Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA MULHER EM SUA VIDA / Ellery Queen
A ÚLTIMA MULHER EM SUA VIDA / Ellery Queen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

John Levering Benedict III tinha mais do que a maioria dos homens. Mais dinheiro, mais propriedades, mais carros e, principalmente, mais mulheres. Inclusive, três ex-esposas com pouca coisa em comum, além de uma imensa ambição e uma total falta de escrúpulos.

Não satisfeito, estava noivo outra vez. Foi para dar essa má notícia, que reuniu as ex-mulheres em sua casa de campo, naquele fim de semana. Uma reuniãozinha familiar que não acabou exatamente como se esperava.

Para Ellery Queen, escritor de novelas policiais e amigo do milionário, o problema era: qual daquelas beldades tinha arrebentado a cabeça de John com uma estatueta de ferro? E por que a criminosa deixou, junto do corpo, um vestido de noite negro, um longo par de luvas brancas e uma extravagante peruca verde?

 

 

 

 

        Ellery ficou ali, de pé, observando o jato que levava Scot. Ainda continuava parado, sozinho, quando sentiu que o tocavam. Virou-se e deu com o inspetor Queen.

        - Ei - o pai disse, apertando seu braço. - Venha. Vou lhe pagar um café.

        O velho sempre aparecia inesperadamente. Ellery acompanhou-o até o restaurante do aeroporto.

        - Filho, você precisa parar de se meter em problemas. Não deve agir assim. Você se deixou envolver por esse sujeito. Se eu me permitisse esse tipo de tolice, já estaria na cova há muito tempo.

        Ellery levantou a mão, como se estivesse jurando sobre a Bíblia.

        - Oh, ajude-me, para que eu nunca mais cometa esse erro.

        Depois disso, viu Benedict e Marsh conversando, do outro lado do restaurante. Os dois imediatamente aceitaram o convite de Ellery e vieram sentar-se à sua mesa. Não se encontravam desde a universidade.

        Para o inspetor Queen, Marsh era apenas um cidadão chamado Marsh. Mas claro que já ouvira falar de Benedict... Johnny-B, como era conhecido na alta sociedade. Membro do exclusivo clube Raffles, estrela de primeira grandeza das colunas sociais, amigo da nobreza, freqüentador de Mônaco, Kitzbühel e dos cruzeiros gregos.

        Em janeiro, Benedict podia ser encontrado no Festival de Inverno de Málaga; fevereiro, Garmisch-Partenkirchen; março, em Bloemfontein; abril, no Festival Songkran, em Chiangmai; maio, em Copenhague, para o balé real; junho, em Epson Downs, para as corridas internacionais de iate; julho, em Henley e Beirute; agosto, em Mystic, para o Festival Aberto de Artes; setembro, em Luxemburgo, para a Festa do Vinho; outubro, em Turim, para o Salão do Automóvel; novembro, no Madison Square Garden, para os leilões de cavalos; e em dezembro, em Makaha Beach, para o Festival de Surf.

        John Levering Benedict III não tinha outras atividades, a não ser sua vida social. Era encantador, sem ser arrogante, fato que atraía muito os colunistas. Era até bonito, apesar de mais baixo do que a média; tinha cabelos finos, que as mulheres adoravam acariciar, mãos e pés delicados. Estava sempre na lista dos dez mais bem vestidos. Havia algo nele que lembrava os gregos antigos.

        O avô paterno de Johnny-B possuía terras madeireiras por toda a região do lago Chelan e logo se tornou um dos barões da lenha, no noroeste do Pacífico. Seu pai investiu em navios, nos estaleiros de Pelion, em Ossa. De acordo com os boatos, a tarefa de gastar a fortuna ficara por conta de Johnny. Tarefa que, segundo se dizia, era um tanto difícil, apesar de pagar nada menos de três pensões: tinha acabado de divorciar-se da terceira esposa.

        Um dos poucos amigos de Johnny Benedict era Al Marsh.

        Marsh tinha fortuna própria, mas não tão grande. Trabalhava, e muitos diziam que era apenas como passatempo. Havia feito o curso de advocacia em Harvard e um estágio brilhante na Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos; conhecera a cínica realidade de Washington e fundara uma firma de advogados em Nova York, que ia muito bem, com a ajuda da família e dos amigos influentes. Agora, tinha escritórios nas duas cidades: Washington e Nova York.

        Os especialistas no assunto diziam que Marsh era um dos solteiros americanos mais cobiçados. Atraía as mulheres e lidava com elas do mesmo jeito com que lidava com a lei: competente e prático. Era mais alto do que Benedict, moreno, com o nariz achatado - lembrança de uma briga na universidade - e o maxilar que lembrava um cowboy. "O tipo Marlboro", Johnny dizia, afetuosamente, "aquele que gosta de cavalos e carros importados." E Marsh gostava de ambos. Tinha também paixão por voar. Pilotava seu próprio avião com tanta devoção, que só podia ser explicada por um fato: seu pai morrera voando.

        Como acontece com quase todos os homens que atraem as mulheres, Marsh não era muito apreciado pelos homens. Alguns o achavam orgulhoso; outros, reservado. Seu círculo de amigos era pequeno.

        Entretanto, seu relacionamento com Johnny Benedict não era apenas pessoal. Johnny tinha herdado do pai os serviços de uma velha firma de advogados, cheia de prestígio, que cuidava dos investimentos dos Benedict. Mas, para administrar seus próprios bens, ele confiava em Marsh.

        - Cheguei de Londres há quinze minutos. E Al veio comigo - Benedict disse. - Tivemos alguns negócios em Londres, e de-depois, um leilão no S-Sothby.

        - Naturalmente, não poderia perdê-lo.

        - Por favor - Marsh disse -, não sei de nenhuma lei que proíba um homem de dar o que Johnny deu por aquele Monet.

        Benedict riu.

        - Você está sempre querendo me ensinar a gastar o meu d-dinheiro. Sempre diz que devo achar um jeito de conseguir lucro.

        Ele não apenas gaguejava um pouco, como também tinha dificuldade com os "erres". Aquilo dava à conversa um grande charme. Quem veria um capitalista perigoso num homem que pronuncia "lucrro"?

        - Foi você o sujeito que comprou aquela coisa? - o inspetor Queen perguntou. - Pagou tudo aquilo por um pedaço de tela velha e algumas camadas de tinta?

        - E não nos conte o que vai fazer com o quadro - Ellery disse. - Nem gosto de lembrar do preço. Acho que vai transformá-lo em alvo para dardos ou qualquer coisa do gênero.

        Marsh chamou o garçom e pediu mais uma rodada.

        - Não critiquem Johnny, por favor - disse. - Ele realmente entende de arte.

        - Claro que entendo. Gostaria de ver a minha c-coleção qualquer dia, Ellery? O senhor também, inspetor.

        - Obrigado, mas me deixe fora disso - o inspetor Queen disse.

        - Meu filho diz que sou um bárbaro em matéria de cultura. Diz, nas minhas costas, naturalmente. Ele foi muito bem educado, para falar isso de frente.

        - Quanto a mim, Johnny, - Ellery falou - não acredito que consiga agüentar. Nunca consegui me adaptar à distribuição desigual de riquezas.

        - E o que acha da distribuição desigual de cérebros? - Benedict respondeu. - Pelo que tenho lido ultimamente, as críticas dos seus livros o colocam quase como um primo próximo de Einstein.

        Algo no rosto de Ellery fez com que Benedict sorrisse, perguntando:

        - Disse algo errado?

        - Ellery é modesto - o pai explicou. - Os críticos têm sido duros, principalmente pouco antes de ele fazer uma viagem de volta ao mundo para pesquisas. Na verdade, as minhas férias estão chegando e não consigo descobrir um lugar sossegado para passar algumas semanas.

        - Pergunte a Johnny - Marsh disse. - Ele conhece todos os lugares que não estão na lista das agências de turismo.

        - Não, obrigado - Ellery falou. - Não os lugares de Johnny.

        - Está com uma idéia errada sobre mim, Ellery. Que dia é hoje?

        - Segunda-feira.

        - Não. A data.

        - Vinte e três de março.

        - Bem, antes de eu ir para Londres... no dia 19, se quiser verificar... estive em Valência, para a Festa de São José. Estranho? Antes disso, fui à Feira da Primavera, em Viena. E antes disso... no dia 3, eu acho, estive em Tóquio, para a Festa das Flores. O que acha? Muito cultural? Um gastador? Al, estou me vangloriando outra vez!

        - Vanglorie-se, Johnny - Marsh disse. - É o tipo de coisa que ajuda a sua imagem. E Deus sabe como podemos usar essa ajuda.

        - Papai e eu estamos pensando em algo menos sofisticado - Ellery comentou.

        - Ar puro, longos passeios a pé, pescar - o inspetor Queen disse. - Principalmente, pescar. Já pescou, sr. Benedict? Quero dizer, num riacho nas montanhas, sozinho, com uma vara que não custou trezentos dólares? Os prazeres simples dos pobres... é isso que estamos procurando...

        - Tenho a receita certa para vocês dois. O que acha, Al?

        - É perfeito - Marsh riu. - Ellery não sabia que ia sugerir um barco e conseguir um iate.

        - Sabia? - Ellery falou. - Sabia o quê?

        - Tenho um sítio na Nova Inglaterra - Johnny Benedict explicou -, mas poucas pessoas s-sabem disso. Tem bosques, riachos não-poluídos e cheios de... como se chama mesmo?... esqueci. Já pesquei lá com um bambu cortado e preparado por mim mesmo. Inspetor, para sorte de vocês, há ainda um lindo bangalô de hóspedes, perto da casa principal. É tudo terrivelmente rústico, Ellery. Você e s-seu pai adorarão. Podem usar o bangalô o tempo que quiserem. Dou-lhes a minha palavra de que ninguém os incomodará.

        - Bem. Não sei o que dizer...

        - Eu sei - o inspetor falou, imediatamente. - Obrigado, aceitamos.

        - Em que lugar da Nova Inglaterra?

        Benedict e Marsh trocaram olhares divertidos.

        - Uma pequena cidade - Benedict disse. - Duvido que já tenha ouvido falar dela. Wrightsville.

        - Wrightsville? Você tem um sítio lá, Johnny?

        - Há anos e anos...

        - Mas eu nunca soube.

        - Já lhe disse. Mantive em segredo. Comprei-o faz tempo, para ter um lugar para onde pudesse fugir de tudo. E isso acontece com mais freqüência do que você imagina.

        - Lamento, Johnny - Ellery disse, batendo no peito -, fui um sujeito abominável.

        - É um lugar modesto... burguês, na verdade. Antigo como o meu bisavô. Ele e-era carpinteiro.

        - Mas por que em Wrightsville?

        Benedict sorriu.

        - Você fez muita propaganda do lugar.

        - Bem, é verdade - Ellery concordou. - Wrightsville é a minha receita para as doenças que periodicamente me atacam.

        - Como se ele não soubesse... - Marsh comentou. - Johnny sempre segue suas aventuras, Ellery. Do mesmo jeito que Marco Antônio seguia César. Principalmente as histórias sobre Wrightsville. Fica sempre procurando erros.

        - Isto, senhores, vai ser o reinicio de uma bela amizade - Ellery disse. - Garanto que não o decepcionarei, Johnny.

        Eles se despediram e, naquela mesma tarde, chegou um envelope, com o seguinte bilhete:

 

        "Querido ermitão,

        A chave pequena é da casa de hóspedes. A outra abre a casa principal, caso vocês queiram alguma coisa... comida, bebidas, roupas. Há tudo lá. Há, também, na casa de hóspedes; entretanto, em menor variedade. Usem tudo o que quiserem. Ninguém está lá agora (não tenho caseiro, mas, de vez em quando, um velho chamado Morris Hunker vai da cidade até lá, dar uma olhada). A julgar pelo estado de espírito em que você estava hoje, precisará de toda a solidão que o meu sítio em Wrightsville pode fornecer. Boa sorte, e cuide do seu velho... parece que ele está precisando de um pouco de paz.

        Sinceramente, Johnny.

        P.S. Talvez eu apareça por lá. Mas não os incomodarei. A não ser que desejem ser incomodados."

 

        Os Queen desceram no aeroporto de Wrightsville no começo da tarde do dia seguinte.

        O problema com Wrightsville - Wrightsville tinha problemas, no ponto de vista de Ellery - é que havia, desastradamente, entrado no século XX.

        Quando se tratava de cidade pequenas, Ellery era completamente conservador e reacionário. Gostava de bandas de música tocando nas noites de quinta-feira. De amendoim com pipoca vendidos nas calçadas. De rapazes e moças arrumadinhos, passeando nas tardes de sábado.

        Sentia um afeto especial pela praça (que era redonda), rodeada apenas por sobrados e um único edifício de cinco andares, o Hollis Hotel, e uma casa de três andares (o último era o sótão), construída no estilo da época da Revolução. Mais ao longe, havia uma estátua de Jezreel Wright, que fundou o povoado em 1701, num local abandonado pelos índios. A estátua agora era usada, sem a menor cerimônia, pelos passarinhos.

        Tudo ali era antigo. Mas agora, a paisagem estava diferente. As fachadas dos edifícios comerciais foram reformadas como aquela do Ventura Boulevard, em San Fernando, perto de Hollywood. Era uma das coisas que Ellery mais detestava: quadrados de vidro, cimento, madeira vermelha e luz neon. Diminuíam terrivelmente as casas vizinhas. O Hollis, um marco comercial da cidade, antes da Segunda Guerra Mundial, passara por uma "completa cirurgia plástica". E saíra atualizado. Parecendo qualquer loja de departamentos de Nova York. A farmácia desaparecera. E o supermercado Bon Ton tomava todo o quarteirão entre as ruas Washington e Lincoln.

        Ao norte, as coisas ainda estavam piores. Novos loteamentos apareceram, invadindo fazendas e sítios. Poucas casas se salvaram. As favelas se espalhavam além do aeroporto. Surgira até um bairro de novos-ricos. Pelo menos trinta e cinco fazendas, que Ellery conhecia e apreciava, desapareceram. Novas fábricas ergueram-se aos montões, principalmente fábricas de componentes eletrônicos para a indústria pesada, que produziam para o Departamento de Defesa.

        Entretanto, para Ellery, Wrightsville ainda era Wrightsville. As ruas, calçadas com pedras; o rio Willow, com sua lama amarela, vermelha e azulada; a sorveteria, que sobrevivera, apesar de a vizinhança ter mudado.

        Assim, aos olhos de Ellery, Wrightsville era uma espécie de paraíso.

        Alugou um carro na agência do aeroporto e, junto com o pai, partiu para o sítio de Benedict.

        Pelo que Johnny tinha dito, o lugar era pequeno, apenas uns vinte ou trinta acres. A verdade era outra: duzentos acres de bosques, água, pastagens naturais, entre Wrightsville e Shinn Corners, numa parte do vale que ainda possuía fazendas subindo pelas montanhas.

        - Isto aqui era cheio de fazendas de gado leiteiro - Ellery reclamou, enquanto descia para abrir a porteira. - O gado mais dócil que já se viu.

        - Bem, não reclame de Benedict. O gado já não devia estar mais aqui, antes de ele comprar o lugar. As fazendas pequenas estão falindo em toda a Nova Inglaterra.

        - Em toda parte - Ellery comentou, e bateu a porta do carro com força.

        Logo estavam passando pela casa principal, um pouco distante da entrada. Quase um quilômetro depois, surgiu o bangalô, em estilo mais moderno, construído numa clareira do bosque.

        Desceram do carro e ouviram ruído de água correndo ali perto.

        - Parece que posso atirar a linha da janela mesmo - o inspetor disse. - Homem, isso é que é um bom jeito de viver!

        - Claro, se alguém ganhar o pão - Ellery falou, sombrio.

        - Ellery, qual é o problema com você? Se pensa que vou agüentar os seus estrelismos durante duas semanas... Prefiro resolver isso agora. Achei muito gentil e agradável da parte do seu amigo nos oferecer este lugar. Se tiver reclamações, guarde-as para você. Senão, tomo o próximo avião para Nova York.

        Há muito tempo que o inspetor Queen não falava assim com o filho. Ellery calou a boca.

        O bangalô era tão rústico como Benedict tinha dito. Toda a mobília fora comprada na cidade próxima; entretanto, não faltava nenhum conforto. O sofá era macio e fofo; os tapetes, bem grossos. Havia livros nas prateleiras, um aparelho de som, uma coleção de tapes e uma televisão em cores portátil.

        O inspetor começou a desarrumar as malas e Ellery resolveu ir até a cidade comprar mantimentos. O congelador estava cheio de carnes, presuntos e latarias. Mas precisavam de leite, pão, manteiga, ovos, trutas e verduras frescas.

        - Traga alguma coisa, filho, para eu esquentar esses velhos ossos.

        - Não é preciso. Há um bar embutido na sala, do lado oposto à lareira. Tem tudo, de absinto a vodca.

        Ellery passou pelo mercado do Logan e do Slocum. Preferiu um grande e moderno supermercado, onde ninguém o reconheceria. Mesmo assim, teve que virar o rosto, para não ser visto por duas mulheres que reconhecera. A viagem até a cidade deixou-o mais deprimido. As mudanças foram profundas e, de seu ponto de vista, para pior. Ficou contente de voltar ao bangalô. Encontrou o pai de calça esporte e camisa aberta no colarinho, segurando um copo de uísque.

        - Sim, senhor - o inspetor disse, feliz. - Isso é que é vida!

        O velho comportou-se magnificamente. Na quarta-feira, passou a maior parte do dia pescando (apesar de ter dito a Benedict algo sobre cortar sua própria vara, encontrou um armário cheio de equipamentos e estupendos molinetes). Depois de uma enorme confusão, conseguiu preparar uma truta para o jantar. Ellery passou o dia deitado, ouvindo Mozart, Bach e Tijuana Brass. De vez em quando, cochilava. À noite, dormiu de um sono só, sem tomar nenhum comprimido. Há muito tempo isso não acontecia. Vivia tendo pesadelos.

        Na quinta-feira, os Queen passearam pela propriedade. Depois, fizeram um churrasco. O inspetor fingiu que não percebia o prato limpo de Ellery. Há muito tempo o filho não comia uma refeição completa.

        Ellery tinha acabado de ligar a máquina de lavar pratos, quando ouviu um barulho vindo de algo que parecia um interfone. Pegou o aparelho.

        - Diabos, que é isso?

        - Ellery - ouviu a voz de Benedict. - Como está o seu pai?

        - Johnny? - Será que era mesmo Benedict? - Oh, compreendo, essa coisa está ligada à casa principal... Posso falar?

        - Sim, Ellery. Sei que prometi não os incomodar...

        - Quando chegou?

        - No fim da tarde. Olhe, há a-algo que quero lhe dizer. Posso ir até aí?

        - Venha logo.

        Desligou e foi até o quarto. O inspetor estava vestindo o pijama.

        - Papai, Benedict está aqui. Quer conversar conosco. Ou melhor, comigo. O que acha disso?

        Eles se entreolharam.

        - Você parece misterioso, filho.

        - Não estou procurando problemas, acredite. Mas farejo algo...

        - Espero que esteja errado.

        Dez minutos depois, Ellery recebia Johnny-B, que parecia preocupado... preocupado e algo mais. O que seria? Ellery disse a si mesmo: vou ficar fora disso.

        - Entre, Johnny.

        - Desculpe o meu pijama e o robe, sr. Benedict - o inspetor falou. - Tive um dia muito cansativo, passeando pela sua propriedade. Estava indo para a cama.

        - Um drinque, Johnny?

        - Agora não, obrigado. - Benedict afundou-se numa cadeira e olhou em volta. Sorriu, desanimado. Claro que ali havia algo errado. Os Queen evitavam se olhar. - Gostaram daqui?

        - Quero lhe agradecer muito, Johnny. Estou realmente encantado. Era disso mesmo que eu precisava.

        - Ellery e eu - corrigiu o inspetor.

        Benedict fez um gesto de quem não queria ouvir agradecimentos. Aí vem o problema, Ellery pensou.

        - Ellery?

        - Sim, Johnny.

        - Quero lhe dizer que r-receberei convidados no f-fim de semana.

        - Oh?

        - Não, não. Não estou pondo vocês para fora. Eles ficarão na casa principal. Há muitos quartos lá. Al Marsh chega amanhã. Sua secretária, uma garota chamada Susan Smith, vem na tarde de sábado. Amanhã também chegam... - Benedict hesitou e franziu as sobrancelhas - ... minhas três ex.

        - Ex-esposas?

        - Ex-esposas.

        - Desculpe perguntar, Johnny, mas é uma reunião de família?

        O inspetor brincou:

        - Sempre ouvi falar da vida interessante que leva, sr. Benedict. Mas isto me parece ridículo.

        Os três riram. Benedict pareceu menos tenso.

        - Gostaria que fosse algo assim alegre. Bem, o problema é: não quero que essas pessoas os perturbem. Não é nenhum acontecimento social, vamos apenas tratar de negócios. Entendem o que quero dizer?

        - Não, mas está tudo bem, Johnny. Não precisa nos dar nenhuma explicação.

        - Mas não quero que fiquem fazendo idéias erradas de mim. Não serão perturbados. Dou-lhes m-minha palavra.

        Aquilo parecia tão desnecessário, que Ellery teve que lutar contra a própria curiosidade. Depois daquele longo tempo sem encontrar o amigo, percebeu que não sabia muito sobre ele. Pelo menos, nada importante. O convite parecera sincero. Mas agora tudo indicava que Benedict tinha outras intenções... Quais?

        Depois de dar sua palavra, o outro parou de falar. Aparentava alguma preocupação. O silêncio tornou-se deprimente.

        - Há algo errado, Johnny? - Ellery perguntou. Depois, repreendeu-se por ter feito aquilo.

        - Está assim tão aparente? Acho que aceito aquele drinque, agora, Ellery. Não, eu mesmo vou preparar um.

        Benedict pulou da poltrona e se dirigiu ao bar. Serviu-se de uísque com gelo. De repente, disse:

        - Tenho um favor a lhe pedir. Detesto pedir favores, não sei por quê. Mas este preciso pedir.

        - Estamos lhe devendo obrigações, sr. Benedict - o inspetor disse, rindo.

        - Não recusaremos o favor, Johnny. Qual é o problema?

        Benedict colocou o copo na mesa. Depois, tirou uma folha de papel do bolso do paletó. Estava dobrada em três. Desdobrou-a.

        - Este aqui é o meu último t-testamento. - Para os ouvidos sensíveis de Ellery, aquilo pareceu uma sentença de morte. Benedict apalpou os bolsos. - Esqueci de trazer uma caneta. Posso pedir a sua emprestada, Ellery? - Dirigiu-se à mesinha de centro. - Vou assinar isso e datar. Vocês dois me fariam o favor de ser minhas testemunhas?

        - Naturalmente.

        - Claro, sr. Benedict.

        Perceberam como ele escondia o texto, com o braço, enquanto escrevia. Assim que terminou, dobrou o papel, deixando exposta apenas a parte inferior. Indicou onde os Queen deveriam assinar e eles assinaram. Devolveu a caneta a Ellery e tirou do bolso um envelope grande. Colocou dentro o papel, colou-o e, hesitando, estendeu-o ao inspetor Queen.

        - Posso lhe pedir que guarde isso para mim, inspetor? Só durante um curto e-espaço de t-tempo?

        - Sim... claro, sr. Benedict.

        - Compreendo que estejam confusos, mas não se trata de nada grave. Marsh vai redigir um testamento formal neste fim de semana. Por isso, sua secretária está vindo para cá. Mas, enquanto isso, desejo já ter algo no papel. Estou na idade em que a vida parece cada vez mais incerta. Aqui hoje, amanhã, sabe Deus onde... Certo?

        Riram com vontade. Benedict terminou o uísque, despediu-se e saiu. Parecia aliviado.

        Ellery, não. Fechou a porta da frente com cuidado e disse:

        - Papai, o que achou disso?

        - Tenho uma porção de dúvidas - o inspetor olhou o envelope branco em suas mãos. - Com o dinheiro que ele tem, deve possuir um testamento desde que era bebê. Portanto, este aqui deve anular o outro.

        - Não o anula simplesmente, mas o modifica. Para que um novo testamento, afinal? A pergunta é: o que ele está mudando? E o que esta mudança provocará?

        - Não é da nossa conta - o pai comentou.

        - Claro que isso envolve as ex-esposas - Ellery murmurou, e começou a andar pela sala. O inspetor notou seu nervosismo. - Fim de semana de negócios... Não, não... isso não está me cheirando bem.

        - Por que não sossega? - O inspetor dirigiu-se ao bar. - Quer mais um?

        - Não, obrigado.

        - Quem são as garotas de sorte?

        - Quem?

        - As mulheres com quem ele casou. Sabe quem são?

        - Claro. A história de Benedict sempre me fascinou. Sua primeira esposa era corista em Las Vegas. Tinha seios exuberantes e cabelo vermelho. Chamava-se Marcia Kemp. Era uma atração sexual para os freqüentadores do cabaré onde dançava. Até que Johnny a encontrou e transformou-a numa mulher honesta.

        - Marcia Kemp - o velho fez que sim com a cabeça. - Lembro-me, agora. O casamento durou quanto? Três meses?

        - Quase quatro. A segunda sra. Benedict foi Audrey Weston, uma loira metida a atriz, mas que nunca teve talento para conseguir chegar a Hollywood ou à Broadway. Fazia pequenos comerciais de televisão. Mas Johnny, evidentemente, pensou que ela merecia o Oscar... O casamento durou seis meses.

        - E a terceira? - o inspetor perguntou, bebendo seu uísque, vagarosamente.

        - A terceira, esta eu tenho motivos especiais para lembrar. Alice Tierney. Soube que é de Wrightsville. Li no jornal. Naturalmente, isso aguçou minha curiosidade. O nome Tierney não é familiar para mim. Talvez por isso me interessei. Bem, esta garota Tierney... nas fotos parece uma morena comum... é uma enfermeira. Johnny capotou o Maserati, ou sei lá o que ele dirigia, numa estrada próxima... deve ter sido nos arredores de Wrightsville, o artigo não dizia... e ficou de cama durante um longo tempo, em sua "casa de campo". Deve ter sido a casa principal, aqui. Se Wrightsville chegou a entrar na história, eu não sei. Johnny deve ter pago à imprensa para não mencionar o seu esconderijo. A enfermeira Tierney foi contratada para cuidar dele. Foi o suficiente. Johnny não resistiu à proximidade de uma mulher durante várias semanas. Depois do namoro ao estilo Benedict, casaram-se. Foi o casamento mais longo: nove meses e meio. Ele só conseguiu a separação legal há alguns meses.

        Uma ruiva de Las Vegas, uma garota com pretensões a atriz, de Nova York, e uma simples enfermeira do interior. Não parecem ter nada em comum.

        - Mas têm. São todas mulheres enormes. Amazonas.

        - Ah, então é isso? O baixinho quer conseguir o pico do Everest. Sujeitos como Benedict devem se sentir poderosos com mulheronas, como quando estão na direção de um carro superenvenenado.

        - Meu velho inocente! - Ellery disse, sorrindo. - Tenho que lhe dar alguns livros sobre sexo e psiquiatria. Livros apropriados, marcados... E ele convidou as três para o fim de semana, juntamente com o advogado, para mudar o testamento... Pelo menos, é o que diz... e está um pouco nervoso com tudo isso. Sabe de uma coisa, papai?

        - O que é, agora?

        - Não estou gostando disso. Nem um pouco.

        O inspetor terminou o drinque.

        - E sabe de uma coisa, filho? Se continuar andando para cima e para baixo, dentro desta sala, vai acabar gastando o tapete. Por que não senta, calmamente, e assiste ao último filme da televisão? E veja se, nesse fim de semana, mantém o nariz completamente fora dos negócios do seu amigo Benedict. Sejam lá quais forem eles!

 

        Ellery fez o melhor que pôde. Mas não adiantou. Na noite de sexta-feira, depois do jantar, sentiu uma enorme vontade de andar. O inspetor logo desconfiou:

        - Vou com você.

        Saíram, e Ellery tomou a direção da casa principal, como um cão de caça. O pai tentou desviá-lo, mas não conseguiu.

        - Por aqui. Vamos ouvir os grilos.

        - Não. Se eu quisesse música, teria ligado o aparelho de som.

        - Ellery, você não vai àquela casa!

        - Imagine, papai! Nem estava pensando numa coisa dessas.

        - Dane-se, você! - O velho voltou para o bangalô.

        Quando Ellery voltou, ele perguntou, ansioso:

        - E então?

        - Então o quê, papai?

        - Como estavam as coisas, por lá?

        - Pensei que não estivesse interessado.

        - Eu não disse que não estou interessado. Disse que você não devia se envolver.

        - A casa está tão iluminada como o Times Square. Mas não ouvi nenhuma risada feminina. Não parece uma festa.

        O inspetor murmurou:

        - Pelo menos, teve o bom senso de fazer meia-volta e vir dormir.

        Mas não conseguiriam deixar de se envolver. Poucos minutos depois do meio-dia de sábado (o velho ia se deitar para uma soneca), alguém bateu na porta. Ellery abriu e deu com uma loura muito alta e magra, com todo o jeito de modelo.

        - Sou a sra. Johnny Benedict, a segunda.

        - Naturalmente. É Audrey Weston.

        - Esse era o meu nome profissional. Posso entrar?

        Ellery olhou o pai e afastou-se da porta. O inspetor aproximou-se, depressa.

        - Sou Richard Queen. - Sempre tivera um fraco por garotas bonitas, e aquela era bem mais bonita do que a maioria, embora parecesse um pouco boba. O rosto não tinha nenhuma expressão. Era como o de uma boneca.

        - É o inspetor Queen, não? Johnny nos disse que vocês estavam aqui no bangalô de hóspedes. Praticamente ameaçou quebrar as nossas cabeças, se viéssemos perturbá-los. Mas aqui estou eu. - Fixou os olhos quase amarelos em Ellery. - Não vai me oferecer um drinque, querido?

        Usava as mãos e os olhos para dar ênfase ao que dizia. Alguém devia ter-lhe dito que era uma mulher fatal, e ela acreditara.

        Ellery lhe ofereceu um uísque e uma poltrona. A moça sentou-se, esticando as longas pernas. Depois pegou um cigarro. Vestia uma blusa de seda solta e uma saia de camurça, muito mais mini do que o normal, deixando ver bem mais do que as coxas. A jaqueta, combinando, estava atirada sobre os ombros.

        - Não estão interessados em saber por que desobedeci a Johnny?

        - Tenho certeza de que vai nos dizer, srta. Weston - Ellery respondeu, sorrindo. - Devo informar que o tipo de convite que Johnny nos fez, a mim e a meu pai, não inclui o envolvimento nos problemas dele. Isso é um problema, não?

        - Se for... - o inspetor começou.

        - Meu vestido de noite sumiu - Audrey Weston disse.

        - Sumiu? Um vestido?

        - O que quer dizer com sumiu? - Ellery perguntou. - Não se lembra onde o colocou?

        - Foi-se.

        - Roubado?

        - Está interessado nisso, querido?

        - Oh, bem... Já que está aqui...

        - Aquele vestido ficava ótimo em mim. Era todo de lantejoulas pretas. Comprei no Ohrbach e é cópia de um original de Givenchy. Na frente tinha um decote em V, profundíssimo, não tinha costas... nada, nada mesmo. E eu o quero de volta! Claro que foi roubado. Não esqueceria o lugar onde deixaria um vestido como aquele. Pelo menos, nunca esqueci. - Acompanhou toda a história com gestos exagerados e várias poses. Ellery estava se sentindo cansado com tanto teatro.

        - Provavelmente, a explicação é simples, srta. Weston. Quando o viu pela última vez?

        - Eu o usei no jantar, ontem à noite. Johnny gosta de jantares formais e procuro fazer o que ele gosta... mesmo sendo só uma ex.

        Então, ela esperava conseguir algo de Johnny-B naquele fim de semana. Provavelmente, as três... Ellery guardou aquilo. Como se estivesse tratando de um caso. Caso? Qual era o caso? Não havia caso nenhum. Ou será que havia?

        - Pendurei-o no armário, na noite passada, quando fui dormir. Hoje de manhã, ainda o vi lá, no mesmo lugar. Mas, quando voltei do café da manhã, o vestido tinha sumido. Não estava mais lá. Revistei todo o quarto. Havia sumido.

        - Quem mais está na casa?

        - Al Marsh e Johnny, naturalmente. E as suas ex, a vagabunda da Kemp e a senhorita-limpeza, de Wrightsville, a tal de Alice Tierney. Não sei o que ele viu nela... Há mais duas pessoas da cidade, o mordomo e a empregada, mas foram para casa ontem, depois de limparem tudo. Olharam para mim como se eu fosse de outro planeta.

        Um deles é Morris Hunker, mocinha, Ellery pensou, e eu ainda não o vi.

        - Perguntou aos outros sobre o vestido?

        - De onde pensa que eu vim? Da terra dos idiotas? Não adiantaria, queridinho. Claro que quem o roubou ia negar. Oh, isso tudo é tão embaraçoso! Acha que estou sendo desagradável em lhe pedir que o encontre para mim, sem grandes confusões? Não estou a fim de revistar os quartos de Marcia e de Alice. Elas podiam me pegar. E não quero que Johnny pense... isto é... bem, sabem o que quero dizer...

        Ellery disse que sim, mas, na verdade, não sabia. O inspetor ficou observando o filho como um psiquiatra observa seu paciente.

        - Não sumiu mais nada?

        - Não. Só o vestido.

        - Parece-me - o inspetor interrompeu - que a srta. Kemp ou a srta. Tierney o pegaram emprestado, por algum motivo. Se perguntar a elas...

        - Já vi que não sabe nada sobre vestidos exclusivos, inspetor. Não como obras de Rembrandt ou algo assim. Não podem ser usados sem que todos percebam. Portanto, para que roubar? É por isso que acho muito misterioso.

        - E a empregada? - Ellery indagou.

        - Aquela imbecil? Ela tem um metro e meio de altura e pesa mais de oitenta quilos.

        - Vou ver o que posso fazer, srta. Weston - ele disse.

        Ela saiu fazendo charme, dizendo mais uma dúzia de "queridos" e acenando com o braço comprido, deixando no ar perfume de Madame Rochas. Momentos depois, o inspetor grunhia.

        - Ellery, você não vai começar a se meter em algo complicado por causa de um vestido estúpido... e estragar suas férias... e as minhas.

        - Mas eu prometi...

        - Ela não merece confiança - o inspetor explodiu, dirigindo-se para o quarto com o jornal local.

        - Pensei que fosse cochilar.

        - Quem vai poder dormir agora? A idiota conseguiu me despertar completamente.

        Mas a coisa não ficou só naquilo. Quinze minutos depois, alguém bateu na porta outra vez. Ellery abriu e teve uma visão de curvas e cabelo vermelho... uma visão bem grande. Ela era quase mais alta que ele e tinha um corpo de corista: pernas longas, coxas grandes e um busto igual ao da Mansfield. Vestia-se para causar impacto: short e frente-única, debaixo de um casaco aberto, que mostrava tudo. O cabelo flamejante estava amarrado com um lenço.

        - Marcia Kemp - Ellery disse.

        - Como sabe o meu nome? - A voz dela era profunda e gutural. Voz de nova-iorquina... do coração do Bronx, Ellery pensou. Os olhos verdes brilhavam de raiva.

        - Já li a sua descrição, srta. Kemp - explicou, sorrindo. - Entre. Este é o meu pai, o inspetor Queen, do Departamento de Polícia da cidade de Nova York.

        - Oi, vovozinho. Ainda bem que estão aqui. Não podem imaginar o que me aconteceu na própria casa de Johnny-B.

        - O quê? - Ellery perguntou, ignorando o olhar de advertência do pai.

        - Algum imbecil roubou minha peruca.

        - Sua peruca? - o inspetor perguntou, involuntariamente.

        - Sim. Minha peruca verde. Custou uma fortuna. Desci para o café da manhã de hoje e, quando voltei... não havia mais peruca. Pode entender isso? Fiquei tão zangada... Preciso de um trago. Um bourbon puro, garoto.

        Ele a serviu. Ela tomou tudo de um só gole e estendeu o copo, pedindo mais. Ellery tornou a enchê-lo. Desta vez, ela bebeu mais devagar.

