Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA COLINA / Régine Deforges
A ÚLTIMA COLINA / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

A maior parte dos assuntos tratados no texto do romance por Vincent Auriol, Claude Barres, general de Lattre, Jean Leroy, Pierre Mendês France, Jean Sainteny, Albert Sarraut, Pham Van Dong, general Salan, Hô Chin Minh procedem de trabalhos, correspondências ou entrevistas consagradas por eles à Indochina.

 

 

Capítulo 1

O dia ia nascer em Hanói.
Três semanas antes Léa e François tinham se reencontrado, e estavam tremendo de febre, cada um em seu
quarto. A ferida de François estava infeccionada. Um médico militar enviado pelo alto- comissário havia
receitado penicilina. O remédio começava a fazer efeito; uma tarde, a febre diminuiu e o ferido, pela primeira vez
desde muito tempo, sentiu a mente aclarar. Ele conseguiu colocar em ordem as imagens confusas enviadas
pelo cérebro dolorido.
- Léa! - gritou ele levantando-se.
Uma dor súbita lançou-o novamente na cama. Uma silhueta
feminina se inclinou enquanto uma mão suave pousava na testa.
- Acalme-se, ela está aí, está tudo certo.
- Lien?... é você?... Eu estou em Hanói?... E Hai?... Você sabe o que aconteceu a Phuong?
- Sim, eu sei!... Fique calado.
- Quem lhe contou?
- Um enviado do presidente Hô Chin Minh. Tio Hô, que não esqueceu a amizade que dedicava à minha família.
E, além disso, sou irmã de Hai.
- Você tem notícias dele?
- Ele jurou matar você.
- Mas não fui eu!...
- Talvez, mas é por sua culpa que Trac e Nhi estão órfãos.
- Eu não desejava essa morte. Vou procurar Hai... Eu lhe explicarei...
- Não adianta. Sua cabeça foi posta a prêmio pelos vietcongues.
- Para mim tanto faz... Vou vê-lo. Diga-me onde ele está.
- Ele é que o procurará.
Exausto, ele perdeu a consciência novamente.
- Lien - murmurou ele reabrindo os olhos.
- Fique calado, você ainda não está nada bem.
- Ele sabe que estou em sua casa?
- Contei a ele. Também avisei que aqui você está sob minha proteção e que, se alguma coisa de mal
lhe acontecer enquanto estiver aqui, eu me matarei. Recupere-se, não lhe acontecerá nada.
François pegou a mão de Lien e a levou aos lábios.
- Onde está Léa?
- No quarto ao lado, esteve muito doente. Delirou, falou de Gestapo, de massacres, de Sarah. Ela
chamou seu filho, sua mãe e você. Oh, como chamou por você!
- Está melhor?
- Muito melhor. Kien tomou conta dela.
- Kien?... O que ele faz aqui?
- Foi ele que os encontrou na ponte Paul-Doumer e os trouxe para cá.
- Eu quero vê-la - disse ele, levantando-se.
Mas sua fraqueza era tal, que caiu novamente.
- Espere, não se aflija, vou lhe ajudar. Apóie-se em mim.
Com o dorso nu molhado de suor e coberto por um grande curativo, ele avançou, sustentado pela
jovem mulher, tão frágil na túnica clara.
O quarto no qual Léa repousava estava na penumbra; um grande ventilador mantinha o ambiente
relativamente fresco. Pouco a pouco os olhos se habituaram à meia-luz. Sentado perto
da cama, numa poltrona, Kien cochilava. François foi tocado por sua juventude e beleza. Por seu
lado, adormecida, Léa lhe parecia ainda mais bela que em sua lembrança. Vista através da renda de
filó do mosquiteiro, largada no grande leito branco, parecia uma criança. Com os braços jogados de
um lado e de outro do rosto e cabelos esparsos no travesseiro, como parecia vulnerável!... As vezes,
o franzir de uma sobrancelha, um tremor nos lábios, a crispação de uma das mãos traíam suas
angústias. Perturbado, inclinou-se sobre essa mulher, que ele amava, que havia jurado tratar com
carinho, proteger, e que saíra pelas estradas procurando-o, abandonando o filho deles. Ele foi
invadido por um sentimento de vergonha, de cólera e de tristeza.
- Léa! - chamou.
O engatilhar de uma arma o fez virar a cabeça. Kien acordara e segurava uma pistola apontada
para ele. Tavernier deu um sorriso amarelo.
- Larga isso, garoto, você pode machucar alguém.
Diante desse tom sério, Kien empalideceu.
- Não toque nela!
Apesar da fraqueza, François deu um salto e obrigou Kien a se levantar.
- É minha mulher, você se esqueceu?
Lien se interpôs entre ambos:
- Kien abaixe essa arma, e você, François, sente-se! Não discutam diante dela.
Alguns instantes atrás, Léa abrira os olhos. Parecia-lhe ouvir uma voz distante. Como estava longe
essa voz! Ela deu um suspiro de criança magoada e cerrou novamente as pálpebras. A voz se
aproximara, estava lá...
- François!
A intensidade do grito que brotou desse corpo frágil e sofredor fez os três saltarem ao mesmo
tempo. Empurrando os lençóis, Léa levantou-se, nua. Os cabelos estavam embaraçados, e gotas de
suor escorriam entre os seios. Assim, erguida, ela estava esplêndida e terrível.
- François! - gemeu ela.
Enfim os braços se fecharam sobre ela, os lábios se uniram aos dela, as mãos lhe seguraram os quadris. Hálitos
confundidos, caíram na cama. Kien avançou sobre o casal enlaçado. Lien o segurou:
- Deixe-os.
Ela conseguiu empurrá-lo para fora do quarto. Lá, perdendo as forças, escorregou nos ladrilhos diante do altar
dos ancestrais. Kien a levantou e levou-a para o quarto. Ele a estendeu e se estirou junto dela, invadido por
uma aflição que não sentira desde a morte do avô, e chorou como uma criança, com grandes soluços. As
lágrimas na face de Lien, a reanimaram.
- Meu pobre menino - disse ela, tomando-o nos braços.
A noite já caíra havia muito tempo quando Léa e François voltaram do coma de felicidade no qual os haviam
lançado os embates amorosos. Famintos um do outro, deram-se com uma violência e um impudor totais. Seus
gritos e estertores haviam ressoado até onde ficavam os empregados. Os amantes não se cansavam de
contemplar os corpos machucados, de tocá-los, de apalpá-los, de mordê-los e de lambê-los. Depois de cada
orgasmo, apesar da exaustão de ambos, os sexos se procuravam novamente, uniam- se num ruído de sucção, e
eles submergiam sob novas ondas de gozo. As feridas de François estavam novamente abertas, e, ao
amanhecer, os amantes estavam cobertos de esperma e sangue. Erguida no leito manchado, com as pernas
afastadas, Léa contemplava seu homem com uma ferocidade de mãe-tigre.
- Jamais nos separaremos novamente, juro!
Ela se enrolou num dos lençóis manchados e saiu do quarto. Gulosamente, aspirou o ar fresco da noite. Em
cada recanto do corpo ela sentia uma fadiga maravilhosa; os rins cansados lhe causavam uma dor deliciosa;
ela se espreguiçou, bela e obscena. Agora que se haviam reencontrado, nada poderia lhes acontecer, não se
separariam nunca mais.
Ela estava sentada no pequeno banco, em frente ao tanque, onde Lien gostava de ficar para dar comida aos
peixes vermelhos.
Houve um ruído de galhos. Léa voltou-se. Perto do pequeno bosque, a brasa de um cigarro.
- Quem está aí? - Ninguém respondeu. - Quem está aí?
- perguntou ela novamente, levantando-se. Uma silhueta sombria surgiu.
- É você, Kien? Você me assustou. Tem um cigarro?
Ele estendeu o maço. A luz da chama do isqueiro, ela notou o rosto perturbado. Ela baixou os olhos diante
desse sofrimento cuja causa conhecia. Mas o reencontro com seu amor, a felicidade dos sentidos a tornavam
indulgente. Aproximou-se de Kien e o beijou com ternura.
- Eu lhe devo tanto, Kien. Você não sabe quanto lhe sou agradecida e quanto o amo.
O jovem estremeceu.
- O que você disse?
- Que o amo...
Ele a puxou para si.
- Diga isso novamente!
- Deixe-me, você estraga tudo. Sim, eu o amo... como a um irmão, um amigo.
- Não é dessa maneira que quero ser amado por você, mas como você o amou esta noite: como uma louca,
como uma mulher paga para isso... Quero ouvi-la gemer debaixo de mim, e me dizer: "Mais... mais..."
- Cale-se!
- Não, não me calarei! Eu a amo, um dia você será minha, e você também me amará...
- Nunca!
- Não diga isso. Eu sei... e você também!
- Não! - gritou Léa, e todavia, faltou pouco, no junco, para que se tornasse sua amante...
Em seu passo submisso e silencioso, Kien foi para casa. Léa, entristecida, tornou a sentar-se no banco. Do
outro lado do tanque, uma forma se mexeu.
- Giau? - perguntou ela. O mendigo deslizou ao longo da beira do tanque. - O que você faz aqui?
- Estou de guarda.
- Mas não há nenhum perigo para mim.
- Não acredite nisso. Você nunca correu tanto perigo. É preciso que você e seu marido saiam de
Hanói o mais rápido possível. O vietcongue mandou prender vocês.
- Por que diz isso? Como sabe disso?
- Já lhe expliquei que ninguém liga para pessoas como eu, falam na minha frente como se eu não
existisse. Ouvi isso na casa do comandante vietcongue de Hanói.
- Você conta muitas histórias! Os vietcongues não estão em Hanói.
- Você está enganada, eles estão por toda a parte. Esperam sua hora com paciência, pois sabem que
ela chegará.
- Assim que François se encontrar com o alto-comissário, partiremos.
- Seria melhor vocês partirem antes, pois, se por acaso ele escapar dos vietcongues, não escapará de
Kien uma segunda vez.
- O que é que quer dizer com isso?
- Quero dizer que desta vez Kien não errará o golpe. Foi ele quem apunhalou seu marido na barca de
Ninh.
- Não acredito em você! - gritou Léa.
Ao longe, um cachorro latia.
- Por que gritou, se você não acredita em mim?
Léa deixou-se cair no banco com a cabeça entre as mãos.
- Mas por que, por quê?
- Você sabe muito bem: porque a ama e a deseja. Ele lhe disse ainda agora, e não foi a primeira vez.
Abatida, Léa olhava para a frente; todas as dores do corpo voltaram. Giau, como um cão deitado a
seus pés, olhava-a de esguelha com um ar desamparado. Ela se ergueu e falou com voz
involuntariamente dura:
- Conte-me tudo que ouvir.
- Não se aflija, Giau está vigiando, mas siga meu conselho:
parta.
- Tenho de refletir. Tem cigarros?
Com a mão estropiada, ele procurou nos farrapos e tirou um maço de Lucky Strike, e depois uma
caixa de fósforos.
- Tome, fique.
- Obrigado, Giau. Agora, deixe-me.
O mendigo desapareceu sem fazer barulho.
Não era o frescor da noite que fazia Léa ter arrepios, mas um medo que lhe dava náuseas. Acendeu
um cigarro tentando pensar de forma coerente. Devia acreditar no que Giau dissera sobre Kien?...
"Sim", respondia uma voz fraca dentro dela. "Não, não é possível! François e ele se conhecem há
muito tempo; são amigos, ainda que por vezes discordassem. Giau está enganado..." "Não, ele não
está enganado!", voltava a voz fraca... "Mas, se é verdade, há o risco de Kien fazê-lo
novamente!..."
Léa se levantou, andou de um lado para o outro e acendeu um novo cigarro. Sentindo vertigens,
sentou-se novamente no banco. Giau tinha razão: era preciso deixar o mais rápido possível esse país
de ódios e de sofrimentos.
Quanto tempo ela ficou acabrunhada, largada no banco?... O dia estava nascendo quando voltou
para o interior da casa e se dirigiu ao quarto. No cômodo sempre mergulhado na penumbra, ouvia-
se a respiração dele, que dormia. Pairava no ar um odor acre que a perturbava. Ela se aconchegou
a François, cujo coração ela via bater sob um torso descarnado. Na véspera, na felicidade do
reencontro, ela não reparara na magreza nem no tamanho dos ferimentos. Seus lábios percorreram
o pobre corpo, que tremeu com as carícias. O sexo se balançou, erguido contra seu ventre. Léa
ergueu-se sobre ele, e deixou-se penetrar gemendo. Lentamente, fez amor com ele.
Ele abriu os olhos; ela foi trespassada por seu olhar de felicidade. Ele pegou os seios, mas logo os
deixou; acreditara ter visto novamente aqueles, martirizados, de Hong. A expressão de dor e de nojo
que invadiu seu rosto não escapou a Léa.
- O que você tem, meu amor?
- Nada, nada, eu lhe explicarei - disse ele, apertando-a contra si.
Eles só despertaram à noite, quando um empregado veio avisar que um oficial francês queria ver o senhor
Tavernier.
- Peça-lhe que tenha paciência. Procure minhas roupas limpas...
- Ei-las - disse Lien, entrando com os olhos abaixados, trazendo um traje de algodão branco cuidadosamente
passado.
- Preparei-lhe um banho.
- Obrigado, irmãzinha.
Ele se levantou sem esconder a nudez e deslizou para a água morna, que rapidamente se tingiu de vermelho.
Ajoelhada, com a ajuda de uma esponja grossa, Lien o lavou, atenta para não tocar nas feridas.
Saído do banho, ele envolveu o alto corpo magro num roupão espesso.
- Você quer que lhe faça a barba? - perguntou Lien.
- Não, vou fazer eu mesmo. Obrigado por tudo, irmãzinha.
- Não sou sua irmã! - respondeu ela com raiva. - Nunca mais me chame assim.
- Perdoe-me - disse ele, virando-se.
Uma vez de barba feita, François contemplou-se longamente no espelho. A brancura das faces e do queixo
contrastava com o restante do rosto, escurecido pelo sol e pelas intempéries. Como havia mudado! Como
estava envelhecido!
Lien acabara de prender o curativo que lhe cingia o tronco quando Léa entrou, nua e suja de dar medo. As
duas mulheres se encararam com desagrado. Perto de Lien, Léa parecia uma selvagem prestes a saltar sobre a
presa.
- Um oficial francês me espera - disse François. - Tome um banho e se vista. Eu a encontro logo.
Uma empregada apressou-se em limpar a banheira. Léa não queria isso; era nessa água que queria se banhar
para se embeber do sangue e dos fluidos do marido. Contudo, ela experimentou um bem-estar real ao se
estender no banho perfumado. Logo que fechou os olhos, o rosto de Kien lhe apareceu: ela pensou estar a
bordo do junco. Reabriu os olhos com um grito de raiva e, por um breve segundo, pareceu-lhe ver o rosto do
jovem mestiço no espelho.
- Estou ficando louca - disse ela esfregando a cabeça com força.
A empregada deixara um vestido numa cadeira, esquecendo a roupa de baixo. A fazenda fresca deslizou pela
pele úmida. Penteou os cabelos molhados e os torceu num coque. Com os pés nus, saiu. A noite estava
agradável. Tudo parecia calmo. Logo, François e ela partiriam para a França, para rever o pequeno Adrien. Um
ano! Havia um ano que o filho deles nascera... Ecos de vozes chegaram até ela, trazendo-a de volta à realidade.
Quando ela entrou na biblioteca, François, pálido e agitado, andava de um lado para o outro.
- É uma ordem, senhor Tavernier, o senhor tem de esperar o retorno do alto-comissário.
- Não tenho nada para dizer a ele!
- Isso não é uma opinião sua nem minha, se o senhor permite.
- Quero que a sua opinião se dane!
- Senhor...
- François, o que está acontecendo?
- Nada, querida, é que desejam nos reter em Hanói.
- Oh, não!
- Veja, não sou o único a querer sair deste país de merda.
- Senhor Tavernier... o senhor não me apresenta?
- Perdoe-me, perdi o hábito dessas mundanidades. Querida, apresento-lhe o capitão Lamarck. Capitão,
apresento-lhe a senhora Tavernier, minha mulher.
- Boa noite, senhora... A senhora é encantadora, muito encantadora.
- Boa noite, capitão. O senhor é muito amável. Então, quer que permaneçamos em Hanói? -
- Eu mesmo não quero nada, senhora. É o alto-comissário e o general Alessandri, comandante das forças
francesas do Norte da Indochina, que têm algumas pequenas perguntas a lhes fazer.
- A mim também?
- A senhora também, madame. A senhora circulou pelo
país, deve ter visto uma porção de coisas, e talvez pudesse nos dar informações sobre a agressão que vitimou
seu marido.
Léa cambaleou e ficou muito pálida.
- O que a senhora tem? Não se sente bem?
- Deixe-a, o senhor está vendo que ela não agüenta mais. Lien! - chamou François. Ajovem apareceu quase
imediatamente. - Leve Léa, por favor.
Já no quarto, Léa deixou-se cair na cama com a cabeça entre as mãos.
- Não é hora para chorar, você esteve a ponto de nos trair.
Léa levantou a cabeça com ar aborrecido.
- Traí-los? O que quer dizer?
- Você sabe muito bem. Não acha que já houve mortes suficientes nesta família? Quer que, ainda por cima,
Kien seja preso?
- Por que seria preso?
- Você não ignora a razão.
- Não, isso não é verdade!
- Sim. Ele a ama!... Para tê-la, ele é capaz de tudo.
- Como você, sem dúvida, para ter o homem que ama.
- Se houvesse a menor chance de ele me amar, sim!
Como era bela dizendo isso! Sim, ela mataria sem hesitar se François... Mas François amava Léa, e esse amor a
protegia.
- Não direi nada sobre Kien. Mas você pode me jurar...?
- Sim - interrompeu Lien. - Ele sabe que eu me mataria se... François também não pode saber...
Léa concordou, com um ar cansado.
- Tenho tanto medo, Lien, tenho tanto medo!
Emocionada mesmo sem querer, a jovem mulher aproximou-se de Léa e acariciou-lhe a cabeça inclinada. Esse
gesto!... Sua mãe também lhe fazia freqüentemente. Léa se levantou e jogou-se chorando nos braços de Lien.
Quando François entrou, ambas soluçavam, abraçadas. Ele fechou a porta devagar e retrocedeu.
- Então? - perguntou-lhe o capitão.
- Estão chorando.
- Reconheço que o momento foi mal escolhido. Não sei se o senhor é como eu, mas não suporto as lágrimas de
uma mulher. Duas, então, é demais! Vou deixar um de meus homens aqui, elas falarão com ele quando tiverem
terminado. Venha!
- Não podemos esperar a volta do alto-comissário?
- Não, isso nos fará ganhar algum tempo.
Foi no dia seguinte que François encontrou o alto-comissário, Léon Pignon.
- Deixe-nos sós - disse ele ao ordenança. - Sente-se, senhor Tavernier.
Durante alguns minutos, o alto-comissário leu o dossiê feito pelo serviço do capitão Lamarck, tomando
algumas notas. Depois largou o lápis, passou a mão na testa larga e calva, e disse com ar pensativo:
- Certamente, tudo o que se encontra nesse relatório é rigorosamente verdadeiro?
- Sim, senhor alto-comissário.
- O senhor está zombando de mim?
- Não, senhor alto-comissário.
- Quer me fazer acreditar que conversou longamente com Hô Chi Mii e Pham Van Dong, que circulou
livremente no país deles, que os vietcongues o libertaram, assim, pelos seus belos olhos? O senhor me toma
por algum idiota?
- Não, senhor alto-comissário.
- O senhor sustenta que o presidente o encarregou de encontrar Hô Chin Minh?
- Sim, senhor alto-comissário.
- E que realmente o encontrou?
- Sim, senhor alto-comissário.
- Então, deve poder me dizer onde?
- Não, senhor alto-comissário.
- Eu não acredito no senhor. Diz conhecer a região...
- Sem dúvida, senhor alto-comissário, mas eu estava de olhos vendados até chegar ao local do encontro, e, de
qualquer maneira, eles o abandonaram depois da minha partida.
- Como sabe disso?
- Eles me contaram, senhor alto-comissário, e isso era o que mandava a prudência.
- Sim, sem dúvida... E estavam muito armados?
- Não, senhor alto-comissário. Como lhe declarei, só dispunham de alguns fuzis ruins e de algumas
metralhadoras. Mas não acho que isso vá durar muito tempo.
- O que quer dizer?
- Que a China vai lhes fornecer armas. A vitória dos comunistas chineses vai obrigar o alto-comando a tomar
novas medidas. Fortemente armados, os vietcongues serão temíveis. Ainda mais que combatem em seu
território e pela sua independência.
- Independência, independência.., O senhor só fala nisso, como Leclerc e Sainteny!
- Foi a pedido deles que vim aqui na primeira vez, senhor alto-comissário, e sua análise da situação era a certa.
O exército está tendo todo dia essa triste experiência.
- Não gosto dessas afirmações derrotistas, senhor Tavernier.
- Eu preferia fazer outras, senhor alto-comissário.
Léon Pignon consultou mais uma vez o dossiê aberto. Ele parecia inquieto, indeciso.
- O que vou fazer com o senhor? - murmurou, como falando para si mesmo.
- Mande-me de volta para a França, senhor alto-comissário.
- Se fosse só por mim, eu o colocaria no primeiro avião, mas o alto-comando deseja ouvi-lo.
- E, então, o que estamos esperando? Vamos.
- Sim, vamos.
O encontro entre o general Blaizot, comandante do exército na Indochina, e François Tavernier foi
tempestuoso. Blaizot não gostava dos civis, principalmente dos que se diziam credenciados secretamente pelo
presidente da República com a bênção do general Leclerc...
- É fácil fazer os mortos falarem! - resmungou ele.
François cerrou os punhos, com vontade de socar o rosto daquele comandante de exército confortavelmente
plantado atrás de sua mesa.
- Senhor Tavernier, é só isso por hoje. Não saia de Hanói sem minha autorização.
- Certo, general.
Um jipe deixou François diante da porta da casa dos Rivière. Sentadas à entrada, Lien e Léa o esperavam. Elas
se dirigiram para ele ao mesmo tempo e o bombardearam de perguntas, sem esperar as respostas.
- Você acha que nos deixarão partir? Querem falar comigo?
- Achamos que eles não o libertariam mais.
- Perguntaram sobre Hai e Kien?
- Está com fome?...
- É a única pergunta sensata que me fizeram desde que voltei! Estou morto de fome - conseguiu dizer.
- Nós lhe preparamos uma boa refeição leve.
- É isso que vocês chamam de refeição leve? - exclamou François diante da mesa farta. - Tem até champanhe...
Depois da dieta vietcongue, vou ter uma indigestão! - acrescentou, abrindo a garrafa. - A saúde das duas
mulheres mais bonitas de Hanói!
- À sua saúde! - responderam elas a uma só voz.
Ajudados pelo cansaço, logo os três estavam bêbados e dormiram na grande cama do salão.
Na manhã seguinte, os empregados os encontraram enroscados uns nos outros, com um sorriso de felicidade
nos lábios.

Capítulo 2

Léa e Lien andavam pela rua de la Soie à procura de um bom tecido para fazer uma roupa
adequada para François. Não era coisa fácil: esse gênero de mercadoria desaparecera das lojas,
mas o velho Chang, que anteriormente vestia Martial Rivière, contara à filha que acabara de receber
de Hong Kong uma peça de excelente tela de algodão. A loja do alfaiate ficava no fundo de um
estreito corredor obstruído por pacotes e corpos adormecidos, que as duas mulheres foram
obrigadas a saltar para alcançá-la. Sentado, de pernas cruzadas, na mesa de trabalho, Chang ergueu
a cabeça e fez um sinal para que elas se sentassem.
- Como está tudo calmo... - observou Léa.
Mas lhe parecia que o chinês não estava à vontade; suas mãos tremiam, gotas de suor brilhavam na
testa pálida.
- Vamos embora, Lien - disse ela, levantando-se.
- Mas por quê?... Hai!...
Depois de um instante de surpresa, ela se precipitou nos braços do irmão, que acabava de surgir.
Rugas amargas riscavam- lhe os cantos da boca, sulcos profundos marcavam a testa, o olhar estava
cheio de tristeza.
- Como vão as minhas meninas?
- - Bem, mas você nos faz muita falta. Por que veio até aqui? É perigoso.
- Vim ver François.
- Ele está muito vigiado pelos franceses; todo dia o alto-comando o interroga; nós mesmas somos
constantemente seguidas.
Ele lançou um olhar em torno.
- Fique tranqüilo, nós nos livramos deles - disse Lien.
- Por que interrogam François?
- Esperam que ele indique os lugares onde esteve, mais precisamente o local do campo no qual vocês
se encontraram, aquele no qual ele disse ter feito contato com Hô Chin Minh. O general Blaizot se
recusa a acreditar nesse encontro - explicou Léa.
- Aconteceu mesmo? - perguntou Lien.
- Sim, tive a confirmação dele pelo comandante logo após a morte de Phuong, minha pobre mulher.
- De qualquer maneira, você não acredita que ele seja responsável pela morte dela? - disse Lien.
- É responsável, mesmo que não a tenha matado com as próprias mãos!
- Coi chisng, có lính tây dên
- Atenção, soldados franceses.
- cochichou o alfaiate.
- Nói vói François tôi se doi anh ta trong ba ngày o bà sông Hông. Anh ta se
hiêu.*
- Diga a François que o esperarei durante três dias na margem do rio Rouge. Ele compreenderá.
Hai afastou uma cortina e desapareceu no exato momento em que os soldados entraram. O alfaiate
chinês inclinou-se diante deles, com as mãos postas.
- O que posso fazer para os senhores?
Com um gesto brusco o oficial o afastou.
- Então, senhoras, se livraram de nós outra vez? Não é muito delicado, pois só estamos cumprindo
ordens. Este bairro é muito perigoso, principalmente para a senhora, madame.
- O senhor vê perigo por toda a parte, tenente. Deixe-nos tranqüilas, já somos bem grandinhas para
nos defender! - disse
Léa. Depois, dando as costas aos militares, ela dirigiu-se ao alfaiate: - Mostre-me essa fazenda.
O velho homem se apressou e desenrolou a peça.
- Quando o senhor pode passar para tomar as medidas de meu marido?
- A noite, se a senhora quiser.
- Está ótimo, nós o esperaremos. Até logo, senhor Chang. Até logo, senhores.
O estreito corredor estava agora deserto. Um soldado armado de metralhadora montava guarda. Elas voltaram a
pé, caminhando em torno do Pequeno Lago.
Lien transmitiu a François o recado de Hai.
- Eu irei - disse ele.
- Como você vai fazer? A casa está vigiada.
- Aproveitarei a visita do alfaiate.
- Vou com você! - exclamou Léa.
- Nem pense nisso. Você deve ficar aqui para enganá-los.
- Eu lhe peço, não vá!
François não lhe respondeu e se dirigiu a Lien:
- Compreendeu? Impeça-a de sair, confio-a a você. Entenda-se com o alfaiate: prenda-o o maior tempo possível,
dê-lhe uma de minhas roupas para que ele corte uma de meu tamanho. - Depois ele tomou Léa em seus braços.
- Não se aflija, não demorarei.
Aborrecida, ela se desprendeu dele.
Depois da partida, as duas mulheres ficaram silenciosas durante algum tempo.
- Você tem certeza de que seu irmão não lhe fará nenhum mal?
- Sim, conheço Hai, é um homem bom e justo. Vão conversar. São amigos desde a infância, existem laços muito
fortes entre eles; acredito que serão suficientes para acalmar Hai. Descanse, vou receber o senhor Chang.
Ao ficar sozinha, Léa andou de um lado para o outro no quarto, incapaz de ficar sentada em qualquer lugar. Um
leve arranhar na janela interrompeu seu caminhar. Imóvel, prestou atenção: o arranhar, que parara, recomeçou. Atrás do vidro estava Giau. Léa abriu a janela.
- O que faz aqui?
- Venha, seu marido está em perigo.
Léa pulou a janela e seguiu o aleijado.
Giau evitou a entrada principal e se dirigiu para uma sebe, da qual ele separou uns galhos, abrindo uma
passagem baixa pela qual ele se introduziu. Foi penoso para Léa segui-lo, pois ela se arranhou na passagem
nos braços e nas pernas. Um cyclopousse esperava diante da abertura. Giau içou seu corpo para dentro,
Léa se instalou ao lado dele.
- Di ra bà sông
- Siga para o rio.
- ordenou ele ao condutor.
- Agora vai me contar o que está acontecendo? - perguntou Léa.
- Os vietcongues prepararam uma armadilha para o seu marido.
- Hai sabe disso?
- Não, o doutor não sabe de nada, mas eles se utilizam dele.
- Acha que chegaremos a tempo?
- Espero. É preciso que você encontre o doutor antes do seu marido.
- Mas François está na nossa frente.
- Não, o cyclo que ele tomou recebeu ordem de seguir um caminho mais longo.
- Você pensa mesmo em tudo!
Seguiram em silêncio através das ruas desertas. De vez em quando, à beira de uma calçada quebrada, a
luminosidade do fogareiro de uma cozinha ambulante rompia a escuridão e percebiam-se algumas sombras
acocoradas, com uma tigela de sopa nas mãos. O cheiro do esgoto se tornava cada vez mais forte; o rio Rouge
estava perto. Ao longo das margens escarpadas, as cabanas de madeira, de chapa ou de papelão abrigavam
famílias inteiras. O choro de um bebê, o latido de um cão, o gemido de um
doente, o ronco de alguém que dormia eram ouvidos intercaladamente na noite. Pouco a pouco, os
casebres se espaçaram. Logo, eles chegaram ao fim do cais Clemenceau, entre o rio e o lago de
Truc Bach, perto da antiga fábrica de tabaco, cujas grades enferrujadas tinham sido arrancadas em
alguns lugares.
- Dàng lai. Dên doi chúng tôi sau nhà máy nuóc. Hay ân núpo dw3ng Bournn. Hay báo
nhung ngiW kia biêt nêu chúng tôi không 1v lai tnng haigiô nua. Doi tôio gôc dw)ng và dai
lô Grand-Bouddha '1'
Pare. Vá nos esperar depois da fábrica das águas. Esconda-se na rua Bourrin. Previna aos outros se nós não
voltarmos dentro de duas horas. Espere-me na esquina da rua com a avenida do Grand-Bouddha.
O cyclo se afastou.
- Siga-me... Abaixe-se...
Curvada, ela o seguiu. O solo juncado de detritos, com trilhos profundos, revelou-se cheio de ciladas.
Léa caiu duas vezes. Num dado momento ela não pôde conter um grito: um bando de ratos impedia
a passagem. Giau voltou atrás.
- Você faz mais barulho que um regimento de atiradores senegaleses! Quer que atirem em nós?
- Desculpe-me, é que não estou habituada a me arrastar na imundície - respondeu ela num tom
azedo.
- Certamente, nem eu.
Léa arrependeu-se de sua reflexão, depois encolheu os ombros.
- O que está esperando, vamos continuar?
- Estamos quase chegando.
Uma alta porta metálica fechava a entrada de um depósito. Sob a porta passava um fio de luz. De
repente, ela se abriu. Giau e Léa só tiveram o tempo de se esconderem na escuridão. Cinco homens
de bicicleta saíram e desapareceram. Outro ficou na soleira, fumando. Léa reconheceu Hai. Sem
pensar, ela avançou para a claridade.
- Ai dó? Tôi bán Dy**.
- Quem vem lá? Eu atiro!
- Hai, sou eu, Léa...
- Léa! O que faz aqui? Está louca!
- Preciso falar com você.
- Onde está François?
- Está chegando, mas seus camaradas lhe prepararam uma
emboscada.
- O que disse?
- É verdade, doutor - confirmou Giau.
- Quem é você?
- Ninguém, um amigo de Léa - respondeu o infeliz.
Hai voltou-se de novo para Léa:
- São esquisitos os seus amigos! Vá embora, não tenho nada a lhe dizer.
- Por favor, é preciso fazer alguma coisa. Vão matar François!
- Ainda bem; assim, não terei de fazê-lo...
- Mas me deixe ao menos falar com você!
- Por onde ele deve chegar? - perguntou ele a Giau.
- Pelo Grand Lac.
- Onde, segundo você, vai ser a emboscada?
- Na margem do lago de Truc Bach.
- Bem pensado: lá só há pântanos. Não tenho nenhuma chance de chegar lá antes deles.
- A não ser que eu consiga distraí-los.
- Como vai fazer? - perguntou Léa.
- Não se aflija, estou habituado, é meu papel bancar o palhaço. Sigam-me bem de longe.
- Somos loucos de confiar nesse mendigo - resmungou Hai.
- Tenho total confiança nele - disse Léa andando atrás dele.
Depois de deixarem a fábrica, seguiram durante algum tempo entre casas desmoronadas.
- Que lugar sinistro - murmurou Léa.
- Estamos quase chegando - cochichou Giau. - Esperem- me aqui.
Eles o viram desaparecer arrastando-se; logo o ouviram assobiar.
- Ele está louco! - resmungou Hai.
*..._ Alto!
- Não atirem, camaradas, sou apenas um pobre mendigo.
O facho luminoso de uma lanterna varreu o solo.
- Dúng lai!
- O que faz por aqui, verme?
- disse uma voz
- Estou indo para lá.
- Ding bán, các dông chí, tôi chi là môt ke an xin ngheà khô .
- Mày làm g o dây, thàng sáu bo?
- Tôi di dên kia.
- Chuyên g thê, Thu?
- Không có g, môt tên an xin di vê nhà hán.
- Dua hán dên dây... Tao biêt mây rôi... Môy di khoi hang ô cua mây o phô hàng Buôm khá
xa dây!
- Nhung tên an xin khác duôi tôi di. Tôi dói quá...
- Mây chon nhân khách rôi, bon tao không có dên môt nám com nguôi.
- Anh có thê cho xin diêu thuôc?*
- O que está acontecendo, Thu?
- Nada, um mendigo que volta para casa.
- Pare, conheço você... Está bem longe de seu buraco na rua das Voiles!
- Os outros mendigos me expulsaram. Estou com fome...
- Você escolheu mal seus fregueses, não temos nem uma tigela de arroz frio.
- Teria um cigarro?
O outro lhe jogou um embrulho vazio pela metade.
- Bây giô, cút di.
- Cám on, trôi se tra on anh.**
Agora vá embora.
- Obrigado, o céu o recompensará.
Sem ser notado, ele voltou e passou do local onde Léa e Hai estavam escondidos. Eles o seguiram a alguma
distância. Ao fim de alguns minutos, Giau parou e começou a assobiar. Mais ao longe, um assobio respondeu.
Giau correu para o meio da estrada, agitando o cigarro. O cyclo quase o atropelou.
- Di me!***
Filho da puta!
- exclamou o condutor.
François saltou do veículo, empunhando uma pistola. Apesar da noite escura, reconheceu a mulher e o amigo,
que foram até ele. Ele baixou o braço.
- Léa... Hai...
- Mais adiante, haviam armado uma emboscada para você
- explicou Léa, abraçando-se com ele.
- Ah, sim, e como você soube disso?
- Ela fala a verdade - disse Hai. - Eu estou aqui por acaso. Ela e seu amigo é que me preveniram. Mas, se tudo
isso não tem mais importância, de agora em diante é muito imprudente ficar mofando por aqui.
- O doutor tem razão - confirmou Giau, assobiando duas vezes.
Então a rua se encheu de criaturas que se poderia dizer saídas da imaginação de um autor de romances de
terror.
- Eis minha turma! - mostrou Giau com orgulho. - Eles ficarão de guarda enquanto o doutor e seu amigo
conversam. Agora que você está tranqüila, eu a levo para casa - acrescentou para Léa.
Ele fez um sinal, um cyclo se aproximou.
- Obedeça, minha querida. Eu lhe agradeço - disse François, estendendo a mão ao monstro.
Erguido nos cotos, Giau apertou a mão estendida.
- Espero que vocês continuem amigos - disse Léa aos dois homens quando subiu no pequeno veículo.
Pensativos, observaram-na afastar-se.
- Venha, há um pequeno templo que os monges abandonaram, ali. Ninguém vai lá, pois dizemos que o ma q u
* circula por aqui.
Seguidos à distância pelos mendigos, aos quais Hai fez um sinal para esperar, eles pararam diante de uma porta
baixa. Os arbustos e o mato haviam invadido o pátio do templo. O tanque desaparecia sob um manto de
nenúfares. Os galhos de uma árvore deixavam arrastar pelo chão os cachos de flores. O ar recendia a jasmim.
François sentou-se num banco meio escondido sob o musgo.
- Podíamos jurar estar no Jardim do Eden. Lembra-se de nossos sonhos de jardins encantados? - perguntou ele.
- Lembro, mas já faz muito tempo. Nessa época éramos inocentes e... amigos.
- Não tive nenhuma culpa na morte de Phuong. Teria dado minha vida por ela. Thévenet acreditou que ela ia
nos denunciar.
- Ela o teria feito, odiava os franceses. Estava profundamente engajada na luta contra o colonizador e até
acreditava no futuro do comunismo. Sem eu saber, seu pai a tinha encarregado de missões importantes. Ela, tão
delicada, tinha se tornado de uma dureza... eu não a reconhecia mais.
Com a cabeça entre as mãos, Hai se deixou cair, soluçando, junto do amigo. Depois de uma breve
hesitação, François passou o braço em torno de seus ombros. Durante muito tempo os dois homens
permaneceram abraçados.
- Perdoe-me, não é digno de um combatente - disse Hai se afastando.
- Não há vergonha em chorar a morte de um ente querido. Você me perdoa, Hai?
- Com o tempo, espero esquecer que você causou a morte dela. Agora, vá. Vou procurar saber
quem deu a ordem para lhe armar uma emboscada. Léa e você devem deixar a Indochina. Este país
não precisa mais de vocês e ambos estão em perigo aqui. Saiam rápido. Adeus!
- Adeus - disse François, afastando-se.
Depois parou, virou-se e voltou correndo para Hai, a quem abraçou fortemente:
- Até logo, irmão.
Apesar da hora tardia, Léa e Lien não estavam deitadas. Lien reagira com raiva à saída da jovem.
- Você é louca! Que arrisque a própria vida, isso é com você, mas a de François, a de Hai... você
não tinha esse direito!
- - Tudo correu bem. Se eu não seguisse Giau, talvez François estivesse morto neste momento.
- Talvez esteja agora - replicou Lien com uma voz pungente.
- Oh, cale-se, vai lhe dar azar!
Fora, houve ruído de vozes. Lien abriu a porta. Três soldados franceses e o capitão Lamarck
cercavam François.
- Estes senhores não querem acreditar que eu estava bebendo com uns amigos - disse ele com voz
pastosa.
- Isso são horas de voltar para casa! - gritou Léa, fingindo raiva. - Obrigado, senhores, vou deitá-lo...
- Mas, senhora...
- Boa noite, capitão. É tarde. Nós nos veremos amanhã de manhã, se o senhor quiser.
Com a porta fechada, François estourou de rir.
- Bravo! Viu a cara do pobre Lamarck?
- Não sei o que isso tem de engraçado! Lien e eu estávamos muito inquietas.
- Agora acabou... Vamos dormir.
Alguns dias se passaram em interrogatórios para François e para Léa, para que pudessem
retornar à França. Uma manhã chegou uma carta de Françoise:
Minha querida irmãzinha,
Seu pequeno Adrien vai completar um ano. Há alguns dias está andando, tem quatro dentes e
um temperamento alegre; é uma criança adorável; todos, em Montillac, estamos loucos por
ele. Todos os dias falo com ele de você e do pai. Quase todas as manhãs, ele diz ao acordar:
"Mamãe, viajou?" Volte rápido, você faz muita falta a ele e a todos aqui. Principalmente a
Charles, que cresceu muito. Não vai reconhecê-lo de tão mudado; ele só sonha em
ircombaterna Indochina para trazer você de volta para casa.
Reencontrou François? Sobre o que se passa aí só temos as informações da TS.E e dos
jornais, que contam muito pouco. Soubemos pelo padre Henri que Jean Lefevre havia
encontrado seu marido e a vira rapidamente em Hanói. Ele pôs suas terras à venda; você
sabia?
Aqui, tudo vai bem; as colheitas da uva de 49 serão excepcionais, segundo se espera, está
previsto um ano muito bom. Recebemos a visita dos primos de Bordeaux. Não perderam nada
da arrogância nem aprenderam nada com a guerra.
Todos se juntam a mim para enviar sua afeição e esperam com impaciência sua volta e a de
seu marido.
Be/QS. Sua irmã,
Françoise
Léa chorou pensando em Adrien. Com orgulho, mostrou a Lien as fotos do menino anexadas por
Françoise à carta.
- Que criança bonita! - disse ela. - Como se parece com François.
Foi no dia seguinte que Lien soube do assassinato da mulher e da filha do irmão Bernard pelos
vietcongues.
- Pensei que estivessem na França! - exclamou François.
- Bernard quis passar por Saigon para acertar alguns negócios com o Banco da Indochina. Foram
presos na estrada do aeroporto. Depois, suas pistas foram perdidas... Bernard tinha sido conduzido a
Pham Tiet. As autoridades francesas encontraram os corpos mutilados de Geneviève e de Mathilde
jogados à beira de uma estrada...
A horrível notícia perturbou Léa. Ficava com a impressão de que os matadores estavam
emboscados por toda a parte; revivia os horrores da ocupação alemã. Os pesadelos voltaram. Todas
as noites, ela acordava gritando.
- Quero ir embora! - soluçava.
O próprio Jean Laurent, diretor-geral do Banco da Indochina, veio apresentar pêsames a Lien e
assegurar que tudo seria feito para reencontrar a pista de Bernard. Ele aproveitou a visita para
conversar longamente com François. Durante essa conversa lhe contou que tudo estava acertado
com o alto-comando e que ele receberia logo a autorização para deixar a Indochina. Laurent
acrescentou que ficaria feliz de revê-lo em Paris, onde poderiam falar livremente sobre o futuro.
No mesmo dia, os avós maternos de Hac e Nhi vieram buscar os netos. Lien os viu partir com
grande dor. Parecia-lhe que a família se desagregava pouco a pouco. François insistiu em que ela
viesse com eles para a França. Léa se juntou a ele - sem sucesso.
- Meus irmãos podem precisar de mim, tenho de ficar aqui, na casa de meus antepassados.
Na véspera da partida, Giau trouxe para Léa uma carta de NhuMai, a jovem violinista:
Querida Léa
Eu queria uma vez mais lhe agradecer a ajuda. Graças a você, posso servir meu país. A
vida na floresta é muito dura e os exercícios cansativos, mas descanso tocando para os
camaradas. A música nos ajuda a esquecer as duras horas passadas.
Eu soube o que aconteceu com a mulher e a filha do doutor Hai. Aqui, ficamos todos
revoltados com esse drama, e posso lhe assegurar que nenhum de nós teria cometido ação
tão monstruosa. Transmita a Lien minhas sinceras e respeitosas condolências.
Não sei se nos reencontraremos um dia. Mas, quando a paz voltar seria o meu maior
desejo.
Fiquei muito feliz em conhecê-la, e tenho por você afeição como a uma irmã.
Um bejo de quem gosta muito de você,
Sua amiga,
Nhu-Mai
Giau ofereceu a Léa um pequeno buda de jade.
- Ele lhe trará felicidade - disse ao entregá-lo.
Léa se abaixou e examinou longamente a pequena estatueta.
- Prometo-lhe guardá-la para sempre.
Ela se inclinou outra vez e deu um beijo na face suja do mendigo, que deu um salto para trás, como
se o houvessem ferido. De cabeça levantada, encarou-a com os olhos vermelhos, lacrimejantes;
com a mão deformada apalpava a face.
- Você me beijou... - disse ele com voz incrédula. Afastou- se, arrastando-se para trás, mas depois
parou: - Lembre-se que minha vida lhe pertence.
- Eu me lembrarei. Cuide-se. Você poderá vir aqui procurar comida, Lien está de acordo.
Contemplando a cena, François disse a Léa com ironia:
- Eu me pergunto se não preferia o jovem argentino a seu novo admirador vietnamita! Como se
chamava o rapaz?
- Ernesto!
Encarregado de cuidar, segundo ele, da segurança dos dois, o
capitão Lamarck desejara acompanhar o senhor e a senhora
Tavernier ao aeroporto. Apesar de toda a coragem, Lien desmaiara
nos braços de François. Ele a confiara aos cuidados dos empregados
domésticos e desaparecera antes que ela recobrasse a consciência.
Com toda a alegria pela partida, Léa, que entrava num
avião pela primeira vez, não se deteve em adeuses melancólicos.
- Eu os invejo - o capitão apertando a mão de Tavernier.
- Diga bom dia a Paris por mim!
Com o nariz colado ao postigo, a mão apertada na do marido,
Léa via sem pena afastar-se o solo indochinês. Quanto a François,
tinha mais uma vez a impressão de deixar seu país e se condenava
por abandonar os amigos. Via afastarem-se o rio, os arrozais,
as florestas e as montanhas com uma tristeza que o fez fechar os
olhos. "Eu voltarei", jurou a si próprio.

Capítulo 3

O pequeno Adrien soltava gritos quando François o levantava para
beijá-lo. Ressabiado, este o recolocava delicadamente no chão, e
o menino corria a se refugiar nas saias de Françoise.
- É normal - dizia ela-, não o conhece. Daqui a dois dias será mais fácil.
Léa também não tinha melhor sorte. Era preciso que Charles lhe dissesse e repetisse: "É sua mãe",
para que o menino se aproximasse e se atrevesse a tocá-la. Perturbada, Léa o deixava fazer, atenta
para não assustá-lo. Encolhido em seus braços, Charles havia escondido o rosto no pescoço delicado
e perfumado, impregnando-se do perfume como se faz com uma flor. Adrien, desejando imitar o
amigo, inclinava-se por sua vez para o pescoço de Léa, dizendo:
- Mamãe... bom...
Feliz, Léa apertava a si o corpo do filho. François a contemplava, radiosa e bela, com as duas
crianças apertadas ao pescoço. Já nessa noite, Adrien, encarapitado nos ombros do pai, não queria
mais se separar dele.
Durante a noite, Léa acordou presa dos habituais pesadelos.
Procurando consolo, voltou-se para François, mas metade da cama
estava vazia. Ela se levantou. A lua clareava o cômodo; fora, o vento
vergava os altos ciprestes que limitavam a propriedade. Léa empurrou a porta do quarto do filho. François
estava lá, inclinado sobre o pequeno leito, observando o filho dormir. Ela se aproximou devagar e lhe pôs a
mão no ombro. Ele se voltou; o rosto estava radiante de alegria e de orgulho. Havia muito tempo ela não o via
assim tão alegre. Ele a apertou nos braços.
- Obrigado, querida. Que filho lindo você me deu! Perdoe- me por tê-la privado tanto tempo dele!
Léa estremeceu.
- Venha, você vai ficar com frio.
Fizeram amor com uma ternura diferente. Adormeceram ao amanhecer.
No dia seguinte, um telegrama de Paris solicitava ao senhor Tavernier que se apresentasse sem demora no
Matignon a pedido do presidente do Conselho, Georges Bidault.
- O que esse chato quer comigo? - resmungou François.
- Você é obrigado a ir? - perguntou Léa.
- Infelizmente, sim!
Entretanto, ele demorou e só se apresentou uma semana depois na rua de Varennes. Após vinte minutos foi
recebido pelo chefe do governo.
- Sente-se, senhor Tavernier. O senhor fuma?
François pegou um cigarro na pequena caixa estendida por Georges Bidault.
- Obrigado, senhor presidente.
- Então, senhor Tavernier, recebeu uma missão oficiosa do presidente da República...
- Sim, senhor presidente.
- Coroada de sucesso, pois se encontrou longamente, parece, com nosso adversário, o senhor Hô Chin Minh.
- Encontrei-o efetivamente, senhor presidente, e falei com ele a respeito dos desejos do senhor Vincent Auriol;
mas sem sucesso.
- Não lhe pareceu desejoso de negociar?
- Não, senhor presidente; está mais decidido do que nunca a continuar a guerra.
- Tem os meios para isso?
- Sim, senhor presidente, ainda mais que a China e a Rússia reconheceram seu governo. Vai ter o poderio
chinês e o armamento soviético como aliados.
- A situação lhe parece crítica sob esse aspecto?
- Está desesperadora, senhor presidente. Se tivesse estado lá, teria a mesma opinião que eu.
- Mas essa não é a do alto-comando.
- Sem dúvida ele está mal informado.
- O que recomenda?
- Em primeiro lugar, permitir ao povo vietnamita definir- se pelo voto, como está previsto nos acordos de 6 de
março de 1946 assinados pelo general Leclerc...
- Mas essas eleições colocarão os comunistas no poder, apesar das concessões feitas ao imperador Bao Dai...
- Sem dúvida. De qualquer maneira, eles tomarão o poder. Ao menos se evitariam centenas de milhares de
mortos.
- Não podemos aceitar o aumento da influência comunista nessa parte do mundo.
- Pelo menos, senhor presidente, seja realista: depois da vitória de Mao Tsé Tung, os comunistas dominam a
política do Sudeste da Ásia.
- Devemos impedir que se estenda essa lepra vermelha!
- É um pouco tarde, senhor presidente. Sem a União Soviética, teríamos ganhado a guerra? Idealizado por uma
propaganda hábil, o comunismo sabe se tornar atraente aos olhos dos povos miseráveis ou colonizados.
Observe, em nossos países, ditos civilizados, a atração que ele também exerce, notadamente entre os jovens
intelectuais. Depois da Ocupação, o retorno ao poder de homens que participaram ou estiveram
comprometidos com o colaboracionismo afasta uma juventude que tem necessidade de um ideal diferente do
dos pais. O comunismo propõe amanhãs radiosos, igualdade para todos, ajuda à humanidade. Isso é excitante,
quando se tem vinte anos! - exclamou em tom de zombaria.
Georges Bidault não perdoou a ironia.
- Isso tudo são utopias! Se o senhor tivesse vinte anos, faria essa escolha?
- Talvez sim, senhor presidente.
- O senhor é comunista?
- Não, e não tenho mais vinte anos!
- Quais são seus projetos, senhor Tavernier?
- No momento, ocupar-me de minha mulher e de meu filho, ver como estão meus negócios, e recomeçar a
trabalhar.
- Eis um programa que não se adequa ao homem de ação que o senhor é.
- Há mais de dez anos, participei de combates e arrisquei numerosas vezes minha vida. Agora, que sou pai,
tenho outras responsabilidades.
- Então, senhor Tavernier, deixo-o com suas novas responsabilidades. Mas não tenho dúvida: daqui a alguns
meses, o senhor estará de novo impaciente pelo desejo de aventuras.
- Vamos ver, senhor presidente.
Georges Bidault lhe estendeu a mão e o acompanhou até a porta do gabinete.
François Tavernier saiu mais calmo do gabinete do presidente do Conselho do que saíra do do ministro do
Exterior, alguns meses antes. Quando estava andando pelo bulevar des Invalides, um homem esguio e elegante
o chamou.
- Tavernier!
François voltou-se.
- Sainteny! Que prazer em revê-lo! Decididamente, toda vez que deixo Bidault eu o encontro. Só falta Mendès
France...
Os dois homens apertaram as mãos com muita satisfação.
- Então, e a temporada na Indochina?
- Difícil, muito difícil.
- Você encontrou meu velho amigo Hô Chin Minh?
- Sim. Foi graças à amizade que ele tem por você e à estima que tem pelo general Leclerc que me recebeu,
embora doente.
- Que impressão lhe causou?
- É um patriota, um comunista convicto, decidido a nos combater até o fim. A seu lado encontrei um homem que me impressionou muito: o senhor Phan Van Dong. É um
adversário duro.
- Eu o encontrei quando da vinda do presidente Hô Chin Minh em 1946, ele era o chefe da delegação vietnamita
nos acordos de Fontainebleau. É um grande inimigo da França, mas um homem correto. Você esteve com
Pignon? - perguntou Sainteny.
- Pareceu ser tão mole quanto seu corpo enorme.
- É engano seu, é um bom funcionário da República.
- Eu queria acreditar em você, mas ele está deslocado lá. Era preciso alguém com outra têmpera, que sonhe com
as conquistas e capaz de ter grande autoridade sobre o exército.
- A descrição que você faz é de Leclerc...
- Sim... Sem dúvida... Você o reencontrou?
- Com muita freqüência. Sua perda é irreparável para a França.
- Eu pensei muito nele no momento da morte de Léon Blum. Eles não se pareciam, mas tinham em comum o
sentido da grandeza da França.
Os dois homens andaram alguns instantes em silêncio.
- Eu soube com profundo alívio que a senhora Tavernier conseguiu encontrá-lo. Que mulher obstinada! Nada
pôde convencê-la a ficar. Apresente-lhe minhas homenagens...
- Não me esquecerei disso. Ela atualmente está em Montillac, junto do nosso filho. Espero que enfim ela possa
ter um pouco de descanso. E você, o que anda fazendo?
- Entrei para os negócios, seguros...
- E a política?
- Não quero mais nem ouvir falar. E você, o que está pensando em fazer?
- Ocupar-me de Léa e do meu filho. Mais tarde, verei se mantenho ou liquido a empresa da família em Lyon. Se
passar por Bordelais, venha nos visitar. Terei sempre prazer em conversar com você mais longamente sobre a
Indochina, que nós amamos.
- Não quero mais ouvir falar da Indochina - respondeu Jean Sainteny com voz amarga.
Depois de algumas banalidades, despediram-se.
François voltou a Montillac, para o aniversário de Adrien, a quem ele deu uma caixa gigante de Meccano.
Françoise caçoou delicadamente dele.
- E um presente para um menino de dez anos.
- Eu não sabia... - disse ele em tom contrariado.
Diante de seu ar penalizado, Françoise e Léa riram muito. Charles veio em sua ajuda.
- Dê para mim, tio François, eu brincarei até que Adrien cresça!
- Dou para você; comprarei outro para ele quando tiver idade para brincar. Enquanto esperamos, brincaremos
nós dois.
- Oh, sim! - gritou Charles abrindo a caixa.
Logo, o tapete da sala estava coberto de peças azuis e vermelhas, que eles olhavam perplexos. Alain os tirou
do embaraço:
- Eu jogava isso muito bem...
Durante a tarde, os três se divertiram colocando as peças no lugar. A chamada para o jantar tirou-os da
brincadeira, com dificuldade.
Pelo aniversário do nascimento do filho, François deu a Léa um belo anel, de rubis e diamantes.
- Obrigada - disse ela. - Também tenho um presente para
você.
Ela cochichou-lhe na orelha.
- Não - exclamou ele.
- Sim!
- Léa, Léa, minha querida... - disse ele, tomando-a nos
braços.
Ele correu apertando-a nos braços até a varanda. A noite caíra, podiam-se ver as luzes de Langon; num plano
mais abaixo, a massa sombria dos troncos enegrecidos. O céu estava claro; algumas estrelas já brilhavam.
- Que belo presente, meu amor! Estou feliz como nunca. Obrigado, querida... Mas você está tremendo?
- Estou com um pouco de frio.
- É verdade, está sem agasalho, que idiota que sou!
Tirou o paletó e o pôs nos ombros de Léa, que ele conduziu para a casa iluminada. Ela o forçou a parar:
- Veja - disse ela -, observe minha casa, ela só ficará em paz quando voltarmos. Ela me faz pensar em mamãe, que
nos esperava nas noites de inverno, diante da soleira. Mamãe não gostava do inverno, ela só ficava tranqüila
com a porta fechada e as filhas e a família dentro de casa. Sendo filha dos trópicos, estava sempre gelada, a
casa ficava superaquecida. Papai resmungava, dizia: "Sufoca-se! Esse calor nos torna anêmicos!" Vivíamos
entre o calor e o frio, papai abrindo as janelas, mamãe as fechando. Felizmente ela não viu a parte mais difícil da
guerra, morreria de frio. Pobre mamãe, ela me faz tanta falta... Veja, eu não ficaria espantada de vê-la surgir,
trazendo um xale e me dizendo: "Léa, você é louca de sair sem agasalho, está se arriscando muito!"
- Venha rápido! Ela estava com a razão: você vai ficar doente, meu filho e você.
No jantar, Léa anunciou a todos que esperava um filho.
- Será uma menina - disse Ruth, categoricamente.
- Então seu nome será Camille - falou Léa suavemente.
Uma profunda emoção se apossou dos convivas. A figura delicada de Camille pairou na sala de jantar. Charles,
sentado perto de Léa, tomou-lhe a mão:
- Ela será minha mulher, mais tarde. Todos riram, menos Charles e Léa.
Camille nasceu em 15 de agosto de 1950, no momento em que os sinos batiam o fim da missa nos carrilhões de
Verdelais, de SaintMacaire e de Langon.
- É uma menina! É uma menina! - gritou Françoise correndo para François, que fumava andando pela varanda.
- Como está Léa? Sofreu muito, não é?
- Sim, mas agora acabou. Venha vê-los.
Ao pé da cama da mulher, François quedou-se, emocionado e confuso. Como estava pálida! E com olheiras!
- François - murmurou ela.
Ele se aproximou, acariciou seus cabelos úmidos, despenteados.
- Não fale, meu amor, descanse.
- O que você achou dela?
- Não sei...
- Como é que não sabe? - disse Léa erguendo-se e retomando as forças.
Então ele notou, perto dela, um pequeno fardo se mexendo. Inclinou-se, removeu um pano fino e
descobriu a mais encantadora das criaturas. Boquiaberto, encantado, ele não conseguia tirar os olhos
do rosto minúsculo.
- Como se parece com você!
- Éo retrato da mãe - confirmou Ruth, tomando o bebê, que colocou nos braços do pai.
- Meu Deus, como é pequena... Posso deixá-la cair!
- Não, você não é homem de se deixar impressionar por três pequenos quilos de carne...
- Por favor, Ruth, pegue-a.
Ruth ficou com pena dele e lhe tomou o pequeno fardo.
- É o retrato da mãe... Espero que não tenha o mesmo gênio!
- Espero que tenha - disse François sentando-se na beira da cama. - Estou satisfeito. O que você
deseja?
- Em troca?... Jóias, muitas jóias... Vestidos, muitos vestidos... Não, não quero nada disso: quero que
não nos separemos nunca os quatro. Nunca mais!
- Estão lhe chamando ao telefone... - disse Alain, entrando.
- Alô, Tavernier?...
Era a voz de Sainteny.
- Bom dia! Encantado de ouvi-lo, principalmente num dia como hoje... Minha filha acaba de nascer
- Parabéns. Apresente meus respeitos à senhora Tavernier.
- Eu lhe agradeço. A que devo a honra de ouvi-lo?
- Tem notícias da Indochina?
- Não mais que você, sem dúvida. Meu amigo, o doutor Rivière foi ferido no ataque a Dong Khé.
Passou alguns dias em convalescença em Hanói, na casa da irmã Lien. Ele me escreveu de lá e me
contou que o irmão Bernard entrou novamente para o exército francês, no qual se mostrou de
grande crueldade com os
vietcongues que lhe caíram nas mãos. Soube o que aconteceu com a mulher e a filha dele?
- Sim, estou a par... Fala-se muito, nos corredores da Assembléia, da provável nomeação de Lattre
para o posto de alto- comissário...
- Fala-se também em nomeá-lo para o comando do exército.
- Sim, é um homem dessa envergadura que é necessário lá. O que você acha sobre os
acontecimentos na Coréia?
- Nunca o mundo esteve tão perto de uma terceira guerra mundial. Os alemães esperando uma
ofensiva soviética. A França com um novo governo. As lojas de alimentação devastadas, os
particulares estocando gasolina até na banheira, e, durante esse tempo, os alpinistas franceses
chegaram ao alto do Anapurna, no Himalaia. É bonito a bandeira tricolor flutuando no teto do
mundo, a mais de 8 mil metros de altitude. Isso custou alguns dedos e orelhas congeladas...
- Não tenho certeza de se Maurice Herzog compartilha sua opinião quanto ao assunto da perda dos
dedos do pé! A mistura dos temas está confusa...
- Assim gira o mundo. Por que me faz todas essas perguntas sobre a Indochina? Eu acreditava que
isso não o interessasse mais. E você ainda não me disse a que devo o prazer de seu telefonema.
- O general de Lattre me chamou. Falei de você, do seu conhecimento dos problemas daquele país.
- Ah, não! Você é generoso demais; não vejo em que poderia ajudar de Lattre se por acaso ele fosse
nomeado para a Indochina.
- Vamos ver. Meus respeitos à sua mulher. Até logo, Tavernier...
Charles e Adrien disputavam o privilégio de empurrar o carrinho de Camilie.
- É minha irmã! - gritava um.
- É minha noiva! - berrava o outro.
François e Léa tinham dificuldade para que eles se entendessem.
Camille era um bebê calmo e glutão, que Léa cedo teve de renunciar a alimentar, por falta de leite. A
maternidade a embelezara. Nunca estivera tão bonita, desabrochara tanto!
Uma noite em que passeavam pela colina de Verdelais, mais de um mês após o nascimento de Camille, François
tomou Léa com delicadeza na relva, sob um carvalho. Um prazer ao mesmo tempo doce e violento envolveu a
jovem mulher. Seus gritos foram logo abafados pelos beijos do marido. A lua clareava o corpo semidesnudo de
Léa, na posição impudica em que a havia deixado o prazer.
Acima dos amantes, as três cruzes do calvário pareciam protegê-los. Eles adormeceram. Um vento leve os
despertou. Ao longe, para os lados de Landes, alguns relâmpagos riscavam o céu.
- Vai haver uma bela tempestade aqui - constatou Léa.
- Regressemos.
- Não, quero ficar. Adoro a tempestade. Quando ouço o trovão, tenho toda a sorte de desejos.
- Pequena pagã!
Os relâmpagos se tornaram mais numerosos, o ronco do trovão cada vez mais perto. Um golpe violento
estremeceu o solo.
- Esse raio não caiu longe.
Logo, grossas gotas de chuva morna começaram a cair. Os relâmpagos se sucediam, brancos, violeta, verdes,
amarelos... A cada um deles o campo surgia, baço. Léa se levantara e corria sob a chuva, braços e rosto
erguidos. François seguia a silhueta dançante. "Como é bonita!"
- Tenho cinco anos!... Tenho dez anos!... Tenho quinze anos!... - gritava ela, girando.
Ela deslizou sobre a terra molhada. François arremessou-se a ela.
- Você se machucou?
O riso de Léa, um riso alegre, o tranqüilizou.
- Quando era pequena, nos dias de tempestade, ficava insuportável. Papai dizia que era preciso me amarrar.
Apesar de sua vigilância e da de mamãe, eu conseguia sempre escapar para o jardim e correr para as vinhas. Lá,
dançava sob a chuva, gritando
canções ou cânticos. Algumas vezes, Mathias vinha se juntar a mim, mas eu lhe dava medo. Como um bom
camponês, ele temia a tempestade. Dizia que eu era uma feiticeira e que na Idade Média teriam me queimado.
Gostava muito da idéia de ser uma feiticeira. Eu me esgueirava entre as parreiras. Muito tempo depois me
encontravam dormindo, coberta de lama, numa valeta, com a boca cheia de terra... Sempre adorei o gosto da
terra. Você não?
Juntando o gesto à palavra, ela levou um punhado de barro aos lábios. François a observava, tão bonita
apesar dos cabelos escorridos pela chuva, do rosto sujo de lama, inquietante e desejável. Léa percebeu o
efeito que causava nele. Desabotoou lenta- mente o corpete do vestido e, pegando os seios pesados com as
palmas das mãos, esfregou-os no solo antes de os entregar a ele.
Os lábios de François se apoderaram de um mamilo, que ele mordeu. Sua boca se encheu de um sabor acre de
terra, de leite e de sangue misturados. Ela gritou:
- Com mais força... Com mais força!
Ele se deixou cair sobre ela, torcendo os seios túrgidos. Com brutalidade, abriu as pernas de Léa e enfiou um
punhado de lama no sexo aberto.
- Você gosta da terra, hem, sua putinha? E aí, também gosta?
Eles ficaram imóveis durante muito tempo sob a chuva morna, que lavou seus corpos manchados.
Os dias que se seguiram foram os de dois animais no cio. Faziam amor toda vez que eram tomados pelo desejo.
Mais de uma vez, foram surpreendidos por Alain, Françoise ou Ruth, que se retiravam, embaraçados. Tinha-se
a impressão de que queriam recuperar o tempo perdido. Quando não estavam fazendo amor, ocupavam-se dos
filhos e não deixavam de os contemplar. François, louco pela filha, não suportava o menor choro da menina.
Logo que ela chorava, tomava-a nos braços, apesar das censuras de Ruth, que dizia:
- Se continua assim, senhor François, ela vai se tornar tão geniosa quanto a mãe.
- Está dizendo bobagens, querida Ruth; essa criança precisa de carinho. Se chora, é porque está com medo, e não quero que tenha medo! Sofro bastante
quando Léa tem pesadelos; não quero isso para minha filha.
Quanto a Léa, precisava conviver com a suscetibilidade de Charles, que estava com um pouco de
ciúmes de Adrien. Mas soube fazê-lo compreender que ele era para ela como um filho. Assim, o
menino fazia com seriedade o papel de mais velho e não parava de dar conselhos ao caçula, que só
fazia o que lhe dava na veneta.
Era a felicidade reencontrada que uma chamada telefônica veio de repente perturbar.
- Alô, Tavernier?
- Sim, quem fala?
- De Lattre.
- O general?
- Sim, grandessíssimo idiota.
- Perdão, general.
- Você está bem aí na sua Gironda?
- Sim, general.
- E sua mulher?
- Vai bem, general, agradeço-lhe.
- E seus filhos?
- Minha filha acaba de nascer, general.
- Parabéns, Tavernier. Esteja amanhã em meu escritório, 4 bis, bulevar des Invalides. Preciso de
homens como você.
- Mas...
- Até amanhã, Tavernier.
François contemplava o telefone com ar aturdido. Era uma brincadeira! E de mau gosto... Ele
desligou com violência... Uma brincadeira?... Como todos, ouvira dizer que o general de Lattre seria
nomeado comandante das Forças Armadas na Indochina. Mas ainda não o era...
O telefone tocou novamente. Ele atendeu.
- Alô, o senhor Tavernier, por favor?
- Sou eu! - respondeu falando alto.
- Eu lhe passo o presidente Bidault.
A voz do idoso chefe do governo chegou até ele:
- Tavernier?
- Sim, senhor presidente.
- Falou com de Lattre?
- Ah, então foi o senhor...
- Eu lhe disse que o senhor não ficaria muito tempo se ocupando de seus negócios...
- Não há possibilidade de eu retornar para lá!
- É seu dever, senhor Tavernier. A França precisa de homens como o senhor.
- Pare, por favor, poupe-me essa lisonja! A França não precisa de homens como eu. Precisa de
paz!...
- O senhor pode contribuir para que se dê essa paz...
- É muito tarde.
- É preciso ao menos tentar...
- Em 45-46 é que se deveria ter tentado tudo, senhor presidente. Mas nessa época o senhor
pensava de outra maneira.
- Senhor Tavernier!
- O senhor Pleven, o atual presidente do Conselho, é da mesma opinião?
- Sim, e todos, como os senhores Letourneau, Queuille, Mitterand...
- Não o conheço!
- É o atual ministro do Ultramar.
- Eu lhe desejo bastante coragem.
- O que o senhor respondeu ao general?
- Ele não me deu tempo de responder.
- Isso não me espanta. Quando lhe falei do senhor, ficou entusiasmado.
- Agradeço-lhe o elogio.
- Quando o espera?
- Amanhã.
- Ele tem pressa em sua tarefa. Acho que o governo procederá bem dando-lhe plenos poderes na
Indochina. Até logo, senhor Tavernier! Meus cumprimentos à senhora Tavernier.

Capítulo 4

François Tavernier foi recebido pelo novo presidente do Conselho no mês de outubro de 1950. René Pleven
era quase tão alto quanto François. De fleuma britânica, esse robusto bretão trajando um sóbrio terno preto era
dos que pensavam que o assunto indochinês estava decididamente mal encaminhado e valia mais a pena sair
com o menor desgaste possível.
- O presidente da República me deu a conhecer a missão que lhe confiou. Penso que é seu dever voltar para lá.
- O que disse?
- Que a senhora Tavernier e seus filhos poderiam acompanhá-lo, se o senhor quisesse.
- É uma loucura.
- Por que, senhor Tavernier?
- Aquele país está em guerra, uma guerra total contra os franceses. Todo dia cidadãos franceses são
assassinados pelos vietcongues diante da indiferença geral. Eu mesmo, sou procurado por eles...
- Com o general de Lattre, não terá nenhum problema. Quando deverá encontrá-lo?
- Daqui a pouco.
- Tenho certeza de que ele saberá convencê-lo. Antes de tudo, trata-se de saber o que são realmente os
vietcongues. É um movimento composto de patriotas convictos que lutam pela independência, ou constitui um
movimento interposto entre o nosso e outros países, os quais, para a realização de um grande projeto, têm
necessidade de fixar na Indochina o máximo de forças? A resposta só pode ser dada pelos próprios
vietcongues.
- Se me permite, senhor presidente, posso lhe dar uma parte da resposta: o vietcongue é constituído de
patriotas convictos e de membros do Partido Comunista, também convictos, O problema no Sudeste da Ásia é
mais político que militar. Se bem que real, mas não determinante, a ajuda da China impede uma vitória rápida de
Hô Chin Minh. Tal vitória permitiria efetivamente aos vietcongues libertar-se da tutela chinesa. A China só
colocará os vietcongues em situação de ganhar quando o tiver colonizado inteiramente, e I-Iô Chin Minh
sabe disso. Por seu lado, os Estados Unidos se comportam com a França da mesma maneira. Sua ajuda militar à
Indochina é dada num ritmo que mantém a França em situação de pedinte. O problema indochinês tira do
governo francês toda a liberdade de decisão...
- Senhor Tavernier!
- ...assim como a China, os Estados Unidos e alguns meios franceses se dedicam a prolongar a guerra do Vietnã
na esperança de assegurar a vitória... e o poder... para seus protegidos. Então,
- Senhor presidente, não tenho nenhuma intenção de partir novamente para a Indochina. Tenho de me ocupar
de meus próprios negócios.
- Compreendo muito bem, senhor Tavernier, mas existem interesses superiores.
- O senhor vá dizer isso à minha mulher.
René Pleven reprimiu um sorriso.
- Tenho certeza de que a senhora Tavernier lhe dará coragem. Durante a guerra sua mulher mostrou uma
coragem rara...
- Justamente, ela fez o que bem poucos franceses fizeram naquela época. Merece agora viver em paz.
- Compreendo. Mas ela poderia acompanhá-lo.
de fato, o Ocidente, a China e os países do Sudeste asiático necessitam, para sua segurança, de um Vietnã
independente. Essa independência só a paz pode hoje em dia assegurar. O prolongamento da guerra fará
inevitavelmente de Hô Chin Minh um vassalo de Mao, e de Bao Dai um fantoche americano. A França então
terá perdido tudo. A França reconheceu solenemente a independência do Vietnã. Deve, de agora em diante,
adaptar seus atos às palavras, deixando o povo vietnamita escolher livremente seu destino...
- Escolherá o comunismo!
- Eu lhe direi, senhor presidente, o que disse ao senhor Bidault: E daí?... Apesar do problema se ter tornado
internacional, seus dados fundamentais permanecem antes de tudo vietnamitas. Alguns se admiram de que
depois de cinco anos de lutas não se tenha obtido nenhum resultado decisivo contra essa "rebelião". Dão
prova, portanto, de que não entenderam nada da exata natureza do movimento vietcongue. Foi dito que se
tratava de um movimento comunista cuja força se baseava no terror. Isso não explica por que cinco mil
militantes do partido, em 1945, tenham podido sublevar uma nação de vinte e três milhões de almas, formar um
governo que administra regiões inteiras e um exército do qual todos os testemunhos nos dizem que luta
fanaticamente. Isso não dá maiores explicações por que dezenas e dezenas de milhares de vietnamitas, sem
nenhuma ligação com o comunismo, pegaram em armas contra nós e entraram nessa luta. É preciso reconhecer
a verdade, mesmo que seja desagradável para alguns: se os homens do Partido Comunista puderam conservar
a direção do movimento de independência nacional vietnamita, o qual eles estão longe de haver criado, é
porque se revelaram os mais eficazes e os mais clarividentes.
- Senhor Tavernier, poder-se-ia pensar que o senhor é um deles!
- Eu sei, muitos pensam isso. Mas posso lhe assegurar, senhor presidente, que não é nada disso. Conheço os
crimes de Stalin e a opressão que o partido faz pesar sobre seus membros. Todavia, a luta do povo vietnamita
pela independência se parece com a de todos os povos que combatem por um destino livre. É preciso
compreender
que em torno do núcleo de militantes do partido comunista indochinês, do qual uma frágil minoria foi formada
na Rússia ou na China, se aglutina a quase-totalidade dos que tiveram contas a ajustar com a Segurança Geral
do Governo, por terem ousado sonhar com a independência sob a Terceira República. Não se imagina muito,
na França, o prestígio que valeu aos nacionalistas vietnamitas as prisões políticas ou os trabalhos forçados. E
os que, em 1945-1946, acreditavam humilhar o adversário tratando-o como "fugido de Poulo Condor" não
duvidavam de que esse nome soava, aos ouvidos dos vietnamitas, como Dachau ou Ravensbrück aos
nossos...
- Senhor Tavernier!
- Sim, senhor presidente. Lá onde os colonos viam os trabalhos forçados, os vietnamitas viam os patriotas, os
homens que sofreram pela libertação de sua pátria, que haviam provado o que diziam, enquanto outros ficavam
apenas em conversas. Todas as propagandas do mundo não puderam ainda fazer com que o povo vietnamita
colocasse em dúvida a sinceridade do patriotismo daqueles que assumiram o risco dos trabalhos forçados ou
da clandestinidade perseguida. Sem dúvida os vietcongues são culpados de terríveis excessos, violências ou
crueldades, mas, desde 1946, sempre souberam dar como motivo disso as razões de defesa nacional. De resto,
reconheceram os erros "esquerdistas" e acabaram por admitir que a moderação era em geral muito gratificante.
Entretanto, há um ponto extraordinário nessa história:
como a França pôde consentir, durante cinco anos, em tais sacrifícios? Como pôde comprometer suas finanças
a esse ponto, hipotecar a política externa, enfraquecer o exército por tal motivo?
- Basta, senhor Tavernier!
- A opinião pública francesa jamais teve conhecimento de todos os dados reais do problema. Cada partido
apresentou seus argumentos antes de procurar os fatos. Nesse assunto, em que tudo dependia dos homens,
preferiu-se invocar os princípios, as ideologias, as palavras de efeito, com desprezo aos fatos; adotou- se em
segredo, ao abrigo dos olhares indiscretos da opinião pública, uma política que surpreende pela falta de
abertura e de inteligência. A opinião pública, é certo, estava mal preparada para
admitir a transformação progressiva da União francesa. Mas a Inglaterra estava mais preparada, em 1947, para
concordar com a independência da índia, a "Jóia do Império"?*
François se calou, com a testa coberta de suor.
- O senhor terminou, senhor Tavernier?
- Sim, senhor presidente.
- Para um homem que diz não estar interessado nos assuntos indochineses, mas nos seus, o senhor está
singularmente bem informado do que se passa por lá. Se eu não soubesse da estima que o general Leclerc tem
pelo senhor, pensaria, como já lhe disse, que o senhor está com nossos inimigos. O senhor tem uma maneira
de tomar a defesa dos vietcongues que poderia parecer suspeita a mais de uma pessoa. Acho que o general de
Lattre, se for nomeado, terá no senhor um recruta precioso, mas nada fácil de controlar. Adeus, senhor
Tavernier. Estou feliz por conhecê-lo e lhe agradeço esse curso magistral de política asiática.
- Adeus, senhor presidente...
Deixando a rua de Varennes, François sentia-se eufórico. Que necessidade tivera de falar em linguagem tão
enfática diante de Pleven? A quem procurara convencer, ao presidente do Conselho ou a si próprio?
Para se acalmar, subiu o bulevar Saint-Germain e se instalou na varanda do Café de Flore. O outono estava
suave, as mulheres bonitas; Paris revivia. Duas jovens asiáticas, estudantes sem dúvida, acabavam de se
sentar à mesa vizinha à sua. Sem querer, ele escutava sua conversa, em vietnamita.
- Tem notícias de Van Co?
- Não, ele teve de voltar para Saigon.
- Teve muita sorte naquele assunto.
- Aquilo custou três milhões de francos.
- É verdade, mas reconheça que a informação valeu a pena e que o exército francês perdeu a consideração
devido a esse acontecimento.
- Sim, felizmente não colocaram em ação as propostas do general Revers.
- Não foi por falta de tentar. Revers encontrou-se com o presidente do Conselho e com vários ministros;
nenhum teve coragem de aplicar suas propostas. Ele compreendera que era preciso realizar operações
antiguerrilha para pôr em xeque nossas tropas. Felizmente, não foi entendido. Mas homens como o general
Valluy sabiam que ele tinha razão.
- Você acha que de Lattre vai se inspirar no relatório Revers?
- Espero que não. Enquanto esperamos, ganhamos cada dia mais terreno, e as ofensivas que se preparam vão
expulsá-los do Tonquin.
- Quando você volta?
- Estou esperando as ordens e o debate sobre a Indochina na Assembléia Nacional... Veja, a Guarda
Republicana...
As duas jovens se levantaram, como a maior parte dos outros clientes. A guarda em uniforme solene passou
em passo acelerado, precedendo uma suntuosa limusine.
- É o sultão do Marrocos - disse alguém perto de François.
As pessoas que passavam pararam para ver desfilar o cortejo.
- É lamentável - resmungou um velho senhor condecorado - exibir assim um turco desses com as honras
devidas a um chefe de Estado!
- Pobre idiota! - deixou escapar François.
O senhor condecorado ficou pálido, depois vermelho; teve de se sentar e abrir o colarinho da camisa para
poder respirar.
As duas vietnamitas observaram François se afastar.
Enervado, ele entrou no bar do Montana, na rua Saint-Benôit. Lá, uma jovem mulher morena saltou-lhe no
pescoço.
- François, não me reconhece?
- Viviane!
- Pensei que tinha morrido!... Quanto tempo faz? Não, não diga nada, não ligamos para o tempo que passa...
Você está ainda mais sedutor que antes... Esteve preso?... Não, se bem o conheço, teria fugido... Você se uniu
novamente a de Gaulie?...
Está em Paris há muito tempo?... Mora neste bairro?... Está casado?... Tem filhos?... Que tal?... Como estou?...
Não envelheci muito?... É que durante dois anos as coisas foram difíceis... Você me oferece uma bebida?...
Essa valente Viviane não mudara: ele não teve tempo de dizer nada! Isso lhe permitia pensar em outras coisas.
Habitualmente, teria fugido, mas hoje a presença de uma mulher bonita era necessária para que esquecesse a
entrevista com Pleven: aproveitaria o bate-papo.
- Com prazer. O que quer beber?
- Um uísque.
- Dois, por favor.
Sentado no bar, François observava a companheira. Havia qualquer coisa que a marcara irremediavelmente.
Não eram somente os anos mais, não. Alguma coisa de mais profundo, de doloroso. Ele se condoeu com os
fios brancos na cabeleira escura. Ela esvaziara o copo num trago.
- Michel, outro, por favor.
- Senhorita Viviane, não deveria beber assim.
- Me deixe em paz. Isso não é da sua conta.
O barman encolheu os ombros e colocou diante dela a bebida pedida.
- Está livre para jantar? - perguntou François.
- Para você, sempre, meu querido.
- Aonde quer ir? Não conheço mais os bons lugares.
- Vamos ao Lipp, é dia de rosbife.
A célebre cervejaria não mudara nada depois da guerra. Os afrescos de faiança do pai de Léon-Paul Fargue
estavam sempre novos, os garçons, em grandes aventais brancos, sempre muito ágeis, e o senhor Cazes, fiel
em seu posto.
- Bom dia, senhorita Viviane. Sua mesa está livre.
- Obrigado, senhor Cazes.
Um maftre os conduziu a uma mesa da qual se via a entrada e saída dos fregueses.
- Gosto muito de vir aqui, é como se participássemos do espetáculo. Toda a comédia humana se apresenta
aqui. Faço parte
da peça, mesmo sendo apenas espectadora. Tomamos uma garrafa do bom Bordeaux?
Durante a refeição, ele pediu uma segunda.
- Antes você não bebia tanto.
- Antes - disse ela rindo.
Ela se inclinou para trás. Seu riso soava falso. Com as duas mãos levantou os cabelos; as mangas do leve
tailleur escorregaram pelos braços, revelando pulsos marcados por cicatrizes e números tatuados. O coração
de François ficou apertado. Viviane soube que ele havia compreendido. Abaixou as mangas.
- Sim, antes!... Antes que me colocassem num bordel...
- Eu sei o que você enfrentou, não fale nisso.
- Você é como os outros, tem medo de ouvir a verdade. Fizeram de mim uma prostituta. A neta do senhor
Duque é uma prostituta! Meu antepassado, o cardeal, deve estar dando voltas no túmulo, e minha boa avó, a
santa carmelita...
François tomou-lhe o braço e o apertou com violência.
- Pare, está doendo!
- Então, cale-se. Histórias como a sua já ouvi muitas. Repeti-las não serve para nada. Olhe para as coisas à
frente: você está viva, e isso não tem preço. É jovem, é bela, e, se me lembro bem, é rica. Então, viva, meu Deus,
viva! É a sua maneira de se vingar. Mostre, sendo feliz, que eles não a destruíram...
- Estou destruída...
- Não diga isso. Enquanto viver, não haverá destruição.
- Você não sabe do que fala!
- Bem que gostaria - disse ele, de repente muito cansado. - Garçom!
- Pois não, senhor.
- Champanhe, por favor. Celebremos nosso retorno à vida!
- Agora sim. Hei! Juliette! Anne Marie! Venham beber conosco. Eu lhes apresento um antigo namorado:
François Tavernier. François, eis aqui as musas da rua Saint-Benoit, as rainhas de Saint-Germain-des-Prés:
Juliette Gréco e Anne-Marie Cazalis...
Depois de esvaziarem duas garrafas de champanhe, Viviane propusera que terminassem a noite numa boate do
bairro.
No subsolo enfumaçado, um jovem alto tocava pistom de olhos fechados, enquanto um negro com belo rosto
encovado o acompanhava em outro pistom, com surdina.
- Bons Vian e Miles Davis - disse Viviane com admiração. Depois de tocarem, os dois músicos vieram para a
mesa deles. Todos bebiam, riam, fumavam. A guerra estava longe...
Viviane morava num grande apartamento, na rua Bonaparte.
- Venha tomar uma última bebida.
Bêbado e feliz de estar assim, François aceitou.
- Instale-se confortavelmente,jávolto. Ponha um disco. Meus pais me deram um novo aparelho. É só apertar o
primeiro botão.
François obedeceu. A voz rouca de uma cantora negra americana invadiu o ambiente. Ele se deixou cair num
imenso sofá. Viviane voltou com uma garrafa de champanhe e dois copos. Trocara o traje de freqüentadora de
Saint-Germain-des-Prés por um penhoar que não deixava ignorar nada do corpo.
- Abra a garrafa - ordenou, estendendo-a para ele.
Ele derramou o champanhe nos dois copos.
- A nossos amores! - exclamou ela levantando o seu.
Quando acordou, François teve a sensação de que tinham lhe dado socos na cabeça; a garganta seca lhe fazia
mal. Abriu penosamente as pálpebras. A luz muito forte o fez fechá-las novamente. "Merda! Que horas são?",
pensou. Reabriu os olhos com precaução. Nos travesseiros em desordem repousava uma cabeleira escura. Ele
se ergueu pesadamente e olhou em volta de si.
- Que idiota! - murmurou.
Levantou-se com a impressão de que a cabeça ia estourar. No banheiro, foi para o boxe e abriu todo o registro
de água fria. Ele deu um rugido. Pouco a pouco se sentiu reviver. Bebeu um pouco d'água; depois se secou e
olhou no espelho. Que cara horrível!
- Ah, que porre!
Descobriu no espelho o rosto amarrotado de Viviane.
- Tome uma ducha também, isso lhe fará bem.
- Sim, você tem razão.
Ela se agachou no boxe como um pequeno animal enregelado. François abriu a torneira completamente. Ela
gritou.
- Seu sádico!... Está gelado!... Feche isso!... Por favor!...
Começou a chorar. Ele teve pena dela e fechou a torneira. Envolveu-a num penhoar e a friccionou com energia.
- Tenho horror de água fria - balbuciou ela, batendo os dentes.
De cabelos molhados e olheiras, ela parecia um gatinho molhado.
- Não me olhe assim, estou horrível.
Bateram à porta.
- Entre. Eu não sabia o que você ia tomar. Pedi chá e café. Está certo?
Uma jovem empregada entrou, trazendo uma pesada bandeja de prata.
- Obrigado Josette, pode colocar na cama.
- Sim, senhorita.
- Há correspondência?
- Sim, senhorita. Está na bandeja. Seu pai telefonou duas vezes. Eu lhe disse que a senhorita estava dormindo.
Ele pede que ligue de volta.
- Quero que esse velho colaboracionista se dane!
- Senhorita!
- Cale-se! Você tinha acabado de nascer, não pode saber. Que se dane!
- Dizem que o tempo perdoa tudo.
- Perdoar a deportação de crianças judias e a minha, depois de me haver mandado prender para me dar uma
lição? Como quer que eu perdoe isso?
A jovem saiu enxugando os olhos.
- Que idiota! Ela imagina que meus pais são pessoas boas, porque a recolheram quando os seus morreram. Chá
ou café?
- Café.
Ela o serviu, e durante um longo momento comeram em silêncio.
- O que seu pai fazia durante a guerra?
- Ocupava-se do setor de compras, entende o que eu quero dizer?
- Muito bem.
- Era ligado a Jean Jardin, René Bousquet, Robert Brasillach. Com alguns colegas de Janson-de-Sailly, fazíamos
um pouco de mercado negro e levávamos mensagens para a Resistência. Meu pai soube disso. Teve medo de
que eu fosse presa. Então disse a um de seus amigos da Gestapo que a filha estava se envolvendo com
terroristas e que era preciso dar a impressão de que eu seria presa para me dar uma lição. Depois me obrigaria a
voltar para o caminho certo. Mas a coisa não se passou como ele pensava. A Gestapo veio me prender. No
começo me fizeram perguntas com delicadeza, depois me bateram, queimaram os seios e me jogaram numa
banheira de água gelada... Meu pai veio me ver. Ficou louco quando viu o estado em que os amigos me haviam
deixado. Ele gritou, tentou intimidá-los, ameaçou com intervenções de pessoas influentes. Os outros o ouviam
rindo. Quando foi embora, havia envelhecido dez anos. No dia seguinte me colocaram num trem para
Compiègne. Fiquei ali dois meses. Durante esses dois meses, meu pai moveu céus e terras, sem sucesso. A
última vez que o vi, minha mãe estava com ele. Ah, eles tinham perdido a arrogância, esses aristocratas do
bairro de Saint-Germain! Três dias depois parti para a Alemanha... Que belo país!... Tão acolhedor!... Flores,
música na chegada ao campo, um lugar de sonho... Fiquei ali até o fim da guerra, depois de ver morrer uma a
uma minhas companheiras... Havia uma de quem eu gostava muito, Rachel, era judia, tinha quinze anos. Nós
dividíamos tudo. No bordel, eu a consolava quando os alemães tinham sido muito repugnantes. Um dia vieram
buscála. Quando voltou, estava abobalhada; havia uma grande ferida no ventre, que não parava de sangrar. Eu
a beijei, falei com carinho... Ela gemia como uma criança doente... Disseram que haviam feito experiências com
ela. Eu não queria acreditar, ela era tão jovem, tão bonita... Morreu nos meus braços, chamando pela mãe...
Isso, a morte de Rachel, eu não posso aceitar. E por essa morte que meu pai tem de pagar. Apenas pela morte
de Rachel...
Depois que contou tudo, Viviane chorou. François a escutara sem interromper; pensava em Sarah. As mesmas
palavras para descrever o horror... As mesmas palavras...

Capítulo 5

O general de Lattre andava de um lado para o outro no escritório do
4 bis, bulevar des Invalides. Parou bruscamente na frente de François
Tavernier, sentado a uma pequena mesa diante de uma janela.
- Se o entendi bem, Tavernier, estamos perdendo tempo lá, e o melhor que podemos fazer é arrumar armas e
bagagens e vir embora?
- Minha proposta pode ser assim resumida.
- Eu não esperava isso da parte de um homem como o que me descreveram nossos serviços secretos na
Argentina.
- Receio o pior, general.
- Lá, você não hesitou em tomar a defesa de seus amigos judeus, contra a opinião do embaixador da França, e
em participar de ações de resgate.
- Sem dúvida, exageraram muito minha ajuda aos caçadores de criminosos de guerra nazistas, general.
- Eu acreditaria antes que minimizaram seu papel para não embaraçar as relações entre os dois países: apesar da
acolhida cortês e com deferência das autoridades militares na minha chegada a Buenos Aires, em outubro de
1948, constatei imediatamente
que as relações entre o governo e nossa embaixada eram de grande frieza. Lembrança da influência alemã e
hostilidade dos meios franceses ao governo de Perón eram seguramente as causas...
- General, o senhor não vai igualmente me culpar por essa frieza?
- Não, mas suas proezas tinham irritado muito o general Perón e sua encantadora esposa...
- General, se acredito nos meus amigos argentinos presentes à recepção que o senhor ofereceu na embaixada
ao general e à bela Evita, não se pode dizer que procurou acalmar a irritação deles fazendo-lhes ouvir O canto
dos guerrilheiros por sua criadora na BBC, Anna Marly...
- Ah, você ouviu falar?... Se visse a cara deles quando toda a platéia se levantou de novo, como se fosse para a
Marselhesa, para ouvir a música da Resistência! Um grande momento...
Os dois homens se olharam sorrindo, com ar de conivência.
- Tavernier, preciso de homens como você. Se eu aceitar essas altas responsabilidades, preciso contar com
você. Você fará parte de meu staff Encontrará Gauthier e Aurillac, são antigos colaboradores do almirante
Decoux, bem conhecidos por lá...
- Mas, general...
- Até logo, Tavernier.
François se reencontrou no bulevar des Invalides, furioso consigo. Em que apuros se metera?
A cúpula des Invalides brilhava ao sol de outono. As folhas amareladas das árvores caíam girando; o ar havia
conservado uma doçura de fim de verão. Escolares passavam se empurrando aos gritos e risos. Perdido em
seus pensamentos, François percorria o bulevar Montparnasse. Diante da estação, soldados subiam a bordo
de caminhões militares.
- Pobres garotos - disse uma mulher perto dele - estão partindo para a Indochina.
Ele parou para olhá-los. Como eram jovens, atrapalhados em seus uniformes muito novos! Os suboficiais que
os comandavam não eram tão mais velhos. Esse encontro acabou por deprimi-lo.
Ele entrou no La Coupole e pediu um conhaque. Encostado ao bar, observava sem ver os célebres afrescos
dos Anos Loucos, aqueles do tempo em que Picasso, Modigliani, Aragon e os outros se reuniam ali para
reformar o mundo. No segundo conhaque se deu conta de que estava com fome e se dirigiu para o restaurante.
Pediu duas dúzias de ostras e uma garrafa de Chablis. Notou que muitas mulheres elegantes almoçavam
sozinhas. Pensou em Léa. Como ela receberia o pedido do general de Lattre? Esse pensamento lhe tirou o
apetite. Empurrou o prato.
- As ostras não estão boas, senhor? - perguntou o garçom.
- Estão excelentes, agradeço, mas perdi a fome. Traga-me um café e a conta.
- Sim, senhor.
Ele seguiu direto, indiferente aos olhares das jovens mulheres, que se voltavam para ver aquele homem esguio,
de rosto bronzeado, traços firmes, andar ágil, ligeiramente irregular. Atravessou o bulevar em frente à Closerie
des Lilas. Muitas vezes, quando estudante, vinha aí em companhia de Hai. A lembrança do amigo acabou por
deprimi-lo. Entrou no estabelecimento, e pediu um conhaque e um charuto. Como dizer a Léa? Pior ainda, ela
quereria acompanhá-lo...
- Você está com ar bem pensativo, Tavernier.
- Sainteny! Você me colocou em apuros falando de mim com de Lattre!
- Você o encontrou?
- Esta manhã.
- E então?
- Quer que eu faça parte de sua equipe.
- Excelente! Você é um homem muito requisitado. Meu exsogro, o,presidente Albert Sarraut, também deseja
encontrá-lo.
- É muita honra!
- O que está fazendo agora?
- Não tenho nada previsto.
- Vou levá-lo à Assembléia. Mendès vai fazer um discurso a respeito da Indochina.
- Vamos para a Assembléia Nacional.
Eles se instalaram no momento em que o presidente, do alto de seu "poleiro", dizia: "A palavra
está com o senhor Mendès France."
- Minhas senhoras, meus senhores - começou o deputado da Eure -, num debate como este é
mais fácil não dizer nada. Mas há muito tempo eu concordo com isso, acreditei que o
silêncio era não apenas a atitude mais cômoda mas também a mais racional, a que melhor
poderia servir ao interesse nacional... Hoje, falando em meu nome quero afirmar que, na
minha opinião, se tornou mais perigoso esconder a verdade do país, continuar a enganá-lo e
deixá-lo julgar com os nervos ou as paixões o que deve ser julgado à luz de uma situação
geral, interna e externa, cada vez mais preocupante. Confessemos francamente, olhos nos
olhos: existem razões prementes e angustiantes tanto para nos recomendar a permanência na
Indochina...
- Não vejo quais! - murmurou François.
- Silêncio - ordenou Sainteny.
- ...quanto para nos incitar a nos livrarmos dessa terrível carga política, militar, econômica e
financeira. Nenhum homem de boa-fé, quando daqui a pouco depositar na urna um voto a
favor ou um voto contra, desconhecerá em sã consciência que existem também motivos
respeitáveis que militam contra sua opinião.
A favor da continuação da luta na Indochina, existem argumentos dos quais ninguém pode
contestar o valor e o peso. Lembremos os sacrifícios feitos pela França, há cinco anos, num
período no qual, entretanto, tanto necessitava de recursos para sua reconstrução, para seu
reequipamento, para o nível de vida de um povo que sofreu tanto durante a guerra.
Lembremos nossos interesses materiais investidos na Indochina, interesses que desejamos
salvaguardar. Lembremos... e isso nos emociona profundamente... a obrigação implícita, mas
real, que assumimos a respeito dos vietnamitas que nos manifestaram fidelidade nesses anos
de provações. Enfim, ressaltemos que a guerra do Vietnã não é senão um aspecto do conflito,
de outra forma muito mais vasto, inserido em escala mundial.
'..É fato que nossas forças, mesmo apoiadas por elementos locais, não podem obter um
estatuto militar principalmente desde que a situação evoluiu na China; e é uma verdade que
nossa política de concessões insuficientes, constantemente retomadas ou revogadas, não
realizou e poderá, infelizmente, realizar cada vez menos, agora, a união da totalidade do
povo vietnamita. Em conseqüência, esse é um ponto sobre o qual todos deveríamos estar de
acordo: isso não pode continuar dessa maneira! É preciso acabar com os métodos que não
resgatam nem a potência, nem o hábito, nem a força, nem a política, com ação
constantemente imperfeita, equívoca, hesitante, e cuja falência era muito conhecida antes até
das dificuldades militares dos últimos dias...
- Enfim propostas realistas e corajosas! - disse Tavernier.
- Da parte de Mendès, não é de admirar! - cochichou Sainteny.
"...Não dissimulemos a verdade. Não digamos, como já ouvi dizer ou li em alguns jornais,
que podemos arrancar uma vitória militar na Indochina apenas com nossos efetivos atuais,
com nossos meios atuais, graças a algumas reformas, a algumas mudanças de métodos ou de
homens. Isso não é verdade.
"Sem nenhuma dúvida, houve na Indochina.., sem dúvida ainda há... desperdícios, créditos
mal empregados, tráficos custosos que deveriam ser reprimidos. É preciso dar um fim a isso;
é preciso limpar as cavalariças de Augias! Mas saibamos que não será apenas com esses
meios que encontraremos a solução para o problema atual...
"Não manteremos a Indochina, seus vinte e cinco milhões de habitantes, seus oitocentos
quilômetros de fronteiras... sem falar das do norte.., apenas com tropas, apenas com os
recursos de que dispomos atualmente lá, mesmo que façamos as reformas administrativas,
militares ou financeiras mais desejáveis por outros meios...
". . A outra solução consiste em procurar acordo político, um acordo, evidentemente, com os
que nos combatem. Sem dúvida, isso não será fácil, pois não conseguimos nem mesmo, se
posso julgar pelas peripécias da conferência de Pau, fazer um acordo
com os que não nos combatem! (Sainteny e Tavernier trocaram um Sorriso.) Um acordo significa grandes
concessões, sem dúvida alguma mais importantes que as que teriam sido suficientes anteriormente. E a
distância que separará as perdas agora inevitáveis das que teriam bastado há três ou quatro anos dará a
medida da paz que teremos, por causa de nossos erros imperdoáveis... (Aplausos partiram das bancadas
da esquerda.) Da mesma maneira que nossa moeda poderia ter sido salvaguardada, logo após a
Libertação, mediante austeridades relativamente leves... (Novos aplausos da esquerda.) Relativamente
aos sofrimentos que o país suportou desde então, o saldo entre esses sofrimentos suportados e sacrifícios
que nos serão ainda impostos, de um lado, e as medidas que infelizmente não implementamos na Libertação,
por outro lado, representa o preço que pagaremos pela persistente fraqueza de nossa política econômica e
financeira.
Uma voz gritou no semicírculo:
- É um acerto de contas!
- Eu lhe agradeço, senhor Legendre, por elevar o debate! Minhas senhoras, meus senhores, pode-se recusar
a solução por mim evocada. Ela é de aplicação difícil, concordo. Consagrará renúncias penosas e amargas
decepções, depois de tanto sangue derramado em vão.
"Pode-se recusar essa solução...
"Mas, então, deve-se dizer a verdade ao país; é preciso informar o preço que deverá ser pago para se
chegar à outra solução. Triplicar as tropas! É a avaliação de militares bem informados. Voluntários serão
encontrados? De antemão, não se pode assegurar o revezamento. Serão recrutadas unidades no mesmo
lugar? Já foi tentado; mas nenhum elemento que nele se encaixe será encontrado naquele lugar. Daí por
diante... já pensaram nisso?... só restará o contingente, os jovens do contingente. Eis a que uma solução
militar conduz inevitavelmente, se desejam que o esforço seja enfim eficaz, se desejam arrancar uma solução
pela força.
"Não nos admiremos, senhoras e senhores, com essas perspectivas aflitivas. São as perspectivas comuns da
guerra; pois as
operações que se desenrolam na Indochina são uma guerra. Não se trata de uma dessas
pequenas expedições coloniais que tivemos no século XIX. É a guerra.
"Nunca, no curso da história dos povos colonizadores, assistimos a uma expedição, dessa
importância.
"...Não tenhamos ilusões... tantas tivemos nesses últimos anos, as quais provocaram tantos
dissabores... não podemosfazer tudo ao mesmo tempo: assegurar o rearmamento na Europa e
guerrear no Oriente. Mais uma vez, é preciso escolher.
"Ouço dizer que no mundo inteiro só existe hoje uma guerra, que no front da Indochina o
Ocidente ainda defende sua segurança contra o perigo comunista. Aos que dizem isso
pergunto se é do interesse europeu, se é do interesse francês, que nossas forças sejam
fragmentadas, dispersas; se não é, ao contrário, necessário que sejam reunidas em nosso
solo, para sua defesa. Eu lhes pergunto, em todo o caso, se é à França que deve competir
essa tarefa longínqua e exaustiva, quando ela já está tão frágil, depois de tantas
experiências em seu próprio território metropolitano...
'..Se amanhã, que o diabo seja surdo, o pior acontecer se a guerra nos ameaçar de novo,
teremos sido responsáveis perante o país pelo afastamento de metade de nossas forças!
Ressoariam, então, nos ouvidos dos governantes anteriores a interpelação acusadora:
"Varus, que fizeste de minhas legiões? Varus, traz-me minhas legiões!" (Alguns aplausos foram
ouvidos.) Terminando, repito; uma coisa, em todo o caso, é certa: seria um crime imperdoável
prosseguir na Indochina uma política cuja incerteza, equívoco e mediocridade vêm nos
custando tão caro. E, fora dessa política, dois caminhos são possíveis, e só dois. Os senhores
devem escolher: não têm o direito de não escolher!
"Eu me perguntei... dolorosamente... se meu dever hoje, nesta tribuna, é dizer, enfim, ou
calar, outra vez, a verdade, toda a verdade.
verdade, num momento em que tantos outros cuidados nos oprimem, é que não dispomos de
meios materiais para impor na Indochina a solução militar que lá tentamos durante tanto
tempo, quando era mais fácil de alcançar que agora. Ainda assim, não
64 Régine Deforges
temos o direito de esconder por mais tempo do país uma alternativa dramática, porque
interessa ao mesmo tempo à sua segurança, a seu equilíbrio social e talvez mesmo à paz do
mundo...
Desta vez, os aplausos brotaram do centro, da esquerda e até da extrema esquerda. Mendês France desceu da
tribuna e voltou ao seu lugar, pálido, abatido.
- A palavra está com o senhor Girardot - retomou o presidente.
Tavernier e Sainteny se levantaram.
- O que achou desse discurso?
- Muito longo. Principalmente, nenhuma proposta positiva
- respondeu François. -
- Não concordo com você - protestou Sainteny. - É preciso ter coragem para dizer o que ele disse.
- Quando não se tem coragem, não se faz política.
- Acho você muito duro...
- Duro!... Então o que são os homens responsáveis pela situação em que se encontram hoje a França e o
Vietnã? São uns fracos, uns incompetentes.
- O que propõe?
- Nada, e quero que se danem. Você e Leclerc é que deveriam ser ouvidos, em lugar do "Monge" e de Bidault.
- É verdade que o almirante Argenlieu teve grande responsabilidade no desenrolar dos acontecimentos. A
História julgará... Recebi esta manhã um telegrama de meu sogro, Albert Sarraut, que preside a conferência* de
Pau. Ele estará em Toulouse na próxima semana e ficaria muito feliz se você fosse vê-lo.
- É uma grande honra, mas por quê?
- Falei de você com ele. Ele conhece sua aventura indochinesa e não ignora que de Lattre deseja que o
acompanhe. Acho que quer falar da Indochina e recomendar você aos amigos franceses e vietnamitas que
conservou por lá.
- Decididamente, todo mundo quer me fazer voltar para o fogo!
- Qualquer que seja sua decisão, deve aceitar o convite do presidente Sarraut. É um homem excepcional, de
grande inteligência e grande probidade. Você só tem a ganhar com esse encontro.
- Sem dúvida. Vou ver... Em primeiro lugar tenho de voltar para casa.
Ao sair da Assembléia, François Tavernier propôs a Jean Sainteny jantar com ele, mas este não estava livre.
Para matar o tempo, foi ao cinema ver Os visitantes da noite, que passava nos grandes bulevares, no
Royal-Haussmann. Ao sair, cantarolava As folhas mortas. Comprou muitos jornais de um vendedor
ambulante, que gritava: "Evacuação de Lang Son!..."
Ele entrou no PamPan um bar simpático da praça da Ópéra, freqüentado por uma clientela muito jovem. Pediu
um uísque. Mas teve logo de abandonar a leitura dos jornais, deprimido pela descrição dos acontecimentos
tonquineses.
- O senhor permite? - perguntou um jovem sentado perto dele mostrando Lurore.
- Por favor - disse ele, estendendo o jornal e pedindo um segundo uísque.
- Obrigado, eu quero saber como está o processo Henri Martin e Heinberger. Para mim Henri Martin é um herói
- acrescentou o vizinho com uma ponta de provocação.
- Pode-se vê-lo dessa maneira.
Perdido em pensamentos melancólicos, François bebericava lentamente.
- É uma vergonha, ouça o que escreve esse Jean BernardDerosne: "Um presidente que deixa dizer não importa
o que a não importa quem. Que se compraz com os discursos que causam estupefação de conselheiros da
União francesa vindos a Toulon em busca do público que não têm em Versalhes. Não se ofendem com que se
misture ao nome de Henri Martin, o segundo mestre sabotador, o de Estienne D'Orves. Que os mortos falem. Até o general Leclerc, o mais inatacável de todos. Que deputados,
neste dia de debates na Câmara sobre
a Indochina, tenham ido a Toulon apoiar os suboficiais de marinha que despejam pó de esmeril no óleo de
lubrificação dos motores dos navios e concordam moralmente com a entrega da Indochina aos comunistas.
Esse presidente que deixa um antigo almirante fazer a apologia do imperativo de consciência e da
desobediência dos soldados, e nos anuncia a próxima chegada ao poder do governo do povo. E também esse
vice-presidente do Senado que, com outros, afirma, ou quase, que o ato de Martin deve ser creditado a favor
da França. E é um hipócrita o presidente, quando vem nos dizer gravemente, como se fosse um inefável
professor: "Esse marinheiro é um elemento de aproximação com o povo vietnamita." Por que não um excelente
alto-comissário na Indochina? Sim, por que não? Eu não seria mais incapaz que os outros! Ele é inocente na
sabotagem de que é acusado, mas teve a coragem de denunciar o que se passa por lá!"
- O senhor não tem a impressão de que ele pregou no deserto? - disse François.
Seu interlocutor o olhou com ar de surpresa.
- Perdoe-me, mas tenho a impressão de conhecê-lo... Sim!... O senhor é o amigo de Léa Delmas. Sou Franck, o
amigo de Laura... Franck Lagarde.
- Bom dia. Eu pensava que o senhor estivesse na Indochina...
- Estou de licença, fui ferido.
- Por que o senhor se alistou?
- Depois da morte de Láuri, perdi o gosto por tudo, não suportava nem a família nem os amigos, tudo me
parecia podre, sem saída. Precisava "mudar de ares". Foi por isso que na rua Saint-Dominique me alistei por
três anos nos pára-quedistas.
- Por que nos pára-quedistas?
- Por acaso. Eram os que partiriam mais depressa...
- Isso lhe agradou?
- Não sei, mas muda o modo de ver as coisas.
- Em que região o senhor esteve?
- No Tonquin.
- Foi difícil para você?
- Sim, bastante. Tem visto Léa? Como vai ela?
- Muito bem, é minha esposa. Temos dois filhos.
- Parabéns. Me daria grande prazer revê-la.
- Ela está em Montillac. Venha nos visitar quando quiser. Tenho certeza de que ela ficará também muito feliz de
revê-lo.
- Obrigado, mas isso ficará para outra vez. Embarco amanhã para Marselha.
- Dê notícias suas. Bebe algo?
- Não, obrigado, já estou atrasado e ainda preciso visitar meus pais antes de partir. Até logo, talvez. E lembre-
se: é preciso libertar Henri Martin!
François pagou a conta e saiu. A multidão de trabalhadores precipitava-se para o metrô; a praça da Ópéra
estava obstruída pelos veículos, que buzinavam. Ele atravessou e desceu a avenida. Diante da rua Daunou,
lembrou-se de um bar onde se reuniam os amantes do rúgbi. Empurrou a porta do estabelecimento. O barulho e
a fumaça o incomodaram.
Ele entrou e foi até o balcão. Uma espécie de gigante ruivo de colete escocês se aproximou:
- O que o senhor deseja?
- Um uísque.
- Escocês ou irlandês?
- Irlandês.
- Conhece a Irlanda? - perguntou o barman colocando o copo diante de François.
- Não.
- Devia ir lá.
François balançou a cabeça enquanto bebia, depois olhou em volta. Ficou surpreso de não ver nenhuma
mulher. Quando o barman voltou, ele lhe perguntou:
- O que aconteceu, que aqui não há nenhuma mulher?
- O balcão é reservado aos homens. As mulheres que vêm sozinhas aqui em geral são prostitutas. A direção da
casa só as aceita na sala dos fundos.
François se levantou e foi dar uma olhada no local. De fato, em três ou quatro mesas estavam
sentadas mulheres jovens muito maquiadas e de pernas cruzadas.
Alguns homens as olhavam de esguelha. François voltou ao seu lugar.
- O senhor viu?
- São encantadoras.
- Se quiser... Na maior parte são boas moças.
- Hoje não.
Ao sair do Harris Bar, ele se sentiu um pouco "alto". Uma chuva fina começou a cair. Um táxi
parou, e os passageiros desceram.
- Está livre?
- Para onde é?
- Para o Lutecia.
- Está bem, suba.
Na recepção do hotel, ele encontrou um recado de Léa. Logo que chegou ao quarto, ligou para ela.
- Alô!
- É você!... Estou lhe procurando desde a manhã. O que está fazendo?... Você me faz falta...
Quando volta?
- Amanhã... E as crianças?
- Não vai mais reconhecê-las. Camilie já está uma verdadeira mocinha... Encontrou o general de
Lattre?... Seu estado- maior não pára de telefonar... Espero que ele não esteja pensando em fazer
você voltar para lá... Alô! Está me ouvindo?...
- Sim, sim, estou ouvindo.
- Entendeu sobre de Lattre?... Alô?... Responda!... François... Diga que isso não é verdade!...
Pediram a você que volte?... Responda!... É isso, não é?... Não aceitou, não é?... Fale comigo!...
Você não ousa me dizer!... Você não passa de um covarde!... Por que... por que?...
- Léa, acalme-se... Alô... Eu lhe peço, não chore... Nada está acertado, estarei aí amanhã... Eu lhe
explicarei... Alô... Alô...
Ela desligara. Ele ficou olhando para o aparelho com ar abobalhado. A campainha do telefone quase
o fez saltar.
- Alô... Se você for, eu também vou!
- Mas...
- Cale-se! É isso ou o abandono.
- Léa...
- Ouviu muito bem: se você for, as crianças e eu vamos também.
Ela desligou. Ele recolocou o fone com um sorriso, depois se estirou na cama, mãos na nuca, sempre
sorrindo. Que mulher! Ela faria o que acabara de dizer. Mas as crianças...
Adormeceu.
No dia seguinte voltou ao bulevar des Invalides. De Lattre estava ausente, e ele foi recebido pelo
ajudante-de-ordens, ao qual deu a conhecer sua decisão.
- Minha mulher e meus filhos me acompanharão se o general for nomeado para a Indochina.
- Isso me parece uma completa loucura, mas o senhor é quem sabe.

Capítulo 6

- Léa!... Léa!... É tio François! - gritou Charles, irrompendo na cozinha. - Ele está com um carro lindo.
- Um carro? - exclamou Pierre, o filho de Françoise.
Os dois meninos correram para o pátio, seguidos pelo pequeno Adrien. Léa, que dava mamadeira a Camilie,
correu, por sua vez, ao encontro do marido. Diante da casa brilhava um esplêndido automóvel, reluzindo de
novo, que fazia a admiração de homens, jovens e velhos de Montillac. Alain deu a volta com respeito.
- Um Delahaye 135! Nunca vi um de perto - disse, admirado.
- Deve custar uma fortuna - disse Françoise, abanando a cabeça.
- Por que não comprou um cupê? - perguntou Charles.
- Porque agora tenho uma família numerosa!
- Então, era melhor ter comprado um 175, que mede cinco metros. O motor tem vinte e seis cavalos, como o 135,
mas ele desenvolve cento e vinte e cinco com um só carburador. Tem um bom desempenho na estrada, e, com
os freios hidráulicos, pode- se andar com toda segurança.
François olhou para Charles com admiração.
- Como sabe de tudo isso?
- Isso me interessa - respondeu ele, laconicamente.
Léa se aproximou, trazendo a filha. Ela o olhou com tal intensidade, que lhe fez mal. François a tomou nos
braços, deu um beijo na testa frágil do bebê e beijou os lábios, que se estendiam para ele. O corpo de Léa
tremeu contra o seu. Um desejo furioso o prendia a ela. Eles não conseguiam se separar um do outro. Françoise
veio em socorro deles.
- Me dá a Camille, eu cuido dela...
- Papai! - chamou Adrien, agarrado à perna do pai.
François o levantou.
- Bom dia, garotão.
O menino agitou as pernas.
- Quero andar no carro!
- Mais tarde, querido. Eu levarei todos para darem uma volta. Você vem, Léa?
Na escada que conduzia ao quarto, eles paravam em cada degrau para se beijarem e se acariciarem. Apenas
fecharam a porta, Léa escorregou para o tapete enquanto ele tirava a camisa e desabotoava a calça.
- Vem - gemeu ela.
Ele se deixou cair sobre ela, levantou a saia e afastou a calcinha de seda. Entrou de um só golpe no sexo úmido
como um um animal.
- Senti sua falta, minha puta!
- Você é meu, ouviu?... Não o deixarei partir nunca mais, preciso demais de você... Quando não está aqui, sinto
um vazio dentro de mim... Tenho fome de você...
Ela lhe martelava o peito com os punhos, enterrava-o em si cada vez mais profundamente. Ele a tomou pelos
ombros, e os troncos cobertos de suor se colaram um ao outro. Saiu de cima dela, virou-a, forçou-a a ficar de
joelhos e, afastando-lhe as nádegas, penetrou-a; ela gritou.
- Todas as partes do seu corpo me pertencem...
Solidamente possuída, com os rins em fogo, Léa, com o rosto coberto de lágrimas, gozou de dor e prazer
misturados. Quando ele saiu, tinha sangue no sexo.
- Limpe-me.
Ela se arrastou e, com pequenos golpes de língua, lavou-lhe o membro sujo, que se ergueu
novamente sob o efeito da carícia. François levantou-se e levou-a para a cama. Tirou-lhe a roupa,
despiu-se, acariciou-lhe o belo rosto, os seios opulentos, depois a tomou com delicadeza. Fizeram
amor durante muito tempo e adormeceram um dentro do outro. Quando acordaram, já era quase
noite.
Rindo, tomaram banho de chuveiro, depois desceram para o salão. Uma labareda crepitava na
lareira, diante da qual as crianças brincavam, enquanto Françoise tricotava e Alain lia um jornal.
Reinando sobre uma mesinha, a TSF estava ligada. Parados na soleira da porta, diante do espetáculo
pacífico e sereno, Léa e François trocaram um sorriso de conivência: nunca tinham podido
aproveitar tal calma, ainda que, muito longe, no fundo de si próprios, guardassem a nostalgia do
tempo em que, ainda crianças, participavam da tranqüila felicidade de uma família unida.
- Ah, eis os namorados - disse Alain, dobrando o jornal. Foi como um sinal: Charles, Pierre, Isabelle e
Adrien começaram a falar todos ao mesmo tempo.
- Papai, quero ir no carro...
- Léa, vou lhe mostrar meu quadro...
- Tia Léa, quero passear...
- Papai!... Venha!...
- Tio François, quero ir...
- Eu também...
- Eu também!
- Nós vamos jantar logo - advertiu Françoise.
- Vou levá-los para dar um passeio só até Saint-Macaire.
- Tome cuidado.
- Posso ir com você? - perguntou Alain.
- Vamos!
Françoise e Léa os viram partir.
- Quando se trata de automóvel, Alain vira uma criança - disse Françoise, tomando o braço da irmã. -
Venha, está agradável, vamos até a varanda.
De braços dados, elas desceram o gramado ladeado por uma fileira de bétulas plantadas pelo pai.
- Você se lembra de quando papai cantava para nós: "Vamos para debaixo da pequena bétula..."? -
perguntou Léa.
Ao longe, percebiam-se as luzes de Langon; uma névoa subia do rio Garonne. Como todas as noites
à mesma hora, um trem passava sobre a ponte, deixando atrás um rastro de fumaça. Um cão latia,
vacas mugiam, os carrilhões da vizinhança chamavam para o ângelus; o ar exibia sua transparência
do anoitecer.
- Como estamos bem aqui - suspirou Léa.
Uma tristeza a invadiu, como se pressentisse que esse bem- estar enganador, essa aparência de paz,
esse doce viver não fossem para ela. No coração, no pensamento, até no próprio corpo,
experimentava uma ruptura, contra a qual nada podia, como se fosse forçada a se afastar cada vez
mais do que fazia parte dela mesma, de sua própria carne. Essa terra, essa casa, que tanta falta lhe
fazia quando estava separada dela, parecia-lhe que alguma coisa em algum lugar a forçava a se
afastar. Nesse lugar, que lhe parecia ter sido sempre seu lugar, uma espécie de recuo, de frieza se
substituía à felicidade dos reencontros. A cada um de seus retornos, desde o fim da guerra,
inclinada sobre a balaustrada diante dessa paisagem familiar e querida, esses pensamentos
melancólicos vinham assaltá-la, deixando-a triste e desamparada.
- "...paisagem mais bela do mundo, palpitante a meus olhos, fraternal, única a saber o que sei, única a
se lembrar dos rostos destruídos de que não falo com ninguém, e de que o vento ao crepúsculo,
depois de um dia tórrido, é o sopro vivo, quente, de uma criatura de Deus (como se minha mãe me
beijasse). O terra que respira!" - recitou Léa.
- É bonito o que você disse.
- É de François Mauriac falando de Malagar. Toda vez que leio algo sobre Malagar, penso estar
lendo sobre Montillac. Pode- se dizer que essas duas casas são irmãs.
- É normal, é a mesma região. Onde leu isso?
- No Journal, que comprei na semana passada em Bordeaux.
- Você me empresta?
- Sim. Voltemos, acho que já retornaram.
Nesse instante, a campainha anunciou a hora do jantar.
- Apressemo-nos, senão Ruth e Germaine vão nos repreender!
- A primeira a chegar, ganhou! - gritou Léa correndo.
Léa se levantou e juntou a pilha de jornais que François deixara cair no cascalho do pátio onde tomavam o
café, nesta tarde quente do começo de novembro, para ir atender a um telefonema de Paris, O aroma do café se
misturava às emanações provenientes das adegas e aos odores particulares do ar no outono. Em seu carrinho,
o mesmo que servira a Léa e às irmãs, a pequena Camille dormia, protegida de eventuais insetos por um véu de
filó. Adrien e os primos faziam a sesta, Charles e Pierre estavam na escola, em Verdelais, Alain nas vinhas,
Ruth, Françoise e tia Lisa se ocupavam da casa. Tudo estava tão pacífico, tão calmo...
Com os jornais apertados a si, Léa fechou os olhos, invadida por um sentimento de bem-estar, e com a
consciência aguda do próprio corpo acalmada. O coração começara a bater mais rápido, parecia-lhe. A
sensação de existir era tão forte, que um arrepio de prazer a percorreu da cabeça aos pés. O tempo ficara
imóvel...
O encanto foi rompido pelo som de vozes vindas do antigo escritório do pai. Léa sorriu: François ainda devia
estar discutindo com algum general ou ministro. Ela se sentou numa cadeira do jardim com a pintura
descascada e colocou os jornais na mesa, empurrando a bandeja do café. Uma grande manchete na primeira
página do Paris Match, "Os que lutam pela França na Indochina", chamou-lhe a atenção. A fotografia da
capa representava um suboficial que chefiava o comando de pára-quedistas e lhe lembrava Jean Lefèvre. O
tempo retomara seu curso, dissolvendo essa espécie de felicidade surpreendente que ela havia experimentado.
Leu atentamente o artigo de Charles Favrel: "Para os que morrem numa guerra ignorada", que terminava com
essas palavras: "...Por que me abandonaram?" Com um gesto cansado ela recolocou o semanário na mesa: Jean Lefèvre, Nhu-Mai, Lien, Franck, que François encontrara
em
Paris, Kien, Giau estavam lá, nessa vertigem para a qual o governo francês queria mandá-los de volta... No
carrinho, o bebê começou a chorar. Ela estendeu a mão e balançou delicadamente o veículo; o choro cessou.
Françoise saiu de casa cantarolando, com uma tesoura de podar na mão.
- Você está com um ar bem alegre - notou Léa.
- E você, não?... Veja como o tempo está bonito. Vou cortar as últimas rosas, vem comigo?
- Não, prefiro ficar aqui lendo.
- Você vai ver, no Paris Match há uma página sobre nossos vizinhos.
- Os Mauriac?
- Sim. Em Lyon foi encenada uma peça de François Mauriac: O fogo sobre a terra, acho. Até já!
Léa ficou vendo afastar-se a silhueta delgada da irmã. Apesar das maternidades, reencontrara o andar de
jovem. Nada nela lembrava a mulher tosada e humilhada de 1944. O amor apagara as vicissitudes dos anos
negros. Sem dúvida por constrangimento de ressuscitar fantasmas, se não esquecidos ao menos enterrados
nas dobras da memória, nunca as duas irmãs tinham falado novamente daquela época. Relembrar aqueles
tempos, os sofrimentos suportados por ela e os seus, teria parecido a Léa o cúmulo da indecência. Mas não
havia quase dia nenhum em que não voltassem, presentes no espírito doente, as cenas de horror desenroladas
na propriedade. Ela sentia o que havia de mau nesse hábito, mas lhe era impossível resistir a ele. As vezes,
enroscada nos braços de François, ela se deixava levar pelas lembranças, pelas confidências, mas depressa se
recompunha.
Léa sobressaltou-se: a porta que dava para o pátio foi fechada com tal violência, que os vidros retiniram. Em
grandes passadas, François chegou até ela e se sentou, com ar furioso.
- Preciso ir a Toulouse para o jantar.
- A Toulouse? Mas para quê?
- O presidente Sarraut quer me encontrar.
- Isso não podia esperar até amanhã?
- Parece que não. Pleven disse que há muita urgência.
- Sempre ele! Até parece que sem você não podem fazer nada na Indochina. Pois é certo, deve ser
assunto da Indochina...
- Como você pode ler - disse ele pegando os exemplares do Le Monde dos últimos dias: - "O general
Alessandri chegou a Lang Son quando dois mil civis tinham abandonado"... "Na Cham evacuada por
nossas tropas"... "História dramática dos comboios da R.C.4"... - Jogou longe o jornal, cujas folhas
se espalharam, pegou outro e continuou: - "Uma manobra de envolvimento dos vietcongues torna
precária a situação da guarnição de Lang Son"... "A defesa do delta de Tonquin se organiza com a
evacuação dos vales"... - A medida que os lia, os jornais voavam pelo pátio. - ... "O abandono de Lang
Son e de Moncay permitirá reagrupar as tropas para uma mudança de tática"... Eles não ligam para
nós; instrui-se o processo do general Revers, o único a compreender claramente a situação!
- Ele talvez tenha compreendido a situação - interrompeu Léa -, mas como explicar que seu relatório
ultra-secreto, com apenas cinqüenta exemplares, todos numerados, tenha sido encontrado pela
polícia, que, numa só manhã, recolheu setenta e dois exemplares nos meios vietnamitas de Paris,
tanto entre os partidários de Hô Chin Minh quanto entre os de Bao Dai?
O assombro estampado no rosto de François era tão cômico, que Léa começou a rir.
- Você não é o único a se interessar pela Indochina! O que se passa lá é horrível, e compreendo o
que você sente.
- E porque é horrível que os órgãos de imprensa vão para lá como abutres, enquanto, durante anos
esta guerra só teve direito a algumas linhas.
- Você tomou sua decisão? - perguntou Léa olhando-o nos olhos.
Ele evitou habilmente a pergunta.
- Saberei mais sobre o assunto quando tiver falado com o presidente Sarraut. Perdoe-me, amor, mas,
se eu quiser chegar na hora para o jantar, tenho de partir imediatamente.
Ele a apertou a si e a beijou longamente.
- Tome conta de nossos filhos.
François Tavernier aproveitou o trajeto para rememorar o que ele soubera da conferência Inter-
Etats que se realizava em Pau desde o mês de junho. Presidida por Albert Sarraut, chefe da
delegação francesa, ela reuniu o governador do Vietnã do Sul, chefe da delegação vietnamita, Sum
Hieng, antigo vice-presidente do conselho cambojiano, e Phouy Sananikone, presidente do conselho
em exercício no Laos. Os vietcongues não estavam representados. De comum acordo, decidiu-se
examinar os problemas menos árduos de resolver: as transmissões, a imigração, o plano de
abastecimento, o comércio exterior, as alfândegas, os problemas financeiros e, apesar das
reticências da delegação vietnamita, o estatuto do porto de Saigon e da navegação no Mekong,
essencial para os países envolvidos.
Mas os encontros não se desenrolaram tão harmoniosamente quanto previra o presidente Sarraut. O
reagrupamento no seio da União Francesa dos Estados "independentes" do Laos, do Camboja e do
Vietnã, idéia cara aos velhos políticos, não era tão evidente aos olhos dos ditos Estados, e, em 14 de
outubro, o antigo governador da Indochina teve de fixar bem os pontos sobre o sentido da União
Francesa, cujo artigo 60 estipulava: "A União Francesa é formada, de um lado, pela República
Francesa, que compreende a França metropolitana, os departamentos e territórios de ultramar, e, de
outro, pelos territórios dos Estados associados." O artigo 62 dizia: "Os membros da União Francesa
usarão em comum a totalidade de seus meios para garantir a defesa da União. O governo da
República assume a coordenação desses meios e a direção política necessária para preparar e a
assegurar essa defesa." François tinha dificuldade em ver nesses artigos algo além da manutenção
sob tutela dos estados associados, e o discurso de Albert Sarraut lhe pareceu querer esconder dos
protagonistas a realidade de sua nova condição, apesar da segurança da criação de um Alto-Conselho, "onde cada um dos estados associados (poderia) ter sua representação
livremente
escolhida, a qual (teria) por função... assessorar o governo da República na condução geral da
União..."
Nas aldeias atravessadas, homens e algumas mulheres, sentados no degrau de suas portas,
aproveitavam a suavidade deste fim de dia outonal. Alguns jogavam bocha sob as árvores ou
tomavam um copo de vinho no café da esquina. Tudo estava calmo, a última guerra parecia longe. E
a da Indochina, mais longe ainda... É verdade que alguns jovens estavam comprometidos com essa
expedição longínqua, mas eram freqüentemente os mais cabeças-duras, aqueles que os da
resistência não tinham sabido orientar, ou então pobres rapazes que foram levados a se envolver
com o ocupante. Indivíduos com os quais não se poderia identificar nenhum daqueles honrados
jogadores de bocha, não mais que suas esposas ou seus garotos, que, de qualquer maneira, nada
tinham a dizer. Não era esse tipo de gente das cidades que tinha perdido o respeito aos mais velhos.
Velhos e menos velhos viam a coisa a seu modo e tinham preocupações suficientes todos os dias
para se preocupar com esses caras de limão que reclamavam independência. Mesmo os comunistas,
seus amigos, estavam mais calados.
O novo carro era agradável de dirigir; a paisagem, bela e familiar. Mas o humor do motorista
continuava melancólico. Ele tinha a impressão de que essa entrevista com o líder radical não lhe
acrescentaria nada. Suas tomadas de posição, em Pau, estavam muito de acordo com as do
governo. François não acreditava que a França formaria com os povos de ultramar "uma união
fundada na igualdade de direitos e deveres, sem distinção de raça nem de religião". Também não
acreditava no "uso comum dos recursos e dos esforços para desenvolver a civilização de cada uma
das nações, para aumentar o bem-estar e garantir a segurança". Vira funcionar de perto o espírito
civilizador francês, a dureza dos meios empregados para consolidar essa civilização, o racismo
notório ou dissimulado dos colonos, a suficiência dos brancos, sua incompreensão das culturas, que
eles consideravam freqüentemente inferiores. Como teria gostado de acreditar nestas belas palavras
de Albert Sarraut, falando do sentido da União Francesa: "Antes de tudo, a
vontade, saída do espetáculo dos horrores da guerra, de
preservar a humanidade da
volta desses horrores e de garantir o futuro do ser humano contra os massacres, as escravidões, as
degradações, os aviltamentos e as misérias, cuja força e poder para o mal poderiam ainda tentar ameaçá-los,
como fizera a abominável violência nazista... Todas as nações cuja alma não está corrompida por um criminoso
pensamento de hegemonia, de dominação opressora dos outros povos, sentiram a imperiosa necessidade de
se reaproximarem, de se agruparem, de concordarem com a salvaguarda do patrimônio humano, e de ampliar a
vontade das nações até a concepção de uma cooperação internacional, que, ao tornar-se progressivamente
mundial, deveria determinar, num estágio preliminar, a criação de agrupamentos iniciais sugeridos pelas
afinidades históricas, políticas e culturais."
Esses belos sentimentos haviam feito nascer as Nações Uni- das e a União Francesa...
Com uma brusca virada do volante, François evitou um cachorro. Um jovem pastor brandiu o bastão para ele.
As primeiras casas dos subúrbios de Toulouse apareceram.
Albert Sarraut recebeu François Tavernier no escritório do irmão, Maurice, assassinado pelos nazistas em 2 de
dezembro de 1943.
- Bom dia, senhor Tavernier, sente-se. Eu lhe agradeço ter aceito o convite. Insisti em recebê-lo aqui, no La
Dépêche, neste escritório, que ocupei pouco tempo antes de ser deportado, em 1944, em companhia do meu
amigo Jean Baylet, que era o diretor do jornal. Meu irmão e eu ficamos muito próximos um do outro; ele morreu
nos meus braços sem recobrar a consciência.
- Esse crime odioso provocou na França uma profunda indignação.
- Esse homem livre soubera resistir às pressões do governo de Vichy, que o censurava, entre outras coisas, por
conservar o título Journal de la Démocratie e manter nos artigos o ideal republicano. Por duas vezes ele
recusara as propostas de venda do La Dépêche por uma soma de cem milhões e mais o que lhe propunham
os esbirros de Vichy. Diante das diversas ameaças que
lhe eram feitas, os amigos e os pais o aconselharam a fechar o jornal ou desaparecer. "Não o abandonarei",
disse ele, "pois esse é um posto que cuida ao mesmo tempo das almas e do dever republicano. Não porei na
rua os operários, os empregados, os corretores, os redatores que o jornal ajuda a viver, entre os quais a polícia
de Vichy procuraria os militantes de extrema esquerda, que não escondem sua opinião. Mas tenho também
outro dever, o de manter aqui o símbolo da fé democrática. Minha partida seria uma deserção. Jamais farei
isso!"
Albert Sarraut parou, arquejante, com os olhos úmidos da lembrança do sacrifício do irmão.
- Quis encontrá-lo porque conheci seu pai na Indochina. Era um homem íntegro e generoso. Era muito ligado a
um de meus colaboradores, Touzet. Segundo informações, o senhor é um homem honrado e seu passado
recente fala a seu favor. Se o general de Lattre for nomeado, como acredito, terá necessidade de homens como
o senhor para corrigir a situação na Indochina, e...
- Senhor presidente - interrompeu-o Tavernier -, já não estamos no tempo em que o senhor era governador da
Indochina nem naquele em que escreveu Grandeza e dependência coloniais...
- Leu esse livro?
- Sim, com muito interesse. Eu era adolescente, navegava pelo mar da China com meu amigo Hai, e tínhamos
aprendido de cor a passagem em que o senhor evoca o mar. Nós o declamávamos de pé na proa do barco: "O
mar! O mar, senhor do mundo, cujos continentes ele liga; o mar, estrada imensa jamais interrompida, jamais
destruída, por onde pode chegar à entrada do país que ele banha o invasor, que o tornará cativo, ou as
riquezas, que o farão opulento. Temido ou cobiçado, qual povo pôde escapar à sua influência? Qual..."
- Bravo! Mas basta! Não sei se devo ficar lisonjeado, como autor, pelo fato de o senhor tenha guardado essa
passagem lírica, ou, como homem político, humilhado pelo fato de só se ter lembrado dessa ode ao mar num
trabalho que desejava ser o balanço da obra colonial da França!
- Meu amigo Hai e eu não compartilhávamos inteiramente
seu ponto de vista sobre a grandeza da colonização e sobre os deveres do homem branco.
Albert Sarraut se levantou, com ar subitamente cansado.
- Venha jantar, prosseguiremos essa conversa à mesa.
Numa pequena sala contígua, a mesa estava posta para dois.
Um velho mordomo os servia. Comeram o foje gras em silêncio.
O antigo presidente do Conselho esvaziou de um gole o copo de
Sauternes.
- Durante muito tempo acreditei que a idéia de independência assustava o povo indochinês, apesar da sua
cultura e da existência milenar de quadros sociais, e que o enunciado da independência parecia à elite local um
completo absurdo ou, melhor ainda, um contra-senso. Parece que eu estava enganado. E não fui inteiramente
coerente comigo mesmo quando disse a meus colegas vietnamitas, em Pau, que eu sentira crescer seu desejo
de independência, que isso não tinha me surpreendido, pois conhecia esse sentimento nacional de longa data;
que, se fosse exacerbado sob o efeito das comoções que agitaram durante a última guerra o mundo asiático, ele
não teria nascido lá; que era bem anterior, vinha do esforço secular desenvolvido pelo povo anamita por
retomar e defender a liberdade contra a enorme China... O general de Lattre perguntou minha opinião.
Aconselhei-o energicamente a apoiar Sua Majestade Bao Dai, a ajudálo em sua tarefa de governo e sobretudo
na formação de um exército vietnamita, que, pouco a pouco, deveria ser capaz de nos substituir na luta contra
os vietcongues.
François escutava com curiosidade e uma ponta de emoção
o velho radical franco-maçom. Deputado pelo
Aude aos trinta anos, depois da estréia no La Dépêche du Midi junto çom o irmão Maurice, mais velho que
ele três anos, bateu-se em duelo com um deputado bonapartista que insultara Clemenceau e depois pedira
demissão. Em 1909, Briand o convidara para ser subsecretário de Guerra. Foi nomeado governador-geral da
Indochina em 1911. Nessa época conhecera o pai de Tavernier, Le Dang Doanh e Martial Rivière. O mandato
marcara a apoteose da colonização francesa; a Indochina conhecera nesse momento gran
de prosperidade, a despeito da guerra que assolava a França... Sucessivamente ministro das Colônias, do
Interior, da Marinha, duas vezes presidente do Conselho, senador até 1940, personalidade reconhecida e
contestada, esse homem corpulento, grande admirador das mulheres e de objetos de arte, suscitando tanto
ódios quanto amizades, era, aos setenta e oito anos, um homem poderoso e temido.
- A conferência de Pau não serviu para nada; os comunistas franceses continuam a colocar obstáculos à
realização de qualquer coisa, e o que dizer dos representantes dos Estados associados? Não consegui fazê-los
compreender o interesse que havia aqui, para eles, em fazer parte da União Francesa. Tentei tirar suas dúvidas,
mostrar-lhes a sinceridade da França quanto ao respeito à independência de cada um dos Estados-membros,
empenhei minha palavra, falei com eles olhos nos olhos, mão na mão, garanti-lhes que acreditava em sua
lealdade à República Francesa; declarei-lhes que não acreditava ser imaginável que um deles, vietnamita,
cambojiano ou laociano, pudesse dizer: "Combata por nós, por nossa independência; continuem a gastar,
como fazem, mais de duzentos milhões por ano e milhares de vidas francesas para afastar de nossas nações a
ameaça do imperialismo estrangeiro e da escravização de nossos países; fiquem exaustos para salvar nossa
liberdade e assegurar nossa tranqüilidade; depois disso, retomem seus navios dizendo-nos adeus, ao qual
responderemos com um rápido abanar de chapéu!" - Esvaziou o copo de Bordeaux e continuou: - O
imperialismo moscovita, criador da servidão mundial, é o perigo supremo, eu lhes disse. Para vocês, em
primeiro lugar, mas para os outros em redor de vocês, também. A Indochina, sua Indochina, tornou-se o
elemento essencial de grande problema, cuja solução estratégica deixa suspensa a independência ou a
escravização de todo o Sudeste da Ásia, desde a região do Tonquin até o oceano Índico. Se a barragem
indochinesa ceder, se a fechadura que cerra as portas do Vietnã do Norte se quebrar, a irrupção comunista
pode arrastar todos os territórios da fronteira da China à antiga fronteira das Indias. Repito, o ponto essencial
da resistência de todos esses
países à opressão que os ameaça está no Vietnã; o Vietnã é a fronteira da liberdade. É por isso que a França
não poderia abandonálos, abandoná-los sem se desonrar. É preciso que, após o juramento de morrer juntos, se
assegure a vontade de viver juntos!
O velho homem esquecera a presença do hóspede; falava como se estivesse na tribuna, diante de um auditório
que ele se obstinava em convencer. Qual a parcela de sinceridade e qual a de habilidade política em suas
propostas? Seu anticomunismo parecia visceral.
- O senhor nunca acreditou na lealdade de Hô Chin Minh?
- Não, é um autômato que recebe ordens de Moscou. Creia- me, auxiliar o imperador é o melhor meio de ajudar
esse país que ambos amamos.
- Jean Sainteny não é dessa opinião.
- Meu genro tinha grandes qualidades, mas era ingênuo.
- Não é a impressão que me deu.
- O senhor mesmo encontrou Hô Chin Minh. Qual a impressão que lhe causou?
- A de um homem cansado, dotado de grande energia, patriota convicto, comunista sincero e adversário
honrado.
- Como os outros, o senhor sucumbiu ao charme desse velho astuto. Até minha filha, Lydia, o achou sedutor...
Passemos às coisas sérias. Quis vê-lo, antes de sua partida, para lhe entregar algumas cartas de recomendação
que poderão lhe ser úteis em sua missão. Leve-as com muito cuidado: algumas são confidenciais...
Albert Sarraut tirou do bolso do paletó três envelopes lacrados. François os recebeu. Os nomes que neles
apareciam não lhe diziam nada. O antigo governador notou isso.
- O senhor esperava nomes mais eminentes. Não se engane sobre isso: os destinatários poderão lhe salvar a
vida, ou pelo menos ajudá-lo a sair de alguma dificuldade. Sei que conhece bem as mentalidades anamitas, bem
como certas partes do país. As pessoas às quais o envio as conhecem melhor ainda. Tudo isso lhe permitirá
cumprir com mais segurança sua missão ao lado do general de Lattre.
- O senhor tem bastante certeza da minha partida...
- Não tenho nenhuma dúvida. Conheço os homens de sua têmpera, são feitos para o risco e para a
aventura e, algumas vezes, para a glória.
François Tavernier deu um sorriso amargo.
- A glória!... Sei bastante bem o que ela é: lama e sangue, sofrimento, desgosto de si próprio, o tédio
da espera, o medo na barriga e o ódio no coração. Fui testemunha de muitos combates, de mortes e
de atrocidades para alcançá-la!
Albert Sarraut sorriu por sua vez, um sorriso sem alegria.
- O senhor sabe tudo isso, e mesmo assim vai partir... Os homens são animais engraçados, senhor
Tavernier. Raymond, traga-nos o velho Armagnac.
- O do senhor Omer? - exclamou o empregado com ar de reprovação.
- Evidentemente, conhece algum outro?
- Não, senhor Albert - disse o velho homem, dirigindo-se o mais rápido que podia para uma biblioteca
com grades nas janelas.
- É o Armagnac de meu pai, o senhor me dirá o que achou dele.
Raymond despejou o precioso líquido com todo o respeito à sua elevada idade. Com o mesmo gesto,
os dois homens levaram os copos ao nariz e, de olhos semicerrados, absorveram-lhe o perfume.
Depois de se saudarem com a cabeça e com os olhares, beberam um gole. O rosto redondo de
Albert Sarraut se alegrou, e, atrás dos óculos, o olhar brilhou.
- O que acha desta maravilha?
- Fiquei extasiado, senhor presidente.
Quando se despediram, o calor do Armagnac havia momentaneamente afastado os fantasmas da
Indochina.

Capítulo 7

O general de Lattre foi nomeado alto-comissário e comandante das tropas na Indochina em 6 de
dezembro de 1950.
O Constellation deixara Calcutá e voava em direção a Saigon. Mais algumas horas de viagem, e a
família Tavernier pisaria o solo indochinês. Com a cabeça apoiada no postigo, Léa estava sono-
lenta, segurando junto a si o bebê, que dormia de mãos fechadas. Apesar da distância da viagem,
das escalas fatigantes no Cairo, em Karachi e em Calcutá, Léa tinha uma fisionomia tranqüila e
descansada. François observava, enternecido, a beleza do par que formavam a mãe e a criança. Do
outro lado do corredor central, Charles e Adrien jogavam cartas, mal contendo os gritos de alegria
ou de decepção diante dos acasos do jogo. Sentindo sobre si o olhar de seu pai, Adrien perguntou:
- Vamos chegar logo?
Uma aeromoça que passava ouviu a pergunta e compreendeu a impaciência do menino.
- Bem depressa. Mas, se quiser, e seu pai permitir, pode vir com o amigo até a cabine de pilotagem.
O comandante está de acordo.
- Tio François, diga que sim! - suplicou Charles.
- Não se aflija, senhor, tomarei conta deles.
Não era isso o que alarmava François, mas o que os esperava na chegada. Que loucura ter trazido as crianças,
ter cedido à chantagem de Léa!
"Se você partir sem nós, nunca mais nos verá..." Ela seria capaz de cumprir essa ameaça. Apesar do que ela
vira e soubera da situação na Indochina, dos riscos a que se expunha com os filhos, não quis ouvir nada.
Quanto a Charles, seu desespero foi tal quando a partida foi anunciada, que Françoise, que o conhecia bem,
receara o pior. Todos em Montillac, sem ousar dizer-se uns aos outros, pensavam o mesmo. O menino tinha
agora dez anos; era corajoso e determinado.
"Cuidarei de Adrien e Camille", dissera ele. E o fizera desde que tinham deixado Paris. François não quisera
levar ninguém para cuidar das crianças: "As mulheres chinesas são as melhores babás do mundo."
Encarregara Lien de alugar uma vila num bairro agradável de Saigon, de contratar pessoal e de se mostrar
particularmente atenta na escolha das mulheres que cuidariam das crianças.
Ele suspirou, impaciente com essas lembranças domésticas, e tentou retomar a leitura do Hussard bleu, de
um jovem escritor de que se falava muito, Roger Nimier. Ainda um romance que lembrava a guerra: não
estavam fartos esses romancistas de escrever e escrever sobre esse sinistro período?
Uma frase o fez parar: "Tudo o que é humano me é estranho..." Pensativo, deixou cair o livro, fechou os olhos,
e o fino rosto macilento do líder comunista vietnamita lhe apareceu, e não podia ser mais real. Lembrou-se do
falso anúncio de sua morte, no dia 11 de novembro precedente, aparecido em todos os diários da capital. A
angústia experimentada nesse dia lhe reapareceu, saída desta pergunta: Se isso tivesse sido verdade, os
vietcongues, tendo perdido o chefe, a alma, teriam condições de prosseguir essa guerra ou teriam de buscar
um processo de entendimento com o governo de Bao Dai, evitando assim a guerra civil? Para isso não haveria
jamais uma resposta. O despacho da agência
Reuters revelou-se inexato; o ataque lançado pelos caças King Cobra e os bombardeiros Junker contra uma
aldeia da fronteira chinesa, onde, acreditava-se, Hô Chin Minh conferenciava com conselheiros militares
chineses e russos, matara apenas infelizes nhà que*. "Pobre país!", pensava ele, reabrindo os olhos.
Nos joelhos da mãe, o bebê se agitou, franziu o pequeno rosto, esticou-se e bocejou com volúpia. Léa abriu os
olhos e olhou a filha com encantamento.
- Como você é bonita! - disse ela, levantando-a e beijando-a no pescoço.
A menina resmungou.
- Parece que não gosta de beijos, não é como a mãe - disse François, pousando os lábios no vão do ombro da
mulher.
Léa deu aquela gargalhada que tanto o perturbava.
- Tome, segure-a, eu vou esticar as pernas.
Ela se levantou, colocou a criança nos braços dele, e ficou de pé a contemplá-los. Não se cansava de vê-lo em
companhia dos filhos. Isso lhe parecia maravilhoso, irreal. François Tavernier era desses homens que não
imaginamos pais de família; ele próprio nunca pensara verdadeiramente em desempenhar esse papel. Isso não
o desagradava, mas o desconcertava. As aeromoças estranhavam ver esse homem com jeito de aventureiro dar
a mamadeira. As passageiras jovens lhe lançavam olhares amorosos, irritando Léa. François lhe dizia que, de
sua parte, ela não deixava de virar a cabeça do pessoal masculino da tripulação, sem falar na dos passageiros.
- Senhoras e senhores, queiram apertar os cintos, estamos iniciando a descida em Saigon...
O avião pousou com relativa suavidade no aeroporto de Tan Son Nhut, a alguns quilômetros do centro de
Saigon; eram duas da tarde. Desde que as portas foram abertas, um calor pesado invadiu o aparelho. A luz
ofuscante de um sol refletido queimava os olhos. Ao descer a escada, Léa teve a impressão de estar se
derretendo. Com um lenço de seda protegeu a cabeça do bebê.
Quando entrou no prédio da alfândega, pareceu-lhe sair de uma estufa. A pequena Camilie começou a chorar.
Graças ao funcionário enviado pelo alto-comissariado, as formalidades foram rapidamente cumpridas.
- Senhora Tavernier, perdoe-me, mas tenho de levar seu marido imediatamente ao alto-comissário. Um carro a
espera para conduzi-la à sua nova residência. Meus assessores se ocuparão de sua bagagem. Não se aflija, seu
marido estará a seu lado no fim da tarde.
Léa observou François partir, com o coração apertado por vaga apreensão. Seguida por Charles e Adrien, ela
se dirigiu para o carro. O interior do veículo era uma verdadeira fornalha. Adrien se pôs a choramingar:
- Está fazendo muito calor, mamãe, muito calor...
- Cale-se - disse Charles. - Logo estaremos em casa.
O garoto se calou, como todas as vezes que Charles mandava; Charles era o único a ter autoridade sobre ele.
Adrien lhe obedecia sem ficar de mau humor.
O calor havia enclausurado os moradores em suas casas. Alguns vendedores ambulantes dormiam, estirados
no chão, à sombra dos tamarineiros ou dos flamboyants; outros fumavam, encostados aos muros das casas.
Na varanda de um café, soldados franceses em uniformes desabotoados, alagados de suor, bebiam cerveja.
Abrigados sob a capota dos cyclo-pousse, os condutores, adormecidos, aguardavam o ar fresco da noite.
O carro passou devagar diante do jardim botânico. As ruas eram ladeadas por casas graciosas; o motorista
parou diante de uma delas.
- Já chegamos, madame.
- Como se chama esta rua?
- Rua Pellerin, senhora. É uma rua calma, num bairro agradável. A senhora está a dois passos da rua Catinat.
Léa ficara muito pouco tempo em Saigon para ter alguma idéia do lugar onde se encontrava. Mas pouco
importava: a casa era simpática, com um pequeno jardim na frente e uma varanda. A porta se abriu; Lien dirigiu-
se para os viajantes. "Ela é mesmo
bonita", pensou Léa com irritação ao beijá-la. Lien recuou e a saudou à maneira vietnamita. Charles, com
Adrien pela mão, encarava-a com insistência. A jovem se aproximou sorrindo:
- Você é Charles, não é?
O menino concordou.
- Seja bem-vindo a meu país. E você é Adrien?
O menino colou-se ao amigo, mas depois, animando-se, perguntou:
- Por que está vestida assim?
Lien sorriu.
- É o traje das mulheres daqui.
- É bonito - comentou o garoto.
- Venham para dentro de casa, está melhor que aqui.
Um grande piso de lajes azuis e brancas, no qual se destacavam alguns tapetes chineses muito bonitos, dava a
impressão de frescor e bem-estar. As portas abertas para o fundo deixavam perceber um jardim frondoso, de
umverde denso. Sempre levando Camille, Léa atravessou o vasto salão e contemplou esse oásis no coração de
Saigon. Virou-se com um sorriso radioso:
- Que lugar agradável! Esse jardim é magnífico...
- Foi minha mãe quem mandou plantá-lo, mas nunca o usufruiu. Meu pai preferia Hanói. Esta casa esteve
alugada a ricos administradores ou comerciantes. Já estava desocupada havia um ano. Não tive tempo de
arrumar muita coisa, mas a parte interna está limpa e confortável.
- Obrigado, Lien, ficaremos muito bem aqui. Veja, não lhe apresentei a irmã de Adrien - disse Léa, estendendo-
lhe a filha.
- Posso? - perguntou a outra, segurando-a com ar de encantamento.
Por razões diferentes, as duas jovens mulheres estavam muito comovidas uma com a outra. A fim de esconder
o embaraço, Lien encostou o rosto ao do bebê. A menina se agarrou a seus cabelos, desfazendo o coque de
espessas espirais, que se desenrolaram de uma só vez até os tornozelos. A massa escura e brilhante arrancou
um grito de admiração de Léa e Charles. A suntuosidade da cabeleira dava a Lien o ar de uma princesa bárbara,
e sua beleza parecia maior ainda. Agora, ela ria ao entregar o bebê
a uma mulher de idade respeitável que acabara de entrar, seguida de cinco ou seis pessoas.
- Eis seus empregados.
- Mas não precisamos de tanta gente!
- É o necessário para uma casa desse tamanho. Eis ThuyChâu, que cuidará de controlar o trabalho de cada um.
Conheço-a há muito tempo, é uma mulher respeitável e honesta. Para as crianças ela recrutou Lixia* e
Jiancir**; são chinesas. O cozinheiro se chama Luyên. Khoa e Trân cuidarão da casa e das compras. Quanto
ao motorista, penso que François vai querer tratar disso ele próprio...
- Um motorista? Podemos dirigir nós mesmos!
- Eu não aconselho. Não seria seguro nem conveniente. Vou lhes mostrar os quartos...
François só voltou no fim da tarde, cansado e de mau humor. Reencontrou o sorriso diante do lindo quadro
formado por Léa e Lien, brincando no jardim com as crianças. Sua amiga de infância veio até ele, ruborizada. Ele
a beijou com evidente felicidade.
- Como está bonita, irmãzinha!
O corpo delgado enrijeceu.
- Esta não era a casa de sua mãe?
- É minha agora. Estou feliz por sua família e você poderem usufruí-la. Desejo que sejam felizes aqui.
- Tio François, venha ver o jardim, pode-se chamar de floresta! - disse Charles, tentando levar François.
- Eu já conheço, vinha aqui quando tinha a sua idade. Digamos que é uma floresta na escala das crianças. Acha
que ficará bem aqui, querida? - perguntou ele tomando Léa nos braços.
- Sim, muito. Quase não há diferença, aqui há como um ar de Montillac. De qualquer maneira, com você eu
estaria feliz em qualquer lugar. Como foi o encontro com o alto-comissário?
- Com certo alívio... A chegada de De Lattre lhe tira um grande espinho do pé. O começo das hostilidades na
Coréia acelerou a liberação de material vindo dos Estados Unidos. Pignon conta muito com os quarenta caças
chegados no mês passado, com os oito Dakota, os barcos de "landingcraft"*, o equipamento e o
armamento de doze batalhões vietnamitas, tudo fornecido com a cobertura da participação de conselheiros
militares americanos. É muito menos do que esperavam as autoridades francesas e o governo de Bao Dai, mas
é preciso ainda acrescentar dezesseis bombardeiros, que devem chegar de um dia para o outro.
- Mas por que caças bombardeiros? As populações civis serão as primeiras a ser atingidas... - exclamou Lien.
- O alto-comando assegura que só serão bombardeados os pontos estratégicos.
- É o que dizem todos os militares do mundo - disse Léa, servindo-lhe um conhaque-soda, que ele engoliu de
uma só vez,
- Obrigado, estava precisando muito. Vou tomar um banho de chuveiro. Você me acompanha?
O banho de chuveiro foi o pretexto para um divertimento que terminou no chão escorregadio do banheiro.
Acabavam de se vestir novamente quando o gongo anunciou a hora do jantar. Com os cabelos úmidos,
entraram na sala de jantar abraçados pela cintura. A mesa fora posta à vietnamita, isto é, com uma profusão de
pratos. Charles tinha muita dificuldade com os pauzinhos, apesar dos conselhos de Lien. Quando conseguiu
agarrar um pedaço, exclamou:
- Está muito bom!
- Esta refeição está suntuosa - elogiou François, retomando os croquetes de camarão. - Você tinha me falado da
pobreza, em suas cartas. Então as coisas melhoraram, pode-se dizer!
- Apenas no sul. Em Hanói, há escassez. Desde as derrotas da R.C.4, a maior parte dos comerciantes chineses
fechou as lojas. Tudo está à venda: cinemas, restaurantes, hotéis, vilas. Dá até para pensar que voltamos a
1946. A ponte Paul-Doumer está
guardada por africanos armados de fuzis-metralhadoras; no rio Rouge bóiam três barreiras de minas. Todos os
blindados estão ao norte da cidade; em cada cruzamento há postos de polícia protegidos por sacos de areia. O
bairro da Citadelle está cercado de tanques. Informações falsas circulam, afligindo os civis. Quanto aos
comandantes do exército, seu pessimismo é grande. Depois do desastre da R.C.4,o senhor Pignon foi a Hanói.
Com o general Boyer de la Tour, circulou numa cidade em estado de sítio. Para tranqüilizar o que resta de
franceses, convidou-os, com jornalistas da metrópole e do estrangeiro, ao Palácio do Governo, para lhes dizer
que Hanói não seria entregue aos fanáticos vietcongues: "Sabemos o preço da defesa: sangue e lágrimas.
Combateremos. Defenderemos a cidade bairro por bairro, rua por rua, casa por casa..."
- Pignon por Pignon - acrescentou François, às gargalhadas.
- Você já sabia? - disse Lien em tom frustrado.
- Sim, apressaram-se a me contar esse episódio ridículo, e as duras propostas feitas pelo procurador Bona, com
as quais estou de acordo. No alto-comissariado, querem dar a impressão de que a chegada de De Lattre vai
acertar tudo. O que acha?
- Sou mestiça, não se esqueça. Dos dois lados desconfiam de mim. Segundo Bernard, o que se passou em Lang
Son, em Cao Bang ou em Hoa Binh não deveria ter acontecido. A burrice e a incompetência dos estados-
maiores foram a causa dessa derrota.
- Bernard luta ao lado deles?
- Sim, é subtenente, talvez até tenente agora. Jurou matar o maior número possível de vietecongues para vingar
a morte da mulher e da filha e impedir os comunistas de tomar o poder. Ele é, parece, implacável, cruel,
desumano. Quanto a Hai, graças à proteção do presidente Hô Chin Minh, se bem que mestiço, ascendeu a um
posto importante. Aderiu ao partido e jurou caçar o invasor francês.
- E você - sussurrou-lhe afetuosamente François -' de que lado está?
- Não sei de nada - respondeu Lien. - Desejo ao mesmo tempo o fim desta horrível guerra e a independência do
meu país...
- Você é igualmente francesa... - observou Léa.
- Francesa de nome. Rivière, não pode ser mais francês, não é? Francesa de nacionalidade, sim, mas vietnamita
de coração. Olhem bem para mim: vêem que eu sou vietnamita!
Ajovem mulher, que quase nunca bebia álcool, estendeu o copo.
- Dê-me um pouco de vinho - ordenou ela a François, que obedeceu. - Depois da demissão de Nguyen Phan
Long - recomeçou ela - acreditei por um momento que o imperador Bao Dai poderia reunir em torno de si o povo
vietnamita não-comunista. Foi a um homem da Cochinchina, cidadão francês, TraVan Huu, que ele confiou a
tarefa de formar um novo governo. Graças ao novo chefe da segurança, Doe Phu Tam, conseguiu restabelecer
a tranqüilidade nas aldeias do sul e em Saigon-Cholon. Mas, na minha opinião, isso só pode ser provisório, e a
ajuda americana só fará prolongar a guerra contra os vietcongues, reforçados sem cessar pela China.
- Você acredita que a presença francesa está definitivamente condenada?
- Sim. Ainda que o povo vietnamita não seja comunista, ele se reunirá para caçar todos os que, de perto ou de
longe, lhe relembrem o colonialismo.
- Mas o armamento ocidental não é superior ao chinês e ao soviético? - perguntou Léa.
- E daí? Neste momento... E o que podem armas e bombas contra a vontade de todo um povo?
- Podem matá-lo.
- Podem matar milhares, milhões de pessoas, mas não poderão chegar ao fundo da vontade de independência
do povo vietnamita. Isso talvez dure anos, mas, no fim de tudo, venceremos.
- Podia-se pensar estar ouvindo uma deles, como diziam a mim na França! - disse François.
- E o sou de coração, porque a luta é justa.
- Lembre-se, quando éramos adolescentes, você pensava a mesma coisa que Hai e eu...
- Continuo compartilhando seu sentimento em tudo o que é relativo à independência. Não forçosamente os
meios de alcançála. Não acredito no sucesso do governo Bao Dai; está muito separado do povo, em particular dos tonquineses. Não é a ajuda americana que poderá mantê-lo
no
posto. Ele é apenas um engodo diante da ascensão do comunismo. Faltam-me muitos elementos
para apreciar a situação, mas já não acredito na pacificação preconizada pelo general Carpentier,
apesar de seus cento e cinqüenta mil homens. O desastre de Cao Bang e o abandono em pânico de
Lang Son desmoralizaram as tropas. O exército já não tem confiança nos que o comandam...
- O general De Lattre está aí para mudar tudo isso - chamou a atenção Léa.
- Numa primeira etapa, certamente. Mas, com o passar do tempo, não acredito.
- Então por que aceitou voltar para cá? - perguntou Léa com raiva.
- Não é fácil de explicar. Ainda que ache nossa causa perdida, quero tentar ainda uma vez ajudar
este país e o meu.
- Mas está em contradição com tudo o que você sempre me disse sobre a independência, o
presidente Hô Chin Minh, a história do Vietnã! Desde pequena eu achava normal o império colonial
francês; como todas as crianças da minha idade, acreditava que a França levava a civilização para o
resto do mundo. Desde a guerra sei que não é verdade, que todos os que usam um uniforme só
querem uma coisa: combater os que não usam o mesmo uniforme e submeter os que não usam
nenhum! Aqui se passa o mesmo que na França! - exclamou Léa.
- Você não vai fazer novamente essas comparações entre a resistência francesa e a resistência
vietnamita... São completamente distorcidas!
- Não para mim! Os homens que combatem pela liberdade têm os mesmos direitos em toda a parte.
Lien pousou a mão na da jovem mulher.
- Se as duas estão contra mim, desisto! - disse François, notando o gesto.
Os três ficaram um momento em silêncio.
- O que aconteceu com Kien? - perguntou Léa.
O rosto delicado de Lien ruborizou-se.
- Tornou-se um dos chefes de Cholon e dita a lei no Grand Monde, em companhia de Bay Vien.
- Compreendo - disse Léa. - Então é um bandido. É verdade que tinha tendências...
Lien baixou a cabeça, confusa. François veio em seu socorro.
- Aqui não se pode dizer as coisas assim. Você está na Ásia, as noções de bem e mal não são as
mesmas. Um bandido pode ser uma honra para os seus...
- Eu lhe agradeço, François, mas não é uma honra para mim ser irmã de Kien, se bem que o ame
ternamente e lhe seja dedicada. Tenho vergonha de pensar em nosso pai e em nossa mãe e,
principalmente, no meu avô. Tenho de agradecer aos deuses que estejam mortos e não possam ver
um descendente de nossos antepassados traficar drogas, piastras e mulheres.
- Agora ele é proxeneta? Só lhe faltava essa! - exclamou Léa.
François esboçou um gesto conciliador.
- Vou vê-lo. Tenho certeza de que não é tão trágico quanto Lien quis dizer.
- Oh, sim, vá vê-lo! - exclamou a jovem, esquecendo que Kien tinha tentado matar François. - A você
ele escutará. Eu, sua irmã, não sou a seus olhos mais que uma mulher...
- Ele sabe que estamos aqui?
- Sabe.
- Então, iremos vê-lo juntos. Você vem?
- Nem pensar! Uma mulher decente não vai ao Grand Monde! - exclamou Lien, baixando a cabeça.
François estourou de rir.
- Então, Léa não é uma mulher decente?
- Não quis dizer isso - balbuciou Lien.
- Eu sei, estava brincando! Vou fumar um charuto no jardim... Depois irei me deitar, estou
estourado.
Elas viram afastar-se o homem que amavam. Uma baforada do aroma do tabaco chegou até elas,
misturado com o odor das plantas regadas. Léa acendeu um cigarro e passou a fumar, pensativa,
com os olhos postos no vazio.

Capítulo 8

No hangar do aeroporto de Tan Son Nhut, transformado em salão de recepção, todas as
pessoas importantes, civis e militares, em Saigon esperavam, no fim da tarde do dia 17 de
dezembro de 1950, a chegada do general De Lattre. O sol batia forte no teto do hangar; os
homens vestidos de branco ou de bege enxugavam o rosto; os vestidos claros das mulheres
colavam-se à pele, o suor escorria como pérolas por cima dos lábios. Essa quantidade de
pessoas habitualmente muito falante estava bastante silenciosa; parecia à espera de uma má
notícia, não de um salvador. Entre essas pessoas, Léa se sentia uma estrangeira, mas François
exigira que ela assistisse, bem como Lien, à chegada daquele a quem chamavam "rei Jean". As
escondidas ou abertamente cada um examinava esse novo rosto e o da jovem mestiça que a
acompanhava, fresca e elegante numa túnica vietnamita. Uma estava de vermelho, a outra de
amarelo. O vestido vermelho de Léa deixava à mostra as costas e os braços; o chapéu de palha
preta com bordas largas, enfeitado com uma rosa escarlate, acentuava a insolência do traje justo.
Sandálias de couro negro e de salto alto e uma pequena bolsa adequada completavam o
audacioso traje.
- Senhora Tavernier.
Léa observou vir até ela um jovem vietnamita com um terno imaculado. Ela teve a impressão de já
ter visto essa cena.
- Senhor Müller!
- A senhora se lembra de mim! É uma grande alegria e uma honra para mim.
- Não esqueci que o senhor foi a primeira pessoa que me acolheu em Saigon. Lien, apresento-lhe
Philippe Müller, de quem já lhe falei. Senhor Müller, eis a amiga de infância de meu marido,
senhorita Lien Rivière.
Os dois jovens apertaram as mãos.
- E a mim ninguém diz bom dia?
Depois de um momento de hesitação, Léa reconheceu Lucien Bodard, o jornalista de terno
amarrotado e camisa encharcada de suor.
- Vão nos matar aqui embaixo! - soprou ele, enxugando a testa. - Ei-la de volta, senhora, a nossa bela
colônia. Eu soube com alegria que a senhora reencontrou seu marido. Gostaria muito de encontrá-lo.
Onde está?
Léa mostrou com a mão um grupo que cercava o alto-comissário, Léon Pignon, e o comandante, o
general Carpentier.
- Ele está com os importantes! O que veio fazer neste lugar?
- François está aqui a chamado do general de Lattre.
- Como eu... Ele perguntou a seus oficiais qual era o jornal francês mais importante. "Le Monde",
disse um; "Le Figaro", disse outro. "Vocês estão enganados", cortou o general, "é oFrance
Soir!" E acrescentou: "De agora em diante quero que o correspondente do France Soir esteja ao
meu lado em todo lugar que eu for." Como sou eu o correspondente, eis-me aqui!
Um de seus colegas o puxou pela manga.
- Lucien, estão procurando-o por toda a parte, o avião já foi anunciado!
- Estou indo! Adeus, senhora Tavernier, até logo...
O aparelho desceu no fim da pista e se imobilizou diante do hangar.
A escada foi rolada até a porta do quadrimotor. A porta se abriu, todos pararam de respirar.
Marselhesa começou. Um homem gordo, de terno branco sobre o qual sobressaía a condecoração
da Legião de Honra, chapéu na mão, descia com passos cuidadosos. Era o ministro dos Estados
Associados, Jean Letourneau. Estava quase chegando ao fim da escada, quando apareceu, no alto, o
herói tão esperado e tão temido. O general de Lattre ficou um momento imóvel no uniforme de gala
branco, que realçava uma gravata preta e uma fila dupla de condecorações. Na manga esquerda, a
insígnia do Rhin-etDanube, as duas divisas amarelas dos Comandos da França e o galão verde de
primeira classe da Legião. Depois desceu lentamente, as mãos com luvas de camurça branca,
apoiado na bengala. Olhava para a frente com ar altivo. Quando tocou o solo vietnamita, imobilizou-
se em posição de sentido até o fim da Marselhesa. Depois passou em revista as tropas e saudou as
bandeiras. Léon Pignon e o general Carpentier o seguiam, pouco à vontade. É verdade que a
saudação do "rei Jean" fora das mais glaciais. Depois dele, desceram em uniformes impecáveis,
muito bem talhados, os homens de seu staff, todos oficiais de prestígio. Entre eles, Raoul Salan,
apelidado "o Chinês" ou "o Mandarim" por seu conhecimento da Ásia e da língua vietnamita.
Diante das tropas, o general declarou:
- Eu tenho orgulho de estar à frente de um exército francês que luta. Trago e ofereço a esta terra
meu mais total devotamento. Venho como soldado, com toda a lealdade, trazer a palavra da França,
que pretende concluir a obra que começou neste país.
A voz seca, a elegância severa da silhueta, a firmeza, o nariz arqueado de narinas contraídas, tudo
nele fascinava os civis e militares ali reunidos. É que o general de Lattre de Tassigny chegava
precedido de reputação de megalômano que não suportava contradição. Brutal, às vezes injusto,
desdenhoso, cuidadoso com a própria imagem, ele era exigente frente a seus subordinados, duro
com os oficiais, mas também capaz de magnanimidade e
fiel às amizades. Para alguns era um sátrapa; para outros, um paladino. Era amado ou odiado na
mesma medida, temido sempre. Tinha mandado carregar a bordo do avião milhares de pacotes de
Natal destinados aos soldados...
Quando o saudou, François Tavernier não pôde deixar de pensar: "Que cabotino!" O general se
instalou no carro, ovacionado pela multidão. François tomou lugar entre a escolta, que passou a cem
por hora pelas ruas de Saigon. O sol poente fazia brilhar as grades douradas do palácio Norodom,
residência do alto-comissário; entre o verde dos gramados e a areia vermelha das aléias do jardim,
os sentinelas de capacete chinês com ponta de cobre apresentavam armas. Philippe Müller
acompanhou Léa e Lien à rua Peilerin. Léa convidou-o a tomar um refresco. Os empregados se
apressaram, enquanto as assam traziam as crianças. Alguns momentos depois, o jardim estava
cheio de gritos e risos.
- Como estava o general? - perguntou Charles.
- Como um general - respondeu Léa, abanando-se com seu lenço.
Essa resposta lacônica pareceu suficiente ao menino que voltou a mergulhar na leitura de Spirou.
Enquanto Lien fazia os pedidos para o jantar, Léa dava a Philippe notícias da França: de seu tio e de
sua tia, Joseph e Myriam Bonder, que ela, agradecida, fora cumprimentar quando de seu retorno a
Paris; dos filmes Stromboli e La Charge héroïque, que vira antes da partida; da última peça de
François Mauriac, Le Feu sur la terre, do prêmio Femina, que ainda não lera; da morte da
jornalista Andrée Viollis, que entristecera François...
- Eu não sabia que ela havia morrido. Meus pais a conheceram bem quando esteve em Saigon, em
1931, acompanhando o senhor Paul Reynaud, então ministro das Colônias. Ela continuou algum
tempo depois da partida do ministro. Foi graças a
meu pai que pode encontrar o papa dos caodaístas*, o senhor Le Van Trung.
- Meu marido me fez ler seu livro Indochine S.O.S. Ele me permitiu compreender melhor o que se passava
aqui antes da guerra. E agora, não está tudo parecido? - perguntou Léa.
- Não se ousa tratar os nativos da mesma maneira, mas o tráfico de todos os gêneros vai muito bem. Houve
alguns atentados, que assustaram os brancos. A senhora se lembra daquela noite em Cholon, quando de sua
chegada?
- Muito bem!
- Bay Vien, que a recebeu, tornou-se ainda mais poderoso. Ele comanda um verdadeiro exército, e nunca se
sabe se está com os franceses ou com os vietcongues. Quanto ao irmão da senhorita Rivière, é um jovem
respeitado e... temido! Como se comportou com a senhora? Não gostei de tê-la deixado partir com ele.
- O senhor não tinha muita escolha. Ele foi muito correto, se é o que quer saber, mas não quero revê-lo...
- Isso será difícil, ele tem seus contatos no alto-comissariado, e a senhora mora na casa da irmã dele.
Uma campainha tocou. Pouco depois, Thuy-châu correu a dizer a Léa:
- O senhor Kien Rivière veio visitá-la, senhora.
Léa levantou-se de um salto e respondeu com raiva:
- Não quero vê-lo!
Tarde demais: ele chegava em companhia de Lien. Philippe Müller se levantou por sua vez:
- Permita-me despedir-me. Espero que nos vejamos novamente; eis meu cartão. Foi um prazer...
- Fiz o senhor fugir, senhor Müller? - disse a voz de Kien.
- Não, senhor Rivière. Tenho um encontro.
- Importante, sem dúvida?
- Muito importante. Meus respeitos, senhorita. Até logo, senhora...
- Adeus, senhor Müller... Eu o levo até a porta, senhor Müller
- balbuciou Lien.
Enquanto se afastavam, Kien sentou-se.
- Está ainda mais bonita que da última vez - disse ele, segurando o copo que o empregado lhe estendia.
"Ele também está ainda mais bonito...", pensou Léa, ruborizando-se. Furiosa consigo, ela se virou. A mistura
de raças atingia nele, como na irmã, a perfeição. Do lado asiático, ele recebera os cabelos pretos, a tez âmbar,
os olhos ligeiramente amendoados; do lado europeu, uma alta estatura e esse porte que inspira grande
confiança. As mulheres, na rua, voltavam-se para ele; os homens mostravam-se ciumentos. Todos o temiam. A
alta sociedade européia o recebia a contragosto; até do muito seleto Club Sportif era sócio. Além de tudo, não
era francês, saído de uma boa família lionesa? Dele emanava uma força brutal e animal à qual Léa se sabia
sensível, apesar do ódio e do desprezo que lhe devotava. Mas o que a tirava de si é que ele tinha consciência
disso. Os dois se encaravam como animais ferozes, um esperando que o outro desse o primeiro sinal de
fraqueza. O jovem tinha jurado a si próprio que ela seria dele. Esperava a sua hora. Não lhe faltavam mulheres
de colonos ou de oficiais desocupadas nem esplêndidas chinesas de corpos dóceis que lhe permitiam esperar
com paciência.
Rindo e acotovelando-se, as crianças fizeram brincadeiras ao chegar.
- Eis Adrien, meu filho, e Charles, meu filho adotivo.
O olhar reconhecido que Charles lançou a Léa não escapou a Kien, que resolveu seduzir o menino.
- Você tem mesmo muita sorte de ter uma mãe tão bonita! Gosta de animais?
- Oh, sim.
- Se sua mãe permitir, eu o levarei ao jardim botânico, onde há um zoológico, e o apresentarei ao Ong Cop.
- O que é um onco?
Kien abriu um riso alegre. "Como é jovem...", pensou Léa.
- Cop é um tigre, mas aqui, no Vietnã, diz-se Ong Cop, que quer dizer "senhor Tigre". Você gostará de
conhecê-lo.
Charles voltou-se para Léa com tal desejo no olhar, que a jovem mulher só pôde responder:
- Iremos juntos.
O sorriso de Charles valeu todos os agradecimentos. Quanto a Kien, virou os olhos para esconder seu júbilo.
- Quando vamos? - perguntou o menino.
- Amanhã, se você quiser... - disse Kien.
- Amanhã não é possível. Ainda tenho coisas para arrumar
- disse Léa.
- Então passarei para levá-los depois de amanhã. Certo?
Léa concordou, impaciente por se livrar da presença do visitante.
- Cumprimente François por mim...
- Isso não será necessário, eu estou aqui - disse este último, que acabava de entrar.
Os dois homens apertaram as mãos.
- Eu não pensaria jamais que você voltaria para se jogar na boca do lobo! - exclamou Kien acendendo um
cigarro. Lien e Léa se entreolharam.
- Com de Lattre, o lobo vai ter muito trabalho. O homem não é acomodado e está decidido a retomar o exército
em suas mãos. Na verdade, com quemvocê está: franceses ouvietcongues?
- Do meu - disse Kien, com um sorriso equívoco. - Não estou com muita pressa de ver o fim desta guerra,
ganha-se muito dinheiro.
- Sempre espertalhão, pelo que eu vejo! - deixou escapar François com ar indiferente.
Kien cerrou os punhos; teria preferido cólera, talvez o desprezo, a essa desenvoltura. Sentiu-se rejeitado, como
era, ainda criança, das brincadeiras dos mais velhos. Não querendo perder o prestígio, principalmente diante de
Léa, ele sujeitou-se a mostrar a maior fleuma possível.
- Espertalhão no sentido ocidental do termo, se quiser... Mas aqui, em Saigon-Cholon, sou um chefe.
- Para mim não é surpresa!
Lien se aproximou e colocou a mão no braço do irmão.
- Pode vir aqui um instante? Queria lhe mostrar uma coisa... Enquanto o irmão e a irmã se afastavam, François
puxou a
mulher para si.
- Eu gostaria de que ele não viesse aqui com muita freqüência. Tornou-se um canalha perigoso e muito
comprometedor. Se ele continuar assim, vai provocar represálias de um e de outro lado.
- Por quê?
- Vende armas ao vietcongues e ópio ao exército, sem contar o câmbio negro de piastras, que ele pratica em
grande escala.
- Como impedi-lo de vir aqui ver a irmã?
- Falarei com Lien. Se for preciso, nós nos mudaremos.
- O quê? Já? Mal acabamos de chegar... Ele propôs a Charles levá-lo para ver os animais do jardim botânico.
- Desde quando ele se interessa pelas feras? Quando era pequeno, só tinha indiferença pelos animais, como
freqüentemente os asiáticos. Mas chega de falar dele! Vamos para o quarto.
- Eu achava que nós deveríamos ir ao alto-comissariado, à
recepção...
- Eles esperarão!
Na manhã de 19 de dezembro de 1950, François partiu para Hanói a bordo do Dakota, do general de Lattre, que
insistira em "tomar posse" da capital do Tonquin no dia do aniversário do ataque vietcongue, em 19 de
dezembro de 1946. Esse ataque, que quase havia custado a vida de Jean Sainteny, servira de pretexto à
ampliação do conflito depois do bombardeio pela esquadra francesa do porto de Haiphong, em 20 de
novembro, o qual fizera milhares de vítimas entre a população civil.
A chegada a Hanói foi, contudo, retardada, tendo o general enviado um telegrama a Sua Majestade Bao Dai
para encontrálo; o imperador respondeu com um convite para almoçar nesse mesmo dia. Devido a isso, o avião
pousou no pequeno aeroporto de Dalat ao meio-dia. As limusines vieram buscar de Lattre e sua comitiva na
descida do aparelho.
- Vai haver problemas com Sua Majestade! - ressaltou Lucien Bodard, que se sentara perto de François. O
Velho está
furioso por ele não ter vindo recebê-lo na chegada a Saigon. Diante de mim, chamou-o de "rufião",
"alcoviteiro", de "cara de farsas e trapaças", de "majestade de merda" e outras coisas mais... Mas está
enganado. Sob esse ar de playboy debochado, Bao Dai não é nenhum idiota. Tenho certeza de que não
aceitará ir a Hanói, como quer de Lattre. Seria desmoralizar-se diante do povo.
O almoço foi excelente e durou muito tempo. O imperador e o general fizeram trocas de delicadezas. Com os
olhos escondidos atrás dos óculos escuros, Bao Dai, vestido com um terno jaquetão impecavelmente talhado,
sorria e abanava a cabeça com ar de simplicidade. Mas, como previsto por Bodard, "o soberano das boates
noturnas", como o chamava o hóspede, recusou de pronto acompanhar o comandante-em-chefe das forças
francesas a assumir o comando das tropas em Hanói. Perturbado, este se despediu seguido do ministro
Letourneau e de seu staff. No avião, deixou a cólera explodir:
- Nós combatemos pelo rei da Prússia, um rei da Prússia que é malandro e não tem nem mesmo uma palavra de
reconhecimento àqueles cujos sacrifícios cobrem suas diversões!
Durante toda a viagem, de Lattre não parou de conversar com o general Salan. "Além disso, o Chinês fala
vietnamita, o que nos será muito útil", dissera o governador Georges Gauthier, especialmente recomendado
pelo ministro da França de Além-Mar, François Mitterand. Gauthier, como Jean Aurillac, nomeado conselheiro
junto a de Lattre, fizera parte do gabinete do almirante Decoux durante a ocupação japonesa.
Sentado ao lado de François, o coronel Beaufre parecia perdido em seus pensamentos. Detrás dele pedaços de
frases lhe chegavam, apesar do barulho dos motores:
- É preciso "vietnamizar" o exército... o "amarelamento" do exército se impõe... é preciso que os próprios
vietnamitas se alistem em massa contra os vietcongues... de fato, muito poucos são comunistas... com de
Lattre as coisas vão mudar... O "Mocho"* ainda não deu a última palavra...
Mocho - Cognome dado ao general de Lattre na clandestinidade, durante a ocupação alemã.
O tempo estava encoberto; fazia frio no aparelho.
O Dakota aterrissou às 17 horas em Hanói. Estava escuro, uma chuva miúda e persistente molhava tudo. As
pessoas importantes que tinham vindo esperar o general estavam geladas; batiam os pés desde o início da
tarde. Sob os faróis dos veículos que clareavam a pista, a comitiva do novo comandante avançava para as
autoridades tiritantes. Ele cumprimentou com cortesia o representante do imperador Bao Dai, o governador de
Tonquin, Nguyen Huu Try, cujo rosto impassível dissimulava o descontentamento. Impaciente para chegar à
cidade, de Lattre encurtou os cumprimentos. Pretendia superar o desafio lançado, dizia-se, por Hô Chin Minh,
que prometera desfilar à frente do exército vitorioso nas ruas de Hanói em 19 de novembro. Além do mais, não
tinha a rádio vietcongue anunciado a tomada da capital do Norte antes da festa do Têt*?
A comitiva tomou a estrada. Ao longe, ouvia-se troar o canhão inimigo. Rodavam em alta velocidade. As
palhoças e as casas que não haviam sido destruídas pareciam abandonadas pelos habitantes. Na entrada da
ponte Paul-Doumer, as tropas apresentaram armas.
- Mais depressa! - ordenou o general.
As ruas que conduziam ao Petit Lac estavam desertas. O próprio bairro chinês parecia morto. O general, muito
rígido no uniforme impecável, subiu num palanque erguido às pressas em frente às águas mornas do lago,
cumprimentou o bispo de Hanói e as várias personalidades presentes. A chuva miúda continuava a cair, já era
quase noite. Os oficiais se agruparam ao pé do pequeno palanque. No início dos degraus, o suboficial René
Leguéré, escolhido porque era o mais condecorado da guarnição, estava em pé e imóvel, levando o galhardete
do 10° batalhão de páraquedistas. Por ordem do general, as tropas, que ainda na véspera combatiam, tinham
sido convocadas a Hanói para ser apresentadas ao novo comandante, o que não hesitara em desguarnecer
dessa maneira a frente de combate. Entre os oficiais, alguns
murmuravam que era pura loucura, que os vietcongues tinham tudo para se aproveitar disso e iniciar
a ofensiva.
- Qualquer outro que não fosse de Lattre compareceria a conselho de guerra por irresponsabilidade!
- exclamou um coronel.
- Que categoria, a do velho! - murmurou uma voz rouca perto de François.
Ele reconheceu o correspondente do France-Soir, Lucien Bodard.
- Você poderá "divertir-se" muito no pasquim!
- Vou ter bastante matéria! Que figura!
"Que meus batalhões desfilem!", dirá mais tarde o canto de guerra da Indochina. A banda tocou as
árias marciais para o momento, e os oito batalhões requisitados se puseram em marcha, iluminados
pelos faróis dos caminhões militares. Em primeiro lugar os árabes do grupamento móvel norte-
africano, magros como lobos, conduzidos pelo coronel Edon, um colosso tranqüilo; depois os
vietnamitas, em uniforme francês. Entre eles, François reconheceu Bernard Rivière, uma cabeça
mais alta que os companheiros. Apesar dos trajes miseráveis, manchados, cerzidos rusticamente, a
esses soldados, cabeça ereta e busto altivo, não faltava a elegância do porte.
- Vejam como são belos! - exclamou de Lattre.
Quando, com seu passo lento, passaram os homens da Legião de uniformes dourados, enlameados e
rasgados, cobertos por capacetes camuflados, manchados de suor, o general, como que fascinado,
desceu do palanque e se aproximou dos combatentes, que desfilavam sem virar o olhar, quase o
tocando. O odor forte que se desprendia das filas o envolveu, pareceu subir-lhe à cabeça,
transfigurá-lo, humanizá-lo, enfim. Com a mão enluvada, ele saudou longamente esses guerreiros,
dos quais bem poucos eram franceses, mas que combatiam pela França nessa Legião que os havia
acolhido sem lhes fazer perguntas.
- Como são belos! - repetiu ele, observando-os afastar-se na noite já alta.
Em volta do lago, pequenas luzes foram acesas. Podia-se adivinhar uma multidão. Vietnamitas e
franceses, os habitantes de Hanói, haviam saído de seus covis. A classe do "rei Jean" tranqüilizava
as duas comunidades, tanto que os vendedores de sopa haviam reaparecido. A cidade retomava sua
vida; ouviam-se risos e gritos de crianças.
O general Boyer de Latour, comandante das tropas do Tonquin, veio cumprimentar o general.
- Quero ver imediatamente o máximo de oficiais e de suboficiais na Maison de France, como
estiverem - disse ele secamente àquele que ordenara a evacuação de mulheres e crianças.
De Lattre, visivelmente, só tinha desprezo por ele.
A música e os soldados aquartelados em Hanói partiram para a Citadelle, enquanto os outros subiam
nos caminhões que os haviam trazido, atravessando às vezes as linhas inimigas. Alguns temiam a
volta de noite, pois cada um sabia que ela pertencia aos vietcongues; mas todos pensavam que com
tal chefe isso não aconteceria por muito tempo...
Na Maison de France, de Lattre prosseguia a retomada do comando do exército, mostrando-se,
pouco a pouco, firme e sedutor:
- Aceitei a missão sem garantias objetivas e para encontrar aqueles que aguardavam energia e
alguém para comandá-los. Suceda o que suceder, estarei com vocês. Vim ajudar os tenentes e os
capitães. Os jovens oficiais suportam todo o peso desta guerra, é por meio deles que o contato entre
o povo vietnamita e a França é mantido, são eles que preenchem o fosso que foi cavado por mal-
entendidos entre o Vietnã e a França. Acabaram-se as retiradas. Tonquin será mantido. Nós o
manteremos. De agora em diante vocês serão comandados!
O olhar dos jovens oficiais brilhava, todos recomeçavam a ter esperança. Enfim um líder!
Como qualquer deles, François Tavernier estava encantado. "Que audácia!... Que ator!", pensava.

Capítulo 9

Um telegrama vindo de Haiphong anunciou a Léa que François não passaria com ela as festas de fim de ano.
Léa tivera, contudo, uma alegria infantil com a idéia de passar esse Natal em família. Graças a Lien, ela
descobrira na loja de um comerciante chinês de Cholon bonecos rusticamente esculpidos em madeira, bolas e
guirlandas em cores. Lien conseguira mesmo derrubar uma árvore que parecia, se não fosse olhada de muito
perto, um pinheiro. Charles se encarregara de decorá-la, ajudado por Adrien.
- Está bonito - dissera o menino, batendo palmas.
"Está horrível", pensara Léa.
De fato, a árvore de Natal tinha um ar tristonho, com as guirlandas pobres e sem brilho e as bolas de tintas
desbotadas. A decepção de Léa era tão evidente, que Charles a notou. Imediatamente, os olhos se encheram
de lágrimas.
- Perdão - murmurou ele.
- Perdão por que, querido? Você fez o que pôde; está muito bonita sua árvore.
- Diz isso para me agradar. Sei muito bem que não é verdade... Oh, Kien, você tem de me ajudar!
O que ele ainda estava fazendo lá? Cada dia encontrava um pretexto para ir à rua Peilerin. Nada a lhe censurar:
ele era encantador, cobria as crianças de presentes, enviava frutas e flores. Fora um bom guia quando da visita
ao jardim botânico e ao zoo'lógico. O lugar estava melancólico; sentia-se que restava pouca coisa do
esplendor passado. Os jardineiros se contentavam com um mínimo de manutenção.
Os viveiros estavam metade vazios, três belas lontras brincavam num tanque esverdeado, um enorme urso
dormia na jaula. Quanto a Ong Cop, tinha o ar familiar de um grande gato. Criado em 1864 pelo agrônomo
Pierre, o parque era um dos mais bonitos do Extremo-Oriente. Antigo lugar de passeios, os saigoneses da
colônia gostavam muito de se reunir em volta do quiosque para escutar o orfeão municipal ou as bandas
militares. No momento era apenas um jardim sem encantos, que assinalava melhor que tudo o fim de uma
época.
Nesse dia, Kien estava acompanhado pelos guarda-costas, dois velhos conhecidos de Léa: o francês Fred e
seu comparsa Vinh. Os três homens usavam roupas de tela branca; se o de Kien estava muito bem talhado, o
dos amigos tinha sido feito por um modesto alfaiate de Cholon. Estavam com os braços repletos de embrulhos.
- Você agora quer brincar de Papai Noel? - perguntou Léa, em tom pouco delicado.
- Fica bem em mim, não é? Só me falta a roupa vermelha e a barba branca!
- Pare de bancar o palhaço. O que há em todos esses pacotes?
- Você vai ver: é para colocar embaixo da árvore. Ela não está muito bonita. Felizmente o "titio" Kien pensa em
tudo. Charles, tome esta bolsa, nela está tudo de que precisa para decorar a árvore.
O menino obedeceu e dava gritos a cada enfeite brilhante, sininho ou bola multicolorida. Kien e Charles
decoraram o "pinheiro" que acabou por parecer um desses mastros que os chineses gostam de agitar nas
procissões. A alegria das crianças era tal, que Léa consentiu em sorrir:
- Você os mima demais.
- Uma criança nunca é mimada demais. Para nós as crianças são reis. Você vai à missa do Galo amanhã, como a
maioria dos europeus de Saigon?
- Não sou de Saigon e não vou à missa do Galo há muito tempo. A última vez foi antes da guerra, na basílica de
Verdelais, com meu pai, minha mãe e minhas irmãs...
Essa lembrança entristeceu-lhe o olhar. Ela baixou a cabeça. Assim, parecia uma garota triste. Charles percebeu
e tomou-lhe a mão, que levou aos lábios. Ela se inclinou e deu um beijo nos cabelos do menino.
- Se não vai à igreja, talvez aceite ir festejar comigo em companhia de alguns amigos, já que François não vai
estar aqui.
- Como é que sabe disso?
- As notícias correm rápido na Ásia.
- Não, obrigado. Prefiro ficar aqui com Lien e as crianças.
- Vá, Léa, não se aflija por nós: há Lixia e Jiancir para tomar conta de nós.
- Você é gentil, Charles; mas prefiro ficar aqui.
- Mas...
- Chega. Vá para o quarto e leve Adrien.
Léa acendeu o cigarro. Kien se aproximou dela.
- Você o castigou. Essa criança a adora. Pensou que faria bem a você distrair-se.
- Kien, não me amole! Estou aqui há menos de uma semana, tive muito que fazer para ter tido tempo de me
entediar. Não é com você que eu tenho vontade de ir festejar, mas com meu marido.
- Um marido que não está aqui quando você deseja.
- Isso não é da sua conta!
- O que está acontecendo, Léa? Kien a aborrece? - perguntou Lien entrando no salão.
- De maneira alguma, irmã. Eu desejava apenas convidála para amanhã, já que François não está. Além disso,
queria convidar você também.
- Mas é uma idéia muito boa, com a condição de que nos leve a um lugar conveniente.
- Conheço o respeito que se deve às senhoras, e à minha irmã em particular - disse ele fazendo uma mesura.
- Você devia aceitar - disse Lien a Léa. - Tenho certeza de que François ficaria triste se você passasse essa festa
sozinha, trancada dentro de casa.
A insistência afetuosa da jovem mestiça lembrava fugazmente a Léa a da mãe de Charles, Camilie, cujo primeiro
nome dera à própria filha. Essa lembrança a decidiu.
- Não quero ser desmancha-prazeres. Está certo. Mas quero que Philippe Müller esteja conosco.
- Como quiser. Passarei para pegá-las em torno das 23 horas. Quero que vocês sejam as mais belas e que
Saigon inteira me inveje! Não esqueçam os presentes; seus nomes estão nos embrulhos. Até amanhã!
Na entrada do salão de baile do hotel Continental, o novo proprietário, senhor Franchini, recebia de smoking
a alta sociedade de Saigon, que vinha festejar este 24 de dezembro de 1950. Uma multidão elegante se
comprimia, conversando de pé, com uma taça de champanhe na mão, sob as pás dos grandes ventiladores, que
agitavam o ar úmido, enquanto ao fundo, num estrado, uma orquestra tocava em surdina. Maltres conduziam
os clientes até as mesas depois de um sinal de aprovação do senhor Franchini. Para a ocasião, a direção pusera
as mais belas toalhas de mesa, a mais rica prataria, a porcelana mais fina. Os copos de cristal cintilavam nas
toalhas brancas com os vincos marcados. No centro, rosas da França davam um colorido que fazia
concorrência com as pequenas lâmpadas dos abajures de seda salmão. As mulheres em vestidos de noite,
exageradamente enfeitados de fitas ou rendas, faziam pose. Todas estavam muito maquiadas. A colônia
francesa esperara a presença do general de Lattre, mas este preferira ficar perto das tropas, em Hanói, e assistir
à missa do Galo com os fiéis na antiga igreja dos Martyrs, próximo da Citadelle. Por isso raros uniformes eram
vistos na reunião. Logo, todos e todas haviam ocupado seus lugares. Na beira da pista, não longe da
orquestra, uma mesa permanecia vazia. Os comentários corriam soltos. Todos os importantes de Saigon já çstavam lá: para quem ela estava reservada? Os criados
circulavam entre os participantes, quando um grupo de quatro pessoas apresentou-se na entrada. As cabeças
se viraram; pouco a pouco, as conversas cessaram. A orquestra continuava a tocar. O senhor Franchini foi até
os que acabavam de chegar:
- Os senhores estão atrasados, mas às belas mulheres perdoa-se tudo - disse ele, beijando a mão que Léa lhe
estendeu.
- Senhora Tavernier, é uma honra para mim recebê-la em meu estabelecimento em companhia da senhorita
Rivière e de meus amigos, senhores Müller e Rivière, para festejar seu primeiro Natal indochinês. Que pena que
o senhor Tavernier não possa estar entre nós! Ele está com o general, estou certo?... Venha, vou conduzi-la eu
mesmo.
Um murmúrio percorreu a sala: quem eram essas pessoas
- entre as quais três mestiços - com que Franchini se mostrava tão solícito? As mulheres, as duas jovens
causaram inveja sem nenhuma indulgência. Quanto aos homens, teriam naturalmente abandonado a companhia
para tomar os lugares dos dois estranhos. Muitos não contiveram assobios de admiração; poucos expressaram
murmúrios de desaprovação. Ao se sentarem, Léa e Lien sentiram pesar sobre si a tensão odiosa da "alta"
sociedade.
- Não deveríamos ter vindo - suspirou Lien, maravilhosa num longo de crepe branca cujo drapeado bem-feito
valorizava o corpo magnífico.
- É claro que sim! - cortou Léa, belíssima num vestido justo negro que desnudava os ombros e os seios,
fazendo-os parecer mais claros ainda.
Quanto aos dois jovens, em summer imaculado, a elegância ressaltava ainda mais a beleza das
acompanhantes.
Depois de instalá-los e de ter bebido uma taça de champanhe com eles, Franchini retomou seu lugar
acompanhado, na passagem, por perguntas dos convidados. Visivelmente, suas respostas só faziam atiçar
aversões e desprezos. Léa estava conhecendo o racismo colonial.
- São sempre assim os franceses de Saigon?
- Para nós, mestiços, com raras exceções, quase sempre sim
- respondeu Philippe Müller. - Salvo quando precisam de nós ou somos muito ricos...
- ...ou muito poderosos - continuou Kien.
- Contudo você é em parte francês...
- Estou admirada da sua afirmação. Parece até que é a primeira vez que vem à nossa terra! - observou Lien com
uma ponta de aborrecimento.
- Perdoe-me, sou uma tola - escusou-se Léa. - Mas, não aprovando esses sentimentos, fico sempre surpresa
com sua manifestação.
- É uma prova da grandeza de seu caráter e da bondade do seu coração...
- Meu caro Philippe, não se engane: todos os que me conhecem bem lhe dirão que ajo mais por instinto que por
reflexão.
- O que nos torna parecidos! - disse Kien.
- Eis um ponto de vista com que não concordo: não quero ter nada em comum com você.
Kien se contentou em sorrir inclinando-se, com os punhos crispados sob a mesa. Para descontrair o ambiente,
Philippe fez um brinde ao fim da guerra.
- Ao fim da guerra! - repetiram em coro os companheiros.
Com gestos educados, o maltre lhes apresentou uma grande taça de caviar colocada sobre gelo.
- Caviar! - exclamou Léa. - Eu adoro.
- Estou vendo - disse Kien rindo.
- Oh, desculpe.
A jovem corou por ter sido tão abundantemente servida.
- Não se constranja. Se comermos tudo, ainda haverá mais.
Embaraçada, Léa olhou em volta de si. Nas outras mesas, a quantidade era bem menor.
- Questões de prestígio - cochichou-lhe Kien ao ouvido.
"Que malandro!", pensou ela, engolindo uma colherada cheia dos pequenos ovos negros.
- Não acham assombroso que estejamos a mais de quinze mil quilômetros da França, em plena guerra, e
degustemos iguarias raras e caras como se nada estivesse acontecendo? - perguntou Philippe Müller.
- Não foi sempre assim? - arriscou Lien com a voz doce.
Léa descansou a colher. A lembrança dos restaurantes do mercado negro, sob a ocupação, voltou-lhe à
memória com precisão angustiante. Sim, era sempre assim, e por outro lado não era normal. Um acesso de raiva
muda a invadiu. Porque deveria passar a vida culpando-se? Não tinha ela conquistado o direito de se fartar de
caviar e de se embebedar de champanhe se isso lhe desse prazer? A guerra, sempre a guerra! Ela só tinha
conhecido isso, desde a adolescência.
- Você gosta da guerra - dissera-lhe Sarah um dia, pouco antes de morrer. Léa se lembrava de sua surpresa,
depois de sua cólera.
- Muita gente é assim, mas poucos o reconhecem. François e você são iguais.
- Mas François sempre lutou contra isso! - exclamara ela.
- Como você acaba de assinalar, ele sempre lutou...
- O que você está dizendo é uma bobagem! E você, o que você faz aqui, na Argentina, perseguindo criminosos
nazistas?
- Não são meus criminosos, mas assassinos do gênero humano. Não faço guerra a eles, executo-os...
Ela acreditava ouvir novamente a voz fria e implacável de Sarah. Um profundo desalento a dominou e um breve
soluço a sacudiu. "François, por que você nunca está comigo quando preciso de você?", pensou ela.
Todos notaram-lhe a fisionomia alterada.
- O que você tem? - perguntaram em coro.
- Não é nada, meus amigos. Lembranças tristes. Philippe, sirva-me bebida, só quero viver este instante!
O jovem fez sinal ao maltre, que encheu novamente os copos.
- Mais uma - apressou-se a pedir Kien.
Quando chegou a sobremesa tradicional, uma grande alegria reinava na mesa. Lien tinha os olhos brilhantes;
os do irmão pareciam dois rasgos assustadores. "Os olhos do senhor Cop", pensou Léa, que um começo de
embriaguez embelezara ainda mais. Quanto a Philippe, um sorriso tranqüilo tomava-lhe os lábios.
- Estou com vontade de dançar - disse ela.
Os dois homens se levantaram ao mesmo tempo. Kien, mais rápido, pegou a mão de Léa. Eles se encaminharam
para a pista, onde já dançavam alguns pares de idade respeitável, que eles humilharam com sua juventude e
encanto. Quando Kien a enlaçou, a música parou; depois recomeçou, diferente.
- Adoro rumba - disse Léa estendendo os braços para o par.
Ela esquecera que o irmão de Lien dançava muito bem e com um modo brutal e esperto de apertar a si a
acompanhante e fazêla como que ondular. Léa se abandonou, e logo os corpos se ajustaram um ao outro.
Lien e Philippe logo os seguiram. Nada de parecido na maneira de mover-se. Dançavam como asiáticos,
distantes um do outro. Ambos tinham o ar embaraçado pela sensualidade das evoluções dos amigos. Todos
no salão só tinham olhos para eles. "Chocante, obsceno", reclamavam as mulheres. "O safado, eu gostaria de
quebrar-lhe a cara", resmungavam os homens. Em todos, uma hostilidade crescente se manifestava.
Indiferentes, ligados um ao outro, Léa e Kien prosseguiam uma dança depois da outra, e se poderia dizer que
tinham dançado juntos toda a vida, pelo modo como seus passos se harmonizavam. A orquestra parou; eles
voltaram para a mesa rindo.
- Há muito tempo não dançava assim - disse Léa, estendendo o copo vazio.
Franchini se aproximou deles.
- A senhora é a rainha da festa, madame. Causa muitos ciúmes, e o senhor, senhor Rivière, muita inveja. É um
prazer vêlos dançar. Permitam-me oferecer-lhes meu melhor champanhe.
Mais uma vez, Franchini bebeu na companhia deles antes de voltar a seu lugar. Léa dançou um slow com
Philippe Müller, que se excusou por ser apenas um dançarino medíocre. Não era verdade, mas, de fato, isso nada tinha que ver com o que ela experimentara nos braços
de Kien.
Logo de manhã cedo, Charles e Adrien irromperam, empurrando-se, no quarto de Léa.
- Mamãe, mamãe, levante! Papai Noel esteve aqui!
- Léa, venha rápido, ganhamos muitos presentes.
Um resmungo foi a resposta. Adrien se debruçou sobre a cama, puxou o mosquiteiro e, com as
pequenas mãos, sacudiu a mãe.
- Levante, mamãe, levante.
Léa entreabriu um olho. Por que lhe batiam na cabeça? Numa espécie de névoa, ela descobriu a
fisionomia do filho, debruçado sobre ela. Atrás dele, entreviu a de Charles. O que faziam tão cedo
no quarto? Uma palavra atingiu-lhe o cérebro: "Natal... Natal..." Era Natal!... Rápido, era preciso
levantar-se antes de Françoise e Laura, ser a primeira a encontrar os presentes... Ela e as irmãs já
não acreditavam verdadeiramente em Papai Noel, mas, de comum acordo, faziam parecer que sim,
pois, segundo uma de suas amigas mais velhas, desde que as crianças deixaram de acreditar, os
sapatos estavam vazios. Uma noite, as meninas Delmas tinham ouvido ruídos e cochichos no
corredor dos quartos. Léa levantara-se às escondidas e entreabrira a porta. O corredor não estava
bem iluminado. Ela percebera duas figuras brancas à luz da pequena lâmpada da escada.
"Fantasmas", pensara, fechando novamente a porta, com o coração batendo. Mas a curiosidade
fora mais forte que o medo. Fantasmas, Léa sonhava vê-los; era agora ou nunca! Ela abrira
novamente a porta e acreditara reconhecer a voz do pai, o riso da mãe. Devagar, descera os
degraus. O rangido do quinto a imobilizara. No mesmo instante, as sombras monstruosas dos
fantasmas tinham gesticulado na parede. Aterrorizada, ela se agarrara ao corrimão. Do lado de fora,
o vento começara a assobiar em rajadas, e o velho cachorro Mathias a latir. A pequena menina
subira gritando, procurando refúgio na cama, sob o edredom de acetinado vermelho. Pouco depois,
os pais entravam no quarto e acendiam a pequena lâmpada. Tinham zombado da história de fantasmas. Ah, eram pessoas grandes que não acreditavam
em nada! Depois, sob as carícias da mãe, ela voltara a dormir.
- Mamãe, levante, é Natal!
Por que ela pensara novamente nos queridos fantasmas? Como eles lhe faziam falta! E agora, por
sua vez, ela era "mãe", e era preciso sempre parecer acreditar em Papai Noel. "E se ele existisse
verdadeiramente?", dizia-se ao levantar-se.
- Você está nua, mamãe!
Ela não ligou. Estava com tanta dor de cabeça! Sem se incomodar com a presença das crianças,
dirigiu-se para o banheiro segurando a testa. Tateando, procurou o vidro de aspirinas. Depois entrou
no chuveiro, girando totalmente a torneira de água fria. Sob o jorro d'água, as brumas do álcool se
dissiparam pouco a pouco. Quando voltou ao quarto, envolta num amplo roupão felpudo e com
cabeça com uma toalha como turbante, estava fresca e encantadora. A enxaqueca se fora.
Seguida por Charles e Adrien, chegou ao salão, onde a árvore fora erguida. Junto a esta estavam os
sapatos de toda a família, cheios de presentes. Lien já estava lá, vestida com uma túnica verde
sobre a calça de seda branca. A noitada da véspera não lhe deixara nenhum traço no rosto.
- Perdoe-me, não pude segurar as crianças.
- É natural no dia de hoje. Minha belezinha, é o seu primeiro Natal - disse ela tomando a pequena
Camilie dos braços da assam. - Feliz Natal, meu bebê! Feliz Natal, meus queridos! Feliz Natal, Lien!
- Por que papai não está aqui? - perguntou Adrien.
Léa tornou-se tristonha e entregou a filha à assam. Charles veio em seu socorro.
- Tio François está com o general de Lattre.
- Quem é esse general que me toma papai no dia de Natal?
O coração de Léa ficou apertado.
- É um grande soldado que vai lutar para conservar a Indochina para a França.
- Ah, está bem - disse o menino correndo para o sapato.
Léa teve vontade de explicar a Charles que não era tão simples assim, mas, por preguiça ou
cansaço, deixou para mais tarde as explicações sobre a história das relações franco-indochinesas...
As crianças davam gritos de alegria ao abrir os embrulhos. Os empregados foram chamados por
Lien para vir buscar os seus.
- Você não abre seus presentes?
A jovem sorriu, sentou-se no tapete e desatou a fita de um grande embrulho. Uma onda de seda
escapou e deslizou-lhe sobre os joelhos.
- Que maravilha! - exclamou ela.
- Gostou? Estou muito feliz.
- Nunca vi uma fazenda tão bonita. Os livros são apenas presentes modestos perto do seu.
- Como pode dizer isso? Livros nunca são presentes modestos. Presentes indiscretos, quando muito.
- Indiscretos, como assim?
- Eles demonstram o gosto de quem os oferece e a idéia que se faz daquele a quem são destinados.
- Eu nem tinha pensado nisso. Pensei que poderiam lhe agradar, simplesmente.
- Eu lhe direi quando os tiver lido. Obrigado, de todo o coração.
Kien oferecera à irmã e a Léa dois magníficos colares de coral e jade, muito diferentes um do outro.
- Que idéia engraçada teve meu irmão de escolher para você um colar tão barroco. Parece uma jóia
selvagem.
- Ao contrário, acho muito bonito - disse Léa. -Acha que posso aceitar tal presente?
- Se não aceitar, ele é bem capaz de jogá-lo no mar, o que seria uma pena. Use-o, cai muito bem em
você.
Continuaram a abrir os embrulhos: leques coloridos, caixas incrustadas de nacar, bordados...
- Nunca meu irmãozinho me deu tantos presentes... - sorriu Lien.
Ainda que leve, a ironia não escapou a Léa.
- Estou muito constrangida com a generosidade dele porque não tenho nada para lhe oferecer.
- Isso não tem importância. Você devia ir se vestir. O senhor Müller e ele devem vir almoçar.
- É verdade, tinha esquecido completamente.
A entrada de um dos criados a interrompeu:
- Senhora, há um militar querendo vê-la.
As duas mulheres trocaram um olhar. Pensaram a mesma coisa: teria acontecido alguma coisa a
François?
- Faça-o entrar.
Um soldado jovem apresentou-se com um largo sorriso. Incrédula, Léa o encarou.
- Franck! - exclamou ela, jogando-se nos seus braços.
- Quem é ele? - perguntou Adrien, agarrando-se ao roupão da mãe.
- É um amigo, um velho amigo... Eu sabia que o senhor tinha partido para a Indochina, mas não
esperava revê-lo tão rápido...
- Você me chama de senhor agora?
- Peço-lhe desculpas, estou tão feliz! Como encontrou meu endereço?
- Foi seu marido quem me deu.
- Quando?
- Ontem à noite, ele me encarregou de trazer uma carta para você.
- Dê-me, dê-me rápido!
Ela lhe arrancou o envelope das mãos e o rasgou com impaciência. Lendo, dirigiu-se para o jardim.
Meu amor
Sei que ficou com raiva de mim por eu não estar com você e as crianças. Foi impossível
escapar do general, que insistiu para que eu o acompanhasse em sua viagem de inspeção.
Instrutiva, mas cansativa. Eu lhe desejo, contudo, um feliz Natal e prometo que o próximo
passaremos juntos. Desde já a espero em Hanói para o 31 de dezembro. O general insiste
que as mulheres de
"seus" homens estejam no Tonquin para manter o moral das tropas e a tranqüilidade de
espírito de alguns franceses ainda presentes aqui. Comecei lhe dizendo que não havia
possibilidade 'disso, mas o desejo de revê-la foi mais forte. Espero que não esteja com raiva
de mim. Encarreguei Franck, que partia para Saigon, de ser meu mensageiro. Venha rápido,
o avião que o levou volta ao meio-dia; você tem o tempo exato de jogar alguns vestidos numa
mala e beijar as crianças. Expresse a Lien todo o meu carinho epeça-lhe que me perdoe por
trazê-la, deixando com ela a guarda do que tenho de mais querido depois de você. Vá, ande,
eu estou com um desejo louco de fazer amor com você. Seu velho marido, que a ama,
François
- François me pede para ficar com ele por alguns dias em Hanói. Pergunta se você poderia tomar
conta das crianças.
- Certamente - respondeu Lien.
Léa a beijou com espontaneidade, depois se virou para Charles:
- Você é o homem da casa, sei que posso contar com você
- disse, tomando-o nos braços.
- Prometo... Mas não demore muito... Fico infeliz quando não está aqui - cochichou ele.

Capítulo 10

O Morane em que Léa embarcara pousou no solo de Bach Mai em meio a uma chuva torrencial; fazia um pouco
de frio. Ao pé da escada, sob um grande guarda-chuva, estava François. Na pressa de reencontrá-lo, Léa
escorregou nos degraus molhados e caiu sentada numa poça. François acorreu; mas ela já estava de pé,
contemplando com ar de pena seu vestido encharcado.
- Tudo bem? Machucou-se?
- Não, quase nada... Com certeza vou ficar com as nádegas roxas!
- Vamos ver isso! - disse ele, abraçando-a.
A alguns passos do avião, um jipe esperava. Com arrepios, Léa subiu no carro. O motorista foi buscar a
bagagem. Quando voltou, virou a cabeça, constrangido pela visão de uma coxa longa e nua colocada sobre as
pernas do patrão. No primeiro posto de controle, Léa abaixou a saia; no segundo, afastou-se do marido.
- Ainda há muitos como esse?
- Um ainda, O inimigo está por perto...
- Devemos estar loucos por ter colocado os pés de novo neste maldito país! Tenho medo, François...
lo
- Você não vai ser menos corajosa que as mulheres dos generais!
- Mas não sou mulher de general e você não é general, que eu saiba! Onde vamos nos hospedar?
- No hotel Métropole. Tive muita dificuldade para conseguir um quarto. Tive mesmo de empregar argumentos
irresistíveis.
- Acredito em você - murmurou ela, encolhendo-se contra ele no momento em que entravam na ponte Paul-
Doumer.
Ambos reviram a mesma cena: ele, aquela mulher de cabelos soltos e roupa vietnamita, que corria encostada ao
balaustre, estendendo-lhe os braços; ela, aquele homem em farrapos, sujo, exausto, ensangüentado, que
cambaleava de um lado para o outro. E depois o momento maravilhoso, quando, enfim, suas mãos se tocaram.
Durante a travessia do rio Rouge, não disseram palavra; os dedos apertados falavam por eles. Ladearam o Petit
Lac, onde estavam estacionados caminhões em volta dos quais soldados conversavam fumando, assediados
por pequenos vendedores de cerveja e cigarros. A alguns passos, os inevitáveis vendedores de sopa
agachados diante dos fogareiros. Além dessa ligeira animação, toda a vida parecia haver desaparecido das
ruas de Hanói. Algumas sombras, na rua Paul-Bert, dois ou três veículos militares passando lentamente pelo
bulevar Henri-Rivière: era tudo o que se mexia ainda na elegante capital do Tonquin, onde o general de Lattre
instalou com grandes gastos a Maison de France no meio de um grupo de vilas do centro da cidade,
pertencentes às Cervejarias e Sorveterias da Indochina.
- Esses fazedores de limonada, esses mercadores do Tempo não têm nada que reclamar; aproveitam o corpo
expedicionário, pois vendem sua péssima cerveja a meus soldados, que não pagam somente com piastras, mas
também com sangue. Perto de mim quero a verdadeira França!
A "verdadeira França" se instalou; só se esperava "Monette", a esposa do "rei Jean".
No Métropole, François foi recebido como um hóspede habitual. No saguão, no bar, no restaurante, muita
gente; quase só homens, oficiais ou correspondentes de guerra. Lucien Bodard estava entre eles. Ele veio ao
encontro do casal, copo na mão, cigarro nos lábios.
- Senhora Tavernier, que agradável surpresa! Quem a trouxe aqui?
- Eu - respondeu, François segurando o cotovelo da mulher.
O senhor é o marido?
- Tenho esse prazer.
- Parabéns. Venha, eu lhe ofereço uma bebida para festejar seu reaparecimento.
- Mais tarde, senhor Bodard. Estou cansada e queria trocar de roupa.
- Eu a espero uma hora, apenas!
Na escada que levava aos quartos, François perguntou a Léa:
- Como você conheceu esse energúmeno?
- Já lhe contei: encontrei-o rapidamente, quando de minha primeira vinda à Indochina. Ele tentou me ajudar a
encontrar você.
- O general está afeiçoado a ele como à maior parte dos jornalistas, fotógrafos, correspondentes de guerra e
outros enviados especiais. Ontem, ele nos fez este discurso: "Senhores, cinqüenta meros jornalistas são mais
importantes para o fim da guerra que todos os coronéis reunidos aqui..."
- Você não é coronel!
- Fique atenta, eu poderei ser! - disse ele, abraçando-a.
- Eu continuo?
Léa inclinou a cabeça.
- "...Minha vitória ou minha derrota depende tanto deles quanto de meus soldados. Sem eles, minha expedição
à Indochina ficará apenas como uma pequena guerra colonial, um medíocre empreendimento artesanal. Só eles
podem alçar minha aventura à escala mundial. Preciso deles comigo. Se for educado com eles, apesar de seu
'estilo' e sua conversa, sejam também. Tenho dito."
- Não gosto disso. Ele só pensa em si, em sua glória, em
seu prestígio. Os que combatem, Franck, Jean, todas essas mulheres e crianças massacradas por "seus
soldados", quando encontrará tempo para pensar neles?
- Como você fica linda quando está com raiva!
O criado abriu a porta do quarto, lançando um olhar para Léa. Visivelmente ele não perdera uma palavra da
conversa.
Apenas a porta foi fechada, François empurrou a jovem para a cama.
- Não, espere!
- Não estou agüentando de desejo de você.
Quando desceram para jantar, duas horas se haviam passado.
- Senhor Tavernier, reservei-lhe uma mesa perto da janela
- disse o gerente.
Eles passaram diante do bar, onde Bodard gesticulava em companhia de um bando de beberrões, cujas roupas
variavam entre as de mateiro e as de mercenário. O jornalista viu-os e, afastando os amigos, interpelou-os:
- Vocês estão atrasados! Venham brindar ao nascimento do Menino Jesus e às futuras vitórias do "rei Jean"!
Era difícil recusar tal convite. Bodard os apresentou à fina flor dos jornalistas: americanos, ingleses,
holandeses, canadenses, italianos... Um homem chamou a atenção de Léa; não se parecia com os outros: alto,
elegante, muito bonito apesar dos cabelos ralos, de traços regulares, olhar terno e melancólico protegido por
longos cílios, bela boca com um sorriso ligeiramente condescendente. Ele se inclinou para beijar-lhe a mão.
- Apresento-lhe Jean-Pierre Danaud, chefe de nós todos: ele é diretor dos Serviços Franceses de Informação na
Indochina. Cuidado - disse, dirigindo-se a François -, é um conquistador!
- Isso não me impressiona - disse Léa entregando-lhe a mão.
Danaud sorriu, o que o tornou ainda mais sedutor.
Sentada numa poltrona, Léa observava, divertida, esses homens que se exibiam diante dela.
- Feliz Natal, senhora! - disseram eles em coro, elevando os copos.
- Feliz Natal para todos!
Eles beberam em silêncio. Pensavam nos natais de suas infâncias, nos países longínquos, nos pais e amigos
que haviam ficado lá ou, simplesmente, no último despacho que haviam enviado ou na próxima bebedeira que
iriam tomar?
As conversas recomeçaram:
- O general vai suspender a evacuação dos civis do Tonquin.
- Com ele, os vietcongues vão ter o que fazer.
- Ele pediu a Vanuxem que viesse juntar-se a ele.
- Essa missa de meia-noite na desagradável igreja dos Martyrs, com o bravo Letourneau,* não deixou de ter
classe.
Desta vez, de Lattre preferiu a simplicidade. As paredes, de cimento armado, não tinham nada de gótico, as
luzes eram pálidas, o presépio brilhava pela ausência, o órgão tinha um som áspero que dominava as vozes
agudas dos vietnamitas entoando cânticos. Salvo umas flores brancas no altar, tudo era austero!
- E o pequeno padre com fisionomia de santo que não o esperou para começar o ofício...
- O que houve, que os senhores não estão com o general?
- perguntou François Tavernier.
- Ele não precisava de nós. Marcou encontro conosco amanhã em Dong Triêu. O senhor não está aqui
também? - perguntou o correspondente do Le Monde.
- Sim, partida às seis horas.
- Oh, não, você não vai partir novamente agora!
- Ela tem razão: é um crime abandonar uma mulher tão bonita.
- Sou o primeiro a sofrer com isso; mas o senhor conhece o general...
- Por que então me fez vir?
- Venha, querida, continuaremos essa conversa à mesa. Até amanhã, senhores.
Forçando Léa a levantar-se, François a conduziu para o salão
de jantar segurando-a pelo cotovelo. De mau humor, ela tentou se livrar. Os dedos de François apertaram-na
mais.
- Eu lhe peço, nenhuma cena diante deles! São os maiores fofoqueiros.
Mostrando desagrado, ela se sentou à mesa, onde havia uma garrafa de champanhe no gelo. O maitre se
aproximou.
- Bom dia, senhora Tavernier. Seja bem-vinda à nossa casa! Espero que aprecie nossa modesta cozinha. Temos
grandes problemas de reabastecimento. A maior parte dos comerciantes se foi. Felizmente alguns particulares
continuam a nos trazer colheitas e aves.
- Tenho certeza de que tudo sairá bem - disse gentilmente Léa.
- Obrigado, senhora - disse o maltre, visivelmente aliviado.
- Pelo contrário - acrescentou ele abrindo a garrafa-, não me preocupo com o champanhe. O senhor Tavernier
escolheu o melhor.
François, que conhecia o gosto da mulher pela cozinha vietnamita, mandara o cozinheiro tonquinês fazer
algumas de suas mais famosas especialidades.
- Eu bebo à sua formosura, meu amor.
Por sua vez, Léa brindou.
- E eu bebo ao fim desta guerra e à independência do Vietnã.
- No queixo empinado, na voz um pouco alta, havia provocação. Alguns comensais europeus que estavam
jantando levantaram a cabeça e olharam, admirados, essa encantadora jovem que acabava de fazer um brinde à
independência dos inimigos. Mas um deles, sem dúvida um partidário de Bao Dai, enganou-se ou quis dar uma
lição de patriotismo à recém-chegada. Ele se levantou e, por sua vez, ergueu o copo:
- A derrota dos vietcongues e à independência ligada à França!
Léa descansou o copo e, como se nada houvesse acontecido, começou a comer, dando pequenos gemidos de
prazer após cada garfada.
- Está ótimo - disse ela de boca cheia.
François sorriu, feliz com o espetáculo sensual da gula da
mulher. Na mesa vizinha, o homem estava de novo sentado, mortificado, com o rosto vermelho, enquanto os
companheiros cochichavam entre si lançando olhares sem simpatia.
Por um momento jantaram em silêncio. Ao começar o segundo prato, com tanto ardor quanto no anterior, Léa
disse com um pequeno sorriso de felicidade:
- Ele não tinha falado de restrições?
- Você bem sabe que as restrições não existem para todos.
Léa descansou os pauzinhos.
- Já pensei no assunto, e isso me desagrada tanto quanto na época do mercado negro.
- Nem pense nisso. Pense apenas que estamos aqui os dois, vivos, e temos duas belas crianças...
- . ..com as quais você não foi capaz de passar as festas de fim de ano. Você sabe, contudo, a que ponto eu
achava importante este Natal...
- Não banque a criança. Eu também achava. Mas esquece que sou delegado-geral do governo da República
Francesa junto ao governo vietnamita...
- Estou impressionada. Então, dessa maneira, você deve ser chamado de Senhor Delegado-Geral do Governo
da República Francesa junto ao Governo...
- Pare, não tem graça! - disse ele secamente.
Léa o olhou, confusa. Nunca ele lhe falara nesse tom. Ela sentiu as lágrimas chegarem aos olhos. Controlou-se
e preferiu responder de modo irônico:
- Perdão, meu caro, não sabia que era tão sensível a esse novo título. Mas o governo vietnamita em questão é
o de Bao Dai, o Bao Dai que você sempre considerou o menos vietnamita dos vietnamitas, que sempre preferiu
seus prazeres ao bem-estar do povo... Até bem pouco tempo, você pensava que só Hô Chin Minh poderia ser
o aglutinador desse povo...
- O lugar foi mal escolhido para falar de política, ainda mais que você não entende nada disso.
Incrédula, Léa encarou esse homem que ela amava e que, alguns instantes antes, se mostrara, como
habitualmente, loucamente apaixonado por ela. Depois virou a cabeça. Com o olhar vago, levou alguns segundos para notar certa
agitação atrás da porta da sacada do restaurante, que dava para o jardim; uma figura desagradável apareceu
no vidro, uma mão disforme agitou- se em sua direção.
- Giau - murmurou ela.
Ele respondeu com um sorriso que o tornou ainda mais assustador. A presença do monstro apaziguou-lhe a
cólera, e ela se sentiu de repente em paz. Nesse momento, um dos criados percebeu a presença do mendigo e
correu a procurá-lo. Giau desapareceu imediatamente.
O criado falou agora com excitação ao maftre. Ambos saíram para a varanda. Pouco depois, quando
reapareceram, o maítre tinha o ar mais preocupado que o que devia ter à simples visão de um mendigo. Léa
notou-o e prometeu a si mesma saber por quê. Por alguma razão que ela própria ignorava, não disse palavra a
François sobre a presença de Giau e preferiu esquecer a discussão.
- Dong Triêu não fica longe dos Sete Pagodes nem do templo de Kiêp Bac... Foi lá que encontrei o gênio da
fonte miraculosa para reencontrá-la...
François a observou, enternecido, e lhe estendeu a mão sobre a mesa.
- Efetivamente, você estava presa com Kien nesse velho santuário...
- ...onde os soldados franceses tinham atirado contra a multidão de peregrinos.
- Eu sei. Você mesma me havia dito que os vietcongues se escondiam entre eles.
- E daí, o que há de anormal nisso?
- Para os vietnamitas comunistas, talvez nada. Mas as populações católicas estão na maioria ao lado dos
franceses, que combatem por elas. Todas: as minorias étnicas nung, dos planaltos do Tonquin do Norte, os
muong do Annam do Norte, os tho ao norte do rio Rouge, sem contar os méos, ferozes inimigos dos
vietcongues...
- ...e as seitas do Sul da Indochina, nas quais, porém, como
se sabe, não se pode confiar, como os hoa-hao, que têm em suas fileiras mulheres combatentes não menos
ferozes que os homens, as caodaístas, muito hostis à presença francesa, mas que se servem dela contra os
vietcongues, os bandidos binh xuyen, que nosso amigo Kien conhece bem e que são alternadamente pró-
vietcongues e pró-franceses, conforme suas necessidades...
Léa caiu na gargalhada diante do ar aturdido do marido.
- Para alguém que não sabia nada disso, estou vendo que o surpreendo!
- Como você sabe tudo isso?
- Não sou cega nem muda. Antes de reencontrar você, conheci um pouco da história recente do país por Kien e
Lien. Confesso não ter compreendido tudo, é muito complicada. Sem contar que a tudo isso se misturam o
budismo, o confucionismo, e, dominando tudo, o culto aos ancestrais.
- Você deveria encontrar o general Salan. Ele é imbatível em todos esses assuntos. E, além disso, não foi ele
que chefiou a operação "Léa"?
- É ele que tem apelido de "Chinês"?
- E, ou "Mandarim".
- Parece que é um grande fumante de ópio, como a mulher...
- É possível. Todos os que passaram algum tempo na Ásia fumaram, mais ou menos. Não é, minha linda
querida?
A doçura das noites passadas no Mar da China a bordo do junco de Kien, o lento cerimonial do ópio voltaram-
lhe à memória. Na volta a Hanói, ela passou um mau pedaço.
- Leve-me a uma casa onde se fuma...
François a olhou com ar divertido.
- Você não teve tempo de ver como o ambiente mudou. A cidade está em estado de sítio. Todos os que
puderam fugir partiram. Se há casas de fumar abertas, só podem estar nos bairros mais miseráveis e mais
perigosos.
- Antigamente, você não achava ruim dar-se com a canalha, como teria dito meu pai!
- Antigamente, eu não tinha mulher nem filhos. Isso nos impõe uma nova maneira de ver a vida.
Nervosamente, Léa estendeu o copo. O maltre tomou a garrafa das mãos de François e a serviu.
- Perdoe-me, senhor, acabou...
- Traga-me outra.
- Pois não, senhor.
- Fogo, por favor.
Léa aspirou a fumaça com volúpia, de olhos semicerrados. Bruscamente os abriu, inclinou-se para o marido e
disse com voz dura:
- Não coloque nunca em primeiro lugar as crianças e a mim. Quero que você continue o homem que eu conheci:
aventureiro, idealista, cínico, gozador, engraçado, generoso... Não quero que o casamento faça de você um
funcionário mesquinho. Quero que seja meu amante antes de ser meu marido ou pai de meus filhos.
- Mas é isso que pretendo continuar a ser, seu amante! Quanto às crianças, são um prolongamento de você.
Amo-os porque são seus filhos. Você me magoa ao me colocar entre aqueles que, ao primeiro aborrecimento,
protestam: "Eu tenho mulher e filhos, senhor..." Tem razão, nada é mais desprezível. Pode-se pensá-lo, mas não
se pode dizê-lo...
- Você me deu medo. Pensei que o general de Lattre lhe tivesse virado a cabeça.
Fizeram um brinde sem deixar de sorrir.
Quando Léa acordou, na manhã seguinte, já havia muito tempo François partira para Dong Triêu. No
travesseiro junto ao seu ele deixara um bilhete: "Não esqueça nunca que a amo e você é a mulher da minha
vida."
- Eu também, eu o amo - murmurou ela apertando a folha de papel com a logomarca do hotel. Quando desceu,
depois de se vestir e de um café da manhã frugal, o hall e o bar, ruidosos e animados na véspera, estavam
vazios. Afora os barmen, que lavavam negligentemente os copos, e os criados, que se balançavam de um pé
para o outro, não havia ninguém. Léa se dirigiu para a saída com a intenção de dar um passeio em volta do Petit
Lac. Mal acabara de descer os degraus, um jovem soldado correu para ela com o fuzil à altura do peito.
- Aonde vai, senhorita?
Atrapalhada, ela recuou antes de responder:
- Vou passear...
Dessa vez foi o soldado quem ficou surpreso.
- Mas é muito perigoso! Ninguém passeia nas ruas agora!
- Por que você diz que ninguém passeia nas ruas, soldado? Eu passeio muito - disse um militar de belo rosto
orgulhoso.
- O senhor talvez, tenente. Mas uma mulher...
- A senhora gostaria de ir às lojas? Infelizmente estão fechadas... Onde comprar algumas bugigangas na rua de
la Soie?
- perguntou o recém-chegado, com um sorriso irônico.
"Nada mal, esse pára-quedista", pensou Léa, "mas isso não é razão para deixá-lo zombar de mim."
Ela virou as costas, saiu do abrigo de sacos de areia que envolvia o edifício e se aventurou pelo bulevar
Henri-Rivière.
- Tenente, não podemos deixá-la ir sozinha.
- Você tem razão, vou acompanhá-la.
- Mas, tenente...
Com alguns largos passos, ele a alcançou.
- Perdoe-me, senhora, não pude deixá-la ir assim sozinha. Seria uma pena que uma mulher tão bonita como a
senhora fosse levada pelos vietcongues ou fosse desrespeitada por nossas patrulhas. Permita-me apresentar-
me: tenente Claude Barrès, para servi-la.
- Estou encantada, tenente, mas não tenho nenhuma necessidade de seus serviços. Conheço Hanói, não
preciso de guia.
- Oh, não estou aqui como guia, mas como guarda-costas... que, aliás, a senhora tem muito bonitas, parece-me...
Ao falar, ele a olhava da cabeça aos pés.
- Não gosto da sua maneira de me olhar, tenente.
- Nesse caso, é preciso não mostrar tanta beleza ao pobre celibatário que sou.
- Pare, o senhor me faz chorar.
Discutindo assim, chegaram ao bulevar Francis-Garnier;
cruzaram no caminho apenas com alguns garotos, que escapuliram à sua aproximação. Dois jipes da
polícia do exército diminuíram a marcha, mas um gesto do tenente Barrès os afastou.
- Oh, não! - exclamou Léa.
Parada na beira do Petit Lac, ela contemplava com raiva o minúsculo templo de Ngoc Son, em parte
desmoronado, na pequena ilha de jade.
- Mesmo a ponte onde repousa o Sol Nascente está destruída!
- Parece que isso lhe dá pena...
Léa se virou, deixou de contemplar o triste espetáculo e lançou ao oficial um olhar de ódio.
- Evidentemente, não é a um pára-quedista grosseiro que se pode pedir que admire o belo.
- A senhora acha? - disse ele com o mesmo sorriso que exibia desde que se tinham encontrado.
- Não é porque o senhor tem o nome de Maurice Barrès que pode se gabar de ter sua sensibilidade e
talento.
Ele começou a rir.
- Pelo talento, estou inteiramente de acordo com a senhora. Quanto à sensibilidade, nem tanto: ele
era meu avô.
- Oh!... Mas, então, o que faz aqui?
- Alistei-me em 47.
- Que idéia esquisita! Não tinha nada melhor para fazer?
- Não gosto da vida civil e não tinha nenhuma vontade de seguir os passos de meu pai à frente do
Paris-Presse. Nunca apreciei esse universo de mentiras e de comprometimentos...
Enquanto ele falava, uma idéia germinava na cabeça de Léa:
encontrar novamente o lugar onde habitava Nhu-Mai, a jovem violinista que ela havia recentemente
ajudado a juntar-se aos vietcongues.
- O senhor me acompanharia à Citadelle?
- O que quer fazer lá? Não é perto.
- Eu sei. Não poderia parar um desses jipes e pedir que nos levem até lá?
- Que cara-de-pau! - disse ele em tom admirado. - Concordo, se a senhora me disser por que quer ir
lá.
- Queria ter notícias de uma de minhas amigas vietnamitas, uma violinista. Ela morava com os pais
entre a rua Maréchal Foch e o bulevar Henri-d'Orleans.
- O bairro está praticamente desabitado, e é muito imprudente aventurar-se lá sem escolta.
- É por isso mesmo que lhe peço que me acompanhe.
Eles haviam chegado à praça Négrier. Arame farpado fechava a entrada do bairro chinês. Militares
montavam guarda. Um deles reconheceu Barrès.
- Bom dia, tenente. Que posso fazer pelo senhor?
- Bom dia, sargento. Pode me arranjar um veículo e três ou quatro soldados, para dar uma volta na
Citadeile com a senhora?
- Tem uma ordem por escrito, tenente?
- Aqui para nós, não há necessidade disso. Em troca, eu lhe darei o endereço de um pequeno cabaré
onde a cerveja é gelada e as garotas são bonitas. Está bem assim?
- Está, mas o acompanho. Parent, traga o veículo! Mouillot e Roussel, mexam-se. Vamos passear.
Léa sentou-se atrás do sargento, ladeada por Roussel e Mouillot, enquanto Parent lhes estava de
costas, vigiando os arredores. Claude Barrès sentou-se ao lado do motorista.
- Qual das duas ruas a senhora quer pegar para começar?
- perguntou ele a Léa.
Depois de hesitar, ela respondeu:
- A rua Maréchal Foch. A casa da minha amiga ficava, eu acho, no meio...
- Acha ou tem certeza?
- Só vim aqui uma vez - confessou ela com ar penalizado.
- Então, com essa informação, lá vamos nós! - resmungou o sargento.
Foram parados no cruzamento do bulevar Félix-Faure com a rua Maréchal Foch por uma barreira.
O tenente Barrês desceu para parlamentar com os sentinelas, que acabaram aceitando afastar os obstáculos. Por alguns instantes, rodaram devagar e em silêncio.
"Eu nunca reconheceria a casa", pensou Léa. "Sou completamente louca de ter trazido esses pobres jovens
aqui comigo!"
De repente ela exclamou:
- É aqui!
Surpreso, o sargento freou bruscamente. Léa saltou do veículo.
- Esperem-me, não me demoro.
Todos os homens a olharam com ar incrédulo.
- O quê? Ela quer entrar sozinha lá dentro? - exclamou o sargento. - Sua amiga está completamente maluca!
- Cara senhora, receio que nosso amável motorista tenha razão. Espere!... O que a senhora está fazendo? -
perguntou Barrès.
Léa havia empurrado a estreita porta e se encontrava num corredor escuro, que desembocava no pátio onde as
mulheres lavavam roupa no dia em que ela viera com Nhu-Mai. Barrès a alcançou no momento em que ela
atingia o pátio. Menos numerosas, as mulheres lavavam roupa. Elas fugiram gritando quando viram essa jovem
branca acompanhada por soldados armados.
- Vamos embora, tenente - disse o sargento. - Aqui é um covil de vietcongues. Eu os sinto.
- Pare de dizer bobagens. Espalhe seus homens, e a senhora - disse ele, pegando no braço de Léa -, mostre-nos
onde mora sua amiga.
Parada no meio do pátio deserto, Léa observava, girando, os dois andares onde se abriam as loggias. Quatro
escadas conduziam até lá. Qual era a certa? Um gato sarnento se aproximou miando. A direita, outro miava mais
forte. Ela foi em sua direção, embaixo de uma das escadas. Agachado sob os degraus, Giau lhe fez sinal para
subir erguendo o indicador. Depois ergueu quatro dedos da outra mão.
- Primeiro andar, porta quatro - disse ela, perguntando- se como o infeliz soubera que ela viria ali. - Por aqui,
disse aos companheiros, que de armas em punho a seguiram.
Diante da quarta porta, Léa parou e bateu.
- Senhora Pham - chamou ela. - Sou a senhora Tavernier, uma amiga de sua filha. Nós nos conhecemos quando
do recital de Nhu-Mai, na casa da senhorita Rivière...
Ninguém respondeu. Após longo silêncio, o sargento perdeu a paciência:
- Saia da frente, vamos arrombar a porta!
- Eu os proíbo! - disse Léa, colocando-se de braços cruzados na frente da entrada. - Senhora Pham, responda,
quero notícias de Nhu-Mai...
A porta se abriu tão bruscamente, que todos recuaram. Uma mulher de cabelos grisalhos, despenteada, vestida
com uma túnica suja, rasgada em diversos lugares, apareceu como um diabo.
- Já não tenho filha! - disse ela em francês. - Senhora Tavernier, foi por sua causa que minha filha foi embora.
Maldita seja! Meu marido morreu sem ter visto outra vez sua única menina. Agora estou sozinha com minha
mãe, que a dor enlouqueceu...
- Eu estou muito triste, senhora Pham. Mas Nhu-Mai, como está ela?
- Não sei de nada, já não tenho filha. Vá embora, a senhora já causou bastante mal. Maldita! Maldita!
A mulher caiu sobre si mesma, agitada por convulsões. As portas que davam para a loggia se abriram uma a
uma.
- Tenente, é preciso partir. A situação está preta!
Imóveis e silenciosos diante de suas habitações, os moradores olhavam os franceses com hostilidade,
enquanto, no chão, a mãe de Nhu-Mai continuava sacudida por espasmos. Léa se inclinou e segurou-lhe a
cabeça; a baba escorria pelo queixo da infeliz.
- Não podemos deixá-la assim. Ajudem-me a recolocá-la no quarto.
Com os olhos levantados para cima, Claude Barrès encolheu os ombros e, designando Mouillot e Parent, fez-
lhes sinal para levantar a mulher. Pousando as armas, obedeceram a contragosto.
- Andem rápido!
Léa os guiou no cômodo mal-iluminado diante do qual Barrès e o sargento montavam guarda, com fuzil e
pistola apontados para a pequena multidão de velhos, mulheres e crianças. Os soldados estenderam a doente
numa cama coberta de detritos. A avó, de pijama negro, usando o véu das viúvas, balançava-se diante do altar
dos ancestrais, onde queimava o incenso e pequenos cotos de velas vermelhas, que lançavam um clarão
vacilante. A velha se virou e sorriu com os dentes negros. Indiferente, ela retomou seus lai*. Barrès entrou,
empurrando na sua frente uma mulher de cabelos brancos.
- Ela diz que sabe qual é a doença da senhora Pham. Agora, vamos embora; isto aqui ficou muito perigoso. É a
sua amiga?
- perguntou ele mostrando uma foto de Nhu-Mai empunhando
o violino.
- É - disse Léa, apoderando-se do quadro.
- Leve-o, isso lhe dará uma lembrança de nossa escapada.
- Acha que posso?
- A mãe com certeza tem outras. Agora, rápido! É preciso sair daqui.
Quando saíram do quarto, um murmúrio crescente elevou- se da multidão.
- Tenente, deixe-me atirar no bando. Há muitos, vão nos linchar! - soprou o sargento.
- O senhor atiraria em pessoas desarmadas? - gritou Léa.
Ela o empurrou e desceu lentamente os degraus olhando para a frente. O murmúrio ameaçador aumentou. Por
sua vez, os soldados desceram, prontos para atirar ao menor movimento suspeito. Diante da fonte estava Giau
e uma dezena de mendigos mais ou menos estropiados.
- Lugar encantador! - exclamou Claude Barrès. - Estamos em pleno Pátio dos Milagres!
Giau gritou uma ordem na direção dos andares. Alguns moradores responderam em tom colérico, mostrando os
punhos para os franceses, mas ninguém se mexeu. Léa compreendeu que ele
protegia sua retirada e sorriu. Eles puderam alcançar sem problema o veículo, guardado por Roussel.
- Ah, até que enfim! Não tendo ouvido nenhum tiro, pensei que todos tivessem sido degolados... Ia procurar
reforços.
Até a praça Négrier, rodaram em silêncio.
- Tenente, será preciso que eu faça um relatório.
- Pode fazer, sargento. É seu dever.
- Onde o senhor quer que o deixe?
- No Métropole. Está bom para a senhora?
- Está perfeito, obrigado.
Diante do hotel, Léa agradeceu ao sargento e aos três soldados.
- Foi um verdadeiro prazer, senhora. Mas, da próxima vez, não conte conosco: não se tem sorte todos os dias!
No hall, cinco ou seis pessoas discutiam. Léa se despediu de Barrès.
- Obrigado, tenente. Eu me dei conta de que fui muito imprudente e fiz o senhor correr grandes riscos - disse
ela, estendendo-lhe a mão.
O oficial a reteve.
- É o meu trabalho. Mas só estaremos quites se a senhora aceitar jantar comigo.
- Com prazer, tenente. Aonde o senhor quer ir?
- Chega de aventuras por hoje! Vamos ficar aqui mesmo, se a senhora quiser.
- Vou subir, fazer uma pequena toalete e desço em um quarto de hora.
Ela o reencontrou no bar, apoiado nos cotovelos, diante de um conhaque-soda.
- A mesma coisa?
- Não, obrigado. Estou com muita sede, prefiro uma limonada.
- Já não temos limões, senhora. Laranjas também não.
- Tanto faz. Dê-me um conhaque-soda.
Eles tocaram os copos, sorrindo.
- Como é que nunca a encontrei em Hanói?
- Cheguei ontem.
- Não é daqui? Mas parece conhecer bem a cidade.
- Não sou daqui e não conheço bem a cidade. Passei uma temporada aqui há mais de um ano, depois voltei para
a França.
- Por que retornou? Saudades?
- Não, para acompanhar meu marido.
- Seu marido é militar?
- É um interrogatório!
- Perdoe-me, acho que a senhora não só é uma mulher muito encantadora mas igualmente uma pessoa muito
estranha.
Léa encolheu os ombros, sem responder.
- Não lhe falta coragem. Só conheço outro espécime do belo sexo que tem tanta valentia quanto a senhora.
- É bonita?
- Belíssima, alta, loura, com um corpo magnífico... Nós a chamamos de "Egua Vaidosa".
- Que nome se esconde sob tal apelido?
- É a mulher do meu comandante. Ela se chama Geneviève, Geneviève Vaudoyer, cognominada "a Mão" pelos
pára-quedistas da Região Alta. Que determinação!
Havia algo de admiração e ternura na maneira como Claude Barrês falava da amiga.
- Nós nos parecemos - acrescentou ele orgulhosamente.
- Estou com fome - cortou Léa. - E se fôssemos para a mesa?
O mesmo maltre da véspera veio ao encontro deles.
- Bom dia, senhora; bom dia, tenente. Escolham sua mesa. Como vêem, há poucas pessoas. Senhora, conto
com a sua indulgência: a refeição de hoje não estará à altura da de ontem.
- Não tem importância, sirva-nos o que houver - disse Barrès. - E traga-me uma garrafa de Bordeaux.
- Bem, tenente, farei o melhor que puder.
Por um momento, a conversa tratou de matérias culinárias. Depois, mudando bruscamente de assunto, Claude
Barrès perguntou:
- A senhora conhece o chefe dos mendigos da rua MaréchalFoch?
- O que é que o faz dizer isso? Não tenho por hábito conviver com esses miseráveis.
- A senhora sorriu para lhe agradecer...
- O quê, meu Deus?
- O ter-nos permitido sair vivos daquela ratoeira. Por outro lado, o que quis dizer aquela mulher a respeito da
filha? Para onde ela foi por sua culpa?
- Não sei de nada. O senhor constatou como eu, aquela mulher é uma doente... E, além disso, o senhor me irrita
com suas perguntas!
- Perdoe-me, não pude deixar de achar esse episódio muito estranho. Entretanto, graças à senhora, passei uma
agradável manhã, que se previa muito monótona. Detesto o período de Natal. Felizmente, devo voltar amanhã
para a região de Moncay e para meu comandante, o coronel de la Bollardière, que comanda todos os pára-
quedistas na Indochina. Eu o vi ontem, conversamos como amigos. Isso consola de muitas coisas.
- De que coisas o senhor precisa ser consolado?
- Da vida, do vazio, do qual fiz meu elemento, do aborrecimento que segrega o mundo de onde venho e do qual
fugi, do ressentimento pelos lugares de luxos e de prazeres, "diante dessas carcaças de homens enriquecidos,
acabados, mas que ainda destroem outros, o amargor da lembrança de meus amigos mortos, com a
incompreensão de estar ainda lá a acompanhar esses humanos pretensiosos acasalados com os prostituídos
pela sociedade". Não há futuro. "Nosso futuro são seis palmos de lama sobre o peito!"
- O otimismo não o sufoca! Prove o vinho, para que possamos bebê-lo; o maitre está esperando.
- Perdoe-me - disse ele, obedecendo. - Está bom... Espero que lhe agrade.
Léa levou o copo ao nariz.
- Tem um ligeiro perfume de terra úmida, que me lembra Montillac depois da chuva.
Ela bebeu um gole e permaneceu pensativa, com o copo na mão. Havia pouco tempo deixara seu
Bordelais natal e, todavia, o gosto e o aroma desse vinho tocaram-lhe o coração, causando o temor
de não mais encontrá-lo. Uma angústia irracional a invadiu. Ela se levantou bruscamente.
- Desculpe-me, preciso telefonar. Já volto.
Um pouco surpreso, ele se levantou, cortês, por sua vez.
- Eu a espero.
Esperou muito tempo, pois a telefonista não conseguia ligar com Saigon. Enfim, a comunicação foi
estabelecida.
- Alô! Aqui é a senhora Tavernier, chame a senhorita Rivière.
Precisou esperar dois ou três minutos.
- Alô, Léa, você está bem?
- Bom dia, Lien. Como vão as crianças?
- Vou lhe passar Charles, que está ao meu lado. Enquanto isso, irei procurar Adrien. Mas fique
tranqüila: os três estão muito bem.
- Obrigada - disse ela aliviada. - Charles, meu querido, como vai você?... Estou ouvindo você mal...
Sim, vou voltar logo... Tome conta dos pequenos... Também amo você, filhão... Adrien? Meu
bebê... É verdade, perdoe-me, você já não é um bebê... Muitos beijos... Vou voltar logo... Com
papai, sim... Um grande beijo, meu amor... Alô!... Alô!...
- A ligação foi cortada, senhora.
Ela voltou, sorridente, com ar mais tranqüilo, sob o olhar abertamente admirado de Claude Barrès,
que se ergueu à sua chegada.
- Desculpe-me tê-lo feito esperar. As comunicações com Saigon são difíceis. Pelo menos consegui
falar com meus filhos. Eles estão bem.
- Quantos a senhora tem? - perguntou ele com uma ponta de decepção na voz.
- Três.
- Três!...
- Sim... Não... Enfim, dois mais um que considero meu filho.
- É uma loucura ter trazido as crianças para cá!
- Talvez, mas eu não queria passar sem eles nem sem o pai deles.
- Eu temo que, como a maior parte dos civis, a senhora não perceba muito bem o que se passa aqui.
- Vejo que o senhor vai me dizer, o senhor também, que não conheço nada da política daqui, que isso
é um assunto de homens! Durante a Ocupação, na França, não nos perguntavam se a Resistência
era assunto de homens ou de mulheres. Nós corríamos os mesmos riscos que os senhores!
Sempre com esse sorriso que o tornava tão sedutor para elas e tão irritante aos olhos deles, Claude
Barrès encarou a acompanhante com seus olhos azuis, subitamente atentos.
- A senhora esteve na Resistência?
- E daí? Não vou passar a vida falando nisso. Muitos de meus amigos estão mortos, vi muitos
assassinatos, muita tortura, pessoas boas que perderam a sanidade e safados que foram
condecorados. Não gosto de me lembrar desse período. E o senhor onde estava?
- Eu me alistei nos pára-quedistas da França Livre, em 42.
- Viu de Gaulie?
- Sim, duas ou três vezes.
- Eu só o vi uma vez, num cartaz*.
- Num cartaz?
- Sim. Mas seria muito demorado explicá-lo. Estou cansada, vou descansar. Obrigado pelo jantar... e
por tudo. Adeus!
- Num cartaz... Que vagabunda! - exclamou ele vendo-a afastar-se.

Capítulo 11

Nos dias 27, 28 e 29 de dezembro de 1950, o hotel Métropole serviu de ponto de referência para os
correspondentes de guerra, fotógrafos e jornalistas de volta do périplo a que os havia levado de
Lattre a bordo dos Morane. François Tavernier estava entre eles. Não por muito tempo, pois o
general exigira sua presença perto de si, em Saigon, para saudar o senhor Letourneau antes de sua
partida para a França. Ele quase não teve tempo de tomar uma ducha e de fazer amor com uma
Léa que lhe arranhava as costas com as unhas tanto de cólera como de prazer.
- Sujo!... Sujo!... - não cessava ela de repetir.
- Voltarei em dois dias, prometo.
- Por que não me leva com você?
Um jarro de porcelana de Hué por pouco não lhe quebra a cabeça. Ele só se despediu ao fugir.
Inclinada, nua na janela, ela o viu subir num half-track, que arrancou logo.
- E as crianças!...
Ela havia esquecido de falar com ele das crianças! Jogou-se na cama, chorando de raiva. Ah, ele
começava bem a temporada na Indochina! Exausta, ela adormeceu.
No fim do dia 31 de dezembro, François voltou a Hanói com
o general de Lattre, que, depois de parar em Tien Yen pela manhã e ter passado em revista as
tropas comandadas pelo coronel Beaufre em Haiphong, dera ordem a seus colaboradores mais
próximos de o reencontrar na Maison de France, onde o esperava o general Salan. François pensou
ter compreendido que essa ordem não lhe dizia respeito e foi para o Métropole, onde reinava um
ambiente mais alegre, apesar das notícias alarmantes que circulavam na cidade: combates em torno
de Viêt Tri e de Bac Ninh e a captura pelos vietcongues de um batalhão senegalês que caíra numa
emboscada a uns sessenta quilômetros da capital. O bar fora tomado de assalto. Três jovens
AFAT*, muito bonitas, riam alto, cercadas de perto pelos homens com gestos e propostas
inconvenientes. Havia, em todos, a necessidade frenética de sentir-se vivo e de enterrar o mais
depressa possível esse ano de 1950, que presenciara tantos desastres. Agora, que havia um
verdadeiro comandante, tudo ia mudar, as vitórias fariam esquecer as humilhações e as derrotas.
Um riso alegre dominava o tumulto, O que fazia Léa no meio desse bando, exibindo-se numa
poltrona confortável, de pernas cruzadas, trajada com um tomara-que-caia preto que a desnudava
audaciosamente, com os cabelos levantados sobre a nuca frágil, um copo na mão, cercada de
homens presos à sua sedução?
Léa viu quando ele vinha, mas fez que nada vira. A artimanha divertiu François e o irritou ao mesmo
tempo. Ela não iria acabar nunca com esses trejeitos de coquete? O tempo passara, ela era uma
mulher casada, mãe de família! "Velho imbecil!", pensou ele. Como ousava isolar essa criatura feita
para seduzir, apaixonada pela liberdade, nas atividades domésticas e com as crianças? Ele pensava
que ela era uma dessas mulheres de oficiais, secas e cultas, dedicadas às obras de caridade e aos
chás com as esposas dos generais?
Essa idéia o fez sorrir, com esse sorriso - mistura de ironia, de indulgência e de ternura - ao qual Léa
não sabia resistir. Ela
se levantou, apesar dos protestos dos apaixonados, e foi até ele. Meu' Deus, como estava bonita! Ele não era
o único a pensar isso. Pelo seu caminhar, ele adivinhou que ela estava um pouco "alta"; achava-a até mais
desejável por isso. O sexo endureceu. Puxou-a para si. Léa sentiu-lhe o desejo e ondulou levemente,
levantando a cabeça para seu rosto com um sentimento de potência. "Como é grande!", pensou ela
estendendo os lábios. Durante um breve instante, eles esqueceram o que não era seu abraço apertado. Em
volta deles, as conversas quase pararam. Todos invejavam esse casal harmonioso, que adivinhavam
loucamente enamorado.
- Com licença, senhor... Por favor?... Perdoe-me...
- O que há? - perguntou François com a voz de alguém que é acordado.
- O senhor é esperado na Maison de France.
- O senhor está brincando!
- Não, senhor, o general pessoalmente me deu ordem de vir procurá-lo.
- Diga ao general que o senhor não o encontrou! - disse Léa.
- Mas, senhora, eu o encontrei...
Isso foi dito com tal tom de verdade, que eles começaram a rir, o que tirou um fardo das costas do jovem
estafeta.
- Perdoe-me, mas tenho de ir - disse François.
- Começa a me desagradar esse seu general. Vocês não vão nem mesmo passar a noite juntos!
- Não tenho nenhum receio disso, não faz meu gênero... Não beba demais até a minha volta.
- Farei como quiser... As crianças? Como estão as crianças?
- Muito bem! Pude dar um pulo até lá para beijá-las. Oh, ia esquecendo...
Ele tirou do bolso um envelope um pouco amassado.
- Elas me encarregaram de lhe dar isso.
Léa o acompanhou até o saguão, depois subiu ao quarto para ler a carta.
Você nos faz falta, volte logo, escrevera Charles, que havia colocado pétalas no envelope. O desenho
foi Adrien que fez; ele
representa Ong Cop. Estou lhe contando para o caso de não ter reconhecido...
De fato, sem o auxilio de Charles, ela não teria identificado nos rabiscos amarelos e pretos do menino o famoso
tigre do jardim botânico de Saigon. Alguém por fim imprimira a mãozinha de Camille, cujo nome estava traçado
com letras imprecisas.
- Meus queridos - murmurou ela, levando as folhas aos lábios.
Estendida na cama, acendeu um cigarro e pegou um dos livros que havia trazido. Confortavelmente instalada,
começou a ler o romance de Paul Colin que acabara de ganhar o prêmio Goncourt. O título era promissor: Os
jogos selvagens.
François (Veja, isso começa bem) percebeu bruscamente que a noite caía, e com um gesto amplo
afastou de sua frente tudo o que obstruía a mesa. Como de hábito, trabalhara até que a
escuridão viesse fazer desaparecer as letras impressas e apagar o brilho das páginas em
branco; assim, nas folhas manuscritas, podia conferiro fim do trabalho de cada dia nas
últimas linhas que traçara, as do crepúsculo, ligeiramente inclinadas e freqüentemente
interrompidas numa palavra inacabada, com uma letra maior e mais segura. Isso bastaria
por hoje. Amanhã, recomeçaria na palavra interrompida sua tradução de O americano
naturalista, do muito preciso "Estudo citológico sobre a hibridação dosAnuros", do professor
Chou-Su; amanhã... pois agora já era noite, à qual
O livro escorregou das mãos de Léa; ela dormia.
- Ah, até que enfim você chegou! - exclamou de Lattre vendo François entrar em seu gabinete da Maison de
France.
- Onde estava, porra? Preciso de todos aqui. A situação está ruim. Tenho necessidade de tropas frescas, senão
os vietcongues vão nos ferrar. Diga a eles, Salan, o que esses safados estão preparando!
era necessário ceder...
O general Salan, que de Lattre nomeara, na véspera, comandante da zona operacional de Tonquin e comissário da República no Vietnã do Norte, inclinou-se sobre um
mapa aberto na mesa.
- Os rebeldes preparam, de Viêt Tri a Luc Nam, uma ofensiva chamada "Tran Hung Dao", comandada por Vo
Nguyen Giap pessoalmente. Vamos então nos encontrar frente a frente... Por que "Trang Hung Dao"? Giap, no
começo da carreira, ensinou história e conhece bem os anais históricos de sua pátria. Sob a dinastia vietnamita
dos Tran, que reinava em Tonquin, o general Trang Hung Dao, depois de ter caçado o invasor do país, fixara
as tropas muito ao sul, até o Desfiladeiro das Nuvens, que domina a baía de Tourane...
- Salan - trovejou com veemência de Lattre -, não é um curso de história do Vietnã que espero de você, mas uma
exposição estratégica! Você conhece esta porra de país, parece, melhor que ninguém. Mostre-o, que diabo!
O rosto de Salan, habitualmente estático, crispou-se, os lábios se afinaram mais, os olhos se alongaram; mais
que nunca ele merecia o apelido de "Chinês". Com uma voz sem expressão, ele começou:
- Os vietcongues querem isolar Hanói de Haiphong e nos colocar desse modo numa posição insustentável.
Suas melhores unidades estão lá, entre as quais a famosa Divisão 308, apoiada por três regimentos. Nas frentes
secundárias, seis regimentos. De reserva, a Divisão 304, aquela que nos empurrou para a R.C. 4 e que ainda
está sendo reorganizada. Eis o quadro, que Giap soube criar, em sua brutal exatidão. É impressionante.
"Entenderam, senhores? Eis a situação. Diante disso, só tenho um bando de pobres-diabos malcalçados, mal
vestidos, habituados à derrota. Necessito de bons oficiais para comandá-los. É preciso recuperar o armamento
em qualquer parte em que ele se encontrar. Temos falta de munições, de tanques, de canhões. Preciso de tudo
isso, os senhores entendem? Preciso!
Vermelho de raiva, o general de Lattre caminhava de um lado para o outro gesticulando. Todos estavam
tensos, receando ser espinafrados.
- Salan, preciso de gente e, no momento, só posso anteci
par as unidades da Cochinchina. O mais rapidamente possível tenho de ir novamente à França. Será que me
compreenderão? Preciso de gente, muita gente...
A voz do general devia estar sendo ouvida para lá do jardim da Maison de France.
- Quero os melhõres a meu lado: Vanuxem, Erulin, Linarès. Vou escrever ao ministro da França de Além-Mar,
François Mitterrand, ele não pode me recusar ajuda e apoio junto ao ministro da Defesa Nacional.* Meus
soldados precisam de comandantes, e os terão. Mostrarei a esses bandidos comunistas que não sou "um
glorioso fragmento histórico", "um general teatral que gosta de escutar Chopin"...
François Tavernier mal pode conter um sorriso ao se lembrar dos epítetos com que a rádio vietcongue saudara
a chegada do comandante à Indochina. Era excessivo, mas não muito distante da realidade. "De Lattre", dizia a
propaganda inimiga, "tem o hábito de descalçar seus soldados para verificar a limpeza de seus pés... Os
soldados vietcongues correm descalços atrás dos soldados franceses, que fogem!"
- Desde o Natal - prosseguiu o comandante - as perseguições vietcongues não pararam. Chu foi evacuada.
Pudemos corrigir a situação em Viêt Tri e em Vinh Yen. Eu mesmo tive de telefonar para Viêt Tri para suspender
a evacuação dos civis e soldados. Não quero mais evacuações! Temos de enfrentar um inimigo agora
poderosamente armado. É preciso que os Estados Unidos aumentem sua ajuda. O resultado dos combates na
Indochina é tão importante quanto os da guerra da Coréia para o futuro do Ocidente diante do comunismo.
Apoiado na beira da mesa onde estavam desenrolados os mapas, esse comandante de sessenta e três anos,
adulado ou odiado, a quem o governo francês confiara tão pesadas responsabilidades, ergueu-se, com o olhar
duro e arrogante.
- Podem ir, senhores. Quero falar com o general Salan. Até a cerimônia dos cumprimentos, amanhã.
- Que necessidade ele tinha de me fazer vir aqui? - suspirou Tavernier ao sair da Maison de France.
A noite estava escura e fria, as ruas desertas. Hanói já não parecia a cidade animada que ele
amava, mas uma cidade cercada. Acreditando-se protegido atrás dos sacos de areia, o hotel
Métropole preparava-se, apesar de tudo, para festejar o Ano-Novo.
Após passar pelo bar e verificar que Léa não estava lá, François subiu para o quarto. No corredor,
cruzou com um criado.
- Tudo está pronto, senhor, mas a senhora está dormindo
- disse ele, saudando-o.
François olhou para ele com ar admirado.
- Posso abrir para o senhor...
Sem esperar a resposta, o criado enfiou a chave na fechadura e afastou-se para deixá-lo entrar.
Léa preparara tudo: aproveitara sua ausência para pedir um jantar.
- O senhor quer que eu lhe sirva? - perguntou o criado
- Não. Está tudo bem.
- Muito obrigado, senhor - disse o garçom colocando a gorjeta no bolso. - Desejo-lhe um Ano-Novo
muito bom.
- Feliz Ano-Novo.
O criado tinha razão: a senhora dormia. O livro que lia escorregara para o chão. François sentou-se
na beira da cama. "Como é jovem ainda", disse a si mesmo, "parece uma menina." Mas a saia
levantada mostrava a liga, que segurava as meias, e a pele tenra das coxas. Ele deslizou a mão entre
elas. Os dedos se aqueceram com o calor dela. Em seu sono, Léa estremeceu. Ele subiu
novamente, até a calcinha, que afastou, e a acariciou suave- mente. A princípio não aconteceu nada;
ela dormia mesmo profundamente. Depois, pouco a pouco, o sexo ficou úmido, as coxas se abriram,
a respiração se acelerou... Como ele amava esse corpo fácil!
Interrompeu a carícia.
- Continue!
Contemplou-a, oferecida e impudica, a gemer.
- Continue, eu lhe peço...
Sem se apressar, ele tirou a calcinha, que enfiou no bolso, e colou os lábios ao sexo da mulher.
- Oh, como é bom!
...Pouco depois, enrolados nos roupões de banho do hotel, com os cabelos despenteados, Léa e
François levantaram os copos:
- Feliz Ano-Novo, meu amor! - disseram ao mesmo tempo.
Em 1° de janeiro de 1951, Léa reencontrou o general de Lattre no grande salão da Maison de
France, onde o general Salan lhe apresentou seus votos de feliz Ano-Novo, bem como os dos civis e
militares do Tonquin pelos quais era o responsável.
- O senhor pode contar conosco, general. Cada um em seu posto, seremos dignos da confiança e da
amizade que o senhor tem por nós. Possa este ano concretizar nosso desejo mais caro: a paz entre
as nações e a união indestrutível do Vietnã e da França numa União francesa harmoniosa e forte!
- Vim aqui para reconfortar meus soldados - respondeu de Lattre - e eu é que fui reconfortado por
sua energia e ardor combativo. Repito-lhes o que já disse: confiança e coragem. Não
abandonaremos um pedaço de terreno! Já não há problema entre a França e o Vietnã, cuja união é
agora total: Seus filhos combatem lado a lado o inimigo comum. Minha mulher chega hoje mesmo a
Saigon, virá juntar-se a mim aqui. Para todos vocês, civis e militares, eis o meu presente de Ano-
Novo: toda evacuação está suspensa, suas famílias permanecem com vocês.
Uma explosão de alegria saudou essa declaração: enfim um comandante digno desse nome, que
acreditava na vitória final, pois que não hesitava em trazer a mulher, a querida "Monette", para
Hanói; seu próprio filho, Bernard, servia no posto de Nhu Guynh. Com tal homem, os vietcongues
iriam ver o que aconteceria com eles! Todos elevaram as taças em homenagem ao comandante em
meio a um alegre murmúrio.
Léa e François estavam um pouco à parte da alegria geral; o comandante percebeu-o.
- E então, Tavernier, tudo isso não o alegra? Eu disse alguma coisa que o tivesse aborrecido?
O tom irônico, desmentido pelo olhar penetrante, não pressagiava nada de bom.
- E a linda senhora não está feliz de permanecer ao lado do marido?
- Muito feliz, general. Mas, desde que meu marido está com o senhor, praticamente não o vi. O senhor o
açambarcou completamente.
Surpreendido pelo tom agressivo, de Lattre ergueu ligeiramente as sobrancelhas. Era raro que alguém se
opusesse a ele, mas, partindo dessa encantadora pessoa, não lhe desagradava.
- Sinto muitíssimo, mas tenho necessidade de um civil que não seja nem funcionário público nem detentor de
interesses locais muito importantes, e que tenha vínculos profundos neste país, conhecendo sua cultura e sua
língua, sem negligenciar as relações com os inimigos... A senhora terá de convir que seu marido é muito
precioso para mim. Entretanto, prometo-lhe não abusar dele!
- Obrigada, general.
Um tenente, de olhar sombrio e traços marcantes, aproximou- se do casal.
- Bom dia, François.
- Bernard!... Era você mesmo que vi desfilar outro dia?
Os dois homens deram um forte aperto de mãos e se abraçaram.
- Léa, apresento-lhe meu amigo Bernard Rivière.
- Bom dia. Agora, conheço toda a família Rivière. Lien me fala sempre do senhor.
Era verdade que ele não tinha nada de asiático; era preciso olhá-lo atentamente para notar que os olhos eram
um pouco mais repuxados que os de um europeu, e os cabelos castanhos completavam a ilusão.
- A senhora pode constatar como somos diferentes uns dos outros... Pretende ficar muito tempo em Hanói?
- Isso dependerá de François. Mas tenho pressa de rever meus filhos em Saigon.
A palavra "filhos" o olhar de Bernard Rivière se entristeceu; ele pensava evidentemente na filha morta pelos
vietcongues. Léa se lamentou de lhe ter reavivado a dor.
Para afastar os fantasmas, François tomou o braço do amigo e o levou ao bufê. Eles levantaram as taças em
silêncio, olhos nos olhos, separados pelo pensamento de Hai, que combatia nas fileiras inimigas. Era por
razões completamente opostas que ambos tinham esperança na vinda do general de Lattre à Indochina.
Muito cercada, Léa respondeu com um sorriso e um abanar de cabeça às propostas divertidas que lhe faziam.
Pouco a pouco, uma grande lassidão se apoderou dela. O calor gerado pela reunião, a fumaça dos cigarros, o
bem-estar provocado pelo champanhe lhe subiram à cabeça. Sem parar de sorrir, dirigiu- se para a saída.
Algumas pessoas a haviam precedido e conversavam no jardim. Seguida pelos olhares, ela ultrapassou o
portal diante do qual duas sentinelas montavam guarda. Seguiu lentamente pela calçada deteriorada,
embaraçada pelos sapatos de salto alto, atenta para não tropeçar nas raízes das figueiras que ladeavam a
avenida. Os pedestres eram raros nesse primeiro de janeiro. Sob um pórtico meio desmoronado se escondia
uma família de miseráveis, encostados uns aos outros. Um garotinho nu, em cujo rosto sobressaíam grandes
olhos negros, seguiu-lhe os passos por um momento; devia ter a idade de Adrien. A lembrança do filho
apertou-lhe o coração. O que fazia ela ali, longe dele? O absurdo de sua presença nessa cidade deserta,
cheirando a medo e morte, apareceu-lhe tão poderosamente, que ela parou de repente. Esse gesto, sem dúvida,
salvou-lhe a vida. Um ciclista acabava de passar por ela. Uma dezena de metros antes, uma granada explodiu
na entrada do local confiscado. Da fumaça surgiram homens armados. Um deles, munido de fuzil, atirou na
direção do ciclista, que ziguezagueou e depois caiu.
Com o barulho da explosão, Léa não se mexera. Correu para o grupo que se precipitara sobre o homem caído.
Por que corria
assim ela não sabia, mas precisava urgentemente chegar perto do homem da bicicleta antes dos
soldados. Chegou no momento em que, com a coronha do fuzil, o soldado que atirara virava o corpo.
Léa deu um grito e empurrou os militares. Estes, muito jovens, viram, desorientados, sem um gesto,
essa mulher branca, elegante e bela ajoelhar-se, com o rosto perturbado, ao lado do arremessador da
granada.
- Nhu-Mai!
Delicadamente, Léa lhe ergueu a cabeça e a colocou sobre seus joelhos. Seus cabelos se soltaram.
- Uma mulher! - exclamaram os soldados.
Bem que lhes haviam dito que as mulheres combatiam nas fileiras vietcongues e que elas se
revelavam piores que os homens, mas nenhum deles fora confrontado com tal realidade.
Ao ouvir seu nome, a violinista abrira os olhos. Apesar do sofrimento, abriu um sorriso luminoso ao
reconhecer a mulher que estava inclinada sobre ela.
- Léa... é você?
A curta vestimenta branca se impregnou de sangue. Um militar já se inclinava para ela.
- Senhorita! - disse um soldado, abaixando-se.
Rápido, encontrar alguma coisa... Léa o empurrou:
- Por que o senhor atirou na minha amiga?... Ande, vá buscar um médico.
- Mas, senhorita, é uma terrorista!
- Como o senhor ousa dizer isso? É uma grande violinista.
- Ela acaba de jogar uma granada.
- O senhor a viu jogar?
- Não.
- Então, cale-se!... Ela está mal!... Depressa, um médico!
- Deixe-me passar.
Um soldado carregando uma caixa metálica com uma cruz vermelha se aproximou da jovem ferida.
- Afastem-se - disse ele cortando a blusa ensangüentada. Um murmúrio surdo se elevou à vista do
frágil peito descoberto.
- Teve muita sorte. Um centímetro mais baixo e o coração seria atingido... A bala já saiu. Não é tão
grave...
- O que aconteceu? - perguntou um tenente que chegava correndo.
- Viliemin atirou nessa mulher, que acabara de jogar uma granada, tenente.
- Não é verdade - gritou Léa, ainda com a cabeça de NhuMai nos joelhos. - Eu estava andando pela
rua, vi-a passar de bicicleta, mas não a vi jogar coisa alguma.
- Senhorita, o que diz é muito sério. Tem certeza de não tê-la visto jogar nada contra o prédio?
- Certeza absoluta, tenente.
Enquanto isso, a mão de Nhu-Mai escorregara para dentro da sua, deixando-lhe alguma coisa. O
coração de Léa bateu mais forte ao fechar os dedos sobre um pedaço de papelão.
Uma ambulância parou ao lado delas. A ferida foi deitada numa maca sem que por um só instante
sua mão largasse a da amiga. Léa se virou para o oficial:
- Tenente, avise meu marido, senhor Tavernier; ele está na Maison de France com o general de
Lattre. Diga-lhe que estou no hospital.
- Sim, senhora.
Durante todo o trajeto, as duas jovens mulheres ficaram silenciosas. O hospital Lanessan estava
cercado de arame farpado, de obstáculos e de muretas de sacos de areia. A ambulância passou sob
o pórtico, guardado por sentinelas. No pátio, homens com curativos na cabeça, nos braços, no tronco
caminhavam. Outros, feridos nas pernas, eram empurrados em cadeiras de rodas por enfermeiras,
enquanto alguns ficavam sozinhos, como abandonados, com o olhar vago. Havia marroquinos,
argelinos, senegaleses, vietnamitas servindo no exército francês e franceses genuínos.
"Como são jovens", pensou Léa.
O médico, diretor-geral do hospital, adiantou-se quando o veículo parou diante do setor de
emergência.
- Senhora Tavernier?
- Sim.
- Seu marido acaba de telefonar; vai chegar a qualquer
momento.
- Obrigada, doutor. Peço-lhe que minha amiga seja atendida logo!
- Vou me ocupar pessoalmente dela. Siga-me.
Eles percorreram longos corredores atrás da maca. Nhu-Mai estava de novo inconsciente.
- A senhora diz que essa pessoa é sua amiga? Qual é o nome dela?
- É a célebre violinista Pham Thi Nhu-Mai. Assisti a seu concerto no Opéra, há um ou dois anos.
Ele se inclinou sobre a maca.
- Sim, eu a reconheço. Ela desapareceu algum tempo depois do concerto. Correu o boato de que havia se
juntado aos vietcongues.
- É ridículo, não acredito em nada disso! Ela viveu quase sempre na França, mal conhece seu país e vive só
para a música. Acredito mais numa história de amor que ela não ousou contar aos pais. A mim ela disse alguma
coisa sobre isso...
- Ah, as mulheres apaixonadas, são capazes de tudo!
- Vê-se que o senhor nos conhece bem - disse Léa com seu sorriso mais sedutor.
O médico chefe se ergueu e tocou o bigode com ar presunçoso.
- Chegamos ao centro cirúrgico. A senhora quer esperar aqui? - perguntou, mostrando-lhe um banco de
madeira.
- Seja delicado com ela, doutor.
- Não tema nada, senhora. Está em boas mãos.
François chegou no momento em que Nhu-Mai, com o peito rodeado por uma larga bandagem, saía da sala de
operações.
- Nada de grave. A senhorita Pham estará de pé em alguns dias. Dei-lhe uma injeção de penicilina para afastar
qualquer risco de infecção.
- Parabéns, doutor, o senhor foi magnífico. Não há quartos para mulheres neste hospital militar?
- De fato, senhora...
- Então, para aliviá-lo desse problema, vou levá-la comigo.
- Mas não será possível, senhora... Tem de ser interrogada sobre o atentado.
- Pode ser interrogada em minha casa. Nesse estado, não há de perigo de fugir.
François ainda não dissera nada, mas compreendera que nada faria Léa ceder, a não ser a força.
- Comandante, minha mulher tem razão. Como o senhor sabe, faço parte do staff do general de Lattre. Assumo
a responsabilidade de cuidar da senhorita Pham. Quando estiver melhor, poderão fazer-lhe todas as perguntas
que quiserem.
- Se o senhor assume a responsabilidade.., uma ambulância levará sua amiga para onde a senhora indicar.
- Obrigada, comandante. Voltarei a vê-lo para lhe dar notícias.
- Será um prazer recebê-la, senhora.
François tomou o braço de Léa e o apertou com força.
- Comandante, agradeço sua compreensão... Minha mulher é muito ligada à amiga.
François subiu na ambulância depois de ter dado ao motorista o endereço da família Rivière.
- Nós não vamos para o hotel?
- Você está completamente maluca! Por um lado, o hotel está cheio e não tem nada de uma clínica de luxo; por
outro, a presença de uma lançadora de granadas pode não ser apreciada pelos jornalistas e outros fofoqueiros
de merda!
- Nhu-Mai não tem absolutamente nada a ver com tudo isso! Ao responder, Léa se perguntava se falara com o
marido do
relacionamento de sua amiga com os comunistas. Na dúvida, resolveu esperar para ver o que ele sabia. Tremeu
quando ele replicou num tom irônico:
- Com certeza ela não tem nada a ver...
Um velho empregado veio abrir a porta da residência onde Léa passara há não muito tempo momentos tão
intensos.
- Senhor François! Estou tão feliz de vê-lo aqui, assim como à senhora Léa... Não trouxeram a senhorita Lien?...
Saigon não é uma cidade boa para ela... O senhor Bernard esteve aqui ontem... Feliz Ano-Novo, senhor
François!
- Obrigado, Ngnan. Feliz Ano-Novo para você também. Pode preparar um quarto para a senhorita Pham, que
está ferida?
- Seu lugar não é aqui - disse ele em vietnamita.
- A senhorita Lien ficaria aborrecida com a sua falta de hospitalidade.
- Sou um bom católico e não gosto dos comunistas.
- Ninguém aqui é comunista. Cumpra a sua obrigação.
O velho se foi, arrastando os pés na laje, chamando os criados com gritos agudos.
Léa instalou Nhu-Mai no quarto que ela ocupava quando de sua temporada anterior e a ajudou a tomar um
pouco de chá. Como a ferida ia falar, Léa colocou a mão sobre seus lábios.
- Não diga nada, repouse. Falaremos mais tarde.
Ela encontrou François na biblioteca. Ele estava de mau humor.
- Você pode me explicar?
- Explicar o quê? Que encontrei uma amiga ferida e me propus a ajudá-la?
- Não zombe de mim! Você foi testemunha de um atentado que feriu gravemente três soldados franceses.
Segundo uma testemunha, foi um ciclista que lançou a granada. Ora, alguns segundos mais tarde, militares
atiraram no único ciclista que estava naquela rua. Você sabe o que aconteceu depois...
- Não vi ninguém lançar uma granada.
- Você reconheceu ter visto alguém passar de bicicleta no momento da explosão?
- Não reconheci nada. Não foi Nhu-Mai que lançou a granada!
- Preste atenção, Léa. Um falso testemunho é coisa grave. A polícia do exército vai interrogar você, vai
interrogar sua amiga. A verdade aparecerá muito depressa.
- Não posso inventar algo que não tenha visto para agradar a você! - respondeu ela, apertando na palma da
mão o pedaço do papelão.
Eles se enfrentaram com o olhar, sentindo pela primeira vez um início de desconfiança mútua.
François se lembrava perfeitamente da narração que Léa lhe havia feito da fuga da violinista, em companhia de
dois amigos, para ir juntar-se aos vietcongues. Compreendia que ela tivesse tentado salvá-la. Mas contestar
que ela fora a autora do atentado parecia-lhe incompreensível. Léa não poderia negar a evidência durante
muito tempo e não era difícil imaginar as conseqüências que sua atitude teria para ela e para ele mesmo. Ele
quase sorriu ao pensar em de Lattre e seus "marechais" ao saber que o casal abrigava uma terrorista. Sabia
também que Léa não voltaria atrás em suas declarações. Ela, a rigor, poderia ser compreendida. Mas e ele?...
- No meu caso, isso se chama traição - disse em voz alta.
O coração de Léa se apertou. Ele tinha razão. Era a guerra, e eles estavam dando asilo a uma inimiga, que não
hesitara em matar. Léa reviu-se em Montillac, escondendo da Gestapo ou da Milícia os amigos da resistência.
"Mas não é a mesma coisa!", cochichava-lhe uma vozinha enquanto outra resmungava: "Essas pessoas estão
lutando pela liberdade, como nós; nós é que somos os invasores. É normal que nos combatam por todos os
meios." "Mas são franceses como você que eles matam", replicou a vozinha. A outra voltou, mais forte: "São
esses mesmos franceses que nos exploraram, aprisionaram, torturaram, mataram. São eles que nos empurraram
para a revolta com seus odiosos procedimentos, seu desprezo pelos nossos costumes, e nos negaram o direito
à igualdade, salvo quando precisavam de nós para nos fazer massacrar nas guerras que não eram nossas." "Os
vietcongues não hesitaram sequer em eliminar os adversários, em massacrar populações inteiras que estavam
ligadas à França, em queimar-lhes as cidades, em levar como reféns crianças francesas e suas mães..."
Mergulhada em pensamentos contraditórios, ela se assustou quando François a segurou.
- Preciso reencontrar o general. Reflita bem. Respeito a
hospitalidade que você dá a uma ferida, mas, quando ela melhorar
e se já não estiver presa, quero que vá embora. Entendeu?
Léa o empurrou delicadamente. Pensativo, François a olhou
com firmeza.
- Nunca me esquecerei deste primeiro de janeiro! - suspirou
ele, saindo.
Era a primeira vez que a deixava sem um beijo.

Capítulo 12

François partiu para Saigon com o general de Lattre. Léa se juntaria de novo a ele quando Nhu-Mai estivesse
completamente restabelecida.
No dia seguinte à sua instalação na casa da família Rivière, a violinista fora acometida de uma febre forte.
Chamado, o médico julgara crítico o estado, o que impediu o exército de interrogá-la. Léa mandou levar uma
cama para seu quarto e ficou ao lado dela dia e noite. Na manhã de 6 de janeiro, a febre diminuiu. Com voz
fraca, Nhu-Mai chamou Léa. Imediatamente, a jovem foi para junto dela e constatou com alívio que o olhar
tinha recobrado a lucidez.
- Oh, minha querida! Está melhor?
Uma pequena mão descarnada agarrou a sua.
- Onde estou?
- Não tem nada a temer. Está na casa dos Rivière.
- A senhorita Lien está aqui?
- Não, está em Saigon com meus filhos.
- É por minha causa que você está longe deles...
- Não diga isso. Antes de tudo, não fale: vai se cansar e a febre pode voltar. Descanse.
- O que fez do pedaço de papelão?
- Não se preocupe, está em lugar seguro.
- Estou com sede.
Léa ergueu-lhe a cabeça e a fez beber um pouco de chá. NhuMai sorriu e adormeceu, com a mão
na da amiga.
Mais tarde, Léa saiu para tomar ar no jardim. Cansada, deixou-se cair num banco, sob uma árvore
cujos galhos tocavam o chão. O pedaço de papelão trazido por Nhu-Mai era perigoso; tratava-se de
uma espécie de carteira de identidade expedida pelos vietcongues.
Tudo estava silencioso em torno dela, Hanói não retomara a animação de antigamente. Ela estava
com pressa de deixar esses lugares marcados pela guerra. Em quanto tempo NhuMai estaria
restabelecida? Desde a partida, François não telefonara nem uma vez. Por seu lado, ela não
conseguira falar com Saigon, todas as linhas estavam reservadas para os militares.
Uma pedra rolou a seus pés. Imediatamente, ela se levantou. Uma nova pedra, envolta num papel,
juntou-se à outra. Léa pegou-a, desdobrou a folha de papel. Era uma carta escrita com letra ruim,
que ela decifrou com dificuldade.
A mãe de Nhu-Mai foi prevenida de sua presença na casa. Está muito descontente e quer
retomar a filha. Pediu à polícia que a viesse buscar Os amigos querem igualmente pôr a
mão nela. Seja prudente, eles não gostam dos franceses.
Giau
Léa caminhou pelo jardim olhando em torno de si, mas nem sombra do mendigo. No mesmo
momento, a porta que dava para a rua se abriu e soldados entraram. Léa foi até eles.
- Bom dia, senhores. O que desejam?
- É a senhora Tavernier? - perguntou o oficial.
- Sou.
- Queremos ver a senhorita Pham.
- A senhorita Pham ainda está muito fraca, não acredito que
possa recebê-los.
- Se a senhora permitir, julgarei por mim mesmo.
- Muito bem. Sigam-me.
Ela parou diante do quarto onde Nhu-Mai repousava.
- Esperem-me um instante, vou avisá-la.
O oficial concordou. Léa voltou logo.
- Podem entrar. Não permaneçam muito tempo, ela está muito cansada.
Apoiada em travesseiros, Nhu-Mai parecia uma garotinha frágil. O oficial se aproximou.
- Senhorita Pham, a senhorita é suspeita de ter lançado uma granada num prédio do exército. O que
tem a dizer?
- Nada, senhor. Eu passava de bicicleta quando ouvi uma grande explosão... Tive medo e procurei
me afastar.
- Só havia a senhorita na rua.
- Não é verdade, vi um homem fugir - interrompeu Léa.
- Senhora Tavernier, não é a senhora que eu estou interrogando, mas a senhorita Pham. Então, a
senhorita nega ser a autora do atentado?
- Sim, senhor. Tive medo, por isso fugi. Não estou habituada à guerra... Isso me amedronta desde
que assisti aos bombardeios na França.
- A senhorita estava na França durante a Ocupação?
- Passei lá uma parte de minha infância; foi lá que comecei a estudar violino.
- Por que a senhorita saiu da casa de seus pais?
- Isso é assunto particular, só diz respeito a mim.
- Nas atuais circunstâncias, isso interessa também às autoridades policiais.
- Deixem-na em paz! - insurgiu-se Léa. - Não vêem que está cansada?
- Senhora Tavernier, temos um inquérito nas mãos, deixe- me conduzi-lo como achar melhor, senão
vou ser obrigado a lhe pedir que se retire. Senhorita Pham, recomecemos. Para onde a senhorita foi
ao deixar a casa de seus pais?
As faces pálidas de Nhu-Mai enrubesceram. Ela respondeu abaixando a cabeça, enquanto uma
lágrima rolava pela face.
- Parti com meu noivo.
- Qual o nome dele?
- Nguyen Van Trinh.
- Onde ele está agora?
- Está morto, senhor.
Léa quase não pôde esconder a surpresa. A violinista estava sendo sincera ou representando uma farsa? Se era
este o caso, que comediante!
As lágrimas agora rolavam abundantes pelas faces da jovem.
- Eu lhes peço, deixem-na, é muita crueldade! - exclamou Léa segurando a amiga, que parecia a ponto de
desmaiar.
- Lamento, senhorita. Vou informar a meus superiores. Voltarei mais tarde.
Tão logo partiram, Nhu-Mai secou as faces com um ligeiro sorriso.
- A história do noivo não era verdadeira?
- Não totalmente. Eu e os camaradas combinamos, caso fosse presa, que eu contaria essa fábula sobre o
noivado.
- Mas e esse Nguyen não sei de quê? Existe mesmo?
- Existia...
- Existia? Como assim?
- Era um traidor; está morto. Nós o executamos.
- Você está brincando! - balbuciou Léa, olhando-a horrorizada.
- Era o chefe da aldeia em que nos encontrávamos meus camaradas e eu. Ele me fazia a corte, oferecia
presentes para mostrar a todos quais eram suas intenções. Na aldeia, ninguém além dele sabia quem éramos;
ele declarara que éramos parentes afastados que tinham fugido das perseguições dos vietcongues. De fato,
essa aldeia ficava nas proximidades de um posto da Legião que os habitantes abasteciam duas vezes por
semana. Dois amigos e eu recebêramos ordem de nos misturar aos camponeses a fim de conhecer o posto,
avaliar o número de soldados, saber quais eram suas armas, descobrir as falhas de sua defesa... Estou com
sede... Obrigada.
Depois de beber, ela recomeçou:
- Não foi muito difícil. A vigilância estava relaxada, haviam- se estabelecido laços entre algumas mulheres da
aldeia e os soldados. O comandante do posto bebia muito e pouco a pouco acreditou que os aldeões fossem
amigos. Isso era verdade quanto a um pequeno número deles, para os outros era apenas uma ocasião de
vender peixe, carne, legumes vinte vezes mais caro que aos compatriotas. Depois de algum tempo, as relações
entre aldeões e soldados tornaram-se diárias. Isso nos permitiu perambular pelo posto e levantar a localização
das armas pesadas. Enviei todas essas informações ao camarada-comandante da minha seção. Alguns dias
mais tarde, vestidos de nhàque, escondidos nos barcos, tomamos o posto.
- Você participou do combate?
- Não, eu não podia ser reconhecida pelas pessoas da aldeia como comunista.
- O que aconteceu aos legionários?
- Estão mortos.
- Todos?
- É o que me disseram.
A indiferença com a qual Nhu-Mai falava desses combates e mortes revoltou Léa.
- Já pensou no que está me contando como a coisa mais natural do mundo? Você me fala do assassinato de
combatentes franceses! Esqueceu que sou francesa e que, ainda que justa a sua causa, a maneira de agir é
odiosa?
- Pode ser, mas a de vocês é semelhante. Sabe o que seus amigos franceses fizeram?... Voltaram em grande
número e massacraram todos os habitantes da aldeia. Antes de matá-los, violaram as mulheres, torturaram os
homens. Depois disso, puseram fogo nas colheitas e nas casas.
- É horrível! Mas, matando os soldados, vocês não deveriam esperar represálias? - Certo. Mas tais represálias provocaram o ódio de todo o povo contra o ocupador
francês e reforçaram o
Partido em sua
determinação. Esses mártires foram mortos pela independência de nosso país, sua memória
permanecerá para sempre entre nós.
- Mas nem todos os vietnamitas querem morrer apenas pela glória do Partido, nem todos são
comunistas!
- Eles se tornarão, por bem ou por mal.
- O que você diz é espantoso. Não acha que já houve bastante mortos, bastante sofrimento?
- Cada vietnamita vítima do opressor torna o Partido maior, mais forte.
Léa a olhou com piedade.
- Você me dá medo. Já não é você mesma, contenta-se em repetir a doutrinação do Partido, perdeu
toda a consciência pessoal.
- E estou orgulhosa disso! Sou um instrumento da Revolução internacional. Não existo como
indivíduo.
Estas últimas palavras, proferidas com paixão, acabaram com as forças de Nhu-Mai, que
empalideceu e desmaiou.
- É péssimo ficar em tal estado! - suspirou Léa, molhando-lhe a testa com um lenço empapado de
água-de-colônia.
Nhu-Mai reabriu os olhos e murmurou:
- Vai me denunciar à polícia?
- Deveria... Não fale mais, está muito fraca, e não quero ouvir mais nada a respeito de suas
atividades revolucionárias. Durma, que eu vou trocar de roupa.
Nhu-Mai dormiu até a noite. Ao acordar, fez soar a campainha. Um empregado entrou com uma
tigela de caldo fumegante; o odor do tamarindo encheu o quarto.
- M3i cô dàng, món nâi rât tôt cho cô.
- Can on, bà Tavernier dâu rôi?
- O khàch san Métropole. Nêu cân, chi ng ta có thê liên lac vói bà o dây. *
- Beba, isso lhe fará bem.
- Obrigada. Onde está a senhora Tavernier?
- No hotel Métropole. Em caso de necessidade, poderemos buscá-la.
Transformada em enfermeira havia uma semana, Léa sentia uma urgente vontade de se afastar um
pouco para refletir. Em outros tempos daria uma volta pelo Petit Lac, um passeio de cyclopousse
pela avenida Parreau - que os franceses, que não receavam usar mais um anacronismo, chamavam
de "dique" Parreau, nome do primeiro prefeito-residente de Hanói em 1885 - ou teria passeado pelo
jardim botânico, não sem ter feito um ligeiro desvio pelo pagode do Pilier-Unique, cuja construção
datava de 1049. Léa logo gostara desse curioso edifício rodeado de um fosso cheio, onde boiavam
nenúfares. Sobre uma larga coluna de pedra, feita de dois blocos cilíndricos, estava colocado um
delicado pagode, ao qual se tinha acesso por uma escada de tijolos, em mau estado. Toda a
construção, aliás, sofrera muito: a cobertura e o assoalho estavam destruídos em alguns pontos.
Apesar da decrepitude, esse pagode tinha um charme incrível. Ia-se lá para assegurar uma
descendência.
O bairro da Concession respirava calma provinciana, tão cara aos antigos colonos. Podia-se
acreditar estar em Vichy ou em Soissons se, de vez em quando, não passasse um ciclista ou um
morador da terra a passos largos sob o chapéu pontudo.
Hoje, Léa tinha necessidade de ver gente, de não ficar confinada à cabeceira de uma doente - não
importa que doente: uma terrorista lançadora de bombas!
Dentro dela ocorria uma verdadeira batalha entre a amizade e o dever. O bom senso, o patriotismo
queriam que ela denunciasse Nhu-Mai. Mas a compreensão das motivações da amiga, mesmo que
condenasse a ação terrorista, e o horror à delação a impediam de fazê-lo.
"Se François estivesse aqui, saberia decidir. Por que nunca está comigo quando eu preciso dele?"
Era hora do aperitivo, havia muita gente em volta do bar do Métropole: jornalistas maltrajados,
correspondentes com roupas mais leves, civis de ternos claros, oficiais e suboficiais de cáqui,
AFATS de sapatos sem salto. A elegância de Léa, que pusera o vestido usado no dia dos
cumprimentos na Maison de France, destoava.
Nem um lugar no bar; ela foi se sentar na única poltrona livre do saguão. Remexeu na bolsa à procura dos
cigarros, depois do isqueiro. Um homem lhe ofereceu fogo. Seus gritos se cruzaram ao mesmo tempo:
- Jean!
- Léa!
Jean Lefèvre estava ali, diante dela. Caíram nos braços um do outro.
- Oh, Jean, que felicidade revê-lo!
- Deixe-me olhá-la, não acredito nos meus olhos! Está ainda mais bonita que na minha lembrança.
Léa riu, com esse riso que perturbava tanto os homens.
- Olha quem está comigo.
- Franck!
O amigo de Laura a olhava com ar transtornado. Quando ela o beijou, um soluço sacudiu o corpo do jovem. O
fantasma de Laura sorria ao contemplá-los.
Duas cadeiras foram desocupadas; eles se sentaram e fartaram o olhar com a visão dessa mulher encantadora
que participara de suas vidas. Depois os três falaram com animação de coisas ora difíceis, ora fáceis. Tinham
tanto para contar! Quando se calaram, em meio à alegria dessas recordações, entreolhando-se com emoção,
Léa levantou-se:
- Estou com fome! Convido-os para jantar.
O maltre os colocou a uma mesa perto da varanda. De comum acordo, decidiram comer à européia. Quando
um trivial macarrão gratinado lhes foi servido, saborearam-no como iguaria, bebendo um Bordeaux medíocre.
- Parece que estamos em casa! - rejubilou-se Jean, devorando uma grande garfada de massa.
Uma vez bem alimentado, Lefèvre falou. Falou da beleza desse país que aprendeu a amar, de suas mulheres,
ao mesmo tempo frágeis e fortes, delicadas e cruéis, daquela que se tornou sua congai.* Uma noite, ela
havia lhe dado provas de seu amor e
*Amante
de sua fidelidade vindo avisá-lo de um ataque iminente dos vietcongues; ela e sua família haviam
pago com a vida, bem como o filho que ela esperava dele. Nessa noite, isolados no posto, ele e seus
camaradas haviam conseguido rechaçar o ataque dos vermelhos. Mas quatro foram mortos, e cinco
feridos, que ele conseguira evacuar para Hanói. Ele precisara esquecer o fim atroz da companheira e
retomar a "pacificação" da região. Os aldeões estavam com eles de dia e os traíam à noite. Não
tinha raiva deles: não tinham escolha. Os vietcongues tinham espiões por toda a parte; seus métodos
eram mais eficazes que os dos franceses, isolados em seus picos, dominados por bandeiras
tricolores, ou no pedaço de terra perdido no meio dos arrozais. Com o tempo, Jean compreendera
que cada aldeia "pacificada" estava condenada, que a proteção assegurada pelo posto era ilusória e
que, após a partida deles, a aldeia seria arrasada, seus habitantes torturados e massacrados. Já não
agüentava tantas mortes no meio de tanta beleza. Aprendera a desconfiar das manhãs calmas, do
nevoeiro flutuando sobre os arroios, dos dias de chuva que apodreciam tudo, das noites frias e
claras. Dois anos de Indochina o tinham aproximado desse país e de seus habitantes, cuja
sobrevivência, ele acreditava, estava intimamente ligada à presença francesa. Estava convencido de
que o dever da França era proteger essas populações e auxiliá-las a chegar à independência sem a
ajuda dos vietcongues, que pouco se importavam com elas, pois só visava ao triunfo do comunismo.
Ele, que combatera na Resistência junto aos comunistas da Gironda, jamais teria acreditado que
viria a combatê-los nesse país, a dezoito mil quilômetros do seu. Mas o comunismo mostrava aqui
sua verdadeira face, dura e arrogante, o desejo de dominar, sem participação, os povos do mundo.
Como poderia esquecer o dia em que, com ordens de abandonar o posto após uma concentração de
forças dos vietcongues, tiveram de deixar uma aldeia perto de Bac Can? No início, os habitantes os
haviam visto, em silêncio, destruir as fortificações de bambu, desmontar o material pesado, fazer
desaparecer tudo o que pudesse servir ao inimigo. Sempre calados, haviam observado os soldados franceses subirem nos caminhões, que lentamente se tinham posto em
marcha. Houvera então
um movimento da multidão, gritos; velhos, mulheres, crianças começaram a correr atrás dos veículos, com o
chefe da aldeia à frente, a longa barbicha flutuando atrás, gritando palavras que o barulho impedia de
compreender. Uma mulher segurando um bebê agarrou-se ao caminhão em que estava Lefèvre.
- Dàng di! - suplicava ela. - Chúng se giêt hêt chúng tôi! Mang con tôi di, tôi van ông, mang nó
di!
- Não vão embora! Vão nos matar a todos! Leve meu filho, eu lhe peço, leve-o!
A velocidade a fizera desistir. Ficara de pé no meio da estrada esburacada com o filho nos braços. Desde
então, toda manhã, ele revia essa mulher, amaldiçoando o governo francês e o exército, que tinham ordenado
a "pacificação" dessas pessoas para as sacrificar em seguida. Ele não compreendia. Para ele, a França
cometera este erro imperdoável: abandonar populações civis que estavam sob sua proteção.
A lembrança desse abandono vincava o rosto de Lefèvre; em seus olhos passaram clarões de ódio e de
vergonha. Com voz monocórdia, prosseguiu:
- Isso continuou. Pacificamos outras aldeias, que abandonamos. No final, louco de remorsos, voltei atrás com
meus homens. Tarde demais. Os vietcongues foram mais rápidos. Na entrada da aldeia, uma dezena de
cabeças estavam enterradas em estacas de bambu. Das casas não restava mais nada. Diante de sua cabana, o
chefe ainda estava vivo, com o ventre rasgado. Perto dele, os intestinos, nos quais pousara uma nuvem de
moscas e de mosquitos. Eu lhe dei o tiro de misericórdia. Nunca esquecerei a condenação violenta de seu
olhar.
Pálida, com os olhos fixos no prato, Léa estava com náuseas. Depois de um longo silêncio, Jean Lefèvre
pediu uma garrafa de conhaque, de que bebeu dois copos, gole a gole.
- Perdoe-me, Léa, ter lhe contado tudo isso, mas eu precisava falar. Essa guerra não tem nada a ver com a que
temos; é uma guerra em que a França se desonra. Amanhã, partiremos ao amanhecer para combater homens
cruéis, mas que lutam em seu país, mesmo que sob a cobertura de uma ideologia que aprendi a detestar. Eu os
compreendo. Esta não é uma guerra de libertação, como diz a propaganda deles, mas uma guerra para
viverem livres em seu país ou, ao menos, sob um despotismo que seja deles. Alguns de nós se juntaram às
suas fileiras, convencidos de que a guerra deles é justa. Se eu não prezasse minha honra de soldado francês,
já teria feito o mesmo!
- Não diga isso - protestou Franck, que não havia dito uma só palavra. - Isso seria trair.
- Garoto, a traição é um problema de circunstância e de compromisso pessoal. Para mim a idéia que eu fazia
da França e da honra não era esta. Abandonando os que vieram a nós, fomos nós que nos traímos. Traí meu
irmão morto pelos alemães, meus camaradas torturados, deportados; traí o ideal francês de liberdade,
igualdade e fraternidade...
Jean engoliu um terceiro copo de conhaque e continuou:
- De qualquer maneira, com ou sem de Lattre, tudo está perdido, eles vão ganhar, perderão dezenas de
milhares de homens, mas ganharão, retomarão as montanhas, os arrozais, as cidades e as aldeias. Terão paz?
Nada é menos certo, mas serão os donos de sua casa.
- François pensa que com de Lattre tudo vai mudar.
- Está enganado. Sem dúvida alcançaremos algumas vitórias, mas isso será apenas para ser melhor derrotados.
Quem não viu um ataque vietcongue não pode compreender. Eles se espalham por seu objetivo como
formigas: matam-se dez, cem os substituem. Cem? São mil, que nos forçam a fugir. Acredite-me, eles
vencerão!
François pensara nisso uma vez, mas desde que estava com de Lattre via as coisas de outra maneira. Pela
primeira vez, Léa começou a duvidar de seu julgamento.
- O que ele quer?! - exclamou Franck, mostrando a varanda.
Léa se virou. Atrás do vidro, Giau agitava os braços atrofiados, fazendo-a compreender com gestos vivos que
precisava encontrálo. Ela se levantou.
- O que esse monstro quer com você? - perguntou Jean.
- Não se assuste, é um amigo. Foi graças a ele que encontrei François.
- Acompanharemos você.
- Se quiserem...
Não puderam sair pelas portas da varanda, fechadas por medo de atentados. Tiveram de fazer a volta pelo
hail e contornar o prédio para chegar à varanda. Vendo aparecer dois homens de uniforme, Giau fez menção
de fugir.
- Pare, estão comigo, você não tem nada a temer! O que está acontecendo?
- Não quero dizer nada diante deles.
- Fiquem aqui, vou falar com ele - disse Léa, dirigindo-se aos amigos.
- Mas...
- Por favor, Jean, não há perigo.
Eles a deixaram afastar-se alguns passos.
- O que quer? Você é louco de vir aqui.
- É importante. Levaram Nhu-Mai e a mãe dela.
- Quem as levou?
- Os vietcongues.
- Mas por quê?
- Para que Nhu-Mai não fale mais.
Léa pensou que era uma boa razão.
- Vão maltratá-la?
- Não acredito. Sabem que não falou, e a mãe não sabe de nada. Mas você deve tomar cuidado. Diga que
ignora todas as atividades de Nhu-Mai. Trata-se de sua vida!
- Apesar de tudo, não ousarão me levar.
- Não seria a primeira francesa a ser tomada como refém ou morta. Volte para Saigon, é menos perigoso que
aqui. Os vietcongues vão atacar qualquer dia desses.
- Como sabe disso?
- Não importa, eu sei. Todos os vietnamitas sabem. Outra coisa: não volte à casa dos Rivière, fique no hotel.
- Mas por quê?
- Os vietcongues têm ordem de levar você também.
Depois de ter estremecido com a narrativa de Jean, Léa sentiu uma séria ameaça pesar sobre ela.
- Obrigado, Giau.
O mendigo desapareceu com uma velocidade surpreendente. Abatida, Léa voltou a seus companheiros:
- Podem me acompanhar até em casa para pegar alguns objetos? Vou me hospedar no hotel.
- O que está acontecendo? - perguntou Jean.
- Os vietcongues levaram Nhu-Mai, a jovem vietnamita de quem eu tomava conta.
- A polícia sabe disso?
- Não sei de nada. Vocês vêm? Não é muito longe daqui.
As grandes portas abertas da residência não anunciavam nada de bom, nem o silêncio inquietante que reinava
no local. Cortada a eletricidade, eles se orientaram pela luz do isqueiro de Franck. Ao chegarem diante da
porta do quarto de Nhu-Mai, ele deu um grito. Dirigiu a luz da chama para o chão. Em frente à porta jazia
numa poça de sangue o corpo de Ngnan, o velho empregado das crianças Rivière, com a garganta cortada.
Tiveram de saltálo para entrar no cômodo. No interior reinava a maior desordem. Jarros de porcelana preciosa
haviam sido arremessados contra as paredes, as tapeçarias estavam dependuradas, os móveis, quebrados, a
cama, destruída. Léa jogou numa grande bolsa algumas roupas amarrotadas e objetos de toalete. Já iam deixar
o quarto quando luzes de lanternas elétricas os ofuscaram.
- Não se mexam! O que está acontecendo?
- Eu não sei - respondeu Léa ao oficial. - Quando voltei para casa com meus amigos, encontramos este lugar
neste estado, o empregado morto. A senhorita Pham desapareceu. Ela não poderia sair sozinha, estava muito
fraca...
- Senhora - disse o comandante da patrulha - e senhores, é preciso que me acompanhem. Estou vendo, senhora Tavernier, que arrumou suas coisas.
Traga-as com a senhora...
- Aonde vamos?
- A Citadeile.
Foram em alta velocidade pelas ruas escuras. Logo que chegaram ao pátio da Citadelle, foram
conduzidos até o comandante. Era um homem frágil, de rosto macilento, visivelmente exausto, às
vésperas da aposentadoria.
- Sentem-se - disse ele com voz seca. - Disseram-me, senhora Tavernier, que a terrorista Pham
desapareceu de sua casa. O que tem a dizer?
- Nada. A senhorita Pham parecia estar melhor, pensei que podia me ausentar por algumas horas
para conversar um pouco com meus amigos. Quando voltei com eles, ela havia desaparecido.
- Não tem nenhuma idéia do local onde possa estar?
- Nenhuma, senhor.
- Trate-me de coronel.
- Nenhuma, coronel.
Ela notou o olhar interrogativo de Jean e de Franck. "Tomara que não falem de meu encontro com
Giau nem do que ele me disse."
Ambos permaneceram em silêncio.
- E os senhores?
- Ignorávamos totalmente a existência dessa senhorita Pham até esta noite. Encontramos a senhora
Tavernier, que é uma amiga de infância, no hotel Métropole, onde jantamos relembrando os velhos
tempos.
- O que estão fazendo em Hanói?
- Acompanhamos um comboio de feridos.
- Estavam na frente de batalha?
- Estávamos, coronel. Fomos atacados a leste de Viêt Tri. Tivemos muitas baixas.
- Eu sei, os senhores se defenderam como bravos. Quando têm de voltar?
- Ao amanhecer, coronel.
- Estão sob as ordens de quem?
- Do coronel Müller.
- Um bravo. De agora em diante os senhores ficarão com o coronel Vanuxem.
- Ouvi falar disso, coronel.
- Muito bem, retornem ao seu acampamento.
O telefone tocou. O comandante da Citadelle atendeu.
- Alô...
Ouviram-se gritos do outro lado.
- Sim, general... Bem, general... As suas ordens, general. Boa noite, gen...
O coronel, que se levantara para responder ao "general", de amarelo mudara-se em cinzento. Com a
mão trêmula, tirou um lenço do bolso e enxugou o suor da testa.
- Era - disse ele gaguejando - o general de Lattre. Eu não sei como soube que a senhora está aqui,
mas me deu ordem de conduzi-la à sua casa e não a aborrecer mais com esse atentado.
- Sempre com sorte... Ainda iam dizer que fui eu quem jogou a granada!
- Ninguém pensou que fosse a senhora, mas fortes suspeitas pesam sobre sua amiga, e sem seu
testemunho...
Léa sentiu os olhares de Franck e Jean como uma chama queimando-lhe a nuca. A censura deles
pesava sobre ela, mas eles nada disseram.
- Diga adeus a seus amigos, senhora. O dever os chama. Vou mandar que a acompanhem.
Ela beijou os companheiros com efusão e com o coração apertado os viu sair da sala. Quando os
veria novamente?
- Tomem cuidado...
Eles se voltaram com um sorriso desiludido.

Capítulo 13

François voltou a Hanói em 14 de janeiro de 1951, no começo da tarde, a bordo do avião do general de Lattre.
A sua chegada à Maison de France, o general convocou os jornalistas a seu gabinete para lhes dar
conhecimento do êxito obtido em Cam Ly, na orla do delta, pelo coronel Erulin. De Lattre respondeu às
perguntas em tom jovial, fingindo não notar o ar sombrio de Salan. O "Chinês" virou-se para Tavernier:
- Preciso falar com o general. Estou apreensivo com a frente norte do rio Rouge.
- Empolgado como ele está, o senhor teria dificuldade em interrompê-lo.
- Pouco me importa! Se o senhor o conseguir, diga-lhe discretamente que estou mandando uma mensagem
para o coronel Edon.
A campanha de "Tran Hung Dao", anunciada por Salan e comandada pelo general Giap a partir de Thaï
Nguyen, capital dos guerrilheiros vietcongues, acabara de começar.
Duas horas mais tarde, com o coronel Redon, ele conseguiu falar com de Lattre e explicar-lhe a gravidade da
situação. Bruscamente este mandou embora os jornalistas e depois, com ar maldoso, voltou-se para François:
- Não preciso de civis neste momento. Pode ir encontrar sua bonita mulher. Mandarei chamá-lo em caso de
necessidade.
- As suas ordens, general.
François deixou a Maison de France vermelho de raiva. Estava farto desse déspota, que tratava os
colaboradores como cães. Cego pela ira, ele se chocou com Lucien Bodard, que tinha parado no jardim para
acender um cigarro.
- Não olha por onde anda?... Ah, é o senhor... Por sua fisionomia, estou vendo que o nosso "rei Jean" o tratou
com aspereza...
- Se um dia o jornalismo não der certo, o senhor pode trabalhar como vidente.
- Eu me lembrarei disso, na hora certa. Mas o senhor não tem razão para ficar nesse estado; ele é assim com
todo mundo.
- Talvez. Mas não sou um de seus "marechais" e não estou habituado a ser tratado dessa maneira.
- Aproveite isso para ir ver sua mulher; a encantadora senhora Tavernier se resfria no Métropole.
- O senhor, que conhece os segredos dos deuses, sabe se há notícias da jovem vietnamita acusada de ter
lançado uma granada?
- Não, oficialmente; mas tudo leva a acreditar que está nas mãos dos vietcongues.
- Acha que é culpada?
- Sinceramente, sim. Ela e sua mulher estavam sozinhas na rua no momento do atentado.
- Deduz disso, então, que minha mulher mentiu?
- Tudo leva a crer nisso. Não se pode excluir que tenha agido por solidariedade feminina. Elas se conheciam
antes, não é?
- Sim. Mas não vejo essa jovem como uma terrorista; ela passou a infância na França e estava no início de
uma carreira internacional. Não é o perfil vietcongue.
- Então, por que a levaram?
- Como quer que eu saiba?
- Se eu souber de alguma coisa, não esquecerei de avisá-lo.
- Obrigado.
Eles apertaram as mãos, e François partiu para o Métropole.
Léa não estava no quarto. François aproveitou para tomar um banho de chuveiro. Ele estava saindo nu do
banheiro quando ela voltou, com os braços cheios de flores. Atirou sobre ele, batendo nele com o buquê.
- Detesto você, detesto você!... Por que me deixou tanto tempo sozinha?
Ele a reencontrava, selvagem e injusta. Arrancou as flores dela, jogou-as na cômoda, e a empurrou para a
cama.
- Não, eu não quero... Largue-me! Pare ou grito!
- Grite, minha linda! Não será a primeira vez que a farei gritar...
Sempre falando, ele levantou-lhe o vestido e afastou a calcinha.
- Deixe, amor. Tenho certeza de que você está com tanta vontade quanto eu. Conversaremos depois.
Léa se debateu por mais alguns instantes, mas esse corpo quente e nu, esse sexo duro acabaram com a razão
de sua resistência. Por um bom tempo ficaram imóveis, enroscados nos braços um do outro, com o coração
batendo, convencidos de que nada de mal poderia lhes acontecer, pois se amavam e estavam de novo juntos.
- Eu o amo... - murmurou ela antes de adormecer.
Dormiram até a noite cair, de novo fizeram amor, lentamente, atentos à chegada do prazer.
Quando desceram para jantar, as marcas de sua felicidade eram tão evidentes, que eles pareciam impudicos.
No bar, ao vê-los, Lucien Bodard ergueu o copo.
- A saúde dos apaixonados!
No dia seguinte, o general de Lattre deu ordem ao coronel Méricourt para utilizar napalm. Era a primeira vez;
mas não seria a última.
De repente, um som encheu o ar e no céu apareceram estranhos pássaros, que cresciam de minuto
a minuto. Aviões! Ordenei a meus homens que se abrigassem das balas e dos projéteis, mas
os aviões se foram sem atirar Entretanto, sem aviso, o inferno estava diante de mim! Um inferno que num
instante tomou a forma de containers avais lançados pelo primeiro, depois pelo segundo aparelho. Imensas
cortinas de fogo obstruem de uma só vez centenas de metros e aterrorizam meus homens. Isso é o napalm! O
fogo que cai do céu...
Fugimos para o limite dos bambus, e eu grito:
- Reunião atrás da colina!
Mas quem me escutaria em tais instantes? Quem poderia me ouvir?
Atrás de nós a infantaria francesa começou o ataque. Os gritos dos homens chegavam até nós. Meus
soldados atravessaram as fileiras de uma seção que permaneceu de reserva. Parei perto do oficial que a
comandava.
- Tente o mais que puder retardar a progressão dos franceses, enquanto tentarei reagrupar meus homens
atrás da colina.
- O que é isso?A bomba atômica? -perguntou ele, com as pupilas dilatadas pelo horror
- Não, é o napalm!*
Durante a noite de 16 para 17, os ataques vietcongues foram de uma violência rara. Em Vinh Yen,
as unidades francesas lutaram com bravura desesperada. Os correspondentes da imprensa
internacional se misturaram aos combatentes e, nos dias que se seguiram, a guerra da Indochina foi
o assunto principal de todos os grandes jornais, para satisfação do general de Lattre, que pensava
com razão que essa publicidade lhe permitiria obter novos reforços do governo francês e novos
créditos do Pentágono, que via a "maré vermelha" ser contida tanto na Indochina quanto na Coréia.
Os vietnamitas cognominaram o general vencedor de "Ong sau lua", o general de fogo, para maior
orgulho do "Mocho".
Em 24 de janeiro, Salan poderia dizer que o plano "Tran Hung Dao", do general Giap, malograra.
Essa vitória dera novamente
confiança ao exército, apesar das pesadas perdas de homens e material. Entretanto, as forças empregadas
pelos vietcongues impunham respeito: vinte e quatro batalhões se arremessavam com um fanatismo que
impressionara vivamente as tropas francesas, principalmente seus elementos norte-africanos, o que deixava o
general Salan inquieto quanto ao futuro.
Bastante chocado com a loucura diabólica do soldado vietcongue no ataque não só durante o dia mas também
à noite, pela facilidade de aceitar as perdas, pela inteligência tática de Giap e pela vontade feroz de conquistar
o delta do Tonquin, também de Lattre estava preocupado:
- Não nos livraremos disso, não venceremos se a França e a América não nos ajudarem. Tenho um plano:
formação rápida de um exército vietnamita, estradas de asfalto cercando Hanói e Haiphong, que transformarei
em redutos... Para isso é preciso o apoio da metrópole, e é indispensável que a América nos forneça meios
materiais, equipamento e armamento - disse ele a Salan.
Diante do fracasso da missão confiada ao coronel Allard - e a despeito da presença do general Juin e do
presidente Pieven -, de Lattre decidiu ir, ele próprio, aos Estados Unidos para tentar obter ajuda.
- Mas, antes da minha partida, quero dar uma demonstração. Vou exibir força no Tet. * Nesse primeiro dia do
ano anamita, quero uma parada em Hanói, de noite. O presidente Sarraut chega em 6 de fevereiro; tudo deverá
estar pronto para esse dia!
O comandante assumira riscos extraordinários na batalha de Vinh Yen, pegando parte das tropas em Annam,
na Cochinchina, requisitando tanques, navios, aviões, desguarnecendo pontos estratégicos. Como era hábito
seu, ele mostrou-se pomposo e injusto, condecorando uns, desprezando outros. O coronel Vanuxem, um dos
vencedores de Vinh Yen, foi o bode expiatório. É verdade que seu notório mau procedimento escandalizava a
esposa do general: se bem que casado na França, ele vivia em concubinato com uma AFAT que ele
engravidara, cuja coragem impressionava a todos; era apelidada "a mãe dos muongs". O gigante ruivo de barba flamejante se ofereceu até para
retornar à França para acalmar a cólera de de Lattre. O coronel Cogni interveio e conseguiu acalmar o
general, que, satisfeito de haver demonstrado sua autoridade, respondeu:
- Se ele tem a intenção de se casar com ela, que fique! Até serei testemunha na cerimônia.
François e Léa foram convidados a assistir à grande parada ordenada pelo general de Lattre para impressionar
o Exército, o imperador Bao Dai, as populações francesa e vietnamita, e ridicularizar Hô Chin Minh, que se
gabara de passar o Tet em Hanói.
Albert Sarraut, que acabara de chegar para um périplo de algumas semanas pelos Estados Associados da
Indochina, agasalhado com um sobretudo de lã, e de chapéu de feltro cinzento na cabeça, dirigiu-se a
François.
- E então, Tavernier, como está indo sua temporada? - perguntou, estendendo-lhe a mão com um sorriso
malicioso, os olhos cintilando atrás dos óculos redondos.
Com um riso que desmentia o olhar frio, François respondeu:
- O melhor possível, senhor presidente, agradeço. Permita-me apresentar-lhe minha mulher.
Sarraut tirou o chapéu e beijou a mão que Léa lhe estendia.
- Senhora, é um prazer conhecê-la, a senhora é um colírio para os olhos. É ainda mais bela do que me haviam
dito.
- Obrigado, senhor presidente. Eu é que estou encantada de conhecê-lo.
A simplicidade da resposta e da presença de espírito, vinda de mulher tão bonita, impressionou Sarraut.
Geralmente, quando um elogio lhes era feito, elas se tornavam exageradamente afetadas. Essa era bonita,
sabia disso, mas não se gabava da beleza.
- Ambos me agradam muito. Tenho certeza de que agradariam muito à minha filha também. Que pena que não
veio", pensou ele.
Vieram buscá-lo para tomar lugar perto do comandante. A parada grandiosa, batizada "A Noite dos Mil
Tanques", podia começar.
A escuridão havia chegado. A luz de tochas empunhadas por soldados, esquadrões de todas as espécies de
máquinas, com os faróis acesos, desde os grandes Sherman-&-Shaffe até as metralhadoras automáticas e os
caminhões de tropas de apoio, colocaram-se em marcha. A movimentação se fez com uma precisão
maravilhosa, as colunas de blindados se dividiam e reagrupavam, desfazendo a formação e se reencontrando,
durante horas. O arranhar das lagartas encheu a cidade.
Impassível, em uniforme de gala, de Lattre observava o desfile das tropas com evidente orgulho. Perto dele,
sua esposa, seus "marechais", o presidente Sarraut, o governador (Daï Viêt) do Vietnã do Norte, Nguyen Huu
Tri e as personalidades civis e militares viam passar com sentimentos confusos essa demonstração de poderio
francês, impressionados pela exatidão dos condutores dos tanques com a cabeça coberta por capacetes
americanos que surgiam das torres blindadas, pelos soldados de infantaria com os braços nus, apesar do frio,
segurando-se à estrutura dos GMC, pela força, ao mesmo tempo moderna e bárbara, que se desprendia dessas
tropas equipadas com máquinas sofisticadas. Dentro do casaco curto, Léa tremia.
Depois do desfile, os convidados se dirigiram para a Maison de France, onde um jantar os aguardava.
A multidão de vietnamitas, surgidos em grande número naquele momento, pois haviam desaparecido nos
últimos dias, espalhava-se num silêncio que demonstrava a surpresa diante do formidável espetáculo.
O banquete na Maison de France começou com silêncio muito grande. O general comia com indiferença;
todos sentiam a tensão elevar-se. O governador Nguyen Huu Tri, representando o imperador, empalidecia de
minuto a minuto diante do evidente ultraje. Logo, com os lábios comprimidos, de Lattre o olhou fixamente e
exclamou:
- Seu imperador está podre, é um canalha! Ele continua a
beijar as prostitutas em vez de estar no Tonquin entre meus soldados, os de Vinh Yen! Mas não preciso dele,
não quero mais saber dele!
Os que assistiam, consternados, tinham parado de mastigar. Do lado de fora aumentava cada vez mais o
barulho das rodas metálicas. De Lattre levantou-se, levou o hóspede até a calçada, seguido de todos os
convivas. Uma coluna de blindados passava, terrível. Segurando o braço do governador, ele gritou:
- Veja esses homens assombrosos! Eo senhor queria que eu os mandasse morrer por seu imperador?
Mudo, abatido, o governador chorava.
Quando o infeliz partiu, de Lattre, de repente acalmado, perguntou aos que o cercavam: "Será que eu fiz uma
besteira?" Depois entrou para o gabinete, onde se trancou com os companheiros mais chegados.
Todos deixaram a Maison de France atormentados, com um profundo mal-estar.
- Ele fez mal - disse François a Léa. - Ele o fez perder o prestígio, e isso é imperdoável para um asiático.
Quando chegaram ao Métropole, todos se acotovelavam no bar, onde as conversas sobre o desdobramento do
jantar e seu grande vexame estavam animadas. Eles subiram diretamente para seu quarto.
Em 10 de fevereiro, Léa e François partiram no avião posto à disposição do escritor britânico Graham Greene
em companhia do coronel Broyelle, para percorrer as regiões interessantes do delta do Tonquin. Vindo como
correspondente do Lfr, Greene desejava realizar um estudo análogo ao que havia feito anteriormente sobre a
guerra na Malásia, e tinha necessidade, para tanto, de impregnar-se da atmosfera do país. Durante a viagem,
ele falou dos bombardeios de Londres em 1940, das amplas destruições sofridas, da caça aos espiões
instalados na Inglaterra antes da guerra, dos sofrimentos suportados pelo povo inglês. Léa escutava, fascinada.
Sob seus olhos desfilavam os ricos arrozais cobiçados pelos vietcongues. Uma ligeira névoa flutuava sobre o
campo opulento, de inumeráveis tons de verde. Como tudo parecia pacífico, visto do alto!
Voltaram no fim da tarde e jantaram com o autor de O poder e a glória, cujos olhos fundos sob
espessas sobrancelhas davam uma impressão de insaciável curiosidade. Sua conversa em ritmo
irregular, numa mistura de inglês e de francês imperfeito, manteve-os interessados até tarde da
noite.
Léa fora convidada pela senhora de Lattre a visitar um orfanato, mantido por religiosas que se
dedicavam a educar meninas abandonadas e a torná-las boas cristãs a poder de rezas e de serviços
de costura. Era uma honra ser assim escolhida por Monette, o que Léa não apreciava muito. Fora
necessária toda a insistência de François para que ela aceitasse o convite.
Elas foram recebidas por freiras magras, que usavam touca; quarenta anos de abnegação e de Ásia
lhes haviam marcado os traços e a alma. Léa supunha severas. Que contraste com as freirinhas
vietnamitas, de rosto liso e redondo, alegres como garotas! A esposa do general passou em revista
as órfãs, de uniforme azul e branco com laço no cabelo. As de maiores méritos vieram oferecer
buquês com uma pequena reverência; visivelmente encantada, a senhora de Lattre acariciou-lhes as
faces. Diante de tanta bondade, a madre superiora, cuja longa temporada no Tonquin transformara a
carranca de camponesa francesa em aparência de velha anamita, disse com voz suplicante:
- O que fazer, senhora de Lattre? Imploramos a Deus, multiplicamos as novenas e as vias-sacras. O
Senhor não nos respondeu. Senhora de Lattre, devemos evacuar nossas crianças ou conservá-las no
convento? Mandamos embora as eurasianas, as mais ameaçadas por causa do sangue dos pais. Mas,
agora que vosso glorioso esposo está aqui, é preciso mandar para longe de nós as crianças
vietnamitas, tão caras a nossos corações? Para poder conservá-las, a senhora precisa nos dizer que a
vitória do general é certa. De outra maneira, seria abominável... Senhora, estamos em suas mãos.
Responsabilidade pesada, que pareceu deixar a visitante perplexa por alguns instantes. Depois, em tom autoritário, ela respondeu:
- Permaneçam em Hanói. Não se deve duvidar nunca da palavra do general.
As religiosas bateram palmas como crianças. A madre superiora propôs-nos visitar o
estabelecimento, depois de concordar em dar mais um recreio às meninas, a pedido da senhora de
Lattre.
Tendo de dissimular seu aborrecimento, Léa seguiu a comitiva. Ela parou diante de uma janela
aberta, que dava para o pátio de recreio. Num canto, as meninas jogavam pedras e punhados de terra
com gritos e risos. Ela olhou mais atentamente.
- Crianças más! - exclamou ela de repente, descendo a escada do corredor de dois em dois degraus.
As crianças a viram chegar sem temor, com rostos doces e sorridentes. Sem contemplação, a jovem
as empurrou. Uma figura coberta de terra e de cusparadas se mexeu.
- Giau!
Léa se inclinou e ajudou o infeliz a se levantar.
- Você está bem?... O que faz aqui?... Malvadas, porque fizeram isso?... Eu pensava que eram boas
cristãs, não é verdade, são piores que demônios... Eu as detesto!...
- Senhora Tavernier, o que está acontecendo? Por que esses gritos?
- São essas pequenas pestes, que maltratavam um infeliz.
- Oh, meu Deus! - disse a senhora de Lattre, descobrindo Giau.
- É você outra vez, cão maldito! Já lhe disse cem vezes que não quero vê-lo rodando por aqui. Fora!
- disse a superiora, brandindo uma vara.
- Oh!...
Com um gesto brusco, Léa acabava de arrancá-la de suas mãos.
- A senhora não tem vergonha, madre, de tratar esse infeliz assim? Vendo-a agir, compreendo
melhor a maldade dessas crianças. A senhora lhes dá um péssimo exemplo.
- Senhora Tavernier, modere suas palavras - interveio a senhora de Lattre.
- Eu as moderei, senhora, moderei, acredite-me!
A senhora de Lattre a encarava com arrogância.
- Acredito, senhora Tavernier. Mesmo deplorando a atitude das crianças, peço-lhe que não culpe
essas mulheres admiráveis. A crueldade está na alma anamita, pelo que li a respeito. Mas é preciso
concordar que esta... criatura é repugnante.
Pálida de cólera, Léa a desafiou com o olhar.
- Essa... criatura, como a senhora diz, vale mais que suas boas irmãs, senhora. Permita que me retire.
Sob os olhares estupefatos da platéia, Léa tomou a mão de Giau e foi embora.
Apesar de sua habilidade, o monstro quase não conseguia acompanhá-la. Com passos largos ela
desceu a rua Paul-Bert e atravessou sem olhar diante do correio. Um cyclo-pousse quase a
atropelou; o condutor a cobriu de ofensas. Chegando ao Petit Lac, ela se sentou num banco de
pedra, acendeu um cigarro e ficou contemplando os patos. Esfalfado, Giau deslizou para perto dela.
- Obrigado - disse ele simplesmente.
Léa estendeu-lhe um cigarro.
- As "freirinhas" e a mulher do general não pareciam contentes - ressaltou ela, rindo.
A face horrível simulou um sorriso; pelo seu olhar passou uma luz, um relâmpago de
reconhecimento e de amor. Por um momento, eles fumaram em silêncio. Três mulheres com
uniforme da Cruz Vermelha passaram diante deles; uma delas virou-se e voltou.
- Léa!... Léa Delmas?...
- Sim?... Édith!
Elas se lançaram nos braços uma da outra, saudando-se com alegria.
- É você!... O que tem feito desde Berlim?
- Como vê, alistei-me novamente. Faz um ano que estou na Indochina. E você? O que está fazendo
aqui?
- Estou com meu marido e meus filhos.
- Não me diga... Você é a senhora Tavernier... Isso não me admira!
- O que é que não a admira?
- Só se fala de você na cantina dos oficiais e no escritório da Cruz Vermelha.
- E por que, meu Deus?
- Correm bobagens a seu respeito, como a de que ajudaria os vietcongues.
- É uma completa idiotice.
- Sem dúvida, mas é o que dizem.
- Dizem muitas bobagens...
- E o que responderei, agora. Como imaginar a corajosa Léa Delmas ajudando os terroristas! O que
você quer, minha cara, sempre provocou opiniões extremadas. Mas o que faz esse mendigo a seus
pés?
- É Giau, um amigo, meu guarda-costas!
- Guarda-costas original! Ele está horroroso - acrescentou ela em voz baixa. - Deve afastar todos os
seus admiradores...
- Tem razão, vou precisar de outro.
- Esta noite vamos oferecer um coquetel na Maison de France em homenagem ao CICR* Você
deveria ir, há duas ex- colegas de Arniens. Mas sem o guarda-costas!
- Talvez vá. A que horas?
- A partir de dezessete horas. Já vou, as outras estão impacientes. Até a noite!
- Até a noite.
Giau, que tinha se afastado enquanto ela conversava com Edith, voltou com uma manga descascada
numa folha larga.
- Obrigada - disse Léa, pegando a fruta.
O monstro a observou comer com satisfação; eram raros aqueles ou aquelas que aceitavam alguma
coisa de suas mãos estropiadas! O suco escorreu pelo queixo da jovem.
- Cuidado, vai manchar o vestido...
Léa enxugou o queixo com as costas da mão.
- Soube de alguma notícia de Nhu-Mai?
- Está no campo de reeducação da Região Alta.
- De reeducação? Por quê?
- Porque esteve em contato com o inimigo e querem verificar se ela continua uma boa comunista.
- Que bobagem! Está sendo bem tratada?
- Tão bem quanto possível na guerrilha. Você sabe, a vida é dura para os guerrilheiros. Disseram que ela toca
para os camaradas no momento de descanso, consagrado à cultura.
- O que quer dizer com isso?
- Ela dá cursos de música, como outros dão cursos de literatura, de pintura ou de dança...
- Estranho que os combatentes tenham tempo para se interessar por tudo isso...
- É normal. O presidente Hô Chin Minh se interessa muito. Você ficará sem dúvida surpresa de saber que a
literatura francesa está em lugar de honra e na guerrilha se lê Vitor Hugo, Anatole France e outros...
- De fato, é surpreendente. Tente saber mais alguma coisa de Nhu-Mai. A mãe está com ela?
- Acho que sim.
- Preciso ir embora. Até logo.
Léa estendeu-lhe a mão. Ele a levou à testa.
François andava de um lado para o outro no quarto do hotel Métropole.
- Ah, até que enfim! Você me aprontou uma boa. A mulher do general está muito zangada!
- Para mim tanto faz. Estou cheia de todas essas boas mulheres e suas pretensas boas obras!
- Onde estava?
- Com Giau.
- Eu me pergunto o que você viu nesse monstro!
Léa encolheu os ombros e se despiu.
- Quando voltaremos para Saigon?
- Você, mais cedo do que o previsto. Sua presença já não é desejada em Hanói.
- Isso será ótimo, eu não tinha mesmo intenção de ficar aqui. Quando parto?
- Amanhã. Um avião sai depois do almoço.
- E você, quando irá?
- Não sei. O general me pediu que tenha um encontro com representantes dos vietcongues.
- Eu achava que os vietcongues tinham posto sua cabeça a prêmio.
- Isso foi há muito tempo! Os tempos mudam...
- Mas é perigoso.
- Não. Tive um contato com Hai. Viajo esta noite para Vinh Yen e de lá para Cât Nganh, de onde me levarão,
sem dúvida para Thaï Nguyen.
Ele a observava andar, nua, pelo quarto, com tranqüilo despudor. Resistiu ao desejo de tomá-la nos braços.
- Vista-se. Tenho duas horas antes da entrevista com a imprensa. Vamos passear pelo bairro chinês; disseram
que um antiquário recebeu jarros chineses muito bonitos.
- Que bom! Vamos passear juntos.
Léa se aprontou num piscar de olhos.
Eles desceram o bulevar Francis-Garnier, recusando as propostas dos condutores de cyclo-pousses,
pegaram a rua du Pont-enBois, depois a rua de la Soie, onde havia muita animação, o que significava que a
calma tinha voltado. Na rua de la Laque, os negociantes tinham colocado para fora mesas e biombos; na rua
du Riz, o comércio estava a todo o vapor. Numerosas patrulhas circulavam, prontas para intervir. Eles
pararam diante de uma barraca da rua des Tubercules, perto do cais Clemenceau.
- É aí o seu antiquário?
- Os bons antiquários chineses não mostram sua mercadoria, têm muito medo dos ladrões.
Entraram num corredor pegajoso de sujeira e umidade. Um
cachorro magro e amarelo escapuliu quando os viu. No fim do corredor, um pequeno pátio, onde as mulheres
agachadas cozinhavam ou lavavam roupa, cercadas por crianças andrajosas que se agarraram às mães ao
perceber os dois estrangeiros. Eles subiram uma escada escorregadia, com degraus às vezes esburacados.
François bateu três vezes, depois uma. A porta se abriu. Um rapaz os olhou fixamente.
- Nhung ngàoi ban da tráng cua anh dâj.
- Môi ho vào và de chúng tôi nói chuyên*.
* - São seus amigos brancos.
- Faça-os entrar e deixe-nos.
O adolescente os olhou com raiva e fechou a porta atrás deles. Um odor açucarado, misturado ao do
nuocmâm**, flutuava no cômodo mal-iluminado. Por uma estreita janela de vidros quebrados se podia
entrever a ponte Paul-Doumer e seus muitos pedestres e ciclistas pesadamente carregados. Uma silhueta se
destacou da parede.
- Hai! - murmurou Léa.
- Não foram seguidos? - perguntou ele.
- Acho que não. Um casal é menos suspeito que um indivíduo sozinho - respondeu François.
- Foi por isso que me convidou a esse passeio?
- Perdoe-me, mas precisava que você fosse a mais natural possível.
- Não se zangue com ele, Léa. Agiu assim a meu pedido. Se bem que isso seja proibido, Nhu-Mai me entregou
uma carta para você. Evidentemente a li.
- Evidentemente - repetiu Léa, pegando o papel amassado. - Você é um de seus carcereiros?
- Nhu-Mai não está presa.
- Um campo de reeducação não deve ser muito agradável.
- Quem lhe disse isso? - perguntou ele com uma voz dura.
- Ninguém, mas ouvi falar dos métodos de vocês.
- Léa, tenho muito carinho por você, mas preste atenção
no que diz. Meus camaradas não são tolerantes como eu. Você pode ir para o quarto ao lado? Preciso falar
confidencialmente com François.
O cômodo estava cheio de caixas; delas saíam tufos de palha, que deixavam entrever porcelanas. Léa
aproximou-se de uma pequena janela para ler a carta.
Minha amiga
Estou muito bem. Foi com alegria que reencontrei meus camaradas, mas com tristeza que a deixei.
Agradeço-lhe ter cuidado de mim com paciência e dedicação. Graças a você estou muito melhor
Agora é mamãe quem cuida de mim. Espero que, quando esta guerra terminar, voltemos a nos ver.
Tocarei sua música preferida. Aqui recomecei a tocar para os camaradas. Apesar da falta de
treino, eles estão muito contentes. Decorei um poema de um poeta francês; é muito bonito.
Conhece?
Aquele que olhou fixamente para o sol
Acredita ver diante dos olhos voar obstinadamente
Em torno dele, no ar, uma mancha pálida.
Assim, muito jovem ainda e muito audacioso, Sobre a glória ousei fixar os olhos um instante:
Um ponto negro ficou-me no olhar ávido.
Então, misturado a tudo como um sinal de luto
Por todo o lado, em qualquer lugar que meu olhar se detenha, Vejo aparecer também a mancha negra!...
Por cue sempre? Sem cessar entre mim e a felicidade!
Oh! E que apenas a águia - infelizes de nós, infelizes! - Contempla impunemente o Sol e a Glória.
Não sei o nome do autor Encontrei esse poema numa velha antologia à qual faltam algumas
páginas.
O camarada Hai tem toda a minha confiança, você pode lhe entregar uma carta para mim; ele a
remeterá. Um bejo para você e seus filhos.
Sua amiga,
Nhu-Mai
"Se os vietcongues lêem poetas franceses, nem tudo está verdadeiramente perdido", pensou Léa. "Nerval teria
ficado muito surpreso de que no fundo da floresta saibam suas obras de cor!"
A porta se abriu.
- Já pode vir - disse Hai.
- Não tenho papel para responder a Nhu-Mai. Diga-lhe que penso nela e mando um beijo com ternura.
- Isso será feito. Leve este jarro, é valioso. Principalmente, nem uma palavra sobre nosso encontro, disso
depende a sua segurança.
- Não direi nada. Parto amanhã para Saigon.
- Tem algum recado para Lien?
- Não. Que se cuide.
- Eu lhe direi. Adeus.
Eles se separaram friamente.
Na rua, François, levando o jarro protegido por uma armação de bambu, tomou-lhe o braço.
- Procure não ter muita raiva de mim.
- Não tenho raiva de você, mas estou cansada de tudo isso. Quando enfim teremos uma vida como todo
mundo?
- Em breve. Quer jantar aqui no bairro?
- Boa idéia.
Sentaram-se nos banquinhos diante do "restaurante" de uma velha anamita.
- Ela faz a melhor sopa de Hanói.
De fato, estava muito boa. Não longe deles, Giau e outros mendigos mastigavam uma tigela de arroz. Léa
sorriu em sua direção; mas ele virou a cabeça.
A jovem mulher e seu marido acabavam justamente de se levantar quando uma explosão os jogou contra a
parede. Léa levantou-se, atordoada, com um filete de sangue ao longo da testa. Perto dela, François segurava a perna
ensangüentada. Em torno deles dois ou três corpos estirados, horrivelmente despedaçados, pareciam sem vida.
Feridos gritavam, mulheres corriam em todos os sentidos, chamando pelos filhos. Giau correu para Léa,
inclinada sobre o marido, que comprimia com as duas mãos uma grande ferida de que saía muito sangue.
- Depressa, faça um garrote. Está ferida?
- Não foi nada.
Léa tirou o cinto do vestido e o apertou acima da ferida.
- Pegue o jarro - disse ele.
Ela o segurou: estava miraculosamente intacto.
Ouviram-se as sirenes das ambulâncias. A primeira parou com um guincho dos pneus. Dois enfermeiros
desceram. Só puderam constatar a morte das pessoas estendidas com o corpo dilacerado. Puseram François
numa maca, enquanto um terceiro examinava Léa.
- A senhora teve sorte. Apenas superficial.
Foram conduzidos ao hospital Lanessan.
- A senhora de novo! - exclamou o diretor, vendo Léa descer da ambulância.
- Perdoe-me incomodá-lo, mas gostei da sua companhia!
- O que aconteceu?
- Um atentado na esquina da rua du Riz com a rua du Cuivre - disse um dos enfermeiros.
- Que diabo a senhora estava fazendo naquele bairro?
- Almoçávamos.
- Estava almoçando?... E isto? - perguntou ele, apontando o embrulho que Léa trazia.
- É um jarro que compramos num antiquário chinês.
- A senhora almoça, vai ao antiquário... Por Deus, acho que pensa estar em plena Paris!
Conversando familiarmente, dirigiram-se para o setor de operações, onde trataram de Léa e da perna de
François. Este perguntou: -
- É muito grave, doutor?
- Não, não era a sua hora. Felizmente lhe fizeram um garrote.
- Quando poderei ir embora?
- Caro senhor, cuidaremos disso daqui a dois ou três dias.
- Mas não é possível! O general de Lattre me encarregou de uma missão...
- Será preciso adiá-la para mais tarde. Senhora, vagou um quarto com duas camas; quer dividi-lo com seu
marido? A senhora também precisa de repouso.
Léa aceitou.
Deitados em camas estreitas, eles ficaram longo tempo em silêncio.
- Você precisa ir em meu lugar - disse François em voz baixa.
Léa, que dormia, deu um salto.
- Ir onde?
- Ao encontro dos vietcongues. Vá à Maison de France e peça para falar com o ajudante-de-ordens do general.
Conte- lhe o que me aconteceu, e diga-lhe que dei todas as instruções a você.
- Onde elas estão?
- No jarro. Quando chegar a Vinh Yen, quebre-o; ele tem um fundo falso. Só terá de seguir as instruções que
estão aí.
- E acha que vão acreditar na minha palavra?
- Acho. Encontre Giau, ele a acompanhará.
- Giau?
- Sim. É um espião vietcongue. Perdoe-me pedir-lhe isso, mas não tenho escolha. Aceita?
- E tenho escolha? Se eu recusar, você encontrará um meio de ir lá.
- Obrigado, querida!...
Logo que ele acabou a frase, perdeu a consciência. Léa levantou-se e tocou a campainha. Uma enfermeira
veio correndo.
- Meu marido desmaiou. Vou procurar roupa de cama para trocar...
Saiu depois de um derradeiro olhar para o homem que ela amava e que a mandava para a boca do lobo.
Diante do hospital, Giau a esperava com um cyclo-pousse.
- Hai está a par do acidente. Ele concorda que você execute a missão de seu marido.
Sem dizer palavra, ela subiu no veículo com o mendigo.
- Para a Maison de France - disse ela.
Sua entrada no salão principal da Maison de France causou sensação. Ela não tinha tido tempo de voltar para
trocar de roupa; a frente do vestido estava manchada de sangue seco, o rosto arranhado, a ferida na testa, tudo
era impressionante.
- O que aconteceu com você? - perguntou Edith, chegando perto dela.
- Meu marido e eu escapamos de um atentado.
- Seu marido está ferido?
- Sim, está no hospital. Você conhece o ajudante-de-ordens do general de Lattre?
- Está em Saigon, mas você pode falar com o coronel Beaufre. Veja, ele está aqui. Coronel, a senhora
Tavernier queria lhe falar...
- Venha senhora, sei o que a traz. Vamos para meu escritório
Léa seguiu atrás dele sob os olhares curiosos da assistência.
- Sente-se, senhora... Fale sem temor, conheço a missão da qual seu marido foi encarregado. Não concordo,
mas o general de Lattre pensa de outra maneira...
- Ele sabe o que aconteceu a meu marido?
- Sabe.
- Sabe que meu marido pediu que eu o substitua?
- Não, mas ele mesmo lhe tinha sugerido isso.
- O que o senhor pensa disso?
- Que é uma loucura. A senhora não conhece nada do país, ignora a língua, e depois... não é lugar para uma
mulher. Principalmente uma mulher tão bonita.
- Posso me sujar de carvão!
- Então, a senhora aceita?
- Estou esperando suas instruções.
- O alto-comando vietcongue concorda em receber um enviado do general de Lattre. Havia
consentido, porque o conhece, que fosse seu marido. Tudo está pronto para recebê-lo. Não vamos
mudar nada desse plano. A partida para Vinh Yen está prevista para as três horas da madrugada. Já
saltou de pára-quedas?
- Não, ainda não.
- A senhora verá, não é difícil. Basta ficar calma e pousar bem.
- Isso me parece efetivamente de uma facilidade infantil. Diante do tom de ironia, o coronel Beaufre
levantou as sobrancelhas, e o rosto pálido se irritou um pouco.
- A senhora terá consigo documentos que provarão sua identidade e a missão da qual está
encarregada. Volte para se preparar e descanse um pouco antes da partida. Tem alguma pergunta?
- Qual é exatamente o motivo disso tudo?
- Levar Hô Chin Minh a encontrar o general.
- Só isso? Lembro ao senhor que meu marido já malogrou na tentativa de contato pedida pelo
presidente da República.
- É verdade, mas as coisas mudaram.
- Se o senhor acha...
O coronel Beaufre se levantou, dando a entender que a conversa estava terminada. Acompanhou
Léa até a porta.
- Boa sorte, senhora.
- Uma última coisa, coronel: quando e como volto de lá?
- Não se aflija. Tudo está previsto.
Diante da porta, Édith a esperava em companhia de uma mulher alta, loura, com o uniforme da Cruz
Vermelha.
- Léa, a senhora de Vandeuvre gostaria de conhecê-la. Senhora, eu lhe apresento Léa Delmas...
desculpe, senhora Tavernier. Léa, eis a senhora de Vandeuvre, presidente das enfermeiras de
socorro do ar.
As duas mulheres apertaram as mãos, olhando-se fixamente.
- Estou feliz de conhecê-la, senhora Tavernier. Conheci muito seu marido, um homem notável e...
muito sedutor. Vou visitá-lo amanhã no hospital. Mas a senhora também foi ferida?
- Muito sangue para pouca coisa. Como compensação, eu beberia alguma coisa.
A senhora de Vandeuvre fez sinal a um criado que trazia uma bandeja. Léa pegou uma taça de
champanhe, que bebeu num trago.
- Desculpem-me, mas tenho de ir. Estou feliz de tê-la conhecido.
- Eu também. Até logo, cara senhora...
"Mais uma conquista de François!", pensou Léa.

Capítulo 14

Um Morane esperava Léa no aeroporto. Giau a acompanhava. Ela subiu no aparelho, calçando
Pataugas e vestida com um macacão de aviador. Giau desaparecia no seu. A noite estava escura.
Uma vez a bordo, receberam pára-quedas e lhes foram dadas algumas instruções para o salto. Numa
bolsa cheia de retalhos presa à cintura de Léa estava o jarro.
O vôo durou uns trinta minutos. Giau batia os dentes. Foi bem pior quando a porta da cabine foi
aberta e um vento glacial entrou. Presa por um gancho aos trilhos metálicos, Léa tremia como uma
folha.
- Go! - gritou uma voz
Ela sentiu um forte empurrão e caiu no vazio. Durante a queda uma prece lhe veio aos lábios.
Depois uma brutal sacudidela atingiu-lhe violentamente os ombros. Ela fechou os olhos. Os pés se
afundaram na terra; ela rolou sobre si mesma. Desatou depressa as correias e se desembaraçou do
pára- quedas. Livre, com dores por todo o corpo, olhou para cima; a algumas dezenas de metros
percebeu um cogumelo branco,
depois mais nada. Dirigiu-se para o lugar onde ele tinha desaparecido. Grunhidos chegaram
até ela. Giau, caído num buraco cheio d'água, debatia-se. Com a ajuda do punhal que lhe
haviam dado, Léa cortou as correias e o içou para fora da armadilha. Coberto de lodo, o
monstro estava mais hediondo que
nunca.
- Para onde vamos? - perguntou ela.
- Para leste.
Caminharam em silêncio durante uma hora e chegaram à beira de uma estrada.
- Deve ser a R.C.1 - disse Giau, parando.
- O que fazemos agora?
- Esperamos. Devem nos ter visto descer; vão vir nos procurar.
- Quem? Os franceses?
- Não, os vietcongues. Os franceses nos aguardam mais ao sul.
- Você fez de propósito, para nos afastar deles!
- Sim, eles nos teriam atrasado e tinham ordem de me prender.
Como sabe disso?
- Tenho meus informantes.
- Você me traiu, então?
- Nunca a trairia! Seus compatriotas é que a teriam traído.
- Por quê?
- Para capturar os vietcongues que você devia encontrar.
- Mas é absurdo! Isso não teria acontecido da mesma maneira com François?
- Eu acho... Cale-se! Ouço alguém se aproximar. Eles se agacharam no fosso. Uma tropa de
vietnamitas armados examinava o lado de baixo da estrada. Giau se ergueu.
- Các dông chí chúng tôi o dây!*
- Camaradas, estamos aqui!
As armas foram apontadas na direção deles.
- Rông tre se chiên tháng.
- Duoc, các anh có thê ra. *
O dragão de bambu vencerá.
- Está bem, já podem sair.
Eles obedeceram.
- Ngàoi chúng tôi doi không phai là môt phu nu
- Não esperávamos uma mulher.
- disse o que parecia ser o chefe.
- Không, chông ba ta bi thuong; bà thay mat ông tha.
- Anh se giai thích vói dông-chí chi-huy. Lên duông!**
- Não, seu marido foi ferido; ela o substitui.
- Você se explicará com o camarada comandante. Em marcha!
Eles se puseram em marcha. Ao fim de uma dezena de minutos, penetraram na floresta. Avançaram
por um túnel de folhagens de perfumes fortes. O cansaço se abateu de uma vez sobre Léa. Ela
tropeçou; um jovem soldado a segurou. Ela cambaleou alguns instantes ainda, depois perdeu a
consciência.
Quando recobrou os sentidos, estava estendida sob uma coberta num quarto de teto baixo, mal-
iluminado pela luz amarelada de uma lâmpada sob a qual um homem de cócoras fumava um
cigarro. Devia ser um cigarro americano ou inglês, pois o odor era adocicado. Ela se levantou sobre
os cotovelos. Através da tapeçaria que fechava a entrada do cômodo, percebeu a luz do dia. O
homem agachado se levantou, afastou a cortina e saiu sem dizer palavra. Alguns instantes mais
tarde, a cortina se abriu e uma jovem entrou, trazendo uma xícara de chá fumegante. Sua silhueta
pareceu familiar a Léa.
- Nhu-Mai!
- Sim, sou eu. Tome, beba um pouco de chá.
- Obrigada. Eu achava que você estivesse num campo de reeducação...
- Os camaradas me trouxeram para cuidar de você.
- A ferida está melhor?
- Sim, estou quase curada. E a sua, é grave?
- Não. Estou feliz de revê-la. Onde está Giau?
- O camarada comandante o interroga.
Léa levantou-se.
Onde estão minhas coisas? Quem me despiu?
- Eu. Suas roupas estavam sujas e todas molhadas. Eu as lavei.
- E o embrulho que estava preso à cintura?
- Está aqui. Tome, aqui está.
- Obrigada. Pode me deixar sozinha um instante?
Nhu-Mai hesitou.
- Se quer...
Quando ela saiu, Léa desfez o embrulho e tirou o jarro, que quebrou no chão. Abriu a folha de papel
dobrada num pequeno quadrado e se aproximou da luz para ler o que estava escrito. Sua decepção
foi grande: estava em vietnamita. Dobrou-o novamente e pôs dentro do sutiã, depois se vestiu. Mal
acabava de prender o cinto quando um homem de aparência frágil entrou.
- Examinamos seus documentos e interrogamos o camarada Giau. Por que a senhora aceitou
substituir seu marido?
- Porque ele me pediu.
- É uma esposa muito boa!
A voz era delicada, o francês perfeito, mas o olhar sombrio estava cheio de dureza.
- O senhor sabe quando vou encontrar o comandante?
- Eu sou o comandante. O que deseja seu "general de fogo"?
- Saber se o senhor estaria pronto para negociar.
- Negociar o quê? Não é caso de negociações. Os franceses nunca cumpriram sua palavra. Mesmo o
general Leclerc não cumpriu a palavra que havia dado a nosso presidente. Então, seu general de
Lattre, que corteja o traidor Bao Dai, só pode trair ainda mais.
- O general de Lattre é um homem honrado. Quer apenas saber se o senhor aceitaria a possibilidade
de um encontro. O general Giap e ele deveriam se encontrar. É preciso que ele saiba disso.
- Eu sou o general Giap.
Léa se adiantou para o pequeno homem. Então, estava diante dela aquele que de Lattre e Salan
diziam ser um grande estrategista, o implacável inimigo da França, o vencedor da R.C.4.
- Desculpe-me, eu não sabia.
Ela apalpou o sutiã.
- Tome, eu devia lhe entregar isto...
Ele pegou o papel dobrado, abriu-o e leu.
- A senhora sabe o que contém?
Ela fez que não com a cabeça.
- Os franceses conhecem esta mensagem?
- Isso me admiraria, estava no fundo falso do jarro que Hai nos entregou e que acabo de quebrar. O
que diz o documento?
- Isso não é da sua conta. Fique aqui, vão lhe trazer comida e água para a senhora se lavar.
Pouco depois, Nhu-Mai entrou, com uma bacia de esmalte azul, seguida por uma mulher trazendo
numa bandeja trançada uma tigela de sopa e uma de arroz, que ela colocou num banquinho diante
de Léa. Um sorriso revelou-lhe os dentes laqueados.
- Dê chúng tôi nói chuyên
Deixe-nos.
- disse-lhe Nhu-Mai.
Faminta, Léa procurou a comida. Sua voracidade fez rir a jovem violinista.
- Parece a mulher do bicho-papão, que me dava tanto medo quando nossa senhoria, em Lyon, lia
para mim contos de fada!
- exclamou ela rindo.
- Estava com fome - desculpou-se Léa, com a boca ainda cheia.
Quando se satisfez, não sobrou um grão de arroz. Pegou a toalha que Nhu-Mai lhe estendeu e lavou
o rosto e as mãos.
- O que posso fazer agora?
- Esperar. Venha, vou lhe mostrar o campo.
Do lado de fora havia grande animação. Jovens faziam ginástica sob o olhar de um homem magro
que usava barbicha, bigode e fumava um cigarro, apoiado num bastão. Com a cabeça coberta por
um capacete colonial cáqui, calçado com sandálias ordinárias de sola de borracha, ele vestia um
short bege muito largo, uma camisa da mesma cor, e tinha em volta do pescoço uma toalha de
algodão de cor indefinida.
- É o nosso presidente - murmurou Nhu-Mai.
Era esse então o famoso Hô Chin Minh?... O homenzinho parecia insignificante. Ele voltou os olhos
para as duas mulheres e sorriu. Que bondade nesse sorriso! Não, não poderia ser o sangüinário
comunista que aterrorizava os franceses! Ele se dirigiu para elas.
- Bom dia, pequena Nhu-Mai, estou feliz de vê-la restabelecida. A senhora é a esposa do senhor
Tavernier? Tive o prazer de encontrar seu marido há três anos. Disseram-me que foi ferido. Nada de
grave, espero.
- Não, senhor presidente, mas está impossibilitado de andar.
- A senhora é corajosa de estar aqui conosco. Vou procurar fazer tudo para que sua estadia lhe deixe
boas lembranças. Deseja alguma coisa?
- Voltar o mais rápido possível para perto de meus filhos.
- Compreendo. O lugar de uma mãe é perto deles. Acho que, daqui a alguns dias, a senhora poderá
se juntar a eles. Esta noite há uma pequena festa no campo; gostaria que a senhora comparecesse.
- Com prazer.
- Até a noite, então, senhora.
O presidente se afastou e foi se agachar perto de um grupo de militares que discutiam em torno de
um mapa. Nhu-Mai conduziu Léa.
- Eu a levo para ver a escola.
Esta ficava situada num sobrado. Umas vinte crianças, sentadas no chão, escutavam o professor. No
quadro-negro, palavras em vietnamita em bela caligrafia.
- Hay lây vo và chép lai môi chu làm muôi lân.*
*_ Peguem os cadernos e copiem dez vezes cada palavra.
As crianças obedeceram e logo começaram a formar letras. O professor foi até elas. Ele tinha um
aspecto muito jovem. -
- Bom dia, senhora - disse ele num francês cantado. - É muito amável de sua parte visitar nossa
escola.
- Não é difícil estudar nessas condições?
- As crianças estão habituadas e ávidas por aprender.
Milhares de insetos esvoaçavam, atraídos pelas altas chamas das fogueiras, destinadas a clarear um largo
círculo onde tinham tomado lugar os combatentes, meninos e meninas misturados. Léa e Nhu-Mai estavam
entre eles. Todos riam, acotovelando-se.
- Bác dây rôi
- Ei-lo.
- disse alguém.
Eles se levantaram e aplaudiram. O presidente penetrou no círculo seguido do general Giap e cinco ou seis
outras personalidades.
- Câc cháu hay ngôi xuông. Cá cháu da chiên dâu tôt, làm viêc tôt v hanh phúc moi nguôi;
bây giô dên lúc các cháu vui choi.**
**_ Sentem-se, meus filhos. Vocês combateram muito, trabalharam muito pelo bem de todos; está na hora de se
divertirem.
Sempre cumprimentando, ele deu a volta. Parou diante de Léa.
- Venha para perto de mim, senhora. Eu lhe explicarei o desenrolar da festa.
Léa sentou-se ao lado dele, de pernas cruzadas. Hô Chin Minh lhe estendeu um maço de cigarros:
Chesterfield.
- Obrigado - disse ela, pegando um cigarro.
- Os camaradas dizem que fumo demais. Sem dúvida têm razão. É um pequeno vício sem conseqüências... A
senhora vai assistir a uma demonstração de viêt vô dao, que significa "o rumo da arte marcial vietnamita".
É uma arte que praticamos há mais de vinte séculos.
Dois jovens vestidos com um costume negro entraram no círculo e se inclinaram diante do presidente, que os
saudou com a mão. Durante alguns instantes, os jovens fizeram exercícios de aquecimento; em seguida,
depois de se inclinarem um diante do outro, puseram-se em posição. Um deles deu um grito que parecia de
coruja.
- É para intimidar o adversário - cochichou o presidente. O outro, por sua vez, deu um breve grito e
arremessou a perna à garganta do adversário.
- O grito de águia em rápido ataque...
Então, alternaram-se socos, pontapés e golpes com os punhos, entrecortados por onomatopéias de diversos
tons, de gritos de pássaros a rugidos, tudo com uma agilidade e uma rapidez extraordinárias.
- Embora mais refinado, isso lembra o boxe francês, a savate dos jovens violentos. Eu a pratiquei
antigamente, quando era jovem, em Paris.
- Thôi!*
* Parem!
A luta cessou. Dois outros rapazes começaram a lutar e mostraram uma agilidade ainda maior. Quando a luta
terminou, um deles se inclinou diante do presidente.
- Bác Hô, se thât vinh hanh nêu chúng cháu duoc Bác biêu diên cho.**
- Tio Hô, seria uma honra se o senhor fizesse uma demonstração.
Sem se fazer esperar, Hô Chin Minh levantou-se, pôs-se em posição e o saudou. Com lentidão, fez diversos
movimentos. Podia-se dizer que era uma dança. A platéia prendeu a respiração. Quando a demonstração
terminou, todos se levantaram para aplaudir.
- Cám on, các cháu, cám on!'
Obrigado, meus filhos, obrigado!
Ele voltou a se sentar ao lado de Léa e lhe fez um sinal.
- Eu lhe ensinarei, se a senhora quiser. Pode ser muito útil para uma mulher saber se defender.
Empunhando o violino, Nhu-Mai entrou, então, no círculo. Quando as primeiras notas subiram na noite, Léa
teve a impressão de ser transportada para um universo de perdão e de serenidade. A beleza da música enchia-
lhe o coração, envolvia-o em melancolia. Havia no toque da virtuose algo de irreal que conduzia os que a
escutavam para além de si mesmos. Como se em
cada um a alma se separasse do corpo. Sem lugar para a violência, tudo era apenas harmonia. Um
arrepio voluptuoso a percorreu. Ao seu lado, Hô Chin Minh escutava de olhos fechados, com um
inefável sorriso nos lábios. As largas narinas de Giap tremiam. Um homem, ao lado de Léa, deixava
correr as lágrimas pelo rosto sombrio. Apenas com a magia do violino, Nhu-Mai os tinha presos a
seu encanto, e todos esses orientais comungavam com a música de Bach.
Quando ela terminou, houve um longo silêncio, como se cada um não voltar à realidade. Depois os
aplausos estouraram. Léa virou-se, radiosa, para o que chorava. O homem deu um riso estranho, que
parecia um soluço, e fez um sinal à violinista, chamando-a.
- Nhu-Mai, cada vez que você toca é como se nos abrisse as portas do paraíso. Nós lhe agradecemos
isso.
- Obrigada, camarada Dong.
- Các cháu, các cháu da chiên d2u hang say; bây giô la lúc các cháu giai trí: bay vui choi
tôt! Nào chúng ta hay nhay múa. *
*_ Meus filhos, vocês combateram com ardor; agora é hora de se divertirem: distraiam-se bastante! Vamos,
dancemos todos.
Os rapazes se levantaram, mas as moças, mais tímidas, balançavam-se de um pé para o outro. Tio
Hô foi até elas e lhes disse:
- Các cháu côn thât là phông kiên! các cháu da chiên dáu nhu các dông chí nam; các cháu
cungphai giai trí nhu ho mói dúng chí. **
**__ Vocês são ainda muito feudais! Combateram como homens; é justo que se divirtam como eles.
Ele conduziu uma delas. Todos dançaram, segurando-se pela mão, a dança Trabalhos dos
campos, chamada "sol-lá-sol", e todos disseram pausadamente "sol-lá-sol, dó-si-lá-sol-mi".
Léa pensou que os generais de Hanói não acreditariam em seus próprios olhos ao verem seu pior
inimigo dançar como um rapaz. A dança o revigorava.
- O senhor não dança? - perguntou Léa ao vizinho.
- Não, eu não sei. Não nos acha muito... exóticos?
- De maneira alguma. Acho seu presidente um homem
magnífico. Por isso não me surpreende que tenha seduzido tantos franceses e que os senhores todos
pareçam amá-lo tanto.
Ele a encarou atentamente.
- Não me admira que a senhora seja a mulher do senhor Tavernier. Os dois se parecem.
- Obrigado. O senhor fala muito bem nossa língua. Aprendeu-a na França?
- Não, mas a estudei em parte nas prisões francesas... Haha-ha!
- Oh, perdão...
Ele tinha um riso esquisito e desagradável, que surpreendia num homem tão sedutor, com uma testa
larga e olhos brilhantes.
- Oh, senhora Tavernier, a senhora enrubesce como uma mocinha! Aprendi muitas coisas nas
prisões francesas, muito úteis para mim aqui.
- Camarada Dong, deveríamos deixar nossa hóspede ir repousar - disse Hô Chin Minh aproximando-
se. -A senhora dormirá com Nhu-Mai. Boa noite.
- Boa noite, senhor.
Os dois homens viram-na afastar-se.
- Dây là môt nguôi dân hà can dam, bà có thê là môt dông chí cua chúng ta duoc*
É uma mulher corajosa, poderia ser uma das nossas.
- murmurou o chefe vietcongue para Pham Van Dong.
O sol já estava alto quando Léa acordou na manhã seguinte. A esteira de Nhu-Mai estava
cuidadosamente enrolada. Num banquinho estavam colocados um bule de chá e uma pequena
tigela. Léa se serviu. Do lado de fora tudo estava calmo. Ela ajeitou os cabelos com os dedos e saiu.
Exceto por algumas galinhas e um cachorro, não havia sinal de vida. Léa se dirigiu para a escola:
nem professor nem alunos. O campo parecia estar abandonado. Desorientada, ela sentou-se
embaixo de uma árvore e aguardou.
Esperou longo tempo.
A tarde já ia muito avançada quando chegaram os primeiros feridos, trazidos em macas
improvisadas pelos camaradas e segui- dos pelo resto da tropa, muito sofrida, a julgar pela tristeza
das fisionomias e pelo desalinho das roupas. Léa procurou com os olhos Nhu-Mai. A jovem não
estava entre eles. Uma angústia disfarçada apertou-lhe o coração. Um soldado se aproximou dela.
- O camarada médico a chama. Siga-me.
O homem afastou uma cortina de bambu e folhagem que ela não havia notado, e fez sinal para
segui-lo. Uma vez passada a estreita abertura, descia-se curvado, entre paredes de terra. Chegaram a
uma primeira sala, onde estavam reunidos os feridos. Eles continuaram e entraram em outra, que
servia de centro cirúrgico. Numa mesa, iluminada por luzes bruxuleantes, o cirurgião acabava de
amputar a perna de um rapaz, quase uma criança.
- A senhora vai ajudar o médico - disse o soldado, empurrando-a para a mesa.
O cirurgião levantou os olhos.
- Hai! - murmurou Léa.
- Pegue a linha, vou lhe mostrar como se costura uma ferida.
Com gestos precisos, ele furou o coto sangüinolento.
- É sua vez.
Com a mão trêmula, Léa tomou a agulha avermelhada.
- Fure aqui... Puxe devagar... Bem... Agora, lá... Muito bem. Pode-se dizer que fez isso a vida
inteira... Perfeito. Vou deixá-la fazer o curativo. Quando tiver terminado, venha me encontrar na
sala seguinte.
Terminado o terrível trabalho de costura, Léa limpou as mãos numa toalha de sujeira repugnante.
Novamente seguiu o soldado que a conduzira até lá. Avançaram, quase agachados, pelas estreitas
trincheiras de terra.
Na outra sala jaziam em colchões de palha os feridos, quase todos com um braço ou uma perna
amputados. O odor era sufocante. Hai ia de um para o outro, refazendo um curativo, dando uma
injeção, conversando alegremente com os menos atingidos.
- Você está encarregada dessas pessoas. Dê a eles um pouco de chá, se pedirem. Verifique o estado
das feridas. Volto mais tarde.
- Mas...
- Essas são as ordens. Obedeça. O camarada Trinh a ajudará.
Hai saiu, deixando Léa desalentada. Durante horas, ela limpou, tratou, deu de beber a uns cinqüenta
homens, cujos olhos febris lhe seguiam cada um dos movimentos. Quando acabou, ela caiu num
banquinho na entrada da sala. Mas Trinh não a deixou descansar.
- Venha, precisam de você em outro lugar.
Ela se levantou com dificuldade, os olhos queimando de cansaço. Os dedos dormentes, a nuca
rígida; a ferida na testa doía.
A sala em que entraram era relativamente fresca e limpa. Mulheres vestidas de branco iam e
vinham. Atrás de uma cortina, uma mulher gritava. A cortina se abriu; Hai saiu, segurando pelos
pés um recém-nascido, que entregou a uma enfermeira. Léa compreendeu que se encontrava na
maternidade do campo.
- Já assistiu a algum parto?
- Ajudei o filho de uma amiga a nascer.
- Muito bem. O bebê dessa mulher está bem, não deverá haver dificuldades. Em caso de problema,
uma enfermeira irá me chamar. Volto para operar. Lave as mãos e vista uma blusa branca. Já
comeu?
Não, respondeu ela com a cabeça.
- É preciso alimentar-se, senão não vai agüentar.
Dông-chí Trinh, hay di lây com.
- Nhung, thua dông-chí bác-si, tôi không duoc rôi bà ta.
- Dàng lo, dê tôi trong chàng cho.*
- Camarada Trinh, vá buscar arroz.
- Mas, camarada médico, não posso deixá-la.
- Não se aflija, eu tomo conta dela.
A contragosto, o soldado Trinh deixou a sala.
- Sou prisioneira?
- O general Giap deu ordem de mantê-la aqui e fazê-la trabalhar.
- E se eu recusar?
- Eu não faria isso. Seria trancada numa gaiola de bambu:
é muito desconfortável...
- O presidente Hô Chin Minh me deve uma resposta. Seu general Giap parece esquecer que sou uma
emissária do general de Lattre.
- Ele não esqueceu, está pensando.
- Quero ver o presidente Hô Chin Minh!
- Ele já não está aqui; raramente fica mais de dois ou três dias no mesmo lugar.
"Como os da Resistência...", pensou ela.
Trinh voltou com uma tigela de arroz com pedaços de carne. Léa quase não teve tempo de comer.
Uma enfermeira de olhar duro se aproximou.
- A mulher está na hora de parir - disse num francês hesitante.
Atrás da cortina, a futura mãe, com as pernas totalmente abertas, empurrava com todas as forças.
Logo cabelos negros apareceram. Com um grande grito, depois de um último empurrão, a criança
saiu de uma vez. Léa teve tempo apenas de agarrálo antes que escorregasse para debaixo da mesa.
- É um meninão!
Com apreensão, cortou o cordão umbilical, temendo ao mesmo tempo fazer mal à mãe e ao bebê. A
desagradável enfermeira pegou a criança para lavá-la.
- Acho que esta noite não teremos novos nascimentos. Vá descansar - disse ela.
Arrastando os pés, Léa seguiu curvada atrás de Trinh. Do lado de fora, a noite estava escura e
perfumada. Ela parou e inspirou profundamente.
- Quero ir ao banheiro...
O soldado hesitou, mas depois lhe apontou a floresta. Léa foi tateando pelas árvores; agachou-se,
pensou nas cobras, nos bichos ferozes escondidos no mato. Quando se levantou, viu o soldado diante dela, olhando-a com ar de zombaria. Ficou ruborizada.
Nhu-Mai não estava na cabana. Léa desenrolou a esteira, tirou a combinação, manchada de sangue,
e se deitou só de calcinha e sutiã, com o ouvido à espreita. Mas o cansaço foi maior que a
inquietação; adormeceu pesadamente.
Sonhou que alguém se arrastava até ela. Paralisada pelo terror, ela assistia ao lento arrastar. Urros
silenciosos enchiam-lhe o peito; ela gritava e ninguém a ouvia. A alguns passos dela, o presidente
Hô Chin Minh a olhava com tristeza, o general Giap a encarava com olhar cruel, Pham Van Dong, o
homem de pele escura, observava-a com um sorriso irônico, enquanto Nhu-Mai tocava violino,
François abraçava Lien, Charles, Adrien e Camille a chamavam, Flai amputava com toda a força,
Kien lhe dava um cachimbo de ópio e assassinos nazistas, disfarçados de legionários, se lançavam
em sua perseguição sob os aplausos da mulher do general de Lattre e os risos obscenos do marido e
de Lucien Bodard, ambos bêbados.
- Calada! Não grite!
Uma mão malcheirosa e calosa tapou-lhe a boca.
- Não tenha medo, sou eu, Giau.
Ele esperou que seu tremor parasse para tirar a mão.
- Principalmente, não faça barulho; eles nos matarão a ambos... Mas antes...
Léa começou a tremer.
- Por que eles me retêm aqui? - balbuciou ela.
- É uma idéia do general Giap. Quer trocar você por prisioneiros.
- Isso não estava previsto. O presidente Hô Chin Minh sabe disso?
- Ele deve voltar amanhã ou depois de amanhã. Nesse momento será libertada.
- Pode me conseguir novas roupas? As minhas estão imundas.
- Sim, o que quer?
- Queria um traje igual ao das mulheres daqui. É possível?
- Não poderia lhe arranjar outra coisa. Agora durma, eu vigio. Pouco antes do amanhecer, ela foi acordada:
Nhu-Mai voltou, mal se sustentando nas pernas. Tateando, Léa desenrolou- lhe a esteira e ajudou a amiga a se
deitar.
- Está ferida?
- Não, mas tivemos de andar durante horas para escapar dos legionários.
As imagens do pesadelo voltaram à memória de Léa.
- Os combates foram duros, muitos de nossos camaradas foram mortos, outros foram feitos prisioneiros -
contou a jovem violinista.
- Os feridos desta tarde estavam com você?
- Creio que sim. Fomos atacados em dois lugares. Foi horrível.
- Descanse.
Léa a tomou nos braços e a ninou como a uma criança até que adormecesse. Pouco a pouco o calor do corpo
miúdo a acalmou, e ela mesma adormeceu.
Quando reabriu os olhos, ainda estava com Nhu-Mai no colo. Inclinado, Hô Chin Minh as observava.
- Eis o que poderiam ter sido a França e o Vietnã: duas nações abraçadas e unidas numa felicidade comum. A
senhora fez um bom trabalho ontem, no hospital. Em nome de todos os meus camaradas, agradeço-lhe.
- Quando poderei voltar para casa?
- Só depois de alguns dias. As tropas francesas infestam a região. A senhora está mais segura conosco do que
com eles.
- O que devo dizer ao general de Lattre?
- Que é tarde demais. O governo francês acreditou em Bao Dai. Seu país cometeu um grave erro favorecendo
esse traidor de sua pátria; o povo vietnamita não pode se encontrar nesse renegado. O custo desse erro será
muito elevado, pois, cedo ou tarde, nós venceremos.
- Mas quantas mortes, sofrimentos antes de...
- Sim... Em alguns momentos, digo a mim mesmo que o preço a pagar por nossa independência é muito
pesado, mas, ao
mesmo tempo, a liberdade não tem preço e só o partido pode nos dar força quando começamos a duvidar...
Nhu-Mai mexeu-se no sono.
- Como essa criança é bonita! Uma vida de glória se abria para ela e, entretanto, não hesitou em se juntar a
nós. No combate é forte e dura; descansando, encanta os camaradas com seu talento... Senhora, o dr. Hai a
espera.
- Lembra-se, senhor presidente, de que me prometeu ensinar o viêt vô dao?
- Lembro muito bem. Eu lhe darei a primeira lição esta noite. Vá para junto dos feridos...
Agachado diante da cabana, Giau apertava a si uma tigela de sopa. Quando a viu, estendeu-a a ela.
- Tive dificuldade em guardar para você, esses meninos maus queriam tomá-la de mim.
Um grupo de garotos, seminus, os observava com ar aparentemente tranqüilo.
- Não parecem muito maus!
- Não se engane. Para eles não sou mais que um inseto, e você, como branca, vale pouco mais.
- É divertido! Vou para o hospital, você me acompanha?
Com seu andar de sapo, Giau se aproximou dos garotos, que recuaram. Um deles atirou-lhe uma pedra.
Outros se preparavam para imitá-lo, mas Léa agarrou a orelha do agressor e o sacudiu como a uma ameixeira.
O menino deu gritos como um porco que vai ser morto. Hô Chin Minh saiu da cabana.
- O que está acontecendo? O que está fazendo com esse menino?
- Repreendendo. Sem motivo ele atirou uma pedra no meu amigo Giau. Isso eu não posso aceitar.
- Deixe-o, ele não compreende. Ai de mim, entre nós os mendigos, os deficientes nunca foram estimados. Para
muitos eles representam o mal...
- Que covardia! Aqui, como em todo lugar, nenhuma compaixão com os fracos! O que diz o partido, a direção
do partido?
- Venha Léa, por favor.., venha...
- Não tema nada, camarada Giau, ela tem razão. Sob esse aspecto, valemos tanto quanto o mais brutal dos
colonos.
Chegando ao hospital, desceram pelo estreito túnel. Trinh os esperava na entrada da sala de operação.
- Apresse-se, o camarada médico a espera.
Como na véspera, Hai realizava uma amputação. Gotas de suor rolavam-lhe pelo rosto. Com a ajuda de um
pano quase limpo, Léa o enxugou.
- Obrigado. Passe-me uma pinça.
Durante uma hora, trabalharam em silêncio. Num canto, Giau cochilava.
- Vamos ver os outros feridos. Dois morreram durante a noite. Temos falta de medicamentos.
De todos os lados da sala vinham gemidos e suspiros. A chegada do médico, alguns levantaram a cabeça. Hai
deu algumas injeções, Léa refez curativos. No final da manhã subiram para o ar livre.
Como na véspera, o campo estava deserto. Deitados, sob uma árvore, Hai e Léa adormeceram, enquanto Giau
e Trinh vigiavam, lançando um ao outro olhares de má vontade.
As três horas da tarde, deu-se uma agitação do lado da floresta. Soldados voltavam do combate, empurrando
diante de si três militares franceses. Um deles, ferido na cabeça, avançou cambaleando. Caiu diante de Léa. A
jovem mulher se inclinou para ele.
- Franck!
O ferido abriu os olhos e sorriu ao reconhecê-la. Hai examinou a ferida.
- Ele teve sorte. Vou cuidar dele aqui.
Os outros dois franceses observavam Léa com curiosidade. O que fazia uma branca com os vietcongues? Sem
dúvida uma prostituta que se havia juntado à guerrilha desses sujos. Um deles cuspiu em sua direção. Trinh
saltou e lhe deu uma paulada nos rins. O soldado caiu.
- Thôi, dông-chí Trinh! o dây chúng ta không nguoc dai tà binh!
- Pare, camarada flinh! Não se maltratam prisioneiros aqui!
- disse Hai.
Léa acabou de fazer o curativo na cabeça de Franck e o ajudou a se apoiar numa árvore.
- Você tem um cigarro? - perguntou ele.
Com avidez tragou a fumaça, fechando os olhos.
- - Como é bom - murmurou ele... - O que você faz aqui?... É prisioneira?
- Não sei de nada. Jean Lefèvre não estava com você?
- Sim. No momento da emboscada, fomos separados, não ovi mais.
- Quem são os outros?
- Faziam parte do batalhão: um se chama Michel Bernard, o outro Marc Duvilier. Estão na Indochina há
quatro anos. Duvilier, Bernard, aproximem-se!
Os dois homems se aproximaram, com as mãos amarradas às costas.
- Não pode desamarrá-los? - perguntou Léa.
Hai cortou as cordas do primeiro.
- Dông-chí bác-si, dông-chí không nên làm thê
..... Camarada médico, não devia fazer isso.
- objetou Trinh.
- Ho duói su quan 1L9 cua tôi.*
- Estão sob minha responsabilidade.
Ele cortou as do segundo. Léa lhes ofereceu o maço de cigarros.
- Essa é Léa, de quem já lhes falei. É uma mulher formidável! - exclamou Franck.
- O que faz aqui?
Fui enviada em missão pelo alto-comando.
- Pfff... Uma mulher!... Deve estar tudo indo por água abaixo, para enviarem mulheres em missão...
"Pobre sujeito", pensou Léa.
Em pequenos grupos, os combatentes vietnamitas voltavam.
- Có thuong binh không?
- Vocês têm feridos?
- perguntou Hai.
- Không. Vói lính tây thí không thê. Cam bây cua chúng ta da thành công tôt.**
- Não. Não se pode dizer o mesmo dos franceses. Nossas armadilhas funcionaram bem.
Os vietcongues encararam os franceses e depois voltaram as suas ocupações.
No fim do dia, Hô Chin Minh chegou, apoiado numa bengala. Dirigiu-se para os prisioneiros guardados por
Trinh.
- Então, meus filhos, vocês caíram nas mãos dos cruéis vietcongues! Sei que combateram valentemente. São
nossos prisioneiros, mas serão convenientemente tratados. Tragam comida para eles! Camarada médico, como
estão os feridos?
- Muito bem, tio Hô. Mas temos falta de medicamentos.
- Eu sei, ai de mim!... Faça o melhor possível. Venha, Léa, vou lhe dar a primeira aula...
Hô Chin Minh iniciou Léa nos segredos do viêt vô dao. Logo a jovem demonstrou uma habilidade
surpreendente.
- Agora, a senhora precisa de um professor melhor que eu
- disse-lhe ele. - Não esqueça que é importante desligar-se, não pensar em mais nada. Só lute para se defender;
em caso de ataque, lute com calma, sem ódio. Não deixe os sentimentos ficarem em primeiro plano. A
senhora vai nos deixar em breve; pense de vez em quando no velho tio Hô. Dirá aos que a enviaram que o
tempo das palavras de paz passou e que o povo vietnamita sairá vencedor desta horrível guerra. Volte para
perto de seus filhos. Esta noite haverá aqui uma festa em sua honra. Vá se preparar.
- Senhor presidente, aprendi muitas coisas com o senhor. Eu lhe agradeço... O que vai acontecer com os três
prisioneiros franceses?
- Voltam com a senhora.
- Oh, obrigado!
Léa pulou no pescoço do tio Hô e o beijou nas duas faces. Surpreso com o abraço apertado, este ruborizou-se.
- A senhora me lembra uma jovem que conheci em Paris...
- Como se chamava?
- Maria.
Pareceu a Léa que lágrimas brilhavam nos olhos do velho líder revolucionário.
A festa prometida por Hô Chin Minh foi um êxito total. Moças dançaram, jovens fizeram demonstrações de
viêt vô dao, e NhuMai tocou violino. Encadeou com um virtuosismo prodigioso árias ciganas, trechos de
Tchaikovski, de Gustave Fauré, de Ravel, de Tartini, de Paganini. Terminou com uma canção de Bazzini. Foi
um delírio. Os jovens vietnamitas a carregaram em triunfo, enquanto os franceses aplaudiam com muito
entusiasmo.
- Porra! Nunca ouvi nada mais bonito! - exclamou Marc Duvillier, esfregando os olhos.
Nhu-Mai se aproximou deles, com o violino na mão. Léa beijou-a emocionada.
- Você está sempre com meu amuleto do dragão? - perguntou-lhe a jovem prodígio.
- Sim. Deixei-o em Hanói antes de partir.
- Aqui está outro, esculpi-o especialmente para você numa madeira mágica de nossas florestas.
Léa apertou nas mãos o objeto rusticamente entalhado.
- Não o perca - disse Nhu-Mai, afastando-se para dissimular as lágrimas.
Hô Chin Minh se aproximou:
- Amanhã a senhora estará com os seus. Fiquei muito feliz de conhecê-la, minha filha. Cuide-se bem. Homens
de confiança vão acompanhá-los até o próximo posto francês. Adeus. Que os olhos deles sejam vendados!
Por sua vez, Hai veio até ela.
- Diga a François que gosto muito dele e ele é meu amigo para sempre.
- Direi... Onde está Giau?
- Foi na frente. Não se aflija por ele.
De olhos vendados, Léa e os companheiros penetraram na floresta. Ao fim de duas ou três horas, tiraram as
vendas dos olhos.
- Continuem sempre em frente - disse um dos vietcongues.
- O posto fica a quinhentos metros.
O acompanhante desapareceu como que por encanto.
Eles avançaram na direção indicada.
- Alto! Quem vem lá?
- Amigos! Somos franceses.
- Não se mexam!
Um soldado muito jovem iluminou-lhes o rosto com uma lanterna.
- Meu Deus! Uma mulher!
- Leve-nos a seu comandante - ordenou Franck.
- Vão na frente... e não tentem fugir. Atiro no primeiro que tentar.
Ao fim de alguns instantes, chegaram a fortificações de bambu.
- Estou trazendo quatro dos nossos, um dos quais é uma mulher.
- Entre, vou avisar ao tenente.
O oficial não demorou a aparecer no pátio do posto, ainda vestindo as calças.
- Que história é essa?
Ele parou diante de Léa, boquiaberto.
- Bem, essa eu nunca tinha visto! ... Agora encontramos mulheres na floresta? E bonitas, Deus seja
louvado!
- Pare de blasfemar. Estamos cansados. Poderia telegrafar a Hanói e dizer que a senhora Tavernier
terminou sua missão?
- perguntou Léa.
- Telegrafar a Hanói!... Como disse, princesa... Esperam- na lá, com certeza?
- Sim, o general de Lattre me espera.
- O general! Meu Deus, em nome de Deus!... Precisava cair uma história dessas em cima de mim?!
Uma vietnamita carregando um bebê chegou correndo.
- Maurice, chuyên gi thê?
- Cút di!
_ Maurice, o que está acontecendo?
- Fora!
Com uma ameaça enxotou a mulher, que se afastou com os olhos brilhando de ódio. - Não ligue, senhora, é minha congaï e seu menino.
- Seu filho, sem dúvida?
- Ela diz que é...
Ele os fez entrar no refeitório dos oficiais; pelo menos assim batizara esse cômodo sórdido, quase
inteiramente ocupado por uma grande mesa coberta de garrafas vazias de cerveja e cinzeiros cheios
de guimbas, do qual exalava um fedor de estrebaria.
- Não reparem, está tudo desarrumado aqui. Beberiam uma cervejinha enquanto falo com Hanói?
- Não se pode recusar - disse Marc Duvillier. - Estou cheio daquela porcaria de chá!
- Você deve estar cansada - murmurou Franck para Léa.
- Não quer descansar?
- Não, prefiro esperar a resposta de Hanói. Tem um cigarro?
- Senhora, meu camarada e eu lhe somos muito gratos... Nem sei como dizer... Nós lhe agradecemos
muito - disse Michel Bernard, estendendo-lhe a mão.
- Isso é verdade! - acentuou Duvillier, estendendo a sua.
Alguns minutos mais tarde, o tenente reapareceu:
- Tenho ordens de conduzi-la até Vinh Yen. Lá, um avião virá buscá-la.
- Vamos embora! - disse Léa, esmagando o cigarro.

Capítulo 15

Apesar de alguns atentados, a cidade estava mais calma; era entretanto recomendável não se afastar mais de
dez quilômetros:
daí em diante as tropas vietcongues causavam estragos.
Adrien e Camilie não sofriam muito com o clima; Charles ia
à escola no liceu Chasseloup-Laubat, era bom aluno. Lien se
ocupava da casa. Todos os dias, Léa ia à piscina do clube esportivo, o melhor lugar das elites de Saigon. Kien
lhe encontrara um
professor de viêt vô dao. Quanto a François, apesar da ferida, que
o fazia mancar, era o mais terno dos amantes.
Na noite de 30 de maio de 1951, durante o ataque aos montes Ninh Binh, Bernard de Lattre, filho único do
general, foi morto. O comandante partiu para a França com os despojos do jovem tenente. Em 4 de junho teve
lugar em Saint-Jean-desInvalides uma cerimônia emocionante na presença de representantes de todas as
armas. A multidão desfilou durante horas diante dos ataúdes de Bernard e de dois dos amigos mortos a seu
lado.
- Fui para Indochina para proteger os jovens e nem sequer fui capaz de proteger meu filho - disse de Lattre a
Salan.
Foi um homem alquebrado que voltou a Saigon. Apesar da dor,
ele teimou em assistir, em 11 de julho, à distribuição dos prêmios do liceu Chasseloup-Laubat e em
pronunciar um discurso diante dos alunos, na maioria vietnamitas:
- É à juventude de todo o Vietnã que seus ancestrais confiam o patrimônio que receberam outrora por seu
valor. E eu, que conheci e gostei da juventude de muitas nações, digo que essa juventude está à altura dessa
confiança e das exigências da História. Juventude trabalhadora e ardente, hábil e orgulhosa, ambiciosa e
entusiasmada, juventude refinada pelos séculos e apaixonada pelas inovações, juventude sensível, pronta para
ser levada a lutar por uma grande causa. Na verdade, a geração que atinge hoje a idade adulta no Vietnã tem
em si todas as extraordinárias qualidades requeridas de imediato pela conjuntura excepcional dos dias de hoje.
Sejam homens, isto é, se forem comunistas, juntem-se aos vietcongues, lá existem indivíduos que combatem
certo por uma causa errada. Mas, se são patriotas, lutem por sua pátria, pois esta guerra é sua! Organizem um
exército nacional, que substituirá progressivamente o exército francês em suas tarefas primordiais. E na
fidelidade às idéias que S. M. Bao Dai representa que se encontra a verdade de vocês. Jovens da elite
vietnamita, aos quais me sinto ligado como à própria juventude de minha terra natal, chegou o momento de
defender seu país. Junto ao sol da independência, há necessidade também de suor e sangue para fazer
germinar a colheita dos homens livres. Tenho certeza de que o Vietnã será salvo por vocês!
A platéia se levantou numa trovoada de aplausos. O general desceu do palco e passou diante dos alunos,
vibrantes de emoção patriótica.
Ao lado de Léa, Kien zombou:
- Palavras, não mais que palavras! Entre todos esses jovens não vejo um só que possa lutar, principalmente
por Bao Dai!
- Cale-se! - replicou Léa. - O general tem razão, são eles que libertarão o país, com ou sem os comunistas.
- Você ainda acredita em Papai Noel, irmãzinha!
Charles, com os braços cheios de prêmios, chegou, solene, a Léa.
- Tome, foi para você que os ganhei. Foi bonito o discurso do general. Se eu fosse vietnamita, iria
combater logo.
- E para que lado iria? O dos vietcongues ou o do imperador? - perguntou Kien.
Charles virou-se para Léa.
- Para onde você iria?
- Não sei. É difícil responder. Acredito na sinceridade de Hô Chin Minh, mas talvez porque o tenha
conhecido de perto. Essa pergunta não é para mim: não sou vietnamita.
Léa não acompanhou François no desfile de 14 de julho em Hanói, na presença do imperador Bao
Dai; preferiu ficar em Saigon, para preparar a partida deles para a França, em 27 de julho. O general
de Lattre, acompanhado de uma parte de seu staff, decidira ir a Paris para advogar mais uma vez
sua causa. Eles deviam aproveitar a viagem, e Léa planejara passar o verão em Montillac. Ela
deixou a Indochina um pouco triste, pois não reencontrara Nhu-Mai, nem Jean Lefèvre, nem Franck
Lagarde.
Cinco dias depois, Léa chegou à sua querida Montillac. François ficara em Paris. O reencontro das
duas irmãs foi alegre. Pièrre e Isabel estavam cheios de vitalidade; Charles ficou feliz de rever os
que ele chamava "primos". Ele tinha agora onze anos, parecia-se muito com a mãe, era ao mesmo
tempo discreto e audacioso, fisicamente muito corajoso e com muita resistência.
A propriedade estava muito próspera, as vendas de 1947 e de 1949 haviam sido excepcionais. Alain
Lebrun conseguira contratar empregados agrícolas permanentes. A guerra parecia muito distante.
Léa decidiu aprender a pilotar avião e ia, duas vezes por semana, ao aeroclube de Bordeaux.
"Nunca se sabe", dizia ela, "isso um dia pode me ser útil."
Apesar das ausências de François, esses três meses passados em família foram para todos meses
abençoados.
Em 7 de setembro, François embarcou no transatlântico Ilede-France com destino aos Estados
Unidos, em companhia do
general de Lattre, que desejava defender a causa da Indochina junto ao Congresso
americano. Viajaram também François Valentin, Jean-Pièrre Danaud, o coronel Bousarie e
o coronel médico Petchot-Bacqué. O general foi recebido com todas as honras devidas a
seu posto; ele ficou satisfeito com isso. Prestou-se solicitamente às numerosas entrevistas,
conquistou os jornalistas e obteve de Washington substancial ajuda. Encarregou François
de vigiar a aplicação dos acordos e voltou à França em 30 de setembro.
Léa ficou furiosa com o anúncio do prolongamento da temporada do marido; as crianças
reclamavam o pai. Esperando para saber quando voltariam para a Indochina, Charles fora
matriculado como interno dos jesuítas na sexta série, O menino mal pôde conter as lágrimas
quando deixou Léa. Esta lhe prõmeteu que todo fim de semana iria buscá-lo. Essa promessa
o consolou um pouco.
François voltou para o Natal de 1951. O primeiro que passavam juntos em Montillac! Léa
reencontrou a agitação da infância, comprou uma porção de presentes, encomendou os
perus, o foje gras, o sorvete. Haveria fartura, como antigamente... Antigamente... Fora tanto
tempo atrás! Desse tempo só ficara Ruth, que preparava sempre inesquecíveis trufas de
chocolate, e a pobre tia Lisa, que quase já não saía do quarto.
Na véspera do Natal, Léa foi visitar o túmulo dos pais. O fim do dia se aproximava. Ela
subiu lentamente o morro de Verdelais. Sob seus pés rolavam pedras do caminho, as
árvores desfolhadas estendiam os galhos negros para o céu escuro. Ela se apoiou num deles,
invadida de repente pela tristeza... Nunca mais seria aquela criança perseguida por Mathias,
rolando nas plantas, escondendo-se nas valetas, pegando aqui e ali a uva verde, correndo
para o pai, que lhe estendia os braços e levantava "sua princesa" tão alto, que ela gritava de
medo e de alegria misturados. "Papai..."
Uma sombra se ergueu diante dela. Sentindo uma presença querida, ela fechou os olhos
com força para não quebrar a ilusão. Alguém a tomava nos braços, um hálito quente lhe
fazia cócegas
no pescoço, lábios procuravam os seus; ela se entregou. Oh, que nunca ela se cansasse desses beijos, que seu
corpo fosse sempre ao encontro dessas carícias! Ela gemeu e se deixou escorregar para o chão gelado. Ele se
estendeu sobre ela; era pesado, mas esse peso que a machucava a tranqüilizava. Quantas vezes tinham feito
amor assim, sob as árvores do calvário?... Suas pernas se abriram. Sem dificuldade ele encontrou o caminho.
Como sempre ela estava disponível, aberta, deixando fluir o prazer. Por longo tempo a possuiu com ternura,
feliz de ouvi-la gemer.
O Natal e o 1 de janeiro correram alegres. Maravilhadas com as luzes da árvore e os presentes, as crianças
davam saltos pela casa aos gritos. Do lado de fora, a neve caía em grossos flocos sobre um mundo calmo e
silencioso. A Indochina e a guerra estavam a milhares de quilômetros. François não falava em voltar.
No dia 11 de janeiro o rádio anunciou a morte do general de Lattre. François sentiu profundamente. A
despeito de suas inúmeras divergências, os dois homens se estimavam, e ele começara a gostar do "general de
fogo", do "rei Jean", como o chamavam os companheiros. O país lhe concedeu cerimônias fúnebres
nacionais, e ele foi nomeado Marechal de Françapostmortem. O general Salan, o oficial mais condecorado
da França, sucedeu-o.
O governo Pleven pediu demissão. Edgar Faure foi investido pela Assembléia. Habib Bourguiba, o chefe dos
nacionalistas tunisianos, foi preso, enquanto sangrentos motins tinham lugar em Bizerta. Jean Letourneau,
ministro de Estado encarregado das relações com os Estados Associados, pediu a François que voltasse para a
Indochina: Salan precisava de homens como ele. Ele partiu em abril; Léa foi ter com ele - sem as crianças - no
mês de junho. Antoine Pinay substituíra Edgar Faure na presidência do Conselho.
Ao aterrissar no aeroporto de Than Son Nhut em companhia do marido, Léa teve a satisfação de ver Jean
Lefèvre, com o braço na tipóia, bem como Franck, ambos de licença em Saigon.
François os convidou para o casarão de Lien. Um calor opressivo pesava sobre a cidade. Os três amigos
passavam os dias no Círculo Esportivo, e as noites no Grand Monde, no qual reinavam Kien e Bay Vien. Este
último impressionava Léa, que sempre se sentia constrangida em sua presença. Ele prosperara desde o
primeiro encontro! Em abril, Bao Dai o nomeara general-de- brigada do exército nacional vietnamita. Que
desforra para o fugitivo de Poulo Condor! Era respeitado e temido por todos. Os jornais o chamavam general
"Van Vien". As mulheres lhe lançavam olhares amorosos quando ele passava dirigindo o Jaguar, presente de
Bao Dai. Tornara-se o companheiro preferido nas esbórnias imperiais. Foi apresentado ao soberano por Pham
Van Giao, um farmacêutico de Annan elegante e esportivo, com um belo rosto de boêmio distinto, que
acompanhara Bao Dai no exílio, servindo-lhe até de motorista, de mordomo e de cozinheiro. Isso o monarca
nunca esquecera. Ao retornar, nomeara-o governador do Vietnã Central, de que se valia para encher os cofres
imperiais. Aproveitava as funções para recrutar as mais belas garotas de Hué, que ele "provava" antes de pô-
las na cama do chefe. Bay Vien e Giao não gostavam um do outro, mas o imperador tinha necessidade de
agradar ao chefe dos binh xuyen.* Ele fazia isso lhe oferecendo garotas bonitas. Bay Vien repelia essas
amáveis propostas com arrogância:
- Senhor, nunca compartilhei uma mulher que tenha pertencido, uma única vez que fosse, a um amigo ou a um
homem de meu clã... Ainda mais uma mulher que dormiu com o imperador! Mesmo sendo uma prostituta!
Ele se inclinou respeitosamente e saiu com seu passo leve.
Essa atitude pouco comum impressionou muito Bao Dai, que pôs Giao asperamente em seu lugar no dia que
este exclamou:
- Quem ele pensa que é, esse vagabundo travestido de general? O senhor viu sua cara de estúpido?
- Cale-se! Esse vagabundo, como você diz, tem brio. É o
Nome derivado do de uma aldeia de Rung Sat, ao sul de Saigon, que serve de refúgio para os fora-da-lei.
É o único que me disse não. E me lembrarei disso. Não o subestime:
é capaz de vir cortar-lhe a garganta no meio de seus homens!
Uma grande cumplicidade se desenvolveu muito rapidamente entre Bao Dai e Bay Vien. Tornaram-se
companheiros de caça e pesca. Para a caça, o imperador deixava de ser umplayboy indolente; era um
homem resistente, corajoso, um atirador excepcional. Nas noites de caçada, junto da fogueira, ele fazia
confidências ao novo favorito, falando-lhe de Hô Chin Minh com uma mistura de ódio e respeito:
- Um homem simplório... Antes de tudo, um formidável comediante. Quando o conheci, ele tinha cinqüenta e
três, cinqüenta e quatro anos. Toda vez que aparecia, dava a impressão de ser um velho. Mas, de um minuto
para o outro, podia se transformar. Eu o observei bem, poderia lhe contar vinte anedotas, escrever três livros
sobre ele. Ele era o contrário do que tentava parecer. Em público, passava por ser um asceta de costumes
rigorosos, inteiramente devotado à causa de seu país. Em particular, era um insaciável freqüentador de
prostíbulos, talvez porque tenha estado doente dos pulmões. Os ex-tuberculosos são tarados por sexo...
Também fumava ópio e bebia muito. Ele me disse que o hábito de beber vinha da época em que era
marinheiro. O vinho é, parecia-lhe, o melhor remédio contra o enjôo. Sim, realmente era uma pessoa
verdadeiramente curiosa de observar! Por exemplo, só fumava cigarros americanos, Philip Morris de
preferência. Bem, trazia com ele dois maços de Bastos: um continha cigarros escuros, de fumo de trabalhador,
que ele oferecia ostensivamente aos visitantes; o outro, Philip Morris camuflados sob a etiqueta Bastos, que
ele fumava. Sempre esse comportamento duplo... E muito forte; acreditei que pudesse vencêlo no jogo de
quem enganava o outro, mas ele não é bobo... Foi nesse momento que tomei a decisão errada. Quis enganar
meus adversários fingindo ser um farrista desiludido, e fui eu o enganado.*
Uma noite, no Grand Monde, BayVien apresentou Léa a Bao Dai. O imperador convidou-a para sua mesa e
tentou insistente- mente fazer-lhe a corte, sem ligar para a presença de Jean Lefèvre e de Franck Legarde.
Quanto a Kien, pálido, mandíbulas crispadas, sentia-se que estava a ponto de saltar, tanto que BayVien teve
de pôr a mão em seu ombro. Por alguns momentos, Léa entrou no jogo e se mostrou exageradamente coquete.
Bao Dai se julgou então autorizado a certas liberdades. Inclinado sobre a nuca da jovem mulher, roçou-a com
os lábios. Calmamente, ela se levantou e jogou o copo de champanhe na cara do "Filho do Céu", exclamando:
- Este lugar está mesmo muito mal freqüentado. Vamos embora!
Jean e Franck se levantaram e a cercaram.
- Puta! - resmungou Bao Dai, limpando o rosto.
Kien virou o rosto.
O gesto de Léa divertiu o general Salan e chocou parte da colônia francesa. Mas o incidente logo foi
esquecido, pois acontecimentos graves acabavam de ter lugar. O centro militar de repouso de Cap Saint-
Jacques fora atacado; seis crianças francesas, quatro vietnamitas, duas mulheres, oito suboficiais e oficias
tinham sido massacrados. Uma forte emoção agitou a Indochina e a metrópole. Falou-se novamente, desta vez
em Saigon, em evacuação dos civis. O general Chanson, em viagem de inspecção em Sa Dec, fora vítima de
um atentado perpetrado por um caodaísta, que jogara uma granada no cortejo; Chanson fora gravemente
ferido na cabeça; Thai Lap Than, o governador da Cochinchina, que o acompanhava, fora morto. Depois
Chanson, conduzido ao hospital, morreu sem ter recobrado a consciência. Isso afetou muito Salan.
Ao mesmo tempo, a notícia da morte de Eva Perón levou o espírito de Léa à Argentina e lhe fez lembrar
Carmen, assassinada pelos nazistas*...
Léa passava muito tempo com Kien. As escondidas de François, ela recomeçara a fumar ópio. Uma ou duas vezes por semana, ia a uma casa de fumar em
Cholon. A gerente do estabelecimento, uma chinesa alta e forte, recebia-a efusivamente e a
instalava na alcova mais confortável, onde Kien vinha se juntar a ela.
Depois de mais de uma semana, François continuava ausente, viajando pela região de Son La a
pedido do comandante. Vestida com um quimono leve, Léa se deixou levar pelo rancor, não
encontrando na droga a fuga e o bem-estar esperados. Kien deslizou para junto dela e pegou o
cachimbo que um criado lhe estendia. Por um instante fumaram em silêncio. Através da seda, o
jovem acariciou suavemente os ombros, depois o peito de Léa. Ela gemeu. Encorajado, ele abriu o
penhoar e descobriu aquele corpo que tanto havia cobiçado. O moreno das coxas e braços ressaltava
a brancura do ventre e do peito, acentuando a aparente fragilidade. Ele teve vontade de maltratá-la.
Lentamente, esticou a mão e apertou a ponta de um seio.
- Com mais força - murmurou Léa.
Então, com paciência e volúpia, apertou as duas pontas oferecidas. Léa se contorcia sob o efeito da
dor e do prazer misturados. Logo, o desejo de ser possuída foi tão forte, que se deu sem reserva, O
jovem se afastou e disse em tom triunfante:
- Agora você é minha!
A partir desse dia ela se encontrava com Kien duas vezes por semana na casa de fumar. Vendo o
irmão freqüentar mais vezes a casa, Lien desconfiou de alguma coisa, mas não disse nada. Começou
então para Léa uma corrida desenfreada pelo prazer, tanto nos braços de Kien quanto nos de
François. Nenhum remorso, apenas um pequeno embaraço diante do olhar plácido de Lien...
Um dia Kien propôs a Léa um passeio pelos lados de Mytho. Ele queria lhe apresentar um de seus
amigos, mestiço como ele, que reinava na província de Ben Tré; chamava-se Jean Leroy e acabara
de ser nomeado coronel.
Fizeram os noventa quilômetros que separavam Saigon de
Mytho em menos de duas horas, o que era um bom tempo, levando-se em conta o estado das
estradas e a presença de tropas vietcongues nas planícies dos Joncs. Em Mytho, esperaram a
barcaça diante do "restaurante" de uma velha chinesa. Comeram iguanas aromáticas, vendo a água
do rio correr e as crianças brincarem.
- Fale-me desse Leroy - pediu Léa.
- É o filho de um pequeno camponês de Pithiviers e de uma nhà quê. Sua infância foi difícil e pobre.
O pai teimou em querer construir um dique para tornar fértil uma ilha de lama imobilizada entre
dois braços do Mekong. Mas o mar destruiu em uma noite a obra, que custara meses de trabalho,
quando não eram os javalis que devastavam as culturas de paddy.* Seis vezes o pai reconstruiu o
dique. Na última vez, venceu. Jean e os irmãos puderam enfim comer para matar a fome. Era um
garoto magricela que tinha medo dos gansos e dos chu vi, e não dizia uma palavra em francês. Foi
mandado para a escola em Mytho, com os frades. Depois, quando aprendeu a ler e a escrever, foi
para o Instituto Tabert. Só voltava para casa nas férias longas. Para ganhar um pouco de dinheiro,
fazia o transporte dopaddy num junco, ao longo do canal Chogao, que vai de Mytho a Cholon. Aos
quinze anos, além do diploma elementar, possuía um fuzil, o que lhe era permitido porque era
francês. Graças a esse fuzil não tinha de pagar a taxa exigida pelos piratas. Juncos vieram se colocar
sob sua proteção. Mesmo os boï*** do canal chinês de Cholon o respeitavam por causa da arma.
Em 1935, ele entrou para o liceu Chasseloup-Laubat. Em 1940, ingressou na infantaria colonial.
Mandaram-no para Bac Can, na fronteira com a China, o país dos homens azuis...
- Homens azuis?
- São chamados assim porque se vestem com roupas de cor índigo que desbotam na pele. São os tho.
Ele teve de ficar com os thu
até 45. Lá, foi aprisionado pelos japoneses. Ele conta que serviu de guia ao general Leclerc e,
em seguida a um ferimento, este quisera condecorá-lo com a Legião de Honra. Conseguiram
dissuadi-lo disso, informando-o de sua condenação a cinco anos de trabalhos forçados...
- Por que motivo?
- Nunca entendi bem. As razões que ele invoca são confusas. Teria dado fuga de uma prisão
francesa a quatro partidários, depois de ter destruído o estabelecimento. O juiz de instrução,
chamado Stalter, que mandara prender seus companheiros, conseguira de Saigon um mandado de
prisão contra ele, e o tribunal o condenara à revelia. Não sei o que há de verdade em toda essa
história. Não podemos esquecer que ele combate os vietcongues, expulsa de suas terras os binh
xuyen, e deixou de matar meu amigo Bay Vien! Desde então ganhou terreno: fundou o próprio
exército, composto de católicos, os UMDC,* muito bem treinados para a guerrilha... Ah, eis a
barcaça. Ela chega na hora: não tenho quase mais nada para lhe contar desse homenzinho. Mas você
mesma vai ver como ele é...
A travessia não durou mais de meia hora. Eles desembarcaram na ilha de An Hoa, que desaparecia
sob uma vegetação luxuriante. Fazia um calor de chumbo. No barranco, um homem sozinho,
apoiado numa bengala, esperava-os. Ele cumprimentou Léa solenemente, enquanto sua guarda,
mais atrás, batia continência. Léa quase não conseguiu ficar séria diante desse homem pequeno, de
pele escura e lábios finos, vestido com uma camisa imaculada em que brilhavam as condecorações,
uma calça cáqui com as pernas arregaçadas e um barrete preto na cabeça. Convidou-os a visitar seu
feudo a bordo de um jipe. Nos dois lados da estrada, a população reunida se prosternava, jovens
ofereciam flores e frutas. Impassível, ele agradecia com um breve sinal de cabeça. Pararam diante
de um pagode, onde monges vieram recebê-los com muitos lai. A sombra do templo, uma mesa
estava posta, cheia de comida; a refeição, servida por jovens de olhos
baixos, foi suntuosa. Depois, deitados em redes, os homens fumaram charutos, e Léa, com um
cigarro na mão, escutava distraída as conversas. De repente, ela ouviu Leroy dizer com profunda
convicção:
- Quero criar no Vietnã uma nova raça, em que franceses e vietnamitas estejam fundidos!
Ela surpreendeu-lhe o olhar e sentiu-se constrangida.
No fim da tarde, tomaram novamente a barca em companhia do coronel, para ir visitar Binh Dai,
"sua" capital, onde iriam desfilar "suas" tropas. Ficaram num palanque ricamente decorado, erguido
na praça do mercado diante de uma imensa multidão concentrada em volta, silenciosa. A um sinal
do coronel, milhares de vozes deram gritos de boas-vindas que superaram o barulho dos tambores,
dos pratos, das trombetas e dos clarins. Depois tudo silenciou. Começou então o desfile das
milícias. A frente de cada companhia flutuava um estandarte bordado com uma cruz e uma espada,
seguido por homens armados de metralhadoras e punhais, vestidos de preto e com capacetes
coloniais. Marchavam a passos lentos, impressionantes.
- Observe-os, eles sabem lutar! Os vietcongues os respeitam. Mas os franceses são cegos, caem em
todas as armadilhas do inimigo. Minha guerra é a do país: a dos comandos, das ciladas, das
emboscadas, das traições. Meus espiões me informam durante semanas, depois, um dia, ataco. Ajo
sempre sem erro. Destruo as aldeias que é preciso destruir; mato os homens que é preciso matar. Os
franceses destroem e matam ao acaso, porque não sabem nada nem podem saber. Os nhà quê
dizem que sou justo. Se têm medo do corpo expedicionário, é porque é imprevisível. A existência
dos nhà quê é uma tragédia. São esquartejados entre duas forças impiedosas. A noite, os
vietcongues deslizam para as aldeias e lhes dizem: "Se ajudarem os franceses, plantaremos amanhã
no arrozal as cabeças de seus homens." Em pleno dia, os franceses desembarcam de caminhões,
armados de metralhadoras e todas as armas da morte, modernas. Um oficial, agitando seu stick grita
para os importantes apavorados:
"Vocês são traidores! Participaram da emboscada em que os
vietcongues mataram dez dos nossos. Acabaram com nossos feridos. Vamos castigá-los!" Esse drama é
desconhecido dos franceses, presos à sua rotina. Não têm imaginação. Não compreendem que não têm direito
de exigir o que quer que seja, a menor fidelidade, a menor dedicação, sem dar em troca proteção. Mas não
protegem ninguém, em lugar nenhum; fecham-se em seus postos e gritam: "Moradores, venham para nós;
estamos aqui para defendê-los!" Eis tudo o que sabem dizer quando se estabelecem numa região. Depois de
alguns meses, os anamitas que tiveram confiança foram assassinados pelos vietcongues. Os franceses matam
os outros chamando-os a todos de "safados"... Essa guerra é a do povo. É preciso tomá-la para si, arrancá-la
dos vietcongues. A primeira condição é saber quando se deve ser bom e quando se deve ser cruel. É muito
complicado para os militares do corpo expedicionário. Os franceses nunca se juntarão ao povo. Estão com
muito sangue nas mãos. Não falo do sangue dos homens que eles próprios mataram, mas do sangue dos que
deixaram morrer enganando-os, de todos aqueles com que estavam comprometidos e foram abandonados.
Este sangue dificilmente será perdoado...
Apesar do calor, Léa tremia. O que dizia o pequeno coronel eurasiano soava terrivelmente verdadeiro. Ela
reconhecia aí algumas afirmações de Jean Lefèvre ao falar da responsabilidade do exército francês diante das
populações, da vergonha sentida por ter tido de abandoná-las. Essa guerra não era deles; era preciso deixar os
vietnamitas entenderem-se entre si. "Mas isso será a guerra civil!" Ela acreditava ouvir as boas almas de
Saigon e de Hanói temendo perder suas piastras e seus privilégios. Mas todos esses mortos para nada. Como
um eco, a voz do pequeno homenzinho voltara:
- ...Quantos franceses mortos por nada! Sem compreenderem, sem quererem compreender... Por excesso de
bravura, freqüentemente, por excesso de preguiça, às vezes. E, depois, todos esses postos perdidos! Imaginem
esta loucura: um francês vem de Carpentras ou de Auxerre para comandar uma centena de guerrilheiros de
fisionomia patibular. Imaginem o que deve ser
a vida desse homem nesse mundo violento. Ele espanca, maltrata os subordinados, insulta os importantes,
violenta as jovens. Um dia o encontram assassinado... Admiro o exército francês; ele combate com a
tenacidade de uma velha raça militar. Mas sua guerra já não é desta época. Os franceses estão colocados
diante de uma revolução. Diante desse gênero de acontecimento, são impotentes. Eu não. Não conheço
princípios nem regras, salvo os meus. Sei me fazer temer pelo povo, ainda mais que os vietcongues; também
sei me fazer amar mais ainda que eles. Sei como chegar até eles, trago isso de nascença. Nasci nessa ilha de
.Am Hoa; conheço cada palmo de terreno, conheço a todos. Os nhà quê acreditaram em mim desde que lhes
disse: "Venham comigo exterminar os vietcongues. Eu nunca os abandonarei!" Meu exército protege a
população. É verdadeiramente o exército do povo de Am 1-loa, com uma disciplina férrea.
- É verdade - confirmou-lhe mais tarde Kien -, seus homens não cometem nenhuma cobrança indevida nas
zonas que pacificaram. Lá o roubo e a violação são proibidos. Pior para os que se tornarem culpados! Os
soldados que violentam são castrados, os que roubam têm uma das mãos cortadas. A amputação é realizada na
cidade, diante de um grande público...
Léa deixou com alívio a região de Ben 'l}é e seu senhor da guerra.
- Tem muitos como ele por aqui? - perguntou ela na viagem de volta.
- Dessa envergadura não. Entretanto, eles são mais numerosos do que se pensa, têm seus próprios exércitos,
seus territórios, e se comportam como senhores feudais, com direito de vida e de morte. O exército francês os
tolera, pois fazem um bom trabalho de eliminação dos vietcongues. Os próprios vietcongues os temem.
Na noite de 1° de dezembro, Giap lançou suas tropas ao assalto de Nan San e venceu a batalha, apesar de toda
a coragem dos combatentes franceses.
Nessa data, Léa recebeu notícias de Montillac:
Minha muito querida irmãzinha
Aqui todos vão bem, as crianças estão esplêndidas. Acabo de ter uma nova filha, vai se chamar
Laura; é um bebê muito bonito. Charles continua sempre um excelente aluno, uma criança
encantadora, um pouco fechado talvez, mas muito envolvente. Adrien o adora e está sempre junto
dele nos dias em que está em Montillac. Quando o grande amigo não está aqui, seu filho fica
impossível, tem o caráter igual ao seu. Pierre já está um rapaz. Camilie é tão bonita que dá vontade
de devorá-la com beijos. Fisicamente, é uma mistura de você e de François. Nossa querida Ruth
envelheceu. Quanto à tia Lisa, ela se extingue docemente. Nosso vizinho, François Mauriac,
ganhou o prêmio Nobel de Literatura; é uma grande honra para nossa região.
Montillac está se equipando, temos uma grande geladeira e uma máquina de lavar roupa; é
singularmente prática, especialmente para as crianças.
Envio-lhe fotos de todo este pequeno mundo. Como você vai ver, todos estão muito bem, mas
sentem muito falta de vocês. Quando pensam em voltar? Charles prepara no maior segredo o seu
presente de Natal. Seria bom se estivéssemos todos reunidos! Mande-nos notícias e envie fotos.
Nós a esperamos com impaciência. Um carinhoso beijo para você e François. Alain também manda
um beijo. Ele acaba de comprar um belo carro, está como uma criança. Um meo, Sua irmã, que a
ama,
Françoise
A ausência dos filhos foi tão violentamente sentida por Léa, que ela explodiu em soluços. Lien
ouviu e irrompeu no quarto.
- O que aconteceu? Recebeu más notícias da França?
- Meus filhos...
- O que houve com seus filhos?
- Sentem falta de mim!
Lien sorriu.
- Não fizeram tanta falta para você nesses últimos tempos...
- É verdade. Tenho sido uma péssima mãe.
Nesse momento François chegou.
- O que você tem? Chorou? As crianças?...
- Elas vão muito bem, mas tenho tanta vontade de revê-las!
- Eu também. Sou obrigado a ficar aqui, mas você pode ir. Eles ficariam tão felizes devê-la! Vou tratar de
encontrar um lugar para você no próximo avião.
- Preferia ir com você...
- Impossível, a situação se deteriora por toda a parte. Os vietcongues se reforçam, cada dia mais, sua
campanha de propaganda começa a dar frutos. Se partir agora, terei a impressão de estar deixando uma
história inacabada por medo de saber seu fim...

Capítulo 16

Léa deixou Saigon em 20 de dezembro. Passou um dia em Paris para fazer algumas compras e chegou a
Montillac na tarde do dia 24. Na lareira o fogo crepitava. Empoleirada numa pequena escada, Françoise
prendia as guirlandas e as bolas douradas que as crianças lhe davam. Enrolada em seus xales, Lisa desaparecia
na poltrona, sorrindo com esses preparativos para a festa. Na cozinha, Ruth preparava o tradicional peru com
castanhas, enquanto na adega Alain escolhia as melhores bebidas. Ficara decidido que pequenos e grandes
iriam à missa da meia-noite na basílica de Verdelais. Como toda vez que entrava na igreja, Léa parou diante
da caixa com as relíquias de santa Exupérance. Ali, diante da pequena imagem de cera, ela reviu Philippe
d'Argilat* de pé em sua carruagem batizada com esse nome, e ouviu novamente os gritos da multidão em
júbilo dançando nas ruas de Paris libertada.
No sermão, o padre teve uma palavra para os que combatiam longe do país; Léa sentiu-se grata a ele.
Quando voltaram na noite fria, os pequenos dormiam. Só
Charles e Pierre ainda estavam acordados, decididos a participar da festa com os grandes.
A ceia foi à altura do talento de Ruth. Todos a elogiaram e lhe agradeceram. O telefone tocou. Alain foi
atender e voltou com pressa:
- É para você.
Léa correu para o escritório do pai.
- Alô! - disse ela.
- Feliz Natal, meu amor!
- Oh, François!... Como estou feliz por ouvi-lo!... Feliz Natal para você também... Alô! Eu estou ouvindo
mal!... Alô!... Eles estão bem... Eu também, eu o amo... Alô! Você me faz tanta falta... Preste atenção... Sim...
Meu querido... Alô! Alô!...
A ligação fora cortada. Ela se sentou no divã em que o pai gostava de descansar; fechou os olhos, as mãos
apertadas contra o peito. "Meu Deus, protegei-o... Guarde-o para mim..."
- Léa! Léa! Venha, Papai Noel já passou!
Charles a tomou pelo braço e a levou até o pinheiro iluminado. Os embrulhos multicoloridos estavam
colocados diante dos sapatos de cada um. Logo o tapete estava cheio de papéis rasgados. Françoise ficou
extasiada diante do vestido escolhido por Léa. Alain se declarou muito satisfeito com seu casaco, Ruth, com
seu confortável penhoar, Lisa, com sua echarpe de seda, Pierre, com seu trem elétrico, Charles, com sua roupa
e seus livros.
- E você? Não vai abrir seus presentes? - inquietou-se ele. Em criança, Léa esperava que todos tivessem aberto
os embrulhos para desfazer os seus; ficava esperando, aborrecendo as irmãs.
Françoise tricotara para ela um grande suéter de fina lã branca, Ruth, um gorro e luvas; Lisa lhe dera um par
de brincos de diamantes que tinham pertencido à mãe. Alain, uma agenda encadernada em couro, e Pierre, um
desenho muito bonito, representando Montillac. O presente mais inesperado foi o de Charles:
um retrato de Léa pintado a óleo com muito talento.
- É magnífico, querido! Obrigada, muito obrigada!
- Não o fiz muito grande, para que pudesse levá-lo para toda parte com você.
O retrato estava muito parecido. Entretanto, não se podia olhar para ele sem experimentar certo mal-estar. O
sorriso era doce e terno, mas o olhar ausente. Léa estava vestida à moda anamita, com o chapéu pontudo nas
costas. Perto dela estava Ong Cop, parecendo surgir da floresta. O conjunto dava uma impressão curiosa,
incômoda.
...As semanas passadas ali foram agradáveis para Léa. Os filhos estavam sempre com ela. Charles aproveitou
a estada para pintar também o retrato dela em companhia de Adrien e Camilie.
Em 15 de fevereiro de 1953, ela deixou a França. Na chegada a Saigon, Lien lhe contou que François estava
no Tonquin. Contra a opinião da amiga, Léa recusou esperar o vôo civil para Hanói e conseguiu lugar no trem
protegido de la Rafale, o trem encarregado de reabastecer a zona costeira de homens, armas e víveres até Tô
Bong. Muitas vezes atacado, tornara-se legendário. Muitos homens tinham sido mortos para que ele pudesse
cumprir sua missão. O comboio blindado da Legião era sem dúvida o trem mais condecorado do mundo:
Legião de Honra, Medalha Militar, Cruz de Guerra! Composto de quatorze vagões, dos quais oito blindados,
abrigando cada um quinze legionários, ele percorria os quatrocentos e cinqüenta quilômetros que separavam
Saigon de Tô Bong, parando freqüentemente diante das pontes destruídas e dos trilhos sabotados, que os
legionários reconstruíam sempre, sujeitos a uma emboscada.
O trem chegou sem dificuldades a Tô Bong, onde um comboio militar de uma dezena de veículos se
encarregou dos passageiros. Algumas horas mais tarde, soube-se em Saigon do ataque ao comboio e do
desaparecimento de todos os passageiros. Durante uma semana, de caminhão, a pé, a bordo de sampanas, os
prisioneiros foram transportados até a fronteira do Laos, onde eles foram dispersados. Léa se encontrou, em
companhia de duas
religiosas mestiças, numa aldeia de leprosos. O diretor, um velho anamita, designou-lhes uma barraca perto da
das irmãs e dos médicos. A aldeia era construída numa ilha do rio. O setor administrativo compreendia um
posto de milicianos, um secretariado, cozinhas, dependências, uma maternidade para crianças não- leprosas.
No fim da ilha, cercados por tapumes de bambu afiado, as construções dos incuráveis, abastecidos pelos
doentes válidos. A ilha era separada em duas por uma pequena ponte, guardada dia e noite. A aldeia
compreendia dois bairros cercados de água, que se comunicavam por passarelas: o dos homens e o das
mulheres.
No dia seguinte à chegada, Léa foi levada para ali com as duas religiosas. Ao longo dos caminhos cobertos de
imundícies, percebiam-se entre as construções seres sem rosto, arrastando-se de uma barraca para outra. O
odor era atroz. Léa tremia. Uma das irmãs a tranqüilizou:
- Não são contagiosos.
Contagiosos ou não, Léa não queria ficar lá. Seu medo e pânico dos leprosos vinha da infância. Ainda
guardava na memória as narrativas das irmãs, em Bordeaux, que causavam repugnância...
- Estudei os remédios nativos contra a lepra - disse a prisioneira -, são freqüentemente eficazes, principalmente
no início ou para prevenção. Encontrei o médico anamita da aldeia, ele me preparou um cozimento que fez
efeito. Tenho um frasco comigo. Tome um gole!
Para maior segurança, Léa tomou dois. Na última barraca, as mulheres grávidas esperavam a hora do parto.
De noite Léa teve um acesso de impaludismo, que durou muitos dias. A febre cedeu, mas ela emagrecera
muito. As irmãs, que estavam se revezando à cabeceira, fizeram-na comer regularmente carne de búfalo, para
lhe dar novas forças. No décimo quinto dia depois da chegada ao leprosário, ela pôde se levantar e tomar
banho numa grande bacia de zinco. Irmã Amélia a esfregou sem delicadeza e lavou-lhe a cabeça com tal
energia, que arrancou gritos à convalescente. Depois a vestiu com uma roupa
nativa. Cansada do banho, Léa adormeceu numa esteira, perto do rio.
Gritos e tiros a despertaram. No leprosário em chamas, os doentes corriam em todas as direções
antes de serem mortos pelos assaltantes. Uma das religiosas, que cuidara de Léa com tanta
dedicação, caiu perto dela, com o crânio despedaçado. Léa desapareceu entre as roseiras à beira do
rio, O morticínio chegou ao máximo; corpos mutilados foram jogados no rio. O incêndio era muito
violento. Bruscamente, Léa foi transportada, oito anos antes, para Montillac... Os soldados ateavam
fogo à casa. Por todo o lado, sempre, os mesmos gritos, os mesmos risos, o cheiro da pólvora, da
madeira queimada, de sangue derramado substituindo o dos grãos recém-cortados. O céu
incrivelmente azul, como aqui, hoje... "Não, não é o mesmo azul...", pensou Léa. "Lá, na Gironda,
era um azul profundo, insolente... Aqui, nas margens do rio Noir, é mais pálido, mais sereno..."
- Você vem, Mamadou? Nós nos enganamos, aqui não há vietcongues, só doentes atingidos por essa
imundície.
Léa ficou dentro d'água até a noite. Depois subiu para a margem e andou pelas ruínas fumegantes.
Cadáveres por toda a parte. Diante da capela, o velho diretor, ferido na cabeça, ainda vivia.
- Deus seja louvado, a senhora está salva! Não viverei por muito tempo. Pegue comida, se sobrou, e
deixe este lugar maldito. Fuja!
O velho homem, que passou a vida enfrentando a lepra, morreu repetindo esta palavra: "Fuja!"
Ela encontrou nas cozinhas um pouco de arroz grudento, peixe seco e algumas frutas. Embrulhou
tudo num pedaço de pano e partiu em direção à floresta, com a trouxa no ombro. De longe, parecia
uma camponesa. Andou horas numa estreita picada, sobressaltando-se ao menor barulho. De noite,
acomodou-se num rochedo, comeu uns bocados de arroz, bebeu água que corria pela pedra.
Cantos de pássaros a acordaram ao amanhecer. Ela devorou uma fruta e partiu novamente. Andou
três dias. Na noite do terceiro dia, os pés esfolados, apesar das sandálias, já não lhe permitiam andar. Exausta, ela se deitou.
Foi acordada em sobressalto, à noite, por cantos e pelo som de um tambor. Monges de cabeça
raspada, em longos hábitos marrons, marchavam em procissão, brandindo tochas. Léa se jogou
diante deles.
- Môt nguài dàn hà!*
- É uma mulher!
Um monge gordo a levantou.
- Chi làm gi xa làng thê?**
- O que você faz longe de sua aldeia?
- Eu não compreendo - disse ela.
- Môt nguài Pháp!***
- É uma francesa!
- O que você faz sozinha na floresta? - perguntou um monge num francês hesitante.
- Fui presa pelos vietcongues em companhia de duas religiosas. Levaram-nos para uma aldeia de
leprosos. Soldados vieram, acho que eram franceses, massacraram muita gente. Consegui fugir.
- Leprosos que escaparam nos contaram. Você andou muito tempo para chegar até aqui. Venha
conosco, nós a esconderemos no eremitério. Fica na montanha, ao abrigo de qualquer ataque.
- Não quero ficar com vocês - disse ela, desatando a soluçar. - Quero encontrar meu marido em
Hanói. Levem-me até ele!
O monge que falava francês lhe deu chá.
- Vamos ver isso mais tarde. Não estamos em segurança aqui. Você precisa acompanhar-nos.
Tendo perdido toda a vontade, Léa os seguiu e teve de andar ainda durante três horas. O mosteiro
era cercado de uma paliçada de bambus que se confundia com a floresta. No pátio, aves domésticas,
porcos pretos circulavam em liberdade diante de um belo pagode de madeira pintada. No interior do
edifício, três grandes budas vermelhos e dourados, diante dos quais queimava o
incenso, faziam do lugar um ambiente tranqüilizador. Numa sala que devia servir de refeitório, um monge
muito idoso trouxe chá. Todos beberam em silêncio.
- Venha deitar-se.
Conduziram-na a um pequeno cômodo com paredes de madeira esculpida, no qual havia uma cama baixa.
- Aqui não corre nenhum perigo. Veremos amanhã o que é possível fazer por você.
Léa dormiu imediatamente. Foi acordada pelo canto do galo e por batidas de gongo a intervalos regulares.
Com o corpo dolorido, saiu do quarto. O sol já estava alto. No pátio, os monges estavam
reunidos. Um deles lhe fez sinal para se aproximar.
- Decidimos que você pode ficar conosco até o momento de voltar para os seus. Enquanto permanecer aqui,
usará o mesmo hábito que nós. E vai precisar raspar a cabeça.
- Oh, não! - exclamou Léa.
- Não podemos agir de outra maneira, seria muito perigoso para nós. Um camponês pode ver você e denunciá-
la. Somos apenas pobres mulheres...
Léa observou-as mais atentamente. As cabeças raspadas, os hábitos rústicos lhe haviam feito acreditar que se
tratava de monges! Ela sorriu de seu engano e se sentiu aliviada.
Quando os cabelos começaram a cair pela ação das tesouras e ela sentiu a lâmina fria da navalha na cabeça,
chorou.
Nos dias seguintes participou da vida da comunidade, trabalhando no campo, na cozinha e dentro de casa.
Uma grande paz reinava no lugar. Nada parecia poder atingi-la. As religiosas eram numerosas, umas trinta
talvez. Difícil calcular-lhes a idade, pois tinham um ar de bebês velhos; todavia, os risos de algumas
mostravam que eram todas jovens. A que falava francês parecia ser a superiora das noviças, uma mulher boa e
inteligente. Ela explicou a Léa que o eremitério era muito antigo:
oitocentos ou novecentos anos. Até esse dia a guerra não havia chegado perto delas. Com certeza isso se devia
às preces de todas. Um dia, entretanto, perceberam gritos, tiros. Elas se
haviam entrincheirado na sala dos três budas e começado as orações. Sem dúvida,
Deus as ouvira, pois os soldados se afastaram sem notar a construção. Os trabalhos
foram retomados, marcados pelos ofícios.
Essa calma tranqüilizou Léa, que se fortaleceu e ficou amiga dessas mulheres
simples e sensíveis.
Mas isso não durou muito. Uma manhã o mosteiro foi invadido por uma tropa de
senegaleses, comandados por dois brancos. No começo pediram apenas alguma
comida. As irmãs os serviram com pressa. Quando eles chegaram, a que falava
francês suplicara a Léa que não aparecesse, pois não se conheciam as intenções dos
soldados. Escondeu-a no interior de um dos três budas e fechou a abertura atrás. Por
uma fenda, Léa podia respirar e perceber o que se passava numa parte da sala. Um
soldado com o tronco nu entrou, tocando gaita, enquanto outro batia numa espécie
de tambor. Eles dançaram. Pelos olhos arregalados, Léa compreendeu que estavam
embriagados ou drogados. Dois outros entraram, arrastando atrás de si uma das mais
jovens monjas. Despiram-na e violentaram metodicamente. A mulher urrava. O pior
foi quando um deles a sodomizou, enquanto outro lhe enfiou uma garrafa de cerveja
na vagina. A infeliz estava ensangüentada e se arrastou, de mãos estendidas, até o
altar. Eles haviam acendido o fogo nos braseiros, que projetavam clarões
assustadores nas paredes. Outras religiosas foram violadas, algumas tiveram a
garganta cortada em meio a risos. Um branco entrou de repente. Léa quase deu um
grito: Jaime Ortiz* era o chefe desse bando de assassinos. Ele estava bêbado,
coberto de sangue.
- Encontraram a puta? - perguntou ele em espanhol.
- Não, não existem brancas entre essas prostitutas - respondeu um dos negros.
- Vocês não procuraram direito. Com certeza ela está aqui. Nosso informante não se enganou.
- Ela deve ter fugido...
- Não, sinto que ela está aqui. Interrogaram todas as irmãs?
- Sim, chefe, elas dizem que nunca houve uma branca entre elas.
- E a velha que fala francês? Perguntaram a ela?
- É claro! Nem mesmo as formigas a fizeram falar.
- Onde ela está?
- Deve estar morrendo por aí num canto.
- Vão buscá-la.
As lágrimas corriam pelo rosto de Léa, vendo o estado a que fora reduzida a pobre mulher. Haviam
arrancado os bicos dos seios, o ventre era uma só ferida e o rosto estava inchado dos socos e
picadas.
- Diga-nos onde está a francesa, e sua vida será salva! Não, fez ela com a cabeça. Jaime Ortiz ficou
furioso. Começou a bater nela com pontapés e socos.
- Tragam gasolina, vou assá-la, essa vaca velha!
Léa não pôde suportar; e saiu do esconderijo.
- Deixem essa mulher, estou aqui!
Ortiz a olhou com estupefação. Esse fradinho de cabeça raspada não podia ser a orgulhosa Léa
Delmas. Ele se aproximou, fedendo a suor e sangue.
- Mas é verdade, é você mesma! Reconheço esses olhos de tigresa... Como você está? Foi difícil
reconhecê-la...
Léa não o escutava, estava inclinada sobre aquela que lhe oferecera hospitalidade e tentara salvá-la.
- Oh, madre o que fizeram com a senhora!...
- Você não deveria ter saído, eles não a encontrariam...
- Deixe essa carniça, vamos tratar de você. Matem-na!
Um tiro soou e a monja de bom coração foi reencontrar os ancestrais.
Ortiz pegou Léa pelo braço e a levou para fora. Ali a carnificina era terrível. Corpos despedaçados e
nus jaziam no pátio, pisados pela soldadesca embriagada.
- Você é a única sobrevivente. E é você que vai escolher se quer ficar assim muito tempo... se for
dócil!
Como resposta, Léa cuspiu-lhe no rosto. Um par de socos a
fez rolar até o santuário. A cabeça bateu num degrau de pedra. O sangue jorrou. - François... - murmurou ela, e tudo ficou escuro.
- Merda, chefe, o senhor a matou!

Capítulo 17

Quando soube do ataque e do desaparecimento de Léa, François voltou para Saigon.
As notícias que lhe foram dadas eram alarmantes. Kien tinha sabido por Bay Vien que Léa fora conduzida a
uma aldeia de leprosos próxima da fronteira do Laos, e que a aldeia fora atacada e inteiramente destruída por
uma tropa de africanos comandada por dois legionários desertores. Todos os habitantes tinham sido mortos.
Pelos informantes, ele soubera que uma branca escapara do massacre e fora recolhida por monjas num
eremitério budista, que, algumas semanas depois, também fora arrasado pelo mesmo destacamento. Aí
desapareciam as pistas da jovem mulher.
François se queixou com Lien:
- Por que a deixou ir? Era preciso obrigá-la a ficar!
- Ela não queria, só pensava em se juntar a você - soluçou Lien.
Houvera buscas na área do eremitério. Nenhuma dera resultado. A medida que os dias passavam, François
sentia-se cada vez mais enlouquecido. Ele voltou a Hanói, onde obteve do general Salan permissão para partir
para a região de Chieng, no Song Ma.
Foi lançado de pára-quedas, com Giau e Lefèvre, que estava de licença em Hanói. Escondidos em casas de
moradores, tentaram conseguir indícios. Uma noite, Giau voltou com uma informação: dizia-se que uma
mulher branca, ferida, estava nas mãos dos vietcongues, mais ao norte, perto de Hang Kié. Eles se colocaram
a caminho no dia seguinte, depois de ter oferecido presentes aos hospedeiros.
Seguiram o Song Ma até uma altitude de mais de mil metros. Passaram a noite em cavernas, que abrigavam
centenas de morcegos, assaltados por miríades de mosquitos. François se comunicava por radiotelefone com
Hanói. Lá também não havia nenhuma notícia de Léa. Em Hang Kié não souberam de nada. Continuaram até
o rio Noire. Numa parada, encontraram um comando pára-quedista, que lhes informou ter localizado um
acampamento vietcongues perto de Ban Pé Ngoai, na margem oposta do rio. A região, montanhosa, de difícil
acesso, era inteiramente controlada pelos vietcongues. Eles agradeceram aos pára-quedistas e partiram
novamente na direção de Ban Pé Ngoai.
- Um de meus irmãos ainda mora lá - disse Giau.
Ao chegarem, Giau encontrou o irmão, católico, comandante de um grupo méo. Souberam então que Bay
Vien se tornara comprador da produção de ópio, com o aval do general Salan e a autorização de Deo Van
Lang, o "senhor da guerra" de Laï Chau. Nessa região de montanhas, os méos eram os senhores, mas o
terreno oferecia numerosos esconderijos aos vietcongues. Dizia- se que Hô Chin Minh estabelecera ali um de
seus acampamentos, numa caverna inacessível. François gostaria de encontrá-lo novamente para lhe pedir que
fizesse tudo para encontrar Léa. Algo lhe dizia que ela ainda estava viva. Giau conseguiu entrar em contato
com um comissário do povo que servia como espião francês. Até então, nenhuma suspeita pesava sobre ele.
Ele contou a François que um médico francês que morava havia muitos anos entre os méos fora levado pelos
vietcongues. Para o informante isso queria dizer que se tratava de um rapto destinado a cuidar de um europeu.
Essa notícia deu novas esperanças a François. Ele compreendeu que eles não eram bastante numerosos para agir com eficácia nessa região, em parte
inexplorada pelos antigos colonizadores. Decidiu voltar a Hanói e organizar um comando. Giau ficou em Ban
Pé Ngoai para tentar conseguir novas informações.
Ameaçando partir sozinho com um punhado de mercenários, François obteve do general Salan, que estava a
ponto de receber seu sucessor, o general Navarre, autorização para reunir um comando de voluntários e partir
à procura da mulher. Claude Thévenet, o legionário da R.C. 4 ferido no momento do ataque a Vinh Yen e
convalescente em Hanói, foi o primeiro a se apresentar na casa dos Rivière, onde Tavernier estabelecera seu
QG, acompanhado de dois companheiros da Legião, Jean Boutin e Roger Maréchal, de licença temporária
dada pelo coronel. Foi-lhes dada ordem de recrutar elementos locais brigados com a guerrilha. Kien, vindo de
Saigon com os guarda- costas Fred e Vinh, conhecia a fundo as regiões de Thanh Hoa, Hoa Binh, Son La, Laï
Chau, Lao Cai... por ter ido muitas vezes a elas e caçado em companhia dos méos. François aceitou alistá-los.
Eram onze, sem contar Giau. De comum acordo, decidiram conseguir novos companheiros no local para onde
iam.
Foram os primeiros do "comando Vandenberghe".
Roger Vandenberghe, o gigante de Flandres que recentemente salvara a vida de François,* fora morto aos
vinte e quatro anos, em Nam Dinh, por um bô dôi que ele tirara de um campo de prisioneiros para incorporá-
lo ao comando Tigre Negro. Apesar dos repetidos avisos, não desconfiara dos olhares de profundo ódio do
nhàquê. Na noite de 5 ou 6 de janeiro de 1952, Khoï assassinara com muitas rajadas de metralhadora o
matador de vietcongues, o queridinho de de Lattre, sua jovem companheira chinesa, Khiem, e o melhor
amigo, o sargento Pue.
- Isso tinha de acontecer - concluíram os oficiais. Nenhuma investigação fora feita. O suboficial-chefe
Vandenberghe e o
sargento Puel foram enterrados lado a lado no cemitério de Nam Dinh.
O comando reunido por François foi lançado de pára-quedas em 30 de maio de 1953, perto de Ban Lôm, no
rio Noire. Todos estavam com roupas de camponeses vietnamitas e chapéu de folhas de coqueiro trançadas.
Ergueram acampamento numa caverna espaçosa e clara, de chão de areia branca.
Thévenet partiu com os três do comando Vandenberghe, Chau, Tho e Diem, felizes por ter reencontrado um
chefe branco digno dos Tigres Negros. Kien, por seu lado, foi com Fred e Vinh encontrar os chefes das
aldeias méos a fim de negociar o número de "voluntários" que podiam participar da operação. A bordo de um
barco de bambu, Maréchal e Boutin desceram o rio Noire até Ban Pê Ngoai, para trazer Giau. François ficou
sozinho.
Maréchal e Boutin foram os primeiros a voltar em companhia do monstro, todos tão excitados que falavam ao
mesmo tempo.
- Chega! Um de cada vez! - gritou François.
- Giau encontrou a pista de sua mulher... - conseguiu explicar Boutin.
- Onde?... Fale! - exclamou, levantando Giau pelos farrapos e sacudindo-o.
- Ela está em Koun Hia ou em Nghia Dô, na região thaï.
- Onde fica?
- Depois do grande lago do rio Rouge.
- Tem certeza?
- Meu irmão soube por intermédio de um bô dôi que lhe deve dinheiro; em troca, forneceu-lhe as
informações. Faz parte das sentinelas do quartel-general do presidente Hô Chin Minh.
- O que você quer dizer? Seu quartel-general está instalado perto de Tuyên Quang?
- Estava; já não está.
A informação poderia ser verdadeira: Hô Chin Minh se deslocava muito.
Thévenet voltou com três guerreiros méos seminus e armados de fuzis, lanças e zarabatanas. Dois dias depois, Kien voltou, por sua vez, com quatro homens
de fisionomia inquietante.
- São os melhores cortadores de cabeça da província, foi o que me assegurou DeoVan Lang. Não há
ninguém melhor do que eles para ficar a dois passos do inimigo e cortar-lhe a garganta...
- Giau localizou Léa - interrompeu François.
Subiram novamente o Song Giang até a estrada que levava a Than Uyen. A mil e cinco metros de
altitude, atingiram Minh Luo'ng, onde caíram de cansaço, no limite de suas forças... salvo os méos
e os companheiros de Vandenberghe, que negociaram com o chefe da aldeia a ocupação da cabana
reservada aos estrangeiros. Os vietnamitas acenderam um fogo e todos foram para lá.
Kien e Thévenet, a despeito da ferida, que ainda doía, foram os primeiros a se levantar. Giau
desaparecera. Os méos voltaram com bastante carne, que dividiram com os hóspedes. Houve festa
até tarde da noite; as mulheres da aldeia dançaram, e bebeu- se muita aguardente de arroz.
No dia seguinte, o chefe, com a língua pastosa, explicou-lhe que nunca os vietcongues tinham
chegado até lá; eles eram os primeiros visitantes desde muito tempo. Poderiam ficar o tempo que
quisessem, mas, se desejassem ir a Bao Ha, no rio Rouge, seu filho caçula teria muita honra de
conduzi-los. François agradeceu, disse que ia pensar com seus homens e lhe transmitiria a decisão.
François ordenou que fossem explorados uns dez quilômetros em torno da aldeia, para se assegurar
que o chefe não mentira a respeito dos vietcongues. Ao fim de quarenta e oito horas todos os
exploradores estavam de volta: só haviam encontrado animais, que fugiam à aproximação.
Aceitaram a proposta do chefe da aldeia e deixaram Minh Luo'ng numa manhã fria e de nevoeiro.
Chegaram sem problemas ao rio Rouge. Bao Ha ficava situada na outra margem; para atingi-la, era
preciso pegar uma barcaça que fazia o transporte de maneira irregular, de acordo com o número de
viajantes carregados de embrulhos que esperavam, agachados na beira do rio. A julgar pela maneira
como estavam, alguns aguardavam havia muitos dias. Como sempre na Ásia,
mulheres vendiam sopa preparada por elas próprias. François e sua tropa aproveitaram a comida de
três matronas, que riam com todos os seus dentes laqueados diante da voracidade dos estrangeiros.
Ao fim de três dias, a barcaça vinda de Bao Ha chegou numa nuvem de fumaça muito malcheirosa.
O excesso de carga era tal que todos os passageiros tinham água até a canela. O desembarque foi
feito em meio a uma confusão indescritível; velhos e crianças caíam na água, diante da indiferença
geral. François pescou uma menininha cuja irmã, um pouco mais velha, a acomodou no quadril sem
sequer dar um olhar de agradecimento.
Kien e seus homens se aproximaram do dono da barcaça:
- Dua chúng tôi sang bên kia ngay bây già, anh lây bao nhiêu?
- Tôi không di duoc, phai doi máy nguoi.
- Bao nhiêu, nêu không là mây chêt! - gritou Kien, sacando sua pistola.
- Nhung thua ông, chúng ta se bi pan o giua sông!
- Se không bi pan. Dây là muài ngàn dông.*
*_ Quanto custa levar-nos para o outro lado, agora?
- Não posso, o motor precisa esfriar.
- Quanto, ou você morre!
- Mas, senhor, vamos enguiçar no meio do rio!
- Não vamos enguiçar. Eis dez mil piastras.
Os viajantes, que haviam reunido a bagagem, apressaram-se a subir na barcaça.
- Duôi ho di!
- Expulse-os!
- ordenou Kien.
A coronhadas e socos, os passageiros foram postos para fora. Uns dez deles, entre os mais fortes e
os mais ágeis, conseguiram entretanto subir a bordo. A um gesto de Kien, os méos os mataram e
jogaram os corpos na água. Lefèvre e Tavernier não fizeram nenhum comentário. Com muitos
problemas, e uma fumaça acre e negra, a barcaça conseguiu deixar a margem e chegar, com
lentidão insuportável, ao meio do rio. Depois de uns vinte minutos, a outra margem se aproximava.
- Deitem-se! -- gritou Thévenet.
Uma rajada de metralhadora fez voar pedaços de madeira.
- Bon Viêt-Minh, chúng se dánh dâm chúng ta!
*_ São os vietcongues, vão nos afundar!
- guinchou o condutor.
- Di xuôi dông sông!
- Desça o rio!
- ordenou Kien, batendo-lhe no rosto com o cano da pistola.
A correnteza aumentou, e logo a embarcação deslizou entre dois muros de calcário.
- Pergunte a ele se há lugar onde atracar! - gritou François.
Kien traduziu.
- Sim, em Lang Phat. Isso não nos serve, é na margem que acabamos de deixar. Um pouco mais longe, há
Lang Na mas, lá também existem vietcongues.
- Diga-lhe que não nos importamos, que é para lá que vamos.
Já era quase noite quando avistaram as luzes fracas de Lang Na. O piloto se aproximou da margem tanto
quanto possível, mas, em volta da ponte destruída, os redemoinhos impediam a atracação. Kien arrancou as
roupas, com que fez um embrulho. Amarrou-o em volta do pescoço com a metralhadora, ficando apenas com
um cinto, no qual estava o punhal. Enrolou uma corda em torno do tronco e pediu aos guarda-costas que
segurassem a ponta. Tendo feito um sinal com a mão na direção de François, pulou n'água. Um redemoinho o
pegou; ele reapareceu na superfície a uns dez metros da embarcação. Apesar da força da correnteza, ele
conseguiu se afastar algumas braçadas.
- Ajudem-nos - gritou Fred.
François e Thévenet seguraram a corda, deixando-a estender-se devagar. Após um tempo que lhes pareceu
interminável, ela esticou de uma só vez. Eles a amarraram na cabine do piloto, ordenando-lhe manter o motor
contra a correnteza.
- Todos nus! - ordenou Thevenet.
François, o primeiro, escorregou ao longo da corda estendida sobre os redemoinhos.
- Pule! - gritou Kien.
Ele caiu na lama, que amorteceu a queda. Foi preciso perto de uma hora para que todos pudessem atingir a
margem.
François interceptou um rápido olhar de interrogação lançado para Kien pelo último a passar. Era um dos
cortadores de cabeças, que concordou com um largo sorriso: ele ocupara-se do barqueiro.
Apesar de sua repugnância, François teve de concordar que não havia outra solução para manter por algum
tempo em segredo a missão.
A noite estava muito fria; não havia possibilidade de acender fogo para secar as roupas.
- Besuntem-se de lama, senão serão devorados pelos mosquitos e outros insetos - recomendou Kien. - Vamos
seguir o que resta da estrada de ferro; é a linha Viêt Tri-Lao Cai.
A lua aparecera, e, se alguém visse passar, caminhando pelos pequenos diques, aquela coluna de estátuas de
argila, não deixaria de fugir em silencio, convencido de ter visto gênios do mal ou almas do outro mundo.
Eles contornaram sem dificuldade a aldeia de Bao Ha. O amanhecer os surpreendeu perto de um riacho, em
que se lavaram. Comeram um pouco de arroz grudento e beberam chá frio. Lefèvre e dois méos foram os
primeiros a ficar de guarda, enquanto os companheiros dormiam. Partiram novamente de noite, subindo de
novo o riacho que serpenteava através dos arrozais. Logo, as culturas deram lugar a um estreito pedaço de
terra pantanosa. Um dos méos voltou e cochichou algo com Kien. Este parou.
- Segundo Tho, não estamos longe de Nghia Dô.
- É uma das duas aldeias citadas por Giau - disse François.
- Nesse caso, estamos em pleno território vietcongue. É imprescindível encontrar um lugar onde nos
escondamos e enviar os méos para fazer um reconhecimento - interveio François.
- Ah, bom, não tinha pensado nisso - disse Thévenet em
tom irônico. -Até agora tivemos muita sorte... Isso não me agrada! Se querem um conselho,
rapazes, isso não vai durar muito. Os vietcongues são muito astutos, já sabem que estamos aqui.
- Mais um motivo para enviar os méos - repetiu Fred. Mais uma vez, encontraram abrigo numa
caverna, onde passaram três dias, saindo um de cada vez para explorar a região. Os méos foram
caçar, dois a dois, com a ajuda das zarabatanas ou das lanças. Nunca voltaram sem trazer alguma
coisa. A região, extremamente selvagem, parecia desabitada. Uma vez, François e Thévenet quase
foram surpreendidos por uma patrulha de vietcongues visivelmente cansados. Quando voltaram,
Kien queixou-se:
- Vocês deviam ter feito um prisioneiro, nós o teríamos feito falar!
- Pensamos nisso, mas, embora exaustos, eles estavam atentos e eram muito numerosos.
- Vou seguir suas pegadas. Elas nos conduzirão ao seu acampamento. Fred, Vinh! Mây dúa kia, di
theo luôn
*_ Venham vocês também.
- acrescentou ele na direção dos homens de Deo Van Long.
Thévenet e Tavernier escorregaram para o interior da caverna. Boutin cozinhou uma espécie de
cabrito montês numa carapaça de argila para evitar a fumaça e o cheiro. Maréchal lia à luz de uma
fenda entre duas rochas.
- O que está lendo? - perguntou François, acendendo um cigarro.
O legionário virou a capa em sua direção. Era escrito em ciriico.
- Pouchkine?
- Sim.
- Você é russo?
- O que você tem a ver com isso?
- Nada, apenas queria saber.
Maréchal retomou a leitura. Boutin se aproximou de Tavernier.
- Ele não gosta quando lhe fazem esse tipo de pergunta. Certamente é russo. Russo branco, mesmo!
Uma noite em que estava embriagado ele me disse que entrou para a Legião aos dezoito anos
porque a mãe não quisera que ele se naturalizasse francês. Fugiu de casa e adotou o primeiro nome
que lhe veio à cabeça: Maréchal, porque ele era interrogado por um segundo sargento.
Boutin abaixou mais a voz:
- Acho mesmo que seja príncipe, ou algo assim. Em seu bolso há uma tabaqueira, eu seria capaz de
jurar que é de ouro; na tampa há uma coroa gravada.
Kien e seus homens voltaram sem ter encontrado pista dos vietcongues.
- Vamos deixar a picada que margeia o rio e nos separar em dois grupos. Kien e Maréchal, levem os
homens que acharem necessário - ordenou François.
Kien escolheu quatro cortadores de cabeças, um méo, Chau, do comando Vandenberghe, e seus
próprios guarda-costas.
- Estamos na região dos montanheses mans. Nos vales estão os thaís brancos, que dominam há
séculos, mas há também méos, chineses e alguns nongs. A maior parte não compreende o
vietnamita, utilizam uma espécie de dialeto thaí. Você veio a Pho Lu e a Lao Cai com meu pai
quando era criança? - perguntou Kien a François.
- Sim, tomamos o trem com Hai. Seu pai tinha um encontro em Lao Cai com o compradore* de
um negociante de seda chinês.
- Não é hora de contar suas recordações de infância! - resmungou Thévenet. - No momento estamos
na merda, num país de merda.
- Você está errado, é um país muito bonito - protestou Maréchal, com ar sonso.
- Não se trata apenas de lembranças de infância, mas de fazer vocês compreenderem que, a menos que
conheçam um pouco os hábitos dos moradores desta região, nunca saberão se têm pela frente um amigo ou
um inimigo.
- O melhor é considerar a todos inimigos - observou Thévenet. - É mais seguro. Para mim esses caras-de-limão
são todos iguais.
- Pode-se ver a coisa dessa maneira - comentou Kien em tom frio e ajustando o armamento.
- Mosquitos safados! - exclamou Maréchal, dando tapas no rosto. Depois, dirigindo-se a Thévenet: - Você
deveria prestar atenção no que diz, tenho a impressão de que Kien não gosta da sua maneira de falar dos
compatriotas dele.
- Que se dane. Além do mais, não gosto desse cara. Não me inspira confiança. Não gosto dos mestiços. Dou-
lhe um conselho, faça o que quiser com ele: fique de olho nesse sujeito.
O grupo compreendendo François, Thévenet, Maréchal, Tho, Diem e três cortadores de cabeças partiu
primeiro, quando a noite caiu, depois de besuntar o rosto de fuligem e lama. O mais velho dos cortadores de
cabeças os guiava, escalando as rochas com agilidade surpreendente. Ele caminhava em boa velocidade,
aparentando ar de quem sabia bem onde ia. Depois de seis horas de marcha, François deu ordem para
descansar. Thévenet jogou-se no chão, gemendo.
- Safado, ele quer nos matar, esse macaco!... - exclamou, pondo um cigarro na boca.
- Infeliz, quer que sejamos localizados! - disse Maréchal secamente.
- Merda, eu tinha esquecido. Desculpe velho... Em todo o caso vou tomar um trago.
- Não há tempo, é preciso continuar. O velho descobriu um acampamento vietcongue a aproximadamente
duzentos metros, a leste de Nghia Dô. Nós vamos para oeste.
Eles seguiram os dormentes de uma estrada de ferro invadida por plantas cortantes e cheias de espinhos, e
pararam na entrada de um túnel parcialmente desmoronado. Thévenet, seguido por Tho e Diem, afastou os cipós que
obstruíam a abertura e avançou com as costas roçando a parede. Uma umidade gelada os envolveu. Por toda a
parte se sentia o odor de húmus e de seiva, e mais forte ainda o do carvão. Grossas gotas d'água caíam do teto
fazendo "ploes" que ressoavam demoradamente. O túnel tinha apenas uns trinta metros; a saída estava quase
inteiramente fechada por um bloco de pedra. Entretanto, um homem poderia se esgueirar entre a rocha e o
revestimento. A um sinal de Thévenet, Diem passou. Voltou depois de uns dez minutos:
- Não há nada, chefe. O lugar parece tranqüilo.
- Vá procurar os outros.
Ele acendeu uma lanterna elétrica. Gordos morcegos voaram guinchando. Vagonetes virados estavam
enferrujados. O local servira de abrigo: aos vietcongues ou aos montanheses?
- Acho que vamos poder ficar aqui - disse Thévenet a François, que chegava.
- Você foi ver o que há do outro lado?
- Sim, é tudo igual.
- Bem, coloque sentinelas em cada ponta.
À exceção de François e dos dois homens acocorados na entrada e na saída do túnel, todos dormiam,
cansados.
François, com a nuca apoiada na roda de um vagonete, fumava na escuridão, invadido por um desespero
profundo. Por sua culpa a mulher que ele amava estava em perigo. Ele não ousava pensar além. Todas as
fibras do corpo se contraíam violentamente diante da idéia de que ela estivesse... Seu sofrimento era tal que
ele deixou escapar um gemido. Em seu canto, Maréchal se ergueu.
- O que houve?
- Nada, volte a dormir.
Apesar de tudo, ele adormeceu, pois, quando reabriu os olhos, já era dia. Diem lhe trouxe chá quente. Ele foi
se encontrar com Thévenet, que, com a ajuda de binóculos, tentava furar as nuvens de cerração agarradas às
árvores.
- Não o inquieta o desaparecimento do monstro? - perguntou à queima-roupa o legionário.
- Não, na verdade, não. Na minha opinião, deve ter tentado atingir uma das aldeias. É mais fácil para ele
passar despercebido.
- Com a figura ridícula que tem, isso parece difícil... - riu- se Thévenet. - Veja, parece que está melhorando um
pouco.
- Passe-me os binóculos.
A perder de vista, só existiam rochas e emaranhados de árvores. Nenhum sinal de vida humana; ouvia-se
apenas o grito dos macacos e o canto dos pássaros. Um deles se elevou, magnífico, com as penas de cores
vivas brilhando ao sol nascente. Era como um desafio dessa natureza selvagem e forte.
François decidiu fazer um reconhecimento, e levou consigo dois méos. Andar sobre o que restava da via
férrea ficou cada vez mais difícil. Logo a floresta se fechou sobre eles, que continuaram abrindo caminho com
a ajuda dos facões. Depois os trilhos reapareceram de repente: o terreno subia, a vegetação se tornava rara.
Chegaram a um ponto alto seguindo a estrada. Reinava estranho silêncio. Tinha-se a impressão de estar no
teto do mundo. Os próprios méos pareciam impressionados. Um deles fez sinal a François de que era preciso
voltar atrás. François concordou de má vontade. Teria preferido ficar lá, à espera. De quê?... Não sabia.
Esperar, apenas.
Voltaram pelo mesmo caminho. Um dos méos matou uma espécie de antílope.
- Então? - perguntou Thévenet.
- Nada. O caminho vai até um cume. Acho que continuando, se deve chegar à fronteira chinesa. Os méos me
pareceram inquietos.
- Que droga! - exclamou Maréchal. - Diem, pergunte o que eles viram lá em cima.
Os dois homens discutiram longamente, fazendo grandes gestos. Diem voltou para junto de François e
Maréchal.
- O que há?
- Você vai achar graça, chefe.
- Desembucha, por favor.
- Eles dizem que lá em cima existem maus espíritos.
- Maus espíritos?... Você não acredita nessas bobagens, não
é mesmo?
- Não... chefe. A hesitação era perceptível.
- Eles compreendem um pouco de vietnamita. Explique- lhes que maus espíritos são coisa sem importância -
disse Maréchal.
- Não vai adiantar; os maus espíritos dos méos não são os mesmos dos vietnamitas. Se nos obstinarmos a
continuar nessa direção, pode-se esperar que vão fugir.
- O que sugerem?
Antes de responder, François consultou a bússola.
- Estamos a leste de Nghia Dô. Vai ser preciso descer novamente para oeste, através da floresta.
- Péssimo programa!
- Não vejo outro!
Kien e Boutin avistaram Nghia Dô dois dias depois de deixar Tavernier. A aldeia parecia calma; nada
revelava algum traço de vietcongues. Um grupo de mulheres deixou a aldeia levando nos ombros paus
recurvos com cestos nas pontas, os quais estavam vazios, exceto os que continham dois bebês. Suas roupas
eram as dos thaís brancos. Elas passaram diante da pequena tropa escondida no mato, rindo e conversando.
- Chau e Vinh, deixem as armas, levem só os punhais. Entrem na aldeia dizendo que faziam parte de um
comboio que foi atacado pelos vietcongues estão sem comer há três dias e precisam hospedar-se - ordenou
Kien em vietnamita. - Procurem fazê-los contar alguma coisa. Um de vocês volte de noite para me dar
informações.
Os dois homens limparam os traços de fuligem do rosto, deixaram as armas e se arrastaram até a entrada da
aldeia. Caminharam alguns instantes na rua principal sem que ninguém desse atenção. Pouca gente diante das
casas, além dos velhos e de
crianças nuas brincando na poeira. Os moradores válidos deviam estar nos arrozais ou nas montanhas. Numa
tábua pintada de azul desbotado estava gravado em letras mal escritas a palavra "Restaurante". Três caixas
faziam as vezes de mesas; banquinhos baixos as rodeavam. Eles sentaram, dando longos suspiros. Uma
mulher que trazia um bebê lhes serviu chá. Eles pediram duas tigelas de sopa. O pai ou marido da mulher
chegou à soleira da porta fumando um longo cachimbo de barro. Como única roupa, vestia uma espécie de
tanga imunda e um capacete colonial outrora branco. Vinh lhe contou sua história, enquanto o outro fazia
pequenos anéis de fumaça, escutando-o de olhos semicerrados.
- Anh là nguài Saigon*
- Você é de Saigon.
- disse ele a Vinh.
Era tão afirmativo, que seria inábil discordar dele.
- Os vietcongues só passaram por nossa aldeia - continuou ele em francês: - requisitaram nossos estoques.
- Ouviu dizer que havia uma branca entre eles? - perguntou Vinh na mesma língua.
- Não. Uma branca que fazia parte de seu comboio teria sido levada?... Não, não ouvi nada disso. Mas posso
me informar.
- Vamos voltar para nossos companheiros, que estão mais fracos que nós. Podemos passar a noite na aldeia?
- Minha mulher é a filha do chefe; vou falar com ela sobre isso. Mas não deve haver problema. Vão então
buscar os outros.
O chefe era um homem idoso desdentado, de barbicha e turbante, que vestia uma tanga amarrada entre as
pernas magras e arqueadas. Kien o saudou respeitosamente, com as mãos postas, dirigindo-lhe algumas
palavras em vietnamita.
- Não se canse, o velho só compreende seu dialeto selvagem, e além disso é surdo - disse o genro. - O que
vocês vieram fazer aqui? Se é pelo ópio, é tarde demais, nossa produção já foi vendida. Custo-me acreditar no
que contou seu companheiro: vocês procuram uma mulher?... Nenhuma mulher vale tanto trabalho!
- O senhor tem razão, mas há uma boa recompensa por ela.
- Agora compreendo. Venha tomar uma bebida, não muito gelada, infelizmente.
- Você ouviu falar de alguma coisa? - insistiu Kien.
- Não, efetivamente...
- Fale, será pago.
- Um grupo grande de vietcongues teria permanecido nas cavernas do lado de Niou Sang...
- Mas é ao norte da aldeia?
- E. Já não estão lá.
- Quantos eram?
- Falaram de muitas centenas. Não acredito. Uma centena no máximo, e ainda... Um número tão grande não
pode passar despercebido nestas regiões desertas.
- Garantiram-nos que estavam aqui ou em Koun Hia. Mas pouco importa: a mulher, uma branca, ouviu falar
dela?
- Comerciantes chineses vindos de Ha Giang falaram de grandes reuniões de vietcongues na fronteira do Laos.
- Você está me gozando! - exclamou Kien, agarrando o aldeão. - É o diabo!
- Sim, eu sei, mas todo o estado-maior estaria lá, e o próprio Hô Chin Minh, seguramente. Seu médico, Pham
Ngoc Thach, ensinava os médicos jovens. Os comerciantes chineses disseram que uma branca era tratada por
ele.
Boutin, que não dissera palavra, levantou-se e deu alguns passos diante do "restaurante".
- O que acha disso? - perguntou-lhe Kien.
O legionário retornou.
- Isso não me agrada. Esperemos Tavernier. Ele é que deve decidir se vamos para o norte, jogar-nos na boca
do lobo. Alguma coisa me preocupa: como é possível que num país infestado de vietcongues não tenhamos
sido atacados?
- É a sorte, companheiro, é a sorte! - exclamou Fred, um tanto embriagado.
- Sorte... não acredito nisso - resmungou Boutin, retomando a caminhada.
Kien empurrou o taberneiro para dentro da cabana.
li
$
- Você é mestiço, como eu, e sabe que os brancos e os vietnamitas nos desprezam. Há muito
dinheiro para você se fizer o que digo.
- Espere, para falar de negócios, tenho uma velha garrafa de conhaque, que bebo nas grandes
ocasiões. Estou com a impressão que esta é uma delas.
Tirou de baixo do balcão de tábuas mal aparadas uma garrafa empoeirada e dois copos, que limpou
com uma ponta da tanga. Despejou o líquido perfumado até quase transbordar.
- De um só trago!
Esvaziaram os copos. O homem encheu novamente.
- Você disse que havia muito dinheiro para ganhar... fazendo o quê?
- Hoje ou amanhã, outro grupo vai chegar. É composto de três franceses e nativos. Seu chefe se
chama Tavernier. Você lhe dirá que passamos por aqui e fomos para Niou Sang.
- É para lá que querem ir?
- Não se faça de idiota. Vamos para Ha Giang.
- Por que quer mandá-lo na direção errada?
- Isso não é da sua conta. Aceita? Sim ou não?... Atenção, se aceitar, não me traia, senão o mato, a
você e toda a sua família.
- Mostre o dinheiro.
De um saco de couro do qual nunca se separava, Kien tirou um maço de notas. Os olhos do
interlocutor pareciam a ponto de saltar das órbitas. Nunca vira tanto dinheiro.
- O que tem essa mulher para valer tanto dinheiro? - perguntou ele, estendendo a mão.
Kien tirou a sua. -
- Mais devagar. É preciso que sua mulher e o chefe se calem. Como vai fazer?
- Não se aflija. Vou trancar o velho e bater na minha mulher para que se cale.
- Perfeito. Há outra coisa...
- O que mais?
- Viu o branco que está conosco? Ele não deve nos seguir.
- O que quer que eu faça?
O gesto de Kien era explícito.
- Matar um branco? Está maluco!
- O que é que há? Quer me fazer acreditar que nunca matou ninguém? Ninguém se enterra num
lugar desses sem motivo muito forte...
- Cale-se! - exclamou o outro, olhando em volta.
- Adivinhei! Até a polícia está atrás de você?
O homem transpirava abundantemente, estava lívido.
- Foi há muito tempo.
- E então, acha que esqueceram? Os policiais nunca esquecem. Foi há quanto tempo?
Acabrunhado, sem reação, o aldeão respondeu:
- Quatro anos.
- Não faz tanto tempo, com certeza ainda se lembram Onde foi?
- Em Lang Son, um funcionário.
- Um funcionário! Ah, meu pobre velho! Você é bom... Espere, isso me lembra uma coisa... Você o
matou a facadas depois de ter atirado nele de emboscada?... Mas você se arrisca a uma guilhotina!
- Cale-se!
- Não se arrisca a mais nada matando outro. Sem contar que vai ganhar uma grana, o que lhe
permitirá deixar esse buraco podre. Tome, eu lhe dou um maço mais. Mas atenção: quero um
trabalho bem-feito. Sem vestígios!
- De acordo.
O dinheiro pareceu dar-lhe novamente segurança.
- Será feito corretamente. Vou colocar alguma coisa, para matá-lo, na cerveja; assim, você poderá
partir sem que ninguém desconfie.
- É uma boa idéia, mas depois você "cuida" dele. Sem brincadeiras!
- Entendido, chefe.
- Qual é seu nome?
- Vai achar graça...
- Diga logo!
- Dieudonné.
Kien ainda ria quando chamou Fred e Vinh à parte e os mandou para a saída da aldeia.
- Não creio que Tavernier chegue logo, mas, se isso acontecer, impeça-o de entrar, dizendo a ele que os
vietcongues ocupam o povoado. Vou embora. Vou procurar os outros.
Ele voltou e sentou num dos banquinhos.
- Dieudonné, sirva-nos cerveja e comida. Sente-se Boutin, um prato quente nos fará bem.
- Aonde você mandou Fred e Vinh?
- Estão de guarda na entrada da aldeia. Pensei que assim seria mais prudente.
- Está certo - disse Boutin, sentando-se.
O mestiço trouxe as bebidas enquanto a mulher punha diante deles uma iguaria apetitosa.
- É porco laqueado, depois me digam se gostaram - disse o taberneiro.
Comeram em silêncio.
- A sua saúde! - disse Kien, levando o gargalo da garrafa à boca.
Boutin levantou a sua e bebeu.
- Conhece Tavernier há muito tempo? - perguntou ele.
- Desde criança. Meu pai e o dele trabalhavam juntos. Ele é amigo principalmente do meu irmão mais velho.
Por que me pergunta isso?
- Por nada. Por causa de Pouchkine, talvez...
- Pouchkine?
- O poeta russo que Maréchal estava lendo.
Ele bebeu um grande gole de cerveja. Kien lançou um olhar de interrogação em direção a Dieudonné. "Tudo
certo", disse este piscando os olhos.
- Quando pensa que Tavernier deve chegar? - perguntou o legionário.
- Não antes da noite. Amanhã de manhã, no mais tardar.
- Isso não me agrada - disse ele, terminando a cerveja. A garrafa lhe escapou das mãos. Quis se levantar, mas
as pernas bambearam. Ele caiu no chão.
- Nhanh lên, chúng ta di diêp!
- Aprecen-se, vamos partir de novo.
- disse Kien aos companheiros.
Depois, dirigindo-se a Dieudonné:
- Sabe o que falta fazer?
O méo, o vietnamita e os cortadores de cabeças obedeceram, sem parecer admirados de ver o corpo
inanimado de Boutin. Isso não era da conta deles: era um branco.

Capítulo 18

No túnel, com o corpo e a alma gelados, Tavernier e os companheiros aguardavam o fim de um
ciclone. O vento diminuía com a escuridão. Ao amanhecer, Thévenet acordou para urinar. Pareceu-
lhe que alguma coisa mudara durante a noite. Tateando, dirigiu-se para a saída do túnel, guiado pela
vaga luz do início do dia. Nem sombra da sentinela que estava ali desde a véspera. Ele chamou em
voz baixa:
- Diem?... Tho?...
Só se ouvia a chuva caindo. Thévenet voltou atrás e sacudiu François e Maréchal.
- Acordem, uma das sentinelas desapareceu.
Eles se ergueram num pulo e pegaram as armas.
- Thévenet e Maréchal, vão para a entrada: eu volto para a saída.
Nem de um lado nem do outro encontraram os homens deixados vigiando: Tho, Diem e os
cortadores de cabeças tinham desaparecido, levando armas e víveres. O que mais os admirava era
estarem os três ainda vivos.
- Não compreendo por que esses filhos da puta não nos degolaram! - exclamou Thévenet.
- Certamente é por causa dos espíritos - respondeu Tavernier.
- Espíritos?.., O que quer dizer? - perguntou Maréchal.
- Tiveram medo de que, se nos matassem neste lugar aparentemente sagrado, nossos espíritos não se
transformassem em almas errantes e os perseguissem não somente enquanto vivos, mas também
depois de mortos. E disso têm muito medo!
- Acredita nessas bobagens? - perguntou Thévenet.
- Eu não; mas eles acreditam! Vejamos o que nos deixaram.
O inventário foi feito rapidamente: cada um tinha uma metralhadora, uma pistola, três granadas e
punhais. Quanto aos víveres, não restou nem uma migalha.
- Que safados, estamos em maus lençóis! - exclamou François, rindo. - Mas não façam essa cara,
estamos vivos!
Thévenet lhe lançou um olhar sombrio, e Maréchal deu um sorriso velhaco.
- O que vamos fazer agora? - perguntou ele.
- Devemos nos juntar de novo a Kien e Boutin em Nghia Dô. Já não temos guia nem comida. Não
podemos seguir sempre na mesma direção, acabaríamos chegando à China! - observou Thévenet.
- Tem razão, não temos escolha - disse François, dando o sinal de partida.
Eles voltaram, no sentido inverso, pelo caminho penosamente percorrido, enganando a fome
quando podiam acender um cigarro escondidos por um rochedo. Felizmente, água não lhes faltaria,
dissera, sarcástico, Maréchal bebendo no chapéu de feltro. Com toda aquela chuva, nem sonhar em
fazer funcionar o rádio. A última vez que conseguiram um contato, tinha sido antes da travessia do
rio Rouge; desde então, nada.
Quando chegaram a Nghia Dô, o "restaurante" já fechara as portas e os habitantes estavam
trancados nas choças. Depois de muita lengalenga por meio de mímica e gestos, François conseguiu
arroz e chá. Requisitaram uma cabana e tentaram, diante de um fogo fraco, aquecer-se novamente e
secar as roupas. Montaram guarda, cada um por sua vez. No dia seguinte, o tempo
melhorou, o que fez os moradores saírem das tocas. Thévenet aproveitou para "fazer compras". Tavernier e
Maréchal não lhe perguntaram como encontrara comida. Comeram com muito apetite, sem remorsos.
Depois da refeição, Maréchal decidiu barbear-se e aconselhou os companheiros a fazer o mesmo.
- Com esta barba e esta sujeira, parecemos bandidos.
- Em seu lugar, eu não mudaria nada - disse Thévenet.
- É melhor meter medo nesses caras de limão!
- Você é quem sabe.
Uma hora mais tarde, os três homens tinham recuperado a pele de recém-nascidos; ou quase...
- Você estava com a razão, isso muda um homem - suspirou Thévenet.
Depois de muitas manipulações, Maréchal conseguiu ligar o rádio.
- Merda... está confuso...
- Essas porcarias nunca funcionam.
- "Aguia de prata" chamando "Aguia negra", fale...
Ele esperou um momento e repetiu a mensagem:
- "Aguia de prata" chamando "Aguia negra", fale...
- Quem foi o idiota que escolheu esses nomes de araque?
- resmungou Thévenet.
- Fui eu...
Como resposta final, só obtiveram uma série de estalidos, e por fim um barulho de bomba molhada.
- Sua máquina morreu - disse Thévenet.
François havia se retirado da aldeia para refletir. Em pleno território controlado pelos vietcongues, e sem
notícias de Kien, a situação deles era das piores. Os aldeões aparentemente não tinham compreendido suas
perguntas ou não tinham querido responder- lhes. De qualquer maneira, não poderiam ficar eternamente em
Nghia Dô.
Duas velhas passaram andando rápido, levando cestos empilhados uns sobre os outros. Como estavam
conversando, não o
viram. Elas saíram do atalho e entraram no bosque. Pouco depois, voltaram de mãos vazias. François esperou
que se afastassem para entrar, por sua vez, no mato. Depois de alguns passos, parou, sentindo o cheiro do
nuoc-mâm. Mais alguns passos, e viu, agachado na entrada de uma gruta, um homem comendo uma tigela de
arroz; vestia um hábito cor de açafrão, de monge budista. Um galho se quebrou sob o pé de Tavernier.
- Quem está aí?... São vocês, minhas irmãs? - perguntou o monge num dialeto desconhecido de François.
Sempre falando, ele se virou; no rosto sem nariz nem lábios, semelhantes a uma máscara de couro cozido,
apenas os olhos rodeados de vermelho brilhavam, vivos. Um leproso.
- Não, sou estrangeiro - disse François em vietnamita.
O leproso largou a tigela e escondeu o rosto atrás da bainha do hábito.
- Anh Khôngphai là ngúoi viêt nam - disse ele através do tecido.
- Tôi là ngàoi Pháp.
- Là lính à?
- Không. Tôi di tm vo.
- Nhiêu ngisoi da dên làng; ho cung tm môt ngàoi dàn bà... Dàng dên gân!*
*_ você não é vietnamita.
- Sou francês.
- Soldado?
- Não. Procuro minha mulher.
- Alguns homens estiveram na aldeia; também procuravam uma mulher... Não se
aproxime!
- Você fala francês?
- Um pouco. Aprendi em Hanói, com os padres.
- Sabe o que aconteceu a esses homens?
- Partiram.
- Para onde?
- Não sei de nada, e os moradores também não, senão as velhas me teriam dito, elas não sabem calar.
- Sabe se ainda existem postos ocupados por franceses?
O bonzo estourou de rir. A juventude do riso era surpreendente.
- Poderá encontrar alguns brancos em Lao Cai. Mas estão na região há tanto tempo que se tornaram mais
chineses que os da China. É preciso ir até Laï Chau para encontrar soldados franceses; Laï Chau é o único
lugar que eles ainda controlam... mas não por muito tempo, sem dúvida.
- Como se chega a Lai Chau?
- Entre Lao Cai a Laï Chau há em torno de cem quilômetros, em linha reta. Há que atravessar numerosas
montanhas para chegar.
A partir de certo momento o monge começou a falar com o rosto descoberto. Ele serviu-se de um pouco de
chá e bebeu.
- Não teria um pouco para mim? - perguntou François.
O bonzo o fitou longamente com os olhos sanguinolentos e, sem parar de observá-lo, limpou em sua roupa o
recipiente em que bebera, encheu-o novamente de chá e estendeu-lhe. François agradeceu com a cabeça e
esvaziou a taça de uma só vez.
- Não lhe inspiro repugnância?
- A lepra não é contagiosa, e já vi coisa pior que a sua doença. Quer um cigarro?
Eles fumaram alguns instantes em silêncio.
- Posso conduzi-lo, se quiser. Eu fui monge num mosteiro em Phong Tô. Com meus irmãos, íamos mendigar
em Laï Chau.
- Você dizia que os vietcongues controlam tudo.
- Quase tudo, mas muitas aldeias não reconhecem a autoridade deles; eles obedecem aos chefes de sempre ou
aos padres e respeitam muito os monges... Pelo menos enquanto não vêem que são leprosos.
- O que fazem então?
- Expulsam-nos ou abandonam-nos, como aqui, na orla dos bosques, onde as mulheres nos trazem um pouco
de comida.
- Por que faria isso por mim? Pode ser perigoso.
- Nós bebemos juntos.
- Não estou sozinho, tenho dois companheiros comigo.
- Confio em você. Junte os alimentos e roupas e me encontre em dois dias, depois da vinda das velhas.
Quarenta e oito horas depois Maréchal, Thévenet, Tavernier e o monge Nhon deixaram Nghia Dô. Depois de
cinco dias difíceis, chegaram a Lao Cai, na confluência dos rios Nam Thi e Rouge, na qual coabitavam
populações com línguas e costumes os mais diversos: thaís brancos, méos, yaos, anamitas, chineses se
misturavam nessa cidade fronteiriça, tanto na vila tonquinesa de Cô Lêu, na margem direita do rio, quanto no
bairro yunanês de Ho H'eou, que margeava o rio Nam Thi. Era contudo difícil para eles passar despercebidos,
não só por sua estatura, muito mais alta que a média, como por seu trajar ridículo: uniformes militares cáqui,
túnicas acolchoadas thaís, equipamentos de mateiros, fuzis-metralhadoras a tiracolo. Sujos, barbados, estavam
com cara patibular. A multidão se afastava à sua passagem, sem manifestar curiosidade particular; já vira
coisas mais extraordinárias.
Em Lao Cai alguns europeus tinham se estabelecido, a maior parte desertores ou encongaïés, * como se
dizia. Quase todos viviam de tráficos, mais ou menos lucrativos: ópio, piastras, prostituição. Outros ainda
eram gerentes de bares. Foi num desses que os três franceses entraram, tendo o guia preferido esperá-los do
lado de fora.
Uma espécie de gigante ruivo pôs na mesa pegajosa quatro garrafas de cerveja chinesa, sem dizer uma só
palavra. Thévenet pegou uma garrafa e abriu-a com o polegar. Uma espuma branca escorreu-lhe ao longo dos
dedos e do queixo. O ruivo, com uma camiseta imunda, metade de um cigarro nos lábios, os braços cruzados
sobre a enorme barriga, observava-os beber com ar de desagrado. Os três homens fingiam que o viam.
- De onde vocês vêm? - acabou ele por perguntar com forte acento alsaciano, gritando para superar o barulho.
Thévenet fez um sinal dúbio, que tanto poderia significar
"daqui" como "de fora". O outro deu um soco na mesa com o punho enorme. As garrafas vazias balançaram.
- Quando faço uma pergunta, quero que me respondam! - gritou.
- Então, pergunte com delicadeza! - vociferou por sua vez Maréchal, em alemão.
Um largo sorriso iluminou a carranca do bêbado.
- Ich wusse es ia. Ihr seid Legionãre? Deserteure? Stimmt's! Hier kommt euch niemand
holen* - disse ele, sentando-se e fazendo sinal para uma das três empregadas chinesas de que trouxesse
bebida.
- Queremos ir para Laï Chau - disse Thévenet.
- O quê?
- Para Laï Chau!
- Para Laï Chau?... Querem se jogar na boca do lobo! Lá ninguém gosta de gente como nós.
- Não estamos pedindo que gostem - retrucou Maréchal.
- Precisamos ir lá. Pode nos ajudar?
O gigante coçou a cabeça, com ar de dúvida.
- Seria possível... Tudo depende de quanto vocês tenham. É perigoso por lá.
- Quanto? - perguntou Tavernier, que ainda não dissera nada.
- Será preciso pagar muita gente...
- Isso é bastante? - disse François colocando na mesa um diamante de tamanho respeitável e de maravilhosa
pureza.
Thévenet, Maréchal e o dono do bar assobiaram de admiração ao mesmo tempo.
- De onde tirou isso?! - exclamou Thévenet, apanhando a pedra.
- Uma herança de família - disse François, lacônico, retomando-a e colocando-a na na palma da mão estendida
do gigante.
- Eu tinha certeza. Vocês são legionários? Desertores? Admitam! Aqui ninguém virá
procurá-los.
- Não é grande coisa, É difícil de vender - resmungou o dono do bar, examinando-a atentamente.
- Então passe-a para cá. Vou procurar um comprador.
- Não seja bobo, não se deve tratar com esses homens, eles são muito "malandros" para nós.
- E o monge? - perguntou Maréchal em voz baixa. - O que vamos fazer com o monge?
- Deixa que eu trato disso. O que propõe? - perguntou Tavernier, estendendo a mão para o alsaciano.
Com pesar, este devolveu a pedra.
- Vou precisar de dois dias para reunir os guias que os levarão a Laï Chau. Repito: vocês não devem
ir lá...
- Isso é conosco - interrompeu-o Thévenet.
- O que eu quis dizer com isso... E problema seu, rapazes.
- E isso aí, é problema nosso. Agora, por esse preço talvez você pudesse nos arranjar também umas
garotas...
O ruivo deu uma gargalhada que superou o barulho do bar.
- Bem lembrado, tenho as melhores garotas do lugar; algumas vindas de Saigon, outras do Camboja
ou do Laos...
- Você não teria uma de Paris ou Marselha? Estou cheio de olhos rasgados! - suspirou Thévenet.
- Aqui só a minha - disse o gigante coçando a cabeça. - Mas é um mulherão. Gegê! - gritou bem alto.
Não mentira: Gegê era uma criatura de formas imponentes, cujas mãos, do tamanho de uma pá,
podiam mandar o homem que lhe faltasse com o respeito para o outro lado da sala. Perto dela, o
ruivo parecia ter uma estatura normal, e os outros três europeus, embora altos e fortes, pareciam
franzinos.
Thévenet a devorava com os olhos.
- Senhora... - disse ele levantando-se.
- Você me chamou - perguntou ela a seu homem, sem olhar para o legionário, colocando o
impressionante traseiro modelado no cetim vermelho num tamborete, que estalou sob o peso.
- Sim, minha franguinha. Nosso amigo está farto de mulheres pequenas.
- E daí? - perguntou ela com voz rouca.
- Você talvez pudesse abrir uma exceção. Estamos negociando esses senhores e eu.
A mulher observou longamente Thévenet com os pequenos olhos azuis afundados na gordura de um rosto de
pele clara. Os grossos lábios pintados mostraram desdém.
- Não é dos piores... mas é só para lhe fazer um favor!
- Você é uma boa garota, eu sabia que podia contar com você.
Ela se levantou, os enormes seios brancos balançaram e, quando se afastou, requebrando o enorme traseiro,
Thévenet foi atrás dela, fascinado. Os companheiros seguiram com os olhos a libertina. Por que caminhos
viera parar nesse fim de mundo?
- É bonita minha mulher, hem? - disse o dono do bar com uma convicção infantil.
Tavernier e Maréchal reprimiram um sorriso e concordaram com ele.
A grande sala do bar, com paredes de tábuas e de taipa, não se esvaziava. Era preciso gritar para se fazer
ouvir, mas isso não atrapalhava em nada os que bebiam ou tomavam sopa, menos ainda os que jogavam
mahjong, que derrubavam com estrondo as pedras sobre as mesas. Depois dos dias de solidão e do silêncio
tão particular da floresta, Maréchal e Tavernier ficavam completamente atordoados por essa confusão
ensurdecedora.
- Não poderíamos encontrar lugar mais calmo? - gritou François.
- Você tem razão, não se pode conversar, aqui. Venham!
Atravessaram o estabelecimento evitando as crianças e os cachorros, que circulavam entre as mesas. Passaram
pelo que devia ser a cozinha, escorregando num chão cheio de detritos, aspirando uma mistura de fortes
odores de peixe e carnes e do estonteante cheiro de incenso queimado diante de um altar suspenso sobre um
antigo forno. Chegaram a um beco sombrio, lugar ideal para uma emboscada. Ouviu-se o ruído característico
de uma arma sendo engatilhada.
- Está tudo bem - rapazes, disse o ruivo, parando diante
de uma espessa porta de teca, que ele abriu com a ajuda de uma chave de tamanho respeitável.
Riscou um fósforo. A pequena chama iluminou uma lamparina a óleo colocada sobre um console; ele a
acendeu.
- Vocês estão admirados, hem? - disse ele vendo a cara embasbacada dos outros. - É o meu tesouro de guerra.
Havia lá não apenas todo o necessário para sustentar um cerco de muitos meses como também uma
quantidade de arte chinesa e cambojiana capaz de abastecer todos os grandes antiquários especializados de
Paris, Londres e Nova York. Eram budas, móveis, caixas, biombos, peças de seda bordada, porcelanas em
profusão, algumas peças com mais de mil anos de idade.
- Que beleza! - exclamou Maréchal, pegando uma delicada estatueta de jade.
- Você tem bom gosto - disse o gigante, tirando-a de suas mãos. - Ela data da dinastia Dinh, que reinou no
Annam e no Tonquin no século X. Tenho peças mais antigas ainda, de antes da dominação chinesa: duzentos
e cinqüenta anos antes de Cristo!
Estupefatos, Tavernier e Maréchal se entreolharam. Decididamente a Indochina reservava muitas surpresas.
Mais um pouco, o alsaciano lhes teria dado um curso sobre arte do Extremo- Oriente!
- Sigam-me, mas com cuidado de não esbarrar em nada - disse ele.
Eles se esgueiraram pela estreita passagem no meio do tesouro. Pararam diante de uma parede em que estava
pendurado um pesado tapete chinês, que o ruivo afastou. A porta em frente à qual se encontravam parecia a de
um cofre-forte.
- É muito imprudente vir aqui sozinho, com pessoas que você não conhece e que estão armadas. Poderia ser
atacado por malfeitores - disse François.
- Conheço os homens e, além do mais, não estou sozinho.
A um sinal se ergueram do depósito cinco ou seis indivíduos, cuja fisionomia, por si só, bastava para inspirar
temor. E apontaram para eles canos de fuzis.
- Como vêem, não tenho nada a temer...
Fez um novo gesto, as armas foram abaixadas e os guardas desapareceram.
O cômodo em que penetraram parecia, por contraste, vazio. Mas era apenas uma ilusão. Os objetos
mais raros do estranho colecionador estavam ali reunidos. Seus traços rudes pareciam refinar-se em
contato com tantas belezas e objetos antigos. As mãos grossas tinham delicadezas imprevisíveis
para apanhar tal ou qual objeto precioso.
- Sentem-se - disse ele. -A calma desse lugar lhes agrada?
- Perto do barulho do bar, é até calmo demais - respondeu François no mesmo tom irônico,
sentando-se.
- Vocês não sabem o que querem, às vezes há barulho de mais, às vezes de menos...
- Para mim está ótimo. Podemos contar com você, para Laï Chau?
- Não haverá problema. Ainda tenho dois ou três amigos na Legião; com meus guias eles marcarão a
estrada até Laï Chau. Apesar dos vietcongues, a expedição não deverá ter verdadeiramente
dificuldades. É na aldeia que vocês as terão!
- Já entendemos bem, mas, repetimos, o problema é nosso
- resmungou Maréchal.
- Nesse caso, não tenho mais nada para dizer. Durante as quarenta e oito horas que preciso para
organizar a viagem de vocês, evitem aparecer; o lugar está infestado de espiões, tanto comunistas
quanto americanos. Mediante um pequeno aumento, posso conseguir um lugar seguro para os três.
- Não acha que está sendo guloso demais? - replicou François.
- Tudo tem um preço hoje em dia...
- Você vai ser obrigado a nos dar crédito e esperar que eu volte a Saigon para lhe pagar o
suplemento.
Perplexo, depois suspeitoso, o alsaciano coçou a cabeça.
- Não entendo mais nada: você fala de ir para Lai Chau, e agora é Saigon... Quem você é?... Não é
da Legião!... Eu me enganei... Quem é você?... E seus amigos? Quem são?...
- São legionários, não desertaram. Estão... digamos, em missão, como eu.
As pálpebras do gigante piscaram, rápidas; ele fez um movimento em direção à porta.
- Não se mexa - disse firmemente Maréchal, com a mão no punhal. - Você não tem nada a temer de
nós. Assim que o deixarmos, esqueceremos você e tudo isso... Não é, companheiro?
- Completamente - aprovou François. - O que decide? Você nos dá o crédito ou chama os guardas?...
Ah, ia me esquecendo: seria melhor não nos acontecer nada; lembro a você que nosso companheiro
está com sua mulher, e de nós três ele é o pior.
O colosso encolheu os ombros, pegou num aparador uma garrafa de conhaque e três copos:
- Brindemos ao nosso negócio. Bebam, vão me dizer o que acharam dele, esse não é ordinário.
- É verdade, ele é bom - resmungou Maréchal com ar de conhecedor.
- Só falta um charuto para que a felicidade seja completa
- suspirou Tavernier.
Ele abriu uma caixa diante deles.
Vendo-os preparar os charutos, cada um à sua maneira, poder-se-ia crer estar na sala de fumar de
algum clube londrino. Por um bom momento, esses homens tão diferentes se uniram na volúpia do
tabaco.
- Tenho certeza de que os havanas de Batista não valem os meus birmaneses - afirmou o alsaciano.
Onde o dono do bar de Lao Cai ouvira falar do político cubano que um golpe de Estado, em março
de 1952, tornara senhor da ilha? "Só na Indochina se podem encontrar pessoas assim", pensava
François, fumando com satisfação o charuto.
Com as pernas esticadas, confortavelmente instalados em
poltronas incrustadas de pedrarias, os três fumantes desfrutavam de uma doce beatitude. Maréchal
foi o primeiro a voltar à terra.
- Obrigado... Por alguns instantes esquecemos, graças a você, a grande confusão em que estamos
metidos. Você tem um mapa do local?
- Devo ter - disse o hospedeiro com voz calma, remexendo numa pilha de papéis colocados num
cofre de madeira dourada. - Vejam... Não se pode confiar muito nele, pois é de antes da ocupação
japonesa; depois disso, muitas estradas tornaram- se impraticáveis, muitas pontes desapareceram. O
pior aconteceu com a do rio Rouge, a qual os vietcongues explodiram depois da incursão relâmpago
dos soldados de Bao Dai; é preciso atravessar o rio de noite, de barco.
Ele abriu o mapa e o estendeu sobre o cofre. Com um dedo, mostrou uma aldeia:
- É melhor passar por Phong Thô que por Cha Pa, à qual se chega, em tempo normal, em sete ou
oito horas, segundo os guias. Phong Thô é uma sede de divisão administrativa do cantão, com um
posto militar. É uma região muito vasta, povoada por thaís brancos e negros, yais, yaos, miaos,
wou-nis e chineses. Não falam vietnamita, só os dialetos próximos do laociano, do thaí ou do
chinês.
- Fácil para conversar! - comentou Maréchal, fazendo um anel de fumaça perfeito.
- Alguns arriscam algumas palavras em francês, e eu algumas palavras de seus diferentes dialetos.
Acabamos por nos entender. Se chegarmos a Phong Thô sem problemas, continuaremos a viagem
por água até Bac Tan. Vai ser preciso ter paciência, o trajeto dura quinze horas, se tudo correr bem,
e mais de vinte, caso contrário. E isso não é nada, perto do que os espera para chegar a Moeung
Lai...
- Não estou vendo esse nome no mapa - observou Maréchal. -
- É natural, é o nome laociano de Laï Chau. Então, em Moeung... quer dizer, em Laï Chau, toma-se
uma grande canoa, e em dois ou três dias chegaremos.
- Que expedição! - disse Tavernier, empurrando o mapa.
- Ao menos temos certeza de que Laï Chau ainda está em mãos francesas?
- Há dez dias, fui chamado pelo rádio, por um suboficial amigo meu; ele me disse que, no momento,
está tudo calmo, mas na sua opinião isso não vai durar muito tempo; desde do armistício de junho
com a Coréia, os americanos intensificaram a ajuda à França. Estaria sendo articulada, segundo ele,
a instalação de uma base aeroterrestre em Diêm Biên Phu, reocupando o vale, ao mesmo tempo para
conservar o país thaí e Laï Chau, e para fechar a estrada entre o Laos e o território dos vietcongues.
- É o general Navarre ou o governo francês que está na origem dessa idéia tão interessante? -
perguntou François.
- Não sei nada sobre isso, e meu amigo também não. Só há um desejo: sair de lá com os thaís que
estão com eles. Mas voltemos ao que nos interessa: vocês serão deixados a dois ou três quilômetros
a montante de Laï Chau. Lá, na beira da estrada, encontrarão quatro casebres e depois um bar.
Entrarão nele. É administrado por um velho que trabalhava na estrada de ferro de Yuncan. Não há
ninguém melhor para lhes contar a construção dos quatrocentos e sessenta e cinco quilômetros de
estrada entre Lao Cai e Yunnan Fou, na China, suas três mil cento e cinqüenta pontes e viadutos,
seus cento e cinqüenta e cinco túneis. Uma epopéia! Milhares e milhares de anamitas foram mortos
na construção, sem contar os brancos, tanto engenheiros quanto operários. De cara o reconhecerão:
é um velho pequeno, seco, enfezado. A força de viver lá, passou a parecer-se com os nativos. Veste-
se como eles, sem contar um gorro basco que já não tem cor. Vocês lhe dirão que vêm da parte de
Valère. Ele lhes dará uma ajuda; somos amigos.
- E, como se chama? - perguntou Maréchal.
- É chamado o Basco, sem dúvida por causa do gorro.
Eles reencontraram um Thévenet com olhos cheios de reconhecimento.
- Que mulher! Essa é uma mulher! - exclamou ele, vendo-os entrar no boteco do alsaciano.
- Estamos muito contentes por você, meu velho - disse Tavernier. - Não vi o monge na entrada. Sabe o que
aconteceu?
- Não sei de nada, acabo de descer. Você sabe, a mulher ficou minha amiga, aceitou nos alojar por esta noite.
O que lhes parece?... É uma boa idéia!
Valère, que desaparecera no bar, foi até eles, com ar visivelmente admirado. Expulsou de uma mesa uma
família de chineses e fez sinal aos três homens para se sentarem. Um criado trouxe garrafas de cerveja. Ele
bebeu no gargalo, os olhos fixos em Thévenet. Arrotou:
- Não sei o que você fez com ela, a patroa... Ela me disse que você e seus amigos são seus convidados... Isso
não parece coisa dela. Um gesto de despedida, sem dúvida...
Thévenet baixou a cabeça, fingindo modéstia, enquanto Tavernier e Maréchal quase não conseguiam manter-
se sérios.
Eles passaram uma parte da noite bebendo com Gegê, que veio ficar em sua companhia. Ela foi a última,
Maréchal, a se sentar. Alguns instantes depois, roncava profundamente, como os outros, arriada sobre a mesa.
- Não sabem beber - resmungou em russo o legionário antes de cair também, depois de um último copo.
No dia seguinte, todos estavam com a famosa ressaca, que tentaram curar com a ajuda de sopa chinesa e
novas doses de cerveja.
Durante a tarde, Maréchal e Tavernier percorreram as ruas e ruelas de Lao Cai perguntando pelo monge
Nhon, enquanto Thévenet era requisitado por Gegê para o prosseguimento dos jogos amorosos. Lao Cai não
tinha nada de uma povoação vietnamita: era muito mais uma grande aldeia chinesa, com seu mercado
flutuante, suas tabuletas vermelhas com caracteres pretos ondulando nas fachadas das casas, na maior parte
em mau estado. O cheiro das especiarias e de peixe seco chegavam a suplantar o da sujeira e das latrinas a céu
aberto. Observadores
atentos poderiam identificar as diferentes etnias pela forma de um colar, pelo desenho de um bordado, pelas
jóias das mulheres, pelo penteado. Agachados diante das bandejas onde o chá era servido, homens e algumas
velhas fumavam enormes cachimbos de bambu.
Nenhum sinal de Nhon, muito menos de monges budistas. Eles foram a um templo em que as únicas pessoas
presentes eram mulheres queimando bastões de incenso diante das estátuas de Confúcio e de seus discípulos.
Nem sombra de roupa açafrão, porém.
- Não fiquemos muito aqui - disse François. - Já começam a nos observar com olhar esquisito.
Assim que eles retornaram a seu estabelecimento, Valère lhes disse:
- Encontrei para vocês um quarto no Hotel do Comércio:
conforto oriental garantido, baratas incluídas. O dono, um chinês, é um amigo. Em princípio, vocês não
correm nenhum perigo; entretanto, fiquem com uma arma ao alcance da mão. Partirão amanhã, ao amanhecer.
Não deverá chover; nesta estação, já não há tantas tempestades. Ainda está com o diamante? - perguntou ele a
François.
- Quer vê-lo?
- Não, não é preciso. A propósito, sou eu quem vai acompanhá-los amanhã, com meu criado thaí, ele conhece
todos os caminhos da montanha.
- Ontem você nos disse que nos arranjaria guias. Hoje...
- Eu pensei melhor. Achei que quanto menos gente souber do assunto melhor será - disse, interrompendo
Maréchal.
- Isso não me agrada, essas mudanças de última hora - resmungou o legionário.
- Há muita agitação para os lados de Laï Chau; os thaís não querem ficar entre os vietcongues e os franceses.
Pode-se compreendê-los...
- Certo - aprovou François. - Mas não dá para entender muito bem a sua atitude... Espero que saiba o que está
fazendo e jogue honestamente, senão...
- No lugar de vocês eu também ficaria desconfiado... Mas
pensem: se eu quisesse roubá-los, teria feito ontem, quando vocês
estavam completamente embriagados.
François pôs a mão no bolso o apalpou-o e tirou a pequena
bolsa de couro em que guardara a pedra preciosa; abriu-a: ainda
estava lá.
- Já falamos demais, a patroa nos espera para jantar. E ela
não gosta de esperar!

Capítulo 19

Quanto tempo Léa ficara inconsciente, com a cabeça quebrada nos degraus do pagode? Foi uma
tropa de soldados do exército regular vietcongue que a encontrou.
- O kià... Dây là bà dâm da giúp chúng ta o Hà-Nôi, ban cua Nhu-Mai dây mà.
- Anh chác kông?
- Chác, dâu bà bi cau nhu môt ni-cô, nhung dúng là bà ta. Nhin kia bà ta c3n sông!*
- Mas... é a francesa que nos ajudou em Hanói, a amiga de Nhu-Mai.
- Tem certeza?
- Tenho. Está de cabeça raspada como uma monja, mas é ela. Veja, está viva!
Léa se mexera e abrira os olhos. Os soldados fizeram uma
maca de hastes de bambu e voltaram para o acampamento. Lá,
um médico vietnamita tratou dela.
- Perdeu muito sangue - disse ele em francês, como falando para si mesmo.
- Dông-chíbác-si, phái cúu bà ta: bà dagiúp chúng tôi, NhuMai, Khiêu em tôi, và chinh tôi.
- Tôi se có hêt súc. Anh bao bà và Nhu-Mai quen nhau à? Haygoicô ta dên.*
*_ Camarada médico, é preciso salvá-la: ela ajudou Nhu-Mai, minha irmã Khiêu e a mim.
- Farei tudo que estiver ao meu alcance. Você diz que ela e Nhu-Mai se conhecem? Vá procurá-la.
Na caverna que servia de centro cirúrgico, o médico Thach examinou as feridas da jovem mulher. Tinha uma
fratura no crânio. Ele terminava o curativo quando Nhu-Mai entrou.
- Dông-chí bác-si cho goi tôi?
- Vâng, cô có biêt nguôi bi thuong này không?**
- Você me chamou, camarada médico?
- Sim. Você conhece esta mulher ferida?

Sem acreditar, Nhu-Mai enxugou a testa e exclamou em francês:
- Não, não é possível!... Léa!... É Léa!
- Eu a encarrego de tomar conta dela.
- É preciso avisar tio Hô.
- Por quê?
- Ele a conhece; os franceses a enviaram a ele, há alguns meses.
Avisado, Hô Chin Minh quis saber notícias dela todos os dias. As feridas cicatrizavam, mas ela ainda não
recobrara a consciência.
Com paciência infinita, Nhu-Mai a alimentava como a uma criança. De noite ia buscar o violino e tocava uma
música para fazê-la dormir. Ela disse ao doutor Thach:
- Quando toco, parece que seu rosto se acalma e ela me ouve.
De fato, mais tarde, Léa lhe confessaria:
- Do lugar sombrio e longínquo onde eu estava, esperava o momento em que você ia tocar. Desde as primeiras
notas, eu ficava como inundada de luz. Quanto mais você tocava, mais eu ficava cheia de alegria. Você me
falava, pedia que ficasse com você, que não fosse juntar-me aos meus ancestrais. Eu tentava dizer
que não queria nada; mas eles me chamavam fortemente assim que você parava de tocar... Todos os que
conheci, amei e estão mortos me chamavam. Havia meu pai, minha mãe, minha irmã caçula, Laura, meu tio
Adrien, Mathias... Eu os ouvia dizer: "Venha juntar-se a nós. Aqui onde estamos não há medo nem
sofrimento; há o nada. E aqui que moramos agora. Venha..." Eu lutava, chamava François e as crianças, mas
eles não respondiam... Então pensava: "Por que não juntar-me a eles?..." Mas havia a sua música... Oh, como
ela cuidava bem de mim! Ela dizia para mim: "Ouça, a vida é bela, só você pode conservá-la..." Eu tentava,
tentava com todas as minhas forças...
Um dia ela reabriu os olhos e murmurou:
- Nhu-Mai...
A violinista correu para sua cabeceira e, com o rosto molhado de lágrimas, cobriu-lhe de beijos as mãos
emagrecidas. O médico Pham Ngoc Thach entrou nesse momento. Nhu-Mai correu para ele, inclinando-se
numerosas vezes em lai profundos.
- Camarada médico, ela está curada. Você a salvou!
- Não, Nhu-Mai, foi você, com seu amor.
No dia seguinte, Léa foi conduzida para um casebre espaçoso, bem dissimulado na floresta. Deitaram-na
numa cama de madeira. Ela comeu um pouco de arroz e carne, bebeu chá e adormeceu.
Todo dia o doutor Thach ia examiná-la; ele estava muito orgulhoso dos progressos da paciente.
- Logo as cicatrizes já não serão visíveis, e o cabelo logo voltará a crescer. Mas é preciso repousar. A senhora
foi ferida gravemente, e seu espírito também foi atingido. Vai precisar de tempo para que essas feridas se
fechem.
Léa estremeceu e ficou muito pálida.
- O que a senhora tem? Sente-se mal?
- Não - disse Léa sacudindo a cabeça, enquanto as lágrimas corriam-lhe pela face.
- Pobre jovem - murmurou o médico.
Um dia ela lhe perguntou:
- Pareceu-me que um médico francês veio me auscultar Sonhei?
- Não, a senhora não sonhou. Um de meus antigos colegas do hospital Laenec clinicava em Viêt Tri. Eu lhe
pedi que viesse, o que fez apesar dos aborrecimentos que isso lhe trouxe.
- Por que teve aborrecimentos?
- O alto-comando francês o interrogou longamente sobre as circunstâncias de seu seqüestro.
- O senhor o tinha seqüestrado!
- Não, mas combinamos dizê-lo.
- Então, ele não disse a meus compatriotas que foi de mim que cuidou?
- Não, seria muito perigoso para nós.
- Meu marido deve estar pensando que morri!...
- Acalme-se. Daqui a alguns dias lhe mandaremos uma mensagem, para que saiba que a senhora está viva.
- É verdade? Promete?
- Prometo, pela saúde dos meus filhos.
Léa fechou os olhos, tranqüilizada. O doutor Thach lhe havia falado da filha, Colette, do filho, Alain, que lhe
faziam muita falta, da mulher, Marie Louise, uma enfermeira que ele conhecera antes da guerra, na França, no
sanatório de Hautevilie. Estava sozinha com os filhos, na rua Chasseloup-Laubat. Ele renunciara ao próspero
consultório, à clientela de franceses e ricos vietnamitas, para se juntar à revolução. Depois da expulsão dos
franceses pelos japoneses em 9 de março de 1945, fora designado pelo comitê regional do partido do Nam
Bo* para organizar o movimento dos jovens, que tomou então o nome de Juventude de Vanguarda. No mês
de agosto do mesmo ano, foi designado ministro da Saúde pelo presidente Hô Chin Minh. Em 1947, recebeu
ordens de se infiltrar em Hanói, onde conheceu a clandestinidade. Sempre clandestino, voltou a Saigon comô
presidente do comitê administrativo de resistência da zona especial de Saigon. No início de 1953, juntou-se à guerrilha doViêt Bac* na qualidade de chefe da comissão
de
Saúde do partido, encarregado mais particularmente da saúde de Hô Chin Minh e dos membros do Comitê
Central. Lá, amado e estimado por todos, realizou uma obra notável, ensinando a jovens médicos as
dificuldades de trabalhar na floresta e nos hospitais subterrâneos.
O ruído de uma máquina de escrever e o odor açucarado de um cigarro americano a acordaram. Já era noite.
Iluminado por um lampião protegido do vento, um homem sentado de pernas dobradas e joelhos afastados,
com uma coberta jogada nos ombros, cigarro nos lábios, batia no teclado. Léa o reconheceu. Percebendo-lhe o
olhar, o homem interrompeu o trabalho e virou-se.
- Perdoe-me, eu a acordei.
- Não. Por que eu estou aqui, senhor presidente?
- Chame-me tio Hô, todos aqui me chamam assim... Você dormia. Não queria acordá-la. Aproveitei para
trabalhar. Sua cabeça raspada lhe dá um ar de jovem rapazinho...
Léa levou a mão à cabeça. Os dedos seguiram o traçado da cicatriz. Ela fez uma careta; ainda estava dolorida.
Uma ligeira penugem começava, entretanto, a brotar.
- Devo estar horrorosa...
- Não fique preocupada. Logo estará novamente com seus cabelos. Está precisando principalmente de repouso
e boa alimentação.
Léa se estendeu na esteira, puxando a coberta sobre si. Ficou um bom momento de olhos abertos; depois,
insensivelmente, adormeceu. Hô Chin Minh não retomara o trabalho; observava-a dormir.
Ela lhe recordava aquela jovem militante francesa que ele amara, em Paris, nos anos 20. Como o tempo
passara! Ele revia as tardes de inverno passadas na biblioteca Sainte-Geneviève, as manhãs de primavera no
Jardim do Luxembourg, a ler Zola ou
bus. Ela não quisera segui-lo à União Soviética, dizendo que havia muito trabalho a fazer pelos proletários
franceses. Ele quase renunciara a participar da "revolução mundial" para ficar perto dela. Mas, em 13 de
junho de 1923, partira clandestinamente para a URSS a chamado do Komintern.*
Ainda dormindo, Léa se mexeu. Hô Chin Minh se aproximou, cobriu-a. Nunca mais, depois de Maria, ele
tivera intimidade real com uma mulher. As militantes moscovitas eram na maior parte muito grandes,
assustadoras. E, além disso, ele tinha tanto que fazer!
Na China, para onde Moscou o enviara para participar da
revolução e, principalmente, organizar o movimento comunista
vietnamita ele se casara em 1926 com uma jovem chinesa, Tang Tuyet Minh. Minh era parteira e membro do
Partido Comunista Chinês. A união só durara um ano; desde então, nunca mais a vira. Em Cantão, ele ajudara
na formação de jovens rapazes vindos do Vietnã, entre os quais o fiel Pham Van Dong, Tran Phu, Ngo Gia
Thu e tantos outros que retornaram à Indochina para fundar as células clandestinas e difundir o jornal Thanh
Nien ,* * proibido pela polícia colonial.
Até a guerra ele teve notícias de Maria; soubera com desgosto de seu casamento com um sindicalista da CGT.
Durante sua temporada na França, no verão de 1946, ele pedira aos amigos Lucie e Raymond Aubrac que se
encontrassem com ela. Soubera com tristeza que tinha morrido quando deportada para Ravensbrück.
Diante de Léa adormecida, ele se lembrava também de Rose, a bonita costureira que o defendia das
brincadeiras dos camaradas militantes, aos quais o jovem exilado censurava por falar demais e fazer pouco;
ele sorriu pensando nas propostas ingênuas daquêla época: "Todas essas polêmicas me fazem mal à cabeça,
pois me esforço para compreender o essencial... 'Não discutam
Victor Hugo, as doces noites de verão em que a Guarda Republicana tocava no quiosque... As
garotas coravam com o olhar febril do jovem frágil e pobre que ele era naquela época. A vida era
dura nessa Paris do pós-guerra. Freqüentemente, para sobreviver, ele tinha de entrar na fila, em
companhia de outros na miséria, diante dos locais da sopa dos pobres. Ali conhecera a solidariedade
dos expatriados: um amigo tunisiano aceitara dividir a modesta habitação, no décimo terceiro
distrito. Chamava-se então Nguyen Ai Quôc, e esperava que seus documentos fossem acertados.
Michel Zecchini, membro do Partido Socialista, fora encarregado de cuidar dele, de procurar uma
residência para ele até conseguir uma licença para trabalhar. Não foi fácil alojar um anamita em
situação irregular. Zecchini lhe encontrara um cômodo desconfortável no primeiro andar do 9, Beco
Compoint, no décimo sétimo distrito. Instalara ali um ateliê de retoques fotográficos, mas pintava
principalmente tabuletas para os comerciantes do bairro. Freqüentemente cozinhava para os
camaradas, num aquecedor a carvão usado para calefação de algum quarto. Mas isso era quando ele
tinha algum dinheiro; se não, comia-se salsicha, batata frita e vinho tinto. Já fumava muito. Vítima
de uma pneumonia, fora internado no hospital Cochin, onde o amigo e jornalista Babut o visitava
quase todo dia. Outros, os escritores Phân Châu Trinh e Phan Van Truong, assim como Marius
Moutet, iam vê-lo. Quando saiu, consagrara mais tempo a seus artigos no Humanité ou no Paria,
la tribune du prolétariat colonial.
Desde a publicação de seu primeiro artigo no Humanité, de 18 de junho de 1919, a polícia francesa
se interessou pelo jovem. Um espião anamita conseguira infiltrar-se no pequeno grupo e enviava
regularmente à Segurança Nacional relatórios que ele assinava com o nome "Jean".
Encontrou Marie Brière nessa época. Ela trabalhava numa confecção e tinha dezoito anos; ele trinta.
A paixão fora mútua. Nunca o futuro Hô Chin Minh se esqueceria desse primeiro amor. Ele a revia,
magra e bela, dançando com os camaradas socialistas numa pequena boate às margens do Mame,
lembrava-se dos passeios de barco, dos retornos a Paris no último ôni À
tanto. Vocês todos são socialistas. Todos estão resolvidos a lutar pela libertação da classe operária. Então, II
ou III Internacional, não dá tudo no mesmo? Pouco importa qual vocês escolhem; o importante, é que se
unam, fiquem juntos. Enquanto discutem aqui, em meu país meus compatriotas continuam sendo oprimidos."
Um dia em que estava novamente aborrecido com o "batepapo" dos amigos, Rose lhe dissera delicadamente:
- É difícil explicar porque você é novo; mas tenho certeza de que compreenderá mais tarde a razão por que
temos tanta necessidade de discutir; é tão importante para o futuro da classe operária...
A pequena costureira estava com a razão. Mais tarde ele compreenderia a importância, para os oprimidos, de
poder enfim exprimir-se, livres para dizer e repetir as mesmas coisas. O que teriam pensado os camaradas do
partido se ele houvesse confessado ter adquirido esses princípios de uma simples operária francesa?
Léa gemeu e se agitou. Hô Chin Minh se aproximou; lágrimas umedeciam a face da jovem mulher. Ele ia
despertá-la para arrancá-la do pesadelo quando seus gemidos cessaram. Seu sono tornou-se calmo.
Logo que estivesse restabelecida, mandá-la-ia para perto dos seus. Ele acendeu um cigarro e saiu.
Graças aos cuidados do doutor Thach e à presença de Nhu-Mai, Léa logo foi capaz de levantar e participar
da vida do campo. Uma noite, eles tiveram de fugir com urgência: uma centena de soldados franceses os
ameaçavam de cerco. Com o coração disparado, Léa tentou fugir para encontrar-se com eles. Nhu-Mai jogou-
a ao chão e amarrou-lhe os pulsos.
- Não faça isso outra vez, senão serei obrigada a matá-la.
- Você seria capaz de me matar? - perguntou ela.
- Sem nenhuma hesitação, caso achasse que você iria nos trair.
- Sou sua amiga e gosto de você, mas nossa luta é mais importante que uma vida humana, mesmo a sua... e no
entanto eu daria a minha por você!
Léa sentiu que Nhu-Mai dizia a verdade e se deixou amordaçar sem resistência.
Tudo fora previsto para uma evacuação rápida. Depois de uma marcha difícil de algumas horas, que ela fez
deitada numa maca, Léa teve a surpresa de descobrir dezenas de caminhões militares cobertos de galhos, nos
quais subiram os soldados vietcongues.
- De onde vêm esses veículos? - perguntou Léa a NhuMai assim que esta lhe tirou a mordaça.
- São caminhões chineses.
- Aonde vamos?
- Não sei. Quer um pouco de arroz?
- Não.
- Então, durma. A viagem é capaz de ser longa.
E foi longa, efetivamente, e cheia de solavancos. Tendo terminado a estação das chuvas, nuvens de poeira
envolviam o comboio; de avião, teria sido fácil seguir-lhe o rastro. Ao fim de três dias e três noites por
estradas e caminhos intransitáveis, a caravana parou.
- Xuông di chúng ta dang o bên Lào
- Desçam, estamos no Laos.
- disse um soldado abaixando a grade do caminhão.
Léa saltou desajeitadamente, com as pernas entorpecidas.
- O que ele disse? - perguntou a Nhu-Mai.
- Que estamos no Laos.
- No Laos?... Para fazer o quê?...
Nhu-Mai caiu na gargalhada.
- Lutar, com certeza!
- Não estou compreendendo nada. Eu achava que o presidente Hô Chin Minh iria me soltar... ele me
prometera!
- Isso, sem dúvida, não pode ser feito agora; mas ele cumprirá a palavra.
- Eu achava que você era minha amiga, que gostava de mim!
Desanimada, Léa atirou-se ao chão. Sob um chapéu de folhas de palmeira, vestida com o uniforme negro dos
combatentes, calçada com as mesmas sandálias de borracha, os braços e o rosto queimados de sol, parecia a
irmã mais velha de NhuMai.
- O que há, Léa, está sentindo alguma coisa? - inquietou- se o doutor Thach.
- Quero voltar para casa, estou cheia de tudo! Quero ver meus filhos!
O médico mostrou um sorriso cansado e ajudou-a a levantar-se.
- Seja corajosa. Logo estará junto dos seus; o tio Hô lhe prometeu.
A base, na fronteira com o Laos, era ao mesmo tempo campo de treinamento e centro de repouso para os
feridos. Uma fábrica de armamento e uma impressora de textos de propaganda funcionavam ali dia e noite. Léa
assistiu aos cursos de doutrinação comunista ministrados aos jovens militantes; eram dados em vietamita, e
Nhu-Mai os traduzia. Tudo isso era muito aborrecido, e ela mal conseguia manter os olhos abertos, apesar das
cotoveladas da amiga. As noites, em compensação, eram passadas mais agradavelmente com cantos, danças,
exercícios de caligrafia chinesa para aqueles e aquelas que quisessem aprender, ou de viêt vô dao, no qual
Léa se superava, para grande admiração de Nhu-Mai e a despeito das advertências do doutor Thach, que temia
por seus ferimentos. O que mais a surpreendia eram os cursos de literatura dados pelo professor Hoang Thieu
Son, que conseguiu interessar ao auditório falando-lhe de Dostoievski, Montaigne, Shakespeare, Goethe ou...
François Mauriac. Quando Léa lhe disse ter encontrado muitas vezes o escritor, e que morava muito perto da
casa dele, o professor não parou mais de fazer perguntas sobre o homem, a obra, a região de Bordeaux,
Malagar, que ele sonhava conhecer. Era capaz de recitar de memória páginas inteiras daquele a quem
considerava o mais francês dos autores contemporâneos. Para Léa essas seções eram ao mesmo tempo
momento de esquecimento
do cotidiano e tormento; as perguntas do professor Son lhe lembravam muito instantes felizes e infelizes. Ele
queria saber tudo sobre a guerra na França: Como os franceses se haviam comportado em face do ocupante?
Como fora organizada a Resistência? Haviam sido denunciados muitos traidores? O que acontecera a eles? Ele
não esquecia nunca de fazer comparações entre a guerra de libertação de seu país e a que tivera lugar na
França ocupada...
Uma manhã de chuva e vento, os caminhões vieram buscar Léa e uma centena de bô dôi* para reconduzi-los
ao Vietnã, sem que nenhuma explicação lhes fosse dada. Atravessaram o rio Noire em Van Yên, onde as
barcaças os transportaram de uma margem à outra. A viagem foi extenuante não só por causa das estradas
intransitáveis, dos caminhões que derrapavam ou viravam e era preciso reerguer, molhados e gelados até os
ossos, mas também por causa dos grupos de resistência anticomunistas e dos franceses, que por meio de
pequenos comandos atacavam os retardatários e desapareciam para ressurgir mais adiante. Léa pedia aos céus
que os soldados metropolitanos lançassem uma ofensiva e viessem libertá-la. Quando o comboio parava,
amarravam-na cuidadosamente, o que a deixava louca de raiva.
"Aonde pensam que eu vou, com estas sandálias aos pedaços, neste país de lamaçais e de animais ferozes,
sem alimentos, nem armas, nem nada?" Ela se apiedava de si própria e se virava para que não a vissem chorar.
Nhu-Mai tentava aliviar-lhe o estado encontrando-lhe, sempre que possível, algo com que se lavar. Era com a
falta de higiene, com a sujeira que Léa sofria mais. Não se acostumava à imundície, aos odores e,
principalmente, às sessões coletivas de despiolhamento.
- E nojento! - exclamou ela na primeira vez.
- Nojento - respondeu Nhu-Mai - é não se livrar deles. Entre nós é normal o despiolhamento entre parentes e
amigos.
Graças aos cabelos curtos e à lavagem da cabeça que ela fazia quando Nhu-Mai lhe conseguia
um pouco de sabão, ela evitara a infestação dos "bichinhos".
E também havia o tédio, um tédio persistente que aderia ao espírito como a lama colava ao
corpo. Para enganá-lo, lembrava- se dos poemas que aprendera. Infelizmente, apenas algumas
estrofes lhe vinham à memória.
Ó doce barulho da chuva
Na terra e sobre os telhados!
Para um coração que se aborrece
O, o canto da chuva!
Via-se bem que o poeta não viera perder-se neste maldito país, pois, se o tivesse feito, jamais
poderia falar "do doce barulho da chuva..."
Como se vê no mês de maio a rosa no galho,
Em sua fresca juventude, em sua primeira flor..
Impossível lembrar a continuação. E todavia, ela estava certa de sabê-la. Era uma de suas
distrações favoritas com o pai a declamar, de preferência na hora das refeições, para o auditório
familiar, os versos aprendidos na véspera para maravilhar o outro.
Impossível lembrar também este poema de Ronsard de que ela tanto gostava:
Quando você estiver bem velha, à noite, à luz das velas...
Esse ela soubera de cor. E Verlaine, seu caro Verlaine? Ao menos ele não lhe faltaria:
Meu coração está triste... Meu coração sofre tanto... Bate o meio-dia. Por favor afaste-se,
senhora... A música antes de qual-
quer coisa... O azul desordenado de estrelas claras... E me vou com o vento mau que me
leva...
Nada, nada, não restava mais nada, tudo se apagara!... Papai, esqueci nossos poemas... Não é
verdade!... Vou tentar de novo. Veja este que você gostava tanto e que Verlaine havia dedicado a
Germaine Nouveau. Ouça...:
Numa rua, no centro de uma cidade de sonho... Será fatal que ali se deseje morrer:
Lágrimas rolando docemente pelas faces, Risos soluçantes no choro dos que sofrem,
Súplicas à morte que virá...
Um solavanco a jogou sobre Nhu-Mai. Um riso incontido subiu-lhe à garganta.
- O que você tem?... Machucou-se? - perguntou a amiga, apreensiva.
- Lembra-se do poema que me mandou?... Era de Gérard de Nerval...
- Sim, lembro-me dele muito bem:Aquele que olhou fixa- mente para o sol /Acredita ver diante
dos olhos voar obstinada mente.. -
- Cale-se! Não me interessa que você saiba o poema! É normal que a memória esteja intacta, não
lhe quebraram a cabeça... E está na sua terra, com os seus... Seu querido tio Hô a tem em alta
conta! Sua palavra é sagrada, ele conhece de cor o evangelho vermelho, e você o recita como uma
idiota, pronta para matar à sua ordem, sem pensar, pois o fará pela Grande Revolução Proletária, tão
importante para os camaradas Lenin e Stalin...
- Cale-se, por favor, cale-se!
- Por que me calaria?... Porque os que entendem francês vão me denunciar e seus comissários do
povo vão me mandar para um de seus famosos campos de reeducação?...
Nhu-Mai tapou-lhe a boca com a mão.
- Cale-se!
Léa a afastou com violência.
- Não me toque! Estou farta, entende? Estou cheia!... Quero rever meus filhos, meu marido... Quero voltar para
casa! Estou cheia desta chuva que apodrece, do arroz frio com cheiro de mofo, de seu chá repugnante, de sua
propaganda, de sua guerra suja! Quero rever pessoas normais, limpas e gentis, não quero mais ver essas caras
de limão, esses olhos rasgados, esses cabelos pretos cheios de piolhos... Não quero mais...
Léa se dobrou sobre si mesma, tremendo. Nhu-Mai tocou- lhe a testa.
- Bà ta bi nông sôt, dúng lã con sôt rét. Nhanh lên, hay môi bác-si Thach dên.* Ela está ardendo de febre, é uma crise de impaludismo. Rápido, vá buscar o doutor
Thach.
Mais uma vez Léa estava delirando de febre e sendo tratada pelo doutor Thach e cuidada por Nhu-Mai. De
acordo com os superiores, o médico decidiu deixá-la em tratamento numa aldeia: junto com o impaludismo
havia agora uma disenteria; ela era apenas um pobre corpo que sofria. O comandante do comboio deixou três
bô dôi com Nhu-Mai, e o doutor Thach lhe entregou, escondido, comprimidos de quinino. Para tratar a
disenteria, o médico chinês da aldeia faria o que achasse melhor. Nhu-Mai viu partir os companheiros com o
coração apertado, mas um gemido de Léa, estirada numa cama de teca, debaixo do mosquiteiro, fez-lhe
esquecer o medo de estar num lugar desconhecido.
Na casa cedida pelo chefe da aldeia, passaram todos os habitantes, homens, mulheres e crianças, que iam
contemplar essa branca que parecia ser a protegida dos vietcongues. Nhu-Mai teve muito trabalho para fazê-
los compreender que a doente precisava de tranqüilidade. Foi necessária a intervenção dos bô dôi para que
voltassem para casa.
Com a mulher do médico chinês, Nhu-Mai limpou o corpo sujo da amiga. Graças às poções de ervas, a
disenteria acabou em
dois dias, e o quinino resolveu provisoriamente o impaludismo. A febre diminuiu, Léa pôde alimentar-se. Pouco
a pouco sentiu as forças voltarem.
- Seu violino é mágico, foi ele que de novo me impediu de juntar-me aos ancestrais no paraíso. Cada vez que eu
sentia estar a ponto de partir, você tocava e a música me trazia de volta à vida. Como explica isso? Você é uma
feiticeira?
- Não - disse ela, rindo, feliz por ver a face da amiga retomarem um pouco de cor. - Notei que minha música a
acalmava.
- Sabe onde estamos?
- Na região dos campos.
- Que campos?
- Campos de prisioneiros nas aldeias.
- E para aí que me levarão quando puder caminhar?
- Isso me surpreenderia. Aí só há homens aprisionados depois de nossas vitórias de Cao Bang e da R.C. 4.
- Por que me lembrar de nossas derrotas?! - exclamou Léa, exasperada.
- Por favor, não se aborreça, isso fará a febre voltar. Desculpe-me.
Ansiosa, Nhu-Mai a observava; ela estremeceu quando viu lágrimas escaparem dos olhos fechados de Léa e
correrem ao longo das têmporas, enquanto o frágil peito se levantava e se abaixava sob o efeito de espasmos.
Ela quis falar, mas se conteve. Diante dessa angústia, as palavras não serviriam para nada. Levantou- se e
pegou o violino.
Pouco a pouco a respiração de Léa se tornou regular; as lágrimas foram as que demoraram mais tempo para
parar.
Nhu-Mai tocou por muito tempo. Quanto mais o tempo passava, mais ela se integrava à música, para ser
apenas sua alma. A noite caiu. Um dos bô dôi trouxe um lampião aceso e ficou agachado a escutar. Nessa
noift, Nhu-Mai tocou como nunca. Tudo o que estava oculto nela se exprimia por meio do violino, ela exprimia
a esperança de amanhãs felizes, o amor por seu país, a
compaixão para com a amiga, o desejo de amar e ser amada, a nostalgia da infância, as dúvidas, as
alegrias, as tristezas, os medos e, sobretudo, essa formidável alegria de viver que brotava dela
quando as notas, de pureza alterada, saíam do arco.
Ela parou, exausta, como um autômato e fez sinal ao soldado para se retirar. Depois da saída deste,
ela afastou o mosquiteiro e abraçou Léa, que ainda estava fascinada.
- Obrigada - murmurou Léa, tomando-lhe a mão. - Eu não conhecia essa parte... Tinha a impressão
de estar sendo levada para muito longe daqui. Como você consegue, tão pequena, encontrar tal
força, exprimir assim, um após o outro, o heroísmo, a volúpia, a paixão, a ternura?... Quando o arco
toca as cordas, você cresce tanto... A magia de sua arte, a nobreza de sua alma brilham quando a
ouvimos... Pode-se dizer que seu violino nos conduz para um além de pureza e sensualidade juntas.
Sonho em ver você tocar no alto de uma colina, diante dos combatentes franceses e vietcongues.
Tenho certeza de que, depois de a ouvirem, deporão por alguns instantes as armas e juntarão suas
lágrimas diante da fatalidade que pesa sobre os homens... Como se chama esse compositor?
- Jean Sibelius, um finlandês. Foi o seu concerto para violino que toquei. Mas não está perfeito, eu
sei disso...
- Está louca, estava magnífico! Ninguém, tenho certeza, consegue interpretá-lo como você.
- Não diria isso se tivesse ouvido Ginette Neveu na Opera de Marselha. Acho que foi nesse dia que
compreendi que o violino seria a minha vida. Meu professor levou-me para vê-la no camarim e lhe
disse que eu também seria uma grande violinista. Ela me beijou e disse que então seria a vez de ela
vir me escutar. Papai e mamãe estavam lá: se você tivesse visto como estavam orgulhosos! Nunca
mais ela poderá ouvir-me...
- Foi ela que morreu, em 1949, no acidente de avião em que também perdeu a vida Marcel Cerdan?
- Foi. Eu estava aqui e fiquei muito triste, pois se falou muito mais da morte do boxeador que da dela.
Ela só tinha trinta anos. Quando a guerra terminar e eu der o meu primeiro concerto em
Hanói ou em Saigon, vou dedicá-lo a ela... Enquanto isso, é bom você dormir!
Durante o sono, os dedos das duas permaneceram enlaçados.
Léa recobrou as forças. O médico chinês esfregava as mãos de contentamento, persuadido de que
sua ciência fora suficiente, e o doutor Thach, vindo de Tuyen Quang para saber notícias, não o
desmentiu.
- Você tem uma resistência admirável; esteve à beira da morte e de repente ressuscitou! Bem sei
que as mulheres são mais resistentes que os homens, mas dessa vez você me assombrou - disse ele,
concluindo o exame.
Léa tornou a fechar a roupa.
- Também sei - prosseguiu ele - que Nhu-Mai conseguiu alimentá-la corretamente, o que, nas atuais
circunstâncias, é uma espécie de proeza. Mas é preciso que não deixe de se alimentar como fez,
senão ela é quem vai ficar doente.
- O que quer dizer, doutor?
- Não soube, não é?... Desde que você está conosco, e não só desde que está doente, Nhu-Mai lhe
deu mais da metade de sua ração diária, e, desde que está nesta aldeia, conseguiu encontrar-lhe
carne quase diariamente.
- Eu não sabia... - balbuciou Léa, muito emocionada.
- Não duvido... Você precisa fazer um pouco de exercício; passeie pela aldeia.
- Está fazendo um tempo horrível...
- Não é um pouco de chuva que vai lhe dar medo.
- O senhor chama esse dilúvio de "um pouco de chuva"!
Doutor...
- Sim?
- O senhor não me falou da única coisa que me importa:
quando vou voltar para casa? Por que não me responde?
- Porque não sei nada desse assunto; não depende de mim.
- Sei disso. Seu presidente não tem palavra; ele me prometeu que eu seria levada de volta para
Hanói. Enganou-me; todos aqui me enganaram... Eu os odeio!
Com um gesto cansado, o doutor Pham Ngoc Thach fechou a maleta.
- Não se afaste da aldeia. Os franceses, ao partir, instalaram minas, e nossos combatentes colocaram armadilhas
- preveniu ele antes de sair.
"Encantador!", pensou Léa.
Apoiada na grade de madeira que contornava a palhoça, balançando as pernas nuas no vazio, Léa via com
olhos tristes a chuva cair. Com o olhar sempre fixo, tateou o assoalho, à procura do maço de cigarros que NhuMai lhe dera antes de partir numa missão de que não
quisera falar. Três dias se haviam passado... Léa tentou
várias vezes fazer funcionar um antigo isqueiro, que soltava uma fumaça enegrecida e malcheirosa. Por fim
conseguiu e aspirou com volúpia o cheiro acre do tabaco dos soldados vietcongues. Com nostalgia, pensou
nos cigarros americanos do tio Hô e nos charutos de que François tanto gostava. Com esse pensamento, todo
o seu corpo ficou doendo. Sobretudo, não deixar aflorar as recordações, mantê-las a distância para ter força de
viver, ser apenas um animal com necessidades sumárias: comer, dormir, não ter medo nem sofrimento,
encontrar um canto para se abrigar do frio, da chuva, dos piolhos e dos animais ferozes... Fazia alguns dias Léa
se esforçava para não se lembrar, não tentar reconstituir os poemas que amava. Recusava até a música de Nhu
Mai, para não se distrair em sua obra de auto-aniquilação.
A chuva cessou, e um ligeiro raio de sol tentou brilhar através das nuvens espessas. As crianças saíram de
casa como pequenos ratos, e os gritos agudos encheram o ar. Léa desceu os cinco degraus da escada; os pés
nus se afundaram na lama. Ela atravessou a praça da aldeia, no meio da qual flutuava a bandeira vietcongue,
cujas cores sobressaíam contra o cinzento do céu e o verde da floresta que cercava a povoação. Quando a
viram, as crianças interromperam as brincadeiras e os gritos, observando-a, atentos e receosos ao mesmo
tempo. Não tinham esquecido quando ela lhes arrancou das mãos um filhote de cachorro que estavam
maltratando, nem sua cólera quando percebeu que estava mor-
to: perseguira-os, batendo-lhes com o cadáver. Sem a intervenção dos bô dôi, ela teria sido linchada pelos
pais alertados. Desde então mantinham respeitosa distância.
A porta de batentes maciços, encimada por um telhado em forma de pagode, abria para um caminho que se
perdia na floresta. Ao longo da cerca de bambu, invadida por uma vegetação espessa, serpenteava um atalho
que desaparecia, às vezes, sob as plantas, cuja folhagem explodia de vigor. Todos esses vegetais pareciam
dotados de apetites ferozes que o homem devia pisar sem cessar, não somente para sobreviver mas também
para não ser devorado. Essa sensação fez Léa parar. Não havia necessidade de carcereiros nem de grades para
mantê-la prisioneira; a própria natureza se encarregava de fazê-la compreender o absurdo dos sonhos de fuga.
Léa sentou-se numa pedra, diante da porta, e se lembrou...
...Ela emergia com dificuldade da crise de impaludismo quando um comboio de prisioneiros franceses parara na
aldeia. Amordaçada e amarrada, assistira à sua chegada. Deviam ser uns cinqüenta, esfarrapados, pálidos, com
a pele cor de cera, o rosto coberto por uma barba de vários dias, inchado pelas picadas de mosquitos, com
olheiras profundas, pernas esfoladas - as moscas se amontoavam nas feridas - ou enrolados em trapos
cobertos de sangue. Alguns, com o braço na tipóia, a cabeça ou o tronco enfaixados, apoiavam-se num bastão
improvisado. Exaustos, tinham-se deixado cair no lamaçal da praça. Mulheres aproximavam-se, trazendo bules
de chá verde e taças de barro que haviam enchido e estendiam aos homens caídos. De onde estava, Léa
adivinhara por que não lhes ouvia agradecimentos surpresos. Com avidez, atiravam-se à bebida morna. Os
guardas vietcongues haviam tentado empurrar as mulheres. Mas elas, com coragem teimosa, obstinavam-se em
lhes dar de beber, apesar da raiva dos soldados. Um deles, com a cabeça coberta por uma espécie de chapéu
de folhas de palmeira cuja forma lembrava a do capacete colonial, com um bastão na mão, gritara uma ordem.
Logo os prisioneiros haviam tirado os sapatos ou o que tivessem
em lugar deles, e os haviam depositado diante do pequeno homem. Com o bastão ele designara quatro
homens, depois outros quatro haviam deixado o grupo, escoltados por um soldado. Os que não tinham sido
indicados continuavam sentados, cansados, estafados. Um deles se levantara com dificuldade e ia de um para
outro. "Um padre ou um médico", pensara Léa. O primeiro grupo voltou, trazendo ramos; o segundo não
demorara. Um negro alto de rosto risonho gritara:
- As valas estão prontas, chefe!
Isso fora um sinal para os esfarrapados, que se levantaram aos empurrões. Corroídos pela disenteria,
experimentavam consolo apenas pelo anúncio da conclusão das latrinas improvisadas. A chuva, depois de ter
cessado por alguns instantes, voltara com violência. Os prisioneiros haviam sido empurrados para debaixo das
palhoças construídas sobre estacas; o local servia de estábulo para os búfalos. Ali, amontoados no esterco e
no mau cheiro, haviam esperado o fim do aguaceiro. A noite caía, algumas tochas haviam sido colocadas na
praça, diante da casa do chefe da aldeia. Sem maiores cuidados, os prisioneiros haviam sido reunidos diante do
homem de barrete, em pé no alto dos degraus. Andando de um lado para o outro, ele os olhara com cara de
nojo; depois parara, encarando-os um a um.
- Vocês não passam de vermes! - gritara ele. - Não fosse a magnanimidade de nosso presidente, nós os teríamos
exterminado. Mas o nobre povo vietnamita não quer empregar os métodos dos colonialistas decadentes e dos
capitalistas corruptos. Com seu exemplo, o valoroso povo vietnamita, que mostrou ao mundo sua
determinação na luta contra a ocupação dos franceses sangüinários, autores de uma guerra injusta e criminosa,
quer ajudá-los a tornar-se instrumentos necessários e úteis aos combates justos que conduzem os povos
oprimidos contra os imperialistas, sedentos de sangue e de dinheiro. Vocês não passam de vis mercenários
desses covardes e, para alguns de vocês, irmãos da escravidão desencaminhados: o marroquino, o negro e o
vietnamita deveriam se unir num mesmo combate contra a
perfídia colonialista e pelo advento do comunismo internacional!
Extenuados, os homens visivelmente já haviam ouvido esse tipo de discurso; Léa não. Ao menos
não nesses termos e nesse contexto. Ela tinha a impressão de assistir ali a uma espécie de lavagem
cerebral. Nhu-Mai, o doutor Thach, o presidente Hô Chin Minh tinham uma linguagem dupla: nunca
mais ela voltaria a ver os seus. Um desespero profundo a invadira.
Mais uma vez ela tentara libertar-se das cordas, mas seus esforços apenas as haviam apertado
mais. A mordaça a sufocava. Ia morrer...
O chá correndo-lhe entre os lábios a reanimara; Nhu-Mai estava ali, enxugando-lhe a testa coberta
de suor. A fraca luz de uma lamparina colocada no chão, Léa adivinhara a silhueta de dois bô dôi
apoiados no fuzil. De fora chegava o barulho de tosse, de pigarro. Ela tentara escapar dos braços de
Nhu-Mai; bruscamente, adormecera.
Pela manhã, ao acordar, o lugar estava vazio, porcos negros e patos haviam tomado o lugar dos
prisioneiros franceses. Pelo gosto estranho que sentia na boca, Léa compreendera que a tinham
drogado. O desgosto a invadira ao lembrar-se do chá que Nhu-Mai a fizera beber. Desde esse dia
mergulhara na tristeza...
Ela ajeitou a pequena coberta com que se enrolara, levantou-se e penetrou a aldeia. No interior dos
casebres com tetos de palha, as mulheres preparavam a comida, as velhas balançavam os bebês
diante dos altares dos antepassados, crianças faziam seus deveres, agachadas numa esteira, velhos
fumavam cachimbo. Tudo estava calmo, a fumaça dos fogões subia lentamente. Meninas pegavam
água no pântano, perto das cabanas, sem tomar cuidado com a lama enegrecida em que se
afundavam até a canela. Tinha-se a impressão de que esse modo de vida vinha de tempos
imemoriais e não acabaria nunca. A guerra era apenas um acidente, como lembrado de vez em
quando, mas não modificava em nada os antigos comportamentos.
Gritos vindos de fora da aldeia romperam bruscamente a quietude.
- Chúng tôi dm phai mn! Chúng tôi dâm phai mn!
- Uma mina explodiu embaixo de nós! Uma mina explodiu embaixo de nós!
O rapaz, de uns vinte anos, mostrava uma mão ensangüentada sem dois dedos. Léa reconheceu um dos
companheiros de Nhu-Mai. Com um pressentimento terrível, afastou a quantidade de gente que cercava o
ferido.
- Onde está Nhu-Mai? Estava com você?
Ele não compreendeu, e começou a chorar.
- Nhu-Mai, onde está Nhu-Mai? - gritou Léa, sacudindo-o.
Ele estendeu a mão sã em direção à floresta. Léa o deixou e partiu correndo, guiada pelos pingos de sangue.
Seus pés nus não sentiam as pedras do caminho. Teve de diminuir a velocidade:
cada passada ressoava-lhe no crânio. Pôs as mãos na cabeça para diminuir a dor. O caminho pouco a pouco
deu lugar a um estreito atalho, depois a uma picada, onde ela precisava se curvar para não se arranhar nos
galhos, que se uniam e encobriam o céu em alguns pontos. Uma dor do lado obrigou-a a parar para retomar
fôlego. Os pés esfolados doíam muito. Ela rasgou um lado da coberta, cortou-o em dois e os enrolou. O
silêncio era esmagador.
Léa retomou a caminhada, mancando. Numa curva da picada, esbarrou num corpo. Imagens sucediam-se em
seu espírito a uma velocidade louca; lembrava pedaços de conversas ouvidas em Hanói: "Nunca virar um
corpo... ele pode ser uma armadilha... pode ser um fingimento..." Léa se inclinou e com as duas mãos virou o
cadáver. Deu um grito: do ventre despedaçado saíam os intestinos. O cheiro era insuportável. Não era Nhu-
Mai, mas um dos rapazes que entravam na casa para escutar a violinista tocar. Os grandes olhos abertos
pareciam olhar com admiração e censura. Léa abaixou-lhe as pálpebras. Quando se ergueu, ouviu um gemido,
depois choros.
- Nhu-Mai... Nhu-Mai...
Tropeçando, procurou de onde vinham os gemidos. A picada
se dividia: as lamúrias vinham da direita. Com as pernas fracas, Léa parou e levou a mão ao coração, tentando
comprimir as batidas, tomada de uma vontade doida de fugir para não ver o que receava encontrar. A custa de
um esforço imenso, saiu do terror que a prendia no lugar.
A explosão formara uma espécie de clareira; a folhagem despedaçada formava ali um tapete muito verde. Nesse
tapete jazia Nhu-Mai. Um lamento transtornado saía-lhe dos lábios. Com dificuldade Léa chegou até ela.
- Não!...
O grito foi ouvido até na aldeia. Ela caiu de joelhos. Nhu-Mai estava sem as duas mãos.
Garrotes feitos com plantas trançadas impediam o sangue de jorrar. Seus grandes olhos abertos giravam em
todos os sentidos; pararam no rosto da amiga. Esta sorriu como uma criança feliz por encontrar a mãe.
- Léa!
Depois o sorriso deu lugar a um esgar de dor. Levantou os cotos, de que escorria sangue, e começou a
soluçar.
- Veja... Perdi as mãos... Nunca mais voltarei a tocar... Meu violino... Quero meu violino!
Léa olhou em volta, à procura do instrumento. Nhu-Mai nunca se separava dele, qualquer que fosse a missão
de que a incumbissem. Levava-o preso às costas. A caixa estava caída não muito longe, pouco danificada. Léa
a colocou sobre o peito da amiga.
- Abra a caixa... Mostre-o para mim...
Léa obedeceu e tirou o instrumento do estojo. As duas mulheres o contemplaram chorando.
- Ponha-o sobre o meu rosto... Estou me sentido mal!... Oh, Léa!... Ele nunca me traiu... Sou eu, hoje, que o
abandono.
- Cale-se, não se canse. Na aldeia vamos cuidar de você...
- Não, eu não quero. Sem a música não poderei viver. Não diga nada, preste atenção. Não quero que me curem,
não quero ser uma inválida... O violino era a minha vida.., mais que o Partido... Sem o violino... Você é minha
amiga?
- Adoro você... Não fale, isso a cansa.
- Léa, eu cuidei de você, tratei-a como a uma irmã. Prometa-me fazer o que vou lhe pedir... Prometa!
- Prometo, minha querida, eu prometo.
- Mate-me!
Léa se jogou para trás, com um grito.
- Eu lhe peço... Você prometeu!
- Isso não!
- Pense no que será minha vida... Tenha piedade!
Nhu-Mai se arrastou, apoiando-se nos cotovelos para se aproximar da amiga.
- Faça, Léa, faça... Você o faria por um animal...
- Não posso... Eu a amo.
- Faça-o justamente porque me ama... Estou me sentindo mal, Léa, estou com medo... Mate-me, pegue o fuzil...
Não me deixe assim!
Ela estava ajoelhada, com os braços sem mãos estendidos para a amiga.
- Pegue o fuzil, pegue... Por piedade, mate-me!...
Como num sonho lentamente, Léa se abaixou, pegou a arma, destravou-a e puxou o gatilho. Nhu Mai caiu,
atingida no peito.
- Obrigada - sussurrou, curvando-se.
Os aldeões que chegaram, guiados pelo bô dôi ferido, encontraram-na de pé, imóvel, com os dedos crispados
no fuzil, o olhar fixo. Imobilizados, por sua vez, contemplaram a cena. O chefe da aldeia conhecia os laços que
uniam as duas mulheres e compreendeu o que acabara de ocorrer. Aproximou-se de Léa e, delicadamente,
soltou-lhe os dedos um a um.

Capítulo 20

Léa não guardava nenhuma lembrança dos dias que se seguiram à morte de Nhu-Mai. Nem do
lugar para onde fora conduzida e dos encontros com Kien.
Uma manhã ela abriu os olhos, reconheceu o quarto do junco do mestiço, sentiu a doçura da seda no
corpo, distinguiu o cheiro de incenso e se espreguiçou, satisfeita; os seios lhe pareceram pesados e
tensos, segurou-os com ambas as mãos, com um arrepio de prazer, e sentou-se na cama. Diante
dela estava uma garota, de busto nu, um pouco magricela, de cabelos anelados e curtos como o de
um rapaz. Embaraçada, Léa se cobriu; a jovem fez o mesmo. No espaço de um instante, ela esteve
perdida, olhou em torno de si, e depois começou a rir ao se levantar. Via refletida na psique alguém
de quem se lembrava, que devia ser ela, mas não era. A nudez da outra a surpreendeu; nesse corpo
cuja magreza o tornava juvenil não encontrava o esplendor de mulher que ela se lembrava de ter
sido em outro tempo. "Que tempo?", perguntou-se. Não tinha a resposta.
Bateram à porta; antes que ela tivesse tempo de responder, Kien entrou. Ele ficou imóvel na soleira
da porta a contemplá-la. Sob esse olhar, Léa procurou uma roupa. Ele compreendeu e
apanhou um xale de seda bordada, com que a envolveu. A suavidade das franjas, que lhe roçavam os pés, era
agradável.
- Obrigada - disse ela com um sorriso gentil, encarando-o intensamente.
Ele lhe parecia mais velho que em sua lembrança. O rosto era ainda tão bonito quanto antes, porém mais
marcado. Vestia apenas um short branco, que ressaltava uma pele tão bronzeada que lhe parecia negra. De
repente, ela teve certeza de que, na noite passada, na anterior, talvez em outras e outras mais, ele fora seu
amante. O pensamento tornou-se subitamente desagradável, pois, se ela sabia que conhecia esse homem, não
lembrava nem o nome nem quando o conhecera.
Delicadamente, ele fechou a porta e avançou. Ela recuou, indo de encontro à cama, em que caiu, enquanto ele
continuava caminhando e olhando-a nos olhos. Havia nesse olhar uma autoridade e um desejo dos quais ela
não podia se defender. As mãos dele lhe haviam tirado o xale e se detinham, com as palmas para cima, em
diversas partes do corpo; seus lábios se entreabriram, suas coxas se separaram. Sem deixar de olhá-la, ele
desabotoou o short, que escorregou. Nu, era magnífico; o sexo comprido e fino, colado ao ventre, estremecia.
Ele a levantou nos braços e pôs no meio da cama; sua boca se apossou da dela. Os dedos a acariciavam,
penetravam, apertavam os mamilos duros. De olhos bem abertos, ela o deixava fazer, silenciosa, e no entanto
receptiva. Quando ele a penetrou, ela vibrou da cabeça aos pés e gozou sem um gemido, traída apenas pela
abundante secreção, de que o homem se impregnou com avidez. Quando ele se ergueu, com o rosto brilhante,
ela já adormecera.
Se fosse com outra mulher, ele sentiria cólera ou se divertiria, mas, naquele momento, experimentou um
sentimento de frustração: em vez de ver o cansaço de uma amante satisfeita, sentia-se rejeitado pelo sono dela.
Esteve a ponto de penetrá-la de novo, brutalmente, mas por fim pensou que mais de um mês depois de a ter
tirado dos vietcongues, tempo em que tantas vezes tinham feito amor, ela bem merecia um pouco de descanso.
Deitou-se ao lado dela e, com as mãos na nuca, relembrou os momentos que precederam a libertação...
...Andando durante a noite, evitando as aldeias, penetrando nelas apenas para roubar alimento, às vezes
matando para isso, descendo o rio em embarcações conseguidas ao acaso, Kien, Fred, Vinh e Chau haviam
chegado à aldeia de Thâp Mieu, a uns trinta quilômetros de Hanói. Depois de se terem assegurado de que os
franceses ocupavam a aldeia, Kien se apresentara ao tenente que comandava o posto. Este telefonara para os
superiores em Hanói após ouvir a história rocambolesca daquela expedição.
- Deixe-me falar com ele! - gritara uma voz no telefone.
- Alô! Sou o comandante Garnier. Que história maluca é essa? Achávamos que vocês estavam mortos,
principalmente quando vimos reaparecer o monstro que os acompanhava... Alô!... O que houve com os três
legionários?... Desaparecidos?... Não resta nenhum sobrevivente do comando Vandenberghe?... Tavernier está
morto, tem certeza?... Por Deus!... Nenhum sinal da mulher? Os bandidos devem tê-la matado também... Que
merda! Que confusão, isso vai causar muita agitação... O alto-comando já não havia gostado que três
legionários fizessem parte dessa porcaria de comando... É bem idéia de civil querer procurar a mulher... E você?
O que estava fazendo no interior?... Ajudar o amigo de infância!... E então se meteu numa enorme confusão...
Qual o seu nome? Rivière?... Conhecemos bem esse nome... Você é parente do subtenente Rivière, Bernard
Rivière?... É irmão!... Parabéns; ele luta como um leão contra esses safados dos vietcongues... Você deve vir a
Hanói fazer um relatório.
Decidido a não fazer nada disso, Kien deixara o tenente para se juntar aos companheiros.
- Veja, chefe, quem está aqui! - exclamou Fred, mostrando um bando de esfarrapados.
Com o pé o mestiço o empurrara.
- Giàu dây à? Mây sông dai thât, dô sâu bo!*
- Giau? Você não morre, verme!
- Encontrou-a? - perguntou o infeliz.
- Não.
- Onde está o marido?... E os outros brancos?
- Estão mortos.
- Mortos! Todos?...
- O que é que você queria? Nem todos têm uma pele de couro como a sua - escarnecera Kien,
dando-lhe um pontapé que o arremessara na poeira em direção a Fred, que o mandara para Vinh,
que por sua vez o enviou para Chau.
- É melhor que bola de futebol! - exclamara Fred. Mas o monstro havia dado um grito. Logo, uma
nuvem de mendigos se abateu sobre os quatro homens. Sem dúvida teriam passado maus momentos
se soldados africanos não interviessem, dispersando os miseráveis a coronhadas.
Uma nova ferida ensangüentava a face de Giau, que se arrastara como animal ferido até a sombra
de umflamboyant. Kien se aproximara dele.
- Queríamos apenas brincar...
- Um dia eu vou matá-lo - respondera calmamente o mendigo.
Pela primeira vez na vida, Kien experimentara um sentimento de medo e pressentira que aquele
aborto era o único inimigo que tinha que recear, tal o ódio, visível, que lhe emanava dos olhos
angustiados. "Eu o matarei antes", dissera a si mesmo.
Mas na noite seguinte uma notícia lhe fizera esquecer completamente o monstro.
Soldados vietcongues haviam sido aprisionados e acabavam de ser trazidos para o posto, para ser
interrogados. Eram seis ou sete; três foram selvagemente torturados, mas nada disseram. Foram
jogados em estado lastimável na cabana de bambu onde estavam os companheiros. Já cansados, os
algozes haviam transferido para o dia seguinte o interrogatório. Por um longo tempo só se ouviram
na cabana gemidos e o choro de um dos homens. Quando a noite caiu, o tenente lhes mandou água
e arroz. Duas sentinelas montavam guarda. Kien se introduziu atrás
do cárcere quando soube que esses bô dôi vinham da região
dos campos. Achava que, se Léa ainda estivesse viva, devia estar
num desses campos. Colou a boca numa fenda do muro de
bambu.
- Ai chi huy?* - sussurrou.
*_ Quem é o comandante?
Houve um silêncio que lhe pareceu muito longo.
- Tôi - disse uma voz muito fraca.
- Tôi có thê giúp các anh trôn thoát nêu anh tra lài hai câu
hoi!**
Eu.
- Posso ajudá-los a fugir se responderem a duas perguntas.
***_ Vocês não resistirão à tortura... eles os matarão!
Ninguém emitiu o menor som.
- Các anh se không chiu nói su tra tân... chúng se giêt các
• anh!
- Anh là ai?... Môt tên phan bôi duói quyên chúng à?
- Không. Dê chúng to thuc tâm, anh hay lây luoi dao nây.*
- Quem é você?... Um traidor a soldo deles?
- Não. Para lhes provar minha boa-fé, peguem esta lâmina.
Kien fez deslizar um fino punhal pela fenda diante do que falava. Uma mão o agarrou.
- Anh muôn biêt gi?
- Anh có nghe nói dên môt ngàoi dàn bà da tráng bi giu o Cao-Nguyên không?
- Anh muôn gí bà ta?****
O que quer saber?
- Ouviram falar de uma mulher branca presa da Região Alta?
- O que quer com ela?
Então ela estava viva!
- Bà ây o dâu?... Tôicó thê cungcâp vu khívà cho cácanh trôn thoát ngay...
- Ai chúng minh anh không nói dôi?
- Dai dây và hay nhn qua song cua.**
Onde ela está?... Posso trazer armas e fazê-los fugir imediatamente...
- O que nos prova que não está mentindo para nós?
- Esperem e olhem para a grade da porta.
Como um felino, sem ruído, ele deu a volta ao cárcere, saltou
a sentinela mais próxima, arrastou-o para trás do muro e cortou-lhe a garganta. - Marcel, o que está fazendo? Ah, está urinando... Eis uma excelente idéia, vou fazer
o mesmo - disse a segunda
sentinela, encostando a arma na parede de bambu.
-Ah!
Seu grito se afogou num gargarejo sinistro.
No espaço de um instante, Kien, à espreita, ficou imóvel, depois voltou para trás da prisão.
- Anh thây chua? Bây già, nói tôi biêt bà ây o dôu.
- Có thê không phai nguôi anh tm... Ngu)i ta có thây môt nguài dàn bà da tráng trong làng
Na Hon, o vúng Bác Can.*
*_ Viram? Agora, digam-me onde ela está.
- Talvez não seja a que você procura... Vimos uma mulher branca na aldeia de Na Hon, na região de Bác Can.
Dez minutos depois, os corpos das duas sentinelas foram encontrados, e os prisioneiros tirados das celas e
torturados. Pela manhã, não tendo entendido nada do que haviam contado, apesar dos tradutores, foram
fuzilados. Nesse meio tempo, Kien e os companheiros fugiram de jipe para Hanói. Muitos dias depois se
descobriu num arrozal o cadáver do motorista, degolado como as sentinelas.
Os franceses ocupavam apenas uns quarenta quilômetros ao norte, a leste e a oeste de Hanói, com uma via
para Haiphong e uma faixa de terra até a fronteira chinesa. O restante do Tonquin - afora a região de Laï Chau, a
do campo entrincheirado em torno da pista de aviação de Na Sam e a de Lang Son, recentemente reocupada
pelos pára-quedistas - e dois terços do Annam estavam nas mãos dos vietcongues assim como o sul da
Cochinchina.
Depois de ter certeza de que o junco do pirata e as sampanas espiãs estariam prontos para o mar assim que a
ordem lhes fosse dada, Kien decidiu que Fred voltaria para Hanói e depois para Saigon por seus próprios
meios. Lamentava a ausência de Fred,
mas a presença de um branco teria sido perigosa e comprometeria a expedição.
Em Thaï Nguyen, foram festejados por jovens bô dôi, aos quais contaram como haviam roubado o jipe dos
franceses. Foram recebidos como verdadeiros heróis. Chegaram mesmo a lhes dar gasolina, para que pudessem
prosseguir a missão: informar os camaradas de Bác Can dos preparativos inimigos contra um ataque dos pára-
quedistas...
Fazia um tempo magnífico, dia quente, noite fresca. A estrada nunca esteve tão bem conservada desde a
construção por engenheiros franceses. Várias vezes cruzaram com mulheres levando nos cestos pedras
destinadas a tapar os buracos. Elas respondiam rindo às brincadeiras de Vinh e de Chau. Em Cho Moi era dia
de feira. Mulheres, crianças, velhos e animais atravessavam diante do veículo com certa indolência, própria
dos asiáticos. Por seu lado, Vinh dirigia como se a rua tivesse sido desimpedida.
- Devagar - disse-lhe Kien. - Não é hora para haver um acidente!
Pararam para tomar uma tigela de sopa e depois partiram, sem que ninguém lhes prestasse atenção.
Continuaram ao longo do Sôn Câu e atravessaram um vale circundado por falésias escarpadas e coberto por
vegetação exuberante. Pequenos macacos davam cambalhotas de galho em galho, soltando gritos agudos. Em
alguns lugares as falésias se separavam, dando lugar aos arrozais.
Em Bác Can, antigo principado thaí, foram presos e seu veículo tomado. Mediante um gentil maço de piastras,
o comissário político da cidade os deixou ir, mas não devolveu o jipe. Passaram a noite num albergue mantido
por um habitante local.
Ao amanhecer, munidos de provisões, partiram a pé em direção a Cho Dôn. Aí estariam a poucos quilômetros
de Na Hon e poderiam obter informações sobre a branca detida pelos vietcongues. Antes da partida, Fred
lembrara que muitas brancas tinham sido levadas pelos vietcongues desde 1946, e a maior parte delas nunca
fora sido encontrada; algumas, capturadas muito jovens,
haviam se casado com vietnamitas e nunca haviam manifestado desejo de voltar à pátria. Mas Kien
respondera:
- Eu sei que Léa está lá.
Fred encolhera os ombros. Tinha muita razão para desconfiar das mulheres: eram capazes de transformar um
homem, um verdadeiro homem, num frouxo!
Até Cho Dôn, a estrada, se bem que estragada em alguns pontos, era transitável. Em seguida, o caminho
freqüentemente desaparecia, coberto pela vegetação. Até onde a vista alcançava, Kien não via nenhuma das
belezas da paisagem, as elevações calcárias coroadas de verde, o céu azul refletido nos arrozais sobrepostos,
árvores de flores deslumbrantes, macacos ou pássaros que fugiam à aproximação.
A noite os surpreendeu a três ou quatro quilômetros de Na Hon. Após uma refeição frugal e alguns momentos
de repouso, decidiram continuar.
A uma ordem de Kien, ficaram nus, besuntaram-se de graxa e sujaram-se de terra: assim, ao mesmo tempo que
não poderiam ser agarrados, ficavam assustadores.
As portas da aldeia estavam fechadas, e não havia guardas. Kien pediu a Vinh que desse a volta à muralha de
bambu e procurasse eventuais aberturas. Vinh voltou rápido: descobrira uma abertura pequena mas bastante
larga para um homem, escondida por um monte de palha.
Um cachorro latiu, depois outro. Os três homens ficaram imóveis.
- Hay cú di vàng kháp ca làng
*_ Acho que encontrei alguma coisa.
- sussurrou Kien para Vinh.
Ele obedeceu e saiu correndo, sem fazer barulho com os pés nus. A um gesto, Chau se introduziu na abertura e
penetrou no interior; tudo parecia tranqüilo. De vez em quando, filtrava-se um clarão através de uma parede,
ouvia-se uma tosse, um ronco, o choro de um recém-nascido, o grunhido de um porco, o riso de uma mulher, o
grito de um pássaro noturno.
Chau re
**_ Não notei outra passagem.
Dê pelo menos a volta completa à aldeia.
cuou. Subitamente pulou para trás da pilastra de uma casa: um homem armado de fuzil estava acocorado diante
de uma construção baixa, que ele não notara. Impossível passar sem ser visto pelo homem. Chau teve sorte:
uma voz de mulher chamou. A sentinela olhou em volta e, seguro, partiu na direção da voz. Com alguns passos
Chau chegou à pequena cabana. As paredes de palha de arroz trançada não deixavam perceber nada;
entretanto, alguém estava lá, a julgar pelo ruído que se ouvia, parecido com o de um corpo virando-se numa
esteira. Chau voltou pela abertura.
- Tôi nghi da tm thây gí rôi
- Bem, fique aqui, nós vamos entrar.
- sussurrou a Kien.
Um estalo os alertou. Eles se encostaram à muralha, tentando confundir-se com ela, punhais nos dentes. Vinh
voltou até eles.
- Tôi không ghi nhân lôi nào khác.
- Tôt, hay o lai dây, chúng tôi se vào.
Em Na Hon tudo dormia. A sentinela não voltou ao posto. Eles se aproximaram da porta da cabana; um
cadeado rudimentar a fechava. Para Chau foi um brinquedo de criança arrombá-lo. A porta se abriu com um
rangido que os colou ao chão. Nada se movia. Kien entrou; a escuridão era total. Sentia-se no pequeno
cômodo um forte odor de ervas e de excrementos. A sua direita alguém se mexeu; ele tateou. Uma forma
feminina estremeceu sob ele, depois tentou livrar-se.
- Léa?... Não tenha medo, sou eu, Kien.
O corpo resistia; depois tremeu de alto a baixo, enquanto um gemido escapava da boca da mulher.
- Cale-se, não grite... É Kien, fale baixo.
No escuro, uma pequena mão procurou o rosto do mestiço.
- Kien? - murmurou ela.
- Venha, vamos tirar você daqui.
Ela se arrastou atrás dele, mas, do lado de fora, foi incapaz de se levantar. A escuridão não permitia distinguir-
lhe os traços. Kien a levantou - como estava leve! - e correu para a abertura, apertando-a a si. Chau fechou a
porta e o seguiu. Sempre correndo, atravessaram o caminho que contornava a aldeia e entraram num bosque.
Vinh se juntou a eles com as roupas e as armas.
- Dua bât lua cua tôi dây*
- Dê-me o isqueiro.
- ordenou ele.
A pequena luz da chama, que pareceu a todos tão forte como a luz de um projetor, permitiu a Kien reconhecer
aquela pela qual, havia semanas, eles traíam e matavam. Ele lhe estendeu um punhado de arroz grudento, sobre
o qual ela se arremessou.
- Mais!
- Não, isso pode lhe fazer mal. Beba um pouco de chá.
Léa bebeu um grande gole e logo começou a vomitar. Ele limpou-lhe os lábios com delicadeza.
- Agora beba, vai melhorar.
A intenção de Kien era alcançar Ha Coi ou Mông Cai, ao norte da baía de Ha Long, onde devia se encontrar
sua flotilha. Para isso, o mais simples era passar por Bác Can, tentar evitar Lang Son, em mãos dos pára-
quedistas, e chegar à costa, fugindo ao mesmo tempo dos vietcongues e dos franceses.
Eles fizeram uma espécie de maca para levar Léa e chegaram, aos primeiros clarões do amanhecer, aos bosques
que cercavam Bàc Can. Vinh foi encarregado de procurar comida. Por volta do meio-dia, ele voltou com uma
grande tigela de sopa de carne, um galão de chá e frutas. Kien fez Léa comer um pouco de arroz e sopa. Depois
esperou duas horas para lhe tornar a dar comida. De noite ela conseguiu ficar sentada, mas ainda não podia
andar. Eles contornaram Bác Can e usaram a estrada que conduzia a Phô Binh Gia. Kien lembrava que uma de
suas babás, de origem chinesa, morara ali. Ele tinha oito ou nove anos quando
ela voltara para casa por ordem do pai. Por duas vezes viera visitála, com os pais. A jovem mulher sempre o
recebera como a um filho. Se ainda estivesse viva, reconheceria nele o rapazinho de doze anos que vira quando
de sua última visita? Chamava-se XiaJing.
Eles levaram três noites para atingir Phô Binh Gia. A aldeia sofrera muito com a guerra. Kien confiou Léa aos
companheiros e entrou no povoado. Na rua principal, comerciantes exibiam pobres mercadorias diante de
casas destruídas; "restaurantes" funcionavam perto do pântano onde as cozinheiras pegavam água para fazer
comida. Kien se acocorou diante de uma delas, uma velha de dentes laqueados que parecia dirigir as
"cozinhas". A velha pôs alguns galhos secos sob um tripé, onde estava um prato redondo de alumínio.
Pequenas fatias de carne tostavam; com os pauzinhos de comer juntou algumas ervas e rodelas de cebola, que
misturou com mão experiente; depois despejou água sobre tudo. A fumaça que se desprendeu fez Kien ficar
com água na boca.
- Có ve ngon dây. Cho tôi môtphán, vói môt tô com.*
- Isso está com cheiro bom. Quero uma porção disso, com uma tigela de arroz.
A mulher o fitou franzindo os olhos. Serviu a sopa com a ajuda de uma concha de madeira e a colocou numa
tigela trincada, e juntou algumas gotas de nuoc-mâm e uma pitada de talo de cebolinha, picado fino. Pôs tudo
sobre a tábua que servia de balcão. Sem deixar os preparativos culinários, lançava freqüentes olhares em
direção a Kien. Ela tomou coragem quando ele lhe estendeu a tigela para ser servido novamente.
- Anh khôngphai o vüng này?**
**_ Você não é daqui?
- perguntou ela enchendo novamente a tigela.
- Cung phai mà cung không; tôi có dên dây khi côn bé.**
- Sim e não; eu vinha aqui quando criança.
Ele continuou a comer.
- Canh cua bà ngon dây. Da lâu tôi không duoc an món ngon nhu thê... Càn bà, bà là nguài
vàng này?
- Tôi duoc sanh de o dây, cung nhu bô me tôi.
- Tôi tim môt bà tên là Xia-Jing. Bà có biêt bà ta không?*
*_ Excelente a sua sopa. Faz muito tempo que não como coisa parecida... E você? É daqui?
- Nasci aqui, como meu pai e minha mãe.
- Procuro uma mulher chamada Xia-Jing. Conhece?
• Foi babá em Hanói?
- Foi.
As rugas da testa da velha pareceram aumentar.
- Bà ây có làm vú em o Hà-Nôi không?
-Có.
- Bà vân côn sông. Chông con bà da bi giêt chêt. Tà dó bà không càn duoc tinh.
- Bà ta o dâu?
- Khi dôy, khi dó... Thinh thoang bà dên an xin môt tô canh. Anh cho tôi biêt tên. Nêú có
gap bà, tôi se nói có anh tím. Anh hay tro lai chiêu nay hay ngày mai. **
- Ainda está viva. O marido e os filhos foram mortos. Desde então não tem andado
com a cabeça muito boa.
- Onde mora?
- Aqui, ali... Vem de vez em quando mendigar uma tigela de sopa. Dê-me seu nome.
Se a vir, eu lhe direi que você a procura. Volte aqui esta noite ou amanhã.
Kien deu seu nome e pagou, com generosa gorjeta. Comprou comida para os companheiros, e
roupas, sapatos e um chapéu de folhas de palmeira para Léa.
A jovem mulher podia agora dar alguns passos, e sua face tinha perdido o aspecto macilento. Kien
falava delicadamente com ela, como com uma criança. Ela sorria, com o pensamento visivelmente
em outro lugar, a memória apagada. O coração do mestiço se apertava toda vez que ele a olhava.
Fechando os punhos, jurou curá-la.
Já era noite quando voltou a Phô Binh Gia. Os lampiões a álcool, pousados no chão ou pendurados
em árvores, lançavam clarões vacilantes. A animação era maior que em fim de festa. Kien notou
alguns bô dôi, que "desfilavam" diante das moças. Abaixou o chapéu pontudo e curvou os ombros,
na esperança de reduzir a estatura. Encontrou a cozinheira, sentou-se diante dela e pediu o jantar
Ela lhe serviu porco seco cozido com brotos de bambu, raízes, aipo, folhas de alface cortadas em
tiras aromatizadas com alho e tostadas no azeite. Uma delícia ao mesmo tempo doce e salgada. Ele
repetiu. A velha o serviu novamente com um sorriso satisfeito; depois tirou do busto um cachimbo
de barro, em que colocou o tabaco com o dedo experiente, e fumou, vendo-o mastigar.
- Xia-Jing không có dên hôm nay. Anh hay tro lai ngày mai, bà ây se có mat.*
KUXia-Jing não veio hoje. Venha amanhã, ela estará aqui.
Qien escondeu a decepção e disse que voltaria no dia seguinte, não por Xia-Jing, mas por ela, por
causa da comida.
Ela não demonstrou nenhuma admiração quando ele comprou três porções de porco seco e de arroz,
que ela envolveu em largas folhas de lótus.
Ele teve de dar uma volta para evitar um grupo de bô dôi que fechava a estrada. No dia seguinte, a hábil cozinheira estava no lugar habitual. A seu lado, outra
velha preparava os
legumes. Quando a vendedora de sopa percebeu o jovem, inclinou-se para a companheira e
cochichou-lhe algo no ouvido.
A recém-chegada parou o que estava fazendo e levantou os olhos na direção de Kien. Um grito
gutural saiu-lhe do corpo magro.
- Con!**
- Meu filho!
Um gosto amargo invadiu a boca de Kien: não, esse pobre ser mirrado não podia ser sua assam...
mas era! A forma do rosto enrugado, o sorriso, que revelava as falhas na dentição, esse olhar
terno... Ela se levantou penosamente e veio até ele com pequenos passos apressados.
- Con***
- Meu filho.
- disse ela novamente.
Xia-Jing!
Ela caiu-lhe aos pés e abraçou-lhe as pernas, murmurando palavras desconexas. Começou a
formar-se uma aglomeração em
torno deles, com diversos comentários; isso poderia tornar-se perigoso. Kien a levantou e se afastou com ela.
A contragosto, todos voltaram ao trabalho.
- Chúng ta vê nhà u di.
- U không càn nhà nua; bon Viêt-minh da dôt tiêu nhà u rôi.
- Taisao?
- u da làm viêc cho Tây.*
- Vamos para a sua casa.
- Já não tenho casa; os vietcongues queimaram minha casa.
- Por quê?
- Porque trabalhei para os franceses.
Diante de seu ar frustrado, ela acrescentou:
- Nhung u dang o môt noi rât yên tinh mà không ai dên: môt ngôi dên rât cô mà ho cho là bi
tns êm. Nào theo u.
- Mas moro num lugar muito tranqüilo, aonde ninguém vai: um templo muito velho
que dizem ser maldito. Venha, siga-me.
Apesar da aparência frágil, ela andava rápido, apoiada no bastão. Por duas vezes parou para retomar fôlego,
depois partiu de novo, rapidamente. Xia-Jing penetrou numa espécie de recinto guardado pelo que deviam ser
outrora dragões. Uma vegetação exuberante exalava perfumes fortes, ao mesmo tempo açucarados e opiáceos.
Respirando-os, podia-se acreditar que se inalava algum veneno mortal. Um emaranhado de cipós, troncos,
espinhos, bambus, flores e ruínas fazia parar os mais temerosos; uma corrente de ar glacial envolvia os que
ousavam aventurar-se por lá. Era incontestavelmente o sinal da presença de um gênio mau.
Eles penetraram na confusão vegetal por uma estreita passagem e, ao fim de uns vinte metros, desembocaram
num pátio atravancado por bancos, tartarugas de pedra e estátuas quebradas, escadas desmoronadas,
pilastras de madeira apodrecida, telhas. Num tanque de água estagnada desabrochavam flores de lótus de
cores delicadas. Essa beleza tornava mais penosa a visão do desastre e a impressão de mal-estar que se
desprendia dessas paredes desabadas, desses tetos arrebentados, dessas salas abandonadas. O que se havia
passado de tão terrível nesse
lugar sagrado, para que a população dele se afastasse? Ele fez a pergunta a Xia-Jing; ela respondeu que não
sabia. Atravessaram cômodos devastados, nos quais a natureza recuperou seus direitos. Ao fim dessa
seqüência, a ama empurrou uma porta em que estava esculpida uma serpente engolindo uma rã. Ela juntara ali
tudo o que lhe restava de uma vida de trabalho. O conjunto era miserável mas limpo. Perto da esteira,
cuidadosamente enrolada, havia uma caixa coberta por um pedaço de seda bordada, e, junto à parede, um
aparador, sobre o qual estavam três estatuetas e fotografias ante as quais queimavam alguns bastões de
incenso; era o altar dos antepassados. Kien se aproximou, fez os lai rituais e emocionou-se ao reconhecer os
retratos do avô e dos pais juntos com os da família de Xia-Jing. Entretanto, uma fotografia não devia estar lá: a
que representava as três crianças Rivière rodeados por suas assam.
- Cm chua chêt mà!* - disse ele, beijando-a.
Ela corou como uma adolescente no primeiro beijo.
Delicadamente, ele lhe explicou o que esperava dela. Sorrindo com a boca desdentada, ela balançava a cabeça,
escutando-o.
Ao cair da noite, Kien e os companheiros se haviam mudado para o templo maldito. Chau levava as esteiras
que comprara na aldeia.
- Vo con dây à?
- É sua mulher?
- perguntara Xia-Jing ao ver Léa.
- Vông**
- É
- respondera ele.
Léa não se manifestara e aceitara sorrindo o chá de boas-vindas que lhe haviam oferecido.
Vinh partira como batedor e reaparecera dois dias depois. A picada estava em mau estado, mas pouco
freqüentada, e numerosas cavernas serviam de esconderijo. Era indispensável evitar Lang Son, passando por
Than Moi. Uma vez lá, era preciso ainda encontrar o melhor caminho para chegar a Tiên Yên.
- Ucó chivà anho Tiên Yên. Dê u càng di, use dân duông. Ngàoi ta se không dê dên môt mu
già.
- Chúng ta không thê dua bà ây theo, se làm chúng ta bi châm trê. Vói bà kia da là...
- Tenho uma irmã e um irmão em Tiên Yên. Deixem-me ir com vocês, eu os guiarei. Ninguém desconfia de uma mulher velha.
- Não podemos levá-la conosco, isso nos atrasaria. Já basta ela...
objetara Vinh, mostrando Léa.
Ele nem tivera tempo de terminar a frase, e já Kien o pegara pela garganta.
- Anh ccn nói dê,í vo tôi nhu thê, tôi giêt anh!
- Dê mac hán. Nhín bê ngoài, hán không thê biêt duoc u khoe manh và dung cam, cung nhu
không biêt vo con da khoe hon nhiêà.**
- Se você falar de novo de minha mulher dessa maneira, eu o mato!
- Deixe-o. Ele não pode saber que já estou forte e valente, apesar das aparências, nem
que sua mulher está muito melhor.
Ele empurrara Vinh, que esfregava o pescoço.
- Perdoe-me, chefe.
- Está bem, está bem.
Ele se aproximou de Léa, que olhava as pequenas rãs saltando de uma folha de lótus para outra.
- Você se sente em condições de andar muito tempo? Ela sorrira e concordara com a cabeça.
Nessa noite eles tinham feito amor.

Capítulo 21

Bateram violentamente à porta do quarto sórdido. Tavernier e Maréchal se ergueram, empunhando as pistolas.
- Não atirem rapazes! Sou eu, Valère... Venham rápido, há novidades.
Os dois homens, cansados, calçaram os Pataugas, juntaram bolsas e armas e seguiram o alsaciano. O dia
amanhecia, fazia frio: o vento se engolfava pelas ruelas lamacentas. No café, comerciantes chineses,
camponeses thaís, montanheses mans tomavam sopa ou bebiam chá. Valère os chamou à parte e fez sinal a
uma empregada, que voltou rapidamente, carregando uma pesada bandeja.
- Comam, é preciso recompor as forças - disse ele, inspirando ruidosamente o chá fervente.
- Ainda agora você gritou que havia novidades: o que queria dizer com isso? - perguntou Maréchal.
- Esperem, eis o amigo de vocês: assim eu não preciso repetir. Então, você dormiu bem? - perguntou ele a
Thévenet, que vinha encontrá-los.
- Não preguei olho... Que disposição tem seu mulherão! Valère encolheu os ombros.
- É forte... Agora, rapazes, agucem os ouvidos: ontem, três mil pára-quedistas saltaram no vale de Diên Biên
Phu.
- Onde fica isso? - perguntou Thévenet, bocejando.
- Ao sul de Laï Chau. A operação se desenvolveu sob as ordens do general Guies.
- O zarolho?! - exclamou Thévenet. - Eu o conheci em Na San. Pensei que tivesse voltado para a França. Para
que todo esse circo?
- Na minha opinião, vão evacuar Laï Chau e concentrar forças em Diên Biên Phu para fechar a estrada de Luang
Prabang.
- Até ontem você nos dizia que queriam conservar Laï Chau e a região thaí - recordou Maréchal.
- Mudaram de opinião - disse laconicamente o ruivo.
- Nós não - replicou Tavernier. - Mas você ainda quer partir?
- Não vai ser fácil chegar até lá... Se estiverem de acordo, eu também estou, e não apenas por causa do
diamante:
preciso mudar de ares... Estou me embrutecendo aqui. Que dia é hoje?
- Não sei... 20, 21 de novembro... É isso, ontem foi 20 de novembro de 1953... Porra, era meu aniversário! -
exclamou Thévenet.
- Feliz aniversário, companheiro! Festejaremos quando estivermos em Laï Chau - disse François, estendendo-
lhe a mão.
- Feliz aniversário! - disseram os outros ao mesmo tempo.
Eles se despediram de Gegê e agradeceram a ela por lhes ter conseguido roupas quentes, víveres - e para
Thévenet muito sexo. Do lado de fora caía uma chuva miúda e muito fria. Com as armas e granadas escondidas
sob a cobertura que os protegia da chuva, eles contornaram o posto de bô dôi instalado na saída de Lao Cai e
seguiram ao longo do rio Rouge, para atingir o local do embarque, alguns quilômetros rio acima, onde
aguardaram a noite. Graças a Paul - o nome cristão do criado thaí de Vaière
- navegaram até Ba Xa, pela margem oposta. Do outro lado do rio estendia-se a China.
Quarenta e oito horas mais tarde, chegaram à montanha, tiritando durante a noite e transpirando durante o dia,
escondidos no capim alto. Escaparam de ser surpreendidos por uma patrulha vietcongue pesadamente armada
e descendo para Phong Tho. Paredes de arbustos formadas por plantas cheias de espinhos atrasavam a
caminhada; ao fim de uma semana, haviam percorrido apenas uns quarenta quilômetros.
- Nessa velocidade, quando chegarmos a Laï Chau, a guarnição terá sido evacuada e os vietcongues estarão
ocupando o lugar - disse Valère. - Sou mesmo um idiota para ter me metido nessa porcaria!
- Pare de se lamuriar como uma mulher velha! - exclamou Thévenet.
- De que você me chamou, filho da puta? Vou quebrar-lhe a cara...
Tavernier se pôs entre eles.
- Parem! Acham que está na hora de brigar, enquanto os vietcongues estão por toda a parte?
- Tem razão - disse Valère. - Mas, se ele voltar a me comparar com uma mulher, eu o mato. Compreendeu,
palhaço?
- Está bem, está bem. Você está errado de se zangar sem motivo... Era só um jeito de falar.
- Não há jeitos entre homens.
- Todos estamos exaustos - disse Roger Maréchal. - Tentem dormir, eu fico no primeiro turno de guarda.
A noite transcorreu sem problemas. Eles acordaram gelados, sob a chuva miúda. Depois de terem bebido um
pouco de chá frio e mastigado um pedaço de carne-seca, partiram novamente, por um atalho que, segundo
Paul, conduzia a Sinh Ho. Daí seguiram por uma picada ao longo do cume dos morros, avançando
penosamente através do tran, o capim-elefante, cujos talos cortantes e empoeirados atingiam às vezes dois
metros. Sua única vantagem era escondê-los, da mesma maneira que podiam esconder o inimigo.
Não foi o inimigo que eles encontraram, mas uma companhia de irregulares* thafs, comandados por um jovem suboficial francês. Não fosse a surpresa
experimentada de parte a parte, que os paralisou por um breve instante, os dois grupos teriam se
matado um ao outro. Mas o sargento, notando quatro homens de raça branca, interveio.
- Alto!... Vocês são franceses?... Desertores?...
- Franceses, sim. Desertores não! - respondeu Tavernier.
- Este éo tenente Thévenet, e este, o suboficial Maré chal, ambos de licença da Legião e em missão
especial. Senhor Valère... é o seu nome?
Meu nome é Meyer. Valère Meyer.
Nosso guia, Paul.
- E o senhor?
- François Tavernier, incumbido de missão pelo alto-comando.
- O senhor tem prova disso?
- Meu jovem amigo, nestes lugares é melhor levar o menor número de provas possível.
O jovem corou sob a barba. Para disfarçar, alteou a voz:
- Aonde iam?
- Estamos tentamos chegar a Lai Chau e fazer um relatório para as autoridades militares - disse
Tavernier.
- Também estamos tentando... Mas os vietcongues estão por toda a parte, e eu já perdi onze
homens.
- Estamos longe de Laï Chau? - perguntou Maréchal.
- Não, uns vinte quilômetros. Mas aqui isso não significa nada. - Após uma hesitação, ele
acrescentou: - Eu sou obrigado a lhe pedir que venha conosco, tenente.
- Não se incomode, garoto, nós assumimos tudo - respondeu Thévenet.
Juntos retomaram a marcha na poeira amarela do capim-elefante, a qual lhes irritava os olhos e
ressecava os pulmões. Em cinco horas de marcha estafante, haviam percorrido apenas quatro
quilômetros.
- Alto! - murmurou o jovem sargento.
- Nesse andar não chegaremos a Laï Chau - observou Thévenet, deixando-se cair ao solo, no que foi
imitado por todos.
Exaustos, os homens nem tinham fome: sede, sim, mas os cantis estavam vazios.
- E essa porcaria de rádio que não funciona! - disse o sargento, batendo na maleta.
De repente, um bando de vietcongues surgiu gritando no meio do capim e abriu fogo. Cinco
irregulares tombaram. Rolando, Thévenet pegou uma das granadas, tirou o pino e a lançou sobre os
atacantes, abrindo uma brecha em suas fileiras. Tavernier e Maréchal a aumentaram com o fuzil-
metralhadora. Quanto ao colosso alsaciano, acertava o alvo a cada tiro de pistola.
Os bô dôi se reagruparam e atacaram. Uma rajada ceifou os primeiros, enquanto os outros se
empenhavam num corpo a corpo, armados de punhais ou de facões. Valère conseguiu se esconder
no capim e, contornando os combatentes, abateu à queima- roupa quatro vietcongues, antes de ser
por sua vez mortalmente ferido por uma punhalada.
Uns vinte minutos depois, o sargento, ferido no ombro, contou vinte e cinco mortos de ambas as
partes. Entre eles, Meyer, o amante dos charutos, o colecionador de antiguidades, que queria "mudar
de ares", e Paul, seu serviçal
- Eu estava começando a me acostumar com ele - disse Thévenet, à guisa de oração fúnebre.
François fechou os olhos e colocou o chapéu sobre seu rosto. Era tudo o que podia fazer. Maréchal
pegou a bolsa e as armas.
Na manhã de 7 de dezembro de 1953, houve no céu um balé aéreo que trouxe um alívio ao coração
do sargento, dos thaís sobreviventes e de Maréchal. Thévenet e Tavernier ficaram mais cautelosos;
haviam guardado na memória as palavras de Meyer lembrando a evacuação de Laï Chau. Podia-se
dizer que ela começara... Alguns aviões aterrissavam, enquanto outros decolavam. Ao norte e a
leste, os Dakotas jogavam víveres e material de pára-quedas. Isso durou dois dias, durante os quais
eles tentaram alcançar a cidade. Parecia que toda a natureza se mobilizava para impedi-los de avançar. Além da vegetação, em que se feriam, mãos e
braços sangrando, precisavam, em alguns lugares, contornar fendas profundas, escalar, descer, escorregar,
com o rosto deformado pelas picadas de mosquitos, temendo ao mesmo tempo os vietcongues e os animais
ferozes.
Depois a calma voltou. Um grande silêncio caiu sobre a região. Não por muito tempo.
- Os safados! Eles nos abandonaram - disse o sargento, com lágrimas nos olhos.
- Há umas caixas que caíram não muito longe daqui. Vamos ver se têm algo que se possa comer - disse
Thévenet.
O conteúdo de duas caixas tinha se espalhado. Os irregulares, contentes, juntaram latas de conservas,
cigarros, galões de água e de cerveja, rações de sobrevivência, cobertores, duas caixas de medicamentos e até
bolos. Nessa noite, diante do sol avermelhado que se punha atrás das montanhas que dominavam Laï Chau,
todos, apesar da angústia, fizeram boas refeições.
No dia seguinte, foram acordados pelos ruídos do rádio:
- Alô? Aqui Hirondeile... é com você, fale! - gritou o sargento.
Ninguém respondeu. Depois, bruscamente, uma voz saiu do aparelho.
- Alerta a todas as companhias, alerta a todas as companhias: voltem à base de Diên Biên Phu.
- Diên Biên Phu? É um lugar que está ficando na moda, parece! - disse Thévenet.
Depois de examinarem os mapas, eles decidiram não tentar entrar em Lai Chau, aonde os vietcongues não
tardariam a chegar, se já não estivessem lá, e descer o Mu'ong Tong e daí seguir a estrada Pavie* na direção
de Diên Biên Phu.
Muito tempo depois, François iria se perguntar como haviam
feito para atingir o pequeno lugarejo thaí, que se tornou célebre com o nome de Gabrielie.
O dia se anunciava tórrido quando eles penetraram no vale de Diên Biên Phu, cercado aqui por colinas
suavemente arredondadas, ali por calcários recortados emergindo de florestas onde havia tigres. Dos dois
lados da estrada Pavie, pomares de laranjeiras e limoeiros, dominados por grandes mangueiras, eram agitados
por uma brisa ligeira. Algumas palhoças sobre pilares formavam um povoado. Mulheres e crianças os viam
passar, apertados uns contra os outros. Velhos fumavam. Feios cães amarelos os perseguiram latindo, porcos
negros chafurdavam nos chiqueiros, galinhas fugiam e cavalos pequenos sacudiam a crina.
"O vale feliz...", pensou Maréchal.
Esse encanto bucólico foi quebrado pela chegada de caminhões militares, precedidos de um jipe, que parou
junto à tropa andrajosa.
- Sargento Noir! Feliz de vê-lo novamente! - exclamou um tenente, descendo do veículo.
- Eu também, tenente.
Logo que pronunciou essas palavras, ele desmaiou. Foi transportado para um dos caminhões; os thaís subiram
com ele. Tavernier, Maréchal e Thévenet tomaram lugar no jipe, que deu meia-volta.
À medida que avançavam, a paisagem idílica dava lugar a extensos canteiros de obras para construções no
local; diversos veículos se cruzavam mais de uma vez. Milhares de homens cavavam buracos, trincheiras,
construíam muros de sacos de areia, desenrolavam rolos de arame farpado, instalavam barracas, juntavam e
esvaziavam caixas jogadas de pára-quedas um pouco antes, derrubavam as grandes árvores que ficavam junto
à pista de aterrissagem. Das cozinhas montadas sob barracas subiam odores de comida. Meninos thaís, com
gorros na cabeça, não perdiam nada do espetáculo, muito mais divertido que o dos búfalos no meio dos
arrozais ou da pesca no rio Nam Youn. No campo de aviação
construído pelos japoneses e aumentado pelos franceses, um Bauer pousou, logo cercado por
soldados, que descarregaram bicicletas, enquanto na pista, deitados em macas, feridos aguardavam
o embarque. Uma jovem usando macacão de pára-quedista, com um chapéu amassado, tirava
fotografias.
- É Brigitte Friang, repórter fotográfica. Ela está aqui desde o início. Uma grande mulher: saltou
conosco.
O vento fez baixar uma nuvem de fumaça proveniente do mato que estava sendo queimado. O jipe
deu uma guinada para evitar três pára-quedistas que faziam o trajeto, montados em pequenos
cavalos thaís. Os cavalos eram tão baixos, que os pés dos homens roçavam o chão. Perto das casas
ainda de pé, jovens mulheres em longos vestidos pretos com gola ornada de galões bordados e
cabelos presos em coque usavam o pilão para descascar o arroz.
Tavernier e os dois legionários foram conduzidos ao PC do coronel de Castries. A conversa com
Maréchal e Thévenet durou uns dez minutos; o estado-maior os mandou ao comandante Guiraud,
que comandava o BEP*
- Vamos reencontrar os companheiros - disse Thévenet, deixando François.
Para este, ao contrário, o encontro com o coronel foi tempestuoso.
- E quer que eu engula toda essa história?... O senhor me toma por um imbecil! - exclamou de
Castries, levantando as grossas sobrancelhas pretas, depois de tê-lo escutado por muito tempo.
- Coronel, telegrafe ao general Navarre: o general Salan contou a ele.
- O general Salan não foi explícito no momento de sua partida.
- Seja como for, peço-lhe permissão para falar com Saigon para saber se têm notícias de minha
mulher.
- Antes de concordar com o que o senhor me pede, tenho
de ter certeza de sua identidade. Enquanto espero, considere-se preso... sob palavra, bem entendido.
Tenente!
- Sim, coronel.
- Conduza o senhor Tavernier para que ele tome banho depois da visita ao médico...
- Mas não estou doente!
- Isso quem vai julgar é o major. Se o senhor Tavernier estiver com boa saúde, dê-lhe uma cama.
Suas armas, senhor.
Contrariado, François entregou ao tenente o punhal, o facão, a pistola e o fuzil-metralhadora.
Tomou banho num meandro do rio Nam Youn. Nu até a cintura na água gelada, esfregou-se com o
sabão de Marselha que lhe passara o suboficial senegalês encarregado de vigiá-lo. Com a cabeça e
os olhos cheios de espuma, escorregou nas pedras redondas e caiu na água, para grande hilaridade
do africano.
- Chefe! Assim vai amedrontar os peixes.
François saiu da água e prendeu a toalha cáqui em volta dos quadris.
- Pensou na barba?
- Sim, chefe. Penso em tudo.
Lavado e barbeado, François se sentiu pronto para enfrentar todos os coronéis e generais de Diên
Biên Phu. Fez uma careta quando viu as roupas sujas que devia tornar a vestir.
- Suas roupas estão nojentas, chefe...
- Senhor Tavernier!
O tenente se aproximava.
- O coronel me encarregou de lhe acompanhar ao furriel, para que lhe consiga uma roupa limpa.
- O senhor agradecerá ao coronel a cortesia - disse François, com um piscar de olhos, ao suboficial.
Com toda a dignidade, vestido apenas com a toalha, atravessou o campo até a barraca do sargento
furriel.
- Sargento, eis uma autorização para uma roupa completa; faça o melhor possível.
- As ordens, tenente.
Uma meia hora mais tarde, sempre seguido pelo senegalês,
François Tavernier, de roupa nova, foi ao cabeleireiro, que lhe fez um corte da moda, isto é, o mais curto
possível.
Examinado pelo médico, foi dado como "apto para o trabalho"...
Só depois de três dias é que foi autorizado a fazer as refeições em companhia dos oficiais. Só se falava da
entrevista concedida por Hô Chin Minh ao jornal sueco Expressen, na qual o líder vietnamita se dizia pronto
para examinar as propostas de armistício do governo francês. Dizia-se que o ministro do Exterior, Georges
Bidault - "Ainda ele!", disse a si mesmo François - opusera um veto formal à retomada das negociações com o
vietcongues, apesar da opinião favorável do ministro da Defesa, René Pleven, e mesmo da do presidente do
Conselho, Joseph Laniel. Driblando a censura, as informações chegaram ao campo. François Tavernier teve
dificuldade para não demonstrar cólera e desprezo pelos "burocratas", como os chamavam os militares.
Quantas vezes tinham eles deixado passar a chance de acabar com essa guerra suja!
Em 17 de dezembro de 1953, o general Navarre veio a Diên Biên Phu em companhia do general Cogny. Quando
desceu do Dakota, uma seção de marroquinos de turbante e polainas brancas bateu continência. Fazia tempo
bom, e ele os saudou com ar satisfeito. Depois de um rápido almoço, o coronel de Castries, dirigindo ele mesmo
o jipe, com pára-brisa deitado sobre o capô, levou-o a visitar as novas instalações, seguido por uma dezena de
carros militares, em que estavam oficiais e fotógrafos. Castries mostrou o local escolhido para criar o ponto de
apoio* "Gabrielie" na estrada Pavie, ao norte do funil.
Pouco antes da partida, François conseguiu aproximar-se de Navarre e disse-lhe algumas palavras.
- Estou a par. Levo-o para Hanói; ficaremos baseados lá.
- Obrigado, general.
Nomes femininos (Claudine Huguette, Dominique. Eliane, Isabelie etc.) haviam sido
dados aos diferentes pontos de apoio do funil de Diên Biên Phu.
Ele teria gostado de se despedir de Thévenet e de Maréchal, mas já eram dezessete horas, o sol ia se pôr e a
partida era iminente.
Visto do alto, o vale parecia minúsculo, aprisionado pelas colinas e pelas montanhas. "Uma verdadeira
armadilha", pensou ele, voltando os olhos para o outro lado.
- A divisão 308 percorreu cinqüenta quilômetros em dois dias. Em menos de uma semana estará em Diên Biên
Phu - disse o general Cogny.
François se ergueu na cadeira, atento.
- Você se preocupa à toa: teremos com que recebê-los - respondeu Navarre em tom impaciente.
- Mas...
- Cale-se! Temos civis no avião.
O Dakota aterrissou em Hanói com chuva e frio.
Detido por dois dias no quartel da Citadeile, François foi interrogado pelos oficiais dos serviços de informação.
Só na véspera de Natal é que o deixaram sair. Ele respondeu o mais exatamente possível a todas as perguntas,
sem conseguir nada a respeito de Léa.
- Aqui não sabemos nada. Esperamos uma resposta do escritório em Saigon.
Com o coração apertado, ele deixou a fortaleza sob um aguaceiro. Caminhou por aquelas ruas pelas quais Léa e
ele tanto gostavam de passear: rua de la Laque, rua de la Soie... No lugar onde fora ferido, nada parecia ter
mudado: apesar da chuva, havia a mesma atividade, os vendedores de sopa se abrigavam sob grandes guarda-
chuvas, os mendigos estavam a postos.
François parou subitamente com os olhos voltados para um corpo agachado e meio escondido sob um pedaço
de chapa ondulada.
Se um dia lhe tivessem dito que ficaria feliz de rever o mendigo, a ponto de ter vontade de abraçá-lo, teria
ficado muito espantado. Ao ser chamado, o infeliz ergueu a cabeça. Estava ainda mais horroroso que em sua lembrança. Os olhos purulentos brilhavam de febre e o fitavam
sem parecer
reconhecê-lo. François se abaixou.
- Sou o marido de Léa.
Ao ouvir esse nome, o olhar do enfermo se iluminou; ele tentou se levantar, mas caiu novamente.
- Vá buscar um "carrinho" - disse ele a um garoto, dando-lhe um dinheiro.
O garoto partiu correndo e voltou logo depois com um cyclopousse, que fazia muito já ultrapassara a idade
da aposentadoria. Ajudado pelo garoto, François içou Giau para o banco, apesar dos protestos do condutor.
- Para a estação!
De frente para a estrada de ferro, erguia-se outrora uma hospedaria para nativos cujo dono fora, durante
muitos anos, o criado habitual do pai de Hai.
- Espere-me - disse ele ao condutor.
Assim que entrou, viu-se cercado por um odor de sopa e de miséria. Nas poltronas de vime estavam sentadas
duas mulheres, uma magra e muito idosa, a outra gorda e mais jovem. Nenhuma se mexeu com a sua entrada.
- Sou da família Rivière. Queria um quarto com duas camas - disse ele em vietnamita.
- O hotel está lotado - respondeu-lhe a gorda em francês.
Ele tirou um maço de piastras, que agitou sob o nariz dela.
- E com isso?
Ela se apoderou das notas e disse com um sorriso ignóbil, mostrando um quadro de onde pendiam três ou
quatro chaves.
- O número dois.
Ele pegou a chave, saiu e voltou trazendo Giau. A mulher gorda o olhou com dureza, mas o olhar que ele lhe
lançou impediu imediatamente possíveis reclamações.
O quarto não era tão sujo como ele receava. Deitou Giau numa das camas, cobriu-o e desceu novamente.
- Onde posso encontrar um médico?
- Na próxima rua à direita: verá uma tabuleta. Ele pelo menos não vai morrer aqui, não é?
François não respondeu.
- Ele está com bronquite e, principalmente, morto de fome
- diagnosticou o médico, um mestiço chinês.
Depois de quarenta e oito horas, Giau recobrara suas forças e já não tinha febre. Maravilhado, observava tudo
em redor.
- É a primeira vez que durmo numa cama!
Durante esses dois dias François tentara telefonar para Lien, em Saigon. Sem sucesso. No hotel Métropole foi
recebido calorosamente pelo gerente e pelo pessoal. Nenhum rosto conhecido no bar: os correspondentes de
guerra, os fotógrafos haviam sido substituídos. Alguns, diante de seu rosto cansado e seu cabelo curto,
quiseram começar uma conversa; ele se mostrou apenas educado. Engoliu um conhaque-soda e voltou para
perto de Giau. Nas ruas, a despeito de chuva, reinava certa animação - era Natal.
Giau sabia pouca coisa a respeito de Léa. Perdera sua pista perto de Chiêm Hoa, sobre o Song Gâm. Lá ele
soubera que uma mulher branca, prisioneira dos vietcongues, fora morta. Pela descrição que lhe fora feita,
poderia ser ela. Mas como ter certeza? Para os asiáticos todos os brancos se parecem... Tudo o que pudera
recolher ulteriormente parecia confirmar a morte. Voltara para Hanói para tentar saber mais. Não sabia de mais
nada. Quem sabe ele...?
Dois dias após o Natal, François foi convocado, tarde da noite, pelo serviço de informações. Incomodado, mas
visivelmente apressado para ir jantar, o chefe do serviço lhe estendeu uma folha: o texto datilografado estava
redigido em estilo telegráfico:
"Uma mulher branca, depois de ter morto uma violinista, combatente vietcongues, foi executada no mês de
outubro ou novembro último perto de Ngân Son."
Apalermado, ele olhava para a frente, vendo Léa à cabeceira de Nhu-Mai... Por que a teria matado? Isso não
fazia nenhum sentido! E no entanto...
- Amigo! Está sentindo alguma coisa?
François se levantou e saiu. As ruas estavam escuras, o vento
soprava, uma chuvinha fria caía sem parar enquanto os sinos da
catedral de Hanói anunciavam a missa da tarde. Maquinalmente
ele se dirigiu para o carrilhão.
A nave estava cheia de mulheres, crianças e velhos que rezavam
e cantavam com fervor. Ele deslizou para um canto escuro, -
ajoelhou-se e, com a cabeça entre as mãos, começou a chorar.

Capítulo 22

Sem os cuidados atentos de Xia-Jing e o amor de Kien, Léa não
teria chegado com vida a Tiên Yên.
O pequeno grupo percorrera os cento e cinquenta quilômetros que os separavam do mar em condições
espantosas, evitando ao mesmo tempo os vietcongues e os franceses, roubando, matando para tentar
conseguir um pouco de comida. Nessa par- te do Tonquin devastada pela guerra, tinham cruzado muitas vezes
com crianças errantes, nuas, que se jogavam sobre eles gritando e chorando de fome. A algumas faltava um
braço ou uma perna, arrancados por uma mina. A maior parte do tempo, Kien e XiaJing as enxotavam,
enquanto Chau e Vinh às vezes lhes davam escondido um pouco de arroz.
A morte de Nhu-Mai parecia ter paralisado a inteligência e o juízo de Léa. Quanto à memória, funcionava em
meio a eclipses. Por momentos, ela franzia as sobrancelhas, depois ria ou soluçava chamando o pai ou a mãe. A
visão das crianças estropiadas suscitava-lhe invariavelmente o choro, mas em nenhum caso a fazia pensar nos
próprios filhos. Freqüentes dores de cabeça a deixavam abatida, apertando as têmporas com as mãos. A cada
parada, Kien a levava para um canto e fazia amor com ela. Léa
deixava-o fazer, com os olhos bem abertos, sentindo prazer, mas sem exalar um só suspiro,
nenhuma palavra. Apenas um longo tremor de todo o corpo manifestava prazer ao amante, que a
teria preferido gemendo, provocante. Mas essa Léa ficara na clareira junto ao cadáver de Nhu-
Mai. Freqüentemente, nas horas de descanso, ela ouvia o violino da amiga e, deitada, adormecia,
com um sorriso nos lábios, enquanto uma lágrima rolava suave- mente para os cabelos curtos.
Até Lôc Binh, a cinco dias de marcha de Phô Binh Gia, Léa seguira o passo dos companheiros.
Mas a travessia, à noite, da planície lacustre de Lôc Binh, o vento glacial que descia dos mil e
quinhentos metros do Mâu So'n haviam vencido suas forças. Por ordem de Kien, Vinh e Chau
lhe tinham feito uma maca. Para escapar das patrulhas francesas, descansavam durante o dia e só
retomavam a caminhada ao crepúsculo. A progressão era lenta. Ao amanhecer, depois de ter
cuidado e alimentado Léa, Xia-Jing ia adiante: cruzava com soldados ou camponeses que não lhe
prestavam nenhuma atenção, o que lhe permitia comprar dos pequenos negociantes de beira de
estrada arroz, frutas, algumas vezes carne ou peixe seco, que ela punha numa espécie de alforje
preso às costas. Não passava pela cabeça de ninguém desconfiar dessa velha nhà quê
desdentada.
Depois de Dinh Lâp, eles tinham encontrado famílias yaos que se aqueciam perto de um fogo e
lhe haviam dado lugar sem fazer a menor pergunta. As crianças haviam olhado Léa de uma
distância respeitosa. Depois eles tinham caminhado ao longo do Sông Ki Cung: as rochas de
arenito vermelho davam uma cor de sangue à paisagem. Pouco antes de tomar a barca de corda
para atravessar o curso d'água, haviam sido surpreendidos por atiradores marroquinos, que, não
esperando descobrir uma européia estendida numa padiola, haviam reagido muito tarde e pago
com a vida pela surpresa. Um punhado de piastras e a ponta de uma adaga no côncavo dos rins
do condutor da barca lhes haviam ativado a força dos braços e feito vencer os quinze metros do
riacho em tempo recorde. Eles entraram em Tiên Yên ao cair da noite.
Xia-Jing saiu pela pequena cidade devastada à procura da casa
do irmão e irmã; mas todo o bairro desaparecera. Ela soube por um velho que a irmã, Da Luo, se
refugiara na aldeia de Dam Ha, perto do mar. Vinh acompanhou a ama, com a missão de encontrar
um junco ou, na falta dele, uma sampana. Na praia próxima a Dam Ha, Xia-Jing correu o mais
rápido que lhe permitiam as pobres pernas, desgastadas nesses dias e dias de caminhada, para uma
apanhadora de moluscos que ela reconhecera como Da Luo. As duas mulheres se abraçaram,
dando grandes gritos de alegria. Graças a Da Luo, Vinh pôde alugar um pequeno junco, que estava
em estado muito satisfatório. Mediante algumas milhares de piastras, o proprietário aceitou conduzi-
los pelo golfo de Tonquin até Ha Côi e depois ao longo da ilha de Vinh Thuc, à procura do junco de
Kien, sem fazer perguntas.
Embarcaram no dia seguinte. Xia-Jing os acompanhava: ela recusara ficar com a irmã, que deveria
se juntar ao marido na prisão militar de Pointe-Pagode, onde eram "reeducadas" as cabeças
pensantes do exército, para grande prazer dos vietnamitas ali colocados por oficiais perversos para
vigiá-los no trabalho humilhante. Foi ao sul da ilha de Trà Cô, ligada ao continente por um dique de
mais de um quilômetro, que Kien encontrou o junco, escoltado por três sampanas em que homens
armados estavam escondidos por sacos de arroz. Fred fizera um bom trabalho, de noite o junco de Kien
se afastou das costas indochinesas. A
três sampanas o escoltaram entre a ilha de Wei Tcheou e a de Vinh Thuc, depois voltaram. Cinco
homens, todos excelentes atiradores, estavam a bordo. Ao amanhecer, viu-se um junco do qual
faziam sinais.
- É Fred! - exclamou Kien, olhando pelo binóculo. - Ele deve estar vindo de Pak Koi. Até aqui temos
escapado dos barcos costeiros franceses e chineses. Que os demônios do mar continuem a nos
proteger!
Os dois juncos navegaram juntos sem encontrar obstáculos até o estreito de Hai Nam. A passagem
entre a China e a grande ilha foi difícil, por causa do nevoeiro: a luz dos dois faróis que
protegia o estreito mal era visível. O piloto temia chocar-se com os bancos de areia, de cuja presença ele tinha
conhecimento. Inclinado na frente do barco, Kien o guiava. A saída do canal, o nevoeiro se dissipou.
Léa, doente, ficou fechada na cabine.
A algumas milhas de Hai Nam, os dois juncos foram inspecionados por uma pequena embarcação da alfândega
chinesa. Apesar de estar com todos os documentos em ordem, Kien teve de dar uma boa soma de dinheiro aos
agentes, o que fez sem reclamar, de bom humor: era o costume, É melhor cair nas mãos de agentes
alfandegários desonestos do que nas de piratas, que matavam para se apoderar da embarcação e violentar as
mulheres, quando havia alguma a bordo, antes de vendê-las para os bordéis.
O bom tempo voltou, e Léa, já não sentindo enjôo, subiu para o deque. Havia quatro dias que navegavam.
Passaram perto de dezenas de ilhas e ilhotas.
- É aqui que está enterrado São Francisco Xavier, o apóstolo das Índias, como dizem os católicos.
- Como se chama esta terra? - perguntou Léa.
- Os portugueses a denominaram Sancian; ela faz parte das ilhas Saint-Jean.
Mais tarde, passaram ao largo de Macau, o Mônaco chinês.
- Vou trazê-la aqui - disse Kien. - No bairro da Praia Grande parece que estamos na Côte D'Azur, e na rua de
Felicidade, em Cholon, no Grand Monde, mais extravagante ainda! Nas ruas do bairro chinês, cada casa é uma
espelunca... uma casa de jogo, como dizem os habitantes. Desde 1946 Macau é também um dos maiores
importadores de ouro do mundo.
Enfim, na imensa embocadura do rio des Penes, eles perceberam a primeira ilha do enclave de Hong Kong,
Lantau.
Nessa mesma noite, Léa dormiu numa suíte do hotel Peninsula, um suntuoso palácio dos anos 20 que parecia
muito longe da Indochina e da guerra.
Haviam chegado fazia três dias quando um gigantesco incêndio
irrompeu, no dia de Natal, no bairro de Shep Kip Mei, pobre e superpovoado. Durante todo o dia e
toda a noite viaturas dos bombeiros e ambulâncias cortaram as ruas. A Cruz Vermelha e as
associações de caridade lutaram para realojar os que perderam tudo. Verdadeiras aldeias de
barracas surgiram em diversas partes, coletas foram organizadas para ajudar os cinqüenta e três mil
resgatados.
Foi um médico chinês que disse a Léa que ela estava grávida de três meses. O anúncio dessa
gravidez a deixou indiferente. Kien, ao contrário, demonstrou muita alegria.
Entretanto, o estado geral da jovem mulher melhorava dia a dia; a magreza dera lugar a uma
elegante esbeltez, e a face estava novamente arredondada. Apenas o olhar traía a perturbação do
espírito. Pouco a pouco ela revia pedaços do que fora sua vida antes do pesadelo que vivera desde o
instante em que tomara lugar a bordo do comboio do Rafale. Cada lembrança reencontrada
representava para ela tal soma de sofrimentos, que se esforçava imediatamente por apagá-la,
procurando prazeres imediatos, desde a compra de uma peça de seda ou de uma jóia até o
esquecimento total no ópio.
Durante todo o tempo passado na guerrilha vietcongue, Léa levava no pescoço, preso por um laço
de couro, uma bolsa de pelica contendo todos os seus tesouros: o papelão entregue por Nhu-Mai
quando do atentado em Hanói, na realidade uma espécie de carteira de identidade do combatente
vietcongue (quando fazia o inventário dessa bolsa, Léa alisava a ponta do papelão sujo, passando
longamente o indicador na parte vermelha estriada de branco, que encimava o nome datilografado
de Nhu-Mai), um minúsculo buda de jade, oferecido por Giau, que ela gostava de aquecer na palma
da mão, um dragão de madeira esculpido por Nhu-Mai, um desenho de criança, uma aliança muito
grande e uma foto, endurecida, gasta, onde se viam três crianças, uma das quais um bebê. Ela já
não sabia quem eram essas crianças e não ousava falar disso com o amante.
Kien alugara uma grande vila no monte Vitória, o bairro
residencial da ilha de Hong Kong, conhecido pelo clima temperado. Haviam sido necessários muitos
dólares para que a proprietária, uma riquíssima chinesa, aceitasse um mestiço como locatário;
felizmente sua "encantadora mulher" era européia... Xia-Jing se instalou lá. Aguardando que o local
fosse arrumado ao gosto de Kien - Léa só manifestava indiferença a esses embelezamentos -,
permaneceram no hotel Peninsula, Salisbury Road, em Kowloon.
No começo, Léa ficava longos momentos no grande salão de colunas douradas, bebendo, conforme
a hora, chocolate quente, chá ou champanhe, sentada perto das grandes janelas. Contemplava o
tráfego incessante de carros, de bicicletas, de ônibus de dois andares, de rickshaws,* enquanto
chineses e pedestres corriam na direção das embarcações que ligavam o continente chinês aos
diferentes portos da ilha. Freqüentemente ela entrava numa dessas embarcações e descia no
Central District; depois pegava outra, que a conduzia a Wanchai, bairro onde marinheiros vindos do
mundo inteiro se amontoavam, ao cair da noite, numa dezena de bares, em busca de aventuras com
mulheres. Durante o dia, o bairro fervilhava com uma população pobre e trabalhadora, barulhenta e
animada, que fingia ignorar essa elegante européia. Ela gostava de passear ao longo dos cais, onde
estavam os melhores fabricantes de móveis chineses; o lugar tinha o cheiro bom da cola, da madeira
recentemente lavrada. O trabalho de marcenaria era feito na própria calçada. Léa andava entre as
cômodas, as mesas e as poltronas, ou, mais freqüentemente, junto ao meio-fio, o risco de ser atingida
por um rickshaw ou um táxi mais apressado. Apesar de se vestir com simplicidade, chamava a
atenção. Um dia, mandou o alfaiate do mercado confeccionar uma roupa de algodão preto, parecida
com a que usavam as mulheres idosas dos bairros populares: para sua grande surpresa, quando
passou a usá-la, as pessoas, que até aquela data teimavam em ignorá-la, sorriram-lhe, principalmente
as mulheres, que até a tocavam como para verificar se era mesmo real.
Sob a roupa curta o ventre se arredondava. Kien ficara furioso quando a vira assim vestida.
- Você me desonra! - gritara ele.
Mas Léa resistira e até acrescentara ao traje negro um vasto chapéu, um grande círculo de palha
trançada rodeado de um véu negro, atado em volta do pescoço, tal como usavam as mulheres da
tribo Hakka. Quando ela atravessava, assim "disfarçada", dizia Kien, o saguão do Peninsula, fazia-
se grande silêncio de reprovação, tanto entre a clientela rica, de maioria branca, como entre o
pessoal nativo. Ela não se importava com isso, achando esse modo de trajar mais prático para ir
descobrir a colônia de Sua Mui Graciosa Majestade Britânica, a jovem rainha Elizabeth II.
De Wanchai, voltava de bonde para Western, o primeiro bairro ocupado pelos ingleses em 1841, e
descia perto do mercado central. Nessa parte da ilha, podia passar dias inteiros perambulando pelas
ruelas, que lhe recordavam o quarteirão chinês de Hanói. A maior parte dos comerciantes e
artesãos estavam agrupados por corporações; donos de restaurantes que só cozinhavam cobras,
vendedores de ervas e farmacêuticos, fabricantes de caixões, notários, impressores, gravadores de
sinetes e os escultores em marfim, jade, pedra ou madeira, alfaiates, médiuns, consertadores de
bicicletas etc. - quase todos instalados em menos de três metros quadrados, em lojas feitas de
chapas onduladas e caixotes de madeira. As mercadorias também transbordavam para a calçada,
quando não para o meio-fio.
Para Léa, o lugar mais fascinante era o Thieves Market, o "mercado dos ladrões", na esquina de
Ladder Street com Hollywood Road. Essa rua, freqüentemente em aclive, e as da vizinhança eram o
lugar predileto dos amantes de antiguidades e de materiais de recuperação da colônia. Seguiam, um
ao lado do outro, a venda de bordados antigos ou de porcelanas milenárias, o faz-tudo dos motores e
o consertador de ventiladores. Léa regateava sem nenhuma vergonha e voltava ora com bonitas
estatuetas de deusas, ora com caixas de tabaco delicadamente esculpidas.
Em seus passeios, ela não deixava jamais de parar no templo do deus da literatura ou dos mandarins,
Man Mo, onde fazia queimar incenso no meio da aglomeração de fiéis. As vezes sentia vontade de
ar puro, de verde; ela ia visitar o jardim zoológico, que abrigava trezentas espécies de pássaros,
depois o jardim botânico, onde ao amanhecer, como ao crepúsculo, os habitantes faziam sua
ginástica, que parecia um lento balé, o tai chi chuan. "Eu devia estar aqui", pensava Léa toda vez
que via velhos e jovens, homens e mulheres dedicados aos exercícios. Depois ela tomava o funicular
para Garden Road e subia até o fim, o pico Vitória. A primeira vez que foi lá, ficou impressionada
com a imensidão da baía e a surpreendente beleza da vista que se tinha de Hong Kong, Kowloon, as
ilhas e ilhotas, e com a importância do tráfego marítimo entre os diferentes pontos da ilha e o
continente: veleiros de recreio, navios de guerra, petroleiros,ferry-boats, juncos, barcos de pesca,
navios mercantes, de passageiros, rebocadores sulcavam a baía, numa impressionante espécie de
dança. Os juncos, com as velas rosadas em forma de asas de morcego, deslizavam, graciosos e
imemoriais, no meio dessa esquadra dos tempos modernos; as sampanas, como uma miríade de
insetos, agitavam-se ao redor. Subindo de novo Lugard Road, ela descobria a outra parte da ilha, do
porto de Aberdeen a Repulse Bay e às ilhas de Lamma e Lantau, experimentando sempre o mesmo
assombro diante da competição entre a criatividade a que se entregava o gênero humano e a da
natureza. Sentada num dos bancos do passeio, retomava pouco a pouco conhecimento do mundo.
Foi ali, num desses bancos, que ela sentiu pela primeira vez o filho se mexer. Esse longo tremor foi a
chave que reabriu a porta às lembranças. Num relâmpago, ela reviu o rosto dos filhos; o de Adrien,
que se parecia tanto com o pai; o de Camille, a filhinha tão bonita. Acreditou sentir-lhe o corpo junto
ao seu, os beijos molhados do filho, a boca delicada da filha mamando-lhe no seio. Lembrou-se da
doçura de sua pele, da cor de seus olhos. Outros rostos, paisagens surgiram, "Montillac!", disse ela
em voz alta. Um grupo de estudantes chineses de uniforme passou diante dela. Viraram a cabeça
com desprezo diante dessa branca, vestida ridiculamente com o traje negro dos humildes, sentada num banco, que se balançava para a frente e para trás,
com as mãos pousadas na pedra de um lado e de outro do corpo, um sorriso resplandecente no rosto coberto
de lágrimas.
Como pudera esquecê-los?... A resposta lhe chegou em forma de imagens sangrentas, cuja violência a deixou
sem forças diante do céu imenso, onde algumas nuvens corriam. A medida que partes consideráveis da
memória se reavivavam, ela tentava ocultá-las para não sofrer muito. Mas o conseguia cada vez menos.
No dia seguinte acordou gritando:
- François!
Kien, que dormia junto dela, acordou sobressaltado, por sua vez.
- François? - disse ela novamente, agora em tom de interrogação, virando-se para ele.
Depois de algum tempo, com raiva no coração, o jovem via Léa escapar-lhe à medida que o passado voltava.
Quis tomá-la nos braços; ela o empurrou.
- Responda-me - disse ela com dureza.
Nu, deitado de costas, mãos atrás da nuca, ele murmurou com um sorriso vago:
- Está morto.
Lentamente, ela se levantou, afastou a musselina do mosquiteiro e atravessou o quarto. Apoiou a testa, depois
o ventre redondo no vidro fresco... Não, isso não eraverdade!... François estava vivo, ela o sentia. Kien estava
enganado... ou a estava enganando... Não, ele não faria isso, seria muita crueldade, muita covardia!... Pôs as
mãos na cabeça. Precisava pensar, reunir todas lembranças, que lhe chegavam desordenadamente, fazer uma
triagem. Se François não estava morto, o que fazia ela com Kien, grávida dele?
Neste momento, tinha de dissimular a dúvida para Kien. Ela se virou para ele, inconsciente das lágrimas que lhe
banhavam o rosto, e desmaiou.
Quando voltou a si, estava deitada na cama, coberta por um lençol. O médico do hotel acabara de lhe dar uma
injeção.
- A senhora precisa descansar. Pense no seu filho.
Quando ficaram sozinhos, Kien sentou-se ao lado dela e lhe disse:
- Eu não queria lhe contar assim tão brutalmente... Aconteceu na Região Alta da Serra, quando fomos à sua
procura. Caímos numa emboscada. François foi morto logo: não pude fazer nada...
- Onde o enterrou?
- Em Nghia Dô.
- Houve outros mortos?
- Dois legionários e méos.
- Você avisou as autoridades francesas?
- Sim, em Thap Mieu, não longe de Hanói.
- Quando a guerra terminar, irei procurar o corpo de François e o trarei para perto de mim... Agora, deixe-me.
Kien se inclinou para beijá-la; ela virou a cabeça. Ele saiu, aliviado. Esperara gritos, lágrimas; mas nada! Ela
recebera bem a coisa... As mulheres são estranhas, pensou. Como as cadelas, precisam de um dono: se um
desaparece, ligam-se a outro. Principalmente se este lhes dá prazer e lhes faz um filho. Quando o seu nascer e
que eles estiverem instalados na vila de Victoria, ele se encarregará pessoalmente dela novamente, acabará
com esses passeios pelo bairro chinês, e ela se tornará a elegante dona de casa de que ele precisa para seduzir
aqueles com que está negociando.
Desde esse instante, apesar de toda a dúvida que a atormentava às vezes - E se "ele tiver dito a verdade?... Se
François estiver verdadeiramente morto?..." -, ela não deixou de preparar a fuga.
Em primeiro lugar, exigiu que um britânico lhe acompanhasse a gravidez. Teve caprichos cada vez mais
onerosos. Todo dia Kien lhe dava um bom dinheiro para comprar essas antigüidades de que ela tanto gostava.
Gastava sem conta nas luxuosas lojas próximas do Peninsula, no fim de Nathan Road, mandando entregar
jóias, o carrinho inglês para o bebê, o enxoval e roupas, que Kien, sorrindo, pagava sem comentários.
Ela conhecera a jovem chinesa responsável pela decoração floral do hotel. Esta falava muitas línguas, entre as
quais um francês sumário mas suficiente para que se entendessem. Numerosas vezes, Léa a felicitara pelos
arranjos de flores. Chin_Hua* ficara sensibilizada por uma européia elogiá-la e se esforçava por decorar o
apartamento de Léa com os mais belos buquês.
Um dia Léa lhe pediu que a levasse aos floristas em que ela se abastecia. Chin-Hua aceitou com numerosos
agradecimentos, e, no dia seguinte, foram ao mercado de Kowloon. Passaram toda a manhã ali, circulando entre
os cestos de Lion Rock Road e as ruas adjacentes. O bairro inteiro era um vasto mercado; o comprador poderia
encontrar ali tudo o que desejasse. Em Nga Tsin Long Road, tinha-se a impressão de passear por um jardim
encantado. Depois de muito regatear, Chin-Hua fez a encomenda aos floristas, que carregados de cestos
perfumados e coloridos, foram levá-las ao hotel.
- A senhora está com fome? Quer comer alguma coisa? - perguntou Chin-Hua, apontando os balcões dos
cozinheiros.
Elas comeram bananas assadas e beberam chá. No fim de Lion Rock Road, Léa viu um grande telhado com
telhas de um amarelo forte, e o mostrou a Chin-Hua.
- É o templo de Wong Tai Sin - disse a chinesa.
- Vamos lá - disse Léa sem notar a hesitação da moça.
Diante do templo, de colunas vermelhas e douradas, os fiéis faziam fila para entrar, ou, ajoelhados ao pé dos
degraus, depositavam as oferendas e rezavam.
- O que é esse barulho?
- É o chim - respondeu a acompanhante, dando vinte cents a uma velha sentada na entrada. - Antigamente,
era um templo proibido ao público; atualmente, pagando a entrada, pode-se fazer meditação nele.
No interior, o ruído do chim enchia o santuário. Chin-Hua pegou duas tigelas de madeira, que encheu de
bastões de orações, e deu uma a Léa.
- Sacuda-a como fazem os outros, até que um bastão caia. Anote o número e a adivinha lhe explicará o que
significa.
Léa apanhou do chão o número 6.
- É um algarismo muito bom - disse Chin-Hua, continuando a agitar a tigela. - A senhora pode continuar,
pensando parente ou amigo.
"François", pensou ela, sacudindo fortemente a sua.
O número 913 caiu.
- A senhora tem sorte: é muito, muito bom.
- Por quê?
- Este significa "vida eterna".
"Eu bem sabia que ele não podia estar morto", pensou Léa.
Depois de ter queimado incenso, ela saiu radiante do templo. Caminhou por Tung Tau Tsuen Street,
indiferente aos mendigos, às fisionomias inquietantes dos homens que a encaravam, esquecendo até a
presença da acompanhante, que a agarrou e a
segurou pela manga. -
- Venha, não fiquemos aqui. É perigoso.
Léa olhou em torno de si. Em que essa avenida diferia das outras ruas populosas da colônia? As mesmas
bandeirolas vermelhas com inscrições brancas ou pretas penduradas ao longo das fachadas, cheias de crostas,
das casas com janelas onde secava a roupa; gaiolas em que cantavam dois ou três pássaros ficavam
penduradas. A mesma multidão pobremente vestida, com uma espécie de pijama feito desse tecido preto e
brilhante que os chineses chamam "tela de nuvem perfumada", apressava-se no caminhar ritmado pelo ruído
dos sapatos de sola de madeira. ChinHua quase corria, e Léa, cujo ventre começava a pesar, tinha dificuldade
para acompanhá-la.
- Espere-me... De que está fugindo assim?
- Estamos perto da "Cidade murada".
- "Cidade murada"?
- Sim, Kowloon-city, se preferir...
- Mas não estamos fora de Kowloon?
- É um pouco complicado explicar. A história remonta a 1898, quando os ingleses alugaram por noventa e nove
anos ao
governo imperial o que se chamou Novos Territórios. Havia aqui uma aldeia que ficou sob a administração de
Pequim. Essa aldeia se chamava Kowloon-cit Na época, não havia nada em volta, isso não causava nenhum
problema. Mas o desenvolvimento dos Novos Territórios foi tal, que a "Cidade murada" ficou cercada pela
cidade moderna, sem estar, entretanto, submetida à jurisdição britânica. Logo se tornou refúgio de bandidos de
toda a espécie, e a polícia se recusava a entrar ali. Depois de haverem tirado os habitantes dali à força, os
japoneses demoliram as paredes que os protegiam. Desde a partida destes, os antigos habitantes voltaram,
seguidos por outros, que fugiam do comunismo. É aqui que os ricos comerciantes de Xangai ou de Cantão
vêm recrutar criminosos e assassinos. Principalmente, nunca venha sozinha ao templo: é o limite entre a ex-
"Cidade murada" e o resto de Kowloon. Todo dia há mortes, estupros, seqüestros.
- A polícia não faz nada?
Chin-Hua encolheu os ombros.
- Ninguém quer aborrecimentos com a China comunista. É o mundo da droga, da falta de autoridade. As ruas,
ali, parece que são muito estreitas, cobertas de detritos, com escadas que não levam a lugar nenhum,
corredores que atravessam as casas de lado a lado. Muito freqüentemente não há eletricidade, o telefone foi
cortado. O estrangeiro que entrar ali pode ter certeza de não sair vivo.
- Todavia, nada indica a fronteira entre a "Cidade murada" e Kowloon. Em Tung Tau Tsuen Street, vi apenas
lojistas, consultórios médicos ou dentistas.
- Há também bancos clandestinos, falsificadores de documentos ou de moeda, casas para fumar ópio, casas
fechadas...
- Documentos falsos? - murmurou Léa, pensativa.
Em seu périplo indochinês, ela perdera tudo o que lhe atestava a identidade. Ao recuperar a razão, falara disso
com Kien, que se dissera disposto a tratar da regularização dos documentos.
- Está sendo providenciado - respondera ele quando ela lhe falara novamente do assunto.
Elas pararam um táxi. Ao subir no automóvel, Léa percebeu Fred, que se escondia atrás de uma
banca de jornais. Ficou lívida de raiva: aonde quer que ela fosse, Kien mandava Fred, Vinh ou um
dos guarda-costas chineses segui-la. Não chegavam a entrar nas lojas de Nathan Road ou nas
butiques do mercado dos ladrões, mas ficavam por perto. No começo fingia não notá-los, até o dia
em que pedira a Kien que mandasse parar a vigilância.
- Isso me causa desgosto, parece que não tem confiança em mim - censura-a, carinhosa. Kien
prometera suspendê-la, mas, evidentemente, não cumpriu a promessa.
O tempo mudou bruscamente. Fortes rajadas de vento frio, depois um nevoeiro espesso caíram
sobre Hong Kong. Léa ficou muitos dias sem sair, jogando cartas com a nova amiga, que vinha
encontrá-la depois do trabalho. Ajovem chinesa vinha de uma modesta família que vivia da pesca e
morava num junco no porto de Aberdeen. Ao preço de grandes sacrifícios, os pais enviaram a filha
única para os melhores estabelecimentos escolares da colônia. Ela sentia por eles não somente
respeito mas também grande afeição. Quando Léa disse que queria conhecê-los, Chin-Hua pareceu
confusa.
- São pessoas muito simples - disse ela - só falam o cantonês.
- Não seja boba! Teria muito prazer em conhecer sua família.
Em 15 de março, no início da estação das chuvas, a temperatura subiu. A casa de Victoria ficou
pronta, mas Léa todo dia encontrava um motivo para não ir lá: ora era o cheiro da tinta, que poderia
incomodá-la e fazer mal ao bebê, ora era a distância do médico. Finalmente, teve de se resolver a
deixar o Peninsula, mas com a promessa de que Chin-Hua iria vê-la freqüentemente e ela própria
poderia continuar os passeios pela ilha.
Enganando a vigilância dos espiões de Kien, conseguiu, antes de partir, mandar duas cartas pelo
correio, uma dirigida a Lien Rivière, outra para a irmã Françoise:
Querida Lien,
Sem dúvida você aí em Saigon, deve estar achando que estou morta. Se receber esta carta,
pela data da postagem, verá que não é verdade. Depois de acontecimentos que seria muito
longo enumerar, eu me encontro em Hong Kong em companhia de Kien.
Estou sem notícias de François há muitos meses. Se as tiver escreva-me para o nome e o
endereço seguintes:
Senhorita Wong Chin-Hua
Peninsula Hotel
Salisbury Road
Tsimshatsui, Kowloon
Perdoe-me a brevidade desta carta. Espero que esteja bem. Acredite em minha amizade.
Um beijo
Léa
Querida Françoise, meus queridos
Eu estou viva e me sentindo bem. Como vão Adrien, Camille e Charles? Eles me fazem uma
falta terrível. Tem notícias de François? Aqui não sei de nada.
Eu estou sem documentos, sem recursos. Você pode encontrar Jean Sainteny para que ele me
informe por intermédio das autoridades competentes qual o caminho a seguir para voltar
para casa? Estou morando com Kien Rivière em Hong Kong. Se receber esta carta, escreva-
me para o nome e endereço seguintes:
Senhorita Wong Chin-Hua
Peninsula Hotel
Salisbury Road
Tsimshatsui, Kowloon
Beijos para todos, principalmente meus três filhos
Envie-me fotos.
Léa
Acima da porta de entrada da vila, estava colado um cartaz vermelho em que figuravam, impressos em preto,
desenhos abstratos e caracteres chineses.
- O que querem dizer? - perguntou Léa.
- É um costume daqui, o qual não se pode desrespeitar, sob pena de ter de ir embora - explicou Kien. - É
umfung shui, que afasta os maus espíritos e protege a casa. Nada é construído em Hong Kong sem que um
entendido emfung shui dê sua opinião sobre a orientação do imóvel, o local onde será erguido, para ter
certeza de que não vai incomodar os espíritos do lugar. Se constatar qualquer má sorte, o sacerdote indicará as
cerimônias que ele terá de realizar para acalmar o espírito ou para exorcizar o lugar. Ninguém residente em Hong
Kong terá a audácia de passar por cima disso.
- Você fez bem; nunca se é demasiado prudente com os espíritos!
A moradia era suntuosa, e Léa estava a ponto de se deixar comover vendo o quarto do bebê ricamente
preparado. Agradeceu a Kien efusivamente.
- Nada é bom demais para meu filho.
- E se for uma filha?
- Para mim tanto faz, pois se tratará do nosso filho.
O coração de Léa se apertou; François também dissera isso. Ela virou a cabeça para esconder a emoção. Kien
se enganou quanto à significação de seu gesto e a puxou para si.
- É um grande presente que você está me dando, querida.
Ele mudara desde que se instalara em Hong Kong. Quase todas as noites jantava com homens de negócio
chineses, algumas vezes americanos. Conseguira escritórios num edifício, na Jordan Road. Estava sempre
sedutor, mas o belo rosto ficara ligeiramente mais gordo. Quando não estava tratando de negócios, passava as
tardes de sábado e domingo no hipódromo de Happy Valley, onde apostava quantias enormes. Léa o
acompanhara uma vez à corrida noturna de quarta-feira. Uma multidão de apostadores de todas as idades e
condições se comprimia no Royal Jockey Club. Um grande silêncio se fez quando os cavalos começaram a correr no gramado iluminado pelos refletores. A massa gritava
e incentivava, de pé, os jóqueis. O
espetáculo de todos esses rostos com esgares e caretas, modelados pelas sombras e pela luz, o alarido, que
parecia ser o elemento principal da platéia chinesa, eram impressionantes. Léa, que havia jogado um triplo,*
ganhara cinco mil dólares.
- O que você vai fazer com esse dinheiro? - perguntara Kien.
- Cuidar da vida - respondera, agitando as notas com a efígie da rainha.
- Sua vida? Ela é minha, para sempre!
Uma vaga angústia se apoderou dela. Ele lhe dava medo, e esse medo a paralisava, acovardava, tornava
incapaz de correr ao Consulado da França ou ao governador da colônia para solicitar o repatriamento. Essa
incapacidade a enfraquecia. Fora-lhe necessário fazer um esforço sobre-humano para redigir e enviar as duas
cartas. Desde então vivia no terror de que ele descobrisse e lhe fizesse represálias. O que acontecera à jovem
corajosa, capaz de enfrentar a Gestapo e a Milícia? Ela se limitara a guardar o dinheiro e a continuar suas
saídas, sozinha ou em companhia de Chin-Hua.
No início do mês de abril, a jovem chinesa convidou a senhora Rivière para a festa anual de Tim Hau, a deusa
do mar. Seu pai a convidou para ir, à bordo de seu barco de pesca, até o templo de Da Miao, na baía de Joss
House. Era uma grande honra, pois muito poucos brancos podiam assistir a essas cerimônias, que duravam
três dias inteiros.
Ao amanhecer, as duas mulheres, muito elegantes, tomaram lugar a bordo do junco, decorado de bandeiras,
estandartes, guirlandas vermelhas e douradas. A embarcação, cheia de parentes e amigos nos mais belos
trajes, deixou o porto de Aberdeen em companhia de dezenas de juncos, sampanas, balsas, pequenos navios,
todos embandeirados e abarrotados de romeiros. As
crianças usavam roupas de cetim ou seda. Maquiadas, as meninas, de cabelo amarrado em coque
enfeitado por flores e pérolas, o pequeno rosto emoldurado por longos brincos nas orelhas, pareciam
bonecas maravilhosas. Levavam o papel muito a sério e ficavam eretas e quietas ao lado das mães.
De toda a parte tudo o que flutuava afluía para os diferentes santuários dedicados à "Rainha
Celeste", aquela que acalma as tempestades, protege o povo do mar e enche as redes dos
pescadores. O templo que atraía mais gente era o de Da Miao. Depois de três horas de navegação,
eles chegaram à baía de Joss House, onde centenas de embarcações já se comprimiam umas às
outras. Ajudada por Chin-Hua e sua mãe, Léa passou de uma para a outra para atingir a ponte de
desembarque. Em seguida, cercada pela multidão levando em oferenda grandes bastões de incenso,
flores ou porcos assados, seguiu a procissão. No interior do templo, a fumaça do incenso era tal, que
já não se via mais de dez passos à frente. O odor era insuportável. Léa se sentiu mal e foi levada
para fora do prédio. Milhares de pessoas esperavam para entrar. Dois policiais lhe abriram caminho
através da multidão até o porto. Uma pequena embarcação a motor a conduziu a Kowloon, onde foi
levada ao médico. Chin-Hua a acompanhou.
O médico esteve a ponto de perder a fleuma britânica quando soube de onde ela estava vindo.
Ordenou repouso absoluto até o parto. De outra maneira, não se responsabilizaria por nada.
Consciente da imprudência, Léa não disse nada. Não queria perder a criança, se bem que ela fosse
a prova e o fruto de seu adultério. Era, daí por diante, parte dela mesma.
Três semanas mais tarde, teve num parto prematuro uma menina de abundantes cabelos negros, a
qual, se bem que franzina, estava com excelente saúde. Era 7 de maio de 1954. Diên Biên Phu
acabara de cair.

Capítulo 23

Em 1 de janeiro de 1954, François Tavernier subiu a bordo de um Dakota que levava vários jornalistas
franceses e estrangeiros para Saigon. Bebeu-se champanhe em homenagem ao Ano-Novo. Isso não foi
suficiente para alegrar as fisionomias melancólicas; todos desejavam voltar para casa.
A chuva batia nos vidros do carro dirigido por Bernard Riviêre, no qual François estava. Sua surpresa fora
grande ao reconhecer, sob o teto de um hangar, a silhueta do companheiro de infância. Desde o assassinato da
mulher e da filha pelos vietcongues, uma profunda mudança se operara no ambicioso funcionário do Banco da
Indochina, agora subtenente no exército vietnamita. Ele combatia não para preservar o país do comunismo,
mas para se vingar e matar o maior número de adversários possível. Num comando, à noite, com alguns de
seus homens vestidos de preto, o rosto besuntado de fuligem, ele partia em expedições punitivas pelas aldeias
suspeitas de terem abrigado vietcongues. Esses assassinatos em série lhe haviam dado ao olhar claro uma
expressão fria e indiferente, que deixava o interlocutor constrangido. Na luz pálida do aeroporto de Tan Som
Nhut, a impressão de morte
que se desprendia dele, apertado no impecável uniforme, era quase palpável. "O anjo do Apocalipse", pensou
François, apertando-lhe a mão.
- Fui ferido na perna, o que me valeu alguns dias de licença, que passei com Lien.
- Como vai ela?
- Bem... enfim...
- Enfim o quê?
- Foi ela que me pediu que viesse procurar você.
- Por que ela não veio?
- Queria que eu falasse com você antes.
- Então, fale! - disse ele em tom atormentado.
Bernard diminuiu a velocidade para deixar passar uma ambulância que corria, com os faróis acesos.
- É a respeito de Léa... Atenção! Está maluco!
O carro bateu num marco da estrada antes de parar a dois passos de um cyclo-pousse.
- Fale, o que sabe?...
Agarradas ao paletó do amigo, as mãos de François o sacudiam.
- Está morta.
As mãos relaxaram bruscamente a ação e tornaram a cair, sem forças.
- Como soube?
- Um envelope sem selo do seviço de informações do exército chegou para você, no fim da manhã, ao mesmo
tempo que uma carta de Kien para Lien.
- Vamos para casa.
O carro partiu novamente e parou diante da casa da rua Pelierin uma meia hora mais tarde. No vão da porta
estava Lien, toda vestida de branco, cor de luto entre os vietnamitas. Eles se olharam longamente sem dizer
palavra. A jovem mulher se afastou para que ele pudesse entrar.
- Mostre-me - ordenou ele.
Ela lhe indicou uma mesa. Ele se aproximou, pegou uma folha de papel com uma caligrafia de estudante.
Querida irmã,
Espero que sua saúde vá bem. Quero lhe dar conhecimento de uma notícia muito triste e lhe peço perdão
por anunciá-la assim: nossa amiga Léa está morta.
Como você sabe, partimos à sua procura com François. Nós nos separamos e não pudemos mais nos
encontrar Continuei com meus homens. Quando encontramos de novo sua pista, era tarde demais, os
vietcongues a haviam matado. Pude reconstituir o que se passou.
Por um motivo que ignoro - e os vietcongues também, ao que parece -, ela teria matado Pham Toi Nhu-Mai,
que estava encarregada de vigiá-la.
Pode adivinhar o desgosto que eu senti. Para tentar es quecei vou viajar a bordo de meu junco. Para onde?
Nem eu sei.
Se decidir me instalar em algum lugar eu lhe direi. Se você revirFrançois, diga-lhe que fiz tudo o que pude
para a encontrar de novo viva, e que participo de sua dor
Minha irmã muito amada, cuide-se bem e não esqueça o ir-
mão que a ama.
Kien
François sentou-se pesadamente e esvaziou de um gole o copo que Bernard lhe estendeu.
- Sei o que está sentindo, passei pela mesma coisa. Venha comigo, nós a vingaremos.
Com olhar vago, François acendeu um cigarro, depois pegou
o despacho.
Senhor
Confirmamos-lhe, infelizmente, o que lhe adiantaram nossos escritórios de Hanói. A senhora
Tavernier foi morta perto de Ngân Son. As circunstâncias não nos permitem repatriar o
corpo, mas esteja certo de que faremos todo o necessário logo que seja possível Enquanto
aguardamos, queira aceitar senhor nossas sinceras condolências.
A folha de papel escorregou-lhe das mãos. Lien se ajoelhou diante dele.
- Peço-lhe perdão, não pude segurá-la...
Ele olhou sem ver o belo rosto virado para ele, acariciou-lhe os cabelos negros esboçando um pobre sorriso.
Ela teria preferido gritos, injúrias, até socos, menos esse sorriso.
- Você tem seus filhos, pense neles...
Ele se levantou, passou pela varanda que dava para o jardim e ficou longo tempo sob a chuva, com o rosto
erguido. Quando voltou, a expressão de dor que se podia ler em sua fisionomia era tal, que os irmãos viraram
os olhos.
- Se me permite, Lien, vou me deitar.
- Seu quarto está pronto.
Durante uma semana ficou trancado, só abrindo a porta para pegar as garrafas de gim e de conhaque que
exigia. Bernard dissera a Lien que lhe desse todo o álcool que pedisse.
- E melhor vê-lo bêbado a vê-lo morto - dissera.
No oitavo dia de recolhimento, François chamou. Lien entrou e recuou diante do odor. Caído na cama, suja de
dejetos, cinzas e guimbas, com olheiras escuras, barbado, numa sujeira repugnante, ele lhe disse:
- Traga-me alguma coisa para escrever e roupas limpas.
- Estão no varal - disse ela em voz baixa.
Ela saiu e voltou com papel e uma caneta.
- Agora, deixe-me.
- Você não vai...
- Não tenha medo. Eu a verei daqui a pouco.
Ele desobstruiu uma mesa coberta de garrafas vazias e se
sentou.
Saigon, 9 de janeiro de 1954
Querida Françoise
Nossa querida Léa já não existe. Por minha culpa, está morta. Não posso me perdoar. Confio-lhe meus filhos. Pelo mesmo portador comecei a tomar as
medidas junto a meu tabelião, que lhe entregará os fundos necessários à manutenção e
educação deles. Sei que posso contar com você e com Alain, e lhes agradeço de todo o
coração. Diga-lhes quanto sua mãe era bonita, corajosa, e quanto os amava. Diga
igualmente a Charles que nós o consideramos nosso filho mais velho, que ele cuide dos
outros.
Em testamento, eu nomeio a ambos tutores de Camilie e Adrien. Vendam o que julgarem
necessário. Meu tabelião, que é um homem honesto, irá ajudá-los com conselhos. Perdoe-me,
querida Françoise, acrescentar esses encargos à sua tristeza, e não me julgue muito
severamente.
François
Calmamente, fez o testamento, endereçou-o ao tabelião, e depois escreveu ao general Salan:
General
Saigon, 9 de janeiro de 1954
Sua compreensão me permitiu partir à procura de minha mulher desaparecida, e lhe
agradeço. Recebi a notícia oficial de sua morte. Já não tenho razão para viver Quero morrer
combatendo. Peço-lhe encarecidamente usar sua influência para que eu possa me alistar na
Legião Estrangeira e me reunir em Diên Biên Phu, com meus companheiros legionários, o
tenente Thévenet e o suboficial Maréchal. O senhor conhece o meu passado, sabe que serei
um bom recruta para o exército.
General, sei que o senhor me compreende, como também sei que o que lhe peço não é comum
na Legião. Mas não tenho tempo de fazer cursos em Sidi-Bel-Abbés.
Antecipadamente, general, agradeço-lhe sua ajuda e peço aceitar a expressão de minha mais
alta consideração.
François Tavernier
Sempre calmo, ele selou os envelopes; depois abriu totalmente as janelas. Já não estava
chovendo, mas o ar estava carregado de umidade. Do jardim molhado subia um forte cheiro de
terra que lhe lembrava o de Montillac, em algumas manhãs de verão, depois da tempestade.
Reviu Léa sorvendo-lhe os eflúvios com avidez. A visão foi tão precisa, que ele cambaleou e
deixou escapar um gemido. Nunca mais ela iria correr pelas vinhas, rir dos relâmpagos, desafiar o
céu escuro, oferecer o corpo à chuva, feliz por sentir a terra vibrar a cada trovão. Fazia muitos
anos ele se maravilhava com essa vitalidade, esse apetite de viver, conservado a despeito dos
sofrimentos suportados. Essa vida destruída era um insulto à própria vida. Pelo gosto do risco,
pelas situações difíceis, ele a empurrara para a morte. Por isso não tinha perdão. Pensado em se
matar, mas se sentira covarde diante desse tipo de desfecho. Já que tinha amado a guerra, teria
de morrer combatendo.
Todavia, essa guerra não era a sua, ele não se reconhecia nesses soldados combatendo a dezoito
mil quilômetros da pátria contra outros, que defendiam a sua. Ele não tinha lugar nesse conflito
que opunha comunistas, o exército vietnamita de Bao Dai e soldados que combatiam sob
bandeira francesa. Em alguns momentos, não podia deixar de temer a vitória dos vietcongues, a
do comunismo, a qual uma parte dos povos que viviam no Vietnã não desejava a nenhum preço.
Em alguns lugares, a guerra civil já se espalhava. Aldeias que tinham aderido aos franceses foram
devastadas, populações foram deportadas ou obrigadas a combater ao lado dos que lhes tinham
aniquilado a família, destruído a casa. Apesar da simpatia por Hô Chin Minh e sua luta em favor
da independência do país, não ignorava que as cobranças indevidas e as execuções sumárias
estavam ligadas diariamente ao nome de tio Hô. Mas não sentia ódio pelos que haviam matado
quem ele amava. Voltava o ódio contra si próprio. Desde a infância se sentia próximo do povo
vietnamita, revoltado com as desigualdades e as injustiças que o oprimiam. Compreendera o
alistamento de Hai aos vietcongues; em seu lugar teria feito o mesmo. Se não fosse
profundamente ligado à França e à idéia que tinha de
sua honra, teria acompanhado o amigo em sua luta justa. Mas era francês, e os franceses iam
morrer no fundo de um belo vale, sob a indiferença geral, por uma causa perdida, vítimas de
dirigentes irresponsáveis, de especuladores ávidos. Tudo isso era tristemente absurdo, e, porque
absurdo, era lá que ele deveria estar.
Ele abrira a porta do quarto e chamara Lien.
François Tavernier saiu do quartel-general de Navarre - conseguira que a carta ao general Salan
fosse encaminhada por via mais rápida.
Passou então longos dias em companhia de Lien, escutando- a evocar as lembranças da infância e
adolescência deles. De noite se embriagava nas espeluncas de Cholon, das quais voltava de
manhãzinha, semiconsciente. Escrevera a Thévenet e Maréchal para lhes anunciar a morte de Léa
e sua vontade de se alistar na Legião. Eles haviam respondido: "Nós o estamos esperando, você é
bem-vindo."
Outras três semanas se escoaram, durante as quais François mergulhou na dor. Em Paris, René
Coty substituíra Vincent Auriol no Elysée. Em Saigon, a vida continuava com a mesma agitação, o
comércio estava no auge, proxenetas e proprietários de bares faziam fortuna; os soldados de licença
gastavam todo o soldo com mulheres e embriagando-se de cerveja. Apesar da presença do exército
e de alguns atentados, a guerra parecia distante. A cidade e seus subúrbios viviam fingindo ignorar
que o inimigo estava a menos de cinqüenta quilômetros. Quanto aos doze mil homens
comprometidos em Diên Biên Phu, pouco se falava deles, a exemplo da imprensa da metrópole. No
campo fortificado, a rotina se havia instalado, a julgar por uma carta de Maréchal trazida no fim de
janeiro por um legionário:
DBP se parece cada vez mais a uma cidade com guarnição: capela com capelães, hospital
com médicos, bordel com mulheres. Precisava ver a cara dos sujeitos diante desse batalhão
de tzo especial, levantando o lado da túnica de cor delicada enquanto
piscavam os olhos para os que as observavam jogando beijos! Para a construção do BMC, *
todos os homens eram voluntários. As mulheres não descansaram.
O campo mudou muito depois da sua partida, os diferentes pontos de apoio tomaram forma
definitiva, cada um formando uma fortificação cercada de arame faipado, de trincheiras,
com suas reservas de víveres, de munições e de galões de napalm. Os tanques M 24 foram
montados novamente, e os caças Bearcuts, prontos para decolar estão parados no aeroporto.
Os saltos de pára- quedas continuam.
Lembra-se do primeiro povoado encontrado depois de nossa descida de Laï Chau, na estrada
Pavie, ao pé da colina? Desapareceu. A colina que chamávamos o "Topedeiro", por causa
da forma, tornou-se "Gabrielle". Conheci uma mulher morena muito bonita chamada
Gabrielle, que apelidamos Gaby... Que idéia engraçada dar nomes de mulheres a lugares
que atraem a morte!
De tempos em tempos recebemos a visita de oficiais subalternos de Hanói ou de Saigon, de
jornalistas e até de escritores. Graham Greene, de passagem pelo lugar, veio jantar com o
coronel de Castries.
Tornou-se o lugar da moda... Fala-se muito, aqui, que nem tudo vai bem entre Castries e
Navarre. É pena, se for o caso, e nós corremos o risco de pagar o pato.
O companheiro legionário que lhe leva esta carta é um antigo integrante da Wehrmacht, em
que ele tinha, na minha opinião, patente importante. É um amigo em quem pode ter toda a
confiança. Eu lhe falei de seu desejo de se juntara nós. Ele tem uma idéia, falará dela com
você.
Estou sob as ordens desse estúpido Thévenet, que lhe manda um abraço.
Eu também.
Maréchal
- Quer mandar uma resposta? - perguntou o legionário num francês quase sem sotaque, ao acabar o copo de
conhaque oferecido por Lien.
- Na carta Maréchal diz que você tem uma idéia.
- É simples: tome a identidade de outro.
- Como assim?
- No hospital, os legionários feridos ou doentes morrem todos os dias. Combine com um enfermeiro ou um
médico local para conseguir os documentos de um deles. Nada é mais fácil, mediante algumas piastras.
- Você mesmo já fez essa experiência?
- Em outro lugar, sim.
Em 2 de fevereiro de 1954, François foi convocado pelo contra- almirante Cabanier, do secretariado permanente
da Defesa Nacional. Enfim ia receber a tão esperada resposta.
- Sente-se, senhor Tavernier, o que tenho para lhe dizer é extremamente confidencial. O senhor sabe que René
Pleven, ministro da Defesa Nacional, deve vir tomar conhecimento por ele mesmo da situação de Diên Biên
Phu. Ele se lembrou da missão de que o havia incumbido e deseja saber, de acordo com o chefe do Governo,
Senhor Laniel, se o senhor aceitaria tentar uma nova negociação junto a Hô Chin Minh.
Todo o tempo em que o contra-almirante esteve falando François dizia a si mesmo: "Não, eles não vão ousar!"
Pois bem, ousaram! "Vou quebrar a cara dele!", exacerbou-se.
Houve um longo silêncio.
- E então, responda qualquer coisa... O que acha?
- O senhor está zombando de mim? - perguntou ele com voz delicada.
- Mas, senhor...
- Cale-se! Com as besteiras de seu governo, perdi minha mulher, e a França vai perder a Indochina e, depois da
Indochina, Madagáscar, a Tunísia, a Argélia...
- Senhor...
- Sim, é o destino de todo o império colonial e o lugar de
nosso país no mundo que vão estar em jogo em Diên Biên Phu. Desde 1946 nossos dirigentes acreditam poder
se aproveitar do simplório Hô Chin Minh. Com suas vacilações, suas mentiras, deram-lhe mais força que o
Partido Comunista. Cada vez que ele estendeu a mão, nós cuspimos nela. Não serei cúmplice de uma nova
tentativa. Esta guerra ele vai ganhar pelas armas e pela vontade do povo...
- Ajudado pelos comunistas chineses!
- E daí? Isso não nos diz respeito. O Vietnã será comunista porque não soubemos ouvi-lo quando ainda havia
tempo!
- O senhor esteve em Diên Biên Phu; deixaria esses milhares de homens serem massacrados lá?
- Por que estamos lá? - perguntou François, destacando cada palavra e olhando para o interlocutor direto nos
olhos.
Para aplacar a cólera, acendeu um cigarro, enquanto o contra-almirante se levantava para disfarçar o
aborrecimento. Parado diante de um mapa do Tonquin, ele acendeu, por sua vez, um fósforo.
- Se compreendi bem, o senhor recusa?
- Sim. Não acredito na sinceridade das últimas declarações de Hô Chin Minh. Elas foram feitas para
impressionar os de fora e nos fazer perder o prestígio mais uma vez. Em compensação, se o senhor Pleven
quiser me mandar lutar em Diên Biên Phu, estou pronto para pegar o primeiro avião e saltar lá. Já redigi um
pedido nesse sentido. Ao vir aqui, achava que o senhor me daria a resposta.
- Não estou informado disso - respondeu friamente Cabanier, estendendo-lhe a mão. - Adeus, senhor Tavernier.
Bem entendido, tudo isto é "segredo de Estado".
- Se o senhor assim o diz... - resmungou François ao sair.
Dois dias depois, por intermédio de Bernard Rivière, ele conheceu um americano, antigo piloto do esquadrão
de Chennault, os Tigres Voadores, que acompanhara em 1946 uma missão dos Estados Unidos encarregada de
analisar a situação da Indochina. Apaixonando-se por uma anamita, filha de um professor de lite
ratura do Liceu Albert-Sarraut, em Hanói, ele não voltara e se instalara com a jovem mulher em
Saigon, onde montara uma pequena companhia de aviação especializada em vôos de negócios entre
Calcutá, Bangkok e Hanói. Durante três anos tinham vivido felizes, até o falecimento de Ngoc-Lan,
morta ao dar à luz a pequena Thuy-Chaú. Desde então, deixando a criança aos cuidados de
sucessivas assam, ele comumente se embriagava, perdendo os clientes um a um. Os que o faziam
ainda trabalhar só o contratavam para viagens perigosas, missões difíceis. Quanto mais perigoso,
mais ele ficava contente. Uma vez fora derrubado no Laos pela DCA vietcongue; acabara com
algumas costelas quebradas e o corpo recheado de amebas; depois de trezentos quilômetros através
da floresta, fora recolhido por cambojianos e mandado de volta a Saigon.
Foi no bar do hotel Continental que François Tavernier e Samuel Irving simpatizaram-se
mutuamente, bebendo fortes bourbons. Irving tinha coração terno e alma íntegra num corpo de
alcoólatra. Isso lhe causara muitos dissabores, sem conseguir endurecê-lo verdadeiramente.
Conhecera Bernard Rivière por ocasião de um vôo sobre Haiphong, durante o qual soubera o que
tinha acontecido à mulher e à filha. O velho combatente ficara emocionado. Um ano depois, eles se
reencontraram por acaso, e foi nessa ocasião que Rivière lhe falou de um amigo que desejava ir
para Diên Biên Phu.
Uns quinze dias mais tarde, já não contando com a resposta do general Salan, François Tavernier
saltou no campo fortificado.
Pousou entre a estrada estadual 41 e um meandro do rio Nam Youm sobre um terreno tornado
intransitável pelos caminhões, no qual se erguia, excêntrica nesse panorama lunar, uma delicada
palhoça ainda em pé sobre as pilastras. Ele já dobrara o páraquedas e avançava naquela direção
quando alguém se jogou sobre ele, obrigando-o a se deitar de barriga para baixo.
O impacto da explosão o fez rolar; a bela construção se volatilizara.
- Em nome de Deus, o que você faz aqui... Mas não é um dos nossos!
- Acabo de chegar - disse François, apontando o céu.
- Você estava no aparelho civil que acaba de sobrevoar o campo?... Teve sorte de descer: os coroas queriam
atirar em você.
- Por que explodiram o casebre?
- Os vietcongues haviam colocado uma armadilha nele. Mas ainda não me disse o que veio fazer aqui!
- Vim visitar uns amigos, o tenente Thévenet e o suboficial Maréchal; são da Legião.
- Vamos levá-lo ao quartel-general do comandante Guiraud, do 1° BEP. Você se explicará com ele.
Tavernier afastou a sentinela diante da entrada do QG e penetrou num edifício coberto de sacos de terra, no
qual um suboficial fumava enquanto lia jornal. Perto dele, junto a uma abertura na parede, dois suboficiais
grandões falavam um francês rouco e com gírias eivado de expressões germânicas. O militar levantou a cabeça,
de mau humor com o intruso, e resmungou:
- Isso agora! O que faz o plantão da guarda?... E o senhor? O que deseja?
- Trabalho.
Os dois suboficiais riram. François os olhou atravessado.
- Em poucas palavras, o senhor quer se alistar na Legião?
- perguntou o suboficial.
- Quero. Mas com uma condição.
- Condições, pombas! O que quer dizer?
- De não mofar aqui. Há uma companhia que parte para a luta, estou nela.
Um dos grandões zombou novamente e disse:
- Os vietcongues vão passar um péssimo quarto de hora, o moço está se alistando!
- Silêncio! - exclamou François. - Não gosto nada quando riem de mim.
O tom era seco e autoritário. O suboficial, um gigante, ar bruto, respondeu:
- Oh, calouro, é preciso falar comigo de outra maneira, senão...
- Se não, o quê?
- Verá como me chamo.
François se aproximou dele, pegou-o pela cintura, sacudiu-o à beira da abertura e o jogou para fora. Depois
disse ao outro:
- É a sua vez de "cair fora".
O outro foi embora.
Ele então se voltou para o suboficial e disse:
- Peço-lhe que avise o comandante de que o senhor François Tavernier quer se alistar na Legião Estrangeira.
Vá, meu amigo.
O outro, confuso, não se mexeu.
- Vamos, amigo, e já! Não tenho tempo a perder.
O militar se levantou, observou com olhar pasmo o personagem esquisito e, o mais docilmente possível, saiu.
François pegou um cigarro, acendeu e, em voz alta, sentando-se no lugar do outro, explicou seu pensamento.
- Já que eu não tenho coragem de me matar, vamos ver se as balas dos vietcongues serão solidárias. E depois,
ainda assim, será mais chique... diante do inimigo e pela França.
Ele não esperou muito tempo. Vinda de fora, uma voz exclamou:
- Merda de confusão! O que é isso? Um civil que joga vocês porta afora!
Uma silhueta maciça se desenhou na entrada.
- Que merda é você?.., O que veio fazer aqui? - perguntou Thévenet.
- Eu o estava esperando.
- Caramba! Como surpresa, é uma das maiores! E ainda por cima, das boas...
François se levantou, e os dois homens apertaram a mão. O suboficial os olhava, cada vez mais aturdido.
- Tenente, o senhor o conhece?
- É um amigo leal! Estivemos juntos na R.C.4 e em muitos outros lugares. Pode deixar, eu me ocupo dele.
- Está bem, tenente.
O militar saiu, eles deram gargalhadas dando tapas nas mãos.
- Estou contente de vê-lo, minha velha! Embora preferisse
nunca mais ouvir falar de você... Como é que fez para chegar até aqui?
- Apliquei o golpe de Arsène Lupin.
- Arsène Lupin?...
- Não é difícil, vou explicar. Onde está Maréchal?
- O caro Roger está em "Béatrice". O que dizem de nós na retaguarda?
- Não muita coisa.
- Estão pouco ligando, não é?... Pode dizer... Acha que a visita de Pleven vai mudar alguma coisa? -
- Quer que eu lhe diga? É o que menos me preocupa! É bem insignificante... A única coisa que me interessa é:
quando será o ataque?
Thévenet acendeu o cachimbo, olhou longamente o amigo e depois apontou as colinas que os cercavam.
- Eles estão em toda a parte, cavam túneis em volta de tudo. Conheço-os bem, vão nos derrotar. O ataque? Será
quando eles quiserem, na hora que quiserem. Caímos numa armadilha.
- São muitos os que pensam como você?
- Os antigos, os que já combateram os vietcongues em Cao Bang, em Thât Kê e em outros lugares. São bons
soldados. É por isso que não concordamos quando Castries faz circular pelos arredores folhetos chamando-os
de covardes. Isso só pode enraivecê-los. Já os ouço gritar como numa corrida de touros. Eles estão aí, em
volta, esperando a morte do touro. A estocada são eles que vão dar, mas antes vão aproveitar o espetáculo.
Ele tem razão, esse jornalista do Le Monde que comparou Diên Biên Phu a um fosso de leões.
- É excitante tudo isso! Sinto que enfim vou me divertir...
- Não diga absurdos, meu velho. Você, talvez, ou eu. Mas não os caras que não pediram para vir, os que
aguardam uma carta da mãe ou da namorada...
- Pare, você vai me fazer chorar!
- É o que você faz.. Mas você chora para dentro.
François lançou um breve olhar a Thévenet: o outro era melhor psicólogo do que ele poderia supor.
De noite ele participou do jantar com os legionários e tomou pela primeira vez o Vinogel, que eles bebiam puro
e lhes dava dor de estômago. Mesmo misturado a dois volumes de água quando colocado na caixa, era infecto
e indicado só para desentupir pias...
Depois dormiu no abrigo do tenente Thévenet. Nas montanhas, um gigantesco incêndio iluminava a noite de
Diên Biên Phu.
Foi Thévenet quem o acordou!
- De pé, aí dentro! Você está adido à 4' Companhia do BEP. Vamos partir para "Béatrice"; mexa-se! É domingo,
um bom sujeito a comanda... Antes você passará no cabo furriel para pegar o equipamento. O tenente-coronel
Gaucher o receberá na volta. Tome, beba isso.
O café era bom.
Combates cada vez mais violentos se davam diariamente, trazendo seu quinhão de mortos e feridos. O médico-
chefe Grauwin, vindo para uma substituição de quinze dias, começava a temer que os quarenta e dois leitos do
hospital subterrâneo não fossem suficientes. E haveria bastantes aviões para evacuar os feridos para Hanói?
Os tiros dos vietcongues contra o aeródromo eram cada vez mais precisos, e três aparelhos já tinham sido
destruídos.
Ao pé de "Béatrice" alguns civis thaís erravam pelo que fora sua aldeia. Em três meses, uma densa vegetação
cobrira as plantações. Os infelizes só subsistiam graças às rações distribuídas pelo exército. Expulsos,
voltavam, cada vez menos numerosos. Os outros haviam sido recrutados à força pelos vietcongues: iam juntar-
se aos milhares de asiáticos que levavam, a pé ou de bicicleta, armas e arroz para os combatentes dissimulados
por todo o circuito do funil.
No meio de um declive, uma fuzilaria estourou, matando três homens. Os legionários e os irregulares se
jogaram de barriga no chão. Do mato, com os capacetes cobertos por folhagens para ficarem invisíveis aos
aviões, os vietcongues surgiram dando gritos. Os legionários tinham se recuperado e mataram os primeiros
atacantes. Os thaís se lançaram sobre os seguintes, brandindo os punhais, vociferando insultos, dando livre curso ao ódio ancestral entre os dois povos. Os thaís
venceram, mas deixaram ali cinco dos seus. Saltando de pedra em pedra, François avançou para o
pico.
- Atenção!
Thévenet o empurrou, forçando-o a deitar-se.
- Não faça bobagem, velho. Não quero perdê-lo agora.
Eles se levantaram sob o fogo inimigo, sem deixar de usar as armas.
De repente, o tiroteio cessou. Tudo pareceu terrivelmente silencioso.
- Reúnam os feridos, ordenou Thévenet.
A conta era pesada: sete mortos, um ferido grave e oito ligeiramente. O médico-chefe Auber
desceu de "Béatrice" e dispensou os primeiros cuidados aos mais seriamente atingidos.
Não era bonito de ver: o peito estava aberto; através das costelas quebradas, distinguia-se a massa
cor-de-rosa dos pulmões; o braço direito, meio arrancado à altura do ombro, tremia nervosamente.
- Não é grave, doutor? Não é grave? - não cessava de repetir o ferido, um rapaz de uns vinte anos.
- Seja corajoso, garoto. A baixa não vai demorar.
Com gestos precisos, ele tratou do horrível ferimento e lhe aplicou uma injeção.
- É preciso levá-lo com toda a urgência para Grauwin - disse Auber a Thévenet.
Os thaís estenderam uma padiola. Apesar das precauções tomadas, o ferido gritou quando o
puseram nela.
- Você vai com ele - ordenou Thévenet a François - e os cobrirá pela direita, enquanto Ludwig o fará
pela esquerda.
A pequena coluna se pôs em marcha; os feridos se sustentavam uns aos outros. Chegaram à base
da colina. Na estrada estadual 41, as ambulâncias vinham até eles. No alto, em volta do ponto de
apoio, a fuzilaria recomeçara: ouvia-se até o canhão.
- Puf... Não se arrisca nada, eles não têm armamento. Eles acreditam que nos impressionam com
um ou dois morteiros...
E, ainda que tivessem mais, os vietcongues são os piores artilheiros do mundo - disse um dos que
estavam nas ambulâncias, olhando apesar disso com inquietação na direção das explosões.
Na barraca de triagem, numerosos feridos aguardavam.
- As barrigas primeiro! - gritou um enfermeiro negro.
- Salve, N'Diaye! Nós lhe trazemos trabalho - disse um legionário ferido na cabeça.
- Um de cada vez: o chefe disse as barrigas. Ninguém hoje?... Tanto melhor.
- Sargento, este homem foi gravemente atingido, viemos de "Béatrice"...
N'Diaye se inclinou e tirou delicadamente o curativo; depois, também com delicadeza, recolocou-o
no lugar.
- Não se preocupe, garoto... Depressa, para o centro cirúrgico!
Os maqueiros o levantaram e levaram pela passagem que conduzia à sala de operação. Os outros
foram tratados no local e depois mandados para as barracas.
Tavernier não subiu mais para "Béatrice"; por ordem pessoal de Castries, foi alocado na
conservação da pista de aviação, das estradas e das fortificações de madeira, das trincheiras e dos
locais de hospitalização. Era certamente perigoso, mas não era o mesmo que lutar, e isso o deixou
louco de raiva.
- Em seu lugar - dissera-lhe o alemão Ludwig - eu ficaria quieto. Você ainda não faz oficialmente
parte da Legião...
Todas as tardes, às cinco horas, um canhão atirava em direção ao campo, como para rir deles,
enquanto os Bearcat martelavam a colina de onde vinham os tiros. Sem ser localizado, o canhão
mudava de posição todos os dias. O ar estava cheio de ruídos: Dakotas, caças, unidades de
artilharia, tanques, jipes, caminhões, grupos geradores, alto-falantes transmitindo programas da Radio
Hirondelle, A voz das forças da União Francesa, ou transmitindo ordens em meio a uma poeira
ocre que não descia nunca.
Agora, ouvia-se toda noite os tiros de morteiros e de metralhadoras vindos de "Gabrielie", defendida por atiradores argelinos. Cercando totalmente "Béatrice",
os vietcongues cavavam túneis. Mas os legionários estavam tranqüilos, confiantes: sua posição era
boa, a visão desimpedida. Se os vietcongues aparecessem, eles os fariam em pedacinhos.
- Tavernier, telegrama para você. É provavelmente o último telegrama particular que receberemos
de Saigon...
Tal como uma estátua de lama, François saiu da trincheira onde descansava um pouco.
A tempestade roncava, o ar estava pesado. A chuva recomeçou a cair. Um obus explodiu a alguns
metros do abrigo, fazendo tremer as paredes de terra e de achas de madeira.
Ele enfiou o telegrama no bolso da camisa, subiu no talude de um pulo e correu em ziguezague para
uma abrigo feito de chapas de folha. Ouviu gritarem:
- "Anne-Marie" caiu! Os thaís desertaram...

Capítulo 24

...Como nuvens de gafanhotos, eles surgiram das galerias que vinham escavando havia semanas...
As primeiras ondas do ataque vietcongue caíram sob fogo cruzado... Eles caem... outros e outros
os seguem... Os gritos dos caminhões de lança-mísseis fazem tremer os mais corajosos... Suas
rajadas formidáveis rasgam o céu... Quem foi o idiota que disse que eles não tinham artilharia?...
Um depósito de munições explode... Os tanques do capitão Hervouët foram todos destruídos...
A coluna Crèvecoeur não virá mais... Os lança-chamas cospem os longos traços de fogo num
assobio aterrorizante... silhuetas pegam fogo... correm cegamente, de boca aberta... balançam,
agitadas por estremecimentos... A fumaça do holocausto é agradável aos deuses?...
Bigeard fez um bom trabalho, mas isso não adiantou de nada... Os alto-falantes vietcongues,
convidando a guarnição a se render, pararam de transmitir... Já não têm necessidade de mandar
mensagens de deserção e de ameaças... Os espectros de argila saem dos abrigos, ofuscados... O
tempo está bonito... as chuvas torrenciais enfim cessaram... Os feridos se arrastam diante da
entrada do subterrâneo onde opera o médico-chefe, Grauwin... Os enfermeiros os empurram...
Já não há lugar, estão amontoados uns sobre os outros... Veículos continuam a queimar... Um capelão passa com o cálice de
campanha na mão... chora... saqueadores se atiram sobre as caixas jogadas de pára-quedas do
último vôo.., já não temem o fogo dos vietcongues... Os pequenos homens verdes se espalharam
pelo campo com gritos de alegria e berros de triunfo... Cadáveres deslizam devagar pelo rio Nam
Youm... A poeira, a borracha queimada, a merda, o sangue, a carniça, tudo fede... Os tecidos dos
pára-quedas deixados nas colinas parecem mortalhas... As "Elianes" não acabaram de ser
consumidas...
- Está tudo perdido - disse Castries. - Não deixem nada intato.
A bandeira com a estrela dourada ondula docemente... Apoiado num muro de sacos de terra, um
pára-quedista observa a ferida da perna já cheia de larvas... Ouvem-se apelos infantis: "Mamãe...
mamãe... Está doendo..." Irregulares thaís e vietnamitas jogaram fora as armas, arrancaram os
uniformes... Tentaram escapar dos vietcongues: "Nós, asiáticos... não soldados... asiáticos..."
Thévenet arrastou-se até François; uma bala lhe atravessara o ombro.
- Viu Maréchal?
- Estava em "Isabeile"...
A morte não quis François... Todavia, cem vezes ele arriscou a vida... Por que não ele, enquanto
todos esses pobres-diabos...?
- Ainda tem um cigarro?
François revistou o bolso da camisa e encontrou um pedaço de papel amassado e um maço todo
amarrotado que estendeu ao companheiro.
- Pegue, tinha esquecido - resmungou ele abrindo o telegrama.
O tempo parou... As lágrimas deixaram traços brancos nas faces sujas... Constrangido, Thévenet
baixou a cabeça, apoderando-se do telegrama que lhe estendia o amigo...
Léa viva - stop - Recebi carta dela - stop - Está em Hong Kong com Kien - stop - BeUos - stop
- Lien - stop.
A felicidade era grande demais... Era preciso escondê-la...
Eles acenderam um cigarro... Depois de todos esses dias passado a cuidar sem interrupção dos
feridos, a consolar os moribundos no hospital subterrâneo, Geneviève de Galard fechou os olhos
quase completamente devido à claridade... Em vagas, os vietcongues continuavam a descer das
colinas... No "pátio dos milagres", os desertores pululavam, lutando por uma ração, antes de voltar
para os buracos na falésia que dominava a margem esquerda do rio... Estão sujos e cobertos de
parasitos... têm centenas... centenas... Um fotógrafo quebra sua máquina.. O coronel Langlais
queima o gorro vermelho de pára... Farrapos sangrentos estão presos ao arame farpado... De
repente começa O canto dos guerrilheiros*...
Amigo, você ouve o vôo negro dos corvos sobre a planície?
Amigo, você ouve esses gritos surdos do país que acorrentamos?...
O disco está gasto por ter sido tocado muitas vezes... Estalidos encobrem em parte a voz da
cantora... François cerra os punhos... Eles sabiam o que faziam escolhendo essa música, os
safados...!
Cercado de bô dôi, o general de Castries passa, muito pálido, olhando para a frente... seu grande
nariz parece mais comprido, as grossas sobrancelhas, mais negras, a boca, mais frouxa... usa uma
calça impecável e uma camisa limpa, na qual está presa a fieira de condecorações... Muitos viram a
cabeça... esse aristocrata, amante de belas mulheres, esse cavaleiro, ex-campeão do mundo, está
indo, cigarro nos lábios, barrete vermelho na cabeça, fazer o aprendizado da humilhação...
Olá! guerrilheiros, trabalhadores e camponeses, eis o sinal! Esta noite, o inimigo conhecerá
o preço do sangue e das lágrimas...
O antigo ajudante-de-ordens do general Navarre, o capitão Jean Pouget, que saltara alguns dias
antes, por já não poder "esconder-se" em Saigon enquanto os companheiros eram mortos nessa
porra de funil, deixou cair a enorme carcaça perto de Thévenet.
- Teria um cigarro? - pediu ele.
Ele fuma em silêncio... Lá, na França, devem estar festejando a vitória, ele está aqui, na armadilha,
como um idiota... não lamenta o esconderijo dourado... se não tivesse vindo, sentiria grande
vergonha... O doutor Grauwin saiu do hospital, visivelmente exausto... Os cabelos grisalhos se
tornaram brancos... viu sofrimento demais, mortes demais... o tronco tranqüilizador e peludo
transborda do uniforme... limpa os redondos óculos de míope... também pisca os olhos devido à forte
luminosidade... Bigeard, que todos chamam Bruno, aproxima-se dele:
- Então, aqui estamos prisioneiros desses pequenos vietnamitas, que pensávamos no passado
servirem apenas para enfermeiros ou motoristas, que lição!...
Saiam da mina, desçam das colinas, companheiros,
Tirem da palha os fuzis, as balas, as granadas...
- Eu não queria perder isso... Cheguei bem a tempo! - diz um jovem vietnamita, sustentando o braço
despedaçado.
Ele faz parte desses noventa e quatro loucos caídos de pára- quedas no inferno em 6 de maio, às
cinco e vinte da manhã... era seu primeiro salto... ele estuda literatura francesa em Saigon... Um
legionário alemão chora... lutou em Stalingrado... lutou em Diên Biên Phu... mais uma vez foi
vencido.., depois das prisões francesas, as prisões vietcongues... Um homenzinho verde se inclina:
- O senhor é prisioneiro do exército democrático do Vietnã.
O coronel Lalande não conseguiu a baixa... "Isabelie" já não responde... Uns cinqüenta homens,
todos barbudos, pálidos e esfarrapados, seguem soldados vietcongues agitando pequenas bandeiras
brancas... Thévenet cospe à passagem deles...
Fomos nós que quebramos as grades das prisões para nossos irmãos,
O ódio em nossa bagagem e a fome que nos empurra, a miséria...
Seminus, atiradores africanos salpicados de lama parecem leopardos comprimidos uns contra os
outros... Um caminhão não pára de queimar...
- Comida! - diz uma voz.
- Comida! - repetem centenas de outras.
Granadas jogadas no rio explodem... Um odor atroz sobe das trincheiras... Com pás joga-se terra
sobre os corpos, unidos num último combate, guerreiros dos dois lados...
- Mau lên! Mau lên! - gritam os vietcongues, empurrando os prisioneiros.
Quantas vezes o povo vietnamita já ouviu essa palavra?... A acreditar que fosse a única de sua
língua que poderia deter os franceses... Rápido!... Rápido!... Apressem-se!...
O tenente-coronel Trancart pensou novamente no ataque em que perdera "Gabrielle", depois
"Anne-Marie"... O comandante Brechignac, conhecido como "Brèche", já pensando nos meios de
fugir... um legionário de barba grisalha não pára de dizer a um jovem, imberbe como uma
adolescente:
- Como me irrita que esses safados tenham ganhado... Eles não respeitam nada. Quando penso no
que ousaram nos dizer através das porras dos alto-falantes, no dia da festa da Legião:
"Legionários, parem o combate, se não quiserem ser massacrados até o último homem, como no
Camerone..."
- Nós lhes respondemos "vão à merda" e lhes mandamos um Chouriço enorme! - diz o que parece
uma garota.
No Tonquin, a Legião imortal
Em Tuyen Quan ilustrará nossa bandeira.
Heróis de Camerone, * irmãos modelos,
Descansem em paz, durmam nos túmulos!
Vejam, eis o chouriço
Para os alsacianos, os suíços e os lorenos,
Para os belgas, aqui há mais...
- Calem a boca! Seus amigos estão mortos... não descansarão em paz... Vi suas almas errantes esta noite - grita
um homem que enlouqueceu subitamente: Os enfermeiros tentam acalmá-lo.
Soldados rudes tremem ao ouvi-lo... As almas errantes, o grande medo dos vietnamitas... e se eles tiverem
razão de ter medo?... medo de que todos esses mortos de Diên Biên Phu fossem da França ou do Tonquin, do
Marrocos ou da Cochinchina, da Argélia ou do Annan, alemães, senegaleses, thaís, camaroneses, méos,
homens das cidades, dos campos ou dos arrozais, oficiais ou simples soldados, covardes ou corajosos, não
importa, pois estão aqui, enterrados na lama, adubando uma terra que por pouco não foi a sua, mas pela qual
derramaram seus sangues, a maior parte deles sem saber por que...
Em centenas de macas alinhadas, feridos conversam, fumam ou gemem.
- Tudo bem, meu velho? - diz Bigeard aos reconhecer um de seus homens.
Eles tentam sorrir para ele... lutou como eles, apesar da perna estraçalhada... Os vietcongues separam os
combatentes: os vietnamitas por aqui, os outros para lá... Irmãos de armas, sabem que não voltarão a se ver...
Ah, se os americanos tivessem nos dado uma ajuda... Por que não a bomba atômica?... Falamos
disso... Pobres idiotas!... Um avião sobrevoa o desastre.., no solo isso já não incomoda ninguém...
De onde vem? Hanói ou Saigon?... Que importa?...
O general Giap pode ficar orgulhoso da vitória.., depois de cinqüenta e cinco dias de combates
incessantes, o inimigo do povo vietnamita foi vencido... Na conferência de Genebra, abre-se a
discussão sobre o problema da Indochina, na presença dos delegados vietcongues... Através do
mundo os teletipos crepitam:
"DIEN BIEN PHU CAIU..."
Filas de prisioneiros começam a andar... dos dez mil só voltará um quarto.

Epílogo

Nos quinze dias que precederam o nascimento, Léa, como todos os habitantes da colônia, seguira o
desenrolar da batalha de Diên Biên Phu, rezando para que Jean Lefêvre e Franck Lagarde não
estivessem entre os combatentes. E François? Onde estava? Era bem capaz de ter saltado de pára-
quedas, como centenas de outros voluntários, para ir em socorro dos que estavam cercados. As
causas desesperadas eram muito de seu estilo! Então um novo medo surgiu.
O anúncio da rendição, no momento do nascimento da filha, deixou-a sem forças e inquietou o
médico. Léa lhe fora confiada, ele prometera ajudá-la e avisar o consulado da França; mas não faria
nada enquanto não estivesse restabelecida. Puseram-lhe a recém-nascida nos braços, e sua face
voltou a ficar corada.
- Temos outras notícias de Diên Biên Phu? - perguntou ela.
Kien, que não saíra da cabeceira, tomou-lhe a mão.
- rendeu-se à uma da madrugada.
O rosto se enterrou nos cabelos do bebê. Léa deixou as lágrimas correrem.
- No dia 8 de maio? No dia do fim da Alemanha nazista?... Não é justo! Como se chamava essa
colina?
- Isabelle.
- Isabelle... Era o primeiro nome de mamãe; é o da filha de minha irmã... Gostaria de dá-lo à minha... Mamãe
também se chamava Claire...
Com toda a alegria de ser pai, Kien exclamou:
- Claire Rivière! É muito bonito. Para nós é o nome de um rio...
Não podendo Léa alimentar a filha, todos os dias lhe traziam leite fresco da leiteria dos trapistas do mosteiro da
Ilha de Lantau. Ela aprendera com a ama contratada por Kien a esterilizar as mamadeiras. O leite devia ser de
excelente qualidade, porque o bebê ia muito bem. Quanto a Léa, depois da confusão em que a tinha
mergulhado a queda de Diên Biên Phu, reencontrara o velho instinto de sobrevivência: afastar do pensamento
aquilo contra que nada pudesse fazer. Com aplicação e método, começou a se restabelecer e a organizar a
partida. Três semanas depois do parto, retomara os passeios pela ilha, sozinha ou em companhia de Chin-Hua;
freqüentemente, quando ia aos jardins do pico Vitória, levava a filha.
O médico inglês que fizera o parto cumprira a promessa e pleiteara sua causa junto ao consulado da França.
Mas o cônsul, sobrecarregado com o "assunto Diên Biên Phu", ouvira-o distraidamente.
- Vou ver o que posso fazer - dissera. - Mas, na falta de documentos que provem a identidade dessa pessoa,
será difícil.
- Darei um jeito sozinha - dissera Léa quando soube do resultado do encontro.
Depois de muitas discussões, ela conseguira que Chin-Hua fizesse um contato com um falsificador de
documentos.
- Para uma branca será caro - dissera ele. - Mais ainda se estiver acompanhada de uma criança.
A quase totalidade das jóias oferecidas por Kien e o dinheiro que ela economizara serviram para pagar o
passaporte, a autorização para deixar a colônia e o visto para Saigon haviam sido tirados em nome da senhora
Kennedy e sua filha Joyce.
Tinham custado uma fortuna, mas o trabalho estava impecável.
De manhã bem cedo, para aproveitar a temperatura fresca, Léa ia a Kowloon fazer compras na parte mais
européia da cidade. Pouco a pouco se habituou a levar a pequena Clara para comprar brinquedos e roupas. Ao
voltar dessas saídas, ela parecia tão alegre, se mostrava tão terna, que Kien relaxou a vigilância. Depois do
nascimento, ela se recusou a ter relações com ele, a pretexto de "problemas femininos" que ela fingia, corando,
não poder mencionar. Por sorte, ele não se mostrava muito apressado; tinha uma amante, uma chinesa
encantadora, o que lhe permitia esperar com paciência. Além disso, não era a mãe de sua filha? Por esse motivo
merecia consideração. Estava louco pela filha e ficava longo tempo inclinado sobre o berço.
Sob a presidência de Anthony Eden, ministro do Exterior da Grã-Bretanha, a conferência de Genebra teve sua
última sessão em 28 de julho de 1954 e decidiu pelo cessar-fogo na Indochina. Pièrre Mendes France ganhou a
aposta; sob a pressão dos chineses e dos soviéticos, Pham Van Dong teve de se submeter, com a alma
mortificada.
Léa nunca recebeu resposta às cartas que escrevera a Françoise e a Lien. Teriam as cartas chegado? As
respostas teriam sido interceptadas?
O calor era insuportável, havia a ameaça de um ciclone. Enfim, um dia, Chin-Hua lhe disse:
- Vai ser amanhã.
Um medo animal a paralisou por alguns instantes: saberia enganá-lo?
Excepcionalmente, nessa noite, Kien jantou em casa. Léa pediu à cozinheira indiana que preparasse uma
refeição de seu país. A primeira coisa que ele fez ao voltar foi ir ver Claire. "Olhe-a bem", pensou Léa. "É a
última vez que a vê."
Depois do banho, tranqüilo, usando um longo robe chinês,
confortavelmente instalado, Kien comia com evidente prazer as iguanas finamente temperadas.
- Foi uma boa idéia ter mandado fazer um thali,* eu não me canso dele. Você não come nada?
- Não estou com muito apetite... Estou com dor de cabeça desde a manhã.
- O que fez hoje?
- Pouca coisa; fez tanto calor que não tive coragem de sair.
- Chin-Hua esteve aqui?
- Sim, ela me trouxe aquele livro sobre buquês japoneses. É muito bonito, não acha? Vai me
ensinar...
- O seu vestido para a festa na casa do governador está pronto?
- Tenho ainda uma prova, amanhã. Ficará maravilhoso, você vai ficar orgulhoso de mim.
- Tenho certeza de que você será a mais bonita.
Ela levantou o copo em sinal de agradecimento.
Ele a observava, atormentado por sentimentos inexplicáveis. Desejava-a, mas preferia esperar que
estivesse completamente restabelecida. Passaram o restante da noite conversando sobre o bebê,
como todos os pais do mundo. Depois Kien foi para o jardim, fumar um charuto. Quando voltou, Léa
tinha ido para o quarto. Ele entreabriu a porta e murmurou:
- Boa noite.
- Boa noite, até amanhã.
Depois de se ter assegurado de que não estava sendo seguida, Léa empurrou o carrinho da criança
para um alpendre da Nathan Road, abandonou-o e tomou um táxi para o aeroporto, onde Chin-Hua
a esperava com a passagem, o passaporte e uma mala com algumas roupas para ela e o bebê.
- Nunca esquecerei o que fez por mim - disse-lhe Léa, abraçando-a.
Chin-Hua a acompanhou até a alfândega e ficou até a partida do avião.
Só depois de uma hora de vôo é que Léa parou de tremer.
Chovia quando o avião aterrissou em Saigon; o ar estava pesado. Um funcionário vietnamita
examinou atentamente o passaporte da jovem mulher; ela pensou que fosse desmaiar. Com prática,
ele deu, contudo, duas carimbadas.
- A senhora pode passar.
O saguão estava repleto de refugiados do Tonquin; muitos traziam uma cruz pendurada no pescoço.
Indecisa, Léa olhava em volta: poucos franceses, a não ser alguns militares desocupados; os
combates haviam cessado em 11 de agosto na Cochinchina.
Aonde ir?... Ela temia o olhar de Lien para a criança e, entretanto, ela era a única a poder lhe dar
notícias de François.
François... De repente, ela sentiu frio. Não, não devia pensar nisso. Certamente estava vivo!
Precisava estar vivo.
- Senhora Tavernier!...Todos pensavam que estivesse morta! Estou muito contente de revê-la... A
senhora parece estar perdida, ninguém a espera?... É seu esse lindo bebê?
O gerente do Continental a observava de olhos arregalados, brilhando no rosto corado. Parecia
cansado; o terno branco, amassado, parecia muito apertado para o corpo obeso. Talvez os últimos
acontecimentos tivessem feito engordar...
- Bom dia, senhor Franchini. Como vê, estou bem... Posso lhe pedir um favor?
- O que quiser, senhora.
- Sabe onde mora o senhor Müller?
- Certamente.
- Poderia me levar até lá?
Escondendo a surpresa, ele respondeu:
- Com prazer, venha... Thanh! mau lên... pegue a mala da senhora.
Bem instalada na confortável limusine, Léa fechou os olhos, estreitando a si a pequena Claire.
Franchini pigarreou para limpar a voz e depois disse com o forte sotaque corso:
- Será uma sorte o senhor Müller estar lá: ele queria saltar
de pára-quedas em Diên Biên Phu... como seu marido! Felizmente, a família o impediu.
- O que está dizendo? Meu marido estava em Diên Biên Phu?
- Coitada, a senhora não sabia? Foi esse bêbado do Samuel Irving que o levou para o funil...
- O que aconteceu a ele? Ele está ferido?
- Não, foi feito prisioneiro.
- Deus seja louvado!
- Espere primeiro reencontrá-lo para depois agradecer a Deus; os campos de prisioneiros
vietcongues não são brincadeira! Os que voltaram de lá dizem que são piores que os alemães.
- Isso eu não posso acreditar...
- Cara senhora, não sou eu quem lhe diz isso, são eles.
- Senhor Franchini, ajude-me a encontrá-lo!
- A senhorita Rivière talvez saiba onde ele está...
- Irei vê-la depois de encontrar o senhor Müller; ainda estamos longe?
- Fica em Cholon... Chegaremos logo.
O carro parou no bulevar Galieni, diante de uma construção de aspecto desagradável. O motorista
foi bater à porta. Um empregado chinês, curvado pela idade, abriu.
- Uma senhora quer falar com o senhor Philippe.
- Léa! Desculpe... Senhora Tavernier!
Léa passou uma parte da noite contando o que lhe acontecera. Amiúde teve de interromper a
narrativa, sufocada por soluços. Num cômodo vizinho, uma jovem empregada cuidava da criança.
Philippe a escutava, perturbado e horrorizado.
- A senhora não pode ficar em Saigon; Kien é muito poderoso aqui. Conheço Samuel Irving, ele
ficará feliz de poder ajudá la Vou ligar para ele. A senhora precisa partir para Hanói nas próximas
horas. Enquanto espera, descanse. Está em segurança nesta casa.
O velho Morane de Irving decolou de Tan Son Nhut no começo da tarde e aterrissou em Hanói três
horas depois. Fazia menos
calor que em Saigon. Amparada por Philippe Müller, Léa desceu do avião. Os três foram logo
cercados por soldados vietcongues. Sobre o aeroporto de Gia Lam flutuava a bandeira vietnamita.
Foram conduzidos a uma pequena sala entulhada de mercadorias de toda a espécie, e interrogados
por uma autoridade vietcongue. Esta mostrou evidente má vontade ao não querer compreender as
explicações de Samuel Irving, que, contudo, falava muito bem o vietnamita. Depois de duas horas de
lengalenga, talvez devido também ao choro do bebê, ele consentiu em mandar chamar o "colega"
francês; a discussão recomeçou. A criança passou a chorar mais forte, e Léa, que tinha estado
calma, sabendo que não se conseguiria nada nesse país agindo com raiva, acabou por explodir:
- Estou cheia do seu discurso! Minha filha está com fome! Quero ir para Hanói, o senhor
compreende? Leve-me para Hanói!
- Meu irmão, que tem um táxi, vai levá-la para onde a senhora quiser. Mas compreenda que
devemos tomar algumas precauções com os estrangeiros - disse o soldado vietcongue.
- Por que não me responde logo em francês, já que fala tão bem essa língua? - perguntou o
americano.
- Não gosto de falar francês, é a língua dos opressores do povo vietnamita. Se a senhora quiser me
acompanhar... Dong - chamou ele. - Dua nung nguói naø di Hà Nôi. *
A noite caíra, muito escura. Antes da ponte Paul-Doumer, foram parados e fiscalizados quatro ou
cinco vezes. Léa fechou os olhos, recordando os encontros com François nessa ponte. Parecia-lhe
que uma eternidade decorrera desde então. Cansada de chorar, Claire adormecera.
Por medida de segurança, Philippe Müller não reservara quarto no hotel Metropole. Conseguira com
a família autorização para ocupar uma casa dela perto da Citadeile: mas apenas o segundo andar, já
que o térreo estava alugado. Ao chegarem,
Léa teve a alegria de encontrar comida e roupa limpa para o bebê.
- Obrigada - disse ela simplesmente a Philippe.
- Amanhã, virá uma assam recomendada por uma de minhas tias; asseguraram-me que é pessoa de confiança.
Isso lhe dará tempo de tomar as medidas necessárias. -
- Nesse momento, Kien Rivière está em seu encalço. É preciso que a senhora esteja em segurança próximo às
autoridades francesas, antes que ele a encontre. Existe ainda alguma autoridade francesa aqui, depois dos
acordos de Genebra?
- Sim, o general Ely, comandante e comissário geral. De fato, é Salan...
- O general Salan está em Hanói?
- Neste momento não sei; saberemos amanhã.
- Eu preciso estar com ele de qualquer maneira. Enquanto esperamos, é preciso encontrar Giau.
- Giau?
- O chefe dos mendigos... Ele poderá nos ajudar. É pessoa de confiança.
- Onde podemos encontrá-lo?
- No quarteirão chinês, ao lado da rua des Voiles ou da rua de la Soie. Você o reconhecerá facilmente; é
monstruoso.
- É o caso de muitos mendigos daqui.
- Eu sei... Mas ele é pior que os outros: anda de quatro, parece um caranguejo com cabeça de tartaruga... É
verdadeiramente muito desagradável.
- Admitindo-se que o encontre, não tenho nenhuma certeza de que quererá me acompanhar...
- Dê-lhe isto, ele compreeenderá.
Philippe pegou o buda de jade dado tempos atrás por Giau e o enfiou no bolso.
- Irei amanhã.
- Não, vá agora mesmo, por favor. Você mesmo disse que Kien está à minha procura. Não há um minuto a
perder.
- Vou com você - disse Irving.
- Prefiro que fique com a senhora Tavernier, nunca se sabe.
Meus primos me prometeram dois guarda-costas, mas só chegarão ao amanhecer.
"Parece que estamos num perigoso romance de aventuras!", pensou Léa.
- Vá dormir. Se eu encontrar Giau, virei acordá-la.
Contra toda a expectativa, Léa dormiu muito bem.
Foi só pela manhã que Philippe Müller encontrou Giau; ele estava ainda mais medonho do que se poderia
esperar. O monstro começou a tremer como uma folha quando reconheceu o buda, e lágrimas correram pelas
rugas da hedionda figura, erguida como a de uma serpente.
- Foi ela quem o mandou?
- Foi - respondeu Philippe virando a cabeça.
- Onde ela está?
- Siga-me.
O mendigo se levantou e fez um chamado. Logo o solo em volta tremeu; criaturas da cor da poeira
responderam a seu sinal. Se bem que habituado desde a infância aos miseráveis de Cholon, Müller teve um
sentimento de nojo e de temor mesclados. Afastou-se, e só Giau se arrastou atrás dele; pelo menos assim
pensou...
- Ela está dormindo - disse Irving, levantando-se da poltrona em que estava arriado, sem parecer ele próprio
notar o mendigo.
- Não a despertemos... Vá você descansar logo.
Ele ofereceu um cigarro e chá a Giau e lhe contou o que sabia. Giau o escutou sem interromper; depois, à
menção do nome de Kien:
- Eu o matarei - disse sem nenhum comentário.
Léa se juntou a eles pouco depois, trazendo a pequena Claire. Ela se agachou diante de Giau; eles se olharam
longamente.
- Estou feliz de revê-lo - murmurou ele por fim.
- Já contei a ele o que você me relatou - disse Philippe.
- Fez bem. E você, Giau, o que tem para me contar?
Ele fez o relato das buscas através da floresta e das montanhas, da maneira pela qual ele tinha sido deixado
quase morto por um dos homens de Kien. Algumas semanas depois, restabelecido, ele encontrara o bando em
Thap Micu, onde Kien tinha assassinado duas sentinelas, provocando como represália a execução de
prisioneiros vietcongues. Cometera um grave erro ao matar as sentinelas e o motorista que devia levá-lo para
Hanói:
eram brancos. Uma ordem fora dada à polícia e ao exército para o encontrarem. Sua fotografia e a de seus
cúmplices fora afixada em toda a parte e, apesar do fim da guerra, seria uma grande imprudência para ele voltar
lá.
- Eu o conheço, não será isso que o deterá - objetou Léa. Giau contou também como François a havia
procurado, quando de seu retorno a Hanói, e como ficara infeliz quando lhe disseram que ela morrera.
Léa estava oprimida por tanto ódio e tanto amor ao mesmo tempo. Estava como presa na teia de uma
monstruosa aranha e sentia-se enfraquecer.
O bebê, que estava em seus braços, gemeu dormindo. Ela se sentiu mais fortalecida, e pensou no futuro: "É
preciso ter coragem, sairei deste pesadelo!"
- Você sabe, Giau, se François voltou?
- Ele não fez parte dos primeiros comboios.
- Como sabe disso? - perguntou Philippe Müller.
- Tenho espiões em Viet Tri e no estado-maior de Cogny. Eles me informarão assim que virem o nome de seu
marido numa das listas fornecidas pelo vietcongues.
- Por que faz isso? - perguntou Irving.
- Porque eles me trataram como ser humano.
Houve um silêncio.
- Quando vai conseguir saber alguma coisa? - perguntou Léa, sorrindo-lhe.
- No fim da manhã. Agora tenho de ir. Voltarei assim que tiver notícias.
Philippe foi até o QG do general Cogny.
As duas notícias foram dadas ao mesmo tempo: François seria libertado no dia seguinte, e Kien estava em
Hanói.
Por ordem de Cogny, um oficial veio cumprimentar Léa e pedir-lhe que estivesse pronta para responder a
algumas perguntas. Teve o pedido gentil mas firmemente repelido pela jovem mulher.
Giau voltou munido de um salvo-conduto. Irving e Müller haviam comprado um jipe do exército.
- Acho que será melhor partir esta noite - disse Philippe.
- Sim - confirmou Giau - Kien está no seu rastro. Você devia deixar a criança.
- Nunca!
- Você é quem sabe. Parta, vou atirar nele aqui.
- Como você vai fazer?
- Tenho um plano. Adeus - respondeu ele, devolvendo-lhe o buda de jade.
Nesse instante, Léa sentiu que nunca mais o veria.
O jipe partiu, dirigido por Samuel Irving. Os três estavam vestidos com uniformes militares; a criança estava
escondida numa bolsa com as mamadeiras. Se tudo corresse bem, estariam em três ou quatro horas em Viet Tri.
Sob ameaça, os moradores do andar térreo haviam sido presos e amordaçados no próprio andar. Pela porta de
trás, os seguidores do monstro vinham regularmente dar-lhe notícias do que acontecia e dos passos de Kien e
seus guarda-costas. Para que estivessem certos da presença de Léa e da criança na residência, ele mandara vir
mulheres conhecidas como amas, assim como o entregador de leite de manhã e de noite.
Quando a noite caiu, Kien apareceu em companhia de Fred e Vinh. A porta se abriu facilmente.
- Léa! - chamou Kien -, eu sei que você está aí... Responda!... Onde está minha filha?
Tudo continuou em silêncio.
- Não estou gostando disso, chefe - murmurou Fred, sacando a pistola.
- Tem certeza de que ela está aí? - perguntou Kien a Vinh.
- Eu vi quando ela voltou ontem de noite com a criança.
- E daí em diante?
- Não saiu mais. Militares franceses vieram e partiram de jipe. Sua mulher não estava com eles.
- Teria podido fugir pela parte de trás...
- Não, um rapaz nosso está guardando essa parte. É um beco onde se refugiam os mendigos.
- Mendigos? - disseram juntos Kien e Fred entreolhando-se.
Pareceu-lhes que uma corrente de ar frio atravessou a casa. Um clarão tremulou num dos cômodos do fundo;
um aroma
de incenso chegou até eles. Armas em punho, eles avançaram. Diante do altar dos antepassados, uma
lamparina estava acesa e queimavam pequenos bastões de incenso.
O grande buda de porcelana parecia sorrir, O cômodo parecia vazio, mas grande parte dele permanecia no
escuro.
- Léa, você está aí? - perguntou Kien... - Encontre a luz!
- gritou ele para Vinh.
Ouviu-se o tatear de sua mão pelas paredes.
- Ande rápido!
De repente, o cômodo foi iluminado. Algumas caixas cobertas por uma camada de laca junto às paredes, um
tapete enrolado.
- Não há ninguém - disse Fred, acalmando-se. - Vamos ver nas outras peças da casa.
Ele saiu, seguido de Vinh, e ambos se estatelaram de repente no chão: não tinham visto a corda estendida
junto ao piso. Não tiveram tempo de usar as armas: uma nuvem de seres disformes e malcheirosos os envolveu
e os atingiu com facadas. Kien atirou no bando, acertando alguns, sem que parasse a carnificina. Um riso foi
ouvido no cômodo iluminado. Kien voltou-se. Empoleirado numa caixa, Giau o observava.
- Eu estava esperando você.
- Onde estão minha mulher e meu filho, verme?
- Neste momento, Léa já encontrou o marido. Você não a
encontrará nunca mais.
- Eu os encontrarei!
- Nunca. Lembre-se: eu disse que mataria você.
- Você, aborto? Nem arma tem... Sou eu que vou matá-lo. Mas antes vai me dizer onde estão.
Como um sapo, Giau saltou de uma caixa para outra.
- Para você está tudo acabado. Vai morrer.
- Não, é você que vai morrer! - gritou Kien, apertando o gatilho. "Clic..."
- Você já gastou todas as balas, eu as contei... Tiêp tay voi tôi! Anh em!*
- Comigo, todos vocês!
Os mendigos, cobertos de sangue, abandonaram as presas e se jogaram sobre Kien. O jovem lutou muito
tempo, antes de sucumbir.
- Vou matar você como fazemos entre nós, lentamente - disse Giau, avançando para o prisioneiro, armado com
uma longa lâmina.
Kien, ferido na cabeça, com um olho meio fechado, olhava-o fixamente.
- Não tenho força bastante nem tempo para cortar você em mil pedaços, como fazem nossos colegas chineses,
mas você vai ter tempo de lamentar o mal que fez a essa mulher. Em seguida, comerei seu coração.
Kien começou a rir. Foi tão surpreendente, que os mendigos relaxaram um momento. Ele se livrou e, agarrando
Giau, jogou-o contra a parede. O mendigo bateu violentamente na quina do altar, que lhe dilacerou o rosto. Ele
ficou alguns momentos atordoado no chão, enquanto os companheiros subjugavam o adversário.
- Buông tôi ta - gritou Kien -, tôi se cho các anh tât ca tiên các anh muôn. **_ Larguem-me! Eu lhes darei todo o dinheiro que quiserem.
Giau acabava de lhe abrir a barriga. Os intestinos apareceram, arroxeados, brilhantes. Os mendigos o largaram.
Os olhos enlouquecidos do mestiço iam de Giau para a massa quente que se derramava entre as pernas. Ficou
de joelhos, tentando segurá-la.
- Eu queria que ela visse você assim - disse o monstro, com o rosto na mesma altura do da vítima.
Onde Kien encontrou energia para tirar da manga um minúsculo revólver que tinha sempre consigo,
puxar a trava de segurança e atirar em cheio na figura imunda?... Uma bala de pequeno calibre
espatifou o nariz, outra entrou no olho. Giau caiu sobre Kien, que gritou.
Fora ressoou a sirene de um carro da polícia.
- Chúng ta chuôn di, bon linh!... *
Quando a polícia militar entrou na casa, só encontrou os dois corpos supliciados, abraçados na
morte.
Os setenta quilômetros que separavam Hanói de Viêt Tri pareceram intermináveis para todos. Em
alguns lugares, a estrada, coberta de veículos militares, ambulâncias, bicicletas e pedestres, era
quase intransitável. Atravessaram o rio Cà Lô por uma ponte militar. Vinh Yen, onde houvera tanta
luta, estava completamente em ruínas. Entretanto, desses escombros a vida asiática já renascia,
com seus vendedores de sopa e de legumes... Enfim chegaram a Viêt 'ii, na confluência dos rios
Claire e Rouge. Ali, Léa trocou de roupa, pondo um vestido simples, de algodão branco.
Eles tiveram que descer do carro e foram levados por uma maré humana, que agitava bandeiras
vermelhas com a estrela dourada. Em volta deles só havia danças, cantos e farandolas... Bô dôi e
jovens garotas caminhavam, dando-se as mãos, com o rosto sorridente a olhar para um mundo novo.
Bandeirolas flutuavam ao vento; neles estava escrito, em francês e em vietnamita: "Viva a paz!"
Ouvia-se: "Viva o presidente Hô Chin Minh!", "Viva a França!" Como um autômato, Léa avançava,
protegendo a cabeça do bebê. Em torno delas, Samuel Irving e Philippe Müller empurravam com
cuidado essa multidão afável, em meio à qual se sentia às vezes, porém, arrepios de ódio. Chegando
ao cais, eles se misturaram aos militares franceses e vietnamitas que vinham receber os prisioneiros
libertados. Uma orquestra feminina começou a tocar quando
a barcaça de desembarque atracou. A passarela de desembarque foi colocada. De cada lado, bôdôi desarmados se alinharam, enquanto moças de túnicas claras iam ao encontro
dos passageiros.
Por um breve instante, quando os primeiros desceram, houve uma mudança de atitude no meio da
multidão, uma tensão repentina, como um desejo de silêncio diante desses homens macilentos,
excessivamente cansados, vestidos de azul, que avançavam com passo hesitante, de cabeça baixa,
braços balançando. A euforia simulada ficou maior quando as moças lhes pregaram no peito do
uniforme um pequeno broche representando a Pomba de Picasso. Os prisioneiros libertados
caminhavam sem animação, sem manifestar o menor prazer por estar livres.
- Parecem fantasmas - murmurou Samuel Irving.
Outras moças lhes ofereciam bananas, arroz enrolado em folhas, fumo de rolo, sob aplausos dos bô
dôi desarmados. Nos barrancos, funcionários dos dois países trocavam assinaturas e documentos.
Ordens foram dadas, os prisioneiros fizeram filas, com os braços cheios de presentes do povo
vietnamita, e passaram sob aclamação entre os arcos do triunfo de flores. A brisa que vinha do rio
fazia drapejar milhares de bandeiras vermelhas... Léa se agarrou à filha para não cair, enquanto
procurava François com os olhos. Como reconhecê-lo no meio desse bando triste? Ela vivia
novamente a humilhação da derrota, e sentia raiva. Por que eles não ficavam eretos?
Contudo, à medida que eles se afastavam do barco e se aproximavam das autoridades francesas
instaladas sobre um pequeno estrado, alguns levantavam os olhos.
Foi o olhar de um desses que encontrou o de Léa. Imóvel, ela observava vir em sua direção esse
homem, seu homem, tão procurado, tão traído. Como mudara!... E, apesar de tudo, ela o teria
reconhecido entre milhares. Ele vinha, largando, apesar dos gritos dos bô dôi, os presentes das
moças. Parou diante dela e sorriu. Nesse sorriso havia todas as promessas, todas as felicidades para
o futuro. Ela sorriu, por sua vez.
- Como ela se chama? - perguntou ele, pondo a mão na cabeça da criança.

 

 

                                                   Régine Deforges         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades