certamente sim, a julgar pelo que Grace dissera. E será que seu aparecimento súbito com uma oferta de trabalho significava que estava com algum tipo de emergência nas mãos? Ou tudo isso era parte de um plano mais complexo? Era muito cansativo ficar procurando a agulha no palheiro. Pelo menos o avô fora mais direto. Ah, veja só. Tem uma arma aqui. Que surpresa. Quero que você aprenda como se usa uma arma. Faça cada coisa servir para mais de um objetivo. Às vezes, afinal de contas, é preciso pegar um atalho. Piscadela. Mas a mãe nunca piscava para ele. E por que o faria? Ela não queria ser a amiguinha, e se não pudesse convencê-lo de forma mais sutil, acharia alguém para convencer. Ele talvez nunca descobrisse quantas coisas já encontrara que eram consequências de sua passagem pelo Comando Sul.

Mas a ideia de que a diretora pudesse ter se aproximado de outras pessoas na agência, e na Central, o consolava. Fazia com que parecesse menos uma excêntrica, menos uma “pessoa de uma nota só”, como a mãe colocara, do que alguém tentando sinceramente resolver um problema.

— O que aconteceu na incursão dela pela barreira? — perguntou ele, voltando a pressionar.

— Nunca me disse nada. Alegou que era para minha própria segurança, caso os investigadores me intimassem. — Ele fez uma anotação mental para voltar depois ao assunto.

— Nada, nada mesmo?

— Nem um detalhe sequer.

— Ela lhe deu alguma instrução especial antes de sair para cumprir a suspensão, quando retornou da Área X?

Pelo que Controle podia intuir dos relatórios, Grace era mais fiel às regras e aos regulamentos do que a diretora, que talvez tivesse se sentido ligeiramente boicotada pela obediência de sua assistente. Ou talvez a questão fosse que Grace a mantinha com os pés na terra. Nesse caso, quase com certeza, Grace estaria incumbida dos detalhes operacionais.

Grace hesitou, e Controle não soube se isso queria dizer que estava cogitando revelar mais detalhes ou se estava inventando uma história.

— Cynthia me pediu para reabrir uma investigação sobre a Brigada da Paranormalidade e da Ciência, e para solicitar a alguém um relatório mais detalhado sobre o farol, especialmente a história completa do farol em si.

— E quem fez essa pesquisa?

— Whitby. — Whitby, o maluco. Fazia sentido.

— O que aconteceu com essa pesquisa? — Ele não lembrava dessas informações nos arquivos que consultara antes de ir para o Comando Sul.

— Cynthia ficou com ela, pediu uma cópia impressa e determinou que as cópias eletrônicas não figurassem no registro geral. Você está pensando em entrar no mesmo buraco de coelho?

— Então você acha que foi tudo uma perda de tempo?

— Para nós, mas não necessariamente para Cynthia. Para mim era algo irrelevante, mas nada que pudéssemos achar faria muito sentido sem sabermos o que ela tinha em mente. E nem sempre sabíamos o que ela tinha em mente.

— Mais alguma coisa que gostaria de me dizer? — Um pouco de ousadia agora que Grace estava finalmente se abrindo para ele.

Uma expressão simpática, espontânea ou não.

— Você fuma?

— Às vezes. — No fim de semana anterior. Afugentando vozes e demônios.

— Então vamos lá fora no pátio fumar um cigarro.

Parecia uma boa ideia. Para ser totalmente honesto, ele achou aquilo uma bênção.

* * *

Foram até a extremidade do pátio que ficava mais próxima do pântano. A caminhada curta da sala até o ar livre não transcorreu sem novidades: ele finalmente avistou o zelador, um homenzinho enrugado com óculos enormes que usava um macacão verde-claro e empunhava um esfregão. Não teria mais de um metro e meio de altura. Controle resistiu à tentação de se afastar de Grace e ir até ele para pedir que trocasse os produtos de limpeza.

No pátio, Grace pareceu mais relaxada do que lá dentro, apesar da umidade e do irritante coro dos insetos que se elevava dos arbustos. Ele já estava suando.

Ela lhe ofereceu um cigarro.

— Pegue um.

Sim, ele ia pegar. Sentia falta de fumar desde a farra do fim de semana. O gosto acre e penetrante do cigarro de mentol sem filtro, quando o acendeu, foi como enfiar um ferrão no olho para curar uma dor de cabeça.

— Gosta desse pântano? — perguntou ele.

Ela deu de os ombros.

— Gosto da calma daqui, às vezes. Pode ser um lugar bem tranquilo. — Ela lhe deu um sorriso contido. — Se eu der as costas para o prédio, posso fazer de conta que ele não está ali.

Ele assentiu, ficou em silêncio por um instante, depois disse:

— O que você faria se a diretora voltasse e estivesse do mesmo jeito que a antropóloga e a topógrafa? — Apenas prolongando a conversa descontraída. E apenas uma gafe, como ele percebeu assim que acabou de falar.

Grace permaneceu impávida.

— Não vai acontecer.

— Como pode ter certeza? — Ele quase quebrou a promessa feita à mãe, quase contou a Grace sobre a parede escrita na casa da diretora.

— Tem uma coisa que preciso lhe dizer — interrompeu ela, virando-se um pouco para encará-lo. — Vai ser um choque, mas não porque eu queira assim.

De algum modo, mesmo já sendo tarde demais, ele pôde ver a pancada se aproximando, quase como se estivesse em câmera lenta. Vai nocauteá-lo.

— Vou dizer algo que você precisa saber. A Central levou a bióloga embora na sexta-feira à noite. Ela já não estava mais aqui durante o fim de semana. Você deve ter conversado com um fantasma, porque sei que não mentiria para mim, John. Não mentiria para mim, não é mesmo?

O olhar dela era sério, como se houvesse alguma ligação entre os dois.

* * *

Controle se perguntou se a mulher de jaqueta militar ainda estaria em frente à loja de bebidas. Perguntou-se se o skatista estava mais uma vez espalhando comida de cachorro sobre a calçada, se o homem do casaco feito de sacos plásticos estaria emergindo do lixo para gritar com os pedestres. Imaginou se não deveria se juntar a eles. Dentro dele havia uma afeição generosa por aquelas pessoas, só comparável à tristeza vasta e crescente que experimentava agora. Um barraco no meio do mato. Lâmpadas natalinas penduradas num pinheiro. Tuiuiús.

Não, ele não tinha conversado com a bióloga naquela manhã. Sim, ele achava que ela ainda estava no Comando Sul, tinha agido com base nessa premissa. Planejara em detalhes o próximo interrogatório. Voltaria a utilizar a sala, não o lado de fora. Ela sentaria lá, talvez num estado de espírito diferente das vezes anteriores, talvez não, esperando pelas perguntas que agora já eram previsíveis. Mas ele não faria perguntas. Era o momento de mudar de estratégia, e para o diabo com os protocolos.

Ele empurraria pela mesa a pasta com o material sobre ela e diria:

“Isso aqui é tudo o que sabemos sobre você. Sobre seu marido. Sobre seus trabalhos e seus relacionamentos anteriores. Inclui também uma transcrição de suas primeiras entrevistas com a psicóloga.”

Não seria fácil para ele. Depois disso ela podia se tornar uma pessoa diferente da que ele conhecia; ele podia estar deixando que a Área X avançasse mais um pouco no mundo, de alguma maneira estranha. Podia estar traindo sua mãe.

Ela faria alguma observação sobre ter durado mais do que ele, e ele responderia que não queria continuar com os jogos, que os jogos de Lowry já o tinham deixado exausto. Ela repetiria a mesma frase que ele lhe dissera perto do lago: “Não agradeça a ninguém pelo que você já deveria ter.” “Não estou em busca de agradecimentos”, ele responderia. “Claro que está”, diria ela, sem recriminá-lo. “É a natureza humana.”

— Você a mandou embora?

A pergunta dele foi feita numa voz tão baixa que Grace lhe pediu para repetir.

— Vocês começaram a criar um envolvimento — respondeu ela. — Você estava perdendo a perspectiva.

— Você não tem autoridade para isso!

— Não fui eu quem a mandou embora.

— O que quer dizer?

— Pergunte ao seu supervisor, Controle. Pergunte à sua máfia lá na Central.

— Não é minha máfia — retrucou ele.

Uma máfia contra uma facção. O que era pior? Aquele era um recorde de “não consertar”, um recorde em matéria de receber uma missão e depois ser excluído. Ficou pensando na carnificina que estaria acontecendo na Central àquela altura.

Deu um longo trago no cigarro e ficou contemplando aquele pântano horroroso. Ouviu meio a distância a voz de Grace perguntando se ele estava bem, ouviu também sua própria voz dizendo “me dê só um minuto”.

Ele estava bem? Na longa lista das coisas com as quais poderia não estar bem, aquela estava no topo. Sentia como se algo tivesse sido prematuramente rompido, que havia muito mais a ser dito. Reprimiu o impulso de voltar para o prédio e ligar para a mãe, porque, é claro, ela já devia saber de tudo e lhe devolveria apenas um eco amplificado do que Grace dissera, mesmo que aquela situação parecesse uma punição decretada por Lowry: “Você começou a ficar muito próximo dela muito rápido. Começou com interrogatórios e logo estava conversando dentro da própria cela, e depois estavam os dois mastigando talos de capim enquanto faziam um passeio turístico do lado de fora do prédio em apenas quatro dias. O que viria a seguir, John? Uma festinha de aniversário? Levá-la para dançar conga? Uma suíte privê para ela no Hilton? Talvez uma vozinha começasse a sussurrar no seu ouvido ‘Entregue a ela a pasta com os relatórios...’ Hein?”

E ele começaria a mentir e a dizer que isso não era verdade, que não era justo, e ela adotaria a velha ofensiva do avô Jack, segundo a qual justiça era para “os fracassados e os covardes”. Controle diria que ela estava interferindo na sua capacidade de executar o trabalho de que fora encarregado, e ela responderia com a proposta de lhe enviar as transcrições dos próximos interrogatórios, o que “daria na mesma”. Depois do que ele diria, desanimado, que não era esta a questão. Que precisava de apoio, e então bateria em retirada desajeitadamente, porque sabia que entrava em terreno perigoso quando falava de apoio, e a mãe não iria ajudá-lo, e ele estaria num beco sem saída. Eles nunca falavam a respeito de Rachel McCarthy, mas ela estava sempre ali.

— Então devemos conversar sobre uma divisão de tarefas — disse Grace.

— Sim, devemos. — Porque ambos sabiam que agora era ela quem estava por cima.

Mas sua mente estava longe durante todo o tempo em que Grace massacrou suas tropas antes de deixarem o pátio. Grace cuidaria da maioria das tarefas significativas para a agência, enquanto John Rodríguez abdicaria da responsabilidade sobre tudo, mantendo apenas certa encenação de autoridade durante as reuniões mais importantes com a equipe. Voltaria a submeter suas recomendações a Grace, deixando de fora as menos importantes, e ela decidiria o que implementar ou não. Tentariam coordenar suas atividades de modo que em breve seus horários de trabalho coincidissem o mínimo possível. Grace o ajudaria na decifração das anotações da diretora, e enquanto ele se acostumava ao novo arranjo, esta seria sua principal responsabilidade, embora Grace em momento algum reconhecesse que a diretora podia estar morta ou ter perdido o juízo e corrido pelo mato até saltar de uma falésia em seus últimos dias no Comando Sul. De toda forma, ela admitira que a planta-com-rato era algo indiscutivelmente estranho, e tinha aceitado o fato consumado de que ele pintara a parede da diretora por trás da porta.

De qualquer maneira, nada nesse recuo às pressas — nessa retirada que não tinha vanguarda nem retaguarda, era apenas um grupo de homens desesperados atolados no lamaçal e defendendo-se com espadas antiquadas, enquanto os cossacos os aguardavam na planície — contrariava totalmente os desejos de Controle, mas não era o desenrolar dos fatos que ele previra, com Grace ditando os termos de sua rendição.

E nada o salvava de certo sofrimento, não por causa do poder que estava perdendo, mas por causa da pessoa que acabava de perder.


Continuou lá fora fumando depois que Grace se afastou, com um tapinha em seu ombro que tinha intenção de simpatia, mas reforçou sua sensação de fracasso. Ainda que agora ele a considerasse uma colega de trabalho, mesmo que não uma amiga. Tentando evocar a bióloga em seu pensamento, a imagem dela, o som da sua voz.

“O que devo fazer agora?”

“A prisioneira sou eu”, respondeu a bióloga de seu catre, o rosto virado para a parede. “Por que deveria lhe dizer alguma coisa?”

“Porque estou tentando ajudar você.”

“Está mesmo? Ou está só querendo ajudar a si mesmo?”

Ele não teve resposta para aquilo.

“Uma pessoa normal desistiria. Isso seria bem normal.”

“Você faria isso?”, perguntou ele.

“Não. Mas eu não sou normal.”

“Nem eu.”

“Isso nos leva aonde?”

“Aonde sempre estivemos.”

Mas não foi assim. Uma coisa lhe ocorrera, depois de ter finalmente visto o zelador. Algo que tinha a ver com uma escada e uma lâmpada pendurada por um fio.


023: COLAPSO

Controle achou uma lanterna de pilhas e a testou. Depois atravessou o refeitório, que a esta altura se tornara uma repetição irritante, como se ele tivesse passado vários dias pelo mesmo terminal de aeroporto e mascando o mesmo pedaço de chiclete. Na porta do quartinho de depósito, olhou para os lados, para se certificar de que o corredor estava deserto, e esgueirou-se rapidamente para dentro.

Estava escuro. Tateou em busca do fio da lâmpada e a acendeu. A luz surgiu, mas não serviu de muita coisa. Como lembrava, o anteparo de metal por cima da lâmpada ficava bem baixo, alguns centímetros acima de sua cabeça, então só conseguia ver as prateleiras mais baixas. As únicas prateleiras que o zelador podia alcançar, de qualquer forma. As únicas que não estavam vazias, como as sombras revelaram à medida que seus olhos se acostumaram com a pouca luz.

Ele tinha a impressão de que Whitby mentira. Que esse era o aposento especial que Whitby prometera mostrar-lhe, mas depois se acovardou. Mesmo que não resolvesse nenhum outro mistério, resolveria aquele. Um quebra-cabeças. Um desvio. Será que a interferência mágica de Lowry tinha precipitado ou retardado esse momento?

Devagar, o facho da lanterna percorreu as prateleiras do topo, depois parou no teto, cerca de dois metros e meio acima dele. As tábuas eram irregulares e aparentes, de diferentes tonalidades, cruzadas por duas vigas formando um X, e pareciam ter sido instaladas em torno das prateleiras. As prateleiras se elevavam, vazias, até o teto, e então para além dele. Controle podia ver através de uma fresta a próxima fila de prateleiras, acima do teto. Depois de mais alguns minutos de inspeção, percebeu um corte fino, quase invisível, formando um quadrado ao longo das duas vigas. Um alçapão?

Controle refletiu sobre aquilo. Talvez desse acesso a um duto de ar, ou a mais espaço de armazenamento, mas ao tentar imaginar a localização daquele quarto na planta do edifício, percebeu que estava situado do lado oposto ao canto preferido de Whitby no refeitório, e isso significava que, se a escadaria para o terceiro andar se situava entre os dois, devia haver um espaço considerável mais para cima, abrigado pela parte de baixo da escadaria.

Ele foi à procura da escada de metal que vira na ocasião anterior e a encontrou. Era uma escada retrátil, escondida num canto por baixo de uma lona. Quando a colocou na posição ela se chocou contra a lâmpada, fazendo cair uma nuvem de poeira, e o espaço se inundou de uma luz forte e tremeluzente.

No topo da escada, ele acendeu a lanterna e, meio desajeitado, usou a outra mão para empurrar o quadrado no centro do teto. De onde estava, podia ver que o “teto” era claramente uma plataforma encaixada entre as estantes.

O alçapão cedeu com um rangido. Ele soltou a respiração, apreensivo, sentindo que os degraus da escada eram um pouco escorregadios. Abriu a porta. Ela se ergueu nas suas molas sem fazer barulho, como se tivesse sido recentemente lubrificada. Controle apontou a lanterna para o chão, depois para as estantes que ainda subiam cerca de três metros de cada lado. Não havia ninguém ali. Focou a luz no espaço central: a parede oposta e o teto verdadeiro, em posição oblíqua.

Rostos o encararam, assim como a impressão confusa de formas vastas e alguma coisa escrita.

Controle quase deixou a lanterna cair.

Observou de novo.

Ao longo da parede e de parte do teto, alguém pintara uma vasta fantasmagoria de monstros grotescos com rostos humanos. Mais especificamente, manchas de óleo borradas e lambuzadas num estilo primitivo, em cores intensas de vermelho, azul, verde e amarelo, sugerindo corpos humanos. Os rostos, em pixels enormes, eram reproduções ampliadas das fotos dos crachás de funcionários do Comando Sul.

Uma imagem predominava, estendendo-se ao longo da parede e com a cabeça olhando para baixo, num efeito tridimensional proporcionado pela inclinação do teto. As demais formavam constelações em volta dela, juntamente com frases manuscritas formando um emaranhado de rabiscos e borrões, como se alguém quisesse produzir uma corrente de palavras. Havia uma moldura, também: um anel de fogo rubro que se transformava nas extremidades num monstro de duas cabeças, com a Área X no seu ventre.

Com relutância, Controle içou-se para dentro daquele espaço, tendo cuidado ao repousar seu peso até ter certeza de que a plataforma o aguentaria. Mas ela parecia bastante sólida. Parou junto às estantes do lado esquerdo e examinou as pinturas à sua frente.

O corpo que se destacava entre os murais, ou pinturas, ou o que quer que fosse aquilo, retratava uma criatura que parecia o cruzamento de um javali com uma lesma, com uma pele branca cheia de manchas do que parecia um musgo verde e doentio. Os traços fortes e largos retratando os braços e as pernas sugeriam os membros de um porco, mas terminando em três dedos grossos. Havia outros apêndices pendurados no meio do corpo.

A cabeça, por cima de um pescoço muito curto, reproduzido em um tom esbranquiçado de rosa, era deformada, mas cravado em seu centro havia um rosto, a cola reluzindo sob o facho da lanterna. Controle reconheceu o rosto que vira nos arquivos: era o psicólogo da última décima primeira expedição, um homem que, antes de morrer de câncer, dissera nas transcrições: “Era um lugar muito bonito a Área X, um lugar de muita paz.” E sorrira de modo vago.

Mas ali ele havia sido retratado como uma coisa muito diferente e da paz. Usando uma caneta, alguém — Whitby? Whitby — dera àquele homem uma máscara de angústia total e perplexa, com a boca aberta num perpétuo O.

Enfileiradas à direita e à esquerda havia mais criaturas — algum panteão privado, algum significado especial — com outros rostos que ele reconheceu. A diretora tinha sido retratada como um urso de corpo inteiro, recheado com vegetação; a diretora assistente como uma espécie de doninha ou furão; Cheney como uma água-viva.

E então ele se viu. Incompleto. Seu rosto desenhado a partir de seu retrato mais recente, com ar sério, em volta do qual Whitby delineara os contornos semipreenchidos de um monstro marinho cinza-azulado, um leviatã parecido com uma baleia, com ondas roxas espadanando de ambos os lados, e um olho como um grande círculo protuberante que se projetava da sua cara, transformando-o num ciclope. Irradiando-se do seu corpo monstruoso, viam-se não apenas as ondas, mas também rajadas de palavras ilegíveis numa caligrafia retorcida, vacilante. Em matéria de paredes surpreendentes e perturbadoras, aquela estava em um nível muito acima do que a do escritório da diretora. Controle sentiu sua pele se arrepiando com um calafrio repentino. Aquilo o fez perceber que, até então, parte dele estivera contando com as análises de Whitby para encontrar alguma resposta. Mas não havia respostas ali. Somente a prova de que, na mente de Whitby, existia algo como uma pilha de papéis unida por uma planta, um rato morto e um antigo telefone celular.

No chão, do lado oposto, perto das estantes do lado direito, via-se uma colher de pedreiro, boa quantidade de tinta e uma bancada que permitia a Whitby alcançar o teto. Alguns livros. Um fogareiro portátil. Um saco de dormir, enrolado. Será que Whitby estaria vivendo ali? Sem que ninguém soubesse? Ou talvez suspeitassem, mas sem a intenção de descobrir? Empurrando, em vez disso, Whitby para cima do novo diretor. Desinformação e confusão. Whitby vinha produzindo aquilo ao longo de um tempo bastante longo. Trabalhava ali com paciência, fazendo um pouco aqui, desmanchando ali. Um terroir.

Controle ficou parado encostado às prateleiras por cerca de um minuto.

Enquanto estava lá, percebeu que havia uma corrente de ar no espaço. Mas não era uma corrente de ar.

Alguém estava respirando às suas costas.

Alguém estava respirando em sua nuca. Aquela percepção o paralisou, congelou a exclamação de puta que pariu! em sua garganta.

Ele se virou com incrível lentidão, desejando parecer tão imóvel quanto uma estátua. Então viu assustado um olho azul pálido na escuridão, contrastando com as sombras que recortavam uma carne esquálida que ele identificou como o rosto de Whitby.

Ele estivera ali o tempo inteiro, enfiado naquele espaço da estante bem atrás de Controle, ao nível dos seus olhos, com os joelhos dobrados e deitado de lado.

Respirando em arquejos rápidos e curtos. Observando tudo.

Como uma coisa que estivesse incubando. Ali, bem naquela prateleira.

* * *

De início, Controle pensou que Whitby pudesse estar dormindo de olho abertos. Um boneco de museu de cera. Um manequim de alfaiate. Depois percebeu que estava bem acordado e olhando para ele. O corpo de Whitby estremecia muito de leve, como uma pilha de folhas com algo por baixo. Sua aparência era a de um corpo sem ossos, enfiado num espaço pequeno demais.

Tão próximo que Controle poderia se inclinar para a frente e morder ou beijar a ponta do seu nariz.

Whitby continuou sem dizer nada, e Controle, aterrorizado, sabia de alguma forma que correria perigo se falasse. Que se dissesse qualquer coisa Whitby poderia saltar do seu esconderijo, e que os movimentos rígidos da mandíbula do homem escondiam algo mais sinistro e mortal.

Seus olhos se encontraram, e não havia como esconder o fato de que ambos tinham se visto, mas ainda assim Whitby não disse nada, como se também quisesse preservar a ilusão.

Devagar, Controle conseguiu afastar o facho da lanterna para longe de Whitby, reprimindo um estremecimento, e, rangendo os dentes, superou o impulso de não dar as costas a ele. Podia sentir a respiração de Whitby se projetando.

Então houve um breve movimento e a mão de Whitby se aproximou e pousou no topo da cabeça de Controle. Ficou pousada ali, com a palma aberta sobre seus cabelos. Os dedos se esticaram como uma estrela do mar e se moveram para a frente e para trás. Dois toques. Três. Alisando a cabeça de Controle. Acariciando-o de maneira delicada, hesitante.

Controle não se mexeu. Foi preciso muito esforço.

Depois de algum tempo, a mão foi recolhida com certa relutância. Controle deu dois passos para a frente. Então mais um. Mais um. Whitby não saltou de seu lugar. Não produziu nenhum som não humano. Não tentou puxá-lo para dentro das estantes.

Controle chegou ao alçapão sem sucumbir a um calafrio, desceu e encontrou a escada com as pernas. Fechou a tampa lentamente, sem olhar para as estantes, mesmo na escuridão. Sentiu um alívio sem tamanho quando ela se fechou, e desceu atabalhoadamente os degraus. Hesitou, mas esforçou-se em recolher, dobrar e guardar a escada. Parou para escutar junto à porta antes de sair do depósito, tendo deixado lá a lanterna. Então saiu para o corredor brilhante, ofuscante, estreitando os olhos, e respirou tão fundo que fez sua vista ficar meio turva, uma convulsão que ele não conseguiu controlar e que não queria que ninguém testemunhasse.

Depois de uns cinquenta passos, Controle percebeu que Whitby subira àquele lugar sem usar a escada. Imaginou-o se arrastando ao longo de um duto de ar. Sua cara branca. Suas mãos brancas, estendidas.

* * *

No estacionamento, ele esbarrou num vulto jovial que disse:

— Parece que você viu um fantasma!

Controle perguntou se o vulto tinha escutado algo de estranho no prédio ao longo dos anos, ou visto alguma coisa fora do comum. Jogou as palavras como quem prolonga uma conversa e faz uma pausa para relaxar, num tom que, ele esperava, exprimisse curiosidade e humor. Mas Cheney desconversou, dizendo:

— Bem, é o pé-direito alto, não é mesmo? Faz a pessoa ver coisas que não estão lá. Faz as coisas que você de fato vê parecerem diferentes. Uma ave pode ser um morcego. Um morcego pode ser um pedaço de saco plástico voando. O mundo é assim. Vemos coisas em outras coisas. Pássaro-folha. Ave-morcego. Sombras feitas de luzes. Sons que são incidentais, mas que parecem mais importantes. Nunca vai ser diferente, não importa para onde for.

Uma ave pode ser um morcego. Um morcego pode ser um pedaço de saco plástico voando. Mas pode mesmo?

Controle foi atingido — em cheio — pelo pensamento de que fizera uma avaliação errada não só de Whitby, mas também de Cheney: uma fachada apressadamente montada que estava se afastando no estacionamento, andando de costas para dizer mais algumas palavras, sendo que Controle não escutou nenhuma.

* * *

Em seguida, ligou o motor e ultrapassou a cancela de segurança. Mais tarde não se lembrou desse trajeto, nem de ter estacionado ao longo da calçada à beira rio. Estava abençoadamente livre do Comando Sul e se encontrava no cais de Hedley. Explorou por algum tempo o passeio que acompanhava a margem do rio, mas estava tão mergulhado dentro de si que mal deu atenção às lojas ou às pessoas ou à água adiante.

Seu transe, sua bolha de não pensar, foi interrompido pelo grito de uma garotinha:

— Você está atrasado!

Sentiu alívio quando percebeu que ela não estava falando com ele, mas com o pai, que naquele instante o ultrapassou e foi apanhá-la.

O lugar para onde se dirigiu era um bar simples e antiquado, mas era escuro e espaçoso, com mesas de sinuca nos fundos. Um pouco mais adiante ficava o local onde iniciava sua corrida das terças. Subindo a colina estava sua casa, mas ele ainda não se sentia pronto para voltar. Controle pediu um uísque puro, assim que a garçonete parou de ouvir cantadas de um ancião que parecia uma versão envelhecida do atleta do colégio.

— Ele até que tem charme, mas o pescoço é muito cheio de rugas — disse Controle, e ela riu, embora ele tivesse falado com malícia.

— Nem dava para ouvir o que estava dizendo. É tão papudo que a voz sai abafada.

Ele riu, fora dos próprios pensamentos por um instante.

— Vai fazer o que hoje à noite, meu anjo? Será que vai ser comigo? — Ele imitou o jeito de falar e a cantada terrível do velho.

— Vou dormir hoje. Já estou quase dormindo.

— Eu também — disse ele, ainda rindo.

Mas sentiu o olhar curioso dela em seu rosto, quando ela se virou para lavar copos. Aquele diálogo não era mais longo do que qualquer uma das conversas que ele teve com Rachel McCarthy, tantos anos atrás. Nem com mais conteúdo.

A TV estava ligada baixinho, mostrando a repercussão de inundações gigantescas e um massacre numa escola, tudo inserido entre comerciais para um grande jogo de beisebol. Às suas costas, ele ouvia um grupo de mulheres conversando.

— Vou acreditar em você agora... porque não tenho uma teoria melhor.

— O que vamos fazer agora?

— Não estou pronta para voltar. Ainda não.

— Você prefere este lugar, realmente prefere, não é mesmo?

Ele não saberia dizer por que o bate-papo delas o incomodava, mas afastou-se mais um pouco pelo balcão. O abismo entre a maneira como ele entendia o mundo e a maneira como pessoas feito elas entendiam aumentara exponencialmente na última semana.

Ele sabia que, se fosse para casa, começaria a pensar em Whitby, o Perturbado. Mas não conseguia parar de pensar nele de qualquer maneira, porque tinha de fazer algo a respeito no dia seguinte. Era só uma questão de definir a abordagem.

Whitby estava no Comando Sul havia muito tempo. Jamais feriu alguém enquanto esteve a serviço da agência. A palavra “serviço” o fez pensar em como poderia dizer aquilo:

“Obrigado pelos seus serviços, pelos seus anos de dedicação. Agora pegue sua arte grotesca e caia fora daqui.”

Tinha tantas outras coisas para fazer. Não recebera qualquer ligação da mãe a respeito da casa da diretora. Precisava de tempo para curar a ferida deixada pela bióloga. A Voz dissera que Whitby não era importante, e Controle, evocando a cena agora, sentiu que Lowry pronunciara aquilo com uma espécie de familiaridade, como alguém desdenhando de uma pessoa com quem trabalhou durante muito tempo.

Antes de deixar o Comando Sul e ir para Hedley, ele examinara com mais atenção o trabalho de Whitby sobre os terroirs. Percebeu que, ao fazer isso — quando conseguiu forçar seus olhos a não pular linhas —, o texto começou a se desfazer. Que os títulos das subseções, todos parecendo bastante normais, e os preâmbulos que citavam outras fontes escondiam um núcleo onde a imaginação se libertava, sem ligar para as palavras que tentavam cercá-la e fazer com que seguissem determinado caminho. Monstros espreitavam com uma regularidade que parecia justificada, em vista do vídeo da primeira expedição, mas talvez sendo conduzidos na direção errada. A certa altura ele parou de ler. Era uma seção em que Whitby descrevia a fronteira como uma “pele invisível” e afirmava que aqueles que tentavam atravessá-la fora da porta disponível ficavam presos para sempre numa vasta extensão de outralém com centenas de quilômetros de largura. Mesmo levando em conta que os passos que conduziram Whitby até aquela conclusão pareciam, por um instante, bastante sóbrios e ajuizados.

E então havia o caso de Lowry. Ele também perguntara a Cheney sobre Lowry no estacionamento, e Cheney franziu a testa de maneira incomum e retrucou:

“Lowry? Voltar para cá? Não agora. Nem nunca, pelo que acho.” Por quê? Uma pausa, como se estivesse considerando a estática numa linha de comunicação. “Bem, ele está desequilibrado. Viu coisas que, assim espero, nenhum de nós jamais irá ver. Não pode chegar perto daquilo e também não pode evitá-lo. Pode-se dizer que agora encontrou a distância ideal.”

Lowry, criando uma teia de encantações, feitiços, fosse o que fosse, era capaz de produzir um escudo para defendê-lo da Área X, porque nunca poderia esquecer suas experiências. Precisando ver, mas receoso de olhar, e transmitindo todo o seu medo para os outros. A distância no caso de Whitby era muito menor, e seus encantamentos tinham uma natureza mais visceral.

Por contraste, todas as incessantes e inquietas anotações da diretora eram firmes, práticas, sólidas e mesmo assim no fim das contas — ele pediu uma dose de uísque misturada com cerveja, para fazer a dose seguinte descer melhor — tudo aquilo provavelmente não fazia o menor sentido e era tão inútil quanto o terroir de Whitby, que nunca seria capaz de explicar absolutamente nada, que equivalia apenas a uma espécie de religião, porque mesmo com todo o contexto adicional de que a diretora dispunha, ela não chegara a nenhuma resposta.

Ele pediu mais um drinque com voz embargada.

Este era provavelmente o seu destino: catalogar as notas dos outros e criar as suas, sem nunca parar e sem produzir nenhum efeito. Iria engordar e casar com alguma mulher dali da cidade, uma que já tivesse sido casada antes. Criariam uma família em Hedley, um filho e uma filha, e seus fins de semana seriam totalmente dedicados à família. O trabalho seria apenas uma recordação distante do outro lado da fronteira representada pela segunda-feira. Envelheceriam todos em Hedley, com ele trabalhando no Comando Sul, consumindo suas horas e contando os anos, os meses e os dias até a hora de se aposentar. Ganharia de presente um relógio de ouro e uns tapinhas nas costas e àquela altura seus joelhos estariam acabados após tantos anos de corrida, de modo que ficaria sentado, perdendo cabelo devagar.

E ainda assim não saberia o que fazer com Whitby. Ainda sentiria falta da bióloga. Ainda não saberia o que estava acontecendo na Área X.

O bêbado aproximou-se e o arrancou dos seus pensamentos com um tapa nas costas.

— Acho que conheço você. Como é seu nome, parceiro?

— Veneno de Rato — respondeu Controle.

A verdade é que se aquele homem tão parecido com o atleta dos seus dias de colégio tivesse se transformado numa criatura monstruosa e o quebrasse no meio da noite, parte de Controle não se queixaria disso, porque estaria então mais perto da verdade sobre a Área X. Mesmo que essa verdade fosse apenas uma maldita boca escancarada com um monte de presas, fedendo como uma caverna cheia de corpos putrefatos, ele ainda estaria um pouco mais perto do que estava agora.


00X

Quando Controle saiu de casa na terça de manhã, o celular da diretora estava sobre o capacho em frente à porta de entrada. Tinha voltado para ele. Olhando para o objeto, a mão ainda segurando a porta entreaberta, não pôde deixar de ver naquilo um sinal. Mas do quê?

Chorry passou saltando por ele e sumiu nos arbustos, enquanto Controle se agachava para olhar o telefone mais de perto. Dias e noites lá fora ao relento não tinham ajudado muito. Aquela coisa grotesca... algum animal mordiscara a capa de couro, que estava cheia de manchas de grama e terra. Parecia agora mais vivo do que antes, como se tivesse ido fazer explorações, escavações, e agora voltasse para informar os resultados.

Embaixo do telefone, felizmente, havia um bilhete da proprietária da casa. Num garrancho trêmulo ela informava: “O rapaz que corta a grama achou isto ontem. Por favor, jogue os telefones velhos no lixo se não precisar mais deles.”

* * *

Na luz da manhã, durante aquela caminhada cada vez mais longa através de portas e mais portas e pelo corredor até o seu escritório, Controle lembrou de Whitby no teto, enfiado numa estante, e daquela arte perturbadora pintada nas paredes, e aquilo adquiriu um significado ligeiramente diferente, algo mais compreensível: uma desintegração da personalidade a longo prazo, cuja descoberta tinha importância premente para ele, mas para o Comando Sul era apenas mais um sintoma de como era necessário retirar Whitby da categoria “estranho” e colocá-lo sob a etiqueta “precisa de nossa ajuda”.

Mesmo assim, no escritório, ele ainda não sabia o que fazer com Whitby. Estava sob sua jurisdição ou de Grace? Será que ela resistiria, atrapalharia o processo, diria algo como “Ora, vejam só esse Whitby!”? Talvez ele e Grace pudessem, juntos, subir até o aposento secreto de Whitby, rir à vontade das coisas grotescas que havia ali e cobrir tudo aquilo de tinta branca. Depois almoçariam com Cheney e Hsyu, jogariam jogos de tabuleiro e conversariam sobre polo aquático. Hsyu diria, como se ele acabasse de discordar dela: “Não devemos ter ideias preconcebidas sobre o significado das palavras”, e ele exclamaria de volta: “Você quer dizer uma palavra tipo fronteira?”, e ela responderia: “Sim, é isso mesmo que eu quis dizer! Você sacou, você entendeu!” A isto se seguiria uma dança de quadrilha, que se dissolveria num caos de samambaias verdes luminosas e efeméridas negras cintilantes, cruzando-se no ar.

Ou não.

* * *

Com um rosnado de insatisfação, Controle abandonou o problema de Whitby e voltou a mergulhar nas notas da diretora, tentando manter em foco as informações que Grace lhe dera e extrair daquelas entranhas ressequidas mais do que podiam conter de fato. De Whitby, o que queria por enquanto era distância, e ter o tempo suficiente para não deixar que lhe estendesse aquela mão.

Voltou-se para o farol, baseado no que Grace lhe dissera. Qual era a finalidade de um farol? Era avisar do perigo, orientar os navios e servir de escala para eles. O que significava isso no contexto do Comando Sul, sob a perspectiva da diretora?

Entre as pilhas de material da gaveta trancada, a mais promissora era a que citava o farol, e isso incluía páginas que provinham (ele confirmou com Grace) de uma investigação inextricavelmente ligada à história da ilha ao norte. Essa ilha tinha recebido nomes variados, como se nenhum deles agradasse, e agora era conhecida apenas por Ilha X no Comando Sul, embora alguns a chamassem “Ilha Y”.

O mais fascinante — e sugestivo — era o fato de que a luz do farol naquele litoral fora colocada, antes, noutro farol construído na ilha X. Mas as rotas náuticas mudaram e ninguém precisava mais de um farol que os ajudasse a navegar “os negros arrecifes de rocha que erguem suas garras agudas, como feras selvagens à espreita da presa”. O velho farol desabou em ruínas, mas há muito tempo seu “olho” fora levado.

Como Grace apontara, a lâmpada do farol era o que mais interessava à diretora: uma lente de primeira qualidade que constituía não apenas uma notável façanha de engenharia, mas também uma obra de arte. Mais de duas mil lentes e prismas individuais tinham sido montados em uma estrutura de bronze. A luz era refletida e refratada ao longo daquele aparato de lentes e prismas, para ser projetada na direção do mar.

O enorme instrumento podia ser desmontado e transportado por partes. As “características da luz” podiam ser manipuladas de incontáveis maneiras. Em curva, em reta, ricocheteando nas superfícies de forma que ficasse circulando ali dentro sem sair. Podia ser projetada de lado, ou para baixo, nos degraus espiralados que davam acesso ao topo da construção. Disparada rumo ao espaço sideral. Virada na direção de um alçapão aberto, onde jazia uma infinidade de diários de uma infinidade de expedições.

Surgiu uma anotação alarmante, que Controle ignorara porque não tinha mais espaço em sua cabeça para especulações pessimistas, marcada com um “x” borrado no verso de um canhoto de ingresso para uma peça em Bleakersville, uma atrocidade intitulada Hamlet Libertado. “Há mais diários do que houve membros das expedições.” Ele não tinha lido em nenhum lugar um cálculo da quantidade total de diários; não havia dados sobre aquilo.

A Brigada da Paranormalidade e da Ciência, que vinha trabalhando naquele trecho do litoral desde os anos 1950, ficara obcecada com os dois faróis. E, como se a B.P.C. tivesse compartilhado algo pessoalmente com ela, a diretora focara sua pesquisa na história do farol, mesmo sabendo que o Comando Sul, como instituição, oficialmente o descartara como “relacionado à formação da Área X”. A quantidade de páginas arrancadas e passagens assinaladas a lápis num livro intitulado Faróis Famosos informava que a lâmpada do farol fora embarcada pouco antes da guerra civil, por um fabricante cujo nome se perdera ao longo do caminho. A “história misteriosa” incluía a lâmpada sendo enterrada na areia para não ser confiscada por nenhum dos dois lados em guerra, depois sendo mandada para o norte, então reaparecendo no sul, e a certa altura surgindo na ilha X, naquele trecho esquecido de litoral. Controle não achava essa história muito misteriosa, na verdade a achava confusa, atropelada, levando-se em consideração a quantidade de esforço necessária para encaixotar e transportar aquela lâmpada, mesmo desmontada, através do país. O único mistério era o número de quilômetros que ela viajara antes de encontrar uma casa permanente, juntamente com o motivo que levou alguém a descrever o som da sirene do farol como “dois grandes touros pendurados pela cauda”.

Tudo isso seduziu a diretora, ou assim parecia, mais ou menos na época dos preparativos para a décima segunda expedição, se é que ele podia se basear nas datas dos artigos recortados. Algo que não interessava muito a Controle, ao contrário do fato de que a diretora continuara anotando, emendando, acumulando dados e fragmentos de informações, de fontes que ela não creditava. Fontes que irritantemente não eram mencionadas nos arquivos PAD de Grace, nem recebiam uma só alusão em nenhuma das notas que ele examinara. Isso o deixou frustrado. A banalidade daquilo, também; como se ela ficasse incessantemente revisando o que já sabia em busca de algo que tivesse passado batido. Será que a mensagem da diretora para Controle era que ele devia trazer de novo à luz certas linhas de investigação, ou que o Comando Sul tinha chegado ao limite das ideias e estava somente se reciclando, alimentando-se de si mesmo?

Controle odiava a própria imaginação, tinha vontade de que ela ressecasse, ficasse marrom e caísse dele. Estava mais disposto a acreditar que alguma coisa o estava espreitando do meio das anotações, algo oculto, do que aceitar que a diretora entrara num beco sem saída. E mesmo assim ele não via nada além da sua busca desesperada, e perguntava-se por que ela estaria assim.

Num impulso, arrancou todas as fotos que estavam pregadas na parede e as examinou para ver se havia algo escondido. Despregou os suportes, desmontou molduras por completo. Mas não achou nada. Tudo que havia ali eram os juncos, a torre do farol, o faroleiro, seu assistente e a garota que olhava para ele através de um abismo de mais de trinta anos.

* * *

À tarde ele voltou sua atenção para o arquivo PAD de Grace, checando nele, um a um, os itens da pilha de anotações.

Ele tinha de apertar a tecla Ctrl no teclado para passar de uma página para a outra. Ctrl começava a parecer a única ferramenta de controle de que ele realmente dispunha. A tecla tinha apenas uma função e a desempenhava estoicamente, sem se queixar.

Apertou Ctrl com cada vez mais maldade e mais força, mesmo que cada hora examinando as anotações e sem pensar em Whitby fosse para ele uma espécie de bênção. Cada hora em que o rosto de Whitby não aparecia, mesmo seu carro estando no estacionamento. Será que Whitby precisava de ajuda? Ele saberia que precisava de ajuda? Alguém precisava dizer a Whitby no que ele tinha se transformado. Grace poderia fazer isso? Cheney?

Não, não poderiam, não tinham lhe dito até então.

Ctrl Ctrl Ctrl. Tantas páginas. Ctrl isto, Ctrl aquilo, Ctrl em crescendos e em árias. Ctrl sempre indo de um dado a outro, porque a informação que ele achava na tela do computador parecia de qualquer modo não conduzir a lugar nenhum, enquanto a vasta montanha de material espalhada em ondas da escrivaninha até a parede oposta continha informação demais.

O escritório começou a se fechar sobre ele. O empurra-empurra inquieto de pastas e os esforços sem entusiasmo para endireitar as estantes tinham conduzido a novas buscas na internet sobre os lugares em que a bióloga trabalhou antes de se juntar à décima segunda expedição. Essa atividade teve um efeito calmante, com cada foto da natureza intocada mais bela que a anterior. Mas, a certa altura, a semelhança com as paisagens intocadas da Área X começou a se acentuar, e a perspectiva de sobrevoo de algumas das fotos lhe trouxe memórias daquele videoclipe final.

Ele fez uma pausa lá pelas cinco. Depois retornou ao escritório por algum tempo, após conversas curtas e amigáveis com Hsyu e Cheney no corredor. Hsyu, porém, parecia agitada, falando rápido demais por uma razão qualquer, algo fora do comum. A mãozorra de Cheney, do tamanho de uma luva de beisebol, pousou no ombro de Controle por um desconfortável segundo, ou dois, enquanto ele dizia: “Uma segunda semana! Ora, isso é ou não é um bom sinal? Esperamos que encontre tudo aqui de maneira que lhe agrade. Estamos dispostos a mudar. Estamos dispostos a mudanças, se é que me entende, depois que você ouvir o que a gente tem para falar. E de que jeito sabemos falar.”

As palavras chegavam quase a fazer sentido, mas de algum modo Cheney estava meio fora de sintonia hoje, e ele também. Controle já passara por dias assim.

Isso evidenciava apenas o problema de Whitby. Não o tinha visto durante toda a tarde, e ele não respondera a nenhum dos seus e-mails.

Sentiu que seria importante resolver aquilo imediatamente, não deixar que se estendesse até a quarta-feira. A questão de como faria isso já tinha ficado clara para ele, juntamente com o que era correto e o que não era. Faria na frente de Cheney, no setor de ciência, e deixaria Grace de fora. Essa tarefa tinha se tornado uma responsabilidade sua, era uma confusão sua, e Cheney poderia apenas acompanhá-lo em sua decisão.

Whitby seria forçado a aceitar uma licença com acompanhamento psiquiátrico, e com um pouco de sorte o excêntrico homenzinho nunca mais seria visto por ali.

Já era tarde, passava das seis. Ele tinha perdido a noção do tempo, ou era o tempo que tinha perdido a noção dele. O escritório continuava uma enorme bagunça, da mesma forma que os contornos do cérebro da diretora, e os arquivos PAD de Grace não eram capazes de mudá-los de uma maneira que fosse útil.

Levou consigo o trabalho sobre terroir, sentindo que talvez alguns trechos selecionados pudessem ajudá-lo a fazer Whitby reconhecer seu problema. Voltou a cruzar a vasta extensão do refeitório. As enormes janelas captavam o cinza do céu e o derramavam sobre as mesas, as cadeiras; não demoraria muito a chover. As mesas estavam vazias. O pequeno morcego ou pássaro escuro tinha parado de voar e estava pousado lá no alto, numa barra de aço junto às janelas. “Tem alguma coisa no piso.” “Você já viu uma coisa dessas?” Fragmentos de conversas quando passou pela porta da cozinha e depois um som cortante, mas tênue, de uma voz chorando. Por um momento isso deixou Controle intrigado. Depois ele percebeu que devia vir de alguma máquina sendo operada pelos funcionários do refeitório.

Outra sensação estava incomodando Controle havia muito tempo, como se ele tivesse esquecido a carteira ou outro objeto importante ao sair de casa.

Mas agora conseguia ver o que era, o som de choro a trazendo para sua mente consciente. Uma ausência. O cheiro de mel estragado tinha sumido. Na verdade, ele percebia agora que não sentira o cheiro durante o dia todo, não importava por onde tivesse andado. Teria Grace mandado cumprir pelo menos essa determinação?

Ele virou a esquina do corredor que levava ao setor de ciência, avançou ao longo da fila de luzes fluorescentes, concentrado num ensaio de tudo que diria a Whitby, prevendo o que ele poderia responder, ou não, e equilibrando com o braço aquele manuscrito insano.

Controle estendeu a mão para empurrar as largas portas duplas. Tentou segurar a maçaneta, errou, depois tentou novamente.

Mas não havia portas onde sempre houvera até então. Só parede.

E a parede era macia e respirava sob o toque de sua mão.

Ele pensou estar gritando, mas de um lugar muito fundo do oceano.


ALÉM-VIDA


Controle, bem no centro de uma tragédia diferente, não conseguira ver outra coisa senão Rachel McCarthy com uma bala na cabeça, caindo do alto da pedreira. A sensação de que nada daquilo era real. Que tanto o quarto para onde foi levado quanto o agente designado para vigiá-lo eram simulacros, e se ele continuasse se apegando àquela ideia mais cedo ou mais tarde o investigador se dissolveria no ar e as paredes de sua cela sumiriam, e ele então sairia caminhando por um mundo que, esse sim, era bem real. Somente nesse momento seria capaz de despertar e prosseguir com sua vida, voltaria a trilhar o caminho que trilhara até aquele ponto.

Mesmo que a cadeira para as longas horas de interrogatório pressionasse a sua coxa e deixasse uma marca. Mesmo que ele pudesse sentir o cheiro acre de cigarro no casaco do agente e escutar o zumbido do gravador que o homem trouxera como backup para a gravação ambiente do local.

Mesmo que a textura da parede fosse semelhante a uma arraia gigante de um aquário público: firme e lisa, com uma aspereza serrilhada que era, porém, sensível ao toque, e a sensação de que havia alguma coisa imensa por trás dela, prendendo e soltando ar. Uma ruptura no mundo do cheiro de mel estragado, que ia sumindo depressa, mas era difícil de esquecer. Como o arabesco floreado feito com azeite balsâmico no prato de um chef. O rastro de sangue escurecido conduzindo ao cadáver, num seriado policial.

Seus pais tinham lido para ele, na infância, o poema “Tigre, tigre, brilho, brasa”. Tinham ajudado num projeto de estudos sociais, sua mãe na pesquisa e o pai no cortar e colar. Tinham lhe ensinado a andar de bicicleta. A patética árvore de Natal junto ao barraco estava ligada para sempre à primeira festa natalina que ele lembrava. Parado no cais em Hedley, observar o outro lado do rio acabava por conduzi-lo ao chalé junto ao lago onde ele ia pescar com o avô. O jogo de xadrez sobre a lareira trazia a lembrança de quando dava nomes às esculturas do pai, espalhadas no quintal. A parede ainda estava respirando, no entanto, independentemente do que ele fizesse. O impacto num passado remoto de um defensor adversário, cujo elmo o atingira no peito durante uma disputa de bola, vinha de novo à tona para que sentisse dificuldade de respirar, com se todo o ar tivesse sido expulso dos pulmões.

* * *

Controle não lembrava de ter saído do corredor, mas quando retomou a consciência estava correndo a meio caminho da lanchonete. O manuscrito de Whitby sobre os terroirs vinha apertado contra o peito, os dedos, segurando firme. Ele estava indo ao escritório para buscar algumas coisas. O escritório. Algumas coisas.

Estava disparando todos os alarmes de incêndio por onde passava. Estava gritando por cima da buzina para que pessoas que não estavam ali fossem embora. Incredulidade. Choque. Preso dentro da própria cabeça do jeito que alguns estavam presos dentro do setor de ciência.

Mas ao passar pelo refeitório, estava correndo tão rápido que escorregou e caiu. Quando se levantou, viu Grace segurando aberta a porta que dava para o pátio dos fundos. Alguém a quem contar. Alguém a quem contar. Havia apenas parede. Havia apenas parede.

Gritou o nome dela, mas Grace não se virou, e quando ele se aproximou viu que ela estava virada para alguém que caminhava devagar, na extremidade do pátio, embaixo de uma chuva pesada, visível de encontro ao vermelho-queimado das margens do pântano lá fora. Uma silhueta alta, escura, clareada pelo sol de fim de tarde e reluzindo por entre o aguaceiro. Ele a reconheceria em qualquer lugar, àquela altura. Ainda vestindo seu uniforme de expedição. Tão próxima de uma árvore cinza atrás de si que a princípio misturou-se a ela por entre o cinza da chuva. E continuava caminhando na direção de Grace com um passo deliberado. E Grace, com o rosto inclinado, sorrindo para ela, o corpo retesado de expectativa. Esse falso retorno, essa reunião corrompida. O fim de tudo.

Porque a diretora fazia brotar plumas de poeira de esmeralda e por trás dela a natureza do mundo mudava, enchendo-se de um brilho, a chuva perdendo sua profundidade, sua escuridão. A espessura das camadas de chuva foi se perdendo, foi se desmanchando, não estava mais ali.

A fronteira estava avançando para o Comando Sul.


No estacionamento, enfiou a chave na ignição, sem pensar mais no escritório, sem querer olhar para trás. Sem querer ver se uma onda invisível estava a ponto de submergi-lo. Ainda havia carros no estacionamento, ainda havia pessoas lá dentro, mas ele não se importou. Estava indo embora. Estava farto. Sentiu pânico diante do mero pensamento de continuar ali. Para sempre. Gritando, mandando o carro ligar, mesmo depois de já ter ligado.

Partiu na direção do portão — aberto, sem segurança, sem nenhum som por trás dele. Somente um vasto silêncio abafando qualquer pensamento. Suas mãos estavam contraídas como garras, as unhas enterradas nas palmas enquanto segurava o volante.

A toda velocidade, sem ligar para nada a não ser chegar em Hedley, mesmo sabendo que isso talvez não lhe trouxesse segurança alguma. Pegou o celular, deixou cair, mas não parou para procurá-lo. Tateou à sua procura no instante em que alcançou a rodovia principal, cantando pneus na alça lateral, aliviado em ver um tráfego apenas rotineiro. Reprimiu uma dúzia de impulsos — parar o carro e usá-lo para bloquear a saída, baixar o vidro da janela em plena chuva e gritar advertências para os outros motoristas. Reprimiu todos os impulsos que atrapalhassem seu profundo e inabalável instinto de ir embora dali.

Dois caças de combate cruzaram o céu, mas ele não podia vê-los.

* * *

Ficou mudando a estação no rádio em busca de noticiários ao vivo. Sem saber direito o que seria relatado, mas querendo que algo fosse relatado, embora ainda estivesse acontecendo, ainda não tivesse terminado. Nada. Em nenhuma rádio. Continuou tentando afastar de sua mão a sensação daquela parede, esfregando os dedos no banco do carro, no volante, na perna da calça. Teria sido capaz de enfiar a mão em merda de cachorro se isso pusesse fim àquela sensação.

Quando tinha se virado, afastando-se de Grace, notou que Whitby estava sentado em sua cadeira habitual no fundo do refeitório, sob a fotografia tirada em tempos passados. Mas Whitby lhe chegava agora de forma intermitente, uma transmissão com interferência. Algumas das palavras, pelo som e pela textura, ainda lembravam a fala humana. Outras lembravam o vídeo da primeira expedição. Whitby fora reprovado em algum teste fundamental, cruzara algum tipo de Rubicão e agora estava sentado ali, a mandíbula aberta, tentando pronunciar palavras, sozinho, além de qualquer possibilidade de ajuda de Controle. Ele percebeu então, ou um pouco depois disso, que talvez Whitby não fosse somente maluco. Que tivesse se tornado uma fenda, um escape, um acesso à Área X expresso numa compridíssima equação ao longo do tempo... E se a diretora tinha mesmo voltado agora para o Comando Sul não fora por Grace nem para Grace, mas porque Whitby a chamava sem parar, como um farol humano. Chamando aquela versão dela, a que retornou.

* * *

Enredado nos pensamentos. Que o Comando Sul não tinha sido um baluarte, mas na verdade uma espécie de lenta incubadora. Que o fato de ter descoberto o santuário de Whitby devia ter deflagrado uma reação. Que ficar muito preso a uma palavra como fronteira fora um erro, uma armadilha. Foi desemaranhando cada um desses termos, cujo significado ele não percebeu até ser tarde demais.

Os olhos de Whitby o acompanharam enquanto Controle fugia rumo à entrada principal, e ele chegou a correr de lado para ter certeza disso. Whitby não desviou os olhos até o instante em que a esquina o ocultou. Ele podia ver agora os leviatãs do seu sonho o encarando, vendo-o com terrível clareza. Ele não tinha escapado à sua atenção.

Ligando para a mãe. Me hipnotize. Hipnotize essa coisa para longe de mim. Não conseguiu localizá-la. Deixou mensagens aos gritos, semicoerentes.

O trânsito convergindo para Hedley na banalidade do engarrafamento na hora do rush. A chuva trivial que caía, a sensação de uma pressão por trás. Tentou controlar a respiração. Todos os conselhos que a mãe lhe dera tinham sido varridos de sua mente.

Será que aquilo parou? Será que a diretora parou? Ou ainda estava avançando?

Havia uma mancha invisível se espalhando agora pelo resto do mundo?

Revisou mentalmente, quando começou a se recuperar, o que fizera e o que poderia ter feito diferente. O que, se é que havia alguma coisa, poderia ter feito a diferença, ou se tudo acabaria acontecendo da forma como aconteceu. Neste universo. No dia de hoje.

— Sinto muito — disse ele em voz alta no interior do carro, para ninguém, para Grace, para Cheney, até mesmo para Whitby. — Sinto muito. — Mas sentia por quê? Qual teria sido seu papel naquilo tudo?

Quando terminou de descer a colina até o sopé, indo na direção de casa, as reportagens pelo rádio começaram a refletir sua realidade em partes e em lampejos de luz. Alguma coisa tinha ocorrido na base militar, talvez algo ligado “aos contínuos esforços de limpeza ambiental”. Foi registrado um brilho estranho, além de sons esquisitos e de tiroteio. Mas ninguém sabia nada ainda. Nenhuma informação segura.

Exceto que Controle conseguia ver agora a coisa que tinha deixado escapar, oculta em águas profundas demais para que ele a reconhecesse. E que se revelava agora, tarde demais para produzir algum resultado. Porque, nos ombros curvos e na leve inclinação da cabeça da diretora — ali, se aproximando em carne e osso —, Controle percebeu finalmente que a menina na foto com o faroleiro era a diretora quando criança. Havia uma espécie de corcunda ou de contração nos ombros que, apesar da diferença de perspectivas e dos anos, era inconfundível, se alguém estivesse procurando por ela. Agora que era capaz de ver, não tinha como deixar de ver. Ali, escondida e à vista de todos na foto pregada na parede do escritório, estava uma foto da diretora quando criança, tirada por alguém da Brigada P&C, junto de Saul Evans, cujas palavras decoravam a parede da anomalia topográfica feita de tecido vivo. Ela olhava aquela foto todos os dias em que estava no escritório. Tinha a colocado ali de propósito. Tinha escolhido viver ali perto, em Bleakersville, numa casa cheia de móveis herdados de alguém, talvez a casa de alguém do lado materno de sua família. Quem no Comando Sul sabia? Ou isso teria sido outra conspiração de uma pessoa só, e a diretora havia escondido sua conexão?

Se ele estava certo, ela estivera na torre do farol antes do Evento. Saíra dali antes de as equipes de contenção chegarem, antes de a barreira ser criada. Conhecia aquele litoral esquecido como a palma de sua mão. Havia coisas que nem precisava pôr no papel, só por causa de quem era, do lugar de onde vinha.

Pelo que Controle podia deduzir, ela fora uma das últimas pessoas a ver Saul Evans com vida.

* * *

Ele estacionou diante de casa, ficou sentado no carro por um momento, sentindo-se esmurrado, esgotado, incapaz de processar na mente o que estava acontecendo. O suor gotejava, a camisa estava encharcada, o blazer perdido no Comando Sul. Ele desceu do carro e ficou observando o horizonte do outro lado do rio. O que era aquilo, um clarão esmaecido e repentino? O eco abafado de explosões? Ou sua imaginação?

Quando se virou e avistou a varanda, uma mulher estava de pé nos degraus junto ao gato. Ele sentiu mais alívio do que surpresa.

— Olá, mãe.

Ela parecia quase a mesma de sempre, mas a roupa elegante estava mais volumosa, o que significava que, por baixo do elegante casaco vermelho, ela trazia também algum tipo de colete protetor. Devia estar armada. O cabelo estava puxado para trás num rabo de cavalo, o que tornava mais severas as linhas do seu rosto. Suas feições revelavam o desgaste de uma inquietação constante e de certa dor.

— Olá, filho — disse ela, quando ele passou.

Controle deixou que ela falasse enquanto abria a porta da frente, seguia para o quarto e começava a fazer a mala. A maior parte das suas roupas estava limpa e passada, dobrada nas gavetas. Era rápido empilhar algumas delas. Era fácil pegar os artigos de toalete no banheiro, buscar a pasta com dinheiro, passaportes, armas, cartões de crédito. Imaginando o que deveria levar consigo da sala de visitas, em termos de objetos pessoais. Uma peça do jogo de xadrez, com certeza. Não estava ouvindo bem o que a mãe dizia, estava focado na tarefa que tinha diante de si. Precisava executá-la com perfeição.

Grace permanecera lá para receber a diretora, e ele implorou que ela o acompanhasse, implorou-lhe que largasse a porta e corresse o mais que pudesse até um lugar seguro. Mas ela não quis nem ouvir, não deixou que ele a arrastasse consigo, utilizando uma reserva de energia que foi demais para o estado de pânico de Controle. Mas deixou que ele visse a arma num coldre de ombro, como se isso lhe servisse de conforto. “Eu tenho as minhas ordens, e elas não são da sua conta.” Ele se sentiu libertado da influência dela, e, dessa forma, totalmente livre de tudo que dizia respeito ao Comando Sul.

A mãe interrompeu sua arrumação, fechou a mala, que ele enchera demais, pegou a mão dele e colocou ali alguma coisa.

— Tome isso — disse ela.

Um comprimido. Um pequeno comprimido branco.

— O que é?

— Só tome.

— Por que não me hipnotiza, simplesmente?

Ela o ignorou e o conduziu até uma cadeira no canto. Ele sentou-se ali, pesado e frio dentro do próprio suor.

— A gente conversa depois que você ingerir o comprimido. E depois que tomar um banho.

Expressou-se com uma voz cortante, o tom que usava com ele para encerrar discussões ou debates.

— Não tenho tempo para tomar banho — respondeu ele, olhando para o papel de parede que começava a ficar fora de foco.

Agora ele só caminharia exatamente pelo meio dos corredores. Não tocaria em superfície alguma. Se comportaria como um fantasma que sabia que, se fizesse contato com alguém ou alguma coisa, seu toque atravessaria a matéria e a criatura perceberia que ele existia num estado de purgatório.

Severance deu um tapa forte em seu rosto, e ele voltou a escutar.

— Você teve um choque. Estou vendo que sofreu um choque, meu filho. Eu levei alguns também nas últimas horas. Mas preciso que você volte a pensar novamente. Preciso de você aqui presente.

Ele ergueu os olhos para ela, tão parecida com as outras mães, e tão diferente.

— Certo — disse ele. — Tudo bem.

Ingeriu o comprimido, levantou-se enquanto ainda tinha força, foi direto para o banheiro. Não havia nada de familiar nos olhos da diretora. Absolutamente nada.

* * *

No chuveiro, começou a chorar porque continuava sem conseguir tirar da mão a sensação daquela parede, não importava o que fizesse. Não podia esquecer o modo como a chuva secara, a expressão no rosto de Whitby, a postura rígida de Grace, ou o fato de que tudo acontecera apenas uma hora atrás e ele ainda tentava juntar as peças.

Mas quando cambaleou para fora do boxe, enxugou-se e vestiu uma camiseta e jeans, se sentiu mais calmo, quase normal. Ainda um pouco vacilante, mas o comprimido devia estar começando a fazer efeito.

Passou sabonete nas mãos, mas aquela textura continuou colada à sua pele, como um veneno que não largava.

A mãe estava na cozinha preparando um café, mas ele passou por ela sem uma palavra, cruzou o frio súbito da rajada do ar-condicionado e abriu a porta da frente, deixando um bafo de umidade e calor invadir a casa.

Tinha parado de chover. Ele podia enxergar até lá embaixo no rio, até o horizonte que ocultava, em certa direção, o Comando Sul. Tudo estava quieto e parado, mas havia vagas manchas de uma luz esverdeada e roxa que não deviam estar ali. Teve uma visão breve do que quer que existisse na Área X derramando-se por sobre toda aquela terra, espalhando-se por cima do rio até Hedley.

— Daqui você não vai ver muita coisa — disse a mãe, por trás dele. — Ainda estão tentando contê-la.

— Até onde se espalhou? — perguntou ele, com um estremecimento enquanto fechava a porta e voltava para a cozinha. Tomou um gole do café que ela colocou à sua frente. Estava amargo, mas distraiu sua mente da mão.

— Não vou mentir, John. Está difícil. O Comando Sul está perdido. A nova fronteira avançou pouco além dos portões. Estão todos presos lá dentro. — A sugestão da chuva secando por trás da diretora. Grace, Whitby, sabe-se lá quem mais, presos no interior de um pesadelo de verdade, naquele instante. — Talvez pare por lá mesmo, fique ali por um bom tempo.

— Besteira — disse ele. — Não sabe o que ela vai fazer.

— Ou talvez acelere. Você tem razão, não há como saber.

— Isso mesmo. Eu estava lá, bem no centro daquilo tudo. Eu assisti enquanto ela avançava. — Porque você me botou lá. Um grunhido íntimo de traição, e então um pensamento brotou quando ele viu a expressão cansada e tensa no rosto dela. — Mas tem mais, não tem? Mais alguma coisa que você ainda não me disse.

— Sempre havia.

Mesmo agora ela hesitava, não queria revelar um segredo altamente confidencial de um país que dali a uma semana talvez nem existisse mais. Então respondeu numa voz apática:

— A contaminação dos locais em que recolhemos a topógrafa e a antropóloga rompeu a quarentena e continuou a crescer, apesar dos nossos maiores esforços.

— Meu Deus — exclamou ele.

Mesmo sofrendo o efeito de embotamento do comprimido, ele queria se ver livre daquela mente que coçava, daquela pele em fogo, a carne por baixo, queria de qualquer maneira tornar-se etéreo e desgarrado da Terra a ponto de desver, rejeitar, rejeitar.

— Que tipo de contaminação? — perguntou, embora ele achasse que já sabia.

— O tipo que arrasa tudo. O tipo que você só vê quando já é tarde demais.

— Você não pode fazer nada?

Ela soltou uma risada áspera, como se quisesse tossir para livrar-se de algo.

— Vamos fazer o quê, John? Vamos combater isso plantando minas no território? Poluindo aqueles lugares todos até transformá-los num inferno? Contaminando as adutoras de água com metais pesados?

Ele ficou apenas olhando para ela, incrédulo.

— Por que caralho você me botou no Comando Sul sabendo que isso podia acontecer?

— Queria que você estivesse perto. Queria que ficasse sabendo, porque isso vai ser sua proteção.

— Minha proteção? Contra o fim do mundo?

— Talvez. Talvez seja. E nós precisamos de uma visão nova sobre as coisas. — Ela se encostou no balcão da cozinha, junto a ele. Controle sempre esquecia como ela era miúda, como era magra. — Eu precisava da sua visão. Não podia prever que as coisas iam mudar tão rápido.

— Mas sabia que podiam.

Ela continuou a revelar as informações em pequenas partes. Era obrigação dele apanhá-las, como a arma embaixo do banco do carro, só porque ela desdobrava tudo à sua frente?

— Sim, eu tinha um palpite, John. Por isso mandamos você. Alguns de nós achávamos que era preciso fazer alguma coisa.

— Como Lowry.

— Sim, como Lowry. — Lowry, escondido lá no coração da Central, incapaz de enfrentar o que acontecera, como se aqueles vídeos estivessem se espalhando agora mesmo pela vida real.

— Você deixou que ele me hipnotizasse. Deixou que me condicionassem. — Não conseguiu reprimir o ressentimento diante dessa ideia, mesmo agora. Talvez nunca conhecesse sua extensão.

— Sinto muito, mas havia esse toma-lá-dá-cá, John — respondeu ela, resoluta, defendendo sua versão da história. — Esse foi o trato. Eu consegui a pessoa que queria para o trabalho, e Lowry ganhou um certo tipo de... controle. E você ganhou proteção, de certo modo.

Ele rebateu sarcasticamente, achando que já sabia a resposta:

— E quantos outros há na Central, mãe? Nessa facção?

— Somos apenas nós, John. Eu e Lowry. Mas Lowry tem muitos aliados.

Ela disse aquilo com um fiapo de voz.

Somente eles dois. Uma máfia de dois contra uma máfia de um, a diretora. E aparentemente ninguém viu as coisas direito. E agora tudo estava em ruínas.

— O que mais? — Forçando mais para puni-la, porque não queria manter na mente a ideia de várias Áreas X localizadas.

Uma risada amarga.

— Examinamos de novo os lugares onde os membros da última décima primeira expedição foram encontrados, para ver se exibiam uma reação similar. Não encontramos nada. Então achamos que eles provavelmente tinham outro propósito. E que esse propósito era contaminar o Comando Sul propriamente dito. Tínhamos pistas disso há um tempo. Só não soubemos interpretar corretamente, não chegamos a um acordo sobre o que significavam. Tudo que precisávamos era de um pouco mais de tempo, um pouco mais de dados.

Alguns corpos tinham se decomposto “um pouco mais rápido”, como Grace lhe dissera, quando a diretora ordenou sua exumação.

Havia nas frases fragmentadas da mãe o reconhecimento de que a Central era um fracasso gigantesco, desses de extinguir qualquer esperança. De que foram incapazes de conceber um cenário em que a Área X era mais esperta, mais insidiosa, mais engenhosa.

Nada daquilo podia suprimir a expressão no rosto de Grace, embaixo da chuva, enquanto a diretora se aproximava — aquela arrogância, a vindicação, a ideia abstrata, visceralmente expressa através das suas feições, aquele sacrifício, aquela lealdade, toda a diligência que seria premiada. Como se a manifestação física de uma amiga e colega tida há muito como morta pudesse apagar o passado recente. A diretora, seguida por um silêncio não natural. Seus olhos estavam fechados, ou ela não tinha mais olhos? A poeira de esmeralda era arremessada para o alto enquanto ela andava, e voltava a pousar no chão. Aquela pessoa que não devia estar ali, aquela casca de uma alma da qual ele descobrira apenas fragmentos.

* * *

Sua mãe recomeçou, e ele deixou que prosseguisse porque não tinha escolha, precisava de tempo para se aclimatar, se ajustar.

— Imagine uma situação, John, na qual você está tentando conter alguma coisa perigosa. Mas suspeita que essa é uma tarefa fadada ao fracasso. Que aquilo que tenta conter está escapando, lenta e inexoravelmente. Que algo que se supunha impermeável está se tornando, com o tempo, bastante permeável. Que a divisória está coberta por furos. E que essa coisa, seja o que for, parece querer nos destruir, mas não tem líderes para negociar, não tem intenções reveladas. — Era quase um discurso que ele podia imaginar na voz da diretora.

— Você quer dizer o Comando Sul, o lugar para onde me mandou. Com os instrumentos errados.

— Quero dizer que o grupo de que eu fazia parte acredita há algum tempo que o Comando Sul podia estar envolvido, mas a maioria pensava, até hoje, que isso era não só engraçado, como totalmente ridículo.

— Como foi que você se envolveu?

— Por sua causa, John. Muito tempo atrás. Por precisar de uma missão num lugar perto de onde você e seu pai viviam. Era um projeto de interesse secundário. Alguma coisa para não perder de vista, para prestar atenção. E acabou se tornando o prato principal.

— Mas por que tinha de ser eu?

— Eu lhe disse. — Implorando-lhe para que compreendesse. — Eu conheço você, John. Eu sei quem você é. Eu perceberia se você... mudasse.

— Como a bióloga mudou.

Aquilo voltava a incomodar, a ideia de que ela o empurrara para o perigo sem avisá-lo, sem lhe dar uma escolha. Exceto que ele tivera uma escolha: podia ter ficado onde estava, podia ter continuado acreditando que vivia além da fronteira, mesmo sendo uma mentira.

— Algo assim.

— Ou mudasse apenas no sentido de me tornar mais cínico, mais calejado, mais paranoico ou mais avariado.

— Pare com isso.

— Por que pararia?

— Eu fiz o melhor que pude.

— Claro.

— Durante sua infância, John, é isso que quero dizer. Fiz o melhor que pude, considerando tudo. Mas você ainda está zangado. Mesmo agora, ainda está zangado. É demais. É demais.

— Rodeando a catástrofe. Mas não é isso que as pessoas fazem quando ainda estão vivas?

Ele pousou o café. Havia uma tensão em seus ombros que talvez nunca mais relaxasse.

— Não estou pensando nisso. Não tem importância. Não tem importância agora.

— Tem importância agora mais do que tudo — rebateu ela —, porque talvez eu nunca mais veja você. — A voz dela fraquejou, a única vez em que ele viu isso, até onde conseguiu lembrar.

O peso daquilo o atingiu com força, e ele entendeu que era verdade, e por um instante sentiu como se estivesse caindo. A enormidade, a impossibilidade daquilo era demasiada. Como tinha chegado àquele ponto ele mal sabia, mesmo estando lá a cada passo do caminho.

Ele a puxou para perto, abraçou-a, enquanto ela sussurrava em seu ouvido:

— Eu deixei algumas coisas passarem. Pensava que a diretora concordava conosco. Achei que podia lidar com Lowry. Achei que conseguiríamos conduzir esse trabalho. Achei que teríamos mais tempo.

Que o problema era menor. Que de alguma maneira ele podia ser contido. Que de algum modo não o estaria machucando.

Sua mãe. Sua superior. Mas depois de algum tempo ele precisou soltá-la. Não havia como cruzar totalmente aquela divisória, como curar tudo que precisaria ser curado. Não agora.

Ela lhe disse mais uma coisa, então, como se fosse uma penitência.

— John, você precisa saber. A bióloga escapou de nossa custódia durante o fim de semana. Está desaparecida há três dias.

Uma elação, um jorro de euforia egoísta e pouco justificada, que vinha em parte por tê-la banido dos seus pensamentos enquanto o pesadelo do Comando Sul se desenrolava. E agora, a recompensa. Ela fora devolvida a ele, de certa forma.


Todas as respostas às suas perguntas só vieram depois, muito depois de sua mãe entrar no carro dele e partir. Depois que Controle terminou de arrumar a mala, abandonou o gato com relutância e entrou no carro dela, como ela havia sugerido. Mas ele parou numa rua tranquila um pouco além da sua, fez ligação direta num carro estacionado e seguiu nele, porque não confiava na Central. Logo estava fora de Hedley, no meio do nada. Sentiu a ausência do pai terrivelmente ao passar por onde tinham vivido. Porque seu pai teria sido um conforto agora. Porque não importava mais quais segredos ele contava e quais deixava de contar.

Chegou ao aeroporto a mais de cem quilômetros dali, numa cidade grande o suficiente para ter conexões para voos internacionais. Ele parou o carro no estacionamento, deixou suas armas ali dentro e comprou duas passagens. Uma era para Honduras, com uma parada na costa oeste. A outra tinha duas paradas e terminava a cerca de duzentos e cinquenta quilômetros da costa. Esta segunda foi comprada sob um nome falso. Fez o check-in para Honduras, depois sentou no bar do aeroporto, acompanhado por um uísque, à espera do voo. Vieram-lhe visões apocalípticas do que a Área X iria absorver caso continuasse se expandindo. Edifícios, estradas, lagos, vales, aeroportos. Tudo. Ele olhou de longe as TVs com closed captions em busca de alguma notícia, tentando estar sempre um passo à frente da Central, que devia estar à caça dela, talvez até já a tivesse capturado. Se ele fosse a bióloga, começaria viajando clandestinamente em trens, de forma que talvez a alcançasse com mais facilidade. Do lugar de onde fugira, precisava viajar uma distância equivalente à dele.

Uma loura no bar perguntou o que ele fazia e ele disse, negligente, sem dar muita atenção:

— Biologia marinha.

— Ah, trabalha para o governo.

— Não, trabalho como autônomo.

O que soou absurdo assim que ele o disse. Depois passou longos minutos aumentando a distância entre ele e aquele assunto. Porque queria continuar no bar, cercado de pessoas, mas sem se envolver com elas.

“Como foi que ela escapou?”, perguntara ele à mãe.

“Digamos apenas que é mais forte do que parece, e muito engenhosa.” Será que a mãe tinha dado a ela as condições para a fuga? O tempo? A oportunidade? Ele não quis perguntar. “A Central suspeita que ela vai tentar voltar ao terreno baldio por causa da falta de contaminação do local.”

Mas ele sabia que não era para lá que ela voltaria.

“Você também pensa assim?”, perguntou a mãe.

“Sim”, respondeu ele.

Não, ela iria para o norte, para aquela área natural nos arredores de Rock Bay, mesmo que não acreditasse que era a bióloga. Iria para um lugar que tinha importância pessoal para ela. Porque sentia esse impulso, não porque a Área X a estivesse obrigando. Se estivesse certa, se tivesse agido como um verdadeiro soldado, teria sua mente varrida tão radicalmente quanto ocorrera com as outras.

Pelo menos, era nisso que ele queria acreditar. Para ter uma razão de fazer a mala e encontrar um lugar que pudesse considerar um santuário. Ou um esconderijo.

* * *

Ouviu a chamada de embarque para o seu voo. Estava indo rumo ao oeste, sim, mas desceria na primeira conexão, alugaria um carro, seguiria para outro aeroporto. Lá provavelmente teria de roubar outro carro, indo sempre rumo ao sul, sugerindo uma lenta descida. Depois, sumiria por completo e iria para o norte.

Ele puxara Grace pelo braço quando tentou arrastá-la, tinha agarrado sua mão e conseguido desequilibrá-la um pouco, e a teria forçado a acompanhá-lo se pudesse. Gritou com ela. Deu-lhe todas as razões, as mais viscerais e primitivas. Mas Grace não conseguia ver nada daquilo, soltou-se dos seus dedos e o encarou de uma maneira que o fez desistir. Porque parecia estar entendendo tudo. Porque ela ia levar aquilo até o fim, e Controle não podia fazer o mesmo. Porque não era de fato o diretor. E assim deixou Grace sumir no meio da chuva enquanto a diretora aproximava-se da porta, recuou num pânico apavorado até a lanchonete e dali correu para o carro. E não se sentia culpado por isso.

Um toque no seu celular o avisou que, vindo de alguma inimaginável distância, ele tinha acabado de receber os derradeiros (e inúteis) vídeos do Comando Sul, vídeos das câmeras ocultas no galo e na cabra em sua mesa de escritório.

As imagens não lhe disseram nada, não o levaram mais para perto, não lhe deram nenhuma pista do que poderia ter acontecido com Grace. A qualidade era baixa, pouco distinta. Cada clipe tinha cerca de seis segundos de duração e cada um era cortado exatamente no mesmo momento. No primeiro, a cadeira dele estava vazia até o final, quando algo borrado pareceu sentar ali. Podia ser a diretora, mas a silhueta era pouco definida. O outro vídeo mostrava um Whitby arriado na cadeira em frente, fazendo alguma coisa peculiar com as mãos, os dedos movendo-se como algas flácidas numa corrente marinha. Um ruído constante e sem palavras ao fundo. Será que Whitby estaria agora no mundo da primeira expedição? E se era assim, será que sabia disso?

Controle assistiu aos vídeos duas vezes, três vezes, e depois os apagou. O gesto não destruiu os fatos, mas os deixou mais distantes, e isso teria de ser suficiente.

* * *

As usuais rajadas de calor seguidas pelo frio gelado dentro do avião. O manuseio dos cintos de segurança gastos, desfiados. Quando decolaram, Controle continuou na expectativa de que alguma coisa tomasse o avião de assalto em pleno ar. Perguntou-se se a Central estaria à sua espera para saudá-lo quando ele pousasse, ou algo ainda mais extravagante. Lá pela metade do voo, ficou pensando por que as aeromoças olhavam para ele de um jeito engraçado e percebeu que estava respondendo às suas gentilezas burocráticas com a intensidade de alguém que nunca foi tratado com cortesia ou que não esperava ser tratado assim de novo.

O casal nas poltronas ao lado eram aquele tipo irritante, mas comum, que conversa em voz alta para uma plateia, ou para reafirmar o tempo inteiro a sua condição de casal. No entanto ele tinha vontade de avisar até aqueles dois, numa explosão súbita e inesperada de emoção bruta, incontrolável. Articular de alguma maneira tudo aquilo que estava acontecendo, tudo que estava para acontecer, sem soar como um maluco, sem apavorar ninguém. Por fim, limitou-se a engolir outro comprimido de calmante, recostou-se no assento e tentou apagar o mundo.

“Como posso saber se não foi você quem pôs na minha cabeça a ideia de me concentrar na bióloga?”

“Acredito que a bióloga era a arma da diretora. Você disse em seus relatórios que ela não se comporta como as outras. Seja o que for que saiba, ela representa uma espécie de chance.”

Controle não comentara com a mãe a totalidade de sua experiência nos últimos momentos do Comando Sul. Não contara tudo que vira, nem no que a diretora havia se transformado, fosse o que fosse, e que ela estava longe de ser quem fora um dia no passado. Não dissera que qualquer plano que ela pudesse ter era irrelevante agora.

“E você é minha arma, John. Você é aquele que escolhi para saber tudo.”

A sensação reconfortante dos braços de metal cobertos por um estofado grosso, rasgado. Os pequenos trechos idênticos de céu recortados pelas janelas ovais do avião. Os desnecessários relatórios parciais de voo feitos pelo piloto, intercalados às brincadeiras estúpidas, mas reconfortantes, que o homem fazia pelo alto-falante. Ele ficou imaginando onde estaria a Voz àquela altura, se Lowry estaria sofrendo flashbacks ou tendo crises mais significativas. Lowry, seu parceiro. Lowry, o patético megalodonte. Esta é sua última chance, Controle. Só que não era. Era, na verdade, uma imolação. Se ele viesse a ser lembrado de alguma forma, seria como o arauto da catástrofe.

Pediu um uísque com gelo, para vê-lo rebrilhar, para manter o gelo na boca e sentir aquele bloco liso e frio, e o ardor da bebida. Aquilo o ajudou a cochilar de leve, num vale de cansaço autoinduzido, tentando desacelerar as engrenagens da mente. Tentando sabotar as engrenagens.

“O que a Central vai fazer agora?”, perguntou à mãe.

“Vão caçar você por causa da sua relação comigo.” Fariam isso de qualquer forma, por não se apresentar pessoalmente para fazer seu relatório e por ir em busca da bióloga.

“O que mais vão fazer?”

“Vão tentar mandar uma décima terceira expedição, se o portal ainda existir.”

“E você?”

“Continuarei defendendo a linha de ação que sempre me pareceu correta” respondeu ela, sabendo que aquilo implicaria um enorme risco.

Isso queria dizer que voltaria para a Central, ou iria se manter a distância até que a situação se estabilizasse? Porque Controle sabia que ela continuaria lutando até o mundo inteiro desaparecer à sua volta. Ou até a Central se livrar dela. Ou até Lowry a usar como bode expiatório. Será que ela achava que a Central culparia o portador das más notícias? Ele podia ter perguntado por que ela não tinha simplesmente recolhido as próprias economias e fugido para um lugar remoto... e então esperado. Mas se perguntasse, ela apenas devolveria a pergunta.

No final do voo, uma mulher da fileira ao lado ficou insistindo para que ele e seus companheiros de assentos abrissem a janela para a aterrissagem.

— É preciso abrir a janela para pousar. Vocês têm que abrir. Para o pouso.

Senão quê? Senão o quê? Ele apenas a ignorou, não passou o recado adiante, fechou os olhos.

Quando voltou a abri-los, o avião tinha pousado. Ninguém esperava por ele no saguão. Ninguém chamou seu nome. Ele alugou um carro sem incidentes.

Era como se uma pessoa diferente estivesse pondo a chave na ignição, afastando-se de tudo que era familiar. Não havia caminho de volta, agora. Nem de ida. Estava avançando de lado, por assim dizer, e por mais assustador que fosse havia também a excitação de estar realizando algo. Agindo daquela maneira ele não se sentiria como um morto, nem como alguém apenas à espera do que aconteceria em seguida.

Rock Bay. O fim do mundo. Se ela não estivesse lá, era um lugar tão bom quanto qualquer outro para aguardar os acontecimentos.

* * *

Entardecer do dia seguinte. Num hotel vagabundo no litoral com a palavra Praia no nome, Controle desmontou e limpou obsessivamente a pistola Glock, comprada de um traficante usando um nome falso meia hora após sair do aeroporto, nos fundos de um depósito de carros usados. Depois remontou a arma. Focar a atenção numa tarefa repetitiva e detalhada mantinha sua mente afastada do vazio que o esperava lá fora.

A televisão estava ligada, mas nada fazia sentido. Exceto pelas referências mais superficiais sobre um problema “na área de recuperação ambiental conhecida como Comando Sul”, não dizia a verdade sobre o que estava acontecendo. Mas há bastante tempo aquilo não fazia sentido, mesmo que ninguém soubesse, e ele sabia que seu descontentamento refletiria o da bióloga, caso ela estivesse sentada ali onde ele estava. E a luz por entre as cortinas era apenas um caminhão que passava fazendo ruído. E o cheiro era de algo estragado, mas este ele talvez tivesse trazido consigo. Embora estivesse agora muito longe de tudo, a fronteira invisível estava perto — os postos de segurança, a luz turbilhonante daquele portal. O modo como a luz parecia incidir obliquamente, quase formando uma imagem naquele espaço entre as cortinas, e depois desaparecia no nada.

Sobre a cama estava o manuscrito de Whitby sobre os terroirs, que ele não voltara a examinar desde que saíra de Hedley. Tudo que fez foi enfiá-lo numa grossa capa plástica à prova d’água. Percebia cada vez mais, com uma espécie de resignada surpresa, como se a reação atrasada pudesse suavizar o golpe, que a invasão já vinha acontecendo há muito mais tempo, se manifestando desde um momento mais remoto do que qualquer um deles era capaz de supor, mesmo sua mãe. E que talvez Whitby tivesse percebido algo, mesmo que ninguém acreditasse nele, mesmo que essa descoberta tivesse de algum modo o deixado exposto a alguma coisa que, então, acabou descobrindo-o também.

Quando terminou com a Glock, sentou numa cadeira de frente para a porta, segurando a coronha com força mesmo sentindo seus dedos latejarem. Era outra maneira de não se deixar submergir por aquilo tudo. A dor como distração. Todos os seus guias familiares estavam agora em silêncio. Sua mãe, seus avós, seu pai, nenhum deles tinha algo para lhe dizer. Até a pequena peça talhada que levava no bolso parecia agora inerte e inútil.

E o tempo inteiro, sentado na cadeira ou estirado na cama com uma colcha gasta e lençóis amarelados com queimaduras de cigarro, Controle não conseguia tirar da cabeça a imagem da bióloga. A expressão do seu rosto naquele terreno baldio — aquele vazio —, e depois, nas entrevistas, a luta constante entre o desprezo, a rebeldia, a vulnerabilidade casual, a veemência, a força. Aquilo o derrubara, se expandira até o envolver por completo, sem deixar nenhuma parte incólume. Mesmo que ela nunca viesse a saber, mesmo que não desse um vintém de importância. Mesmo que aceitasse, contente, o fato de que nunca mais voltaria a vê-la, desde que soubesse que estava lá, viva, senhora de si mesma. As ânsias dele espalhavam-se agora em todas as direções e em nenhuma em particular. Era uma espécie estranha de afeição, que não precisava de um objeto, que emanava dele como uma aura de raios dirigidos a todos e a ninguém. Imaginou que fosse um sentimento normal, depois que se ultrapassava certo ponto.

Era para o norte que a bióloga tinha fugido, e ele sabia qual era seu destino: estava bem ali, nas suas anotações de campo. Um penhasco que ela conhecia melhor do que qualquer pessoa, onde a terra descia quase verticalmente rumo à água e o mar se quebrava sobre os rochedos. Ele precisava apenas estar preparado. A Central talvez o achasse antes que ele chegasse lá. Mas erguendo-se por trás da Central podia existir algo mais sombrio e vasto, e esta era a ironia fatal. Que a coisa avançando ao seu encontro pudesse ser ainda mais impiedosa, e os interrogasse até que, como uma toalha torcida ao máximo e deixada ao sol para secar, eles não fossem mais do que cascas vazias e quebradiças.

A não ser que ele chegasse ao norte a tempo. Se ela estivesse lá. Se ela soubesse alguma coisa.

* * *

Controle deixou o hotel assim que o sol nasceu, tomou o café rápido numa lanchonete e seguiu rumo ao norte. Tudo ali eram falésias, ângulos violentos e a sensação de estar a ponto de mergulhar no céu ao fazer a curva em cada encosta. De que aquele breve pensamento sempre reprimido — de não girar o volante para acompanhar a estrada — poderia se impor desta vez, fazendo-o pisar no acelerador e romper pelo espaço, apagando assim todos os segredos que ele sabia e que preferiria não saber. A temperatura raramente subia a mais de vinte e três graus, e a paisagem logo tornou-se de um verde luzente, em tons mais intensos que os do sul. A chuva quando veio foi uma espécie de neblina muito diferente dos aguaceiros a que ele tinha se acostumado.

Num grande armazém, num pequeno lugar chamado Selk, onde havia um posto de gasolina cujas bombas antiquadas não aceitavam cartões de crédito, ele comprou uma mochila grande e a encheu com uns trinta quilos de equipamentos. Comprou uma faca de caça, boa quantidade de pilhas, um machado, isqueiros, uma porção de outras ferramentas. Ele não sabia muito bem do que iria precisar, ou do quanto, nem quanto tempo poderia ter de ficar no mato, procurando-a. A reação dela seria a que ele esperava? E que reação era essa? Presumindo, é claro, que ela estivesse mesmo lá. Ele se imaginou muitos anos depois, barbudo, vivendo da terra, entalhando troncos como o pai, sozinho, dissolvendo-se aos poucos de encontro à paisagem pelo peso da solidão.

O rapaz do caixa perguntou seu nome, junto de uma ensaiada propaganda de um bazar de caridade local, e ele respondeu “John”, e desse momento em diante voltou a usar seu nome verdadeiro. Não Controle, nem nenhum dos pseudônimos que o tinham conduzido até ali. Era um nome banal. Não chamava a atenção. Não significava nada.

Manteve as outras táticas, no entanto. O terrorismo doméstico o deixara familiarizado com inúmeras regiões rurais. Na sua segunda missão após o treinamento, passou algum tempo no Centro-Oeste, circulando na estrada entre os departamentos de saúde de cada cidade, sob o disfarce de estar ajudando na atualização dos softwares relativos a vacinações, quando na verdade estava reunindo dados sobre uma milícia. Conhecia ainda estradas secundárias daquela outra vida, e entrou por elas como se tivesse sido ontem. Usou todas as técnicas sem esforço aparente, embora fizesse um longo tempo desde que as empregava. Havia até uma espécie de liberdade cansativa naquilo, uma exultação e uma simplicidade que ele não experimentava há muito tempo. Naquela época, como agora, desconfiava de cada caminhonete por que passava, especialmente se estivesse com as placas cobertas de lama, cada motorista vagaroso, cada andarilho pedindo carona. Naquele tempo, como agora, pegou estradas locais com estradinhas de terra nas margens, que lhe permitiam voltar atrás. Usou mapas impressos bem detalhados, mas nada de GPS. Hesitou um pouco quanto ao celular, mas acabou jogando-o no oceano, e ainda não tinha comprado um provisório para substituí-lo. Podia ter comprado um impossível de rastrear, mas qualquer pessoa para quem ligasse estaria sob grampo àquela altura. A urgência de ligar para algum dos familiares, de tentar sua mãe pela derradeira vez, foi se desvanecendo ao longo da viagem. Se tivesse algo a dizer, devia ter pegado o telefone muito tempo atrás.

* * *

Às vezes ele pensava na diretora enquanto dirigia. Ao longo das margens cintilantes de um lago raso num vale cercado de montanhas, rasgando com os dentes uma salsicha comprada na feira local. O céu com um azul tão leve e desobstruído de nuvens que não parecia real. A garota naquela estranha foto em preto e branco. O modo como ela tinha fixação pelo farol, mas nunca se referia ao faroleiro. Porque ela já estivera ali. Porque estivera ali até quase o fim. O que tinha visto? O que tinha descoberto? Quem sabia a respeito dela? Será que Grace sabia? O trabalho duro de conhecer o caminho das pedras, os cordéis que era preciso puxar até conseguir entrar para o Comando Sul. Será que alguém ao longo desse trajeto — Lowry? A mãe? — sabia do seu segredo e achou que era uma boa ideia, em vez de algo que podia comprometer a agência? Por que ela teria ocultado o que sabia sobre o faroleiro? Essas perguntas o preocupavam. As oportunidades perdidas, a sensação de ter ficado para trás, o foco excessivo na planta-com-o-rato, ou na Voz, ou em Whitby, ou quem sabe ele poderia ter enxergado tudo mais cedo. Os arquivos que ainda trazia consigo não ajudavam muito. Ter a fotografia ali em cima do banco do carona não ajudava muito.


Dirigindo agora durante a noite, ele voltava a trafegar pela via costeira de vez em quando, os faróis fazendo luzir barras alaranjadas e sinalizadores brancos, e, às vezes, o cinza prateado de uma grade. Tinha parado de escutar os noticiários do rádio. Não sabia se as pistas sutis da catástrofe que se avizinhava existiam apenas na sua imaginação. Desejava mais e mais fingir que existia dentro de uma bolha sem contexto. Que aquela viagem ia durar para sempre. Que a travessia era o objetivo.

Quando cansou, parou numa vilazinha cujo nome esqueceu assim que foi embora, e tomou um café com ovos fritos numa lanchonete 24 horas. A garçonete perguntou para onde estava indo, e ele disse apenas “para o norte”. Ela assentiu e não perguntou mais nada, talvez porque tivesse visto algo no rosto dele que a desencorajou.

Ele não se demorou, finalizou a refeição rápido, nervoso por causa do sedã negro com vidros fumê que vira no estacionamento, o velho Volvo com adesivos florestais cujo motorista ficara lá dentro fumando, por um tempo longo demais.

A chuva que vinha do mar se transformou num nevoeiro espesso, o que o fez reduzir para uma velocidade de uns trinta quilômetros, no escuro, sem nunca saber ao certo o que surgiria da neblina à frente. Um caminhão passou e fez chacoalhar todos os seus ossos. Depois uma corça dançou brevemente diante das luzes como um quadro em movimento, e logo sumiu.

Ele chegou à conclusão, no meio da madrugada, de que não importava muito se a mãe tinha mentido para ele. Era um detalhe tático, não estratégico. Ele iria sempre seguir essa linha de raciocínio, convencendo-se de que uma vez que fora para o Comando Sul, agora estaria para sempre naquela estrada no meio do nada, rumando para o norte. As árvores nodosas, retorcidas pelo vento, tornavam-se um fumo escuro e desgrenhado no meio da névoa, imolando-se em cinzas, como se ele estivesse vendo alguma versão do futuro.

* * *

Na noite anterior à sua chegada a Rock Bay, John concedeu a si mesmo uma refeição de despedida. Estacionou num restaurante chique, numa cidade à sombra das montanhas costeiras, abrigado pela curva de um rio que parecia anêmico diante das ondas e das linhas coloridas da areia irradiando-se a partir da água. Pequenos montes de madeira flutuante e algumas árvores tombadas pareciam manter aquilo no lugar.

Ele sentou no balcão, pediu uma garrafa de um bom vinho tinto, um pequeno filé com alho, purê de batatas e molho de cogumelos. Escutou as bravatas modestas de Jan, o veterano barman, com um entusiasmo deliberadamente ingênuo: histórias divertidas sobre aventuras quando trabalhava além-mar em cidades que John nunca visitara. O homem olhava furtivamente para ele de tempos em tempos, com um rosto nórdico de feições rudes, emoldurado por cabelos louros. Pensando, quem sabe, se John perguntaria o que ele estava fazendo ali no meio dos destroços flutuantes bem no cu do mundo.

Uma família entrou. Rica, branca, em camisas polo e suéteres e calças cáqui, como se acabassem de sair do catálogo de uma loja. Sem notar a presença dele. Sem notar a presença do barman, pedindo hambúrgueres e batatas fritas, o pai sentado à esquerda de John, servindo de escudo às suas crianças contra o estranho. Nenhum era capaz de imaginar o quão estranho, porém. Existiam dentro da própria bolha: tinham praticamente tudo e não sabiam praticamente nada. Toda sua conversa era sobre sentar com as costas retas e mastigar direito a comida e um jogo de futebol que assistiram e alguma loja de turistas que havia no vilarejo próximo. Ele não os invejava. Não os odiava. Sentia em relação a eles um curioso nada. Toda a história que havia ali, tudo que estava codificado, não tinha mais a menor importância. Nada daquilo podia significar alguma coisa comparado ao conhecimento secreto que ele trazia dentro de si.

O barman revirou os olhos para John, enquanto anotava os pedidos que mudavam o tempo todo, sob o tom condescendente da voz do pai quando se dirigia a ele. Enquanto isso, a mulher de jaqueta militar e os dois skatistas de Empire Street se amontoavam como fantasmas ao lado de John, observando a refeição da família com fome indisfarçável. Quantos agentes passavam assim sem serem vistos, sem nunca serem notados, sem nunca serem ouvidos, sem nunca se sustentarem. Escondidos na escuridão e nas pensões vagabundas e nos hotéis mofados. Tornavam-se invisíveis. Irrelevantes. E quantos poderiam ter sido alguém como ele. Podiam ainda ser ele, trabalhando aqui, sem serem percebidos pela família ou mesmo pelo barman, ainda tentando, embora não fosse apenas a fronteira invisível da Área X que negasse as pessoas, mas todo mundo que estava além dela.

Quando a família foi embora, e ele se viu sozinho no bar, perguntou ao barman, num tom simpático e conspiratório:

— Onde posso conseguir um barco?

Seu tom de voz sugeria um colega viajante, um caçador de aventuras que às vezes ignorava a legalidade, tal como o barman fazia em suas histórias. Você é o cara. Você pode quebrar meu galho.

— Entende de barcos? — perguntou Jan.

— Sim.

Em lagos. Perto da praia. Um pouco mais do que isso e ele viraria a piada final em alguma das anedotas de Jack.

— Talvez eu possa ajudar — disse o barman, com um sorriso. — Talvez eu possa arranjar um. — A luz estilhaçada que vinha de um candelabro de globos de vidro se desenhou sobre seu rosto quando ele se inclinou para murmurar: — Para quando precisa?

Agora. Imediatamente. Pela manhã.

Porque ele não ia chegar de carro em Rock Bay.

* * *

O Vivo com Sal era um esquife de fundo chato e modificado, com uma popa rasa e uma relutância obstinada em fazer manobras com um mínimo de graciosidade. Tinha uma pequena cabine capaz de oferecer abrigo contra os fortes ventos do oceano e um motor potente, embora muito rodado. Era bastante velho e a pintura branca estava descascando, expondo a madeira por baixo. Aos olhos de John parecia um rebocador, mas fora usado como barco de pesca pelo dono, um marinheiro típico — grisalho, barrigudo, de pernas abauladas —, que o vendeu pelo dobro do que valia. John quase achou que o sujeito tinha algum tipo de negócio ilegal, e talvez estivesse desempenhando um papel. Comprou gasolina suficiente para ser mandado à estratosfera por uma explosão, ou para durar até o fim do mundo; e levou para o barco o resto dos seus equipamentos.

O barco vinha com remos “para o caso de falha do motor” e mapas náuticos, “mas Deus que o ajude se você não procurar abrigo, uma tempestade se aproxima”, e uma pistola sinalizadora. Depois de um pouco mais de persuasão, que acabou envolvendo mais dinheiro, ele recebeu também o velho casaco de chuva do capitão, chapéu, cachimbo, galochas e uma rede de pescar com um buraco no meio. O cachimbo se alojou de maneira esquisita em sua boca, e as galochas eram um pouco grandes, mas ele acreditou que era um disfarce capaz de funcionar a alguma distância.

O motor soava como uma mistura de tosse com soluços, o que o preocupou, mas não havia escolha, e para ele o barco seria tão veloz quanto o automóvel nas estradas traiçoeiras que tinha pela frente, além de mais difícil de rastrear. Ao descer o rio na direção do oceano, uma sensação de apocalipse iminente lhe percorreu, e a madeira flutuante, chamuscada ou carbonizada, com a qual cruzava era sinal não de fogueiras e tempestades, mas de alguma catástrofe muito mais radical.

* * *

Havia casas antigas por entre os rochedos da costa e algumas poucas praias malcuidadas quando ele avançou, o motor roncando por entre águas agitadas e águas tranquilas, ganhando aos poucos o controle do barco, ajustando seu trajeto às correntezas. A maioria das casas estava em ruínas, e mesmo aquela onde havia sinal de vida através de luzes acesas parecia ter ressuscitado apenas temporariamente. Fumaça subindo de churrasqueiras. Pessoas no cais lá embaixo. Todas pareciam prontas para desaparecer quando chegasse o inverno.

Ele passou por um farol abandonado, uma torre baixa, quadrada, com um cubo negro no topo. Passou e foi embora em silêncio, as pedras bem encaixadas surgindo através das falhas na pintura, a lâmpada às escuras, e ele teve uma inquietante sensação de desdobramento, como se de algum modo estivesse viajando ao longo do litoral de uma Área X alternativa. A sensação de ter cruzado uma espécie de fronteira.

Em algum lugar no meio do nevoeiro, se ele olhasse bem de perto, poderia ver Lowry e Whitby vagando sem rumo. Em algum lugar, também, a Brigada da Paranormalidade e da Ciência fazendo suas medições, e Saul Evans subindo a escada em espiral na torre do farol, com uma garota, distraída, brincando nas rochas lá de baixo. Talvez até Grace, juntando os cacos do Comando Sul espalhados à sua volta.

* * *

Pelo meio da tarde, atingira o trecho onde a costa fazia uma curva brusca para dentro, uma enseada que conduzia à cidade de Rock Bay. O que a bióloga chamava de baía eram na verdade poças formadas pela maré entre os arrecifes que ficavam a cerca de trinta quilômetros ao norte da cidade. Mas o chalé onde ela vivera ficava localizado logo além da cidade. Ou do vilarejo, para ser mais preciso, porque tinha apenas uns quinhentos habitantes.

O Vivo com Sal não era o tipo de barco que John pudesse puxar para a praia e esconder entre os arbustos. Mas ele queria fazer um reconhecimento de Rock Bay antes de seguir em frente. Resolveu correr o risco de navegar até certa altura na enseada, semioculto por rochas que emergiam da água aqui e ali. Logo avistou na praia um velho atracadouro em condições duvidosas, mas que serviu para amarrar o barco. De acordo com os mapas, ele estava próximo o bastante das reservas naturais para que caminhasse até uma trilha, por onde poderia prosseguir em direção à vila. Deixou no barco o cachimbo e o chapéu, e, pegando a capa, o binóculo e a arma, entrou no mato, e logo depois na floresta. O cheiro fresco dos cedros o encheu de energia. Daí a pouco, ele viu-se no alto de uma ribanceira olhando para a ponte de madeira que levava ao povoado, e a pequena rua principal à frente. Precisaria passar por uma barreira na estrada, organizada pela polícia local bem antes de chegar à ponte, mas até então não vira nada de suspeito na trilha — apenas um homem que corria sozinho e dois adolescentes que claramente procuravam um lugar seguro para fumar maconha. Do seu ponto de vista elevado, agora, usando o binóculo por entre a proteção segura da folhagem, ele podia ver meia dúzia de sedãs negros e vans com vidros fumê estacionados na rua principal. Os veículos cheiravam a Central, bem como os lenhadores arrumadinhos que estavam perto deles, com suas camisas e calças bem passadas e botas que pareciam novas demais para sugerir algum período de trabalho duro.

Se vieram em tão pequena quantidade, ou esse lugar era apenas um entre muitos sendo vasculhados, ou a bióloga se tornara apenas uma pequena parte de um problema maior, e a Central estava totalmente voltada noutra direção. Para o sul, talvez.

Dependendo do quanto conhecessem os hábitos da bióloga, podiam pensar que ela preferiria se esconder em algum local mais ao norte, ao longo da costa. Mas tinham de eliminar primeiro o vilarejo e seus arredores. Tudo o mais em volta era uma região costeira de mato cerrado ou de uma floresta tropical ainda mais densa, nenhum dos dois um terreno fácil de atravessar. O tipo de terroir onde mesmo pessoas locais, com experiência, podiam se perder depois de cruzar os limites do povoado, especialmente durante a estação chuvosa.

Seguindo uma intuição, abandonou sua posição na ribanceira, desceu ao longo de uma trilha, atravessou a ponte de madeira sobre o córrego e depois subiu a encosta do outro lado, até um terreno mais alto que o conduziu por uma série de pequenas colinas cobertas de cedros e musgo, finalmente chegando perto do mar. Do lado oposto, visível através da pequena enseada, estava o chalé onde a bióloga tinha morado. Ele se aproximou, agachado, num trajeto em zigue-zague pelas brechas entre as moitas de espinhos, e parou entre as árvores de troncos retorcidos com folhas espinhosas, num bom posto de observação.

O chalé era só um pouquinho maior do que seu barco, e em volta dele uma pequena porção da floresta fora derrubada, apenas o bastante para haver um gramado à frente e uma estradinha de terra que fazia uma curva ascendente e sumia à esquerda. Depois daquela elevação, oculta, havia uma construção maior: uma casa principal, da qual se elevava uma nuvem delgada de fumaça por uma chaminé fora de vista.

Mas não havia fumaça sobre o chalé. Nada se mexia em volta dele, fato que lhe pareceu pouco natural. Continuou examinando o mato dos dois lados durante mais de uma hora, até perceber, após mais de cinquenta varreduras cuidadosas, que um trecho do chão havia se mexido: camuflagem. O que, momentos depois, assumiu a forma de um homem com um rifle de mira telescópica, esticado por baixo de uma rede de camuflagem militar, mantendo o chalé sob mira. Depois que avistou o primeiro agente, os outros foram se tornando claros para ele: em árvores, por trás de troncos, até mesmo olhando para fora, num momento mais descuidado, de dentro do próprio chalé. Ele sabia que a bióloga jamais se aproximaria daquele lugar, se é que em algum momento desejara fazer isso.

Portanto, retrocedeu para dentro do mato e refez todo o caminho de volta ao barco, por um caminho cansativo e cheio de rodeios. Não achava que tivesse sido descoberto, mas não queria dar chance ao azar. Sentiu-se agradecido, também, quando chegou ao barco. Usara seu repertório enferrujado de treinamento na floresta, e aparentemente se dera bem. Também era uma sorte que o barco ainda estivesse lá e a área parecesse continuar deserta.

Comeu uma lata de feijão frio e zarpou, bordeando a costa até o último instante, e depois fazendo um corte reto e calmo na abertura da enseada, certo de que cedo ou tarde seria percebido à distância e que a Central desceria em peso sobre ele.

Apesar da extensão de água parecer tão vasta naquele momento, havia apenas as gaivotas e os pelicanos, os cormorões, e, lá no alto, o que imaginou ser um albatroz. Ouvia-se somente o chapinhar das ondas e uma sirene distante, e viam-se os vultos de barcos próximos ou distantes. Nada que não parecesse local, nenhum pescador novo por aquelas águas.

Era mais fácil, e melhor, afastar-se bem para longe daquilo. Ela estaria no lugar mais desolado, mais isolado que pudesse encontrar, desafiando qualquer um a segui-la.

Estaria lá, ou não. Se não, tudo aquilo era inútil de qualquer maneira.

* * *

A perseguição latejava intermitente como um pulso. Ela se extinguia e depois se avivava novamente. Pelo binóculo, ele viu uma lancha de corrida à distância fazendo uma ampla curva em sua direção. Ouviu um helicóptero, embora não pudesse vê-lo, e isso o fez passar uns vinte nervosos minutos dedicando-se a uma pesca sem propósito, com sua rede rasgada e imprestável, e o chapéu desengonçado puxado sobre o rosto. Fingindo o melhor que podia ser um pescador. Então os sons foram se afastando, a lancha desviou-se na direção da costa. Durante um longo tempo, tudo voltou a ficar como estava antes.

* * *

Essa nova paisagem ao norte da enseada de Rock Bay era ainda mais estranha aos olhos dele, mais fria — e um alívio, como se a Área X fosse apenas um clima, um tipo de vegetação, um simples terroir, mesmo ele sabendo que não era verdade. Tantas tonalidades e nuances de cinza — o cinza que brilhava no alto do céu, um cinza infinito e incessante que parecia tão quieto. O cinza malhado e fosco da água, antes da chuva, partida pelas cristas das pequenas ondas, o cinza da própria chuva, salpicos e ondulações de encontro à superfície do oceano. O cinza prateado das ondas de verdade lá longe, que acabavam chegando e se chocando à proa quando ele guiava o barco em sua direção, balançando-se, o motor gemendo. O cinza de algo grande e maciço passando por baixo dele, que fez o barco se erguer enquanto ele tentava mantê-lo quieto e sem motor naquele momento, prendendo a respiração, pois a vida estava próxima demais de um sonho para que ele soltasse o fôlego.

Ele entendeu por que a bióloga gostava daquela parte do mundo, como era possível perder-se ali de cem maneiras diferentes. Como você podia mesmo se tornar alguém muito diferente do que pensava ser. Os pensamentos dele se estabilizaram durante as horas de busca. A necessidade frenética de analisar, de organizar o dia ou a semana, tudo aquilo se desprendeu, levando consigo o peso e o ruído das interações e das interferências humanas, que não podiam mais habitar o interior de sua mente.

Pensou no silêncio que fazia no lago onde pescava quando criança, as longas pausas, nas coisas que o avô costumava lhe dizer, num tom de sussurro, como se os dois estivessem numa igreja. Perguntou-se o que faria se não conseguisse encontrar a bióloga. Será que voltaria ou se misturaria com a paisagem, tornando-se parte do que encontrasse ali, tentando esquecer o que acontecera antes e virando algo não muito diferente dos borrifos de espuma na proa, a neblina de encontro à praia, o vento contra seu rosto? Havia um consolo nessa ideia quase tão forte quanto a urgência de encontrá-la, um consolo que ele não experimentava há um longo tempo; e muitas coisas recuaram para uma distância remota dentro de si, tornando-se aos seus olhos ridículas, ou fantásticas, ou as duas coisas. Eram, em sua essência, desimportantes.


Durante as noites de sua jornada rumo ao norte, o barco ancorado da melhor maneira possível onde a costa permitia — o abrigo de alguma rocha grande o bastante para protegê-lo, e o fundo capaz de segurar a âncora a despeito das algas escorregadias — ele começou a ver luzes estranhas atrás de si, bem ao longe. Elas se erguiam e voltavam a cair e deslizavam ao longo do mar e do céu, algumas brancas e outras verdes ou tingidas de roxo. Ele não podia dizer se estavam buscando ou se tinham outro propósito menos proposital. Mas as luzes quebraram o encanto e ele ligou o rádio naquela noite, colando-o ao ouvido para manter o volume o mais baixo possível, enquanto se enrolava em seu saco de dormir. Mas captou apenas algumas palavras ininteligíveis antes que a estática aparecesse, e não sabia se isso se devia a alguma catástrofe ou se era por estar num local tão remoto.

As estrelas no alto eram grandes e firmes. Existiam em um tecido noturno tão vasto e profundo quanto seu sono, seu sonho. Estava fatigado agora, e com fome de comida que não fosse enlatada ou barras de proteína. Estava enjoado do barulho das ondas e do motor do barco. Já fazia três dias que partira de Rock Bay, e ainda não vira nenhum sinal dela ao longo da orla. Em breve estaria chegando ao trecho mais distante dessa área. Controle já deixara muito para trás o ponto onde qualquer local no continente podia ser alcançado por estrada; ali, apenas por trilha, helicóptero ou barco. Era o derradeiro limite do que podia ainda ser chamado Rock Bay.

Se continuasse economizando comida e água, tinha o bastante para ficar uma semana antes de ser obrigado a voltar.


Manhã de um novo dia. Tonto de sono, deixando-se levar, ele remou para uma pequena enseada cercada de rochas negras e agudas como barbatana de tubarão, recortada como qualquer serra rochosa. Decidiu olhar de perto porque achou o local parecido com o pedaço de costa esboçado nas anotações de campo da bióloga.

As rochas estavam cobertas de moluscos e estrelas-do-mar e, nas partes mais fundas, viam-se as centenas de vultos dos ouriços-do-mar como minas submersas em miniatura. Há dois dias ele não via uma pessoa. Seus braços estavam cansados e doloridos de tanto remar. Queria uma refeição quente, um banho, algum detalhe da paisagem que lhe desse certeza de saber onde estava. O barco começava a se encher d’água, então ele passou algum tempo esvaziando baldes cheios, porque o medo de se afastar mesmo que só um pouquinho da costa era maior do que o de chegar perto demais e destruir o barco em algo pontudo.

As rochas formavam uma linha ou crista irregular que se estendia até a praia, e seria difícil contorná-las. Uma onda mais forte o levou para perto, o barco se chocou contra as pedras e ele sentiu cada osso seu ser sacudido. Tentou usar um remo contra o rochedo para se afastar. De início o remo escorregou no paredão e ele precisou tentar de novo; em seguida, remou freneticamente até estar distante daquele redemoinho.

Precisou de alguns momentos para entender por que o remo deslizara nas pedras, por que não tinha sentido a vibração habitual de esmigalhamento. Alguém estivera se alimentando das lapas e mexilhões. A rocha naquele ponto estava quase nua, a não ser por umas poucas algas. Ele espiou com o binóculo, viu que outras rochas próximas também estavam no mesmo estado, e, mais perto da praia, algumas mostravam marcas redondas e pálidas onde as lapas tinham resistido a ser colhidas.

Nenhum sinal de fogo ou qualquer habitação, mas alguém ou alguma coisa vinha se alimentando delas. Se fosse uma pessoa, sabia que podia ser qualquer um. Em todo caso, era mais do que ele tinha na véspera. Animação e alívio, e certa indecisão, lutaram dentro dele. Se fosse mesmo uma pessoa, não importava quem, certamente já vira o barco. Ele pensou em atracar ali, mas mudou de ideia e remou de volta ao ponto de onde viera, descendo ao longo da costa até passar a primeira gruta. Escondida por uma daquelas rochas enormes que brotavam do oceano para formar uma ilha pouco receptiva.

A essa altura, havia mais água dentro do barco, e ele percebeu que em breve teria de passar a maior parte do tempo retirando água, e não remando, ou preocupado se ia afundar, e não remando. Portanto, navegou para mais perto da costa, jogou a âncora e caminhou vadeando até uma prainha de areia preta protegida por enormes árvores. Ficou ali sentado, arquejando por vários minutos. Esta era sua última chance. Ele podia tentar consertar o barco. Podia virá-lo no sentido oposto e arrastar-se descendo o litoral rumo a Rock Bay. Dar aquilo por encerrado, abandonar a tarefa para sempre. Deixar a imagem da bióloga somente em seu pensamento, sem nunca se manifestar diante dele, e depois enfrentar o que quer que estivesse crescendo ali, por trás dele. Pensou no que sua mãe estaria fazendo naquele instante, onde estaria. Depois teve um flash de Whitby estendendo a mão de dentro daquela prateleira, e de Grace, parada junto à porta, esperando a diretora.

Voltou para o barco e pôs dentro da mochila tudo que achou que seria mais útil, inclusive o manuscrito de Whitby sobre os terroirs. Cambaleando um pouco sob aquele peso, refez o caminho rumo à linha de rochedos negros, tentando manter-se oculto por trás das árvores. Daí a pouco o barco era apenas uma lembrança distante, algo que foi real uma vez, mas não existia mais.

Naquela noite percebeu luzes no céu, ainda distantes, embora cada vez mais próximas. Imaginou estar escutando o ruído do motor de um navio, mas as luzes sumiram, o barulho sumiu, e ele acabou adormecendo, embalado pelo sussurro e estardalhaço das ondas.


No entardecer do dia seguinte, John viu um movimento nas rochas, e apontou para lá o binóculo. Queria acreditar que o vulto era a bióloga, que estava reconhecendo sua silhueta contra o céu sem brilho, o modo como se movia. Mas ele a vira apenas como uma prisioneira. Inerte. Sem ação. Diferente.

Na primeira vez ele a perdeu de vista quase no mesmo instante, a partir do seu ponto de observação nas rochas; não conseguiu dizer se ela estava voltando ou se afastando ainda mais. Rochas e vulto se desfocaram, se misturaram, e logo depois anoiteceu. Ele esperou que ela reaparecesse sob a forma de uma luz ou um fogo, mas não viu nenhum, nem outro. Se era a bióloga, estava em modo completo de sobrevivência.

Outro dia se passou, e ele não viu nada a não ser gaivotas e uma raposa cinzenta que estacou de súbito quando o viu, logo desaparecendo por entre a névoa que há bastante tempo envolvia tudo. Receou que a pessoa que vira já tivesse se afastado, que aquilo ainda não era um posto avançado, só mais uma escala numa longa jornada. Comeu outra lata de feijão e bebeu moderadamente água do cantil. Encolhido, com tremores, todo coberto. Estava mais uma vez no limite de seus talentos para o ambiente florestal, pois seu treinamento tinha sido focado mais em estradas tranquilas e vigilância em cidades do interior do que em viver na natureza selvagem. Calculou que perderia no total uns cinco quilos. Ficou aspirando com força o perfume do cedro e de cada coisa verde, cada coisa viva, como se fosse um antídoto provisório.

* * *

O vulto reapareceu no entardecer seguinte, engatinhando ou pulando pelas placas de pedra negra acima da água, com uma destreza que John sabia estar longe de igualar. Quando a identificou como a bióloga através do binóculo, seu coração deu um pulo, seu sangue se agitou e os pelos do seu braço se eriçaram. Uma onda de emoção o percorreu, e precisou conter as lágrimas. Seriam de alívio ou de algo mais profundo? Ele estava trancado dentro de si mesmo há tanto tempo que não tinha mais certeza de nada. Contudo, recuperou-se imediatamente. Sabia que se ela voltasse até a areia da praia, iria se embrenhar na floresta. Ele não via com bons olhos suas chances de reencontrá-la lá.

Se ela o visse saltando sobre as pedras ao seu encontro, contudo, e ele não tivesse a chance de confrontá-la, ela escaparia de novo por entre os seus dedos, e então ele nunca a veria de novo. Era outra certeza que ele tinha.

A maré começara a subir. A luz era mortiça, fosca e cinza. De novo. O vento estava mais cortante. Na praia, nada indicava a existência de seres humanos exceto a figura da bióloga, que se erguia e se abaixava além de uma coluna escura de fumaça que se elevava no ar, vinda de alguma embarcação tão distante em alto mar que nem o binóculo a encontrava.

Ele esperou que a bióloga avançasse até a metade da linha de rochas, pensando que ela devia estar perdendo algumas de suas precauções naturais, pois cercá-la provava-se muito mais fácil do que deveria. Então ele avançou atrás dela ao longo da crista de rochedos, mas pela face oposta, curvado, tentando manter a silhueta fora do seu campo de visão, embora tivesse por trás de si um fundo de floresta, não de luz esmaecida. Trazia a mochila às costas, pela paranoia de que ela ou outra pessoa pudesse roubá-la durante sua ausência. Mesmo que já a tivesse esvaziado bastante, ainda dificultava seu equilíbrio, tornava mais difícil segurar a arma e subir nas pedras. Ele podia ter deixado para trás o manuscrito de Whitby, mas aquilo lhe parecia cada vez mais importante, algo para não perder de vista.

Tentou avançar com passos curtos, os joelhos dobrados, mas mesmo assim escorregou várias vezes nas pedras irregulares, escorregadias devido às algas, as bordas serrilhadas ou agudas por causa das conchas de lapas e ostras e mexilhões. Teve de se agarrar para recuperar o equilíbrio e se cortou, apesar dos panos que amarrara sobre as palmas das mãos. Não demorou muito para seus tornozelos e joelhos começarem a apresentar sinais de cansaço.

Quando chegou mais ou menos à metade, a linha de rochas estava mais estreita, e ele não teve escolha senão subir nelas. Lá de cima teve uma vista geral pela primeira vez, e a bióloga não estava visível. Ou descobrira uma passagem miraculosa de volta à praia, ou estava escondida mais à frente.

Agora, pouca diferença fazia se ele se encolhia e se agachava; ela poderia vê-lo com clareza total. Ele não sabia de que opções ela dispunha — pedras, faca, uma lança artesanal? — caso não ficasse muito feliz por reencontrá-lo. Ele tirou o chapéu e enfiou-o no bolso do casaco, na esperança de que, se ela estivesse olhando, pudesse pelo menos saber que era ele. Que ao reconhecê-lo, as palavras que viessem à sua cabeça fossem mais que “interrogador” ou “sequestrador”. Que isso a fizesse pelo menos hesitar, caso estivesse preparando uma emboscada.

Quase no fim do caminho de rochas, pensou se não devia voltar. As pernas estavam bambas, tal como as algas que cobriam as rochas, atiradas ali pela maré. De ambos os lados da crista a água batia com força, e embora ele ainda conseguisse enxergar — o sol era uma lasca vermelha contra o horizonte, iluminando a torre de fumaça remota —, precisaria da lanterna para voltar. O que revelaria sua presença a qualquer pessoa que pudesse estar na praia; e ele não tinha vindo de tão longe meramente para entregá-la a outros. Assim ele continuou, tomado por um senso de fatalismo. Tinha sacrificado todos os seus peões, seus cavalos, seus bispos e suas torres. Abuela e Abuelo se defrontavam com uma carnificina do outro lado do tabuleiro.

Naquela rotina cansativa de subir e subir de novo, de seguir sempre em frente sem recuar, uma satisfação sombria foi se espalhando como um derradeiro recrudescer de energia dentro do seu corpo. Ele seguira essa linha de investigação até o fim. Chegara longe, pensou ele com um pouco de tristeza por tudo que ficou para trás, tantas pessoas com quem tinha forjado apenas os mais tênues dos laços. Tantas pessoas que, quando ele se aproximou do final da linha das rochas, desejou ter conhecido melhor, ou pelo menos tentado. O carinho que dera ao pai lhe parecia agora não um esforço desinteressado, mas algo que também servira a ele próprio, para mostrar-lhe o que era estar próximo de alguém.

No fim da crista de rochedos, avistou uma lagoa profunda, de uma água cheia de ondulações, sob a proteção rude das rochas. “Lagoa” talvez fosse uma palavra muito delicada para aquele abismo gorgolejante, cujas bordas irregulares e afiadas podiam cortar facilmente uma cabeça ou uma mão. Não dava para avistar o fundo.

Além, somente o oceano sem fim, espumando para chegar mais perto, espatifando-se de encontro ao punho cerrado dos rochedos, de modo que os borrifos de água salpicavam seu rosto e a força do vento o fazia vacilar. Mas na lagoa tudo era calmaria, mesmo que aquele reflexo obscuro fosse indecifrável.

Ela apareceu tão perto, emergindo de um esconderijo à sua esquerda, que ele quase saltou para trás, mas recuperou-se a tempo, agachando-se e apoiando-se com uma das mãos.

Naquele instante ficou indefeso e, ao se erguer de novo, percebeu que ela tinha uma arma apontada para ele. Parecia uma Glock, como a sua, uma arma padrão. Ele não contara com aquilo. De alguma maneira, e em algum lugar, ela tinha conseguido uma arma. Estava mais magra, os ossos do rosto salientes como as rochas. O cabelo recomeçara a crescer, era uma moita escura. Vestia jeans grossos, um pesado suéter grande demais para ela e botas caras de caminhada. Havia em seu rosto uma expressão de desafio em conflito aberto com curiosidade e alguma outra emoção. Tinha os lábios secos e rachados. Ali, em seu ambiente natural, parecia tão à vontade que ele se sentiu desajeitado, tosco. Alguma coisa tinha se encaixado. Algo a deixara mais centrada, e ele achou que podia ser a memória.

— Jogue a arma no mar — disse ela, apontando o cano para seu coldre. Precisou elevar a voz para ser escutada, mesmo de tão perto. Tão perto que em poucos passos ele poderia estender o braço e tocá-la no ombro.

— Nós vamos precisar dela mais tarde — disse ele.

— Nós?

— Sim — disse ele. — Tem mais gente vindo. Eu vi as luzes. — Ele não queria revelar o que acontecera no Comando Sul. Não por enquanto.

— Jogue agora, a não ser que prefira levar um tiro.

Ele acreditou nela. Tinha visto seus relatórios de treinamento. Ela dizia que não era boa com armas, mas os alvos não concordavam.

E assim se foi o Vovô versão 4.9 ou 5.1. Ele não mantivera um registro das expedições. O mar o fez desaparecer com um espadanar de água que soou com um derradeiro comentário de Jack.

John olhou para ela, parada à sua frente enquanto as ondas estrondavam nas rochas, e a despeito da luz cinzenta, da água e do frio, a despeito do fato de que podia estar morto nos próximos minutos, ele começou a rir. Ficou surpreso, e de início pensou que a risada vinha de outra pessoa.

A mão dela apertou a arma com mais força.

— A ideia de eu lhe dar um tiro é tão engraçada assim?

— Sim — disse ele. — Muito engraçada.

Ele estava rindo tanto agora que teve de dobrar os joelhos para manter-se equilibrado sobre as pedras. Uma alegria furiosa e histérica ergueu-se dentro de si, e ele imaginou, de modo distante e distraído, se não devia ter buscado essa sensação com mais frequência. A visão dela, contra o cenário das subidas e descaídas do mar, era quase demais para ele. Mas pela primeira vez sabia que fizera a coisa certa em ir até lá.

— É engraçado porque houve muitas outras vezes... tantas outras vezes em que eu entenderia por que alguém gostaria de atirar em mim.

Isso era apenas uma parte, sendo a outra o fato de que sentiu como se fosse a Área X prestes a atirar nele, e que a Área X estivera tentando alvejá-lo há muito tempo.

— Você me seguiu — disse ela —, mesmo sabendo que eu não queria ser seguida. Veio até o que muita gente considera o cu do mundo e me encurralou aqui. Provavelmente quer me fazer mais perguntas, embora já devesse estar claro que já cansei de perguntas. Você esperava o quê?

Na verdade, ele não sabia o que pensara que ia acontecer. Talvez tivesse deslizado inconscientemente à ideia de que a relação entre eles se daria da mesma forma como acontecia no Comando Sul. Mas as regras de lá não valiam aqui. Ele se preparou, as mãos agora erguendo-se como em rendição.

— E se eu disser que eu tenho respostas — disse ele. Mas a única coisa tangível que podia mostrar-lhe era o manuscrito de Whitby.

— Eu digo que está mentindo, e estaria certa — retrucou ela.

— E se eu disser que algumas das respostas estão com você?

Suas palavras agora tinham a mesma intensidade de suas gargalhadas momentos antes. Tentou manter contato visual, mesmo através da escuridão que aumentava, mas não conseguiu. Meu Deus, mas como aquela costa era dolorosamente bela. O verde escuro e profundo dos abetos penetrando sua mente, o céu e o fragoroso oceano, as explosões de água salgada contra as rochas, virando em uníssono com a rajada urgente do sangue em suas artérias enquanto esperava que ela o abatesse com um tiro ou lhe desse ouvidos. Um pensamento insurgente: Não seria nada horrível morrer ali, tornar-se parte daquilo tudo.

— Eu não sou a bióloga — disse ela. — Não ligo para o meu passado como a bióloga, se é a isso que se refere.

— Eu sei — respondeu ele. Juntara as peças no barco, mesmo ainda não tendo articulado seu pensamento em palavras. — Sei que não é. Mas você é uma espécie de versão dela. Tem suas lembranças, até certo ponto, e pode ser que a bióloga ainda esteja viva lá na Área X. Você é uma réplica, mas é uma pessoa em si.

Não era a resposta que ela esperava. Abaixou a arma. Um pouco.

— Você acredita em mim.

— Sim.

Estivera lá, bem na sua cara, no vídeo, na própria imitação das células, na diferença de personalidade. Só que ela tinha quebrado o molde. Alguma coisa em sua criação tinha sido diferente.

— Estou tentando recordar este lugar — disse ela, de modo quase queixoso. — Adoro isso aqui, mas o tempo todo senti como se o lugar é que estivesse se lembrando de mim.

Um silêncio que John não sabia se devia interromper, então simplesmente esperou.

— Você veio até aqui para me levar de volta? — perguntou ela. — Porque eu não vou voltar.

— Não, não é isso — revelou ele, e percebeu que era verdade. Qualquer impulso nessa direção que pudesse ter havido já se extinguira há muito. — O Comando Sul não existe mais — confessou. — Em breve tudo aquilo estará irreconhecível.

Ali no crepúsculo, sem pássaros sobrevoando, a fumaça ao longe se confundindo com a noite, a arrebentação rouca era a única coisa que parecia viva além dos dois.

— Como soube que eu estaria aqui? — perguntou ela, mergulhada em pensamentos. — Tive muito cuidado.

— Eu não sabia. Adivinhei.

De algum modo, o rosto dele devia ter revelado alguns pensamentos, porque ela pareceu um pouco surpresa, um pouco desconcertada.

— E por que você faria isso, se não quer me levar de volta?

— Não sei.

Para tentar salvar o mundo? Salvá-la? Salvar a si mesmo? Mas ele sabia. Nada tinha mudado desde a sala de interrogatório. Nada de significativo.

Quando ergueu os olhos de novo, ela estava dizendo:

— Pensei que podia simplesmente ficar aqui. Construir a vida que ela não conseguiu, que ela pôs a perder. Mas não posso. É muito claro que não posso. Alguém sempre virá me buscar, não importa o que eu faça.

Agora que o sol tinha se posto completamente, via-se um bruxulear de uma luz conhecida vindo da lagoa abaixo.

— O que tem ali embaixo? — perguntou ele.

— Nada. — Resposta rápida demais.

— Nada? É tarde para mentir. Não tem porquê.

Nunca era tarde demais para mentir, para obscurecer, para retardar. Controle sabia disso bem demais.

Mas ela não. Hesitou, e então disse:

— Eu estava doente quando cheguei. Uma noite vim até aqui, sofri uma tontura e fiquei inconsciente por algum tempo. Acordei com a maré subindo e não estava mais doente. Esse brilho me curou. Mas havia algo no fundo desse buraco.

— O quê?

Embora ele achasse que já sabia. A luz que redemoinhava era demasiado familiar, apesar de misturada pelas ondulações e pelo volume da água.

— É uma passagem para a Área X, eu acho — disse ela, e agora seu rosto mostrava medo. — Creio que eu a trouxe comigo.

Ele não entendeu como ela sabia disso. Pensou que podia ser verdade, se lembrando das palavras de Cheney sobre o quanto aquela travessia podia ser enervante e difícil. A horrível descrição que Whitby fizera da barreira.

Agora que a escuridão era completa e ela era apenas uma sombra parada à sua frente, eles podiam ver as luzes no sul, perto da costa. Oscilando. Flutuando. Avançando com dificuldade. Dezenas delas. E ali embaixo aquele bruxulear, aquela sugestão de uma luz impossível.

— Acho que não temos muito tempo — disse ele. — Não sei se temos sequer esta noite. Vamos ter que procurar um esconderijo.

Não queria pensar na outra possibilidade. Não queria que nem uma fagulha do que pensava chegasse à mente dela.

— A maré sobe daqui a pouco — disse ela. — Você precisa sair das rochas.

E ela não? Mesmo sem poder enxergar seu rosto, ele sabia a expressão que devia estar estampada em suas feições.

— Nós dois temos que sair das rochas.

Ele não tinha certeza de estar falando para valer. Agora já podia escutar o helicóptero, podia escutar os barcos, também. Mas se ela estivesse maluca, ou se estivesse mentindo, ou se na realidade não soubesse de coisa alguma...

— Quero saber quem sou — disse ela. — Não posso conseguir isso aqui. Não posso conseguir trancada numa cela.

— Eu sei quem você é, está tudo na minha cabeça, todos os seus arquivos. Posso te dar isso.

— Não vou voltar — explicou ela. — Nunca vou voltar.

— É perigoso — replicou ele, suplicando, como se ela não soubesse. — Não está provado. Não sabemos onde isso vai dar.

O buraco era muito profundo e de borda muito cortante, e a água já fervilhava ali, jogada pelas ondas. Ele tinha visto maravilhas e tinha visto coisas terríveis. Precisava acreditar que essa era mais uma, que era verdadeira, que poderia ser entendida.

O olhar dela o mediu de cima a baixo. Não queria mais falar. Jogou a arma bem longe. Mergulhou naquelas águas, bem no fundo.

Ele deu um último olhar em torno para o mundo que conhecera. Sorveu um último imenso gole daquilo tudo, cada pedaço que foi capaz de ver, cada detalhe que foi capaz de lembrar.

“Salte”, disse uma voz em sua mente.

Controle saltou.

 

 

                                                   Jeff VanderMeer         

 

 

 

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