        - Quando viu sua peruca pela última vez, srta. Kemp?

        - Eu a usei no jantar, na noite passada, com meu vestido longo de lamê verde. Johnny gosta que as mulheres se vistam a rigor. Ainda estava na penteadeira, quando desci para tomar o café, esta manhã. Quando voltei, havia sumido. Se não soubesse que Johnny detesta cenas, teria revistado a bagagem daquelas duas cadelas. Pode encontrar a peruca para mim, Ellery? Sem que Johnny saiba?

        - Não acha que pode tê-la guardado em outro lugar? - o inspetor perguntou, esperançoso.

        - Claro que não. Como alguém pode deixar de perceber uma peruca verde?

        - Um vestido e uma peruca - Ellery murmurou, depois que a moça saiu. - Sumiram coisas das duas primeiras ex-esposas. É possível que a terceira...

        - Filho, filho - o pai disse, em tom de reprovação -, você prometeu.

        - Sim, papai. Mas, temos que admitir...

        Ellery não terminou a frase. O inspetor procurou se consolar, pensando que aquilo era um simples caso de roubo, fácil de explicar.

        Então, no meio da tarde, Ellery disse, de repente:

        - Olhe, papai, não há nenhuma lógica em tudo isso. A terceira também deve ter perdido alguma coisa. Acho que vou até lá...

        O inspetor falou, simplesmente:

        - Estarei no riacho, pescando, filho.

 

        Benedict tinha uma piscina imensa atrás da casa. Ainda estava coberta com a lona que a protegia durante o inverno. Mas as cadeiras de verão já estavam do lado de fora, num terraço próximo a um antigo celeiro. Ellery encontrou Alice Tierney se bronzeando. As tardes de primavera eram quentes, com uma leve brisa. O rosto dela estava avermelhado, como se já estivesse deitada ali há algum tempo.

        No momento em que Ellery a viu, imediatamente a reconheceu. Durante suas viagens a Wrightsville ele tinha conhecido o hospital. Naquela ocasião, ela estava de uniforme... uma garota grande, saudável, alta e de rosto comum.

        - Srta. Tierney? Acho que não se lembra de mim.

        - Claro que sim - ela gritou, sentando-se. - Você é o grande Ellery Queen, presente de Deus para Wrightsville.

        - Não precisa fazer tanto escândalo sobre isso - disse, sentando-se numa cadeira de ferro.

        - Oh, mas estou falando sério.

        - Mesmo? Quem me chama assim por aqui?

        - Todo mundo - os olhos azuis e frios dela brilharam ao sol. - Naturalmente, já ouvi alguém dizer que o presente foi do diabo, mas a gente encontra descontentes por toda parte.

        - Dizem isso, provavelmente, porque o índice de criminalidade aumentou, desde que comecei a vir para cá. Fuma, srta. Tierney?

        - Claro que não. E nem você devia. Oh, droga, aqui estou eu novamente... nunca consigo esquecer meu treinamento.

        Ela usava calça comprida e jaqueta, que não a favoreciam em nada. Tinha o cabelo longo e liso, com um penteado completamente errado para o seu tipo de rosto. Mas tudo isso desaparecia diante de sua cordialidade; cordialidade que devia cultivar com muito carinho. Ele compreendeu o que Johnny Benedict, com seu gosto por mulheres superficiais, tinha encontrado naquela.

        - Estou contente que tenha decidido sair do esconderijo - Alice Tierney continuou, animada. - Johnny nos ameaçou com punições incríveis, se fôssemos incomodá-lo.

        - Na verdade, ainda não saí completamente. Vim aqui para lhe perguntar se está preocupada com alguma coisa.

        - Oh? - ela parecia confusa. - O que é isso, sr. Queen?

        Ellery inclinou-se um pouco para a frente.

        - Perdeu alguma coisa hoje?

        - Perdi? Alguma coisa, como o quê?

        - Algo pessoal. Algum artigo do vestuário.

        - Não...

        - Tem certeza?

        - Bem, posso ter perdido... Isto é, não verifiquei minhas roupas. - Alice Tierney riu. Mas vendo que ele não a acompanhava, parou. - Está falando sério, sr. Queen?

        - Sim. Importa-se de ir ao seu quarto agora... quietinha, srta. Tierney... e verificar suas coisas? Prefiro que ninguém na casa saiba disso.

        Ela levantou-se, respirou fundo e caminhou em direção à casa.

        Ellery esperou pacientemente. O quebra-cabeça no momento não tinha nenhum significado. Só uma promessa futura.

        Depois de dez minutos, ela estava de volta.

        - Que coisa esquisita - disse, atirando-se na espreguiçadeira. - Um par de luvas.

        - Luvas? - Ellery olhou para as mãos dela. Eram grandes e pareciam eficientes. Que tipo de luvas, srta. Tierney?

        - Luvas longas, para a noite. Brancas. O único par que trouxe comigo.

        Tem certeza de que as trouxe?

        - Claro! Usei-as ontem, no jantar. - O rubor dela ficou mais intenso. - Johnny gosta que as mulheres pareçam intocáveis. Na verdade, acho que ele odeia pobreza.

        - Luvas brancas de noite. E o que mais perdeu?

        - Nada, que eu saiba.

        - Verificou tudo?

        - Olhei cuidadosamente em todos os armários. Por que diabos alguém roubaria um par de luvas brancas? Não há oportunidade de usá-las em Wrightsville. Isto é: não na classe social a que pertencem os ladrões.

        - Este, naturalmente, é o problema. Srta. Tierney, vou lhe pedir que mantenha tudo isso em segredo. Não mencione nada sobre o roubo e nem diga que andei fazendo perguntas.

        - Claro, está bem. Se é isso que quer.

        - Onde está o resto do pessoal?

        - Estão se aprontando para ir até o aeroporto buscar a secretária de Al Marsh, a srta. Smith. Ela deve chegar às cinco e meia. Annie e Morris estão começando a preparar o jantar na cozinha.

        - Morris Hunker?

        - Há outro, além deste? - Alice Tierney sorriu. - Conhece Morris, não?

        - Oh, sim. Mas quem é Annie?

        - Annie Findlay.

        - Findlay...

        - O irmão dela, Inver, costumava tomar conta da garagem da rua Plum.

        - Inver Findlay. Alugava carros! Como está ele?

        - Em paz - a srta. Tierney falou. - Teve um ataque cardíaco. Fechou os olhos no pronto-socorro do hospital, há seis anos.

        Ellery saiu, sacudindo a cabeça. Não gostava daquele tipo de notícia.

 

        O inspetor Queen tinha ido de carro até a cidade, mas já estava voltando. Descobrira uma peixaria espetacular.

        - ...sem nada congelado, filho. Se congelam o peixe, ele acaba perdendo metade do sabor. Espere para ver o cardápio que planejei para esta noite.

        - O quê, papai?

        - Eu disse espere, não disse? Não seja apressado.

        No jantar, foi servido um prato que o pai chamou de bouillabaisse irlandesa. Ellery achou igualzinho ao outro, do tipo mediterrâneo; a não ser que havia sido preparado por um irlandês, sem açafrão...

        - Não agüento aquele negócio amarelo - o cozinheiro declarou, e Ellery não reclamou.

        Depois do jantar, quando o inspetor sugeriu que fossem à cidade, assistir a uma pornochanchada, Ellery ficou em silêncio. Depois de algum tempo, disse:

        - Por que não vai sozinho, papai? Não estou a fim de filmes esta noite, nem mesmo pornochanchadas.

        - De vez em quando, eu fico imaginando... do que você gosta. O que vai fazer?

        - Ouvir música. Talvez tome um pileque com as bebidas de Johnny.

        - Quero viver para ver esse dia - o pai murmurou. E, para surpresa de Ellery, saiu.

        Ainda há muita libido no velho, Ellery pensou, e abençoou-a.

        Não tinha nenhuma intenção de ouvir música nem de abrir o bar de Benedict. Logo que ouviu o carro se afastando, vestiu uma jaqueta escura e caminhou em direção à casa principal.

        A noite estava silenciosa. Ele teria apreciado uma sinfonia de grilos, mas aparentemente a estação não era apropriada para cantos. Se o inspetor lhe perguntasse agora o que estava fazendo, Ellery não poderia lhe dar uma resposta honesta. Não tinha nenhuma idéia do que pretendia fazer. Só sabia que não ia conseguir pegar sozinho, à unha, os três ladrões. E como tudo havia acontecido na casa de Benedict, o melhor era ir até lá.

        Havia alguma coisa muito esquisita a respeito daqueles roubos. Uma certa lógica absurda. Um vestido longo, uma peruca extravagante e luvas a rigor. Colocados juntos, pareciam pedaços de um quebra-cabeça. O problema era que, mesmo juntos, não formavam nenhum desenho. Eram três artigos de valor. Mesmo os valores sendo relativos, não se podia esquecer a possibilidade de um roubo simplesmente material.

        Entretanto, algo no fundo do cérebro de Ellery dizia que não era nada disso. A razão óbvia era: os objetos foram roubados para ser usados. Se o ladrão era uma das ex-esposas, isso significava que ela havia incluído algo de sua propriedade, talvez para despistar. A complexidade era absurda, considerando o caráter peculiar dos objetos. E se o ladrão não fosse nenhuma das ex-esposas, mas alguém de Wrightsville? Onde os artigos poderiam ser usados, sem levantar suspeitas?

        Morris Hunker podia ser eliminado, sem sombra de dúvida. Era um velho puritano e não roubaria nem mesmo um pão, se estivesse morrendo de fome. Annie Findlay era uma desconhecida. Talvez não tivesse conseguido resistir ao charme do vestido brilhante, da peruca fantástica e das... luvas diferentes. Mas Ellery sabia que Annie e Morris eram sempre contratados por Benedict para serviços temporários. E, numa cidade pequena como Wrightsville, as pessoas não podem se apoderar dos objetos alheios, sem ser imediatamente reconhecidas. Além do mais, não se sabia de nenhum empregado que roubasse, naquela cidade. Não, Annie não se encaixava no papel de culpada.

        Então, quem? Se fosse um simples ladrão, certamente encontraria coisas muito mais valiosas na casa. Entretanto, as três mulheres disseram que nada mais tinha sumido. Certamente, Benedict e Marsh não perderam nada; caso contrário, também o teriam procurado.

        Era o tipo de problema simples que sempre colocava Ellery em confusões.

        Rodeou a casa, escolhendo com cuidado o lugar onde pisava. Na frente e dos lados deviam ficar a cozinha e a despensa. As luzes estavam apagadas. Era evidente que Hunker e Findlay já tinham limpado tudo, após o jantar, e ido para casa. Mas havia luzes no terraço.

        Ellery contornou o pátio, mantendo-se no escuro. Colocou-se debaixo de alguns galhos de um velho pinheiro, próximo à casa. Dali, podia ver a sala, sem ser visto. Ouviu claramente as vozes.

        Ali estavam todos. As ex-esposas de Benedict, Marsh e uma garota que devia ser sua secretária, a srta. Smith. Ela estava sentada na ponta do sofá, de lado, com as pernas cruzadas, segurando um bloco de papel e um lápis. Usava uma saia simples, azul-marinho, de comprimento médio, e uma blusa branca, clássica. Um casaquinho branco estava atirado sobre os ombros e abotoado no pescoço.

        Nela não havia nada de feminino ou jovem. Tinha um rosto longo, e a maquilagem a deixava parecida com um palhaço. Na verdade, sua aparência era bastante masculina, com exceção das pernas, muito bem torneadas e bonitas. Dava a Ellery algumas pistas sobre Marsh. O homem que escolhesse a srta. Smith para secretária particular dedicava seus momentos, no escritório, somente ao trabalho.

        Duas das ex-esposas pareciam estar vestidas para um show de segunda categoria.

        Audrey Weston usava um pijama de noite negro, com uma túnica de crepe, também negra. A cintura era marcada por uma faixa larga, de cetim vermelho, que lhe salientava ainda mais o busto. Seus sapatos também eram de cetim vermelho e acrescentavam muitos centímetros à sua altura. No braço, uma larga pulseira de ouro, com uma pesada âncora. Os brincos também eram de ouro.

        O traje de Audrey podia competir facilmente com o de Marcia Kemp. A ruiva de Las Vegas usava algo tão colante, que Ellery não sabia como conseguira se sentar. Estava toda de turquesa. Será que aquelas duas ex-esposas tinham planejado reconquistar Benedict?

        Alice Tierney estava um pouco bronzeada e o tom escuro de sua pele contrastava com a brancura do vestido e dos acessórios. Parecia pura, casta e muito atraente. Era como se percebesse que os seus dons naturais dominavam os das outras duas; por isso, escolhera a tática da simplicidade.

        Mas, se Audrey e Marcia se vestiam de um modo excêntrico, a simplicidade de Alice também podia ter sido calculada para despertar a libido de Benedict. Entretanto, ele estava ali, indiferente como um eunuco. Sua indiferença era tanta que transparecia até no modo de vestir. Já que apreciava nas mulheres os trajes a rigor, seria lógico pensar que usasse smoking para o jantar, como Marsh havia feito. Mas Benedict estava com um simples terno marrom. Como se o fato de ser Johnny-B já fosse suficiente. Aquilo fez com que Ellery visse seu amigo sob um novo ângulo.

        Ellery não tinha nada contra espionar. Sempre fazia aquilo, quando sua curiosidade se fixava em algo. Mas não recomendava como uma prática geral. Como também não recomendava os aparelhos de escuta em telefones, apesar de recorrer freqüentemente a eles.

        O pessoal conversara sobre o novo testamento, antes de sua chegada. Benedict combinava com Marsh que iriam redigi-lo no dia seguinte, domingo. (Então, não havia contado nada às ex-esposas sobre o documento que assinara na presença dos Queen, na quinta-feira à noite, e que agora estava guardado no bolso do inspetor.)

        - Mas isso não passa de fraude! - Audrey Weston gritou.

        - Fraude? - a ruiva de Las Vegas disse um palavrão cheio de sinceridade. - É assassinato!

        Alice Tierney parecia pálida.

        - Sabe, Marcia, a sua vulgaridade não tem nenhuma originalidade - Marsh disse, do bar, onde se servia de um drinque. - Vou lhe contar uma coisa: as pessoas sempre sabem como lidar com você... sempre.

        - Quer que eu lhe dê uma explicação pessoal neste instante, Al?

        - Deus me livre, coração!

        Ellery escondeu-se mais, debaixo do pinheiro. Fraude? Assassinato? Bem, talvez estivessem falando em sentido figurado.

        - Sanguessugas! - O sangue frio de Benedict tinha acabado. - Sabem muito b-bem o que foram os nossos casamentos. Apenas negócios. Contratos, assinados sobre um c-colchão - ele esticou os braços. - Bem, estou cheio desse tipo de estupidez!

        - Calma, rapaz - Marsh disse.

        - Você sabe do nosso c-contrato! É o mesmo em cada caso. Mil dólares por semana, até casarem outra vez, ou até a minha morte. Então, de acordo com o testamento, se ainda não tiverem casado - e qual de vocês casaria? -, cada uma ganhará a soma nada desprezível de um m-milhão de dólares.

        - Sim, mas, antes de nos casarmos com você, - Alice Tierney disse, de um modo suave - fez com que assinássemos um acordo, renunciando à sua fazenda.

        - E sob ameaças, se bem me recordo. E, como eu me recordo... - Audrey Weston disse, sarcástica. - Falou que, se não assinássemos, não haveria casamento.

        - Queridinho - foi a vez de Marcia Kemp -, onde está o grandioso estilo de Johnny-B?

        Marsh riu.

        - Calma, garotas. Não foi um mau acordo, para deixar Johnny usar seus corpos, impressionantes como eles são, durante alguns meses. - Ele já tinha ido muitas vezes ao bar. Sua voz estava pastosa.

        - Eram impressionantes e continuam sendo... certo, Al? - Benedict piscou para o amigo. - O problema é, gatinhas, que tenho pensado em muitas coisas e acho que não são dignas do meu dinheiro. Mudei de idéia. Além do mais, há um novo elemento em cena, que vou lhes contar dentro de um minuto. Al escreverá o meu novo testamento amanhã, como já lhes disse. Se gostarem ou não, não me importo.

        - Calma lá, querido! - Audrey gritou. - Não pode mudar assim um acordo, e sabe disso. Uma esposa abandonada tem seus direitos, nos Estados Unidos!

        - O acordo não a fez renunciar às noitadas alegres, com seus amiguinhos. Terá todos os seus direitos sobre o que lhe deixo no novo testamento. É só lê-lo. Não precisará gastar dinheiro, consultando um advogado.

        - Em outras palavras, canalha, - a ruiva sorriu, irônica - você vai jogar sujo.

        - Se for preciso.

        - Mas você prometeu - disse a ex-enfermeira. - Johnny, você me deu a sua palavra.

        - Bobagem...

        Marcia estava pensativa. Acendeu um cigarro.

        - Está bem, Johnny: já renunciamos à fazenda, em troca da pensão e desse milhão, se e quando você morrer. Agora, diz que o acordo não vale mais. Qual é, então, a nova proposta?

        - Eu continuo p-pagando a vocês mil dólares por semana, até que se casem ou até que eu morra. Mas a quantia após a minha morte está acabada.

        Marcia gritou uma só palavra:

        - Por quê?

        - Bem, não é da conta de vocês. Mesmo assim, vou contar: acontece que haverá uma quarta sra. Benedict.

        - Deve estar brincando! - Audrey deu uma gargalhada. - Você pega a doença do casamento toda primavera, Johnny. Até parece resfriado. Mas o que o novo casamento tem a ver com isso tudo?

        - Não pode ser assim mesquinho - Alice murmurou. - Um milhão de dólares não é nada para você.

        - Então, vai ficar com essa vagabunda durante alguns meses, - Marcia grunhiu - e depois...

        - Desta vez, será diferente - Benedict disse, sorrindo. - Desta vez, estou apaixonado.

        Audrey gritou:

        - Apaixonado? Você?

        A incredulidade estava estampada em todos os rostos. As três caíram na gargalhada.

        - Al, leve-o a um psicanalista, depressa - a ruiva falou -, antes que perca o que lhe sobrou de juízo. Escute, fofinho, a única coisa pela qual você se apaixonou foi pelo peito da sua mãe. O que sabe sobre o amor?

        Benedict deu de ombros.

        - Qualquer que seja o nome, eu agora estou sentindo. Quero sossegar... Podem continuar rindo! Quero criar uma porção de filhos, ter uma vida normal. Nada mais de casamentos apressadinhos. Minha próxima esposa será a última mulher na minha vida. - As três pareciam pássaros empoleirados no mesmo galho, se olhando. - Este é o p-principal motivo da m-minha atitude. Se vou ser pai, quero garantir o futuro dos meus filhos. E também o da mãe deles. Não vou mudar de idéia sobre isso.

        - Continuo achando que é uma sujeira - a loura respondeu. - Ou será que aquele testamento que você me mostrou, antes do divórcio, me deixando um milhão de dólares, não passava de uma armadilha?

        - Se foi isso, eu também caí - Marcia comentou. - E repito: é assassinato puro e simples nos cortar do testamento, depois do que lhe demos...

        - Eu sei, Marcia... os melhores meses da sua vida - Benedict sorriu. - Vocês três nunca me deixam terminar uma frase. Quero anunciar que isso não será uma perda total para vocês. E tem mais: têm um prazo até amanhã, ao meio-dia, para decidir. Como um marido pode ter bom coração? Al, por favor, um drinque. Um Black Russian.

        Aquele era novo, para Ellery. Observou Marsh, ocupado no bar, misturando algo que parecia vodca com licor de café e gelo.

        - Decidir o quê, Johnny? - Alice perguntou, com voz fraca.

        - Já lhes digo, num minuto. O problema é: se vocês três concordarem, Al fará o meu novo testamento. E este será definitivo.

        - Qual é a maldita proposta? - Audrey falou, calmamente. Agora não estava mais no papel de moça bonita e boba.

        - Mil dólares por semana, como atualmente, terminando no caso de um novo casamento de vocês. E, na minha morte, cada uma receberá cem mil dólares. Este é o fim do jogo. Terão cem mil dólares garantidos. Não é um milhão, mas também não é de se desprezar. Nem mesmo para três aves raras como vocês.

        Olhou bem para cada uma e continuou:

        - Pensem no assunto, senhoras. Se começarem a criar problemas, eu lhes digo agora, diante de testemunhas: no novo testamento que farei amanhã, não deixarei para vocês nem um centavo! Posso até mudar de idéia, quanto aos mil dólares semanais. Boa noite.

        John Levering Benedict III tomou seu drinque, acenou para o grupo de pessoas e subiu para o quarto. Tinha tido um dia movimentado, mas compensador.

 

        Atrás dele, Benedict deixou um clima de raiva, frustração e curiosidade.

        - Com quem Johnny vai se casar?

        - Você sabe? Você a conhece?

        - Conte para nós, Al. Vamos...

        As mulheres rodearam Marsh, empurrando seus corpos de encontro ao dele.

        - Por favor, garotas, comportem-se diante da srta. Smith. Chega por hoje. Na verdade, estamos sozinhos. Completamente livres para assaltar a cozinha e fazer um lanchinho.

        - Estou de regime - a srta. Smith disse inesperadamente, e o advogado olhou-a, surpreso. Ellery percebeu que aquele comentário não era característico do comportamento profissional da secretária. Ela fechou o livro de taquigrafia e guardou o lápis. - Boa noite, sr. Marsh - disse, com firmeza, e se dirigiu para a escada, como se as ex-esposas não existissem. Havia anotado todas as palavras ditas naquela sala, enquanto Ellery observava.

        - Eu sei que você sabe quem ela é, Al... - Audrey disse, sacudindo-o.

        - É a tal vagabunda que tem andado com ele, como todo mundo diz? - a grande Marcia quis saber.

        - Ele nem sonharia em cometer esse erro mais uma vez, querida - Alice disse, cheia de sinceridade.

        - Pelo menos, eu nunca chupei sangue, como você fazia, naquela favela que chamam de cidade - a ruiva respondeu. - Há coisa mais baixa do que uma sugadora de sangue?

        - Olhe só quem está falando!

        - Vamos, Al - a loura implorou. - Pare de esconder o jogo. Quero um drinque, querido. E conte-nos toda a sujeira.

        Marsh empurrou-as e foi até o bar encher seu copo:

        - Vou lhes dar um conselho completamente grátis. Aceitem a oferta de John. Se recusarem, poderão acabar como qualquer vagabunda de bar. Os cem mil são o máximo que conseguirão de Johnny. Têm doze horas para agarrar a oferta. Pensem bem. Podem me dar sua linda decisão amanhã.

        - Vá para o inferno, querido - Audrey disse. - E o meu drinque?

        - Por que não vai para a cama?

        - Não estou assim tão desesperada. Oh, está bem. Eu mesma me sirvo - a atriz dirigiu-se ao bar.

        - Sabe o que você é? - Marcia sussurrou para o advogado. - Você é um preguiçoso e puxa-saco. Faça-me um Gibson, sim, Audrey?

        - Faça-o você mesma.

        - Você é um encanto. - A ruiva também foi para o bar.

        - Al... - começou a morena de Wrightsville.

        - Não vão me arrancar mais nada, Alice. Boa noite.

        - Não pode me dispensar assim, como se eu fosse a srta. Smith! Ou uma criança - Alice lhe deu um olhar frio e caminhou até o bar.

        Ellery queria observar Marsh um pouco mais. Era evidente que ele já havia bebido muito. Entretanto, seu copo ainda estava cheio. Fumara vários cigarros mentolados desde que Ellery estava escondido, olhando. Ainda continuava fumando. Bem, Ellery pensou, sendo o advogado e confidente de Johnny-B, talvez tenha uma existência problemática. O homem de Marlboro também pode ter suas neuroses. Até mesmo fobia por ambientes grandes.

        Ellery estudou os traços pesados do outro, suas mãos grandes e sensíveis. Marsh era inteligente e sistemático, tinha um treinamento especial para lidar com as leis. Era capaz de analisar todas as possibilidades.

        Saiu dali cautelosamente e se dirigiu ao bangalô, usando bem pouco a lanterna. Ellery deixou que seu instinto o conduzisse. Seus pensamentos não o alarmavam nem o divertiam. O problema era prever homicídio onde não havia nada, baseado em acontecimentos antigos. A vítima nunca se convencia antes de ser tarde demais. Isso despertava os assassinos em potencial. A vítima, como todos os mortais, acha que é imortal. E o assassino, como todos os assassinos, acha que é infalível.

        Tudo aquilo era muito triste e desencorajador. Ellery pretendia estar dormindo, antes que o inspetor Queen voltasse do cinema.

 

        Mas não dormiu muito.

        Acendeu a luz, ao ouvir o telefone. Procurou-o, encontrou-o e, piscando, olhou o relógio: 3h03. Do outro lado, ouviu uma respiração profunda, como se uma pessoa muito cansada fosse falar.

        - Quem é?

        - J-J-J...

        - Johnny? É você, Johnny?

        - Sim - ele procurou respirar profundamente, como se seus pulmões estivessem oprimidos por um enorme peso.

- El... ?

        - Sim, sim. O que há de errado?

        - Morrendo.

        - Você? Espere! Vou já para aí.

        - Não... tempo.

        - Estrangulado...

        - M-m-m... - ele parou. O som foi de um soluço.

        Ellery falou, depressa:

        - Quem, Johnny? Diga-me. Quem fez isso?

        Daquela vez, a respiração do outro pareceu interminável.

        Em seguida, Johnny Benedict disse, claramente:

        - ...guém - e parou outra vez.

        Ellery ficou irritado. Alguém? Evidente que foi alguém. Ninguém? Fazia menos sentido ainda. Não há nenhum sentido nisso. Se conseguiu ligar para mim, devia estar lúcido. Uma pessoa que está morrendo não faz um esforço desses para dizer que alguém a matou. Ou ninguém!

        - Quero saber quem atacou você!

        Ouviu alguns sons sem significado. Aquilo era muito irritante.

        - Agüente, Johnny! Quem foi? - Era como tentar convencer uma criança teimosa. - Tente me dizer.

        Houve apenas um ruído do outro lado, como se o telefone tivesse batido em algo. Como se Johnny-B o tivesse atirado. Ou, o que era mais provável, largado no chão.

        - O que foi, filho? - Seu pai estava parado na porta. O inspetor não dormia bem. Qualquer barulho o perturbava. - Ellery?

        Ellery contou ao pai o que Johnny havia dito.

        - Então, o que está fazendo aí, parado? - o velho gritou, e correu para o quarto.

        Não há pressa, Ellery pensou, enquanto vestia as calças. Johnny já não estava mais lá.

 

        O carro percorreu rapidamente a curta distância. A casa principal estava às escuras, com exceção de duas janelas no andar de cima. Deviam ser do quarto de Benedict.

        - Lembrou-se de trazer a chave que Benedict lhe deu? - o inspetor perguntou.

        - Diabos! Esqueci!

        Mas quem em Wrightsville usava chave?

        Tinha acertado. A porta principal, apesar de fechada, não estava trancada.

        Correram para cima. A porta do quarto aceso estava aberta.

        Benedict vestia pijama de seda colorida, um quimono cor de café com leite e sandálias japonesas. Estava caído no chão, ao lado da cama, e parecia um bolo recém-saído do forno, enfeitado e colocado para esfriar. O telefone ficava na mesinha de cabeceira, mas agora estava no chão. Era incrível a pouca quantidade de sangue, considerando os ferimentos na cabeça dele.

        A arma estava no chão, a pouco mais de um metro do corpo, entre a cama e a porta. Era uma escultura dos três macacos, exagerada, pesada, em estilo moderno, e fundida em ferro. Tanto o ferro quanto o estilo davam uma certa ironia grotesca aos três macaquinhos que "não viam nada", "não ouviam nada" e "não falavam nada". Nenhum dos dois homens a tocou.

        - Naturalmente, ele está morto - Ellery disse.

        - O que você acha?

        - Para os relatórios, - Ellery apertou os lábios - acho melhor verificarmos.

        O inspetor ajoelhou-se e apalpou a carótida de Benedict.

        - Está morto. Não entendo como teve forças para pegar o telefone.

        - Mas teve - Ellery disse, friamente. - O problema é: tendo encontrado estas forças, o que ele fez com elas? Nada!

        Aborrecido, enrolou a mão direita com um lenço, pegou o receptor do telefone e apertou o botão para obter linha. Depois, discou o número da polícia de Wrightsville, que sabia de cor.

        - Vai demorar algum tempo, antes de Newby chegar aqui - Ellery comentou com o pai, colocando o fone no lugar. - Qual terá sido a causa da morte? Acho melhor verificarmos as carótidas dos outros também.

        - Deixe-os para lá - o inspetor grunhiu. - Devem estar todos bem. E o Newby?

        - Quem atendeu foi um sujeito chamado Peague. Aposto que é parente de Millard Peague, que era ferreiro em Crosstown e Foaming. Ele disse que o chefe foi até o Red Man esta noite, e não vai gostar de ter que se levantar e vir até aqui. Os três carros de polícia estão na Fyfield Gunnery School. Parece que alguns estudantes tomaram um porre e estão destruindo o prédio da administração. Os policiais locais demorarão horas para chegar até aqui. Pelo menos, foi o que Peague disse. Enquanto esperamos Newby, por que não fazemos alguma coisa útil?

        O inspetor estava em dúvida.

        - Detesto interferir no caso de outro policial.

        - Newby não se importará. O senhor das batalhas sabe que já oferecemos nosso ombro amigo a muita gente. Vamos ver se encontramos algo onde se possa escrever.

        - Para quê?

        - Super-homem ou não, Johnny teria preferido escrever alguma coisa, em vez de telefonar... se ele pudesse. Aposto que não vamos encontrar nada.

        Não encontraram nada. Aquilo deu a Ellery uma pequena satisfação.

        Um mistério estava resolvido. Do outro lado do quarto, no chão, estavam os três artigos do vestuário que as três ex-esposas de Benedict tinham perdido: o vestido preto e longo de Audrey Weston, a peruca verde de Marcia Kemp e as luvas brancas de Alice Tierney.

        Ellery examinou-os, atentamente. O vestido de noite era longo o suficiente para arrastar no chão. A peruca era tão absurdamente verde que, esticada, parecia uma gigantesca taturana. As luvas eram de boa qualidade. Nenhuma das três peças apresentava uma única mancha de sangue.

        - Então, não foram usados na hora do ataque - o inspetor murmurou. - Uma pista plantada?

        - Três - Ellery disse, rindo. - Caso contrário, por que deixar as três? Se o atacante de Johnny quisesse implicar Marcia, teria deixado apenas a peruca. Ou o vestido, se quisesse implicar Audrey. Ou as luvas, para culpar Alice. Deixando as três peças, quis implicar as três.

        - Mas por quê?

        - Essa é a questão.

        - Não entendi, Ellery.

        - Gostaria de poder esclarecer, mas também não entendi.

        - Algo me diz que devíamos ter ficado em Manhattan - o inspetor falou, aborrecido.

        A cama havia sido usada. A colcha estava cuidadosamente dobrada nos pés. O lençol de baixo estava amassado e o travesseiro ainda mostrava a depressão causada pela cabeça de Benedict.

        - Certamente, ele não foi para a cama com este robe - Ellery disse. - Isso quer dizer que algo o despertou. Ele pulou da cama, vestiu o robe e as sandálias. Portanto, a próxima pergunta é: o que o perturbou?

        - Não há sinal de luta - o inspetor comentou. - Parece que o assassino não quis desarrumar o quarto.

        - Está ficando cínico, papai.

        - Não. Estou falando sério. Não há roupas jogadas ao acaso, as cadeiras estão arrumadinhas. Aposto que, se olhar no banheiro... - O inspetor dirigiu-se para lá e exclamou, triunfante: - O que eu lhe disse? Camisa, meias, cueca... cuidadosamente depositadas no saco de roupa suja, antes de ir para a cama. O inspetor voltou e olhou ao redor:

        - Ele deve ter sido abandonado antes de morrer, Ellery. No chão ou na cama... O assassino foi embora e Benedict conseguiu chegar até o telefone e chamar você.

        - Concordo. Quanto à falta de luta, estou tentado a concluir que Johnny conhecia seu assassino. Entretanto, naturalmente, pode ter sido alguém que arrombou a casa ou qualquer estranho que tenha entrado aqui, logo depois que Johnny saiu da cama, colocou o robe e as sandálias. São alternativas que não se podem eliminar facilmente.

        - Mas por que o mataram? - O inspetor estava revistando uma cômoda imensa.

        O relógio Rolex, com a pulseira em ouro dezoito quilates, estava ali. Era algo que devia ter custado mais ou menos uns mil dólares.

        - Foi por dinheiro - Ellery disse. - Mas não do tipo que os assaltantes procuram. Fui para a cama preocupado com isso. O que é essa porta aí?

        Era um closet. Os Queen entraram e deram uma olhada. Parecia uma loja masculina. Havia uma dúzia de ternos em tecidos fabulosos, nos mais variados tons de cinzento e de azul; dois smokings, um branco e o outro cor de vinho; e uma enorme variedade de paletós, calças, camisas, uniformes de iatismo e pesca. Quatro casacos cor de cinza-carvão e cinzento-claro, um de gabardine cor de osso e cor de chocolate; três sobretudos, um preto com gola de veludo, outro azul marinho, transpassado; e o terceiro em cashmere bege. Havia dúzias de pares de sapatos... convencionais, de couro de crocodilo, de camurça, de uma só cor e de duas cores. Também um grande sortimento de botas e tênis de atletismo. Na prateleira de cima ficavam uns dez chapéus e bonés, em cores que variavam do preto até tonalidades de marrom, convencionais e esportivos. Havia até bonés tiroleses. Num cabide giratório, gravatas que poderiam compor o estoque de qualquer loja.

        O inspetor estava maravilhado.

        - Para que, em nome de Deus, ele precisava de tanta coisa? E aqui, em Wrightsville?

        - E este aqui era apenas o seu esconderijo... - Ellery comentou. - O lugar onde, aparentemente, ele não fazia nada, não recebia nem dava festas. Imagine como são os seus armários em Nova York, Paris, etc...

        Numa cômoda embutida, encontraram dezenas de camisas feitas sob encomenda pelos melhores fabricantes. Ali havia artigos de seda de todas as cores, com abotoaduras, sem abotoaduras, com botões, uma porção de peças de flanela xadrez, camisas de verão e outras de malha. Também as meias eram inúmeras, variadíssimas e de primeira qualidade. A gaveta das jóias também estava completa, com uma grande coleção de prendedores de gravata, abotoaduras e outros artigos.

        O inspetor continuava sacudindo a cabeça. Ellery estava calmo, mas seu olhar refletia uma certa confusão.

        Parecia ter colocado algum pedaço do seu quebra-cabeça em lugar errado. Mas não conseguia lembrar qual era. Nem onde o tinha posto.

 

        Enquanto esperavam pelo chefe Newby, os Queen despertaram os convidados de Benedict. O motivo do sono pesado das ex-esposas de Marsh era perceptível para qualquer um. Os quartos recendiam a álcool. Era evidente que as três moças e o advogado haviam bebido bastante, depois que Ellery se afastara do seu posto de espionagem. Foi muito difícil acordá-los.

        A srta. Smith, secretária de Marsh, havia trancado a porta do quarto, e Ellery teve que bater durante vários minutos, antes que ela respondesse. Não havia odores em seu quarto.

        - Durmo como um defunto - a srta. Smith disse. Uma frase da qual logo se arrependeu, quando Ellery lhe contou o motivo pelo qual a estava acordando.

        Depois, pelos ruídos que vinham do banheiro, Ellery soube que ela estava vomitando; o que não tinha acontecido com as três esposas.

        Pelas informações do inspetor, Marcia Kemp, Audrey Weston e Alice Tierney receberam a notícia da morte violenta de Benedict com muito espanto. Pareciam ainda bêbadas demais para compreender completamente o significado daquilo. Não houve histeria e apenas moucas perguntas.

        O rosto de Marsh estava cinzento e suas mãos tremiam muito.

        - A polícia já está aqui? - perguntou.

        - Está a caminho, Al.

        O advogado sentou-se na cama, murmurando:

        - Pobre Johnny, que final triste.

        Depois, pediu para tomar um drinque. Ellery lhe trouxe um copo e uma garrafa.

        O inspetor avisou os cinco para se conservarem onde estavam: cada um em seu próprio quarto. Foi, então, ficar de guarda, na porta do quarto de Benedict.

        Ellery ficou lá embaixo, esperando que Newby, sem gravata e com uma capa de chuva atirada sobre o uniforme, chegasse.

        Anselm Newby sucedeu o chefe Dakin, que personificara a lei e a ordem em Wrightsville durante muitos anos. Tantos anos que ninguém se lembrava do seu predecessor, um ex-fazendeiro transformado em policial: o gordo Horace Swayne. Dakin sempre lembrava a Ellery a lisura de Abraham Lincoln; como Lincoln seria, se fosse um antigo e incorruptível policial de cidade pequena. Anselm Newby, ao contrário, era do tipo moderno de policial, jovem e agressivo, treinado cientificamente para a força policial de uma cidade de determinado tamanho. Parecia uma bola de fogo, enquanto Dakin era bem mais calmo. Entretanto, já tinha provado uma dúzia de vezes a sua competência, em casos bem difíceis.

        O problema de Newby era sua aparência de homem delicado e pequeno, numa comunidade onde a suspeita de efeminação por si só já constituía um crime. Ele logo soube dos boatos que despertava. E procurou suas fontes. A seguir vestiu o uniforme e deu uma surra em quem os estava espalhando: um garoto de mais de um metro e oitenta e muitos quilos de vantagem. Aquilo foi assunto nas rodas de bar de Wrightsville durante anos. Depois dessa demonstração de masculinidade, Newby não teve mais problemas com boatos. Mas nem por isso as pessoas deixaram de antipatizar com sua voz aguda e os olhos, um tom azul quase lavado.

        - Lamento isso, chefe... - Ellery comentou.

        - Você está sempre lamentando alguma coisa - Newby respondeu - Não vou sugerir que baixem uma lei proibindo a entrada dos Queen em Wrightsville; mas será que você não pode por os pés nesta cidade sem causar um homicídio? Não sabia que tinha vindo aqui. Caso contrário, teria colocado um guarda-costas atrás de você! Como vai, Ellery?

        - Sinto-me tão desgraçado como você, Anse - Ellery disse, apertando a mão delicada do outro. - Mais desgraçado ainda. Mantive em segredo a nossa visita.

        - Nossa? Quem mais veio com você?

        - Meu pai. Ele está lá em cima, tomando conta do quarto de Benedict. Estávamos em férias. A convite de Johnny Benedict.

        - Pai ou não, ele provavelmente não conhece o nosso arquivo de Wrightsville tanto quanto eu. Caso contrário, nunca teria vindo. É uma loucura um policial tirar férias junto com você. E veja o que o convite de Benedict arranjou para ele próprio! Bem, conte-me o que houve.

        - Vamos até lá em cima.

        O inspetor e Newby se cumprimentaram como adversários. Nunca haviam se encontrado.

        - Espero que não se importe por termos dado uma olhada por aqui, enquanto o esperávamos, chefe. Eu mesmo não gosto muito de oficiais de polícia que metem o nariz em território alheio.

        Newby sorriu.

        - Minha sorte foi você estar aqui, inspetor - ele disse, irônico, e Ellery suspirou.

        O chefe de polícia de Wrightsville precisou de quarenta e cinco minutos para saber da situação marital e testamentária que provavelmente tinha levado ao assassinato de Benedict, enquanto examinava o corpo e o aposento.

        - Deixei ordens para tirarem a polícia técnica da cama - Newby disse. - Onde, diabos, eles estão? Ellery, não se importa? Dê um jeito de os cinco convidados virem até aqui, enquanto chamo o médico. Já não temos mais a mão-de-obra de antes, inspetor.

        Aquilo soava como um pedido de desculpas. Ele dirigiu-se ao telefone, na entrada da casa.

        - O sujeito parece estar armando uma encenação para mim - o velho comentou com Ellery.

        O rapaz sorriu.

        - Não havia percebido que Anse era assim tão humano.

        Os cinco vieram até a sala de estar, aparentando um pouco de relutância e alívio. Nenhum deles sabia nada, além do assassinato de Benedict. Todos tinham ficado isolados uns dos outros, sem oportunidade de trocar idéias, recriminações ou comparar seus álibis. O mais interessante era que se as três ex-esposas formavam um grupo antes da morte de Benedict, agora estavam separadas, na sala.

        A srta. Smith, depois de uma boa demonstração de eficiência como secretária, agora mostrava sinais de cansaço. Seus problemas com o estômago a tinham deixado pálida e com aparência doentia. Procurou logo um brandy e Marsh olhou-a, preocupado e atônito. Pelo menos umas quatro vezes, ela gemeu:

        - Nunca antes estive envolvida em assassinato.

        Marcia Kemp sacudiu a cabeça ruiva:

        - Pelo amor de Deus, cale a boca!

        A srta. Smith sentiu-se amedrontada e apertou o copo de brandy.

        - Prestem atenção, vocês - Newby disse, depois que o inspetor lhe apresentou os cinco. - Não sei nada sobre o que está acontecendo, mas aviso-os de que logo saberei o suficiente. Neste momento, não tenho nenhuma idéia de quem matou o sr. Benedict. Portanto, este é o primeiro problema. Alguém aqui tem algo a dizer que possa nos poupar trabalho?

        Ninguém respondeu, durante um longo tempo. Finalmente, Marsh disse, numa voz tão descolorida como seu rosto:

        - Chefe, naturalmente não acredita que tenhamos algo a ver com morte de Johnny, não?

        - Ainda não acredito em nada. Alguém aqui ouviu algo, antes de ir para a cama? Uma discussão, alguma briga, ou até mesmo passos?

        Ninguém ouvira nada. O sono profundo tinha sido uma constante, enquanto ocorria o crime - todos contaram -, provocada pela vodca e o uísque. A exceção, novamente, foi a srta. Smith. Ela disse que não bebia, que o brandy em sua mão, agora, tinha apenas o propósito de lhe restaurar a calma.

        As ex-esposas, ao contrário do que se poderia pensar, não tinham dormido imediatamente.

        - Eu me virei muito na cama - Audrey Weston disse. - Então, achei que, talvez, lendo alguma coisa... Você sabe (Ellery esperou que ela dissesse "querido", mas a loura pareceu entender que o chefe Newby não ia gostar daquele tipo de gentileza). Vim até aqui embaixo procurar um livro.

        - Aqui embaixo, onde, srta. Weston?

        - Nesta sala. Fui até aquela estante ali.

        - Alguém mais veio com você?

        - Não.

        - Quanto tempo demorou?

        - Só o suficiente para pegar um livro.

        - Depois voltou lá para cima?

        - Voltei.

        - Quanto tempo ficou lendo, srta. Weston, antes de tentar dormir outra vez?

        - Não consegui ler. As letras começaram a dançar diante dos meus olhos.

        - Qual era o livro? - Ellery perguntou.

        - Não me lembro do título - a loura disse, aborrecida. - Alguma coisa... o último... daquele tal de Roth.

        - Philip Roth?

        - Acho que esse é o nome.

        - O título, por acaso, era "O Complexo de Portnoy"?

        A srta. Weston ficou ainda mais aborrecida.

        - Esqueci.

        - Srta. Weston, se começou a ler "O Complexo de Portnoy", duvido que as letras tenham começado a dançar diante dos seus olhos. A verdade é que o leu durante algum tempo, não é?

        - É verdade, querido - Audrey Weston falou, quase cuspindo. - Fiquei tão enojada, que atirei aquele livro revoltante do outro lado do quarto. Depois, voltei até aqui, para pegar outro. E comecei a ler este segundo. Foi então que o "molho" começou a fazer efeito. Senti muito sono, apaguei a luz e acho que saí deste mundo. Não me pergunte qual era o livro, sr. Queen, porque não me lembro de nada. Mas ele ainda está lá no meu quarto, se acha que é assim tão importante.

        - Então, veio duas vezes aqui embaixo, durante a noite.

        - Se não acredita em mim, o problema é seu.

        - Pode ser seu também - Ellery disse, cuidadosamente, enquanto acenava para Newby. - Não pretendo monopolizá-la, Anse, pode ir em frente.

        - A que horas tudo isso aconteceu, srta. Weston?

        - Não tenho a menor idéia.

        - Nenhuma?

        - Não olhei o relógio.

        - Nem mesmo o seu relógio de pulso, quando se despiu?

        - Não.

        - Pode dar uma idéia aproximada? Uma hora? Duas? Ou três?

        - Não sei, estou lhe dizendo. Marcia, que horas eram, quando levantei da cama?

        - Responda a suas próprias perguntas, queridinha, e eu responderei às minhas.

        - Posso lhe dizer que horas eram quando foi para a cama - Alice Tierney disse, de repente. - Quase duas.

        - Não podia ser assim tão tarde! - Audrey gritou.

        - Mas era.

        - Não conseguiu dormir - Newby disse - e veio até aqui embaixo pegar o "Complexo de Portnoy". Ficou lendo durante quanto tempo?

        - Não sei dizer... foi durante um tempinho.

        - Quinze minutos? Meia hora?

        - Talvez. Eu não sei.

        - Ou uma hora? - Ellery murmurou.

        - Não! Perto de meia hora.

        - Em outras palavras, o livro do sr. Roth a revoltou, mas prendeu sua atenção durante meia hora ou mais. Tive a impressão, pelo que disse antes, que quase não havia lido nada, antes de atirar longe o livro, revoltada. Não está dando respostas muito coerentes.

        - Por que está me perseguindo, sr. Queen? - a loura gritou. - Querem arrancar de mim alguma coisa? Está bem. Eu li aquele livro durante um bom tempo. E mal olhei o segundo. Mas tudo isso leva à mesma conclusão: dormi muito antes de alguém matar Johnny.

        Newby se aproximou:

        - Como sabe que Benedict foi morto, srta. Weston? Ninguém mencionou isso.

        Ela ficou imóvel:

        - Não? Bem... Quero dizer... Achei...

        Ele continuou:

        - Viu alguém, quando veio até aqui embaixo, duas vezes?

        - Ninguém. As portas dos quartos estavam fechadas. Pensei que todos dormissem, menos eu.

        Newby disse, de repente:

        - E você, srta. Kemp?

        Ela já estava pronta, esperando:

        - Eu o quê?

        - Dormiu logo que caiu na cama?

        - Gostaria de dizer que sim, mas algo me diz que não se deve esconder nada, num caso como este. É melhor dizer a verdade completa. Bebi muito na noite passada. Quando subi a escada, parecia um navio balançando. Mas logo que caí na cama, despertei completamente...

        - Espere. A que horas foi para a cama?

        - Não estava em condições de saber as horas, chefe. Tudo o que sei é que foi muito tempo depois de Audrey já ter ido lá para cima.

        - Quanto tempo?

        Marcia Kemp deu de ombros.

        - Eu posso lhe dizer - Alice Tierney falou. - Eram quase duas e meia.

        - Você até parece um reloginho - a ruiva comentou. - Bem, minha cabeça rodava tanto... Achei que um pouco de comida iria fazer bem ao meu estômago. Desci e fui à cozinha. Preparei um sanduíche frio de galinha e uma xícara de leite quente. Depois, levei tudo para o quarto. O vovô viu o prato com as migalhas e o copo sujo, quando foi me acordar. Conte a ele, vovô.

        - Sim, vi o prato e o copo - o inspetor Queen disse. Ele estava de pé perto da janela, olhando o terraço e mantendo-se fora da conversa.

        - Viu? - Marcia falou. Ela usava a camisola mais curta que já se tinha visto, debaixo de um negligê que ficava se abrindo o tempo todo. Ellery desejou que o fechasse; assim, ele poderia se concentrar no caso. Debaixo daqueles tecidos transparentes, Marcia parecia uma flor gigante, prestes a desabrochar. - O leite quente fez efeito, pois logo dormi. Não sei de mais nada, até acordar com toda esta confusão.

        - Viu alguma coisa, quando foi até a cozinha?

        - Não.

        - E não viu nada, na hora do crime?

        - Você não vai me pegar, tira. Eu não sei qual foi a hora do crime. Bem, de qualquer forma, não ouvi nada em nenhum momento.

        O problema de Alice Tierney também tinha sido o álcool.

        - Não costumo beber muito - disse a ex-enfermeira de Wrightsville -, e tomei alguns drinques a mais, na noite passada. Subi para o meu quarto depois de Marcia. Quando percebi que não ia conseguir dormir, fui até o banheiro procurar algo para dor de cabeça. Não encontrei nada. Resolvi vir até aqui embaixo pegar um vidro de aspirina, que tinha visto no armário do lavatório. As aspirinas não ajudaram muito. Tentei compressas com água fria. Finalmente, desesperada, tomei uns comprimidos para dormir, que encontrei numa caixa de remédios... odeio comprimidos para dormir. Já tive muita experiência com eles... e foi só. Dormi. - Como Audrey e Marcia, Alice não tinha visto nem ouvido nada.

        - Engraçado - o chefe Newby comentou. - Com toda esta gente andando pela casa, durante a noite, acho que uns teriam encontrado os outros. O que pensa, Marsh? Conte-nos o que você veio fazer aqui embaixo.

        - Eu não vim. Depois que entrei no meu quarto, fiquei lá. Tinha bebido demais, principalmente depois que Johnny foi para a cama. Fiquei acordado apenas um ou dois minutos. A coisa seguinte de que me lembro foi Ellery me sacudindo.

        - A que horas foi para a cama?

        - Não sei, com certeza. Mas tenho a impressão de que fui logo depois de Alice Tierney. Entretanto, estou confuso demais.

        - Está certo - a garota de Wrightsville falou.

        - E você, srta. Smith?

        A moça endireitou-se na cadeira.

        - Não imagino por que tem que me interrogar. Acho que nunca dei mais do que um alô ao sr. Benedict, quando ele ia visitar o sr. Marsh, no escritório.

        - Saiu do seu quarto na noite passada, depois que subiu para dormir?

        - Não!

        - Ouviu algo que possa nos ajudar, srta. Smith? Tente lembrar.

        - Já disse ao sr. Queen, antes de virmos para cá. Eu tenho um sono muito pesado (como o de um defunto, Ellery lembrou-a, silenciosamente, com um olhar). Achei que o domingo seria cheio de serviço e precisava de repouso para executar o trabalho com maior eficiência. Afinal, não fui convidada a esta casa apenas para passar o fim de semana. Estou aqui só porque sou secretária do sr. Marsh.

        - A srta. Smith não tem nada a ver com isso - Marsh falou. Ele parecia aborrecido demais, Ellery pensou. - Não pretendo lhe ensinar o seu serviço, chefe, mas não acha que isso será uma perda de tempo? Johnny deve ter sido morto por alguém que arrombou a casa, durante a noite, para roubar. Alguém que perdeu a cabeça, quando Johnny acordou e o surpreendeu.

        - Gostaria que fosse assim tão simples, sr. Marsh. - Newby olhou para Ellery, que imediatamente saiu e voltou com o vestido, a peruca e as luvas.

        - Como são todas ex-esposas do sr. Benedict, - Ellery disse para as moças - acho que daqui para a frente será melhor para todos nós chamá-las pelos nomes de batismo. Audrey, você me procurou ontem para contar que tinham roubado um vestido do seu quarto. É este aqui?

        Estendeu o vestido preto para a loura. Ela o examinou, cheia de suspeitas. Depois, levantou-se e ajustou a roupa na frente do corpo.

        - Parece com ele... acho que é... sim. Onde o encontrou?

        Ellery pegou o vestido de volta.

        - Marcia, esta é a peruca que tinha sumido do seu quarto, conforme me disse ontem?

        - Sabe que é. Se houver uma outra peruca verde nesta cidade, eu a comerei - a ruiva disse, brincalhona. - Claro que é esta.

        - Alice, são estas as suas luvas?

        - Há uma leve mancha no indicador da mão esquerda - a morena explicou. - Sim, aqui está ela. São as minhas, Sr. Queen. Mas com quem estavam?

        - Não sabemos com quem estavam, mas sabemos onde elas apareceram. Encontramos tudo isso no quarto de Benedict, perto do corpo.

        Aquilo produziu um profundo silêncio.

        - Mas o que quer dizer isso? - Alice perguntou. - Por que alguém roubaria minhas luvas e depois as deixaria junto ao cadáver de Johnny?

        - Ou o meu vestido de noite?

        - Ou minha peruca verde?

        - Não estou entendendo nada disso. - Marsh tinha voltado para o bar, mas não estava prestando nenhuma atenção ao copo que segurava. - Esse tipo de coisa é o seu prato favorito, Ellery. O que acha? Pensa que foi um assaltante? Ou, talvez, um vagabundo?

        - Não - Ellery falou. - Há um certo sentido em tudo isso, Al. É aí que você entra.

        - Eu?

        - Anse, você se importa?

        - Você sabe mais sobre isso do que eu, Ellery - ele falou. - Vamos esquecer o protocolo.

        - Então, deixe-me fazer um resumo - Ellery continuou. - Eu estava lá fora, no terraço, ouvindo, quando Johnny fez aquele discurso na noite passada, avisando que ia escrever um novo testamento. Al, acho que, como você era o advogado dele, veio aqui, neste fim de semana, para escrever o novo documento. Foi você também quem fez o primeiro. Trouxe uma cópia do antigo?

        - Sim - Marsh respondeu, com um olhar beligerante. - Você esteve espionando, Ellery? Por quê?

        - Porque senti que a situação de Johnny era insegura. Gostaria de ver o testamento que está com você.

        Marsh colocou o copo no bar. Seu maxilar pareceu mais firme.

        - Tecnicamente, eu posso recusar...

        - Sabemos o que pode fazer, sr. Marsh - o chefe disse, sério - Mas, por aqui, não somos muito formais na investigação de assassinatos. No meu território, sr. Marsh, o assassinato abre uma série de portas. Vamos ver o testamento de Benedict, por favor?

        O advogado hesitou. Finalmente, deu de ombros.

        - Está na minha valise. No meu quarto. Srta. Smith...

        - Não precisa - o inspetor Queen disse. - Eu vou pegar.

        Todos haviam esquecido que ele estava ali. Voltou, dentro de poucos minutos, e disse:

        - Quero que saiba, sr. Marsh, que não a abri.

        Marsh olhou-o, aborrecido. Abriu a valise e tirou um documente grosso, dobrado e enfiado num envelope de papel pardo. Estendeu-o para Newby, que pegou o testamento, deu uma olhada nas numerosas páginas e passou-o para Ellery.

        - Vejo que este testamento básico foi escrito há muito tempo, Al com partes suplementares, que foram sendo adicionadas depois dos divórcios.

        - Certo.

        - E, de acordo com estas partes, o pagamento semanal para cada ex-esposa é de mil dólares. Este pagamento pararia na morte de Johnny, mas o testamento deixa a cada uma, que ainda não tenha casado novamente, a soma de um milhão de dólares.

        - Sim.

        - Então, todas as ex-esposas tinham interesse em que Johnny morresse, deixando este testamento inalterado.

        - É um modo engraçado de explicar isso, Ellery. Mas acho que está certo. Aonde quer chegar?

        - Ora, vamos, Al. Sei que um advogado do seu gabarito não gosta de ser envolvido em incidentes desagradáveis como este. Mas é melhor encarar os fatos. O que ouvi ontem, escondido perto do terraço, confirmou os meus temores. Se Johnny sobrevivesse, ia escrever um novo testamento. E este, apesar de continuar dando mil dólares por semana a estas senhoras, até que se casassem novamente, com a morte dele cortava a pensão de um milhão para cem mil dólares. Isto é, apenas dez por cento da quantia inicial. Se não concordassem, ele já havia avisado, não lhes deixaria nem um centavo. Eu pergunto a você, Al: do ponto de vista de Audrey, Marcia e Alice, não foi uma sorte Johnny ter morrido esta noite?

        Marsh tomou um gole da sua bebida. Durante a conversa de Ellery, todos tinham se mantido imóveis e em silêncio.

        - Pelo que parece, - o chefe Newby anunciou, em voz baixa - as ex-esposas de Benedict tiveram motivos e oportunidades... igualdade de motivos e de oportunidades. E, devo completar: igualdade de acesso à arma do crime.

        - Não sei nem mesmo qual foi a arma! - Audrey Weston gritou.

        Conte-nos. Pelo amor de Deus, eu não poderia cometer um assassinato. Talvez Alice Tierney pudesse... As enfermeiras estão mais acostumadas com sangue. Eu sinto enjôo...

        - Vou me lembrar disso, Audrey - Alice falou, com uma voz cortante.

        - Por novecentos mil dólares, srta. Weston, - o chefe comentou - qualquer pessoa consegue cometer qualquer coisa. E oh, sim. O seu vestido foi encontrado na cena do crime - Mas, ontem, eu disse ao sr. Queen que ele tinha sido roubado! Encontrou também as luvas de Alice e a peruca de Marcia. Não foi isso que ele disse? Por que me perseguir?

        - Não a estou perseguindo, srta. Weston. Tudo se aplica a vocês três. Só posso garantir que o fato de termos encontrado as peças no quarto de Benedict não ajuda muito. Entretanto, estavam lá, e temos que analisar os fatos.

        - Na verdade, há um fato que ninguém conhece - Ellery disse. - Papai?

        O inspetor Queen aproximou-se.

        - Na noite de quinta-feira, antes de vocês chegarem aqui, Benedict foi nos visitar na casa de hóspedes. Ele nos contou que Marsh ia fazer outro testamento, durante o fim de semana. Entretanto, queria se proteger, enquanto não estava pronto. Por isso, ele próprio redigiu o resumo do novo e nos pediu que servíssemos de testemunhas.

        O velho mostrou o grande envelope que Benedict havia deixado aos seus cuidados.

        - Meu filho e eu vimos Benedict assinar e datar esta cópia. Assinamos como testemunhas, ele o colocou neste envelope e me pediu que o guardasse, temporariamente.

        - Não sabemos o que há na cópia - Ellery falou. - Ele não deixou que a lêssemos, nem leu para nós... Mas acho que resume as providências que queria tomar. Nas circunstâncias atuais, Anse, acredito que você tem todo o direito de abri-lo, aqui e agora.

        O inspetor estendeu o envelope para Newby, que deu uma olhada em direção a Marsh. O advogado deu de ombros:

        - Deixou bem claro o modo de agir da lei local, chefe. - Foi para o bar e tornou a encher o copo.

        - Benedict disse alguma coisa ao senhor sobre ter escrito, ele mesmo, um novo testamento antes do fim de semana, sr. Marsh? - Newby perguntou.

        - Nem uma palavra. - Marsh tomou todo o conteúdo do copo de um só gole. - Entretanto, eu devia ter pensado nisso. Ele me perguntou sobre algumas frases formais e o modo como devia tirar uma cópia do testamento. Não me ocorreu que estivesse fazendo as perguntas a sério, para uso próprio.

        Newby abriu o envelope e retirou o testamento escrito a mão. Os Queen se aproximaram. Enquanto liam, os três pareciam incrivelmente surpresos e confusos.

        O chefe disse, de repente:

        - É melhor dar uma olhada nisso, sr. Marsh.

        Newby afastou o grupo de ex-esposas e estendeu o documento para Marsh, que tentou segurá-lo, junto com o copo e o cigarro Finalmente, colocou o copo no bar, o cigarro no cinzeiro e leu.

        Também ficou confuso.

        - Leia em voz alta, Al - Ellery estava observando Audrey, Marcia e Alice. O trio esticava o pescoço, como um grupo de girafas - Leia aquele parágrafo especial.

        Marsh franziu as sobrancelhas.

        - Ele revoga todos os seus testamentos anteriores... isso é usual... e deixa a fazenda para "Laura e as crianças". Depois, continua: "Se, por qualquer motivo, eu não estiver casado com Laura na ocasião da minha morte, deixo todas as propriedades a meu único parente vivo e prima em primeiro grau, Leslie". É só - o advogado deu de ombros. - Está mal escrito, mas, do ponto de vista legal, este testamento vale. - Devolveu o papel a Newby e foi pegar o copo e o cigarro.

        - Laura - Marcia murmurou. - Quem, diabos, é essa tal de Laura?

        - Deve ser a idiota com quem ele estava sendo visto ultimamente Audrey disse. - Mas os boatos eram que ela se chamava Vincentine Astor.

        - Ele nunca mencionou nenhuma Laura para mim - Alice disse.

        - Nem para mim - Audrey reclamou. - Será possível que os dois tenham se casado em segredo, antes de ele vir para cá?

        - Não - Ellery falou. - Porque, nesse caso, ele teria escrito que deixava a fazenda "para minha esposa Laura", em vez de simplesmente "para Laura". Se ele morresse antes de se casar com ela, a frase "minha esposa Laura" invalidaria o testamento. Não. Johnny estava antecipando seu casamento com Laura... "se por qualquer motivo eu não estiver casado com Laura"... isso já nos diz tudo. Al, sabe quem é essa Laura?

        - Ele nunca mencionou nenhuma mulher com esse nome.

        Concordo com você, Ellery - o chefe Newby disse. - Ele queria casar com Laura imediatamente. Procurou se proteger por algum motivo. Deve ter tido muita certeza dos sentimentos dela.

        - Vai ser muito duro para a pobre Laura - Marcia riu. - Quem quer que tenha matado Johnny tirou dela um montão de comida, estolas de mink, esmeraldas e vestidos franceses.

        Ellery concordou:

        Absolutamente certo. Ela não vai herdar nada, agora. A fazenda vai para a prima de Johnny.

        - Leia a parte sobre os nossos cem mil dólares, sr. Newby - Alice disse.

        Newby deu uma olhada no testamento e falou:

        - Não posso.

        - O que quer dizer?

        - Este testamento não menciona você, nem a srta. Kemp, nem a srta. Weston. Não diz nada sobre deixar a vocês cem mil dólares para cada uma. Nem dez dólares.

        - Johnny foi muito esperto - Marsh disse, rindo.

        - Espertalhão é a melhor palavra - Ellery corrigiu. - Ele não viu nenhum motivo para colocar no papel sua proposta, antes que as garotas a aceitassem. Na verdade, acho que a única preocupação dele, quando escreveu este testamento, foi para com Laura e Leslie.

        - Em outras palavras, - o inspetor comentou, secamente - se alguma de vocês, garotas, quisesse matar Benedict, tudo que conseguiria seria sua última refeição.

        Os homens da polícia técnica de Newby e o médico chegaram. O céu já estava clareando. O chefe mandou as ex-esposas, a srta Smith e Marsh de volta a seus quartos. Depois, procurou um telefone e avisou o promotor público e o delegado. Os Queen foram para a casa de hóspedes, tentar dormir um pouquinho.

        Enquanto dirigia de volta, Ellery disse, em voz baixa:

        - Não sei se Marsh está certo. Se aquela cópia do testamento tem mesmo valor legal.

        - Você me disse que ele entende desse assunto. Acho que opinião dele deve valer alguma coisa. Imagine quantos problemas com testamentos de milionários já deve ter tido.

        Ellery deu de ombros.

        - Marsh e a outra firma de advogados de Benedict deviam estar lhe causando uma porção de problemas. Bem, temos de concluir que a cópia do testamento novo anula os antigos. Quem quer que tenha praticado este homicídio o fez por nada. Essa tal de Leslie Carpenter saiu ganhando o jogo.

        - Pode imaginar as emoções que isso está provocando, agora; Principalmente em quem matou Benedict... Algo errado, filho?

        Ellery parecia distraído.

        - Você está a quilômetros de distância daqui - o inspetor comentou.

        - Oh! É algo que está me atormentando, desde que saímos do quarto de Johnny.

        - O quê?

        - Não sei. Uma sensação, como se tivesse deixado de prestar atenção em algo.

        - Prestar atenção no quê?

        Ellery estacionou o carro na entrada do bangalô.

        - Se eu pudesse responder a isso, não me sentiria atormentado. Desça. Vamos dormir.

 

        A prima Leslie chegou durante a manhã de segunda-feira.

        - Eu a conheci quando ainda usava aparelho nos dentes - Marsh disse aos Queen. - Como vai, Les?

        Ela sorriu, satisfeita. Era muito mais jovem do que Johnny-B. Os Queen logo perceberam que se tratava de uma pessoa diferente do primo. Benedict nascera em berço de ouro e Leslie tivera de lutar pela vida.

        - Minha mãe, que era tia de Johnny (irmã do pai dele), ficou cheia do meu avô. No velho estilo das novelas vitorianas, ele deserdou-a. Parece que mamãe era muito rebelde e não tinha muito respeito pelo dinheiro nem pelas posições sociais. - Leslie sorriu, brincalhona. - O pobre vovô não conseguiu entendê-la. Acusou meu pai de ser um caça-dotes. Papai, um caça-dotes! Ele ainda ligava menos para o dinheiro do que mamãe.

        - Está nos dando uma imagem cheia de amor filial - Ellery sorriu.

        - Obrigada, senhor. Papai era um distraído típico, um professor que lecionava em uma escola do interior, por um salário de fome, e era tiranizado por toda a administração da escola. Lá, eles pensavam que todos os que haviam lido mais de dois livros eram comunistas. Ele morreu de câncer com quarenta e um anos. Mamãe era muito doente, problemas do coração... Parece até novela, não? Mas a culpa não é minha. Tudo isso aconteceu. E tive que trabalhar para nos sustentar. Por isso, saí da escola. Só quando mamãe morreu pude voltar e tirar meu diploma. Em sociologia. Desde então, trabalhei em assistência social e educação.

        "Era evidente que Johnny possuía um certo sentimento de culpa, porque minha mãe havia sido deserdada, e o pai e ele ficaram com tudo. Pobre John! Vivia cuidando de nós e nos oferecendo dinheiro. Mamãe e papai nunca aceitaram nada. Eu nunca fui orgulhosa. Aceitei agradecida a ajuda financeira de John, depois que mamãe morreu. Senão, nunca teria conseguido voltar para a universidade. Tenho muitas dívidas para com ele - Leslie disse, com sinceridade. - Johnny tornou possível a minha educação. Isso o encorajou a fazer algo útil com seu dinheiro, em vez de, simplesmente, gastá-lo com garotas."

        O inspetor Queen, disfarçando um sorriso, disse:

        - Srta. Carpenter, tinha alguma idéia de que o seu primo John pretendia torná-la a principal herdeira desta fazenda?

        - Nenhuma idéia. Nunca! Nunca sonhei que ele me deixasse algo mais do que o relógio do vovô. Costumávamos discutir sobre nossas diferenças sociais e políticas... lembra-se, Al? Al poderá lhe dizer que nunca pressionei John.

        - Claro que não. Johnny gostava muito de você, Les. Mais do que de qualquer pessoa. Era louco por você. Talvez estivesse apaixonado por você.

        - Ora, vamos, Al. Acho que nem gostava de mim. Eu era um osso atravessado na garganta dele, isso sim... Vivia lhe dizendo que era a voz do seu superego. Pelo que sei, John Levering Benedict, o Terceiro, era um não-produtivo, sem utilidade e envolvido apenas com seus próprios prazeres. Um parasita. E eu era a única pessoa com coragem suficiente para lhe dizer isso. Ele podia fazer tanto com seu dinheiro!

        - Não está esquecendo alguma coisa? - Marsh perguntou, secamente. - Ele fez, Les. Agora.

        Leslie Carpenter ficou espantada.

        - Sabe que esqueci! É verdade, não é? Agora, posso fazer todas aquelas coisas maravilhosas...

        Havia qualquer coisa na biografia dela que intrigou Ellery. Analisou-a com interesse profissional. Por fora, parecia feita de porcelana, cheia de feminilidade. Parecia até que dava para ver através dela, se a olhasse contra a luz. Mas sua experiência em analisar as pessoas lhe disse que ela era feita de material resistente. Havia algo naquela cabecinha... um brilho naqueles olhos...

        O que pensou ter visto nela era mais profundo do que a força desenvolvida pela pobreza e a necessidade de lutar contra o mundo. Havia feminilidade adulta nela. Tanta e sem artifícios, que ele se sentiu atraído. Achou-a maravilhosa.

        Depois, Leslie virou-se para Marsh e perguntou, de repente:

        - Quanto vou herdar, Al?

        - A resposta disso está por conta do pai de Johnny. No antigo testamento de Johnny Benedict, pela morte dele seus herdeiros recebem a renda total dos investimentos Benedict. Leslie, eu disse a renda, mas não os bens. O sr. Benedict não acreditava na distribuição de seus bens, nem mesmo depois que já estivesse morto. Os bens continuam intactos.

        - Oh! Parece que fui lesada. Quanto da renda receberei?

        - Bem, vai poder realizar uns bons trabalhos de caridade com a sua parte. Deixe-me ver... Acho que receberá mais ou menos uns três milhões de dólares por ano.

        - Meu Deus! - Leslie Carpenter murmurou, e caiu chorando nos braços de Marsh.

 

        Os jornais e a televisão chegaram aos bandos na tarde de domingo quando a notícia da morte de Johnny-B saiu de Wrightsville. A invasão trouxe a orgia usual de sensacionalismo e sujeira. Newby e seus homens, cansados de tentar controlar os estudantes de Fyfield Gunnery estavam ocupadíssimos. No final, o chefe chamou-os para darem uma assistência no departamento policial. Um número fantástico de repórteres e fotógrafos estava acampado no parque. A ordem foi restaurada e o pessoal das notícias concordou em passar telegramas e fazer suas filmagens com mais calma.

        Houve uma única entrevista coletiva com as ex-esposas, e Leslie Carpenter foi autorizada a falar da sala de visitas da casa principal. Os Queen e Newby observaram tudo, prestando atenção, para ver se alguém deixava escapar alguma coisa. A discussão ficou a cargo das mulheres deserdadas. Mas estas estavam muito bem controladas e não disseram nada importante. Expostas diante das câmeras, as três só tiveram palavras sentimentais e gentis diante da morte do Senhor Milionário (era evidente que o trio tinha feito um acordo de não falar mal de Benedict em público, por motivos táticos). Pelo menos, podiam representar o papel de vítimas diante de milhões de espectadores. Leslie Carpenter limitou-se a demonstrar sua surpresa e disse que "faria planos para o dinheiro na época adequada".

        Neste momento, Marcia Kemp comentou:

        - E sabe quando vai ser isso, baby? Nunca!

        Mas a imprensa não a ouviu, para sua sorte. Entretanto, o chefe Newby e os Queen ouviram. Mais tarde, depois que os repórteres saíram, perguntaram por que a ruiva tinha feito aquele comentário. Ela explicou, rapidamente, que tinha se referido à verificação do valor legal da cópia do novo testamento. Disse que ela, Alice e Audrey estavam "certas" de ganhar o processo e que o comentário não tinha nenhuma intenção de ameaçar a srta. Carpenter.

        Aquela foi a única frase de discórdia.

 

        Depois, seguiu-se o surpreendente episódio do morrinho e do que havia lá em cima.

        Durante a parte idílica (antes do homicídio) da sua estada, enquanto exploravam a propriedade de Benedict, os Queen tinham encontrado uma espécie de miniatura de templo grego. Um tipo de templo antigo, para estátuas. Ficava no alto de uma pequena elevação, rodeado de campinas e prados, tão comuns na paisagem da Nova Inglaterra.

        Os Queen rodearam a pequena construção, imaginando o que seria aquilo. Não parecia velho, mas também não era novo. Ellery tentou abrir a porta, que era de bronze e tinha a altura de um adulto. Mas não conseguiu nada.

        - Será a casinha de brinquedo de alguma menininha rica? - o inspetor perguntou.

        Se era, a menininha devia ser milionária. O mármore era legítimo.

        Não ocorreu a nenhum dos dois que aquilo tinha sido construído por John Levering Benedict III para lhe servir de túmulo.

        Aquilo, na verdade, se tratava de um mausoléu.

        - Johnny deixou uma carta sobre esse assunto - Al Marsh lhes disse, na noite de segunda-feira. - Ele queria ser enterrado lá. Tinha horror de pensar em ir para os complicados túmulos da família... há um em Seatle e outro em Rhinebeck, Nova York. Na verdade, não sei por quê. Acho que Johnny também não sabia. No fundo, ele era um rebelde, como a sua tia Olivia, a mãe de Leslie; só que tinha sofrido muito a influência do pai, que era tão dominador como o avô. Johnny sempre dizia: "Eu herdei os defeitos do meu pai... e nenhuma das suas qualidades". Na minha opinião, ele detestava tudo o que havia contribuído para criar a fortuna dos Benedict.

        "Logo depois que comprou esta propriedade, planejou o mausoléu. Mandou fazer uma planta com as especificações. Depois, contratou alguns pedreiros locais, que o construíram. Ele trouxe um escultor de Boston para esculpir as figuras gregas. Não conseguiu encontrar um escultor aqui. Johnny amava esta cidade e os campos que a rodeavam. O mármore é daqui da região: veio das Mahoganies. Ele deixou um fundo de manutenção perpétuo. Disse: 'Espero ficar deitado lá durante um longo tempo'."

        - Mas como ele conseguiu a permissão do cemitério local para construir o túmulo? - o inspetor Queen perguntou curioso. - Este Estado não tem uma lei contra as pessoas serem enterradas em propriedades particulares?

        - Tive algo a ver com isso, inspetor. Pesquisei tudo aqui e descobri que aquele pedaço de terra, onde fica o morrinho, estava em disputa entre Wrightsville e Wright County há duzentos e setenta e cinco anos. Tinha sido resultado de um erro de demarcação, durante o século XVIII. Wrightsville sempre reclamava o morrinho como fazendo parte de seus limites. E, teimosamente, Wright County mantinha o morro em seus domínios. O litígio nunca foi resolvido satisfatoriamente. Parece até um daqueles problemas bíblicos sobre velhas comunidades. Sem nenhum Salomão para resolver tudo. Trabalhei junto à firma de advogados locais, Danzig & Danzig, e entramos numa terra de ninguém, do ponto de vista jurídico. Apresentamos às partes o fato consumado. A coisa ficou em tal estado de confusão, que pude assegurar a Johnny que ele dormiria em paz até o dia do Juízo Final. Então, ele prosseguiu com seus planos.

        Na quarta-feira, o corpo de Benedict foi oficialmente liberado pelo oficial de justiça. Diante de tão poucas evidências, o atestado de óbito baseou-se no relatório da autópsia. E aceitou a causa da morte como uma batida na cabeça, "dada por um homicida, com um instrumento rombudo, descrito abaixo". Na sexta, dia 3 de abril, Benedict foi enterrado.

        Houve uma certa competição nos negócios. Wrightsville tinha três casas funerárias: Duncan Funeral Parlors (a mais antiga), Eternal Rest Mortuary e Twin Hill Eternity Estates. Elas se juntaram como três pombas querendo devorar uma única semente. A notoriedade do caso estimulou a competição. Não era todo dia que uma casa funerária local podia cuidar do enterro de um Benedict. Muito menos, de um Benedict assassinado.

        Foi escolhido o estabelecimento Duncan. Philbert Duncan incumbiu-se de sua arte, ajoelhado aos pés do seu mestre, o pai. Alguns invejosos os chamavam de "os piores fazendeiros a leste de Los Angeles". A carta de Johnny Benedict, com as instruções sobre o assunto, deixava bem claro o que devia ser feito. Queria um caixão de aço inoxidável, revestido de bronze maciço. Tudo dentro da qualidade e dos desenhos especificados.

        Nada daquilo podia ser encontrado nas funerárias de Wrightsville. Houve uma conversa sobre adiar o funeral, até que o caixão apropriado chegasse de Boston. Mas Philbert Duncan dirigiu-se até Connhaven, durante a noite, de quarta para quinta-feira, e voltou, triunfante, trazendo o caixão desejado. Depois, descobriu-se que ele tinha um primo, um tal de Duncan Duncan, que possuía uma funerária em Connhaven, uma cidade de bom tamanho, onde a demanda era grande e havia caixões até de cinco mil dólares, dos mais variados tipos.

        As instruções de Benedict pediam uma cerimônia episcopal: ele havia sido batizado e confirmado na seita anglicana. O velho padre Highmount veio apressado. Estava aposentado, mas seu sucessor, o jovem reverendo Boyjian, estava nas Bahamas com a esposa, em férias financiadas pela paróquia.

        Como parente mais próximo, Leslie Carpenter decidiu não realizar a cerimônia formal na igreja, por causa da multidão da imprensa e do público em geral. Alguns amigos mais chegados de Benedict, escolhidos por Leslie e Marsh, vieram, através de convite, do sul, leste e oeste. Havia pouca gente junto ao templo grego, às duas horas de sexta-feira. O chefe Newby espalhou seus homens pela propriedade.

        Não se pode dizer que o padre Highmount tenha realizado uma cerimônia rápida. Ele sempre gaguejara, e isso se acentuava com a idade. Agora, tinha problemas também com a dentadura. Por isso, ninguém entendeu a maior parte do que disse. Os Queen conseguiram perceber algo como "a ressurreição e a vida", "Dominus illuminatio, o Senhor é a minha luz" e "São João, versículo 141". Depois, no final: "Um Deus... o mundo sem fim... Amém!"

        O dia estava lindo e a brisa soprava os finos cabelos prateados do velho padre, durante a bênção. Ninguém parecia se importar por não entender sua mensagem. Havia muita sinceridade no modo como ele rezava e uma grande devoção, dedicada àquele estranho, ali no caixão (Leslie decidiu, em vista das instruções do primo, não deixar que Philbert Duncan colocasse maquilagem no defunto, para a cerimônia com o caixão aberto). Mesmo que ninguém entendesse o velho padre, ele conseguiu, com sua devoção, dar um significado especial à cerimônia. Ellery estava impressionado.

        Pegou-se pensando na vida sem valores de Benedict... sua fartura, suas culpas, seu fracasso em achar que apenas o dinheiro atraía as mulheres e, finalmente, a morte brutal, justamente no início de algo que podia modificá-lo... Tudo aquilo parecia tão absurdo!

        Imóvel, a ex-esposa ruiva tomava parte na cerimônia. Benedict tinha tido uma atitude muito ousada, trazendo ali aquelas três mulheres. Talvez soubesse que não sobreviveria ao fim de semana. Talvez, por isso, decidira deixar tudo para Leslie Carpenter. Esta parecia ter uma idéia firme (aparentemente, ela lhe havia até dito qual era) do que podia ser feito com três milhões de dólares por ano.

        Portanto, a vida de Johnny não tinha sido completamente desperdiçada.

        Ellery esperava que a misteriosa Laura fizesse uma espécie de aparição no funeral. Talvez, usando uma dramática roupa preta e um véu; chorando sentida diante das câmeras e dando uma entrevista exclusiva e paga às revistas ou aos jornais sensacionalistas. Mas nenhuma mulher misteriosa apareceu em Wrightsville. Nem mandou telegramas ou cartas a Leslie, Marsh ou à polícia. Também não chegou nenhuma coroa anônima, para despertar a curiosidade da imprensa, de Newby ou dos Queen.

        Só Leslie, Marsh, a confusa srta. Smith, as três ex-esposas, o chefe Newby e os Queen permaneceram, enquanto os ajudantes de Duncan carregavam o caixão de bronze para o "templo". Colocaram-no com precisão no lugar apropriado, arrumaram artisticamente as coroas e as cestas de flores e depois fecharam a porta, entregando a chave ao chefe Newby. Ele a deu para Marsh guardar, até que fosse resolvido o problema do testamento e daquela fazenda.

        Ninguém conversou, enquanto voltavam a pé, para casa, pelos campos. Ellery deu uma olhada sobre o ombro e viu a pequena construção, ao longe, brilhando ao sol. Desejou que Johnny Benedict estivesse confortável... mas, de certa forma, duvidava disso.

        Os carros particulares e táxis tinham partido. Só dois policiais continuavam guardando a estrada. Apesar do sol e da brisa, o ar estava frio, causando arrepios.

        Dentro da casa, eram esperados pelo jovem Lew Chalanski, um assistente do promotor de Wright County e filho do famoso promotor Judson Chalanski, já aposentado. O jovem conversou com o chefe Newby, depois deu um sorriso e partiu.

        O rosto poético de Newby estava preocupado.

        - Acho que todos aqui, com exceção de Alice Tierney, moram em Nova York. Podem voltar para casa, quando quiserem.

        - Quer dizer que não tem nenhuma acusação contra nós? - Marcia Kemp disse, sacudindo o cabelo, como uma dançarina espanhola. - Caso contrário, nunca nos deixaria sair desta fazenda.

        - Corrigindo: o que eu quis dizer, srta. Kemp, é que não temos provas suficientes contra nenhum de vocês, para poder levá-los ao júri, no momento. Mas quero acentuar o seguinte: este caso está em aberto e sob ativa investigação. As três ex-esposas são bastante suspeitas. Alguma de vocês tem planos de sair do Estado de Nova York em futuro próximo? - Elas disseram que não. - Ótimo. Se a situação mudar, entrem em contato com o inspetor Queen, no seu escritório da Center Street. O inspetor concordou em atuar como homem de ligação aqui conosco.

        - Que simpático! - Audrey Weston comentou, irônica.

        - Os tiras ficam juntos... às vezes - Newby disse. - Bem, senhoras e senhores, é o suficiente, por enquanto. Esta casa, sendo a cena do homicídio, ficará fechada e selada. Apreciaria se saíssem daqui o mais cedo possível.

 

        No avião para Boston, o inspetor disse:

        - Por que está tão quieto, Ellery?

        - Não sei se admiro a inteligência ou fico maravilhado com a estupidez.

        - De quem? Sobre o que está falando?

        - De quem deixou aquelas três peças no quarto de Johnny, junto do cadáver. Cada uma aponta para uma ex-esposa diferente.

        - Já falamos sobre isso. Foram pistas que alguém plantou lá para despistar.

        - Certamente, parece isso. O problema é: qual a finalidade de apontar três mulheres diferentes como culpadas de um mesmo crime? Além disso, uma pista plantada faz sentido... para enganar os tiras. Mas três? Qual o investigador que acreditará terem aquelas três mulheres visitado o quarto, em horas diferentes, e cada uma deixado cair um artigo do vestuário, provavelmente por causa do nervosismo, fazendo com que isso as tornasse suspeitas? Qualquer um que pense que os tiras acreditarão nisso deve estar completamente maluco.

        Ellery olhou pela janela e fez que sim com a cabeça.

        - Parece que estamos lidando com uma senhorita espertinha. Ela, deliberadamente, roubou peças que pertenciam às outras duas e deixou lá todos os artigos... inclusive o seu próprio. Deixou-os na cena do crime para espalhar suspeitas; ou melhor, distribuir a culpa. Sabia que ela e as outras duas seriam as suspeitas naturais. E, na verdade, as únicas viáveis. Desde que as três têm motivos idênticos, oportunidade e acesso à arma...

        - A não ser que tenha sido uma conspiração - o inspetor Queen murmurou. - As três perceberam que estavam no mesmo barco e decidiram acabar com Benedict.

        - Nesse caso, não teriam deixado pistas que indiciassem elas mesmas - Ellery respondeu. - Não. Acho que foi apenas uma delas.

        - Mas não está satisfeito.

        - Bem, não. Não estou.

        - O que o está perturbando?

        - Tudo.

        - E outra coisa - o inspetor falou. - Por que eu o deixei me convencer a ajudar Newby a encontrar essa tal de Laura? Deus sabe o montão de casos que tenho para resolver! E imagine se a encontrarmos... O que acontecerá? Não sei como ela poderia estar implicada.

        - Talvez Johnny tenha dito a ela alguma coisa.

        - Que coisa? Fale claramente com um velho ingênuo.

        - Não leva jeito para comediante, pai. Ela tem que ser encontrada. Não deve ser difícil. Eles devem ter sido vistos juntos, em público. Marsh pode lhe contar quais os lugares favoritos de Johnny.

        - Newby também me pediu para investigar as vidas das três ex-esposas - o inspetor grunhiu.

        - É um favor. Algum dia, Anse poderá retribuir, ajudando-o num homicídio, em Manhattan.

        - Filho, você é que é um cômico incompetente.

        Depois disso, os dois ficaram em silêncio.

        Mas não durante muito tempo. Dez minutos depois de saírem do Aeroporto Kennedy, Ellery disse, de repente, como se os dois não tivessem parado de conversar:

        - Naturalmente, tudo isso é porque estamos nos baseando na hipótese de Johnny ter sido assassinado por Marcia, Audrey ou Alice. Mas imagine se não tiver sido assim.

        - Imagine você - o pai respondeu. - O meu "imaginador" já está cansado. Quem mais poderia ter sido?

        - Não sei.

        - Marsh? Ele é rico e independente. E, se estivesse com problemas financeiros, não ganharia nada com os testamentos de Benedict. Era o advogado pessoal de Johnny, seu confidente e melhor amigo... que motivos teria Marsh para estourar os miolos de Benedict?

        - Já lhe disse: não sei. Mas sabemos que ele teve a mesma oportunidade e o mesmo acesso à arma que as três mulheres. Apenas não tem os mesmos motivos delas, para ser um suspeito. Se vai dar uma ajuda a Newby, papai, sugiro que investigue a vida de Marsh e veja se descobre um motivo para ele. Meu instinto me diz que o motivo pode ser uma mulher.

        - Laura?

        Ellery olhou pela janela.

        - Adoro o modo como percebe as coisas - o pai disse, afundando-se no banco. - Há alguma outra coisinha?

        - Sim. - Ellery franziu o nariz. - E esta faz com que eu me sinta num rodamoinho.

        - Está brincando! Deixe-me entrar nele.

        - Leslie Carpenter. É uma possibilidade contra dez mil, mas verifique o álibi dela para a noite do último sábado.

        Assim, por coincidência, quando as férias dos Queen terminaram, começou um dos mais misteriosos casos de Ellery.

 

        WRIGHTSVILLE, 9 de abril (API) - A busca nacional de "Laura Doe" fez com que aparecessem 48 mulheres com esse nome. Todas elas dizem ser a misteriosa noiva desaparecida do falecido John Levering Benedict III, milionário playboy assassinado na noite de 28 para 29 de março em sua fazenda da Nova Inglaterra.

        Anselm Newby, chefe de polícia de Wrightsville, onde o crime aconteceu, acredita que está havendo um mal-entendido por parte do público. "Doe é um nome dado pela lei às pessoas cujo sobrenome é desconhecido", o chefe Newby afirmou, em comunicado distribuído hoje. "Não sabemos o sobrenome da Laura desaparecida. Certamente, não é Doe. Se fosse, seria um milagre."

 

        Extrato de uma transcrição do Departamento de Polícia de Nova York:

        Sargento Thomas Velie: Qual é o seu nome?

        Entrevistada: Laura-Lou Loverly.

        Sarg. V.: Como?

        E.: Eu, antigamente, era Podolsky. Mas, agora, sou Loverly.

        Sarg. V.: Endereço?

        E.: Aquele enorme edifício de apartamentos na Rua 73 Oeste, esquina com avenida Amsterdam. Nunca consigo lembrar o número.

        Sarg. V.: Mais alguma coisa?

        E.: O quê?

        Sarg. V.: O endereço fica em Nova York?

        E.: Onde mais poderia ficar?

        Sarg. V.: Na sua carta, você diz ser a Laura com quem John Levering Benedict III prometeu casar-se. Diga-me como isso aconteceu, srta. Podolsky.

        E.: Loverly. Percebeu como meu sobrenome é parecido com Levering?

        Sarg. V.: Há quanto tempo vem se chamando de Loverly?

        E.: Há muito tempo. Não se preocupe.

        Sarg. V.: Desde quando?

        E.: Antes de encontrar o tal de John.

        Sarg. V.: Está bem. Como se encontraram?

        E.: Bem, naquela noite, eu estava no meu apartamento, sabe?

        Sarg. V.: Fazendo o quê?

        E.: O que os Johns geralmente fazem com uma garota, num apartamento?

        Sarg. V.: Você é que deve me dizer.

        E.: Não pense que me impressiono com o seu tom de voz, sargento. Não pode falar comigo assim.

        Sarg. V.: Como ele foi parar no seu apartamento?

        E.: Uma garota pode ter amizade com várias pessoas, não pode? John me telefonou. Marcamos um encontro.

        Sarg. V.: Ele se identificou como John Levering Benedict III?

        E.: Está brincando? Quem liga para nomes, no ambiente que freqüento?

        Sarg. V.: Como ele conseguiu o número do seu telefone?

        E.: Temos amigos em comum.

        Sarg. V.: Quem, por exemplo?

        E.: Oh, não. Você não entendeu... Não tem cérebro? Não vou meter meus amigos em confusões.

        Sarg. V.: Está bem. Descreva esse Johnny.

        E.: Vestido?

        Sarg. V.: Não estou interessado na roupa dele. Quero a cor dos olhos, do cabelo, a altura, o peso, o tipo de corpo, cicatrizes, marcas de nascença.

        E.: Para dizer a verdade, acho que vai ser difícil. Com todos esses amigos que tenho... não consigo me lembrar dele. Mas era o tal de John, acredite em mim. Reconheci-o imediatamente nas fotos dos jornais. Olhe, sargento, ele estava um pouco bêbado naquela noite. Daí, queria saber... todos eles querem... como eu entrei nessa vida. Eu lhe contei a história de sempre. Ele começou a chorar no meu peito. "Oh, pobre criança", ele disse, "que vida terrível. Você merece coisa melhor. Todas as garotas merecem. Sabe de uma coisa, Laura Lou? Vou casar com você." Exatamente assim, para me ajudar. Eu não o levei a sério, você sabe. Até que li...

        Sarg. V.: Data?

        E.: O quê?

        Sarg. V.: Em que dia ele fez essa proposta de casamento?

        E.: Eu anotei em algum lugar da minha agenda. Aqui. Vê? Dia 22 de março.

        Sarg. V.: Não. Não posso tocar na sua agenda. Pode me mostrar de longe. Foi no dia 22 de março deste ano, srta. Podolsky... quero dizer, Loverly?

        E.: Claro que foi deste ano.

        Sarg. V.: Obrigado. Não nos procure. Nós a procuraremos.

        E.: Está me botando para fora? Assim, sem mais nem menos? O que pensa que eu sou?

        Sarg. V.: Mais uma prostituta mentirosa, irmã. Devia cobrar de você, por ter feito um empregado público perder tempo. No dia 22 de março, o sr. Benedict estava na Inglaterra, em Londres. A saída é por ali.

 

        Vincentine Astor? Ela não trabalha mais aqui. Não aparece há muito tempo. É assim que essas donas são. Não mandou nenhum postal. Se eu dependesse dela, estava perdido. As melhores são as casadas, que estão sustentando os maridos e alguns filhos, e não podem largar o negócio. Por que ela saiu? Como posso saber? Quem sabe por que elas fazem as coisas? Talvez não tivesse gostado da cor do quarto. Não, eu não me lembro dele. Não pela fotografia. Claro que vi outras fotos dele. Nos jornais, na TV. Sei que ele veio ao meu clube algumas vezes, não estou negando nada. Só disse que não me lembro de tê-lo visto. Do que você está falando? Não sei. Oh, está querendo dizer que Vincentine pode ter abandonado o emprego por algo melhor? Olhe, sargento, eu tenho um clube limpo aqui, e não sei nada sobre assassinatos. O quê? Quando ela parou de vir aqui? Espere um minuto, vou dar uma olhada. Sim, aqui está. Ela me deixou no domingo, dia 29 de março. Sim, sim, o endereço da casa dela. Aqui. Diga-me, sargento, conhece uma dona competente que esteja procurando emprego? De confiança?

        - Não. A srta. Astor mudou no fim do mês. Agora, deixe ver: foi no dia 31. Sim, senhor, pagou tudo no dia em que partiu. Não, estes aqui são mobiliados, ela não teve que transportar nada. Só arrumou as malas e chamou um táxi. Não, não sei nada sobre sua vida particular. Não meto o nariz na vida dos meus inquilinos, como muita gente por aí costuma fazer. Desde que sejam pessoas tranqüilas... Não chame a minha casa de nenhum nome feio! Eu nunca vi o tal homem aqui. A descrição parece familiar. Diga, esse não é o playboy que... ? Bem, eu nunca... Vou ver. Não, ela não deixou nenhum endereço. Isso não tem importância, porque não receberei nenhuma carta. Como aquela garota se envolveu com ele?

 

        Resumo de entrevista, Departamento de Polícia de Nova York:

        Detetive Piggott: Nome, senhora?

        Entrevistada: Senhorita.

        Det. P.: Senhorita o quê?

        E.: Laura De Puyster Van Der Kuyper.

        Det. P.: Espere um momento. É tudo uma palavra só ou... ?

        E.: De Puyster. Van Der Kuyper. P-u-y. K-u-y.

        Det. P.: Sim, senhora. Endereço?

        E.: Não.

        Det. P.: Como?

        E.: Eu não tenho que lhe dizer onde moro. Nunca dei essa informação a ninguém. Uma moça precisa se proteger.

        Det. P.: Srta. Kuyper...

        E.: Srta. Van Der Kuyper.

        Det. P.: Srta. Van Der Kuyper. Preciso colocar o seu endereço neste relatório. É o regulamento.

        E.: Não é o meu regulamento. Você diz que é oficial de polícia...

        Det. P.: E o que mais eu poderia ser, sentado nesta mesa, numa delegacia, lhe fazendo perguntas?

        E.: Já ouvi esse tipo de conversinha antes. É assim que eles conseguem entrar no apartamento e atacar as pessoas.

        Det. P.: Se foi atacada, srta. Van Der Kuyper, deve reclamar em outro departamento.

        E.: Não vou lhe contar nada sobre isso. Nem a ninguém. Gostaria que eu contasse, não é? Que aparecesse nessa imprensa suja.

        Det. P.: Idade?

        E.: Pode colocar que sou maior de vinte e um anos.

        Det. P. (ia começar a falar, mas muda de idéia e escreve "acima de cinqüenta"): Olhe, srta. Van Der Kuyper, recebemos esta comunicação confidencial em que nos diz que conhecia John L. Benedict III e que a senhora é a Laura à qual ele propôs casamento. Correto?

        E.: Absolutamente correto.

        Det. P.: Há quanto tempo conhecia John L. Benedict III?

        E.: Há anos e anos. Verdade.

        Det. P.: Poderia ser mais exata, srta. Van Der Kuyper?

        E.: Exata sobre o quê?

        Det. P.: Sobre o tempo que o conhecia?

        E.: Há tempo no paraíso? Os nossos planos de casamento foram feitos no paraíso. Não tenho vergonha de contar a nossa afeição ao mundo. Encontramo-nos num jardim persa, secreto.

        Det. P.: Onde? Onde?

        E.: Não está bem claro, na minha memória. Aquela noite suave e imoral... imortal. A lua era grande. Havia perfumes de flores, jasmins e rosas, e o divino perfume de canela, anis e tomilho.

        Det. P.: Sim, senhora. Disse que esse jardim secreto era na Pérsia? Em que parte da Pérsia?

        E.: Pérsia?

        Det. P.: Acho que já chega, srta. Van Der Kuyper. Ótimo. Está tudo bem. Naturalmente que a chamaremos no momento adequado. Não, senhora, este é o nosso trabalho. Por gentileza, a saída é por ali.

 

        - Você disse que quer os formulários de viagem de quando? Terça, 31 de março? Espere um minuto. Ei, Schlockie, preciso falar com você. Olhe, sargento, se me der alguns segundos... Só temos problemas por aqui.

        - Oh, diga, está verificando a poluição do ar aqui? Lamento, sargento, a vida não vale a pena, se a gente não passar por bobo de vez em quando. Desculpe-me. Sim. Certamente. Terça, 31 de março. Aqui está. Joseph Levine. Quer o número da licença dele? Pegou um passageiro no endereço acima às dez e trinta e quatro e o levou até a estação. Não, Joe só vem aqui depois das quinze para as cinco, esta tarde. De nada. Estou sempre às ordens, para prestar um favor à polícia.

 

        Finalmente, há a história de Washington, onde os boatos estão engrossando cada vez mais. Dizem que o Congresso pode formar uma subcomissão para investigar a misteriosa Laura, no assassinato de John Benedict. Alega-se que não existe Laura nenhuma, nem nunca existiu. Que ela não passa de um produto da imaginação de algum agente de imprensa, que está conspirando para promover algum filme ou seriado de televisão. Isso constitui fraude que prejudica a inocência do público. Há uma preocupação sincera por parte dos legisladores da nação que, obviamente, não têm nada mais importante a fazer. Boa noite. Chuck.

 

        Meu querido amigo. Conheci Johnny-B, assim como muitos outros homens... Apesar de Al Marsh não ter a educação elementar para me convidar para o funeral, juro pela minha honra, e pode mandar imprimir isso. Quando Johnny escreveu aquela cláusula sobre a "Laura" e outra, dizendo que ia casar com ela, ele estava, simplesmente, querendo pular fora daquele seu mundo sujo. Disse-me, em absoluto segredo, que já estava cheio do casamento. Foi logo depois do seu desaparecimento final, naquela cidade do interior... qual é mesmo o nome? Titusville? Dwightsville? Bem, algum nome diferente e maravilhoso como estes. "Muzzie", Johnny me disse, "aqui entre nós: daqui para a frente não haverá mais marchas nupciais para Johnny-B. Estarei completamente fora do altar, livre." Foram estas suas palavras exatas. E pode me citar como fonte. Não, não é Mussie. Muzzie, com dois z.

 

        A alta sociedade continua cheia de boatos sobre a tragédia de Johnny Benedict. Dificilmente surge outro assunto de conversa entre a gente fina, há muitas, semanas. Todos querem saber quem é Laura... Laura agora é conhecida entre os amigos de Johnny-B como "a última mulher da sua vida". O mais misterioso é que ninguém se lembra de uma mulher chamada Laura, no círculo de amizades de Johnny... Esta coluna agora pode revelar que Jackie...

 

        - Sim, sou Levine. Joseph W. Quanto deu a conta? Como, diabos, espera que eu lembre de uma moça que peguei sabe Deus onde? Eu sei, eu sei, posso procurar a data no relatório de viagens. Está bem. Ela era uma loura platinada grandona. Mas não imagina quantas moças como essa tomam táxis todos os dias, em Nova York. Olhe, Mac, gostaria de poder ajudar. Lembro de três em dez contas até a estação. E tem mais: eu os deixo na entrada, pego outro passageiro e vou embora. Se começam a me contar suas vidas e por que estão deixando Nova York, paro de prestar atenção, não ouço nada. Devia me preocupar por estarem partindo ou chegando? Lamento, sargento, sou muito distraído. Deixe-me lhe dizer algo em segredo. Acho que a polícia, atualmente, não está sendo violenta o suficiente. Alguns dos passageiros que eu levo têm uma aparência muito suspeita. Podem me estourar os miolos com uma barra de ferro. Obrigado? De quê? Eu lhe disse alguma coisa?

 

        - Olhe, Sidney, devemos ficar de boca fechada sobre o caso Benedict. Ordens expressas do inspetor Queen. Sei que lhe devo isso. Está bem, pelo amor de Deus, proteja a sua fonte. Não conseguimos encontrar a tal de Vincentine Astor. Só sabemos que, por coincidência, ela largou o emprego no Clube de Garotas e Rapazes no dia 29 de março. Não, estou lhe dizendo, Vincentine Astor não está sendo procurada, a não ser por questão de rotina, para o interrogatório. Não temos nenhuma prova de que Benedict a conhecesse. Sim, sabemos que visitou o Clube de Garotas e Rapazes uma porção de vezes, nos últimos meses. Ele deve ter encontrado a tal Vincentine só no clube. O boato geral, por aqui, é o seguinte: ela saiu do clube e deixou a cidade, dois dias depois, mas não teve nada a ver com Benedict. Vou lhe dar mais uma informaçãozinha, Sidney; depois, tenho que ir embora: os superiores estão loucos da vida porque o inspetor Queen se envolveu nesse caso, envolvendo também Nova York. Não queriam que ele ajudasse o chefe de polícia daquela cidade do interior. Será que ele não vê que já temos dores de cabeça suficientes, por aqui? Quem? Não, não vi Ellery. Acho que ele também ouviu os boatos e não quer que o seu velho fique em situação ainda pior do que a atual.

 

        MEMORANDUM Para: Inspetor Richard Queen, Departamento de Polícia de Nova York.

        De: Anselm Newby, chefe de polícia de Wrightsville.

        Desejaria poder lhe dar boas notícias, mas não as tenho.

        As únicas impressões digitais encontradas no quarto de Benedict pertencem a ele mesmo, a Morris Hunker e Annie Findlay. Todas elas tinham razões perfeitas para estarem lá. As manchas no robe e no pijama de Benedict, assim como no quarto, são todas do seu próprio tipo de sangue. A arma do crime é um trabalho pesado de solda e, normalmente, não recebe bem as impressões digitais. Os nossos técnicos dizem isso. Mas eles também têm motivos para acreditar que a arma foi limpa. Não apareceu nenhum suspeito nas proximidades da fazenda de Benedict, na noite do crime. Os interrogatórios detalhados não completaram os relatórios preliminares. A morte foi, definitivamente, causada por uma batida na cabeça. Não há sinais de tóxicos nos órgãos internos, a não ser o álcool ingerido por Benedict, na forma de drinques, antes de ir dormir. Acho que é só. Espero que esteja tendo melhor sorte.

                        Anselm Newby, Chefe de Polícia.

        P.S. Conseguiu encontrar Laura? O que Ellery diz? Não tive mais notícias de vocês dois, desde que partiram de Wrightsville.

  1. N.

        Anexos: cópias das impressões digitais, análise das manchas de sangue e relatórios da autópsia.

 

        MEMORANDUM Para: Chefe A. Newby, Wrightsville.

        De: R. Queen, inspetor, Departamento de Polícia de Nova York.

        Lamento dizer que as investigações sobre Laura não chegaram a nenhuma conclusão.

        Vamos continuar com elas, mas naturalmente compreende que temos nossos próprios casos, que são muitos, e terão prioridade sobre a nossa assistência de cortesia ao assassinato de Wrightsville.

        Ellery conversou bem pouco comigo sobre o caso. Acho que está atolado em trabalho, como todos nós.

  1. Queen - Inspetor.

                        Departamento de Polícia de Nova York.

 

        MEMORANDUM Para: Inspetor Richard Queen, Departamento de Polícia de Nova York.

        De: Anselm Newby, chefe de polícia, Wrightsville.

        Compreendo a sua posição, no caso Benedict. Lamento que as suas férias o tenham envolvido, juntamente com seu filho, em tudo isso. A gentileza em ajudar-nos, na verdade, partiu do seu filho.

        Se está muito cheio de trabalho e incapaz de auxiliar um colega na investigação da morte de um preeminente multimilionário de Manhattan e playboy internacional, escreva-me dizendo isso, e eu escreverei pessoalmente ao seu superior imediato. Tirarei você e o Departamento de Polícia de Nova York da forca.

        Nesse caso, apreciaria que nos enviasse todos os relatórios que já conseguiu, de preferência os originais, principalmente os relatórios sobre Audrey Weston, Marcia Kemp e Al Marsh.

        Agradeço muito o seu auxílio.

  1. Newby, Chefe, Wrightsville.

                        Departamento de Polícia.

 

        MEMORANDUM Para: Chefe Anselm Newby, Wrightsville, Departamento de Polícia.

        De: R. Queen, inspetor, Departamento de Polícia de Nova York.

        Não escrevi nada em minha última carta para lhe dar a impressão de que não manteria minha promessa. Disse-lhe, simplesmente, que não tenho muito tempo nem homens para colocar à disposição deste caso, desde que o homicídio não ocorreu na jurisdição direta do Departamento de Polícia de Nova York.

        Mostrei seu memorandum aos meus superiores e eles permitiram que eu e minha equipe continuemos a lhe dar assistência no caso Benedict, principalmente porque certas ramificações do acontecimento vêm direto a Nova York e duas das três principais suspeitas residem aqui.

        Por questão de rotina, verificamos o que Leslie Carpenter fez na noite de sábado para domingo, 28 para 29 de março. Ela tem um álibi para o período de tempo em que ocorreu o crime. Estava em Washington, desde a noite de sexta-feira, dia 27, onde foi assistir aos dois dias de conferências sobre "Assistência Social Urbana". Há testemunhas de todas as horas da srta. Carpenter lá.

        Não há nada a dizer sobre Audrey Weston e Marcia Kemp. Ambas estão em seus apartamentos, em Manhattan. Se procuraram um advogado para abrir um processo contra o testamento, nós não tivemos nenhuma informação. Acho que também não há nada sobre isso, do seu lado, em relação a Alice Tierney.

        Logo lhe enviarei os relatórios sobre Al Marsh. Lembranças.

                        Richard Queen - Inspetor.

                        Departamento de Polícia de Nova York.

 

        - Sobre Marsh? - Ellery disse, do outro lado da mesa.

        O inspetor Queen ignorou a mão do filho, que se estendia para pegar um papel sobre sua escrivaninha.

        - Pode olhar isso mais tarde. Não há nada que não saiba sobre o assunto. Nunca mencionou que Al não é o nome verdadeiro dele.

        - Nunca mencionei porque, se você fosse amigo de Al nos tempos da universidade, logo ficaria condicionado a não fazer isso. Acho que ele odiava o nome de Aubrey. Qualquer um que chamasse Al de Aubrey acabava com o nariz ensangüentado.

        - De acordo com uma fonte de informação - o inspetor disse -, o nome Aubrey foi idéia da mãe dele. Não posso culpá-lo. Seria horrível viver amarrado a um nome desses.

        - Al certa vez disse-me que, quando ele estava na escola pré-primária... uma escola particular, naturalmente... era um garoto muito triste. Teve que bater em todos os coleguinhas, antes de conseguir que o chamassem de Al. Diziam que Al era apelido de Albert, Alfred e até Aloysius, mas não servia para o nome dele.

        - Os antepassados devem ter se remexido no túmulo.

        - Quando ele entrou na universidade, era grande demais para que alguém tentasse fazer gracinhas. Ganhou todas as competições de braço-de-ferro. Duvido que alguém soubesse que o nome dele era Aubrey. A não ser os amigos mais íntimos. E esses eram sensíveis o suficiente para não tocarem no assunto. Nunca soube nada sobre sua família. Al quase não falava sobre ela.

        O inspetor revirou alguns papéis.

        - O pai dele veio de uma linhagem de banqueiros internacionais da alta sociedade. Dizem que a mãe era uma Rushington, mas não sei o que isso significa. O pai foi morto num acidente com o avião particular, logo depois de Al nascer.

        - Isso talvez explique alguma coisa - Ellery disse. - Ele costumava falar o tempo todo da mãe. Nunca do pai.

        - A sra. Marsh não se casou novamente. Entretanto, era bem jovem quando o marido morreu. Devotou o resto da vida a Aubrey. Quando ficou paralítica, ele tinha voltado do exército e cuidou dela. Dizem os amigos que, por isso, Al nunca se casou. Quando a mãe morreu, ele já era um solteirão convicto.

        - A mãe deixou tudo para ele, naturalmente.

        - Claro. Que mais podia fazer?

        - Quanto?

        - Milhões. Marsh não é tão rico como Benedict, mas, depois dos primeiros milhões, não há grande diferença.

        - Então, Al está bem de finanças?

        - Como o Chase Manhattan Bank.

        - Sem problemas? Não joga? Não fez investimentos errados? Nada desse tipo?

        - Não. Ele é bastante conservador em relação a dinheiro. Não joga nunca.

        - Então, não há nenhum motivo?

        - Nenhum! Ele não ganhou nada com nenhum dos testamentos de Benedict. Não precisaria disso. Todas as nossas fontes de informação o apontam como um advogado de renome e ótima reputação, cheio de honestidade pessoal e competência profissional.

        Ellery insistiu:

        - Esse tipo de conclusão depende do tipo de fonte que usou. Já investigou como ele estava conduzindo os negócios de Johnny?

        - Sim. E até onde chegamos, é a honestidade em pessoa. Não podemos ter certeza de tudo, naturalmente. Pode haver planos, na cabeça dele, para pôr as mãos no dinheiro de Benedict. Mas, para isso, teria que ter um motivo financeiro. E temos certeza absoluta de que Marsh não tem preocupações desse tipo. A maior parte do capital de Benedict está com a Administradora Brown, Brown, Mattawan, Brown e Loring. É uma empresa muito antiga. Não há nada com Marsh.

        - E as mulheres?

        - O que há com elas?

        - Que acha da possibilidade de uma rivalidade romântica?

        - Nada. Escavamos muito e tudo indica que Marsh nunca se envolveu com nenhuma das garotas de Benedict. Só tinha contato legal com elas quando o amigo desejava pagar uma moça ou fazer algum acordo, depois de se cansar dela.

        - E as ex-esposas?

        O inspetor Queen sacudiu a cabeça.

        - Nada também. Marsh só as conheceu através de Benedict, com exceção da Kemp. Mas seus contatos com ela foram estritamente dentro do papel de advogado de Johnny. Marsh gosta de mulheres do tipo oposto às de Johnny. Prefere as mais femininas.

        Ellery sorriu.

        - Ele, certa vez, mostrou-me uma foto da mãe. Ela era baixa, do tipo bem feminino.

        O pai franziu as sobrancelhas.

        - Quer sair do meu escritório e me deixar continuar com o meu trabalho? - O inspetor tinha um senso de moralidade antiquado. Qualquer insinuação de um relacionamento doentio entre mãe e filho o deixava aborrecido.

        Quando Ellery estava abrindo a porta, o velho disse:

        - Aonde você vai, agora?

        - Lembrei-me de algo que queria perguntar a Al. Sobre Johnny. Depois lhe conto.

 

        - O sr. Marsh está ocupado com um cliente - disse a srta. Smith - e não pode ser interrompido de modo algum. Além disso, ele não fala com ninguém, a não ser com hora marcada. - O olhar hostil dela sugeria que a presença de Ellery ali não era bem recebida. Ou será que estaria agindo assim simplesmente por motivos profissionais? Seu tom de voz era tão agressivo, que poderia tê-lo chamado de porco, ali, com a maior facilidade, transformando esta numa palavra obscena. Claro que aquela moça era filha de uma mãe vitoriana. Não tinha sutilezas, quando se tratava de expressar o seu desagrado.

        O sr. Queen, que sempre procurava parecer um- cavalheiro, na presença de senhoras, engoliu uma porção de palavrões. Depois, com uma polidez exagerada, perguntou à srta. Smith se não poderia levar um bilhete a Marsh, avisando-o da sua presença.

        Srta. Smith: Não posso fazer isso.

        Sr. Queen: Está me espantando, srta. Smith. Pode ser que não queira fazer isso. Ou que não vá fazer isso. Mas que não possa... Não parece estar impossibilitada de andar... nem está com as faculdades mentais perturbadas. Pelo menos, é o que eu acredito.

        Srta. Smith: Pode continuar. Pensa que é muito esperto. É o tipo de pessoa que gosta de ridicularizar os outros.

        Sr. Queen: Não sou nada desse tipo. Acho que, simplesmente, é meu dever esclarecer suas dúvidas sobre retórica e não a deixar construir frases erradas.

        Srta. Smith: Deve se divertir muito quando ouve os comerciais de TV e rádio, que nada mais fazem do que poluir o idioma.

        Sr. Queen: Srta. Smith, que maravilha! Que incrível senso de humor! Agora, levará o bilhete a Al, como lhe pedi?

        Srta. Smith: Está pegando no meu pé!

        Sr. Queen: Não. Mas será que posso? Devo dizer que admirei muito as suas pernas, srta. Smith, desde o momento em que coloquei os olhos nelas. Ah, está rindo! Vamos adiante. E o bilhete?

        Al Marsh entrou e olhou, confuso, para a secretária.

        - A srta. Smith está toda corada, Ellery. Será charme ou uma emergência?

        - Acho que nem um nem outro. É que eu queria lhe perguntar algo sobre Johnny. Não demoro mais do que um minuto...

        - Não tenho um minuto. O velho lá no meu escritório não vai gostar. Ele acha indelicado deixar um homem da idade dele esperando. Tem noventa anos. Que tal nos encontrarmos em minha casa? Às sete? Para o jantar. Ou será que tem outros planos? Louis era o cozinheiro do Le Pavillon. A srta. Smith lhe dará o meu endereço, se ainda não souber onde é.

 

        Era um duplex de cobertura, perto de Sutton Place. Ficava bem acima da poluição da cidade. - Apesar de a primavera ainda não ter começado, Ellery sentiu-se maravilhosamente bem. Um mordomo chamado Estéban introduziu-o num ambiente amplo, decorado com lambris de carvalho, ferros espanhóis, veludo, cobre e bronze. O aposento tinha teto baixo e estava todo enfeitado com troféus de caça e armas. Enquanto esperava Marsh, Ellery deu uma voltinha por ali, fazendo uma avaliação da fortuna do homem.

        Não havia nenhum traço de modernismo, naquele apartamento. Podia ter vindo diretamente de um clube masculino do século XIX. Da sala de estar, dava para ver uma pequena sala de ginástica, com pesos, bicicleta fixa, barras paralelas, um saco de socos e todos os equipamentos para um atleta envelhecido. Podia-se esperar aquilo do homem de Marlboro. Mas haveria surpresas.

        Numa parede baixa estavam embutidos o equipamento de som e uma enorme coleção de discos e cassetes. Havia muitos Tchaikovsky e Beethoven, assim como compositores românticos, que não combinavam com a personalidade de Marsh. O toca-discos tocava a ária do Príncipe Gremin, da ópera "Eugene Onegin". Ellery reconheceu o baixo Chaliapin, cuja voz potente e máscula era uma das principais características daquela gravação.

        Uma estante com portas de vidro continha edições raras americanas, francesas e inglesas: Melville, Rimbaud, Verlaine, Henry James, Proust, Wilde, Walt Whitman, Gide, Christopher Marlowe e outros gigantes da literatura. Aquelas edições fizeram Ellery se coçar de inveja. Havia também livros raros de arte, enormes, ilustrados com pinturas e esculturas, principalmente das obras de Da Vinci e Michelangelo. Na parede, nichos com os bustos de figuras históricas que, evidentemente, Marsh admirava: Sócrates, Platão, Alexandre, Júlio César, Virgílio, Horácio, Frederico, o Grande, Lord Kitchener, Lawrence da Arábia e Wilhelm von Humboldt.

        - Vejo que está admirando os meus tesouros - Marsh disse, desligando o estéreo. - Lamento tê-lo feito esperar, mas o velho não me largou a tarde inteira. Quer um drinque? - Tinha trocado as roupas de trabalho por um terno simples e uma camisa de seda aberta no colarinho.

        - Aceito um bourbon.

        - Não gosta do legítimo escocês?

        - Uma vez, fiquei bêbado com ele. Desde então, não posso sentir nem o cheiro.

        Marsh foi até o bar e começou a agir como um barman experiente.

        - Você? Ficou bêbado?

        - Sim. Está fazendo isso parecer um pecado mortal. Eu quase morri.

        - Você? Por causa de alguma garota?

        - Claro. Não seria por causa de nenhum homem. O que pensa que eu sou, Al?

        - Bem, não sei. Aqui está o seu drinque.

        Marsh afundou-se numa cadeira, segurando o copo com uma mistura misteriosa.

        - Nunca pensei em você como um ser realmente humano, Ellery. Estou aliviado.

        - Obrigado. E eu invejo todas estas suas primeiras edições. Estou começando a pensar nas vantagens da riqueza.

        - Amém - Marsh falou. - Mas não apareceu hoje no meu escritório, nem aqui, esta noite, para admirar meus livros. O que está pensando?

        - Lembra-se daquela noite de sábado, em Wrightsville, Al?

        - Sim, ela ficou gravada com ácido na minha memória.

        - Como sabe, eu estive espionando perto do terraço, enquanto Johnny fazia aqueles discursos sobre suas intenções a respeito do novo testamento.

        - Sim?

        - Algo que o ouvi falar, naquela noite, está me atormentando. Não sei, exatamente, o que ele quis dizer, mas falou claramente que os três casamentos tinham sido exclusivamente por motivo de negócios. O que ele quis dizer com isso?

        Marsh colocou o cigarro mentolado no cinzeiro.

        - O testamento do pai dizia que Johnny deveria receber trezentos mil dólares por ano, como renda. Bem, não preciso lhe explicar que esta quantia não era suficiente para o nível de vida que ele apreciava.

        - Johnny desobedeceu ao testamento do pai?

        - Não podia. Mas contornou-o - Marsh deu de ombros. - Johnny me perguntou se algo podia ser feito para aumentar a quantia. Estudei o testamento do Benedict pai e descobri que nele havia uma brecha. Mais por brincadeira, mostrei-a a Johnny. Havia nele uma frase que podia provocar dupla interpretação. Uma interpretação com a qual o velho Benedict jamais havia sonhado.

        - Parece fascinante. O que era?

        - Uma das cláusulas do testamento dava a Johnny a soma de cinco milhões de dólares de renda, "quando o meu filho se casar".

        Ellery riu.

        - Claro que já percebeu. Johnny também entendeu logo. "Quando o meu filho se casar" podia ser entendido como "todas as vezes em que meu filho se casar"... Assim, todas as vezes em que ele se casasse, podia retirar mais cinco milhões de renda. Eu não estava falando a sério, quando lhe apontei aquela cláusula. Nunca sonhei que ele planejaria sua vida em cima daquilo. Mas foi o que fez. Insistiu em ir até os tribunais discutir o significado da palavra "quando". Uma atitude típica dele. E a corte concordou conosco. Assim, ele se atirou àquela série de casamentos, divórcios e novos casamentos.

        Ellery sacudiu a cabeça.

        - "Apenas negócios." Está certo. Os casamentos eram a chave do cofre. Outra chave, outra quantia.

        - Exatamente. Mas as mulheres não foram enganadas. Elas entenderam os motivos dele e sabiam o que podiam esperar. Devo dizer, Ellery, que sempre fui contra o procedimento de Johnny a respeito desses milhões de dólares. Também fui contra a mudança de idéia dele, a respeito das pensões das ex-esposas. - A mão grande de Marsh apertou o copo. - Acho que é uma bobagem da minha parte admitir isso, mas tive uma grande discussão com Johnny, para que não alterasse o testamento. Disse-lhe que seria um ato de má-fé, uma fuga, uma atitude sem ética, e não queria ter nada a ver com aquilo. No final, deixamos tudo em suspenso... quero dizer, a minha participação.

        - Quando a discussão aconteceu?

        - No avião, quando voltamos da Inglaterra, e ele, pela primeira vez, me expôs o seu plano.

        - Você parecia estar do lado de Johnny, naquela noite, Al. Tem certeza de que não está tentando me enganar?

        - Não estou. Johnny deixou bem claro, naquele fim de semana em Wrightsville, que, com o meu apoio ou não, ele faria aquilo. Mesmo que precisasse contratar outro advogado. Senti-me forçado a ajudá-lo. Conhecia Johnny desde a nossa adolescência... eu gostava daquele sujeito. E não podia defender abertamente aquelas três garotas que tinham feito acordos matrimoniais por dinheiro. No final, decidi ajudar Johnny. Ele sabia que eu faria isso. Entretanto, devo confessar que sinto uma certa, culpa, desde então.

        Ellery tomou sua bebida. Marsh levantou-se para colocar mais gelo no copo.

        - Está certo - Ellery falou, finalmente. Acho que é fácil fazer julgamentos de valor no vazio. I sobre esta Laura, que todos estão procurando. Não sabe mesmo quem é ela?

        - Não. Já estive pensando... junto com muitas outras pessoas. Acho que essa Laura só existia na imaginação fértil de Johnny. Entretanto, ele não faria uma doação, em testamento, a alguém imaginário, não é?

        - Ela existe, Al. Outra coisa. Como estavam as finanças de Johnny, na ocasião de sua morte?

        - Ele estava empobrecendo outra vez. Sabe, Johnny era o maior mão-aberta do mundo. Sempre teve complexo de culpa por herdar tanto dinheiro. Nunca negou nada a um amigo. Uma das suas últimas doações... foi típica... foi para a construção de uma fábrica de massa de tomate, em algum lugar de Maryland. Ali será produzido algo, segundo a receita da mulher de um amigo, que apareceu certa noite... necessitado... você nem vai acreditar nisso... em um sonho. Johnny testou a receita, achou-a divina e, logo depois de acordar, entregou oitocentos mil dólares. Quer saber mais uns casos deste tipo? Nós não conseguimos vender nada; a última vez que ouvi falar disso, Johnny estava dando o produto de presente, com prejuízo.

        - Quer dizer, Al, que ele estava pronto para outro casamento que lhe trouxesse mais cinco milhões de dólares? Há algum motivo para que essa Laura não fosse a número 4?

        - Bem, de acordo com as próprias palavras dele, pretendia se casar novamente, e certamente ia usar os cinco milhões. Tire as suas próprias conclusões.

        - Então, você acredita que toda aquela conversa sobre o grande romance com Laura era real ou pura imaginação?

        Marsh deu de ombros.

        - Gostaria de saber. É possível que ele tenha pensado que estava apaixonado, pela primeira vez na vida. Johnny ainda continuava, no fundo, um adolescente. Sim, Estéban?

        - Louis disse que o senhor e o convidado podem vir.

        - Meu Deus - Marsh levantou-se, depressa, parecendo contentíssimo. - Ellery, depressa, depressa.

        O jantar de Louis era digno do bom gosto de Marsh. Começou com caviar negro da Romênia e vodca Stolichnaya. A sopa foi uma petite marmite, servida com vinho Madeira Malmsey de 1868. Depois, Estéban trouxe quenelles com molho Nântua, acompanhadas de Montrachet Marquis de Laguiche 1966. O prato forte foi uma deliciosa noisette de veau sautée, servida com uma coroa de cogumelos ao ponto, que só podiam ter origem francesa. Ellery soube que as carnes tinham vindo de Paris, de avião, e haviam sido cortadas do modo apropriado, indicado por Louis. Sem dúvida, o cozinheiro não achava que os Estados Unidos pudessem oferecer os ingredientes dignos da sua competência.

        - Ele só reclama dos cozinheiros norte-americanos - Marsh explicou. - Diz que substituem as noisettes véritables por rins de vitela. Na verdade, Louis reclama de tudo que não seja francês.

        - Perdoe-o, Al - Ellery implorou. - Pelo menos, com este jantar, sei que ele entende do ofício.

        Com as noisettes vieram batatas, incrivelmente simples, um Château Haut Brion da safra de 1949, e uma salada romana. A seguir, foi servido um delicado queijo Brie (vindo diretamente do Fauchon, por via aérea) e um Château Cheval Blanc St. Emilion 1949. A sobremesa foi uma torta Dobos. Depois disso, Ellery decidiu que Bucareste merecia sua visita, na próxima viagem à Europa. Tomaram um sorvete de champanha e, finalmente, café expresso e um conhaque Monnet particular, de trinta e um anos.

        - Este foi um dos jantares mais leves de Louis - Marsh disse contente. - Entretanto, estava saboroso, muito ao meu gosto.

        - Vive la France! - Ellery murmurou.

 

        - É uma questão de orgulho profissional - o chefe Newby afirmou, recostando-se em sua cadeira e procurando um cigarro. - Aceita um?

        - Não estou fumando esta semana - Ellery falou. - O que quis dizer?

        - Nunca tive um homicídio assim importante. Detestaria não dar conta dele.

        - Sei como se sente.

        - Não sabe de nada, Ellery. Sou um policial do interior e, de repente, estou com esse caso nas mãos. Tenho que ficar preocupado. Sabe, estive pensando...

        - Está em boa companhia, Anse. O que pensou?

        - E se o motivo do crime de Benedict não estiver ligado às três esposas ou à mudança do testamento?

        - Sim?

        - Talvez não.

        - Anse - Ellery disse, severamente -, não gosto desse tipo de raciocínio; a não ser quando ele é meu.

        - Quero dizer: imagine se o motivo não tiver nada a ver com o testamento de Benedict.

        - Está bem. E daí?

        - Eu não sei.

        - Obrigado, chefe. Entrou para um grupo muito selecionado.

        - Não brinque. Pode haver alguma coisa.

        - Naturalmente. Mas o quê?

        - Não encontraram nada, em Nova York?

        - Não encontramos nada em lugar nenhum. O pessoal do papai não conseguiu descobrir nada na vida de Johnny que fosse motivo para alguém entrar na casa de Wrightsville e matá-lo. E os seus homens, Anse, não encontraram sinais de um desconhecido?

        - Não. Deve ter sido trabalho de alguém conhecido, ou um desconhecido que entrou e saiu sem deixar nenhuma pista. Continue, Ellery.

        - Continuar para onde? Já acabei. Ninguém. Nem mesmo uma hipótese. Durante algum tempo, procuramos em Las Vegas... possivelmente, alguém ligado a Marcia Kemp. Aqueles garotos do submundo, quando são contratados, não respeitam classe social... é a verdadeira democracia em ação. Entretanto, nos dias de hoje, eles parecem estar se afastando da violência. Não conseguimos nada. Não há nenhuma prova de que Johnny-B tivesse dívidas de jogo. Acredite-me, Anse: de acordo com uma fonte muito fidedigna, ele também não estava envolvido com a Máfia. Não há um toque profissional neste crime. O assassino contratado geralmente traz seu próprio equipamento. Certamente, não ia contar que o acaso lhe fornecesse uma estátua dos três macacos, para arrebentar os miolos da vítima.

        - Então, deve ter sido um trabalho de amador, por um motivo pessoal. Alguém que tivesse algo contra ele...

        - Já lhe disse, Anse: nada disso apareceu.

        - Não quer dizer que não exista.

        Ellery deu de ombros.

        - Tenho um assassino muito conveniente para casos como esse. Eu o tiro da minha cartola e apelidei-o de "O Homem dos Garfos Perdidos, de Iowa". Claro que pode existir, Anse. Tudo pode existir. Mas você e eu sabemos que a maior parte dos homicídios é cometida por alguma razão. Por mais esquisita e obscura que pareça. E o Homem dos Garfos Perdidos é sempre alguém ligado, direta ou indiretamente, à vítima. A razão do crime, para ele, é suficiente, imensa. O problema é encontrar o sujeito e o motivo. Você deve continuar com suas esperanças. Mais cedo ou mais tarde - de preferência, mais cedo - a sorte vai mudar.

        - Então, podemos ainda terminar naquelas três mulheres e no testamento - Newby grunhiu, saindo de uma nuvem de fumaça.

        - Não parece muito satisfeito...

        - Com essa teoria? É muito... por favor, não ria, Ellery! Muito danada de simples.

        - Quem está rindo?

        - Claro que você não veio aqui escondendo alguma coisa de mim, não?

        - Anse, - Ellery disse, levantando-se - pode me dar aquela chave agora?

        - Por que quer voltar à casa de Benedict?

        - Você não é o único que está atormentado. A chave, Anse.

        - Se não se importar, acho que lhe farei companhia.

        Newby levou Ellery em seu carro particular (para não chamar a atenção, explicou) até a propriedade de Benedict. Abriu a porta. Ellery entrou na frente, subiu correndo a escada e entrou no quarto de Benedict. Parecia esperar encontrar ali um milagre, uma resposta, pairando no ar.

        - Parece ter perdido alguma coisa, Ellery. O que é?

        - Gostaria de poder lhe dizer. - Estava olhando o quarto como se nunca o tivesse visto.

        - Quer dizer que não me disse? - Newby gritou.

        - Quero dizer que não sei o que é.

        - Dane-se, você! Pare de me responder por enigmas. Parece o livro de quebra-cabeças que a minha mãe tinha na sala.

        - Não estou enganando você, Anse. Na verdade, não sei. Trata-se de uma simples sensação, como a sua, de que as três mulheres e o testamento formam uma resposta fácil demais.

        - Mas que tipo de sensação?

        - Já a senti antes - Ellery disse, vagarosamente, percorrendo o quarto. - Muitas vezes, para dizer a verdade. - Evitou o contorno de giz, feito no chão, marcando o lugar onde o corpo de Benedict havia caído. - É uma sensação de que perdi algo.

        - Perdeu algo? - Newby virou-se, de repente, como se tivesse ouvido uma porta ser escancarada. - O quê?

        - Essa é a questão. O quê? Já escavei todo o meu cérebro, procurando, mas não achei. Decidi que, se voltasse à cena do crime, poderia descobrir o que era. - Parou perto da cama. - Aqui? - Olhou a mesinha de cabeceira. - Ali? - Olhou dentro dos armários. - Lá? - Olhou as janelas e o banheiro.

        - Está me deixando preocupado - Newby murmurou. - Por Deus, sinto-me como um garoto numa casa assombrada!

        - Gostaria que fosse algo assim tão comum - Ellery falou, rindo. - Não, Anse, não estou fingindo. Há alguma coisa aqui, alguma coisa que eu vi... algo que estou vendo. Oh, dane-se... pela minha vida, não consigo descobrir o que é. - Apontou a linha de giz, no chão. - Foi um golpe pesado, Johnny. - Sacudiu a cabeça, em direção a Newby. - Acabei aqui, Anse. Se você também terminou, podemos ir.

 

        O primeiro esclarecimento do caso aconteceu, como quase todos os esclarecimentos, através do trabalho cansativo e rotineiro da polícia.

        A equipe do inspetor Queen concentrara-se nas três esposas. Com a morte de Benedict e a mudança nas pensões delas, teriam que mudar suas vidas. Marcia Kemp e Audrey Weston viviam exclusivamente das pensões. O chefe Newby descobriu que Alice Tierney, pelo contrário, vivia com simplicidade, em Wrightsville, e tinha economizado uma grande quantia. A loura e a ruiva teriam que voltar a trabalhar. Audrey Weston começou a percorrer a Broadway, sem sucesso. A ex-corista ruiva de Las Vegas começou a percorrer os clubes noturnos de Manhattan, junto com seu agente. Procurava uma "reaparição" em algum lugar. Mas não conseguiu nada. Aparentemente, os tempos tinham mudado. Apesar da notoriedade dela, conseguida através do assassinato de Wrightsville, ninguém estava disposto a lhe abrir as portas douradas.

        A descoberta sobre Marcia Kemp surgiu durante uma investigação rotineira da polícia. Parecia significativa.

        Ellery só soube daquilo no domingo, dia 19 de abril. Quando levantou, naquela manhã, descobriu que o inspetor Queen o deixara sozinho no apartamento, com um bilhete, onde avisava ter ido até Center Street e sugeria que o encontrasse lá. Ellery saiu tão precipitadamente, que esqueceu de fazer seu breakfast dominical no Nova Scotia, com salmão, manteiga doce, queixo cremoso, fatias de cebolas doces espanholas e torradas, acompanhados de muito café.

        Encontrou o sargento Velie com o inspetor.

        - Diga a ele, Velie.

        - Acho que conseguimos alguma coisa, mestre - o gigantesco sargento disse. - Já ouviu falar de Bernie Faulks?

        - Não.

        - É um dos chefões do submundo. Um tipo que os outros chamam de Raposa, ou Raposinha, pois tem um talento especial para fugir da polícia. Já foi preso uma porção de vezes, com as mais variadas acusações: roubo à mão armada, assalto, estupro, assassinato durante uma tentativa de felonia, seqüestro armado... o que você quiser. Nunca cumpre a pena, porque, na hora H, a testemunha-chave não aparece. Este Faulks é o homem dos milagres. Nunca passou um dia atrás das grades.

        - E daí, Velie? - Ellery perguntou. - Acho que ele não é o único.

        - Daí - o sargento respondeu - que, quando estávamos investigando Marcia Kemp, como se tivéssemos alguma intuição, - o que, na verdade, não tivemos - atingimos um alvo. Sabe qual foi, mestre?

        - Pare de fazer suspense, Velie - o inspetor disse. Parecia cansado.

        - Não - Ellery falou. - O quê?

        - A garota Kemp e a Raposa Faulks... são casados.

        - Entendo - Ellery disse, sentando-se no braço rachado de uma cadeira que seu pai teimava em não jogar fora. - Desde quando?

        - Já estou bem à sua frente - o inspetor disse. - Gostaria muito de acusá-la de bigamia, mas ela só casou com Faulks depois de se divorciar de Benedict.

        - Como conseguiu essa informação, Velie?

        - Conseguimos uma cópia da certidão de casamento.

        - Bem - Ellery coçou o nariz, e o pai sabia que só fazia isso quando estava furioso -, isso joga uma nova luz sobre a srta. Kemp. E provoca as mais variadas perguntas sobre o sr. Faulks. Quando o casal feliz será interrogado?

        - Queria os dois aqui hoje - o inspetor disse -, mas o Raposa está fora da cidade. Vai voltar hoje à noite. Não é, Velie?

        - Foi o que a minha fonte disse.

        - Bem, então quero o sr. e a sra. Raposa aqui, no meu escritório, na segunda-feira, às nove da manhã.

 

        Às nove e cinco de segunda-feira, Ellery entrou no escritório do pai. Encontrou o inspetor, o sargento Velie (parecia zangado), Marsh (em toda a sua competência de executor do testamento de Benedict), uma Marcia Kemp trêmula (usando minissaia roxa e uma blusa justa, que acentuavam ainda mais suas proporções avantajadas) e um homem que ele não conhecia, mas, certamente, era a Raposa Faulks.

        Era mais jovem do que Ellery havia imaginado. Ou talvez apenas parecesse mais jovem. Tinha aquele tipo de rosto infantil que continua firme até os cinqüenta anos... e, do dia para a noite, envelhece. Sem dúvida, tratava-se de um homem bonito. Não era de admirar que Marcia tivesse se casado com ele. Lembrava um pouco um Rock Hudson jovem, só que estava vestido de modo espalhafatoso demais.

        - Conhece todos aqui, menos Faulks - o inspetor Queen disse. - Raposa, este aqui é o meu filho Ellery. Caso esteja interessado.

        - Oh, sim. É um grande prazer. - O Raposa não estendeu a mão, por medo ou orgulho. Tinha uma voz profunda, que sugeria intimidade. Ótima para um artista de filmes de sexo. Durante os poucos minutos seguintes, ele deu olhadelas furtivas ao indiferente Queen.

        - Estávamos discutindo o casamento da srta. Kemp com o sr. Faulks - o inspetor falou, recostando-se em sua velha cadeira. - Já percebeu, Ellery, que usei o nome de solteira dela? Foi a srta. Kemp quem preferiu assim. Não é, sra. Faulks... isto é, srta. Kemp?

        - Isso é comum no mundo artístico - a ruiva disse.. Estava corada. - Mas ainda não entendi... Bern, por que não diz alguma coisa?

        - Sim, benzinho. - O marido ainda estava em pé. Havia recusado a cadeira, como se estivesse se preparando para desaparecer dali. - Sim, inspetor. Nós não entendemos...

        - Por que eu chamei os dois aqui? - O inspetor riu feito um Lobo Mau. - Só por um motivo, sra. Faulks: por que não disse ao chefe Newby, em Wrightsville, quando ele a interrogou, que tinha se casado outra vez? Teria nos poupado um grande trabalho.

        - Eu não achei que isso tivesse algo a ver... bem... Johnny e tudo aquilo - a corista estava nervosa.

        - Não? Sr. Marsh, - o inspetor virou-se para o advogado - a sra. Faulks, como Marcia Kemp, tem recebido mil dólares por semana, de pensão, desde que se divorciou do sr. Benedict? E, se tem, ela está descontando os cheques ou os depositou, de acordo com as suas anotações?

        - Sim, ela tem gasto o dinheiro. Tenho nesta pasta todas as cópias das retiradas da srta. Kemp, que me foram enviadas pelo banco. Ela endossou os cheques como Marcia Kemp.

        - Esses cheques descontados cobrem o período em que está casada com Faulks?

        - Sim. Inclusive a semana da morte de Benedict.

        - Ela, por acaso, notificou Benedict, ou você, que é o advogado dele, de que ia se casar novamente? Ou de que já estava casada? Caso fizesse isso, o acordo dos mil dólares por semana seria interrompido, não é?

        - Ela não nos comunicou nada.

        - O que diz disso, sra. Faulks? De acordo com a legislação, este é um procedimento considerado fraudulento. Acho que o promotor público vai pensar do mesmo jeito, se Marsh decidir fazer uma acusação.

        - Posso interromper? - Faulks disse, educadamente, como se fosse um simples espectador. Marcia olhou-o, longamente, de modo perigoso. - Eu nunca vi aquele acordo. Naturalmente, não tinha nenhum modo de saber que Marcia estava aceitando uma pensão que era ilegal...

        Ela tossiu.

        - ...mas, compreenda, inspetor: minha esposa não sabe como lidar com esse tipo de coisa! Isto é, um advogado como o sr. Marsh... ela não teria cabeça para tentar enganá-lo. É mais provável que tenha esquecido sobre essa cláusula, quando se apaixonou por mim... hein, baby? - Ele lhe acariciou o pescoço, sorrindo. Ela se afastou e a mão dele ficou acariciando o vazio.

        - Precisa compreender, sr. Faulks - o inspetor disse -, que penso que o senhor, como marido, a levou a fazer isso. Deve notar que não há nenhuma taquígrafa presente. Nada disso está sendo gravado, e não foi acusado de nenhum crime. Nosso interesse principal é o assassinato de Benedict. Não estou fazendo promessas, mas, se ficar provado que o casamento de vocês não tem nada a ver com o homicídio, poderemos conversar depois sobre o dinheiro. O que acha, sr. Marsh?

        - Naturalmente, também não posso prometer nada. Certamente, não poderei deixar de fazer queixa sobre o dinheiro que a sra. Faulks recebeu do meu cliente, sob circunstâncias fraudulentas. Mas, na verdade, inspetor, minha preocupação maior é com o assassinato. A cooperação por parte da sra. Faulks certamente influenciará muito a minha atitude.

        - Quem você pensa que está enganado? - Marcia perguntou, com um tom de amargura na voz. - O que vai fazer? Tirar o dinheiro de mim, aos tostões, quando chegar a hora? Estou na miséria e não encontrei emprego. Meu marido também está falido. Não posso lhe devolver aquele dinheiro, nem mesmo que queira. Claro que pode atirar uma acusação qualquer em cima de mim. E, do jeito que as coisas estão... quem irá me defender? Também não estou me importando, se me acusarem. Bern conhece alguns advogados ótimos.

        - Por falar em Bern - Ellery disse -, onde ele estava na noite do crime?

        - Muito engraçado você perguntar isso - o marido de Marcia disse, naquela sua voz sexy. - Acontece que posso responder depressa como um coelho. Naquela noite, eu estava com mais seis sujeitos e fomos presos por estarmos promovendo um joguinho clandestino num hotel de Times Square. Não sei o que aqueles guardas idiotas estavam pensando: transformar um inocente joguinho de pôquer em algo grandioso! Sabe, estávamos apenas passando o tempo, como todos os sujeitos normais fazem na noite de sábado, com algumas cervejas, uns sanduíches...

        - Não estou interessado no cardápio - o inspetor Queen interrompeu. Trocou olhares com o sargento Velie, que se sentia aborrecido por não ter ainda verificado o álibi do Raposa. - Em que delegacia você foi parar?

        - Não sei o número. Fica do lado oeste, perto da rua 40.

        - Não sabe o número! Faulks, você sabe muito bem o número de todas as delegacias de Manhattan, muito melhor do que eu... passou a metade da sua vida nelas! Velie, o que está esperando? - O sargento sacudiu a cabeça e saiu do escritório. - O sargento foi fazer uma pequena verificação. Não se importa em esperar?

        Papai, papai, Ellery pensou, você ainda é uma das pessoas mais irônicas que conheço. Aquilo era uma causa perdida. Ele sabia disso, e sabia que o inspetor também sabia. O sr. Faulks transpirava confiança sem nervosismo. Entretanto, havia sinais de preocupação no rosto de sua esposa. Faulks acariciou a mão dela, que era muito maior que a dele. Marcia lhe disse algo, em voz baixa, e ele lhe fez um carinho no queixo.

        Quando o sargento voltou e cochichou com o inspetor, Ellery viu seus temores confirmados. O pai estava desapontado.

        - Está bem, Raposa. Pode sair com sua esposa. - Os dois se levantaram, tão depressa como antílopes perseguidos. - Oh, só mais uma coisa - o inspetor disse a eles: - Não quero que nenhum dos dois saia de Brooklyn, sem antes avisar ao meu escritório.

        - Ele foi preso à noite, como disse? - Ellery perguntou, depois que o casal saiu.

        - Sim - o sargento disse, tentando dar um tom de pouca importância ao episódio. - Parece que o tempo esquentou lá para os lados de Times Square, depois que um congressista deu uma entrevista na televisão. Parece que um de seus mais importantes cabos-eleitorais caiu nas mãos dos garotos do jogo e gritou por socorro. Aconteceu quando o senhor estava de férias, inspetor, e o caso ficou por conta da Divisão de Jogo. O Raposa foi apanhado no hotel. Os guardas invadiram o lugar e o encontraram, junto com seus amigos, fazendo um jogo pesado. Os seis ficaram detidos algumas horas na delegacia e depois foram liberados. Aconteceu entre a meia-noite e as duas da manhã. Ele não poderia ter ido a Wrightsville, nem num foguete.

        - Então, lá se vai a nossa pista - o inspetor disse, aborrecido. - Tanto trabalho para nada. Mesmo assim, Velie, diga a um dos seus homens para ficar de olho em Faulks. Não gosto do cheiro dele... é perigoso. Ellery, aonde vai?

        - Andar um pouco. Acho que a rua está menos movimentada do que aqui.

        - Quem envolveu quem em tudo isso? E de quem foi o amigo assassinado? - o pai perguntou, zangado. - Vá andar um pouco! E se for assaltado em algum beco, não volte chorando para mim!

 

        - Tem certeza, Barl? - Newby perguntou, apontando um relatório.

        - Você conhece o velho Hunker - o oficial Barlowe disse. - Acho que ele está escondido lá, chefe, tomando conta do lugar. Designe Morris. Se ele vir luzes acesas na casa, tarde da noite, pode ter certeza.

        - Não está faltando nada?

        - Não percebi nada.

        - Então, por que alguém iria lá, no meio da noite?

        O oficial Barlowe, da polícia de Wrightsville, achou que aquela era uma simples pergunta retórica e manteve a boca fechada.

        - Acho que eu mesmo vou até lá - Newby decidiu. - Enquanto isso, Barl, fique de olho aqui e conte aos outros.

        No dia seguinte, o chefe escreveu ao inspetor Queen:

        "Morris Hunker disse ter visto luzes na casa principal da propriedade de Benedict, na segunda-feira, dia 20 de abril, depois da meia-noite. O velho diz que foi verificar - ele é atrevido! -, mas, quando entrou na casa, as luzes tinham sido desligadas e não achou ninguém lá. Fui verificar pessoalmente e não encontrei provas de que algo tivesse sumido nem mudado de lugar. Pode ser que o velho Hunker tenha imaginado tudo isso. Ele já não tem a mente ágil como antigamente. Pensei muito, e achei melhor comunicar isso a vocês".

 

        - Ela quer me ver - Al Marsh disse ao telefone. - Naturalmente que vou encontrá-la. Pode estar presente, inspetor Queen?

        - Espere um momento. Ellery? Audrey Weston marcou um encontro com Marsh. Ela disse que tem algo importante para contar a ele, sobre o caso Benedict. Quer saber o que é?

        - Aquela mulher fatal? Claro que quero.

        - Ellery irá também - o inspetor disse ao telefone. - Convidou mais alguém, sr. Marsh?

        - Leslie Carpenter. Se diz respeito à herança, diz respeito a ela.

        - Quando será o encontro?

        - Quarta-feira, às duas e meia, no meu escritório.

        - Amanhã?

        - Sim.

        - Estaremos aí. - O inspetor desligou. - Não imagino o que aquela loira tem a dizer.

        - Estou contente por alguém ter algo a dizer - Ellery falou. - Esse caso está muito insatisfatório.

        O escritório de Marsh era na Park Row, num velho conjunto de edifícios luxuosos.

        Na primeira visita, Ellery tinha imaginado o interior daquela sala como algo digno do velho príncipe Alberto, com estofados de couro e tapetes verdes. Em vez disso, encontrou uma decoração moderna, funcional, em aço, iluminada com luzes indiretas. Um escritório prático. A srta. Smith estava lá, como sempre.

        - Estão no escritório do sr. Marsh esperando pelo senhor - ela disse.

        A única desculpa de Queen, pelo atraso, foi:

        - Como eles conseguiram chegar aqui na hora? Pela rua B-52? - E se deixou conduzir ao escritório de Marsh. A srta. Smith, imediatamente, sentou-se em um canto do aposento, cruzou as lindas pernas e abriu um caderno de anotações.

        Ellery percebeu que havia um estranho ali. Era um homem de mais ou menos quarenta anos, olhos cortantes e um corpo que lembrava um freqüentador do Playboy Club. O homem olhou, acusadoramente, para o relógio. Ellery deduziu que ele ia defender os interesses de Audrey Weston, ao lado de quem estava, sentado.

        - Acredito que não conhece este senhor, Ellery - Marsh disse.

        - Ellery Queen, Sanford Effing, representando a srta. Weston. Ellery ia estender a mão, quando o advogado de Audrey disse, apressado:

        - Podemos começar?

        Marsh indicou a Ellery uma cadeira, sentou-se e tirou um de seus cigarros mentolados.

        - Sim, sr. Effing. Pode começar.

        Ellery sorriu para Leslie Carpenter, depois cumprimentou o pai e começou a prestar atenção.

        - Pelo que a srta. Weston me contou sobre o testamento de John Benedict - o advogado falou -, há uma frase que é uma cláusula-chave. Gostaria que me repetisse a linguagem exata usada, sr. Marsh, naquela cláusula que se refere a Laura.

        Marsh abriu a gaveta superior da sua mesa e tirou uma xerox do testamento de Benedict. Estendeu-a a Effing.

        - Sua memória estava correta, srta. Weston - Effing disse, satisfeito. - Benedict deixou sua herança para "Laura e as crianças". Sr. Marsh, a frase diz "as crianças..." O que isso quer dizer, exatamente?

        - Os filhos de Laura - Marsh falou.

        - Ah, mas não é o que está escrito aqui.

        - O que quer dizer? - Marsh perguntou, espantado.

        - Quero dizer que aqui não está dito isso. Se Benedict queria especificar os filhos de Laura, seria muito mais razoável que tivesse escrito "Laura e seus filhos".

        - Isso é uma bobagem - Marsh protestou. - A que outras crianças Johnny estaria se referindo? Só podiam ser as que resultassem de seu casamento com Laura.

        - As crianças - Effing sorriu - que Benedict podia ter tido com outras mulheres.

        - Mas não sabemos de nenhum filho dele - Marsh disse, firmemente, começando a duvidar.

        - Vai descobrir, agora mesmo, um filho dele, sr. Marsh. Srta. Weston, diga a estas pessoas o que me contou.

        - Tenho um filho - a loura disse, falando pela primeira vez, naquela reunião. A voz dela estava um pouco trêmula. - É filho de Johnny. - Estava sentada, com as mãos cruzadas e a cabeça baixa. Mas, ao fazer esta afirmação, ergueu os olhos e encarou a todos, desafiadora. - Não precisam me olhar como se eu fosse um monstro vindo do espaço! É verdade!

        - Esta afirmação sem provas significa menos que nada para um advogado, como Effing poderá lhe explicar - Marsh disse, cortante. - Para reclamar algo assim importante, é preciso apresentar provas irrefutáveis. E, mesmo que prove sua alegação, em vista do parágrafo seguinte do testamento, não tenho certeza se a sua interpretação será aceita pelo tribunal. Minha experiência considerável me diz... não estou falando como advogado de Benedict, mas também como amigo. Ele nunca me falou que tinha um filho com você.

        - Ele não sabia - Audrey disse. - Morreu sem saber. Além do mais. Davy nasceu depois do nosso divórcio.

        - Johnny não percebeu que você estava grávida?

        - Nós nos separamos antes que começasse a aparecer.

        - Nunca lhe avisou que ia ter um filho dele?

        - Davy foi concebido em nosso último relacionamento. Logo depois, nos separamos e ele se divorciou de mim. Tenho meu orgulho, Al, e... está bem... eu queria me vingar. Estava furiosa com o modo como ele me tratava, tirando-me da sua vida, como se eu fosse... como se eu fosse um par de sapatos velhos! Queria poder dizer a ele mais tarde, quando já não fosse um garanhão, dizer-lhe que, durante todos esses anos, tinha um filho, do qual não sabia nada... e nem ia saber.

        - Quem quer praticar a vingança não entra no paraíso - Ellery murmurou, mas ninguém o ouviu.

        - Conte mais sobre essa criança - o inspetor Queen falou, de repente. - Qual é o nome completo dele? Quando e onde nasceu? Tem custódia sobre ele? Se não tem, onde e com quem ele vive? Isso, para começar.

        - Espere, srta. Weston - Effing disse. - Penso que não devo deixar minha cliente responder a essas perguntas agora, inspetor. Pode anotar que o garoto é conhecido como Davy Wilkinson. Este é o sobrenome legal dela, de solteira: Arlene Wilkinson. Adotou Audrey Weston como nome artístico...

        - Johnny também não sabia disso - Marsh falou. - Como?

        - Ele nunca me perguntou - Audrey disse, novamente com as mãos cruzadas no colo e a cabeça baixa.

        Marsh mordeu o lábio.

        - A srta. Weston achou que não podia criar o filho, ao mesmo tempo em que procurava fazer carreira - Effing continuou. - Ela entregou o bebê para ser adotado, imediatamente. Na verdade, o acordo foi feito antes do nascimento. Mas ela sabe onde Davy está e pode trazê-lo, quando for necessário. As pessoas que o adotaram estão interessadas em mantê-lo em segurança e cuidar de seus direitos legais.

        - O fato de ela poder trazer aqui uma criança é tão irrelevante como apontar Benedict como pai - Marsh disse.

        - Então, vai lutar contra isso? - Effing perguntou, com um sorriso desagradável.

        - Lutar? Tem uma idéia muito esquisita sobre as atividades de um advogado. Eu tenho uma herança a proteger. Bem, terá que apresentar provas que satisfaçam o tribunal, sobre sua interpretação do testamento. Pedirei que minha secretária lhe mande uma cópia do que foi dito nesta reunião.

        - Não precisa. - Sanford Effing desabotoou o casaco e mostrou uma caixinha preta. - Gravei toda a conversa.

        Quando Audrey e seu advogado partiram, Marsh relaxou.

        - Não se preocupe com isso, Leslie. Não vejo como eles possam provar que o garoto é filho de Johnny. Principalmente agora, que ela admitiu, perante testemunhas, nunca ter dito nada a Johnny. Por isso, eu estava preocupado com as intenções dela. O testamento é muito claro sobre as intenções de Johnny. Se ele não estivesse casado com Laura, por ocasião de sua morte, a herança iria para você, Leslie. A não ser que essa tal Laura apareça com uma prova de seu casamento com Johnny. Mas isso me parece impossível, e acho que você está a salvo.

        - Esse é um dos problemas dos advogados - Leslie disse: - ter que lidar com outros advogados.

        - O quê?

        - Tentar realizar uma reunião como esta é algo vergonhoso. Fazer com que as pessoas fiquem aqui, ouvindo toda essa papagaiada jurídica... Estou convencida de que a Weston tem um filho de Johnny. E, pelo meu código, o garoto tem muito mais direito à herança do pai do que eu. Claro que fiz planos para o dinheiro... Um projeto para o Harlem, no qual coloquei muito do meu coração. Mas não vou quebrar como um bambu, só por não poder realizá-lo. Sempre fui pobre e esquecerei tudo isso, como se não passasse de um sonho. Continuarei lavando minhas próprias meias e pendurando-as no banheiro, para secar. Prazer em ver vocês novamente. Até logo, inspetor, sr. Queen, srta. Smith. Avise-me quando tudo isso acabar, sim, Al?

        Com um sorriso, Leslie partiu.

        - Isso é que é garota - o inspetor disse. - Se eu fosse, digamos, trinta anos mais novo...

        - Boa demais para ser verdade - Ellery comentou. O pai não entendeu.

        - O quê, filho?

        Mas Ellery sacudiu a cabeça e respondeu:

        - Nada importante.

        E começou a encher o cachimbo com um tabaco novo, que havia descoberto numa lojinha em Vermont. Depois, soltou uma baforada aromática.

        - É só, srta. Smith. Obrigado - Marsh estava dizendo. A srta. Smith saiu da sala. Ellery achou que ela rebolou um pouco, quando passou na frente dele.

        - Sabe que há uma certa ironia em tudo isso? O testamento do velho Benedict continha uma frase duvidosa, que possibilitou a Johnny retirar cinco milhões de dólares todas as vezes em que se casou. Agora, o testamento dele... gostaria que as pessoas consultassem um advogado, antes de se meterem, elas mesmas, a escrever seus testamentos! O dele também contém uma ambigüidade. Imagino se esse Davy existe.

        - Podemos ter certeza de que Audrey Weston tem um garoto em algum lugar - o inspetor disse. - Ela não seria idiota de levantar um problema desses sem ter nenhuma prova consistente. Effing não me parece o tipo de advogado capaz de aceitar um caso que não possa ganhar. Se está nisso, há um bebê. Mas, que seja filho de Benedict... E Audrey nunca lhe tenha dito nada... - o velho sacudiu a cabeça. - Não sei se ela vai conseguir provar. Bem, temos que começar por um fato. Como planeja estabelecer a identidade da criança, sr. Marsh? Como saberá se é ou não filho de Benedict?

        - Eu não preciso fazer nada disso - Marsh respondeu. - Provar que o garoto é filho de Johnny é um problema só de Effing.

        - Effing - Ellery repetiu, aborrecido. Levantou-se. - Que tipo! O que... ou quem... virá em seguida? Vamos, papai?

 

        Nos dias de hoje, com tantos assaltos, homicídios, seqüestros e outros problemas de violência, na vida urbana, quase não se percebe que há um tipo de gente que, tarde da noite, percorre as ruas vazias da cidade, sem sentir nenhum medo. Pelo contrário, espera, impaciente, pela chegada da noite.

        E quem é este herói de tanta coragem? Algum faixa preta? Um soldado recém-chegado da guerra e ganhador de todas as medalhas, ansioso por exercitar os truques que o exército lhe ensinou? Não. É o assaltante, o ladrão, o estuprador, o estrangulador em pessoa.

        Como um vampiro que sai de sua tumba, ele encontra a segurança onde as criaturas comuns encontram apenas o medo.

        Por isso, é fácil explicar como, na madrugada de sexta-feira, dia 24 de abril, "mais ou menos às duas da manhã", conforme o relatório de um detetive, Bernie Faulks entrou no Central Park, pelo lado leste, usando a entrada da Quinta Avenida, logo abaixo do Museu de Arte. Caminhou até um pequeno bosque, atrás do edifício, e se escondeu entre as árvores mais altas. Desapareceu no meio da escuridão da noite.

        Se o marido de Marcia Kemp sentia algum medo, não demonstrava. Aquele território era seu conhecido, desde a infância.

        Entretanto, havia uma certa tensão no modo como ficou imóvel e esperou.

        A lua estava escondida por algumas nuvens. Não havia iluminação nas sombras do museu. O ar estava frio.

        Faulks não usava paletó. Começou a tremer.

        E esperar.

        Tremeu e esperou por mais ou menos uma hora. Então, viu algo tomar forma, perto da alameda que observava. A forma parou por um momento. Depois, escondeu-se na sombra do museu e continuou. Faulks permaneceu imóvel.

        - Você está aí? - a voz perguntou.

        A tensão dele desapareceu.

        - Trouxe o pão?

        - Sim. Onde você está? Aqui está tão escuro...

        Faulks saiu do bosque, sem hesitar.

        - Entregue-me - e estendeu a mão.

        Não houve nenhum grito na escuridão. Mesmo se houvesse, não alarmaria ninguém. Há tantos ruídos estranhos, à noite, em um parque! Faulks percebeu que o estranho lhe entregava um envelope pesado e, imediatamente, mais alguma coisa. Para o Raposa, era hora de se virar e correr.

        Mas era tarde demais. A faca estava enterrada em sua barriga.

        Ele gemeu e seus joelhos se dobraram. Caiu.

        O esfaqueador manteve a arma firme, enquanto o homem caía, morrendo. O peso de seu corpo ajudou a lâmina a penetrar mais.

        Com a outra mão, o assassino de Faulks pegou o envelope.

        A faca ficou jogada, ao acaso, sobre o corpo.

        O assassino tirou as luvas de borracha, enfiou-as no envelope e procurou uma saída diferente daquela pela qual chegara ao parque. Aquele era mais um crime apressado nas noites de Nova York.

 

        - Ellery? Estou aqui.

        Ellery passou pela linha dos policiais, piscando, por causa das lanternas. Encontrou o pai conversando com um homem à paisana. Este o cumprimentou e se afastou em direção a um grupo de membros da polícia técnica e outros policiais, reunidos em volta do corpo.

        - Aquele é o patrulha do parque. O que encontrou o cadáver - o inspetor disse. - Você demorou para chegar.

        - Realmente, não sou muito rápido às quatro da manhã. Alguma novidade?

        - Nada, ainda. Mas a culpa foi dele mesmo. Dei ordens a Bernie Faulks para não ficar perambulando à noite. E ele estava sendo seguido pela polícia.

        - Como conseguiu despistar o policial? E quando?

        - Quem sabe? Provavelmente, saiu pelo telhado do apartamento vizinho. Velie tinha colocado os vigias na porta. No telhado... ninguém. Vamos ver como ele vai se explicar.

        - Não é você que está sempre reclamando da falta de homens em seu departamento? - Ellery disse. - Velie é velho demais para fugir da rotina. Ou talvez não tivesse ninguém para vigiar o telhado.

        O inspetor alisou o bigode. Então, era aquilo. E fim de caso. O chefe que se danasse. Mas, na verdade... ele quase a disse... a culpa era mesmo de Ellery, por tê-lo levado para passar aqueles dias em Wrightsville.

        - O quê? - o inspetor perguntou.

        - Disse que a morte dele pode ser apenas uma coincidência.

        - Como assim?

        - Faulks era bandido desde garoto. Quem sabe os inimigos que possuía? Aposto que os encontrará aos montes. A minha idéia, papai, é que esse assassinato não tem nada com o caso Benedict.

        - Está certo.

        - Mas você não se convenceu.

        - Está certo - o inspetor repetiu. - Não me convenci mais do que você.

        Houve um movimento além da área iluminada, e o sargento Velie apareceu de repente. Puxava Marcia Kemp pela mão.

        O inspetor apressou-se, seguido por Ellery.

        - O sargento já lhe disse o que aconteceu, sra. Faulks?

        - Disse que Bern está morto. - Ela estava sofrendo de um modo contido. Ellery pensou: ou está em estado de choque ou tem um grande autocontrole. Não parecia em estado de choque. Usava calça comprida em estilo marinheiro, com um casaco de couro atirado sobre uma camiseta. Não tinha feito maquilagem. Em seu rosto não havia nenhum vestígio de creme e o cabelo estava enrolado num lenço. Procurava não olhar para o grupo de policiais. - Como aconteceu, inspetor Queen?

        - Ele foi esfaqueado.

        - Esfaqueado? - A ruiva piscou. - Assassinado? Assassinado...

        - Podia ter sido um haraquiri - o inspetor disse, indiferente -, se ele fosse japonês. Sim, sra. Faulks: assassinado com uma faca, que o assassino teve a ousadia de jogar sobre o corpo. É uma faca comum. E pode apostar que não tem impressões digitais. Veio até aqui identificar seu marido?

        - Sim - Marcia respondeu. Aquela tinha sido uma pergunta boba.

        Caminharam em direção ao grupo: detetives da Divisão de Homicídios do norte de Manhattan, região do parque. Os policiais se afastaram. A viúva olhou o marido, sem hesitação, medo, angústia, revolta ou qualquer emoção visível a olho nu. Talvez porque ela fosse disciplinada, emocionalmente. Ou talvez porque a vítima não merecesse suas emoções. O médico tinha coberto tudo, menos a cabeça. Havia fechado os olhos e a boca do cadáver, antes que o fotógrafo fizesse seu trabalho.

        - Este é Bern, meu marido - Marcia disse, e não se virou imediatamente, o que foi muito estranho, porque as pessoas sempre fazem isso, nessas circunstâncias. Mas não Marcia Kemp. Aparentemente, era feita de pedra. Olhou a vítima, durante uns trinta segundos ou mais, quase com curiosidade. - Posso ir embora, agora, inspetor?

        - Está disposta a responder a umas perguntas, sra. Faulks? - ele perguntou, gentilmente.

        - Não. Estou cheia de calmantes. Se não se importa...

        - Apenas umas duas.

        Ela deu de ombros.

        - Quando viu seu marido pela última vez?

        - Jantamos por volta de sete e meia a oito horas. Em casa. Eu não estava me sentido bem e fui diretamente para a cama...

        - Oh? Não chamou um médico?

        - Não estava assim tão mal, inspetor. Fico indisposta uma vez por mês.

        - E não o viu outra vez?

        - Não. Caí no sono. Tomei um calmante.

        - Ouviu, quando ele saiu do apartamento?

        - Não.

        - Tem certeza de que não sabe a que horas ele saiu?

        - Absoluta. Por favor, inspetor. Já fez mais de duas perguntas. Estou com cólicas.

        - Só mais duas, e terminamos. Bern disse alguma coisa, na noite passada, sobre um encontro com alguém?

        - Não.

        - Ele estava com algum problema?

        - Não sei. Bern não falava muito de seus negócios.

        - Nem com você?

        - Principalmente comigo. Ele diz que eu... ele dizia que, quanto menos eu soubesse, menos me preocuparia.

        - Quem queria matá-lo, Marcia? - Ellery perguntou.

        Ela havia esquecido que ele estava ali. Ou, talvez, nem tivesse percebido sua presença. A pergunta espantou-a.

        - Ellery, eu não sei de ninguém. Mesmo.

        - Pode ter sido por vingança ou dívida de jogo? - o inspetor sugeriu. - Ou será que teve alguma briga com um dos seus amiguinhos?

        - Eu não sei - ela disse, sacudindo a cabeça.

        - Não tem idéia de por que ele foi esfaqueado? Nenhuma?

        - Nenhuma.

        - Está bem, sra. Faulks. Velie a levará para casa... espere um minuto. Doutor? - ele puxou o jovem dr. Prouty de lado. Ellery se aproximou. - Qual é o veredicto?

        - Numa estimativa preliminar, calculo que a hora da morte tenha sido por volta das duas da manhã.

        - Há algum motivo para suspeitarmos de que o esfaqueamento não tenha sido a causa da morte?

        - Não viu como ficou a barriga dele? Claro que só poderemos ter certeza depois de um exame post-mortem.

        - Nada mais?

        - Nada. Alguma coisa aí?

        - Nada, até o momento. Se me perguntar, doutor, direi que não encontraremos nada na faca, além de sangue e terra. O assassino foi frio o suficiente para deixar a arma no corpo, e não ia permitir que nenhum vestígio nos desse alguma pista.

        - Tudo certo, inspetor? - O sargento Velie se aproximou.

        Richard Queen fez que sim e Velie acompanhou a viúva. O jovem médico acenou.

        - Ela mentiu descaradamente - Ellery disse.

        - Sua intuição lhe diz isso? - o pai perguntou.

        - Sou filho do meu velho pai. Você também não acreditou nela.

        - Ela sabe alguma coisa, Ellery.

        - Estamos nos entendendo novamente. O que o fez tirar essa conclusão, inspetor Queen?

        - Marcia não é o tipo de garota que sabe tão pouco sobre os negócios do marido. Ela trabalhou em Las Vegas durante muito tempo. Conhece esses bandidos. E pode ter certeza de que controlava muito bem o Raposa.

        - É exatamente esse o meu raciocínio. O velho quebra-cabeça sobre Marcia começa assim: por que ela casou com ele? - Ellery olhou a enorme ruiva que se afastava. - Será que o amor pode ir tão longe?

        - Eu não sei. Se já soube, esqueci.

        - Eu a manteria muito bem vigiada, papai.

        - Velie cuidará dela. Saberemos de tudo o que fizer.

        - E Audrey? Alice? Marsh?

        - Eles também serão interrogados. - O inspetor estremeceu. - Estou com frio e cansado, filho. Comecei a ficar velho.

        - Dormiu duas horas esta noite e está com frio e cansado - Ellery proclamou para o parque. - Oh, como está decrépito. Vamos, vovô. Vou levá-lo para a cama.

        - E me prepara um chocolate? - o pai perguntou esperançoso.

        - Preparo um chocolate.

 

        Na sexta-feira de manhã, os relatórios da autópsia estavam no departamento médico. Na sexta-feira à tarde, os suspeitos já tinham sido interrogados. Audrey Weston tinha estreado em uma peça da Broadway, na semana anterior, chamada A, B, C, D, E, F ou Gy, e passara a noite de quinta sozinha, em casa. Disse que tivera muito trabalho, estudando suas cinco personagens. Não houve confirmação.

        Alice Tierney havia estado em Nova York, e não em Wrightsville, como todos esperavam. Tinha dirigido na quinta e se hospedado num hotel no centro da cidade. Disse que viera a Manhattan para ver Al Marsh, sobre um assunto relacionado com Johnny-B. Um assunto sobre a fazenda.

        - Dirigi o tempo todo e estava muito cansada - explicou. - Fui para a cama bem cedo. - Tinha tentado encontrar Marsh, marcar uma entrevista por telefone, mas não conseguira (o hotel confirmou a chamada telefônica e Estéban também).

        Marsh tinha saído na noite de quinta, para se divertir na cidade (o relatório dizia que ele estava de ressaca). Havia se encontrado com uma garota que posara para o pôster da Playboy e agora saia com milionários. Entretanto, no meio da noite, ela o trocara por um certo diretor de cinema italiano. Ele e Marsh brigaram numa discoteca da moda... os detalhes estavam nos jornais de sexta-feira, com fotos do diretor afundado no meio de um tambor gigantesco de bateria. Depois disso, Marsh percorrera sozinho uma porção de bares. O resto estava muito vago em sua lembrança. Estéban o colocara na cama, às três da manhã. Tentou perguntar ao patrão o que tinha acontecido, mas não conseguiu resposta.

        - Isso parece um dos seus livros - o inspetor Queen grunhiu. - Você pensou em uma pessoa suspeita. Achou que ela teria um álibi e poderíamos eliminá-la. Agora, temos uma porção de suspeitos e não sabemos o que fazer. Faulks morreu entre as três e três e meia da madrugada. E nenhum dos três pode provar onde estava... Estamos de volta ao ponto de partida. Talvez você estivesse certo, Ellery.

        - Certo? Sobre o quê?

        - Quando disse que o assassinato de Faulks pode não estar ligado ao caso Benedict.

        - Bobagem.

        - Você mesmo disse isso!

        - A gente tem que pensar em tudo - Ellery disse arrogante. E coçou o nariz. Estava fazendo seu exercício favorito de raciocínio: tentando descobrir quem tinha roubado as roupas de Audrey, Marcia e Alice. Aquilo também havia parecido uma coincidência. Começava a se sentir como um arqueólogo incompetente. Mas continuava a escavar em seu cérebro, secretamente, sem que ninguém desconfiasse.

 

        - Sabe - Ellery disse para Leslie Carpenter -, se eu não a tivesse conhecido num caso de investigação, iria convidá-la para sair.

        - Que coisa horrível de se dizer.

        - Horrível?

        - Está deixando implícito que sou suspeita da morte de Johnny.

        - Não, só estava expondo um princípio meu - explicou, mergulhando nos olhos azuis e quentes dela. - É ruim o policial ter um relacionamento pessoal com alguém que conheceu durante o curso das investigações. Por falar nisso, você se considera suspeita da morte de Johnny?

        - Claro que não. Eu estava falando de você.

        - Vamos falar de você. Sabe que nunca imaginei que conseguiria conversar com uma ativista?

        - Não é assim tão bobo, Ellery Queen!

        Eles estavam na sala de espera do escritório de Marsh, esperando Audrey Weston. Marsh tentava se livrar de um cliente que já havia passado da hora de consulta. O inspetor Queen se sentara ali por perto e comia algumas nozes.

        O cliente saiu. Marsh convidou Leslie e os Queen para entrarem no escritório.

        - O que há, agora, sr. Marsh? - o inspetor disse. - Parece que estou passando mais tempo no seu escritório do que no meu.

        - É Audrey, como eu disse a Ellery, pelo telefone - Marsh explicou, enquanto puxava alguns livros e revelava um bar. - Estou provando que a lei não é tão seca como parece. Alguém quer um drinque? Geralmente não bebo nas horas de trabalho... a srta. Smith não aprova... mas acho que esta tarde abrirei uma exceção. Ainda não consegui esquecer aquela noite terrível de quinta-feira. Sinto que vou precisar da bebida - ele se serviu de uma grande dose. - Posso recomendar um uísque irlandês, inspetor?

        - Estou a serviço... infelizmente.

        - Eu não - Ellery falou.

        - Les?

        - Não, obrigada - a herdeira de Benedict disse.

        - Quero dizer - Ellery continuou - que não há nenhum regulamento no meu trabalho. Al, você sabia que os irlandeses inventaram o uísque? Os ingleses só o descobriram no século XII, quando os soldados de Henrique II invadiram a Irlanda e voltaram com alguns barris. A Henrique II e seus soldados! - Depois de tomar um bom gole, perguntou: - O que a mulher fatal deseja?

        - Está se referindo a Audrey? Não foi ela quem pediu este encontro. Fui eu. - Marsh acendeu um cigarro mentolado. - Consegui alguma informação sobre a paternidade da criança que ela diz ser sua. Sabiam que Alice Tierney estava aqui na cidade?

        - Sabemos - o inspetor respondeu. - Não é verdade que ela veio a Nova York para vê-lo?

        - Deixe ver, hoje é segunda-feira... eu a vi na sexta, inspetor. Não avisei o seu pessoal, porque sabia que ia vê-lo hoje.

        - Espero que não vá alegar "isto é algo entre advogado e cliente" - Ellery disse.

        - Nada disso. A srta. Tierney veio aqui dizendo que Johnny lhe prometeu a propriedade de Wrightsville. As casas e a terra. Um presente.

        - Oh, céus! - Leslie disse.

        - Não há provas de nada - Ellery comentou.

        - Está certo, Ellery. Ela não tem nenhuma prova para apoiar sua história. Não é plausível que esperasse que a engolisse. Bem, disse-lhe, educadamente, que podia parar de perder tempo. Sim, srta. Smith?

        A srta. Weston e Sanford Effing entraram. A loira estava nervosa. Effing olhou em volta, procurando pistas, como um cão de caça. Depois de todos se terem sentado, Marsh falou:

        - Anote tudo, srta. Smith. O seu gravador está ligado, sr. Effing? Ótimo. Fiz algumas pesquisas sobre a alegação da sua cliente.

        - E descobriu que é tudo verdade - o advogado de Audrey disse, sério.

        - E descobri que a alegação dela... e o modo como afeta o testamento de Benedict... é falsa. Há um garoto chamado Davy Wilkinson (tenho também seu sobrenome de adoção, mas a proteção da criança é importante, e manterei isso confidencial). Davy não é filho de John Benedict.

        - É sim! - Audrey gritou.

        - Srta. Weston, posso cuidar disso? - Effing perguntou. - Minha cliente diz que é, sr. Marsh. Ela deve saber.

        - Ela devia saber. Mas, nesse caso, a srta. Weston me parece um tanto confusa. Tenho a data de nascimento e os relatórios do hospital onde Davy nasceu. A data é de onze meses e três dias depois do divórcio. Aparentemente, temos uma impossibilidade marital. Acho, sr. Effing, que tem que concordar que não adianta levar isso adiante. A não ser que o inspetor Queen deseje mais provas.

        - Está querendo insinuar que houve uma tentativa de fraude aqui? - Sanford Effing disse, friamente. - Não apenas estou ofendido, mas devo proteger a reputação da srta. Weston, assim como também a minha. Não aceitaria o caso, se não tivesse razões suficientes para acreditar que a minha cliente está dizendo a verdade. Acho que não seria aconselhável da parte dela insistir...

        - Estamos chegando ao mesmo ponto - Marsh interrompeu, rindo. - Insistir no quê, Effing?

        - Sobre as datas. Por favor, esclareça a situação das datas, srta. Weston, aqui e agora. Não tem outra escolha.

        Audrey começou a torcer as mãos.

        - Eu não queria que ninguém soubesse... quero dizer... isso é como me despir em público...

        - Vamos, srta. Weston - Effing insistiu, duro -, é tarde demais para modéstias.

        - Eu disse que tivemos o último relacionamento antes do divórcio, porque fiquei com vergonha de admitir que Johnny e eu fizemos sexo uma porção de vezes... depois do divórcio. Os olhos dela estavam atormentados. - Esta é a verdade, Al. Ajude-me, pelo amor de Deus. Nós tivemos. Acontecia, geralmente, em meu apartamento, mas, uma vez, no carro dele... oh, isso é tão embaraçoso! Bem, em um destes encontros, o pequeno Davy foi concebido. Meu pobre, pobre... - começou a chorar.

        Todos pareceram pouco à vontade. Até a srta. Smith.

        Marsh deixou que a loura se acalmasse.

        - Audrey, se o seu advogado não quer lhe dizer isso, eu direi. Mesmo que possa dizer que você e Johnny tiveram relacionamentos sexuais depois do divórcio, isso não vai provar que ele é o pai do seu filho. Sabe disso, não, sr. Effing? Tenho certeza de que inventou toda essa história de sexo depois do divórcio. Tenho quase certeza de que eu teria sabido sobre isso, por intermédio de Johnny. Ele me diria, se vocês dois estivessem dormindo juntos depois do divórcio.

        Para algumas coisas, ele confiava em mim... as quais não divulgarei publicamente, a não ser que seja forçado. A sua história é altamente suspeita. Será que não está exagerando sobre... será que preciso dizer? Sua capacidade de atração sobre ele?

        - Não tem direito de fazer nenhum julgamento, antes de todos os fatos terem sido expostos! - o advogado dela gritou.

        - Tenho todo o direito de dar a minha opinião pessoal, Effing. Na hora que quiser. Entretanto, não vejo por que negar isso: esta vai ser a minha opinião profissional também. A não ser que você apareça com uma prova legal, terminando com as dúvidas de que o sr. Benedict é o pai do filho da sua cliente.

        Audrey murmurou:

        - Você ainda não ouviu o fim da história. - Ela agora tinha deixado de se portar como atriz. Estava sendo Arlene Wilkinson.

        Effing tirou-a dali.

        - Mau - Ellery disse -, muito mau.

        - Achei que tudo deu muito certo, no final - Marsh comentou.

        - Certamente, está tudo bem, para a velha Les, aqui.

        - Estou falando do desempenho de Audrey.

        - Oh, não posso deixar de ter pena da coitadinha - Leslie disse. - Podem me chamar de quadrada, mas ela é uma mãe...

        - Uma mãe - Marsh disse - que está tentando jogar sujo.

        - Você não sabe tudo sobre isso, Al. Johnny pode...

        - De jeito nenhum, minha querida. Olhe aqui: você quer essa herança ou não? Pensei que já tivesse feito todo o tipo de planos sociais progressistas para o dinheiro.

        - E fiz - os olhos profundos dela brilharam. - O que quero fazer primeiro...

        - Desculpe, srta. Carpenter - o inspetor Queen disse, levantando-se. - O Departamento de Polícia de Nova York tem todo tipo de planos progressistas para os meus serviços. Sr. Marsh, de agora em diante, que tal não me chamar mais? Está bem? Ellery, você vem comigo?

        - Vá na frente, papai. Tenho uma porção de planos sociais progressistas para mim mesmo. Posso acompanhá-la até em casa, Leslie? Ou aonde quer que esteja indo?

 

        Mas a ansiedade do inspetor Queen em livrar-se do caso Benedict não ia ser aliviada facilmente. Nada o conduzia a nenhum lugar. Sua equipe estava encalhada na investigação de Faulks, pesquisando os inimigos dele. Descobriram uma enorme legião. O velho policial tinha esperanças de que aquilo tudo acabasse e pudesse voltar a ganhar seu salário por serviços prestados à cidade de Nova York.

        Alem do mais, era impossível viver com Ellery, naqueles dias. Passava o tempo todo com o olhar fixo, como se tivesse tomado algum ácido e estivesse fazendo uma viagem péssima. Quando o pai lhe perguntava qualquer coisa (o que o estava aborrecendo, por exemplo), ele sacudia a cabeça e continuava mudo. Ou então, dava uma resposta confusa. Ou, às vezes, a resposta parecia fazer algum sentido.

        - São as roupas das mulheres e algo mais. Por que não consigo me lembrar desse algo? Como alguém lembra o que esqueceu? Será que esqueci isso? Você o viu também, papai. Por que não consegue se lembrar?

        Mas o inspetor procurou não ouvir.

        - Por que não sai com a garota Carpenter outra vez? Ela parece ter sido um bom remédio para você.

        - Esse é um diabo de motivo para se sair com uma garota - Ellery comentou, rindo: - como se ela fosse um remédio!

        Chegou um chamado do chefe de polícia Newby - o inspetor foi avisado, quando chegou ao seu escritório. Imediatamente ligou para casa.

        - Ellery, precisamos ir direto para Wrightsville.

        - Para quê? O que aconteceu? - perguntou, bocejando. Tinha passado a noite acompanhando Leslie em uma série de seminários sobre "Soluções Econômicas para os Problemas da Obsolescência das Cidades".

        Newby telefonou para cá. Disse que resolveu o mistério daquelas luzes que Hunker havia visto na casa de Benedict.

        - Sim? Qual a resposta? Ratos nos fios?

        O inspetor sacudiu a cabeça:

        - Ele não disse. Parecia que havia alguma confusão por lá. Acho que se sentiu negligenciado por nós. Só disse que, se quiséssemos saber, tínhamos que aparecer por lá.

        - Não parece típico de Anse - Ellery falou. Mas talvez fosse. O que ele sabia sobre Anselm Newby? Ou sobre qualquer outra pessoa? A vida não passa de um sonho, pensou.

 

        Desceram do avião no fim da tarde de domingo, dia 3 de maio. Não havia nenhum carro da polícia de Wrightsville à espera deles.

        - Avisou Newby do vôo em que chegaríamos? - o inspetor perguntou.

        - Não. Pensei que você tivesse avisado.

        - Bem, pelo menos, Newby não nos está ignorando deliberadamente. Táxi!

        O chefe não estava em serviço. O encarregado levou os dois à casa dele.

        - Ainda não tenho idéia do que fazer com ela - Newby disse, depois de cumprimentá-los. Não vejo vantagem em acusá-la...

        - Do que está falando? - o inspetor Queen interrompeu. - Acusar quem?

        - Eu não lhe disse? - Newby perguntou, calmamente. - Meu homem, Barlowe, pegou Alice Tierney na casa de Benedict, tarde da noite. Era ela quem acendia as luzes. Contou-nos uma história esquisita e não sei se é verdadeira. Francamente, não sei se a moça está louca, ou...

        - Que história é essa, Anse? Você está muito misterioso.

        - E não deveria estar? Talvez seja melhor vocês ouvirem a história diretamente dela. Joe, traga a srta. Tierney até aqui: os Queen querem falar com ela. Se a moça tiver saído, descubra aonde foi e vá buscá-la.

        - Por que não vamos nós atrás dela? - Ellery sugeriu. - Pode ser uma tática melhor.

        - Ela virá - o chefe Newby disse, sorrindo. - Depois do que aprontou, ela me deve isso.

 

        Quinze minutos mais tarde, Alice entrou.

        - Quando os Queen ordenam, a pobre Alice obedece - ela disse, friamente. Ellery achou que a moça estivera bebendo. - Está certo, chefe, não precisa ficar aí e ser educado. Não depois da noite passada.

        - A senhorita foi apanhada invadindo propriedade alheia. O que esperava que o guarda Barlowe fizesse? Desse um beijo na sua mão? Poderia tê-la acusado de arrombamento e invasão. Ainda posso.

        Durante um momento, Ellery estranhou tudo aquilo. Alice era uma garota direita, de uma boa família de Wrightsville. E ali, as garotas direitas não são apanhadas invadindo propriedade alheia, no meio da noite.

        Dos dois, Newby era o mais agitado. Não que Alice estivesse calma. Os olhos dela, normalmente frios, tinham um brilho esquisito: transmitiam hostilidade.

        - Sente-se, Alice - Ellery disse -, não há motivo para não resolvermos tudo sem discussões. Por que entrou na casa de Johnny, sabendo que não devia fazer isso? O que estava procurando?

        - O chefe Newby não lhe disse?

        - Acabamos de chegar. Sente-se, Alice. Por favor.

        Ela suspirou, sacudiu a cabeça e se sentou.

        - Você já deve estar sabendo o que eu disse a Al... sobre a promessa solene que Johnny me havia feito? Que ele desejava que a propriedade de Wrightsville fosse minha?

        - Marsh nos contou - o inspetor respondeu.

        - Ele não lhe disse que riu na minha cara?

        - Srta. Tierney, esperava que o advogado encarregado de proteger a herança fosse levar isso a sério? Sem nenhuma prova para apoiar suas palavras?

        - Não vou discutir com o senhor, inspetor Queen. Com ninguém, estou convencida de que há uma prova.

        - De que tipo?

        - Um bilhete. Algum papel assinado por Johnny, em que deixa a propriedade para mim. Nós dois nos dávamos muito bem, durante o casamento. Muito melhor, ele me disse, do que com Audrey e Marcia. Eu realmente não entendo por que ele se divorciou de mim! Vivia me dizendo o quanto tinha apreciado os cuidados que lhe prestei, depois do acidente de automóvel. Dizia que, ao contrário do nosso acordo inicial, ia deixar a fazenda de Wrightsville para mim. Naturalmente, esperei que colocasse isso em seu testamento. Mas ele não colocou. Por isso, estou convencida de que deve haver algum papel em algum lugar; talvez, escondido na casa. Sei que ninguém vai acreditar em mim... apelei para Marsh, no fundo, contra a minha própria intuição. Por isso, não disse nada sobre o assunto, naquela seção de abertura do testamento. Preferi eu mesma procurar o papel, mais tarde, à noite.

        Pela primeira vez, a voz dela se elevou.

        - Eu quero a fazenda. Minha pensão semanal foi interrompida. Não vou herdar a quantia que Johnny tinha prometido... será que não herdarei nada? Ele queria que aquela propriedade fosse minha. E vai ser!

        De repente, ocorreu a Ellery - como num filme cujas cenas são trocadas - que Alice Tierney não era aquele anjo de piedade que demonstrava ser. As pessoas controlam seus sentimentos, depois de algum treino. Mas, quando estão cansadas, deixam transparecer sua verdadeira natureza. Alice estava perto do ponto de revelação.

        - Meus homens e eu revistamos aquela casa - o chefe Newby disse, cansado. - Não vai encontrar nada, srta. Tierney. Nós não encontramos.

        - E o chalé de hóspedes? - Ellery sugeriu. - Há alguma chance de Johnny ter escondido algo lá?

        Newby sacudiu a cabeça.

        - Barl... Barlowe e eu revistamos o chalé hoje. Não achamos nada.

        - E se Marsh tivesse encontrado algo assim, nos papéis de Benedict - o inspetor Queen comentou -, teria mencionado.

        - Acho que deve perguntar a ele... Talvez o senhor possa fazer isso, inspetor - Newby pediu, com um brilho nos olhos. - Nova York, o senhor sabe... - terminou, como se a ilha de Manhattan fosse propriedade de Richard Queen.

        O inspetor telefonou e encontrou Marsh em casa, com visitas. Ellery percebeu, pela conversa do pai, que o telefonema não fora bem recebido. Talvez estivesse interrompendo uma festa. O inspetor desligou, com uma careta.

        - Ele disse que não existe nenhum papel desse tipo. Que, se Johnny o tivesse escrito, ele teria sabido. Disse até que interrogou o amigo a respeito. Ficou zangado por eu lhe estar fazendo essas perguntas. De repente me pareceu aborrecido.

        - Nem parece o Marsh que eu conheço - Ellery disse. - Será que ele está apaixonado?

        - Então, a garota tem muita sorte - Alice disse, amargamente. - Fora do desempenho profissional, Al é um sujeito maravilhoso. Ele nunca promete nada a uma moça e depois esquece.

        - Esquecer é a palavra, srta. Tierney - Newby disse. - É isso que vou fazer. Por que não faz o mesmo? Não vou acusá-la de nada. Está a salvo. - Levantou-se. - Veio no seu carro, ou quer que um dos meus garotos a leve para casa?

        - Eu me ajeito sozinha. Obrigada.

        Depois que ela partiu, o inspetor comentou:

        - Isso foi perto de nada.

        - Bem, lamento ter arrastado os dois cavalheiros até aqui.

        - Oh, eu não estava falando só por causa disso! Parece que nos levantamos com o pé esquerdo, hoje...

        - Achei que vocês poderiam querer conversar com ela. Foi só.

        - Está perfeitamente correto. Se o trabalho da polícia fosse um sucesso durante cem por cento do tempo, não teria graça, não é?

        - Exatamente - Newby disse, enquanto se despediam.

 

        Era tarde demais para conseguir um avião de volta a Boston e Nova York. Os Queen passaram pela praça deserta, naquela noite de sábado, e se registraram no Hotel Hollis. Compraram escovas e pasta de dentes. Era tarde. O restaurante estava vazio. Ellery sabia que apenas o prato especial do chefe era comível. Entretanto, até esse já acabara, e os dois tiveram que se contentar com churrascos. O inspetor sofreu um bocado com sua dentadura. Foram para o quarto, quase sem se falarem.

        Estavam tirando os sapatos, quando o telefone tocou.

        - Alguma grande dedução, Newby? - Ellery perguntou.

        - Se já se despiram, vistam-se. Se ainda estão vestidos, fiquem assim. Passo aí para pegá-los dentro de dois minutos.

        - O que foi, agora, Anse?

        - A Tierney ataca novamente. Barlowe a viu entrando nas terras de Benedict e me telefonou.

        - E sabem o que aquela maluca está fazendo? - o guarda perguntou, quando o trio chegou à fazenda de Benedict. - Ela está tentando entrar no túmulo... aquela casinha de pedra, onde o sujeito foi enterrado. Eu a teria feito parar, chefe, mas o senhor disse que não era para fazer nada, antes que chegasse aqui.

        Todos saíram correndo, liderados por Barlowe e sua lanterna.

        Aquilo ali parecia o Morro dos Ventos Uivantes, em noite nublada.

        Ela tinha aberto a porta do mausoléu com uma barra de ferro. E estava lá dentro, segurando um lampião de querosene, entre as flores esbranquiçadas, lutando com a tampa do caixão. Barlowe precisou da ajuda de Ellery para afastá-la dali. Newby pulou sobre ela.

        - Alice, por favor, não pode fazer uma coisa dessas - Ellery pediu. Por que não se comporta como uma boa menina e fica calma? Vamos lá fora, conversar...

        - Larguem-me! Conheço os meus direitos! Ele me prometeu! O papel deve estar no caixão. É o único lugar onde pode estar...

        O rosto dela estava rígido, os olhos nem pareciam humanos.

        Barlowe tirou o casaco e fez com ele uma camisa-de-força, amarrando as mangas atrás da moça.

        Os quatro a carregaram para longe dali, até o carro. O chefe discou o número da telefonista de Wrightsville e pediu uma ambulância. Seguraram Alice e esperaram.

        Não dava para conversar, por causa dos gritos dela.

 

        Maio terminou sem novidades.

        A caça a Laura se acalmou e depois parou. Quem quer que fosse aquela mulher, havia decidido não aparecer.

        - Nesse caso - Ellery disse -, acho que Johnny nunca se casou com ela. E Laura não vai herdar nada. Por que iria aparecer em público?

        - A não ser... - o inspetor Queen começou e parou.

        - A não ser o quê, papai?

        - Nada. Estou tendo cada pensamento estranho!

        - Quer dizer: a não ser que Laura tenha matado Johnny por um motivo que ainda não sabemos.

        - Eu lhe disse que era estranho.

        - Talvez, nem tanto. Isso explicaria por que ela não apareceu. Gostaria que soubéssemos... - Ellery grunhiu. - Então, eu poderia voltar ao meu trabalho. - A novela dele parecia um seriado antigo. Estava engasgada num ponto, esperando alguma pista para poder ser terminada.

 

        A, B, C, D, E, F ou Gy estreou num teatro-pizzaria na Rua Bleecker e ganhou uma porção de críticas no Post, no News, silêncio absoluto do Times e uma ligeira notícia no Village Voice. Todos falavam em detalhes da cena de nu do terceiro ato (o Village Voice descrevia com naturalidade os encantos louros da srta. Audrey Weston, que superavam os das outras damas do elenco, em peso e volume). A peça continuou em cartaz. A srta. Weston foi entrevistada por um dos jornais do East Village e disse:

        - Até agora, por motivos profissionais, sempre rejeitei papéis em que deveria aparecer nua. Mas esta produção é diferente, querido. É um brilho, nesta temporada teatral vazia. Estou orgulhosa do meu papel, com ou sem roupas.

        Marsh não soube mais notícias da srta. Weston, de seu advogado, nem da paternidade do garoto chamado Davy Wilkinson. Talvez os conselhos de Marsh tivessem feito com que ela esquecesse o assunto. Talvez estivesse lutando para conseguir verba suficiente para tocar um longo processo legal. A única fonte de renda da srta. Weston era o salário da peça A, B, C, D, E, F ou Gy.

        O caso de Alice Tierney teve uma mudança para melhor. Ellery, depois daquela tentativa de invasão do mausoléu, achara que ela não iria se recuperar. Já tinha visto psicóticos, nas celas dos hospitais para doentes mentais, com aquele mesmo olhar selvagem. Mas ela se recuperou rapidamente, no Hospital Central de Wrightsville. Ficou internada lá, durante dois meses, sob os cuidados do dr. P. Langston Minikin, chefe do serviço psiquiátrico. Depois disso, foi transferida para uma casa de repouso em Connhaven, onde permaneceu mais duas semanas. Em seguida, foi deixada sob custódia, com os pais e a irmã mais velha, Margaret, que também era enfermeira. O dr. Minikin diagnosticou o problema de Alice como uma personalidade esquizofrênica. Mas disse que o episódio presenciado por ele tivera características de histeria. Provavelmente, aquilo não ia se repetir, a não ser sob extrema pressão.

        O dr. Minikin disse ao chefe Newby:

        - Ela, agora, parece resignada com o fato de Benedict ter esquecido a promessa ou ter mudado de idéia. E aceita que ele não tenha escrito uma autorização para que a fazenda seja transferida para ela. Está um pouco desligada e convencida de que fez um mau negócio com ele, apesar de que, na época, parecesse bom. Não acredito que Alice cause novos problemas, Anse. Pode fazer outras coisas, mas não vai repetir aquela cena.

        Newby não sentiu nenhuma paz de espírito.

        Com o decorrer do mês, a novidade foi que Marcia Kemp Benedict Faulks ia se casar.

        A novidade não foi o casamento, mas, sim, a identidade do homem de sorte. Ellery quase não acreditou, quando leu os relatórios diários dos detetives de seu pai e os viu confirmados nas colunas sociais.

        A ex-corista ruiva de Las Vegas ia casar com Al Marsh.

        - Não que seja da minha conta - Ellery comentou, num restaurante -, mas, em nome de Cupido, como tudo isso aconteceu? Nunca vi você olhar Marsh com algum interesse romântico. Pensei que não se suportassem.

        Marcia baixou a mão e Marsh segurou-a.

        - A gente aprende a esconder as coisas - o advogado sorriu. - Principalmente, quanto se é um advogado em um triângulo e, principalmente também, quando precisa esconder o ouro.

        - Triângulo? Você e Marcia... nas costas de Johnny?

        O sorriso de Marsh ficou maior.

        - Foi difícil - Marcia disse. - Eu descobri que Al era sempre imparcial. Achei que ele me detestava. Por isso, tornei-me uma garota difícil.

        - Olhe - Marsh explicou -, eu não poderia fazer isso com Johnny, nem por motivos pessoais, nem profissionais. Tive que reprimir meus sentimentos. Enterrei-os tão fundo, que quase me esqueci deles. Caso contrário, teria casado com Marcia logo que Johnny se divorciou dela. Fui eu quem os apresentou. Eu estava apaixonado por ela, quando Johnny lhe fez aquela proposta de um casamento por conveniência.

        A ruiva apertou a mão dele.

        - Sei que só faz algumas semanas que Bernie morreu, mas aquele casamento foi só por vingança... eu estava aborrecida com Johnny. Conhecia Bernie Faulks desde os tempos de Las Vegas, e ele...

        - Não precisa se desculpar, querida. Aquilo foi um erro, Ellery. Marcia e eu não temos mais motivos para desperdiçar nossas vidas. Quer sobremesa, baby? - perguntou, acenando para o garçom.

        - Não, obrigada! Uma noiva tem que pensar em sua aparência. Principalmente, quando ela é do tamanho da ponte George Washington.

        Não adiantava querer saber mais. Ellery desistiu.

        Ia ser um casamento íntimo, no duplex de Marsh. Mesmo a data foi mantida em segredo para a imprensa. Marsh convidou poucos amigos. Marcia disse que não tinha nenhum em quem pudesse confiar. Os convidados apareceram, silenciosamente, às duas horas da tarde do dia 7 de junho, um domingo. No último momento, Marcia tinha decidido convidar Audrey Weston e Alice Tierney.

        - Acho que estou sendo uma idiota - ela disse -, mas quero ver as caras delas, quando Al e eu estivermos casando!

        Para seu aborrecimento, Alice recusou o convite, desculpando-se com uma doença recente. Audrey nem se importou em responder. Os outros convidados eram Leslie Carpenter, a srta. Smith e os Queen.

        O casamento foi feito pelo juiz Marascogni, da Suprema Corte do Estado, um velho amigo da família de Marsh (Ellery sentiu um alívio extraordinário ao ser apresentado ao juiz. Ele tinha esperado que fosse o juiz McCue, cujo último desempenho havia retratado em uma de suas novelas). O magistrado chegou, realizou a cerimônia e saiu. Tudo estava calmo...

        Até, é, claro, mais ou menos quarenta e cinco minutos mais tarde.

        Foi curioso como aconteceu, acumulando uma porção de clichês, típicos dessas ocasiões.

        - Não estamos em junho? Ela é uma noiva de junho - alguém disse, depois do primeiro brinde de champanha. - Agora, o seu nome será Marcia Marsh. Que esquisitinho.

        Houve também outros comentários:

        - O juiz quase não conseguiu dizer Marcia. Mais parecia que estava realizando o casamento de uma tal de Marta. Será que o noivo casou com outra mulher?

        O casamento deixou algumas pessoas nervosas. A srta. Smith derrubou o champanha do chefe (talvez aquilo fosse o fim das esperanças dela. Será que uma secretária não pode ambicionar o homem de Marlboro?). Depois, caiu nos braços de Ellery, chorando, parecendo um tanto bêbada.

        O bolo tinha sido preparado por um amigo de Louis, com as tradicionais figurinhas do noivo e da noiva. Os recém-casados cortaram as primeiras fatias e, quarenta e cinco minutos depois, um terço daquela obra-prima já tinha sido devorada. Ellery e todos os outros repetiram várias vezes.

        As fatias tinham sido cortadas da base, deixando o topo intacto. As figuras de plástico do noivo e da noiva continuavam impassíveis, debaixo de um pequeno caramanchão.

        Algo explodiu na mente de Ellery, como uma pequena bomba de fumaça.

        A fumaça se dissipou, deixando os pensamentos desordenados... a mesma coisa estranha tinha acontecido, quando ele deixara de perceber algo no quarto de Benedict, em Wrightsville. Algo de que não conseguia lembrar. Algo que não conseguia agarrar.

        Mas, desta vez, conseguira agarrá-lo. Ellery fixou os olhos no noivo e na noiva do bolo, mas sua mente estava longe.

        De repente, por algum motivo, o noivo perdeu o equilíbrio e caiu de cima do bolo, sobre o tapete, deixando a noiva sozinha, debaixo do caramanchão.

        Ellery franziu as sobrancelhas, aborrecido.

        Isso está errado, pensou. Esperava que, para o bem de Al Marsh, a queda não representasse nenhuma profecia. Já havia casamentos fracassados demais, naquele caso.

        Aquele foi o primeiro pensamento de Ellery.

        O segundo foi juntar o par, novamente. Naturalmente. Havia momento pior para uma separação do que aquele? A noiva continuava corajosamente solitária e firme, debaixo do caramanchão. O noivo estava completamente desprovido de alegria nupcial, caído no chão.

        Ellery abaixou-se, pegou o bonequinho e segurou-o.

        Foi então que a luz atingiu sua mente. A luz sobre um acontecimento passado. Se tivesse sorte... o pensamento que há tanto tempo estava lhe fugindo agora permanecia ali, fixo e claro.

        - Precisamos ir imediatamente para Wrightsville - ele disse ao pai. - Eu vou, mesmo que você não queira ir.

        Tinha puxado o inspetor até o terraço de Marsh, afastando-o dos outros. Nova York brilhava ao sol. Era um dos raros dias de beleza da cidade. Marsh... ou Marcia... tinham escolhido um ótimo dia.

        - Eu vou, Ellery.

        - Sem perguntas?

        O pai deu de ombros.

        - Sou assim tão transparente?

        - É que sou o seu velho pai.

        - É um pai sábio. De que Johnny a chamou?

        - De que Johnny chamou quem? - o inspetor perguntou.

        - Laura. A última mulher da sua vida. Não foi assim que ele disse? Claro que não pode saber. Você não o ouviu. Pobre Johnny!

        - Suponho que vai me dizer do que está falando - o inspetor disse. - Claro que demorará algum tempo, como sempre.

        - Acho que posso sugerir uma pista.

        - Para Laura? - o velho coçou a orelha.

        - Pelo menos, posso lhe dizer qual é o sobrenome dela. Ou como, talvez, seja...

        - Ellery, pare com essas brincadeiras! Como pode saber o sobrenome dela? Assim, de repente, sem mais nem menos?

        - Tente Homm... H-o-m-m. Pode ser um sobrenome longo, papai... Homming, Hommers, Hommering... Algo assim.

        O inspetor olhou-o, incrédulo. Depois, sacudiu a cabeça e foi procurar um telefone.

        Ellery percebeu que havia algo em sua mão. Olhou-a. Era o noivinho de plástico. Saiu do terraço e dirigiu-se para o bolo. Estéban estava sozinho na sala, recolhendo os copos sujos.

        - Onde o sr. e a sra. Marsh vão passar a lua-de-mel, Estéban? Você sabe?

        - Eles não vão, sr. Queen - o mordomo olhou em volta, com ar conspirador. - Só partirão na próxima semana, eu acho. A sra. Marsh precisa fechar o apartamento dela. E fazer muitas outras coisas, eu acho. Não conta para ninguém?

        - Para ninguém - Ellery disse. Depois, cuidadosamente, recolocou o noivo ao lado da noiva, no topo do bolo.

 

        Chegaram a Wrightsville ao pôr-do-sol. O inspetor telefonou para Newby diretamente do aeroporto:

        - Encontre-nos na casa de Benedict. Não se importe em mandar um carro de polícia para nós. Tomaremos um táxi.

        Newby os esperava na porta.

        - O que há, inspetor?

        - Pergunte a ele. Talvez tenha mais sorte do que eu. Não consegui nenhuma resposta.

        O chefe olhou Ellery com ar reprovador.

        - Não estou sendo misterioso - Ellery murmurou -, mas tenho muito em que pensar. Podemos entrar?

        Entraram. A casa estava cheirando a mofo. Newby foi na frente, abrindo algumas janelas.

        - Alguém quer um drinque? - Ellery perguntou. Os outros recusaram. - Bem, eu quero. - Serviu-se de uísque irlandês, colocou a garrafa no lugar e disse: - Vamos subir.

        Parou na frente do quarto de Benedict e esperou, impaciente, na porta.

        - A resposta estava aqui, desde o começo - disse -, naquela noite de sábado. Dia 28 de março, não foi? Há quase dois meses e meio. Podia ter nos economizado muito tempo, cansaço e lágrimas. E Faulks, com sua morte miserável... Bem, isso são águas passadas. Entrem e sentem-se. Não se preocupem com a mudança das provas. Não perturbarei nada.

        - O quê? - Newby perguntou, confuso como um peixe fora d'água.

        - Não tente tirar conclusão nenhuma - o inspetor o aconselhou. - Não ainda. Ele sempre começa desse jeito. Sente-se e ouça. É o que vou fazer, Newby. Já me aconteceu isso centenas de vezes.

        O velho sentou-se na única cadeira que havia no quarto, deixando a beirada da cama do morto para o chefe, que se acomodou ali, pouco à vontade, olhando ao redor, como se estivesse procurando a saída mais próxima.

        - Você não estava lá, Anse - Ellery disse -, no apartamento de Marsh, hoje, quando ele e Marcia se casaram. Depois da cerimônia, fiquei a sós com o bolo de casamento. Só nós três...

        - Três?

        - O noivo e a noiva de plástico, e eu.

        - Oh. Oh?

        - Eles estavam, como sempre, debaixo de um pequeno caramanchão, no topo do bolo. E o noivo caiu. Entendeu?

        - Não.

        - Deixou a noiva lá, sozinha..

        - Bem, sim. E daí?

        - Está errado, não está?

        - Errado? - o chefe Newby repetiu. - O quê?

        - Vou explicar: você olha a noiva lá, sozinha, e é óbvio que percebe a falta de um elemento.

        - Bem, naturalmente: o noivo. Qualquer um sabe. Veio de Nova York até aqui para me dizer isso?

        - Exatamente: para lhe dizer que faltava algo. Desde o começo, senti que havia algo crucial nesse quarto. Um elemento vital do assassinato. Só que não conseguia localizá-lo. Naturalmente, quando você pensa que não pode se lembrar de algo, começa a achar que foi algo que viu. Algo que estava ali, mas fugiu da sua mente. Aquela noiva, sozinha no bolo, me mostrou o meu erro. A pista estava no quarto de Johnny... mas não era algo que foi visto para ser esquecido. Era algo que não foi visto... algo que devia estar aqui e não estava. Algo que, inconscientemente, a minha mente procurou, não encontrou e deu pela falta. Papai?

        - Sim, filho?

        Ellery estava no armário de roupas.

        - O quarto está exatamente como na noite do crime, com exceção do corpo de Johnny, as roupas sujas e os artigos roubados das três mulheres. Correto?

        - Não: falta a arma.

        - Ah, sim: os três macacos. Tudo o mais está aqui no quarto, do mesmo jeito que naquela noite. Isso inclui o guarda-roupa de Johnny e seu conteúdo, não?

        - Sim. - O pai estava prestando atenção.

        - Então, o que está nos armários é o mesmo que nós inspecionamos na noite do crime, cuidadosamente, roupa por roupa? Até mesmo os chapéus e sapatos de Johnny? Tudo...

        - Sim? - o velho disse outra vez. Newby continuava parecendo um peixe, de boca aberta.

        - Vamos repetir tudo. Vá até os armários e diga o que está vendo. Tudo. Como fez naquela noite. Ouça, cuidadosamente, Anse. Veja se consegue perceber. Não vai ser fácil.

        O inspetor Queen começou com os acessórios: gravatas, lisas, xadrez, gravatas-borboleta, echarpes, em cores básicas e combinadas...

        - Inclusive as marrons? - Ellery interrompeu.

        - Sim, inclusive as marrons. Eu disse todas.

        - Continue.

        - Dez chapéus e bonés...

        - Algum deles é marrom?      

        - Sim, há um marrom.

        - Sapatos?

        - De couro, camurça, crocodilo...

        - Não importa o tipo de couro. Diga as cores.

        - Pretos, marrons, cinzentos, beges...

        - Marrons e beges, notou? Capas?

        - Azul-marinho, preta com gola de veludo, cashmere...

        - Que cor de cashmere?

        - Bege.

        - Da família dos marrons. Casacos?

        - Preto, bege, cor de chocolate...

        - A família dos marrons, novamente. É suficiente para eu expor minha teoria. Pode sair daí, papai. Vá para as gavetas e fale o que está vendo, como fez na noite do crime. Comece pelas camisas. Vê alguma em tonalidade de marrom?

        - Claro...

        - E as meias? Tem alguma meia marrom?

        - Muitas.

        - Esqueceu os ternos - Newby estava fascinado... confuso, mas fascinado.

        - Esquecemos, não é? - Ellery disse. Como sempre, nessas ocasiões, ele tinha um ar de ator que está se divertindo com o seu desempenho. - Está bem, papai, comece com os ternos convencionais de Johnny. Quais as cores deles?

        O inspetor disse, cortante:

        - São todos em tons de azul e cinzento!

        - Sim - Ellery disse. - Não há marrons ou beges. Era isso que estava me atormentando, Anse, apesar de eu não ter identificado o problema. A cor básica, marrom, não aparecia nos ternos de Johnny. Apesar disso, tudo o mais em seu guarda-roupa tinha tons de marrom e bege.

        - Talvez ele não tenha trazido um terno dessa cor.

        Impossível. Johnny sempre estava na lista dos dez mais bem-vestidos. Ele nunca usaria sapatos marrons ou um chapéu marrom, ou uma camisa bege, com um terno que não fosse exatamente da família dos marrons. Se tinha acessórios marrons aqui, eram para combinar com pelo menos um terno marrom ou bege.

        - Mas não tenho que deduzir isso - Ellery continuou. - Johnny linha um terno marrom. Eu o vi, com meus próprios olhos. Nele. Na noite em que foi assassinado. Ele o estava usando, enquanto eu espionava no terraço, e ele contava às ex-esposas sobre os planos de mudança do testamento. Estava usando um terno marrom, quando subiu e veio para a cama. Isso quer dizer que tirou o terno aqui, quando se despiu e colocou o pijama. Mas, depois que telefonou para o nosso chalé e viemos até aqui, onde o encontramos morto... não havia nenhum terno marrom. Nenhum terno marrom, como vocês notaram, em nenhuma parte desse quarto. Vocês mesmos disseram que Johnny tinha colocado a roupa usada na caixa de roupa suja, no banheiro: meias, cuecas, camisa.

        Newby murmurou:

        - O que aconteceu com o terno marrom?

        - Essa é a questão, Anse. A pergunta que deve ser feita em primeiro lugar. Responda: quem estava aqui, nesse quarto, além de Johnny, naquela noite?

        - Quem? O assassino dele.

        - Resposta: o assassino de Johnny levou o terno marrom.

        Newby olhou o inspetor, irritado. Mas Richard Queen estava procurando lembrar o passado. Ou será que era o futuro?

        - Não estou entendendo nada. Por que o assassino levaria o terno dele?

        - Atingiu o ponto, Anse - Ellery disse. - Vamos voltar ao passado. O que o assassino fez, depois de entrar nesse quarto? Matou Johnny. Deixou o vestido de Audrey, a peruca de Marcia e as luvas de Alice no chão. E fugiu com o terno que Johnny acabara de despir.

        Agora, vamos nos concentrar na sua pergunta: por que o assassino, ao fugir depois do crime, iria levar o terno de Johnny?

        Ellery começou a contar nos dedos:

        - Porque o terno continha algo que ele queria? Não. Se fosse isso, podia tirar o que queria e deixar o terno para trás. Ou será que roubou o terno do homem para indicar um homem? Isso aponta as suspeitas para o único outro homem que estava na casa, naquela noite: Al Marsh. Os outros visitantes eram mulheres: Audrey, Marcia, Alice, a srta. Smith.

        - Então, por que o assassino deixou os três artigos das mulheres? - O inspetor interrompeu. - Aquelas peças pareciam apontar as mulheres como culpadas.

        - Abandone essa teoria, papai. Há outra objeção a ela: nem mesmo percebemos que faltava um terno de homem. Se esta fosse a intenção do assassino, ele teria feito algo para chamar a nossa atenção para o fato. Mas não fez.

        - Algum de vocês pode pensar em algum motivo?

        Depois de algum tempo, Newby disse:

        - Acho que deve haver dúzias de razões para ele ter feito isso. Mas não consigo pensar em nenhuma.

        O inspetor balançou a cabeça:

        - Nem eu, Ellery.

        - É porque o motivo é muito óbvio.

        - Óbvio?

        - Sim. O motivo pelo qual o assassino levou o terno.

        - O terno marrom de Benedict.

        - Um terno. Para que servem os ternos?

        - Para que servem? O que quer dizer, filho? Para vestir. Mas...

        - Para vestir - Ellery repetiu. - Uma roupa. Um motivo comum. Mas por que o assassino precisava de um terno para sair do quarto de Johnny? Claro que deve ter vindo aqui vestido com algo. Será que se sujou de sangue e precisou trocar de roupa? Mas o sangramento de Johnny foi pequeno... notamos isso logo no início, papai. Mesmo que algumas gotas tivessem atingido a roupa do assassino, ele não precisaria se trocar completamente... calça e paletó... no meio da noite, numa casa escura. Não. Deve ter sido outra coisa que o assassino estava usando, quando veio até o quarto de Johnny. Algo que ele teve que tirar e substituir pelo terno de Johnny. Estão entendendo, agora?

        O chefe Newby parecia completamente desesperado.

        O inspetor Queen explodiu:

        - Diabos, claro que não!

        - Mas está tão claro! - Ellery gritou. - O que o assassino usava, quando entrou no quarto de Johnny e precisou tirar, depois de deixar a cena do crime? Não estão vendo? Aquelas roupas que encontramos no chão... jogadas.

        - As roupas de mulher? - O inspetor engasgou. Exatamente. Se o assassino veio ao quarto de Johnny usando o vestido de Audrey, a peruca de Marcia e as luvas de Alice e, por algum motivo, decidiu deixar essas peças aqui, precisava de alguma roupa para sair.

        O chefe Newby exclamou:

        - Uma das garotas, usando o vestido, a peruca e as luvas, veio ao quarto de Benedict. Deixou tudo aqui, para dar uma pista falsa. Depois, vestiu o terno de Johnny e voltou para o próprio quarto.

        O rosto de Ellery se tornou sombrio:

        - Isso não faz sentido. Ela podia ter vindo vestida com um quimono e trazer aquelas peças na mão.

        O inspetor perguntou, vagarosamente:

        - Quer dizer que... está dizendo que... não foi uma das ex-esposas, Ellery?

        - Respondeu à sua própria pergunta, papai. Audrey, Marcia, Alice... nenhuma delas teria planejado ir ao quarto de Johnny, matá-lo naquelas circunstâncias, sem ter roupas com que fugir.

        - Mas, Ellery, só havia estas mulheres aqui! - Newby disse.

        - Não, chefe. Espere um minuto - o inspetor interrompeu. - Havia uma quarta mulher: a secretária de Marsh, a srta. Smith. - Mas, quando olhou para Ellery, disse: - Não foi ela, filho?

        Ellery sacudiu a cabeça:

        - Está esquecendo algo, papai. O fato de o assassino ter ido ao quarto de Johnny usando aquelas roupas roubadas das mulheres. Isso quer dizer que o assassino foi quem as roubou. Mas quando foram roubadas? Audrey disse que o vestido havia sumido na manhã de sábado. Marcia avisou-nos que a peruca tinha desaparecido menos de uma hora depois. Quando conversei com Alice e ela não conseguiu encontrar suas luvas, estávamos no meio da tarde. Durante aquela conversa, ela me disse que os outros estavam se preparando para ir ao aeroporto, encontrar a srta. Smith, que chegaria às cinco e meia. Então, a srta. Smith não poderia ter roubado as peças. Não foi ela que entrou no quarto de Johnny, à noite.

        - Mas não havia outra mulher na casa - o inspetor protestou.

        - Exatamente.

        Houve uma longa pausa.

        O pai procurou algum esclarecimento.

        - Mas, Ellery, só havia mais uma pessoa aqui.

        - Exatamente.

        - Al Marsh.

        - Exatamente.

        Houve uma nova pausa. Dessa vez, as fisionomias já não estavam tão sombrias, mas perplexas, - Você está querendo dizer - o inspetor murmurou -, está querendo dizer que foi Marsh? Al Marsh? Que foi ele quem entrou no quarto de Benedict, naquela noite, vestido com uma roupa longa, de mulher, usando uma peruca verde, de mulher, e luvas de mulher?

        - Foi aonde o raciocínio nos conduziu.

        - Mas isso quer dizer - Newby sussurrou -, isso quer dizer...

        - ... que estamos investigando um caso - Ellery falou, sério - de cuja verdadeira natureza não suspeitávamos até agora. Al Marsh foi ao quarto de Johnny naquela noite, completamente vestido. E o que aconteceu forçou-o a deixar as roupas femininas para trás. Ele colocou o terno de Johnny e escapou, em segurança, para o próprio quarto. O terno marrom de Johnny... Quando o encontrarmos, teremos encontrado o assassino.

        - Quando o encontrarmos? - o inspetor comentou. - Acho que não temos nenhuma chance. Ele já deve ter se livrado desse terno há muito tempo.

        - Penso que não - Ellery disse. - Há chances. Vamos ver?

 

        Não havia vôos, àquela hora, e Ellery mal podia esperar.

        Newby disse, aborrecido:

        - Leve o meu carro. Gostaria de poder ir com vocês.

        Os Queen dirigiram a noite toda, alternando-se ao volante. Tomaram o café da manhã num bar que ficava aberto a noite toda, perto da Primeira Avenida. Estavam na porta de Marsh alguns minutos depois das oito da manhã.

        - O sr. Marsh está dormindo, sr. Queen - o mordomo disse, piscando. - Não posso acordá-lo...

        - A sra. Marsh está com ele?

        - Ela ainda não se mudou para cá.- - Então, vá tratar da sua vida, Estéban. Eu mesmo acordarei o sr. Marsh.

        Entraram no quarto, sem bater na porta. Era um aposento espaçoso, com lambris de madeira e uma decoração máscula. Uma reprodução de dois metros e meio do David de Michelangelo dominava o quarto.

        O advogado mexeu-se na cama e abriu os olhos.

        - Calma, Marsh - o inspetor disse.

        Ele continuou imóvel, meio enroscado, como se fosse um bailarino, parado no meio de um movimento. Parecia imenso. Seu dorso nu mostrava músculos surpreendentes. Não tinha pêlos, parecia que se depilava.

        - O que querem?

        Sentou-se, mas não fez nenhum movimento para sair da cama. Encolheu as pernas por baixo do lençol de seda vermelha e abraçou-as.

        - O que querem? - perguntou novamente.

        - O terno de Johnny - Ellery disse, gentilmente. - Você sabe, Al. O terno marrom que ele estava usando na noite em que morreu.

        - Deve estar louco!

        - Será que eu estou? Ou você?

        Marsh fechou os olhos durante um momento, feito uma criança. Quando os abriu novamente, Ellery viu que eles eram velhos, amargurados e pareciam querer esconder algo.

        - Não sei do que está falando. Não tenho nada de Johnny aqui. Vá em frente. Procure. Dane-se você.

        O guarda-roupa dele era tão imenso como o de Benedict, em Wrightsville. Entre as várias peças que encontraram, havia duas que lembravam a Ellery o tom de marrom do terno perdido de Benedict.

        - Que tamanho de roupa você usa, Marsh? - o inspetor Queen perguntou. - Não importa. De acordo com as etiquetas, estes aqui são 44 grandes, Ellery. Benedict não podia usar mais do que um 38 médio... talvez, até um 36. Estes aqui são de Marsh. - Nenhum dos outros ternos tinha o tom de marrom dos de Benedict. - Há outros ternos em seu apartamento, Marsh?

        - Isso é problema seu - ele disse, com a garganta seca. Depois, umedeceu os lábios. - Não tenho que lhe dizer, inspetor. Por acaso me mostrou algum mandato de busca?

        - Há um a caminho. Lamento que tenhamos nos precipitado um pouco, Marsh. Preferia que tivéssemos esperado até que o mandato chegasse?

        O advogado deu de ombros.

        - Não me importo. Não tenho nada a esconder, Ellery.

        Mas, se Ellery ouviu alguma coisa, não demonstrou. Estava revistando algumas malas, empilhadas num canto de um armário. As malas estavam vazias.

        De repente, Ellery endireitou-se, saiu do armário e disse:

        - Ainda estou parcialmente chocado - puxou o pai de lado, para longe do alcance dos ouvidos de Marsh. - Claro que não estaria à mostra. Ele deve tê-lo escondido em seu esconderijo secreto de roupas.

        - Seu o quê?

        - Marsh leva uma vida secreta, não leva? Sabemos disso, pelo que deduzimos dele. Durante o dia, age como se fosse um homem normal. Mas, à noite... algumas noites... e nos fins de semana... alguns fins de semana... ele vive outra vida. Isso quer dizer que deve ter um esconderijo para as roupas que usa nessas ocasiões.

        O inspetor voltou ao armário. Encontrou um painel quase invisível, fechado por uma mola, que abriu em três minutos. A parede do fundo do armário movimentou-se.

        Marsh tinha saído da cama e os acompanhara até o armário. A calça do pijama era rosa-choque. Estava com os olhos arregalados.

        - Não façam isso. Por favor, não entrem aí. Eu estou pedindo a vocês.

        - Lamento, Al.

        Ali estava tudo: roupas de passeio, vestidos chiques, vestidos longos de coquetel, vestidos de noite, sapatos de salto alto, meias de nylon, ligas, um estoque de meias-calças, cintas-ligas, calcinhas de seda, sutiãs, tangas. E pelo menos uma dúzia de perucas, das mais variadas cores e estilos. Havia também uma penteadeira cheia de cosméticos e produtos de maquilagem. E uma pilha de revistas com fotografias de homens jovens nus, musculosos.

        E, entre todos aqueles vestidos, um intruso: um terno marrom. O terno marrom que John Levering Benedict III tinha usado na última noite de sua vida.

        - Em nome da lei, tenho que avisar você - o inspetor Queen começou.

        - Não tem importância. Conheço os meus direitos. Mas quero explicar. É importante.

        Movido por alguma emoção obscura, Ellery havia atirado um robe para ele. Era o próprio homem de Marlboro, caminhando pelo quarto, e Ellery sentiu-se ainda mais triste.

        O pai havia morrido em um acidente, quando ele era muito pequeno, Marsh explicou. Sua mãe nunca tornara a se casar e havia sido o seu anjo mau.

        - Ela me arruinou. Eu era seu único filho e ela sempre desejara uma menina. Portanto, rejeitou o meu sexo. Não foi conscientemente, tenho certeza. Era um pouco vitoriana. Acredite em mim. Ela me vestia com vestidos, me fazia usar cabelo comprido e brincar com bonecas, até que cheguei à idade escolar. Ela me batizou de Aubrey. Eu odiava esse nome. Imagine o que os garotos da escola diziam. Lutei e bati em todos os que faziam gracinhas comigo. Eu era maior e mais forte do que eles. Continuei brigando e batendo, até que todos me chamassem de Al. E passei a ser Al, dali para a frente.

        "Mas os danos já tinham sido feitos. Sem uma figura masculina para equilibrar a influência de minha mãe (na nossa casa, todas as criadas eram mulheres), a parte feminina tornara-se dominante em mim. Descobri a verdade sobre mim mesmo no meu primeiro ano em Harvard. Há muito tempo, me preocupava por não sentir nada pelas garotas, como os meus amigos. Tinha que fingir interesse por elas. Então, percebi o que sentia por Johnny... algo que não podia ser confundido com uma amizade de homem para homem. Nunca deixei que ele percebesse. Para lhe esconder isso, tive que me policiar, me controlar, fingir. Isso me custou caro. Tive que encontrar uma espécie de válvula de escape. Inevitavelmente, houve um episódio num bar, afastado da universidade... depois outro, e mais outro. Comecei a ficar viciado. Lutei contra isso, com todas as minhas forças. Sentia tanta vergonha e culpa, que acabei me atirando aos esportes do colégio, principalmente ao braço-de-ferro e à luta-livre. Então, percebi que havia escolhido esses esportes por causa do contato físico. E desisti deles."

        Marsh foi até uma parede, atrás da cama, e pressionou algo. Uma porta da parede se abriu, revelando um bar completo. Pegou uma garrafa de bourbon e encheu um copo. Bebeu metade, sem baixar a cabeça.

        - Não foi apenas Johnny que não suspeitou. Você também, Ellery. ninguém suspeitou. Eu era incrivelmente cuidadoso. Nunca me liguei a ninguém que tivesse alguma ligação com a universidade. Todos os meus encontros eram feitos fora do campus... como o primeiro. Geralmente, no centro de Boston. Meu grande medo era que alguém descobrisse. Sofri tanto que nem posso descrever... as agonias da alienação... os esforços para reprimir os meus desejos reais... a necessidade, a vontade de entrar na vida. Oh, Deus! Não podem imaginar como é. A tensão nervosa. Os problemas interiores. A solidão... principalmente, a solidão. E continuava bebendo demais... é estranho que não tenha me tornado alcoólatra. Acho que o medo de me trair agia como um freio. Nunca pensei em ir a um psiquiatra... sabia que devia ter me ajustado, como as outras pessoas; devia ter aceito o que eu era. Mas não podia. Não podia. Cada hora de paz... por que eu chamo isso de paz?... não passava de um truque... eu tinha que lutar uma guerra eterna - fez uma pausa.

        - Quando minha mãe morreu - ele continuou -, herdei a fortuna da família. Aí, então, as coisas ficaram piores. Agora, eu tinha independência e meios para expandir as áreas da minha vida secreta. Mas os perigos da descoberta também se multiplicaram. Havia mais medos, vergonhas e culpas. Sentia-me incompleto... aquilo que alguém classificou como "irrealizado", "irrealizável". É como começar a comer compulsivamente... ou qualquer outro sintoma de que algo está errado. Sentia um enorme desgosto, quando era apanhado em armadilhas, tinha que fazer acordos sórdidos com os prostitutos... os encontros sórdidos nos banheiros públicos, em hotéis, em estações, aeroportos, pontos de ônibus... impaciente para conseguir alguém... um marinheiro... um marinheiro bêbado... Oferecia-lhes dinheiro por uma hora num hotel barato... E o pior de tudo era quando eu passava por um bar gay ou uma praia ou um parque... qualquer lugar onde essas pessoas se reúnem... o medo de que alguém do mundo convencional me encontrasse ali e contasse... O meu maior temor era de que algum repórter me reconhecesse. Sabe qual é o primeiro mandamento do gay? Não se deixe reconhecer. Deve entender isso. Eu não podia ser descoberto. Agüentaria tudo, menos ser exposto... Eu disse que um repórter seria pior? Não é verdade. O pior seria um detetive, desempenhando o papel de paquerador...

        O discurso de Marsh, que começara exaltado, tinha se suavizado e estava mais calmo. A confissão deixara seu rosto corado. Os punhos estavam cerrados.

        - Perdoem-me ter entrado em tantos detalhes - disse, e virou o resto do drinque. - Vou direto ao que vocês querem ouvir. - Colocou o copo sobre o bar e encarou-os.

        - Desde o momento em que Johnny e eu voltamos daquele leilão em Londres, tive a intuição de que ele sabia do meu segredo. Pelo menos, havia alguma perspectiva. Foi uma ilusão que aumentou meu desejo por ele. Disse a mim mesmo que, durante todos esses anos em que eu procurara lhe esconder a verdade, ele também tinha procurado esconder a sua verdade de mim.

        "Agora, isso me parece absurdo. Não havia realmente nenhuma base para eu ter pensado assim. Mas a necessidade era tão violenta... acho que, por isso, me convenci. Convenci a mim mesmo de que Johnny estava me dando olhares sugestivos, me convidando a uma aproximação, me convidando para que fosse ao seu quarto, naquele fim de semana em Wrightsville, depois que todos estivessem dormindo, para fazermos amor.

        "Desde o começo do fim de semana, senti uma espécie de crise de identidade, que se transformou rapidamente em crise psicológica. Ela anestesiou meu controle habitual. Na noite de sexta-feira, quando Audrey, Marcia e Alice desceram vestidas a rigor, algo aconteceu comigo. Aquele vestido de Audrey, estonteante, cheio de lantejoulas; a peruca de Marcia, naquela cor esquisita, engraçada, e as luvas de Alice, que iam até o cotovelo... De repente, senti-me loucamente atraído por elas... queria colocar suas roupas... desfilar com elas. Se estivesse na cidade, teria usado minhas próprias roupas femininas. Mas naquela cidadezinha lá longe... E ali estava o meu amado Johnny, a paixão insatisfeita da minha vida, praticamente nos meus braços, acenando... com o que eu pensava que fosse um convite.

        - Quase não dormi naquela noite. Na manhã de sábado, estava fora de mim. Enquanto as mulheres saíram da casa ou estavam lá embaixo, tomando café, roubei o vestido, a peruca e as luvas. Escondi o vestido e as luvas debaixo do colchão da minha cama. E coloquei a peruca no fundo da lata de lixo, debaixo de uma porção de papéis amassados."

        Marsh parecia quase não perceber a presença deles, agora. Os Queen se prepararam para os próximos minutos, que seriam importantíssimos.

        - No fim da noite de sábado, eu já não tinha mais defesas. A minha força de vontade desaparecera. Só conseguia pensar em Johnny e no quanto o desejava. Não sei como consegui atravessar aquela noite sem fim, com Johnny conversando com aquelas três. Ficou pior ainda depois que ele foi para a cama. Parecia que as mulheres jamais subiriam para seus quartos. Finalmente a última subiu.

        "Não devem esquecer que eu havia bebido muito. Tentei me controlar. mas precisava da bebida. Talvez por que a minha excitação tivesse aumentado muito."

        Marsh começou a caminhar pelo quarto. Esfregava as mãos. A cabeça estava abaixada, um pouco inclinada para a frente.

        - Esperei até que achei que todos dormiam. Então, peguei o vestido, a peruca e as luvas. Abri uma bolsa secreta, na minha mala, onde guardo os produtos de maquilagem. Passei base, pó, rouge; coloquei os cílios falsos, passei batom, rimel. Pronto. E... mudei de roupa.

        A voz dele falhou, antes da última palavra. Depois, ficou em silêncio, durante algum tempo. Os Queen procuravam respirar silenciosamente. Afinal, ele decidiu continuar.

        - Eu não estava mal... sabe como as garotas são grandes. Johnny gostava de moças daquele tamanho, duas vezes maiores do que ele. Tive que ficar sem sapatos. Os delas não serviriam, e não poderia calçar sapatos de homem... ficaria ridículo...

        Marsh fez outra pausa. Ellery pensou como Einstein tinha sido inteligente ao pensar na relatividade. Marsh dissera que ficaria ridículo com sapatos de homem. Verdade. Mas como será que se via num vestido de mulher? Pela primeira vez, depois daquelas revelações, e como resultado daquele comentário, Ellery viu Marsh verdadeiramente: não mais como o homem de Marlboro, mas como um travesti.

        - Abri a minha porta e ouvi - Marsh disse, com voz profunda. - A casa estava tão quieta, que parecia dormir... Sabe como elas são, algumas vezes, no meio da noite. Lembro que senti um nó na garganta. Era quase um prazer. Conseguia ver muito bem. Havia um bom abajur aceso no alto do hall superior. Não vi ninguém. Nada.

        Senti-me maravilhosamente. Tão vivo! Caminhei até o quarto de Johnny. Tinha esperança de que ele estivesse de pé, me esperando, e abrisse a porta para mim.

        "Mas não aconteceu nada disso. Tentei a fechadura. Abri a porta com um estalido que parecia de casa mal-assombrada. Quando a fechei, a porta estalou novamente. Ouvi a voz de Johnny: "Quem é? Quem está aí?" Era quase um murmúrio. Procurei a tomada na parede e acendi a luz. E lá estava o meu querido, sentado na cama, sonolento, piscando. Não estava nu, como eu havia imaginado, mas de pijama."

        O monólogo de Marsh parecia uma oração. Tinha sido dito em voz bem baixa. Os dois tiveram que se inclinar para a frente, para poder ouvi-lo.

        - Acho que, no começo, ele pensou que eu fosse Audrey, ou Marcia, pois rolou para fora da cama, pegou o robe e o vestiu. Mas, depois, seus olhos se acostumaram com a claridade. Ele me reconheceu. Vi isso em seus olhos.

        Eles agora quase não conseguiam ouvi-lo. Marsh estava dando socos no ar com os punhos fechados. Parecia não sentir nada, e abriu as mãos de um modo suplicante.

        - Será que poderia falar um pouquinho mais alto? - o inspetor Queen pediu, suavemente.

        Marsh olhou-o e franziu as sobrancelhas.

        - Já tinha visto os olhos dele muitas vezes - disse, em voz mais alta. - Podia lê-los, como um letreiro em neon. Reconhecimento. Compreensão. E, então, o choque. Seus olhos ficaram mostrando o choque durante tempo suficiente para que eu compreendesse o meu erro. Meu erro estúpido! Mas, naquele momento, não conseguia pensar. Eu era puro sentimento. Podem dizer que foi a gota d'água. O ponto de transbordamento. Tirei as luvas e a peruca. Arranquei o vestido. Fiquei ali, de pé, nu. Dei um passo à frente e o tomei em meus braços. Foi então que vi o choque se transformar em revolta, nojo absoluto. Ele me disse: "Seu sujo. Seu porco sujo. Saia da minha casa".

        Marsh virou de costas para eles e pigarreou. Quando falou novamente, foi para o vazio, como se desejasse que os dois tivessem desaparecido dali.

        - Vi-me dizendo algumas coisas a ele... eu me lembro... foi sobre o meu amor... meus anos de luta para escondê-lo dele. Sabia que aquilo era pior... os olhos dele me diziam isso... mas não consegui parar. Tudo veio para fora... Ao mesmo tempo, eu sabia que estava cometendo um erro fatal. Ele não seria capaz de enten- der... não mais do que vocês. Entretanto, eu esperava... eu esperava...

        "Ele não levantou a voz, mas foi tão brutal! Foi cruel... cruel demais. As coisas de que me chamou... inesquecíveis... ditas por um homem inteligente, civilizado. Mesmo que não pudesse compartilhar dos meus sentimentos, me conhecia há tanto tempo... tínhamos sido tão amigos! Se eu lhe tivesse transmitido lepra, deliberadamente, ele não podia ter me odiado mais. Como se eu fosse seu maior inimigo. Reduziu-me a nada. A vergonha, a culpa, o medo, o pânico aumentaram. Todos os meus anos de cuidados... muitos cuidados, atirados fora num único ato descontrolado. Em uma noite.

        "Ele estava ameaçando me denunciar. Não sei por que Johnny reagiu tão violentamente, ao saber a verdade sobre mim. Eu realmente não lhe fizera nenhum mal, a não ser lhe revelar o que eu era. Ele não conseguiu suportar a revelação. Talvez tivesse problemas profundos a respeito da inversão sexual. Uma porção de homens tem... como se tivessem medo de ter esta mesma coisa enterrada neles... e... atacando os outros... eu não sei. Não tive tempo de analisar Johnny, naquele momento. Estava transtornado demais, entrando em pânico.

        "Ele ameaçou me denunciar. Aquilo seria o meu fim. No momento, só consegui pensar naquilo... e em fechar a boca dele. A estátua de ferro dos três macacos estava na escrivaninha. Só percebi quando golpeei a cabeça dele. Foi um reflexo. Não houve nenhum pensamento racional por trás daquilo. Ele não podia falar nada. Precisava evitar que ele falasse. Isso é tudo o que sei."

        Marsh virou-se, e eles viram surpresa nos olhos dele, ao encontrarem os dois ali. Depois, surgiu o aborrecimento. Quase como se os tivesse apanhado espionando. Mas mesmo isso logo desapareceu de sua expressão, deixando-a vazia.

        - Nunca me ocorreu que Johnny podia não ter morrido. Eu simplesmente tinha certeza disso. Ele parecia morto... esticado lá... pálido... quase verde, o rosto... o sangue...

        "Abri a porta e olhei para fora. Meu coração deu um pulo. Havia uma garota alta, com vestido longo, descendo a escada. Virou ligeiramente a cabeça, e vi que era Audrey Weston. Fiquei imóvel, observando-a descer. Ela ficou lá embaixo durante alguns minutos. Depois voltou com um livro e entrou no quarto.

        "Olhei para mim mesmo. Estava nu. Tinha esquecido. Comecei a tremer. Imagine se ela tivesse me visto? Quase não tive tempo de ficar aliviado: Marcia saiu do quarto... eu sabia que era ela, porque vi o cabelo vermelho, quando passou perto do abajur. Ela também desceu.

        "Tudo em que conseguia pensar era como chegar em segurança ao meu quarto. Marcia estava lá embaixo... ela podia subir a qualquer momento, como Audrey havia feito. Não me atrevi a sair como estava... seria uma pista, se fosse visto... e pensei em vestir as roupas com as quais havia vindo. Mas aquilo seria ainda pior. Imagine se as mulheres me vissem com as roupas delas?

        "Entretanto, tinha que sair do quarto de Johnny! Só consegui pensar em vestir uma das roupas dele. O terno marrom, que Johnny usara, estava em cima de uma cadeira. Consegui entrar nele..."

        Ellery sacudiu a cabeça. Ambos os ombros do terno de Benedict estavam arrebentados.

        - Naquele momento me lembrei: as impressões digitais! Meu cérebro começou a trabalhar. Parecia que nem era eu. Agora, já não sentia nenhum pânico. Não sentia nada. Usei um lenço, que encontrei no bolso de Johnny... ele ainda está no terno... e limpei tudo que havia tocado: os três macacos, o trinco da porta... tudo.

        "Depois, corri para o meu quarto. Tranquei a porta, tirei o terno, dobrei-o e o coloquei no fundo da minha mala. Tomei um banho..."

        Marsh fechou os olhos outra vez. Depois, disse, com uma voz exausta:

        - Havia sangue de Johnny em mim.

 

        Aquele era o corpo da história.

        Havia complementos. Por que ele guardara o terno de Benedict?

        - Foi porque pertencia a Johnny? - Ellery perguntou.

        - Sim.

        O rapaz olhou o pai. O inspetor mal podia sacudir a cabeça.

        - Al, você percebeu que há sangue no forro do paletó? Sem dúvida, de Johnny; o mesmo sangue que respingou em você, quando o matou e vestiu às pressas a roupa dele, na tentativa de escapar. Não lhe ocorreu que os tipos de sangue combinavam... o de Johnny e o das manchas? Que, se o terno fosse encontrado com você, isso seria uma prova perigosa?

        - Não pensei que ele seria encontrado. Ninguém, nem mesmo Estéban, sabe que tenho esse armário escondido. Bem, de qualquer forma, não consegui me separar do terno. Ele era de Johnny.

        Ellery virou-se de costas.

        O inspetor Queen queria saber sobre o casamento.

        - Não encaixa, Marsh. Não, tendo em vista o que você acabou de nos revelar a seu respeito.

        Mas encaixava.

        Na noite do crime, Marcia, que ocupava um quarto vizinho ao de Marsh, viu a porta se abrir e foi espiar. Ele estava preocupado com sua obsessão e não a viu. Al Marsh passou debaixo da luz do corredor, em direção ao quarto de Benedict. Marcia viu perfeitamente o rosto dele. Apesar das roupas e da maquilagem, ela o reconheceu.

        - Marcia é a única pessoa que eu sei que há muito tempo suspeitava de mim - o advogado disse. - Ela é muito inteligente e perspicaz para essas coisas. Trabalhando nos shows de Las Vegas durante anos, tem uma certa prática em reconhecer as pessoas. O que viu naquela noite, ela me disse mais tarde, confirmou suas suspeitas. Se tivesse contado a você e ao chefe Newby, naquela noite, teria solucionado o caso imediatamente.

        Mas Marcia percebeu que o silêncio seria mais lucrativo. Logo os acontecimentos provaram que estava certa. A morte de Benedict cortou sua pensão semanal. O testamento ia deixá-la sem um centavo. Ela contou o segredo de Marsh ao segundo marido. O Raposa decidiu não deixar escapar aquela oportunidade.

        - Ele tinha tudo para começar uma chantagem - o inspetor Queen disse, sacudindo a cabeça. - Ela o viu com as roupas e, certamente, deduziu que havia assassinado Benedict. Não é de admirar que você tenha matado Faulks. Você o matou, não?

        - O que mais eu poderia fazer? - Marsh disse, dando de ombros. - Não preciso contar a vocês como funciona a chantagem. Os chantagistas sempre me deixaram apavorado. E eu nunca estive fora de perigo de ser exposto.

        Havia acertado tudo para encontrar Faulks atrás do Museu de Arte, no Central Park, à noite, provavelmente com o pagamento. Mas, em vez disso, tinha dado uma facada na barriga do marido de Marcia.

        - Achei que ia amedrontá-la - Marsh continuou. - Fiz aquilo como autodefesa. Ela teria que pensar: se eu matara Faulks, não teria problemas em matá-la também. Achei que, com o tempo, se afastaria e esqueceria tudo.

        "Mas Marcia apareceu com um contra-ataque. Ela propôs que nos casássemos. Foi muito persuasiva. O nosso casamento daria a ela a segurança financeira que queria e me daria uma cortina de fumaça, atrás da qual esconderia minha verdadeira natureza. Uma porção de tipos como eu casa exatamente por essa razão. E ela não precisou me lembrar que uma esposa não pode testemunhar contra o marido. Bem, na verdade, não chegou a ser minha esposa, graças a você, Ellery. Ela ainda está se preparando para mudar para cá."

        Ellery não respondeu.

        Marsh disse algo curioso:

        - Imagino o que vocês estão pensando.

        - Não estou pensando o que você acha, Al.

        - Então, você é uma exceção. Se ao menos as pessoas parassem de nos ver como uma espécie de monstros... nos deixassem viver nossas vidas como queremos, com intimidade e decência, sem preconceitos, acredito que tudo isso não teria acontecido. Teria sido fácil para mim fazer minha proposta. E Johnny a teria rejeitado sem aborrecimento, sem crueldade, sem me causar pânico. Ele não teria procurado me castigar, nem teria feito ameaças. Eu não perderia a cabeça. Poderíamos continuar amigos. Ele ainda estaria vivo.

        - Pobre Johnny! - Marsh disse, depois de uma pausa, e ficou em silêncio.

        Os Queen também estavam quietos. Marsh mudara muito nos últimos minutos. Parecia ressecado, encolhido, sem sua força vital. Parecia velho.

        Finalmente, o inspetor Queen pigarreou.

        - É melhor se vestir, Marsh. Precisa vir conosco.

        O advogado concordou, quase satisfeito.

        - Vou tomar um banho.

        E entrou no banheiro.

 

        Tiveram que arrombar a porta.

        Marsh estava estendido no chão. Tinha tomado cianeto.

        No meio da noite, depois do suicídio de Marsh, Ellery levantou-se, acendeu as luzes e foi para o quarto do pai.

        - Papai!

        O inspetor parou de roncar e abriu um olho.

        - Unnh?

        - Vincentine Astor!

        - O quê?

        - Vincentine Astor!

        - Unnh!

        - Ninguém pode ter um nome desses na vida real. Deve ser um nome artístico... para dar idéia de classe. Aposto que ela é a Laura. Laura Homme-qualquer-coisa!

        - Vá dormir, filho.

        O velho seguiu seu próprio conselho.

        Mas Laura Homme-qualquer-coisa, a garota desaparecida do Clube de Garotas e Rapazes de Manhattan, apareceu. Descobriram a srta. Hommerstein na sua cidade natal, Chillicothe, Ohio, à sombra do monte Logan. Colocava os livros nas prateleiras da Biblioteca Carnegie. Vivia com pai e madrasta, mais um bando de garotos, filhos do segundo casamento, numa casa agradável, numa rua cheia de árvores. Seu pai, David Hommerstein, tinha sido empregado das fábricas de papel de Chillicothe durante vinte e sete anos.

        Laura Hommerstein foi uma surpresa. Não era a loura platinada e grande que eles esperavam. Era bonita e feminina. Tinha cabelo castanho, olhos suaves, uma voz macia. Era uma dama. Formara-se em arte dramática, em Oberlin, e tinha ido a Nova York procurar emprego.

        Precisara de dinheiro para comer e dormir. Por isso, havia tingido os cabelos, comprado uma minissaia e aplicado uma grossa camada de maquilagem no rosto de garota do interior. Assim, conseguiu emprego de chapeleira num clube noturno. Lá, encontrou Johnny Benedict.

        - Ele me disse imediatamente - Laura contou - que, por trás daquela fantasia, havia visto a "minha parte essencial".

        Ela resistiu aos convites, durante três semanas. Depois, começaram a se encontrar discretamente, mais por insistência de Benedict do que por vontade dela.

        - Finalmente, ele disse que tinha intenções sérias a meu respeito. Falou que me amava. Claro que não acreditei. Conhecia a sua reputação. Mas Johnny era encantador. Era mesmo. Ele sabia como tratar uma mulher. O máximo que tentou foi me beijar. Entretanto, havia algo nele que me impediu... Acho que queria muito me convencer, mas continuava a afastá-lo. É difícil para uma garota como eu acreditar num homem como Johnny... um multimilionário jovem e bonito, que não tenta nada, nem faz propostas. Isso tornava as coisas mais difíceis... Ele continuou falando em casamento. Parecia que tudo já estava acertado. Johnny não acreditava que uma garota pudesse recusá-lo. Eu continuava dizendo que não tinha certeza. Precisava de tempo. Continuava dizendo que não ia me precipitar. Ele fazia todos os planos.

        - O sr. Benedict lhe pediu que assinasse algum tipo de acordo? - perguntou o chefe Newby.

        - Acordo? - Laura sacudiu a cabeça. - Eu não assinaria, nem se ele pedisse. Não tinha certeza dos meus sentimentos. Quanto a Johnny... ele me disse que precisava ir a Wrightsville...

        - Então, sabia da reunião dele com as ex-esposas, no dia 28 de março?

        - Ele não disse por que ia lá, nem quem encontraria. Só avisou que tinha que terminar uns negócios. Foi esse o problema.

        - Problema, srta. Hommerstein? Que problema?

        Então, tudo foi descoberto.

        A incerteza de Laura sobre a sinceridade de Benedict havia agido como uma armadilha. Ela sentia dor de consciência. Ele tinha sido muito vago, ao falar dos motivos para o fim de semana em Wrightsville. Ficou cheia de suspeitas. Sua mentalidade de classe média do interior... apesar de se considerar uma mulher emancipada... tudo a fizera pensar que ele tinha "um ninho de amor" com "outra mulher". Detestando suas próprias suspeitas, mas querendo testar Johnny Benedict, ela alugou um carro e dirigiu-se até Wrightsville, no sábado.

        - Eu nem acreditava no que estava fazendo. Nem sabia o que faria, quando chegasse lá. Supunha encontrá-lo com outra mulher, dizer-lhe o que ele merecia ouvir e terminar tudo. Quando cheguei lá... estava entrando na fazenda... senti-me, de repente, envergonhada. Vi como estava agindo errado e tive vontade de fugir. Não confiara em Johnny e não confiava nele, naquele momento. Sabia que nunca confiaria. Virei o carro e voltei para Nova York. Na manhã de domingo... eu estava triste demais para dormir... ouvi no rádio que Johnny havia sido morto durante a noite.

        Medo... Ela havia estado do lado de fora de uma casa onde estava acontecendo um assassinato. Aquilo fez com que Laura voltasse voando a Chillicothe. Nunca tinha dito nada à família sobre o jovem da alta sociedade, cujo nome e fotografia agora apareciam no rádio, na televisão e nos jornais. Quando surgiu a história do testamento para a misteriosa Laura, ela não precisou que nenhum advogado lhe dissesse que não tinha direitos sobre nada. O casamento não tinha acontecido.

        Não se apresentou como a Laura procurada, pois o caso Benedict não fora resolvido.

        - Eu tinha um namorado, aqui em Chillicothe, no outro quarteirão, desde a minha infância. Ele queria casar desde que nos formamos. Estávamos quase marcando a data. Mas a família dele é de batistas fanáticos e não me aceitava. Sei que Buel ficaria ao meu lado, se eu fosse arrastada pela imprensa e televisão, mas a família dele dificultaria as coisas para nós. Pode manter o meu nome fora disso? Por favor?

        Mantiveram o nome dela fora daquilo...

        - "A última mulher da vida de Benedict" - o inspetor Queen repetiu. - Não foi assim que ele a chamou, naquela noite de sábado?

        - Ele estava errado - Ellery afirmou. - Laura Hommerstein não foi a última mulher na vida de Johnny.

        - Não foi?

        - Não foi.

        - Então, quem foi essa última mulher?

        Ellery ergueu seu copo contra a luz e observou-o. Era um líquido puro e transparente. Fez uma careta e atirou o drinque longe.

        - Al Marsh.

        - Marsh - o inspetor Queen disse, derrubando a revista que lia.

        Estava lendo sobre o funeral do advogado e uma recapitulação dos acontecimentos que conduziram até aquilo. Na nova liberdade de expressão da imprensa, a história estava muito explícita. Exageradamente, para o gosto do inspetor, que era um tanto antiquado. - Eu ainda não me acostumei com isso.

        - Por que não, papai? No seu tempo, investigou uma porção de homens como Marsh. Todo policial sabe disso. Você sabe disso.

        - Mas é a primeira vez que estou pessoalmente envolvido num caso desses. Marsh parecia um homem e agia como homem, sabe o que quero dizer. Talvez, se ele fosse um pouco óbvio...

        - Ele era... do seu jeito...

        O velho ficou espantado.

        - O apartamento dele - Ellery disse - praticamente atirou o segredo no seu rosto.

        - Se atirou, eu não entendi.

        - Há uma desculpa para você: não foi jantar lá.

        - Quer dizer, toda aquela decoração máscula, o equipamento de atletismo... eram apenas disfarces?

        Ellery sorriu.

        - Sim, eram disfarces, no caso de Marsh. Mas não eram pistas. Caso contrário, a sociedade estaria cheia de problemas! Não. Foi uma pista tão gigantesca como um carvalho, e eu a perdi completamente. Seus discos e fitas... mais Tchaikovsky e Beethoven do que qualquer outro. Os livros raros, as primeiras edições... Proust, Melville, Chris Marlowe, Gide, Verlaine, Henry James, Wilde, Rimbaud, Walt Whitman. Seus livros de arte... principalmente Da Vinci e Michelangelo. Os bustos em exposição... Alexandre, o Grande, Platão, Sócrates, Lawrence da Arábia, Virgílio, Júlio César, Horácio, Frederico, o Grande, Von Humboldt, Lord Kitchener.

        - E daí? - o pai disse, espantado.

        - Você é um vitoriano inocente! Todos estes homens tiveram, ou pelo menos tiveram a reputação, de possuir algo em comum... Junto com Aubrey, isto é, Al Marsh.

        O inspetor ficou em silêncio. Depois, disse, baixinho:

        - Júlio César? Eu não sabia nada sobre ele.

        - Não sabemos nada sobre a maioria deles. Um inglês chamado Bryan Magee escreveu um livro, há poucos anos, chamado "Um em Vinte". Ele diz que é falsa a idéia de que o invertido quer ser reconhecido. A maioria deles, de ambos os sexos, não pode ser distinguida das pessoas normais. Magee fez uma pesquisa minuciosa sobre o assunto e preparou dois documentários para a TV. Qualquer pessoa pode ser... o sujeito gordinho que trabalha ao seu lado, o homem do bar, o vizinho, o amigo com quem você joga bridge todas as quintas à noite, o porteiro do seu prédio ou o seu primo Horácio. Um em vinte, papai... é a estatística. E o número pode ser até antigo, já estar superado. Kinsey dizia que era um em dez... Bem, a pista estava ali, na sala de Marsh, olhando para mim. Como o David, que ele colocou no quarto, com dois metros e meio de altura, nu, como Michelangelo, amorosamente, o esculpiu... Não posso dizer que tenho orgulho do meu papel neste caso, papai. E não apenas por esse motivo.

        - Quer dizer que houve outra pista, filho?

        - Pista não é a palavra certa. Era uma... um esclarecimento. Johnny me disse quem era o assassino.

        - Disse a você? - o inspetor alisou o bigode, zangado. - Como ele disse a você, Ellery? Como? Quando?

        - Quando estava morrendo. Quando voltou a si, depois de ter sido atingido por Marsh, Johnny percebeu que viveria pouco tempo. Naqueles últimos minutos, antes de sua morte, ele teve uma grande lucidez. Quando o tempo está além da contagem normal, o cérebro faz prodígios.

        "Ele sabia que não poderia escrever. Lembra que procuramos e não encontramos nenhum papel e lápis? Entretanto, ele desejava, desesperadamente, me contar quem o atacara e por quê. Conseguiu ligar para a extensão telefônica do bangalô."

        Ellery procurou recordar o passado.

        - Johnny sabia que a minha pergunta, primeira pergunta, em qualquer circunstância, seria: quem fez isso? Mas naquele minuto de lucidez, enquanto agarrava o telefone, ele se encontrou numa situação fantástica.

        - Situação fantástica? - o inspetor franziu as sobrancelhas. - O que quer dizer?

        - Quero dizer: como ele poderia me contar quem o assassinara?

        - Como ele poderia contar? Do que está falando, Ellery? Ele podia ter dito o nome do assassino.

        - Está bem. Diga-o você.

        - Al.

        - Oh, mas isso podia ser confundido com uma tentativa de dizer Alice. Como nós saberíamos que não se tratava dela?

        - Oh! - o inspetor exclamou. - Bem, então: Marsh.

        - Poderia parecer o nome de Marcia.

        O velho começou a se interessar.

        - Entendi o que quer dizer. E o nome de batismo dele? Aubrey. Você o teria entendido.

        - Será, papai? Naquele momento em que Johnny estava impedido de falar claramente? Como eu saberia que ele tinha dito Aubrey, e não Audrey?

        - Huh. - O inspetor ficou pensando. - Huh. Problema esquisito, não? Que tal a palavra "advogado"? Não possibilitaria confusões. Marsh era o único advogado na casa de Benedict.

        - Acho que Johnny estava pensando em nomes. Mas digamos que ele tentasse dizer isso. Pretendia se casar com uma garota chamada Laura. O nome dela estava no testamento que você guardara no bolso. Se ele dissesse "advogado", poderíamos achar que estava se referindo a algum advogado que tivesse ligação com ela. Além do mais, ele tinha uma grande dificuldade em pronunciar as palavras. Acho que preferiu não correr o risco.

        - E a palavra "procurador"?

        - Poderia ter soado toda confusa. Ele não conseguia pronunciar corretamente os "erres".

        - Espere um momento - o inspetor estava entusiasmado. - Há algo que Benedict podia ter dito e não causaria confusões. Era o mesmo que apontar Marsh entre os outros suspeitos! Marsh era o único homem na casa, além dele... Por que Benedict não disse, simplesmente, "homem"? Haveria chances de que concluíssemos ter sido Marsh.

        - Foi o que eu me perguntei. Mas ele não fez isso, e fiquei pensando: por quê? Naturalmente, pode não ter pensado nesta palavra. Mas suponha que a tivesse dito. Iria levantar muitas suspeitas. Não sabíamos o sobrenome de Laura! Foi isso que me sugeriu a idéia de que poderia começar com Ho-m ou Homme... algo assim. Depois, descobrimos que era Hommerstein. Podia ter sido confundido com a palavra "homem" e Laura seria acusada de tê-lo assassinado. Pelo mesmo motivo, ele não tentou dizer "homossexual".

        O velho sacudiu a cabeça.

        - Nunca ouvi nada parecido com isso, em toda a minha vida! Mas, Ellery, você disse que Benedict identificou o assassino no telefonema que lhe deu. Qual foi a palavra?

        - Será que você está sofrendo de senilidade precoce? - Ellery fez uma careta. - Naquele momento, eu não percebi o que a palavra significava! E a esqueci. Papai, lembra-se do que Johnny disse, no telefone, quando lhe perguntei quem o havia atacado?

        - Ele disse algo estúpido: que tinha sido "alguém", "ninguém", alguma coisa assim.

        - Não foi nada estúpido. E ele não disse "alguém", nem "ninguém". Ele estava morrendo e não teve tempo de me esclarecer. A resposta que me deu foi para a pergunta "quem". Eu devia ter levado em consideração a possibilidade de ele ter respondido quem, à minha pergunta de "quem".

        - Alguém não é uma pessoa, Ellery. Não é um nome - o inspetor pareceu espantado. - A menos que ele não tivesse dito isso, mas uma palavra cujo som é parecido com esse...

        - Sim - disse Ellery, aborrecido. - Se Johnny tivesse tempo para repetir a palavra, eu entenderia, e saberíamos quem era o assassino. Teríamos resolvido o mistério, antes mesmo de a vítima dar o último suspiro.

        - Então, Ellery o que Benedict quis dizer foi... gay.

 

 

                                                                  Ellery Queen

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades