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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIELA DA DUQUESA / Sveva Casati Modignani
A VIELA DA DUQUESA / Sveva Casati Modignani

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Nápoles, 1910. Numa das muitas casas pobres da Viela da Duquesa, onde Rosa Avigliano vive com a sua numerosa família, surge de repente uma jovem mulher elegantemente vestida: ela quer que Rosa lhe prepare um feitiço para conquistar o amor do marido. Teresa, a mais velha das crianças Avigliano, fica boquiaberta perante tão extraordinária aparição. Imaginativa e sonhadora, ela gostaria de poder transpor os limites daquelas vielas sem ar e sem luz, onde viu morrer de miséria, de doença e de fome, amigos, vizinhos e até um irmão mais novo. Aquela visitante misteriosa encarna aos seus olhos de rapariga tudo aquilo que até ali lhe foi vedado. Mas a bonita desconhecida não é tão feliz como Teresa imagina: a condessa Josepha Paravicini abandonara há alguns meses o seu castelo no Tirol, terra então austríaca, para casar com o príncipe Enrico Castiglia e se mudar para Nápoles, renunciando aos costumes, às pessoas que amava, às paisagens, aos aromas e à sua língua de infância. Tudo isto para vir a descobrir que o marido nunca a amara. Com o destino por cúmplice, nasce entre a princesa e a rapariga do povo uma ligação que as irá manter unidas durante toda a vida. Ambas atravessam o século que há pouco terminou, sofrem duas guerras mundiais, vivem os dramas da ditadura fascista e os tempos difíceis da reconstrução, empenhando-se na luta pelas reivindicações sociais e pela conquista do direito das mulheres à dignidade.
Narrando as histórias pessoais destas personagens, marcadas por tragédias e paixões, Sveva Casati Modignani percorre todo o século XX num romance que exprime os pontos de vista dos humildes e dos poderosos. Neste entretecer de vidas privadas e grandes eventos, propicia aos leitores páginas intensas que reconstituem com realismo o espírito de uma época e exaltam a força dos sentimentos e dos ideais.

 

 

 


 

 

 


Aporta automática abriu-se silenciosamente à passagem de uma senhora idosa, alta e magra, que entrou no pequeno átrio do Hotel Schloss Rundegg, em Merano. Vestia
um casaco preto debruado a pele de marta, e do chapéu, de abas largas, escapavam alguns caracóis loiros. Tinha um bonito rosto iluminado por uns grandes olhos verdes.
O taxista que a acompanhava pousou duas malas brancas ao lado de um banco antigo.
- Vielen Dank - agradeceu a senhora.
- Bitte - respondeu o taxista, e afastou-se, cumprimentando com familiaridade o porteiro que vinha ao encontro da hóspede.
- O meu nome é Valeschi - disse a senhora. - Foi reservado um quarto em meu nome.
- De facto, estávamos à sua espera. Boa-tarde, signora Valeschi. Fez boa viagem? - perguntou Giovanni, o porteiro da noite. Era um homem com cerca de cinqüenta anos,
com um corpo imponente e um sotaque meridional que lhe fez lembrar imediatamente a sua ama.
- Óptima, muito obrigada - respondeu distraidamente a senhora, enquanto desabotoava o casaco que cobria um vestido vermelho lacre. Olhou em volta, com curiosidade.
Reconheceu o tecto abobadado com a coluna central em pedra rosa que, no Natal, a mãe cobria com ramos de abeto e fitas de seda vermelha. Agora,
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apenas os arcos estavam enfeitados com grinaldas de abeto e bolas douradas.
- Deseja instalar-se, signora Valeschi? - sugeriu Giovanni.
- Com certeza - respondeu, afastando as recordações. Aproximou-se do balcão da recepção, tirou as luvas, abriu a carteira e pegou num documento de identidade.
- Vou já mandar levar a sua bagagem para o quarto - disse ele.
- É na torre? - perguntou.
- Conforme foi pedido - confirmou.
- A que horas servem o jantar? - quis saber a senhora.
- Agora mesmo. São sete e meia.
- Então vou para a mesa - decidiu.
Naquele momento veio ter com eles o maitre, de fato preto, camisa imaculada e laço vermelho.
- Huber, senta a senhora na mesa trinta e dois -pediu o porteiro ao homem, que assentiu com um gesto de cabeça.
Só então ela se deu conta de que uma instalação estereofónica difundia num tom muito baixo os acordes de uma canção de Natal. Seguiu o maitre e achou-se numa sala
de tecto baixo, paredes caiadas, mesas cobertas com toalhas brancas e cadeiras de espaldar alto forradas de veludo vermelho. Velas e ramos de abeto sublinhavam as
festividades natalícias. Era a noite de 30 de Dezembro. No dia seguinte, com as badaladas da meia-noite, começaria o novo milénio.
- Sou a única hóspede? - perguntou a Huber, que a acompanhou até à mesa, depois de ter entregado a um empregado o casaco e o chapéu da senhora.
- A única a jantar. Esta noite os nossos clientes estão num castelo em Vai Venosta. Vão chegar tarde - explicou, enquanto lhe estendia a ementa. - Vai desejar vinho
ou cerveja? Água mineral com ou sem gás?
- Água natural e vinho branco. O que me aconselha?
- Temos um Versoaln excepcional.
Enquanto ela consultava a ementa, um jovem empregado pousou na mesa um cestinho com fatias de pão torrado e um pires com rolinhos de manteiga.
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- Posso ajudá-la a escolher? - ofereceu-se Huber, dirigindo-lhe um sorriso.
- Pode até decidir. Traga-me qualquer coisa ligeira - respondeu a senhora, fechando a ementa. E acrescentou: - Nesta sala, antigamente, havia uma salamandra de majólica
azul e branca que chegava ao tecto.
- Desde que o hotel abriu, e já lá vão trinta anos, isto sempre esteve assim. Antes era tudo uma ruína. Eu conheço isto bem, porque sou de Scena, uma aldeia aqui
perto. Quando era pequeno, vinha para cá brincar com os meus amigos. Entrar no castelo era uma prova de coragem, porque se dizia que dentro destas paredes vagueava
o fantasma do velho Bernhardus Paravicini que, no século XVIII, era o dono. Na Catedral há uma lápide em sua memória - explicou o maitre enquanto lhe deitava vinho
no copo. A senhora provou-o.
- É realmente óptimo - concordou. E prosseguiu: - O senhor e os seus amigos chegaram alguma vez a ver esse fantasma?
- Não, mas ouvimo-lo. De repente éramos atingidos por uma lufada de ar gelado, até em pleno Julho. Então fugíamos, aterrados. Diz-se que o conde Bernhardus não era
uma pessoa muito sociável - garantiu.
- Talvez não lhe agradasse saber que este castelo tinha sido abandonado - respondeu a senhora.
Talvez nem sequer goste que ele tenha sido transformado num hotel, porque há quem garanta que ainda lhe sente a presença. Mas é apenas sugestão.
A senhora viu-se de novo criança, numa noite de Inverno. Havia um vendaval, e a neve, ao cair, fazia redemoinhos. Ela estava sentada num banco, ao lado da salamandra.
- Certamente não tencionas ficar aí toda a noite! - disse-lhe a mãe.
- Estou aqui muito bem - sussurrou ela.
- Mas vais ficar doente. O frio fortifica. O calor é para as pessoas fracas. Tu és uma menina forte. Portanto, vai para a cama.
- Eu não sou uma Paravicini como tu. Sou uma Valeschi. Não sou austríaca. Sou italiana. Tenho frio e não quero dormir sozinha na torre.
- Aqueci-te a cama.
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- Tenho medo do Bernhardus. Ele está ali fora a uivar como um lobo. E eu sinto em cima de mim aquele bafo de gelo.
Nesse momento levou uma mão à face, ao sítio em que a mãe a atingira com uma bofetada. Tinham passado oitenta anos sobre aquela noite.
- Claro, é apenas sugestão - disse.
Um criado aproximou-se da mesa a empurrar um carrinho. Levantou a tampa de duas bandejas. Huber serviu-lhe um filete grelhado de salmão fresco e legumes cozidos
em vapor.
- Amanhã à noite vai haver uma grande festa no castelo. Deseja que lhe reserve um lugar para a ceia?
- É claro - respondeu ela.
Concluiu o jantar com um sorvete de limão. Depois saiu da sala de jantar.
No átrio, Giovanni foi ao seu encontro e devolveu-lhe o bilhete de identidade.
- Se me permite, vi que a senhora nasceu em Merano - observou, satisfeito com aquela descoberta.
Ela respondeu com um sorriso.
- Sabine vai acompanhá-la ao seu quarto, o número trinta e dois - acrescentou, retomando o habitual tom profissional. Uma rapariga com um fato tirolês esperava-a
ao lado do ascensor.
- Veio de Paris, não é verdade? - perguntou a jovem, enquanto subiam. E explicou: - Vi a etiqueta na bagagem.
- Foi uma viagem demasiado longa para a minha idade - confessou a senhora.
- Se desejar, posso ajudá-la a desfazer as malas - ofereceu-se Sabine, ao mesmo tempo que percorriam o vestíbulo do terceiro andar.
Na verdade, a viagem não tinha sido assim tão cansativa; mas sentiu-se cansada de repente. Tinha permanecido na clínica durante três intermináveis semanas, o tempo
necessário para que as feridas cicatrizassem e os hematomas fossem reabsorvidos. Tinha sido submetida a um ligeiro lifting facial.
- Quero tirar este sinal incomodativo que tenho no pescoço. E, já que lá estou, quero-me consolar: massagens, ginástica, dieta e cremes hidratantes - explicou aos
filhos. Se eles soubessem a verdade, ter-lhe-iam certamente criado alguns obstáculos.
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- Podíamos passar o fim-de-ano juntos, no Crillon - propôs, divertindo-se com a idéia de se apresentar rejuvenescida no encontro com eles e com o novo milénio.
Naquela clínica de luxo, isolada do resto do mundo, sem nada que fazer a não ser ver televisão ou ler os jornais, a senhora abandonou-se às recordações. Sempre tinha
evitado deter-se por muito tempo no passado. - É típico dos velhos, consolarem-se com o tempo que passou - dizia às amigas, que falavam com nostalgia dos seus anos
de juventude. Ela tinha tido uma longa existência, por vezes muito difícil, atravessando quase por inteiro o século que estava a acabar.
Na clínica, enquanto as feridas cicatrizavam, reflectiu sobre tudo aquilo que a vida lhe dera e lhe tirara. E, de repente, no momento em que devia ir ter com os
filhos, partiu para Merano, quase como se quisesse fugir deles. Mas não era isso. Tinha tomado uma decisão e precisava de estar só para a avaliar.
- Faça favor, minha senhora, pode instalar-se à vontade - disse Sabine, abrindo a porta do quarto.
Ela recordou o seu quarto de criança. As paredes revestidas de madeira de abeto, o parquet pintado com cores vivas, a cama com a cabeceira de madeira e um edredão
forrado a tecido da Flandres, os trabalhos de ponto de cruz nas paredes, o armário das bonecas e o dos vestidos. Tudo mudara. Achou-se numa antecâmara iluminada
por apliques em madeira dourada e decorada com quadros de motivos florais. A parede do fundo estava inteiramente ocupada por um roupeiro. À esquerda, uma porta dava
para a casa de banho, e à direita ficava o quarto. Era mais pequeno do que a recordação que tinha dele. As janelas continuavam a ser quatro: duas viradas a norte
e duas a leste. Já não havia revestimento de madeira e as paredes estavam pintadas de branco. Viu um amplo leito de casal e, no canto entre as janelas, duas poltronas
antigas e uma mesa redonda em cima da qual se encontrava uma taça com pé, em cristal, cheia de bombons, fruta fresca num cestinho e rosas brancas e lírios numa jarra
de prata. Grandes quebra-luzes, sabiamente dispostos, difundiam uma luz quente.
A senhora deixou-se cair numa poltrona. Tinha chegado ao fim da viagem. Sabine, na antecâmara, abriu as malas e arrumou
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no armário os fatos e a roupa interior. Depois preparou a cama para a noite.
Naquele armário está o frigorífico. Tem água, sumos de fruta, vinho e bolachas - explicou à hóspede. E continuou: - Amanhã vai haver uma ceia para festejar o ano
dois mil. Vem uma orquestra de "dentro" tocar música tirolesa - anunciou, enquanto pousava em cima da cama uma camisa de noite e um roupão.
A senhora sabia que "dentro" se referia à Áustria, que na parte sul do Tirol tinha ainda o significado de pátria. Tinham passado oitenta anos desde a anexação daquela
zona à Itália, mas as pessoas da região continuavam a considerar a Áustria como a sua própria casa. Quando era pequena, acontecia-lhe muitas vezes ouvir a mãe anunciar:
- Amanhã vou para dentro. Vou ficar alguns dias em Innsbruck. - Ela ficava com a ama, Teresa Avigliano, que entrou e saiu da sua vida uma infinidade de vezes.
Dirigiu o olhar à porta da casa de banho. Ali, noutros tempos, era o quarto de Teresa.
- Posso ajudar em mais alguma coisa? - perguntou a empregada.
- Muito obrigada. Não preciso de mais nada - disse, despedindo-se.
Finalmente ficou só. Levantou-se da poltrona e aproximou-se de uma janela que dava para o monte San Zeno. Abriu-a. O ar não estava demasiado frio. Não havia estrelas
no céu. Respirou a plenos pulmões, pensando: "Esta noite vai nevar". Ouviu barulho de automóveis e viu as luzes dos faróis que iluminavam o prado em frente ao castelo.
Eram os hóspedes que regressavam de Vai Venosta. Voltou a fechar o vidro rapidamente.
Recordou o dia em que a mãe lhe anunciou: - - Não consigo manter este castelo por mais tempo. É muito doloroso para mim, mas tenho que o vender. Anda comigo a Merano.
Encontrei um comprador e preciso do teu apoio. - Ela não a acompanhou.
Tinha passado muito tempo desde aquele dia.
Foi à casa de banho, despiu-se, vestiu a camisa de noite e viu-se ao espelho. A cirurgia estética tinha sido bem conseguida. Estava satisfeita, e pensou: "É como
quando se limpam as pratas: ficam mais bonitas de se ver".
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Foi para a cama e encolheu-se debaixo do edredão. Adormeceu imediatamente. Foi acordada pelo toque do telefone. Agarrou no auscultador.
- Mas que horas são? - perguntou com uma voz ensonada, sem querer saber quem era o interlocutor.
- São horas de ganhares juízo. Estamos todos aqui, em Paris, por tua causa. E tu saíste da clínica sem nos informares.
Era o seu filho Gianni. Parecia furioso.
- Valha-me Deus! - suspirou, resignada.
- Tu é que propuseste que festejássemos o Ano Novo juntos. Só por milagre soubemos que estavas em Merano. Mas o que será que se pode fazer com uma inconsciente como
tu?
- Tens quase sessenta anos e ainda não aprendeste a controlar os nervos. Acaba com esses histerismos. Acalma-te e goza Paris em festa - respondeu, nada atemorizada
pela repreensão. Desligou a chamada logo a seguir.
Como é evidente, o telefonista da clínica que fez a reserva para o castelo informara os filhos, apesar de ter recebido uma boa gorjeta para ficar calado. Tentou
retomar o sono, considerando que os filhos quase nunca conseguiam fazê-la sentir-se culpada. Amava-os profundamente, e eles adoravam-na. Mas actuava muitas vezes
por impulso, sem os consultar como eles gostariam. Não estava, de facto, nada arrependida de ter satisfeito o desejo de regressar ao castelo sem os avisar. Durante
anos tinha negado uma parte importante das suas origens e, de repente, sentiu a necessidade de as recuperar. E ainda estava a tempo de o fazer.
O telefone tocou de novo. Era Giuditta, a nora.
- Thea, não te zangues, por favor. Diz-me só se podemos ir ter contigo a Merano. A propósito, sentes-te bem no castelo?
- A resposta à primeira pergunta é não. Sim, quanto à segunda. Dá um abraço a todos por mim e vê se me deixam em paz.
Não quis ouvir mais nada. Já estava completamente desperta e ligou para a recepção.
- Faça-me um favor: diga para não me passarem mais chamadas. Além disso, quero tomar o pequeno-almoço no quarto.
Levantou-se, foi à casa de banho e tentou pentear aqueles cabelos curtos, encaracolados, outrora loiros como os da mãe e agora platinados pela pintura.
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Bateram à porta. Entrou Sabine, empurrando o carrinho do pequeno-almoço. A rapariga vestia um lindíssimo traje regional de lã vermelho-escuro debruado de fitas e
galões e um casaquinho de lã azul.
- Já viu que espectáculo, minha senhora? - perguntou, abrindo a cortina que tapava a janela. A neve caía, lenta e silenciosa, e tinha embranquecido a paisagem.
- Tal como quando nasci.
- Nasceu no Inverno?
- Em Janeiro. Neste castelo, no andar de baixo, no quarto da minha mãe. Também ela nasceu aqui. Chamava-se Josepha Paravicini - explicou.
Sabine olhou-a, incrédula. - A mãe da senhora era uma descendente do conde Bernhardus, o fantasma? - perguntou. A senhora confirmou.
- Posso contar aos outros? Hoje de manhã estava alguém a dizer que o tinha ouvido rir, durante a noite - revelou. - Nunca tinha acontecido, o velho Bernhardus rir.
- Talvez estivesse contente por eu ter voltado - disse ela, com um sorriso compreensivo.
- Qual é a sensação de ser hóspede na sua própria casa? Quer dizer: o castelo era da família da senhora, e agora é um hotel onde toda a gente pode vir -comentou
a rapariga.
- As coisas nunca são como nós gostaríamos que fossem. A vida, muitas vezes, é como uma rodinha: um círculo perfeito que acaba no sítio em que começou. Lembra-se
daquele jogo que se fazia em criança? - perguntou a senhora. E pensou: "Aí está, estou a comportar-me como as minhas amigas velhas. Mas elas têm razão: é importante
recordar".
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA AGOSTO DE 1910
Crianças mal vestidas e sorridentes, de mãos dadas, formavam uma roda tão larga como a viela e andavam à volta, a recitar uma lengalenga. As suas vozes ressoavam
alegremente no silêncio daquela tarde quente de domingo.
Rosa Avigliano entrou na viela e identificou dois dos cinco filhos na roda das crianças. Regressava da casa de don Vincenzo Cuocolo, onde trabalhava como mulher-a-dias.
Não via a hora de se estender, com um pano embebido em vinagre na testa, porque a dor de cabeça não lhe dava tréguas desde o amanhecer. Tudo por causa daquele grande
calor sufocante que cortava a respiração. Agarrava-se a esta convicção para afastar o terror da cólera que, em muitas famílias de Nápoles, incluindo a sua, já tinha
levado tantas vidas. Agora, felizmente, a epidemia estava a extinguir-se.
Uma gota de água caiu-lhe na face, depois outra, e outra ainda. Rosa ergueu os olhos para o céu, que era uma lâmina estreita por cima da Viela da Duquesa.
- Está a chover, meu Deus! - sussurrou, incrédula, enquanto as gotas engrossavam.
- Está a chover! - gritou, para que toda a viela a ouvisse, e aquele grito foi uma nascente de alegria. A tenaz na cabeça abrandou a pressão.
Concetta Russo, com os olhos ainda inchados de sono, apareceu na soleira do seu "baixo" e gritou também:
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- Nossa Senhora do Socorro fez um milagre! - Chamou o marido, para que pusesse a salvo os sacos de lã para cardar.
O merceeiro também se apressou a arrumar os caixotes de madeira de que pendiam tranças de alhos e cebolas, colares de tomates secos comidos pelas moscas, ramos de
malaguetas e grinaldas de limões entrelaçados com loureiro.
O sapateiro levou para dentro de casa o banquinho com os instrumentos de trabalho e a cesta dos sapatos velhos para consertar. As mulheres levaram para dentro mesas,
cadeiras, fogareiros e máquinas de costura. A viela era casa e oficina. A vida fazia-se na rua. Os baixos eram um abrigo só para a noite.
As últimas chuvas tinham caído em Março, e desde então a cidade sufocava sob um sol implacável, de tal maneira que o Lavinaio, o fosso onde confluíam as águas das
chuvas, estava há meses completamente seco.
No princípio de Agosto, o povo levou em procissão a estátua da Senhora do Socorro para implorar a chuva e o fim da epidemia de cólera que, segundo aquilo que diziam
os jornais, tinha feito poucas dezenas de vítimas; mas os habitantes dos baixos sabiam que os mortos eram às centenas e repousavam na colina, no cemitério de Poggioreale.
Em Abril, Rosa Avigliano sepultara ali o último filho, que tinha apenas um ano. Um outro filho de cinco anos, Peppiniello, esteve entre a vida e a morte. No hospital,
o médico disse-lhe que tinha que se conformar. - Mas dois são de mais - sussurrou Rosa, prostrando-se aos pés da estátua de São Francisco. - Nosso Senhor já me levou
uma criança. Não chega? Meu Santo adorado, intercede pelo Peppiniello, e eu entrego-to a ti - prometeu.
O Santo fez-lhe a vontade. O menino tinha-se curado e usava agora o hábito rude dos monges, apertado na cinta por uma corda com os nós do rosário.
Peppiniello, sem se preocupar com o hábito que vestia, corria agora de um lado para o outro da viela com as outras crianças e, como eles, soltava gritos de alegria.
- Meninos, venham, que o céu vai-vos lavar, finalmente! - ordenou Rosa. A chuva ajudara-a a recuperar as energias consumidas pelo calor e pelo cansaço, e agora tentava
agarrar os filhos, como faziam as outras mães da viela. - Teresella! - chamou mais uma vez.
Teresa era a filha mais velha. Tinha doze anos e raramente se
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misturava com os da sua idade. Gostava de passear sozinha pelas ruas do bairro, a observar as pessoas e as coisas. Admirava as fachadas das igrejas, perguntando
a si própria o que significariam aqueles escritos por cima das portas, porque não sabia ler. Examinava os restos de antigos palácios em ruínas, que conservavam vestígios
de uma opulência longínqua. Sabia que naquele bairro tinha sido morto Masaniello e decapitado o príncipe Corradino de Svevia. - Por quem? - perguntou Teresella ao
pai. - Pela fome - respondeu ele. - A fome é um monstro que devora os homens.
Naquele bairro, o nobre Alfonso de Aragão, duque da Calábria, vivera com a sua corte num magnífico palácio do qual já não existiam vestígios há mais de um século.
Mas a partir daí foi dado àquelas vielas o nome de Duquesa; eram sete, como os pecados mortais. Todas igualmente miseráveis, ladeadas de casas degradadas, habitadas
pela fome.
"Qual será o contrário da fome?" perguntava-se muitas vezes Teresella, que não conhecia a saciedade.
Naquela tarde sufocante, a rapariga observava o Lavinaio seco. Estava atulhado de detritos e emanava um cheiro nauseabundo. A chuva apanhou-a de surpresa e correu,
descalça, para casa. Ouviu a voz da mãe que a chamava no momento em que entrou na viela onde ficava o seu baixo.
- Leva lá para fora o balde e a bacia - ordenou Rosa. Estava a tirar aos filhos mais pequenos as roupas rasgadas, deixando nus os corpos mal nutridos de três rapazes
e uma rapariguinha, com a pele morena salpicada de mordeduras avermelhadas de pulgas. No meio da rua, debaixo da chuva torrencial, Rosa esfregou-os energicamente
com sabão.
As crianças riam, abrindo em direcção ao céu as bocas secas. O aguaceiro enchia as bacias, lavava a calçada e arrastava para o Lavinaio toda aquela sujidade.
Rosa empurrou os filhos para dentro do baixo. Pegou num lençol, embrulhou-os todos juntos e massajou-lhe os corpos. - Agora portem-se bem. Vão para cima da cama.
A mãe e a vossa irmã também têm que se lavar - explicou.
O baixo era um quarto sem janela, com uma única abertura que dava para a viela e através da qual recebia pouco ar, pouca luz e nunca sol. As paredes ressumavam humidade.
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Não havia água corrente, nem casas de banho. A água ia-se buscar a poços estagnados e estava sempre contaminada. Quanto ao resto, tinha que ser feito ao ar livre,
onde calhava. Os detritos eram deitados à rua, de onde ninguém se preocupava em os retirar.
As famílias que viviam nos baixos sofriam de catarro crónico. As crianças morriam muitas vezes de "garrotilho", uma angina diftérica para a qual não se conhecia
remédio. Convivia-se com gatos famélicos, galinhas piolhosas e ratos venenosos. À noite, as pessoas deitavam-se em camas infestadas de percevejos.
Há anos que médicos e políticos, autoridades citadinas e jornalistas, escritores e poetas denunciavam a vergonha dos baixos napolitanos. Eram visitados por ministros
e deputados, que lamentavam aquela situação e prometiam melhoramentos que nunca se chegavam a verificar.
No baixo da família Avigliano, o soalho era de tábuas desconexas e encharcadas. Um luxo que o marido de Rosa se permitiu, cobrindo a terra batida com madeira recolhida
na Marina.
Alguns cortinados, suspensos por cordas, criavam cantos de uma intimidade relativa. Enquanto as crianças continuavam a brincar, a rir e a dar cambalhotas na cama,
Rosa, com a ajuda de Teresella, levou para dentro a bacia a transbordar de água da chuva. Puseram-na a um canto, por trás de um cortinado.
- Agora vamos nós lavar-nos - anunciou, desapertando as fitas da camisa da filha. Levantou-a pelas axilas e meteu-a na bacia de madeira. Lá fora, na viela, a chuva
martelava a calçada e no céu faiscavam relâmpagos.
A rapariga, liberta de uma sujidade de semanas, secou-se e começou a passar o pente de osso nos cabelos.
Enquanto se penteava em frente a um espelho, observava-se a si própria e à mãe, que se tinha metido na bacia.
- Mãe, por que é que os meus cabelos são tão negros? - perguntou.
- São os fios de seda que a noite tirou do manto dela e te ofereceu - disse Rosa.
Teresella sorriu, satisfeita.
Rosa dava muitas vezes respostas fantasiosas às perguntas incessantes daquela filha tão curiosa.
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- Está a falar verdade, mãe? - insistiu a rapariga. E acrescentou: - E mais? Que outras prendas me deu o céu?
- A lua deu-te aquela luz pálida para colorir a tua pele e as estrelas entraram na tua boca para te fazer brilhar os dentes - continuou, pacientemente. Tinha saído
da bacia e procurava um pano para se secar.
- E o sol? O que foi que me deu?
- Nada. Eu estava à espera que ele te entrasse no cérebro para iluminar o teu espírito. Mas não foi assim. Andas sempre distraída. Passas a vida a passear e eu não
sei de que é que andas à procura. Só a noite é que te deu presentes.
- Não ando à procura de nada, mãe. Gosto de olhar para tudo aquilo que está à minha volta: os palácios, as ruas, as carruagens, os automóveis, as lojas, aquelas
bonitas, de Chiaia e de Corso Umberto. Gostava de ver a casa de don Vincenzo Cuocolo. Nunca entrei num palácio de senhores.
Don Vincenzo, um rico comerciante de peles, vivia com a família no primeiro andar de um palácio do século XIX de que Rosa fazia a limpeza. Até tinha telefone. Quando
tocava, Rosa estremecia e saía a correr da sala, a gritar: "O taléfricof". Depois ficava a espiar da porta a pessoa que falava, levando ao ouvido uma espécie de
cone do qual saía a voz de um interlocutor distante: uma bruxaria dos tempos modernos.
Naquela grande casa havia duas criadas que punham a mesa, serviam o chá, remendavam os lençóis, passavam a roupa e punham as pratas a brilhar. Ela não sabia fazer
nada daquilo. Tocavam-lhe os trabalhos mais pesados. Limpava as lareiras e as salamandras, descia à despensa para ir buscar a lenha e o carvão para a cozinha e para
o aquecimento, lavava a roupa e esfregava o chão com escova e soda cáustica. À noite, quando regressava ao seu baixo, sentia-se tão cansada que, às vezes, se atirava
para cima da cama sem jantar e adormecia imediatamente, extenuada.
Ganhava duas liras por dia e a família podia contar sempre com elas. Mais incertos eram os ganhos do marido, que trabalhava nas descargas do mercado do peixe. Não
trabalhava todos os dias. Quando calhava, trazia para casa três liras. As despesas eram elevadas, porque o aluguer do baixo era caro. Vinte liras por mês. O resto
ia em comida e remédios.
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No entanto, Rosa trazia muitas vezes de casa do patrão restos de café ou de comida, lascas de sabão e roupa que já não era usada. Em suma, era um bom emprego e ela
fazia os possíveis por o conservar.
- Gostavas mesmo de ver a casa de don Vincenzo? - perguntou Rosa, admirada. Ela nunca nutrira a mínima curiosidade em relação aos palácios dos nobres e dos ricos.
Sabia que o melhor eram mesmo as igrejas. Ali podia-se admirar a verdadeira riqueza: as cores maravilhosas dos frescos, as estátuas de mármore, as colunas e os capitéis
floridos, os estuques dourados e centenas de velas sempre acesas que, só de olhar, aqueciam o coração. Rosa entrava em todas as igrejas como se fosse a dona da casa,
sem temer que os santos a olhassem com desprezo.
- A família Cuocolo não ia gostar de te ver. Têm medo de olhar nos olhos a nossa miséria - disse Rosa com um sorriso irónico, enquanto vestia uma camisa lavada sobre
o corpo magro de seios imensos.
- Mãe, quando é que me vai crescer assim o peito? - perguntou Teresella.
- Que pressa que tu tens de crescer - respondeu a mãe, com uma voz áspera.
- Não me respondeu - insistiu a rapariga, enquanto travava uma luta difícil com os caracóis.
- Quanto mais tarde, melhor. Quando te crescer o peito vais ser uma mulher. Nessa altura, a tua vida, que já é desgraçada, vai ser um inferno. Olha para mim e não
tenhas pressa de crescer - rematou. Nesse momento, um trovão explodiu com tanta força que fez tremer a terra. Rosa estremeceu, a filha agarrou-se a ela, os mais
pequenos pararam de brincar e uma mulher gritou, estarrecida: - Jesus, um terramoto!
- A avó acordou - sussurrou Teresella, contrariada porque o trovão e a avó a tinham arrancado a um momento de intimidade com a mãe.
Rosa afastou a cortina que durante uns minutos a tinha isolado do resto do mundo. Atravessou o quarto e inclinou-se sobre uma cama de onde provinha um cheiro acre.
- Mãe Lina, acalme-se. A cólera ainda não passou, e já está a pensar no terramoto? -interrogou-a com doçura.
- Então o que foi? - perguntou a velha, que se tinha sentado na cama.
- Estava a dormir tão bem que ainda não deu conta do temporal. Os santos, lá em cima, no Paraíso, estão a discutir por coisas deles, muito privadas - - tranqüilizou-a
com um sorriso que se transformou num esgar de desapontamento porque, no chão, alastrava uma mancha de água.
- Nossa Senhora do Socorro, nós pedimos a graça da chuva, não um dilúvio. É assim que respondeis às nossas preces? - disse Rosa, irritada. A viela tinha-se transformado
numa torrente e o baixo, que ficava dois degraus abaixo do nível da rua, estava a ficar alagado.
- Teresella, meninos, ajudem-me - ordenou, enquanto agarrava num monte de farrapos na tentativa de travar o fluxo da água.
- E a senhora, mãe Lina, aproveite para se lavar porque, desculpe que lhe diga, cheira muito mal - acrescentou, voltando-se para a sogra, que, como única resposta,
voltou a deitar-se na cama. Ainda por cima era domingo, um dia dedicado ao Senhor. Durante toda a semana dedicava-se a andar atrás daqueles netos que eram demasiado
enérgicos para as poucas forças que ainda tinha. Para se lavar, esperaria pelo próximo aguaceiro, na condição de vir em dia de trabalho. Quanto ao baixo alagado,
era só um pequeno contratempo que se resolveria depressa mesmo sem a sua ajuda.
O temporal afastou-se e as crianças fugiram outra vez para o ar livre. A viela retomou a sua vida de sempre.
De repente, uma figura luminosa perfilou-se na soleira do baixo. Em frente a elas estava uma mulher jovem, lindíssima, com um vestido branco que a cobria do pescoço
até aos pés. Os cabelos de ouro formavam uma espécie de auréola em volta da cabeça protegida por um grande chapéu.
- A senhora é a dona Rosa Avigliano? - perguntou a desconhecida.
Rosa deixou cair ao chão os farrapos que ainda segurava, pousou uma mão protectora no ombro da filha e respondeu, desconfiada: - E para que é que quer saber?
- Preciso de si para me fazer um feitiço - disse simplesmente a visitante, sem se mexer do sítio onde estava.
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Rosa Avigliano tinha aprendido com a mãe a confeccionar amuletos contra o mau-olhado, a desfazer votos, a pronunciar rezas para conseguir favores dos santos, a preparar
feitiços e a libertar quem era atingido por eles. Conhecia as fórmulas para tornar fértil uma mulher estéril, para curar uma dor de garganta, para escapar ao perigo
de um raio e para casar com um homem renitente.
Ela própria, quando ficou grávida de Teresella e o namorado a abandonou, recitou durante nove noites uma reza a São João. Ao fim da novena viu uma esteira de fogo
atravessar o céu. No dia seguinte, o namorado regressou e casou com ela.
Como quase todos os habitantes dos baixos, Rosa era analfabeta, mas possuía a cultura da superstição da qual, porém, nunca fizera comércio. Pelo contrário, olhava
com desconfiança as curandeiras que tinham sempre a casa cheia de desesperados e se aproveitavam da sua dor para receberem dinheiro e presentes.
Por isso se irritou quando aquela misteriosa mulher, da soleira do baixo, lhe pediu um feitiço.
- Rosa Avigliano sou eu, mas não posso fazer nada por si - disse com uma voz áspera, apertando o ombro magro da filha.
- Sofia, a minha criada, diz que a senhora me pode ajudar - insistiu a jovem, que falava com um sotaque estrangeiro.
- Não conheço a sua criada. Lamento muito - replicou, começando a ficar preocupada, porque a gente da viela se concentrava
já nas costas da visitante, que não mostrava nenhuma intenção de ir embora.
- Sofia é amiga da Concetta, a criada de don Vincenzo Cuocolo, o seu patrão. Disse-me que já lhe preparou um feitiço para conquistar o amor de um jovem - retorquiu
a senhora.
A informação era verdadeira. Concetta, uma das duas criadas da família Cuocolo, tinha-se apaixonado perdidamente por um jovem merceeiro do bairro Vicária, que tinha
olhos azuis e uns bigodes negros com as pontas encaracoladas. Quando Concetta saía para fazer algum recado, corria até à mercearia para comprar scapece, uma conserva
sólida de tomate e courgette, ou spiritosa, a raiz amarela da pastinaca, cozida e temperada com alho e malagueta. Concetta lançava-lhe uns olhares apaixonados para
comunicar ao jovem o seu amor ardente, que ele retribuía com igual intensidade. Esta paixão, alimentada de olhares, continuava há meses a ter apenas o sabor da scapece
e da spiritosa. Concetta oferecia a Rosa aquela comida que comprava inutilmente e jejuava, consumindo-se em lágrimas.
- Ele tem que falar comigo. Quero que me diga que está apaixonado por mim, porque assim não posso viver - confessou-lhe, enquanto escovava os fatos e Rosa, inclinada
no chão, encerava o soalho.
- Concetta, eu também tenho os meus problemas e já estou cansada de ouvir falar dos teus males de amor - desabafou um dia.
- Tens razão. Tem paciência. Mas diz-me, como foi que conseguiste convencer o homem de quem gostavas a declarar-se?
- Jesus, só me faltava esta! Esse declarou-se imediatamente. Não era pessoa para enredos. Foi dito e feito, estás a perceber?
- Não. O que é que quer dizer isso?
- Que a certa altura dei por mim com uma grande barriga. O meu problema era convencê-lo a casar comigo, porque ele deixou-me.
- Ai Virgem Santíssima! E depois?
- Havia duas possibilidades: uma certa e outra duvidosa. A primeira, era contar ao meu pai, que o obrigava a casar comigo com a navalha em punho. A segunda, era
a novena secreta a São João. Escolhi a segunda, e fiquei com a outra de reserva. São João convenceu-o - explicou Rosa, continuando a espalhar a cera.
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- Então eu também posso fazer a novena? - perguntou Concetta, animando-se.
- Não, senhora. Primeiro ele tem de se declarar. Portanto, é preciso um feitiço - explicou a mulher, passando um braço pela testa para limpar o suor.
- E claro! Tenho que ir à tia Grazia, na Viela de Mezzocannone.
- Ela leva-te muito dinheiro. Eu faço-te o feitiço. Mas não garanto que funcione - decidiu. E acrescentou: - Pega na tesoura e corta uma madeixa de cabelo.
- É para já. Aqui está a madeixa. E agora o que é que se faz?
- Isso é comigo - declarou Rosa. Levou-a para casa dentro de um lenço. Queimou-a numa bacia, juntou um pó fino de ervas e deitou tudo num saquinho de pano que depois
entregou a Concetta.
- Tens que meter este saquinho em vinho quando chegar a lua nova e deixá-lo assim durante sete dias e sete noites. Depois dás o vinho ao teu namorado mas tens que
ter a certeza que ele o bebe. A seguir acendes uma vela a São Pascoal e ao fim de três dias ele declara-se - disse-lhe.
- Mas tu és bruxa?
- Espero que não. De qualquer maneira, isto é sabedoria antiga, mas que nem sempre produz o efeito que se pretende. O importante é ter fé.
O feitiço funcionou e o jovem merceeiro casou-se com Concetta. A rapariga prometeu a Rosa não falar a ninguém no feitiço, mas acabou por desabafar com a criada daquela
bonita senhora que a vinha procurar. Rosa Avigliano estava agora realmente zangada, porque não queria de maneira nenhuma atrair sobre si própria a curiosidade da
viela inteira.
- Entre - disse contrariada, enquanto afastava com um gesto brusco os vizinhos que se tinham concentrado à entrada do baixo.
- Sente-se - sugeriu, oferecendo-lhe a cadeira menos desengonçada. - E conte-me tudo - concluiu, sentando-se ao lado dela.
- Será que não posso falar-lhe a sós? - perguntou timidamente a jovem.
- A minha filha Teresella é uma criança. A minha sogra, como pode ouvir, dorme profundamente. Portanto pode falar à vontade.
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- O meu marido não me ama - sussurrou a visitante.
- Mas que rica novidade - comentou Rosa com um sorriso irónico.
- Faz-me sofrer - continuou a jovem.
- É sempre assim. Nós damos a alma por eles e eles nem olham para nós. Príncipes ou mendigos, os homens são todos iguais - lamentou-se, pensando em Matteo, o marido
que desejara com todo o coração, que a deixava, grávida, e ia dar uma volta, a fazer olhos meigos às outras mulheres. À viúva di Giacomo, por exemplo, que não era
mais nova nem mais bonita do que ela. Só que o marido, ao morrer, lhe deixara uma banca de peixe no bairro do Mercado, apartamentos em Nápoles e terrenos no campo.
Rosália di Giacomo morava com os dois filhos no quinto andar da casa que confinava com o baixo de Rosa. Tinha um apartamento de quatro assoalhadas, luz eléctrica
e uma criada para tratar da casa. Rosa sentia-se humilhada quando a encontrava, porque dona Rosália trazia argolas de ouro nas orelhas e um colar comprido de coral
que lhe tocava os seios.
- Acredite, minha senhora, o seu marido não é pior do que os outros - advertiu-a.
- Esta noite maltratou-me - explicou a jovem. Desapertou o punho do vestido e mostrou-lhe as marcas no braço.
"O meu Matteo nunca me bateu" pensou Rosa "mas muitos maridos apaixonados batem nas mulheres, espicaçados pelo ciúme."
- Os homens gostam de briga - comentou.
- Ajude-me, por favor. Quero que ele me dê amor - suplicou a desconhecida.
Rosa viu os grandes olhos da rapariga encherem-se de lágrimas. Teve pena dela. Era tão bonita, tão jovem, e estava tão desesperada. Pensou na sua Teresella. Já não
tardava o dia em que também ela ia chorar por amor. Era a vez de Rosa a consolar para lhe aliviar a dor.
- Eu não faço feitiços. Não sou nenhuma bruxa - disse em voz baixa. E declarou com sinceridade: - Aquilo que a criada da senhora lhe contou é verdade, mas é fruto
do acaso, não dos meus poderes.
- Ajude-me - insistiu a jovem.
- Mãe, ajude a senhora - interveio Teresella, que observava a desconhecida com curiosidade. Fascinava-a a delicadeza
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do rosto, o ouro dos cabelos, os diamantes que brilhavam nos lóbulos das orelhas e o cheiro a alfazema que flutuava à sua volta.
Rosa levantou-se da cadeira com um suspiro de resignação. Foi atrás da cortina e tirou um cordão da coberta branca da cama. Mergulhou-o na água benta contida numa
caixa, em frente à imagem da Santíssima Trindade. Espremeu-o e deu-lhe sete nós, enquanto recitava uma oração. Depois entregou-o à visitante.
- Cosa este cordão no forro do casaco do seu marido. Se ao fim de sete dias não tiver acontecido nada, é porque não há esperança para a vossa união - disse. E acrescentou:
- Mas não volte a deixar que ele lhe bata. Entretanto, sorria. Não é com lágrimas que vai resolver os problemas.
- Sim. Não vou voltar a permitir-lhe que me faça mal - concordou a jovem. - Mas tenho a certeza de que este feitiço vai funcionar. Muito obrigada - sussurrou, enquanto
pousava em cima da mesa uma moeda de ouro.
- Está a ofender-me - reagiu Rosa, olhando-a com severidade.
- Só queria recompensar esta amabilidade - desculpou-se a jovem, confusa.
- Lembre-se de mim nas suas orações à Virgem - pediu Rosa, e acrescentou: - E nunca diga nada sobre o que aconteceu aqui entre a senhora e Rosa Avigliano. - Era
uma despedida.
A jovem enfiou o cordão na bolsa de seda branca.
- Prometo - garantiu. - E a senhora lembre-se de Josepha Castiglia - disse, simplesmente.
Subiu os dois degraus do baixo e foi-se embora.
- Mãe, aquilo é mesmo um feitiço? - sussurrou Teresella.
- Não vai funcionar. Aquela rapariga tem um marido doente da cabeça e do coração - comentou amargamente.
- Como é que sabe?
- Sinto-o - explicou Rosa, assomando com a filha à entrada do baixo.
Ao fundo da viela, uma carruagem esperava a bela senhora que agora passava por entre duas alas de gente curiosa. Às pessoas da Duquesa tinha saído a sorte grande:
uma mulher vestida de branco, uma carruagem, uma visita misteriosa.
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NÁPOLES- PALÁCIO CASTIGLIA AGOSTO DE 1910
Josepha saiu do baixo e olhou em volta. A gente da viela afastou-se para a deixar passar. Ela tentou sorrir, mas não conseguiu ultrapassar o desalento provocado
pela miséria que a rodeava. Dirigiu-se lentamente para o fundo da rua onde, ao lado de uma carruagem, a esperavam o cocheiro e uma mulher que a recebeu com satisfação.
- Finalmente! Já estava a ficar aflita.
- Está tudo bem, Sofia. Tem calma - respondeu a jovem, subindo com ela para a carruagem. - Para o palácio Castiglia - ordenou ao condutor. Em seguida deixou-se cair
contra o encosto de pele escura.
- Conseguiu o feitiço? - perguntou Sofia.
- Está aqui, na minha bolsa - tranqüilizou-a.
Não disse mais nada. Fechou os olhos. Sentia-se infeliz, como sempre, mas as confidências que trocara com Rosa Avigliano tinham-na reconfortado. Falara com ela como
se fosse sua irmã, e perguntou-se por que razão não conseguiria fazer a mesma coisa com a sogra e com as cunhadas. Como era possível ter mais familiaridade com uma
mulher do povo do que com elas?
Estava casada há seis meses e, para acompanhar o marido, tinha deixado no longínquo Tirol os poucos afectos importantes da sua existência. De um dia para o outro,
tinha mudado de terra, de casa e de hábitos. Fizera-o por amor. Tinha dezassete anos e vivia num lugar estranho, com um homem que a desprezava.
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- Josepha, vais ser feliz - tinha augurado o seu tutor, acompanhando-a ao comboio que a levaria a Paris em viagem de núpcias. Nos momentos de desconforto, recordava
as palavras daquele velho amigo para continuar a ter esperança. Não conseguia resignar-se à idéia de que aquele augúrio nunca se viria a cumprir.
Josepha Sidonia tinha nascido condessa Paravicini von Riccabona zu Reichenfelds, senhora de Rundegg e Rametz. Em Fevereiro, quando em Nápoles se propagava a epidemia
de cólera, casou com Enrico Filippo Maria Castiglia, príncipe da Calábria. O casamento foi celebrado na catedral de Merano, cidade natal de Josepha, com o fausto
que a condição dos esposos requeria. Viveu em Paris até Maio, altura em que de Nápoles chegaram notícias tranqüilizantes sobre a epidemia, já circunscrita aos bairros
pobres. O resto da cidade estava em segurança.
- Lembrou-se dos meus conselhos? - quis então saber a criada, desviando Josepha dos seus pensamentos.
- Que conselhos? - perguntou a rapariga.
- Para evitar o contágio. Não aceitou nada de beber, pois não? Esteve sempre com as luvas calçadas? Eu bem lhe recomendei - disse, surpreendida ao captar no olhar
da senhora, habitualmente triste, uma expressão serena. Sofia tinha-se afeiçoado a ela e acompanhava-a fielmente, tendo já aprendido a conhecer-lhe os humores e
os estados de espírito.
Josepha nunca se tinha aberto com ela, mas a mulher sabia como ela era infeliz. Ninguém podia imaginar que o príncipe Enrico pudesse ignorar aquela esposa tão bonita,
até porque, pelo menos em público, se mostrava pródigo de atenções. O drama consumava-se em privado. Sofia tinha-a encontrado a chorar mais do que uma vez. Na noite
anterior ouvira o príncipe gritar com ela. De manhã, enquanto a ajudava a vestir-se, viu as marcas no braço da rapariga. Naquele momento decidiu falar sobre a possibilidade
de conseguir um feitiço.
Josepha estava tão desesperada que resolveu acreditar naquilo que, em outras ocasiões, teria considerado apenas uma superstição tola, e aventurou-se a entrar numa
zona da cidade considerada de risco. Agora, a julgar pela serenidade da jovem, Sofia achou que tinha valido a pena arriscar.
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- Ninguém me ofereceu de beber e não tirei as luvas. Aquelas pessoas não estão empestadas. Estão abandonadas por toda a gente. Acho que era nosso dever ocuparmo-nos
delas - rematou.
A carruagem parou em frente ao palácio. O porteiro apressou-se a abrir a portinhola. Josepha pagou ao cocheiro e, acompanhada pela criada, entrou no átrio. Subiram
rapidamente a escada até ao primeiro andar e entraram pela porta do apartamento. Naquele momento, de uma espécie de funil situado junto à entrada saiu o som amplificado
de um assobio. Era uma chamada que vinha do andar superior.
- Estou muito atrasada, Sofia? - perguntou Josepha, alarmada. Entretanto, tirou o grande chapéu de organza e atirou-o para cima de um divã.
- São cinco horas em ponto - tranqüilizou-a a criada. Encostou-se ao funil, soprou para dentro dele e anunciou: - A princesa já está a sair.
Aquele telefone rudimentar ligava o primeiro andar, onde viviam Josepha e o marido, ao segundo, onde ficava o apartamento da princesa Carolina, a sogra. Fora Sasà,
um velho criado, quem perguntou por ela, porque ia servir o chá naquele momento.
Josepha tirou as luvas e arranjou o cabelo em frente ao toucador.
- Esconde a minha bolsa. O feitiço está lá dentro - ordenou à criada. E perguntou-lhe: - Estou apresentável?
- Como sempre, princesa - animou-a a mulher, sabendo quanto ela temia a opinião da sogra. Por isso voltou a abrir a pesada porta de mogno pela qual Josepha saiu
a correr.
Sasà estava à espera dela e, assim que a viu, sorriu-lhe, inclinando ligeiramente a cabeça. Vivia naquele palácio desde pequeno. Sabia tudo sobre os Castiglia. Tinha
assistido a tudo quanto de bom e de mau acontecera naquela família, sem nunca emitir uma opinião nem pronunciar uma palavra a mais do que o necessário. Tinha agora
quase oitenta anos, vacilava um pouco sobre as pernas cansadas, mas por razão nenhuma se furtaria aos seus deveres. De resto, nunca faltara um único dia ao trabalho.
Josepha tinha por ele respeito e simpatia.
- Boa tarde, Sasà. Está tudo bem? - perguntou-lhe.
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- Tudo bem, obrigado, princesa - respondeu, com uma voz um pouco trémula.
Josepha atravessou uma série de salas e parou à entrada de um salão. As janelas estavam abertas e viam-se os jardins da Marina e as palmeiras que se recortavam,
nítidas, contra o céu. O temporal tinha refrescado o ar e lufadas de vento faziam inchar as cortinas de tule branco apanhadas ao lado das janelas. Na luz clara da
tarde viu os poucos convivas que a esperavam sentados nas poltronas da sala: a princesa Carolina, que tinha os cabelos pintados de vermelho e ressequidos da permanente,
Virginia, a filha mais nova, com um olhar eternamente franzido, Marianna, a segunda filha, trintona, de grandes olhos negros e uma postura graciosa, e Vittorio Alliata,
o marido de Marianna, pequeno e trigueiro, sempre com um ar aborrecido. Faltava Enrico, o seu marido, que tinha saído na noite anterior no meio de um grande alarido
e, obviamente, não tinha ainda voltado.
Josepha respirou fundo e preparou os lábios para um sorriso. Entrou na sala e disse - Bonsoir. - Depois aproximou-se da sogra e, esboçando uma vénia, repetiu: -
Bonsoir, maman.
- Bonsoir, Joséphine - cumprimentou a princesa, pronunciando-lhe o nome à francesa. Em seguida fez-lhe sinal para que se sentasse na poltrona ao lado da sua. Por
fim voltou-se para Sasà, que esperava muito direito ao lado do aparador sobre o qual estavam pousadas as chávenas e o bule. - Pode servir o chá.
Aquela sala chamava-se "sala azul" devido aos tons dominantes dos pesados cortinados de veludo de seda, dos damascos floridos que revestiam as poltronas e do imenso
tapete bukhara que cobria o chão de mosaico. Em duas paredes opostas destacavam-se as lareiras de mármore branco esculpido com o brasão dos Castiglia: três torres
com ameias e um leão erguido. Dentro de grandes cachepots azul-china havia plantas altíssimas e viçosas.
Josepha ergueu o olhar para o tecto pintado a fresco com figuras de anjos roliços de mãos dadas, como se brincassem às rodinhas, pelo meio de ramos floridos entrelaçados,
sob um céu azul com ligeiras nuvens rosadas. Sempre que se sentava naquela sala, Josepha erguia um olhar receoso para o tecto, imaginando que um daqueles anjos podia
cair, derrubando-a.
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De uma sala distante chegavam as vozes melodiosas das crianças, que recitavam uma lengalenga e riam muito.
Eram os filhos de Marianna e Vittorio Alliata que, com outros primos, passavam o domingo em casa da princesa Carolina.
Josepha tinha tido dificuldade em se habituar à opulência daquele palácio, onde lhe parecia haver excesso de tudo: móveis, objectos de adorno, pratas, quadros e
tapetes. Captava em todo o lado sinais de uma ostentação exagerada. A sogra, que se vestia sempre de roxo, andava carregada de jóias. As duas cunhadas, Marianna
e Virginia, competiam com a mãe e iam a Paris, à Madame Paquin, encomendar vestidos, chapéus e perfumes. O cunhado Vittorio só falava de cavalos e automóveis.
Ela tinha crescido na simplicidade. A casa de Merano em que nascera e crescera, Schloss Rundegg, era uma construção severa da Idade Média, decorada com sobriedade.
O vestuário dos Paravicini não se afastava muito do dos criados. Vestiam roupas do Tirol de linho fresco, de Verão, e de lã virgem, no Inverno. Habitualmente, usavam
pratos e copos de estanho e a comida não diferia da dos camponeses. Quando conheceu o príncipe Enrico Castiglia e a família, Josepha ficou deslumbrada e seduzida
pelo fausto que agora a sufocava.
Sorriu aos parentes e, para se sentir menos embaraçada, abriu de repente o leque e abanou-se. Tinha-lho dado a avó materna quando fizera dez anos e entrara para
o colégio em Innsbruck. Chamava-se Dorothea von Rost, era vienense e, como todas as mulheres daquela família, ocupava-se activamente da casa, com a ajuda dos criados.
Também a mãe cozinhava, bordava, recebia os hóspedes e mantinha uma correspondência regular com as amigas e os parentes afastados de Innsbruck e de Viena. Ela própria
sabia lavar, cozinhar e passar a ferro, porque, no pequeno mundo em que vivera, o trabalho era considerado um dever que exaltava a dignidade do indivíduo.
Em Nápoles apercebera-se das diferenças que separavam o Império austro-húngaro do Reino italiano. Aqui o trabalho era uma condenação que recaía sobre os humildes.
Os ricos e os nobres cultivavam o ócio como uma arte. Quando tentou ocupar-se da casa foi severamente repreendida pelo marido. Ela não ousou contrariá-lo, mas aborrecia-se,
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e a nostalgia do seu país tornava-se cada dia mais forte.
- Vi que voltaste para casa há pouco tempo, numa carruagem pública - observou Virginia, com evidente curiosidade.
- Estava com medo de chegar atrasada para o chá - respondeu Josepha, ignorando a provocação.
De cada vez que Virginia lhe dirigia a palavra, sentia a sombra de uma armadilha. Sabia que a cunhada a considerava pouco mais do que uma estranha.
- A nossa casa não é o teu colégio de Innsbruck. Ninguém te ia censurar o atraso - replicou Virginia com um sorriso falsamente angélico.
Virginia não era bonita, nem sequer simpática. Nasceu quando a mãe já tinha ultrapassado os trinta anos. A princesa Carolina decidiu que a filha a devia assistir
na velhice. Ela conhecia as intenções da mãe, que a condenavam a ficar solteira, e vingava-se em toda a gente com pequenos vexames e maldades.
- Queres saber onde estive? - perguntou Josepha com doçura. E continuou: - Depois do temporal, o ar estava tão fresco que decidi dar um passeio.
- Devias evitar passear sozinha. És demasiado jovem e não conheces bem esta cidade. As ruas estão cheias de socialistas que nos odeiam e de ladrões prontos a arrancar-te
a bolsa - interveio o cunhado Vittorio. Tinha quarenta anos, um nome ilustre e um património considerável que desbaratava nas corridas de cavalos e em aventuras
com artistas mais ou menos famosas, entre Roma, Milão, Paris e Londres. Gostava daquela jovem cunhada. Afinal, fora ele próprio quem a apresentara a Enrico, com
quem nunca conseguira estabelecer qualquer relação, porque o jovem príncipe não partilhava do seu entusiasmo nem pelos automóveis nem pelos cavalos, e ainda menos
pelas "poldras" que se exibiam nos café-chantants. Achou que uma estrangeira jovem, graciosa, ingénua e de família nobre poderia tirá-lo da apatia em que parecia
constantemente mergulhado.
- Muitos ladrões roubam porque têm fome. Quanto aos socialistas, não me metem medo. Confio no sábio governo do nosso Rei, assim como sempre acreditei no meu imperador
- respondeu Josepha, com uma ponta de ironia que a princesa Carolina captou imediatamente, assim como não lhe escapou
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a divertida troca de olhares entre Virginia e Marianna.
Esta última era uma mulher agradável e muito sensível ao fascínio masculino. Ao contrário da irmã mais nova, detestava a bisbilhotice mas, tal como Virginia, raramente
se mostrava benevolente nas suas opiniões. Depois de dar à luz três filhos, cansada das infidelidades do marido, decidiu assumir a sua parte de distracção e arranjou
um amante. Era um jornalista que escrevia para Il Mattino e freqüentava os círculos intelectuais. Chamava-se Ciro Ruoppolo, era filho de um professor primário e
a relação com uma princesa Castiglía, casada com um Alliata, satisfazia plenamente as suas ambições sociais.
- Ca suffit - rematou a princesa Carolina, olhando as filhas com severidade. Em seguida voltou-se para a nora: - Por que será que o teu marido não vem?
- Ele hoje não está - respondeu ela, esforçando-se por parecer tranqüila.
- Onde foi? - perguntou o cunhado.
- Conhece o Enrico. Segue a sua inspiração sem dar explicações - justificou a jovem.
Na noite anterior, quando Enrico entrou no quarto dela para lhe desejar uma boa noite, antes de se ausentar, como todas as noites, ela suplicou-lhe que a deixasse
regressar a Merano, já que era evidente que ele não a amava. - É possível que eu não seja uma boa esposa. Mas só Deus sabe quanto gostaria de o ser. Se a culpa é
minha, deixa-me voltar ao lugar de onde vim - disse-lhe.
Estava sentada no canapé, aos pés da cama. Enrico dominava-a com a sua imponência. Era lindíssimo. E estava muito zangado.
- Queres separar-te? - perguntou-lhe com uma voz áspera e os olhos brilhantes de cólera.
Josepha assentiu, olhando-o aterrada.
Enrico agarrou-a por um pulso e obrigou-a a levantar-se.
- Larga-me. Estás a magoar-me - reagiu Josepha.
- É isso que quero - replicou, apertando-lhe o pulso até a fazer chorar de dor. - Ouve-me bem. Fui buscar-te a umas ruínas a que tu chamas pomposamente castelo e
fiz de ti uma princesa Castiglia destinada, talvez, a dama da corte.
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Não ouses voltar a falar-me de sentimentos nem de separação. Essas considerações de pequenos burgueses não me dizem respeito.
Concluiu a invectiva com um empurrão enérgico. Ela caiu e esteve à beira do desmaio, não tanto pela dor física como pela ofensa recebida de um homem com quem se
casara apenas por amor.
Enrico saiu do quarto logo de seguida, batendo a porta com violência. Depois ouviu-o descer as escadas. Não voltara a vê-lo.
- Enrico foi sempre um solitário. Mas agora começa a exagerar - comentou a sogra com amargura.
- É bizarro - sublinhou o cunhado com ligeireza.
- Como todos os homens - replicou Virgínia com um ar condescendente em relação às duas cunhadas que tinham marido: um privilégio que lhe era negado.
- Quando for pai, ganha juízo. De que estás à espera para lhe dares um herdeiro? - disse Marianna.
Josepha corou. Um filho era tudo aquilo que ela mais desejava. Mas, desde o dia do casamento, Enrico nunca lhe tinha sequer tocado.
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Quando se encontrava numa situação difícil e não sabia como sair dela, Josepha defendia-se erguendo entre ela e os outros uma impenetrável barreira de silêncio.
Endireitava as costas e fixava um objecto ao acaso. A sogra, as cunhadas e o cunhado continuaram a conversar. Ela observava a cor de âmbar do chá na chávena que
tinha na mão.
Quase não se deu conta de que, a certa altura, Marianna e o marido se foram embora e que também Virgínia se tinha afastado.
- És assim tão infeliz? - A pergunta da sogra, formulada em voz baixa, devolveu-a à realidade.
A jovem sentiu um tom amargurado na voz da princesa. Desta vez não podia refugiar-se no silêncio. - E a senhora, maman, é assim tão infeliz? - respondeu, até porque
não tinha propriamente uma resposta.
- Uma pergunta interessante - comentou a sogra. - Estás à espera de uma confissão sincera?
- Talvez não. Há verdades que, quando se dizem, fazem mal ao coração - sussurrou.
- Pois é, o coração das mulheres sangra quase sempre, sem distinção de classe nem de idade. Vivemos atormentadas por feridas que nunca se fecham.
- Começo a perceber isso- disse Josepha com amargura.
- Sabes, eu casei com um homem que não amava. Talvez nem sequer o meu marido estivesse apaixonado por mim.
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No nosso tempo, os casamentos eram combinados pelos pais, para reforçar os patrimónios familiares. O meu era substancial. O príncipe apoderou-se dele.
- Parece-me tudo tão triste - suspirou Josepha. Nunca tinha conhecido o príncipe Castiglia. Oficialmente, vivia em Genebra, numa villa junto ao lago, mas certos
mexericos velados, apanhados aqui e ali, sugeriam uma versão diferente. O príncipe enlouquecera aos quarenta anos e tinha sido internado numa clínica suíça para
doentes mentais, de onde não voltara a sair.
Do andar de baixo chegava a voz melodiosa de Sofia, que cantava uma canção de amor. Da rua subia a chiadeira das carruagens puxadas por cavalos e, mais longe, ouvia-se
um comboio.
- Triste, não. Doloroso - corrigiu a sogra. E acrescentou: - Queres ficar para jantar? Estou à espera de um convidado delicioso.
- Como desejar, maman - respondeu Josepha. Não era um convite muito aliciante. Os convidados da princesa pareciam-lhe todos muito aborrecidos, mas nunca teria a
coragem de recusar. Naquela noite tinha uma coisa para fazer que a motivava muito mais. Tinha de coser o feitiço de Rosa Avigliano no casaco do marido.
- Sabes o que escreveu um autor siciliano que tu certamente não conheces? "Esconde um desejo num armário. Abre-o, e encontrarás um engano" - disse a princesa levantando-se
da poltrona. Aproximou-se de uma janela, ficou assim, imóvel, de costas voltadas para ela, e continuou: - Talvez seja melhor não ficares para jantar. Pode ser que
o Enrico decida regressar a casa. - Voltou-se, aproximou-se da rapariga e pousou-lhe uma mão no ombro, olhando-a com ternura.
- Hoje estive no bairro do Mercado e vi sofrimentos bem maiores do que os nossos - ousou confessar Josepha.
- És uma rapariga estranha - observou a senhora, pensativa. Depois abanou o sininho de prata. Apareceu o criado.
- Acompanha a princesa - mandou a sogra. A rapariga saiu da sala e chegou à escadaria.
Desceu alguns degraus e depois parou. Vinha alguém a subir. Talvez fosse o marido que, finalmente, regressava a casa. Retomou a descida com o coração num tumulto.
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Ao nível do primeiro andar, cruzou-se com um homem numa farda de militar. Quando a viu, tirou rapidamente o bivaque de ordenança, metendo-o debaixo do braço, enquanto
se punha em sentido. Os raios oblíquos do sol poente, que penetravam através de uma grande janela aberta, iluminaram-lhe os cabelos acobreados e bem cortados. Josepha
reparou no bigode fino, quase invisível, nos olhos verdes, salpicados de ouro como os bosques do Tirol no Outono, nas maçãs do rosto altas e pronunciadas que faziam
sobressair um nariz perfeito. Era muito mais alto do que ela. Ele inclinou a cabeça num cumprimento. Ela fez a mesma coisa, e depois dirigiu-se, muito direita, para
a porta do seu apartamento, enquanto o jovem recomeçou a subir. Obviamente, era aquele o hóspede de quem a princesa estava à espera.
Pousou uma mão no puxador de bronze cinzelado e olhou para cima. Viu o jovem debruçar-se da balaustrada de mármore e sorrir-lhe, com ar de quem troçava do seu ar
altivo.
- Olá - disse ele, deixando-a desorientada. E acompanhou aquele cumprimento com um gesto da mão calçada.
Josepha, naquele momento, exibiu-se numa reverência cómica. - Servas - replicou, com a mesma boa disposição. Aquele jovem oficial proporcionara-lhe um momento de
alegria.
Com um gesto decidido, baixou o puxador e entrou em casa. O amplo vestíbulo que conduzia aos salões de visitas estava decorado com divãs barrocos alinhados ao longo
das paredes, consolas imponentes com espelhos imensos por cima e, nas paredes, grandes telas de pintores napolitanos do século XIX. Jarras cheias de flores emanavam
um perfume intenso que tornava o ar mais pesado. Atravessou-o e abriu uma pequena porta forrada - assim como as paredes - de brocado cinzento. Seguiu através de
um longo corredor que conduzia aos aposentos destinados a si e ao marido: duas salas de estar, o escritório de Enrico, os respectivos quartos de dormir, com os quartos
de vestir e as casas de banho, e um pequeno quarto onde dormia Sofia. O criado do príncipe vivia com o resto da criadagem no terceiro andar do palácio. A cozinha,
a lavandaria e a despensa ficavam no rés-do-chão. As carruagens, os cavalos, os cães e os armazéns ocupavam um edifício para lá do pátio, onde ficava também instalado
o cocheiro.
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Josepha estava com pressa de recuperar a sua bolsa, que ficara ao cuidado de Sofia. Passou rapidamente frente ao escritório de Enrico. A porta estava escancarada.
Parou à entrada. Ele estava sentado numa poltrona forrada de couro vermelho a fumar um charuto. Não trazia casaco e a alvura da camisa exaltava o tom cinzento-pérola
do colete de seda. Não se mexeu. Limitou-se a olhar para ela. Josepha reparou nos olhos vermelhos e nos cabelos despenteados.
- Perdoa-me - sussurrou Enrico.
Ela foi incapaz de reagir. Estava perdidamente apaixonada por aquele homem indefinível, misterioso. Mas a lembrança do que tinha acontecido na noite anterior era
ainda demasiado viva para lhe permitir perdoar. Acima de tudo, decidira nunca mais se deixar atemorizar por ele. Inclinou a cabeça e seguiu o seu caminho.
- Josepha! - gritou Enrico, com raiva. Ela voltou atrás e olhou-o com severidade.
- Pedi-te perdão. Ouviste-me? - perguntou, com voz rouca.
- Ouvi perfeitamente - respondeu, gélida.
- Então responde-me - ordenou.
Josepha entrou na sala, cujas paredes eram revestidas de estantes cheias de livros antigos. Parou em frente dele e desapertou o punho com gestos lentos. Levantou
a manga e mostrou-lhe as nódoas negras marcadas no braço.
- Devo perdoar-te isto? - perguntou friamente.
Enrico, inesperadamente, estendeu a mão e acariciou levemente o braço da jovem. Inclinou a cabeça e aflorou-lhe o pulso com os lábios.
Josepha estremeceu. Os dedos, os lábios, o perfume do marido tinham o poder de a subjugar. Fora assim desde o primeiro encontro, em Merano, em Setembro do ano anterior.
Tinha regressado pouco tempo antes do colégio de Innsbruck. O seu tutor, o burgomestre Joseph Grossmann, foi ter com ela ao castelo onde vivia sozinha com a criadagem.
Os pais e os avós tinham morrido há muitos anos. Ela mostrou-lhe com orgulho o diploma de curso e a medalha de mérito.
- E agora, o que vais fazer? - perguntou-lhe com alguma inquietação. Era um velho senhor, simples e honesto, ancorado nos modelos e valores do século XIX que, com
o advento do novo
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século, pareciam vacilar. A modernidade do século XX desorientava-o e, no fim de contas, não lhe agradava. Tinha tido duas mulheres. Nenhuma lhe dera filhos. Sentia-se
feliz por tomar conta de Josepha, mas aquela rapariga de aspecto delicado, olhar altivo e sem parentes era para ele uma fonte de contínuas preocupações.
Não era um problema ocupar-se dos poucos bens que restavam à última descendente dos Paravicini: o castelo, umas vinhas, uns bosques de coníferas e algumas acções
de uma sociedade de energia eléctrica adquiridas pela avó Dorothea com o dinheiro obtido pela venda de um palácio na Áustria. Agora dava-se conta de que não bastava
administrar com honestidade o modesto património da jovem. Aquela rapariga precisava do calor de uma família. Não podia deixá-la sozinha, entre as paredes de Schloss
Rundegg, confiando-a ao cuidado de três velhos: as duas criadas e o criado. Tinha de lhe arranjar um marido.
Naquela estação, a nobreza europeia convergia para Merano. Fora a Imperatriz Sissi quem despertara aquela pequena cidade do sul do Tirol da sua sonolenta quietude,
transformando-a num local da moda. Os castelos abandonados há séculos foram rapidamente restaurados e surgiram grandes hotéis e novas residências. A fina flor passeava
ao longo do Passirio, freqüentava as Termas, acotovelava-se no hipódromo. Promoviam-se concertos, recepções, almoços, bailes e festas. As senhoras redescobriam os
fatos característicos do Tirol. Histórias de amor começavam e acabavam no tempo de uma estação. Não ia ser fácil casar com alguma honradez a jovem órfã. Mas também
não era impossível. Josepha pertencia a uma família aristocrata e alguns parentes seus tinham desempenhado cargos públicos importantes no Tirol. Entre estes contava-se
Bernhardus Paravicini. Mais de um século depois da sua morte, ainda se elogiavam os dotes públicos e privados daquele homem. Morrera em 1770, com cento e quatro
anos, e a quarta mulher, uma jovem de trinta anos, deu à luz o último filho quatro meses depois da morte do marido. O notável património do conde Bernhardus dispersou-se
nas numerosas subdivisões de heranças. Em pouco mais de cem anos, desapareceram os herdeiros e os seus haveres. No entanto, Josepha era ainda senhora de Rundegg,
o castelo dos antepassados.
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É certo que o novo século trazia consigo novidades fascinantes. Os automóveis e os trens eléctricos substituíam os cavalos. A electricidade entrou nas casas, nos
escritórios, em toda a parte, mudando radicalmente os hábitos das pessoas. Mas a nobreza continuava a ter algum peso. E ele ia fazer valer os títulos daquela pupila.
Forçando a sua natureza esquiva e reservada, o burgomestre reabriu as salas do castelo e organizou recepções para introduzir Josepha na sociedade. Como é natural,
ela não conhecia as verdadeiras intenções do tutor. Ficou preocupada quando o viu gastar uma fortuna para lhe comprar vestidos lindíssimos e elegantes. Sentiu-se
intimidada quando ele a quis ao seu lado nas vestes de jovem dona da casa. Apaixonou-se quando o tutor lhe apresentou o belíssimo príncipe Enrico Castiglia, que
lhe aflorou a mão com um beijo, sussurrando-lhe "Enchanté". Bastou-lhe olhar para ele e sentir o toque dos seus lábios para o amar apaixonadamente.
E amava-o ainda, enquanto lhe mostrava as marcas que a violência da véspera lhe deixara no braço.
- Não te queria magoar - murmurou Enrico, olhando-a tristemente. Ela voltou a apertar o punho.
- Isto não é nada - respondeu. - São outras coisas que me doem. Quero esquecer o teu comportamento vulgar da noite passada e ignorar o teu desprezo pela minha família.
Mas não posso continuar a suportar o teu engano. Tu mentiste-me. Pediste-me em casamento e encheste-me de vestidos e de jóias que eu nunca te pedi. Em público tratas-me
como uma rainha, e em casa evitas-me como se eu sofresse de uma doença contagiosa. Porquê? O que foi que eu fiz para merecer tudo isto? É uma pergunta que eu faço
desde a nossa noite de núpcias quando, em Paris, me deixaste sozinha num apartamento do Ritz. Eu sonhava com a felicidade e tu nem sequer olhaste para mim. Um homem
e uma mulher, quando se casam, dividem a mesma cama. Nós nunca o fizemos. Porquê? - perguntou, em voz baixa.
Ele baixou a cabeça e não respondeu.
- Porquê? - repetiu a rapariga com mais força, inclinando-se sobre ele. Voltou a levantar-se confusa, desorientada, porque Enrico estava a chorar. Teve um instante
de hesitação, e depois acariciou-lhe os cabelos como se fosse uma criança.
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- Qu'est-ce qui se passe? - perguntou-lhe baixinho. - O que se passa contigo? - repetiu na sua língua.
- Não passas de uma menina - disse ele. E acrescentou: - Não ias entender.
- Mas sou tua mulher. Preciso de entender - reagiu Josepha.
- És tão nova - repetiu Enrico, mecanicamente. Depois, surpreendendo-a mais uma vez, puxou-a para cima dos joelhos e abraçou-a.
- Só por esta noite, queres dormir na minha cama? - sussurrou ela.
Enrico concordou.
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA AGOSTO DE 1910
Matteo Avigliano entrou na Viela da Duquesa quando o sol descia no horizonte e os sinos tocavam alegremente, anunciando a Avé-Maria. Os habitantes dos baixos comiam
na rua o pouco de que dispunham.
Duas mulheres discutiam nos andares mais altos e os gritos ressoavam na viela. As pessoas ouviam e tomavam partido, uns por uma, outros por outra. As crianças faziam
um barulho diabólico, afastando aos pontapés cães esqueléticos que tentavam roubar algum pedaço de comida. Os homens, encostados às paredes, conversavam entre si
com um copo de vinho numa mão e um cigarro na outra. As raparigas cavaqueavam à janela, enquanto uma voz de tenor cantava: "Fenesta ca luàve...".
Matteo caminhava lentamente, as mãos enfiadas nos bolsos das calças deformadas pelo uso e o casaco negro de fustão aberto sobre o peito largo. Trazia um cravo vermelho
na lapela. Dera-lho Rosália di Giacomo, tirando-o do peito com um sorriso cheio de subentendidos.
Gostava de Rosália. Tinha um riso forte, dentes bonitos e ancas Onerosas. Era temida no bairro, porque emprestava dinheiro a juros e não havia lágrimas capazes de
a comover.
Alguém despejou um balde de água suja de uma varanda. Matteo afastou-se rapidamente, apesar de ter as pernas enfraquecidas depois de um dia inteiro de trabalho,
coroado por um encontro apaixonado com Rosália.
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Estava contente por regressar a casa. Sabia que não ia encontrar um jantar rico nem uma mulher terna. Mas havia os filhos. Matteo amava-os. Mesmo quando gritavam
e se pegavam, não conseguia zangar-se. Olhava para eles e o coração inchava-lhe de orgulho. Quanto a Rosa, no fim de contas, não era a pior das mulheres. Era uma
trabalhadora incansável e uma mãe atenta. Tinha mau feitio, irritava-se muitas vezes, mas só por ciúme. Mas não tinha macacos na cabeça, entregava-lhe o dinheiro
que ganhava até ao último cêntimo e nunca gastava uma lira com ela. Tratava a sogra com respeito. Em todo o bairro, ninguém podia dizer mal dela.
Perto do baixo, Matteo viu quatro dos seus filhos a comerem pão e melão. Annina chorava porque Salvatore lhe tinha tirado um pedaço da fruta. Teresella, como de
costume, não estava. Rosa também não estava. A mãe, que distribuía sapatadas ao acaso para fazer calar os netos, ergueu os braços ao céu assim que o viu.
- Agora é que tu chegas! - exclamou. E acrescentou, sufocando um soluço: - A desgraça caiu mais uma vez sobre esta família.
- As coisas que a mãe inventa por causa de um pedaço de melão - disse o homem, sem paciência, entrando no baixo já mergulhado na escuridão.
Em cima da mesa havia uma vela acesa. Um luxo que aquela família raramente se permitia. Ouviu um choro sufocado para além da cortina que protegia o leito conjugal.
Pairava dentro de casa um cheiro acre que conhecia bem. Assustou-se e pensou em Rosa e em Teresella: uma das duas estava doente.
Parou ao lado da mesa, paralisado pelo medo. Por um instante, foi assaltado pelo impulso de fugir para não saber aquilo que, dentro de alguns momentos, o ia fazer
enlouquecer de dor. Agarrou na garrafa que sustinha a vela e, com um gesto decidido, afastou a cortina. Rosa estava estendida na cama e respirava com dificuldade.
Teresella estava inclinada sobre ela e acariciava-lhe o rosto, chorando baixinho. - Cólera! - sussurrou, aterrado.
Conhecia bem os sintomas daquela doença que, em Abril, lhe matara o último filho; agora que a epidemia parecia ter acabado, a cólera atingia de novo a sua família.
De manhã, antes de sair para ir trabalhar, a mulher preparara-lhe o pequeno-almoço e deixara na prateleira tudo
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aquilo que era preciso para ele fazer a barba. Pareceu-lhe que estava bem. Não se queixou. Agora tinha o nariz aguçado quase transparente, os lábios azulados e gretados,
as faces encovadas e a pele do rosto amarela e enrugada. Aquela doença horrível ceifava as suas vítimas em poucas horas, depois de se ter manifestado.
- Em vez de chorares, vai à farmácia buscar permanganato de potássio - ordenou a Teresella, metendo-lhe algum dinheiro na mão. Pela maneira como via a mulher, pensou
que não havia remédio que a pudesse salvar. Mas tinha de tentar ajudá-la.
- Não deites dinheiro fora - disse Rosa, com um fio de voz. Sabia que já era demasiado tarde para remédios.
Há dois dias que sentia um estranho mal-estar, que tinha insistido em ignorar. Devia, porém, ter-se metido logo na cama e tomado o permanganato. - O remédio já não
adianta - sussurrou docemente a Teresella. - E as tuas lágrimas também não. Pára de chorar. Faz-me mal ao coração. Vai-te embora. Agora tenho que falar com o teu
pai.
Matteo virou ao contrário a bacia de zinco que se encontrava aos pés da cama e improvisou um banco para se sentar ao pé dela.
- Essa flor vermelha e perfumada não te fica bem - disse Rosa, indicando o cravo na lapela do casaco.
Matteo pegou nele e atirou-o para longe.
- Perdoa-me - sussurrou, envergonhado por aquela infidelidade recente.
Rosa pensou na estupidez do marido e de tantos outros homens. Primeiro ofendem e depois pedem desculpa, como se bastasse um acto de contrição para apagar as ofensas.
Se estivesse bem, tinha-lhe dito duas coisas. Mas agora tinha uma coisa muito diferente na cabeça.
- Já não vou ver a luz do dia - continuou. A boca ressequida causava-lhe gretas dolorosas. Mas mais ainda a fazia sofrer a idéia de perder para sempre os filhos
e aquele marido que tanto amara. A paixão que tinha por ele nunca se apagou. Sabia que Matteo não ia dormir sozinho por muito tempo. Os viúvos, sobretudo os que
tinham filhos, voltavam sempre a casar. Era um tormento pensar que Matteo ia partilhar aquela cama com outra mulher.
- Amanhã já estás bem - mentiu o homem, com o peito
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sacudido pelos soluços. Segurava uma mão de Rosa entre as suas e beijava-a docemente.
- Antes de me ir embora, tenho de resolver a tua vida e a das crianças - disse ela.
- Cala-te, por amor de Deus - suplicou-lhe.
- Pelo contrário, vamos conversar, porque já não há muito tempo. Tens muitas mulheres à tua volta. Uma delas tem de ser a tua segunda mulher.
- Não digas essas coisas, Rosa. Não vai haver outra mulher depois de ti. Esta cama é sagrada.
- E vai continuar a sê-lo. Vais ter outra, longe desta caverna. A cama de uma senhora que mora numa casa grande, cheia de luz. Os meus filhos precisam de ar e de
sol. Tu sabes bem de quem falo - sussurrou.
Matteo assentiu.
- Portanto, chama a viúva di Giacomo e traz-ma aqui, ao pé de mim - ordenou.
Sabia que o marido preferia Rosália a outras mulheres que o desejavam. Rosa detestava-a porque lhe conhecia a avareza, o cinismo e a mesquinhez. Tinha a certeza
de que Rosália ia conseguir casar-se com Matteo, mas queria ser ela a impor as condições.
- Ela não vem. Não há nenhuma razão para isso - objectou o homem.
- O desejo de quem está para morrer é sagrado. Ela vem. Matteo achou aterradora a perspectiva de trazer à cabeceira de
Rosa a mulher com quem vivia fugazes momentos de paixão. Rosália, tão elegante e perfumada, não devia passar a soleira daquele baixo sórdido e miserável. Mas não
podia recusar-se a satisfazer o último desejo da mulher. Rosa continuava a ser mais forte do que ele. Do fundo do coração, esperou que Rosália recusasse o convite.
Mas a viúva não se fez rogada. Entrou no baixo a tapar os lábios e o nariz com um lencinho cheio de perfume. Inclinou-se sobre Rosa para ouvir as palavras que esta
tinha para lhe dizer.
- Mandei-a chamar porque tenho de lhe pedir um favor. Se por acaso pensar em casar outra vez, tome em consideração o meu marido. Não preciso de lhe referir as suas
qualidades. Conhece-as bem - disse, sem conseguir evitar a ironia. - Mas quanto ao resto é ingénuo como uma criança. Tem a força toda no corpo. A vontade é fraca.
Mas é uma pessoa honesta.
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Faz bom negócio, se casar com ele.
- Mas isso é conversa que se tenha? O seu marido é só um empregado meu. Quanto ao resto, a senhora é a mulher dele e...
Rosa não a deixou acabar. - Só por pouco tempo, dona Rosália. Gosta do Matteo. Eu sei. É natural. Eu também gostei. Mas agora temos cinco filhos. Se um dia se casar
com ele, terá de ser mãe deles. - Finalmente, tinha-se desforrado, ao fim de tantos anos de frustração. Tinha conseguido transformar em decisão sua uma união que
se consumaria de qualquer maneira. Mas havia mais. Por isso continuou: - Os meus filhos vão viver consigo, na sua casa. Terá de os alimentar e vestir como deve ser.
O meu marido pagará com o trabalho dele a comida, a roupa, os remédios e tudo o que for preciso. Se os puser na escola, não faz mais do que a sua obrigação. Não
lhe peço que os ame. Peço-lhe que os respeite. Parece-lhe demasiado?
Rosália nunca se sentira tão embaraçada. Habituada a olhar toda a gente do alto da sua riqueza, sentia-se agora numa situação de dependência que a incomodava.
- Dona Rosa, eu nunca pensei casar com o seu marido - protestou.
- Eu sei. Tem razão. Mas, se por acaso um dia isso lhe passar pela cabeça, já sabe o que tem a fazer, e eu, lá de cima, vou abençoá-la - concluiu Rosa.
Enquanto ouvia, Rosália olhava de soslaio para Matteo que, enfiado num canto, soluçava baixinho. Gostava daquele homem, ainda jovem e forte. Depois de arranjado,
faria uma bela figura ao lado dela. Nunca tinha pensado casar com ele, porque nunca imaginara que a mulher pudesse morrer. Agora via-o sob um outro aspecto. Efectivamente,
podia dar um bom marido. É claro que, ao casar com ele, teria também de levar para casa os cinco filhos. Eram realmente de mais. Pensou que a mais velha ia sair
dali rapidamente, entretanto, podia ser útil em casa. Os outros, o pequeno monge em primeiro lugar, punha-os a trabalhar com o pai.
- Se é para ficar satisfeita, digo-lhe já que a coisa se podia resolver - replicou com um ar brando, que lhe contradizia a frigidez do olhar.
- A senhora também deve ficar satisfeita - sussurrou Rosa.
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- Não me parece que seja momento para exprimir satisfação - defendeu-se a mulher.
- Por que não? A si não lhe importa a minha morte e a minha proposta não lhe desagrada. Portanto, faça-me um favor. Está a ver aquela imagem da Imaculada a esmagar
a serpente do mal? - perguntou, indicando uma pequena imagem colorida pousada na prateleira ao lado da cama. - Jure pela Virgem que vai respeitar os meus filhos
e tomar conta deles - ordenou.
- Juro - disse Rosália, fazendo o sinal da cruz. E acrescentou: - No caso de eu e o seu marido decidirmos casar.
Rosa concordou, extenuada.
- Se não for fiel a este juramento sagrado, eu saberei. E não ficarei contente - concluiu, segura de que aquela ameaça teria algum peso no comportamento de Rosália.
Rosa Avigliano morreu com a primeira luz da manhã. Foi o último falecimento devido à cólera naquele terrível ano de 1910. Era o dia 15 de Agosto, dia de Nossa Senhora
da Assunção. Teresella teve a certeza de que a Virgem tinha recebido a mãe no Paraíso.
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Rosa foi sepultada numa vala comum, a dos pobres, no cemitério de Poggioreale. A chuva de alguns dias atrás tinha restituído vigor à relva e às flores. Enquanto
o cortejo fúnebre percorria os caminhos do cemitério, no meio daquela festa de cores e perfumes, a avó disse: - - Queria morrer depressa, para repousar, aqui, no
meio desta maravilha.
Todos os habitantes das sete vielas da Duquesa foram despedir-se de Rosa uma última vez. Havia homens, mulheres, crianças e idosos. As mulheres choravam, desesperadas,
e recordavam a honestidade, a rectidão e a generosidade da defunta. Don Vincenzo Cuocolo mandou uma corbeille de rosas brancas e um envelope com vinte liras, para
as primeiras necessidades da família.
No regresso do enterro, a vizinhança invadiu o baixo da família Avigliano, levando comida e bebidas. Nunca ali se vira tanta abundância de macarrão temperado com
zuffritto, um molho feito com vísceras de porco, de vinho asprino, de figos e de melão, para consolar o viúvo e os órfãos.
Foi uma festa que os habitantes da viela recordaram durante muito tempo. Todos, excepto Teresella, comeram até à saciedade. A rapariga, esquiva como sempre, escondeu-se
na cama, por trás da cortina, e não apareceu. Estava desesperada com a morte da mãe, a
assistira até ao último suspiro, enquanto o pai soluçava.
Poucos minutos antes de morrer, Rosa disse-lhe: - Quando eu
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já cá não estiver, tens que entregar esta imagem à dona Rosália di Giacomo. - Era a imagem da Imaculada a esmagar a serpente.
A viúva di Giacomo manteve-se distante de todas as manifestações de condolências. Nunca conseguiria simular nem uma sombra de tristeza, de tal maneira estava satisfeita
com a situação. A pobre Rosa servira-lhe Matteo numa bandeja de prata. Dentro de poucos meses teria um novo marido e não tinha a menor dúvida de que gostava muito
mais de Matteo Avigliano do que do defunto, que a dominara e oprimira de todas as maneiras. Este seria um instrumento maleável nas suas mãos. Ela seria a dona de
tudo e teria um trabalhador fiel e incansável no mercado, e um amante maravilhoso na cama.
Enquanto Rosa estava a ser enterrada, ela saboreava um banho relaxante, perfumado com sais ingleses. Os dois filhos, Vincenzo e Renato, estavam em baixo, na viela,
a inventar malandrices com os amigos. Era bom que se divertissem quanto quisessem. Em Outubro regressavam ao colégio. Os padres que tratassem de os endireitar e
de os instruir. O falecido marido nunca teria aceitado a idéia de os pôr a estudar. "Quando os filhos são mais instruídos do que os pais, acabam por não os respeitar",
dizia. Ele era analfabeto, conseguira tornar-se quase rico. Conseguia, com dificuldade, assinar os contratos que estabelecia com os fornecedores, depois de alguém
lhe ter lido e explicado cada uma das cláusulas. Da aritmética apenas tinha as noções mais elementares de que precisava para o seu comércio. Mas, com o novo século,
tudo mudara. Para incrementar o volume de negócios do falecido pai, era indispensável que os filhos tivessem instrução.
- Lina! - gritou Rosália enquanto saía da banheira. Lina era a criada, uma pobre mulher vinda do campo, onde deixara um marido camponês e seis filhos. Rosália pagava-lhe
um salário de miséria, deixava-a dormir no chão e dava-lhe as sobras da cozinha para comer. Mas sempre era melhor que nada. Lina guardava o que ganhava dentro de
um lenço, apertado com uns nós muito fortes, que trazia ao peito. No primeiro domingo de cada mês, Rosália deixava-a ir à terra abraçar a família. Ela abria o lenço
em cima da mesa da cozinha e ficavam todos ali à volta, a remirar aquelas poucas moedas como se fossem um tesouro.
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A criada veio a correr e estendeu-lhe uma toalha de linho branco. Rosália secou-se, olhando-se ao espelho. Tinha orgulho naquele corpo forte e sólido.
- A senhora é muito bonita, dona Rosália. Parece uma estátua - observou Lina, admirada. Ela arqueou os lábios num sorriso satisfeito. Gostava de receber cumprimentos,
ainda que vindos da criada, que a elogiava, em parte, para lhe conquistar alguma benevolência.
- A beleza vem e vai. Mas, enquanto existe, a mulher deve aproveitá-la - comentou, pensando que também era muito útil ser-se inteligente e astuto. A família de Rosália
era muito pobre e ela, aos dezasseis anos, cravou os olhos no dono da banca de peixe mais importante da cidade, Andrea di Giacomo. Tinha a melhor clientela de Nápoles
e fornecia até o palácio real. Ela demonstrou-lhe que, com o seu sorriso encantador, uma voz melodiosa e olhares lânguidos conseguia vender tudo, até ao último linguado,
deixando os clientes encantados. Andrea tinha quarenta anos e as raparigas da viela achavam-no velho, gordo e feio. Sempre fugiram dele como da peste. Ela, pelo
contrário, casou com ele. Ele cobriu-a de ouro e ela mostrou-se à altura daquele peixeiro rico. Ou mais do que isso, uma vez que o ultrapassou em astúcia e parcimónia.
Com o dinheiro acumulado no banco, comprou uma série completa de casas na Viela da Duquesa, e era ela quem cobrava pessoalmente as rendas.
Depois adquiriu uma nova banca de peixe a um comerciante que estava falido, e depois outra, e mais outra. O dinheiro, nas mãos dela, multiplicava-se. Por vezes,
até o marido se assustava com a avidez irrefreável daquela mulher bela e ambiciosa.
- Estamos a estender-nos demasiado, Rosália. Assim não pode ser. A camorra não nos vai deixar viver sossegados durante muito tempo - avisava.
- Com certas pessoas, eu cá me sei arranjar - replicava, mordendo o freio. Nasceram dois filhos. Entregou-os a uma ama, para não lhe chuparem o seio e não ter de
perder tempo com eles. Estava demasiado ocupada a ampliar os seus negócios e a acumular riquezas. Nunca amou o marido, e quando ele morreu de enfarte respirou de
alívio. Naquela altura, já só era um peso para ela. Mas adorava os filhos e, sobretudo, amava o dinheiro. "E'danare", como dizia,
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em dialecto cerrado. Esta palavra proporcionava-lhe um prazer irreprimível.
- -Precisa de um marido, dona Rosália, para poder gozar tanta beleza - comentou Lina com um sorriso malicioso, enquanto a penteava em frente ao toucador do quarto
de dormir.
- A seu tempo, também isso há-de vir - rematou ela. Não tinha nenhuma intenção de lhe confiar os seus projectos.
Mas já toda a gente sabia que o feliz contemplado ia ser Matteo Avigliano, o viúvo de Rosa, porque esta fora a vontade da defunta.
Rosália, sentada em frente ao espelho, observou a imagem reflectida da cama de casal, coberta com uma grande colcha de linho bordado e protegida por um tule que
descia do tecto. Ali, durante anos, tinha-se aborrecido com o marido. Agora, por sorte, a única coisa que dele restava era um grande retrato a sépia, encerrado numa
moldura oval, pendurado num canto da sala por onde raramente passava os olhos. Dentro de alguns meses, o tempo necessário para respeitar o luto, Matteo Avigliano
iria aquecê-la nas noites de Inverno. É claro que também tinha de instalar ali os cinco filhos. O quarto que dava para o pátio interior ficaria para eles. Os seus
filhos já tinham o quarto deles e, mesmo quando estivessem no colégio, ninguém deveria ousar ocupá-lo. Na sala, nem sonhar. Tinha que estar sempre arranjada e serviria
para almoçarem ao domingo, ela, Matteo e os dois filhos dela. Eles eram di Giacomo, proprietários legítimos de tudo aquilo. Os pequenos Avigliano comeriam na cozinha,
com a criada. E que agradecessem ao céu. A passagem daquele baixo sórdido ao quinto andar do seu prédio era um salto de muito respeito. De resto, ela saberia mantê-los
sossegados. À primeira desobediência, haviam de lhe experimentar a força do braço.
Lina apanhou-lhe os cabelos numa trança macia sobre a nuca. Ela observou-se ao espelho, satisfeita. Mas o sorriso desfez-se numa contrariedade: Teresa Avigliano
estava à porta do quarto, a olhar para ela.
Rosália virou-se de repente e fulminou-a com um olhar hostil - O que é que estás aqui a fazer? - perguntou, agressiva. Aquela rapariga de olhar altivo deixava-a
pouco à vontade.
- Um recado, da parte da minha mãe - disse Teresella, olhando-a bem nos olhos.
- Da parte da tua mãe? Mas ela morreu anteontem! - levantou-se, alisando sobre as ancas as pregas do vestido.
- Antes de morrer, disse-me para lhe entregar isto - explicou, estendendo-lhe a imagem da Virgem. - Disse-me para lha dar depois do funeral.
- Pousa-a ali - ordenou Rosália, sentindo nascer dentro de si uma inquietação que rapidamente repeliu.
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NÁPOLES - PALÁCIO CASTIGLIA AGOSTO DE 1910
Josepha entrou no quarto de vestir. Sofia estava à espera dela e espantou-se de a ver sorrir.
- A minha bolsa - disse Josepha, alegremente.
- Aqui está, minha senhora.
A rapariga fez saltar as duas molas de prata em forma de rosa e abriu-a. Virou-a ao contrário e despejou o conteúdo sobre uma pequena bandeja de veludo vermelho.
No meio de uma caixinha de marfim, um pente de osso num estojo de prata, um frasquinho de perfume com tampa dourada e um lenço de renda, encontrou o cordão com os
nós dados por Rosa Avigliano.
- Aqui está - - exclamou, pegando nele e entregando-o a Sofia.
- E então, o que é que temos de fazer com isto? - perguntou a criada.
- Depois eu digo-te. Agora, quero que me prepares um banho perfumado - ordenou.
- É para já - respondeu a mulher.
Ajudou-a a libertar-se dos sapatos e do vestido, pousou-lhe sobre os ombros um roupão e Josepha entrou no quarto de banho. Era um espaço amplo, de paredes esmaltadas,
decorado com frisos de volutas em estilo Liberty. Havia duas poltronas, colunas que Ostentavam Jarras de flores, dois espelhos com as molduras em bronze dourado
e uma enorme banheira oval em mármore rosa. A água saía de uma torneira de metal dourado em forma de cabeça de leão. Estava morna, como ela gostava.
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Abandonou-se com uma sensação de prazer. Pensava na recente ternura do marido, nas suas lágrimas, na promessa de passarem a noite juntos. Não sabia como explicar
aquela mudança imprevista, há tanto desejada. Mas de uma coisa tinha a certeza: Enrico era um homem indecifrável.
Poucos meses antes do casamento, o tutor tinha-lhe dito: - Estás cheia de sorte. Vais viver para Nápoles, a maior cidade de Itália. Vais encontrar gente interessante
e viver no meio da riqueza! - O burgomestre verificara a solidez do património dos príncipes Castiglia, proprietários de palácios, de casas, de terrenos no sul de
Itália e de uma destilaria de licores famosa em toda a Europa. Os rosoiz(1), os alkermes(2) e o brandy eram os melhores do mercado e garantiam um volume de negócios
de alguns milhões. As destilarias produziam ainda o famoso Elixir de Santa Rosália, uma espécie de digestivo que surgia pontualmente, no fim da refeição, na mesa
das famílias mais ilustres. O tutor informou Josepha de que Enrico, depois do casamento, não se ia apropriar dos bens da jovem mulher. - Um gesto verdadeiramente
generoso - sublinhou o homem -, porque normalmente o património da esposa passa a ser do marido. Tens realmente muita sorte, minha menina - repetia,
satisfeito.
Mas a vida em Nápoles não se revelou assim tão excitante, os compromissos mundanos eram incessantes e, em vez de a divertirem, aborreciam-na. Josepha sentia muitas
vezes saudades da sua" terra. Mas o amor por Enrico, o desejo de o conquistar e a esperança de vir a ser mãe compensavam a sua melancolia.
Saiu da banheira e Sofia embrulhou-a no roupão que tinha bordado, a vermelho, o brasão dos Castiglia.
Sentou-se em frente a um toucador e a criada começou a penteá-la. - A Rosa Avigliano disse-me para coser o cordão na parte de dentro do casaco do meu marido - começou
Josepha.
- E só agora é que me diz! Se eu soubesse, já estava feito - exclamou a mulher.
*1. Nome usado, especialmente no passado, para indicar licores de graduação alcoólica moderada, doces e aromáticos. (N. da T.)
2. Licores obtidos através da maceração em álcool de canela, cravinho, coentros e nOz moscada, aromatizados com essência de rosas e tingidos de vermelho. (N. da
T.)
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- Mas tenho de ser eu a fazer isso, caso contrário o feitiço não funciona - explicou a jovem senhora. E acrescentou: - Traz-me o casaco do príncipe e tem cuidado
para ninguém te ver.
- Qual casaco? O príncipe tem muitos - observou Sofia.
Naquele momento Josepha soltou uma gargalhada. Apercebera-se de que Rosa Avigliano não tinha chegado a preparar um feitiço, pois de outro modo teria indicado em
que casaco devia coser o cordão. Mas aquele toque de falsa bruxaria tinha-lhe devolvido alguma confiança.
- Sabes uma coisa, Sofia? O cordãozinho vai dar-me sorte - exclamou alegremente.
Mais tarde, enquanto jantavam juntos, Enrico parecia eufórico, mais do que alegre.
Pela primeira vez desde que se tinham casado, desfez-se em conversas e mexericos e contou-lhe velhas histórias de família. Falou-lhe do avô materno, que passara
a vida a cultivar rosas maravilhosas, e do pai que, nos estábulos da villa de Caserta, criava cavalos e gastara uma fortuna para adquirir exemplares perfeitos em
todo o mundo.
Enrico comportava-se como se as relações entre eles tivessem sido sempre assim tão íntimas, tão tranqüilas. Aquela mudança imprevista tornava feliz Josepha, cujos
desejos se estavam finalmente a realizar. O muro que os separava tinha-se desmoronado. Por isso, enquanto depenicava um pêssego com marsala(1), arranjou coragem
para lhe confessar aquilo que há meses a atormentava.
- Pensei que tivesses outra mulher - sussurrou, aproveitando a ausência momentânea de Saverio, o criado.
- Mas o que é que te passa pela cabeça? - protestou Enrico, entristecendo.
- Jantarmos juntos, como esta noite, parece-me um milagre. Nunca tinha acontecido. E depois, à noite, vais-te embora e eu não Sei porquê - continuou ela, com uma
voz hesitante.
- Tenho o meu trabalho e as minhas preocupações. Tu, minha menina, não poderias compreender.
- Nunca soube que trabalhavas. Mas porquê de noite? - disSe Josepha, espantada.
*1. Vinho seco e licoroso oriundo da Sicília. (N, do E.)
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- De dia não me consigo concentrar. Tenho um escritório no porto, onde vou trabalhar de noite. Mas é um segredo que não podes revelar a ninguém - recomendou-lhe.
Depois calou-se, porque Saverio tinha regressado à sala de jantar para perguntar se os príncipes desejavam mais alguma coisa. Entretanto, pousou em cima da mesa
uma tacinha com doces e pralinas.
- Podes ir - disse Enrico, despedindo-o. E, voltando-se para Josepha, continuou: - Estou a projectar uma invenção grandiosa, que me absorve totalmente - afirmou
com ar grave.
- De que se trata? - perguntou ela, cheia de curiosidade. Enrico esticou-se por cima da mesa, estendeu um braço para
lhe tocar a face e, em tom de conspiração, disse: - Estou a projectar a construção de um submarino de cristal.
Josepha pensou que tinha percebido mal e olhou-o perplexa.
- Um submarino de cristal? - repetiu, incrédula.
- À excepção das máquinas, obviamente - explicou o príncipe muito depressa. E continuou: - Quero transportar, de Nápoles até Nova Iorque, o Elixir de Santa Rosália,
para o lançar nos Estados Unidos. O barco de cristal é um achado genial para lhe fazer a melhor propaganda possível. A imprensa vai falar muito de mim. Vão falar
do príncipe da Calábria como de um novo Capitão Nemo. Serei eu, obviamente, a pilotar o submarino. Um dia quero levar-te ao meu escritório e mostrar-te o projecto.
Mas, antes disso, tenho de ir a Génova para o entregar aos estaleiros de Baglietto. Excluí Nápoles porque não quero que a coisa se fique a saber. Por enquanto, e
até que o submarino esteja construído, tudo deve ficar em segredo. Tu não me vais trair, pois não? - concluiu, olhando-a com uma expressão febril, quase alucinada.
Não o ia trair, mas não sabia o que pensar. Enrico tinha o poder de a colocar sempre perante situações incompreensíveis. Não sabia se o marido tinha inventado uma
história ou se estava realmente a projectar aquela loucura. Houve um momento de silêncio interrompido, providencialmente, pelo assobio de uma chamada do andar de
cima. Enquanto se levantavam da mesa, Saverio veio anunciar que a princesa Carolina os convidava a subir.
- Então vamos lá tomar o café com a minha mãe - disse ele, alegremente, oferecendo-lhe o braço.
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Na sala de estar da sogra estava o jovem oficial com quem ela se tinha cruzado a subir as escadas. Sorriu-lhe com um ar cúmplice, enquanto a sogra fazia as apresentações.
- O capitão Lorenzo Valeschi - disse a princesa.
Ele inclinou a cabeça e levou aos lábios a mão que Josepha lhe estendia.
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Lorenzo tinha vinte e cinco anos. Era neto do conde Florian Walewsky, um ex-revolucionário polaco que, depois de ter cumprido o serviço militar como oficial no exército
francês, se dedicou à vida política. O filho, Alessandro, pai de Lorenzo, estabeleceu-se no norte de Itália e mudou o apelido Walewsky para Valeschi. Casou com uma
jovem de Milão, Vezia Bassanesi, filha de um advogado famoso, e começou a trabalhar com o sogro. Daquele matrimónio nasceram sete filhos.
Lorenzo herdara do avô as características somáticas eslavas e o temperamento inquieto e passional. Foi uma fonte de grandes preocupações para os pais, de tal maneira
que o pai, a certa altura, o mandou para Nápoles, para a Escola Militar da Nunziatella. - A vida da tropa vai endireitá-lo - garantiu à mulher.
Ao fim de três anos, Lorenzo não parecia ter mudado assim tanto. Nas suas breves licenças, freqüentava a princesa Carolina, amiga íntima da mãe, ou então, com mais
freqüência, os teatros de variedades, onde entretecia breves aventuras com cantoras e bailarinas.
A princesa apreciava-lhe a inteligência viva e a honestidade. Naquela noite decidiu apresentá-lo ao filho e à jovem nora para que o incluíssem na sua vida de sociedade.
- Lembrei-me de que vocês os dois podiam dar-lhe a conhe cer Nápoles - disse a princesa, por fim, depois das apresentações.
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- Se é para isso, Vittorio Alliata saberá fazê-lo muito melhor do que nós - esquivou-se logo o filho, contrariado com a proposta.
- Alliata só o poderia arrastar para a perdição - observou a princesa. - Café-chantant, varieté, passeios de automóvel com risco de quebrar os ossos do pescoço e
sabe-se lá o que mais.
Lorenzo ouvia-os, sorria e olhava Josepha de soslaio, fumando preguiçosamente um cigarro. Ela sentia-se embaraçada com aqueles olhares.
- Tu podias servir-lhe de guia - sugeriu Enrico, de repente, voltando-se para a mulher. - Há tantas igrejas para ver, com quadros e estátuas importantes que Lorenzo
saberia apreciar.
- Muito bem, irmãozinho! Parece-me uma proposta verdadeiramente aliciante para o nosso capitão - exclamou Virgínia, num tom irónico. E continuou: - Não te passa
pela cabeça que essas visitas poderiam aborrecer o Lorenzo?
- Se não lanças uma ironia, não ficas sossegada - retorquiu Enrico, incomodado.
- Mas a Virgínia acertou. No meu tempo de liceu, tive que visitar igrejas, castelos e museus com fartura. Só que Nápoles é famosa pelo seu golfo, pela beleza do
mar e das ilhas. Gostaria muito de passear na sua companhia - propôs Lorenzo, dirigindo a Josepha um olhar sorridente.
- Eu não sei onde levá-lo. Vivo em Nápoles há poucos meses apenas, e antes disso escalava os montes do Tirol. Virgínia é uma cunhada deliciosa e tem absoluta razão.
Receio ser uma péssima companhia. Sou terrivelmente acanhada, como já deve ter percebido - - afirmou, esperando convencer Lorenzo a desistir daquele projecto.
- Você é deliciosamente espontânea e acho que o Enrico é um homem cheio de sorte por a ter como mulher - respondeu com sinceridade.
A princesa Carolina observava o filho com uma certa apreensão, porque Lorenzo se mostrava evidentemente atraído por Josepha. Mas Enrico, por sua vez, fixava um ponto
indefinido, absorto nos seus próprios pensamentos.
- Estou um pouco cansada. Mas vocês, jovens, podiam ir ao teatro - interveio Carolina. - Li em Il Mattino que há uma nova comédia de Salvatore di Giacomo. Vão lá
encontrar os Alliata.
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- Muito obrigado pelo convite, mas tenho que regressar ao quartel. O exército de sua majestade é um patrão muito exigente - desculpou-se Lorenzo.
Josepha soltou um suspiro de alívio. Enrico prometera passar a noite com ela e estava ansiosa por regressar a casa.
- Eu também estou um bocado cansado esta noite - afirmou Enrico, emergindo dos seus pensamentos. - Vamos ao teatro na próxima semana - acrescentou, despedindo-se
da mãe e da irmã.
Enrico e Josepha desceram a escadaria com Lorenzo, que explicou que tinha sido encarregado, pelo comando do estado-maior, de superintender, em Nápoles, a construção
de novas instalações para os militares.
- Conhecendo os napolitanos, creio que a tua permanência aqui vai ser muito longa - disse Enrico como despedida, estendendo-lhe a mão. Tinham chegado ao primeiro
andar e um criado ia acompanhar o hóspede até à saída do palácio.
- Vamos ter muito tempo para nos voltarmos a encontrar -despediu-se Josepha.
- Então, até breve - disse o jovem, e acrescentou: - Adeus
Josepha.
- Servus, Lorenzo - sorriu ela, repetindo o jogo do primeiro
encontro.
- Nunca te vi tão à vontade como com aquele aborrecidíssimo Valeschi - observou Enrico, quando chegaram a casa.
- Não o acho antipático - afirmou ela com indiferença.
- Conhecemo-nos desde pequenos. Ou melhor, ele era pequeno. Eu tenho mais cinco anos do que ele. Foi sempre um rebelde. Conseguiu ser expulso de não sei quantos
colégios, antes de entrar na Escola Militar. Uma vez esteve para casar. Fomos a Milão, ao casamento. Toda a gente, inclusivamente a noiva, o esperava na igreja.
Ele apresentou-se com duas horas de atraso, em traje desportivo. Foi tudo ao ar. Para sorte da noiva - contou Enrico.
Josepha riu com gosto.
- Achas divertido? - perguntou o marido, perplexo.
- Infinitamente - respondeu, com a inconsciência dos seus dezassete anos.
Sofia esperava-a para a ajudar a despir-se.
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- Vai-te embora depressa. Esta noite não preciso de ti - sussurrou Josepha, segurando a mão de Enrico e conduzindo-o para o seu quarto. Ele seguiu-a e, quando ficaram
sós, ela virou-se de costas.
- És capaz de me desapertar o vestido? - perguntou-lhe.
- Não tão bem como a Sofia - respondeu, embaraçado. Uma leve tremura percorria as mãos daquele homem enquanto
este se debatia com a abotoadura do vestido de seda. Josepha sentiu nas costas o toque dos seus dedos e estremeceu de prazer.
O vestido escorregou para o chão, ela voltou-se e tirou-lhe a gravata.
Ele encolheu-se e tentou falar. Ela pousou-lhe um dedo sobre os lábios.
- Cchhh - disse, num sopro, e abraçou-o. - Por que foi que esperaste tanto tempo? - sussurrou logo a seguir, apertando-o contra si.
Ele não respondeu. Ficou tenso e libertou-se dos braços dela. Depois, com uma voz quebrada pela emoção, disse: - Eu não queria casar. Foi a minha mãe que insistiu.
Não o devia ter feito. Agora é tudo mais difícil para mim, porque até construir o meu barco não poderei amar ninguém. Não posso, não devo gastar as minhas forças,
as minhas energias. O barco é tudo para mim, entendes?
Josepha sentiu-se gelar. Enrico olhava-a nos olhos e aquele olhar tinha uma estranha imobilidade, como se tivesse sido capturado por uma visão.
- O que é que estás a tentar dizer-me? - perguntou.
- Quando tiver acabado o meu barco, ficarei finalmente livre. Tens de me dar tempo, tens de esperar. És capaz disso? - desafiou-a, acariciando-lhe a face. E continuou:
- Amo-te infinitamente, Joséphine. Tem confiança em mim. Será bem empregue. Em breve voltaremos os dois a Merano. Vais voltar a ver a tua terra, a tua gente - Está
já próximo o dia em que vou fazer de ti uma esposa feliz, acredita-me, sou sincero. Só tens de ter paciência. És capaz? - repetiu, com uma voz muito doce.
Josepha sentia-se aturdida, confusa. Olhou durante muito tempo Para aquele homem incompreensível e lindíssimo que amava com todo o ardor dos seus dezassete anos.
Contra toda a evidência - racionalidade, baixou os olhos e disse: - Fico à tua espera.
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NÁPOLES - - VIELA DA DUQUESA AGOSTO DE 1910
Teresella sentiu o pai levantar-se. Ainda estava escuro lá fora. Agora que Rosa já não existia, Matteo partilhava o leito matrimonial com os três filhos rapazes,
enquanto ela dormia na outra cama com Annina e a avó. O velho catre fora eliminado. Poucos dias antes, Teresa suplicara-lhe que se lavasse.
- Mas para quê? Ao fim de uma semana vou estar outra vez suja - retorquiu Lina, que desdenhava a mania das limpezas.
- Exactamente. Ao fim de uma semana, lava-se outra vez - respondeu a neta. - Acha bem ter a pele coberta por uma camada de sujidade?
- Está muito bem assim. É uma couraça contra as doenças - teimou a velha.
- Não está bem, está mal. Se não se lavar, vou ser obrigada a dormir no chão, por baixo da mesa - insistiu a neta. Mais tarde trouxe dois baldes de água para encher
a bacia.
- O que é que estás a fazer, Teresella, com essa água toda? -perguntou uma vizinha, aproximando-se da entrada do baixo.
- Vou dar banho à avó.
- Oh, meu Jesus! A dona Lina vai-se lavar - anunciou a mulher a toda a viela.
- Aí está. Só faltava o pregoeiro para toda a gente ficar a saber que me obrigaste a tomar banho - protestou a velha, já derrotada.
Com uma lasca de sabão e um farrapo, Teresella friccionou
durante muito tempo o corpo engelhado e os cabelos da avó,
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que não parava de se queixar porque o mundo estava a mudar, porque os jovens já não tinham respeito pelos idosos e porque as coisas iam acabar mal por culpa daquelas
modernices. Mas quando já estava limpa e penteada, a avó andou de um lado para o outro na viela para se deixar admirar, orgulhosa da ironia com que as vizinhas se
dirigiam a ela.
"Está vinte anos mais nova, dona Lina." "Não será que quer mesmo arranjar um noivo?" "A última vez que a vimos assim, o Vesúvio enlouqueceu. Será que estamos outra
vez em perigo?"
Naquela noite, na cama, Teresella abraçou-a.
- Obrigada, avó, por não me ter obrigado a dormir por baixo da mesa. - E acrescentou: - É verdade que parece mais nova. O seu cabelo ainda é negro e macio. Se não
lhe faltassem os dentes era bonita como o pai. Ele é parecido consigo, sabia? Mas a senhora quantos anos tem?
- Muitos.
- Eu tenho doze anos. Vou fazer treze. Eu sei, porque foi a mãe que me disse.
- A Rosa teve azar - observou a mulher com tristeza.
- Tenho saudades dela - sussurrou Teresella, encostando-se à avó.
Naquela manhã saiu da cama muito devagar para não acordar a avó e os irmãos mais pequenos. Vestiu uma saia e uma blusa limpas. Lavara-lhas a mãe apenas uma semana
atrás. Depois acendeu o fogão e pousou-lhe em cima um tachinho cheio de água. Quando estava a começar a ferver, juntou-lhe uns restos de café em pó. Por fim encheu
uma chávena com aquela água cor de âmbar que temperou com um grão de sal. Já não havia açúcar. Tirou da prateleira um pedaço de pão torrado e pousou-o na mesa, ao
lado da malga. Fez, em suma, aquilo que sempre tinha visto Rosa fazer.
- Chamas a isto café? - disse o pai, desconsolado.
- Não me deu dinheiro para o café. Nem para o açúcar - desculpou-se.
Matteo pousou umas moedas em cima da mesa.
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- Compra o que for preciso. Mas amanhã de manhã, por favor, dá-me um café decente - disse, enquanto mergulhava um pedaço de pão na chávena.
Teresella enfiou as moedas no bolso da saia. Depois pegou numa bacia de metal e num pincel. O pai tinha de fazer a barba e ela sabia como obter uma boa espuma com
poucas gotas de água por cima do sabão seco. Teve o cuidado de deixar em cima da prateleira, ao lado da bacia, um pedaço de jornal para limpar a navalha, um pano
húmido para lavar a cara, o pente e o boião de cera para dar brilho ao cabelo.
Quando lhe pareceu que estava tudo em ordem, saiu para comprar açúcar, café e também um bocado de massa, se o dinheiro chegasse. Não foi à loja ao fundo da viela,
porque lhe davam açúcar húmido, que pesava mais, e pão velho de muitos dias. Foi ao mercado. Regateou, baixou o preço e ainda conseguiu que lhe oferecessem tomates,
courgettes e chicória. Eram legumes rejeitados que os vendedores atiravam para uma cesta. Chegando cedo, ainda se conseguia fazer uma boa escolha com o acordo do
vendedor.
Estas pequenas astúcias vinham-lhe dos ensinamentos da mãe. Quando regressou a casa, o pai já tinha saído para ir trabalhar e a avó já estava a pé. Annina e os irmãos
ainda estavam a dormir. Pegou num recipiente de barro e voltou a sair para ir buscar leite. Ela não gostava, mas gostavam os irmãos.
Quando o sol já ia alto no céu, mas o ar ainda estava suficientemente fresco, sabendo que os irmãos estavam seguros com a avó, Teresa saiu do bairro e dirigiu-se
ao cemitério. Era um longo percurso, mas ela caminhava ligeira. Chegou ao cimo da colina morta de cansaço, mas a beleza do local recompensou-a. Entrou no cemitério.
As campas, alinhadas de ambos os lados, estavam salpicadas de flores, de todas as cores, que emanavam um perfume estonteante. Ao fundo do cemitério viu um campo
raso cheio de pequenas cruzes de madeira. Era ali que Rosa estava sepultada. Identificou a campa da mãe porque a terra estava remexida. Olhou em volta, não muito
longe, pousada sobre uma lápide modesta, havia uma jarra cheia de lírios brancos. Tirou um, pedindo desculpa ao morto. - Tem aqui muitas. Vire-se para lá e faça
de conta que não vê Quanto eu tiro esta flor para a minha mãe - disse. E acrescentou: - FOI muito amável. Muito obrigada. - Enfiou o caule na terra.
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- Um vizinho seu deu-me esta flor para si. Bom-dia, mãe - saudou. E continuou: - Gosta de lírios, não gosta? Gostava tanto que falasse comigo. - Sentou-se no chão.
Ficou ali, com as mãos pousadas no regaço, a observar a extensão daquelas pequenas cruzes, com o coração inchado de dor. Recordava os raros momentos de intimidade
com Rosa e não se conformava com a idéia de que não ia haver mais nenhum, nunca mais. Tinha sido bom falar com ela. Bastava um gesto, uma exclamação, e percebia
logo o que ela tinha
no coração.
O ar tornava-se cada vez mais quente. Pequenas gotas de suor despontavam na testa de Teresa. Pensou que o sol não conseguiria aquecer a terra escura e fresca onde
a mãe repousava. - Preciso muito do seu amor - sussurrou.
Lembrou-se de quando subia a colina com ela. Vinham sobretudo na Primavera e no Outono para apanhar rebentos, bagas, flores e folhas que Rosa punha a secar para
curar pequenas moléstias. A mãe apanhava e explicava, enquanto ela perseguia cobras e libelinhas, sem a ouvir. Agora lamentava o facto de ter perdido aqueles
ensinamentos preciosos.
"O que é que vai ser da minha vida?" perguntou-se, angustiada. Nunca tinha ido à escola e ainda não tinha começado a trabalhar.
- Mãe, diga-me que a minha vida não vai ser tão desgraçada e
tão curta como a sua - suplicou.
A mãe repetia-lhe muitas vezes que o seu sofrimento não vinha só da miséria, mas também do facto de ser mulher. Considerava que as mulheres, mesmo as inteligentes,
não podiam aproveitar as suas próprias capacidades porque os homens não o permitiam. Sussurrava à filha: - Lembra-te, Teresella, que eles sabem que a nossa capacidade
de amar é muito grande, e aproveitam-se disso até ao último suspiro. - E acrescentava: - O que mais te recomendo é que te faças respeitar pelos homens.
Teresa havia de guardar bem aqueles conselhos. Lembrou-se daquela senhora tão bonita, que cheirava a alfazema, a chorar em frente à mãe porque o marido a maltratava.
- Que complicação - rematou.
O lírio, enfiado na terra, caiu em cima de um torrão. Mas ainda libertava o seu perfume.
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O calor tornara-se intolerável. Teresa levantou-se. Com um gesto delicado acariciou a terra sob a qual a mãe repousava. Olhou em volta. Um cortejo fúnebre avançava
lento e solene ao longo da avenida principal. Ela saiu do cemitério e dirigiu-se a casa.
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Naquele dia, Teresa renunciou à acostumada deambulação pelos bairros ricos da cidade. Em vez disso, sentou-se num banco, entre duas palmeiras, a ver o mar. Viu os
navios que deslizavam, majestosos, sobre a água. Iam em direcção ao horizonte, onde o mar se confundia com o azul do céu. Gostaria de ir num daqueles navios. Sabia
que os ricos viajavam para se divertirem e os pobres para chegarem a terras distantes, à procura de fortuna. Alguns arranjavam trabalho e mandavam dinheiro para
as famílias que ficavam em Nápoles. Era dinheiro honesto, respeitável, bem diferente daquele que acumulavam os camorristas. Teresa ouvia muitas vezes pronunciar
esta palavra, e um dia perguntou a Matteo: - Pai, o que é um camorrista?
- É uma pessoa que vive do trabalho dos outros e nunca trabalha - respondeu ele.
Teresella via-os passar de carruagem ou de automóvel, com os sapatos muito bem engraxados e um anel de brilhante no dedo. Quando passavam pelas vielas, os homens
encolhiam-se e tiravam o chapéu, por medo, não por respeito. Estavam em todo o lado: nas mesas dos cafés elegantes, no passeio junto ao mar, no mercado do peixe,
em frente aos teatros. Nunca estavam sozinhos. Tinham sempre dois, três, quatro homens atrás deles, a tentar imitá-los nos gestos e nos olhares altivos. Um pouco
como acontece nas matilhas de cães vadios, pensou. O chefe anda rodeado dos seus servos fiéiS que mantêm à distância os outros cães, a abrir a boca e a mostrar os
dentes.
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Também certas mulheres, como as cadelas, lutam entre si por rivalidade, reflectiu a rapariga, concluindo para si própria: "Homens, cães e certas mulheres são muito
parecidos". E perguntou-se: "E eu, que tipo de mulher vou ser?".
Havia rapazinhos que, ao cruzarem-se com ela nas vielas, se punham em fila para não a deixarem passar. Os mais audazes esticavam a mão para lhe tocar os seios. Ela
fugia, assustada. Algumas amigas rendiam-se aos gestos desajeitados, como se estes fossem um jogo para se divertirem um bocado. - Metem-me nojo - dizia Teresella,
e ficava incomodada por elas serem tão fracas, já tão submissas.
Dentro de alguns anos, teria um namorado. Mas não queria um rapaz descarado, nem sujo, nem camorrista. No entanto, aquele bairro não oferecia nada melhor. Nascera
nas vielas, ali crescera e ali deveria viver. Nunca haveria de entrar num navio, nunca veria as terras do lado de lá do mar, nunca seria rica, mas queria um namorado
que a respeitasse e lhe oferecesse uns brincos de coral como os de dona Rosália.
Afastou os olhos do mar e observou a silhueta escura de Castel dell'Ovo. Ouviu, ao longe, o batimento cadenciado dos cascos de cavalos. Parecia que se aproximava
um regimento de cavalaria. Cavalos e cavaleiros fascinavam-na. Gostava das cores das fardas, dos sabres brilhantes ao sol, da altivez dos animais e dos homens que
os montavam. Se tivesse podido escolher, gostaria de ter sido um cavaleiro. Guarda real ou polícia montada, tanto fazia. Nunca perdia uma parada militar. Uma vez,
tinha conseguido entrar sorrateiramente num cinematógrafo e viu as imagens fantásticas de um cavaleiro a galope. Pareceu-lhe que vinha para cima dela e lançou um
grito. Foi agarrada por uma orelha, severamente repreendida e posta fora da sala. Contou tudo à mãe, que riu com gosto e lhe prometeu: - Um dia, se me sobrar algum
dinheiro, vamos as duas ao cinematógrafo.
Nunca chegaram a ir.
Agora o ruído dos cascos de cavalos tornava-se mais distinto, mas não conseguia vê-los porque a marginal, para lá do castelo, fazia uma curva. De repente, viu avançar
uma multidão de homens e mulheres, algumas com crianças ao colo, que caminhavam unidas como uma avalanche escura, segurando bem altas as bandeiras vermelhas que
flutuavam no ar.
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Pronunciavam em coro palavras que não conseguia captar, mas as suas vozes eram potentes, muito bonitas. Pensou tratar-se da manifestação operária de que tinha ouvido
falar no bairro. Os trabalhadores tinham decidido fazer greve por causa da diferença de salários entre os operários do Norte e os do Sul.
Na noite anterior, ao passar junto a um grupo de homens reunidos na viela, ouviu um deles dizer: - Vai ser uma greve que vai dar que falar ao mundo inteiro, porque
desta vez vamos estar lá todos.
Quando chegou a casa, Teresa perguntou a Matteo: - Também vai fazer greve, pai?
Ele torceu a boca numa expressão de raiva: - Os operários são uns privilegiados, e não sabem. Trabalham com máquinas que fazem o esforço por eles. Estás a ver estes
braços e estes ombros? Eu sou a minha máquina. Percebes a diferença? Se eu parar, o que é que vocês comem? E, para além disso, não quero nada com a política. Por
mais voltas que isto dê, é o governo que determina o bom e o mau tempo. Percebeste?
Abanou a cabeça. Não tinha percebido.
- É melhor assim. Não há nada para perceber. Para nós, com greve ou sem greve, as coisas não mudam. E agora despacha-te a ajudar a tua avó - rematou Matteo.
Teresa levantou-se do banco e avançou em direcção àquela massa ondeante e escura, atraída pelo seu andar seguro, pelas vozes e pelas bandeiras vermelhas como papoilas.
Caminhava ligeira pelo passeio, ao mesmo tempo que as senhoras e os homens elegantes, que até àquele momento passeavam tranqüilos, fugiam pelas ruas interiores.
- Vamos, vamos! Vamos embora! - gritavam. - Alguma coisa terrível está para acontecer. - O ruído dos cavalos aproximava-se cada vez mais e estava já atrás dela.
Teresa virou-se e viu um grupo de guardas a cavalo a avançar contra o cortejo. As primeiras filas desembainharam os sabres, erguendo-os no ar, e lançaram-se contra
os manifestantes. Teresa parou e levou a mão ao peito. O coração batia-lhe com tanta força que lhe cortava a respiração. Os paus das bandeiras transformaram-se em
lanças para contrapor aos sabres. Os guardas, obedecendo a uma ordem, agarraram nos mosquetes e abriram fogo. Os cavalos empinavam-se
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e relinchavam assustados. A massa dos manifestantes misturou-se com a dos guardas, enquanto os disparos e os gritos chegavam ao céu. Teresa estava desnorteada.
- É uma batalha - sussurrou aterrorizada, encostando-se ao muro de um palácio. Os manifestantes fugiam, dominados pelo terror, e, de repente, um homem empurrou-a
e fê-la cair ao chão.
Ele levantou-se rapidamente e ajudou-a a pôr-se em pé. Teresa olhou-o, estarrecida. Era apenas um rapaz. Estava a perder sangue através de um corte fino na face.
- Porcos! Porcos e assassinos! - sibilou, enquanto a segurava firmemente por um braço: - - Vamos embora daqui. Depressa. Se me apanham, metem-me na prisão.
Foi Teresa quem o conduziu através de um labirinto de vielas, acabando por parar num largo onde havia uma velha catedral.
- Entra ali. Ninguém te encontra - garantiu.
- Encontra-me o padre, que está com certeza do lado dos patrões - disse ele. Estava pálido e sangrava muito.
- Anda lá, não sejas palerma - replicou Teresa enquanto o empurrava para o interior da igreja.
- Vou morrer esvaído em sangue - sussurrou o rapaz, assustado.
- A complicação que tu estás a arranjar por causa de um golpezinho de nada - sorriu ela. Tirou do bolso da saia um lenço lavado, molhou-o na pia de água benta, torceu-o
e pousou-lho sobre a face.
- Mas tu és doida! Isso é água infectada - protestou ele.
- Isto é água bendita - corrigiu ela.
- Como eu. Chamo-me Benedetto - disse.
- E eu Teresa - respondeu.
O teu nome deriva de uma palavra grega que significa "caçadora". Tu capturaste-me.
- És estudante? - perguntou-lhe, divertida.
Benedetto trazia umas calças remendadas, uns sapatos gastos,
Uma camisa branca com riscas escuras e um colete preto. Pareceu-lhe que tinha uma cara bonita, apesar da face que começava a inchar. Mas foram sobretudo os olhos
que a encantaram, porque eram profundos, escuros e inteligentes.
- Sou operário. Não vês as minhas mãos?
Eram calejadas, grandes e fortes. Teresa gostou delas.
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MERANO - SCHLOSS RUNDEGG SETEMBRO DE 1910
Embora estivesse um Setembro muito ameno, Josepha não conseguia apreciá-lo como gostaria. Alguns dias antes tinha regressado ao Tirol e vivia no castelo com o marido,
tentando inutilmente reencontrar a alegria de viver.
A confissão de Enrico suscitara nela o instinto maternal. Agora que conhecia a sua fragilidade psicológica, sentia que o amava ainda mais. E, como era jovem e cheia
de desejo, tentava persuadir-se de que o amor acabaria por levar a melhor sobre os fantasmas que perseguiam o marido. De qualquer modo, pensava ter superado os momentos
piores, quando se convencera de que o marido a traía. Esperou seis meses. Podia esperar ainda mais, tanto mais que a espera, agora, era sublinhada pelas constantes
confidências do príncipe que, quando estavam sós, não se cansava de falar do submarino de cristal e dos seus projectos mirabolantes.
Naquela manhã Josepha levantou-se cedo. Como sempre, deslizou para fora do edredão fofo e quente e abriu as janelas de par em par. Gostaria de sorrir ao céu, às
montanhas, aos vinhedos que se perdiam na distância da paisagem ondulada, mas foi acometida Por uma dor aguda no estômago. Não se sentia bem há já algumas semanas
e atribuía o mal-estar à tensão que lhe causava aquela difícil relação conjugal.
Antes de partir para Merano, Enrico fora a Génova para propor aos estaleiros Baglietto a construção do submarino. Regressou em tal estado de agitação que Josepha,
sem saber como o acalmar,
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lhe propôs: - Por que não me mostras os teus desenhos? Afinal de contas, tinhas-me prometido.
Assim conseguiu ver o sumptuoso escritório que o príncipe tinha instalado num palacete, no sector do porto mais afastado da zona de carga e descarga de mercadorias.
Era uma sala enorme, cujas janelas davam para o mar, mobilada com uma imponente mesa de desenho e um óculo apontado aos estaleiros navais. Nas paredes estavam suspensos
desenhos antigos de submarinos. Alguns tinham a forma de monstros lendários. O chão estava coberto com belíssimos tapetes orientais. Enrico abriu um cofre embutido
na parede que estava cheio de rolos de papel. Estendeu-os um a um para mostrar os seus desenhos à mulher. Eram extraordinários, Josepha admirou-se com o facto de
Enrico ser dotado de tanto talento artístico. Notava-se uma grande destreza manual e uma criatividade incrível naquelas representações de naves que pareciam realmente
deslizar nas profundezas do mar, pelo meio de cardumes de peixes de todas as formas e cores.
- O que te parece? - perguntou ele.
- Que devias fazer uma exposição. Acho que és um artista - disse Josepha, de repente.
- Sou um inventor. Aqueles genoveses disseram que o meu projecto é irrealizável. Não perceberam nada. Olha, repara neste desenho. A minha nave subaquática vai ter
este aspecto: cristal puro que adquire o tom de âmbar do Elixir de Santa Rosália que leva dentro. Este é o sector das máquinas. E o capitão nos comandos sou eu.
O primeiro homem no mundo a realizar sozinho a travessia do Atlântico num submarino. O que achas? Vou navegar nas profundezas. Os faróis potentes da minha nave vão
iluminar o percurso - explicou, com ardor.
- Mein Gott - sussurrou ela, atordoada e incrédula.
- Exactamente. O génio é muitas vezes incompreendido. Acho que vou a Inglaterra. Os ingleses são grandes navegadores, capazes de perceber aquilo que eu quero - concluiu
secamente. Depois, com o passar dos dias, acabou por acalmar.
Josepha gostaria muito de falar com alguém sobre aquela loucura que obcecava o marido, mas não o fez porque tinha de manter
o segredo.
Quando a família Castiglia, como todos os anos,
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chegou a Merano, com nurse e criados atrás, instalou-se no Hotel Meranerhof, ocupando todo o primeiro andar. Josepha e o marido, pelo contrário, esconderam-se em
Schloss Rundegg. Ali não havia todas as comodidades proporcionadas por um grande hotel, mas Enrico parecia apreciar a paz daquela antiga residência. Saverio e Sofia
dormiam nas mansardas, com a criadagem do castelo.
De início, e também devido à incompreensão das respectivas línguas, tinha havido algumas brigas entre eles. Josepha fez de conta que não percebeu. Agora, apesar
de continuarem a entender-se mais por gestos do que por palavras, pareciam ter encontrado um modo de entendimento. Entre os três austríacos e os dois napolitanos
estava em curso desde há alguns dias uma troca de informações.
Sofia ensinava Petra e Klara, as velhas criadas de Josepha, a maneira de cozinhar o macarrão, de preparar um café muito aromático e de temperar os legumes com azeite.
Ao mesmo tempo, aprendia com elas as receitas do Tirol para cozer as batatas, as maçãs e a carne de porco. O manjericão, que no castelo Rundegg sempre fora apenas
uma planta ornamental, era agora usado para condimentar as entradas e os legumes. Josepha seguia com interesse estes intercâmbios e sentia-se feliz por pensar que
tinha feito entrar nos muros do castelo uma lufada de novidade.
Tudo seria perfeito se Enrico fosse um marido como todos os outros. Josepha agarrava-se à esperança, apelava para a paciência, mas, entretanto, sofria de insónias
e sentia náuseas e dores de estômago. Por vezes, quando estava à mesa, tinha de se levantar com vómitos.
- Quando uma mulher tem esses problemas, significa que está à espera de um filho - sussurrou Sofia, sorrindo-lhe.
Josepha zangou-se e repreendeu-a.
- Mete-te nos teus assuntos - disse-lhe com brusquidão.
A criada atribuiu a reacção da senhora ao seu extremo acanhamento.
Naquela manhã Josepha saiu do quarto e entrou no do marido.
Encostou-se à cama sem fazer barulho. Enrico dormia profundamente. Observou o seu perfil perfeito; o ombro e o braço nu revelavam a consistência da musculatura.
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Espiou a respiração, quase imperceptível.
- Desejo-te tanto - disse, num sopro.
Com um suspiro resignado, saiu do quarto e desceu ao andar inferior. Sofia preparara a mesa do pequeno-almoço com as porcelanas de Meissen, que eram as da família.
Foi envolvida pelo aroma do café.
- Como se sente esta manhã? - perguntou a criada, saudando-a.
- Cheia de fome - respondeu, e trincou rapidamente um pedaço de strudel de maçã.
Sofia gostaria de salientar que as mulheres grávidas têm sempre apetite, mas calou-se. No entanto, sorriu com um ar malicioso.
- Trouxeram uma carta para a senhora - anunciou, estendendo-lhe uma bandeja onde estava pousado um envelope azul-celeste.
Josepha pegou nele e abriu-o. O burgomestre solicitava a presença dos príncipes de Castiglia num baile no teatro cívico, que era o orgulho da cidade. Josepha tinha
sete anos quando o construíram, depois de terem sido abatidas as árvores seculares do parque Rufin.
Teve um gesto de contrariedade. Se o convite não viesse do seu tutor, teria com certeza recusado. Mas disse: - Pede à Petra que te ajude a abrir o meu baú. Está
lá aquele vestido de voile azul. Deve precisar de ser refrescado.
Esperara evitar a vida mundana, pelo menos durante a estadia na montanha. O príncipe, que era tão esquivo como ela, estava de acordo. Mas não podia recusar o afectuoso
convite do Dr. Grossmann que, evidentemente, desejava vê-la, ainda que ela temesse este encontro e o olhar inquiridor do burgomestre. Não queria de maneira nenhuma
confessar-lhe as suas amarguras, até porque ele se iria sentir culpado por a ter aconselhado tão depressa a casar-se com Enrico Castiglia.
De repente, enquanto tomava o café, foi acometida por uma vertigem. Um mal-estar surdo agrediu-lhe o estômago. Mal teve tempo de atravessar a sala a correr e sair
para o jardim. Vomitou sobre a relva.
Sofia viu tudo e interpretou o episódio à sua maneira. Gostaria de a socorrer, mas conteve-se.
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Josepha refugiou-se na torre, no seu quarto de rapariga. Estendeu-se na cama e abraçou Teddy Bear, o ursinho com que brincava em pequena. Quando era ainda uma menina,
contava-lhe sonhos e contrariedades. Agora, sussurrou-lhe: - Por que é que a vida nunca é como nós a sonhamos?
Enrico abriu a porta de repente e surpreendeu-a abraçada ao velho urso de trapos.
- És mesmo uma miúda - comentou, zangado.
Ela assentiu sem reagir. Era inútil confiar-se àquele homem, escravo das suas próprias obsessões.
- Esta noite vamos ao teatro - anunciou. - - Joseph Grossmann convidou-nos.
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POSITANO - VILLA CASTIGLIA OUTUBRO DE 1910
Os príncipes regressaram a Nápoles em meados de Outubro. Josepha deixou de má vontade o Tirol, onde o ar tinha já arrefecido, as árvores se tingiam de amarelo e
vermelho e os cumes mais altos dos montes estavam já salpicados de neve.
Em Nápoles o sol estava quente e as férias ainda não tinham acabado. Depois de alguns dias de barafunda por causa da mudança de guarda-roupa, a família mudou-se
para Positano. Recomeçou a acostumada dança das trocas de visitas, das excursões de barco até às ilhas, das festas e das recepções. Ficariam ali até ao fim de Novembro.
O mar era realmente encantador, mas o sol provocava em Josepha alergias muito incomodativas que a obrigavam a evitá-lo. Não saía nas horas mais quentes do dia, e
olhava com inveja as cunhadas, os parentes e os amigos que tomavam banho e se bronzeavam.
Ao pôr-do-sol, quando toda a gente se retirava para os respectivos quartos para descansar, antes do jantar, descia à socapa a pequena escada cavada na rocha que
descia da villa até ao mar. Numa Pequena enseada, protegida por uma barreira rochosa, despia-se e metia-se na água, tentando nadar. Após as primeiras tentativas
mal sucedidas, aprendeu a flutuar de costas. Esticava-se e a água sustinha-a como se fosse uma folha.
Podia então admirar o azul do céu sobre si, ouvir o pio das gaitas e abandonar-se aos seus próprios pensamentos.
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Josepha conhecera poucos homens na sua vida. Conservava uma vaga recordação do pai e das outras figuras masculinas que freqüentavam o castelo.
A mãe recebia muitas vezes os homens mais importantes da cidade. Eram personagens que inspiravam confiança e infundiam segurança, como o seu tutor, o burgomestre
Joseph Grossmann.
Enrico não se parecia com nenhum deles. Mudava de humor com uma rapidez incrível. Não conhecia a serenidade. Quando tentava resolver um problema com ele, mesmo o
mais elementar, via-o atrapalhar-se, incapaz de lhe oferecer uma sugestão. Agora já tinha percebido que, mesmo quando conseguisse derrotar os seus fantasmas, o marido
nunca lhe daria segurança alguma.
Felizmente, a juventude impedia-a de se debruçar sobre si própria durante demasiado tempo. Afastava aqueles pensamentos e abandonava-se, feliz, deixando-se embalar
pelo mar, até porque o mal-estar que a atormentara durante semanas desaparecera ao deixar Merano.
Depois regressava à villa e preparava-se para enfrentar a família e os hóspedes que alternavam a um ritmo cerrado. Vinham jornalistas, empresários, políticos e amigos.
Uma quantidade de pessoas que Josepha não conhecia e que, por vezes, a entediavam. Poucos conseguiam desanuviar a atmosfera com discursos interessantes, e faziam-no
durante um tempo muito breve. Os assuntos sérios, raramente abordados, eram discutidos com indiferença. As reivindicações operárias e as crises políticas e económicas
transformavam-se em bisbilhotice. Josepha tinha a certeza de que os Castiglia e os amigos viam as mudanças políticas e sociais em curso com uma absoluta indiferença,
como se se tratasse de assuntos que não lhes diziam respeito.
Os temas preferidos de conversa eram as traições conjugais, as dívidas que os senhores contraíam às mesas de jogo e os estratagemas mais ou menos lícitos para as
saldar, os furtos de objectos valiosos por parte de certos hóspedes aos donos das casas, os subornos que serviam para contornar certos obstáculos e as discuSsões
furibundas entre os vários membros do Parlamento.
- Não preciso de me deslocar para saber o que acontece: o mundo vem ter comigo - comentava a princesa Carolina.
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Tinha razão. Mas Josepha não gostava daquele tipo de mundo. Crescera num ambiente fechado e provinciano, naquele Tirol que Viena considerava como uma remota zona
do Império. Talvez faltasse à sua gente o sentido de humor, mas as palavras tinham um peso que era avaliado antes de se pronunciarem. Não se emitiam juízos precipitados
e não bastava um passo em falso para condenar uma pessoa ou para troçar dela. Nunca ninguém ousaria avançar com uma conversa do foro sexual. Se alguém o fizesse,
não encontraria uma plateia atenta e sorridente.
Josepha nem sempre conseguia captar os cambiantes das bisbilhotices que se cruzavam à noite, depois do jantar, na villa Castiglia.
Pedia explicações na sua linguagem que era uma mistura de italiano, napolitano e alemão. Toda a gente sorria daquela candura e a maior parte das vezes não lhe respondiam.
Naquela noite, chegou um hóspede de Roma. Chamava-se Corrado Magni. Era um bonito rapaz, muito desenvolto. Desempenhava, na corte, um cargo não muito bem definido
e contou anedotas divertidas sobre a família real. Durante o jantar, referiu-se à oposição cada vez mais forte dos socialistas.
- São uns desgraçados. Nem sequer conseguem chegar a um acordo entre si. O socialismo é um partido atormentado por demasiadas cisões internas para constituir sequer
um perigo. Já perderam os sindicalistas revolucionários. Em breve perderão também os reformistas de direita e os comunistas - comentou o cunhado Alliata.
- E das greves, o que pensam? - perguntou Josepha.
Todos a olharam, empalidecendo. Ela lembrava-se, por ter ouvido falar a mãe e os amigos dela, da perturbação provocada pelas primeiras greves no sul do Tirol, com
o avanço das novas idéias socialistas e a criação de sindicatos e sociedades de socorro mútuo. O prefeito de Merano, com a severidade que as leis do Império lhe
reservavam, apanhava os subversivos e castigava-os, apesar de ter muitas dúvidas sobre o assunto porque, como confiava à mãe, considerava que as revoltas explodiam
por necessidade, não por capricho.
- Minha querida, os grevistas são mandriões, gente com pouca vontade de trabalhar. Os operários têm de ser vigiados e,
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assim, depressa voltarão à razão. Por exemplo, quando os operários das nossas destilarias entram em greve, nós não deixamos de produzir porque conseguimos substituí-los;
mas eles deixam de comer. Percebes a diferença? - interveio a sogra.
- Quer isto dizer que aos operários convém serem explorados, para assim terem o pão assegurado - observou Josepha, candidamente.
Vittorio Alliata olhou-a como se ela fosse uma aluna e ele um professor paciente.
- A palavra "explorados" não é bonita e nem sequer exacta. O servo da gleba era "explorado" pelo seu senhor que, por outro lado, o protegia dos saques dos exércitos
e dos bandidos e que, nos anos de carência, lhe matava a fome. De qualquer maneira, digamos que era explorado. Os nossos operários trabalham dez horas por dia mas
são remunerados até nos feriados e, no fim do ano, recebem um prémio em dinheiro. Nós, empresários, pelo contrário, não temos garantias, apesar de andarmos a tentar
obtê-las há anos. Há dois anos o governo decidiu criar uma nova lei para o desenvolvimento económico de Nápoles. Ainda não foi aprovada. Os deputados liberais apresentaram
uma interpelação duríssima à Câmara e o assessor para as finanças demitiu-se em sinal de protesto. Não aconteceu nada. Assim, ficamos excluídos dos benefícios fiscais
porque nos acusam de especulação. Se o governo não nos defende a nós, empresários, como poderemos nós defender os nossos operários? São questões complexas, minha
menina. O Império austríaco não tem os nossos problemas. A tua nação não conhece a camorra, as erupções do Vesúvio, as epidemias e os terramotos que, de vez em quando,
arrasam anos e anos de trabalho. Não existe na vossa terra a mentalidade astuciosa que está na base da nossa sociedade. Cada meridional quer ser mais astuto do que
o vizinho e, no fim, perdemos todos - concluiu Vittorio.
- Francamente, parece-me um panorama muito triste - observou Josepha.
- Mas para que te metes nisso, Josepha? - interveio Virgínia, que se aborrecia quando não se falava de histórias sentimentais ou de escândalos. - A política é assunto
de homens. Nós, mulheres, temos a vantagem de poder ignorá-la. Digo bem, Corrado? - voltara-se para o hóspede romano que lhe
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fazia uns olhos doces, e ela não era insensível a estas mensagens. Por isso acrescentou: - Vou um bocado até ao jardim. Quem quer seguir-me? - Era um convite ao
jovem hóspede, que Josepha não captou e apressou-se a dizer: - Eu vou contigo.
O cunhado Alliata segurou-a por um braço.
- Deixa-a ir - sussurrou. - Ela quer ficar sozinha com o Corrado.
- Porquê? - perguntou candidamente.
- Porque talvez Virgínia morra solteira, mas não virgem - explicou-lhe com um sorriso divertido.
Josepha teve um momento de perplexidade antes de apanhar o significado daquelas palavras. Nesse momento, Enrico, que naquela noite estava estranhamente atento à
conversa, disse-lhe: - Vamos chamar o Saverio para nos levar a andar de barco. Apetece-te?
Enquanto atravessavam o jardim, debilmente iluminado pelas lâmpadas exteriores da villa, viram Marianna, a mulher de Alliata, na companhia de Ciro Ruoppolo, o jornalista
de Il Mattino. Estavam abraçados, encostados a um aloendro, e riam baixinho.
- A tua irmã engana Alliata. Não é verdade? - perguntou Josepha ao marido, ao entrarem para o barco.
- Só um bocadinho - respondeu ele, provocando o desconcerto de Josepha.
O barco deslizava lentamente, impulsionado pelos remos que Saverio mergulhava na água com ligeireza.
- Como é que se pode trair alguém só um bocadinho? - perguntou ela.
- São subtilezas napolitanas que nunca chegarás a compreender. Tens de te conformar - respondeu o marido.
Ela não se conformava. Mas estava uma noite esplêndida e decidiu não a estragar com uma conversa inútil.
- Sabes uma coisa, Enrico? Ao fim da tarde, quando tu e os outros descansam, eu desço até à praia e tomo banho - confessou.
- Por que me dizes isso como se fosse um segredo?
- Porque é um segredo. Nunca tinha dito a ninguém, antes deste momento.
- Toda a gente sabe - disse ele, deixando-a desorientada. Josepha olhou para ele, consternada.
- Estás a dizer-me que alguém me viu?
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- Obviamente - respondeu Enrico.
- Mas eu tomo banho nua - exclamou.
- E então?
- Por que não me disseste nada?
- Porque toda a gente acha que tu queres manter o segredo.
- Nunca vou chegar a compreender-vos! - exclamou, exasperada.
- Se quiseres, dou ordens para ninguém te vigiar mais. Se te
afogares, não tenho culpa - avisou Enrico.
- Não me vou afogar. De qualquer maneira, não quero ser espiada - declarou, decidida.
- Ninguém vai voltar a vigiar-te - prometeu.
- É uma promessa, ou é só um bocadinho? - perguntou.
- Promessa verdadeira - assegurou ele, divertido.
No dia seguinte, quando desceu até à praia ao fim da tarde, trazia prudentemente vestido um fato-de-banho por baixo do roupão que atirou para os rochedos.
De repente, enquanto tentava nadar, uma voz masculina rompeu o silêncio: - Nunca vi uma ninfa tão bonita.
Josepha assustou-se. Mexeu-se com atrapalhação na água que a engoliu, obrigando-a a gesticular.
Foi erguida por dois braços fortes que a puseram a salvo. Respirou com dificuldade, agarrando-se ao pescoço do seu salvador. Abriu os olhos e encontrou à sua frente
o rosto sorridente de Lorenzo Valeschi.
- Olá - disse ele. - Cheguei agora a Positano. Desci para
ver o mar e vi-te a ti.
- Põe-me já no chão - gritou. Antes queria afogar-se do que
ser vista naquela situação.
- É para já - replicou ele, deixando-a cair outra vez. O mergulho fez levantar salpicos de água. O jovem, completamente vestido, estava metido na água até à cintura.
- Idiota! Não sei nadar - gritou, enquanto se debatia, tentando boiar.
Lorenzo voltou a segurá-la imediatamente.
- Não sabia que estavas aqui - disse-lhe, divertido.
- Não é verdade. Vieste espiar-me - reagiu, furiosa. E acrescentou: - Não és um cavalheiro.
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Lorenzo segurava-a firmemente nos braços e saiu da água. As calças e a camisa estavam encharcadas.
- É verdade. Não sou. Mas tu és infinitamente bonita.
- Gostava que um raio te incendiasse. Nunca te vou perdoar por me teres espiado - gritou.
O oficial mantinha-a apertada contra si e sorria.
- És extraordinária, Josepha - sussurrou.
- Vai à fava! Odeio-te! - gritou.
- E eu amo-te - disse em voz baixa, pousando os lábios sobre os dela. Foi um beijo muito doce.
Josepha, contrariando o desejo, conseguiu libertar-se dos braços dele. Pôs-se de pé num instante, agarrou no roupão e correu em direcção à escada que conduzia à
villa. Fugia de Lorenzo, de si própria e da sensação magnífica e perturbadora que obtivera do contacto com aqueles lábios.
Subiu ansiosamente os degraus que trepavam pelo meio das pedras. Estava assustada. O medo transformou-se em pânico mal entrou em casa, onde os Castiglia a esperavam
num silêncio atónito.
A sogra foi ao encontro dela e abraçou-a, sem uma palavra. Marianna e Virgínia fixavam obstinadamente as pregas dos vestidos. Vittorio Alliata tinha uma mão pousada
sobre o ombro da mulher. Das outras salas vinha o som de passos apressados e de sussurros. Josepha sentiu-se gelar.
- O que aconteceu? - perguntou num fio de voz.
O cunhado foi ter com ela e disse: - O Enrico sofreu um acidente. - Depois voltou-se para a princesa: - Vá descansar, maman. Nós tratamos da Joséphine.
- Que tipo de acidente? - insistiu ela, incapaz de se mexer. Naquele momento Marianna começou a chorar.
- Matou-se com um tiro de revólver - disse o cunhado.
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA NOVEMBRO DE 1910
- Matteo, a tua mãe tem mais sete filhos. Achas justo continuares a tomar conta dela? Os teus irmãos e as tuas irmãs nunca trataram dela. Porquê? - perguntou Rosália
di Giacomo enquanto acariciava os flancos de Matteo, que estava estendido na cama, junto dela, a gozar a tibieza da grande coberta forrada de seda cor-de-rosa.
- Ela dava-se bem com a Rosa. E depois, não penses que ela não pode ajudar. E claro, se o pai ainda fosse vivo, estava com ele e não havia problemas - raciocinou
em voz alta, e acrescentou:
- Na verdade, a minha mãe nunca foi um problema.
- Mas agora é. Nós vamos casar, tu e os teus filhos vêm para aqui. E a tua mãe, onde é que a metemos? - insistiu a mulher, beliscando-lhe um braço com a ponta dos
dedos.
- Rosalí, não podemos falar sobre isso noutra altura? - perguntou, tomado já por um renovado desejo.
Rosália afastou-o de si e sorriu.
Temos de falar agora, porque daqui a uma semana vamos casar - insistiu, sem querer mudar de assunto.
- Mas tu não tinhas já discutido isso com a Rosa? - Tentava furtar-se a uma decisão que, desde há alguns dias, andava no ar.
- Não. Sobre a dona Lina não se disse uma palavra. Tu bem Sabes, porque estavas presente.
- Vou falar com os meus irmãos. Mas se ninguém a quiser,
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tem mesmo de ficar connosco. - Matteo era muito afeiçoado à mãe e esperava que a futura mulher acabasse por a aceitar.
- Tens medo dos teus irmãos? Olha que também é mãe deles, não é só tua. Eu acho que eles se estão a aproveitar demasiado da tua generosidade - sussurrou com meiguice.
E continuou: - Eu compreendo e admiro o teu sentido de responsabilidade em relação à tua mãe. Mas já fizeste mais do que devias. Digo-to com sinceridade. Agora acho
que estás a exagerar. Também o digo para o bem dela. Vivemos no quinto andar. Achas que aquela pobre mulher pode fazer cinco lanços de escada, para cima e para baixo,
sabe-se lá quantas vezes por dia?
Matteo foi obrigado a abordar a questão com o irmão mais velho, Nino, que morava em Portalba, trabalhava como alfaiate e era também porteiro. De todos os filhos
de Lina, era o que vivia melhor. Nino convocou o resto da família e, a uma semana do casamento, depois de beijos, abraços e felicitações por aquela ditosa união
que faria de Matteo um homem rico, foi posta em cima da mesa a questão da mãe.
- Normalmente, uma mãe viúva deve estar em casa de uma filha - começou Matteo. E continuou, olhando para as três irmãs: - A mãe teve sorte por ter uma nora como
a Rosa. Mas agora toca a uma de vocês a obrigação de tomar conta dela.
Caterina, a mais velha, falou também em nome das outras duas.
- Tu achas que se alguma de nós tivesse condições para ficar com ela quando o pai morreu não o tinha feito? Eu já sou obrigada a viver com as minhas duas cunhadas.
Temos sete filhos e vivemos onze pessoas em dois quartos. A minha situação é trágica. E isto também vale para a Carmelina e para a Santa - disse, indicando as duas
irmãs mais novas.
- O meu marido está tuberculoso e já não trabalha. Não entra dinheiro nenhum em casa. A tia Assunta está connosco e é um peso morto. Só nos faltava a mãe. Então
é que eu me atiro ao mar - concluiu Carmelina.
Santa encolheu os ombros. - As minhas desgraças já vocês as conhecem. Para que é que preciso de falar?
Tinha o marido na prisão, um filho com poliomielite, três muito pequeninos e estava prestes a dar à luz o quinto.
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Vivia da caridade dos vizinhos e de trabalhos esporádicos. Nem sequer podia pedir dinheiro emprestado, porque ninguém lhe dava crédito. - Estás a ver? - disse Nino
a Matteo. - As nossas irmãs estão muito mal. Nós, os irmãos, não estamos melhor. Para o bem da mãe, tens de convencer a tua esposa. É uma herança que só tu podes
carregar.
- Estão a brincar comigo - disse Matteo, irritado. - Esta reunião foi feita para encontrar uma solução. Durante muitos anos fiz aquilo que pude sem pedir nada a
nenhum de vocês. Agora preciso da vossa ajuda.
Alguns dos irmãos fizeram sinais de assentimento e declararam que Matteo tinha razão, olhando para Nino, o mais velho, de um modo significativo. Nino, como todos
sabiam, era o que vivia mais desafogado. Não pagava renda de casa e recebia dois ordenados: como porteiro e como alfaiate. Tinha nove filhos, três dos quais trabalhavam
já e levavam dinheiro para casa. O que tinha doze anos era ajudante de padeiro, o de onze era empregado de uma barbearia e a de dez tomava conta dos filhos de uma
bordadeira.
Nino sentiu-se atingido e começou a fazer fortes alusões à conduta de Rosália di Giacomo, que emprestava dinheiro a juros, que tinha negócios com a camorra, que
provavelmente provocara a morte do marido e que, quando Matteo começasse a aborrecê-la, arranjaria maneira de ficar viúva outra vez.
Matteo ficou furioso, vieram à baila velhos rancores nunca resolvidos, uma irmã acusou outra de lhe ter roubado um colchão e um irmão culpou outro do desaparecimento
de um par de sapatos que tinham pertencido ao pai. Os ânimos inflamaram-se cada vez mais, voaram insultos e alguém começou a usar as mãos. Em breve, irmãos e irmãs,
cunhados e cunhadas envolveram-se numa briga, enquanto os gritos aumentavam e os vizinhos, que intervieram para aplacar os ânimos, acabaram por sua vez por se envolver
numa contenda memorável.
Dona Lina, a causa involuntária de tanta animosidade, assistia, a tremer, àquele descalabro. Sussurrou: - Uma mãe até pode sustentar dez filhos, mas dez filhos não
são capazes de sustentar uma mãe - lamentou-se. Após o que, desgostosa e humilhada por estar na origem daquela rixa, se afastou.
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Matteo apercebeu-se, foi atrás dela, abraçou-a a chorar e pediu-lhe perdão. Os irmãos e os cunhados fizeram a mesma coisa. A contenda apagou-se entre beijos e abraços
e, por fim, decidiram que a mãe ficaria à vez com cada um dos filhos. Ela aceitou com um sorriso de escárnio.
O casamento com Rosália di Giacomo foi celebrado com muita discrição, às seis da manhã, na igreja do Carmine.
Não houve banquete de casamento. Rosália gostaria de fazer alarde do luxo a que se podia permitir, mas intuiu que não era boa altura. Consolou-se por pensar que,
com aquela renúncia, evitava uma grande despesa. Assim, depois da cerimónia religiosa, despedidas as testemunhas, ela enfiou o braço no de Matteo e anunciou: - Vamos
à esplanada, tomar um café.
Matteo vestia um fato do falecido di Giacomo, oportunamente adaptado ao seu corpo. A mulher oferecera-lhe um chapéu, a camisa de seda branca com o colarinho engomado
e os sapatos de verniz. Eram os primeiros sapatos novos da sua vida, pois sempre os comprara usados: eram baratos e faziam o mesmo efeito. Ela ostentava um casaco
negro debruado a pele e um chapéu com um véu de organza que lhe cobria os olhos. Estava radiante. Matteo, pelo contrário, estava confuso. Quando ela lhe meteu no
bolso dez liras para pagar a despesa da mesa naquele sítio de luxo, corou de vergonha. Olhou-a com ódio e o seu pensamento foi ao encontro de Rosa. Ela nunca o pusera
numa situação difícil e, quando lhe entregava o dinheiro ganho com o seu próprio trabalho, fazia-o com uma discrição sorridente e com o orgulho de trazer uma contribuição
para a família.
Depois pensou nos filhos. Enquanto ele estava sentado à mesa daquele bar elegante, eles estavam a transferir para o quarto da madrasta as poucas coisas que possuíam.
Sentia que aquele apartamento espaçoso e confortável nunca chegaria a ser a casa deles e, quem sabe, nem mesmo a sua.
Olhou para Rosália como se estivesse a vê-la pela primeira vez, e viu-a como ela era realmente: uma mulher exuberante na cama, astuta no trabalho e gélida na vida.
Teve medo.
- Mas por que me casei eu contigo? - sussurrou. A pergunta era dirigida mais a si próprio do que a ela.
112
Rosália saboreava gulosamente uma amêndoa coberta de chocolate. Engoliu-a como se fosse um remédio azedo. Olhou para Matteo com uma expressão lívida.
- É um bocado tarde para fazeres essa pergunta - observou.
- Sinto-me ridículo com esta roupa em cima de mim. Pareço um palhaço do circo - continuou, enquanto sentia uma raiva surda que lhe torcia o estômago.
- Fala com respeito daquilo que trazes. São coisas de luxo. Coisas caras - murmurou ela, decidida a cortar pela raiz um comportamento que não lhe agradava.
- São coisas caras, caríssimas. Paguei-as com o afastamento da minha mãe - replicou Matteo, odiando-se a si próprio e a ela, que o obrigara a tomar aquela decisão.
Levantou-se da mesa, afastando a cadeira com muito barulho, agarrou no dinheiro que Rosália lhe metera no bolso e pousou-o com força no tampo de mármore. Depois
saiu, abandonando a mulher que o olhava, estarrecida. Precisava de regressar imediatamente a casa, aos filhos. Mas a que casa? Aquele quarto pobre, pelo qual pagara
sempre pontualmente a renda, já não existia. A outra, a do quinto andar, atravancada de móveis vistosos e de quinquilharia cara, parecia-lhe agora vulgar, intolerável.
Mas o que foi que eu fiz, perguntou-se, como se só naquele momento se desse conta de que nenhuma mulher poderia alguma vez ocupar o lugar de Rosa. Libertou-se da
gravata que lhe apertava o pescoço. Queria voltar para junto dos filhos. Começou a correr e, a certa altura, sentou-se, desesperado, nas escadas de uma igreja. Sentia-se
dominado pelos remorsos. Depois, sentiu uma mão carinhosa a acariciar-lhe a nuca. Era o mesmo toque, afectuoso e casto, da mãe. Ergueu os olhos. Ao lado dele estava
Teresa. Sorria.
- Está elegante como um senhor - sussurrou a filha, admirada. Matteo baixou a cabeça e não respondeu. - Pai, tenho fome. O Peppino e os outros também querem comer.
A despensa da dona Rosália está fechada à chave. Lina, a criada, diz que a senhora é que tem a chave. O que é que fazemos?
Matteo levantou-se, deu a mão à sua menina e dirigiu-se para a Viela, com um passo decidido. - É muito simples. Arromba-se a despensa e come-se. A dona Rosália vai
perceber bem depressa que, com a família Avigliano, só se pode conviver com as nossas condições.
113
Teresa abriu os olhos, como sempre, com os primeiros raios de sol. Olhou em volta com uma sensação estranha. Era a primeira vez que acordava na casa nova. Rosália
destinara aos filhos Avigliano um quarto espaçoso, que dava para a caixa das escadas, com duas grandes camas: uma para ela e Annina e a outra para os três irmãos.
Havia um baú, onde Teresa arrumara cuidadosamente as roupas de todos eles, e um toldo, intransponível, por trás do qual se amontoavam as provisões: batatas, maçãs,
a barrica das sardinhas em sal, talhas cheias de azeite e baldes de farinha, de grão-de-bico e de lentilhas. Nunca vira tamanha abundância. As paredes do quarto
eram caiadas. Teresa pendurou num prego o rosário da avó. As imagens da Virgem e de outros santos, de que a mãe tanto gostava, alinhou-as em cima do baú, ao lado
dos seus pequenos tesouros: dois berlindes de vidro, uma boneca de papelão e um palhaço que só tinha uma perna.
Os irmãos dormiam profundamente. Em pleno sono, Annina tossia. Tinha apanhado uma grande constipação e em breve ia contagiar toda a gente. Teresa não sabia com que
ervas é que a mãe preparava certos emplastros muito quentes que se punham no peito para curar os resfriados. Duvidava de que dona Rosália os conhecesse. A nova mulher
do pai olhava para ela e para os irmãos com um ar grave e, quando encontrara a fechadura da despensa arrombada, sussurrara: - Foste tu, pequena cobra.
114
Por isso, Teresa moveu-se com extrema cautela. Levantou-se da cama e vestiu-se, a tremer de frio. Enfiou uma camisola interior de lã e, por cima, um vestido cinzento
que era da mãe; a avó tinha-o arranjado para ela. Calçou as meias e os tamancos e foi até à cozinha, onde Lina estava a acender o fogão.
O carvão incendiou-se rapidamente.
Naquele momento apareceu o pai. Os cabelos encaracolados e negros, como os dela, estavam despenteados, e a barba escurecia-lhe as faces.
- Como estás? - sussurrou. Teresa sorriu-lhe.
- Enquanto faz a barba, eu preparo-lhe o café - disse ela.
- Eu trato disso - ofereceu-se a criada.
- Deixa a Teresella fazê-lo - ordenou Matteo.
Lina deixou-os sós. Naquela divisão pairava uma tepidez agradável. Em cima de uma mesa, por baixo da janela, estava um espelho, a taça do sabão, o pincel da barba,
a navalha e uma toalha.
- Esta manhã temos café verdadeiro, do bom - murmurou a rapariga, enquanto preparava a mesa para o pai. Pegou num pão e cortou algumas fatias, em cima das quais
deitou um fio de azeite. Gostaria de o melhorar ainda mais, tirando de um frasco de vidro alguns tomates em azeite. Mas não ousou, com medo de que Rosália não achasse
bem.
Através do espelho, o pai viu-a olhar para o frasco dos tomates.
- Come - disse-lhe.
- É melhor não - decidiu.
- Ela não é tão má como tu pensas - afirmou ele, referindo-se a Rosália.
Ela não fez comentários. Deitou o café na malga e juntou-lhe bastante açúcar.
Matteo, entretanto, limpou a cara que acabara de barbear e sentou-se à mesa com ela. Bebeu um trago de café.
- É mesmo bom - comentou, antes de trincar uma fatia de Pão. Através da janela observaram o sol que se erguia num céu cada Vez mais azul. Era um espectáculo novo
para eles, habituados à escuridão do baixo que tinham deixado. Pela primeira vez viam os telhados das casas e a roupa estendida a secar nas varandas.
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- Se me der dinheiro, vou comprar o leite para os meus irmãos - propôs Teresa.
Matteo tirou algumas moedas do bolso das calças, meteu-lhas na mão, e depois enfiou os dedos por entre os cabelos da filha e despenteou-os, sorrindo-lhe.
- Vai correr tudo bem. Garanto-te - sussurrou, e acrescentou: - Viste como foi, ontem, quando arrombámos a despensa? Nem piou. Agora já não é preciso chave. Come
o que te apetecer. Era isso que a tua mãe queria para ti e para os teus irmãos. E a vontade dela há-de ser sempre respeitada.
Teresa saiu e voltou com a panela de barro cheia de bom leite de cabra. A criada estava a arrumar a cozinha. Ela aqueceu o leite no lume e pôs na mesa malgas e pão.
Do quarto chegou a voz de Rosália.
- Lina, o café - gritou.
A mulher saiu da cozinha levando um tabuleiro com uma chávena e o açucareiro.
Teresa acordou os irmãos e juntou-os à volta da mesa.
- Não façam barulho. Sabem muito bem que agora somos hóspedes e temos de nos portar como deve ser - recomendou.
Também eles se sentiam intimidados e comeram em silêncio.
Rosália entrou na cozinha. Vestia uma saia de lã verde que lhe dava pelo tornozelo, botins pretos de tacão fino e um casaco preto, com uma gola ampla, do qual saía
o colarinho alto, com aplicações de renda, da camisa branca.
Entre duas dentadas, Annina tossia e fungava. Teresa, que estava sentada à mesa com os irmãos e os via comer, levantou-se de repente. Eles ficaram com as colheres
no ar.
- Não és capaz de te assoar a um lenço? - começou Rosália, em tom de censura. E acrescentou: - Vai ser preciso tomar o xarope de ipecacuanha para essa tosse.
Ninguém sabia o que era aquele remédio de nome difícil, mas a palavra xarope significava alguma coisa doce, o que levou Annina a sorrir.
- Não é razão para sorrir - continuou a mulher num tom brusco. - Ainda mal acabaram de chegar e já é preciso gastar dinheiro em remédios. E não é só isso. Ninguém
vos ensinou que têm de me cumprimentar quando me vêem?
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- Bom-dia, dona Rosália - disseram quase em coro.
- Devem chamar-me mãezinha. A partir de agora, desempenho as funções de vossa mãe - explicou com ar de resignação.
- Mãezinha - começou Annina -, pega-me ao colo?
A pequena sofria muito com a falta da mãe, e estava firmemente decidida a contentar-se com Rosália, que lhe dirigiu um olhar perplexo.
- Quantos anos tens? - perguntou-lhe.
Annina não sabia. Teresa respondeu por ela: - Tem seis anos. - Parecia que tinha menos. Era muito pequena, pálida como um anjinho de cera.
- Pega-me ao colo, mãezinha? - repetiu.
- Tenho de ir para o mercado. Não tenho tempo para estas palermices. E vocês, por que é que não vão para a escola?
- Mas que escola? - respondeu Peppino. - É preciso dinheiro para comprar roupa e o resto. E depois, a nós, o que nos interessa? Não se ganha dinheiro a ir à escola.
Um sorriso triunfante surgiu nos lábios da mulher.
- Já és suficientemente crescido para começares a trabalhar. Tenho de falar sobre isso com o teu pai. De qualquer maneira, chegou o momento de tirares o hábito.
Não quero monges nesta casa
- sentenciou, e depois virou-se para a criada: - Procura na arca dos meus rapazes. Estão lá as roupas velhas deles. Arranja qualquer coisa que lhe sirva - ordenou.
Rosália ignorara Teresella. A rapariga esgueirou-se silenciosamente para fora da cozinha e foi até à porta de casa. Abriu-a. A mulher foi atrás dela como um tiro.
- Onde é que vais? - perguntou.
- Vou sair - respondeu ela.
- E onde vais?
- Dar uma volta.
- Volta depressa para dentro. Não quero vagabundos nesta
casa - declarou com desprezo, enquanto tentava agarrá-la por um braÇo. Teresa soltou-se e começou a descer as escadas com a velocidáde de uma seta. Lá fora estava
frio, mas depressa o sol começaria a aquecer as ruas, as praças e a marginal. Fugia daquela casa, onde se Sentia sufocar, e de dona Rosália. Queria que a tratassem
por "mãezinha". Vejam lá!
117
Rosália sibilou: - Começamos mal. Tenho de dar um aperto nestas crianças. - Enfiou um chapéu de veludo verde, pôs sobre os ombros um grande xaile negro com franjas
e saiu, por sua vez. Estava de muito mau humor. As coisas não estavam a correr segundo os seus planos. Matteo não era tão fácil de manobrar como pensava. Tinham
ousado arrombar a sua despensa. Não podia tolerar outras rebeliões e era preciso remediar as coisas depressa, antes de perder o controle da situação. Dirigiu-se
ao mercado com um passo decidido, quase militar, a remoer os últimos acontecimentos. Meia hora depois de se ter casado com ela, Matteo abandonara-a, escandalizando
os elegantes freqüentadores daquele café. E nessa noite, quando o abraçou, ele respondera: - Deixa-me, Rosália. Agora não me apetece.
Uma grosseria imperdoável. Ela era a patroa, ele e os filhos iam ver como era, se não se submetessem imediatamente à sua vontade.
No domingo, a criada regressaria à terra. Ia despedi-la, dizendo-lhe que já não precisava dela. Teresa era suficientemente crescida para a substituir.
Entrou no mercado. A sua banca de peixe estava já preparada, à espera que abrissem as portas e chegassem os clientes. "E que banca!", pensou com orgulho. Matteo
fazia alarde da habilidade que tinha. Bastou-lhe uma olhadela para controlar também as outras três bancas. Os seus homens estavam a acabar de as preparar. Mas a
mais bonita, de qualquer maneira, era a que tinha sido arranjada pelo marido. Reparou no amarelo intenso dos limões enfiados na boca dos peixes-espada, as laranjas
sanguíneas que sustentavam as ostras, o verde tenro das folhas de alface que formavam uma coroa por baixo do marisco. Soberbo, pensou, enquanto se dirigia à parte
do fundo, onde ficavam os escritórios: uma gaiola de madeira e vidro com uma mesa, uma cadeira e uma pilha de registos. Havia um velho com óculos que estava precisamente
a consultar um deles.
- Qual é hoje a situação, guarda-livros? - perguntou, sem cumprimentar.
- Chegou esta noite um carregamento de raias. Muito bonitas - Estava à espera das suas ordens para as mandar entregar - respondeu o velho.
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- Diga ao Matteo para as pôr no carro. E tome nota: duas caixas para o restaurante da estação, duas para a Margellina, três para a cozinha do Excelsior, quatro para
a messe dos oficiais... - Ela não precisava de apontamentos escritos, porque tinha tudo na cabeça e não lhe escapava nada.
- Desculpe, dona Rosália. Don Matteo, agora, é seu marido. Pensei que o Girolamo pudesse tratar das cargas e...
Não o deixou acabar.
- O senhor não tem nada que pensar. Só tem que tratar das contas - admoestou-o com severidade. Saiu do escritório e dirigiu -se com passo marcial à banca do marido,
gritando: - Então, Matteo, não se faz nada? Tens de ir imediatamente entregar as raias.
Matteo ofereceu-lhe um sorriso irónico e fez uma vénia. - A dona Rosália é que manda - respondeu, imperturbável.
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MERANO - SCHLOSS RUNDEGG NOVEMBRO DE 1910
Josepha e a princesa estavam sós, na salinha azul. O funeral de Enrico Castiglia, príncipe da Calábria, fora oficiado com a solenidade imposta à condição da família.
Agora repousava no cemitério de Poggioreale.
- Estás mesmo decidida? - perguntou a sogra.
A jovem ergueu o olhar aos frescos do tecto. Pareceu-lhe que os anjinhos pintados por entre os ramos em flor tinham perdido a expressão ameaçadora que sempre a aterrorizara
e que, em vez disso, a olhavam com benevolência, como se a convidassem a subir com eles até àquele céu sereno.
- Já não tenho motivos para continuar em Nápoles - respondeu. O céu azul, sulcado de pequenas nuvens cor-de-rosa, era o céu da sua terra, onde queria regressar.
- Não vais acreditar se eu te disser que, das minhas filhas, és a rainha predilecta - disse a princesa. Trazia um vestido de crepe da China negro, e nas orelhas
tinha duas preciosas pérolas cinzentas, idênticas às do colar de quatro voltas que lhe chegava à cintura.
- Muito obrigada, maman, por essa declaração de afecto - sussurrou a rapariga.
Depois da morte de Enrico, Josepha assumira um ar mais maduro. Desde a Primavera, quando se casou, até ao Outono, quando ficou viúva, tinha queimado todos os sonhos,
todas as esperanças e todas as ilusões.
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- Estás magoada e desiludida. E tens razão - afirmou Carolina. E acrescentou: - Felizmente, és jovem e tens todo o tempo do mundo para reencontrares a serenidade.
- Acredita mesmo nisso? É possível. Mas não aqui, nesta casa - replicou com amargura.
- Sinto-me culpada por te ter enganado - continuou a sogra.
A jovem pensou em Lorenzo Valeschi. Quando fugiu dele, depois de ele a ter beijado na praia, ainda não sabia o que tinha acontecido. A família Castiglia juntou-se
à volta dela para a confortar. Todos choravam, e alguém sussurrou: "Tal como o Papá", referindo-se à loucura que aproximara Enrico do pai.
Josepha estendeu um braço e acariciou a mão da sogra. - Eu acho que uma mãe tem de ajudar os filhos para além de tudo o que é razoável. A senhora esperou que Enrico,
ao casar comigo, conseguisse curar-se. Mas não foi assim - suspirou. E continuou: - Desejei tanto um marido, uma família, filhos. Acreditei que, um dia, ele iria
ser capaz de me dar tudo isso.
- Quiseste acreditar, com essa tua ingenuidade e confiança sem limites. Não, nunca poderia dar-te aquilo que desejavas. Mas o Lorenzo podia - disse a sogra, olhando-a
com ternura.
- Lorenzo... - balbuciou Josepha, corando.
- Esteve aqui há pouco. Ama-te, tenho a certeza. Posso garantir-te que, no caso dele, não há taras hereditárias - comentou em voz baixa.
Não lhe interessava aquela garantia. Não queria saber mais nada de homens, nem de casamentos, nem de italianos. A Itália ferira-a profundamente; a maneira de viver,
de pensar e de agir daquela gente era oposta à dela.
- Está a propor-me outro casamento? - perguntou tristemente.
- A morte do meu Enrico esvaziou-me de qualquer vaidade - respondeu a princesa. Disse aquele "meu" com um tom de voz que tocou a jovem viúva. Naquelas três letras
estava contido todo o amor materno que Carolina sempre ocultara sob um manto de indiferença resignada.
Enrico fora um personagem incómodo para a família. Depois da sua morte, todos se sentiram libertos de um pesadelo.
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e os criados sofriam verdadeiramente. Saverio e Sasà estavam tão pesarosos como se tivessem perdido um filho.
- Antes de partir, gostava de saber por que me escolheu a mim, por que decidiu que havia de ser eu a vítima a sacrificar à loucura de Enrico. Porque era jovem e
ingénua? Porque era estrangeira? Porque era pobre e me deixaria ofuscar com tanta riqueza? - perguntou Josepha com ardor.
A sogra olhou longamente para ela, depois abanou a cabeça e respondeu: - Há dez anos que Enrico manifestava sinais de desequilíbrio. Eu estava tão assustada que
os ignorei. Quis acreditar que era apenas um homem difícil e convenci-me de que, casando, seria capaz de recuperar o equilíbrio. Tu eras jovem, bela e inteligente,
e eu criei a ilusão de que conseguirias salvá-lo. Talvez, com o tempo, venhas a compreender-me.
Depois levantou-se, imitada pela nora. - Adeus, Joséphine. Espero que encontres alguma serenidade - e despediu-se, abraçando-a.
Josepha viajou de comboio de Nápoles até Merano com os cunhados Alliata, Marianna e Vittorio. A família Castiglia manifestara-lhe um afecto completamente inesperado.
Em Merano encontraram o frio e a neve nas montanhas. Os hotéis e as moradias estavam cheios de hóspedes ilustres. Os concertos, os espectáculos teatrais e as recepções
animavam aquela pequena cidade. Joseph Grossmann, prevenido da sua chegada através de um telegrama, estava na estação à espera dela. Acompanhou-a a ela e aos cunhados
de carruagem até ao castelo, onde Petra, Klara e Toni a esperavam ansiosos.
Tinham acendido todas as salamandras, posto a brilhar os cobres e os estanhos e perfumado armários e gavetas com flores de Alfazema. Prepararam uma refeição à base
de sopa de Gulasch, almôndegas com toucinho, creme de legumes, leitão assado, filhós, strudel de maçãs e Sacher-Torte.
Finalmente, Josepha Maria Sidonia, senhora de Rundegg e
arnetz, princesa Castiglia, estava de novo em casa. Apesar de contristados pelo seu luto, no castelo todos estavam convencidos de qUe este regresso era uma bênção
do céu.
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Como bons austríacos, toleravam os estrangeiros porque traziam algum bem-estar económico à cidade, mas nunca tinham considerado com benevolência a união de Josepha
com um italiano.
Oficialmente, a morte do príncipe fora atribuída a um acidente. Parentes e testemunhas tinham declarado que Enrico, ao limpar a pistola do pai, tinha disparado involuntariamente
um tiro que o matara. Josepha, por seu lado, não tencionava acrescentar uma única palavra a esta versão. Assim, durante o almoço na intimidade da saleta, reiterou
a história que os Castiglia pretendiam que contasse ao seu tutor, com o apoio dos cunhados. Enquanto contava aquela mentira piedosa, revivia os momentos dramáticos
daquele evento e admirou-se pelo facto de o encarar com tanto distanciamento. Era como se contasse uma história longínqua no tempo, apesar de ter acontecido apenas
um mês atrás. Sentia-se finalmente descontraída no castelo, onde reencontrara imediatamente aqueles hábitos que lhe eram tão queridos.
Klara serviu os doces. Ela olhou com prazer para a Sacher-Torte e pensou em Lorenzo Valeschi. Em Positano, depois da tragédia, tinha ido fazer-lhe uma visita. -
Tenho pena que sejas tão infeliz - disse-lhe.
- Enrico era louco. Sabias? - perguntou a rapariga.
- Toda a gente sabe. Sempre soubemos - sussurrou. - Só tu parecias não ter consciência disso.
- Pensa o que quiseres. Agora já não tem importância - replicou, para rematar a conversa.
Antes de se afastar, Lorenzo segurou-a por um braço. - Gostava de te dizer muitas coisas, mas compreendo que este não é o momento certo. Esperarei por outra ocasião.
Não chegou a proporcionar-se. Ela deixou Nápoles com uma mensagem de Lorenzo, que lhe chegou através da sogra: "Ama-te". A consistência do chocolate que se desfazia
lentamente na sua boca fê-la recordar o jovem oficial, o sorriso, a ternura daquele beijo, alegria.
- É conveniente que eu informe o teu tutor sobre algumas questões financeiras decididas pela tua sogra - principiou o cunhado. Tinham saído da saleta e estavam agora
sentados na sala de estar.
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Petra serviu o café. Joseph Grossmann acendeu o cachimbo e o príncipe Alliata permitiu-se um cigarro.
Josepha olhou-o com alguma perplexidade. As questões financeiras não lhe interessavam.
- É mesmo necessário? - perguntou. Estava com vontade de calçar uns sapatos confortáveis e dar um passeio ao longo do Passirio.
- Nós regressamos amanhã, e é bom que conheças a dimensão do teu património.
Explicou que, uma vez que Enrico morrera sem deixar testamento, a lei lhe atribuía todos os seus bens: um quinto da quota da destilaria, alguns castelos na Lucânia
e na Calábria, herdades na Puglia, um palácio em Caserta e outro em Salerno, duas casas em Posillipo e acções de uma sociedade mineira na América do Sul.
- Todos estes bens serão geridos, como até agora, pelos administradores da nossa família. No fim de cada ano receberás a tua quota de dividendos. A princesa Carolina
deixa ao Sr. Grossmann a possibilidade de controlar as contas sempre que o desejar. Para além disso, determinou que tu receberás uma doação anual de duzentas mil
liras. É exactamente a quantia de que dispunha o teu marido.
Josepha herdara uma fortuna.
- O que é que eu vou fazer com isso tudo? - perguntou, estarrecida. Aquilo que tinha sempre lhe bastara. A herança de um marido que, de facto, nunca o fora, parecia-lhe
um peso e uma ligação com o passado que queria esquecer.
- O que quiseres. Podes ficar com as coisas, vendê-las ou dá-las. São tuas - respondeu o cunhado.
- Não posso simplesmente recusar? - perguntou, dirigindo-se ao seu tutor.
O príncipe Alliata pensou que Josepha tinha sido contagiada Pela loucura do marido.
- Eu acho que a Josepha está cansada. É melhor conversarmos nós os dois - interveio o Sr. Grossmann.
- Não estou, de facto, cansada, mas podem decidir, como sempre - concluiu, virada para o tutor. E acrescentou: - Agora preciso de reencontrar as minhas montanhas.
- Levantou-se e saiu, deixando-os sozinhos a falar de casas, rendas e dividendos de que não tencionava ocupar-se.
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA DEZEMBRO DE 1910
A relação dos filhos de Matteo Avigliano com a rica Rosália era o tema preferido das vielas. A nova família era observada com constante curiosidade e bastava uma
coisa de nada para servir de mote à conversa.
- Ontem à noite, don Matteo deitou-se à meia-noite. A luz do quarto da dona Rosália ficou acesa durante muito tempo - disse uma mulher.
- A dona Santa, que tem umas janelas em frente às da dona Rosália, ouviu-os discutir toda a noite. Ela arranjou lenha para se queimar - esclareceu outra.
- E aquelas pobres crianças da dona Rosa, que Deus a tenha em sua glória, estão todo o dia sozinhas. A Teresella trata dos irmãos como pode, mas também é ainda uma
criança. Era a menina dos olhos da mãe e agora faz de criada em vez da Lina, que foi desPedida.
- O meu marido, que é padrinho de casamento do don Nino,
o varredor do mercado do peixe, contou-me que ele lhe disse que
ouviu o don Matteo mandar o rapaz da banca pôr de lado uma
caixa de douradas para os filhos. A dona Rosália deu logo ordens em contrário. Don Matteo tirou o avental, enfiou o casaco e foi à banca dele. Então a dona Rosália
foi atrás dele, a saracotear-se. O que aconteceu depois, o don Nino não soube dizer.
- Agora está a chegar o Natal, e os filhos da dona Rosália vão chegar do colégio. Sabe-se lá o que vai acontecer nessa altura.
131
Esta e outras conversas iam-se cruzando, e pintavam uma situação muito próxima da realidade. Matteo não era tão dócil como dona Rosália gostaria. Rosa tinha-a apanhado
nas curvas. Convencera-a de que Matteo tinha a ingenuidade de uma criança, que a força que possuía estava toda no corpo, enquanto que a sua vontade era fraca; pelo
contrário, não era nem ingénuo nem fraco. Para além disso, e isto era uma incómoda surpresa, preocupava-se muito com os filhos, que ela francamente detestava. Vistos
cada um por si, eram aceitáveis. Mas todos juntos formavam um muro contra qualquer ordem sua. A mais velha, Teresa, era a mais insuportável. Nunca falava, nunca
se revoltava e não protestava quando era castigada, limitando-se a olhá-la com ironia. Aqueles olhares enfureciam-na. Só lhe apetecia atirar-se a ela e esbofeteá-la.
Depois lembrava-se do juramento que fizera a Rosa e das palavras da moribunda: "Se não for fiel a este juramento sagrado, eu saberei. E não ficarei contente". Era
supersticiosa, como toda a gente, e temia a vingança dos mortos.
- Amanhã vou buscar os meus filhos ao colégio. Tenho de os preparar para esta situação - anunciou ao marido quando estavam deitados.
- Os meus, felizmente, não precisam de tantos cuidados - replicou Matteo com um sorriso de desprezo.
- Às vezes esqueces que o Cenzino e o Renato são os herdeiros legítimos do meu primeiro marido - sublinhou Rosália.
- Como é que posso? Todos os dias me lembras isso. Mas também é bom que os informes de que eu agora sou o padrasto. Vou tratar de me fazer respeitar por eles, assim
como tu trataste de te fazeres respeitar pelos meus filhos. E depois, Rosália, pára de te lamentares. A Teresella faz de criada e o Peppiniello é o meu ajudante.
Os outros três não te incomodam nada. Não te esqueças de que tinhas prometido mandá-los a todos para a escola - respondeu Matteo.
- Tu também sabes muito bem que a idéia da escola não lhes agrada. E também pensas da mesma maneira. Quanto à Teresa, um dia ainda me vai agradecer, porque está
a aprender aquilo que toda a mulher deve saber fazer.
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- E tu tens a casa limpa, a cama feita e a comida na mesa, sem gastares uma lira, a partir do momento em que ela se tornou tua criada - replicou, com um ar plácido.
- Uma criada que tem a liberdade que quer. Entrega os mais pequenos às vizinhas e vai dar uma volta, como sempre - sibilou com perfídia.
Matteo sorriu. - Ela é mesmo assim. É curiosa, quer ver mundo - comentou satisfeito.
- Quanto a Peppino, devias agradecer-me porque estou a tentar ensinar-lhe uma profissão. Apesar de, em vez de estar na banca, fugir para brincar. Quando o chamo,
não percebe as ordens que lhe dou. Ou finge que não percebe - protestou.
- Tem nove anos. É preciso dar-lhe tempo - justificou, reprimindo um bocejo. Estava muito cansado e adormeceu imediatamente.
Rosália, porém, ficou muito tempo acordada a remoer uma situação que só lhe trouxera uma vantagem: ter na cama um homem de quem gostava.
Mas, talvez porque Matteo tinha consciência dessa fraqueza, usava-a em seu próprio proveito e às vezes chegava a fazer de conta que ignorava o desejo dela. Ultimamente,
despertara em si uma suspeita: que o marido andasse metido com a cozinheira do restaurante Miramare. Por mais do que uma vez os tinha surpreendido no mercado a trocarem
olhares doces. Se Matteo não estivesse, a cozinheira não fazia a encomenda. Dizia-lhe: "Volto mais tarde". Rosália ficava irritada e começava a sentir o ciúme que
noutros tempos atormentara Rosa. Andava inquieta. Tinha um sono agitado e acordava mais cansada do que quando se deitava. Assim que Podia, despejava em cima de Teresa
a raiva reprimida. A rapariga suportava aqueles vexames e calava-se, até porque sabia que não havia saída para aquela situação.
Na manhã seguinte, Rosália demorou mais tempo a arranjar-se
° que era costume. Teresa teve de lhe friccionar as costas e as pernas com um óleo perfumado, pôr a brilhar os sapatos pretos de verniz e passar a ferro o casaco
de alpaca verde e a saia preta. Veio a cabeleireira arranjar os caracóis rebeldes
133
de Rosália com um ferro apropriado. Teresa passou água com vinagre na aba do chapéu de tecido verde guarnecido com pele de raposa, tal como na gola do casaco. Dona
Rosália ia a Salerno buscar os filhos.
- Voltamos à hora do jantar. Põe a toalha branca de renda e os copos de cristal, e ai de ti se partires algum. Mete no forno o pudim de macarrão, para o servires
a ferver. Passa pela pastelaria Sogliano. Traz uma torta "paraíso". Já está paga. Nós comemos na sala. Tu e os teus irmãos ficam muito bem na cozinha. Também vão
comer macarrão e torta. Primeiro servimo-nos nós, e depois vocês - explicou Rosália, antes de sair.
- Sim, senhora - disse Teresa.
- Não és mesmo capaz de me chamar mãezinha.
- Não sou capaz, senhora - respondeu, impávida. Rosália enganava-se, se pensava que podia humilhá-la. Ela estava mais preocupada com o macarrão e com a torta. Tinha
medo de que não houvesse em quantidade suficiente para os irmãos e para ela. Por isso, mal a mulher saiu, preparou-lhes o pequeno-almoço, vestiu-os e mandou-os brincar
para a rua. Arrumou rapidamente a cozinha, fez as camas, cobriu o cabelo com um lenço de lã, pôs um xaile nos ombros e saiu a correr para ir à pastelaria.
- Venho da parte da dona Rosália buscar uma torta "paraíso" - anunciou.
- Já está pronta. Vou embrulhá-la - disse o pasteleiro.
- Primeiro quero vê-la - replicou.
Era lindíssima, grande, fofa, dourada como o sol. Tinha uma coisa escrita em letras azuis guarnecidas com violetas de açúcar. - O que é que diz ali por cima? - perguntou.
- Não sabes ler?
- Claro que sei ler. Esqueci-me dos óculos - mentiu, repetindo aquilo que ouvia dizer aos mais velhos.
- Diz: "Bem-vindos, filhos amorosos" - leu o homem.
- E depois? - Aquilo parecia-lhe mais longo e complexo do que aquelas três palavras.
- E depois diz: "Mete-te na tua vida" - acrescentou o pasteleiro.
- Está bem - replicou Teresa, com um ar grave. - Quando° tiver os óculos, em casa, já posso ler o que diz aí.
134
Voltou para casa, segurando a torta com cuidado. Conhecia bem Cenzino e Renato e duvidava de que pudessem ser definidos como filhos amorosos. Eram pouco maiores
do que ela e sempre os conhecera como um perfeito par de meliantes. Dona Rosália nunca os repreendia. Pelo contrário, estava sempre pronta para os defender contra
os protestos do alfaiate, que os acusava de lhe terem roubado um pedaço de tecido, do sapateiro, a quem tinham tirado um frasco de cola, do padeiro, pelo furto de
um saco de farinha, e de algumas mães, pelas agressões às suas meninas. - Tudo calúnias. É tudo inveja - dizia ela.
As pessoas não ousavam insistir, até porque estavam sempre, de alguma maneira, em dívida para com ela, ou pelos aluguéis ou por algum empréstimo de dinheiro.
- Feios como o pai e pérfidos como a mãe - sussurravam os vizinhos. Mas, entretanto, Rosália tinha ido buscá-los ao colégio e gastara dinheiro naquela torta tão
bonita e tão perfumada. Apesar de estar bem embrulhada, Teresa sentia o cheiro da baunilha, do limão e da manteiga. Cresceu-lhe água na boca enquanto desejava que
sobrasse o suficiente para ela e para os irmãos.
Passou em frente à igreja e, de repente, viu Benedetto. Estava sentado nas escadas, a apertar o atacador de um sapato. O sol iluminava-lhe uma parte da cara marcada
por uma pálida cicatriz. Parou em frente dele e cumprimentou-o. O jovem olhou para ela e sorriu-lhe.
- Olá - disse. Tinha todo o ar de não a reconhecer.
- Não te lembras de mim? - perguntou, desiludida.
Ele abanou a cabeça e levantou-se. Era mais alto do que ela se lembrava. Tinha deixado crescer um bigode que lhe realçava a linha sinuosa do lábio superior. Trazia
um casaco de lã áspera, escura, e um cachecol vermelho enrolado à volta do pescoço.
- Mas é claro! Agosto, a greve, a minha ferida! - exclamou, Passando um dedo pela face. - És a Teresa - concluiu.
- Ainda bem que te lembras de mim.
- Cresceste - foi o comentário que fez.
Ela oscilava, embaraçada, ora num pé, ora no outro. Queria falar com ele, mas não se lembrava de nenhuma observação que viesse a propósito.
- Levo aqui uma torta - disse.
135
- Sinto-lhe o cheiro. - Parecia que ele também não arranjava nada para dizer.
- É para festejar o regresso do colégio dos filhos da dona Rosália.
- É a tua patroa? - perguntou ele.
- Sim - respondeu ela. - Eu trato da casa. Mas não recebo nada.
- Mas isso é exploração - declarou o jovem. - Deves exigir um salário justo.
- Salário justo... o que é isso? Ela é a mulher do meu pai. Vivemos todos em casa dela. Uma casa grande e bonita. Quer que a tratemos por mãezinha. Mas eu não consigo
tratá-la assim. O meu pai diz que ela não é má. Para mim é péssima. Mas por que é que te estou a contar estas coisas todas? - disse, espantada com tanto palavreado.
- Eu vou contigo.
- Não trabalhas?
- Despediram-me. A Uva de Bagnoli despediu-me a mim e a mais cem companheiros. Estão a fazer acordos com outras empresas siderúrgicas, para crescerem e aproveitarem
os benefícios fiscais previstos pela lei especial para Nápoles. Como o custo da mão-de-obra é o mais baixo de todo o país, nós protestámos. O resultado, já vês:
estou desempregado - explicou.
Benedetto usava uma linguagem incompreensível.
- Fico admirada por se poder despedir um doutor como tu - comentou. Segundo ela, os doutores possuíam o máximo da sabedoria, e nas palavras de Benedetto estavam
implícitos grandes conhecimentos.
- Mas que doutor?! Eu só tenho o diploma da escola primária - disse ele a sorrir, enquanto se dirigiam à Viela da Duquesa.
- Como é que vais viver, sem trabalho?
- Os meus companheiros ajudam-me - explicou.
- E quem são esses companheiros?
- São aqueles que lutam contra os patrões, os socialistas.
- Oh, meu Deus! Mas vocês são doidos. Eles dão-vos trabalho e vocês vão contra eles. Mesmo que vos paguem pouco, sempre vos dão alguma coisa. E alguma coisa é melhor
do que nada - raciocinou Teresa.
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- Mas somos nós que damos o nosso trabalho aos patrões. E não o contrário.
- Essa nunca tinha ouvido! - replicou, incrédula. Tinham chegado à viela.
- É melhor separarmo-nos aqui - disse a rapariga. Depois acrescentou: - Se por acaso precisares de ganhar alguma coisa, eu posso falar com o meu pai. Ele diz que
há falta de gente para as cargas e descargas, no mercado, por causa das Festas. Chegou muita gente de fora. Encheram os hotéis e os restaurantes. Há trabalho para
todos.
- Sabias que estás a ficar bonita? - comentou o rapaz, ignorando a proposta dela.
- Também tu - balbuciou Teresa, um bocado confusa com aquele cumprimento. E acrescentou: - Que pena eu não ter percebido bem tudo aquilo que me disseste.
- Não faz mal. Se soubesses a quantidade de coisas que nem eu percebo!
Era mais alto dois palmos do que ela. Aproximou o rosto do dela e depositou-lhe um beijo levíssimo nos lábios.
Teresa dirigiu-se a casa. Caminhava com desenvoltura e sentia-se voar.
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Matteo regressou a casa com os filhos. Parecia uma galinha quando, ao entardecer, reúne os pintos e os empurra para a capoeira.
- Todas as noites eu tenho que andar à vossa procura pelas vielas. Só sabem brincar e comer - censurou, com voz dura.
Eles riam porque, por mais que o pai se esforçasse por parecê-lo, na realidade não conseguia ficar zangado.
- Que calorzinho tão bom está nesta casa - disse, empurrando os filhos para a entrada. Matteo trazia uma lufada de alegria para dentro daquelas paredes. Teresa estava-lhe
grata por isso. Mas naquela noite os seus pensamentos estavam noutro lugar. Iam ao encontro de Benedetto, da sua linguagem difícil, daquele bonito rosto pálido marcado
por uma cicatriz, do calor dos lábios que, por um momento, tocaram os dela.
- E que cheiro tão bom - acrescentou Matteo, abrindo o forno.
- Pudim de macarrão - informou Teresa.
- Pois, esta noite chegam os professores - brincou o homem, referindo-se aos filhos de Rosália.
- Pai, como é que se faz para aprender a ler? - perguntou ela de repente.
Os irmãos mais novos estavam a fazer muito barulho, reclamando qualquer coisa para comer. Matteo calou-os com umas sapatadas e olhou para a filha com um ar perplexo.
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- Gostava de saber ler - continuou Teresa, olhando-o nos olhos.
- E perguntas-me a mim? Sei lá! Vai-se à escola, é assim que se faz. Lá é que ensinam a ler e a escrever. Mas que novidade é esta? A ti que te interessa? Os números
já os conheces. Também conheces o dinheiro. Não te chega? - objectou o pai.
A Teresa não apetecia muito ir sozinha para a escola, partindo do princípio de que dona Rosália a autorizaria. Já era demasiado crescida. Para além disso, tinha
muito que fazer em casa. Mas, sobretudo, livros e cadernos intimidavam-na. Durante todo o dia, enquanto ficava sozinha em casa, divertia-se com a idéia de que, se
não fosse analfabeta, podia satisfazer muitas curiosidades. Fora Benedetto quem lhe fizera nascer aquele desejo. Ele estava seguramente à altura de saber ler e escrever.
Com certeza sabia muitas coisas, e ela gostaria de partilhar esses conhecimentos.
- Era só uma idéia - respondeu ao pai. E acrescentou: - Não faça caso, pai. Não tenho intenção nenhuma de deixar que isto me suba à cabeça.
O homem sorriu, mais tranqüilo.
- Daqui a pouco está aí a Rosália com os filhos. Ainda não puseste os pratos na mesa - lembrou-lhe.
- Está enganado, tenho tudo pronto. Toalha fina, copos de cristal e talheres de alpaca. O que é que será esta alpaca? - perguntou. Havia muitos talheres, alinhados
dentro de uma grande caixa forrada de veludo azul. Ela não soube quais escolher, e por fim decidiu usar os mais pequenos. Pareceram-lhe mais refinados. - Preparei
a sala para os quatro, como mandou a dona Rosália.
Matteo escancarou a porta da sala proibida, observou a mesa Posta, a salamandra que libertava calor, a torta em cima do aparador. Fechou a porta e voltou à cozinha.
- Meninos, têm fome? - perguntou. Uma pergunta inútil. Estavam sempre esfomeados. - O macarrão está pronto?
A filha confirmou.
- Então vamos comer. Todos para a mesa - ordenou, afastando a cadeira para se sentar.
- Pai, não pode ser assim. A sua mulher vai ficar muito zangada - avisou.
- E agora zango-me eu, se não me deres já o jantar - replicou Matteo.
Rosália entrou em casa com os filhos no momento em que Matteo e as crianças limpavam os pratos com pão.
Olhou com uns olhos gélidos para as bocas sujas de molho e para o marido, que sorria com um ar divertido. Viu aquilo que sobrava, em cima de uma travessa, daquele
estupendo prato de massa, molho e carne que ela preparara com tanto cuidado. As crianças, incluindo Teresella, olhavam com a boca aberta para os dois meios-irmãos
vestidos como uns galãs, com uma capa de lã azul que lhes chegava quase até aos pés. Vincenzo e Renato olhavam, por sua vez, de soslaio para o padrasto e para os
filhos com um misto de espanto e desprezo.
- Demoraram a chegar - disse Matteo. - Nós já nos servimos. Mas ainda há que chegue - informou, sem perder a compostura.
- Meninos, cumprimentem o pai - disse Rosália e, atravessando a cozinha, chegou-se ao pé de Teresa. Deu-lhe um beliscão hostil no fundo das costas, sibilando: -
Foste tu, víbora. - Depois sorriu ao marido, que se levantou da cadeira e a beijou na face.
- A Teresella preparou uma mesa de reis, na sala - explicou Matteo, enquanto se inclinava para dar um beijo aos dois rapazes.
- Eu também quero dar-vos um beijo - disse Annina. Estava sempre disponível e confiava em toda a gente.
- Quando lavares a cara - respondeu Rosália. E acrescentou: - Depressa, meninos. Vamos tirar os casacos para irmos para a mesa.
Vincenzo olhou para Teresa enquanto desapertava o casaco.
- Sentes-te bem na nossa casa, não é verdade? - perguntou, sublinhando a propriedade da casa.
- Comam, comam, que aqui é tudo de graça - ajudou Renato, usando o dialecto cerrado das vielas.
Era uma declaração de guerra que nenhum dos Avigliano captou. Aquilo que agora lhes dominava o pensamento era a torta "paraíso" que todos tinham visto, mas nenhum
ousara abrir, até porque estava pousada em cima do aparador e a sala era uma zona proibida.
Matteo adivinhou a gulodice dos filhos.
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- Não façam barulho. Daqui a bocado comem o doce - garantiu.
Teresa serviu a madrasta e os filhos. Matteo, sentado à mesa com eles, viu-os jantar, enquanto fumava um cigarro. Não gostava dos filhos de Rosália, achava-os arrogantes
e mentirosos. Mas foi suficientemente sensato para não deixar transparecer essa antipatia. Ouviu-os falar dos estudos, dos desportos que praticavam e do número de
camisas e camisolas necessárias para o novo ano. Rosália sorria, com o olhar velado pela emoção.
- Corações da mãe, corações da mãe - repetia continuamente.
- Corações da mãe, chegou a hora de abrir a torta - disse Matteo. E acrescentou: - Primeiro as senhoras. É assim que vos ensinam no colégio, não é? - perguntou muito
sério, enquanto partia as fatias para Rosália, Teresella e Annina. A seguir estendeu a faca à mulher: - Signora Avigliano, dou-lhe a honra de servir em primeiro
lugar o seu marido, depois os seus filhos e finalmente os que estão na cozinha. - disse tudo isto com gestos de comediante. A intenção era definir desde logo a importância
dos papéis. Mais uma vez, Rosália engoliu em seco, porque aquele homem ignorante e bonito conseguira subverter os seus projectos.
Naquela noite Teresa deitou-se tarde porque teve de lavar pratos, copos, talheres, toalha e guardanapos, varrer a sala e prepará-la para o pequeno-almoço na manhã
seguinte. Os irmãos mais novos já dormiam quando ela se enfiou, exausta, na cama.
Adormeceu imediatamente. Foi acordada por Annina, que recomeçara a tossir. Aquele catarro horrível não queria ir embora, apesar do xarope de ipecacuanha. Só acalmava
quando Teresa lhe dava açúcar caramelizado. Mas como é que o podia preparar? O fogão estava apagado. No entanto, se a irmã continuasse a tossir, ia acordar toda
a gente. Deu-lhe um gole de água. A situação não se alterou. - Vou preparar-te um caramelo - sussurrou. - Mas tu, Por favor, tenta não fazer barulho - recomendou-lhe.
Naquela casa tão espaçosa, a existência era mais sufocante do que no baixo de onde tinham saído há tão pouco tempo. Continuava a sentir-se uma hóspede indesejável
e, às vezes, não conseguia reprimir algumas lágrimas de desconforto. No fundo do coração invocava a mãe para que, do céu, a ajudasse a ser forte e razoável.
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Cobriu-se com um xaile e foi à cozinha, com cuidado para não fazer barulho. Meteu uma mão-cheia de palha no fogão, juntou-lhe alguns ramos secos e atirou para cima
de tudo um fósforo aceso. A palha pegou fogo imediatamente e incendiou os ramos pequenos. Enfiou então rapidamente um pequeno toro de madeira, fechou a porta e esperou
que a chapa aquecesse. Pôs em cima do fogão uma sertã pequena de ferro e pulverizou o fundo com algumas colheres de açúcar que começou a ferver, adquirindo um bonito
tom de âmbar. Molhou um prato e despejou rapidamente o açúcar liquefeito, que solidificou, formando uma rodela transparente. Com uma faca, separou-o do prato e partiu-o
em vários pedaços. Depois inclinou-se sobre o fogão para apagar o fogo. Foi naquele momento que sentiu que alguém a agarrava pelos ombros. Uma mão apertou-lhe a
boca para a impedir de gritar e outra insinuou-se sob a camisa de fustão. A voz de Vincenzo sussurrou-lhe ao ouvido: - Porta-te bem. Se bufas, digo que foste tu
que me provocaste.
Cenzino tinha treze anos. Era violento e agressivo como o irmão, Renato, que era mais novo um ano. Os dois, juntamente com os amigos, contavam-se entre aqueles que
incomodavam as raparigas com gestos e palavras inconvenientes. Teresa considerava-os vis e mesquinhos, até porque sabiam atirar para cima dos outros as culpas das
maldades que faziam. Foi precisamente aquela ameaça: "Se bufas, digo que foste tu que me provocaste", que lhe deu força para reagir. Num impulso dobrou o cotovelo
e esticou-o para trás, atingindo o rapaz na zona mole do estômago. Ele não emitiu sequer um gemido de dor. Ficou com a respiração suspensa. Largou a presa e oscilou.
Caiu e encolheu-se no chão, arquejante.
- Agora vai dizer que fui eu que te provoquei - sussurrou Teresa, com raiva. Pegou nos caramelos e voltou ao quarto.
Deu-os à irmã.
- Toma. Chupa devagar. Vais ver que a tosse passa logo - disse-lhe, para a confortar, enquanto lhe acariciava a cabeça. Entretanto ia pensando que a partir daquele
momento estava a mais naquela casa. Vincenzo e Renato não se iam dar por vencidos, mas ela não tencionava sucumbir. Veio-lhe à idéia o rosto solar de Benedetto.
Foi a pensar nele que sorriu e ficou mais calma.
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MERANO - SCHLOSSRUNDEGG DEZEMBRO DE 1911
Josepha acordou. O quarto estava gelado e mergulhado na escuridão. Encontrou às apalpadelas o bastão que estava aos pés da cama. Agarrou nele e deu três pancadas
enérgicas no chão. Logo a seguir ouviu uma confusão de passos pelas escadas acima, abriu-se a porta e entrou Klara.
- Até que enfim! - começou a velha criada, enquanto atravessava o quarto e começava a abrir as janelas, escancarando as portadas de madeira. - Sabe que horas são?
Eu já ia subir para ver se ainda estava viva - resmungou, ao mesmo tempo que a luz do sol inundava o quarto.
- Dormi como uma pedra. Está-se tão bem debaixo deste edredão - disse Josepha com uma voz ensonada.
- Levante-se, sua preguiçosa. Já são oito horas. As horas da manhã valem ouro - ralhou a mulher, enquanto enfiava alguma lenha na salamandra de majólica. E continuou:
- A Petra e eu não conseguimos dar conta do recado. Ainda tem de preparar a comPota de mirtilos e o strudel e o puré de castanhas para rechear o leitão. O burgomestre
está à sua espera na Câmara, para a distribuição dos presentes às crianças, e espera-se que a menina ajude também a servir o almoço aos nossos pobres. Como se isto
não chegasse, a Rita aleijou-se e o Toni teve que a levar ao endireita. Para além disso...
Josepha deslizou para fora da cama, enfiou um roupão acolchoado e fechou atrás de si a porta do quarto de banho.
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Klara estava a envelhecer e a tornar-se cada vez mais resmungona. Sabia perfeitamente que tinha pela frente um dia de trabalho intenso, mas não se achava tão preguiçosa
como dizia a criada. Dedicara o serão a escrever uma infinidade de cartões de boas-festas a parentes e amigos.
De Nápoles, os Castiglia enviavam-lhe continuamente mensagens afectuosas e presentes, que ela retribuía. Passara já um ano desde a morte de Enrico e a família do
marido era cada vez mais assídua a mandar-lhe testemunhos de estima e afecto. Enviavam-lhe primores, doces, licores, sedas preciosas, rendas, bibelots e jóias em
todas as datas especiais. O calor destas atenções levara-a a mudar definitivamente a sua opinião sobre eles. Ficava feliz por poder retribuir com vinho dourado das
suas vinhas, queijos e produtos do fumeiro, brinquedos esculpidos em madeira para os sobrinhos pequenos, rendas de bilros da Alta Anaunia, pinturas em vidro de Innsbruck
e telas do pintor Friedrich Wasmann, de Merano, que a princesa Carolina, amante de arte, apreciava.
Também Sofia, com a sua caligrafia arrastada, lhe escrevia muitas vezes e tinha saudades dela. Na última carta comunicara-lhe: "Rosa Avigliano, a mulher da Viela
da Duquesa, morreu de cólera no passado mês de Agosto. O marido casou com uma viúva rica e prepotente. Eu sei isto porque, respeitando o desejo da senhora, fui procurar
aquela pobre gente e levei-lhes, como me pediu, roupas e comida. A filha mais velha, que tem agora treze anos, anda muito triste. Chama-se Teresa, lembra-se bem
da senhora e pede-lhe para rezar por ela".
Josepha escreveu então à princesa Carolina, pedindo-lhe para se interessar pela rapariga, de quem conservava uma vaga lembrança. "Se lhe for possível, querida maman,
peço-lhe que a albergue no palácio, encarregando-a de alguns aposentos." Tinha a certeza de que a sogra havia de satisfazer aquele desejo.
A relação epistolar com os Castiglia tinha-se tornado um hábito agradável.
O naufrágio do casamento com Enrico ajudara-a a crescer. Quando deixara Merano era uma rapariga tímida e esquiva. Agora, com dezoito anos, era uma jovem senhora
elegante e segura de si - Apesar de Merano ser apenas uma minúscula realidade no vasto império da Áustria e da Hungria, muito distante dos clamores políticos e sociais
de Viena,
146
tinha uma população cosmopolita e não desprovida de interesses culturais.
As autoridades da cidade consideravam Josepha como um ponto de referência. Responsável por algumas actividades de beneficência, era chamada a participar nas comissões
de honra para a recepção de hóspedes ilustres. Os chefes das comunidades hebraicas e ortodoxas e os administradores do teatro, da biblioteca e do museu de História
dirigiam-se a ela para conselhos e auxílio. Chamavam-lhe "a nossa pequena senhora" com respeito e devoção. O seu tutor tinha muito orgulho nela. Porém, mais uma
vez, angustiava-o a solidão da jovem viúva.
Josepha tinha muitas vezes uma sombra de melancolia nos olhos e ele esperava que alguma coisa ou alguém conseguisse distraí-la dos pensamentos tristes que ela não
revelava.
Era jovem, graciosa, rica e cortejada, sem se mostrar vaidosa por isso. Descia até à cidade numa caleche que ela mesma conduzia, fazia as compras no mercado e tomava
um chocolate no café por baixo das arcadas onde se entretinha a ler o Meraner Zeitung e a comentar acontecimentos políticos, científicos e culturais.
Às vezes apanhava o comboio e ia até Bolzano ou Innsbruck para se encontrar com as amigas do tempo do colégio, para se inteirar das novidades da moda e para assistir
a algum espectáculo teatral. As raparigas invejavam-na porque Josepha era uma mulher livre, enquanto que elas viviam ainda sob a tutela dos pais, ou dos maridos,
que insistiam em considerá-las criaturas frágeis e em mantê-las longe dos perigos do mundo.
Enquanto se arranjava no quarto de banho, pensava de novo na última carta da sogra, à qual não respondera ainda. Carolina escrevera, entre outras coisas: "O jovem
Lorenzo Valeschi foi mandado para a Líbia, não para combater, mas como observador, porque confiam na sua honestidade e no seu bom senso. Pediu-me notícias tuas.
Disse-lhe que estás bem".
Massajou-se com água de colónia. O olhar risonho de Lorenzo metia-se cada vez mais presente nos seus pensamentos. Carolina, mais uma vez, lançara uma pedrinha no
lago tranqüilo da sua existência. Devia apanhá-la ou fazer de conta que não dera por ela? Pensou no jovem Heinrich von Wedel. Conheciam-se desde crianças, porque
Heinrich, ou Heini, era o irmão mais velho de uma amiga muito querida, a baronesa Luise Valentine.
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Tinha vinte anos e era militar das Standschútzen(1) no comando do Terceiro regimento, na fronteira da Caríntia. Vinha ter com ela sempre que lhe era possível e,
com um ardor juvenil, declarara-lhe o seu amor.
Josepha, como todas as mulheres, sentia-se lisonjeada pela assiduidade das suas visitas. Uma vez, durante um baile, tinha chegado a beijá-la à traição. Ela zangou-se.
Não que o beijo lhe tivesse desagradado, mas naquele momento pensara em Lorenzo e teria gostado que, no lugar de Heini, estivesse aquele.
Muitas vezes, quando estava sozinha, desejava a presença de um homem ao seu lado. Apesar do firme propósito formulado depois da morte de Enrico, sentia necessidade
de um equilíbrio afectivo.
Penteou-se com cuidado. Vestiu-se e desceu à saleta onde lhe tinham preparado o pequeno-almoço. Klara trouxe-lhe café a ferver, que ela tomou devagar, depois de
o aclarar com uma gota de nata. Enquanto espalhava nozes de manteiga sobre o pão negro, decidiu que tinha que escrever rapidamente um bilhete à sogra, para o poder
enviar com o correio do meio-dia. No final, acrescentou um post scriptum: "Diga ao Valeschi que fico muito contente pelo importante encargo de que foi incumbido
pelo governo italiano. Gostaria de ter notícias directas, se ele desejar escrever-me". Pois bem, tinha lançado ela própria uma pedra.
Logo a seguir foi à cozinha. Por cima do vestido de lã macia de um bonito cinza-pérola enfiou um grande avental azul, arregaçou as mangas e virou-se para o fogão.
Começara mais um dia de actividade frenética. Por vezes, sentia-se tão cansada à noite que recordava com saudade os longos meses de ócio passados em Nápoles. Antes
de adormecer, pensava: "Só queria um dia, um só, todo para mim".
Faltavam duas semanas para o Natal e já era tempo de enfeitar o castelo. Toni transportou para a sala de refeições um abeto
*1. Associações locais de soldados armados que existiam no Tirol. Eram chamadas para a defesa do seu país em caso de guerra e tinham o estatuto de uma milícia territorial.
(dar.)
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muito verde que Josepha ornamentou com uma grande quantidade de doces embrulhados em papéis coloridos, fitas douradas e velas pequeninas. Depois revestiu a coluna
de pedra do vestíbulo com ramos de pinheiro entrelaçados com cordões vermelhos. Decorou o peitoril das janelas e colocou no centro de cada um as velas que seriam
acesas na noite de Natal. Foi a Innsbruck, à alfaiataria Innerhofer, buscar o casaco azul forrado de zibelina. A modista entregou-lhe um chapéu da mesma pele. Comprou
prendas para toda a gente e, finalmente, na véspera de Natal, preparou-se para a missa solene da meia-noite, na catedral de Merano.
Veio buscá-la o burgomestre, com uma carruagem. As naves góticas estavam apinhadas de gente. O organista fazia vibrar os tubos sobre as notas de um prelúdio de Bach.
Ela atravessou a nave sob os olhares apreciativos dos seus concidadãos, que viam naquela jovem senhora, solitária e reservada, elegante e bela, um modelo a seguir.
Josepha ocupou o seu lugar no primeiro banco, aquele que lhe pertencia e onde estava gravado o nome dos Paravicini von Riccabona. Tinha perfeita consciência da admiração
que a rodeava e sentia-se grata a todas aquelas pessoas porque lhe transmitiam uma sensação de calor. Estava tranqüila e, enquanto rezava, sorria.
No momento em que o sacerdote recitava o hino dos anjos e na nave ressoava o coro dos fiéis que entoavam o Gloria in excelsis Deo, ouviu-se um som apressado de passos
que, da porta, se aproximavam dos primeiros bancos. Alguém falou em voz baixa a outra pessoa. Os fiéis continuaram a rezar mas, desta vez, distraidamente, para seguir
o conciliábulo do empregado do telégrafo com o chefe da estação. Depois, os dois, seguidos pelo secretário municipal, deixaram a catedral.
Nesta altura, a curiosidade alastrou no meio das pessoas e envolveu também Josepha. O sacerdote concluiu a missa e toda a gente se precipitou para a saída, à procura
de notícias.
O burgomestre, imperturbável como sempre, aproximou-se dela.
- Eu acompanho-te ao castelo - disse, ajudando-a a entrar na carruagem.
- O que foi que aconteceu?
- Apenas a chegada de um comboio especial, de Bolzano - informou.
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- Alguma visita importante? - insistiu ela, enquanto a carruagem subia em direcção à ponte romana.
- Não faço idéia. Deve ser um daqueles doidos dos Stand-schútzen que resolveu passar o Natal em casa - concluiu, para rematar o assunto.
Os criados tinham acendido as tochas frente à entrada do castelo. As velas iluminavam os vidros das janelas. O velho Toni estava à espera dela no portão.
- Muito obrigada, Herr Grossmann. Um bom Natal - disse ela. E acrescentou: - Amanhã fico à sua espera para o almoço.
- Cá estarei - prometeu, e entregou-lhe um embrulho pequeno. - É o meu presente para ti.
No vestíbulo foi acolhida por uma temperatura agradável e pelo cheiro do chocolate quente. Entregou a Klara o chapéu, as luvas e o casaco. Depois sentou-se no banco
e tirou os botins forrados de pele. A criada ajudou-a a calçar uns sapatinhos de veludo.
- Vai dormir - disse Josepha. - Estás cansada e já estás a pé há muito tempo.
- Obrigada, menina - disse a mulher. E acrescentou: - Na saleta vais encontrar o teu chocolate, e também uma pessoa que está à tua espera.
A jovem dirigiu-lhe um olhar interrogativo. A criada encolheu os ombros e afastou-se a resmungar: - Italianos. Sempre italianos.
Josepha abriu a porta. Ali estava Lorenzo Valeschi, que lhe sorriu.
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Lorenzo abriu os braços e Josepha refugiou-se no seu peito, sem hesitações.
- Então és tu o viajante misterioso que chegou num comboio especial! - exclamou, satisfeita.
- Feliz Natal, meu amor - sussurrou-lhe ele ao ouvido.
- Feliz Natal para ti também - respondeu.
- Nunca mais vou ter outro melhor do que este - disse Lorenzo.
- Queres uma chávena de chocolate? - perguntou-lhe, soltando-se do seu abraço.
- Há seis minutos e doze segundos que estou à espera disso - precisou, olhando o relógio.
- Conta-me tudo - pediu, convidando-o a sentar-se no pequeno sofá ao lado do fogão. Lorenzo estava bronzeado. Vestia uma camisola de lã tosca, de gola alta, cinzenta
e branca, e calças pretas de fustão pesado. O cabelo muito curto e o bigode fino eram ainda mais loiros do que se lembrava.
Deitou o chocolate nas chávenas e estendeu-lhe um prato de biscoitos.
- Saí de Tripoli há poucos dias. Viajei de avião até Roma. Apresentei um relatório ao ministro da Guerra e logo a seguir apanhei o comboio para Brennero. Em Bolzano,
como é evidente, era demasiado tarde para apanhar a correspondência para Merano. Tive uma longa discussão com o chefe da estação,
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que não percebe uma palavra de italiano e ainda menos do meu péssimo alemão. Então, mostrei-lhe as minhas credenciais. Não era capaz de as ler, felizmente, mas viu
as armas do Reino e imaginou que eu fosse sabe-se lá quem. Fez os possíveis e os impossíveis para eu conseguir partir imediatamente. E aqui estou - explicou.
Schloss Rundegg estava mergulhado no silêncio. A atmosfera confortável daquela sala favorecia a intimidade.
- Agora fala-me de ti - pediu-lhe.
- Estou terrivelmente emocionada - confessou, levando uma mão ao peito, como se tentasse acalmar o ritmo demasiado veloz do seu coração.
- Também eu. Desde que saíste de Nápoles, nunca deixei de pensar em ti. Achei que tive muita sorte em ser mandado para África, porque esperava esquecer-te. Mas ainda
foi pior. Escrevia à tua sogra quase todos os dias, esperando receber por ela notícias tuas. Finalmente, chegou uma carta em que me referia o teu convite para te
escrever. Foi o suficiente para eu resolver vir logo a correr ter contigo. Inventei uma mentira de que me envergonho. Disse que a minha mãe não estava a passar muito
bem. Sabes, como fazem as crianças quando não estudaram a lição. Puseram-me logo um avião à disposição. Até ao ministro menti. Em resumo, Josepha, tens à tua frente
um rapaz infame - concluiu.
- E fizeste tudo isso por mim - sussurrou, surpreendida.
- Fi-lo por mim. Já não aguentava mais a idéia de te saber aqui, sozinha, tentada por sabe-se lá quantos galanteadores.
- Muitos, realmente.
- O ciúme tem as suas regras. Eu sou ciumento.
- É um luxo que ainda não te podes permitir. Não há nada entre nós.
- Há tudo, Josepha. Tudo aquilo que deve existir entre um homem e uma mulher que se amam - disse com uma voz firme. Pousou a chávena na mesa, foi até junto dela
e abraçou-a.
Josepha fechou os olhos e pensou que a sua vida de mulher começava naquele momento, entre os braços de Lorenzo que a mantinha apertada contra si, sussurrando-lhe:
- Estou perdidamente apaixonado por ti.
- Anda - disse, libertando-se dos seus braços. Pegou-lhe na mão e levou-o para fora da sala.
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- Vamos tentar não fazer barulho - murmurou, enquanto avançava à frente dele ao longo da escada que conduzia ao primeiro andar.
Fechou com cautela a porta do quarto de dormir. Foram acolhidos pelo calor da salamandra, enquanto a luz trémula das velas projectava sombras compridas sobre as
paredes enriquecidas com duas tapeçarias napolitanas antigas, presente da princesa Carolina. - Cheira bem, aqui - observou Lorenzo. Josepha sentou-se na grande cama
de cedro esculpido. Ergueu uma perna, mostrando o sapatinho de veludo vermelho e uma perna enfiada numa meia preta de seda pesada.
- És o primeiro homem da minha vida - disse em voz baixa. Lorenzo pousou um joelho no chão, descalçou-lhe o sapato e, lentamente, levantou a saia até encontrar o
elástico que segurava a meia. Tirou-a e beijou-lhe a perna.
Amaram-se apaixonadamente e depois ficaram muito tempo abraçados, em silêncio, saboreando aquela felicidade.
- Quero ajudar-te a esquecer - disse Lorenzo.
- Já o fizeste, nesta noite de Natal - respondeu ela. E acrescentou: - O passado já não existe para mim. A partir de agora, só tu existes.
- Então temos de comemorar - decidiu Lorenzo. Levantou-se da cama, enfiou as calças e a camisola, envolveu o corpo nu de Josepha no edredão e pegou nela.
- Vou levar-te para baixo, para a saleta. Quero comer qualquer coisa e quero ter contigo uma grande conversa.
- Fala mais baixo, seu prepotente - protestou ela, rindo baixinho. E perguntou: - És sempre assim?
- Assim, como?
- Queres comer, queres conversar, queres tudo?
- Só te quero a ti - declarou, enquanto descia as escadas.
- Não faças barulho. A Petra e a Klara vão acabar por nos descobrir - avisou.
- As duas velhotas já perceberam tudo, ainda antes de tu teres chegado da missa. Olharam para mim de lado e as suas expressões eram muito mais eloquentes do que
as palavras.
Lorenzo instalou Josepha no pequeno sofá e meteu-lhe um biscoito entre os lábios.
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- Vai à cozinha. Em cima do balcão está uma Sacher-Torte. Trá-la para aqui - ordenou ela.
Comeram embrulhados no mesmo edredão, a rir e a brincar como duas crianças.
- Fala-me de Tripoli. Como é? O que é que fazem as pessoas? Sabes que eu nunca vi um africano? - perguntou Josepha.
- É uma colónia. Está calor e há moscas do tamanho de feijões. Os negros são todos parecidos. Alguns são muito bonitos, e então distinguem-se dos outros. Há muitos
oficiais. Alguns mantêm as suas negras, outros levam para casa rapazinhos, dispostos a tudo por um prato de sopa. Há italianos que enriquecem apesar das leis, porque
a corrupção é a única lei não escrita que funciona às mil maravilhas. A violência, a injúria, a crueldade, a miséria e a doença constituem a regra. E, no entanto,
encontras lá de tudo: perfumes franceses, roupa inglesa, ouro, pedras preciosas e cocaína. Tudo tem um preço, para tudo se arranja o dinheiro que o nosso governo
destinou às ajudas e que vai parar ao bolso dos traficantes. Tu não ias gostar da África, como eu não gosto - concluiu.
- Foi para descobrires isso que te mandaram para lá? - perguntou Josepha, desconcertada com aquela síntese terrível.
- De maneira nenhuma. Não descobri nada que não se saiba em Itália. Mas o governo, que tem sempre necessidade de salvar a pele, manda-me a mim e a outros para as
colónias, para observar e informar. Acho que nem sequer chegam a ler os nossos relatórios. Enquanto não tomarem medidas, as coisas vão continuar assim. Mas, meu
amor, gostaria que falássemos de outras coisas. É noite de Natal. Tenho-te nos meus braços e sou o mais feliz dos homens.
- Olha, está a nevar! - exclamou Josepha, apontando as janelas com o dedo.
- Vamos lá fora - propôs ele, de repente. Josepha embrulhou-se no edredão e saíram juntos.
A neve caía, densa e silenciosa. O jardim estava todo branco. Eles puseram-se a dançar ao ritmo imaginário de uma valsa arrebatadora. A neve fresca e seca estalava
sob os seus pés, embranquecia os cabelos e os ombros e derretia-se nas faces.
- Amo-te - murmurou Josepha. Aprendera, sofrendo, a ver melhor o interior de si mesma. Lorenzo Valeschi era o homem da sua vida.
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- Finalmente, disseste-o! Posso acreditar em ti? - perguntou. Ela inclinou-se para o chão e, com o indicador, escreveu na
neve: Ich liebe dich(1).
- Nunca mais vais poder arrancar esta folha - brincou ele, aprisionando-a nos seus braços. E murmurou: - Eu sei por que te amo. Mas não sei por que é que tu me amas
a mim.
- Porque me divertes. O amor, para se alimentar, precisa de alegria - declarou.
- Então casa comigo.
Como única resposta, Josepha libertou-se do seu abraço, atirou a cabeça para trás e abriu a boca para saborear os flocos gelados.
- Não - respondeu por fim.
- Eu comprometi a tua honra. A lei diz que é necessário um casamento reparador - objectou Lorenzo.
- Ou então?
- Posso acabar na prisão.
- Então eu caso contigo.
- Quando?
- Não sei. Daqui a um ano, daqui a dois, daqui a dez. Qual é a pressa?
- Mas eu tenho de regressar a Roma amanhã.
- Tão depressa? - sussurrou, desconsolada. Depois voltou a sorrir: - Então vamos outra vez para a cama. Rápido. Preciso de fazer uma provisão de amor para quando
cá não estiveres - decidiu, arrastando-o para dentro de casa.
*1. "Amo-te", em alemão. (N. da T.)
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA JANEIRO DE 1912
- A princesa Josepha pediu-me para continuar a prestar alguma assistência à Teresa Avigliano e aos irmãos - começou Sofia, dirigindo-se à princesa Carolina.
- Também me escreveu a mim, a propósito dessa rapariga. Se achares que está com dificuldades, diz-lhe que venha ter connosco - ordenou a princesa. E acrescentou:
- Precisas de dinheiro?
- Dinheiro, não. Só alguma roupa. Estava a pensar em procurar alguma coisa no meio daquilo que temos no "pedaço de eternidade", se a senhora me permite - respondeu
a empregada.
O "pedaço de eternidade", no léxico familiar, era o sótão. Todos os Castiglia tinham a mania das compras. Quando saíam, regressavam cheios de embrulhos. As exposições
de arte e os leilões eram um pretexto para adquirir pratas, telas e móveis. Muitas vezes, as aquisições acabavam no sótão, mas não eram esquecidas. Quando era preciso
oferecer um presente, mais ou menos importante, a princesa Carolina subia ao sótão com algum criado. Olhava em volta, abria armários e baús e, entretanto, sussurrava:
- Ora vamos lá ver o que temos aqui.
Considerava uma paisagem da escola inglesa do século XVIII, um serviço de chá chinês, uma Diana de alabastro, um relógio de pêndulo estilo Luís Filipe em bronze
dourado, uma colecção de caixas de bombons inglesas estilo Rainha Vitória, um tapete chinês, uma série infinita de caixinhas e brinquedos em prata, pedra, e coral.
Observava todos os objectos com ar pensativo,
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perguntando a si própria por que seria que ela e os filhos compravam tantas coisas.
- Talvez para conquistar um pedaço de eternidade - concluía de todas as vezes, em voz alta.
No "pedaço de eternidade", Sofia encontrou camisolas de lã, luvas, gorros, sapatos novos, xailes e mantas. Arrumou tudo numa cesta de vime. Da despensa tirou algumas
tabletes de chocolate, dois pacotes de café, uns frascos de mel, um saco de farinha, legumes secos, compotas e conservas de tomate.
Fechou a cesta e pediu ajuda a Saverio, para a transportar até à viela da Duquesa.
O velho Sasà morrera e Saverio tinha passado ao serviço da princesa. No apartamento onde tinham vivido Enrico e Josepha instalara-se Virginia. A mãe não tinha gostado
daquela iniciativa, mas, perante os amuos da jovem, decidira passar por cima daquilo. Agora era Sofia quem se ocupava dela. Não era fácil satisfazer os seus desejos.
A pobre mulher fazia o que podia, mas só recebia censuras. Por isso sentia saudades do tempo em que estivera ao serviço de Josepha. Virginia era muitas vezes grosseira
e sempre muito caprichosa. Quando se dava conta de ter passado das marcas, desculpava-se oferecendo-lhe um presente, que Sofia aceitava para não lhe desagradar.
Um colar de âmbar ou um xaile de seda eram coisas supérfluas que arrumava num sítio qualquer, acabando por se esquecer delas. Sofia sentia muito a falta da princesa
austríaca e esperava sempre que um milagre a trouxesse de volta a Nápoles. Mas, entretanto, a senhora acabava de exprimir um desejo. Ela tinha de a satisfazer.
Na companhia de Saverio, chegou de carruagem à viela da Duquesa.
Apesar do ar gelado que soprava do mar, uma prostituta estava sentada nos degraus da sua casa com a blusa desapertada, à entrada da viela. Dirigiu a Saverio um cumprimento
sério e, uma vez que Sofia largou a cesta para fazer um rápido sinal da cruz, a mulher cobriu-a de insultos.
Os rapazes da viela começaram a fazer barulho. Sofia, nada intimidada, respondeu com palavras ameaçadoras.
- Saverio, dá aí uma boa paulada a estes delinquentes - ordenou, cheia de cólera.
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- Só se fosse parvo. Eles estão mas é à espera da briga para tomarem conta da nossa cesta - disse ele. E acrescentou: - Tu estás sempre a meter-me nisto. Eu não
queria voltar a estas vielas fedorentas.
- Mas tu és mesmo... - replicou, indignada, a ponto de pronunciar um epíteto inconveniente. Conteve-se, até porque duas mulheres, embrulhadas em xailes, desataram
à sapatada aos rapazes, que dispersaram rapidamente.
- Onde é que vão? - perguntaram logo a seguir.
- A casa dos filhos da Rosa Avigliano - respondeu Sofia.
- Eu conheço-os, já aqui estiveram - interveio uma vizinha, aparecendo à porta do seu baixo. - São benfeitores, não são? - insistiu, com uma ponta de inveja na voz.
- Ó mulheres, metam-se na vossa vida - disse um velho. Estava sentado num banco, encostado à parede. Tinha o rosto encovado, a barba por fazer, um boné que lhe caía
sobre os olhos, fumava um charuto húmido e tossia.
Naquele momento, Sofia viu Teresella que se aproximava trazendo pela mão uma menina que tossia sem parar. Vinham as duas embrulhadas em xailes.
Também Teresa viu os dois criados e os reconheceu. Deveria sorrir, sabendo que lhe traziam presentes. Mas, pelo contrário, teve uma expressão de contrariedade. Não
gostava de chamar sobre si própria a atenção da gente da viela. Para além disso, dona Rosália
não queria que ela e os irmãos gozassem da generosidade dos Castiglia.
- Estiveram a incomodar-se - disse, com um ar esquivo.
- A pessoa que me mandou aqui quer que festejem o dia de Reis como deve ser - disse Sofia.
- São os presentes! Que bom! - exultou Annina.
- Muito obrigada - disse Teresa, puxando a irmã mais nova. - Mas nós não precisamos de nada. - Passou quase à força por
entre as mulheres que formavam uma barreira, arrastando consigo a irmã renitente.
- Quero os presentes! - gritou a pequena, quase a chorar.
- Sofia, vamos embora - decidiu Saverio. Vinha do campo e lembrava-se bem da miséria em que vivera. Na cidade, porém, os
pobres pareciam mais agressivos. Na aldeia, a diferença entre
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riqueza e a pobreza não era tão evidente. Os senhores viviam isolados dentro dos seus jardins e ao domingo, quando iam à missa, distribuíam moedas por toda a gente.
Na cidade, pelo contrário, o confronto era contínuo, inevitável. - Ouve o que eu te digo, vamos regressar ao palácio - insistiu.
- Ouviram bem? A Teresella não precisa de nada. A dona Rosália é rica. Deixem-nos mas é ficar a nós aquilo que trouxeram - interveio outra mulher.
Agora também Sofia receou que os habitantes da viela se atirassem a eles para apanhar a cesta.
- Não me faças perder mais tempo. Vamos lá acima - rematou Sofia, dirigindo-se a Teresa com um tom autoritário.
A rapariga avançou à frente dela pelas escadas, de má vontade, até ao apartamento da madrasta.
- Seja o que for que tenha trazido, a mulher do meu pai vai ficar com tudo, como fez da última vez - preveniu Teresa, no momento em que os dois pousaram finalmente
a cesta na entrada.
Annina abriu-a e encontrou logo uma tablete de chocolate. Desembrulhou-a e fincou-lhe os dentes.
- Quem é que está ali? - perguntou Saverio, indicando uma porta entreaberta. Tinha visto de relance uma figura que os espiava e que se retirara imediatamente.
- São os filhos da dona Rosália - respondeu a rapariga.
- E são maus que chegue - comentou Annina, com a boca cheia de chocolate.
Num ímpeto, Sofia abriu a porta. Encontrou à sua frente dois rapazes de camisola interior e cuecas. Estavam sentados em cima das camas por fazer, com o rosto ainda
inchado de sono, e riam baixo, olhando-a com ar de desafio. Sentiu uma aversão instintiva por eles, não tanto por causa do comentário de Annina, mas sobretudo por
aquela expressão arrogante e ambígua. Olhou para o quarto cheio de jogos, enriquecido com um bonito tapete macu que cobria o chão.
- Livrem-se de tocar numa única coisa daquelas que trouXemos para os filhos da Rosa Avigliano - preveniu-os, olhando com severidade.
Os dois irmãos continuaram a rir, trocando cotoveladas de entendimento. Ela voltou a fechar a porta com firmeza.
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Era evidente que os pequenos Avigliano eram vítimas daqueles dois rapazes, habituados a fazer o que lhes apetecia.
- Ouve bem o que eu te digo - disse, dirigindo-se a Teresa. - A princesa Castiglia em pessoa interessa-se por ti. Sabes onde é o palácio, não sabes? Aparece quando
quiseres.
- Tenho quatro irmãos que precisam de mim - disse a rapariga baixinho.
- Não é verdade. Eles arranjam-se melhor sem ti. Tu tens de deixar esta casa, para sempre - respondeu Sofia, enquanto se preparava para sair.
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Annina enroscou-se em cima da cama para saborear o chocolate em paz.
- Não podes comer isso tudo - disse Teresa, arrancando-lho das mãos.
A irmã mais nova começou a gritar.
- É meu. Eu quero!
- Vai fazer-te mal. Já comeste que chegasse - respondeu Teresella, com muita paciência.
- E não, faz-me mas é muito bem. Passou-me a tosse - protestou, lavada em lágrimas. E logo a seguir recomeçou a tossir.
- Estás a ver? Se não paras de comer chocolate o catarro não desaparece e temos que te levar ao hospital.
Annina começou a saltar em cima da cama, aos gritos.
- Hospital não, chocolate sim.
A irmã partiu um quadradinho da tablete e com ele fechou-lhe a boca.
- Vou guardar aqui o resto, debaixo do colchão, e ninguém lhe toca. Estou a falar a sério, Annina. Vais ficar muito doente se não me deres atenção.
A pequena acalmou.
- Está bem. Posso ir lá para baixo brincar?
- Não te esqueças que não podes correr nem transpirar ' disse Teresa enquanto a embrulhava num xaile e lhe enfiava na cabeça um gorro de lã.
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Annina era generosa, afectuosa, espontânea e fácil de contentar. O pai era doido por ela.
- Tu és um anjo - dizia-lhe. - Se eu te atirar ao ar, começas a voar.
Ela ria-se e abanava os braços como se tentasse levantar voo. - Ainda não estou preparada. Tenho de treinar - respondia.
Na viela, a sua brincadeira preferida era arrancar numa corrida para dar um grande salto, esperando erguer-se da terra. Caía muitas vezes, de vez em quando magoava-se,
mas não abandonava a esperança de voar.
Teresa regressou ao vestíbulo. A cesta tinha desaparecido. Sabia que os irmãos di Giacomo tinham tomado conta dela. Através da porta fechada do quarto, ouvia-os
remexer. Escancarou a porta. A cesta tinha sido despejada, o conteúdo estava espalhado pelo chão e os dois irmãos inspeccionavam roupas e provisões.
- Voltem a pôr tudo como estava - disse, esforçando-se por parecer calma.
Renato deu uma cotovelada ao irmão mais velho.
- Falou a dona da casa - disse com ironia.
- Então, temos de obedecer. Parece que a rapariga tem amizades ao mais alto nível - replicou Vincenzo, a arremedar a linguagem elaborada dos professores do colégio.
Um ano passara desde o último Natal, tristíssimo, festejado em casa da madrasta, durante o qual evitara as investidas de Vincenzo com os poucos recursos de que dispunha.
Na Páscoa os dois irmãos foram retidos no colégio devido ao seu escasso rendimento. E ainda por causa do péssimo aproveitamento escolar, foram mesmo obrigados a
estudar durante as férias de Verão.
- Hei-de martirizá-los, como fizeram a São Sebastião, mas os meus filhos têm de ser doutores - dizia dona Rosália, com a obstinação de quem tem na idéia uma meta
a que não quer renunciar. Entretanto, ia mandando ao reitor, todas as semanas, caixas de Peixe fresco e outras iguarias, para lhe aumentar a benevolência em relação
aos dois rapazes.
Matteo tinha o bom senso de nunca intervir naquele assunto, mesmo quando a mulher lhe pedia a opinião.
- Os filhos são teus - dizia. - Só tu sabes o que é bom e o que é mau para eles.
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Rosália sabia que se o pai ainda fosse vivo os obrigaria a trabalhar com ele no mercado. - O estudo - diziam-lhe os professores - não é um direito, mas sim um dever.
E os seus rapazes não sentem esse dever. Mais vale pô-los a trabalhar.
Quando ouvia estas palavras, Rosália empalidecia, como se tivesse apanhado uma bofetada em plena face, porque sentia como uma ofensa pessoal aquela falta de consideração
pelos filhos. Quanto mais se sentia humilhada, mais se obstinava em querer fazer deles dois doutores. Apesar de avarenta, seria capaz de dar todo o dinheiro que
tinha para poder realizar aquele sonho. Atirava a sua raiva para cima dos pequenos Avigliano, que considerava uns "parasitas à traição". Racionava-lhes a comida
e protestava com o marido porque aqueles filhos todos a iam arruinar. Matteo estava já cansado de ouvir as queixas dela e não lhe ligava importância, furtando-se
cada vez mais aos seus deveres conjugais. Ela zangava-se e fazia grandes cenas.
Entretanto, Vincenzo e Renato, à força de reprimendas e presentes, tinham passado, respectivamente, para o terceiro e o quarto ano do liceu. Mas não tinham melhorado.
Ao fim de um ano de ausência tinham regressado a casa ainda mais agressivos e mentirosos.
Naquele momento, olhavam para Teresa com ar de escárnio.
Vincenzo segurava na mão uma saia de lã azul que parecia feita à medida para ela. Era muito bonita. Tinha bordadas na beira papoilas vermelhas, espigas amarelas
e flores-de-lis azuis. Era um bordado feito a ponto cheio, com fios de seda que brilhavam sobre o azul opaco da saia. Por instinto, a rapariga estendeu uma mão para
pegar nela. O filho da madrasta foi mais lesto do que ela e retirou-a.
- Se a queres, tens de me mostrar as coxas - disse com um sorriso que provocou o nojo de Teresa.
Sabia que não podia pedir ajuda a ninguém. Só o pai a poderia socorrer, mas estava a trabalhar. Para além do mais, Teresa era demasiado orgulhosa para envolver Matteo
nas muitas sevícias de Rosália e dos filhos. Há meses que sobrevivia apenas com as suas próprias forças e não seria a perda daqueles presentes inesperados que a
iria fazer quebrar o silêncio.
- Metes-me nojo - respondeu. - Metes-me tanto nojo que vou fazer um feitiço contra ti. Sou filha da Rosa Avigliano e aquilo que prometo, cumpro - acrescentou com
um ar gelado.
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O rapaz atirou-lhe a saia. Tinha medo dos feitiços, como toda a gente. E como conhecia, por ter ouvido falar, as artes mágicas de Rosa Avigliano, ficou convencido
de que Teresa também as possuía. Naquele momento começou a tremer de cólera e de medo. Olhou para o irmão, como se dele lhe pudesse vir algum auxílio. - Faz-te respeitar
- disse-lhe Renato em voz baixa.
- Vou traçar a tua figura com alfinetes num limão, e depois vou enfiá-lo num espeto e queimá-lo no fogo, a repetir o teu nome até caíres morto - replicou ela, enquanto
se apressava a repor na cesta os presentes espalhados pelo quarto. Nunca quereria nem seria capaz de fazer um feitiço, mas estava aterrada com aqueles dois canalhas
e esperou que a ameaça funcionasse. Com um gesto decidido, fechou a tampa, agarrou numa das pegas da cesta e, arrastando-a, dirigiu-se para a porta. Se conseguisse
barricar-se no seu quarto, ficaria a salvo, pelo menos naquele momento.
Tinha quase conseguido quando Vincenzo se lançou para cima dela com todo o seu peso, ao mesmo tempo que Renato fechava a porta do quarto. A necessidade de a humilhar
prevalecera sobre o medo de um qualquer malefício. Desta vez, eram os dois que a mantinham esmagada contra o chão. Era impossível opor-se às forças unidas de dois
adolescentes, animados pela frustração, pela maldade e pela baixeza. Teresa podia gritar, mas os seus gritos não teriam demovido os vizinhos da antiga filosofia
segundo a qual é preciso pensar duas vezes antes de interferir nos assuntos alheios. Sabia bem que a história iria acabar assim, com Renato a segurar-lhe os braços
e Vincenzo a levantar-lhe a saia. Depois, com um impulso decidido, penetrou no seu sexo e começou a menear-se como um possesso, à procura de um prazer que tardava
em chegar. Teresa chorava baixinho, não tanto pela dor como pela humilhação e pela absoluta impossibilidade de se defender.
- Eu também quero experimentar - disse o irmão mais novo, que continuava a rir como um idiota.
- Sossega. Não vês que ainda não acabei? - disse o outro, irritado porque não conseguia chegar ao fim.
Naquele momento a porta abriu-se e Teresa viu a madrasta,
qUe olhou para ela e para os filhos durante um breve instante. A seguir, voltou a fechar a porta, sem um comentário, e dirigiu-se à cozinha. Os seus olhos tinham
visto qualquer coisa de repugnante que ela queria ignorar.
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Apoiou os cotovelos no peitoril da janela e olhou para baixo. Pensou que os filhos tinham feito uma sujeira que afinal não era assim tão terrível, considerando que
Teresa devia ter feito os possíveis para os provocar. Mas incomodava-a ter de enfrentar Matteo quando a filha lhe falasse naquilo. Precisava de encontrar uma justificação
muito plausível, porque Matteo era capaz de massacrar os rapazes à pancada. Aí ia começar a balbúrdia. A viela e o bairro inteiro iam saber o que se tinha passado.
O casamento desfazia-se e as culpas recairiam sobre ela.
Não podia deixar que acontecesse tudo isto. Mas não ia acontecer, porque Vincenzo e Renato iam negar. Ela própria ficaria do lado deles, defendendo que Teresa era
uma mentirosa. Afinal, não tinha acontecido nada que não se pudesse reparar. A rapariga ainda não era menstruada e não haveria consequências. Enfim, não valia a
pena dar um peso excessivo a um episódio que era regra entre adolescentes que brincavam a imitar os adultos, assim, sem malícia. Ela própria, quando era pequena,
tinha sofrido ataques de outras crianças e, às vezes, até tinha gostado. Em suma, antes queria não ter visto, para não saber. Mas, já que tinha visto e sabido, a
única solução era ignorar.
Naquele momento, Rosália viu a mão de Teresa, que pousava no peitoril uma imagem da Virgem.
- Encontrei-a no chão, por baixo da mesinha do seu quarto - disse a rapariga.
Rosália olhou para a imagem e não respondeu.
- A minha mãe tinha-me dito que a entregasse à senhora, no Verão de há dois anos, para se lembrar de uma certa promessa, no caso de se vir a esquecer - continuou
a rapariga.
- Mas, afinal, o que é que tu queres? - perguntou de repente a mulher, que se recusava a deixar-se atacar por sentimentos de culpa.
- Eu? Nada. Pense mas é o que quer a senhora, dona Rosália - respondeu Teresa.
Saiu de casa, chegou a correr ao bairro elegante de Umberto e tocou à porta de serviço do palácio Castiglia. Veio uma criada abrir.
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- Venho procurar a Sofia - sussurrou a rapariga.
- E tu quem és? - perguntou a mulher.
- Sou a Teresa Avigliano.
- És a Teresella, a filha da Rosa. Entra. A Sofia estava à tua espera, estás com muito má cara, coitadinha.
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NÁPOLES - PALÁCIO CASTIGLIA JANEIRO DE 1913
- ABRIL DE 1914
Teresella recordou o dia em que o pai foi ter com ela ao Palácio Castiglia...
- Teresella, por que foi que fugiste?
Matteo Avigliano estava à porta da cozinha. Segurava na mão o chapéu dos dias de festa e amachucava a aba enquanto olhava para a filha com uma expressão de desânimo.
Teresa gostaria de o convidar a entrar, mas não teve coragem. Olhou para o pai e foi como se o visse pela primeira vez. Sempre o considerara um homem estouvado e
forte. Só uma vez o vira chorar, enroscado sobre si próprio como uma criança. Foi quando Rosa estava a morrer. Agora encontrava um rosto marcado pelo sofrimento,
um olhar intimidado. "Trazia vestido um casaco liso que não era da sua medida e arrepanhava junto aos botões, uma camisa com o colarinho gasto e umas calças deformadas.
Suscitou-lhe uma grande ternura.
- Bom-dia, pai - disse. E perguntou: - Como é que soube?
- De uma maneira ou de outra, um pai consegue sempre encontrar os filhos - replicou, quase como se quisesse desculpar-se
da intrusão. E acrescentou: - Aquilo não era vida, em casa da Dona Rosália, pois não? Eu percebo-te. Mas podias ter dito alguma coisa. - Não era uma censura.
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- Aquilo não era vida - confirmou ela. E prosseguiu: - Não lhe queria complicar a existência.
Se lhe contasse a verdade, o que seria do pai e dos irmãos? Matteo ia ser obrigado a abandonar a casa da mulher. Mas não tinha outro refúgio para a família. Tomando
o partido dela, acabariam todos na rua.
- A minha existência, compliquei-a eu sozinho - sussurrou ele. Sorriu-lhe.
- Sem mim, a sua mulher vai ser melhor para os meus irmãos - comentou ela.
- A Annina precisa de ti - disse Matteo.
- Isso faz-me sofrer - murmurou Teresa.
- Aqui respeitam-te? - perguntou ele.
- Os criados gostam de mim. Os senhores protegem-me - explicou.
- Posso fazer alguma coisa por ti?
- Já fez muito. Veio até aqui. Volte cá, se quiser.
Matteo deu um passo atrás. A filha acabava de se despedir.
Naquele momento, os olhos da rapariga encheram-se de lágrimas. Lembrou-se do baixo húmido e sufocante no Verão, gelado e desconfortável no Inverno. E, no entanto,
tinha sido feliz naquele pobre quarto. Recordou as gargalhadas francas do pai, os corpinhos tenros dos irmãos, as velas que ardiam em frente das imagens dos santos,
o cheiro do macarrão misturado com scapece, que comiam nos dias de festa, a mão forte de Matteo que lhe despenteava o cabelo e o olhar terno de Rosa, que a via crescer
com amor. Tudo acabara. Apenas restava a recordação daqueles momentos felizes.
De repente, atirou os braços ao pescoço do pai e soluçou-lhe no ombro. Também Matteo chorou sem se conter, abraçando-a.
- Trago-vos sempre no meu coração. A todos - confessou Teresa.
- Também eu te trago no meu coração, Teresella - replicou Matteo. E acrescentou: - Agiste com bom senso. Ainda bem que aqui estás agora.
Teresa enxugou os olhos e deu-lhe um chocolate. Sofia dava-lhe um todos os dias e ela guardava-o para a noite, quando se deitava e as saudades da família se tornavam
mais agudas
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e devastadoras - Então metia o chocolate na boca e a doçura do açúcar, ao desfazer-se, consolava-a.
- Isto chama-se honhon. Dê-o à Annina, da minha parte - disse.
Naquele dia, Teresa Avigliano tornou-se mulher. Deu-se conta de ter cortado o cordão que a mantinha ligada à família. Agora a sua vida dependia apenas dela. Os seus
passeios pela cidade tinham finalmente uma meta definida. Andava pelas redondezas da viela ou do mercado do peixe. Misturava-se com a multidão para passar despercebida
e poder observar o pai, que trabalhava mais do que uma mula, Peppiniello, que o imitava, Annina, que continuava a tossir e brincava com os irmãos e os outros companheiros,
e dona Rosália, que parecia ter perdido o ar carrancudo de outros tempos e que tinha muitas vezes um olhar sombrio, além de muitos fios brancos nos cabelos.
Sofia sabia qual era o objectivo daquelas escapadas. E não ousava censurá-la. Só lhe ralhava quando ela fazia alguma coisa mal no trabalho. Mas, no fundo, desculpava-a
pela sua pouca idade e pelas amarguras que trazia no coração.
No palácio Castiglia não tinha tarefas definidas. Sofia definia-a como "a minha assistente". Ensinou-a a tirar as nódoas de vinho, de café e de molho das toalhas
e dos guardanapos. Mostrou-lhe como e quando usar o óleo de linhaça, a cera de abelha e a parafina. Fê-la entender a diferença entre um guardanapo bem engomado e
outro apenas passado a ferro. Ajudou-a a distinguir a porcelana da cerâmica, a prata da alpaca, o pano de linho do de algodão. Levou-a até à horta, para lá da hassecour,
e mostrou-lhe como se devia podar o manjericão para crescer mais viçoso, ou como cortar as flores para pôr nas jarras e recolher as sementes de tomate para as deixar
a secar para a sementeira seguinte.
Ao fim de um ano, Teresa aprendera a conhecer todos os mecanismos que regulavam a vida das duas únicas habitantes do palácio: a princesa Carolina e a filha, Virgínia.
E apercebera-se de que a limPeza, a ordem e a eficiência requeriam o trabalho e a atenção de muitos criados, que estavam sempre à disposição, de dia e de noite,
não só das duas senhoras mas de toda uma multidão de hóspedes
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que alternavam num ritmo contínuo, quase como se não se tratasse de uma residência privada, mas de um grande hotel de luxo.
Às vezes, acontecia-lhe cruzar-se com a princesa. Então fazia-se muito pequenina, como que a tentar anular-se. A senhora apontava-lhe a bengala.
- Tu quem és? - perguntava-lhe de todas as vezes.
- Teresa, ao seu serviço - respondia, tal como Sofia lhe ensinara.
- Ah, pois, Teresa. És a protégée da minha nora. Está bem, está muito bem - dizia, e os lábios fechavam-se num sorriso ligeiro, enquanto punha os óculos em cima
do nariz para a observar melhor.
A rapariga corava e o ritmo do seu coração acelerava.
- E, diz-me, tratam-te bem? - queria saber.
- Sim, senhora, ao seu serviço - balbuciava.
- Dão-te comida que chegue?
- Sim, senhora, ao seu serviço - repetia, esperando que aquele exame acabasse o mais depressa possível.
- Muito bem. Muito bem - terminava Carolina, satisfeita. Depois tirava a lorgnette, fechava-a com um estalido e afastava-se.
Sofia confeccionara para Teresa saias e camisas, grandes aventais brancos e lenços para cobrir os cabelos, cuecas de pano e camisolas interiores, aproveitando restos
de tecidos acumulados nos baús do sótão.
Eram roupas simples, mas Teresa considerava-as preciosas, uma vez que eram novas.
Dormia num pequeno catre aos pés da cama de Sofia, num quartinho no primeiro andar do palácio que tinha uma janela virada para a basse-cour. À noite, quando se recolhiam,
Sofia rezava o terço e Teresa salmodiava com ela uma série infinita de "ora pró nobis".
Todas as semanas recebia algum dinheiro do guarda-livros, que ocupava um escritório no rés-do-chão e administrava todas as despesas da casa. Ficava inchada de orgulho
com aquelas poucas moedas e fechava-as numa lata que guardava no meio da sua roupa, numa grande gaveta. Antes de adormecer agradecia ao Senhor e à mãe que, tinha
a certeza, intercedera junto dele para a instalar na casa Castiglia, onde ninguém a tiranizava.
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À noite nunca saía, a não ser que houvesse alguma procissão. Então gostava muito de se misturar no meio dos fiéis, com a cabeça coberta por um véu de tule branco
que lhe chegava aos tornozelos, uma fita azul ao pescoço com uma medalha de Nossa Senhora, uma vela na mão e uma voz clara a cantar: "Olha para o teu povo, linda
Senhora, que com júbilo novo, te venera nesta hora...". Em Dezembro participava na novena do Natal e na montagem do Presépio no vestíbulo do apartamento da princesa.
A cabana era enorme, assim como as estátuas de porcelana da Sagrada Família com a vaca, o burro e os pastores. Saverio conseguia montar um cenário de papelão pintado
e inventar pequenas cascatas de água e fontes luminosas que tornavam a paisagem sugestiva. Monsenhor Jaconis vinha benzer pessoalmente o presépio, assim como as
salas do palácio e os seus habitantes, incluindo os criados. Depois, cada um retomava o seu trabalho e a princesa, com os hóspedes, ceava na sala de jantar. À meia-noite
estavam todos na igreja, para a Missa do Galo, que concluía a novena.
Teresa tinha feito dezasseis anos quando, na noite de Natal daquele ano, voltou a ver Benedetto.
Estava ajoelhado no último banco, à entrada da nave central. Reconheceu-o, apesar de exibir um bigode farto e de estar embrulhado numa grande manta vermelha. Bateu-lhe
levemente no ombro. O rapaz ergueu para ela um olhar desconfiado, e depois sorriu-lhe. Também ele a reconheceu.
- Feliz Natal, Teresella - sussurrou. Sofia puxava-a por um braço.
- Eu desejo-te um feliz Natal quando a missa acabar - respondeu ela, antes de avançar ao longo da nave, em direcção aos bancos reservados aos Castiglia e aos criados
da casa.
Recitava as orações em voz alta, mas os seus pensamentos iam Para aquele rapaz que agora se tornara um homem. Esperava que ele a tivesse ouvido e que a esperasse
à saída da igreja. A missa parecia interminável. Durante todo o tempo, com as mãos juntas e a cabeça inclinada, Teresa repetia mentalmente: Meu Menino Santo, tu
que tudo sabes e tudo podes, faz com que o Benedetto espere Por mim, porque lhe quero desejar um feliz Natal.
As orações, os cânticos e a música solene do órgão pararam. A missa tinha terminado. O Menino Jesus de madeira esculpida
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e pintada, com uma auréola de ouro cravejada de pedras preciosas, foi deposto aos pés do altar, dentro de uma manjedoura forrada de brocado brilhante. Os fiéis cederam
o passo à princesa Castiglia, a todos os familiares e ao séquito, para que se ajoelhassem em frente ao Menino e pudessem assim dirigir-se, em primeiro lugar, ao
longo da nave central, para fora da igreja.
Benedetto estava ao lado da pia da água benta. Viu-a chegar, mas não se mexeu.
- Sofia, deixa-me ficar um momento com ele - disse Teresa, num sussurro, ao ouvido da mulher.
- Fico à tua espera ali fora - suspirou, conformada. A rapariga aproximou-se do jovem.
- Feliz Natal, Benedetto. Fiquei muito contente por te ver na igreja. Devias cá vir mais vezes. Eu estou aqui todos os domingos, na missa cantada - disse.
- Então, se eu quiser voltar a ver-te, sei onde e quando te encontrar - replicou ele com indiferença.
- Isso mesmo - concordou Teresa com uma breve inclinação de cabeça.
- Vou ver se tenho tempo - respondeu.
- Estás muito antipático. Se calhar venho mas é à primeira missa, para não correr o risco de me encontrar contigo - concluiu ela, girando sobre os calcanhares, e
saiu ao encontro de Sofia.
- Quem é aquele rapaz? - perguntou-lhe, com ar desconfiado.
- É um bom cristão, apesar de não o saber - respondeu Teresa, caminhando com ela em direcção a casa.
- Não me disseste que tinhas um namorado - censurou-a.
- Quem me dera que assim fosse. Mas receio que ele já tenha uma namorada. Bonito como é, vê lá tu, sabe-se lá quantas raparigas o comem com os olhos. Mas talvez
ele não as veja. Pelo menos, assim espero. Se calhar não me vê nem a mim. E isso não me agrada. Ele é socialista e está sempre a fugir de alguma coisa ou de alguém.
Tinha doze anos quando o vi pela primeira vez. Depois voltei a vê-lo aos treze. Agora tenho dezasseis anos e ele tem vinte e três. Sabe ler, percebes? Eu não entendo
o que ele diz, mas gosto de o ouvir falar. A minha mãe sabia como se fazia para conquistar o amor de um homem. Eu não sei. Mas podia...
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Sofia abanou-a por um braço.
- Muito falas! Já estou até às pontas dos cabelos. Esta noite é uma noite santa, e tu só pensas em amor. Que vergonha!
- Achas mesmo que o Menino fica ofendido se eu pensar no Benedetto? Eu acho que não. Gosto muito dele e isto não é um sentimento mau.
Falavam em voz baixa, para não serem ouvidas pelos outros criados, que caminhavam à frente delas.
- Tens de contar tudo ao Monsenhor Jaconis. Ele tira informações do rapaz e depois, se estiver tudo direito, podes namorar com ele - decidiu Sofia.
- Não me obrigues a fazer isso. Ele nem sequer se declarou. Antes pelo contrário, até foi muito antipático.
- Quem desdenha quer comprar - resmungou a mulher, receando por Teresa, que estava numa idade difícil.
- Se calhar. Nem sequer sei se o volto a ver - rematou Teresa.
Voltou a vê-lo, no domingo seguinte, na missa solene. Benedetto esperava-a ao lado da pia da água benta e ofereceu-lha, tocando-lhe as pontas dos dedos.
- Então sempre vieste - comentou, com um sorriso feliz.
- Ia a passar por aqui, por acaso - respondeu ele, para não dar importância ao facto.
- És muito palerma! - exclamou Teresa que, pelo contrário, teria gostado muito mais de lhe ter dito: "Amo-te".
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Durante alguns meses andaram a jogar às escondidas. Quando Benedetto parecia disponível, Teresa retraía-se, para o arreliar. Depois ia a correr ter com Sofia para
lhe dizer como era bonito aquele namorado, quando a olhava com os olhos turvos porque ficava zangado.
- Tem cuidado, Teresella. Quem brinca com o fogo acaba por se queimar - prevenia-a, preocupada com ela.
- Sofia, eu gosto dele - replicava, acalorada.
- E ele, gosta de ti?
- E muito - garantia a rapariga, levando uma mão ao peito e erguendo os olhos ao céu, numa ingénua imitação das actrizes dos poucos filmes que tinha visto.
- Os homens nunca pensam em nós. Têm outras coisas na cabeça. As mulheres, para eles, são só um divertimento. Vi muitas raparigas sofrer por amor.
- Eu sinto que ele gosta de mim de verdade - teimava Teresa. Março chegou. A princesa, as filhas, o genro e os netos foram
para Capri passar a Páscoa. A villa de Positano tinha sido fechada depois da morte de Enrico. Carolina tinha-a posto à venda, mas não arranjavam compradores. Os
napolitanos ricos, supersticiosos como eram, rejeitavam aquela residência esplêndida por causa da morte violenta do jovem príncipe. Finalmente apareceu um nobre
da Lombardia, proprietário de uma fábrica de seda, que se apaixonou pelo local
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e comprou a villa. Os Castiglia respiraram de alívio. O capítulo da loucura de Enrico estava definitivamente encerrado.
Sofia permaneceu em Nápoles com o mordomo, para orientar a limpeza geral do palácio. Teresa ficou com ela.
Era um trabalho longo e exigente, que requeria a presença de criados de confiança e a colaboração de pessoal especializado.
Trabalharam todos durante uma semana inteira, de manhã à noite. No domingo, dia de descanso, Teresa obteve de Sofia a autorização para se encontrar com Benedetto.
Ele veio buscá-la à porta de serviço e ofereceu-lhe um ramo de violetas. Ela quis levá-las ao cemitério e pousou-as sobre a campa da mãe, que estava sempre no seu
pensamento.
Depois desceram até à Marina. Benedetto ofereceu-lhe um polvo assado na brasa e temperado com azeite e limão que os pescadores preparavam naquele momento na praia.
Teresa ouvia, fascinada, a voz do jovem que lhe contava histórias da pequena aldeia onde nascera, numa encosta dos montes Lattari, sobre a vida difícil de uma família
numerosa que naquela terra áspera trabalhava, suava, se curvava e morria, tendo de pagar tributos ao proprietário, independentemente do resultado das colheitas.
Tinha dez anos quando chegaram à aldeia dois jovens que vinham do Norte. Giulio, do Piemonte, e Marisa, da Toscânia.
- Disseram assim: "Aqui não há escola nem posto médico. Nós vamos ajudar-vos". Imagina a nossa desconfiança - contou Benedetto. E continuou: - Eram ricos e tinham
instrução. Desde quando é que os ricos se preocupavam connosco? No estábulo do meu pai improvisaram uma escola que era também um posto médico. Ela vacinou-nos, ensinou-nos
a tomar banho e a lavar tudo aquilo que comíamos. Marisa e Giulio contaram-nos como era a vida nas grandes cidades e a agitação que as percorria. Falaram-nos de
democracia e de socialismo. Explicaram-nos que estávamos ainda enraizados na Idade Média, que nós nem sequer sabíamos o que era. O padre da aldeia vizinha veio tratá-los
mal, dizer-lhes que andavam a semear a discórdia, e a nós também, por lhes darmos ouvidos. Porque os ouvíamos com o mesmo desejo de quem tem sede e finalmente recebe
uma oferta de água. Todos, velhos, mulheres e crianças, aprendiam a ler e a escrever. Eles davam-nos cadernos e lápis que nós molhávamos com a língua. Tantas línguas
negras de lápis e de tinta,
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e tanto esforço que nós fazíamos, depois de regressarmos exaustos dos campos, quando nos reuníamos no estábulo para estudar! Giulio e Marisa abriam os nossos espíritos.
Começávamos a dar conta de que éramos esquecidos por todos os governos, desde há séculos. Um Inverno, há dez anos, resolvi vir a Nápoles. Tinha necessidade de me
misturar com o mundo, o verdadeiro, onde nascem as idéias, onde se pode fazer o confronto entre aqueles que têm na mão o poder e os que são dominados. Teresella,
estás a ouvir-me?
Caminhavam pela praia, descalços, de mão dada.
- É claro que estou a ouvir - garantiu.
- Mas percebes-me?
- Nem sempre. Mas interessa-me muito aquilo que me estás a contar - declarou, muito séria.
De repente, Benedetto sorriu-lhe, abraçou-a e beijou-a com intensidade.
- Estou a aborrecer-te com a minha conversa, até porque não encontro palavras para te dizer que gosto de ti - desculpou-se.
- Já disseste - observou ela.
- Eu acho que, para uma declaração como esta, são precisas outras palavras.
- Por exemplo? - insistiu.
- Por exemplo, gostava de te dizer que quando te vejo sinto no peito um enxame de borboletas que voam ligeiras - disse ele, com ar de brincadeira.
Teresa, no entanto, olhou para ele com os olhos arregalados de espanto.
- És muito inteligente, Benedetto. Mas tens mesmo a certeza. de que gostas de uma palerma como eu?
- Tu tens um espírito ágil e um coração luminoso. E mau feitio - insinuou.
- Como tu. Gosto tanto de ti quando és desagradável - disse. Depois, num sussurro, continuou: - E quando me beijas.
- Alguma vez fizeste amor? - perguntou-lhe.
Teresa pensou nos dois filhos de Rosália, que a tinham violado. Era uma história que não queria contar. Por isso abanou a cabeça.
- E tu? - perguntou, curiosa.
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- Durante a recruta, numa cidade do Norte, fui a uma daquelas casas. Todos os soldados lá iam. Não foi nada divertido, até porque ela cheirava a cebola e tinha os
olhos pintados de preto. Meteu-me nojo e tive medo. Tu não podes entender - afirmou.
- Posso, sim. Aconteceu-me a mesma coisa - acabou por admitir, e recordou o nojo e o medo. Contou-lhe tudo.
- Queres vir até ao meu palácio? - propôs Benedetto, pondo-lhe um braço em volta dos ombros num gesto de protecção.
Levou-a até perto de Castel dell'Ovo onde, em frente ao mar, se alinhavam as casas dos pescadores. Cães vadios e gatos esqueléticos circulavam por entre as crianças
morenas do sol que brincavam no meio de um grande barulho. As casas, de dois andares, estavam descascadas pelo salitre. Numa delas, Benedetto ocupava um quarto que
dividia com um amigo.
Era um quarto quadrado, com uma janela virada para o mar. Havia duas camas, uma bacia e um cântaro com água, um banco, um caixote e uma mesa cheia de livros e jornais.
O chão era de cimento e o tecto de traves de madeira. Teresa entrou naquele quarto com um passo hesitante e o seu primeiro pensamento foi que seria precisa a mão
de uma mulher para criar ali um aspecto de ordem e de limpeza. Ficou sensibilizada quando viu uma lata, no peitoril da janela, que continha uns pés de petúnias.
- Então é este o teu palácio - comentou, aproximando-se da janela. O mar acariciava a areia. Dois barcos afastavam-se da praia e, mais longe, a sirene de um navio
rasgou o ar.
- É como dizes. Eu sou um rei. De resto, cada palácio tem o rei que merece. Aqui não há tapeçarias, estuques, nem pinturas a fresco. Nem sequer há que comer. Mas
há os meus sonhos, as esperanças, a vontade de viver e de vencer, o prazer de ler, de discutir com os companheiros e de abraçar a Teresa. É um palácio cheio de coisas
que não se podem comprar, porque não estão à venda - declarou, atraindo-a a si com doçura. Desapertou o nó do lenço que Teresa trazia ao pescoço e acariciou-lhe
a nuca com uma mão leve.
Moveram-se com timidez e embaraço. Foram guiados pela determinação de se conhecerem intimamente e o desejo recíproco ditou-lhe os gestos, conduzindo-os ao longo
de um percurso
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de descobertas felizes que desaguou num prazer infinito. Depois adormeceram, exaustos.
O sol apagou-se. A primeira estrela brilhou no céu. Abriu-se a porta do quarto. Benedetto e Teresa sentaram-se de repente na cama. Estava um homem à entrada. Trazia
um embrulho bastante volumoso. Por instinto, Benedetto esticou-se para a frente para esconder Teresa.
- Ninguém te ensinou a bater à porta? - protestou, dirigindo-se ao visitante.
- Como é que eu havia de saber que estavas em casa? O teu turno já começou há uma hora - respondeu o outro enquanto pousava o embrulho em cima da mesa.
- Ai que desgraça! Adormeci - praguejou Benedetto, pondo os pés fora da cama.
- Posso saber o que é que se está a passar? - interveio Teresa com um tom autoritário.
Benedetto apercebeu-se do cómico da situação e desatou a rir. O recém-chegado e Teresa imitaram-no.
- Vou-me apresentar ao trabalho com duas horas de atraso, pago a multa, recebo uma reprimenda e, no próximo descuido, sou despedido - respondeu, entre gargalhadas,
e continuou: - Teresa, este é o Pietro, o meu companheiro de quarto. E agora que já fizemos as apresentações, vira-te para lá, porque a minha namorada tem de se
vestir - concluiu.
Teresa abençoou aquela obscuridade, apenas esfumada pela lua de Abril, que impediu que Benedetto a visse corar. Tinha sido apresentada como a "namorada". Aquelas
palavras eram uma promessa, uma investidura oficial. Conferiam-lhe um papel, o primeiro da sua vida.
Benedetto ajudou-a a vestir-se. Depois pousou os lábios nos dela e sussurrou: - Gosto muito de ti.
- Agora já podes acender a luz - disse em voz alta, dirigindo-se a Pietro.
- Não - implorou Teresa. - Desta vez não. - Estava demasiado embaraçada para conhecer o homem que a surpreendera na cama com o seu apaixonado.
- Conhecem-se para a próxima - decidiu Benedetto, enfiando o gorro na cabeça.
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- Olha que deixei em cima da mesa os panfletos que fui agora buscar ao tipógrafo. Tens de os distribuir no fim do turno - avisou Pietro. O rapaz agarrou no embrulho
e levou Teresa para fora do quarto. Desceram até à viela no momento em que os sinos da igreja batiam as nove.
- Eu levo-te a casa - decidiu, dando-lhe o braço.
- Mas já estás atrasado. Eu conheço o caminho melhor do que tu - protestou ela.
- A partir desta noite, não voltas a passear sozinha - declarou.
- O que quer dizer isso de teres que distribuir os panfletos no fim do turno? - perguntou, curiosa, enquanto subiam a rua.
- É por causa da greve da próxima semana. Finalmente o Giolitti demitiu-se. Agora queremos o Salandra, mas com as nossas condições, e temos de insistir sobre alguns
pontos por causa do congresso socialista de Ancona - explicou, sucintamente.
- Mas tu não podias só trabalhar? Por que é que tens sempre de te meter entre as pernas do diabo? - perguntou Teresa, que não percebia nada de política, mas temia
que Benedetto se metesse em apuros.
- É claro que as tuas são mais bonitas - disse ele. E comentou: - É uma piada estúpida. Mas também não é assim tanto como isso. Tens umas pernas lindíssimas, Teresa.
Tinha-me esquecido de te dizer.
Deixou-a nas traseiras do palácio Castiglia, em frente da porta de serviço. Viram Sofia que os observava de uma janela da lavandaria. Parecia um cão de guarda à
espera.
- Eu vou casar-me com esta rapariga - disse Benedetto em voz alta, dirigindo-se a Sofia.
Teresa entrou e fechou a porta. Sabia que não ia passar um dia inteiro sem o voltar a ver.
- Foste para a cama com ele - disse Sofia, agressiva, pois estivera ansiosa por causa dela durante todo o dia.
Teresa confirmou.
- Ele vai casar-se comigo. Ouviste? - explicou, dominada Por uma grande alegria.
- As palavras são como as borboletas. Vêm e vão. Entretanto, Se ficares grávida, o que vai ser de ti? - respondeu, como um aviso.
185
MERANO - SCHLOSS RUNDEGG MARÇO - JUNHO DE 1914
Josepha escreveu uma longa carta à princesa Carolina para lhe falar, com o coração aberto, sobre os sentimentos que a ligavam a Lorenzo Valeschi. Entre outras coisas,
confessou-lhe: "Reflecti longamente sobre a oportunidade desta escolha, até porque tinha jurado a mim mesma que nunca mais na minha vida voltaria a casar e, ainda
por cima, com um estrangeiro. Como é evidente, a Itália entrou-me no sangue. Nos últimos três anos, conheci o peso da solidão e os meus propósitos foram alterados
pela carga vital de Lorenzo Valeschi por quem, sei-o bem, a senhora nutre simpatia e estima. Decidi aceitar a sua proposta de casamento e gostava de saber o que
pensa sobre isso. Considere, querida maman, que há três anos que eu e Lorenzo nos vemos raramente, mas que de cada vez é uma festa para os nossos corações. Para
além do mais, já tenho vinte anos e desejo ter um marido e filhos, se Deus quiser. Mas considere também o facto de que, casando-me, perderei o apelido dos Castiglia
para assumir o dos Valeschi. Neste aspecto, a sua aprovação seria muito importante para mim. Espero ansiosamente a sua resposta e saiba que serei sempre a sua devota
Joséphine".
Esta pequena obra-prima de diplomacia tinha-lhe custado uma longa reflexão, uma vez que continha algumas mensagens muito Precisas. Josepha reiterava que tinha sido
a própria princesa Carolina a colocar Lorenzo no seu caminho, depois sublinhava a necessidade de ter finalmente os filhos que Enrico não lhe dera, e, por fim, referia
que, pelo menos da parte dela, gostaria de continuar as relações com os Castiglia,
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apesar de perder o apelido. O conjunto fora formulado com uma elegância que a princesa iria certamente apreciar.
Ao fim de dois dias, tocou o telefone em Schloss Rundegg. Josepha tinha decidido instalá-lo para permitir a Lorenzo telefonar-lhe quando não conseguia obter uma
licença do exército.
Em Merano, as visitas daquele belo oficial italiano não passavam despercebidas. Os amigos e os conhecidos, porém, tinham o bom gosto de não fazer comentários. Continuavam
a tratá-la por "a nossa pequena senhora", até porque Josepha sabia ter um comportamento normal e conseguia sempre salvar as aparências. Oficialmente, Lorenzo Valeschi
era um hóspede, como tantos outros que se instalavam no castelo. O facto de ser italiano não incomodava muito as pessoas, sendo a Áustria e a Itália nações amigas,
unidas por uma aliança. No entanto, o jovem oficial das Standschútzen, Heinrich von Wedel, reagiu com violência perante a assiduidade de Lorenzo.
Informado por alguns companheiros de armas, foi ao encontro de Josepha e enfrentou-a no momento em que estava a tomar chá, no jardim do castelo, com as senhoras
da comunidade hebraica.
Ela despediu rapidamente as suas convidadas, desfazendo-se em desculpas, e depois olhou-o com severidade.
- Barão, são estas as boas maneiras que lhe ensinam no seu batalhão? - disse, tratando-o ironicamente por você.
- As boas maneiras não interessam quando o que está em jogo é a honra - respondeu o jovem.
- A sua honra, barão?
- A sua, senhora.
Josepha reprimiu um sorriso. Aquele rapaz violento e apaixonado enternecia-a. Em consciência, sabia que nunca fizera nada para encorajar os seus sentimentos, mas
sabia também que os Wedel consideravam com benevolência a paixão do jovem Heini por ela.
Decidiu, por isso, esclarecer a situação.
- Meu caro Heini, posso garantir-te que as vozes sobre uma minha liaison com o oficial italiano são completamente fruto da fantasia dos teus informadores. Mas...
Não a deixou acabar.
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- Estás a falar a sério, Josepha? Então posso continuar a esperar?
- Mas não excluo a hipótese de um dia voltar a casar.
- Comigo. Será comigo, não é verdade?
- Não. Considero-te um bom amigo. Isso não chega para um casamento. Não estou apaixonada por ti. Sempre o soubeste. Como homem honesto que és, tens de admitir que
eu nunca te iludi.
Era verdade e Heini não pôde deixar de concordar.
- Com o tempo, talvez ainda possas mudar de idéias - tentou de novo, segurando a mão dela entre as suas e beijando-a com devoção.
Com uma astúcia muito feminina, Josepha jogou outra carta para se libertar dele.
- Olha bem para mim, Heini. Eu sou viúva. Tu precisas de uma rapariga que te ame, que seja dócil e que fique suspensa dos teus lábios. Eu nem sequer tenho bom feitio.
Isso já tu sabes. Em suma, mereces uma coisa melhor. Esta é a minha opinião sincera. Por isso, não quero mais ter-te por perto até ao dia em que me apresentares
a tua noiva. E não há-de faltar muito tempo.
Finalmente, liquidara-o. E, para evitar novos mexericos e o perigo de um novo assomo de paixão por parte daquele jovem amigo, decidiu que chegara o momento de casar
com Lorenzo.
Assim, dois dias depois de ter enviado a carta à sogra, o telefone tocou. Ela foi atender a correr, pensando em Lorenzo. Era a princesa Carolina.
- És mesmo uma serrana teimosa - começou a senhora, com aquele tom severo que já deixara de a assustar. - Pensava que tinhas renunciado a dizer o "sim" àquele pobre
rapaz que anda a desfalecer de amor. Nunca poderia negar-te a minha bênção. Tenho a certeza de que tu e o Lorenzo são feitos um para o outro.
- Obrigada, maman. Muito obrigada, do fundo do coração - sussurrou Josepha, emocionada e reconhecida.
- Espera antes de me agradeceres. Há uma condição que eu te imponho. Tens de regressar a Nápoles no Outono. Quero-te aqui durante alguns meses. Não te vejo há três
anos e já sabes que estou demasiado velha e cansada para ir ao teu encontro - lamentou-se.
- Irei de boa vontade. Eu também tenho muita vontade de a abraçar - replicou com sinceridade.
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- Pergunta-me mais uma vez se quero casar contigo - disse mais tarde, quando Lorenzo lhe telefonou.
- Queres casar comigo? - repetiu ele.
- A minha resposta é sim. Já - declarou. E como houvesse um longo silêncio depois daquela afirmação, acrescentou: - A não ser que tu tenhas alguma objecção. Afinal,
temos estado bem até agora, sem casamento. Em suma... quero dizer... esquece esta pergunta estúpida e recomecemos onde tínhamos ficado.
- Pára, Giuseppina - disse ele de repente. Chamava-lhe assim sempre que perdia a paciência.
- Está bem, eu calo-me.
- É melhor. Acabaste de me dar uma resposta sensata e não descansaste enquanto não a engoliste outra vez. Eu estava sem fôlego. Não conseguia acreditar que te tivesses
finalmente decidido, meu amor. Vou buscar-te. Temos de ir a Milão. A minha família quer conhecer-te desde há algum tempo e agora vais ter de passar no exame.
- É isso que eu temo - murmurou ela.
Lorenzo chegou quatro dias depois num GrafStift prateado. Desta vez, Klara e Petra abordaram Josepha ao mesmo tempo.
- Então vai-se outra vez embora - disse a primeira.
- E mais uma vez com um italiano - acrescentou a outra.
- Por favor, deixem-me ser feliz - suplicou ela. Petra chorou e Klara ficou furiosa.
- Não pense que não sabíamos que o recebia na sua cama. Estávamos à espera que esta história acabasse. Mas, afinal, quer casar com ele. Eu estou demasiado velha
para ficar aqui a guardar o castelo. Vou voltar para a minha terra. Os meus parentes ainda precisam de mim - decidiu. Os irmãos e os sobrinhos de Klara viviam numa
quinta, em Naturno. De vez em quando vinham visitá-la. Às vezes ia ela ter com eles. Mas sempre vivera ali, no castelo. Servira os pais de Josepha e tinha-a visto
crescer.
- E tu, Petra? Também me queres deixar? - perguntou Josepha, exasperada.
- A menina é que nos deixa - lamentou-se a criada fiel,
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entre dois soluços. As duas pobres mulheres sofriam de solidão e estavam assustadas com a idéia de ela se afastar para sempre.
Abraçou-as e comoveu-se com elas. - Eu volto depressa. É uma promessa. E não vos deixo nem quando estiver casada. Amo tanto como vocês esta cidade, esta casa e estas
montanhas. Talvez tenha filhos, e quero que sejam vocês a criá-los, como fizeram comigo.
Partiu para Milão. Nunca lá tinha estado, e ficou satisfeita ao constatar que não era uma cidade caótica como Nápoles.
Era o fim de Maio. O clima ameno, o céu sereno, as ruas limpas, as flores nas varandas e no peitoril das janelas, as fachadas austeras dos edifícios e a elegância
sóbria das pessoas tornavam-na menos estranha a esta realidade.
Os Valeschi moravam num palácio do século XIX, de três andares, com um grande jardim. Os pais de Lorenzo tinham mais seis filhos além dele. Três raparigas, mais
velhas do que Lorenzo, estavam já casadas. Dois rapazes e Liliana, a mais nova, viviam ainda com os pais. Nessa mesma casa viviam também dois tios, irmãos do pai
Valeschi, e a tia Clara, irmã da mãe.
Havia ainda dez criados com várias funções e um jardineiro que era também chauffeur. Entre hóspedes fixos e amigos de passagem, o palácio estava cheio de gente.
Josepha surgiu no meio de todos eles, e foi logo acolhida com benevolência. Os Valeschi conheciam a sua história porque a princesa Carolina e Lorenzo tinham falado
muito nela.
- És exactamente como te tínhamos imaginado - disse Vezia, a futura sogra, com um ar satisfeito.
- Uma crucca de muito respeito - acrescentou o pai de Lorenzo. O termo "crucco", na Lombardia, não era um termo depreciativo, mas referia-se a uma etnia que se estendia
desde o Tirol até ao mar do Norte e compreendia todos os povos de língua alemã, quer fossem prussianos, bávaros, austríacos ou do Tirol. Luigi Valeschi era um homem
simples. Ignorava de boa vontade o seu título de conde Colonna, estava enraizado em sólidos princípios de moldes oitocentistas e gostava de boa comida. As irmãs
de Lorenzo Cometeram Josepha com mil e uma atenções e uma grande curiosidade em relação às suas roupas, aos acessórios e às jóias. Quando se Sentaram à mesa, eram
vinte pessoas, e havia três criados para os servir.
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Uma refeição riquíssima, com faisão fumado como entrada, risotto amarelo com osso-buco como primeiro prato, carré de porco com maçãs no forno e arroz pilaf como
segundo prato, truta do lago com maionese e batatas cozidas como prato intermédio, seguido de eruditas com anchovas picadas e ovos cozidos e, para terminar, um doce
à base de café e mascarpone. A refeição durou duas horas. Cruzaram-se conversas vivas e comentários sobre histórias actuais e passadas.
- Diga-me, princesa, quantos anos tem o vosso Cecco Beppe? - perguntou o pai Valeschi.
Josepha sorriu. Sabia muito bem que os italianos chamavam assim ao imperador da Áustria.
- Oitenta e quatro, que Deus o conserve - respondeu ela.
Educada no culto dos Habsburgo, não conseguia compreender por que razão os italianos não nutriam um sentimento análogo em relação aos Sabóia, a quem deviam, ainda
que só em parte, o mérito da unidade nacional.
- Quando as tropas austríacas foram definitivamente expulsas da Lombardia, sabe o que disse o seu imperador? "Livrei-me de uma grande maçada. Estes lombardos nunca
foram súbditos facilmente governáveis." Mas isto passou-se há mais de cinqüenta anos, quando eu ainda era criança, e não tenho nenhuma lembrança da dominação austríaca
- explicou, com ar de quem se estava a divertir muito.
- O imperador teve uma vida difícil com os lombardos. Agora imagino que tenha os mesmos problemas com os eslavos. Eles também não são facilmente governáveis - replicou
ela.
- Os Balcãs são desde sempre uma fábrica de lutas internas. A Bósnia-Herzegovina é um país complexo. Uma rica carga de trabalhos para a Áustria - observou Lorenzo.
- Deixemos a política e falemos de coisas mais sérias - interveio a senhora Valeschi. - Tenho alguns projectos a apresentar a Josepha para os próximos dias.
Foi envolvida num turbilhão de actividades mundanas: ópera, teatro, cinematógrafo, recepções, passeios nos lagos, corridas de cavalos e visitas a museus. Raramente
conseguia estar sozinha com Lorenzo. E ainda menos de noite, uma vez que dividia o quarto com Liliana.
194
- Ouve, vou levar-te de volta a Merano - decidiu Lorenzo, ao fim de uma semana. E acrescentou: - Aqui não há maneira de estarmos juntos.
- Prometi ir ao campo com as tuas irmãs - observou ela.
- De quem gostas mais? De mim ou delas?
- Estás a fazer chantagem comigo?
Estavam miraculosamente sozinhos, num pequeno escritório no rés-do-chão, em frente a uma porta envidraçada que dava para o jardim de onde chegava o perfume das rosas
brancas e de outras plantas em plena florescência.
- Só quero fazer amor contigo. E aqui não é possível, de maneira nenhuma. A minha mãe tem em mente uma festa de noivado como mandam as regras para o fim de Junho,
e tu sabes bem o que tudo isso implica - explicou Lorenzo.
Sabia, e não lhe agradava.
- Tu é que és o homem. É a ti que compete decidir - declarou. Depois acrescentou: - De qualquer maneira, ficas a saber que quanto mais depressa nos casarmos, melhor.
Estou grávida.
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- E tu, Josepha Sidonia Paravicini von Riccabona, aceitas como marido o aqui presente Lorenzo Filippo Maria Valeschi,
conde de Colonna?
Josepha respondeu com um "sim" límpido, que a nave da pequena igreja de San Giorgio, em Maia Alta, amplificou.
A testemunha da noiva era o burgomestre da cidade. O príncipe Vittorio Alliata foi imposto por Carolina como testemunha de Lorenzo. Desta forma, a princesa Castiglia
pretendia reiterar uma continuidade de relacionamento com a viúva do filho. Josepha vestia um traje regional em brocado de linho azul e prateado. Estava no fim do
segundo mês de gravidez e ainda se podia permitir apertar as fitas do corpete para fazer sobressair a harmonia da silhueta. No anular trazia um anel contrarie formado
por duas pérolas, uma branca e uma cinzenta, montadas em brilhantes. Era o presente de Lorenzo. O anel pertencia aos Valeschi há mais de um século.
Ela retribuíra o presente com um poldro baio de pedigree ilustre. Tinha-o arranjado nas cavalariças da villa que os Valeschi possuíam em Cernusco sul Naviglio, onde
tinham ido passar alguns dias, antes de Josepha regressar a Merano. Lorenzo conseguira convencer a família a evitar grandes clamores à volta da noiva.
- Já teve um casamento com pompa e circunstância. Aquilo que ambos queremos é apenas uma cerimónia simples, com os parentes mais chegados. Acham que renunciar aos
festejos é assim tão grave?
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Vezia e Luigi Valeschi tinham suficiente sentido prático para aceitar a situação. No casamento, estavam apenas eles os dois em representação de toda a família, assim
como de Nápoles vieram unicamente o príncipe Vittorio Alliata e a mulher, Marianna.
Naquele momento, o "sim" pronunciado pela noiva foi a expressão de uma convicção profunda, amadurecida ao longo daqueles anos e cimentada por uma atracção recíproca
que não conhecia momentos de cansaço.
Era o dia 28 de Junho de 1914. A igreja estava enfeitada com flores, e, no adro, por entre os canteiros de gerânios e trepadeiras, juntava-se a gente do lugar, curiosa
por causa dos automóveis estacionados na rua. Uma rapariga tinha contado que na igreja se estava a realizar uma cerimónia.
- Parece-me que é o casamento da pequena senhora de Rundegg com um italiano - disse à mãe, que a mandara ver o que se passava. - O padre Klaus está a dizer a missa
em italiano - explicou.
- Outro italiano. Por isso é que fizeram tudo em grande segredo - foi o comentário da mãe à amiga que foi com ela até à igreja, atraída pelo som do órgão naquela
hora insólita de um dia de trabalho.
- Se decidiu assim, lá terá as suas razões - comentou a mãe.
Quando os noivos e as testemunhas saíram da igreja, tinha-se juntado no adro uma pequena multidão de camponesas que queriam ver a noiva. Eram caras conhecidas de
Josepha que, pelo braço de Lorenzo, sorriu e cumprimentou toda a gente. Algumas crianças chegaram-se à frente, estendendo-lhe ramos de flores do campo acabadas de
colher. Josepha agradeceu e inclinou-se para lhes dar um beijo a todas. Atrás dela, o burgomestre, o príncipe Alliata com a mulher, os sogros e o padre Klaus saboreavam
aquele momento de alegria e preparavam-se para regressar ao castelo, onde se preparara uma recepção simples. O velho Toni montou na bicicleta e Pedalou até casa
para anunciar a chegada dos noivos. Naquele momento, apareceu, ofegante e corado, o director dos Correios, clamou para o Presidente da Câmara, mas era evidente que
aquilo que tinha para dizer se dirigia a toda a gente.
- O arquiduque Francisco Fernando foi assassinado em Sarajevo.
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Naquela doce tarde de Junho, acariciada por uma tépida brisa primaveril, os sorrisos apagaram-se e instalou-se o silêncio. Lorenzo reforçou a pressão no braço da
mulher. Os homens tiraram os chapéus e as mulheres fizeram o sinal da cruz.
- A arquiduquesa Sofia também sucumbiu aos tiros de pistola do sérvio Gavrilo Princip - continuou o funcionário do telégrafo. E concluiu, retendo um soluço: - Os
irredentistas eslavos privaram o nosso imperador de um herdeiro.
Há muito tempo atrás, na Áustria como em Itália, difundira-se um clima de tensão preocupante depois de anos de relativa serenidade.
Na Itália, com o nascimento das primeiras grandes indústrias, os trabalhadores organizaram-se para fazer ouvir a sua voz. O partido socialista e o movimento católico
recolhiam os seus protestos e apoiavam-nos. O governo conseguira devolver ao país uma aparência de equilíbrio através da aprovação de uma série de reformas de sentido
liberal. Apagara os incêndios, mas não as brasas.
Na Áustria, a situação não era melhor. Desde há algum tempo que os Habsburgo tinham de enfrentar os movimentos operários que apanhavam de surpresa uma velha aristocracia,
incapaz de acompanhar o passo de uma sociedade em evolução.
- Atingiram o nosso imperador no coração - sussurrou
Josepha.
- Regressemos a casa - decidiu o marido, envolvendo-lhe os
ombros com um ar protector.
Os automóveis dirigiram-se ao castelo. - Que outra catástrofe se irá abater sobre nós? - perguntou Josepha, angustiada.
- Tem calma, Joséphine - ordenou o príncipe Alliata, que ia com eles no carro. - Não vamos ter uma tarde de alegria, mas não podes transformar num banquete fúnebre
a tua festa de casamento.
- Tu és italiano. Não podes entender - protestou ela. E acrescentou: - Sei muito bem que nós não temos o melhor dos governos. Mas também sei que a mão deste sérvio
foi armada por uma organização de fanáticos. Hoje atingiram-nos a nós, amanhã podem atingir-vos a vós e a toda a Europa.
- Agora acalma-te, meu amor - pediu Lorenzo, apesar de saber que o assassinato de Sarajevo era também uma provocação
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gravíssima para a Itália, que tinha formado uma aliança com a Áustria.
Foi uma recepção tranqüila. Os homens discutiam entre si as consequências do atentado.
- Acho que me vão revogar a licença - disse Lorenzo.
- O telégrafo e o telefone contam-se entre as piores calamidades do nosso tempo. As notícias voam e já ninguém se salva - comentou o príncipe Alliata.
As senhoras, reunidas na sala de visitas, conversavam entre si.
- O governo vai dar mais um aperto às coisas. Os primeiros a pagar a factura disso vão ser os operários - lamentou Josepha.
- Francamente, não te compreendo - interveio Marianna Alliata. - Choras pelo imperador e abraças a causa dos revoltosos.
Mais do que uma vez, ao longo dos últimos anos, Josepha pedira aos Castiglia para acolher em Nápoles algumas famílias de operários, com mulheres e filhos, despedidos
pelos patrões porque haviam difundido moções para o dia de oito horas de trabalho, ou para a assistência médica obrigatória. Os Castiglia tinham sempre realizado
os seus desejos, para a agradar.
- A casa reinante não tem nada a ver com a falta de visão dos nossos políticos. Se nós também tivéssemos nascido pobres, se fôssemos obrigados a lutar para sobreviver,
não achas que procuraríamos por todos os meios obter os direitos mais fundamentais? - inquiriu.
- Mas é claro, minha querida. Fazes muito bem em defender essas necessidades. Todos nós o fazemos. Mas deixemos para os homens as questões políticas - interveio
a sogra.
Mais tarde, quando Josepha e Lorenzo se encontraram sozinhos no quarto, olharam-se longamente nos olhos, incapazes de exprimir os pensamentos que os afligiam.
- Vais regressar a Nápoles muito em breve - comentou ela.
- Ainda não me convocaram - disse ele.
- Podem fazê-lo ainda esta noite - observou a mulher.
- Eu não sou assim tão importante. O poder está muito distante do meu quartel.
- Vai chegar uma mensagem. Sinto-o - profetizou Josepha.
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- É a nossa noite de núpcias. Gostava que fosse especial - replicou Lorenzo, acariciando o ventre da mulher. E acrescentou: - Como é que está o nosso menino?
- Ele não sabe de nada. Por isso está bem - tranqüilizou-o.
- Se eu tiver de partir, tu vens comigo - disse Lorenzo.
- Antes queria que nos refugiássemos numa montanha perdida, onde ninguém nos encontrasse. Diz-me que é uma boa idéia.
- Acalma-te, minha querida. A Sérvia vai expiar o gesto de um louco e tudo voltará a ser como antes. Os Habsburgo vão encontrar outro herdeiro para o trono.
- Tu achas? - perguntou ela, agarrando-se a esta esperança.
- Espero.
- Lorenzo, diz-me uma coisa: vais continuar no exército? -
perguntou-lhe, à queima-roupa.
- O que é que o exército tem a ver com isto? - replicou, desorientado.
- Não sei, mas alguma coisa terá, uma vez que te estou a fazer
esta pergunta.
Estavam sentados no canapé, aos pés da cama. As janelas, totalmente abertas sobre a noite, deixavam entrar no quarto lufadas de
ar tépido.
Lorenzo levantou-se, pegou num cigarro, acendeu-o, aproximou-se da janela e aspirou longamente o fumo.
- É a nossa noite de núpcias. Devíamos falar de amor - repetiu, e na sua voz havia uma nota de censura.
- Uma mulher tem o direito de conhecer os projectos do
marido.
- Mas de que projectos estás tu a falar? - perguntou, aborrecido, voltando-se para olhar para ela.
- Não te zangues - reagiu Josepha.
- Está bem. Desculpa. - Lorenzo apagou o cigarro e voltou para junto dela. - O facto é que, de repente, me parece que já não te conheço. Quando estávamos no adro
da igreja, eu era o homem mais feliz do mundo. Depois chega a notícia do assassinato de Francisco Fernando e muda tudo. Eu tento consolar-te e tu olhas-me com hostilidade,
quase como se tivesse sido eu quem matou o teu herdeiro ao trono. Depois sais-te com um interrogatório sem sentido. Assim, sem mais nem menos, queres saber se vou
continuar a ser soldado. Mas qual é a idéia?
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Eu sou um militar. Conheceste-me de farda. Este assunto nunca foi posto em questão. Esperas pela noite de núpcias para reclamares o teu direito de me interrogar
sobre as minhas decisões. Permites-me que me sinta um pouco desorientado?
- Não há motivo para te zangares - disse Josepha, irritada.
- A sério? Tenho a sensação de que alguma coisa está a mudar entre nós, e não sei porquê.
- Mas alguma coisa mudou realmente. Eu estou aflita por causa da minha gente, da minha terra, dos nossos inimigos - balbuciou ela.
- Giuseppina, por amor de Deus, não digas disparates. Eu sou a tua gente e a tua terra. E não tenho inimigos, portanto tu também não tens. Tu não és a Áustria. És
apenas a minha mulher. Ou não?
- Estás a ser muito limitado. Esta noite não me divertes.
- Nem tu me estás a divertir - replicou Lorenzo. Escancarou a porta do quarto e saiu. Antes de voltar a fechá-la, disse: - Vou dormir na saleta. Amanhã de manhã
regresso a Nápoles. Enquanto reflectes sobre os teus direitos de mulher, reflecte também sobre aquilo que queres fazer. Podes optar por vir comigo. Mas também podes
decidir ficar entre a tua gente, na tua terra, às voltas com os teus inimigos.
Era uma discussão propriamente dita. O primeiro confronto, ao fim de anos de um entendimento perfeito. E fora ela a provocá-lo. Estava furiosa consigo própria. Sentiu
os passos do marido sobre o soalho do vestíbulo. Abriu a porta do quarto. Ele ia a descer as escadas.
- E no nosso filho, não pensas? - gritou Josepha, decidida a não se deixar abater.
- Estás a fazer tudo sozinha. E estás a fazer tudo mal - replicou ele, antes de bater com violência a porta da sala.
Do quarto onde dormiam, Petra e Klara tinham ouvido o tom elevado da discussão e as portas a bater.
- O que foi que nós lhe dissemos? Ela nunca nos quis dar ouvidos. Sempre com aqueles italianos - lamentou Petra.
- Pobre menina - disse Klara, compadecida. - À falta de melhor, cá estamos nós para tomar conta dela.
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NÁPOLES - PALÁCIO CASTIGLIA JULHO DE 1914
No jardim do palácio Castiglia, os netos Alliata e os primos brincavam às guerras.
À sombra de um caramanchão recoberto por uma viçosa passi-flora de flores violeta, Josepha pregava com pontos minúsculos uma renda a toda a volta de uma camisinha.
Era para o bebé que deveria nascer, segundo os seus cálculos, no fim de Dezembro.
Era o fim do mês. Dentro de alguns dias, toda a família Castiglia se mudaria para Capri. Josepha, que, juntamente com o marido, era hóspede dos Castiglia há algumas
semanas, ficaria em Nápoles a viver no apartamento que Lorenzo alugara em Posilippo. As ex-cunhadas, Marianna e Virgínia, tinham-se disponibilizado para ajudar o
casal a arranjá-lo. O apartamento estava quase pronto.
O isolamento dourado entre as paredes do palácio Castiglia era muito cómodo para ela, sobretudo por causa das freqüentes deslocações do marido entre Nápoles e Roma.
O conflito, logo a seguir ao casamento, tinha-se concluído com uma reconciliação apaixonada naquela mesma noite.
Josepha tinha recitado o acto de contrição, confessando o receio de uma guerra e o medo de ver o marido envolvido nela, uma Vez que a Áustria, a Alemanha e a Itália
estavam ligadas por uma fiança. Preferia que o marido deixasse o exército e se mudasse para Milão, para trabalhar com o pai.
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- Eu só sei ser soldado - disse ele. - Não sou um homem de negócios nem nunca poderia vir a sê-lo, mesmo que te quisesse agradar. Parece-te uma perspectiva assim
tão terrível?
- Só espero que não rebente uma guerra - murmurou ela, abraçando-o.
- E eu espero que rebentem mais discussões, se for este o preço da reconciliação - brincou ele, cobrindo-a de beijos.
Alguns dias depois, partiram para Nápoles e aceitaram a hospitalidade da princesa Carolina.
A Áustria declarou guerra à Sérvia a 28 de Julho. No dia 1 de Agosto, a Alemanha entrou na guerra, contra a Rússia. A Itália, até àquele momento, mantinha-se neutral.
Quando os Castiglia, os Alliata e os Valeschi se reuniam para o jantar, a guerra era um assunto inevitável. Cada um dizia de sua justiça. Todos pediam informações
a Lorenzo, que freqüentava as altas esferas do exército e lhes conhecia os humores.
- É tudo por culpa do Kaiser. É um fanático, um homem sequioso de poder. Conseguiu incompatibilizar-se com a Rússia e com a Grã-Bretanha e puxar para o seu lado
o velho Francisco José - explicou, referindo substancialmente uma opinião comum a muita gente.
Naquela manhã de Agosto, enquanto o marido estava em Roma e os sobrinhos brincavam, tranqüilos, ela repensava as notícias transmitidas pela imprensa e, por mais
que se esforçasse por olhar o futuro com optimismo, não encontrava nada de tranqüilizador.
Os jornais falavam de grandes desdobramentos de forças. A Alemanha armara cinco milhões de soldados, os combatentes franceses eram quatro milhões, e por aí adiante.
Aquilo que um mês atrás parecia uma pequena contenda nos limites sérvios, transformara-se numa guerra que estava a envolver toda a Europa.
- Andava mesmo à tua procura - começou Marianna, com uma voz ansiosa. - Tentei telefonar-te, mas a Teresella disse-me que não estavas em casa.
A cunhada vinha a subir os degraus do caramanchão e deixou-se cair sobre uma poltrona de vime, agitando nervosamente o
leque.
Trazia um vestido branco, muito leve, apertado na cinta com uma fita de seda azul. As faces estavam rosadas por causa do
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calor, dos cosméticos e da aflição. Depressa se sentiu o aroma ligeiro do seu perfume.
- A Teresella seguiu as minhas ordens. Recomendei-lhe que não me incomodasse - replicou Josepha em defesa da rapariga que prestava serviço na casa Castiglia.
- Espero não estar entre as pessoas que querias recusar, uma vez que não sossego enquanto não te contar tudo - disse Marianna.
Josepha sorriu e pousou a camisinha sobre o cesto da costura.
- Queria defender-me da invasão do príncipe Dentice. Manda-me flores, bilhetes, e telefona-me constantemente - justificou-se. Conhecera-o num jantar em casa dos
Alliata. Era um jovem alto, moreno, com um rosto um pouco equídeo, maneiras aristocráticas e uma verbosidade irreprimível. Confiara-lhe imediatamente a amargura
da sua última desventura sentimental, contando-lhe com uma voz amargurada o fim de um amor que julgara eterno. Os seus grandes olhos azuis encheram-se de lágrimas.
Josepha escutara-o com paciência, sem imaginar que o jovem pretendia fazer-lhe a corte. Assim que se deu conta disso, decidiu evitar qualquer contacto.
- Mas é mesmo dele que te quero falar. Veio ter comigo hoje de manhã, muito cedo. Aquele pobre rapaz morre de vontade de te voltar a ver. Serás assim tão cruel,
ao ponto de lhe negar um encontro? - perguntou Marianna.
- Mas é claro. Ele sabe muito bem que eu tenho um casamento feliz.
- Isso não importa. Um flirt terno nunca manchou a felicidade de um casamento - sentenciou a outra com ar leviano.
- Marianna! Imagina só que o meu marido estava aqui a ouvir - protestou.
- Os maridos! Por amor de Deus! Os homens são todos maravilhosos enquanto são amantes ou namorados. Quando passam a maridos, transformam-se, e a desgraçada da mulher
acaba por encontrar entre os lençóis um desconhecido enfadonho, cheio de exigências, que quer dela aquilo que ele já não lhe sabe dar - lamentou a dama.
Josepha estava a divertir-se. Já conhecia há algum tempo a mentalidade de Marianna e de muitas outras jovens senhoras entediadas.
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Não se escandalizava, mas não queria de maneira nenhuma parecer-se com elas.
- Sei que te vou fazer sofrer uma desilusão, mas tenho de te dizer com franqueza que Lorenzo não é um desconhecido enfadonho entre os meus lençóis. O casamento não
alterou a nossa relação. Eu só tenho olhos para o Lorenzo, e os meus pensamentos vão todos para ele e para o nosso filho. O teu jovem amigo à procura de consolo
vai ter de arranjar outro ombro para chorar.
- Receio que tenhas uma doença crónica. Quanto a mim, resulta do facto de seres austríaca. Se fosses francesa, ou inglesa, ou russa, havias de conhecer bem a leveza
da vida. Mas és "crucca". Para ti, tudo tem de ser rigoroso, ordenado, sem imperfeições. E depois admiras-te que estes países se tenham unido contra os prussianos
e os austríacos. É um confronto entre mentalidades diferentes - declarou Marianna.
- Eu, de qualquer maneira, não me vou virar contra ti - garantiu Josepha, divertida.
- Mas não colaboras com as minhas pequenas intrigas amorosas. Agora que o Ruoppolo me deixou, sinto-me tão só - lamentou Marianna.
A deserção do brilhante jornalista Ciro Ruoppolo deixara-a muito infeliz, chegando mesmo a suscitar comentários mais ou menos venenosos em muitos salões napolitanos.
O príncipe Alliata tinha-se empenhado de todas as maneiras para consolar a mulher aflita. Até a levou com ele a Paris, na tentativa de a fazer sair da depressão
em que se precipitara depois de o amante ter sido chamado a Roma, para trabalhar no Messaggero. Como é evidente, o novo cargo tinha sido solicitado pela mulher de
um senador do Reino, que a própria Marianna lhe apresentara, mais nova do que ela e igualmente bonita. O jornalista desembainhou o seu fascínio napolitano e subiu
mais um degrau, esquecendo de um dia para o outro aquela amante e benfeitora. Agora voava mais alto. Em Roma, com o apoio influente da "senhora senadora", fez a
sua entrada no grande mundo da política.
- Por que não te ofereces tu para consolar o príncipe Dentice? - sugeriu Josepha, maliciosamente.
- Já não sou uma menina, minha querida Joséphine. Tenho de me conformar com o meu papel de mulher submissa e de mãe.
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Já é tempo de me ocupar dos meus filhos - afirmou, melancólica. - Olha para eles, ali. O mais velho tem dez anos e ainda brinca com os mais novos. A minha mãe estraga
aqueles netos com mimos.
- Aí vem ela - observou Josepha. A princesa Carolina surgiu à entrada da alameda.
Trazia um vestido de seda ligeira de um azul intenso, quase lilás. Os cabelos acobreados, apanhados numa trança enrolada sobre a cabeça, estavam escondidos por um
chapéu de aba larga de uma organza engomada, levíssima, da cor do vestido. Para caminhar, apoiava-se numa bengala. Envelhecera bastante naqueles últimos quatro anos.
Depois da morte do filho, tinha ido à Suíça para assistir, em solidão, à morte do marido. Provavelmente fizera, à cabeceira do marido, um balanço da sua vida. A
consequência disso foi uma ligação ainda mais forte aos netos e à viúva do filho. Sofria de dores na anca, que acalmavam apenas quando estava sentada ou deitada.
Mas não se deixou abater pela melancolia. Insistia em pintar o cabelo e usar vestidos exuberantes. Para evitar a hora de maior calor, tinha saído muito cedo para
fazer compras. Naquele momento, o chauffeur seguia atrás dela, transportando uma pilha de caixas e embrulhos.
Os netos viram-na e correram ao seu encontro, muito contentes.
- Avó, avó, os rebuçados! - gritaram.
- Não há bonbons se não respeitarem as regras da boa educação - avisou, com o ar zangado do costume.
- Bonjour, grand-maman. Pode-nos dar os bonbons"? - disseram em coro, esboçando primeiro uma vénia e estendendo depois as mãos.
- Assim está melhor - disse ela a sorrir. Abriu a bolsa, pescou uma mão-cheia de doces envolvidos em papel de estanho e distribuiu-os. O chauffeur pousou os embrulhos
num banco de pedra, à sombra de uma grande magnólia. A filha e a nora desceram do caramanchão para a cumprimentar.
- Tenho de ir embora. Tenho hora marcada na modista - anunciou Marianna, contrariada pelo facto de a chegada da mãe ter interrompido as suas confidências. - Maman,
por favor, não fique com os meninos para o almoço. Quero-os em casa comigo - recomendou antes de se afastar.
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- Estás a ver, bastou que aquele jornalista a deixasse para lhe despertar o instinto maternal - comentou a princesa. E acrescentou: - Enquanto durar, como é evidente.
- Apoiou-se no braço da rapariga e continuou: - Fui fazer umas compras para o teu bebé. E para ti também.
- Está a estragar-me com mimos. Agradeço-lhe infinitamente - disse ela.
- Então chega-me aí a poltrona e despacha-te a abrir estas caixas. O prazer de dar presentes está todo em ler a alegria no rosto de quem recebe.
Josepha ajudou-a a sentar-se e começou a desapertar fitas e cordões. Dos embrulhos saíram guizos de lata esmaltada, caixas de música escondidas no interior de pequenos
animais de madeira, lençóis bordados, toucas e babetes impecavelmente brancos. Para ela havia camisas de noite de seda e chinelos de pele guarnecidos com penas de
avestruz.
Eram peças de uma elegância extrema, que Josepha nunca compraria.
- Será que algum dia lhe vou poder agradecer tudo isto, querida maman! - disse, abraçando-a com afecto.
- É claro que podes. Vai procurar alguém e diz para me trazerem um bom café - pediu-lhe, e começou a lamentar-se porque, depois da morte de Sasà, não tinha mais
nenhum criado em condições para o substituir.
A rapariga percorreu a alameda e entrou em casa. Teresa vinha a descer as escadas e transportava um saco de tela que parecia muito pesado.
- Larga tudo e vai depressa preparar um café para a princesa. Serve-lho no jardim - ordenou Josepha.
- Não posso - disse a rapariga com um ar triste. - Vou-me embora.
- Não percebo - respondeu, admirada.
- Muito obrigada por tudo, minha senhora. O que acontece é que não posso continuar aqui - insistiu Teresa tristemente.
- Foste despedida?
- Vou ser, em breve. Estou grávida e não tenho marido - sussurrou.
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- Conta-me tudo - pediu Josepha. E acrescentou: - Não se vê que estás grávida.
- Apertei o mais que pude as fitas do corpete - respondeu Teresa.
- Isso não faz nada bem ao teu bebé - observou.
- Mal saia daqui, deito-o fora.
- Como? - perguntou, horrorizada.
- Deito fora o corpete.
- Quando nasce?
- Em Novembro.
- E ele não casa contigo. É isso?
- Não pode. Está na cadeia - confessou. - Não tive coragem de contar nem sequer à Sofia. Sei que a ia desiludir, porque fez muito por mim e me avisou muitas vezes.
Mas quem podia imaginar que o iam meter em San Francesco?
- Roubou? Matou alguém? - quis saber Josepha.
- Envolveu-se numa rixa entre militantes políticos e deu um murro a um dirigente socialista que o denunciou - explicou Teresa. E continuou: - íamos casar em Maio.
Eu ainda não sabia que estava grávida. Ele, o Benedetto, tem este bichinho da política, da justiça. O meu pai dizia: "Nascemos miseráveis e assim havemos de morrer".
O Benedetto diz: "Nascemos miseráveis e devemos lutar pela justiça". O resultado é que agora sou obrigada a ir embora, porque uma criada grávida é despedida, como
deve ser.
- Vai tirar esse corpete e continua a fazer o teu trabalho. O teu menino vai nascer aqui e eu vou ser a madrinha - afirmou Josepha.
Teresa enxugou as lágrimas e olhou-a, hesitante. Depois disse: - Muito obrigada. Não posso aceitar. - Baixou os olhos e acrescentou: - Da senhora, da princesa e
da Sofia recebi muito. Não é justo que me aproveite mais do que é devido de tanta generosidade.
- E para onde vais? - perguntou Josepha, preocupada.
- Para a terra do Benedetto. A mãe dele e as irmãs estão à minha espera. Ali fora está o Pietro, um amigo do Benedetto, que me vai acompanhar durante a viagem. Peço-lhe
que diga à Sofia que gosto muito dela e que lhe agradeço por tudo - concluiu. Pegou o saco e dirigiu-se à porta.
- Teresella! - Josepha gritou o seu nome, estendendo-lhe a mão.
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A rapariga voltou-se para ela.
Josepha queria dar-lhe a certeza de que, se fosse precisa alguma ajuda, ela estaria sempre disponível. Mas disse: - Posso vir a precisar de ti. - Não percebeu o
que a levara a pronunciar aquelas palavras. Talvez fosse a dignidade daquela jovem rapariga do povo que lhas tivesse sugerido.
- Nesse caso, cá estarei - prometeu Teresa, antes de fechar a porta atrás de si.
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MONTES LATTARI JULHO DE 1914
Bello Fiore era o nome da minúscula aldeia abrigada nos montes Lattari, nas proximidades da Ponta delia Campanella, em frente a Capri. Teresa ia sentada numa carroça
puxada por um burro que Pietro tinha arranjado sabe-se lá como. A estrada trepava ao longo da costa rochosa e, à medida que iam subindo, o ar tornava-se mais fresco.
- Não tens nada a temer por ti nem pelo teu filho. Nós, os companheiros, juntámo-nos e conseguimos arranjar este dinheiro
- disse Pietro, entregando-lhe um lenço cheio de moedas. - E há-de haver mais, quando precisares.
Teresa aceitou o dinheiro e guardou-o no bolso da saia. Nunca tinha saído de Nápoles e nunca teria imaginado nem desejado subir aqueles montes para se juntar a uma
família que não conhecia. A carta que Benedetto lhe escrevera a esse propósito não chegava para a tranqüilizar. Enfiou uma mão no bolso, pegou num papel dobrado
e estendeu-a a Pietro.
- Lê outra vez, se fazes o favor - pediu.
- Teresa, tu tens de aprender a ler - suspirou o homem, reSignado por ter de repetir as palavras de Benedetto, que a rapariga não se cansava de ouvir.
- E vou aprender. Juro que vou - prometeu. Era humilhante ter de recorrer aos outros para comunicar com o seu apaixonado.
- Em Bello Fiore há escola. E eu vou para lá - decidiu. E acrescentou: - Entretanto, lê tu.
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- Diz assim: "Minha Teresella, deste-me um presente que é o maior que pode haver. Os meus dias na prisão são menos pesados por saber que vou ser pai. Não te deves
angustiar por minha causa nem por causa do bebé que vai nascer".
- Repete lá o que quer dizer "angustiar" - pediu-lhe.
- Quer dizer que não te deves preocupar - disse Pietro, sem paciência.
- Isso mesmo. Eu já sabia. Mas se ele tivesse escrito: "Não te preocupes", tinha sido mais claro. Ou não?
- Então, o que faço? Continuo a ler ou preferes discutir as palavras ?
- Lê, lê. O Benedetto é um literato, isso não se discute. Mas não conhece as coisas da vida. Eu estou grávida e ele escreve que, por causa disso, os dias dele são
menos pesados. Parece-te possível?
- Teresella, mas o que é que tu queres que eu te faça? - Pietro era avaro de palavras e, sobretudo, estava convencido de que Teresa tinha razão.
- Nada, dá-me outra vez a carta - decidiu.
Em qualquer caso, sabia-a de cor. Benedetto dizia que os pais, as irmãs e os cunhados a receberiam como uma filha. Na sua simplicidade, Teresa não parava de se perguntar
por que razão Benedetto, que tinha fugido de Bello Fiore, lhe impunha a ela ir para lá viver. Deduziu que essa era a maneira que ele tinha de a ajudar. Mas ela antes
queria ter ficado em Nápoles, a viver no quarto de Benedetto, na Marina. Essa seria uma solução mais correcta, porque ficava a dormir na cama do seu homem e sentir-se-ia
menos só. Era quase como estar junto dele. Talvez conseguisse até arranjar uma licença para ir visitá-lo a San Francesco. Porém, ele decidira mandá-la lá para cima.
Porquê?
- Estás um bocado nervosa - observou Pietro.
- Estou desesperada - declarou, e desatou num pranto.
Pietro tirou o boné e passou um lenço pela testa e pelo pescoço, cobertos de suor. Quando a vereda saía da zona de sombra, o sol de Julho cortava a respiração.
- Já percebi que estás desesperada. Toma, bebe que está fresca e faz-te bem - disse, oferecendo-lhe uma bilha de água. E continuou: - Eu não sou capaz de consolar
ninguém. Se continuares a chorar, deixo-te o burro e a carroça e regresso a pé. Raios me partam a mim e àquele doido do Benedetto,
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que me mete sempre nestas coisas.
- Deixa lá o Benedetto. Ele sabe sempre o que faz e o que diz - censurou Teresa, deixando imediatamente de chorar.
- Se pensas assim, por que é que te lamentas? - observou Pietro, irritado.
Olharam-se nos olhos, um clarão brilhou no olhar de cada um e explodiram juntos numa gargalhada libertadora. Em seguida viram, do lado direito, uma pequena casa
em ruínas e, depois de fazerem a curva, apareceram as formas brancas de mais algumas casas. Entraram na aldeia. Ouviram-se vozes de crianças. Um camponês que empurrava
uma carroça cheia de feno atravessou a rua e parou a olhar para eles, curioso.
- Isto é Bello Fiore? - perguntou Pietro.
- É sim. O que querem? - quis saber o homem, desconfiado.
- Estou à procura da casa do Benedetto Zicri - disse o rapaz.
- Porquê? O que foi que ele fez? - perguntou o camponês com uma voz esganiçada.
- Ele sabe muito bem tratar dos assuntos dele - respondeu Teresa, aborrecida.
- Que também são meus - replicou o homem. E berrou: - Carmela, Innocenza, Delfina, Giacomo! Chegou a rapariga! E
tem uma língua comprida.
- Já falei de mais! - exclamou Teresa, descendo da carroça.
- Assustaste-o. Foi pedir ajuda às mulheres - sussurrou Pietro, com ar de quem estava a divertir-se.
A pequena aldeia ganhou alma nova. As mulheres chegaram-se às portas e às janelas para observar Teresa, que avançava lentamente, transportando um saco que continha
todo o seu guarda-roupa.
Então era aquele o lugar de onde Benedetto fugira. Não era diferente daquilo que ele lhe tinha descrito. E não lhe agradou. Talvez ainda estivesse a tempo de voltar
a subir para a carroça e regressar a Nápoles. Pensou em Benedetto, nas palavras dele. Decidiu que tinha de ser forte, porque estava sozinha a enfrentar toda a família
Zicrí e a aldeia inteira que a observava, a avaliava e certamente conhecia a sua história.
Contou os homens, as mulheres e as crianças que estavam reunidos em frente a uma espécie de grande casebre por baixo
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de um afloramento de rocha. Eram dezanove. Pousou o saco no chão, libertou-se do lenço que lhe cobria os cabelos e recordou que era a filha de Rosa Avigliano, uma
mulher forte que nunca se deixara ir abaixo.
- Sou a Teresa - disse com uma voz segura. - A noiva do Benedetto - acrescentou.
Aguentou-lhes o olhar e, por sua vez, avaliou um a um aqueles rostos sem expressão, curtidos pelo sol. Percebeu que devia ainda dizer mais alguma coisa. - O Benedetto
mandou-me vir ter convosco. E não cheguei de mãos vazias - continuou. Tirou do bolso o lenço com o dinheiro que Pietro lhe tinha dado e deu dois passos em direcção
à mulher mais velha, que era parecida com Benedetto. - Isto é da parte do seu filho. Para o que for preciso - concluiu, entregando-lhe o lenço.
A mulher enfiou-o rapidamente no colarinho da camisa e depois estendeu os braços.
- Vem cá, aqui junto ao meu peito, minha filha! - exclamou. Então toda a família se juntou à volta dela e todos a quiseram
abraçar. As crianças esconderam-se atrás das saias das mulheres e Teresa deu um suspiro de alívio. Apresentou Pietro, que se afastou imediatamente para falar com
os homens, mas que antes conseguiu sussurrar-lhe: - Conseguiste. Vais ver que não vai ser assim tão terrível.
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NÁPOLES - ESCRITÓRIO DE ADVOGADOS JULHO DE 1914
Languidamente abandonada sobre as almofadas do canapé, Virgínia fumava um cigarro e ouvia sem interesse as palavras de Franco Fasulo, o seu novo amante.
- Virgínia, estás a ouvir-me? - perguntou ele, que acabara de lhe expor um discurso que devia proferir na assembleia distrital.
- Mas é claro! Tenho vinte e sete anos e ainda não estou surda - replicou.
- Então, o que foi que eu disse? - provocou o homem. Era um jovem advogado, bonito e de boa família, que esperava conquistar uma poltrona no parlamento. Estava absolutamente
convencido de que Virgínia conhecia bem a actual situação política. Por isso, quando tinha de fazer uma intervenção importante, pedia a opinião dela. Ela acabava
por fazer uma observação ou uma crítica que lhe davam alguma ajuda.
- Quanto a mim - começou Virgínia, devagar, porque daquela longa exposição não apanhara uma única palavra -, quanto a mim, neste momento é melhor não assumir discursos
muito comprometidos. Ouve, Franco, pensa mas é em divertir-te e em fazer amor mais vezes - aconselhou.
- Já percebi. O meu discurso é um fiasco. Não gostaste - concluiu, enfiando-lhe uma mão por baixo da saia e acariciando-lhe uma perna.
Virgínia tinha ido ter com ele a sua casa, na Piazza Plebiscito, e encontrara-o sentado à secretária, em mangas de camisa, a trabalhar.
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Estendeu-se num canapé, esperando pacientemente que ele acabasse. Durante algum tempo, folheou os jornais do dia, sem encontrar notícias interessantes, a não ser
a de um cirurgião francês que concluíra com sucesso uma intervenção no coração de um cachorro.
Por fim acendeu um cigarro e, observando o fumo que ondeava sobre uma lâmina de sol, apercebeu-se de uma forma aguda de toda a infelicidade que lhe pesava no coração.
Virgínia Castiglia, princesa da Calábria, era vítima de uma mãe autoritária, escrava do ócio, incapaz de fazer o que quer que fosse, até de decidir sobre a própria
vida. Vingava-se, desprezando toda a gente e procurando como amantes homens casados, pelo prazer de dar um desgosto às mulheres. Mas, ao fim e ao cabo, não tirava
nenhum prazer destas maldades. Pelo contrário, sentia-se ainda mais infeliz.
A mãe, quando falava dela, soltava um suspiro de resignação. A irmã, Marianna, tratava-a com condescendência. O cunhado e outros parentes consideravam-na uma solteirona
caprichosa. Os criados detestavam-na. Só Josepha, a "crucca", lhe dedicava um pouco de atenção. Às vezes pedia-lhe uma sugestão ou uma ajuda. Virgínia gostaria de
lhe ficar grata por essa consideração, mas um demónio que não conseguia controlar impelia-a a reagir com grosseria. Depois arrependia-se, pedia desculpa e, por fim,
recomeçava a detestar toda a gente. Mais do que uma vez lançara sobre a mãe o seu descontentamento, atirando-lhe à cara uma paternidade incerta.
- Será que alguma vez vai chegar o dia em que acabas por admitir que não sou filha do meu pai? Toda a gente conhece a história do teu amor por aquele mocho horroroso
- atirava-lhe com ódio, referindo-se ao então director das destilarias da família.
A mãe acariciava-lhe a face e acompanhava o gesto com um sorriso. O "mocho horroroso" era um homem honesto e empreendedor que, ao longo dos anos, transformara uma
empresa artesanal numa indústria rentável. Carolina amou-o pela sua inteligência, pela modéstia e, sobretudo, pela total dedicação a ela e ao trabalho. Ao contrário
de Enrico e Marianna, concebidos por dever, Virgínia fora o fruto de um grande amor que só a passagem do tempo diluira numa afectuosa amizade. Mas ela nunca admitiria,
nem no segredo do confessionário, a verdadeira paternidade desta filha. Deixava espaço aos sussurros e às bisbilhotices, sem se preocupar com isso.
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Por isso respondia-lhe, pacatamente: - Tu és uma Castiglia e nunca me farás admitir uma verdade diferente que não existe. De resto, és mesmo tu quem me vai assistir
na minha velhice.
Até certo ponto, esta estratégia tinha funcionado. Virgínia parecia ter aceitado o papel de filha devota, sacrificada ao egoísmo materno. Depois começou a revoltar-se.
Aconteceu quando Enrico se matou e Josepha voltou a viver na Áustria. Um escritor arruinado deitou-lhe os olhos e pediu-a em casamento.
- Leve-a - disse Carolina. - Mas fique sabendo que não vai casar com o património dela. A minha filha só se leva a ela própria como dote.
O homem desapareceu com a velocidade de uma lebre. - Gostaria de te ter poupado a esta humilhação - disse em seguida a Virgínia. - Eu sei que és infeliz, mas ias
ser ainda mais infeliz se te casasses com aquele falso apaixonado que, ainda por cima, não amas realmente.
Virgínia exigiu uma compensação.
- Quero viver sozinha. O apartamento de Enrico passa a ser meu e eu recebo quem me apetecer.
Teve alguns amantes distraídos e rigorosamente casados para evitar posteriores desilusões. O advogado Franco Fasulo era o mais recente. O desencanto, pago a peso
de ouro, agradava aos homens habituados às comédias femininas representadas em tons de desapego, de subentendidos, de falso pudor. Virgínia era arguta e impiedosa
nas relações que mantinha com eles. Esta característica levava-os a esquecer a sua escassa formosura.
Agora, em frente ao homem que lhe mendigava uma opinião, Virginia sorriu.
- O teu discurso é um fiasco porque tu és um fiasco - disse com o prazer sádico de pronunciar uma verdade e de aliviar o seu Próprio descontentamento.
O homem estremeceu, como se tivesse recebido uma bofetada. ela sorriu-lhe e resolveu dourar a pílula.
- Politicamente falando, entenda-se - precisou. E acrescentou: - Tens de te libertar das tuas idéias socialistas. Volto a dizer-te, Franco: fica calado, pelo menos
durante algum tempo. Depois Já podes alinhar com os republicanos. Entretanto,
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por que não te distrais um pouco? - propôs num sussurro, enquanto lhe desfazia o nó da gravata com um gesto ligeiro.
O advogado encaixou o golpe, que podia ser também um aviso precioso.
- Propões-me que traia os meus companheiros - comentou, porque precisava de tempo para assimilar o conselho de Virginia e para o avaliar.
- Mas já os traíste. Mandaste para San Francesco um desgraçado que teve o azar de te assentar um murro bem merecido - disse ela, recordando então um pedido de Josepha.
A ex-cunhada, alguns dias antes, tinha-lhe pedido um favor.
- Trata-se do noivo da Teresa. Agrediu, durante uma discussão, o advogado Fasulo. A Teresa está grávida e foi-se embora. Ele está na prisão. A Sofia explicou-me
que foi uma desavença entre companheiros, porque são todos socialistas. Se o Fasulo retirar a denúncia, aquele infeliz pode sair da prisão e casar com a rapariga
- explicou-lhe.
- Vou ver o que posso fazer - prometeu-lhe. E esqueceu-se logo a seguir. Só agora voltou a lembrar-se.
- Estás a falar daquela cabeça quente do Zicrí - disse o homem.
- Ele mesmo. Seria realmente caso para uma denúncia?
- Estás a pedir-me um favor - constatou ele, com um ar satisfeito.
- Exactamente - anuiu Virginia.
- E eu faço-to com prazer. Alguma vez te poderia negar alguma coisa?
Virginia pensou que lhe negava uma dedicação total. Mas isso nunca tivera de ninguém.
Os seus amantes pensavam raramente nela. Virginia compreendera há algum tempo que a distracção era uma característica comum aos homens. Conhecera apenas um homem
capaz de uma dedicação total. Era Lorenzo Valeschi, o marido de Josepha. Estava perdidamente apaixonado pela mulher e, quando era forçado a deixá-la só durante alguns
dias, enchia-a de telegramas, de telefonemas e de flores.
O advogado Fasulo esqueceu a promessa que tinha feito, arrastado por outras preocupações. Só ao fim de alguns meses
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se voltou a lembrar, por acaso. Correu então até ao tribunal, deu gorjetas a toda a gente para que se encontrasse rapidamente o processo referente a Benedetto Zicri
e esforçou-se por o pôr em liberdade o mais depressa possível.
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MONTES LATTARI NOVEMBRO DE 1914
Era como se uma força maligna lhe dilacerasse as vísceras. As dores tinham começado durante o sono, com uma pequena punhalada que a obrigou a acordar. Depois tinham-se
tornado cada vez mais freqüentes e intensas, continuaram durante todo o dia e agora, a meio da noite, Teresa lançou um grito.
Carmela, uma cunhada com perto de trinta anos que dera à luz dez filhos, cinco ainda vivos, enfiou-lhe na boca um pedaço de madeira. - Morde, que a dor passa - prometeu.
Estava no quarto do rés-do-chão, num colchão de palha improvisado, ao pé do lume onde as mulheres aqueciam panelas de água. Uma parede de tábuas separava o quarto
em dois. Do outro lado era o estábulo da vaca, do burro, das cabras e das galinhas.
O tempo tinha estado bom até há dois dias atrás, mas de repente, na noite em que entrou em trabalho de parto, começou a soprar uma nortada fortíssima que assobiava
através das frestas mal vedadas e deixava os animais nervosos. Os homens e as crianças estavam nos quartos do andar de cima. Os mais pequenos dormiam. As mulheres
estavam todas em baixo, aflitas e atarefadas. Cada uma dizia a sua sentença para enganar o tempo e o medo. O parto nunca era um acontecimento simples. Nunca como
naquela ocasião a vida e a morte estavam tão estreitamente ligadas. Quando a vida prevalecia, era um milagre. Quando vencia a morte, era uma fatalidade aceite. Filomena,
uma velha que curava todas as doenças e assistia as Parturientes e os moribundos, tinha ido ter com elas.
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Não tinha dentes, e a sua face era um reticulado de rugas. De vez em quando, em intervalos regulares, massajava o ventre nu e inchado de Teresa com um óleo que extraía
de certas ervas e que parecia aliviar a dor.
Tinham acendido velas em frente à imagem de Nossa Senhora. As mulheres, uma de cada vez, ajoelhavam-se e rezavam, porque a ajuda de Filomena não seria eficaz sem
as orações.
Teresa espetou os dentes na madeira. Do seu ventre saiu um fio de sangue rosado no momento em que Filomena, com a ajuda de uma vela, verificava a situação. A velha
sorriu, satisfeita.
- Agora tens de respirar pouco e depressa, e entretanto deves pensar numa coisa que te agrade muito. Assim, o teu filho entra neste mundo bem-disposto - ordenou
à rapariga.
Teresa estava fraquíssima. Um dia e duas noites de trabalho de parto tinham-na esgotado. Se Benedetto ali estivesse, a acariciar-lhe o ventre, se o bebé sentisse
a mão forte e firme do pai, em vez daquela seca e rugosa de Filomena, talvez já se tivesse decidido a sair.
Nos quatro meses passados naquela montanha áspera, Teresa tinha aprendido a escrever por amor dele. Só ela sabia quanto trabalho lhe custara aprender a segurar a
caneta com a mão, a guiá-la com os dedos leves sobre uma folha, tendo cuidado com a quantidade de tinta, a não subir nem descer, mas a seguir a linha pacientemente
traçada pelo professor que, a cada erro, lhe dava uma reguada nas mãos. Não era fácil traduzir em letras os sons de cada palavra. - Nha-nhi-cha-chi-lho-lhi, escrevem-se
assim - dizia o homem, que era também sacristão da igreja de Sant'Angelo.
Teresa encheu um caderno com sinais que reproduziam os sons da sua voz. Todas as folhas estavam salpicadas de manchas de tinta e buracos da borracha, e depois já
não se lembrava quando se usava a letra maiúscula e a minúscula, quando era preciso o "h" e quando não era preciso. A pontuação era um mistério insondável, assim
como a conjugação dos verbos, a escolha dos artigos e os acentos.
- Por que é que é tão fácil falar, e escrever é um drama? - perguntava ao professor. - Quem foi o desgraçado que inventou a escrita? Não me diga, Sr. Professor,
porque eu já sei. É alguém que me odeia bastante, apesar de eu não lhe ter feito nada.
- É alguém que te quer bem e que te diz: "Teresella, o teu marido está na prisão. Apesar de estarem longe um do outro,
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eu vou ensinar-te uma magia para estares perto dele. Por isso, aprende a escrever e a ler, para não precisares de recorrer a mim para decifrar as cartas do Benedetto".
Foi um cansaço de semanas. No fim, porém, Teresa conseguiu mandar a Benedetto a sua primeira carta. Ela mesma a entregou ao carteiro que passava em Bello Fiore todas
as semanas. Depois ficou a contar os dias que a separavam da resposta. O carteiro viajava num carro cheio de encomendas que tinha que distribuir ao longo do percurso.
Era uma pessoa respeitada por toda a gente, até porque, para além de entregar as cartas, lia-as e escrevia as respostas. Anunciava a sua chegada com uma trombeta
de latão reluzente e conhecia todas as pessoas daquelas montanhas.
Teresa não coube em si de alegria quando o carteiro lhe entregou um envelope.
- Queres segurá-la junto ao peito durante algum tempo, ou queres que ta leia já? - perguntou o homem.
- Deus o abençoe, Sr. Ignazio. Desta vez vou lê-la sozinha - respondeu com orgulho.
Estava sentada numa pedra, na beira da estrada, e começou a soletrar as palavras escritas no envelope: "À gentil menina Teresa Avigliano, ao cuidado da família Zicri,
Bello Fiore".
Era esta a magia de que falava o professor. Pela primeira vez, não precisava de partilhar com ninguém as palavras do seu homem. Rasgou o envelope e abriu o papel
dobrado. Benedetto começava assim: "Minha Teresella, chorei de alegria. Aprendeste a escrever e sei que o fizeste por amor...".
Não teve em conta os inúmeros erros, a falta de pontuação, as maiúsculas espalhadas aqui e ali pelo prazer de as traçar, a incapacidade de seguir as linhas. Nem
uma palavra sobre tudo isto. Apenas a comoção por aquela incrível prova de amor. Com uma paciência mfinita, Teresa conseguiu ler a carta inteira, que continha uma
notíCia importante. "É incrível, Teresella querida, mas aconteceu um Milagre. O companheiro socialista a quem bati retirou a denúncia, agora tenho a certeza de que
não vou continuar a ver o sol aos Quadrados." Seguiam-se cinco linhas apagadas pela censura da prísão. A carta acabava assim: "Espera por mim, porque vamos voltar
a ver-nos em breve. Benedetto".
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A jovem repetiu em voz baixa: "Agora tenho a certeza de que não vou continuar a ver o sol aos quadrados". O que quereria ele dizer com aquelas palavras? Ela conhecia
o "sol a pique", o "sol baixo", o "sol de Julho". Enfiou a carta junto ao peito e, com o andar pesado pela iminência do parto, foi até à escola.
Abriu a porta da sala de aula, avançou rapidamente por entre os bancos dos alunos e aproximou-se do professor, que estava sentado à secretária.
- O que queres, Teresella?
- O que é o sol aos quadrados? - perguntou em voz baixa.
- Não é preciso sussurrar. É uma expressão que toda a gente pode ouvir e aprender. O sol aos quadrados é o que entra na prisão
- respondeu.
Esta explicação ainda a confundiu mais.
- Mas o que é que o sol tem a ver com quadrados? - insistiu.
- Teresella, acorda! A janela da prisão tem barras. Estás a ver? - respondeu o maestro, impaciente. - Os raios de sol, através da grade, projectam na parede tantos
quadrados quantos os que formam as barras.
Então compreendeu e ficou furiosa.
- Aquele homem é sempre o mesmo. Podia escrever: "Tenho a certeza de que vou sair da cadeia". - Oh, Senhor Jesus, o Benedetto vai voltar, livre! - gritou, saindo
rapidamente da sala de aula, e correu até casa para ir ter com a sogra e dar-lhe aquela boa notícia. Foi então que chegou a primeira contracção. Ela quase não se
deu conta.
Agora, Filomena tentava convencê-la a pensar numa coisa que lhe desse prazer. A imagem mais bonita que lhe veio à cabeça foi Benedetto à porta de casa. Uma lufada
de ar gelado entrou no quarto.
Teresa cuspiu o pedaço de madeira que apertava com os dentes, lançou um grito e chorou de alegria enquanto o menino, com um jorro, saía do seu ventre. Benedetto
estava lá para o receber.
Teresa abriu os braços e apertou contra si o filho e o seu homem.
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NÁPOLES - CASA JUNTO AO MAR DEZEMBRO DE 1914
Finalmente regressava a Nápoles com Benedetto e com o filho. Pusera-lhe o nome de Giuseppe, em honra daquela linda princesa austríaca. Apertava-o bem nos seus braços,
embrulhado em xailes de lã; e comparava a melancolia da viagem para Bello Fiore com a alegria daquele regresso à sua cidade, onde a esperava a casa de pescadores
e a esperança de um futuro em família.
Dera à luz três dias atrás e sentia-se ainda um pouco fraca. Benedetto opinara timidamente que seria melhor ficar em Bello Fiore durante mais algum tempo. Teresa
não quis saber das suas razões.
- Vim até aqui por obediência e por necessidade. Mas não quero ficar nem mais um dia - disse-lhe, num dos raros momentos em que conseguiram ficar sozinhos.
- Sentiste-te assim tão mal aqui? - perguntou-lhe ele.
- Só porque tu cá não estavas. E também porque me faltavam as ruas de Nápoles, o ruído dos mercados, os palácios e as igrejas. Nasci pobre, mas citadina. Entendes-me?
- tentou explicar.
Benedetto entendia perfeitamente. Embalaram os seus pertenCes e amarraram o burro à carroça que a família Zicri enchera de lenha para o fogão, marmelos, azeitonas,
farinha de trigo, queijos, tomates secos, ovos frescos e fraldas e faixas para o pequeno Pinuccio. A Teresa ofereceram um caderno novo e um estojo de madeira, continha
lápis e penas.
Este presente encheu-a de orgulho.
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Benedetto contou-lhe a ela e aos outros o milagre daquela imprevista autorização de saída da prisão. O homem que ele agredira, e por quem fora denunciado, esperou-o
à saída da prisão, apertou-lhe a mão e disse-lhe: "Não me agradeças. Foi tudo graças à princesa Virgínia Castiglia".
Então Teresa disse: - Vais ter de lhe ir agradecer.
- Já o fiz por intermédio do advogado Fasulo - respondeu ele.
- Mas não chega. Tens de lhe agradecer pessoalmente - insistiu Teresa. - E vais fazê-lo já, assim que chegarmos a casa.
- Assim que chegarmos a casa tenho de procurar trabalho, pois se não for assim não temos de que viver - objectou, porque a idéia de se apresentar no palácio Castiglia
deixava-o pouco à vontade.
Mas Benedetto conhecia aquela jovem companheira. Sabia
como era teimosa. Não lhe daria tréguas enquanto não lhe fizesse a
vontade.
No quarto que ocupara com Pietro encontraram uma dúzia de companheiros, com mulheres, namoradas e filhos, que os esperavam para comemorar o regresso. Ofereceram-lhes
fraldas e casaquinhos para Pinuccio, um xaile para Teresa, garrafas de vinho e panelas de macarrão mergulhado num molho com muita carne.
Teresa chorou, em parte pela comoção e em parte porque o
parto a enfraquecera.
As duas camas, que tinham pertencido a Pietro e a Benedetto, estavam encostadas, e os espaldares de ferro estavam atados com fitas brancas de tule. Quando os amigos
foram embora, Teresa e Benedetto improvisaram um berço para o bebé, juntando duas cadeiras. Puseram uma almofada por cima e ali instalaram Pinuccio. Teresa, exausta,
estendeu-se na cama depois de ter pousado em cima da mesa o dinheiro que entregara à sogra e que lhe fora restituído no momento da partida. "Guarda-o. Podes vir
a precisar dele. O meu filho é instruído mas não é muito esperto. Agora que se vão casar, vê se consegues mudar-lhe a cabeça", recomendou a
mulher.
Benedetto, naquela noite, foi pródigo em atenções com ela e
com o pequenino.
- Amanhã vou registá-lo e digo que nasceu em Nápoles -
disse.
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- Dizes que nasceu em Bello Fiore - corrigiu Teresa.
- Não é um bom sítio para se nascer - objectou Benedetto.
- Para ele foi. Se começamos com uma mentira, toda a vida dele será uma mentira - sentenciou. E continuou: - Depois temOS de nos casar. Mas, antes de mais, tens
de agradecer à princesa.
Não havia maneira de a fazer mudar de idéias.
Na manhã seguinte, Teresa levantou-se cedo. Deu de mamar ao menino e depois preparou o café. Deitou-o lentamente na chávena, adoçou-o e sentou-se na cama.
- Amor, acorda - sussurrou, pousando um beijo nos lábios de Benedetto. Ele abriu os olhos e sorriu.
- Que cheiro tão bom a café - constatou, com uma voz ensonada.
- Bebe, enquanto está quente - disse ela.
- Não ouço o Pinuccio - disse, assustado.
- Está a dormir. Ele já comeu - tranqüilizou-o. Benedetto esvaziou a chávena quase de um só trago, pousou-a
no chão e puxou a rapariga para si, apertando-a entre os braços.
- Ao fim de seis meses em San Francesco já me tinha esquecido de como é bom abraçar uma mulher - murmurou, desejando-a.
- Eu não sou uma mulher. Sou a tua mulher. Exprimiu-se mal, senhor professor - comentou, irónica. - Seja como for, agora vai cumprir o teu dever - ordenou-lhe.
- Eu obedeço, patroa - brincou Benedetto. Mais tarde, tocava à porta de serviço do palácio Castiglia. Foi Saverio quem abriu.
- Queria falar com a Sofia - disse.
- E tu quem és? - perguntou o criado.
- O noivo da Teresella - apresentou-se, tirando o gorro. O homem que estava à sua frente era um proletário como ele, mas parecia um privilegiado. Via-se logo que
nunca falhara uma refeição, que tinha certamente uma cama confortável e vestia um fato feito à medida, apesar de ser uma farda de criado.
- A Sofia já cá não está.
- Morreu? - perguntou, assustado.
- É como se tivesse morrido. Foi lá para cima, para a Áustria, com a princesa Josepha - respondeu, e acrescentou: - Como está a Teresella?
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- Está bem, e disse que eu tenho de agradecer pessoalmente à princesa Virginia - explicou Benedetto.
Naquele momento, Saverio gostaria de lhe fazer algumas perguntas, mas não quis ser bisbilhoteiro.
- Escreve uni bilhete. A princesa lê - sugeriu.
Era um bom conselho. Não lhe apetecia encontrar-se perante uma senhora altiva que, quase de certeza, era amante daquele Fa-sulo que o tinha mandado para a prisão.
Em qualquer caso, uma vez que com certas pessoas é melhor ser prudente, decidiu mentir.
- Não sei escrever - afirmou.
- Espera aqui - ordenou Saverio com ar de autoridade. Voltou depressa. - Segue-me. A princesa vai receber-te -
anunciou.
Acompanhou-o até ao vestíbulo do apartamento no primeiro andar. A jovem princesa parecia prestes a sair. Vestia um casaco azul-celeste com uma gola ampla e deixava
à sua volta um intenso perfume de jasmim.
Benedetto ficou em sentido, sem conseguir pronunciar uma única palavra. Teresa tinha-lhe contado que Virginia tinha um corpo bonito mas um rosto feio. Ele, pelo
contrário, achou-o estranho e severo, como o de uma rainha.
- Então és tu o namorado da Teresa - disse ela com uma voz límpida, medindo-o da cabeça aos pés.
Benedetto corou. Pensou que uma senhora de bem não olha para os homens daquela maneira. Talvez as senhoras da nobreza se pudessem permitir essas coisas.
- Ao seu dispor, minha senhora - replicou. E acrescentou: - Vim agradecer-lhe porque me disseram que a minha saída da prisão se deve à senhora. - Logo a seguir retrocedeu
um passo. Cumprira o seu dever, obedecera a Teresella, e agora só queria ir embora.
- A Teresa arranjou um bonito rapaz - comentou Virginia, gélida. E acrescentou: - Imagino que agora vão casar.
Benedetto anuiu.
- Temos um filho.
- Diz à tua noiva que pode voltar para nossa casa, se quiser. E tu, já tens trabalho? - interrogou.
Benedetto sentia-se sobre brasas. Aquele perfume todo, aquele olhar inquisidor, aquele interrogatório cerrado sem a sombra
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de um sorriso punham-no pouco à vontade.
- Ainda não. Tenho de procurar. - Recuou outro passo, pronto para se pôr em fuga.
Naquele momento Virginia sorriu de um modo estranho.
- Parece que eu te meto medo - sussurrou. Foi até junto dele e tocou-lhe com os dedos a face barbeada de fresco.
- Vê-se que sabes bem da tua vida. Mas mentiste-me. Sei que andaste na escola e que não és nenhum palerma. Na destilaria andam à procura de um bom mecânico. Sabes,
aquelas máquinas de engarrafar estragam-se muito. Vai ter com o director, em meu nome. Receberás um bom salário. - Soprou-lhe esta oferta no rosto. Depois pousou
os lábios nos dele e beijou-o. - E não fiques tão nervoso - disse. Abriu a porta do vestíbulo e foi-se embora.
Benedetto ficou ali, transtornado. Não compreendia o que estava a acontecer.
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MERANO - SCHLOSS RUNDEGG JANEIRO DE 1915
Sofia entrou na sala de estar empurrando o carrinho do chá. Estava outra vez ao serviço de Josepha. Seguindo-a até Merano, renunciara à sua farda habitual. O traje
regional do Tirol era um fato que lhe agradava muito mais, porque era severo, mas gracioso. Josepha ofereceu-lhe dois, com pequenos aventais floridos e casacos de
lã.
Desta vez, a chegada de Sofia foi acolhida com um sentimento de alívio da parte de Pietra e Klara, que acusavam cada vez mais o peso dos anos. As duas criadas ocupavam-se
apenas da cozinha. Ela, com a ajuda de uma mulher do lugar, tratava de tudo o resto.
Josepha estava sentada ao piano com a jovem Irmgard Kessler e tocavam a quatro mãos uma valsa de Strauss, para regozijo dos dois homens que as escutavam: Lorenzo
e Heinrich von Wedel.
Por fim, o apaixonado ardente de Josepha tinha uma noiva, exactamente como ela tinha prognosticado. O jovem oficial das Standschiitzen encontrara a bela Irmgard,
que tinha entrado na sociedade pouco tempo antes, ao fim de três anos passados em Florença, no colégio de Poggio Imperiale. Tinham-se conhecido durante uma festa
no palácio dos Kessler Mengele em Bolzano, apaixonaram-se e decidiram casar.
Heinrich quis que Josepha conhecesse a futura esposa e as duas Jovens simpatizaram imediatamente uma com a outra.
Também Heinrich e Lorenzo se tornaram amigos.
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Sofia demorou-se um pouco à entrada da sala de visitas, pensando se deveria ainda esperar um pouco para servir o chá. Josepha limitou-se a um imperceptível movimento
de cabeça. A criada encostou o carrinho à mesa e pousou ali um tabuleiro cheio de bolachas de manteiga cobertas de glace açucarada. As duas raparigas terminaram
a valsa, os companheiros aplaudiram e Lorenzo estendeu uma mão à mulher enquanto se levantava da cadeira. Não que ela precisasse de ajuda, apesar de agora se mover
com a lentidão de uma mulher próxima do parto, mas o marido considerava-a frágil e carente de cuidados.
Sofia serviu o chá enquanto os jovens retomavam uma pacata conversa sobre os temas preferidos das mulheres: o enxoval de Irmgard, confeccionado em Itália pelas "Manifatture
Fiorentine", o arranjo de um castelo dos Kessler Mengele em Vai Pusteria, que se iria tornar a residência do casal, e a descrição do enxoval do pequeno Valeschi
que ia nascer dentro de alguns dias.
- Antes querias um rapaz ou uma rapariga? - perguntou Irmgard.
Quantas vezes ela própria se tinha feito aquela pergunta, para a qual não tinha resposta.
- A Sofia diz que vai ser uma menina, porque tenho a barriga bicuda. Vivi em Nápoles o suficiente para saber que há sempre uma pequena verdade na base de tantas
crenças populares - explicou Josepha.
Por respeito a Lorenzo, que conhecia pouco a língua alemã e se recusava obstinadamente a aprendê-la, falavam todos italiano.
- Vai ser uma menina, porque eu quero que seja assim. Vai parecer-se com a mãe, a mulher mais encantadora que eu jamais conheci, e vai chamar-se Dorothea, porque
a minha mulher gosta de recordar a avó Rost - declarou Lorenzo. Gostaria de acrescentar: "Espero que não seja teimosa como a Josepha, que me obriga a fazer deslocações
constantes entre a Itália e o Tirol porque prefere estes vales austríacos ao meu lindíssimo país". Não o disse, mas a mulher bastou um olhar para perceber.
Pousou uma mão na dele e sorriu.
- Obrigada, Lorenzo - sussurrou. Também ela gostaria de acrescentar: "Sabes bem quanto te amo, mas também sabes como
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me sinto profundamente austríaca. Amo a minha terra e esta casa e quero um ninho seguro para o nosso filho".
Até àquele momento, os quatro tinham cuidadosamente evitado qualquer referência à guerra e à política. As notícias que chegavam todos os dias eram terríveis. Na
frente ocidental, os alemães tinham sido derrotados pelos franceses na batalha do Marne, e em compensação tinham vencido os russos, na frente oriental na batalha
dos lagos Masuri. Mas agora a Áustria e a Alemanha também estavam contra a Turquia. Era uma guerra medonha, e milhares de homens morriam em frentes opostas. O governo
italiano insistia em manter-se fora do conflito, sobretudo como represália em relação à Áustria que, no momento do ultimato da Sérvia, não o tinha interpelado. Mas
havia fortes tensões em Itália e o movimento intervencionista fazia-se sentir com uma insistência cada vez maior. Na tranqüilidade da sala de visitas de Schloss
Rundegg, a alegria dos quatro jovens, que se tinham reunido pelo prazer de estarem juntos, apagou-se assim que chegou o momento de falar da guerra. - De soldado
para soldado, como consideras a nossa situação? - perguntou Heinrich a Lorenzo, que não tinha nenhuma intenção de se pronunciar. Por isso se esquivou indecentemente
à pergunta.
- O melhor possível - respondeu. - Encontrámos duas companheiras extraordinárias que não nos fazem sentir a nossa deselegância de militares, não pedem que as acompanhemos
a festas e recepções e suportam pacientemente as nossas longas ausências.
Heinrich von Wedel soltou uma gargalhada libertadora, deu uma palmada no ombro de Lorenzo e concordou. O que quer que o futuro reservasse aos seus destinos, haveriam
de salvar a amizade e a lealdade.
- Está a nevar - anunciou Irmgard, com o olhar voltado para a grande janela da sala.
Levantaram-se os quatro, pousaram os cotovelos na almofada do peitoril e encostaram o nariz ao vidro para verem os flocos de neve - Naquele momento, o velho Toni,
com o gorro de lã enterrado até aos olhos e o avental azul que lhe chegava às botas, atravesSava o pátio a empurrar a carroça cheia de erva para os coelhos.
Viu aqueles rostos jovens e risonhos e perguntou-se quanto tempo ainda duraria a serenidade naquela casa. Naquele momento, Josepha sentiu uma guinada nos rins. Mas
não disse nada.
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- Temos de ir já embora, ou ficamos aqui bloqueados toda a noite - anunciou Heinrich.
- O Lorenzo acompanha-vos até à estação - decidiu Josepha. Na hipótese de um parto iminente, preferia não ter hóspedes. - O comboio para Bolzano parte daqui a meia
hora.
Enquanto se despediam, encostou os lábios ao ouvido do marido. - Quando voltares, passa pelo Dr. Capello e trá-lo aqui -. sussurrou.
Dietmar Capello era um jovem médico natural de Vai Stubai. O pai tinha corrido a Europa inteira a vender esculturas de madeira que fazia durante o Inverno e, com
isso, conseguira pôr de parte o dinheiro suficiente para manter os estudos do único filho homem, que se formou em Medicina em Innsbruck e se especializou em Obstetrícia
em Viena. Chegou a Merano quando acabou os estudos e abriu um consultório na Piazza Teatro. Os bons modos e a competência decretaram o seu sucesso. Tornou-se um
profissional rico que não esquecia a humildade das suas origens e tratava gratuitamente as mulheres mais pobres.
- Está tudo bem? - perguntou Lorenzo, preocupado com o pedido da mulher.
Josepha anuiu e escondeu por trás do sorriso a dor provocada pela segunda guinada.
Assim que ficou sozinha, escancarou a porta da cozinha onde as três criadas preparavam o jantar.
- Começaram as dores - anunciou. E acrescentou: - Vou para o meu quarto.
Estava assustada, como todas as mulheres na proximidade do parto, mas esforçou-se por parecer calma enquanto Sofia a ajudava a despir-se e a vestir uma camisa de
noite comprida. Entretanto, Klara enchia de lenha o fogão de majólica para aquecer ao máximo o quarto. Petra, que já assistira outras parturientes, sugeriu-lhe:
- Ande para trás e para a frente, porque assim o parto é mais rápido.
Josepha percorreu o quarto de um lado para o outro, até chegou o médico e fechou a porta do quarto na cara de Lorenzo.
- Deite-se já na cama - ordenou. - Não se deve cansar explicou, contradizendo o conselho da criada. - Vai precisar de todas as suas forças quando a criança nascer.
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Josepha obedeceu. O homem mediu-lhe o pulso, controlando-o com o relógio de bolso.
- Muito bem - disse. E, depois de ter ouvido o batimento cardíaco, acrescentou: - Também está tudo bem com o bebé. Tem um coraçãozinho muito forte.
- Estou tão mal - lamentou-se ela, nada reconfortada com o optimismo do médico. - E estou muito enjoada. Se calhar exagerei com as bolachas de manteiga.
O tempo passava e as contracções tornavam-se cada vez mais próximas. Algumas horas mais tarde, Josepha lançou um grito e, poucos instantes depois, nasceu o bebé.
- É uma menina - anunciou o médico, que a agarrou pelos pés e a fez oscilar de cabeça para baixo enquanto cortava o cordão umbilical. A menina soltou um gemido.
Josepha, exausta, sorriu.
- Bem-vinda, Dorothea - murmurou. E naquele momento lembrou-se de Teresella, se teria tido um rapaz ou uma rapariga.
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NÁPOLES - CASA JUNTO AO MAR FEVEREIRO DE 1915
Estava sentada num barco em cima da areia. O xaile de lã macia envolvia-a a ela e ao menino, que mamava o leite do seu seio imenso, muito branco, sulcado por uma
rede de pequenas veias azuis. Às vezes Teresa perguntava-se de onde viria todo aquele leite que lhe ensopava a camisa. Acontecia-lhe às vezes pôr ao peito outros
bebés de mães jovens que não tinham leite suficiente para os filhos. "Obrigada, Teresella. Deus te abençoe" diziam-lhe, quando recebiam dos braços dela os meninos
finalmente saciados.
O sol de Fevereiro era ainda fraco, mas suficiente para aquecer o ar do princípio da tarde. Os dias começavam a ficar maiores com a proximidade da Primavera. Pinuccio
tinha feito três meses e estava a ficar cada vez mais bonito. Mamava e dormia. Ao embalá-lo, Teresa falava-lhe de Rosa, que repousava no alto da colina, de Benedetto,
que era um pai terno e um marido amável, do avô Matteo, que entristecia ao lado de uma mulher seca e má e da tia Annina, que tinha morrido porque acreditou que podia
voar.
- Era boa de mais para viver neste mundo - disse-lhe Matteo a chorar, quando foi ter com ele ao mercado. - Annina era um anjo. Com aquela tosse que nunca passava,
crescia com dificuldade, era leve e macia como um passarinho. Subiu para a janela e anunciou às crianças que a olhavam da viela: "Olhem para mim. Agora vou voar".
Um salto, e depois o mergulho.
- Agora tem mesmo umas asas. Passou a ser um anjo - comentou ela, sentindo uma fisgada no coração.
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A desgraça tinha acontecido em Novembro, quando ela estava às voltas com as dores, em Bello Fiore.
Uma mão delicada pousou-lhe no ombro. Teresa estremeceu e o mamilo fugiu dos lábios de Pinuccio, que franziu a testa e começou a chorar.
Era Benedetto, que se inclinou sobre eles envolvendo-os com um olhar terno, cheio de amor.
- O que é que estás aqui a fazer a esta hora? - perguntou Teresa, admirada. Voltou a agarrar o menino ao seio. Benedetto sentou-se no barco, ao lado deles.
- Precisava de estar convosco - disse em voz baixa.
- E deixas assim o trabalho, por um capricho?
- Não é um capricho, é uma necessidade.
Só então Teresa reparou que o marido tinha os olhos húmidos de lágrimas. - O que foi que te aconteceu?
- Passei por casa. Vocês não estavam lá. Então desci até à praia e vi-vos. Tu não imaginas quanta beleza e quanta poesia consegue exprimir uma mãe com um filho ao
colo. Eu olho-vos e fico comovido - sussurrou.
- Tu dizes sempre coisas tão bonitas! Cada dia estás mais instruído, enquanto eu me afogo num mar de ignorância - replicou Teresa, grata ao marido por tanta doçura.
Mas o sentido prático prevaleceu. - Vão despedir-te por causa disto - retorquiu.
- Não há perigo. Precisam de mim. Os patrões, enquanto formos úteis, não nos despedem - comentou asperamente.
- Não é verdade. Os Castiglia receberam-me na casa deles por piedade. Não precisavam de mim - reagiu.
Pinuccio, já saciado, afastou-se do peito da mãe. Ela abotoou a blusa e desceu do barco. Pinuccio tinha adormecido e, com ele ao colo, dirigiu-se a casa seguida
pelo marido.
- Isso é o que tu queres pensar. Na realidade, os patrões nunca dão nada de graça - teimou Benedetto.
- Não percebo. Têm-te a trabalhar com um salário de operário do Norte. E agora não me venhas dizer que és tu que lhes permites produzir. Conheço as tuas teorias.
Só servem para te meterem em complicações e para no fim te mandarem para a cadeia. Não te percebo mesmo. De resto, eu sou ignorante.
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Mas vejo algumas coisas. Vejo que acabaram as reuniões com os teus companheiros, por exemplo. Evita-los. Quando o Pietro vem ter contigo, parece que já não tens
argumentos para ele. Há qualquer coisa que não está bem. Mas eu não sei o que é - disse tudo de um fôlego, enquanto subiam as escadas de casa.
O quarto estava frio. Para poupar, Teresa deixara apagar o lume. Deitou o menino na cama, cobriu-o com o xaile e começou a meter mais lenha no fogão.
Benedetto estendeu-se na cama, ao lado do menino.
- O Pinuccio está molhado - anunciou.
- Eu sei. Não o posso mudar se não aquecer o quarto primeiro. E vê se tiras os sapatos quando te estendes na cama - censurou, enquanto soprava a chama. E continuou:
- Já que estamos a falar deste assunto, gostava de saber onde é que foi parar o rapaz por quem eu me apaixonei. Não sei se foi a prisão que te fez mudar, ou se há
mais alguma razão. Desde há algum tempo, falas pouco, quase nada. Depois, vens para casa quando devias estar na fábrica e pões-te a chorar. Posso saber porquê?
Teresa estava zangada também por outra razão, que não ousou expor: o marido esquivava-se demasiadas vezes aos deveres conjugais. Quando estavam na cama, ele apertava-a
contra si e dizia: - Gosto tanto de ti, Teresella. És pura e fresca e boa como a água do Serino -; depois virava-lhe as costas e adormecia. Tinha de ser ela a tomar
a iniciativa. Então Benedetto fazia-lhe a vontade.
- Tenho os meus problemas - disse ele.
- E por que não falas comigo? - perguntou-lhe. A lenha já estava acesa e ela pôs em cima do fogão uma panela de água para preparar o jantar.
- Nem eu sei muito bem - resmungou ele. Tirou os sapatos e as calças também. Ficou em ceroulas. Eram de flanela pesada, cinzentas, e cobriam-lhe as pernas até aos
tornozelos. Teresa observou-o e riu-se.
- Estás cómico - comentou.
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- O que é que te dá vontade de rir? - perguntou, desconfiado.
- Os homens em ceroulas são cómicos.
- Porquê? Quantos é que viste mais? - perguntou, metendo-se debaixo dos cobertores.
- Muitos - brincou, e pegou em Pinuccio ao colo, para o lavar e mudar.
- Vou à fonte lavar a roupa - disse ao marido, depois de ter instalado o menino.
- É quase noite. Não podes fazer isso amanhã? - observou Benedetto.
- As fraldas nunca chegam. Eu venho já. Toma conta do Pinuccio - recomendou-lhe antes de sair.
Quando regressou, Benedetto e o menino tinham adormecido e ela sorriu a olhar para eles. Mas foi um sorriso triste. Havia qualquer coisa estranha naquele marido
terno e afectuoso. Foi até junto dele e pensou que gostaria de entrar na sua mente para saber o que o perturbava. Tocou-lhe no rosto e Benedetto arregalou os olhos,
olhando-a assustado.
- Está sossegado, sou eu - tranqüilizou-o.
- Desculpa - disse ele. Levantou-se, vestiu-se e sentou-se à mesa.
Ela encheu dois pratos de massa temperada com alho, azeite e sal. Comeram em silêncio. Teresa espreitava o marido de vez em quando, porque sabia que Benedetto queria
dizer alguma coisa, mas não se decidia a falar.
- Esta noite sonhei que me oferecias um ovo - disse ela.
- Devia oferecer-te cem, de chocolate e massa de amêndoa - respondeu ele.
- Dá azar, sonhar que o marido nos oferece um ovo - murmurou. - Quer dizer que nos vai dar um desgosto.
Benedetto esvaziou o prato sem fazer comentários.
- Mas tu não me vais dar nenhum desgosto, pois não?
- Já chega de superstições. Estamos no século xx e tu ainda acreditas nessas histórias - disse, irritado.
O menino acordou e começou a chorar. Teresa pegou nele ao colo, sentou-se na cama e embalou-o.
- Benedetto, já estou a ficar farta. Diz o que tens a dizer e vamos acabar com isto.
Como única resposta, Benedetto ajoelhou-se aos pés da mulher, abraçou-lhe os joelhos e começou a soluçar como um rapazinho desesperado.
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- Arranjaste uma amante - comentou Teresa, com um fio de voz. Não sabia de onde lhe tinham saído aquelas palavras mas, no momento em que as pronunciou, teve a certeza
de que eram verdadeiras.
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Ezio Burgio, o director das Destilarias de Santa Rosália, era siciliano como a marquesa Carolina Mortillaro, Castiglia de casamento. Tinha nascido no bairro pobre
da Zisa, em Palermo, e começara a trabalhar como moço de recados ao serviço do marquês Mortillaro, quando a destilaria era ainda uma pequena empresa artesanal. Tinha
dez anos e era um rapaz débil e mal alimentado, mas inteligente e voluntarioso.
De vez em quando, a jovem Carolina ia à destilaria com o pai, que lhe apresentou aquele rapazinho cheio de talento e vontade de trabalhar.
- Eu acho que, acima de tudo, ele tem necessidade de comer - observou ela, que tinha quinze anos, era uma flor a desabrochar e sobressaía pela cabeleira farta e
acobreada que lhe vinha da mãe, Isadora Fitzgerald, uma irlandesa que tinha chegado à Sicília em férias. Apaixonou-se pela ilha e pelo marquês e ali ficou para sempre.
O marquês Mortillaro acolheu o rapazinho em casa. Comia e dormia com a criadagem. Não foi preciso muito para que, com uma boa alimentação, o seu físico se transformasse.
Tornou-se um rapaz alto, robusto e forte. Trabalhava o dobro dos outros e aos quinze anos já tinha aprendido perfeitamente os processos da destilação e da venda
do elixir. De moço de recados transformou-se num colaborador precioso.
Às vezes cruzava-se com a jovem marquesa, que fora prometida ao príncipe da Calábria. Olhava-a como se fosse uma visão
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celeste. Adorava-a. A raiva e a determinação com que enfrentava o trabalho e a vida desvaneciam-se. Sentia-se fraco, indefeso, envergonhava-se pelo seu rosto sem
atractivos, balbuciava um cumprimento e fugia.
Foi ele quem convenceu o marquês a adquirir uma nova máquina, produzida na Alemanha, para engarrafar o elixir, e a desenhar uma nova etiqueta de cores vivas para
as garrafas. Explicou às operárias, que eram contra a mecanização porque temiam que isso as privasse de trabalho, o valor daquela novidade que aliviava o cansaço
e permitia uma maior produção e, portanto, novas admissões de pessoal. Teve a idéia de difundir o produto à escala nacional e de incrementar a produção, diversificando-a.
Ao elixir foram juntar-se outros licores.
Carolina casou-se e transferiu-se para Nápoles. Ele acalentou a idéia de implantar uma fábrica no continente e falou nisso ao marquês.
- É um grande investimento. Pode resultar num grande prejuízo - observou o patrão.
Ezio Burgio preparou um projecto que calculava os custos ao centésimo, incluindo a aquisição de novas máquinas e a ampliação da fábrica, uma rede de vendas adequada
e a propaganda comercial. Apresentou-lho. O marquês Mortillaro pensou que o amor pode criar empresas sublimes. Mas não fez nenhum comentário nesse sentido. Não sabia
nem queria saber o que existia entre aquele jovem empregado e Carolina, partindo do princípio de que alguma coisa existia entre eles. Mas sabia que Ezio Burgio queria
aquele estabelecimento em Nápoles para estar mais perto da filha. Aprovou o projecto, porque via nele condições para um grande sucesso. Nomeou-o director da nova
destilaria e garantiu-lhe um salário elevado. No seu testamento, entregou a Carolina a empresa da família. Quando morreu, Virgínia tinha pouco tempo de vida. Viu
a Pequena e comentou: - É muito parecida com o pai. - Carolina sussurrou: - Espero que seja tão boa e inteligente como ele.
Os anos passaram e Virgínia fez-se mulher. Era seguramente inteligente, mas aquele temperamento desconfiado e difícil não Permitia perceber se também era boa.
No dia a seguir a tê-la conhecido no palácio Castiglia, Benedetto apresentou-se ao director das destilarias.
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Demorou uma hora a chegar. Ficou impressionado com a imponência das instalações e com o cheiro acre que vinha do sector de rectificação do álcool. Mas ficou sobretudo
impressionado com o director, uma espécie de gigante de rosto quadrado, com um nariz imponente, bicudo. Era parecido com a princesa Virgínia.
- A menina Virgínia - começou o director - garantiu-me que és um bom mecânico. Vamos lá ver. Os turnos de trabalho são de doze horas, com um intervalo de meia hora
de quatro em quatro. O salário é duplo, relativamente aos que correm, mas não queremos operários sindicalizados. Quando um empregado tem alguma necessidade, vem
ter comigo e fala sobre o assunto. Arranjamos sempre uma solução. Ninguém é despedido, a não ser que esteja manchado por um erro grave. Se fizeres o teu trabalho,
vais sentir-te bem - concluiu. Depois confiou-o ao vice-director do estabelecimento para que lhe explicasse todas as fases do fabrico dos destilados.
À noite, quando regressou a casa, Benedetto contou tudo a Teresa.
- Se quiser manter o lugar, tenho de renunciar à luta política - anunciou.
- Já era tempo de o fazeres. Somos uma família e temos de pensar no Pinuccio - comentou ela.
- Sabes o que é que isso significa para mim? - perguntou Benedetto.
- Claro que sei. Significa que dás conta das tuas responsabilidades, que não vou ser obrigada a ir trabalhar e deixar o menino com outras pessoas, que vamos poder
pôr de parte algum dinheiro e que, de vez em quando, me podes levar ao cinematógrafo, que é uma coisa de que eu gosto muito. Isto quer dizer que a minha mãe, lá
em cima, nos está a ajudar e a proteger - disse ela, entusiasmada.
Benedetto não lhe disse que aquilo era o fim das suas esperanças num mundo melhor. Teresella sabia-o muito bem.
Ao fim de uma semana de trabalho, quando ia a sair da destilaria, à meia-noite, encontrou Virgínia à sua espera.
- Eu levo-te a casa - disse-lhe, saindo de um automóvel para ir ao seu encontro.
Benedetto sentiu-se envolvido por um forte perfume de jasmim.
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- Não é preciso, princesa - respondeu, retraído. Pensou que uma senhora de bem, àquela hora, deveria estar em casa, em vez de andar a passear com o chauffeur e a
provocar um pobre homem cansado ao fim de doze horas de trabalho e que só desejava regressar a casa.
- Desculpe. Estou cansado. Perdoe-me - acrescentou.
Ela agarrou-lhe um braço. Era uma pressão forte e doce. O perfume de Virgínia perturbou-o.
Foram parar a uma casa no porto, o escritório de Enrico Castiglia que, depois da sua morte, ninguém voltara a habitar nem ninguém se preocupara em desmanchar. Só
Virgínia se fechava ali, de vez em quando, em solidão. Remexia os papéis do irmão e estudava os desenhos.
Não sabia muito bem o que procurava, mas parecia-lhe que ali dentro poderia existir uma solução para o descontentamento que a atormentava. Naquela noite decidiu
levar um homem com ela.
"Que estou eu a fazer aqui", perguntava Benedetto a si próprio, enquanto Virgínia, que tinha já tirado o casaco, observava pela janela os navios no porto.
Pairava uma atmosfera inquietante naquela grande sala onde se espalhava o perfume de Virginia.
- O meu irmão morreu louco. Sabias? - disse ela.
- Por que é que me está a contar isso? - perguntou, encostando-se a ela.
- Se fôssemos filhos do mesmo pai, eu pensaria que também sou louca. - E continuou: - A loucura é hereditária. É terrível não saber quem é o nosso pai. Ou saber,
como no meu caso, e ter de fazer de conta que se ignora.
- Há coisas piores na vida.
- As inquietações da mente são tão graves como as do corpo - sentenciou ela.
- Nós, os pobres, não temos tempo para esse tipo de problemas. Para nós, já é um sucesso conseguir comer duas vezes por dia - replicou Benedetto.
Virgínia virou-se para ele e sorriu-lhe.
- Já me esquecia de que tenho à frente um defensor dos direitos do proletariado. A diferença entre nós não é tu seres homem e eu mulher, nem tu seres pobre e eu
rica. É que tu não me compreendes, enquanto eu te compreendo perfeitamente
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- afirmou Virginia. Aproximou o rosto do de Benedetto e beijou-o longamente, com paixão, vencendo-lhe as resistências.
Ele segurou-a pela cintura e deitou-a num divã. Amaram-se com o ardor e o desejo de quem faz amor pela primeira vez. Ele descobriu como Virginia era meiga, dócil,
envolvente, sublime. O perfume e o calor daquele corpo aturdiam-no.
Quando regressou a casa, Teresa estava sentada junto ao fogão a dar de mamar a Pinuccio. Uma vela, no centro da mesa, iluminava o quarto com uma luz ténue. Sobre
o fogão estava o macarrão para ele, ainda quente. Sentia-se no ar o habitual perfume de fraldas lavadas, estendidas a secar, e da lenha que ardia devagarinho.
- Gosto tanto de ti, Teresella - sussurrou, beijando-lhe os cabelos. Sentia-se culpado.
- Come, meu amor - disse ela. - E vai já dormir. Deves estar muito cansado.
Virginia adquiriu o hábito de ir ter com ele à meia-noite. Quando não a via, ficava preocupado. Não estava apaixonado, mas fascinado por aquela mulher estranha que
não tinha nada que partilhar com a sua vida. O escritório no porto tinha-se tornado o local daqueles encontros amorosos. De cada vez, Benedetto prometia a si próprio
acabar com aquela relação que o deixava pouco à vontade. E, de cada vez, adiava para outra altura. Com Virginia era duro, violento, como se quisesse descarregar
os seus sentimentos de culpa em cima dela. Vivia aquilo como uma obsessão de que era incapaz de se libertar.
- Mas o que queres tu de mim? - perguntava-lhe, às vezes, sacudindo-a com raiva.
Ela respondia com uma ironia doce: - Tu és um homem a sério, sem grandes complicações.
- Não é verdade, princesa. Tu trataste de me complicar a vida. Benedetto estava confuso. Tinha casado com Teresa porque a
amava. Tinha uma mulher bonita, honesta e simples. Virginia era exactamente o contrário. Mas por isso mesmo havia qualquer coisa de misterioso que o atraía. Debatia-se
entre as duas mulheres, sabendo que Teresa representava a solidez, enquanto a princesa desapareceria de um dia para o outro.
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- Se eu te garantisse uma renda para a Teresa e para o vosso filho, viverias comigo? - perguntou-lhe ela, uma noite.
- Tu não podes garantir nada a ninguém, nem a ti própria. Para ti, eu sou uma experiência de laboratório - constatou ele.
- Pensa nisso, Benedetto. Parece-me que te fiz uma proposta honesta - insistiu.
Agora, Teresa dissera-lhe simplesmente: "arranjaste uma amante". Ele gostaria de poder negar, mas isso seria um insulto à dignidade da mulher. Teresa não merecia
mentiras.
- Gosto muito de ti - repetiu.
- Deve ser uma mulher rica. Chegas sempre com o perfume dela, que é muito caro. É o mesmo que usa a princesa Virginia - observou Teresa com uma voz calma.
- Cala-te - ordenou-lhe. Deitou-se na cama com os olhos fixos no tecto.
- Porquê? Há várias semanas que morres de vontade de me confessar.
Pinuccio tinha voltado a adormecer e ela deitou-o nas duas cadeiras que lhe serviam de berço.
- É verdade - sussurrou o marido.
Teresa despiu-se, vestiu a camisa de noite e meteu-se na cama ao lado dele. - Meu pobre marido - murmurou com ternura. - Devia fazer-te uma cena de ciúmes, devia
cobrir-te de insultos. Não o vou fazer. A minha mãe fez muitas cenas ao meu pai, sempre que ele se entusiasmava com uma mulher. Não valeu de nada. Depois morreu.
Mas eu não vou morrer como ela. Tenciono viver por muito tempo, porque o nosso filho precisa de mim. Mas tu, Benedetto, arranjaste realmente um problema, e eu não
te posso ajudar. Não sei como é que vais resolver isso sozinho. E agora dorme, porque amanhã vais ter de recuperar as horas de trabalho que não fizeste hoje. Podem
despedir-te quando quiserem, sabias? Claro que sabias. Boa-noite, meu pobre marido - concluiu. Estendeu uma mão para fora do cobertor e pousou-a na cabeça do menino.
Benedetto foi acordado por um silêncio insólito. O quarto estava frio, a janela ainda fechada. Teresella não estava lá. Nem sequer Já estava o menino. O baú que
continha as roupas da mulher e de Pinuccio estava vazio.
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Em cima da mesa encontrou uma folha de caderno em que Teresa escrevera: "Querido Benedetto, já não és um bom marido, nem um bom pai para o Pinuccio, que agora é
só meu. Deixo-te e levo o Pinuccio comigo. Vou para a Áustria porque a princesa Josepha precisa de uma ama. Não quero voltar a ver-te. Fizeste-me muito mal ao coração".
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DE NÁPOLES A MERANO FEVEREIRO DE 1915
- Menina, enganou-se na carruagem. As de terceira classe são lá ao fundo - disse o revisor, que era um homenzinho magro com uns bigodes tão densos e grandes que
lhe tapavam o rosto.
- Olhe que eu sei ler - replicou Teresa com um olhar enérgico. - Aqui diz: primeira classe, Signora Zicri e filho - acrescentou, mostrando o bilhete de comboio e
o filho que tinha ao colo.
O homem dos bigodes olhou primeiro para o bilhete e depois para ela, com desconfiança.
- Tem algum documento de identidade? - perguntou.
- Eu depois mostro-lho. Agora ajude-me a subir para a carruagem - decidiu.
- Não, senhora. Tem de mo mostrar imediatamente - insistiu ele.
- Então segure aqui - disse, irritada, passando-lhe para os braços o menino, que começou a berrar. Abriu o saco em que tinha metido a roupa, encontrou um documento
e entregou-lho. - Verifique, e depois trate do meu saco. O que é que julga? Eu não sou nenhuma miserável.
Voltou a pegar no menino e entrou na carruagem. O revisor Seguiu-a, levando-lhe o saco.
- Desculpe, minha senhora - balbuciou enquanto abria a Porta do compartimento. Parecia uma salinha. Havia dois divãs de Veludo carmesim, com paninhos brancos de
renda nas costas
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e nos braços, um tapete vermelho, cortinas na janela e uma mesinha de madeira com uma garrafa de água fresca e copos. Teresa olhou à volta, intimidada.
- Pode instalar-se, minha senhora - disse o revisor. - O comboio parte daqui a um quarto de hora. Se precisar de alguma coisa, pode tocar esta campainha. O funcionário
de serviço tratará do que necessitar. - Fez uma espécie de vénia, saiu e fechou a porta.
Teresa quase não ousava sentar-se. Sentia-se deslocada naquela salinha tão confortável. Viu passar no corredor pessoas elegantes a conversar e esperou que nenhuma
delas fosse ocupar os outros lugares livres do compartimento. Já tinha problemas que lhe chegassem e não lhe apetecia enfrentar o sarcasmo e o desprezo daquelas
pessoas pela humildade da roupa que tinha vestida. Temia ainda que os vagidos de Pinuccio pudessem perturbar os outros passageiros. Se dependesse dela, teria viajado
em terceira classe. Mais do que isso, nem se teria metido a fazer aquela viagem. Não tinha nenhuma vontade de deixar a sua cidade para ir até tão longe, para um
sítio que não conhecia, no meio de gente que não falava a mesma língua que ela. Mas desta vez Benedetto tinha armado uma grande confusão. Tinha-a ferido e humilhado.
Agora, porém, perguntava a si própria se aquela fuga seria a melhor solução. A mãe nunca teria agido assim. Se ainda fosse viva, ter-lhe-ia dito: "Deixa lá, Teresella.
Acaba por lhe passar, e vai voltar para ti mais cedo do que tu pensas". Mas Rosa já não existia e ela estava a sofrer demasiado por causa daquela afronta. Estava
a fugir para longe de um homem que ela idealizara, considerando-o sincero, sólido, honesto e generoso. No entanto, Benedetto era exactamente como todos os outros
homens: infantil, fraco e egoísta. Durante semanas sufocou as suspeitas. Quando recebeu uma carta de Sofia a pedir-lhe para ir ter com ela à Áustria porque Josepha
não tinha leite suficiente para a menina, Teresa respondeu-lhe que não podia deixar o marido. Depois chegou uma carta de Josepha. "Tinhas-me dito que, se eu precisasse
de ti, me ajudarias - Agora a minha pequena Dorothea precisa do teu leite. Vem com o teu menino, por favor. Dou-te de comer e instalo-te da melhor maneira." Mandou
junto dinheiro e o bilhete de comboio.
Teresa não falou em nada com o marido, porque estava firmemente decidida a recusar o convite. Mas não sabia como
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havia de formular uma resposta cortês. Mais cedo ou mais tarde, acabariam por lhe vir à cabeça as palavras certas. Assim se passaram alguns dias e, naquela noite,
percebeu que tinha feito bem em adiar. Da estação mandou um telegrama para Merano a anunciar a sua chegada. Provavelmente, se não tivesse aquela possibilidade, não
teria partido. Mas tinha na gaveta da mesa a carta de Josepha, o bilhete de comboio e o dinheiro. Agiu por um impulso.
Naquele momento tocou o apito que anunciava a partida do longo comboio em direcção ao norte. Em Bello Fiore, o professor tinha-lhe mostrado um mapa geográfico da
Europa. Assim aprendeu que a Itália tinha o formato de uma bota, que era uma península estreita e comprida e que lá em cima, onde a bota se abria como um leque,
ficavam as fronteiras com outras nações: a França a oeste, a Suíça no meio e a Áustria a este. O sul do Tirol não era muito longe da fronteira com a Itália. Mas
ainda lhe faltava percorrer centenas de quilómetros. Chegaria a Merano no dia seguinte. Não tinha a certeza de que o pão e o queijo que trazia de casa fossem suficientes
para aquela longa viagem. No entanto, não soube o que responder ao empregado que se apresentou, dali a pouco tempo, para lhe perguntar se queria ir até ao vagão-restaurante,
onde iria ser servido o pequeno-almoço. Ela estava a dar de mamar ao menino, cobriu rapidamente o seio com o xaile e a primeira resposta que lhe veio à cabeça foi:
- Não preciso de nada, obrigada.
O comboio corria velozmente ao longo de campos desolados, bosques e prados. Embalava Pinuccio enquanto, através da janela, via passar algumas aldeias do outro lado
da linha férrea e outras empoleiradas no cimo dos montes.
Acariciava o menino enquanto o pensamento lhe fugia ao encontro de Benedetto, que estava com certeza desesperado por a ter Perdido. Desejou que a amante do perfume
caro não conseguisse consolá-lo, porque ele não merecia. Odiava-o profundamente por a ter obrigado a fugir. Amava-o porque era o único homem que conhecera, porque
lhe devia a ele o facto de ter aprendido a ler e a escrever, porque era o pai de Pinuccio e porque a tinha ensinado a acreditar num mundo melhor.
O menino começou a chorar e ela chorou com ele.
- As lágrimas fazem azedar o leite - disse o homem dos 'godés grandes ao chegar à porta daquele compartimento.
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E acrescentou: - A senhora tem de rir, porque isso é que faz bom sangue e bom leite. E também precisa de se alimentar. Eu já disse ao chef para lhe mandar aqui uma
refeição completa, e também vou arranjar maneira de não vir mais nenhum passageiro para este compartimento.
Foi uma viagem longa. O comboio parava nas estações de grandes cidades das quais Teresa não conhecia sequer o nome. Chegavam os carregadores com carrinhos puxados
à mão para trazerem ou levarem bagagens. Aos passageiros, que se debruçavam nas janelas, eram entregues jornais, almofadas e cestos de viagem. Parecia que o comboio
nunca mais voltava a andar. De repente ouvia-se um silvo agudo e a locomotiva punha-se de novo em movimento, devagar. Foi assim durante todo o dia e toda a noite.
Teresa ouvia passos ao longo do corredor, ordens que eram dadas, queixas de passageiros porque o compartimento estava demasiado frio ou demasiado quente. Pinuccio
chorava às vezes e, para o fazer calar, dava-lhe o peito. Era quase madrugada quando o revisor lhe anunciou que estavam a chegar à fronteira. O comboio iria ficar
ali parado durante uma hora e o pessoal italiano ia sair para dar lugar ao austríaco. Um guarda da fronteira quis ver o bilhete dela, assim como os documentos, e
depois, num italiano que se parecia muito com o de Josepha, disse-lhe que devia descer em Bozen. Nasceu daí uma pequena discussão, porque Teresa sabia que tinha
de descer em Bolzano. Por fim percebeu que Bozen era o nome alemão de Bolzano, onde encontraria alguém à espera dela.
Com efeito, ali estava Sofia, que foi ao seu encontro, a abraçou e lhe pôs um casaco sobre os ombros porque estava muito frio. Estava lá também um velho, vestido
de uma maneira cómica. Trazia uns calções de couro, uma jaqueta com botões de prata e um chapéu guarnecido com um penacho. Era Toni.
Entraram noutro comboio que tinha apenas duas carruagens: uma de primeira classe e uma de terceira.
- Daqui a duas horas estamos em casa - anunciou Sofia. - O comboio seguia ao longo da margem de um rio. Da janela, Teresa via passar pequenas casas de madeira escura
e tectos pontiagudos e, em cada estação, ouvia a voz retumbante de um ferroviário que anunciava nomes estranhos: Burgstall, Postal, Gargazon.
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A estação de Merano era minúscula. Havia uma caleche à espera deles. O cavalo comia aveia de dentro de um saco que tinha pendurado ao pescoço. Toni fez-lhe uma festa
no focinho, libertou-o do saco e soltou as rédeas. As mulheres subiram para a caleche enquanto Toni ocupou o lugar do cocheiro. O cavalo começou a andar e atravessaram
a cidade.
Teresa viu as montanhas cobertas de neve, as lojas cujos letreiros não conseguia ler e as pessoas que caminhavam pela rua vestidas de uma maneira estranha.
- O que vai ser de mim e do menino? - perguntou a si própria, em voz baixa. Sentia-se projectada para um mundo desconhecido.
- Vamos ter muito tempo para conversar - disse Sofia. - Não tinha insistido para vires se não tivesse a certeza de que esta era também uma boa solução para ti.
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MERANO - SCHLOSS RUNDEGG FEVEREIRO DE 1915
A notícia tinha chegado até Merano. A história da princesa Virgínia Castiglia e o operário Benedetto Zicri era conhecida de toda a gente, à excepção de Teresa.
Ezio Burgio, o director da destilaria, sentiu-se na obrigação de informar Carolina, porque aquela situação lhe parecia muito pouco conveniente.
Carolina encontrava-se com Burgio todas as semanas, quase sempre ao sábado de manhã, em Posillipo, na casa de dois andares onde morava há muitos anos. Descia-se
até lá por um pequeno jardim mantido com cuidado e cheio de flores. Por baixo da pérgola, que corria ao longo da fachada da casa, havia uma mesa redonda com um tampo
de mármore colorido e poltronas de vime onde a princesa se sentava, mesmo de Inverno, desde que houvesse um pouco de sol que a acariciasse.
Ezio ia ao encontro dela a meio do jardim, beijava-lhe a mão e conduzia-a através de um caminho de tijoleira até à pérgola. Os encontros de sábado de manhã eram
um ritual que se repetia há mais de vinte anos, desde o tempo em que Virgínia ainda era pequena e eles deixaram de se ver às escondidas. Mal acabavam de se sentar
à mesa, saíam de casa duas criadas, uma mais velha, que era a governanta e estava há trinta anos ao serviço de Ezio, e uma jovem, que era uma criada para todo o
serviço.
Traziam almofadas, bebidas frescas ou quentes, conforme a estação e, assim que entravam em casa, a princesa e o director
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começavam a conversar tranqüilamente. Falavam da empresa, da família, de investimentos e de política económica, e trocavam mexericos sobre as pessoas mais notáveis
da cidade.
Em Dezembro, pouco antes das festividades natalícias, Ezio revelou à princesa a nova relação de Virgínia.
- Temos um problema, Carolina - começou ele.
- E eu tenho de ser informada? - defendeu-se ela, à espera de evitar algum desgosto.
- Sim, uma vez que se trata da Virgínia - replicou Ezio. E contou-lhe a história com Benedetto Zicri.
- Eu segui-os. Vão para o porto, para o escritório do Enrico. É claro que foi ela quem o foi procurar. Ele é um bom operário. É inteligente e curioso, como eu era
na idade dele. Mas é também um bonito rapaz, ao contrário de mim. Eu até tinha considerado a possibilidade de o mandar tirar um curso de química. No trabalho, quando
aparece um elemento precioso, é sempre preciso ajudá-lo. Gostaria de investir nele, até porque é honesto.
- Despede-o - disse ela.
- Não ia adiantar. E tu sabes isso melhor do que eu.
- A Virgínia não se pode perder com um operário - protestou a princesa.
- E és tu quem me vem dizer isso?
- A culpa é minha. Sempre fui muito ciosa daquela rapariga. Tem fogo nas veias.
- Como nós, quando éramos novos.
- Como tu. Eu já estou sossegada há muito tempo - esclareceu ela.
- Eu também. Não te preocupes. Já passei os sessenta anos e, quando me deito, só preciso de dormir.
- Estamos a ficar velhos, Ezio - comentou Carolina, com um suspiro de resignação.
- Manda-a fazer uma viagem, e para longe - sugeriu o homem.
- E tu achas que eu a consigo manobrar assim com tanta facilidade?
- É ingovernável. Eu sei.
- Só nos resta esperar que se canse depressa, como já aconteceu com outros.
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- Isso não vai acontecer, porque ele foge dela. Acho que gosta muito da mulher - comentou Ezio.
- Não sabia que era casado - disse a princesa.
- Tinha-me esquecido de te dizer. A mulher é uma rapariga que esteve em vossa casa desde pequena. Ficou grávida e foi-se embora, como devia ser.
O rosto de Carolina iluminou-se.
- A pequena protégée da joséphine! - exclamou. - Chama-se Teresa. Teve um filho. E a Joséphine tem pouco leite. Vai ser imediatamente recambiada para a Áustria.
Se o marido gosta dela, vai segui-la - concluiu, com um suspiro de alívio.
Tinha pressa de regressar ao palácio. Precisava de telefonar imediatamente a Josepha para lhe anunciar a oportunidade de ter Teresella como ama, e para lhe dizer
que recebesse também o marido, se ele fosse ter com ela.
Quando Teresa fez a sua entrada no castelo, toda a gente a recebeu alegremente.
Tinha-lhe sido destinado um quarto na torre, que dividiria com Pinuccio e Dorothea.
No quarto de banho encontrou uma tina já cheia de água quente. O banho atenuou o cansaço daquela longa viagem e Sofia ajudou-a a lavar o cabelo.
- A nossa patroa, como sabes, gosta de limpeza. Tens de tomar banho todos os dias. E o Pinuccio também - informou.
Já havia roupa interior preparada para ela, assim como vestidos novos, muito diferentes da roupa a que estava habituada. Estava demasiado confusa e infeliz para
apreciar aquelas novidades tão agradáveis. A única consolação veio-lhe de Sofia, com quem podia falar a mesma língua e a quem contou, a soluçar, a traição do marido.
- O Benedetto merecia este castigo - comentou a criada, que lhe escondeu o facto de já saber de tudo. - Depressa vai perceber que errou e vem à tua procura.
- Tu não estás a perceber, Sofia, eu gosto dele, mas já não o estimo. Ainda que se viesse pôr à minha frente de joelhos, eu não Podia perdoar-lhe - disse, com amargura.
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- Dá tempo ao tempo. As coisas vão acabar por se compor - replicou Sofia sem acreditar nela, uma vez que Teresa, apesar de ser tão teimosa como a amante de Benedetto,
era generosa e sabia perdoar.
Entretanto, para a distrair da melancolia, deu-lhe instruções relativas às tarefas que tinha de desempenhar. Todos os dias tinha de dar banho às crianças, lavar
fraldas e camisolas e passá-las a ferro, manter o quarto limpo e arejado e fazer as camas, batendo as almofadas e virando os colchões.
- Não precisas de te preocupar com as refeições. O almoço e o jantar vão estar sempre prontos para ti. Assim como tu deves estar pronta para levar a menina Dorothea
à senhora sempre que ela te pedir. Ficas a saber que a menina é a luz dos olhos dela. Porta-te de acordo com isso - preveniu.
Chamavam-lhe Thea, tinha dois meses, e Teresa comparou-a com a estátua de cera de Nossa Senhora Menina que repousava num berço de ouro, embrulhada em seda e em rendas,
na igreja da Imaculada Conceição. Teve medo de pegar nela ao colo.
- Que linda que é! - sussurrou, enlevada.
- Espera até a ouvires berrar. E deve estar quase, porque tem muita fome - disse Josepha.
Tinha-a levado ao quarto dela e pegava-lhe ao colo, enquanto olhava em volta para verificar se estava tudo em ordem. A menina abriu a boquinha de lábios finos e
rosados, bocejou e começou a choramingar e a agitar os braços. Pinuccio, que dormia no berço, acordou e começou também a chorar.
Teresa agiu instintivamente. Pegou na menina, desapertou o corpete e ofereceu-lhe o seio. Depois sentou-se num banco e, com um pé, começou a abanar o berço do filho.
Calaram-se os dois. Josepha sorriu-lhe.
- Muito bem - comentou. E continuou: - Eu vou ficar aqui, à espera que a Thea acabe de mamar. Depois vamos pesá-la. - Indicou-lhe uma balança esmaltada de branco
que estava em cima de um armário. - Até agora, a menina nunca tomou mais de oitenta gramas de leite. O médico diz que devia tomar pelo menos o dobro. Vamos ver quanto
consegue mamar de ti.
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- Pesou-a quando Thea demonstrou que já estava satisfeita.
- Muito bem - repetiu a senhora. - Tomou cento e quarenta gramas.
- Que são menos vinte do que devia ser - desculpou-se Teresa.
Até àquele momento não fazia idéia de que era preciso pesar os bebés para saber quanto tinham comido.
- Assim está bem - decidiu Josepha. - Na próxima refeição há-de correr melhor. Já podes tratar do teu filho. Lembra-te que agora tens de alimentar dois meninos e
vais ter de comer muito.
- Sim, senhora - respondeu ela, intimidada.
- Passa-me a menina. Daqui a três horas trago-ta outra vez. Teresa pegou em Pinuccio ao colo e chorou. Parecia-lhe tê-lo
defraudado de uma parte de si.
- Pobre pequenino - sussurrou. - Sem pai e com meia mãe. O que vai ser de ti? - Consolou-a apenas o facto de o seu filho, finalmente, dormir num berço, em lugar
das duas cadeiras encostadas. Mas ela sentiu-se como um animal de leite arrancado do seu próprio estábulo e posto num pasto rico, mas estranho.
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Estava há cinco dias no castelo quando Benedetto chegou. - Está lá em baixo, na cozinha. Chegou ao meio-dia, quando tu estavas a descansar. A senhora não quis que
te incomodassem. Agora podes ir lá ter com ele.
Benedetto estava pálido. Tinha os olhos marcados pelo cansaço.
- Bom-dia, Teresa - disse-lhe, levantando-se do banco onde permanecera durante algumas horas.
Ela não conseguiu responder-lhe. Baixou a cabeça.
Petra disse qualquer coisa a Sofia em alemão, e ela traduziu: - Podem ir para o jardim, se quiserem.
Teresa embrulhou-se no xaile e avançou à frente dele, ao longo da alameda que ia até ao palheiro. Reparou nas botas cheias de lama, no casaco gasto e no chapéu amarrotado.
Pensou que devia ter feito uma viagem horrível. O sol desapareceu por detrás da montanha. Entraram no palheiro e Teresa convidou-o a sentar-se em cima de um tronco
de árvore, pronto para ser rachado e partido aos pedaços.
- O menino onde está? - perguntou ele, com uma voz cansada.
- Está lá em cima. - Teresa apontou para a torre do castelo. Benedetto viu uma luz ténue que vinha das duas janelas que
ficavam por baixo de um telhado alto e pontiagudo.
- Como é que vos tratam? - perguntou.
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Teresa não se deu ao trabalho de lhe responder.
- Como foi que chegaste aqui? - quis saber.
- Como todos aqueles que não têm um salvo-conduto. Depois da fronteira atravessei as montanhas a pé. Vim para te levar para casa - respondeu ele.
- Se te apanham, vais parar outra vez à cadeia - comentou Teresa. E logo depois atacou: - O que é que a outra tem de especial?
Finalmente conseguira formular a pergunta que a assaltava desde há dias. Benedetto era um homem leal, inteligente e corajoso, nunca poderia deixar a família por
uma mulher qualquer. Na sua imaginação, a outra era uma espécie de criatura divina que ela nunca seria capaz de enfrentar.
- Nada - sussurrou o marido.
Teresa levantou-se e olhou-o de alto a baixo.
- O que queres dizer com isso? - perguntou.
- Que não se parece contigo nem num cabelo. E uma mulher que não se parece contigo, para mim não é nada - explicou ele.
Não estava à espera da bofetada que o atingiu entre o olho e o ouvido, repentina e violenta. Perdeu o equilíbrio e, de sentado que estava, deu por si no chão, aturdido
e magoado.
- E tu destruíste a tua família por causa de uma mulher que não é nada? Então és mesmo idiota - disse Teresa com desprezo. E acrescentou: - Não voltes a vir ter
comigo. - Virou-se e foi-se embora. Mas apetecia-lhe refugiar-se nos braços daquele homem que amava e reconstruir a família. Gostaria de regressar àquele pequeno
quarto, por baixo de Castel dell'Ovo, ver por cima dela o céu da sua cidade e partilhar o leito com o marido.
Benedetto foi ao encontro dela, prendeu-a nos braços e beijou-a. Foi um beijo infinito, mais eloquente do que qualquer explicação.
- E agora, o que é que eu faço?
- Ouve apenas o teu coração, Teresella - disse ele.
- Tenho de ir ver os meninos. Vou pedir para te darem qualquer coisa de comer e um sítio para dormires. É isso que me diz o coração - murmurou.
Voltou ao castelo a correr. Josepha estava à espera dela no vestíbulo.
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- Anda, preciso de falar contigo - disse-lhe, abrindo a porta da saleta.
Teresa, que já estava inquieta, começou a tremer. Talvez tivessem denunciado Benedetto, ou alguém os tivesse visto quando se beijavam, e agora iam mandá-la embora.
- Está na hora da mamada - defendeu-se, sem se mexer da entrada da saleta.
- Eles esperam mais uns minutos. A Sofia está com eles - insistiu Josepha.
Teresa, vencida e resignada, entrou na sala.
- Sabes em que é que o teu marido se meteu ao entrar neste país sem autorização, não sabes? - começou a senhora.
Sem querer olhá-la nos olhos, Teresa fixou o pequeno alfinete redondo, feito com pequeninas folhas de ouro e cíclames de esmalte colorido, que fechava a orla da
camisa de organza de Josepha. Limitou-se a anuir.
- Eu já falei sobre o assunto com o coronel - continuou a senhora, referindo-se ao marido, que tinha sido promovido. - Está a tratar de resolver esta situação -
concluiu.
- Em que sentido? - perguntou Teresa, em voz baixa.
- Muito em breve vai ter todos os documentos em ordem. Poderá viver aqui, como cidadão estrangeiro. Vai ficar com o Toni, no quarto atrás do palheiro, e vai dar-lhe
uma mão. O Toni precisa de ajuda. Agora podes ir - despediu-a, a sorrir.
Teresa subiu as escadas a correr e entrou no quarto da torre onde Pinuccio e Dorothea berravam, porque tinham fome. Deu de mamar à menina primeiro. Depois passou-a
a Sofia e dedicou-se a Pinuccio.
- O papá voltou - sussurrou-lhe. - Amanhã vais vê-lo. Come, querido.
Nem Teresa nem Benedetto poderiam imaginar o papel que a princesa Carolina tinha desempenhado naquela nova situação em que se encontravam. Se Benedetto tivesse sido
preso na fronteira, provavelmente não o teria podido salvar. Mas, uma vez que conseguira chegar até Merano, empenhou-se para que ele ficasse ali, longe da filha,
durante o máximo de tempo possível.
Teresa levava sempre o menino com ela quando ia ter com o marido. Podiam encontrar-se uma vez por dia, antes do jantar.
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Trepavam para cima da palha, isolavam-se naquele imenso leito perfumado, conversavam, faziam festas ao menino e, se Pinuccio adormecia, faziam amor. Dia após dia,
Benedetto foi aprendendo com Toni o dialecto do sul do Tirol, enquanto Teresa se recusava a pronunciar uma única palavra naquela língua difícil.
- Eu sou só a ama. A única linguagem que as crianças conhecem é a do amor. Eu amo-os e alimento-os. Falo napolitano com eles e eles entendem-me perfeitamente - defendia-se.
Ao fim de anos de contestação, Benedetto reencontrou em Merano as suas origens camponesas. Rachava lenha, trabalhava a terra e tratava dos animais. Trabalhava do
nascer ao pôr-do-sol e fazia-o com alegria. Havia sempre para ele uma sopa quente e uma carne bem cozinhada. Também havia a guerra, mas ninguém parecia dar-se conta
disso, excepto as famílias cujos homens estavam a combater na frente. A vida, naquela pequena cidade, mantinha os ritmos habituais. O sol nascia e desaparecia, a
terra oferecia pasto e fruta, as vacas pariam e davam leite. As ausências do coronel Valeschi, no entanto, tornavam-se cada vez mais longas e Josepha estava muitas
vezes triste.
Ao fim de um mês de permanência no castelo, a senhora chamou Teresella à saleta. Entregou-lhe uma caixinha de veludo.
- Ama, é para ti - disse.
Teresa abriu-a e viu um fio e uns brincos de ouro e granadas.
- Para mim? - perguntou, espantada.
- A Thea engordou oitocentos gramas. Tens direito a este presente. Podes pô-los já, se quiseres - explicou Josepha. E prosseguiu: - Quando deixares de a amamentar,
para além do dinheiro que te toca, vais receber um alfinete de ouro e um anel.
Teresa não sabia como lhe agradecer. Corou de prazer e baixou os olhos. Em cima de um banco, ao lado do fogão, por cima dos jornais em língua alemã, estava um italiano
com um grande título: "A guerra está decidida e iminente. Trieste levanta-se, gritando: Morte ao imperador'".
- Já chegámos a isto - murmurou. - Se não houver um milagre, o meu marido vai ter de combater contra nós - sussurrou Josepha, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
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- Como é possível que os italianos se tenham virado contra a Áustria? - perguntou Teresa, e percebeu, naquele momento, que já não era hóspede de um país amigo.
Josepha sorriu-lhe tristemente.
- Nem todos os italianos pensam como tu. O meu marido vai para a guerra, e o teu também vai.
- Eu nunca vou ser sua inimiga, minha senhora - afirmou a ama.
- Eu também nunca vou poder considerar o meu marido como um inimigo. Mas as guerras não querem saber dos sentimentos.
- Eu não vou poder continuar aqui - sussurrou Teresa.
- Claro que vais. Não podes regressar a Nápoles com o menino. Iam ficar sozinhos, porque o teu marido já recebeu um convite para deixar este país. Foi chamado. Vai
combater - informou a senhora.
- Mas por quem? Para quê? - perguntou Teresa, desesperada.
- Não faças demasiadas perguntas, ama. Não adianta nada. Só temos de ter confiança.
- Em quê, minha senhora?
- Em Deus, na sorte, num milagre. De qualquer maneira, não podemos desesperar. Ainda não houve uma declaração de guerra. - Tentou consolá-la, apesar de saber que
aquelas palavras não significavam nada.
Naquele fim de tarde, no palheiro, Teresa e Benedetto não tiveram tempo para as efusões habituais.
- A senhora diz que, uma vez que ainda não houve uma declaração de guerra, pode ser que não aconteça nada. - Teresa agarrava-se àquela esperança.
- Teresella, não tenhas ilusões. De qualquer maneira, eu tenho de regressar a Itália.
- Eu sei. E quero ir contigo.
- Não. Aqui, mesmo estando sem mim, não te vai faltar nada. Em Nápoles ias estar completamente só.
- Os soldados têm licenças. De vez em quando podíamos encontrar-nos. Se eu ficar aqui, num país inimigo, nem sequer nos poderemos escrever.
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- Não vai ser durante muito tempo. A guerra já dura há um ano. Se nós, italianos, ajudarmos os franceses e os ingleses, as coisas poderão resolver-se em poucos meses.
- Tens a certeza?
- Ficam-te bem esses brincos - observou Benedetto, para não lhe responder.
Teresa tirou um e meteu-lho na mão.
- Leva-o contigo. Devolves-mo quando voltares.
- Juro que to trago - prometeu ele, abraçando-a.
No dia 24 de Maio as tropas italianas passaram a fronteira sobre o Piave. Benedetto Zicri seguia entre elas. O comandante era Lorenzo Valeschi.
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MERANO - SCHLOSS RUNDEGG AGOSTO DE 1915
Pinuccio fez nove meses. Thea fez sete. As duas crianças cresciam bem e requeriam atenções contínuas, que impediam as respectivas mães de se abandonarem demasiadas
vezes à preocupação pela sorte dos maridos.
Da frente chegavam poucas notícias. Os jornais publicavam informações confusas e contraditórias. Todos os dias parecia que a guerra estava prestes a terminar, a
favor de um ou de outro lado. Josepha e Teresa confiavam uma à outra as suas angústias.
- Somos milhões de mulheres, de mães, de irmãs ansiosas por causa dos nossos homens, sem distinção de país ou de condição social - disse Josepha -, mas a minha situação
é ainda mais terrível, porque o Lorenzo foi combater pelo país dele, contra o meu.
Teresa não compreendia a obstinação de Josepha em considerar-se uma súbdita austríaca. Afinal, estava casada com um italiano e a filha chamava-se Valeschi. Era italiana.
Por que razão não se decidia a estar só de uma parte? Não ousava, porém, exteriorizar estas considerações.
- Qual é a necessidade de se matarem uns aos outros, quando bastava juntarem-se, discutirem e chegarem a um acordo? - observou Teresa.
- Olha, ama - respondeu Josepha -, as soluções encontram-se sempre. Muitas vezes apresentam-se sozinhas. Mas, antes disso, toda a gente se quer impor pela força.
Emergem velhos rancores, vêm à tona questões por resolver e desencadeia-se a agressividade.
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Eu sei que o nosso imperador não queria a guerra, mas o rei da Prússia sim. Nem todos os italianos a queriam, mas muitos deles sim. E queria-a o czar, para recuperar
credibilidade no seio da sua gente, e a França, para equilibrar uma velha dívida para com a Áustria. E por aí fora. Um dia, dentro de alguns meses ou alguns anos,
a guerra vai acabar e os verdadeiros derrotados vão ser os soldados de todas as nações que morrerem. Deus queira que o teu marido e o meu não façam parte desse grupo.
Sofia apareceu a correr.
- Um telefonema para si, minha senhora - anunciou, aflita. Josepha precipitou-se para responder. Uma voz masculina que não conhecia disse-lhe para apanhar o comboio
do meio-dia.
- O chefe da estação tem um envelope para a senhora. Siga as
instruções - ordenou o interlocutor, que se expressava em alemão.
Ela levou as mãos à cara. Estava alarmada e confusa. Pensou no
marido. Perguntou a si própria se aquela ordem misteriosa poderia
ter alguma relação com ele.
- E o senhor, quem é?
A comunicação foi interrompida. Josepha saiu para o jardim e chamou Toni.
- Atrela o cavalo. Tens de me levar imediatamente à estação -
anunciou.
Depois abraçou a menina.
- Tenho de ir. Toma conta da Thea - recomendou a Teresa. Pegou no pequeno saco de viagem que tinha sempre pronto
para qualquer eventualidade. Subiu para a caleche. Chegou à estação quando faltavam poucos minutos para a partida do comboio para Bolzano. O chefe da estação viu-a
e foi ao encontro dela. Tirou o boné em sinal de respeito e entregou-lhe um envelope.
- Alguém o entregou ao maquinista que partiu de Bolzano com o comboio das oito. Era um militar. Recomendou que fosse entregue à senhora - explicou.
Josepha conhecia o chefe da estação desde pequena. Antes de o caminho-de-ferro ter chegado a Merano, tinha uma drogaria. Quando ia com a mãe à loja, ele abria um
grande boião de rebuçados de anis, ela enfiava a mão no frasco e tirava um.
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- Só um? - perguntava ele. Josepha tirava outro e dizia: "Danke, Herr Pretzel". A sua drogaria ainda existia. Era gerida pelos filhos.
- Danke, Herr Pretzel - disse, antes de entrar no comboio. Havia outros passageiros no compartimento. Conhecia-os de
vista. Cumprimentaram-se. Ela abriu o envelope.
"Hotel Greif" leu. Não dizia mais nada.
O Hotel Greif ficava na Piazza Walther, em Bolzano. Não sabia quem ia estar à espera dela, nem para quê. No entanto, era evidente que se tratava de um encontro com
alguém que tinha alguma coisa de importante para lhe dizer. Rezou para que fosse uma boa notícia.
A Piazza Walther ficava muito perto da estação. Assim que desceu do comboio, percorreu a rua quase a correr. Quando ia a aproximar-se do porteiro do hotel, ouviu
chamar o seu nome. Virou-se. Viu um jovem militar que se pôs em sentido.
- Tenha a bondade de me seguir - disse-lhe.
Havia um automóvel estacionado. O jovem abriu a porta traseira.
- Faça o favor de entrar, minha senhora - convidou. Josepha inclinou-se para olhar para dentro do carro.
- Heini! - exclamou.
- Entra. Temos de ir embora - ordenou ele.
- Um momento. Explica-me o que se passa - disse ela, sem se decidir a entrar no carro.
O barão Heinrich von Wedel estava vestido como um homem da montanha: camisa de algodão escocês, calções de couro, sapatos pesados e chapéu com penacho.
- Entra. Depois explico-te - repetiu o jovem.
O militar voltou a fechar a porta, sentou-se ao volante e o carro arrancou, seguindo a estrada que percorria o vale do Ádige.
- Tenho de te levar à fronteira italiana - revelou o amigo.
- Mas é impossível - objectou ela.
As fronteiras tinham sido fechadas a 23 de Maio. Ela já não podia entrar em Itália, assim como nenhum italiano podia entrar em território austríaco.
- O teu marido quer ver-te. Nada é impossível a um homem aPaixonado.
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- E o que tens tu a ver com isto tudo? Combatem os dois em frentes opostas - tentou perceber.
- Não te posso dizer como nem porquê nos encontrámos há três dias. Pediu-me para te levar até ele. A amizade não quer saber da guerra. Arrisco-me a ser julgado em
tribunal marcial, porque inventei uma série de mentiras para te vir buscar. Mas é uma questão de honra. Prometi-lhe.
Josepha não sabia se havia de rir ou de chorar. Ao longo da estrada que serpenteava no fundo do vale havia movimento de tropas austríacas e alemãs. Mas havia também
carroças de camponeses cheias de feno e, no sopé das montanhas, os pomares estavam tratados como de costume.
- Como está a tua noiva? - perguntou ela.
- Há meses que não a vejo. Escrevemo-nos.
- Achas que a guerra vai acabar depressa?
- Não, infelizmente. No Isonzo acaba de começar. E é horrível, a maneira como os nossos conseguem matar os italianos. Mandaram-nos para a frente sem armas, ou quase.
Às vezes não disparamos contra eles por piedade - revelou, com amargura. O sol punha-se já quando avistaram do alto a extensão do lago
de Garda.
O automóvel abrandou, deixou a estrada principal e meteu por uma pequena estrada secundária que entrava num bosque.
- Pára aqui - disse Heini ao intendente.
- O que vamos fazer? - perguntou ela.
- Vamos esperar que fique escuro, e depois descemos a pé até
ao lago.
O intendente tirou da mala do carro um grande cesto de piquenique. Beberam chá quente e comeram pão com toucinho, enquanto esperavam que anoitecesse. Depois vestiram
camisolas e começaram a descer em direcção ao lago. Não havia luzes. Só a lua que, ao reflectir-se na água, desenhava sulcos de prata. Sentaram-Se na margem pedregosa.
Chegou, silencioso, um barco a remos.
- Vai - disse Heini.
- Onde? - perguntou ela.
- O barqueiro sabe onde deve levar-te. Espero aqui por ti até às quatro. Se a essa hora não tiveres voltado, terei de ir embora de qualquer maneira.
- Cá estarei - prometeu, e abraçou-o. Depois agarrou a mão do barqueiro, que a ajudou a subir.
Aquele pequeno barco largo e raso deslizava sem ruído à superfície da água. Uma nuvem cobriu a lua. O homem remou durante um tempo que a Josepha pareceu infinito.
Finalmente, chegaram à margem.
- Fico aqui à sua espera, minha senhora - disse o barqueiro. - Às três e meia - precisou. Começou a chover. Ela subiu para um pequeno pontão oscilante. Lorenzo estava
ali para a receber. Escondeu-se entre os braços do marido e começou a soluçar.
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- Isto é o máximo que te posso oferecer - disse Lorenzo. Estavam numa espécie de herdade por detrás de um penhasco. Cheirava a lenha queimada e a toucinho rançoso.
O candeeiro a petróleo iluminava a sala onde havia uma mesa, algumas cadeiras de palhinha, um armário, uma lareira apagada, uma prateleira onde estavam algumas panelas
e roupas penduradas em pregos ao longo das paredes enegrecidas.
- Onde estamos? - perguntou Josepha.
- Entre Torbole e Malcesine. Estamos em Itália. Não estamos sós. Esta é a casa do barqueiro, e a família dele está lá em cima. Estão a dormir. Pelo menos, espero
- explicou Lorenzo. Puxou uma cadeira para ela e outra para ele, do outro lado da mesa.
- Fizeste uma loucura - disse ela.
- Pequena - precisou o marido. - A loucura maior foste tu que a fizeste, com a tua obstinação. Se há dois meses tivesses vindo para Itália, não estaríamos reduzidos
a isto.
Era uma censura que ela aguentou, baixando os olhos sem replicar. Teria podido dizer-lhe que, um ano atrás, na noite de núpcias, ela lhe implorara que deixasse o
exército. Por isso tinham discutido. Se Lorenzo se tivesse decidido a trabalhar com o pai, não teria sequer sido chamado para combater. Ter-se-iam estabelecido em
Milão, com a pequena Thea. Mas não disse nada. Aquele momento não era para falar disso.
Lorenzo acariciou-lhe uma mão.
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- Como está a menina? - perguntou-lhe.
- Está a crescer bem e agora já tenta gatinhar. Diz "Apu" e ri-se.
- E o que quer dizer "Apu"?
- É um segredo que para já não quer revelar - disse ela, e acrescentou: - Como estás?
- Já conheci melhores momentos. Às vezes, é como se não conseguisse respirar. Faltas-me tu e sinto-me sufocar.
- Como é que estão a correr as coisas na frente?
- Um desastre. Entre Junho e Julho morreram mais de cem mil dos nossos. Estas notícias não as lês nos jornais, que só falam do nosso avanço inexorável que, na realidade,
é de poucos quilómetros - desabafou Lorenzo.
Josepha levantou-se, aproximou-se do marido, abraçou-o pelos ombros e beijou-lhe os cabelos com ternura. Estavam ásperos.
- Não te quero perder - sussurrou.
Ele virou-se, agarrou-a pela cintura e fê-la sentar-se sobre os seus joelhos. Beijou-a durante muito tempo.
- Apetece-me fazer amor - disse em voz baixa.
- Vamos sair desta sala - propôs ela.
A noite estava escura. Não havia estrelas. Para lá do prado, em frente à herdade, estava estacionado o pequeno camião do exército em que Lorenzo viera até ali.
Entraram. Ele estendeu um cobertor sobre o banco traseiro.
- Não são propriamente umas instalações luxuosas - desculpou-se o marido.
- Estou muito feliz por estar contigo - replicou ela, comovida.
- Josepha, amo-te como nunca poderia amar mais ninguém - murmurou, acariciando-a.
Entrou nela com toda a doçura de que foi capaz.
Choraram e riram juntos. Durante escassos momentos, esqueceram a guerra, o facto de pertencerem a dois povos inimigos, a angústia de um futuro imprevisível. Eram
apenas um homem e uma Mulher apaixonados.
- Nunca mais me deixes - suplicou Lorenzo. - Não voltes a Merano.
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- E a menina? Não pensas nela? - A pergunta era uma chamada de atenção também para si própria. Nos braços do marido esquecera a pequena Thea.
Ele acendeu um fósforo e olhou para o relógio.
- Tenho de te levar de volta ao pontão - disse. Começaram a andar debaixo de chuva. Viram a silhueta escura
do barqueiro, que os esperava abrigado por um coberto de madeira. Lorenzo meteu a mão no bolso do casaco e tirou de lá um envelope dobrado. Entregou-lho.
- O que é? - perguntou Josepha.
- É uma rosa selvagem. Cresceu, sabe Deus como, no meio das pedras do rio. Apanhei-a para ti.
- Quando te volto a ver? - perguntou, abraçando-o. "Da próxima vez" pensou "trago a menina comigo e ficamos juntos, nunca mais regresso à Áustria." Era um tormento,
ter de o deixar e enfrentar as extenuantes esperas de notícias.
- A sorte protege os inconscientes, como nós - respondeu ele, ajudando-a a subir para o barco.
- Quando te volto a ver? - repetiu.
- Não faço idéia. Desta vez foi o Heini quem nos ajudou. Da próxima vez vai depender do acaso.
- Arranja maneira de o senhor Acaso nos dar uma ajuda -
recomendou ela.
Lorenzo deu dinheiro ao barqueiro. Depois ficou ali, no pontão, a olhar para Josepha, que se afastava no barco.
Heini esperava-a na pequena praia pedregosa. A chuva parara e havia luar outra vez.
- Vamos embora daqui, depressa - disse ele, nervoso, quando ela chegou.
- O que foi que aconteceu? - perguntou ela.
- Os nossos estão irrequietos. Andam a patrulhar a zona. Entraram no automóvel e o condutor saiu do bosque com os
faróis apagados. Só os acendeu quando já estavam na estrada do
Ádige.
- Tenho uma dívida muito grande para contigo - afirmou Josepha.
- Quando a guerra acabar, havemos de arranjar uma maneira
de saldar as contas - brincou ele.
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Já estavam na Áustria e Heini sentia-se mais seguro. - Vou levar-te a Bolzano. Depois continuo por Vai Passiria. Entrega esta carta a Irmgard antes de voltares a
Merano - disse, entregando-lhe um envelope.
- Não conseguiste vê-la por minha culpa. Lamento muito - desculpou-se ela.
Havia movimento de tropas ao longo do percurso. Ninguém se preocupou com eles.
- Olha para aquilo. Parecem todos doidos. Eu não sei o que é que está a acontecer. Esta guerra que se trava em tantas frentes, da Rússia ao Atlântico, tem em si
qualquer coisa de tenebroso. Já tentei inutilmente encontrar uma explicação para tudo isto. Só me resta uma única certeza: a amizade. Por isso, não te sintas em
dívida para comigo - afirmou ele.
Quando Josepha chegou ao castelo, já era dia. Do jardim chegavam as vozes da ama, de Sofia e das crianças. Toni transportava para a cozinha um balde de leite acabado
de tirar. Klara batia um tapete na varanda. Petra foi ao encontro dela com uma expressão carregada.
- Pode saber-se onde é que foi? - perguntou. - Estávamos todos preocupados. O chefe da estação viu-a partir para Bolzano. Ontem, é claro. E depois? O que eu digo
é que está a ficar tola - censurou.
Josepha nem a ouvia. Dez horas antes estava nos braços do marido. Agora, no relvado, a sua menina estendia na sua direcção os braços pequeninos e soltava gritos
de alegria.
Josepha pegou nela, apertou-a contra si e sussurrou: - Fui ter com o teu papá. É um segredo só entre nós as duas.
Thea olhou-a a sorrir e disse: - Apu.
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MERANO - SCHLOSS RUNDEGG NOVEMBRO DE 1918
Inclinada sobre o lavatório, com a ajuda de Sofia, Josepha lavava o cabelo com algumas lascas de sabão.
Era um período difícil. Não se arranjava carvão e a lenha para queimar escasseava. A electricidade faltava muitas vezes e o telefone funcionava aos soluços. Não
havia farinha, o açúcar era uma raridade. Cevada, batatas e couves chegavam ao mercado a conta-gotas e desapareciam imediatamente.
Os militares que circulavam pelos vales saqueavam tudo. Alguns camponeses, desesperados, obrigavam-nos a fugir debaixo de tiros de espingarda. Mas eles eram como
as formigas: expulsos por um lado, voltavam a aparecer do outro.
No castelo Rundegg, Josepha conseguia ainda distribuir pelos pobres leite, ovos e alguma fruta.
Sofia não aprovava aquela generosidade e dizia-lho. Agora, enquanto lhe deitava água no cabelo, aproveitou para recomendar mais uma vez que não oferecesse as poucas
provisões de que dispunha. - A fome é igual para todos - respondeu Josepha.
Sofia não ousou insistir. Esfregou-lhe energicamente o cabelo com uma toalha, para o enxugar.
Depois, ajudou-a a pentear-se e a vestir-se. Josepha viu-se ao espelho.
- Estou a envelhecer - disse, dirigindo-se a Sofia.
- Mas o que é que a senhora está a dizer? Ainda só tem vinte e Cinco anos. O que hei-de dizer eu, que já tenho quarenta e cinco?
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Josepha não respondeu. Não lhe apetecia explicar-lhe que não se referia à passagem do tempo, mas ao cansaço de viver e ao desmoronamento de tantas ilusões.
Era o mês de Novembro de 1918. A guerra tinha acabado e os italianos saíram dela vencedores. Os austríacos estavam de tal maneira exaustos que não se importavam
de ter perdido a guerra.
Josepha via à sua volta um mundo destruído. Os valores em que sempre acreditara já não existiam.
A velha Petra tinha morrido no ano anterior, no fim de Outubro, deixando um grande vazio naquele coração já dilacerado de ansiedade por Lorenzo.
Naqueles três anos de guerra, durante os quais as fronteiras entre a Itália e a Áustria se deslocavam continuamente para cima e para baixo em poucas centenas de
metros, tinha conseguido encontrá-lo várias vezes, assim como receber e enviar cartas.
Numa destas, logo a seguir à derrota de Caporetto, o marido escreveu-lhe: "A nossa retirada não foi um acto de cobardia, mas sim a ruína de um exército posto de
rastos por uma disciplina absurda".
Naqueles últimos meses de 1918, os jornais publicaram notícias muitas vezes contraditórias. Espalharam-se vozes completamente infundadas. Dizia-se também que todo
o sul do Tirol tinha sido devastado. Felizmente não era assim. Sobretudo em Merano, a atmosfera era relativamente tranqüila, apesar de faltar comida para os civis,
para as tropas em retirada e para os prisioneiros de todas as nacionalidades, sobretudo russos, que andavam esfomeados e desorientados.
Josepha estava a arrumar o quarto dela e estremeceu. Uma rabanada de vento repentina fechou as portadas de madeira das janelas. Tentou segurar a portada com o gancho,
mas a força do vento impediu-a. A porta abriu-se e apareceu Thea.
- Servus, Mutti - disse.
- Servus, Thea - respondeu Josepha, inclinando-se sobre ela para a beijar.
Quando via a filha, a angústia dissolvia-se em ternura. A menina tinha quase quatro anos, e os olhos sorridentes eram os de Lorenzo. A pele, de uma brancura quase
transparente, era dos Paravicini. Josepha, como todas as mães, não conseguia ser imparcial em relação a ela e considerava-a particularmente inteligente.
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- A ama diz que o pequeno-almoço está pronto - anunciou.
- Então vamos depressa para baixo, antes que arrefeça - decidiu Josepha, dando a mão à menina.
A mesa da saleta estava posta com o cuidado de sempre: uma toalha de linho cru com as orlas bordadas, os pratos e as chávenas de porcelana, os talheres de prata,
a cafeteira de leite e a da cevada. O café verdadeiro, assim como o chá, tinham desaparecido daquela mesa há algum tempo, tal como da mesa de todas as outras famílias.
Mas ainda havia o pão cozido no forno da casa, a compota de frutos silvestres, o mel produzido pelas suas abelhas e a manteiga que a ama preparava com a batedeira.
Mãe e filha comiam sempre sós. Normalmente, era Sofia quem servia as refeições, enquanto a ama se ocupava da cozinha. Desde que Petra morrera, Klara sentava-se habitualmente
ao lado do fogão, numa cadeirinha forrada de veludo vermelho, e dava ordens, conselhos e sugestões à jovem napolitana. Thea sentou-se à mesa ao lado da mãe. O vento
infiltrava-se, assobiando, pelas frestas das janelas.
- Mutti, de onde vem o vento? - perguntou a menina, enquanto mergulhava no leite um pedaço de pão com manteiga.
- Este vem do norte. Sentes como é gelado?
- Parece que tem alfinetes dentro - observou Thea. - Para que serve o vento? - perguntou.
- Para limpar os telhados e despir as árvores - explicou pacientemente a mãe, indicando-lhe, para lá dos vidros, os redemoinhos de pó e de folhas que o vento criava.
- Mas este vento é fortíssimo. Parece zangado. Não gosto dele - afirmou Thea.
- Eu também não gosto dele. Mas vai passar - disse, para a acalmar.
A menina pousou a chávena de leite, juntou as mãos e, baixando os olhos, sussurrou: - Oh, Signore, facite buon tempo, quanto busca denari papá. Poi accattammo nu
ciucciariello e mettimmo a cavallo mammà*.
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Josepha olhou para ela, divertida.
- O que é que estás a dizer?
- É uma oração para fazer parar o vento. Foi a ama que me ensinou. Vai funcionar, vais ver. A ama sabe muitas coisas mágicas - explicou.
- A ama é mais astuta que uma raposa, mas não era pior se tu aprendesses a falar também alemão, para além do dialecto napolitano. E agora agasalha-te bem e vai ao
jardim com o Pinuccio. Schnell(2) - recomendou-lhe, enquanto começava a levantar a mesa.
- Primeiro posso ir ver a Klara? - perguntou a pequena. Klara estava de cama havia já alguns dias, atacada por uma
bronquite incomodativa. O médico, que viera vê-la, aconselhou a aplicação de emplastros de linhaça e mostarda no peito, para dissolver o catarro. Thea foi encontrá-la
encolhida por baixo do edredão, com a cabeça tapada por um gorro de lã. Estava a tremer. Foi até junto dela e fez-lhe uma festa na face.
- Por que é que estás a tremer?
- Não sentes o velho? Mete-me tanto medo - disse a mulher.
- Bernhardus? - sussurrou a pequena.
- Ele mesmo. Está lá fora a ulular como um demónio. Mau sinal, Thea, quando o velho se zanga assim.
A menina sabia que Klara tinha medo do conde Bernhardus, mas a mãe tinha-lhe explicado que era só sugestão.
- Eu fiz uma oração para fazer parar o vento. Assim, o conde também se vai acalmar. Agora dorme. Eu tenho de ir brincar -disse ela. Enquanto descia as escadas, ouviu
o toque insistente do telefone. Não se importou. Pôs em cima dos ombros a manta de lã e saiu, enquanto Josepha atendia a chamada. Pinuccio estava a brincar com os
cães, um perdigueiro e um são-bernardo, que deixaram imediatamente de correr atrás dele assim que viram Thea. O são-bernardo atirou-se a ela a ganir para a saudar
e o perdigueiro começou a abanar a cauda com muita força, a ladrar, para captar a sua atenção.
Willy saiu do estábulo e acalmou os cães. Era um jovem que tinha chegado ao castelo por acaso e ali tinha ficado.
*2. "Depressa", em alemão. (N. da T.)
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Substituíra o velho Toni, que havia mais de um ano se recolhera no lar de terceira idade em Maia Bassa. Josepha ia visitá-lo todas as semanas e levava-lhe roupa
limpa e comida. Toni agradecia-lhe, comovido até às lágrimas, e depois dizia: - Não perca tempo comigo. Tem muito que fazer, no castelo.
Os cães e as crianças acalmaram porque Willy não desistia tão facilmente como o velho Toni. Pinuccio e Thea temiam-no. Era um jovem silencioso. Nunca sorria e não
temia o calor nem o frio. Ainda agora, apesar do vento gelado que soprava no vale, vestia umas calças de couro e uma camisa de flanela. Levantava-se antes de o sol
nascer e trabalhava todo o dia sem descanso. Às vezes ia até às montanhas e regressava com o cesto cheio de cogumelos, bagas, raízes de arnica e ervas medicinais
com que tratava de si próprio, dos animais e das plantas. Não falava o dialecto local, mas uma linguagem com inflexões estranhas.
- Quanto a mim, é um desertor do exército russo - sussurrava Josepha.
Não tinha documentos e declarava que nunca tivera. Não queria sequer ser pago.
- Willy não quer dinheiro. Só palha para dormir e pão para comer - dizia. Quando regressava dos seus passeios pelas montanhas, entregava a Josepha aquilo que tinha
colhido. Ela agradecia-lhe, e então o seu olhar profundo ficava mais doce e, corando, oferecia-lhe um sorriso infantil.
- Vou apanhar flores para o meu papá - decidiu Thea, inclinando-se sobre um grande tufo de íris que floria entre Novembro e Fevereiro.
- Eu também - imitou Pinuccio.
Na sala de visitas, por cima do piano, e no quarto de Josepha havia fotografias de Lorenzo. Thea, seguindo os ensinamentos maternos, apanhava flores que punha ao
lado dos retratos daquele homem sorridente, de bigode brilhante e farda de militar, que ela não conhecia mas que sabia ser o pai.
Também Pinuccio não se lembrava do pai e Teresa não tinha fotografias para lhe mostrar. No entanto, se Thea decidira apanhar flores para o pai, ele faria a mesma
coisa. Pinuccio imitava-a em tudo e ela obrigava-o a fazer tudo aquilo que queria. Exercia sobre aquele irmão de leite uma espécie
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de tirania que Josepha não aprovava, mas que na verdade tornava feliz o filho da ama.
- Há urze branca, ali ao fundo. Vai apanhar - ordenou Thea, com um ar magnânimo.
Regressaram a casa com os ramos de flores.
- O meu é mais bonito - disse Thea.
- O meu é maior - disse Pinuccio, como consolação. Josepha estava no vestíbulo a falar ao telefone. Ou melhor, a
gritar.
- Não ouço nada. Este telefone danado não parou de tocar durante toda a manhã e eu só ouço ruídos.
Estava zangada. As crianças sentaram-se, compungidas, no primeiro degrau da escada. Ela não se apercebeu da presença delas. Pousou o auscultador e um novo toque
quebrou o silêncio.
- Está! - repetiu.
Finalmente chegou até ela, bem nítida, uma voz conhecida.
- Querida, já vou ao teu encontro - anunciou Lorenzo. O rosto de Josepha iluminou-se.
- Lorenzo! És mesmo tu? Estás bem? Diz mais qualquer coisa, por favor.
- Está tudo bem, Josepha. Eu também estou a ouvir muito mal. O burgomestre explica-te. Espera por mim esta noite - disse ele. Depois a chamada caiu.
Ela enfiou outra vez o auscultador no gancho e só então notou a presença da filha e de Pinuccio.
- O teu pai voltou da guerra - sussurrou, com os olhos cheios de lágrimas.
- E o meu? - perguntou Pinuccio.
- Também vai voltar - tranqüilizou-o, abraçando-os aos dois.
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Pinuccio parecia desiludido. Libertou-se dos braços de Josepha e foi a correr pelas escadas acima, a chamar pela mãe. Thea não disse nada.
- Não estás feliz, minha filha? - perguntou Josepha, que chorava com a alegria de voltar a ver o marido.
- Por que é que o papá vai voltar? - perguntou, curiosa.
- Porque a guerra acabou e os soldados voltam para casa. O teu pai é um soldado, bem sabes.
- E aqueles que morreram também voltam? - quis saber. Tinha uma amiguinha que vivia num castelo próximo. O pai dela tinha morrido em combate.
- Esses não, infelizmente - respondeu Josepha. - Mas o teu vai estar aqui esta noite. E vai poder finalmente ver-te e abraçar-te, como eu estou a fazer.
- E também te vai abraçar a ti? - perguntou.
- Claro que vai. Estou muito feliz por ti e por mim. O papá é um homem maravilhoso e eu amo-o infinitamente - disse. E continuou: - Tenho de ir ter com o burgomestre.
Mas primeiro quero enfeitar o castelo para festejar este regresso.
Josepha chamou Sofia que, da cozinha, tinha ouvido tudo, mas esperava que a chamassem.
Naquela manhã tinha descido cedo até à cidade. Havia uma grande agitação pelas ruas. Alguém distribuía panfletos, assinados Pelo burgomestre, que anunciavam a chegada
dos italianos. Carros e camiões eram empurrados ao longo da margem
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do Passirio. Armas e canhões eram lançados abaixo das pontes.
Tentando o mais possível não se fazer notar, Sofia regressou rapidamente ao castelo. Em Schloss Rundegg, protegido por muros altos a toda a volta, sentia-se a salvo.
De qualquer modo, tinha-se assustado, e recomendou a Willy que estivesse atento.
Agora, ao ouvir dizer que o coronel Valeschi estava a chegar, sentiu-se mais tranqüila.
- O baú dos enfeites está no sótão. Temos de dar um ar de festa à entrada e à saleta. Traz tudo para baixo - ordenou Josepha.
Tentou telefonar para o município, mas a linha estava outra vez cortada. Não sabia por que razão Lorenzo lhe pedira para entrar em contacto com Herr Grossmann, mas
não duvidava de que deveria haver uma razão válida. Seria obrigada a descer até à cidade, se não conseguisse falar com ele.
- Ama! - berrou.
Estava agitada e tinha pressa de deixar as ordens. Teresa apresentou-se com os olhos vermelhos de chorar.
- Pode dizer, minha senhora - disse.
- Tens de tratar da cozinha. Prepara legumes, anho estufado e torta de maçã. O coronel Valeschi chega esta noite. - Deu as informações todas de um só fôlego. Depois
apercebeu-se de que a rapariga estava a sofrer. - O teu marido também vai voltar, vais ver. Se lhe tivesse acontecido alguma coisa, já sabias - disse, para tentar
animá-la.
- Como? Não sei mais nada dele, desde que partiu para a frente.
- As más notícias chegam depressa. O Benedetto vai voltar em breve. Não te preocupes. Entretanto, contenta-te em pensar que os meus perderam a guerra e os teus a
ganharam. Apesar de estarmos todos na mesma alhada, como tu dizes.
- É um remédio muito amargo - murmurou Teresa.
- Temos de o engolir, quer gostemos quer não - concluiu. E acrescentou: - Tenho de me arranjar para sair. Trata dos meninos.
Olhou em volta, à procura da filha.
- Onde está a menina? Ainda agora aqui estava.
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Teresa encontrou-a na cozinha. Recomendou-lhe que se portasse bem, enfiou um avental e começou a atarefar-se à volta do fogão.
- Oh, meu Deus, suplico-vos, devolvei-me o meu marido. Eu depois não peço mais nada - rogou, enquanto pegava numa frigideira.
Thea saiu silenciosamente da sala e subiu as escadas até à torre. Entrou no quarto, empurrou um banco para junto de uma janela, pôs-se em cima dele e ficou ali,
por trás dos vidros, a olhar o céu.
O vento tinha acalmado e brilhava um tímido sol invernal. Sobre o cume recortado do monte San Zeno viu uma águia. Planava lentamente em grandes círculos, em direcção
a um bosque de abetos.
- Der Adler fãngt keine Mucken - sussurrou, repetindo uma expressão da mãe. A águia não apanha insectos. Talvez tivesse investido contra um carneiro.
Willy, ao fundo do jardim, rachava lenha.
Viu a mãe, que seguia ao longo da alameda, quase a correr.
- Schnell, schnell - disse Thea, enfadada. Nem sequer lhe pedira que a acompanhasse. Detestou-a. Voltou a olhar para o fundo do jardim. Willy já lá não estava. Viu-o
seguir a mãe, de longe, como um cão de guarda. Caminhava com um andar leve e hesitante. De vez em quando virava-se para olhar para trás.
Thea desceu do banco, esgueirou-se para fora do quarto e foi ao quarto de Klara.
A criada estava a vestir-se.
- Estás a ver, Klara? A minha fórmula mágica acalmou o vento - anunciou, satisfeita.
- Fizeste bem - agradeceu Klara, que tinha vestido uma saia preta apertada na cinta. - Chega-me aquele casaco - pediu à menina, indicando um casaquinho preto, de
lã, cuidadosamente dobrado e pousado sobre a cabeceira da cama. Thea entregou-lho e quis ajudá-la a apertar os grandes botões de prata que o fechavam até ao pescoço.
A velha calçou umas pantufas de feltro, tirou a touca e penteou o cabelo.
Depois instalou-se numa pequena cadeira aos pés da cama. - Vai lá abaixo buscar o jornal - pediu-lhe.
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Todas as manhãs, o carteiro entregava no castelo o jornal diário da cidade, o Meraner Zeitung. Josepha lia-o e depois deixava-o em cima de um móvel do vestíbulo.
Em tempos, Klara passava-lhe os olhos com Petra e, juntas, comentavam as notícias. Era um momento importante do dia. Agora que Petra já não existia, Klara lia-o
a Thea, quando não tinha que fazer.
A menina chegou com o jornal que a mulher, depois de ter posto os óculos, começou a folhear. A pequena sentou-se na beira da cama, pronta para ouvir. Entretanto
contemplava a orla da sua saia vermelha, que tinha bordada uma série de meninos estilizados, um rapaz e uma rapariga, de mãos dadas, como se estivessem a brincar
numa grande roda.
Ringelreihen(3), pensou. Fazia Ringelreihen com Pinuccio e com outros amigos que, de vez em quando, apareciam no castelo.
Klara leu em voz alta: "Acolhemos com firme dignidade os italianos que vão entrar na cidade. Temos a certeza de que lutámos com perseverança. Os nossos inimigos
devem reconhecê-lo". Voltou a dobrar o jornal, pousou-o em cima da cama, assoou ruidosamente o nariz e limpou uma lágrima.
- Vi uma águia por cima do monte San Zeno. Se calhar estava a atacar um carneiro - disse a menina.
- Houve um tempo em que nós éramos águias. Agora somos carneiros - constatou tristemente Klara.
- Os inimigos são as águias? - perguntou Thea.
- Os inimigos são os italianos. Não sei se são águias - comentou a velha criada.
- O meu pai chega esta noite. Ele é italiano. É teu inimigo? - perguntou, curiosa. Na realidade, não tinha bem claro o conceito de inimigo, mas sabia que o amigo
era uma pessoa que se devia amar.
A mulher olhou a menina com ternura.
- És tal e qual a tua mãe. Ela também, quando era pequena, me fazia muitas perguntas a que eu não sabia responder. Mas posso dizer-te, com certeza, que deves estar
contente por o bom Deus ter poupado o teu pai. Vais conhecê-lo e vão gostar muito um do outro.
*3. "Rodinha", em alemão. (N. da T.)
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Thea desceu da cama, aproximou-se de Klara e perguntou-lhe: - A mamã é do Tirol. O papá é italiano. Eu o que sou?
- Tu és uma pequena mula: metade cavalo e metade burro - respondeu.
- Não percebi nada - concluiu a menina, aborrecida.
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Josepha teve um dia frenético e Thea fez o que pôde para o tornar ainda mais difícil. Arrancou as fitas que ornamentavam a coluna do vestíbulo, partiu dois pratos
e, quando foi repreendida, gritou: "Mãe feia e má". Depois desapareceu e tiveram de a procurar durante muito tempo, antes de a encontrarem no depósito da lenha,
onde se escondera. O que a transtornava, e Josepha sabia-o, era a notícia da chegada do pai. Por fim, foi a ama que tratou de a acalmar. À noite, finalmente, adormeceu.
O burgomestre veio buscar Josepha para a acompanhar à estação. Durante o percurso, informou-a dos últimos desenvolvimentos da situação: Lorenzo Valeschi tinha partido
de comboio de Spondigna com trezentos alpinos. Chegaria a Merano às nove e meia da noite.
- Acabou mesmo, minha querida Josepha - disse, dando-lhe uma palmadinha na mão, como fazia quando ela era uma miúda e ele não encontrava as palavras exactas para
lhe explicar alguma coisa.
- Tenho pena que os italianos tenham vencido esta guerra. Mas também tinha pena se a tivessem perdido. Não quis deixar a minha cidade, correndo todos os riscos que
o senhor conhece. Agora não sei muito bem se estou a ir ao encontro do meu marido ou de um vencedor - sussurrou ela.
- Nós nunca seremos italianos, Josepha. Só temos de mostrar boa cara, e isso não te vai custar muito, porque amas o Lorenzo.
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- Este é um momento muito difícil para mim. Estou-lhe grata mais uma vez por ter estado comigo.
O burgomestre parou o carro no largo da estação, de onde saíam as tropas austríacas. O comando italiano tinha telegrafado ao major Tietze e ao doutor Grossmann,
para ordenar a evacuação da estação. Os militares estavam ali acampados há horas, à espera de um comboio que os levasse para o outro lado da nova fronteira. O major
Tietze, que Josepha não conhecia, cumprimentou-a com um beija-mão respeitoso.
- Peço-lhe que fique no carro, signora Valeschi - disse. - Neste momento, o comboio está parado em Postal. Ao longo da linha férrea, os sobreviventes das Standschiitzen
acenderam fogueiras para se aquecerem e acamparam. Ainda vai demorar algum tempo até que saiam dali e o comboio com os inimigos possa retomar a viagem.
Os inimigos. Era assim que consideravam os italianos. Poderia não lhes dar razão?
- Espera aqui, Josepha - interveio o burgomestre, saindo do carro. E acrescentou, dirigindo-se ao major Tietze: - O coronel Valeschi é um grande amigo nosso, e vem
de novo abraçar a família, que vive aqui.
O major pôs-se em sentido e depois afastou-se. Josepha não conseguia estar quieta dentro do carro. Estava muito nervosa devido àquele longo dia de espera, ansiosa
por voltar a abraçar o marido, mas preocupada com a hostilidade que sentia no ar.
Os soldados austríacos tinham abandonado a estação que, agora, estava deserta e mergulhada no silêncio. Viu o major e o burgomestre dirigirem-se à linha férrea.
Saiu do carro e foi atrás deles. Estava muito escuro. Os militares acampados a uma centena de metros formavam uma imensa mancha negra. Estava frio. De vez em quando
via-se brilhar a ponta de um cigarro ou ouvia-se alguém tossir. A seguir, um silvo e o toque da campainha da estação anunciaram a chegada do comboio.
Reinava uma atmosfera surreal sobre a plataforma deserta. Os frisos liberty que corriam ao longo do telhado pareciam rendas cheias de pó.
Os faróis da locomotiva iluminaram aquela escuridão opaca. O comboio parecia um monstro de grandes olhos brilhantes,
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que cuspia fumo e vapor. Josepha recordou de repente o submarino de Enrico Castiglia, o primeiro marido. Ficou aterrada e sentiu um desejo irreprimível de fugir.
Recuou alguns passos, ao mesmo tempo que o comboio se imobilizava com um chiar metálico. O tutor agarrou-lhe o braço com firmeza.
- Sossega, minha menina - tranqüilizou-a.
Da primeira carruagem saíram quatro oficiais. Traziam vestidos os casacos cinzentos-esverdeados do exército italiano. Josepha reconheceu o marido imediatamente.
O major Tietze, o burgomestre e ela não se mexeram. Os quatro chegaram à frente deles e fizeram uma saudação militar. Lorenzo só olhava para ela. Josepha tinha sonhado
com um encontro diferente, mas aquele foi um momento de grande comoção.
- Eu sou o general de brigada Ponzi - apresentou-se o oficial mais graduado. E acrescentou: - Só o coronel Valeschi fala alemão. Portanto, será ele a expor a situação.
- Eu sou Friedrich Grossmann, burgomestre desta cidade. O major Tietze, comandante do nosso exército, a signora Josepha Valeschi, esposa do coronel Valeschi - disse
o homem com ostensiva frieza. Depois continuou: - Com que direito está o exército italiano em vias de ocupar Merano?
- É o direito dos vencedores - respondeu Lorenzo, com uma voz cansada. Depois, com pesar, acrescentou: - Estou verdadeiramente amargurado, Herr Grossmann. Gostaria
de ter regressado como amigo.
- Os meus concidadãos vão comportar-se disciplinadamente - afirmou o burgomestre.
- Conheço a vossa rectidão e peço desculpa desde já se algum dos nossos se comportar de forma arrogante. Na realidade, estamos exaustos e não somos responsáveis
pelas decisões dos governos. Vamos fazer todos os possíveis para não interferir nas suas decisões, e o senhor burgomestre poderá continuar a exercer as suas funções
como antes - replicou Lorenzo, dando voz aos próprios sentimentos, mais do que aos do general Ponzi.
- Coronel Valeschi, diga ao seu superior que lhe ficaria grato se, pelo menos, renunciasse a mandar içar a bandeira italiana no município. Não gostaria de ter de
me desculpar por qualquer gesto imponderado dos meus concidadãos - pediu o burgomestre.
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Lorenzo falou brevemente com os três oficiais. Por fim dirigiu-se a Herr Grossmann e a Josepha com um brilho nos olhos.
- Será feita a sua vontade. Devo confessar que nem sequer temos uma bandeira connosco.
Tietze e o burgomestre sorriram-lhe. Josepha chorava silenciosamente.
- Os seus homens - concluiu o burgomestre - poderão por esta noite instalar-se nas salas do rés-do-chão do hotel Andreas Hofer. Os oficiais serão alojados no Hausbergerhof.
Lorenzo pensou na ironia do destino. Andreas Hofer era o símbolo do Tirol, o homem que lutara e morrera pela independência da sua terra. Em Merano, para o recordar,
havia uma rua, um monumento e um hotel onde iam dormir os vencedores. Pôs-se em sentido e comunicou as directivas. Era quase meia-noite quando as carruagens do comboio
se abriram para deixar sair os alpinos que, exaustos e desorientados, se espalharam no exterior da estação. Foram surpreendidos pelo silêncio e pela escuridão que
envolviam a cidade.
- Vou levá-los ao castelo - disse ainda o burgomestre, avançando à frente de Lorenzo e Josepha, em direcção ao seu automóvel.
- Não estamos sós - informou Lorenzo. - Tenho comigo um soldado de infantaria que vai ficar em Rundegg.
Josepha quase não reconheceu Benedetto Zicri, que se afastara do grupo dos alpinos e vinha agora na direcção deles.
- Como foi que conseguiste que ele viesse contigo até aqui? - perguntou, espantada.
- Pergunta-lhe a ele como fez para me encontrar e para se apresentar na estação de Spondigna. A nossa única força, nesta guerra tremenda, foi a coragem e a fantasia
dos italianos - respondeu Lorenzo.
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Klara estava sentada ao pé do fogão. Tinha na mão uma malga cheia de sopa de cevada, melhorada com toucinho e batatas. De vez em quando comia um bocado e olhava
para aqueles italianos que estavam sentados à mesa na qual, durante anos, fizera as refeições com Petra e Toni. Eram Teresa, o marido e Pinuccio. Três pessoas que
lhe tinham sido queridas e que agora via com outros olhos.
A hostilidade de Klara era largamente partilhada pelos seus concidadãos, depois que o exército italiano se apoderara de Merano. Teresa apercebia-se disso e decidiu
que tinha chegado o momento de partir.
- Hoje de manhã fui à estação. Regressar a Nápoles vai ser uma aventura - anunciou. - Só há um comboio para civis de Merano até Bolzano. Parte às dez horas da manhã.
A linha férrea está interrompida entre Bolzano e Trento, e por isso há um serviço de carro de transporte.
- Chama-se camião - emendou Benedetto.
- Eu não sou estúpida. O empregado que me atendeu, que era italiano, disse "carro de transporte". Portanto, é este carro que parte de tarde e chega a Trento à noite.
Ali não se sabe muito bem o que acontece. Mas, com paciência, havemos de arranjar um comboio até Verona. Em Verona muda-se e apanha-se outro comboio para Bolonha.
De Bolonha até Nápoles é um passeio. Se tudo correr bem, em três dias estamos em casa - explicou Teresa.
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- A Thea também vai connosco? - interrompeu Pinuccio.
- A Thea fica aqui, com os pais dela - rematou.
- Não é verdade. Disse-me que também vai para Nápoles - protestou o pequeno.
- Então quer dizer que vais voltar a vê-la - condescendeu a mãe.
- Quando queres partir? - perguntou Benedetto.
- Amanhã de manhã, se estiveres de acordo.
Pinuccio encostou-se a Klara, pousou-lhe as mãos nos joelhos e disse: - Nós, morgen, abreisen nach Nápoles(1). Percebeste?
Klara fez-lhe uma festa na cabeça com a mão ossuda. - Sim, percebi. - Abanou a cabeça e sorriu. Depois disse: - Eu não passo de uma velha resmungona. Não consigo
adaptar-me a estas mudanças. Gostaria que o mundo fosse como há vinte anos atrás. Mas entendo que não é possível. Por isso é que vocês se vão embora. A minha senhora
também vai acabar por ir, com o italiano e com a pequena Thea. Eu vou para o pé da minha família. Schloss Rundegg vai ficar fechado. Findou uma era. - Falou em alemão.
Eles não perceberam todas as palavras, mas captaram-lhe a melancolia.
Teresa passou o dia a juntar as coisas que lhe pertenciam: roupa, pequenos presentes e uma provisão de alimentos para três dias. Deitou-se, pela última vez, no quarto
ao lado daquele onde Thea dormia desde os dois anos. Pensou que na noite seguinte a pequena Valeschi iria estar sozinha. Sabia que, quanto a isso, Josepha seria
inabalável. Tudo dependia dos pontos de vista e da educação recebida. Teresella estava habituada à promiscuidade, e a solidão metia-lhe medo.
De manhã, ajudou o filho a vestir-se.
- Agora vai à cozinha e avisa o teu pai, que eu desço já para preparar o pequeno-almoço - disse. Depois entrou no quarto de Thea.
A pequena, empoleirada numa cadeira, penteava-se em frente do espelho.
- Mas que idéia foi que te deu? Hoje é sexta-feira. Não podes fazer as tranças - avisou, a sorrir.
*1. "Amanhã, partimos para Nápoles", em alemão. (N. da T.)
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- Maladitta chitta trizza, ca da venniri s'intrizza(2) - recitou a menina. - Mas a mamã diz que eu não devo acreditar nestas coisas.
- A tua mãe tem razão. Mas nunca se sabe. Mais vale estar sempre preparado. Até porque um homem prevenido...
- Vale por dois - concluiu Thea, a rir; e continuou: - Mas eu não sou um homem.
Teresa pegou nela e sentaram-se as duas na cama.
- Agora ouve-me com atenção. Temos de nos despedir, porque eu vou voltar a Nápoles - explicou.
- Eu sei. A mamã já me disse. Porquê? Não estás bem aqui? Teresa gostaria de dizer que naquele momento se sentia a mais.
Que em breve Thea seria entregue aos cuidados de uma preceptora inglesa. Que em Merano não havia futuro para ela e para Benedetto. Que queria voltar para o pé da
sua gente e ter uma casa pintada de cor-de-rosa só para eles. Mas Thea não ia entender tudo aquilo. Por isso, respondeu: - Nápoles é uma cidade lindíssima. É a minha
cidade. Fica em Itália, percebes?
- Mas aqui também é Itália, agora - explicou Thea. Teresa torceu os lábios.
- É uma maneira de dizer. Porque foi assim que os governos decidiram. Mas isto não é Itália. Nem nunca vai ser, acho eu.
- Nós também vamos para Nápoles, com o papá - disse Thea.
- Então vamos voltar a ver-nos muito em breve - respondeu, apesar de saber que a sua tarefa junto daquela família estava concluída. Os Valeschi já não precisavam
dela. Thea ia esquecê-la depressa. No entanto, ela mantê-la-ia no coração para sempre. Tinha-a alimentado com o seu leite, embalado, velado, consolado e acariciado,
tratado quando estava doente e encorajado nas primeiras aprendizagens. - Agora deixa-me ir, porque o Benedetto e o Pinuccio estão à minha espera.
- Vamos conversar mais um bocadinho - disse a pequena, na tentativa de a reter, apertando-lhe os braços à volta do pescoço.
*2. "Maldita trança essa, que se enriça à sexta-feira" (provérbio siciliano). (N. da T.)
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- As conversas só' come se cerase, una esce e Valtra trase(3) - replicou Teresa, a sorrir.
- Essa não sabia. O que quer dizer?
- Que não é preciso falar mais do que o necessário.
- Vou tentar lembrar-me - disse a menina. Estava quase a chorar. Teresa também tinha os olhos brilhantes.
Naquele momento Lorenzo apareceu à porta do quarto.
- Vai lá, Teresella - disse. - Eu e esta linda menina temos de fazer uma coisa urgente - acrescentou, tirando a filha dos braços da ama.
Teresa arrumou rapidamente, pela última vez, o quarto de Thea. Sentiu Lorenzo descer as escadas e a voz da pequena que dizia: - Estou muito zangada. Mais, estou
zangadíssima.
Lorenzo levou-a até ao bosque. Não queria que a menina visse partir a ama.
Josepha, pelo contrário, esperava-a na caleche. Ia acompanhar a família Zicri à estação. Sofia encharcou um lenço de lágrimas. Inesperadamente, a velha Klara entregou
à ama com um ar solene a colcha que ela mesma confeccionara tantos anos atrás, quando era rapariga, pensando que um dia teria marido. - É para a tua casa nova -
disse-lhe em italiano, e acrescentou: - Pittata rosa(4). -Não sabia o que aquilo queria dizer, mas tinha a certeza de que aquelas duas palavras haviam de agradar
a Teresa.
Quando chegaram à estação, Josepha deu-lhe dinheiro. Teresa corou.
- Pega. Vais precisar dele.
- Mas isto é de mais - respondeu a mulher.
- Foste uma boa ama. Nunca mais me vou esquecer de ti. Teresa recordou tudo aquilo que Josepha fizera por ela desde o
tempo em que era uma criança maltrapilha e vivia na viela da Duquesa. Não sabia como exprimir a sua gratidão.
- Um dia, se eu puder, gostaria de retribuir tanta generosidade - disse simplesmente.
Josepha viu-os entrar no comboio e disse-lhes adeus com um lenço.
*3. "As conversas são como as cerejas, vêm umas atrás das outras", em italiano. (N. da T.)
4. "Pintada de cor-de-rosa", em italiano. (N. da T.)
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Sabia que em breve também ela ia partir com Lorenzo e com a menina, para regressar a Nápoles. Desta vez não haveria lamentos. Aquela terra ocupada pelos italianos
já não lhe pertencia. Tinha chegado o momento de se considerar italiana e de viver em Itália, na verdadeira Itália.
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EM VIAGEM - NORTE-SUL NOVEMBRO DE 1918
Em Bolzano, no exterior da estação, havia uma longa fila de camiões militares transformados, por necessidade, em meios de transporte para civis. Os camiões não tinham
uma cobertura para proteger os viajantes, mas os condutores ofereciam cobertas militares de péssima lã e limpeza duvidosa. Teresa recusou. Ficariam protegidos os
três pela bela colcha oferecida por Klara. O chão do camião tinha sido coberto com palha seca. Os volumes que os passageiros transportavam consigo serviam-lhes de
bancos.
Apesar do frio e do desconforto, os camiões estavam cheios de passageiros.
Benedetto, Teresa e o menino refugiaram-se num canto, por trás do condutor. Ao lado deles instalou-se uma camponesa. Vinha de Renon, onde uma bomba destruíra a sua
quinta. Ia para Rovereto, para casa da filha que estava casada com um farmacêutico. Contou tudo isto num italiano imperfeito, enquanto chorava a morte de dois filhos
homens, na guerra, em Montello. Havia um caixeiro-viajante representante de sabões desinfectantes, que recebera encomendas em todo o lado e defendia que aquele produto
era um remédio fantástico contra qualquer tipo de doença. Estava também Um capelão militar que regressava à sua diocese, numa aldeia da Província de Brescia. Havia
músicos com os respectivos instrumentos. Tinham alegrado alguns momentos das tropas italianas estacionadas nas várias frentes e agora iam até Milão, à procura de
novos contratos. Com eles estavam duas mulheres. Eram as cantoras da companhia.
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Uma chamava-se Lulú Landi e a outra Marisette. Lulú era jovem, tinha uns grandes olhos negros maltratados e lábios pequenos e escarlates. Marisette, apesar do nome,
era uma mulher grande, à volta dos trinta anos, que respirava com dificuldade e tinha febre há dois dias. - Tudo por causa das correntes de ar dos teatros - explicou.
O camião pôs-se em movimento. Ia ser uma viagem cansativa. Teresa recordou o percurso inverso, quatro anos atrás, num compartimento de primeira classe, quando fugira
do marido que a traía.
Nunca quis saber quem fora a mulher por quem Benedetto a tinha trocado. Durante os anos de guerra acabou mesmo por esquecer aquela infidelidade. A recordação apresentou-se-lhe
naquele momento, enquanto viajavam para Nápoles. E sentiu o receio de que o marido pudesse reencontrar aquela pessoa. Olhou para ele. Trazia o menino ao colo, preocupado
com a possibilidade de o ar frio daquele fim de Novembro conseguir penetrar através da colcha que os envolvia aos três. Teve um rasgo de ternura por ele. Estendeu
uma mão para lhe fazer uma festa na face. Depois deteve-se. Os filhos e os maridos só se beijam quando estão a dormir, pensou. Recordou, da sua viagem de ida, a
tranqüilidade das paisagens que viu passar através da janela do comboio. Agora, atravessavam zonas destroçadas pela guerra. Viam-se casas bombardeadas, pontes derrubadas,
aldeias destruídas, filas de soldados vestidos de farrapos a marchar desordenadamente em direcção a uma meta qualquer. Quanto horror e quanta pena nos rostos das
pessoas desesperadas que caminhavam a pé, pela berma das estradas, levando às costas aquilo que tinham conseguido salvar: um berço, um colchão, um conjunto de panelas,
uma cadeira sem tampo. E, no entanto, Teresa era por vezes percorrida por lampejos de felicidade. O marido estava com ela, apertava-a bem contra ele e ela sentia-lhe
o batimento regular do coração. Pinuccio dormia ao seu colo - Juntos, haviam de construir uma nova vida.
Alguém cantou a canção do Piave. Nunca a tinha ouvido-Comoveu-se.
- Estou muito contente por regressar a Nápoles - disse ao marido.
- Também eu - sussurrou ele, reforçando o abraço.
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- O Pinuccio tem de aprender a nossa língua, que é tão bonita. Estás a ver como ele fala, coitadinho?
- As crianças aprendem depressa.
- Ele tem de estudar. Não vai ter dificuldade nenhuma, porque é inteligente como tu.
- De nós os dois, a mais inteligente és tu, Teresella.
- Eu tenho muitas esperanças, Benedetto. Sinto que tu vais arranjar um bom emprego, que vamos ter mais filhos e que nos vamos amar para sempre.
Começou a chover. O camião não tinha toldo de protecção. Alguns passageiros abriram guarda-chuvas. Outros protegeram-se com mantas. Mas ao fim de meia hora estavam
todos encharcados. O camião parou por baixo do coberto de uma pequena estação dos correios abandonada.
- Onde é que estamos? - perguntou Teresa.
- Não me perguntes a mim. Não consigo ler estes letreiros - respondeu o marido.
Desceram todos do camião. A chuva não parava. Estava frio, o vale do Adige apresentava-se com as suas montanhas agrestes, nuvens baixas e uma humidade que penetrava
até aos ossos.
- Estamos perto de Neumarkt - anunciou o condutor. - Ali ao fundo é Trento.
- Tenho de mudar o menino. Tem a roupa molhada - disse Teresa.
- É melhor abrigarem-se aqui dentro - sugeriu o condutor, indicando a estação. - Não é um grande hotel, mas ao menos não se apanha chuva.
Entraram. Tinham lá estado outras pessoas, antes deles, que deixaram um cheiro azedo de sujidade.
- Mas isto é um nojo - protestou Lulú, libertando-se de um tango xaile que a cobria da cabeça aos pés. Trazia um casaco de lã cinzento e um abafo vermelho, de penas
de avestruz, à volta do Pescoço.
- Deixa lá - aplacou-a a sua amiga Marisette. - Dá-me outra manta. Tenho frio. - Deixou-se cair extenuada em cima de um monte de palha suja.
- Tem paciência, Marisette. Assim que chegarmos a Trento arranjamos um hotel - disse um dos elementos da orquestra.
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- E tomas um chá quente. Dormes um grande sono e amanhã estás fina - prometeu Lulú.
- Tenho de regressar a Milão convosco. Não posso perder um novo contrato - objectou ela, com um fio de voz.
A presença da mulher doente tornava mais amarga aquela viagem horrível.
- Se calhar devíamos ter esperado melhores dias, antes de sairmos do castelo - sussurrou Benedetto.
- Nem pensar. Lembra-te mas é do sol de Nápoles e dos teus companheiros, que estão à tua espera. Temos dinheiro suficiente para pagar um ano de aluguer numa boa
casa, só para nós. Eu não vejo a hora de lá voltar - replicou ela.
- Mamã, tenho sede - choramingou Pinuccio.
Teresa tirou do saco dos mantimentos um termo cheio de leite quente. Deu-lhe um copo. O pequeno bebeu dois goles e depois rejeitou-o.
- Não me apetece - decidiu.
- Queres uma bolacha, meu amor? - propôs ela.
- Dói-me a cabeça - anunciou Pinuccio. Teresa pôs-lhe uma mão na testa.
- Felizmente não tens febre - constatou. - Tens a certeza de que te dói a cabeça?
O pequeno confirmou.
- É o desgosto - sorriu ela. - Falta-te a tua irmãzinha de leite. Se calhar ela também sente a tua falta. Quando estivermos em Nápoles, daqui a alguns dias, vais
voltar a estar com ela - consolou-o. Depois tirou-lhe a manta porque lhe pareceu um pouco húmida e embrulhou-o num xaile de lã macia.
- Parece-me um bocadinho pálido - sussurrou o marido.
- Sabes como são as crianças. Tão depressa estão mal como no momento seguinte já estão bem. Esperemos que esta chuva pare, para podermos continuar depressa a viagem.
No comboio vamos estar muito melhor.
Naquele momento saíram dos sacos dos viajantes pedaços de pão, embrulhos com queijo, salsichas, toucinho, garrafas de vinho e ovos cozidos.
Cada um fez questão de oferecer aos outros. Comeram todos, à excepção de Marisette, que se queixava e tossia. E Pinuccio,
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que tinha adormecido no colo da mãe. Alguns dos companheiros de viagem eram mais loquazes do que outros. O representante de sabão e um violinista idoso contaram
histórias da guerra e de bombardeamentos de que tinham saído ilesos.
Benedetto, que vivera pessoalmente aquelas e outras experiências, estava calado. Preferia guardar para si aquilo que tinha visto e sofrido.
- Sabiam que os austríacos chegaram mesmo a bombardear Nápoles? - revelou outro dos músicos.
Teresa e Benedetto ficaram logo cheios de curiosidade.
- Um dirigível, cheio de munições, chegou até à encosta do Vesúvio e descarregou umas bombas em Via Santa Erigida. Quarenta feridos e dezasseis mortos.
- Oh, meu Deus! E quando foi isso? - perguntou Teresa.
- Então vocês são napolitanos e não sabem de nada? Foi no ano passado, em Julho. Todos os jornais falaram disso - explicou.
Ela fez o sinal da cruz. Pensou no pai, nos irmãos e em todos os outros parentes de quem nunca mais tivera notícias.
Por fim deixou de chover. O condutor e alguns passageiros secaram o melhor que puderam o chão do camião. Tiraram do estábulo algumas braçadas de palha seca e espalharam-na.
Entraram todos de novo e retomaram a viagem.
A artista de variedades estava cada vez pior.
- Parece-me que está com um febrão de cavalo - disse a amiga. O caixeiro-viajante ofereceu-lhe um comprimido de quinino.
- Trago sempre isto comigo, para qualquer eventualidade - explicou. - É remédio santo para a febre,
Lulú obrigou a amiga a engolir a pastilha com um gole de água. - Esperemos que funcione. Cá para mim, esta desgraçada está a morrer - sussurrou. Em poucas horas,
a mulher tinha piorado muito. Os passageiros olharam uns para os outros e todos pensaram numa doença que naquela altura alastrava por todo o lado: a gripe espanhola.
Nos dias que antecederam a partida de Merano, dizia-se que o hospital de Piseck para doenças infecciosas estava superlotado com doentes atacados por aquela gripe
maligna. Eram sobretudo militares mas, ao que parecia., muitos civis tinham sido também contagiados. Muitos morriam. Instintivamente, Teresa levou uma mão à testa.
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Não estava quente. Mas Pinuccio pareceu-lhe um pouco quente. Talvez o tivesse agasalhado demasiado.
- Como estás? - perguntou ao marido.
- Pára de te preocupares - disse Benedetto.
- Esta pobre mulher tem de ser levada depressa para o hospital - interveio a senhora de idade que viajava com eles.
- Vamos perder o comboio - protestou um dos passageiros. - Primeiro, foi a chuva, agora, é esta que está doente.
- Por favor, um pouco de caridade cristã - interveio Benedetto.
- Não há nenhum hospital antes de Trento - gritou o condutor, que estava cansado e com pressa de descarregar aquela gente toda.
O camião continuava entre saltos e solavancos através da escuridão do vale do Ádige. Estavam nas proximidades de Salorno.
- Há uma hospedaria, depois daquela curva - informou o caixeiro-viajante, que conhecia toda a zona. - Podemos parar ali para ela descer.
Toda a gente concordou.
O camião abrandou. Seguindo as indicações do homem, o condutor chegou junto de um edifício de dois andares que tinha um letreiro de madeira pintada onde se lia:
GASTHOF SPRINGEL.
A mulher foi levada em peso para o interior da hospedaria. -Eu fico com ela - disse Lulú.
O camião voltou a partir e ela despediu-se da porta, com um aceno de mão. O abafo de avestruz despontava, como uma nota fora de tom, do longo xaile negro. Teresa
sentiu um aperto no coração.
- Pobres criaturas - sussurrou. E começou a rezar. Estava triste e inquieta. - Quanto tempo falta até Trento? - perguntou.
- Se tudo correr bem, chegamos daqui a uma hora - respondeu o caixeiro-viajante.
Quando finalmente chegaram à estação de Trento, o comboio para Verona estava quase a partir.
Os passageiros apressaram-se ao longo da linha. Benedetto estava carregado de bagagem. Teresa levava o menino ao colo. Tinham comprado bilhetes para uma carruagem
de segunda classe para viajarem mais comodamente.
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- Rápido, rápido - disse o revisor. Teresa parou.
- Então? - perguntou Benedetto, com um ar impaciente.
- O Pinuccio está doente - sussurrou ela.
- Tens a certeza?
Tinha caído a noite. Debaixo do coberto da estação, o vento
feria a pele.
- Temos de ir ao hospital - decidiu Teresa, esforçando-se por
esconder o medo que a invadira.
Pinuccio morreu de gripe espanhola enquanto Teresa, internada na enfermaria das mulheres, delirava por causa da febre. O seu menino partiu no dia em que completava
quatro anos.
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PALERMO - MOSTEIRO DE SANTA BRIGIDA NOVEMBRO DE 1918
Isadora empurrava sobre a relva uma cana vermelha em cuja extremidade havia um rolo que, ao girar, emitia as notas de uma caixa de música. A pequena ria, feliz,
e reforçava o impulso correndo mais depressa à volta do claustro octogonal, delimitado por um pórtico em arcos sustentados por pares de colunas delgadas revestidas
de cerâmica pintada. Calçava uns sapatinhos pretos de verniz, meias brancas de algodão e trazia um vestido de lã vermelho que lhe cobria os joelhos. A trança de
cabelo muito negro tinha-se soltado e a fita de seda que a atava caiu ao chão.
- Regardez-moi, grand-maman - gritava com uma vozinha entusiasmada, aumentando a seguir o impulso do brinquedo.
- Estou a ver. Fazes isso muito bem - felicitou Carolina, a sorrir.
Sentada por baixo do pórtico, a princesa Castiglia era uma avó paciente e afectuosa. Desde algum tempo atrás deixara de pintar os cabelos, que agora despontavam
em madeixas cândidas desde a raiz.
O sol inundava o claustro do convento de Santa Erigida. Do Ulterior da capela chegavam vozes de um hino ao Senhor.
- Tem cuidado para não caíres - recomendou Ezio Burgio, que estava sentado na base do poço, no centro do claustro.
Estava, como sempre, vestido de cinzento escuro, e a aba do chapéu protegia-lhe os olhos daquele sol de Novembro.
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Isadora deixou de empurrar o rolo, aproximou-se dele e entregou-lhe a cana.
- Queres brincar agora tu um bocadinho, grand-papa? - perguntou.
- Muito obrigado, minha querida Dodò. - Ezio sorriu-lhe. - Já sou muito velho para te imitar. E as minhas pernas estão cansadas.
- A Irmã Crocefissa disse-me que, fora do convento, há outras meninas que gostavam de brincar comigo - revelou a pequena.
- E é verdade - confirmou ele. Depois voltou-se para a princesa e acrescentou: - Até quando é que vamos ter de a manter reclusa?
Carolina levantou-se do banco e, apoiando-se na bengala, foi até junto de Isadora. Pousou uma mão por baixo do queixo da menina e levantou-lhe o rosto.
- És uma menina muito bonita - disse-lhe.
- É verdade. Sai ao pai - sussurrou Ezio.
- As meninas saem sempre ao pai - concordou a princesa, com um suspiro de resignação.
- A maman diz que o papá voou até ao céu e que de lá do alto olha para nós as duas - afirmou a pequena. - Um dia vamos apanhar um navio muito grande e vamos para
a América.
- Se a tua mãe diz, é porque é assim - replicou Carolina, com uma voz conformada.
O canto na capela terminou com os últimos acordes do órgão. Uma fila de freiras vestidas de branco saiu da igreja e atravessou o claustro. Virginia estava com elas.
Cumprimentou a mãe, beijando-a na face. Fez o mesmo com Ezio Burgio. Isadora agarrou-se-lhe à saia e quis que ela lhe pegasse ao colo.
- Os avós trouxeram-me um brinquedo que toca - disse, mostrando-lho com orgulho.
- Mostra-me depressa como funciona - propôs Virginia, voltando a pôr a filha no chão.
A pequena recomeçou a correr, fazendo rolar na relva o cilindro musical. Ela aplaudiu a sorrir.
Carolina observou a filha, pensativa. Virginia estava profundamente mudada. Tudo nela expressava serenidade e compostura. Tinha-se tornado quase bonita. Trazia um
vestido
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simples de flanela cinzento-prateado, avivado com um colete curto de piquei branco, que fazia sobressair o corpo esguio. Ia fazer trinta anos e nunca fora tão feliz.
Parecia uma rapariga. A princesa nunca imaginara que ela tivesse nascido para ser mãe.
- A Irmã Crocefissa preparou-nos o pequeno-almoço - anunciou Virginia.
- Vão andando. Eu quero aproveitar um pouco deste sol - sugeriu a princesa.
Na verdade, não tinha fome. Viu-os afastarem-se por baixo do pórtico. Isadora, que tinha dois anos e meio, dava uma mão à mãe e outra a Ezio. "Pai, filha e neta",
sussurrou ela, e sorriu. Tinham sido precisos anos e muito sofrimento para encontrar um pouco de verdade e de equilíbrio.
Ezio deixara o sobretudo na base de mármore do poço. Carolina dobrou-o e fez uma almofada com ele. Sentou-se no degrau e tirou o chapéu. Ofereceu o rosto ao sol
da manhã e fechou os olhos. Assim como os tinha fechado três anos antes, no jardim do palácio Castiglia, sob o sol de Fevereiro, quando Virginia lhe anunciou: "Estou
grávida". Nessa altura, fechou os olhos para não a ver. Se não a visse, talvez pudesse anular aquela declaração tremenda. Depois enfrentou a realidade.
- É a primeira confidência que recebo de ti - replicou. Tinha conseguido afastar de Nápoles Teresa Avigliano e, felizmente, o marido fora ter com ela.
Com a ajuda de Josepha, conseguiu que nenhum dos dois voltasse a Nápoles. O começo da guerra fizera o resto. Com isso, acreditou que podia pôr Virginia ao abrigo
de outros disparates.
- Não te fazia tão inexperiente - acrescentou, enquanto imaginava o escândalo que dali ia derivar. A princesa defendia que os Castiglia estavam acima de qualquer
mexerico. Mas havia um limite para além do qual o escândalo era inevitável. - É inadmissível - disse. E apercebeu-se imediatamente da inutilidade daquelas palavras.
Virginia estava sentada à frente dela.
- Maman, por favor, olha para mim - implorou, tratando-a insolitamente por tu.
Muito devagar, pousou sobre ela um olhar triste. - Estou a ver que estás desesperada - sussurrou.
333
- Ele evaporou-se. Procurei-o por todo o lado, porque o amo. Tenho vinte e sete anos e, pela primeira vez, estou verdadeiramente apaixonada. Pensei que fosse um
jogo que eu conseguia dominar. E fui apanhada como uma borboleta numa teia de aranha. Ele não passa de um operário. E, no entanto, não chegam cem dos nossos amigos
para o igualarem. Com ele compreendi o vazio que existe no nosso mundo, feito de homens entediados, muitas vezes inúteis, e de mulheres superficiais, que apenas
conseguem alinhavar confusões amorosas e conversas de salão. Encontrei um homem verdadeiro, honesto e inteligente, e perdi-o - concluiu Virgínia, com um ardor que
a mãe não lhe conhecia.
- Não percebo, porém, como foi que esse raro exemplo de honestidade foi capaz de trair a mulher. - A observação escapou-lhe e agora teria de ir até ao fundo daquele
jogo da verdade.
- Como é que sabes que é casado? - perguntou Virginia, estupefacta.
- Toda a gente te viu. Parece mesmo que tu não fizeste nada para esconder esta história.
- Foi o Burgio que te disse. A princesa confirmou.
- Ezio Burgio, o amigo fiel. O homem íntegro com quem me concebeste e que nunca mexeu um dedo para restabelecer a verdade - insurgiu-se.
- Deixa de emitir juízos sobre aquilo que não conheces.
- E tu não ponhas em causa a honestidade de Benedetto Zicrí.
- Ele sabe que estás grávida? - indagou Carolina.
- Claro que não - sussurrou. - Como é que pode, se tu e o Burgio o fizeram desaparecer?
- Apenas arranjámos uma maneira de ele poder estar com a família. Ao fim e ao cabo, ia acabar por te deixar. Tu ofuscaste-o, enredaste-o, usaste-o. Parece que se
trata de um jovem realmente inteligente. Depressa se ia soltar dos teus laços. Sabes isso muito bem - observou Carolina.
Virginia não tinha argumentos para contrapor. Sabia que a mãe tinha razão.
- O que devo fazer? - perguntou, ao fim de um longo silêncio.
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- Estou cansada e começo a sentir frio. Anda comigo até lá acima. Entretanto, vou pensando nisso. Lembra-te de que na vida há sempre uma solução para cada problema.
Tudo tem remédio - tentou confortá-la.
Naquela noite, contrariando um hábito consolidado ao longo dos anos, fez-se acompanhar a Posillipo, a casa de Ezio Burgio. O homem estava a jantar, uma refeição
solitária e frugal, como era seu costume.
- Por que não me avisaste da tua chegada? Tinha mandado preparar qualquer coisa especial - começou, levantando-se da mesa para a receber.
Carolina sentou-se ao lado dele, enquanto Sarina punha à sua frente pratos e talheres. A princesa agradeceu-lhe e, com um gesto, deu-lhe a entender que se afastasse,
e que fechasse a porta da sala de jantar.
Era uma sala austera, enriquecida com dois quadros do século XVIII de um pintor napolitano desconhecido. Representavam duas paisagens marinhas: uma tempestuosa e
outra solar.
- Qual é o problema, desta vez? - começou Ezio.
- As culpas dos pais caem inevitavelmente sobre os filhos - sentenciou ela, servindo-se de umas anchovas em azeite.
- Essa já ouvi - replicou Ezio.
- Então espera até ouvires o resto. Vem aí um bebé.
- E não há um noivo que case com ela imediatamente - continuou o velho. Era claro que Carolina estava a falar de Virginia.
- Espero que não se queira desfazer do menino - acrescentou ele.
- Pediu-me que a ajudasse.
- E qual é a tua idéia?
- É preciso evitar o escândalo, obviamente. - Carolina partiu a meio um pão pequeno e a fragrância da massa, feita em casa, proporcionou-lhe um lampejo de prazer.
- Em minha casa não consigo ter um pão assim tão bom - observou.
- É a água do Serino e o ar de Posillipo. Por que não vens viver para aqui?
Para Carolina foi como um raio de luz. Ezio era o homem mais importante da sua vida e estava cansada de o esconder de si
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própria e do resto do mundo. Sentia-se cada vez mais melancólica naquele velho palácio, que requeria um batalhão de criados e cuidados constantes. Estava cansada
daquele vaivém de hóspedes que, desde há anos, já não a divertiam. Tinha fechado o salão e raramente freqüentava os de outras pessoas. Estava tudo a mudar muito
depressa à volta dela. As pessoas menos afortunadas pediam verdade e justiça. Ela também, a partir de agora, queria deixar de mentir.
- O que achas de nos casarmos? - Carolina lançou ali aquela pergunta antes de reflectir e, no instante em que a formulou, percebeu que aquela era a decisão mais
justa.
- Se calhar já somos demasiado velhos para isso - observou Ezio em voz baixa.
- Finalmente, a Virgínia ia ter um pai, e o menino um avô. A nossa filha precisa de verdade. Andámos a mentir-lhe durante demasiado tempo.
Então Ezio pegou-lhe na mão e inclinou-se para lha beijar. Depois tocou à campainha e Sarina entreabriu a porta da sala de jantar.
- Traz uma garrafa de champanhe - ordenou Ezio.
- Gostava que o meu neto nascesse na Sicília - disse, mais tarde, enquanto acompanhava a princesa ao longo da alameda até ao automóvel que a ia levar de volta ao
palácio Castiglia.
Foi Virginia quem pediu para passar o período da gravidez no mosteiro de Santa Erigida, numa área que pertencia à família. Era um convento de clausura na província
de Palermo. Há mais de cem anos que prosperava graças às ajudas da família de Carolina, cujos membros eram as únicas pessoas que podiam passar a porta da entrada.
A princesa dispunha aí de um apartamento privado. Nunca ninguém o tinha usado. Foi ali que Virginia deu à luz uma menina, à qual quis chamar Isadora, em memória
da avó materna; porém, aquele nome pomposo foi imediatamente abreviado para Dodò. Recebeu o apelido Burgio, que foi também assumido por Virginia. Dodò tinha agora
dois anos e meio e a mãe ainda não se tinha decidido a abandonar o convento.
A princesa recordou tudo aquilo. E pensou: "Podia ter sido pior". Pegou no chapéu, levantou-se, pousou no braço o sobretudo do marido e atravessou o claustro, envolvida
pelo perfume das rosas que continuavam a florir generosamente.
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Entrou no vestíbulo do apartamento de Virginia. Pousou o sobretudo, o chapéu e a carteira num divã. Chegaram até ela as vozes da pequena Dodò e do avô, que recitavam
juntos umas lengalengas.
- Ouviste, maman, as coisas que o Ezio ensina à minha filha? - disse Virginia quando viu aparecer Carolina.
A princesa sentou-se ao lado da neta.
- Só o velho Sasà era capaz de pôr uma mesa como esta - observou, admirada. Uma toalha com bordados preciosos, flores frescas dispostas com sabedoria, o brilho da
louça, o aroma do café e o perfume delicado dos doces de amêndoa eram obra da Irmã Crocefissa, que gostava tanto da arte da decoração como das orações. Depois voltou-se
para a filha: - A guerra acabou, e já começou um novo flagelo: a gripe espanhola. As notícias que recebemos de Nápoles são aterradoras. Como se isto não bastasse,
a cólera e a tuberculose fazem o resto. É uma debandada para o campo, onde se julga que estas doenças não conseguem chegar. Os Alliata refugiaram-se com os filhos
e outros parentes no castelo de Putignano. Os Valeschi saíram de Merano e isolaram-se num refúgio de montanha com a pequena Thea. Eu e o teu pai decidimos não sair
destas terras, pelo menos para já. Por que não vens connosco para a villa?
- Agora, mais do que nunca, sinto-me segura dentro destas paredes. Aliás, o que eu pergunto é por que não ficam aqui os dois. O isolamento é total. A única relação
com o mundo exterior vem-nos dos jornais. Para já, parece-me mais do que suficiente. E depois há o telefone. Consegui obter uma linha, vencendo a hostilidade da
abadessa. O Ezio podia trabalhar com ele - propôs Virginia. Contou que tinha lido, numas revistas americanas, que o telefone já tinha revolucionado o mundo do trabalho.
Ezio Burgio, sem ter lido os jornais americanos, já o utilizava há algum tempo, tanto nos escritórios de Nápoles como nos de Palermo. Mas não disse nada. Aos trinta
anos, Virginia fazia as suas descobertas dentro das paredes de um convento. Assim estava bem. O que o preocupava, porém, era o isolamento da neta.
- Dodò precisa de se aproximar de outras crianças - disse.
- Esta epidemia não vai terminar tão depressa. Não somos os únicos atacados por ela. É uma calamidade mundial.
- Na América e na Inglaterra pulverizam as ruas com desinfectantes. Parece que funciona para tranqüilizar as pessoas. Pois bem,
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neste momento há que respeitar certas prioridades. Deixaremos o mosteiro quando a vida se tiver tornado mais segura - anunciou Virgínia.
- E vamos para a América, num navio muito grande - disse a menina.
- Que história é essa que a tua filha anda a repetir? - perguntou a princesa.
- É um projecto concreto. Quero que a Dodò cresça num mundo novo e, em muitos aspectos, fascinante. Já contactei um jornal de Nova Iorque, o Globe. Vou ocupar-me
da vida dos imigrantes italianos. Vou ser jornalista. Em suma, vou trabalhar.
- Na história dos Castiglia, serias a primeira mulher a trabalhar - disse Carolina, admirada.
- Mas eu não sou uma Castiglia, maman. Sou uma Burgio. E os Burgio sempre trabalharam - replicou Virgínia, olhando para o pai com ternura.
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA JANEIRO DE 1919
Teresa e Benedetto regressaram a Nápoles em Janeiro de 1919. Naquela longa viagem de Norte a Sul foram acompanhados pelo espectro da miséria. Viram campos por cultivar,
camponeses reduzidos à fome, cidades subvertidas pela desordem. A gripe espanhola, a tísica, o sarampo e a desnutrição engoliam as vidas que a guerra tinha poupado.
O profundo desgosto pela morte do filho, que agora repousava num pequeno cemitério de Trento, diluía-se perante as desgraças que os rodeavam.
Em Nápoles já não existia a pequena casa à beira-mar. Pietro, o amigo de sempre, acolheu-os na sua família. Tinha casado, voltara da frente sem uma perna e o governo
tinha-lhe concedido uma pensão por invalidez. Com isso, e com uma banca de suvenirdenapoli(1) à porta da estação de caminho-de-ferro, vivia com a mulher, um filho
e um segundo que vinha a caminho, duas irmãs e os pais. Viviam em três quartos sem casa de banho nem luz eléctrica.
- Onde cabem sete, cabem nove - disse aos dois amigos, que se instalaram em casa dele enquanto procuravam alojamento.
De noite, quando as crianças, os velhos e as mulheres adormeciam, Pietro e Benedetto arranjavam coragem para confessar um ao outro o desânimo de homens derrotados.
- A quantidade de sonhos que alimentavam as nossas esperanças! - murmurava Pietro.
*1. Lembranças de Nápoles. (N. do E.)
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- Eu ainda acredito naqueles sonhos - replicava Benedetto.
- Tu dizes isso porque ainda tens duas pernas para fugir, se as brigadas negras te agredirem.
- Perdi o meu filho e, se calhar, a minha mulher também. A Teresa nunca mais se aproximou de mim. Olha-me como se eu tivesse culpa de tudo.
- Vai passar-lhe. O tempo compõe muitas coisas. A minha perna não, infelizmente. Tenho vergonha de ser um vendedor de suvenirdenapoli. "Olhem aqui um belo corno,
senhores. Ou até dois. Fazem parelha e afastam o mau-olhado." Que tristeza, Benedetto! Lutei contra estas superstições, contra o folclore desta cidade. Arrisquei
a vida para salvar a minha dignidade e a dos meus companheiros. Acreditei em Marx e no socialismo. Mandaram-me combater numa guerra pela Pátria e pelo rei. E eles,
o que fizeram por mim? Quando estou na cama com a minha mulher, fico cheio de vergonha por mostrar este coto. Às vezes, durante o sono, sonho que ainda tenho a minha
perna. Quando acordo, choro como uma criança. Lembras-te daqueles serões, das noites que passámos a ler, a discutir e a estudar os textos do socialismo e as actas
dos congressos? As discussões, as brigas, e depois a esperança no "sol do futuro". Ora aqui está ele, o sol do futuro. E eles, os nossos chefes, que nos diziam:
"Temos que fazer assim e assado. Havemos de nos libertar da exploração, da sujeição e do servilismo a que reduziram o nosso Sul". E eu acreditei. Que idiota!
- Eu ainda acredito. Vamos juntar-nos outra vez e voltaremos a combater. Não pela Pátria nem pelo rei, mas por nós, que somos milhões, pelas nossas mulheres, pelos
nossos filhos, para termos trabalho e dignidade. Para que os nossos filhos possam ir à escola em vez de trabalhar, para que possamos ter casas para vivermos como
seres humanos, salários justos, uma assistência médica adequada. Eu ainda acredito nisso, Pietro - insistia Benedetto.
Teresa foi procurar o pai ao mercado do peixe. Não o encontrou. Nem sequer viu o irmão, Peppino. Na banca mais bonita, a de dona Rosália, havia gente nova. Mas reconheceu
o velho guarda-livros no escritório de vidro. Bateu à porta e entrou.
- Viu o Matteo Avigliano?
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O velho levantou os olhos de uma montanha de papéis. Reconheceu-a.
- Teresella! Há quantos anos não te vejo?
- Há muitos, senhor. Estou à procura do meu pai - rematou. - Já não reconheço ninguém neste mercado.
- A guerra levou os mais fortes, a gripe espanhola os mais fracos, e os mais espertos foram-se embora. A dona Rosália morreu debaixo das bombas. O teu pai mudou
de profissão. É o que dizem. Eu nunca mais o vi.
- Muito obrigada pela informação. Fique muito bem - disse ela.
O velho reparou no xaile gasto, no rosto pálido. Escreveu qualquer coisa num papel e estendeu-lho.
- Vai àquela banca ali ao fundo. Diz para te darem uma boa dourada. Entregas esse papel e fica paga.
Teresa agradeceu. Depois dirigiu-se à viela da Duquesa. Estava à espera de tudo, até de ouvir dizer que o pai estava morto. Mas nunca poderia imaginar que a morte
tivesse levado aquela mulher forte e enérgica, cheia de vitalidade. Mas será que é verdade?, perguntava-se, incrédula.
Algumas mulheres da viela reconheceram-na. Não estava com vontade de se encontrar com elas. - Viram o Matteo? - perguntou, simplesmente.
Disseram-lhe que estava em casa, lá em cima, onde ela tinha morado antes de fugir. Subiu os degraus dois a dois, sem responder ao interrogatório cerrado que lhe
faziam.
Quando chegou ao último andar, ao patamar onde ficava a porta da entrada, teve um instante de hesitação. Há anos que não voltava àquela casa. Recordou a violência
de Cenzino e Renato, os ralhos de dona Rosália. Recordações horríveis que nunca mais a abandonaram, como nunca mais esqueceria as afrontas recebidas da madrasta,
o rosto angélico da irmã Annina e a resignação do pai.
Bateu à porta. Não obteve resposta. Baixou o fecho e a porta abriu-se. Havia silêncio, uma grande desordem por toda a parte e muita imundície. No quarto que tinha
sido ocupado por ela e pelos irmãos havia camas desfeitas, lençóis sujos e roupa espalhada por todo o lado. A cozinha estava impraticável. A porta da divisão mais
bonita, a sala, estava fechada. Abriu-a.
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Tudo tinha ficado como se lembrava, coberto por uma camada de pó. Também o quarto que a madrasta partilhava com o pai estava intacto como se não tivesse sido usado
durante anos. Com o coração na garganta, parou em frente do quarto dos dois rapazes. A porta estava entreaberta. As portadas das janelas estavam fechadas.
- Entra - disse a voz do pai. Ela hesitou.
- Abre a janela - disse ainda o homem.
Estava estendido numa das camas iguais. Completamente vestido. Nem sequer tinha tirado os sapatos. O ar estava impregnado de fumo e o chão salpicado de pontas de
cigarro.
Teresa escancarou as janelas e encostou as gelosias. Depois virou-se para ele e sorriu-lhe. Não se viam desde antes da guerra. Da última vez, tinha ido ter com ele
ao mercado e levava Pinuccio ao colo. O pai oferecera-lhe um cartucho de amêijoas e camarões.
Matteo olhou-a durante muito tempo, sem se mexer. Depois levantou-se da cama, foi até junto dela e abraçou-a. Não disseram nada.
Teresa afastou-se do pai e propôs-lhe: - Tenho aqui uma dourada bem grande. Vou arrumar a cozinha e depois preparo-a.
Trabalhou durante duas horas para conseguir alguma ordem e poder cozinhar o peixe. Depois sentaram-se juntos à mesa da cozinha. Quando acabaram de comer, tomaram
um café.
- Pai, quantos anos tem? - perguntou-lhe.
- Quarenta e nove. Estou velho - respondeu.
- Onde estão os meus irmãos?
- Trabalham os três. Peppino tem um bom emprego nas cozinhas do Hotel Excelsior. Teve sorte. Esteve como soldado durante um ano, nas linhas da retaguarda, a distribuir
comida. Pode dizer-se que nem chegou a ver a guerra, só a ouviu. Agora é cozinheiro. Traz das cozinhas restos de comida: coisas boas, requintadas. Também tem uma
namorada, que faz luvas. Chama-se Marisella Liguoro. Não é bonita, mas é muito simpática - explicou Matteo.
- E o que me diz dos outros irmãos? - perguntou Teresa.
- Esses são mecânicos. Trabalham juntos, em Vomero, numa grande oficina. Querem ir para o Norte. Ouviram dizer que lá se ganha melhor. Talvez seja verdade.
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Matteo tinha um ar cansado e infeliz. Estava magro e tinha o rosto escurecido por uma barba de muitos dias. Fez-lhe lembrar a avó Lina. Faltavam-lhe alguns dentes.
- E o pai já não trabalha?
- Estou velho - repetiu. - Passou-me a vontade de trabalhar, mas sou obrigado. Aquela víbora da Rosália estourou debaixo de uma bomba e eu não voltei a ter nenhuma
razão para viver.
- Gostava assim tanto dela?
- Odiava-a assim tanto. O amor, se chegou a existir, já tinha ido embora há muito tempo. O ódio tinha-se tornado uma razão de viver para ela e para mim. Acusávamo-nos
à vez da nossa infelicidade. Eram grandes cenas. Voavam bofetadas e insultos. Mas ela nunca teve a coragem de nos pôr na rua, a mim e aos teus irmãos. E eu nunca
arranjei forças para me ir embora. Até porque depois já não nos poderíamos morder como cães raivosos - confessou o pai.
- Quando fugi de casa, não me parecia que se estivesse a dar assim tão mal com ela e com os filhos - observou Teresa.
- Vou dizer-te uma coisa, Teresella: a Rosália era mentirosa. Todas as mulheres o são, mas aprenderam a mentir para se defenderem. Ela, no entanto, mentia para atacar,
para ferir, para despedaçar
- comentou.
Teresa anuiu. - Ela só o queria a si. Tinha ciúmes do amor que o pai tinha por nós - disse.
- E era cega com os filhos - continuou Matteo. - Dois desgraçados. Tiraram-lhe tudo. Queria fazer deles dois doutores, e tornaram-se dois delinquentes.
Nem sequer lhe contou de que maneira Rosália tinha ficado na miséria para os manter, tendo vendido aos poucos as terras, as casas, o ouro e as bancas do peixe. Não
estudavam nem trabalhavam, apenas gastavam às mãos-cheias o dinheiro da mãe, que tinha acabado até por subornar alguém para que ficassem livres da chamada às armas.
Antes de morrer, Rosália tinha também vendido a casa na viela. De proprietária, tinha passado a inquilina do apartamento em que vivia com Matteo.
- Há dois meses, o Cenzino foi assassinado. Degolado como um frango nas proximidades do Lavinaio. Ao que parece, não honrou umas dívidas de jogo. O Renato meteu-se
com aqueles que tratem os grevistas à cacetada. Matou um pobre ferroviário,
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na Porta Capuana. Esteve dois dias na cadeia e voltou livre e mais prepotente do que antes. Há gente nova por aí. Mal-encarados que gozam de protecção.
Como toda a gente, Teresa sabia destes novos grupos que castigavam os socialistas. Chamavam-se "camisas negras" e definiam-se como defensores da ordem. Tinham do
lado deles patrões e políticos. Agora que Benedetto tinha arranjado um emprego e estava outra vez inscrito no sindicato, ela tremia com a idéia de que aquela gente
pudesse matá-lo.
- Não pense nisso, pai - disse. - Aqueles dois sempre foram uns delinquentes. Um já foi. O outro...
- Não tardará a segui-lo - concluiu Matteo.
- Não desejo a morte a ninguém - disse ela. - Pense mas é um pouco em si e nesta casa desarrumada e suja.
- Falta aqui a mão de uma mulher - sussurrou, a pensar em Rosa. E acrescentou: - Continuo a ir ao cemitério falar com a tua mãe, com a Annina e com o pequenino que
morreu de cólera.
- E a campa da dona Rosália? Não a procura? - indagou.
- A ela já não tenho mais nada a dizer. E não quero voltar a ouvir aquelas mentiras - rematou. - Nem sequer voltei a entrar no quarto dela.
- O meu Pinuccio também foi para o céu. Apanhou a gripe espanhola quando estivemos lá em cima, no Norte. Mas eu fui poupada - contou, num fio de voz.
Matteo assentiu com ar grave.
- Vais ter mais filhos - disse.
- Não quero mais filhos. Amei muito o Pinuccio, e aquela morte despedaçou-me o coração. Cansei-me de sofrer.
- Isso é a mesma coisa que dizer que te cansaste de viver.
- Como queira, pai.
- Não é justo que tu digas essas coisas. Tens apenas vinte anos. Vem viver para aqui, com o teu marido. A casa é grande e luminosa. A renda, pago-a eu. Trabalho
de noite. Foi o Peppino que me arranjou este emprego, no Hotel Excelsior. Limpo as cozinhas e umas panelas tão grandes como poços. E também engraxo os sapatos dos
hóspedes. Filas e filas de sapatos ao longo dos corredores. Em frente a cada porta há um ou dois pares. Descobri outro mundo. Tanta coisa que contam os sapatos!
Através dos sapatos percebo as pessoas,
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apesar de não as ver nunca. Há alguns de marca estrangeira, robustos e leves como uma luva. Há os italianos: têm formas bonitas, mas estragam-se logo. Há uns bicudos,
com tacão curvo e fivelas engraçadas... Então sei que quem os usa é uma mulher jovem e elegante. Outros são largos como barcos e têm a sola gasta. A proprietária
é com certeza uma mulher gorda, com tornozelos inchados, e custa-lhe caminhar, coitada. Algumas pessoas deixam umas moedas dentro dos sapatos. É a minha gorjeta.
Dá-me para comprar os cigarros.
No dia seguinte, Teresa e o marido mudaram-se para casa de Matteo. Ela não quis dormir na cama da madrasta, que foi desmontada e arrumada num canto da sala, com
outros móveis que tinham pertencido a Rosália.
Dois meses depois, Teresa estava outra vez grávida. Quase se sentiu feliz.
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA 1919-1922
Era o fim de um bonito domingo de Abril. Nápoles parecia uma grande mãe protectora, com uns braços imensos e doces que envolviam o golfo e a cidade, os palácios
e os casebres, as avenidas, os jardins, as vielas e todos os habitantes. Do mar chegavam perfumes de grande doçura. Então, sem se saber como, com tanta beleza, o
ruído ensurdecedor do tráfico extinguia-se, acalmavam-se as discussões, os latidos dos cães e os gritos das crianças. Nascia um sorriso até nos lábios mais duros
e as pessoas sentiam-se melhor. Eram momentos de paz absoluta.
Uma vez por semana, ao domingo à noite, a família Avigliano reunia-se ao jantar. Com os restos que Peppino trazia da cozinha do hotel, Teresa preparava uma grande
panela de carne com molho para juntar ao macarrão e misturava tudo numa terrina de barro que punha no centro da mesa. Cada um servia-se, enquanto ela andava à volta
dos comensais a servir o vinho. Depois sentava-se à mesa, ao lado do marido, e observava satisfeita os seus homens, que Se arranjavam para o jantar, e que conversavam
tranqüilamente, naquela noite, ao olhar para eles, sentiu-se tocada por um arrepio de felicidade. Naquela casa, quando era pequena, passara momentos de terror. Agora
parecia-lhe purificada do ódio e da violência que ali se tinham instalado. Nunca se cansava de limpar os quartos, fazer as camas, lavar a roupa, cozinhar, passar
a ferro, arrumar. Não era obrigada a trabalhar. Fazia-o pelo prazer de tratar dos seus cinco homens: o marido, o pai,
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e três irmãos, que a respeitavam e tinham para com ela pequenos gestos de gratidão.
As janelas e a porta de casa estavam abertas para receber o ar fresco da noite. E, de repente, surgiu à entrada Renato di Giacomo. Teresa foi a primeira a vê-lo.
Quase não o reconheceu, de tal maneira estava gordo, com os cabelos negros luzentes de brilhantina e um cacete na mão. Quando percebeu quem era, engoliu lentamente
a comida que tinha na boca.
A recordação da violência sofrida reapareceu, deixando-a aterrada.
Naquele momento também os outros o viram, e fez-se silêncio. Não estava sozinho. Havia mais dois homens com ele. Os Avigliano não perderam a compostura. Limitaram-se
a olhá-los friamente. Teresa inclinou-se para sussurrar ao ouvido do marido: - É um dos dois di Giacomo. - Viu a mão de Benedetto fechar-se com força e a boca do
outro abrir-se num sorriso de escárnio.
- Estou a ver que estão muito bem instalados, em minha casa - disse. E prosseguiu: - Comem nos meus pratos, sentam-se à minha mesa e dormem nas minhas camas. - Depois
virou-se para os dois amigos que estavam atrás dele: - Os Avigliano são como os chatos: agarram-se às pessoas e chupam até não haver mais sangue.
Riram-se os dois. Ele não. Observava aqueles cinco homens com um ar de nojo. Depois pousou um olhar lascivo em Teresa. Ela, instintivamente, agarrou-se ao braço
de Benedetto e sentiu que o marido estava tenso como um animal prestes a saltar e a lançar-se sobre a presa.
- Já me tinham dito que ela tinha regressado. Um destes dias venho buscar-te e vamos divertir-nos um bocado. Estou a ver que continuas a fazer de criada. Precisas
de distracção e de alguns vestidos bonitos. Dá mais gozo despir uma mulher vestida de seda. Tu entendes-me, não é verdade? - Era uma provocação. Procurava um pretexto
para desencadear a rixa. Os companheiros riram-se e desta vez, riu-se ele também, enquanto fazia oscilar o cacete com um ar ameaçador. Os homens da casa, que até
àquele momento tinham continuado sentados à mesa, levantaram-se de um salto, todos ao mesmo tempo. Os companheiros de Renato avançaram dois passos e colocaram-se
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ao lado dele, empunhando os cacetes e batendo com eles na palma da mão, com ar ameaçador.
- Devia ter-te matado, a ti e ao teu irmão, há muitos anos. Pede desculpa à minha filha por aquilo que lhe disseste - ordenou Matteo Avigliano com uma voz firme.
Era já um homem fraco, mas armado com a sua própria honestidade e com a necessidade implacável de fazer justiça.
Renato di Giacomo poderia derrubá-lo com uma só mão. Olhou o padrasto e os rostos impassíveis dos Avigliano. Empalideceu. Apercebeu-se de que aqueles cinco homens
estavam em vantagem sobre os cacetes.
- Pede desculpa à minha filha - repetiu Matteo, com um tom ameaçador.
O rapaz baixou os olhos.
Precisava de se afirmar pela prepotência. Gostava de esmagar os fracos e de atormentar os desesperados, aterrando-os com as pancadas do cacete.
Mas agora os Avigliano eram mais fortes do que ele. - Desculpa, Teresella - balbuciou com os dentes cerrados.
Os amigos recuaram e saíram do apartamento.
- Vai-te embora. Nunca mais apareças nesta casa. Queres a mobília da tua mãe? Vais levá-la já - decidiu Matteo. Voltou-se para os filhos e para o genro: - Atirem
pela janela fora todas as coisas da Rosália.
Peppino debruçou-se da janela e gritou para as pessoas da viela:
- Afastem-se, que vamos descer as coisas da falecida dona Rosália.
- A cabeceira da cama voou no vazio.
- Agora desce e apanha as tuas coisas - ordenou Matteo.
- Isto não fica assim - gritou ele, procurando com os olhos os amigos que já tinham ido embora. - Vou fazer com que se arrePendam de terem nascido. E tu, em primeiro
lugar - acrescentou, apontando o indicador a Benedetto Zicri. - És um subversivo. Eu conheço-te.
A casa foi esvaziada de tudo o que pertencera a Rosália. Acabou tudo na viela, incluindo toalhas, pratos e copos. - Agora é que estamos mesmo em nossa casa - comentou
com uma voz cansada.
353
- E agora é que vão começar as complicações - profetizou Benedetto.
A beleza absoluta daquele fim de dia de Abril extinguiu-se numa noite de presságios tenebrosos.
Os meses passaram. Teresa deu à luz uma menina a quem chamou Rosa, para recordar a figura inesquecível de Rosa Avigliano.
Peppino casou com a namorada, que estava já grávida de quatro meses. Foi morar com os sogros e não voltaram a entrar em casa os restos da cozinha do Hotel Excelsior.
Os outros dois irmãos apanharam um comboio para o Norte. Disseram que iam à procura de um trabalho melhor.
Passaram os anos e Teresa teve mais dois filhos: um rapaz, que se chamou Pinuccio para recordar o irmão falecido, e uma menina, que se chamou Iosefa para recordar
a mulher que tanto a tinha ajudado.
Tudo tinha mudado naquela cidade. Já não havia greves, nem desordens, nem manifestações. Agora mandavam os fascistas. Faziam-no usando o terror e infiltrando espiões
nas fábricas, faltando às promessas feitas às pessoas que tinham acreditado ver neles uma força capaz de resolver finalmente os graves problemas económicos e de
ordem pública herdados dos governos anteriores.
Tinha acabado a liberdade de imprensa, de expressão e de pensamento. Benedetto foi preso durante uma reunião secreta, processado e mandado para muito longe, para
a Sardenha.
Teresa ficou sozinha com os três filhos e com o pai que, naquela altura, estava já realmente velho e doente.
354
DO SUL AO NORTE MAIO DE 1931
O comboio viajava de noite, em direcção ao Norte. Na carruagem de camas, os passageiros dormiam. Josepha ouvia desde há horas o monótono ruído metálico das rodas
nos carris e não conseguia conciliar o sono. Andava há muito tempo inquieta e, sobretudo de noite, assaltavam-na a angústia do presente e o medo do futuro.
Depois do trágico epílogo do casamento com Enrico Castiglia, casara com Lorenzo, que a fez esquecer muitas amarguras. Acreditou poder finalmente viver com ele dias
serenos, construindo uma família que para ela, filha única e órfã de pais, era sinónimo de amor, de ternura e de calor. A guerra separou-a do marido e começaram
então as angústias e os receios sobre o amanhã.
Assistiu à ruína do seu país, ao desmoronamento dos ideais de que se alimentara. Ao Tirol, que agora se chamava Alto Ádige, voltava raramente. De vez em quando ia
à Áustria, na esperança de reencontrar a atmosfera da infância. Tudo estava mudado. Em Merano, as pessoas estavam descontentes e os italianos faziam o melhor que
podiam para se tornarem odiosos.
O governo fascista tinha imposto a censura e proibido a leitura de jornais alemães, chegando ao ponto de pretender a italianização dos apelidos austríacos, mesmo
nos epitáfios. O italiano tinha-se tornado língua oficial e as crianças eram obrigadas a aprender às escondidas a língua dos pais. Uma vez, Josepha foi ao Registo
Civil de Merano para requerer um documento e descobriu que o seu lugar de nascimento já não era
357
Schloss Rundegg, mas Castel Ango-lotondo. Naquele dia, fechou definitivamente o castelo e regressou a Nápoles.
Com o tempo, acabou por se resignar a estas e a outras mudanças. Afinal, tinha um marido que a amava e dois filhos a crescer. Queria sobretudo ser uma boa esposa
e uma boa mãe.
Evitava freqüentar os novos salões, tão diferentes daqueles que lhe eram familiares quando jovem. O fascismo tinha criado uma classe dirigente muitas vezes vulgar
e ignorante.
Um dia foi obrigada a levar os filhos a um palácio romano para um lanche com os filhos de altos funcionários. Foi um tormento.
- Ofereceram um lanche horrível. E aquelas crianças são completamente mal-educadas - lamentou-se a Lorenzo.
O marido acalmava-a com um sorriso que a desarmava e aquelas palavras que ela já sabia de cor: - A seguir à guerra, tínhamos um governo incapaz de enfrentar qualquer
tipo de problema. As greves impediam todas as actividades. Corríamos o risco de paralisar. Agora, na Europa, estamos melhor do que outros países. Não te preocupes
com coisas pequenas.
Não gostava de ver os filhos de farda negra, a fazerem a saudação romana, e preocupavam-na os caprichos de Thea, que se recusava a estudar e só queria andar a cavalo,
porque nutria uma paixão irracional pelo instrutor, um oficial de ordenança ignorante que tinha mais trinta anos do que ela, uma mulher e sete filhos.
Josepha perdia o sono e irritava-se com Lorenzo, que parecia não se aperceber de nada do que acontecia dentro e fora da família.
- Lorenzo, tu és um sonhador. Passas a vida entre quartéis e ministérios e não te apercebes daquilo que se passa à nossa volta. Garanto-te que a miséria, em Nápoles,
é pior do que a de antigamente. E depois, o que é esta história de fazer filhos a todo o custo - Não há comida que chegue, não há trabalho, a mão-de-obra é mal paga.
Para além disso, quem ousa reclamar é mandado para muito longe. Pergunta à pobre da ama. Ela sabe alguma coisa sobre isso - Tem três filhos e o Benedetto foi desterrado
para a Sardenha por causa das suas idéias de subversivo, como é chamado. Como pode aceitar um regime que até te impede de pensar?
358
Eram palavras deitadas ao vento. De todas as vezes, o marido sorria, abraçava-a e dizia-lhe: - Agora sossega. As coisas vão correr melhor no futuro. Eu acredito
nisso e tu também deves acreditar.
Josepha olhava para os filhos e perguntava-se o que teria o futuro reservado para eles. Giovanni, a quem chamaram logo Nino, tinha apenas doze anos. Entretinha-se
com a Juventude Fascista, mas não tinha espírito de combatente. Era introvertido, tímido e temia a violência. Thea, com dezasseis anos feitos, só pensava no amor
e escrevia bilhetes melados ao instrutor. Num destes bilhetes propôs-lhe fugirem juntos, abandonando tudo e todos. Josepha interceptou-o e foi o fim do mundo.
Agora viajavam a caminho de Milão, onde o marido ia oficialmente assumir o cargo de general do Corpo da Armada de Milão, Bérgamo e Brescia. Josepha não ficou particularmente
contente com o novo cargo do marido, mas sentiu-se feliz por deixar Nápoles, onde já não tinha laços afectivos, para além dos que conservava com a família Alliata.
A princesa Carolina tinha falecido depois de uma doença prolongada, assistida até ao último instante pelo segundo marido. Virgínia vivia nos Estados Unidos com a
filha Isadora e trabalhava com sucesso em Nova Iorque, para o Globe. Uma parte dos inúmeros amigos dos Castiglia tinham-se integrado no novo regime, outros tinham
ido para o estrangeiro, outros ainda retiraram-se para as suas casas de campo, cedendo o lugar aos novos patrões do país.
Nunca mais volto a Nápoles, prometeu a si própria, enquanto o comboio avançava no meio da noite e ela não conseguia conciliar o sono.
Acendeu a pequena lâmpada na cabeceira da cama, enfiou uma mão na bolsa que continha escovas, pentes, sabão, creme e perfume e identificou pelo tacto o frasco da
valeriana. Pegou nele e depois saiu da cama. Moveu-se com cuidado para não acordar o marido, que dormia na cama por cima da dela. Em cima da mesinha encontrou a
garrafa da água e o copo. Contou vinte gotas de valeriana, Juntou um pouco de água e bebeu com um esgar de nojo, porque aquele remédio tinha um sabor horrível. O
médico tinha-lhe receitado aquilo quando ela lhe falou da insónia.
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- O sono é indispensável ao organismo. A senhora precisa absolutamente de dormir. Tome vinte gotas de valeriana todas as noites, antes de se deitar - receitou o
médico.
Josepha não gostava de remédios e apenas recorria a eles quando lhe parecia indispensável. O comboio chegaria a Milão às oito horas da manhã. Precisava realmente
de dormir porque a esperava um dia muito cansativo.
Iam morar no quartel-general do Comando do Corpo da Armada. Sofia estava já em Milão há dez dias, e todas as noites lhe telefonava para a manter ao corrente sobre
as condições da nova residência. Tinha reforçado as ajudas para limpar os quartos de cima a baixo e torná-los habitáveis quando a família ali chegasse. Mas havia
tarefas que só a ela diziam respeito, como a escolha do pessoal, porque Sofia lhe tinha falado mal dos criados que serviam o antecessor de Lorenzo. Para além disso,
precisava de entrar em contacto com o director do liceu onde Nino estava já inscrito. Pensou no filho com ternura.
Desejou que a valeriana produzisse rapidamente efeito. O comboio parou. Olhou através dos vidros mas não viu mais do que a escuridão da noite.
Então, na penumbra criada pela pequena lâmpada por cima da cama, espreitou para o compartimento ao lado, ocupado pela filha. A cama estava vazia. Josepha ficou alarmada.
Thea era fonte de contínuas preocupações, que ela não sabia dominar. Apercebia-se de que fora sempre uma mãe ansiosa, mas tinha também consciência de que Thea era
uma filha muito difícil.
Quando partiu, teve de sofrer, sem responder, à acusação de ter efectuado manobras traiçoeiras para a afastar de Nápoles e do instrutor. Na carruagem-restaurante,
durante o jantar, suportou em silêncio o seu jejum de protesto. Esperava que Lorenzo interviesse, mas o marido ignorou-a.
Às onze horas tinham regressado aos respectivos compartimentos. Aproximou-se da filha para lhe desejar uma boa noite. A rapariga nem sequer lhe deu um beijo. Agora
tinha desaparecido -
Felizmente, o sedativo começava a fazer-se sentir. Apesar de estar preocupada, Josepha não perdeu a calma. Enfiou um roupão í abriu a porta que dava para o corredor.
Thea estava ali, em roupão' e fumava um cigarro com ar de dona do mundo.
360
Junto dela estava um jovem, vestido da mesma maneira. Também ele estava a fumar. Josepha ficou sem palavras.
Thea viu-a e sorriu-lhe.
- Anda cá, mamã. Parece que somos muitos a sofrer de insónia, esta noite. Apresento-te um dos nossos companheiros de viagem. É Guido Battellieri.
Tudo o que Josepha conseguiu dizer num sussurro foi: - Boa-noite. - Estava escandalizada e com sono. Mas agora ninguém, nem mesmo a filha, a ia impedir de dormir.
A valeriana já tinha surtido efeito.
361
MILÃO, COMANDO DO CORPO DA ARMADA MAIO DE 1931
Era meio-dia e Josepha deixou-se cair, extenuada, em cima de uma pequena poltrona forrada de brocado branco e dourado. Sentiu uma leve cedência no encosto e a madeira
rangeu.
- Seria esta a famosa salinha Radetzsky? - perguntou ao marido.
Dois carregadores atravessaram a sala transportando um baú que continha livros e documentos.
- Levem-no para o escritório. Segunda porta à direita - ordenou Lorenzo, indicando um corredor a seguir à salinha. Depois sentou-se ao lado da mulher, num pequeno
divã de três lugares. Sentiu a chiadeira de uma mola. - Não gostas? Eu acho-a tão cheia de atmosfera - afirmou com convicção.
- Talvez fosse nos tempos do marechal Radetzsky. Mas desde então nenhum estofador trabalhou aqui nem em lado nenhum - observou ela, com o habitual sentido prático.
Estava cansada e zangada com a filha, mas aquele não era o momento mais oportuno para contar a Lorenzo o episódio da noite anterior. Desapertou o casaco do tailleur
cor de baunilha, que comprara em Paris, no atelier de Coco Chanel, libertou-se dos sapatos cor de mostarda e estendeu um pé que pousou no joelho do marido.
- Faz-me uma massagem nestes pobres dedos entorpecidos - Pediu-lhe.
Continuava a remoer os seus pensamentos sobre Thea. Às oito da manhã, quando desceram do comboio, confiou-a à mulher
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do oficial de ordenança. Era de Milão. Uma boa senhora disposta a desdobrar-se em esforços por eles. - Leve-ma, por favor, a casa ao meio-dia - pediu Josepha.
- Esta senhora não me vai levar. Vai-me acompanhar. Nunca vais aprender a falar correctamente o italiano - sublinhou a filha.
Josepha sorriu, fingindo mais uma vez ignorar o sarcasmo da rapariga. Gostaria de lhe ter pregado uma bofetada, mas era uma maneira de admitir a sua própria impotência.
Pela mesma razão, considerava oportuno calar essa dificuldade mesmo ao marido. Em qualquer caso, havia de falar mais tarde com Lorenzo sobre o assunto. Tanto mais
que, já o sabia, ele iria minimizar a questão. Mas Thea era, de facto, um problema. Agora até tinha começado a fumar.
Lorenzo massajava-lhe suavemente as extremidades entorpecidas e ela começava finalmente a relaxar. Olhou em volta. Nos últimos dois meses, Lorenzo tinha estado diversas
vezes em Milão, para se inteirar de todos os problemas que o novo cargo comportava. E tinha-lhe elogiado a salinha em que agora se encontravam. - Há um lustre de
Murano do século xvm de uma beleza incrível. Foi um presente das senhoras de Milão ao marechal austríaco que, quando abandonou a Itália, o deixou ali. Há também
dois grandes espelhos da mesma época. São uma maravilha. Por trás de um deles há um "segredo", tão secreto que só foi descoberto há poucos anos, quando revolveram
toda a sala, para a limparem. É claro que estava vazio. Quando foi embora, Radetzsky levou consigo todos os papéis que lhe pertenciam.
Josepha olhou o marido com uma ternura quase maternal.
- Então? Gostas ou não gostas desta sala? - insistiu ele.
Ela não quis desiludi-lo. - É fantástica. Basta arranjar os divãs e as poltronas - respondeu.
- Tu também és muito bonita. Bastava arranjar o teu feitio - replicou Lorenzo, insinuando uma mão por baixo da saia dela.
- Querido, por favor, agora não é boa altura - tentou defender-se.
- Oh, claro que é - murmurou ele, tocando-a ainda mais intimamente. E acrescentou: - Só há uma maneira de inaugurar esta casa: fugir imediatamente para o quarto
de dormir.
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Tinha o rosto ao pé do dela. Lorenzo era irresistivelmente belo e apaixonado. Beijaram-se. Tinham passado vinte anos desde o primeiro encontro e ainda se desejavam
como naquele tempo.
- Vocês os dois, o que é que estão aí a fazer? - perguntou uma voz masculina.
Nino estava à porta da sala e observava-os.
- Rigorosamente nada - respondeu Josepha, embaraçada, enquanto ajeitava a saia.
- No meu quarto, a luz eléctrica não funciona. Anda ver, papá
- disse.
Lorenzo abriu os braços e olhou para a mulher com um ar desconsolado. Depois foi atrás do filho. Josepha, descalça, dirigiu-se devagar ao quarto de dormir.
A cama e o resto dos móveis foram expedidos de Nápoles. Eram móveis ao estilo do século XX que tinham sido executados por um marceneiro de Nápoles, quando regressara
ao Sul com Lorenzo e a pequena Thea, vindos do Tirol. Nino fora concebido naquele grande leito confortável, logo abandonado porque ela teve de acompanhar o marido
a Trípoli. Felizmente, a estadia africana durou poucos meses e Nino nasceu em Nápoles.
- Será que alguma vez na minha vida vou ter uma residência estável? - interrogou-se em voz baixa, deixando-se cair, desamparada, em cima do colchão.
Fechou os olhos e passou em revista as coisas que já estavam feitas e aquelas que ainda faltava fazer.
Logo que chegou, admitiu o pessoal doméstico, depois de Sofia, muito eficiente, ter já feito uma primeira triagem.
Iam entrar ao serviço no dia seguinte e era preciso tratar das fardas. Havia ainda a questão do jardim para resolver. Só o tinha visto de relance e não lhe parecera
muito bem cuidado. Finalmente, tinha de enfrentar a filha. Essa era a tarefa mais difícil, que ela conseguira esquecer durante algumas horas. Ouviu bater à porta.
- Pode entrar - disse, com uma voz cansada. A porta abriu-se e Thea entrou.
Vestia um fato de duas peças, em malha de lã violeta. A saia de Pregas e a blusa de decote em bico faziam realçar a silhueta esguia, um fio de ouro de malha fina
oscilava-lhe no peito. O cabelo loiro, curtíssimo e encaracolado,
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emoldurava um rosto de maçãs bem marcadas. Tinha os mesmos olhos sorridentes do pai. Às vezes conseguia ser de uma doçura comovente, apesar de assumir muitas vezes
comportamentos masculinos que muito irritavam Josepha. Cavalgava como uma possessa. Andava de bicicleta sempre no limiar do acidente. Às escondidas, sentou-se ao
volante do automóvel do pai, sem saber conduzir, e amolgou a carroçaria. Abandonou os estudos antes de obter qualquer diploma, alegando que o Sacro Cuore não era
um colégio, mas uma prisão. Deixou de estudar piano, porque os exercícios eram demasiado aborrecidos. Mas jogava ténis com paixão e passava horas extenuantes a atirar
bolas, sem se aborrecer.
Josepha gostaria muitas vezes de saber o que se escondia dentro daquela cabecinha tão graciosa. Thea era um livro fechado.
- Se ao menos eu soubesse o que ela pensa - lamentava-se Josepha ao marido.
- Aquilo que pensam todas as raparigas de dezasseis anos. Aquilo em que tu pensavas: no amor - respondia Lorenzo. E o assunto ficava encerrado.
- Senta-te aqui ao pé de mim - disse-lhe então, dando-lhe espaço em cima da cama.
- Tenho de te dizer que gosto muito de Milão. Felizmente, as senhoras aqui são alegres e cheias de vivacidade. Sabias que há um baloiço muito grande no jardim? Fui
ao picadeiro coberto. Chama-se Raggio di Sole. E também há um belíssimo campo de obstáculos. Vi o Indo. Está óptimo - disse. Indo era o poldro árabe que Lorenzo
lhe oferecera alguns meses atrás. - Também conheci o marechal Molin. Vai andar a cavalo comigo. Sossega, porque é suficientemente velho para ser meu avô - continuou.
- E também porque entretanto conheceste um tal Guido Battellieri que te oferece cigarros no corredor de um comboio, a meio da noite - comentou Josepha. - Gostava
de saber mais qualquer coisa sobre essa história.
- Queres a verdade?
- Digamos que estou à espera disso.
- Não há história nenhuma. Esta noite não conseguia adormecer. Durante algum tempo li aquele romance que me aconselhaste, O Grande Gatsby. Já te digo que a leitura
em inglês é bastante
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cansativa. Um dia ainda aceito o convite da Virgínia e vou a Nova Iorque. Assim passará a tornar-se um prazer ler romances na língua original.
- Dorothea, não fujas ao assunto. Estamos a falar de outra coisa - interrompeu Josepha. Quando se zangava tratava a filha pelo nome inteiro.
- Não estou a fugir. Quando muito, estou a divagar - corrigiu-a com a precisão habitual.
Josepha deixou escapar um suspiro que parecia um lamento. - Está bem. Não divaguemos, e continua.
- A certa altura, levantei-me, enfiei o roupão e saí do compartimento. Encontrei aquele rapaz que estava a fumar um cigarro. O que é que eu devia fazer? Fugir com
o coração aos saltos a gritar: "Oh meu Deus, um homem de roupão"? Cumprimentei-o. Estamos em 1931. As pessoas já não viajam de caleche. Os aviões rasgam os céus.
Na América dança-se o charleston. As mulheres têm os mesmos direitos que os homens. Ele ofereceu-me um cigarro e eu aceitei. Ele apresentou-se e eu também. Fim de
uma história inexistente. Depois chegaste tu, como sempre, para estragar tudo - concluiu Thea.
A mãe observou-a com um ar pensativo. - As mulheres têm os mesmos direitos que os homens. Gostavam de ter, mas nem sequer lhes é permitido votar. Há quanto tempo
começaste a fumar?
- Foi a primeira vez. Achei agradável.
- Uma rapariga de bem não fuma. Só fumam as cançonetistas, as actrizes e as prostitutas.
- Não pertenço a nenhuma dessas categorias e fumei. Devo esperar que me fuzilem? - perguntou com ar de provocação.
- És muito estúpida, se pensas que me dás a volta com essa tua ironia grosseira. - Josepha fazia um esforço para não se sentir atingida pelas provocações da filha,
mas estava irritada.
Sofia apareceu à entrada da porta. - Daqui a dez minutos o almoço está na mesa - anunciou. E precisou: - Por hoje vão ter que se contentar com aquilo que a cantina
servir.
Thea torceu o nariz. Depois olhou para a mãe com um ar divertido. - As mesmas palavras que a Sofia repetia em Tripoli, quase todos os dias. Lembras-te? Eu era pequena,
mas não me esqueci. "Vão ter de se contentar com aquilo que a cantina servir."
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E era sempre um pão peganhento e queijo de cabra. Metia-me nojo e mesmo assim tu obrigavas-me a comer. Ainda me lembro do nosso apartamento do primeiro andar daquela
rua comprida. Como é que se chamava? Rua Azizià, acho eu. Lembro-me daquelas nuvens de moscas que acabavam por ir morrer numas tiras compridas de papel com insecticida
penduradas nos candeeiros e do zumbido das pás das ventoinhas, e das camas com mosquiteiros e do pequeno engraxador no fundo da rua que punha a brilhar as botas
do papá e os meus sapatos. Havia um anão com uma cabeça enorme, vestido com um saco de serapilheira. Eu julgava que era o Maomé, sabe-se lá porquê. O deserto começava
onde acabava a rua. Lembro-me dos cheiros, das vozes daquele lugar horrível. E do teu nervosismo. Estavas grávida do Nino e tinhas uma barriga deste tamanho. Mas
eu não devia saber disso. Disseste-me que a barriga te tinha crescido muito porque tinhas apanhado uma indigestão de tâmaras. Não querias que eu as comesse. Mas
por que é que te estou a contar isto tudo? - perguntou, levantando-se da cama.
- Não sei, mas gostei muito de te ouvir - disse Josepha, sorrindo-lhe com ternura. Levantou-se também e sentou-se ao pé do toucador. Tinha a forma de um feijão e
era coberto até ao chão por uma cascata de organza branca. No tampo estavam alinhados alguns frascos de cristal, escovas e pentes de várias dimensões com cabos de
prata e tartaruga, caixas de talco e pó-de-arroz e boiões de creme.
Tinha chegado da América a moda do verniz para as unhas em todos os tons de vermelho. Josepha não o usava, assim como não usava rouge nem rimmel para as pestanas.
Thea, pelo contrário, não via a hora de chegar aos dezoito anos para se poder pintar. Por enquanto, ainda não lhe era permitido.
Josepha arranjou o cabelo com umas escovadelas enérgicas.
A filha, em pé ao lado dela, olhava a sua própria imagem reflectida no espelho oval oscilante.
- Querias que te dissesse a verdade. Agora vou dizer-te. Gosto do Guido Battellieri. Acho que estou apaixonada por ele - confessou.
- Mas não o conheces, nem sequer sabes quem é - objectou Josepha.
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Depois lembrou-se da primeira vez que tinha encontrado Enrico Castiglia. Tinha a idade de Thea. Não sabia quem era. Mas bastou que ele olhasse para ela, que lhe
pousasse os lábios nas costas da mão, para se apaixonar imediatamente.
- Tem um olhar magnético. E um perfume de morrer - disse a filha.
Ela abanou a cabeça, voltou a suspirar e pensou que Thea já era uma mulher. Era preciso arranjar-lhe marido o mais depressa possível.
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NÁPOLES - VIELA DA DUQUESA SETEMBRO DE 1931
Teresa entrou em pontas de pés no quarto do pai. Através das persianas entravam lâminas de luz. O ar estava escaldante. Aquele Setembro napolitano, abafado e sem
chuva, cortava a respiração, sobretudo aos idosos.
Aproximou-se da cama. Matteo, coberto apenas com um lençol, tinha os olhos abertos e olhava para ela.
- Como está, pai? - perguntou-lhe, inclinando-se para ele. Trazia na mão uma chávena de café.
- Estou bem - respondeu, com uma voz débil.
- Arranjei-lhe um bom café, com bastante açúcar. Veja só que aroma. Quer? - O café era um luxo que Teresa lhe permitia apenas a ele. Para ela, fervia os restos e
juntava-lhes chicória.
Matteo concordou. Teresa levantou-lhe a cabeça e encostou a chávena aos lábios do pai. Ele bebeu um gole. Escorregaram algumas gotas ao longo do queixo. Teresa limpou-o
com o avental.
- Mais um bocadinho? - insistiu com doçura.
- Já chega. Obrigado.
Fez-lhe uma festa no rosto. - Está com a barba muito comprida. Vou fazer-lha agora - decidiu.
- Trata dos teus filhos - disse ele.
- Eles já são grandes - tranqüilizou-o, enquanto fazia espuma com duas lascas de sabão e um pouco de água dentro de uma tigela de barro. Depois pincelou-lhe o rosto
e começou a barbeá-lo.
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Quando acabou o trabalho, lavou-lhe as faces com um farrapo húmido, penteou-lhe o bigode e o cabelo, bateu o travesseiro e arranjou o lençol.
- Já está - sorriu-lhe, com um ar satisfeito.
- Il becco all'oca e la barba al podestà(1) - respondeu ele, retribuindo o sorriso.
- Desde pequena que o ouço repetir essas palavras depois de fazer a barba. Não me quer explicar o que querem dizer? - perguntou, curiosa. Entretanto, ia arrumando
a tigela, o pincel e a navalha.
- Aprendi com o meu pai. Na verdade, ele dizia: Ecco fatto il becco all'oca e le corna al podestà. E olhava para a mulher, ou seja, para a tua avó Lina, com um olhar
feroz, porque se dizia que ela o enganava - explicou.
- E era verdade? - perguntou, incrédula, recordando aquela velhinha desdentada, preguiçosa, sempre à beira do choro.
- Como é que eu hei-de saber? Sei que ele a enganava a ela. Mas para um homem, já se sabe, isso é só um motivo de orgulho -afirmou.
- Não, senhor. Um bom marido não engana a mulher - protestou, e voltou-lhe à idéia a dor provocada pela já distante infidelidade do marido. Então, anunciou: - Chegou
uma carta do Benedetto.
- O que é que diz?
- Quem me dera a mim saber. A censura, como sempre, cortou tudo. Começa como de costume, com "minha querida mulher", depois há duas páginas apagadas e acaba com
"o teu marido Benedetto Zicri". Nem sequer sei se recebeu os sapatos com as solas novas e as camisolas para o Inverno - lamentou.
- És uma grande mulher - disse Matteo, e estendeu uma mão para lhe fazer uma festa no rosto. Mas parou a meio do caminho. Era muito cansativo. Por isso acrescentou,
com um suspiro: - Agora já não passo de um velho inútil.
Matteo Avigliano tinha ficado de cama durante a Primavera, dizendo que já estava com os pés para a cova. Nunca mais se quis levantar. Não voltou a ir trabalhar.
Quando Teresa não lhe levava a comida à cama,
*1. Expressão napolitana que significa que está tudo pronto e em ordem. (N. da T.)
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passava sem as refeições. Uma vez chamou o médico, que o observou cuidadosamente e depois disse: - Não tem nada. A única coisa que tem é cansaço. Trabalhou toda
a vida. Deixem-no descansar.
Ele respondeu: - Não estou cansado. Já não tenho é vontade de viver.
Para o espevitar, Teresa censurava-o às vezes asperamente. - Não pensa nos seus netos? Nós aqui precisamos do seu salário. Vamos morrer à fome por sua culpa. - A
resposta foi: - Não me venhas dizer isso a mim. Vai ter com aquela cabeça quente do teu marido. Se tivesse tratado só da vida dele, não o tinham mandado para os
confins. - Ela explodiu: - Se não se tivesse casado com a Rosália di Giacomo, aquele fascista reles do filho dela não tinha denunciado o Benedetto. - Matteo começou
a chorar como uma criança. Ela envergonhou-se por ter dito, pela primeira vez, aquilo que pensava desde sempre. - Desculpe, pai - suplicou, abraçando-o.
- É por isso que eu quero morrer. Já não consigo aguentar o peso de todas as confusões que armei, sobretudo a ti.
A tempestade passou. Ele não mudou de idéias. Estava a ficar cada vez mais fraco. Já quase não comia. Não iria ver outro Inverno. Ela só podia assisti-lo com amor.
E trabalhar mais. Fazia ambas as coisas de boa vontade. Tinha inventado, quase por acaso, uma profissão em que tinha muito orgulho: cozinheira à tarefa.
Mais uma vez, era Josepha quem estava na origem desta nova profissão, porque, quando vivia em Nápoles, se lamentava pelo facto de o cozinheiro não saber preparar
as almôndegas nem os sonhos com compota de papoila.
- Tu tornaste-te uma grande cozinheira das nossas receitas - disse-lhe.
- Se quiser, uma destas noites preparo-lhe um jantar à moda do Tirol - propôs ela, quase por brincadeira.
- E a Sacher-Torte? Ainda te lembras como se faz? - indagou Josepha.
- É ver para crer - garantiu ela.
Os Valeschi tinham vinte convidados para o jantar e a refeição Preparada por Teresa foi um verdadeiro sucesso. As mulheres de alguns dos convivas quiseram conhecer
a cozinheira para lhe proPorem trabalhar para elas também. Josepha apresentou-a
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e definiu a remuneração, que a Teresa pareceu exorbitante. As senhoras que, depois daquele jantar, a convocaram, acharam-na aceitável. Assim, em poucos meses, Teresa
alargou a roda de clientes e, desde há anos, conseguia com o seu trabalho sustentar toda a família.
- Pai, agora tenho de ir para casa do Dr. Malgioglio. Tem quinze convidados hoje à noite. Vou descer e mandar os meninos para cima. A Rosa trata de aquecer o jantar
e de lhe dar um bocado de sopa. Prometa-me que come sem inventar histórias - disse.
Ele assentiu. Ambos sabiam que não ia cumprir a promessa. Teresa meteu na saca um vestido de algodão azul com colarinho branco e dois aventais: um para trabalhar
na cozinha e outro, de renda, para servir à mesa. O Dr. Malgioglio era um jornalista de Il Mattino. Era solteiro e tinha uma criada idosa que mal se aguentava nas
pernas. Teresa já tinha estado outras vezes em casa dele e sabia que também teria de servir à mesa. Por isso, de qualquer modo, teria uma remuneração suplementar.
Depois teria de lavar pratos, copos e talheres. Não regressaria a casa antes da meia-noite. Saiu de casa.
Na viela, as crianças brincavam e faziam muito barulho. Pinuccio e Iosefa estavam no meio dos miúdos mais enérgicos. Teresa chamou-os e repreendeu-os por fazerem
muito barulho. Depois perguntou: - Onde é que está a vossa irmã?
- Já a conheces. Vai sempre dar uma volta - respondeu Iosefa, encolhendo os ombros.
Rosa tinha doze anos. Seis dias por semana, depois de acabar a escola primária, trabalhava na oficina de uma rendeira. Teresa esperava que ela aprendesse o ofício:
as boas rendeiras eram trabalhadoras com sorte, porque ganhavam bem sem estragar as mãos, antes pelo contrário, tinham umas mãos muito bonitas, tão sedosas como
os tecidos que bordavam. A menina Claretta, que as trabalhadoras tratavam respeitosamente por mestra, era uma das mais requeridas da cidade. Da sua oficina saíam
os enxovais mais preciosos. Rosa trabalhava com ela havia já um ano. Não recebia nenhuma remuneração, porque ainda não lhe era permitido pegar na agulha. Lavava
o chão da oficina, punha os vidros a brilhar para que nenhum fio de luz se perdesse, enrolava as dobadoiras, afiava as tesouras, ia a compras, preparava o café,
aquecia a comida que cada uma trazia de casa
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lavava pratos e chávenas e massajava os ombros entorpecidos das bordadeiras.
- Nem o ponto aberto te deixa fazer? - perguntava Teresa quase todas as noites.
- A mestra diz que ainda não estou preparada - desculpava-se a filha.
- Nem nunca vais estar, se não pegares na agulha - desabafava ela, irritada. Sentia-se ludibriada por aquela mestra que explorava uma rapariga e não lhe ensinava
nada.
Nos Reis e na Páscoa, as trabalhadoras levavam presentes à mestra. Rosa também queria fazer como elas.
- É um acto de servilismo inaceitável. Devia ser a mestra a dar-te um presente a ti, e não o contrário. Um destes dias vou à oficina e digo-lhe como é, à tua mestra
- disse, furiosa.
- Mãe, não faças isso, peço-te. Ia ficar envergonhada para sempre. - Rosa chorou e Teresa suspirou. Não era fácil impor-se. Mas revoltava-se contra certas formas
de exploração que prejudicavam sempre quem não era capaz de se defender.
- A questão é que tu também tens de começar a trazer algum dinheiro para casa. Estás a ver em que situação nós estamos. O avô está doente, o teu pai está desterrado,
os teus tios foram-se embora e estão muito bem, muito obrigado. Se eu ficasse doente, como é que conseguiríamos viver? - Esforçava-se por incutir responsabilidade
àquela miúda, que deveria viver a adolescência com serenidade. Teresa sabia como era cansativo o caminho para adquirir os direitos mais elementares. Tinha tido uma
vida de fadigas, dores e humilhações. Esperava que o mundo se tornasse melhor para os filhos. Partilhava há muito tempo as idéias do marido e quase sentia orgulho
por o fascismo o ter condenado. Teresa não detestava o regime por não ter cumprido as promessas. Os outros governos também se tinham comportado da mesma maneira.
Nem sequer o detestava pelas mentiras que contava todos os dias. Os governos Precedentes eram igualmente mentirosos. A aversão que sentia nasCia do clima de terror
que se respirava por todo o lado.
Tinha conhecido o marido durante uma manifestação afogada em sangue. Tinha havido outras ainda piores. Mas, nessa altura, as pessoas podiam protestar. Agora só se
podia calar e obedecer.
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As crianças continuavam a ser exploradas, as mulheres eram ainda pagas abaixo do razoável e os homens recebiam salários de fome.
- Mãe, arranja-me um trabalho com um ordenado - disse Rosa, sentindo-se humilhada.
- Não te preocupes. Eu estou de boa saúde e por enquanto não nos falta o necessário - tranqüilizara-a.
Agora olhou para o topo da viela, à espera de a ver chegar. E viu-a.
Recordou então a rapariga estranha e vagabunda que tinha sido quando era da idade da filha. Sorriu e foi ao encontro dela.
- Onde estiveste? Não, não me digas. Quero adivinhar. Foste dar uma volta - disse.
Rosa assentiu.
- O que é que fazes, quando vais dar uma volta?
- Olho para as pessoas, para os palácios, para as igrejas - explicou a rapariga.
- De quem terias tu herdado isso? - suspirou Teresa, recordando os suspiros da mãe. E acrescentou: - O avô está sozinho em casa e sente-se triste. Vai para cima
com os teus irmãos. E não voltem a sair - ordenou.
- Mas eu queria ir ao cinematógrafo com as minhas amigas - protestou a rapariga.
- Esquece o cinematógrafo. Não há dinheiro. No meu quarto estão os livros do teu pai. Pega num e lê-o.
- Mas eu tenho dinheiro - disse Rosa, mostrando uma nota de cinco liras que tinha no bolso do vestido.
- Oh, meu Deus! Quem te deu esse dinheiro? - perguntou a mãe, alarmada.
- Foi um senhor. Chama-se Renato. Disse-me que é meu tio, que tu o conheces, que gosta muito de nós todos e que nos pode ajudar, se nós precisarmos - disse ela de
enfiada, com um ar inocente.
Teresa empalideceu. O seu coração começou a galopar, enlouquecido. Sentiu rios de suor que lhe ensopavam o vestido de algodão. Estava aterrorizada.
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- Pai! O senhor tem de sair já dessa cama. Não quero ouvir dizer que está com os pés para a cova. Aqui toda a gente acaba por ir parar à cova - berrou Teresa, abanando
o pai com a força do desespero.
Os filhos, à entrada da porta, olhavam-na sem perceber.
- Teresella, enlouqueceste? - perguntou Matteo.
- Sim! Enlouqueci. Renato di Giacomo abordou a minha filha. Disse-lhe que é tio dela e meteu-lhe isto na mão - gritou, agitando em frente dos olhos do pai a nota
de cinco liras.
- Desgraçado! - exclamou o pai, esbugalhando os olhos. E levantou-se da cama com uma agilidade inesperada.
- Eu tenho de ir trabalhar. E estou atrasada. Aquele delinquente espia-nos desde sempre. Tenho a certeza de que anda por estes lados e que sabe que os miúdos estão
sozinhos. O senhor sabe o que tem a fazer - avisou Teresa, dominada pelo medo. Era claro que o enteado do pai tentava corromper Rosa e não se admirava nada que ele
a quisesse violentar. - Mas será possível que nunca cheguemos a ter um momento de paz? - explodiu, olhando as três Crianças com desespero.
- Vai trabalhar - ordenou Matteo, que já tinha enfiado as calças e a empurrava para fora de casa.
Tem de trancar bem a porta da entrada, e não abra a ninguém, por nenhuma razão - preveniu. E acrescentou: - Quando eu descer, aviso os vizinhos.
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Pinuccio pegou-lhe num braço e falou também para os irmãos: - Mãe, é como a história dos três porquinhos e do lobo mau?
- Tal e qual - assentiu Teresa. - Estas cinco liras são malditas.
Desfez a nota em pedaços e mandou Pinuccio deitá-la nas brasas. Foi obrigada a apanhar o eléctrico para chegar a tempo a casa do jornalista Malgioglio. E durante
o trajecto cresceu-lhe a ira e o medo. O que poderia ela fazer para proteger os filhos? Renato era um homem do regime, muito poderoso. O fascismo servia-se de personagens
como ele para as tarefas mais sujas. E protegia-os. Nem sequer o podia denunciar, porque, no fim de contas, o que é que ela podia dizer? Que um tio tinha dado cinco
liras à sobrinha pequena?
Na cozinha do jornalista encontrou em cima da mesa os ingredientes para o jantar. Começou a lavar os legumes e a cortá-los. De cada vez que enterrava a lâmina numa
cabeça de aipo ou num tomate era como se estivesse a cortar a cabeça àquele malvado.
O dono da casa apareceu à porta para se certificar de que estava tudo a postos e viu o rosto transtornado de Teresa.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou-lhe.
Era um homem com cerca de cinqüenta anos. Devia ter mais ou menos a idade do pai dela, mas parecia muito mais novo.
- Doutor, não me ligue, porque eu hoje tenho o diabo na cabeça - respondeu secamente, continuando a dar golpes com a faca.
O jornalista olhou para Peppina, a velha criada que estava sentada ao lado da janela a descascar ervilhas, com um ar interrogativo. A mulher, com um gesto eloquente
de cabeça, deu a entender que Teresa estava realmente furibunda, mas mais do que isso não sabia.
- Posso ajudar-te a expulsar esse diabo? - perguntou, sentando-se junto à mesa. Tinha na mão o colarinho engomado da camisa e abanava-o em frente à cara, para aliviar
o calor daquele dia abafado e dos fogões acesos.
Teresa freqüentava aquela casa há três anos e, mais do que uma vez, tinha acontecido trocar algumas palavras com o jornalista, e sabia que ela tinha um marido na
prisão, um pai doente e três filhos para criar.
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- Consegue limpar os fascistas da face da terra? - perguntou Teresa, passando um braço pela testa para limpar o suor.
- Teresa! Percebes aquilo que estás a dizer?
- É isso mesmo. Portanto, doutor, não pode fazer nada. E, então, para que estou eu a falar consigo? Vá-se embora, por favor, porque não tenho tempo para perder em
conversas - replicou secamente.
O jornalista, no entanto, parecia disposto a suportar o calor da cozinha e o mau humor da cozinheira para saber mais. A curiosidade era uma doença profissional,
tal como a capacidade de distorcer informações.
Ela acabou por lhe contar tudo, ou quase, enquanto recheava as lulas com pão ralado, salsa, sal, azeite e alho.
- Agora estou aterrada com a idéia de que ele possa abordar a rapariga - concluiu.
- É melhor não te meteres com os fascistas. Aquele já era um delinquente mesmo antes de vestir a camisa negra - comentou ele. E continuou: - Disseste bem: não o
podes denunciar. Mas deves estar atenta. Se te voltar a incomodar, tu dizes-me, e eu penso no assunto - tranqüilizou-a.
Quando chegaram os convidados, ela já se tinha lavado e mudado e apresentou-se na varanda com o tabuleiro dos aperitivos.
O sol estava a pôr-se. Soprava do mar uma brisa ligeira que suavizava o calor. Por baixo da pérgola coberta de roseiras em flor, os amigos do Dr. Malgioglio discutiam
temas que não interessavam a Teresa.
Falavam de política, de literatura e de espectáculos. Pronunciavam nomes de artistas, de escritores e de parlamentares, sempre os mesmos. Para ela não significavam
nada. Para eles, eram fonte de disputas, de brincadeiras, de mexericos e de risota.
Os homens vestiam todos da mesma maneira: fato de linho claro, colete cinzento e camisa branca. Tinham os cabelos reluzentes de brilhantina perfumada. As senhoras
eram decididamente mais 'imaginativas. Usavam vestidos de seda de cores vivas, com decotes Pronunciados no peito ou nas costas, o corpo descido até à anca ou aPertado
na cinta e as saias ligeiramente abaixo do joelho. Tinham todas o cabelo curto, como exigia a moda do momento. Muitas fumavam cigarros enfiados em longas boquilhas
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de ébano, tinham as faces coradas pelo rouge, os olhos escurecidos pelo lápis e as unhas pintadas de vermelho. Uma das senhoras distinguia-se das outras. Trazia
um vestido simples de linho branco, tinha o rosto bronzeado, sem maquilhagem, e os cabelos compridos apanhados na nuca. Estava sentada num divã, ao lado de uma rapariga
lindíssima, e falava pacatamente com o Dr. Malgioglio.
- Estás a ver, Dino - dizia ela, enquanto Teresa se aproximava com o tabuleiro dos aperitivos -, se tentas compreender as reivindicações das feministas através das
actas do congresso, perdes-te. Usam uma linguagem empolada e estéril capaz de desencorajar qualquer pessoa. No entanto, se leres o romance de Sibila Aleramo Una
Donna, encontrarás a síntese sofrida das discriminações, das injustiças e da escravidão a que o século XIX condenou as mulheres. É uma denúncia extraordinária, lúcida
e eficaz. E a situação, hoje, não é muito diferente. Mesmo na América, onde as mulheres são sensíveis... - Não acabou a frase. Tinha visto Teresa e um vago tom de
vermelho espalhou-se-lhe no rosto.
Também Teresa olhou para ela e, naquele momento, não a reconheceu. Recordava que a princesa se vestia de um modo extravagante e que, quando falava, tinha sempre
um tom irónico e enjoado.
Soubera por Sofia que Virgínia vivia em Nova Iorque, onde trabalhava e onde adoptara uma menina.
- Tu és a Teresella! - exclamou a princesa.
- Ao seu dispor - replicou a mulher, baixando o tabuleiro para que ela se pudesse servir.
- Como estás? - perguntou.
Teresa pensou que, com o passar dos anos, as pessoas melhoram, às vezes.
Aquela rapariga tão bonita que estava ao lado dela devia ser a filha adoptada. Olhou-a com curiosidade, porque aquele rosto tinha alguma coisa de familiar. Virginia
levantou-se e propôs-lhe de repente: - Acho que ao fim de tantos anos podemos conversar um pouco.
Segurou-a por um braço e empurrou-a para dentro do escritório do dono da casa. Teresa pousou o tabuleiro em cima de uma mesa.
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- Peço-te perdão por te ter feito sofrer - começou, simplesmente.
Teresa olhou-a e empalideceu.
- Passou já muito tempo e, no entanto, o meu sentimento de culpa em relação a ti nunca me deixou. Eu estava apaixonada pelo Benedetto e ele, pelo contrário, só te
amava a ti. Desapareceu de um dia para o outro e não o voltei a ver. Sofri muito por causa disso, mas, a custo, comecei a compreender o que queria da vida. Há muito
tempo que estou tranqüila e Isadora, a minha filha, tornou-me feliz. Era isto que eu te queria dizer, durante estes anos todos.
Teresa levou uma mão à testa. Sentiu a cabeça andar à roda e deixou-se cair sobre uma cadeira.
Recordou o perfume que Benedetto levava sempre com ele quando regressava a casa, à noite. Sempre se recusou a saber quem era a mulher com quem a enganara, ainda
que o marido, em diversos momentos, tivesse tentado falar-lhe sobre isso. Portanto, era Virginia.
- Eu não sabia que era a senhora - balbuciou. Depois voltou a pensar no rosto da rapariga, e acrescentou num sussurro: - Então, a sua filha...
- É minha - afirmou Virginia decidida, interrompendo-a. - Isadora é só minha - repetiu com força, e prosseguiu: - Adoptei-a. Lamento muito, Teresa. Nunca te teria
dito nada, nem esta noite nem nunca, se soubesse que o Benedetto não te tinha falado de mim. Por favor, não lhe contes esta nossa conversa. É uma história antiga,
sem consequências, pertence a um passado distante. Não estraguemos aquilo que temos de mais precioso nas nossas vidas, as nossas famílias e os nossos afectos. Concordas
comigo?
As duas mulheres olharam-se nos olhos durante muito tempo, sem falar. Teresa inclinou a cabeça em sinal de assentimento. Não ia voltar a abrir aquele capítulo da
sua vida, que se tinha concluído definitivamente com a confissão de Virginia. Era o presente que a aterrorizava. E tinha o rosto ameaçador de Renato di Giacomo.
Voltou-se e saiu.
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Teresa regressou a casa. Tinha uma pedra no coração que não conseguia remover e sentia-se sufocar. O filho da madrasta era um pesadelo que não lhe dava sossego.
Os filhos já tinham jantado e arrumado a cozinha. Ficou-lhes grata por isso. Agora estavam os três a dormir. O pai estava acordado.
- Vieste cedo - constatou.
- Desculpe-me por eu hoje estar muito nervosa - pediu ela, em voz baixa.
- Tens boas razões para isso - replicou ele.
- As crianças portaram-se bem? - perguntou.
- Muito bem. Já lhes expliquei quem é aquele cavalheiro chamado Renato di Giacomo. Eles perceberam - sussurrou.
Teresa andou às voltas pela casa silenciosa e escura, como uma alma penada. Estava com problemas e não sabia como havia de os resolver.
Mais uma vez, só tinha uma possibilidade: a fuga. Era uma estratégia testada, que já tinha funcionado. Salvara-se da madrasta dos filhos dela, fugindo. A seguir,
recuperara o marido da mesma maneira. Tinha de ir embora outra vez.
Pegou num papel e numa caneta, sentou-se à mesa e começou a escrever: "Queridos irmãos...". A elaboração da carta obrigou a algumas alterações. Depois transcreveu-a
com uma bonita caligrafia.
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Era um pedido de ajuda a Ciro e Salvatore. O coração e a inteligência diziam-lhe que não ia cair no vazio.
Quando se estendeu na cama, respirava melhor, como se a pedra que a oprimia estivesse a desfazer-se. Na manhã seguinte, decidiu acompanhar Rosa até à oficina da
rendeira.
- Não quero que aquele homem feio te atormente - explicou-lhe. - E logo à noite venho buscar-te. Vou dizer à tua mestra para não te mandar à rua.
- Por favor, mãe, não faças isso. Ia sentir-me humilhada - suplicou Rosa.
- Não deves ter vergonha pelo facto de um homem te perseguir. Quando muito, ele é que devia ter vergonha.
A rapariga inclinou a cabeça, resignada. Não podia contrariar a vontade da mãe. Às vezes perguntava-se como seria a sua vida, se o pai vivesse com eles. Teresa não
era meiga com os filhos. Uma vez, Pinuccio pediu-lhe um beijo e ela perguntou-lhe: - Porquê? O que fizeste de tão especial para o mereceres? - Uma noite, porém,
Rosa surpreendeu-a a tocar com os lábios a testa de Iosefa, que dormia profundamente. Perguntou-lhe: - Porquê a ela e não a mim? - Ela respondeu-lhe: - Os filhos
só se beijam quando estão a dormir. - Assim Rosa ficou a saber que tinha recebido a sua parte de ternura durante o sono. Benedetto, pelo contrário, enchia-os de
mimo. Divertia-se a brincar com eles e fazia-lhes cócegas que os punham a rir até às lágrimas. Andava com eles em cima dos ombros, um de cada vez. Ela sentia-se
altíssima quando se segurava com as pernas ao pescoço do pai e lhe apertava a cabeça com os braços.
- Spallarm - dizia Benedetto, usando aquela palavra da gíria militar para os convidar a trepar-lhe para os ombros.
- Quando é que o pai volta? - perguntou Rosa.
- Daqui a um ano, já sabes.
- Aquele tio mau disse-me que, se eu lhe pedir, pode escrever Uma carta para fazê-lo voltar já - revelou Rosa com um fio de voz.
Estavam perto da oficina, a meio do Corso Garibaldi, entre o
ruído metálico dos eléctricos, o movimento dos automóveis e a
Passagem de carroças e bicicletas. Teresa estacou, no meio da rua, arriscando-se a ser atropelada por um motociclista que fez uma travagem súbita e foi contra a
carroça de um vendedor
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ambulante cheia de alhos e limões. Parte do conteúdo entornou-se na calçada e dois automóveis foram obrigados a uma travagem brusca. Um eléctrico parou de repente
e o condutor começou a tocar a campainha. O motociclista lançou alguns impropérios contra Teresa, enquanto era insultado pelo vendedor ambulante. Armou-se uma balbúrdia.
Rosa conseguiu arrastar a mãe e pô-la a salvo em cima do passeio. Recebeu uma estalada como recompensa.
- E só agora é que me dizes? Mas por que é que falas a conta-gotas?! - gritou Teresa. E perguntou: - O que é que eu hei-de fazer com uma filha como tu?
- Ontem não me deste tempo de te dizer. Estavas furiosa e eu fiquei confusa - defendeu-se.
- Rosa, ouve bem - disse Teresa, baixando a voz -, todas as palavras daquele homem são mentira. Nesta altura, não sei o que é que ele tem na idéia, mas o que quer
que seja é uma coisa má. O teu pai foi desterrado por causa dele. Foi ele quem o denunciou. Se não fosse assim, o pai estava aqui, connosco, tinha um trabalho e
um salário honesto e os homens como o Renato di Giacomo estavam na cadeia. Percebeste?
- Sim, mãe, mas acalma-te, porque estás a olhar para mim de uma maneira que me mete medo.
- Não tenhas medo da tua mãe. Eu nunca te vou fazer mal. És minha filha e quero-te mais do que à própria vida - afirmou, subitamente mais calma.
Entregou a filha à rendeira e depois foi ao correio mandar a carta para os irmãos, que viviam numa pequena cidade perto de Milão: Cernusco sul Naviglio.
Apanhou o eléctrico e foi até Posillipo. Tinha de acertar com Sofia os ingredientes para um jantar que os Valeschi iam oferecer por ocasião da visita de uma personalidade
política, vinda de Roma.
Sofia tinha-lhe dito que os Valeschi tinham sido transferidos para Milão. Mas durante o Verão alugaram uma villa em Posillipo numa zona que Teresa conhecia bem,
porque já ali tinha sido chamada várias vezes para preparar refeições.
Era uma bonita construção do século XIX, rodeada por um grande jardim. Sofia veio ao encontro dela e conduziu-a para as traseiras, em direcção à cozinha, que ficava
numa meia cave.
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Do jardim chegou um rumor de passos ligeiros sobre o saibro e, logo a seguir, no vão em arco da porta perfilou-se a figura esguia de uma mulher jovem vestida de
cavaleira.
- O meu pequeno-almoço, Sofia. Leva-o para o jardim. Quero duas sfogliatelle(1) quentes. Estou esfomeada - disse Thea, e só nesse momento se apercebeu da presença
de Teresa. Então desceu de um salto os três degraus e agarrou-se a ela num grande abraço.
- Ama! Ninguém me disse que estavas aqui. Como é que vais?
- Bem, menina. Estás cada vez mais bonita - constatou, sorrindo-lhe. De cada vez que via Thea pensava no seu Pinuccio. Teria a mesma idade que ela, se fosse vivo.
- Sabes, ama, vou a Nova Iorque com a tia Virgínia e a minha prima Dodò. A tia Virgínia é uma delícia. Dodò tem menos um ano do que eu e já tem um boy-friend - anunciou.
- E o que é isso, um cão? - perguntou Teresa, curiosa. Thea explodiu numa gargalhada.
- Não, é uma espécie de namorado. Sabes, as raparigas americanas são muito mais livres do que nós. E as mães delas não são como a minha, que vê tudo vermelho de
cada vez que um rapaz me sorri.
- E faz muito bem. Tu não deves ter inveja daquela gente sem princípios - advertiu-a, como se Thea fosse ainda uma criança.
Thea não ouviu aquelas palavras. Já tinha regressado ao jardim, e Sofia seguiu-a com o tabuleiro do pequeno-almoço, a resmungar contra aquela desgraça.
- Aquela rapariga é o desespero da senhora - confiou depois a Teresa, enquanto ela anotava numa lousa a lista dos legumes e das carnes para o jantar. - Todos os
dias se apaixona por alguém. E nunca nenhum é comida própria para aqueles dentes.
- É da idade. Aos dezasseis anos o sangue ferve - observou Teresa.
- Pensaram bem em mandá-la para a América, porque este Verão apaixonou-se por um sujeito que encontrou em Capri. Mandava-lhe rosas todos os dias e ela andava completamente
perdida.
*1. Doce napolitano que consiste numa rodela de massa folhada dobrada, recheada com ingredientes diversos e cozida no forno. (N. da T.)
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O general teve de intervir, tirou informações e depois escreveu uma carta aos pais do rapaz. Então ele desapareceu e ela fez greve de fome. Chorava tanto que era
de partir o coração. Agora vamos ver o que vai acontecer na América - disse Sofia.
Teresa pousou a lousa e o giz.
- Está feito. Agora tenho de ir embora. Vemo-nos amanhã à noite. Vou fazer uma grande Sacher-Torte. A senhora vai estar muito triste com a partida da Thea. O chocolate
vai pô-la outra vez de bom humor.
Teresa não gostava de mexericos e tinha mais em que pensar. Regressou a casa depois de ter feito as compras e, por baixo do arco de Portalba, viu Renato di Giacomo.
Estava sentado dentro de um automóvel descapotável, a fumar um cigarro, e olhava-a com um sorriso que apetecia esbofetear.
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Teresa fugiu pelo meio de um labirinto de vielas, inacessíveis aos automóveis. Duvidava que Renato, gordo como era, pudesse deixar o carro para ir atrás dela. Talvez
nem sequer quisesse persegui-la. Bastava-lhe fazê-la saber que a tinha debaixo de olho. Estava a encenar o velho expediente do gato e do rato.
Por fim, encontrou-se num largo. De um lado havia o adro de uma igreja e, em frente, uma loja de vinhos e licores com telefone público. Decidiu telefonar ao jornalista
Malgioglio. Sabia que estava em casa àquela hora e que, quase de certeza, estaria a dormir. Mas ele tinha-lhe dito: "Se te voltar a incomodar, tu dizes-me, e eu
penso no assunto". Conseguiu ultrapassar o filtro da criada velha, que não ousava acordar o doutor. Finalmente, falou com ele e, com uma voz ansiosa, contou-lhe
a última provocação.
- Vou tratar de obter informações sobre esse sujeito - disse ele, e acrescentou: - Passa por minha casa amanhã.
Teresa estava já determinada a deixar Nápoles com os filhos, antes tinha de esperar uma resposta dos irmãos, e estava também atormentada com a idéia de abandonar
o pai. Matteo não iria aceitar ir com ela para o Norte, até porque não estava em condições de aguentar os incómodos de uma viagem. Para além do mais, nem sequer
sabia se ia arranjar alojamento para ela, quanto mais para ele também.
No dia seguinte, apresentou-se em casa do jornalista.
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- Não posso fazer nada por ti - anunciou-lhe, depois de ter aberto a porta da entrada.
Teresa sentiu-se gelar.
- Explique-se, doutor.
- Teresa, vê se me entendes: não posso fazer nada - repetiu.
- É assim tão poderoso? - perguntou.
- Aquele filho da tua madrasta é intocável - respondeu ele em voz baixa.
- E nem sequer sabe o que ele quer de mim?
O homem viu uma lágrima escorregar pela face de Teresa. Conhecia-lhe a miséria e a solidão. Era uma das muitas vítimas de um regime que se impunha pela força. Teve
piedade dela.
- Entra - convidou-a.
- Muito obrigada, doutor, não é preciso. Estou a fazê-lo perder tempo. Percebi muito bem aquilo que disse - respondeu, retraída.
O jornalista pegou-lhe num braço e empurrou-a ao longo do corredor, em direcção ao escritório.
- Senta-te - ordenou, indicando-lhe um pequeno divã em frente à secretária.
Fechou a porta, os vidros da janela que dava para a varanda e as cortinas de veludo pesado. Depois sentou-se ao lado dela.
- Conheces a Ovra? - perguntou, num sussurro.
- Quem é? - quis saber Teresa.
- Fala baixo, porque as paredes têm ouvidos. A Ovra é uma organização especial de homens que se infiltram nas fábricas, nos escritórios, nas escolas, nas cadeias,
na redacção dos jornais, nos ministérios, nos quartéis, nos cafés, nos bairros, até nas prisões mais desterradas. A Ovra é composta por espiões: vêem, ouvem, tomam
notas e denunciam. Foi assim que o teu marido acabou com um processo e foi condenado. Já não pode escrever, nem falar contra o regime e o partido. Há cinco anos
que existe um "arquiV' político central" que registou em fichas centenas de milhares de antifascistas. Os espiões e os homens que os coordenam são muito poderosos.
É tudo gente infame, Teresella, mas intocável. Renato di Giacomo é um deles. Se fosse um simples camorrista, eu podia arranjar maneira de mandar fazer uma investigação.
Mas ele é muito, muito, muito mais.
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Na penumbra daquela sala, onde se ouvia o tiquetaque do relógio em cima da lareira, Teresa procurou o olhar do seu interlocutor e, com um suspiro angustiado, perguntou:
- Mas eu, Teresa Zicri, o que é que tenho a ver com isto tudo? Os meus filhos o que têm a ver com isto tudo?
- Minha menina, acorda. A democracia já não existe. Vivemos num país governado por um chefe que quer o consenso de toda a gente. E, para o obter, serve-se da polícia
e do Tribunal Especial para a defesa do Estado. O Estado de direito já não existe. A magistratura normal já não existe. Há oficiais da milícia e das forças armadas
que se servem de tipos duvidosos como o filho da tua madrasta para cumprir os desígnios do chefe supremo. Queres saber o que tu tens a ver com isto e o que os teus
filhos têm a ver com isto? Nada. Vocês são menos que zero. Não existem. Mas aquele di Giacomo quer-te a ti. Para o conseguir, começou por abordar a tua filha. Está
a tentar a bem, em suma. Se lhe responderes que não, vai tentar a mal. Ninguém vai intervir para te defender - preveniu o jornalista.
- Ele quer-me a mim? - repetiu, espantada. Por muito terrível que fosse aquela notícia, recebeu-a com uma sensação de alívio. Tinha pensado o pior. Acreditou que
ele queria corromper a sua Rosa.
- Fez uma espécie de aposta com os seus digníssimos parceiros. Vai ter-te antes que chegue o Outono - confidenciou-lhe, revelando assim que tinha descoberto ao pormenor
as intenções do seu perseguidor. Por isso, acrescentou: - Não posso ajudar-te, Teresa. Lamento muito.
- Mas eu posso matá-lo - sibilou.
- Toma cuidado com o que fazes. O teu marido está desterrado, mas está vivo. Pode morrer. Não ia ser o primeiro caso, nem seria o último.
- Muito obrigada, doutor - disse ela, despedindo-se. Agora sabia o que tinha a fazer. Correu imediatamente até ao
Hotel Excelsior, desceu à cave e procurou Peppino, o irmão.
Reinava uma grande confusão nas cozinhas, impregnadas de
cheiro a comida. As paredes estavam cobertas por uma crosta escura, húmida e gordurosa, sedimentada ao longo de anos pelo fumo dos fogões. Serventes, cozinheiros,
talhantes e pasteleiros gritavam, blasfemavam, riam, cantavam e discutiam. Mulheres com aventais até ao chão lavavam hortaliças,
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abriam frangos e misturavam farinha com ovos. Os cozinheiros, com a cabeça coberta por cilindros brancos altos e engomados, retiravam a espuma dos caldos, trinchavam
carnes e espalhavam sal, pimenta, colorau e ervas aromáticas dentro de panelas enormes. Era o caos produzido por um exército desordenado que, no entanto, conseguia
preparar pratos triunfais que um batalhão de criados transportava e servia nas salas de jantar.
Teresa, em tantos anos, nunca tinha entrado naquele imenso espaço que reproduzia, em grande escala, aquilo que ela fazia, em ponto pequeno, nas cozinhas das casas
onde trabalhava como cozinheira quando era preciso. Teria muito a aprender ali, porque o chefe, um homem minúsculo de voz rouca que dava ordens, provava, cheirava,
metia o dedo em todas as coisas e depois lambia, era um personagem famoso. Se não se encontrasse numa situação tão dramática, teria observado com interesse aquele
universo que a enchia de curiosidade. Porém, limitou-se a olhar à volta para localizar o irmão, que estava a virar umas douradas grandes na grelha.
Também Peppino a viu e lhe dirigiu um olhar interrogativo. Apesar da confusão aparente, reinava uma disciplina rígida naquela cozinha. O chefe reparou na intrusa
e mandou-a embora.
Peppino pediu autorização para falar com a irmã e depois dirigiu-se a ela, agressivo: - Mas que disparate! O que foi que vieste aqui fazer?
- Peppi, vou directa ao assunto. Tu tens de tomar conta do pai, porque eu vou-me embora de Nápoles e os meus filhos vão comigo - anunciou.
Leu no rosto do irmão a aflição provocada por aquele anúncio e nem sequer lhe deu tempo para responder. Deu uma volta sobre os calcanhares e saiu. Sabia que naquela
noite ele se iria instalar na viela da Duquesa com a mulher e os três filhos.
Entretanto, tinha de falar com o pai, e esperava que não houvesse cena nenhuma.
Dois dias depois, a meio da noite, Teresa deixou Nápoles, a esperança de não estar a ser espiada pelos homens do filho da madrasta.
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Sabia que não poderia comunicar o novo endereço, se chegasse a ter algum, ao marido, porque as cartas que lhe escrevia eram lidas pela polícia. Peppino e a mulher,
depois da primeira ansiedade, compreenderam as razões de Teresa.
Assim, depois de tantos anos, voltou a apanhar um comboio e a subir a península em direcção ao Norte. Mandou um telegrama aos dois irmãos para anunciar que já estava
a caminho e que não valia a pena responder à carta que escrevera.
Os bancos de madeira da carruagem de terceira classe foram um longo tormento. Mas seria muito mais angustiante viver em Nápoles, consciente do perigo que a ameaçava.
Não sabia como ia ser recebida por Ciro e Salvatore, nem o que iria ser dela e dos filhos. Era possível que, mais tarde ou mais cedo, o filho da madrasta a encontrasse.
Mas Cernusco sul Naviglio era tão longe de Nápoles! E, depois, ia estar entregue à solidariedade dos irmãos e à protecção de alguns santos. "Os santos", dizia-lhe
a mãe "se os invocarmos com fé, ajudam-nos."
Ela tinha muita fé. E rezou muitíssimo, durante aquela viagem.
395
MILÃO, COMANDO DO CORPO DA ARMADA JUNHO DE 1933
O casal Valeschi e Nino, o filho, estavam no molhe de Génova, onde tinha atracado o navio de passageiros Nazario Sauro, de regresso dos Estados Unidos da América.
Thea estava debruçada no parapeito da coberta de primeira classe. Por entre a multidão de pessoas que esperavam a chegada dos passageiros, reconheceu imediatamente
os pais e o irmão. Começou a esbracejar e a gritar os nomes deles. Todos os passageiros se agitavam como ela. Os Valeschi não a localizaram imediatamente, até porque
Thea vinha muito mudada.
O aspecto e a roupa eram os de uma rapariga refinada. Tinha dezoito anos e desabrochara como uma flor delicada que, ao abrir as pétalas, se mostra em toda a sua
beleza. Vestia um fato de seda turquesa de duas peças. O cinto, os sapatos de tacão alto, a carteira e as luvas eram azuis.
- Quase não a reconhecia - disse Josepha ao marido, completamente espantada com aquela mudança.
- A minha menina está uma mulher - sussurrou Lorenzo, cheio de orgulho.
Nino não disse nada. Aquela irmã que não via há um ano parecia-lhe uma estranha.
Baixaram as escadas. Os passageiros de primeira classe foram os primeiros a descer. As formalidades aduaneiras foram despachadas rapidamente. O prémio daquela longa
espera foram os abraços comovidos, os sorrisos e as exclamações de alegria.
399
Haveria muito tempo para as narrações mais detalhadas durante a viagem de automóvel até Milão.
A bagagem de Thea era impressionante e Lorenzo decidiu despachá-la por correio expresso. Ao longo da estrada sinuosa, juncada de túneis infinitos, nasceu uma conversa
galhofeira entre os dois irmãos. Nino gabava o seu sucesso escolar, Thea as experiências americanas, "absolutamente assombrosas". Josepha observava o marido de soslaio
e via os olhos dele iluminados de alegria pelo regresso da filha. Também ela se sentia feliz por voltar a tê-la ao pé de si, mas essa felicidade, naquela como em
outras situações, era sempre velada pela ansiedade quanto ao futuro. Apesar do optimismo de Lorenzo, não conseguia calar os grandes temores que a acompanhavam desde
os tempos da grande guerra, quando começou a recear por si, pela família e pelo futuro. Respirava-se por todo o lado um clima pesado e desagradava-lhe o facto de
o marido não se aperceber disso.
Durante o Inverno tinha regressado a Merano sozinha, para um último adeus ao antigo tutor. Foi o barão Heini von Wedel quem a informou sobre o estado desesperado
em que se encontrava. Se dependesse dele, Joseph Grossmann teria partido em bicos de pés, da mesma forma que vivera. O antigo burgomestre tinha sido selvaticamente
agredido por um bando de jovens fascistas por ter organizado, em sua casa, uma escola nocturna para as crianças pobres de língua alemã, tendo ousado ensinar-lhes
a história do Tirol e dos seus heróis. Umas pessoas que passavam por ali encontraram-no coberto de sangue, sem sentidos, na praça do Teatro.
Foi caridosamente tratado e os amigos denunciaram o facto. Mas ninguém quis encontrar os agressores.
Quando viu Josepha à cabeceira da cama, o velho cavalheiro ainda conseguiu mostrar a sombra de um sorriso.
- Gosto tanto de si, Herr Grossmann - sussurrou Josepha, inclinando-se para lhe dar um beijo na testa.
Ele, com muita dificuldade, conseguiu dizer-lhe: - Trata dos teus filhos. Arranja maneira de eles não assimilarem esta cultura de intolerância. O espírito do homem
deve ser educado para a liberdade, para a compreensão e para o respeito pelos seus semelhantes, sobretudo os mais fracos.
400
Depois do funeral, Josepha foi ver o castelo. As janelas estavam fechadas, as portas pregadas, o jardim invadido pelas ervas daninhas, o estábulo e o palheiro a
cair aos pedaços. Sentou-se num banco de pedra a olhar a destruição do seu passado. A melancolia que a consumia transformou-se num pranto silencioso. Uma mão pousou
ao lado dela um raminho de violetas amarelas e azuis. Ergueu os olhos e viu um homem entroncado que se afastava com um andar oscilante.
- Willy! - chamou.
Como única resposta, ele acelerou o passo e desapareceu por entre as macieiras.
Fosse como fosse, aquele homem continuava a tomar conta daqueles lugares que lhe eram tão queridos.
Pegou nas violetas e regressou ao hotel. O barão von Wedel e a mulher estavam à sua espera. Informou-se sobre o caso de Willy e disseram-lhe que trabalhava numa
cervejaria por baixo das arcadas. Era considerado uma espécie de idiota vagabundo com um passado misterioso. Dormia com dois cães numa cave, lavava-se em pleno Inverno
nas águas geladas do Passirio e a sua força física incutia respeito e temor. Ninguém, nem mesmo os fascistas, ousava incomodá-lo.
Josepha despediu-se dos amigos e regressou a Milão. Sabia que Willy ia continuar a custodiar o seu passado.
Virou-se para olhar para os filhos que, no banco de trás, sussurravam confidências e riam baixinho.
- O que foi que a América te ensinou? - perguntou a Thea.
- A ter orgulho na minha pátria - respondeu Thea, deixando-a desorientada. Josepha estava à espera de ouvir dizer que na América tinha aprendido a falar e a escrever
correctamente em inglês e a sentir-se livre de exprimir as suas próprias opiniões.
- A sério? - perguntou, espantada.
- O governo do nosso país goza de uma alta consideração. Mussolini é definido como the right man in the right place, o homem certo no sítio certo. A Itália é um
modelo para toda a Europa. Dizem que até a Alemanha tem muito a aprender connosco. Sabes, eles adoram desde sempre esta velha Europa, e sobretudo a Itália.
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- Fazes bem em dizer essas coisas à tua mãe - interveio Lorenzo. - Ela é sempre muito pessimista e recusa-se a compreender a grandeza do fascismo.
- E por que é que os americanos não importam este modelo? O capitalismo deles está a meter água por todos os lados. Há legiões de desempregados. Os pobres vivem
em guetos. O fascismo podia ser um remédio infalível para estes e outros problemas - comentou Josepha com um sarcasmo que ninguém captou.
- Lá chegarão - afirmou Lorenzo. - A nossa Itália é realmente um modelo para o mundo.
- É verdade - interveio Nino. - A única coisa que me aborrece são as reuniões e os desfiles.
- Se vocês soubessem a quantidade de desfiles que os americanos fazem! Qualquer ocasião é boa para um desfile. E fazem-nos em grande estilo, com banda de música,
rufo de tambores e majorettes com fatos berrantes. É uma festa de cores - declarou Thea.
- Quanto a mim, as calças de lã, as botas e as camisas negras dão uma melhor imagem da ordem. Não é verdade, querido? -replicou Josepha, irónica, dirigindo-se ao
marido. Tinha na idéia os desfiles da sua infância, em que ela própria participara, vestindo o traje nacional de tons alegres, os carros puxados por poderosos cavalos,
as vacas bem nutridas cheias de chocalhos enfeitados com fitinhas vermelhas e a música popular carregada de alegria.
- Concordo contigo, Giuseppina - disse o marido, sublinhando com aquele "Giuseppina" a irritação provocada por aquela ironia fora de propósito. E acrescentou: -
Por que não cantamos uma canção bonita?
- Eu sei muitas americanas. Canções country, melódicas. Mas uma das que na América se ouvem mais é italiana. É Tito Schip(1) quem a canta. É assim: Torna piccina
mia, torna dal tuo papá. Conhecem?
- Egli ti aspetta sempre com ansietà(2) - continuou Lorenzo. Em Milão, toda a família Valeschi, tias, tios e primas, estava
à espera de Thea. Sofia ajudou o cozinheiro a preparar
*1. "Volta, minha pequenina, volta para junto do teu papá", em italiano. (N. da T.)
2. "Ele está sempre ansioso à tua espera", em italiano. (N. da T.)
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um especial com os pratos predilectos da menina: legumes cozinhados à napolitana, moluscos gratinados epastiera(1).
Foi uma refeição interminável, porque Thea estava feliz por poder contar a sua experiência num mundo que a fascinara. A tia Virgínia e a prima Dodò, os amigos delas,
a casa de dois andares em Little Italy, a empregada de cor, a cerveja e o whisky, o peru recheado na festa de Acção de Graças, o Exército de Salvação, o comboio
subterrâneo, os automóveis e os grandes armazéns, a independência das mulheres, a liberdade de que gozavam as raparigas, os teatros de Times Square e o clube onde
se tocava jazz.
- A tia Virgínia orienta uma transmissão radiofónica de grande audiência. As mulheres telefonam-lhe para lhe contarem os problemas e ela encontra a resposta certa
para cada uma. Dodò estuda declamação, porque quer ser actriz de teatro. A mãe está absolutamente de acordo com essa escolha. Ainda havia muito mais para contar,
apesar de em parte já saberem, porque vos escrevi quase todos os dias. Trouxe prendas para todos, mas estão nos baús que estão para chegar pelo correio. Agora estou
cansada e quero ir dormir. Se conseguir, excitada como estou. Imaginem que a bordo do Nazario Sauro fui eleita rainha de beleza e jantei todos os dias à mesa do
comandante. Acabei, an! - concluiu, e não conseguiu evitar um bocejo.
- Disseste an! - repetiu Nino, divertido. - Falas como os chefes de tribo dos filmes sobre os índios.
Sofia, atrás da porta da sala de jantar, ouviu tudo, passando da surpresa ao assombro e à incredulidade. Finalmente, pensou que aquela rapariga era demasiado livre
e que de tanta liberdade não Podia vir nada de bom.
Naquele momento entrou na sala de jantar e aproximou-se de Lorenzo.
- Desculpe-me, general. Está ali o Caldonazzo, que tem urgência em falar com o senhor - sussurrou-lhe. Caldonazzo era a ordenança.
Josepha levantou-se da mesa, imitada pelos outros. Queria falar com a filha em sossego, mas não podia fazê-lo naquela noite.
*1. Torta napolitana de Páscoa, de massa mole, recheada com uma mistura de requeijão macerado, açúcar cristalizado e chocolate. (N. da T)
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Por isso, depois de se ter despedido dos convidados, retirou-se para o seu quarto.
Sofia ajudou-a a despir-se e a arranjar-se para a noite. Deveria sentir-se feliz com o regresso de Thea, mas tinha a sensação de que a filha tinha falado mais do
que o necessário, como se quisesse esconder alguma coisa. Esta sensação causava-lhe alguma inquietação.
- Prepara-me dez gotas de valeriana - pediu à empregada.
A valeriana tinha-se tornado o seu refúgio contra os maus pensamentos. Preparava-se para se deitar quando Lorenzo entrou no quarto. Estava feliz como uma criança
que acaba de ganhar alguma coisa na tômbola.
- Um despacho de Roma, meu amor. Fui nomeado ministro da Guerra!
Josepha levantou o cobertor e o lençol. Meteu-se na cama e declarou: - Eu sabia que havia alguma coisa de errado no ar. Deixa-me dormir. Amanhã digo-te o que penso.
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- Por que é que tinhas de ser tu? - perguntou Josepha, olhando o marido com um infinito pesar. Finalmente, estavam só os quatro: ela, Lorenzo e os filhos. Fazia
questão em dar também a conhecer a sua opinião a Thea e a Nino.
- Com tantos generais que existem, por que tinham logo que te escolher a ti para ministro da Guerra? E mais, de que guerra? Eu estou cansada de guerra - protestou.
Depois calou-se porque tinha entrado o criado para servir o pequeno-almoço.
- Si vis pacem, para bellum1 - comentou o marido, enquanto o criado pousava em cima da mesa torradas quentes e café a ferver.
Assim que o criado saiu, Josepha rebateu: - O fascismo ama a guerra, apesar de proclamar que deseja a paz. Por isso, se quiserem fazer outra guerra, eu não vou estar
aqui com os meus filhos a sofrer-lhe as consequências.
- Mutti, calma - interveio Thea. - Não te podes deixar assustar por fantasmas. O governo não quer guerra no nosso país. Não é assim, papá?
- Claro que é assim. Mas a tua mãe parece ignorar uma estratégia tão velha como o mundo: é preciso estar sempre preparado Para combater, para se viver em paz - explicou
Lorenzo. E acresCentou, olhando a mulher com doçura: - Eu não procurei esta promoção.
*1. "Se queres a paz, prepara a guerra", em latim. (N. da T.)
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Uma vez que ela chegou, podem reflectir sobre este facto: o governo confiou-me um cargo importante, a mim, que sou um homem honesto, portanto quer governar honestamente.
Josepha pensou que muitas vezes os malfeitores se servem de homens íntegros para conduzirem os seus jogos sujos. Mas não exteriorizou esta convicção.
Pousou uma mão na do marido e sorriu-lhe com ternura. - Tenho muita vaidade em ser tua mulher, querido. Nunca me teria casado contigo, se não fosses aquilo que és.
Estou orgulhosa pelo cargo que recebeste. Permite-me apenas uma pergunta: teremos de passar por mais uma mudança?
- Receio que sim, meu amor. Vamos ter de morar no palácio do ministério, em Roma. Fica na Via Napoli. Como vês, Nápoles está sempre presente na nossa vida - tentou
brincar.
- Nunca hei-de ter uma casa minha - suspirou Josepha, nada animada.
- Eu não quero viver em Roma. Agora tenho aqui os meus amigos, a escola, os professores e a família Valeschi - objectou Nino.
- Tu és muito idiota! - lamentou Thea. - Vamos viver na capital e conhecer um monte de gente interessante. Em Roma há escolas melhores e podemos ver os nossos primos
Valeschi quando quisermos, porque os familiares de um ministro viajam gratuitamente - concluiu com o habitual sentido prático.
Lorenzo esvaziou a chávena de café e foi até ao gabinete do Comando. Tinha de preparar com cuidado uma série de documentos para apresentar ao ministério. Nino beijou
ao de leve a face da mãe, deu um beliscão à irmã e saiu para a escola. Josepha e Thea ficaram sós, e olharam-se nos olhos.
- Mutti, dispara de rajada todas as perguntas que quiseres. Estou pronta para aguentar o exame - começou a rapariga.
Josepha suspirou com um ar de resignação. Aquela filha tão desenvolta, tão extrovertida e tão espirituosa já não lhe pertencia, Sabia-o, sentia-o na pele e no coração.
Às vezes, pensava: os filhos não nos pertencem. São setas disparadas para o céu, que se vão cravar onde o vento as levar. Quando sentiu o desejo imperioso de ninho
que encerrasse a sua família, não imaginou que os filhos levantassem voo para longe, guiados por aspirações diferentes das suas.
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Sabia muito bem que não podia reter Thea debaixo da asa durante toda a vida. Mas duvidava que aquela menina estivesse preparada para enfrentar o voo, num mundo que
se tornava cada vez mais difícil. Não ousava defini-la como frívola, mas temia que o fosse. Thea gostava da aparência. Tinha um cuidado quase obsessivo com o corpo
e o vestuário. Vangloriava-se dos sucessos desportivos e dos mundanos. De quem teria herdado aquela necessidade de afirmação social? Não da mãe. Nem de Lorenzo.
Tinha estado longe de casa, do outro lado do oceano, durante tantos meses. As cartas que escrevia eram fogo-de-artifício. Ela tinha tentado, por detrás daquelas
palavras faiscantes, adivinhar os pensamentos secretos, as emoções escondidas. Só encontrou aspirações confusas.
- Não é fácil interrogar-te. Conheço-te muito mal - sussurrou.
- Deixa-te disso, mamã, não faças teatro. Tu queres saber se eu tive algum flirt. Eu, no teu lugar, teria curiosidade em saber - declarou Thea.
- E tiveste?
- Mais do que um. O que significa nenhum. Os rapazes americanos são terrivelmente sérios. Entre eles, armam-se em fanfarrões, mas quando estão à frente de uma rapariga,
gaguejam. Tive encontros com muitos amigos. Um deles, mais audaz, beijou-me. Deu-me vontade de rir e ri-me. Acho que ficou ofendido, porque não o voltei a ver. Esta
foi a transgressão maior. Mutti, na tua opinião, por que é que me deu vontade de rir?
- Não estavas apaixonada. Só isso.
- E se assim não fosse?
- Se assim não fosse tinhas sentido um nó na garganta, caíam-te lágrimas de alegria e tinhas desejado aquilo que todas as mulheres desejam do homem que amam, depois
de estarem casadas, é claro - esclareceu Josepha. O facto de ela ter amado apaixonadamente Lorenzo durante três longos anos, antes de se casar com ele, era um pormenor
que nunca havia de partilhar com a filha.
- Não precisas de pôr os pontos nos "i". Sei perfeitamente
que só nos podemos entregar ao marido - afirmou Thea, divertida.
- Muito bem - sorriu a mãe. - Como viste, não foi preciso Submeter-te a nenhum exame. Estou-te grata por estes poucos
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minutos de confidências - declarou Josepha, preparando-se para se levantar da mesa.
- As confidências ainda não acabaram - anunciou a filha.
A mãe escondeu uma súbita ansiedade. Com Thea, nunca tinha sossego. Pensava que tinha conquistado um instante de tréguas. Estava enganada.
- Estou perdidamente apaixonada - continuou a rapariga. Josepha fez mentalmente a conta das paixões anunciadas e das
escondidas. Por ordem, havia: um tenente da marinha de vinte anos. Thea tinha então seis anos. Um empregado de restaurante. Thea tinha dez anos. Um conde arruinado
que tinha dois lindíssimos cães de fila e lhe recitava poemas de Salvatore di Giacomo. Thea tinha doze anos. O instrutor de equitação que tinha quarenta anos e sete
filhos. Thea tinha dezasseis anos. Um jovem oriundo das Marche, herdeiro de uma importante fortuna, que acabou por se revelar um impostor, tendo Lorenzo sido obrigado
a intervir para o pôr na rua.
- Quem é, desta vez? - perguntou num sussurro, e já se prefigurava a habitual sequência com final dramático, porque Thea ia chorar, fazer greve de fome e declarar
que queria morrer.
- Tu já o conheces - disse a filha com um sorriso enigmático. - Dá-me uma ajuda - pediu, esforçando-se por conservar a
calma.
- Guido Battellieri, o homem do comboio, aquele que me ofereceu um cigarro porque sofria de insónia como eu e como tu.
- Meu Deus! Tinhas-me dito que era uma história que não era história nenhuma. Pouco depois voltámos a Nápoles e ficaste "perdidamente apaixonada" por aquele rapaz
das Marche. Depois foste para Nova Iorque. Só regressaste ontem. Thea, vê se me explicas -implorou a mãe.
Assim ficou a saber que, durante a estadia americana, a filha tinha mantido uma correspondência assídua com aquele jovem que encontrara no comboio e que era amigo
de alguns primos Valeschi. Soube que os Battellieri eram construtores de bicicletas. QUe Guido tinha vinte e sete anos, dois irmãos mais velhos, que o pai tinha
morrido e que a mãe era uma espécie de general que conduzia os destinos da família e da indústria fundada pelo marido.
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- É claro que ainda não se declarou. Ontem à noite, antes de me deitar, telefonei-lhe. Vou estar com ele hoje, vamos tomar um aperitivo ao Cova. Espero que se declare.
- Lorenzo! - gritou Josepha, abandonando a sala do pequeno-almoço. Precisava de ver o marido imediatamente. Subiu a correr até ao andar de cima e irrompeu no escritório
onde ele estava. - A tua filha, eu já não tenho mão nela - desabafou, ofegante. - Está outra vez perdidamente apaixonada por outro, um tal Battellieri, e tu tens
de recolher imediatamente todas as informações sobre este caso. - Lorenzo não estava só. Estavam dois oficiais idosos com ele, que se puseram em sentido e tossiram
ligeiramente para esconder o embaraço.
Lorenzo não perdeu a compostura. Gostaria de sorrir, mas sabia que isso ia desagradar à mulher. Por isso, franziu as sobrancelhas, na tentativa de assumir a expressão
do pai agastado.
- Será que algum dos senhores já ouviu este nome? - perguntou.
- A firma Battellieri fornece as bicicletas ao nosso exército, general - declarou um dos oficiais, com um ar compungido.
- Isso mesmo, um ciclista - disse Josepha.
- Se me permite, general, gostaria de acrescentar que a senhora Battellieri, Sozzani Negri de solteira, conduz os destinos da empresa há cinco anos, desde a morte
do engenheiro. E fá-lo com punho de ferro - acrescentou o segundo oficial.
- Ouviste, querida? Agora estás sossegada? - disse o marido. Afastou-se da secretária e foi até junto dela, para se despedir.
- Nem um pouco. Hoje vai sair, sozinha, com esse tal. Diz que vão tomar um aperitivo. Quando é que nos mudamos para Roma? Não pode ser já, imediatamente? Tenho de
ir tomar a valeriana - concluiu, desesperada.
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CERNUSCO SUL NAVIGLIO JULHO DE 1933
O conde Anacleto Maria Brandazzi, a quem os camponeses chamavam el sáur cunt, ou el cunt Brandass, ou ainda el nos padmn, com um fato de linho branco e um chapéu
de Panamá, estava sentado num banco, por trás da balança, e controlava pessoalmente o peso dos casulos fechados em sacos de juta. Cada camponês trazia até à sua
fiação o fruto de trinta e oito dias de trabalho frenético, que era tarefa de mulheres e crianças.
O conde fazia deslizar o contrapeso ao longo da haste até a balança ficar em equilíbrio perfeito. Então, anunciava o peso em voz alta e a filha, Orsola, ao lado
dele, escrevia num pequeno caderno o nome do rendeiro, a quantidade de casulos prontos para a fiação e o preço, que variava em função do brilho e da cor. Depois
dizia: - Passa lá por casa daqui a uma semana, para receberes o dinheiro.
O camponês agradecia a el sáur cunt e à sciura cuntessina e ia-se embora. Os sacos eram carregados numa grande carroça. Quando estivesse cheia, o cavalo puxava-a
até à fiação. O conde Brandazzi era proprietário de sete fábricas de fiação de seda, espalhadas pela região limítrofe de Cernusco sul Naviglio. A entrega dos casulos
fazia-se na praça da paróquia. Começava às cinco horas da manhã e concluía-se ao escurecer. Como era Julho, o sol punha-se às nove horas da noite.
Chegou um rapazinho, suado da corrida, com os calções remendados, seguros por uma única alça, e entregou um papel amarrotado ao patrão. Dobrou-se a meio para se
inclinar
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à frente dele e, a gaguejar pela emoção de ter de falar com aquele grande homem vestido de branco, disse: - O meu pai manda esta carta e pede desculpa por não vir
pessoalmente, mas diz que está muito zangado.
O homem leu o bilhete: "Excelentíssimo senhor conde, os meus bichos-da-seda ficaram doentes e morreram por causa da pebrina. Seu muito dedicado, Campanun".
O homem entregou o bilhete à filha, para que o lesse também. Os bichos-da-seda estavam sujeitos a várias doenças, como a pebrina, precisamente. Não havia hipótese
de os curar e, quando uma criação ficava infectada, tinha de ser imediatamente destruída para evitar que o mal se difundisse. Campanun, com aquela desgraça, tinha
perdido a esperança de um ganho que lhe iria permitir enfrentar o Inverno com menos preocupações.
- Diz ao teu pai que pode mandar as mulheres da casa à fiação da Larga. Tu, que tens bons braços, podes ir em meu nome ter com o sucuré, para aprenderes uma profissão
- disse o conde, como despedida.
Tinha-lhe dado ordens que o rapazinho devia transmitir ao pai. A fúria de um rendeiro podia ser tão contagiosa como a pebrina. O conde não queria preocupações por
causa dos camponeses. Ia aceitar na fiação a mulher, a mãe e as quatro filhas, que tinham entre oito e catorze anos, compensando-as com uma remuneração mínima, e
confiar ao fabricante de tamancos a aprendizagem do rapaz, mediante um pagamento irrisório. "Campanun", assim chamado por causa do seu grande nariz em forma de campânula,
iria ficar contente e, assim, não fomentaria nenhuma desordem. Tinha havido demasiadas situações como aquela, no passado. Apesar de o regime ter anulado o direito
à greve, com o controle de toda a zona por parte dos fascistas, que usavam métodos muito persuasivos e ilegais, havia sempre os padres, que empolavam o descontentamento
através dos jovens da Acção Católica. O conde Brandazzi, que não se dava nem com os padres nem com os fascistas, porque como costumava dizer "Eu estou bem só comigo
mesmo", preocupava-se em não pedir favores para não sofrer interferências. Como um senhor da Idade Média, punha o laço ao pescoço dos seus rendeiros e puxava a corda
apenas o suficiente para os manter dependentes, sem nunca apertar mais do que o necessário. Esta precaução permitia-lhe defender o melhor possível os seus próprios
interesses
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e parecer magnânimo com eles. Bastava pouco para que os camponeses o considerassem como tal. Sempre diziam dele: "El siiur cunt é um homem justo". Tinham de continuar
a julgá-lo da mesma maneira.
- Vem aí a terrona(1) - anunciou em voz baixa o homem da carroça, que continuava a amontoar sacos de casulos, enquanto o cavalo esperava pacientemente debaixo daquele
sol de Julho.
O conde passou um lenço pela cara para limpar o suor. A condessa Orsola abanou-se com o caderno das contas.
Numa esquina da praça surgira uma mulher que puxava uma carroça, com as mãos agarradas ao tirante. Tinha a ajudá-la três crianças descalças, que empurravam com os
braços o veículo carregado de sacos. Ela trazia os tamancos pendurados ao pescoço, oscilando-lhe sobre o peito generoso, coberto por uma camisa de algodão florido.
Os cabelos negros, fartos e encaracolados, vinham escondidos por baixo de um lenço do mesmo tecido. Parou a carroça. Desapertou o fio que segurava os tamancos e
enfiou-os nos pés. Não ficava bem uma mulher atravessar a praça descalça. Depois recomeçou a empurrar a carroça.
O conde e todos os outros chamavam-lhe a "terrona" porque era napolitana. Em Cernusco sul Naviglio havia ao todo seis napolitanos: os dois irmãos Ciro e Salvatore
Avigliano, Teresa Zicrí, que era irmã deles, e os três filhos de Teresa. Os irmãos trabalhavam numa grande empresa, em Sesto San Giovanni. Ela arranjava-se como
podia para viver: a criação de bicho-da-seda, o trabalho na nação e alguns trabalhos pontuais em certas casas da terra, onde chegara dois anos antes. Era viúva.
O marido tinha morrido um ano antes, no desterro. A princípio tinha sido olhada com desconfiança e com uma espécie de desprezo. Era considerada como um subproduto
da raça humana, por causa da linguagem e dos hábitos estranhos à gente daquele lugar. E também por causa de uma certa altivez, que os notáveis da terra tinham definido
como "prosopoPeia meridional".
Os dois irmãos, que viviam num quarto da Caseína Torrianeta, acolheram-na a ela e aos filhos durante alguns dias.
*1. Designação que os italianos do Norte atribuem com freqüência aos do Sul, muitas vezes com uma conotação depreciativa. (N. da T.)
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Depois ela foi procurar don Cláudio, o padre. A conversa durou muito tempo. Ninguém sabia o que a "terrona" tinha contado, mas, no domingo seguinte, durante a homilia
aos fiéis, don Cláudio afirmou: - Não devemos olhar com desconfiança aqueles que vêm de uma terra distante e carregam nos ombros o peso de tantas, demasiadas injustiças
que afligem o nosso País. O forasteiro, quando é honesto e se apresenta armado apenas de boas intenções, deve ser ajudado. É um dever cristão, porque somos todos
irmãos em Cristo. - Teresa estava sentada ao fundo da igreja com os filhos e os irmãos. Muitos olhares se pousaram sobre eles. A desconfiança e o desprezo diluíram-se
na piedade.
Teresa arranjou alojamento para ela e para as crianças numa casa situada no pátio de uma propriedade agrícola, por trás da igreja de Santa Maria Assunta: uma cozinha
e um quarto. Como a estação era propícia a isso, adquiriu alguns bichos-da-seda e, instruída pelas vizinhas, preparou um ninho para aqueles minúsculos vermes vorazes
que se alimentavam de folhas de amoreira. As lagartas cresceram a olhos vistos e, ao fim de duas semanas, mediam nove centímetros. Nessa altura, preparou o "bosque"
de ramos a que as lagartas se agarraram para formar os casulos de seda. Teresa seleccionou-os em função do tamanho e da cor. Raramente o conde Brandazzi tinha visto
casulos tão bonitos. Pagou-os ao preço corrente, mas valiam muito mais, devido ao aspecto sedoso e ao brilho. Teresa tomou conhecimento disso pelas outras mulheres
do pátio que, no entanto, tinham alguma inveja do facto de uma "terrona", na primeira experiência, ter obtido um resultado tão extraordinário.
O patrão, porém, ofereceu-lhe a ela e aos filhos quatro meses de trabalho na fiação. Teresa, depois de ter vendido os casulos, arejou a cozinha onde, durante muitas
semanas, se tinha entranhado o fedor dos bichos-da-seda. Com água, lixívia, escova e muita energia, limpou as paredes, o chão e os armários, desalojando o lixo dos
cantos mais escondidos.
As mulheres do pátio olhavam com desconfiança aquela necessidade de limpeza que animava a napolitana e a obrigava, todos os dias, a lavar-se a si própria e aos filhos.
- O importante - diziam-lhe, quase em tom de censura -, é que a alma esteja limpa para o dia em que se apresentar na presença de Nosso Senhor.
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Teresa não respondia. Recordava a avó Lina, que nunca se lavava, e via que estas mulheres se pareciam com ela. Ela não conseguia viver no meio da porcaria.
Foi para a fiação. Catorze horas de trabalho por dia. Para os filhos, obteve um desconto de quatro horas.
O ambiente húmido e sobreaquecido e as mãos curtidas pela contínua imersão na água a ferver eram muitas vezes causa de doenças pulmonares e reumáticas. Teresa olhava
as companheiras e os filhos delas. Ouvia-as tossir e temia por ela e pelos filhos. Estava atenta para não se enganar no trabalho, porque, se perdesse um fio enquanto
dobava os casulos, o defeito notar-se-ia na tecelagem e seria multada por isso. Não se podia permitir o pagamento de multas, tanto mais que depois da terceira multa,
segundo o regulamento, seria despedida.
O patrão ou a filha apareciam de repente na fiação ou na tecelagem, controlavam o trabalho das operárias, e, quando alguma coisa não estava a correr bem, diziam,
sem perder a compostura: - Podes ir embora. - Uma das mulheres do pátio, que trabalhava na tecelagem, foi despedida por causa de uma aposta.
O conde Brandazzi aproximou-se do tear em que ela trabalhava, observou a peça de seda já tecida e viu uma pequena mancha.
- Lava-a - ordenou à mulher.
- Já tentei, senhor conde. Não desaparece - respondeu.
- Vamos fazer uma aposta. Se a mancha desaparecer, desapareces tu também - disse ele. Humedeceu um lenço da mão e passou-o energicamente sobre a seda. A mancha desapareceu.
A mulher teve de ceder imediatamente o lugar a outra operária.
- Por isso, agora estou sem trabalho. Ele, o patrão, comprou uma aldeia inteira no Sul, lá para os teus lados. Eu nem sequer tenho dinheiro para comprar uma linguiça
- foi o comentário da mulher.
Teresa ouvia esta e outras histórias terríveis de exploração e calava-se. Sentia o sangue a ferver, mas não fazia comentários.
Os casulos que transportava na carroça eram ainda melhores do que os do ano anterior. Soube que noutra fiação, a do cavaleiro randoni, poderia realizar muito mais
dinheiro.
- Vem aí a "terrona" - repetiu a condessa Orsola.
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Teresa, a puxar a carroça, passou em frente da balança. Proferiu um respeitoso "Bom-dia, senhor conde", e continuou.
- Onde é que vais? - perguntou o patrão.
- Vou ter com o cavaleiro Prandoni - respondeu Teresa, seguindo o seu caminho.
- Pára - ordenou o conde.
Teresa deixou entregue aos filhos a carroça com aquele carregamento precioso.
- Pode falar - disse, plantando-se à frente do conde com os braços cruzados.
- Tens medo que eu não te pague como esse outro?
- Tenho medo que o senhor conde não aprecie a beleza dos meus casulos - respondeu placidamente.
- Tu moras na Cascina della Sovrana. É minha. Posso resolver aumentar-te a renda - ameaçou o homem, placidamente também. Não lhe agradavam estas atitudes de altivez
por parte dos rendeiros que viviam nas suas terras. E, por maioria de razão, não ia tolerar aquilo de uma "terrona" que viera para o Norte matar a fome.
Era meio-dia e o sol a pique queimava a pele e cortava a respiração. Teresa semicerrou as pálpebras e os seus olhos tornaram-se duas fendas.
Benedetto morrera há um ano e a dor pela sua perda ainda não tinha abrandado. Soube que ele tinha morrido quando lhe chegou um embrulho da Sardenha. Continha um
par de sapatos com meias solas postas há pouco tempo, duas camisolas, um casaco gasto, alguns livros, o relógio de bolso e uma carta da polícia judiciária que lhe
anunciava o súbito desaparecimento do marido no mar, durante uma tentativa de fuga. Não era verdade. Ao fim de poucos dias, Benedetto ia voltar em liberdade. O pensamento
de Teresa foi para di Giacomo. Tinha a certeza de que o mandara matar para se vingar da sua fuga. Acariciou aquelas roupas, os livros e os sapatos e sentiu, por
baixo dos dedos, um alto na palmilha interior. Levantou-a com paciência. Encontrou uma folha dobrada em quatro. Abriu-a e leu.
"Um dia, alguém te vai dizer que morri. Não acredites. Na verdade. Eu não morro enquanto viverem os meus sonhos. Conto-tos a ti, e são tudo aquilo que te posso deixar.
Faz uma capa com eles, Teresa. Veste-a e tem cuidado para não a estragares. É feita com os meus sonhos. Que vão passar a ser os teus, no dia em que alguém te disser
que morri."
Teresa chorou. Depois, a dor transformou-se-lhe numa raiva potente e silenciosa, da qual tirava as forças para viver. Não lhe deixaram sequer um túmulo onde chorar
o marido. Às vezes, sentia-se no limite de explodir, e seria até capaz de matar, armada apenas de uma manta tecida com os sonhos de Benedetto.
- Quer isso dizer, excelência, que, se não vender os meus casulos ao senhor, ao seu preço, me vai aumentar a renda? - perguntou em tom de desafio.
A condessa Orsola parou de se abanar com o caderno. De repente, sentiu um arrepio de frio. Nunca ninguém tinha ousado provocar o pai, o patrão.
Teresa, pelo contrário, pensou que os fascistas e os patrões se pareciam uns com os outros. Que entre eles e a camorra do Sul não havia uma grande diferença.
O carregador e os outros camponeses que estavam ali, na praça, ouviam, observavam e continuavam calados. Também os filhos de Teresa olhavam em silêncio a mãe, o
conde, a jovem condessa e os rendeiros. Teresa estava sozinha, contra todos. A "terrona", a estranha que devia agradecer de joelhos ao patrão que lhe dera um tecto
e um trabalho para não morrer de fome, ousava afrontar o conde, que sabia ser um pai severo mas justo.
- Isto quer dizer que não tolero a arrogância. Amanhã de manhã deixas a casa - ordenou o homem, impassível.
Nem casa, nem trabalho, nem pão para os filhos. Mas Teresa não ia estragar aquela manta de sonhos. Pensou em Benedetto e sorriu.
- A sua casa, excelência, vai ficar livre esta noite - respondeu. As outras pessoas baixaram a cabeça, assustadas. O conde passou a mão pelo pescoço, como se tivesse
recebido um golpe de chicote. Teresa voltou a pôr as mãos no tirante da carroça e os filhos voltaram a empurrar.
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- Fizemos um bom negócio, meninos - afirmou Teresa com um ar satisfeito. Enfiou no corpete o dinheiro ganho com a venda dos casulos. E acrescentou: - Graças também
a vocês, meus filhos. Agora vamos para casa.
- Qual casa, mãe? - perguntou Rosa, que ia nos catorze anos e estava a ficar cada dia mais bonita e pensativa.
- A nossa. Só temos uma - respondeu Teresa, animada pela força e pela alegria que lhe vinham do coração.
- Até logo à noite - precisou Pinuccio. - E depois? Onde vamos dormir esta noite? - perguntou.
- Não se preocupem. Deus toma conta e a mãe remedeia - tranqüilizou-os. - Já tivemos muita canseira. Hoje deve ser um dia de férias.
Não disse nada às mulheres do pátio. Deixou a carroça no depósito das ferramentas, entrou na cozinha, tirou uma forma de pão da masseira e cortou muitas fatias.
Passou-lhes por cima alho, sal e um fio de azeite. Juntou-as dentro de um lenço de pano e meteu-as num cesto.
- Vamos até ao campo - disse, entregando-o à filha
mais velha.
- Vamos comer no prado? - perguntou Iosefa.
- Exactamente - respondeu ela. Saiu de casa e partiu com eles em direcção ao campo.
Teresa sempre se considerara um "animal urbano". O período que
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passou em Bello Fiore, quando estava grávida do primeiro filho, reforçou nela essa convicção. Começou a apreciar a vida em contacto com a natureza durante os anos
que passou em Merano. Aquele campo da Lombardia, tão plano e infinito, suscitara-lhe no início um profundo sentimento de solidão. Depois, convenceu-se de que Cernusco
sul Naviglio era apenas um sítio como outro qualquer para esperar o regresso de Benedetto, sentindo-se em parte protegida pela presença dos dois irmãos. Quando chegou
o Inverno, receou enlouquecer de frio. As roupas de lã, com que se protegia a ela e aos filhos, nunca eram suficientes. Não tinha dinheiro que chegasse para a lenha.
À noite refugiavam-se no estábulo, onde o calor dos animais e as histórias contadas pelos camponeses derretiam o sangue que voltava a correr e pulsava dolorosamente
nos lóbulos das orelhas e nos dedos das mãos e dos pés, inflamados de frieiras. Com o passar do tempo, aprendeu a apreciar a linguagem áspera daquela gente da aldeia
que contava coisas dos tempos em que a planície era ainda uma floresta, reino de veados e de malfeitores. Há pouco mais de cem anos, tinha sido visto o último urso.
Lobos, raposas, texugos, lontras e gaviões existiam ainda na memória dos velhos. Com aquelas histórias, conseguiam captar a atenção das crianças, que esfregavam
os olhos, vencendo o sono para os poderem escutar.
Agora, no pino do Verão, Teresa embrenhou-se na erva alta. Ouvia-se o gorgolejar de um riacho e o canto desesperado das cigarras. Havia uma grande extensão de acácias
e sabugueiros perfumados. À volta das suas flores zumbiam abelhas.
- Este parece-me um bom sítio para comer - decidiu, enquanto se preparava para se sentar na erva. - Vai ali buscar água ao POÇO - ordenou a Pinuccio, entregando-lhe
uma garrafa vazia.
Teresa desapertou as tampas que fechavam os copos de alumínio, que tinham estampada uma flor estilizada e uma frase em esmalte amarelo e azul: RECORDAÇÃO DAS TERMAS
DE TRESCORE.
Tinha sido um presente de Ciro e Salvatore, que no ano anterior lá tinham ido dar um passeio com as noivas.
Eram duas irmãs que trabalhavam numa fábrica de bordados e tules. Os pais das duas raparigas não aprovavam o namoro com os dois "terrões" e aproveitavam todos os
pretextos para dizer
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mal de Ciro e Salvatore. Entretanto, continuavam a adiar a data do casamento com a desculpa de que não havia dinheiro para montar uma casa. Os irmãos de Teresa poupavam
o que podiam, e as noivas faziam a mesma coisa. Tinham ido a um passeio organizado pela paróquia a um santuário de Bergamasco e trouxeram aqueles copos como recordação.
Teresa sentia-se bem com aquela pausa em pleno campo, ao abrigo do sol, com os filhos encolhidos sobre a erva, ao pé dela. Ouvia-lhes as vozes, espiava-lhes os sorrisos
e parecia-lhe que Benedetto também estava ali. Ter-se-ia sentido feliz com o sucesso escolar dos filhos. Rosa freqüentava, nos dias de descanso, uma escola de orientação
profissional, onde aprendia dactilografia, estenografia e contabilidade. Era a melhor do curso e talvez um dia viesse a ser secretária. Era uma esperança que Teresa
acalentava mas não ousava revelar. Pinuccio e Iosefa ainda andavam na primária e Teresa, à noite, punha-os a estudar. Divertia-se a aprender gramática e História
com eles. Não precisava de gastar dinheiro com os livros nem com os cadernos. A Caixa Escolar oferecia-os gratuitamente aos alunos mais pobres. E, como eram todos
pobres, nenhum se envergonhava por aquela caridade.
Havia meio limão no cesto. Teresa espremeu-o gota a gota dentro da garrafa cheia de água fresca. Depois distribuiu fatias de pão pelos filhos. O azeite com que estavam
untadas tinha vindo de Nápoles. O outro irmão, Peppino, mandara-lhe uma lata de cinco litros de azeite, que ela usava com muita parcimónia.
Os vizinhos encaravam com alguma desconfiança o uso do azeite. Preferiam o toucinho, a banha de porco e a manteiga, quando podiam permitir-se esse luxo. Quanto ao
limão, consideravam que irritava o estômago, que fazia emagrecer e que era nocivo para as crianças. Teresa olhava com repugnância os pratos que preparavam com as
rãs que apanhavam nos charcos. Eles desculpavam-na porque, sendo "terrona", não podia apreciar a delicadeza daquela comida. "Mas tu, que vens de Nápoles, o que é
que podes perceber destas coisas?" Ela nunca lhes contou que tinha cozinhado em casas de príncipes. O tempo em que vivera no palácio Castiglia ou em Schloss Rundegg,
a habilidade como cozinheira e a capacidade de pôr uma mesa de festa faziam parte do passado. Não queria falar disso.
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Provavelmente, se o fizesse, ninguém ia acreditar. Nem sequer acreditaram quando, ao regressar da fiação, as mulheres lhe mostraram a villa Valeschi Colonna e ela
perguntou, cheia de curiosidade: - Quais Valeschi? Aqueles que vivem em Milão?
- Os senhores destas casas vivem todos em Milão - responderam-lhe.
- Eu conheço o general Valeschi e a mulher - disse ela.
- Essa agora! Há uns dez anos que ninguém vem a esta villa. Como é que os podes conhecer? - E olharam-na com desconfiança.
Teresa estava quase para contar o período em que viveu no palácio Castiglia e os anos que passou em Merano. - Fui ama em casa deles - sussurrou.
- Essa é boa, queres que a gente acredite nisso? - comentaram em ar de troça.
Não replicou. Mas ao fim de alguns dias foi dar uma volta pelos arredores da villa. Era uma sólida construção oitocentista, maciça e severa, rodeada por um parque.
As paredes estavam cobertas de hera e jasmim, as janelas fechadas e o jardim invadido pelas ervas daninhas. Escreveu a Sofia, contou-lhe o que fazia e pediu notícias
de Thea e da villa de Cernusco.
A resposta de Sofia chegou um mês depois, de Roma. Assim ficou a saber que, depois da morte da signora Vezia Bassanesi Valeschi, a família não tinha voltado àquela
residência de Verão, que o general era ministro e que Thea estava noiva de um jovem industrial.
- Mãe, esta noite sonhei que estávamos a comer macarrão com carne picada - disse Rosa, sacudindo Teresa dos seus pensamentos.
- Como aquele que comíamos em Nápoles? - perguntou Iosefa.
- Tal e qual - anuiu a irmã.
- Eu sonhei com o pai - interveio Pinuccio.
- E como foi? - perguntou Teresa, curiosa.
- Estava sentado num rochedo, em frente ao mar. Eu ia a nadar para chegar ao rochedo, mas não conseguia atingi-lo - murmurou.
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Teresa não disse nada. Virou-se para o outro lado para esconder os olhos marejados de lágrimas.
- Quem sabe se ele se afogou mesmo? Pode ser que um dia regresse - disse Rosa, com um suspiro.
- Agora temos de voltar para casa. E arrumar as nossas coisas - decidiu Teresa, com um movimento enérgico. Levantou-se e voltou a arrumar no cesto os copos e a garrafa
vazia.
- Para onde é que vamos, esta noite? - perguntou Pinuccio, interpretando a ansiedade de todos eles.
- Já vos disse: Deus toma conta e a mãe remedeia - respondeu, enquanto se preparava para ir embora.
Entretanto, a notícia da expulsão dos "terrões" daquela casa andava já na boca de toda a gente.
- Para onde é que vais? - perguntaram-lhe as mulheres do pátio, olhando-a com piedade. Muitas delas seriam capazes de a acolher com os filhos. Mas temiam a represália
do conde Brandazzi.
Teresa carregou na carroça todos os seus haveres: roupas, pratos, copos, cobertores, um colchão e alguns mantimentos. Os poucos móveis que ali havia eram do patrão.
- Meninos, eu puxo e vocês empurram - disse, segurando o tirante.
Saíram do pátio e atravessaram a aldeia seguidos pelos camponeses que, a pouco e pouco, foram aumentando de número até se tornarem uma multidão. Teresa chegou à
praça da igreja. A luz suave do entardecer acariciava as pedras do adro e a antiga fachada. Parou ali.
- Chegámos - disse aos filhos.
Olhou os rostos atónitos dos rendeiros que os fixavam, mudos, a ela e aos filhos.
- A nossa casa é aqui, em frente à casa do Senhor - acrescentou. Pousou o colchão no chão. - O céu vai ser o nosso tecto, e o nosso cobertor a mão de Deus - concluiu.
A praça, naquela altura, estava cheia de gente. Naquele fim de tarde de Julho, Teresa já não era a "terrona" que tinha caído no meio deles e fora acolhida, segundo
a advertência de don Cláudio, porque eram todos irmãos em Cristo. Era uma figura imponente
No adro da igreja. Era o símbolo de todas as mães que nunca tinham ousado revoltar-se para afirmar a sua dignidade e a dos filhos, obrigados a trabalhar desde pequenos
e submetidos como elas, à vontade de um patrão despótico. Teresa não pronunciou uma única palavra contra el sciur cunt que a tinha despedido, nem pediu nada a ninguém.
Entregou-se a Deus e aos habitantes daquela aldeia, que eram mais de seis mil e viviam todos na miséria.

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Numa pequena sala de jantar de tectos pintados com frescos e estuques dourados a emoldurar as portas, o conde Anacleto Maria Brandazzi jantava com a filha, Orsola.
A toalha imaculada de linho da Flandres roçava o chão. O brilho dos cristais, das porcelanas e das pratas contrastava com a frugalidade da refeição. O conde e a
filha estavam de péssimo humor.
- Estás a ver como reagem estes miseráveis? Dás-lhes um tecto e um trabalho e agradecem-te com a arrogância. Quando lhes explicas que o mercado da seda está em crise,
respondem-te com um sorriso idiota. Não ouvem razões. Querem dinheiro, sempre dinheiro, e trabalhar o mínimo possível - resmungou o conde entre duas colheres de
sopa. Depois limpou os lábios com um guardanapo cândido.
Orsola não replicou. Se falasse ainda era pior. No fim de contas, a fiação não era assim tão interessante como isso. Aquilo que lhe despertava o interesse eram as
fiandeiras jovens, aquelas que tinham entre quinze e dezasseis anos, magras, mal nutridas, já com prática de jogos amorosos, que conseguiam exprimir uma sensualidade
desenfreada sempre que podiam encher a boca de fruta doce e creme de ovos com marsala.
- Daqui a dois ou três anos vou ter de fechar. Aí é que eles vão perceber o que significa a fome - continuou o conde.
- Telefonaram de Milão. Para amanhã, querem legumes e fruta fresca - anunciou a filha.
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- Aquela também só sabe pedir - resmungou o pai. Referia-se à mulher, que o rejeitara no dia em que os médicos sentenciaram que o conde estava doente com sífilis.
Tinha sido o fim do mundo, porque ela própria fora contagiada. Refugiou-se em Zurique para se tratar. Curou-se e, ao regressar a Itália, decidiu ficar a viver em
Milão. O conde, pelo contrário, não quis saber de terapias. - A sífilis já a temos no sangue há várias gerações. O meu pai morreu aos oitenta anos com uma pneumonia
e a minha mãe aos noventa com um ataque. Os nossos camponeses, que nunca tiveram sífilis, quando lhes corre bem conseguem chegar aos cinqüenta. A condessa é muito
caprichosa - sentenciou. Entretanto, vivia sozinho há cinco anos, o que não lhe desagradava. Às mulheres da cidade, sofisticadas e cheias de exigências, sempre preferira
as empregadas que vinham do campo, aguentavam as suas investidas sem protestar e, quando ficavam grávidas, eram afastadas pelo administrador. Bastava-lhe pouco dinheiro
para se ver livre delas.
Acontecia-lhe às vezes mexer com dificuldade o braço e a perna esquerda. Outras vezes sofria de alucinações. Eram distúrbios passageiros. Bastavam alguns dias de
repouso, umas sanguessugas aplicadas nas têmporas, e ficava de novo forte como antes. Que diabo, tinha apenas cinqüenta e cinco anos e era um homem vigoroso. E esse
vigor ia buscá-lo às raparigas novas, que tinham já experimentado a cama de Orsola. A filha tinha quase trinta anos e não queria saber de homens. Tinha razão. Era
já de si suficientemente masculina.
Entrou um criado a anunciar que estava na cozinha um camponês que lhe queria falar.
- Diz-lhe que volte amanhã - respondeu o conde.
- Parece que é uma coisa urgente - replicou o homem.
- Manda-o subir - concedeu, a olhar para a filha, como se esperasse dela um parecer a esse propósito. Orsola encolheu os ombros e continuou a saborear o doce.
O camponês, conhecido pelo nome de Trombeta porque contava ao conde tudo aquilo que acontecia na aldeia, parou à entrada da sala de jantar. Tinha tirado o chapéu
e torcia-o entre as mãos, de olhos no chão.
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- Então, o que é que há assim de tão urgente? - perguntou o patrão com uma voz áspera, pronto a maltratá-lo se aquela intrusão se revelasse de escasso interesse.
- A "terrona" pôs o colchão no adro da igreja. É lá que vai dormir com os filhos. Metade da aldeia está na praça e ninguém pia - disse o Trombeta.
O conde levou alguns instantes a digerir a notícia.
- E o don Cláudio o que está a fazer? - perguntou por fim.
- Abriu a igreja e disse-lhe para entrar. Ela nem se mexeu.
- Está bem. Podes ir embora - disse o conde. E sorriu. A reacção da napolitana pareceu-lhe divertida, apesar de o ter apanhado desprevenido. Esperava encontrá-la
a implorar perdão, frente ao portão da villa.
- Se não fazes alguma coisa, os fascistas vão intervir - avisou Orsola. Entretanto, pensava na jovem Rosa Zicri. Mantinha-a debaixo de olho há alguns meses. Tinha
a beleza de uma flor exótica, apesar de não estar ainda pronta para ser colhida. Tencionava esperar pelo Verão seguinte para a sondar. Mas agora o acaso acabava
de lha entregar. Também ela, assim como o pai, sorriu.
- Deixa-os intervir. Vão prendê-la por vagabundagem e perturbação da ordem pública. Os filhos serão entregues a um instituto e os nossos camponeses vão perceber
que a única vontade que conta é a do patrão - replicou ele.
- A coisa vai dar que falar. É melhor evitar que a notícia chegue a um jornal. Vale a pena esticar assim tanto a corda? Aos olhos desta gente, a "terrona" ia tornar-se
uma vítima - observou Orsola.
- É mesmo pena que tu não tenhas nascido macho em tudo e para tudo. O que pensas fazer?
- Falar com o pároco e convencê-lo de que a mulher interpretou mal as tuas intenções. Entretanto, eu aceito aqui em casa a filha mais velha. Parece que é muito estudiosa.
De qualquer maneira, vais ver que o don Cláudio tão tarda a chegar - respondeu a condessa.
Já tinha caído a noite. Os camponeses não pareciam dispostos a deixar a praça. As suas vozes eram um murmúrio de palavras piedosas. "El sciur cunt não a devia ter
posto fora de casa", diziam, julgando-o pela primeira vez. "Seja como for, não passa de uma pobre viúva com três filhos para criar",
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diziam as mulheres, com pena dela. "Mesmo sendo napolitana, quanto a seriedade não há nada a dizer. Nunca se armou em esperta com ninguém", acrescentavam outros.
"Ao cunt Brandass não importam estas coisas. Ele paga-te tanto por volta de tear e o resto não conta", comentavam as operárias. "Mas fê-lo ficar mal. Foi vender
os casulos ao Prandoni. Não devia", defendiam as mais receosas. As crianças, puxando os pais pelas pernas das calças, perguntavam: "E agora, o que é que vai acontecer?".
Naquela aldeia, onde nunca acontecia nada para além dos nascimentos e das mortes, das doenças e das desgraças, a napolitana tinha montado um espectáculo aberto a
qualquer desenvolvimento e, portanto, pelo menos naquela noite, interrompeu a monotonia das suas vidas. Estavam-lhe gratos por isso. Entretanto observavam o velho
pároco que falava com Teresa em voz baixa, enquanto os irmãos Zicri exultavam de prazer porque se sentiam, ao menos por uma vez, o centro das atenções.
Depois apareceram Ciro e Salvatore Avigliano. Regressavam do trabalho quando, nas proximidades de Cernusco, lhes chegou a notícia de que Teresa, expulsa pelo conde,
se tinha mudado para a praça.
Apressaram o passo e na margem do Naviglio encontraram o ferreiro Luigi Videmari, conhecido por elferé. Era um homem alto e forte, com uma perna coxa. Na sua oficina,
trabalhava o ferro incandescente com pancadas potentes do maço, forjando grades e ornamentos tão finos como uma renda. Naquelas mãos, o ferro transformava-se num
material maleável ao serviço da sua fantasia criativa. Tinha uma casa por cima da oficina e vivia com uma mãe caprichosa, que sofria permanentemente de dores de
cabeça, razão pela qual andava sempre com a testa coberta com um pano embebido em vinagre. Ele tinha trinta e cinco anos e era solteiro. As raparigas da aldeia olhavam
com desconfiança aquela perna magra, atacada pela paralisia infantil, e diziam que aquilo era um sinal do diabo. Luigi tinha uma irmã freira. Constava que se tinha
refugiado num convento para não ter que aguentar por mais tempo aquela mãe insuportável. Também o marido a deixara vinte anos antes. Emigrou para França e não voltou
a dar notícias.
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Luigi reparara em Teresa mal ela chegou. Tinha sabido que o marido estava desterrado e a piedade por aquela mulher sozinha e pelos seus três filhos levou-o a oferecer-lhes
alguns brinquedos forjados no ferro. Quando soube da morte do marido, começou a considerar Teresa a uma nova luz. Reparou na beleza dela, naquele andar quase altivo
e na maravilha daqueles cabelos quando o lenço lhe escorregava da cabeça. Porém, tímido como era, nunca mais ousou dedicar-lhe a ela e aos filhos as atenções que
tinha antes.
Agora, tendo sabido daquilo que estava a acontecer na praça, disse à mãe: - Temos três quartos vazios. Podiam oferecer-se à napolitana.
- Desde que ela possa ser útil - respondeu inesperadamente a velha.
Luigi Videmari ia a caminho da praça para oferecer um tecto a Teresa e encontrou os irmãos dela.
O povo abriu caminho aos três homens, que se dirigiram à igreja. O pároco soltou um suspiro de alívio.
- Tentem vocês conversar com esta teimosa - desabafou, informando-os sobre o que tinha acontecido.
- Vem para nossa casa, pelo menos por agora. Depois vê-se - decidiu Ciro.
- Eu tenho direito a um trabalho e a uma casa de onde um patrão não me possa expulsar por eu não ter aceitado um preço de agiota. Nápoles fica a centenas de quilómetros
daqui. Eu fugi da camorra e julgava que estava a salvo. Enganei-me. Aqui é como lá. Afrontas, só afrontas. Há uma vida inteira que as aguento. Agora, chega - disse
Teresa com ardor.
- Eu ofereço-vos uma casa, se me derem a honra de a aceitar - propôs o ferreiro. - São três quartos limpos e decentes, por cima da oficina. A minha mãe está de acordo.
Teresa considerou as palavras daquele homem esquivo e olhou-o nos olhos. Tinha um olhar brando, que inspirava confiança.
Quase todos os dias passava em frente à casa do ferreiro. NO rés-do-chão havia duas grandes janelas com vidro martelado. Nas noites de Inverno via o fulgor avermelhado
do fogo que ardia na forja e sentia as pancadas do malho na bigorna. Pensava que aquele devia ser o lugar mais quente de toda a aldeia.
- Agradeço-lhe muito - sussurrou. E acrescentou: - Mas não é justo.
- E o que seria justo, para ti? - perguntou Salvatore.
- Que o conde me pedisse desculpa e me prometesse que nunca mais se ia comportar daquela maneira, nem comigo, nem com os outros - declarou.
- Podes esperar sentada - disse o pároco. - Vá lá que até te correu bem. O fere é um bom homem. Junta os teus tarecos e desaparece. E, para a próxima, pensa duas
vezes antes de bateres com a cabeça - concluiu, com uma sensação de alívio. Depois voltou-se para a gente que ali estava: - Regressem às vossas casas e tentem não
fazer correr muita conversa - avisou.
Não esperava, de facto, que o problema se conseguisse resolver assim tão depressa. Durante toda a noite, temera a intervenção dos fascistas. Já tinha problemas suficientes
com eles e não queria que a história de Teresa se tornasse um pretexto para mais um aperto por parte das autoridades.
Voltou à igreja e ajoelhou-se em frente ao altar. Preparou-se para agradecer ao Senhor, enquanto sorria a pensar no vexame do conde Brandazzi que, tinha a certeza,
esperava a visita dele para lhe implorar piedade por aquela pobre mulher transtornada. Às vezes Deus dirige o olhar para o seu rebanho e restabelece a justiça, pensou.
"Correu-lhe mal, senhor conde", murmurou antes de juntar as mãos e rezar o Padre-nosso.
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ROMA - MINISTÉRIO DA GUERRA JULHO DE 1933
Lorenzo saiu do seu escritório no primeiro andar do ministério, seguiu por uma escada secundária e entrou no apartamento a chamar a mulher em voz alta.
Josepha estava ao pé do armário da roupa e estudava a possibilidade de remendar a bainha de um lençol de linho.
- Este foi a avó Rost que o bordou. São bordados que já não se fazem: dão muito trabalho. Nunca vou ser capaz de o deitar fora - dizia para a costureira.
- Mesmo que se faça um conserto em ponto miudinho, na próxima lavagem vai rasgar outra vez - observou a mulher.
- Então passa-se a ferro com cuidado e volta-se a meter no armário. Guardo-o como recordação - disse, resignada. Depois ouviu a voz do marido e espreitou para o
corredor.
- Estou aqui, querido. Não é preciso gritar.
- Ai não? - perguntou ele, furibundo, a abanar os papéis que trazia na mão.
Lorenzo estava num daqueles raros momentos em que perdia as estribeiras e, fosse qual fosse o motivo, ela tinha de lhe ouvir o desabafo.
- Vamos para ali - sugeriu, avançando à frente dele em direcÇão ao quarto de dormir. Era a única divisão em que podiam discutir livremente, sem que ninguém pudesse
ouvi-los.
- A tua filha vai arruinar-me - vociferou, assim que a mulher fechou a porta. - Novecentas e setenta e seis caixas de bombons em prata, quilos de confeitos, um camião
de flores,
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trinta peças de roupa interior de seda bordada à mão, trinta e seis lençóis, quarenta toalhas, cinco tailleurs de viagem, cinco vestidos de noite, chapéus, sapatos
e carteiras. Isto aqui é o orçamento para a impressão de mil e duzentas participações de casamento, para o vestido de noiva em crepe da China, para o organista e
para o coro, para a recepção e por aí adiante.
Atirou para cima da cama um maço de papéis. - Fazes alguma idéia de quanto nos poderá custar tudo isto? - perguntou, furioso. - Mas quem é que aquela menina julga
que é?
Josepha sentou-se numa poltrona e sorriu.
- Julga que é a filha de um dos homens mais poderosos de Itália - respondeu com uma voz serena.
- Giuseppina, por favor, deixa-te de ironias. Este não é o momento. Eu não sou milionário, nem nunca vou ser. Não posso e não quero esbanjar. Seria imoral. Em Itália
há gente que morre de fome, e aceitar as exigências da tua filha seria como cuspir no rosto da miséria - disse, medindo o quarto a passos largos.
- Só te quero lembrar que a nossa filha tem boa memória. Lembras-te do último casamento pomposo a que assistimos? Thea estava connosco, e tu disseste-lhe: "Quando
te casares, a magnificência da tua boda vai fazer com que isto pareça uma festa de aldeia". Não digas que não é verdade, porque eu ouvi, com estes ouvidos. A Thea
tomou nota dessa promessa e está a preparar-se para ela - atirou-lhe.
- Então tu pensas como ela - disse o marido, espantado.
- Conheces-me suficientemente bem para saberes aquilo que penso. Já sabes que, se dependesse de mim, vivíamos no campo a criar vacas, cavalos e galinhas. Mas tu
nunca estarias de acordo com isso. Thea não tem a noção do dinheiro. Ela vê os ministros, os embaixadores e os diplomatas que andam com os bolsos cheios de dinheiro
e gastam às mãos-cheias. Por que é que o pai não pode fazer a mesma coisa?
- Porque eu, minha querida, vivo do meu salário - respondeu ele, como um professor paciente que tenta explicar um conceito simples a um aluno mais atrasado.
- Isso significa que, em relação aos teus colegas, és mal pago - insinuou Josepha.
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- Isto significa que eles metem algum dinheiro ao bolso - deixou fugir, e imediatamente se arrependeu por ter feito aquela afirmação.
- Eles roubam, querido. Roubam com as encomendas de carvão, com as empreitadas dos caminhos-de-ferro e com os fornecimentos de cereais e de armas. Se tu explicasses
isto tudo à tua filha, talvez ela percebesse mais alguma coisa sobre os ideais do fascismo, que só valem para o povo e não para quem governa - observou ela com uma
voz suave.
- Cá estamos nós outra vez. Mas por que é que não aprendes a fechar a boca? Eu acredito profundamente neste regime. Meia dúzia de malfeitores não conseguem mudar
a grandeza dos seus ideais. As pessoas vivem melhor desde que existe o fascismo. A economia recuperou, secaram-se os pântanos, há trabalho para toda a gente, os
comboios andam a horas, as crianças pobres vão para a praia e para a montanha. Toda a gente vai à escola, e quem tiver vontade de estudar pode singrar na vida sem
nenhuma diferença de classe. É isto que tu não queres perceber - disse, inflamado.
- Entretanto, os opositores ao regime são perseguidos e ignobilmente trucidados, os jornais são submetidos à censura e o povo só tem que obedecer porque há um pai
bom e circunspecto que pensa por ele. Por que razão devo eu calar esta e outras verdades?
- Porque com isso me podes arranjar problemas. É uma explicação convincente?
Josepha levantou-se, foi até junto dele e acariciou-lhe a face com ternura. Lorenzo sabia muito bem que a corrupção aumentava. Não podia fazer nada para a denunciar
e limitava-se a ficar fora dela. - Vejo fios de prata no meio dos teus cabelos - sussurrou-lhe a sorrir.
- Estou a caminho dos cinqüenta anos, meu amor - murmurou, abraçando-a.
- Se parares, eu apanho-te num instante. Só tenho menos oito que tu - respondeu com um jogo de palavras, para não admitir
que já tinha ultrapassado os quarenta.
- Tu nunca me vais apanhar, Josepha. Serás sempre a menina empertigada que encontrei nas escadas do palácio Castiglia há muitos, muitos anos - sussurrou-lhe ao ouvido,
acariciando-lhe os flancos.
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- Ainda te lembras?
- Lembro-me de tudo o que se passou contigo e agradeço a Deus por te ter posto no meu caminho. Que sentido teria a minha vida, se nunca te tivesse encontrado?
- Nunca te tornei a vida muito fácil - admitiu.
- De facto, é disso que eu gosto. - Abraçou-a e enfiou-lhe uma mão por dentro da blusa.
- Estás a fazer-me cócegas - disse ela a rir.
Já se tinham os dois esquecido do casamento de Thea e a cama estava ali, pronta para os receber. Depois viram as facturas e os orçamentos espalhados na colcha de
renda e o encanto quebrou-se.
- Por favor, querida, queres tu conversar com a nossa filha? - perguntou, largando-a.
- A Thea é tua, ou minha, ou nossa, consoante os momentos - comentou Josepha. Depois acariciou-lhe um braço e ofereceu-lhe um sorriso tranqüilizador.
- Não te preocupes, Lorenzo. Eu resolvo tudo com ela -concluiu, como despedida.
Sabia muito bem que o salário do marido, apesar de ser elevado, não permitia uma tal despesa. Mas havia os rendimentos dela, os que lhe vinham dos Castiglia, para
equilibrar o orçamento doméstico. Lorenzo nunca se preocupara em conhecer a consistência daquele património. De resto, nem ela se preocupava com isso. Quando precisava
de dinheiro, telefonava ao administrador, que tratava de tudo.
Em Nápoles, uma vez por ano, fazia-se uma reunião com os herdeiros Castiglia, proprietários, entre outras coisas, das destilarias. Josepha encontrava-se com a ex-cunhada
Marianna, o representante legal de Virginia e Ezio Burgio que, depois da morte de Carolina, tinha sido atingido por uma paralisia e estava condenado a uma cadeira
de rodas. O acidente não o impediu de continuar a ocupar-se da empresa, que dava dividendos cada vez maiores. Uma parte dos rendimentos era reinvestida e o resto
era gerido pelo administrador da família.
Para o casamento de Thea com Guido Battellieri, Josepha reti rou o necessário dos seus rendimentos. Não dava importância a dinheiro. Mas tinha urgência em casar
a filha, que se estava
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a tornar cada vez mais problemática. Tinha a certeza de que um marido e alguns filhos conseguiriam aplacar aquela exuberância. Apanhou os papéis espalhados. Thea
apareceu à porta.
- Incomodo? - perguntou.
- Depende - respondeu a mãe, pousando as facturas no toucador.
- Não te roubo muito tempo. Só te queria mostrar a lista de convidados - disse Thea.
Josepha olhou para a filha. Defini-la como sendo bonita seria redutor. Dorothea Valeschi não tinha contornos perfeitos, nem curvas dignas de relevo, mas era uma
rapariga estupenda que se impunha por um fascínio vagamente eslavo, um porte aristocrático e a natureza de uma verdadeira senhora. Alguns meses atrás, um realizador
de cinema, ofuscado por aquela personalidade, tinha-lhe proposto um papel num filme. - Agradeço-lhe muito essa oferta. Não posso aceitar, porque sei que não tenho
talento para a declamação - esquivou-se imediatamente. Mas, logo a seguir, gabou-se daquela proposta a toda a gente, provocando uma crise de ciúmes em Guido, o futuro
marido.
Josepha soltou um suspiro de resignação e preparou-se para ouvir pela décima vez os nomes dos convidados.
- Sou muito aborrecida, eu sei. Mas tu és tão boa e tão paciente, minha Mutti - disse, olhando a mãe com ternura. E acrescentou: - Ao fim e ao cabo, é a primeira
vez que me caso e não vou ter uma segunda oportunidade.
- Depende - observou novamente Josepha, divertida.
- Por favor, mamã, não brinques com uma coisa tão importante.
- Vou ouvir-te e vou ficar muito séria. Dá-me esses papéis.
Começou a lê-los, comentando os nomes que ali estavam indicados.
- Eu diria que com os parentes e os amigos Valeschi está tudo bem. Em relação aos parentes e amigos Battellieri tens de ver com o Guido. A minha família não está
aqui, até porque não a tenho. De Merano só vêm os von Wedel. Parece-me que a tribo dos Castiglia está completa. Fala com o teu pai sobre o mundo romano. Sabes muito
bem que eu não sei fazer a distinção entre generais e ministros - comentou Josepha.
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- Eu sei. Para ti, o primeiro-ministro vale tanto como o barão von Wedel.
- Estás enganada. O barão von Wedel vale muito mais.
- Ainda mais do que um príncipe de sangue real?
- O que queres dizer com isso?
- Que vem um ao meu casamento, Mutti - declarou Thea. E acrescentou: - O papá não te falou nisso?
- Já o conheces. Até é possível que já se tenha esquecido - disse Josepha.
- Mas eu não - sublinhou a rapariga. - Por isso lembrei-me que se calhar devíamos pedir a ajuda de um cenógrafo para o arranjo da igreja.
- Vou pensar nisso. Mas tu tens mesmo a certeza de que te lembraste dos amigos todos? - perguntou Josepha.
- Por isso é que te pedi ajuda.
- Não vejo o nome da tua ama - sussurrou Josepha.
Thea teve um gesto de irritação. Não gostava de ser apanhada em falta.
- Estás a ver como é fácil esquecer as pessoas de quem gostamos? - continuou a mãe.
- Vou ter com ela na próxima semana, com o Guido, porque assim também fica a conhecer o noivo. Não queres vir também? Vamos a Nápoles de manhã e regressamos ao fim
da tarde - sugeriu Thea.
- A tua ama já não está em Nápoles há algum tempo - informou Josepha.
- A sério? Onde está?
- Está em Cernusco sul Naviglio. Acho que este nome te diz alguma coisa.
- Fui lá contigo quando era pequenina. O papá tem uma villa naquela aldeia. Não é isso?
- Não é só do papá. É dos Valeschi.
- Então vou ter com ela quando estiver em Milão.
- Entretanto podias escrever-lhe. Não achas?
Thea escreveu a Teresa uma longa carta e enviou-lhe um quilo de confeitos e uma caixa de bombons em prata.
Recebeu uma resposta cheia de recomendações: "Arranja maneira de te atirarem muitos punhados de arroz, porque isso
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significa prosperidade. Conseguirás as boas graças da sorte se usares, no dia do casamento, uma coisa nova e uma usada, uma emprestada e uma comprada, uma coisa
de lã e uma de seda. Depois do casamento vai a casa da tua sogra e leva-lhe um ramo de oliveira, que é para nunca teres problemas com ela. Estou muito feliz por
ti e estou comovida, porque te lembraste da tua ama".
Era o fim do ano de 1933. Quando Thea estava no Cairo, em viagem de núpcias, Hitler tomou o poder na Alemanha.
Telefonou ao pai. - O que pensas disso? - perguntou-lhe.
Lorenzo Valeschi respondeu: - É uma desgraça. Mas não te preocupes. Diverte-te, enquanto podes.
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MILÃO - PRAÇA SANTANGELO MAIO DE 1936
Em Milão, Thea conheceu jovens que definia como "terrivelmente simpáticos e interessantes", com os quais ia ao cinema e ao teatro, aos cafés e às recepções, à inauguração
de exposições de arte e ao ténis, ao picadeiro ou a passeios nos lagos. Como era bonita e tinha um apelido importante, era disputada por toda a gente.
Conheceu jornalistas, escritores, pintores, gente do teatro, industriais, banqueiros e políticos. Nunca se tinha divertido tanto. Em qualquer parte se sentia o centro
das atenções, e esta consciência dava-lha uma grande satisfação. Alguns jovens, apesar de a saberem casada, faziam-lhe uma corte discreta que ela fingia ignorar.
Guido, o marido, tornava-se cada vez mais ciumento e recorria a Pequenos e extravagantes expedientes para dissipar as dúvidas que o afligiam.
Naquele momento, Thea preparava-se para sair. Tinha um encontro no Caffè Cova com um jornalista. O pequeno Lorenzo, o nino, andava nos jardins públicos com Miss
Elaine, a nurse. Em Milão, o mês de Maio não era como em Roma: não era tão quente. Lá fora brilhava um sol esplendoroso, mas o vento que soprava do Norte fazia arrepiar.
Por isso, decidiu-se por um tailleur de lã cor de nata. Encontrou o chapéu mais adequado e uma carteira do mesmo tom. Depois escolheu os sapatos. Ao tirá-los do
armário, reparou que tinham na sola um círculo traçado a giz. Pensou em pedir explicações à empregada. Depois esqueceu-se.
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Arnaldo Sacconi, o jornalista, esperava-a à entrada do café. - Já soubeste, Thea? - perguntou, com uma voz ansiosa.
- Já soube o quê?
- As tropas italianas entraram em Adis Abeba e o Negus fugiu.
- Sim, já sei. O meu pai informou-me hoje de manhã. Parece-me uma boa notícia. Quero eu dizer que a guerra se resolveu rapidamente. É claro que é tudo mérito do
papá. Ele declarou, desde o início, que ia procurar encerrar esta história em pouco tempo. E conseguiu - disse ela, sentando-se à mesa.
Mas não era sobre esse assunto que ela queria falar com o jornalista. Tinha mais interesse em saber antecipadamente aquilo que Arnaldo ia escrever sobre ela, que
era a chefe dos Fasci Femminili da Lombardia.
Alguns dias antes, ele tinha-lhe feito uma longa entrevista para um semanário. Ela falou em pormenor sobre a actividade das mulheres fascistas, sublinhando as capacidades
extraordinárias de algumas delas. Tinha discorrido longamente sobre as "mães como criadoras", sobre os filhos que representam "esforçadas esperanças", sobre o povo
"ardente de juventude". Mas, sobretudo, comentou de uma forma polémica as afirmações de certas feministas que pediam à mulher o "conhecimento de si". Thea propôs,
pelo contrário, o "esquecimento de si", para bem da família e da pátria.
Afirmou que as mulheres fascistas nunca se quereriam impor em actividades em que "só a têmpera masculina pode lutar e vencer", e que se sentiam felizes por "viverem
na sombra" dos seus homens.
O jornalista entregou-lhe o rascunho do artigo, que deveria ocupar duas páginas e que seria apresentado com fotografias de Thea a distribuir presentes às crianças
pobres, com o pequeno Lorenzo ao colo, e a servir o almoço aos idosos de um hospício.
- Lê-o com atenção e, se quiseres, faz as tuas correcções - disse-lhe Arnaldo.
Guardou as folhas na carteira e, a partir daquele momento, Já estava pronta para regressar a casa. Mas o jornalista procurava obter dela notícias em primeira mão
e não parecia disposto a deixá-la partir sem trocarem dois dedos de conversa. Thea era suficientemente sensata para saber o que podia dizer e o que devia calar.
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- Em Espanha vive-se uma atmosfera pesada. Um tal Francisco Franco está a recolher apoio contra o governo republicano. - Thea deixou cair uma notícia que não tinha
nada a ver com a Itália.
- Muito interessante - observou o jornalista. - E o que me dizes desta vitória etíope?
- A consequência é óbvia. O Duce vai entregar uma colónia ao rei e Vittorio Emanuele vai ficar-lhe grato por isso - concluiu Thea, que tinha pressa de regressar
a casa.
Estava preocupada. Se Guido chegasse a casa antes dela e não a encontrasse ia ficar irritado. Por outro lado, durante o telefonema de Roma, sentiu uma nota de melancolia
na voz do pai. Deveria ter exultado com aquela vitória mas, pelo contrário, pareceu-lhe triste. Tinha de ligar à mãe para descobrir o que é que não estava a correr
bem.
Subiu a correr as escadas do palácio da Praça Sant'Angelo, onde vivia já há três anos. Entrou em casa. Felizmente, Guido ainda não tinha aparecido. O pequeno Lorenzo,
em contrapartida, foi ao encontro dela com pequenos gritos de alegria. Thea cobriu-o de beijos.
- Agora a mamã vai mudar de roupa e tu vais fazer-lhe companhia - disse-lhe, levando-o para o quarto de vestir.
Lorenzo respondeu à maneira dele, com uma série de sílabas sem sentido.
- Quando é que te decides a falar, Lorenzino? - perguntou ela, enquanto arrumava o tailleur no armário. O pequeno respondeu com uma espécie de gorjeio. Tinha encontrado
um bâton na carteira da mãe, tirou-lhe a tampa e lambia com gosto aquela pasta gordurosa.
- Olha como te puseste! - gritou Thea, e chamou aos berros a nurse, que conseguiu recuperar o bâton e tranqüilizou a mãe. - O bâton não é venenoso. Basta um pouco
de água e sabão para lhe lavar a cara.
O menino, privado daquele jogo tão interessante, começou a berrar e gritou: - Mamã!
Thea pegou nele ao colo e apertou-o contra ela, a rir de alegria. - Que maravilha! O meu pequenino disse mamã! A mamã está aqui, meu anjo. - Lorenzo parou de chorar.
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Miss Elaine, uma mulher com cerca de quarenta anos, pequena e gorducha, disse-lhe com um sorriso benévolo: - Será que estava com medo que este "big Mussolini" não
falasse? - Era assim que tratava Lorenzo, porque era uma criança robusta e o seu crânio redondo tardava a cobrir-se de cabelos.
Thea tinha-a escolhido entre muitas candidatas porque era doce, maternal, sorridente e firmemente convencida de que as crianças têm mais necessidade de amor do que
dos esquemas rígidos consagrados nos manuais de puericultura.
- Miss Elaine, pode fazer outra coisa. Eu trato de o lavar e de lhe dar a papa - decidiu Thea.
Preparou-lhe a comida com caldo de carne, massa com glúten e queijo derretido no caldo.
Quando Josepha vinha visitá-la a Milão, observava o cuidado com que a filha mantinha a casa, a habilidade com que seguia o pessoal de serviço e a dedicação ao filho
e dizia: - És fantástica. Quem foi que te ensinou isto tudo?
- Tu, como é evidente - respondia ela.
- Mas se tu nunca me ouvias!
- Porque já sabia a lição de cor e, como vês, no momento oportuno tratei de a pôr em prática.
Josepha, porém, estava preocupada com o envolvimento político que Thea tinha assumido e não concordava com as idéias dela.
O telefone tocou em casa dos Battellieri e um criado anunciou a Thea: - A sua mãe pede para falar com a senhora.
Thea levantou o pequeno da cadeira de braços. Tinha acabado de comer. Limpou-lhe a cara com o babete e entregou-o a MISS Elaine.
- Ia ligar-te mais tarde - disse imediatamente.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou Josepha.
- Isso queria eu que tu me dissesses. Ouvi o papá e pareceu-me cansado - observou a filha.
- A vitória na Etiópia não vai ser uma página muito bonita na história italiana. O teu pai está perfeitamente consciente disso. Espera que o rei recuse a coroa de
imperador - sussurrou Josepa. Tinha sempre medo de que alguém pudesse espiá-la e referir o conteúdo dos seus telefonemas. Tinha-se tornado muito desconfiada!
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tinha razões para o ser, porque os delatores estavam por todo o lado, até no meio do pessoal de serviço.
- Não percebo. Foi ele quem comandou esta guerra - objectou Thea.
- Mas não foi ele quem a quis. O teu pai só actuou de forma a que se resolvesse rapidamente. Foi um extermínio de gente desarmada. Uma vergonha, Thea. O teu pai
sabe-o e sofre por isso.
Josepha gostaria de poder ajudar o marido que, sentia-o, era prisioneiro de forças que o dominavam.
- Mutti, tem calma. Olhando para o que acontece nos outros países, podemos considerar-nos com sorte - rematou. Guido tinha chegado e estava a chamar por ela. - Um
beijo. Até breve - concluiu.
- A quem é que estás a mandar um beijo? - perguntou o marido, que tinha aparecido à entrada da sala.
Thea levantou-se, foi ao encontro dele e ofereceu-lhe a face para um beijo, o que ele fez distraidamente.
- Então, com quem estavas a falar? - insistiu.
- Com a mamã. Por que é que és sempre tão desconfiado?
- O que é que ela queria?
- Aquilo que querem todas as mães das filhas que estão longe. Queria falar comigo. Parece-te assim tão estranho?
O criado serviu o aperitivo: vermute, azeitonas verdes e pistácios.
- O que fizeste hoje de manhã? - perguntou Guido.
Se Thea lhe dissesse que tinha saído para se encontrar com Arnaldo Sacconi, Guido ia franzir o sobrolho e iniciar um interrogatório aviltante. Não lhe queria dizer
que tinha ido buscar o rascunho de um artigo que lhe dizia respeito, porque queria que fosse uma surpresa para o marido.
- Absolutamente nada - respondeu.
- Não saíste?
- Claro que não - mentiu.
Guido levantou-se da poltrona, agarrou-a pelos ombros e olhou-a como se a quisesse fulminar.
- O que é que me andas a esconder? Onde estiveste? Com quem? - vociferou.
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- Guido, pára com isso. Já te disse que fiquei em casa o tempo todo - protestou.
- Os teus sapatos estão ali, no quarto de vestir, e a marca que eu tinha feito com giz já lá não está. Isto significa que tu saíste.
Thea corou, não pela vergonha de ter sido apanhada em falta, mas de raiva.
- Como é que consegues ser tão mesquinho? - gritou, e não conseguiu travar a mão que caiu com muita força na face do marido.
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CERNUSCO SUL NAVIGLIO MAIO DE 1936
Como prenda de aniversário, Thea recebeu do pai um automóvel. Era um Lancia Belna de um bonito tom de creme, com guarda-lamas pretos. Thea, que era uma das pouquíssimas
mulheres com carta de condução, considerava aquele automóvel como um brinquedo de luxo e utilizava-o raramente, até porque Guido ficava sempre ansioso quando ela
conduzia. Naquela altura, ia a guiar a uma velocidade moderada porque levava consigo o filho, a nurse e o casal de empregados. A mala estava carregada até ao limite.
Ia a caminho de Cernusco sul Naviglio, para a villa dos Valeschi, abandonada há anos.
Exasperada com os ciúmes de Guido, esperou que ele saísse de volta ao escritório e depois telefonou à tia Liliana, irmã do pai, para lhe pedir as chaves da casa.
- Só lá vais encontrar ratos e traças - avisou a tia.
- Mas esses, ao menos, não me vão fazer nenhuma acusação - disse, revelando-lhe as razões da última discussão com o marido. Depois recomendou-lhe: - Não contes nada
disto ao papá, nem à mamã. Já estão suficientemente preocupados por outros Motivos.
Desta vez, sem prévio aviso, Thea estava firmemente decidida a castigar o marido. O modelo da mulher "esquecida de si" era desejável para as "camaradas", não para
si própria. Recusava categoricamente qualquer forma de submissão e, sobretudo, já não Suportava os ciúmes de Guido.
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Para o fazer feliz, deveria viver fechada dentro das paredes daquela casa, contentando-se com alguns encontros com outras pessoas apenas quando estava com ele. Não
estava habituada a esse tipo de vida e não ia modificar os seus hábitos nem sacrificar a sua liberdade. Quando ia a sair da cidade, recordou o dia do casamento,
na igreja romana de Santa Maria degli Angeli. Fora uma cerimónia sumptuosa, que chegou a ser objecto de reportagem no telejornal, que passou em revista os rostos
de todas as "excelências" presentes no acto. Recebeu prendas fabulosas: jóias, pratas antigas, quadros valiosos, esculturas e porcelanas. Sentiu-se protagonista
de uma fábula. E depois a fuga para Capri, para a lua-de-mel, e logo a seguir a viagem de núpcias ao Egipto, a travessia do deserto até ao Mar Vermelho e o lendário
Cairo. Oficialmente, era a signora Dorothea Battellieri, mas toda a gente se referia a ela como a condessa Thea Valeschi, filha do Ministro da Guerra.
A fábrica de bicicletas Battellieri nunca conhecera um momento tão próspero. Estava em contínua expansão, porque choviam encomendas de todos os lados.
Guido amava apaixonadamente aquela jovem esposa e nunca a deixava só. Levaram durante meses uma vida excitante e mundana. Depois instalaram-se em Milão, no apartamento
da Praça Sant'Angelo. Thea estava grávida. Soube-o a 14 de Junho de 1934, quando, pela primeira vez, Mussolini e Hitler se encontraram em Veneza.
O pai comentou: - Este encontro parece-me uma coisa boa. Vai servir como contrapeso às nossas relações com a França e com a Inglaterra.
A mãe respondeu: - Conheço as pessoas como Hitler. São a expressão dos piores instintos da minha gente. Noutros tempos, estes personagens eram marginalizados. Agora
são idolatrados.
Thea e Guido, indiferentes a tudo isto, cultivavam a paixão que os unia e, quando ele a deixava para ir para o escritório, Thea bordava babetes e toucas e contava
os minutos que a separavam do regresso do marido. Nunca lhe tinha acontecido, antes dessa altura: passar tantos meses isolada do mundo. Passava os dias a ouvir rádio,
a ler e a preparar pequenas surpresas para o marido.
Depois nasceu Lorenzo. Miss Elaine chegou àquela casa e Thea, entre uma e outra mamada, começou a aborrecer-se. Aos poucos, foi retomando os contactos com o mundo,
e a serenidade que até
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ali envolvera a sua vida conjugal cedeu espaço a violentos temporais que se concluíam, inevitavelmente, com reconciliações apaixonadas. Thea prometia limitar os
compromissos mundanos e Guido jurava esquecer o ciúme. Mas ela não resistia ao apelo dos amigos, nem ele ao da posse. Inspeccionava-lhe os bolsos e as carteiras
e espiava os telefonemas que ela fazia à procura da prova de traições que só existiam na sua mente, porque Thea era uma mulher apaixonada e fiel. Desta vez, Guido
tinha batido no fundo. Tinha de ser castigado. Que melhor punição do que deixá-lo só, sem um criado sequer?
Não demorou muito tempo a chegar a Cernusco, que ficava apenas a catorze quilómetros de Milão.
As fechaduras um pouco ferrugentas da villa cederam à força do criado, e Thea entrou naquelas salas sombrias, poeirentas, há tanto tempo abandonadas. No escuro,
as poltronas e os móveis cobertos com lençóis brancos pareciam fantasmas que imploravam o regresso à vida.
Se havia ratos, como garantia a tia Liliana, deviam ter fugido há algum tempo. À medida que iam abrindo as janelas e as persianas, o sol tépido da tarde iluminava
as salas, inundando-as de poeira dourada. O pequeno olhava em volta silencioso e atónito, enquanto a mãe se esforçava por evocar pálidas recordações de infância.
Miss Elaine já tinha arregaçado as mangas e ajudava os empregados a fazer limpeza.
Thea e Lorenzo foram até ao jardim, invadido por ervas daninhas e heras. A glicínia já tinha florido, e os ramos carregados de folhas estavam entrelaçados, formando
um arco por cima da grade. Do outro lado da rua viam-se as videiras e as amoreiras. E por entre a vegetação avançou oscilante a figura de uma mulher que trazia Pela
mão um menino tão pequeno como Lorenzo, enquanto que com a outra transportava um cesto pesado. Também ela viu Thea, Para lá da grade de arabescos. Parou um instante.
Depois apressou o passo. O rosto severo amaciou num sorriso enquanto sussurrava o nome dela. Thea pegou em Lorenzo ao colo e correu até ao portão. Saiu e parou à
frente da mulher.
- Ama! - exclamou, feliz.
- Menina - disse Teresa. Pousou no chão o cesto cheio de roupa e abraçou-a.
As duas crianças olharam-se com curiosidade.
- Este é o meu Lorenzo - disse.
- Que idade tem?
- Dezoito meses. Mas ainda não fala. E esse?
- É o meu Matteo. Pus-lhe este nome porque espero que cresça forte e honesto como o meu pai. Tem quinze meses.
Thea olhou o rosto da ama, curtido pelo sol e marcado pelas rugas. Teresa adivinhou os pensamentos da rapariga.
- Casei-me outra vez - explicou. - Luigi é o ferreiro da aldeia. Um homem bom e generoso. Por isso, aqui está o meu quinto filho. Pinuccio, o primeiro, era da tua
idade. Ainda te lembras dele?
- Nunca o esqueci - murmurou.
- Por que é que estás aqui? - perguntou Teresa. Sempre que passava em frente àquela casa esperava rever alguém da família.
- Zanguei-me com o meu marido - explicou.
- Para sempre?
- Só por pouco tempo. Pelo menos, espero. Estou grávida outra vez. Mas ele não sabe.
Teresa assentiu. Ergueu os olhos. Viu os empregados a sacudir os tapetes, a bater os colchões e a limpar os vidros.
- Como é que vais fazer com o jantar? - perguntou-lhe.
- Queres tratar tu disso, ama?
- Quem mais é que o podia fazer? - respondeu Teresa.
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As pessoas da aldeia chamavam ao pequeno Matteo Videmari el fererin, o filho do ferreiro, e a Teresa a feréra, por ser a mulher do ferreiro. Os irmãos Zicri tinham
quase perdido o sotaque napolitano e Matteo, que era precoce na fala, exprimia-se em dialecto lombardo. Nápoles, com todas aquelas vielas sórdidas, os palácios opulentos,
o mar, o Vesúvio e o folclore, pertencia a um passado já distante que se desvanecia na memória dos três filhos mais velhos. Ela, porém, não esquecia, e conservava
na lembrança a imagem do primeiro marido a ponto de, de vez em quando, repetir em segredo as suas palavras de despedida: "Um dia, alguém te vai dizer que morri.
Não acredites. Não é verdade. Eu não morro enquanto viverem os meus sonhos. Confio-tos a ti, e são tudo aquilo que te posso deixar. Faz uma capa com eles, Teresa.
Veste-a e tem cuidado para não a estragares. É feita dos meus sonhos. Que vão passar a ser os teus, no dia em que alguém te disser que morri".
Teresa observava os filhos e procurava neles a altivez que caracterizara a personalidade do pai. Rosa, que tinha dezasseis anos, era empregada numa grande empresa
metalomecânica de Sesto San Giovanni. Tinha orgulho em ser uma secretária e nos privilégios de que gozava em relação aos operários. - Imagina, mãe, um operário veio
pedir três dias de licença porque lhe morreu a mãe. Queria que lhe fossem pagos. Isso é um direito que só nos toca a nós, empregados de escritório - disse um dia.
Teresa teve vontade de a fulminar.
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- Para mim, é uma consolação saber que quando eu morrer vais ter três dias de licença paga. Eu valho isso tudo. As mães dos operários, pelo contrário, não valem
nada.
- Mas por que é que tens de pôr sempre as garras de fora, mesmo quando se trata de uma situação que te favorece? - protestou Rosa.
- Não fales das minhas garras. Não dessa maneira - encrespou-se. - Dá graças a Deus por não precisares de quebrar a espinha a sachar a terra. Mas o facto de usares
a bata de cetim preto com o colarinho branco não te deve impedir de olhar a realidade. Não te esqueças de que o teu pai foi um operário e morreu porque sempre se
bateu pelos seus direitos.
- Não lhe adiantou muito. Teresa deu-lhe uma bofetada na cara.
- De facto. Já que a filha é uma cretina cheia de bazófia, escrava do chefe de escritório. Um dia podem despedir-te assim de um momento para o outro, sem nenhuma
razão. Estarão no seu direito. Nesse momento ainda terás a mesma opinião? Não percebes que os únicos direitos que existem são os dos patrões e que os deveres estão
todos em cima dos ombros dos operários? O teu salário é metade daquilo que recebe um empregado macho. Despedem-te se ficares grávida e se responderes a uma provocação.
Se as canseiras da tua mãe e a morte do teu pai não te ensinaram nada, então és mesmo uma cretina - concluiu Teresa, furibunda.
Rosa encaixou a bofetada e aquele ataque de fúria. Sabia que a mãe tinha razão, mas ela queria alguma coisa mais da vida, que não poderia obter com protestos.
Agora, perante Thea que lhe pedia notícias dos filhos, Teresa informou-a, sem orgulho, de que Rosa era secretária, enquanto o rapaz freqüentava uma escola de desenho
técnico e Iosefa estudava contabilidade. Quanto a Matteo, ainda era realmente muito cedo para fazer projectos sobre ele, apesar de desejar que crescesse são e robusto
e que aprendesse a profissão do pai.
- Para forjar o ferro - explicou - é preciso força e fantasia. - Entretanto tirava as tampas às panelas que tinha trazido de casa. Continham o jantar para Thea e
para os empregados e um creme de legumes para o pequeno Lorenzo. A mesa estava posta no terraÇo. As pessoas da aldeia, ao passarem em frente à villa Valeschi, olhavam
o automóvel branco na alameda,
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as janelas completamente abertas e a feréra a conversar tranqüilamente com uma jovem senhora loira. As mulheres lembraram-se de quando Teresa dissera que conhecia
a família Valeschi. Não era bazófia. Teresa subiu na consideração delas.
- Senta-te e come comigo - propôs Thea. Os empregados estavam a comer na cozinha.
- Agradeço-te muito, menina. Estão à minha espera em casa - respondeu. E acrescentou: - Se demorares a fazer as pazes com o teu marido, é melhor arranjares mais
pessoal. Na aldeia não faltam mulheres. Diz-me alguma coisa - concluiu, despedindo-se.
Thea jantou sozinha. Depois entrou em casa e inspeccionou as salas do rés-do-chão e as do primeiro andar. Pensava no pai, que tinha passado longos verões de infância
naquela villa. A que jogos teria brincado? Que criança teria sido? Procurou, sem encontrar, marcas da sua passagem. Talvez se parecesse com o seu Lorenzo. Mexia-se
à procura de pretextos para se sentir menos só. Sentia a falta de Guido. Apercebia o desejo urgente da sua ternura. Porque ele sabia ser adorável. Às vezes, quando
a via inquieta, abraçava-a e depois sentavam-se ao piano a tocar uma canção de amor. Era a esse homem que ela não queria renunciar. O outro, aquele que fazia cenas
de ciúmes e recorria a expedientes mesquinhos para desmascarar enganos inexistentes, não o queria mais.
Ouviu o motor de um camião. Chegou-se a uma janela do primeiro andar. Um grande veículo estava parado em frente ao portão. Desligou-se o motor e o ar da noite foi
cortado pelo som insistente da buzina. O homem que estava ao volante pôs a cabeça de fora e, vendo-a à janela, gritou: - Há uma encomenda urgente para a lindíssima
signora Battellieri. - Era Guido, que lhe sorria. Os criados e a nurse, que segurava Lorenzo pela mão, tendo reconhecido o camionista, retiraram-se para o interior
da casa. O menino, fugindo ao controle de Miss Elaine, correu para o camião com aquele andar pouco firme das crianças pequenas e começou a gritar: - Papá! - Thea
desceu as escadas precipitadamente, atravessou o jardim, segurou o filho e, através do portão fechado, perguntou: - O que Queres?
- Enchi o camião de lilases. Estes cachos perfumados parecem-se contigo. Ofereço-tos. Em troca, só peço o teu perdão - disse Guido, descendo do camião.
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Lorenzo agitava os braços contra as barras do portão, esticando-os em direcção ao pai.
- Não queres abrir? - perguntou ele.
- Depende - respondeu ela.
- Eu sei que exagerei. Prometo-te solenemente que não volta a acontecer. Queres perdoar-me e aceitar estas flores?
- O teu ciúme ultrapassou os limites da decência - disse ela, tentando resistir, apesar de saber que, por fim, ia acabar por abrir o portão e os braços.
- Não mexas mais na ferida - suplicou. E acrescentou: - Preciso de ti, meu amor.
- Os teus filhos também precisam de ti - disse ela, abrindo o portão.
- Os meus filhos? - perguntou Guido, preparando-se para a abraçar.
- Vem aí mais um - sorriu Thea.
Os lilases foram plantados de maneira a formarem um pequeno bosque perfumado por baixo da varanda do quarto que Thea ocupou com o marido. Decidiu passar ali o Verão
inteiro, enquanto Guido andava de um lado para o outro. Saía de Cernusco todas as manhãs e regressava à noite. A proximidade de Teresa, que de vez em quando aparecia
com o pequeno Matteo, confortava a jovem senhora. Também a tia Liliana aparecia, ao domingo, com o marido e os filhos. Ao fim de tantos anos de abandono, a villa
Valeschi recomeçara a viver. Às vezes, ao fim-de-semana, chegava Ortensia Battellieri, a sogra de Thea. O jardim foi limpo e as salas arejadas. Thea mandou restaurar
os móveis mais bonitos.
As pessoas diziam: - Fecha-se uma villa e abre-se outra. -Havia já algum tempo, de facto, que o conde Brandazzi tinha vendido as fábricas de fiação e partido para
o Sul. Diziam que tinha ido morrer a Positano onde, na encosta rochosa do monte, se erguia contra o céu a estátua gigantesca de um anjo de bronze. Estava coberto
de lâminas de ouro e, ao entardecer, tingia-se de vermelho e irradiava um brilho ofuscante. Ele foi sepultado aos pés do anjo. Orsola, a filha, foi obrigada a deixar
Cernusco, na sequência de uma história muito feia em que se envolveu. Uma jovem tecedeira foi morta e lançada num poço, no meio do campo. Apresentava sinais, tanto
quanto se murmurava na aldeia, de "jogos eróticos anormais".
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De repente, tudo foi coberto por um véu de silêncio, a família da rapariga recebeu do administrador do conde uma soma considerável e Orsola foi ter com o pai a Positano.
Numa tarde de Setembro, Josepha e Lorenzo chegaram à villa Valeschi.
Thea ficou muito feliz com aquela visita inesperada, mas não conseguiu exprimir a alegria que sentiu, tanta era a angústia e a tensão que leu no rosto dos pais.
Thea ia no sexto mês de gravidez. A sua figura angulosa tinha já assumido os contornos da maternidade.
- Não vos esperava - foi tudo aquilo que conseguiu dizer, olhando para eles.
- Minha querida filha, foi uma decisão repentina - explicou Lorenzo Valeschi. E acrescentou: - Eu e a tua mãe, hoje de manhã, olhámos um para o outro e perguntámo-nos
para onde poderíamos ir num momento como este. Depois a tua mãe disse: "Vamos ter com a Thea". E aqui estamos.
- Porquê? O que foi que aconteceu? - perguntou ela, num sussurro.
- O papá foi destituído - anunciou Josepha. - Hoje de manhã, às seis horas, o telefone tocou. Ainda estávamos a dormir. Atendi eu, com uma voz ensonada. Pensei que
fosse o Nino, de Nova Iorque. Já sabes que o teu irmão se esquece do fuso horário e telefona às horas mais estranhas - explicou Josepha.
O criado aproximou-se para perguntar se podia tratar da bagagem e do jantar dos hóspedes. Thea mandou-o embora com um gesto.
- Mas, afinal? - perguntou, ansiosa.
- "Queria falar com Sua Excelência o general Valeschi" disse uma voz de homem. Dei o telefone ao teu pai e vi-o empalidecer, enquanto ouvia, sem interromper, a comunicação
de que a partir de hoje o Ministério da Guerra ia ser entregue a outras pessoas e que tínhamos de arranjar outra residência o mais depressa possível.
- Porquê? - perguntou a rapariga.
- Não lhes agradou o meu relatório - afirmou Lorenzo em voz baixa.
- Também se vão vingar nos Battellieri - interveio Josepha, sem dar tempo ao marido de explicar de que relatório se tratava.
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- Já o fizeram - informou Thea.
Agora estava tudo claro. Guido tinha-lhe telefonado ao meio-dia para lhe dizer que ia partir para Roma na tentativa de perceber por que razão tinha sido cancelada
de repente uma encomenda de dez mil bicicletas, de um modelo novo, destinadas ao exército.
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Thea abraçou o pai e disse: - O quarto de hóspedes está sempre pronto. Descansem um bocado. Depois jantamos juntos.
- Nem sequer te pedi notícias do meu neto - desculpou-se Josepha.
- Está óptimo. Agora está a dormir.
O casal Valeschi seguiu a empregada, que os acompanhou até ao primeiro andar. Ela refugiou-se no escritório do rés-do-chão e pegou no telefone para ligar para o
Hotel d'Azeglio, em Roma. Por fim, a voz anónima de outra telefonista anunciou-lhe que estava em comunicação com o número pedido: - Pode falar, por favor.
Thea perguntou pelo marido.
- Chegou neste preciso momento - informou o recepcionista do hotel. - Vou passar-lho imediatamente.
- Ia ligar-te - disse Guido. - Está tudo em ordem?
- Apanha o comboio e regressa a Milão. É inútil apresentares-te no ministério. Não vais conseguir nada. Nem agora, nem nunca mais.
- O que foi que aconteceu? - perguntou ele.
- Faz o que te digo. O papá e a mamã estão aqui, em Cernusco. O papá foi destituído - explicou sucintamente.
Houve alguns instantes de silêncio. Depois Guido acrescentou: - Obrigado por me teres ao menos ajudado a salvar a face. Volto imediatamente.
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O termo "destituído" ressoava na cabeça de Thea com um eco sinistro. Parecia o toque de um sino que anuncia uma morte. Sentiu-se ofendida e humilhada. Conhecia bem
a honestidade do pai e sabia com quanta lealdade tinha servido o regime fascista em que também ela acreditara. Ao atingir Lorenzo Valeschi, o regime atingia também
a filha. Os minutos passavam, e a consciência daquela afronta tornava-se cada vez mais forte.
Bateu à porta do quarto dos pais. Entrou. Estavam sentados na beira da cama, muito juntos. Josepha segurava entre as mãos dela a mão do marido.
- Incomodo? - perguntou em voz baixa.
Ainda não tinham mudado de roupa. Lorenzo tinha pousado o chapéu numa cadeira e Josepha levantara o véu azul do chapeuzinho de ráfia. Sorriram-lhe e Lorenzo estendeu
um braço para ela. - Anda cá, minha menina - pediu.
- Uma mulher grávida precisa de serenidade - observou Josepha. - Não te devíamos ter envolvido nisto.
- Contem-me que história é essa do relatório - pediu Thea, sentando-se ao lado deles.
- Mandaram-me recuperar, na Etiópia, armas e outro material bélico - começou Lorenzo, e continuou: - Desde há meses que nas altas esferas se fala de uma "conflagração
mundial" para a qual precisamos de nos preparar, enquanto que nas reuniões se promete paz e prosperidade. Eu não aceitava aquele projecto louco de um novo conflito.
Achei que era meu dever avançar com um relatório onde exprimia toda a minha discordância. Sem meias palavras, escrevi que a Itália não é uma grande potência e que
uma guerra mundial exige tempo, dinheiro que não temos e matérias-primas de que carecemos. A resposta foi o telefonema de hoje de manhã.
- Destituído - murmurou a mãe.
- Mas continuas a ser general do Corpo da Armada. É um cargo para toda a vida - disse Thea, não tanto para o consolar como para dissipar as revelações horríveis
que acabava de lhe fazer.
Na manhã seguinte, Guido regressou de Roma a tempo de ser chamado aos bancos com os quais os Battellieri trabalhavam desde sempre, para repor imediatamente todos
os empréstimos.
Chegou a Cernusco com a mãe e dois irmãos. Estavam muito alarmados.
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- Em vinte anos de actividade, nunca nos encontrámos em semelhante situação - disse Ortensia Battellieri.
- Temos três dias para devolver os empréstimos aos bancos. O nosso dinheiro disponível só dá para cobrir metade do débito - observou o irmão mais velho de Guido,
administrador da empresa.
Estavam todos reunidos no escritório da villa de Cernusco. Thea lançou à mãe um olhar suplicante. Josepha sorriu para a tranqüilizar.
- Aquilo que faltar, nós pomos - afirmou. Sabia que podia dispor, dentro de poucos dias, do dinheiro necessário. Bastava um telefonema ao administrador dos Castiglia.
- Mas nós não temos esse dinheiro todo - objectou Lorenzo. Foi o único que se espantou. Todos os outros sabiam que a signora Valeschi usufruía de avultados rendimentos
pessoais.
Josepha olhou o marido com ternura. Sempre tinham vivido a gastar também os rendimentos dela. Ele nunca se apercebera disso, porque tinha delegado inteiramente na
mulher a administração da família. - Temos sim, fica sossegado - afirmou Josepha. Naquele momento, o rosto do marido iluminou-se. - Temos mesmo assim tanto dinheiro?
- Para as necessidades imprevistas, como esta - explicou em voz baixa ao marido.
- A tua generosidade comove-me - interveio Ortensia. Era uma mulher severa, que sempre conduzira os destinos da família com punho de ferro. Os filhos temiam-na,
mas sabiam que a empresa criada pelo pai tinha progredido ao longo dos anos graças à prudência e à energia que ela consagrava ao trabalho. - Mas isso não vai resolver
os nossos problemas. - Sublinhou "nossos", porque era implícito que, se Guido não tivesse entrado na família Valeschi, não teriam encontrado aquelas dificuldades.
- A produção de bicicletas para o exército cobre três quartos da nossa facturação. O resto é constituído pelas bicicletas de corrida. Não vai faltar muito para que
as organizações desportivas escolham a concorrência. Só nos restam as sobras: as bicicletas de passeio. Mais vale fechar.
- Temos quatrocentos operários. Vão ficar sem trabalho de um dia para o outro - observou Guido.
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- Estou desolado - disse Lorenzo. Finalmente, sentia-se o único responsável por aquele desastre. Se tivesse sido menos intransigente, se tivesse inclinado a cabeça
e satisfeito os desejos dos chefes supremos, se tivesse comprometido a sua consciência, nada daquilo teria acontecido.
- Estou muito orgulhosa de ti, papá - afirmou Thea. Depois, como se tivesse sido iluminada por uma idéia repentina, perguntou:
- Conhecem as trotinetas?
Todos a olharam, perplexos. As trotinetas eram usadas pelas crianças que corriam pelas ruas ou ao longo das alamedas dos jardins, a fazer um ruído diabólico. - O
Nino mandou uma da América, no mês passado. É um presente para o Lorenzo. Mas esqueceu-se de que o meu filho ainda não tem dois anos e que aquilo é um brinquedo
para os mais velhos. Guardei-a no sótão. Guido, por favor, vai buscá-la. Parece-me um produto muito interessante
- declarou.
Era feita num metal leve, pintada de vermelho e azul. As rodas eram de borracha, como as das bicicletas, e tinha até um pequeno guiador. O que a tornava insólita
era um pequeno pedal que funcionava como êmbolo. Quando se carregava, a trotineta avançava sem esforço.
Nesse momento sucedeu uma coisa que suscitou uma hilaridade inesperada num momento tão dramático, porque Lorenzo Valeschi quis experimentá-la ao longo da pequena
alameda do jardim. E de que maneira funcionava! Só era pena que fosse um bocado pequena para a sua estatura. Então, também Guido e os irmãos quiseram experimentar.
- Vamos produzir trotinetas de pedal - decretou Ortensia Battellieri. - E bicicletas para crianças, e automóveis de pedal. Depois olhou para Josepha e acrescentou:
- Aceitamos a tua oferta. Será apenas um empréstimo. Obrigada, em nome dos Battellieri, e dos operários, que não vão perder o emprego.
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CERNUSCO SUL NAVIGLIO SETEMBRO DE 1943
Teresa levantou a tampa da panela de ferro esmaltado em que tinha preparado uma sopa de legumes. Era Julho e estava muito calor. Esperou que a sopa arrefecesse antes
de chamar para a mesa os filhos e o marido. A omeleta, feita com ovos das suas galinhas e melhorada com tomates e pontas de urtiga, repousava num grande prato coberto
com um guardanapo. Deitou numa tigela a papa de arroz a que tinha acrescentado uma noz de manteiga. Armada de colher e guardanapo, saiu da cozinha e foi bater à
porta do quarto de Cecchina, a sogra.
A mulher estava na cama. Tinha amarrado na testa o lenço do costume, embebido em vinagre.
- Preparei-lhe uma papa muito boa - disse Teresa, pousando a tigela na mesa de cabeceira. - Apetece-lhe comer um bocadinho?
- Tenho a cabeça a estourar - lamentou-se Cecchina.
- Tenha paciência, mãe. Cada um tem os seus problemas.
- Os teus são piores do que os meus, eu sei - anuiu a mulher, sentando-se na cama.
Teresa não replicou. Ajudou-a a arranjar as almofadas atrás das costas e fez-lhe uma festa ligeira na face encovada. Era só pele e osso, aquela velha. Apesar do
mau feitio, Teresa gostava dela, até porque era a mãe do marido. Amava Luigi pela nobreza de carácter e pela índole carinhosa. Não sentia por ele a paixão que alimentara
a sua relação com Benedetto. Teresa era já uma mulher de meia-idade.
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Os dissabores de outros tempos e o tormento de agora eram pedras que suportava com coragem.
- Não se preocupe, mãe. Coma mas é esta papa, por mim - disse, metendo-lhe a comida na boca como se Cecchina fosse uma criança. Tinham já passado muitos anos, mas
Teresa não deixava de lhe estar grata por lhe ter dado uma casa e ter permitido salvar o seu orgulho. Aquilo que tinha acontecido depois entre ela e o ferreiro fora
a consequência da devoção e do respeito que aquele gigante coxo lhe dedicou, a ela e aos filhos. Teresa recebeu-o no seu leito e ele recompensou-a com delicadeza
e pudor. Don Cláudio sorriu e abençoou aquela união.
Teresa lavou a sogra com um pano ensaboado, mudou-lhe a camisa e arejou o quarto. Por fim, fechou as persianas. Meteu-lhe o terço na mão, beijou-a na testa e desejou-lhe
uma boa noite. Sabia que ia dormir até à manhã seguinte. Então regressou à cozinha, acendeu uma vela e pousou-a numa pequena prateleira de madeira em frente à fotografia
de Pinuccio, vestido de soldado. Tirara-a em Milão, onde fora recrutado para a instrução militar. Tinha vinte anos. Partiu para a Grécia, de onde não voltou. Um
torpedo inimigo afundou o navio.
Como tinha já acontecido com Benedetto, também desta vez não teve a consolação de um túmulo para chorar. Por vezes, à noite, não conseguia conciliar o sono. Via
o filho a afogar-se nas águas do Adriático e uma dor surda contraía-lhe o estômago. Levava uma mão à boca para não gritar. Depois chorava baixinho. A mão do ferreiro
vinha pousar-lhe nos cabelos e ele dizia-lhe: - Chora sem vergonha, Teresa. Não te resta mais do que a consolação das lágrimas. - Então refugiava-se no abraço daquele
gigante bondoso e soluçava sobre o seu ombro. Ele fazia-lhe festas na nuca, até que Teresa adormecia.
Naquele momento, pegou no retrato do filho, beijou-o e voltou a pousá-lo na prateleira. Depois pôs a mesa. Do rés-do-chão chegavam as pancadas do malho, cadenciadas
e poderosas, con que o ferreiro forjava o ferro na bigorna. Os vidros do armário vibravam a cada pancada. Teresa tinha-se habituado àquele ruído que lhe fazia companhia.
Ouvia as vozes das crianças que brincavam no pequeno pátio. No meio deles estava também Matteo, o filho que tivera com Luigi. Tinha oito anos
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e o nome do avô Avigliano, que morrera pouco depois de Teresa ter fugido de Nápoles. Matteo era uma criança robusta. Quando não se perdia na brincadeira, gostava
de ficar na oficina, a ver o pai dar pancadas com o malho numa barra de ferro incandescente. - Quando for grande vou ser ferreiro - dizia ele aos pais.
No meio das crianças que andavam a brincar, estavam também Lorenzo Battellieri, o primogénito de Thea, e a irmã mais nova, Verdiana, que tinha seis anos. Os netos
de Josepha preferiam o pátio do ferreiro ao jardim da villa em que viviam, desde que o pai partira para a frente russa e Thea deixara definitivamente a casa de Milão
que, devido aos bombardeamentos, já não oferecia segurança. Tal como ela, muitos habitantes de Milão, naquele período, recuperaram em Cernusco casas esquecidas.
Teresa chegou-se à janela e chamou o filho. - Avisa o papá. Diz-lhe que a comida está na mesa.
Naquele momento viu na rua Iosefa, que pedalava com velocidade em direcção a casa. Vinha de Monza, onde estava empregada na mesma fábrica em que trabalhara a irmã,
Rosa. Esta tinha casado com o engenheiro Alvise Brusato, director da fábrica, e vivia em Milão. Teresa não sabia se a filha tinha tido sorte em casar com aquele
homem rico que tinha mais vinte anos do que ela. Mas Rosa parecia satisfeita por se ter tornado a signora Brusato. Vivia no Corso Buenos Aires, num grande apartamento,
tinha uma criada e muitas vezes recebia hóspedes, até alemães. Durante o Inverno apresentou-se em Cernusco com um casaco de vison. Teresa torceu a cara. - A minha
filha vendeu-se - murmurou.
Tirou a sopa e viu, à porta da cozinha, os dois pequenos Battellieri.
- Venham. Ainda chega para vocês os dois - disse, pondo na mesa mais duas tigelas.
Acontecia muitas vezes os filhos de Thea ficarem a comer em casa do ferreiro. Teresa ficava contente, porque lhe parecia retribuir, de alguma maneira, a generosidade
de Josepha.
- Depois o Matteo pode vir brincar connosco? - perguntou Verdiana, sentando-se à mesa. Ela concordou.
Iosefa chegou esbaforida pela longa corrida de bicicleta.
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- Sabem o que aconteceu? - disse com uma voz ansiosa. Os aliados saíram da Sicília. Vão desembarcar na Calábria. É uma questão de dias, e a guerra acaba.
Lorenzo e Verdiana trocaram um olhar feliz.
- Então o papá também vai voltar - disse Lorenzo. Deixou a sopa a meio e foi-se embora a correr. - Vou dizer à mamã - anunciou. A irmã foi atrás dele.
Thea estava no quarto a dar de mamar a Gianni, o terceiro filho, que tinha dez meses. Nascera dois meses depois da partida de Guido para a frente russa.
Pouco antes tinha estado a escutar a Rádio Londres e ouvira a notícia de um desembarque iminente na costa de Calábria. Telefonou então ao pai, para Roma.
As comunicações telefónicas estavam cada vez mais difíceis. Quando conseguia linha, a conversa era muitas vezes interrompida. - Papá, ouviste? - perguntou, assim
que ele atendeu o telefone.
- Queres que eu te diga que a guerra vai acabar? Não é bem assim, minha querida - declarou Lorenzo Valeschi, com uma voz melancólica. - O rei e o coronel Badoglio
não têm a mínima intenção de pousar as armas.
- Mas se os aliados sobem a península, vão ser obrigados a fazê-lo - observou ela. - Resistir seria uma loucura.
- Tudo aquilo que aconteceu até aqui é uma loucura. Vai-se continuar a combater, Thea. Cidade atrás de cidade, aldeia atrás de aldeia. Casa atrás de casa. Põe a
salvo, em qualquer parte, tudo o que tens de valor na casa de Milão. E fica em Cernusco com os teus filhos - recomendou-lhe o pai.
- E o Guido? - perguntou num sussurro. Era a pergunta de sempre. Quase todos os dias Lorenzo Valeschi se dirigia ao Ministério para saber notícias do corpo de expedição
em que
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tinha sido incorporado o genro. E a resposta era a mesma de sempre: "Desaparecido".
O general Valeschi, depois da destituição, foi esquecido. Os príncipes e os ministros que o tinham adulado e disputado a honra de se encontrarem com ele, fingiam
agora não o reconhecer quando o viam. Sobravam-lhe poucos amigos fiéis, que tinham sempre apreciado a sua honestidade e sensatez. Lorenzo via aquela pátria devastada
pela guerra e lamentava os anos em que pensara que a ditadura fascista era a única via de salvação para o país. Aquela guerra desgraçada levara-lhe também o filho,
Nino, morto em combate nos Balcãs.
- Tem fé. O teu marido há-de voltar - respondeu à filha.
Enquanto dava de mamar a Gianni, que tinha o mesmo nome do tio desaparecido, Thea sussurrou-lhe com doçura: - Vais conhecer o teu pai e gostar muito dele. Foi assim
que eu há muitos anos me apaixonei pelo meu papá, que conheci quando voltou da guerra.
Guido fora chamado para o exército no início de 1940, para cumprir dois meses de instrução.
Em Junho, quando a Itália entrou na guerra, Thea despediu-se de Guido que partiu para França com o grau de capitão. Pouco depois foi enviado para a Jugoslávia. Quando
regressava a casa de licença queria ver gente, sair, dançar. Não falava com Thea sobre a guerra. O seu confidente era Lorenzo Valeschi. Sogro e genro fechavam-se
na sala e conversavam durante horas.
Uma vez, Thea ouviu o pai dizer a Guido: - Espero que a minha filha nunca venha a saber nada destas vergonhas.
Thea adoptou a técnica da avestruz: tapava os ouvidos para não ouvir, para não saber. Ficava já suficientemente angustiada de cada vez que o marido a deixava para
regressar à frente. Felizmente, havia as cartas que ele lhe escrevia, sempre reconfortantes. Guido escrevia muitíssimo, quase todos os dias, quando estava longe.
O regime fascista, apesar de ser ineficaz em todos os aspectos, preocupava-se com o bom funcionamento do correio. Sabia como era importante, para o moral das tropas,
que os homens da frente pudessem comunicar com os familiares.
No Verão de 1942, Lorenzo Valeschi teve uma discussão agitada com o genro que Thea não pôde ignorar.
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- Não percebes que está tudo perdido? A Rússia sempre engoliu os exércitos todos, lembra-te disso. Se gostas da tua mulher e dos teus filhos, renuncia a esse cargo
- gritou Lorenzo, fechado no escritório com Guido.
Thea estava grávida do terceiro filho, que devia nascer em Setembro.
- Que exemplo seria eu para os meus homens se aceitasse a escapatória que me propõe? Quase todos os meus companheiros têm mulher e filhos, como eu. Ficaria envergonhado
até ao fim dos meus dias se os deixasse. General, este é um argumento que o senhor devia compreender - respondeu o genro, levantando a voz. Ouviu também a réplica
sofrida do pai.
- Eu só sei que o meu filho morreu e não quero que a minha filha fique viúva.
Mais tarde, Lorenzo desabafou com Thea. - O teu marido é um teimoso - disse-lhe. Depois acrescentou: - No entanto, deves estar orgulhosa dele.
A 22 de Julho, Guido partiu com a Armir(1) para a Rússia. Todos os dias chegava uma carta dele, de localidades cada vez mais distantes: Brennero, Munique, a Polónia
e, finalmente, a Rússia. Thea lia várias vezes a correspondência do marido, seguindo o seu percurso num mapa. "Hoje entrámos na Polónia. As pessoas, que sobreviveram
ao assédio de Varsóvia, olham-nos com desconfiança. Atravessámos o Vístula. À meia-noite chegámos ao rio Berg. Um comboio de alpinos foi atingido por uma mina. Morreram
sessenta pessoas. Os alemães reduziram a distância entre as linhas ferroviárias. Um trabalho ciclópico. As judias polacas são muito dedicadas à limpeza. Andam de
um lado para o outro com a vassoura e a pá. Passam ao largo de um comboio de alemães. Aproximam-se furtivamente do nosso para pedir de comer. Muitas delas estão
grávidas, próximas do parto como tu, meu amor. E não têm comida. Atirei-lhes um pacote de biscoitos. Um oficial contou-me que, na semana passada, os alemães trucidaram
dois mil judeus polacos." Falava-lhe de destruição, de gente no limite da sobrevivência, de cidades bombardeadas, de crianças abandonadas. E, no entanto, não perdia
a esperança.
*1. Armada Italiana na Rússia. (N. da T.)
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"Tenho tanta vontade de te voltar a ver, e aos nossos filhos, e de pegar no pequeno Gianni ao colo. Obrigado pelas fotografias que me mandaste. Meti-as no bolso
de dentro do sobretudo. Dão-me uma sensação de calor. Lembras-te das minhas cenas de ciúmes? Que estúpido eu era! Perdoa-me, se puderes." A 25 de Novembro escreveu:
"Hoje é o meu aniversário. Recebi o teu lenço de seda. Tem o teu perfume. Trago-o ao pescoço, e é como uma carícia. Sinto tanto a tua falta, meu amor. É possível
que os russos tenham sabido que eu faço hoje trinta e quatro anos, porque vieram com os caças metralhar a aldeia onde me encontro: Millerovo. A cada novo ataque,
o Comando manda-nos resistir até ao último homem. Nós obedecemos".
A última carta de Guido trazia a data de 16 de Dezembro. Vinha de Tcherkovo. Dizia: "Continuamos a ouvir explosões à distância. Não se percebe se são canhões ou
aviões. São sons lúgubres no silêncio da noite. Meu Deus, faz com que esta guerra acabe depressa".
A partir daí, e já tinham passado sete meses, Thea não voltara a receber notícias. E o pai acabava de lhe dizer que a guerra ia continuar.
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Acabou de dar de mamar ao filho mais pequeno. Depois mudou-lhe a fralda e deitou-o no berço, ao lado da sua cama. Gianni era um menino sossegado. Comia e dormia.
Lorenzo e Verdiana brincavam com ele como se fosse um boneco. Miss Elaine, a nurse, tinha regressado a Inglaterra na véspera da declaração de guerra. Thea não a
substituiu, até porque já não podia permitir-se despesas supérfluas. A fábrica dos Battellieri fora destruída num bombardeamento. De Roma vinha pouco dinheiro. As
destilarias dos Castiglia, depois da morte de Ezio Burgio, foram vendidas. Aquela herança considerável do primeiro casamento tinha-se evaporado ao longo dos anos.
As casas e as propriedades do Sul, no meio daquela ruína absoluta do país, tinham sido em parte vendidas e em parte confiscadas.
Thea Valeschi, criada no luxo, sobrevivia a poupar nas despesas e a dispensar algum pessoal. Havia uma mulher da aldeia que tratava da limpeza da villa. E havia
a ama, que a ajudava sempre que podia - Ortensia Battellieri, hóspede fixa, dava-lhe uma mão, sobretudo quando vinham os irmãos de Guido com as mulheres e os filhos.
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Naquela noite, a casa estava cheia de gente. Ortensia cozinhava, as cunhadas punham a mesa e as crianças brincavam. Lorenzo e Verdiana chegaram ao quarto a correr.
- Mamã, os americanos preparam-se para desembarcar na Calábria. A guerra vai acabar depressa e o papá vai voltar para casa
- anunciaram, excitados.
- Acordaram o Gianni - disse ela em tom de censura. Depois viu a felicidade que bailava nos olhos deles. Eram altos e magros, aqueles dois filhos destravados. Pareciam
aves prontas para levantar voo. Não teve coragem para os desiludir.
- Eu sei - disse, abraçando-os. Depois enfiou a chupeta na boca do mais pequeno e, enquanto o embalava, acrescentou: - É realmente uma boa notícia, e eu também espero
que o papá volte depressa.
Lorenzo saiu a correr para contar aos outros aquela grande novidade. Verdiana sentou-se na beira da cama.
- Posso embalar eu um bocadinho? - perguntou.
Verdiana gostava do papel da mamã. Thea confiou-lhe o menino. Depois sentou-se em frente ao toucador e começou a pentear o cabelo.
- Nós já comemos - disse a filha.
- À mesa da ama, é claro - continuou Thea.
- Mamã, é verdade que tu foste uma militante fascista? - perguntou a filha, à queima-roupa.
- Quem te disse?
- Eu e o Lorenzo vimos uns jornais no escritório. Há muitas fotografias. Pareces tão jovem! Quase uma menina. O Lorenzo leu um artigo que te define como o emblema
da mulher fascista. O que é que isso significa?
- Significa que na vida se cometem muitos erros. Acreditamos que uma determinada coisa é justa e dedicamo-nos a ela, de corpo e alma. Rasguei o meu cartão há muitos
anos, quando o teu avô foi destituído. Tu ainda não eras nascida.
- Desapareceram os camisas negras da aldeia. Marietto, o padeiro, fugiu. A mulher disse: "Anda a monte, porque está com medo que lhe limpem o sebo". O que é que
isso quer dizer, mamã?
Gianni tinha voltado a adormecer. Thea aconchegou-o
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com cuidado no berço. Pegou na menina pela mão e saiu do quarto, deixando a porta entreaberta.
- Mamã, o que é que quer dizer? - insistiu Verdiana.
- Outra vez, eu explico-te. Agora vai lavar as mãos. No jardim, Lorenzo brincava com os primos.
Entretanto, tinha chegado Teresa com um cesto de ervilhas, que começou a descascar, sentada num banco de pedra, enquanto tomava conta das crianças.
- A comida está na mesa - anunciou alguém, debruçando-se da varanda. As crianças entraram em casa precipitadamente, enquanto Thea se aproximava de Teresa.
- Vou acabar de descascar estas ervilhas. Depois deixo-as na cozinha - disse a ama.
- Olha lá, eu não posso aceitar esses presentes todos. Ou então deixas-me pagar-te alguma coisa - avisou Thea.
- Não me aborreças com essa conversa - respondeu a ama, impaciente. - Toma, descasca-as tu - acrescentou, metendo-lhe o cesto dos legumes na mão. Depois atravessou
o jardim num passo marcial e saiu. Thea seguiu-a para fechar o portão à chave.
Naquele momento, viu na rua Paolo Valli, o professor dos filhos. Era o último de nove filhos de uma família de camponeses da aldeia. Tinha vinte e três anos e fora
despedido do exército por causa de um princípio de tuberculose. Passou um ano no sanatório de Sondalo e curou-se, mas os médicos recomendaram-lhe que levasse uma
vida tranqüila. Por isso, retomara os estudos universitários de medicina e, ao mesmo tempo, ensinava na escola primária.
Era um bonito jovem, loiro, alto e com um rosto aberto e sorridente. Os seus métodos de ensino nem sempre eram muito ortodoxos. Levava muitas vezes os alunos para
o campo e ensinava-lhes os nomes das flores, das ervas e das plantas. Para as crianças que vinham da cidade, aquelas lições eram ensinamentos preciosos.
Naquele momento parou em frente ao portão. Trazia na mão um grande ramo de rosas brancas.
- Boa-tarde, signora Battellieri - disse.
- Boa-tarde, professor - respondeu Thea.
- Não se importa de dar estas rosas à menina Verdiana, se faz favor?
- E o que foi que ela fez de tão extraordinário para as merecer?
- Ajudou uma companheira com dificuldades. A sua filha tem uma grande capacidade para dar. Esta virtude, cada vez mais rara, deve ser premiada - explicou.
- Agradeço-lhe muito, professor. Quer jantar connosco?
- Nós os camponeses, comemos muito cedo. Já jantei há um
pedaço - desculpou-se.
- Então fica para outra vez - disse Thea, estendendo a mão para receber as flores. Os seus dedos tocaram os dele e Paolo Valli corou.
478 - 479
Apesar de a villa Valeschi ter trinta e seis divisões, chegou um momento em que parecia não haver espaço para toda a gente. Chegou de Milão a tia Liliana com os
filhos e um grupo de amigos. Todos eles tentavam pôr-se a salvo dos ataques aéreos que assolavam sem descanso a cidade. Os silvos das bombas, o estrondo da artilharia
antiaérea e o som lancinante dos alarmes nocturnos não davam trégua. Todos os dias havia novas devastações e aparecia por todos os lados mais gente sem tecto. Fechavam
fábricas e escritórios, lojas e restaurantes. Havia falta de tudo. Thea continuava a ter esperança no regresso de Guido. O marido de Liliana, que estava de serviço
no hospital de Niguarda, chegava a Cernusco à noite e voltava para Milão de madrugada. Depois de cada bombardeamento, dava a volta às casas todas: a da Via Chiossetto,
a da Praça Sant'Angelo e as dos outros irmãos e cunhados. Quando chegava, sorria e dizia: "Ainda estão em pé". Não tinham sido bombardeadas.
As crianças, no meio de tanta confusão, estavam felizes. Havia serões tranqüilos em que parecia que a guerra não existia. Então os mais pequenos brincavam, os grandes
disputavam interminável jogo de cartas e os mais velhos conversavam tranqüilamente sobre as doenças de que sofriam e os vários remédios que tomavam. Ao que parecia,
os sais, a tintura de iodo e o bálsamo Sloan eram medicamentos de eleição para todos os distúrbios.
480
A 8 de Setembro, o rei assinou o armistício com os aliados que subiam a Calábria. O general Clark desembarcou em Salerno, Mussolini foi libertado pelos alemães e
nasceu a República Social Italiana de Saio.
A Itália estava dividida em duas partes e não se conseguia estabelecer nenhuma ligação entre o Norte e o Sul. Thea tremia porque deixara de ter notícias dos pais.
Quase todas as tardes, sempre com um novo pretexto, recebia um ramo de rosas do professor Valli, que se apresentava ao portão da villa. Eram rosas brancas ou vermelhas,
ou metade brancas e metade vermelhas. O professor recusava sistematicamente os convites de Thea para passar o portão. Ela sentia-se embaraçada. Os parentes sorriam
e formulavam a única hipótese possível: "Está apaixonado por ti. Mas, como é tímido, não tem coragem para se declarar". "Eu sou uma mulher casada. E ele sabe disso",
replicava Thea muito depressa.
- Professor, o senhor está a saquear o jardim da sua mãe - disse-lhe ela, um dia, com um tom maternal.
- Se for para isto, até vou saquear os das outras pessoas da aldeia - respondeu ele. Baixou os olhos e corou.
Por fim, Thea acabou por perder a paciência.
- Então, dê-mas - pedia-lhe. Naquela tarde disse: - As flores nunca se recusam. Mas, por favor, não me volte a pôr nesta situação embaraçosa. Da próxima vez, não
poderei aceitar.
Nesse momento Paolo Valli olhou em volta, empalideceu, atirou as rosas ao chão e, de repente, quatro homens que saíram dos arbustos atiraram-se a ele. Ele tentou
fugir. Dois deles imobilizaram-no, enquanto um terceiro o atingiu com um murro no estômago. O quarto correu em direcção a um automóvel preto, pô-lo em andamento
e aproximou-se deles. Thea berrava como se estivesse com uma crise histérica. Saíram todos de casa e precipitaram-se Para o portão. Vieram aldeãos, homens e mulheres.
O jovem foi empurrado para dentro do carro, que arrancou com um chiar de pneus e uma nuvem de pó. Logo a seguir instalou-se um silêncio atónito.
Teresa avançou do outro lado da rua, segurando o pequeno Matteo pela mão.
- Os repubblichini - disse ela. - Apanharam-no.
481
Os repubblichini eram os fascistas da República de Saio. Trabalhavam lado a lado com os alemães. Consideravam os italianos traidores, porque tinham virado as costas
a Hitler. Eram consumidos pela crueldade que nasce do medo. Agrediam os homens e matavam-nos ou entregavam-nos aos camaradas alemães para que os mandassem para os
campos de concentração, depois de os terem torturado. Às vezes os homens morriam durante as torturas. Raramente devolviam os corpos aos familiares. A maior parte
das vezes eram mandados para os campos.
- Porquê? - conseguiu Thea perguntar, interpretando a dúvida de todos eles.
- Não te trazia rosas para te fazer a corte - sussurrou-lhe Teresa ao ouvido. - Eram um sinal.
O tio Stefano, o marido da tia Liliana, murmurou: - Nunca mais o voltamos a ver.
A gente da aldeia regressou a casa, sem fazer comentários. Os Battellieri voltaram à villa.
- Mas era preciso ajudar aquele rapaz - disse Teresa a Thea, que não se tinha mexido.
Dirigiu-lhe um olhar perturbado - O que é que nós podemos fazer?
- Não sei - respondeu a ama, desconsolada. Depois disse: - Tomas-me conta do menino até amanhã? Lá em casa arranjam-se melhor sem ele, quando eu não estou.
- Sabes alguma coisa que eu não sei? - perguntou Thea. A mulher encolheu os ombros.
- Quanto menos souberes, melhor - respondeu, antes de partir. Depois pegou no filho pelos calções, antes de ele ir embora com Thea: - Porta-te bem. Venho buscar-te
amanhã.
Afastou-se em direcção à igreja. Entrou na residência do padre. O sacristão estava a limpar os castiçais de latão.
- Onde está o don Cláudio? - perguntou Teresa.
- Está ocupado. O que queres? Costuma-se bater antes de entrar - rosnou o homem com um ar carrancudo.
- Sabes muito bem o que eu quero - replicou ela. Atravessou a sala e entreabriu a porta da casa do padre.
Don Cláudio estava a jantar. Um prato de sopa e uma fatia
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de pão escuro. Ergueu o olhar para a mulher, engoliu uma colherada e soltou um suspiro.
- Já sei tudo - começou.
- E fica aí, sossegado, sem mexer um dedo? - desabafou Teresa.
- Mete-te na tua vida,feréra - disse o padre.
- Quando lhe trago alguma coisa para aqueles que estão aqui debaixo não me diz para me meter na minha vida - respondeu, agressiva e em voz baixa, a apontar para
o chão.
Ali debaixo, na cripta da igreja, o padre escondia uma família de judeus de Milão. Quase todos os dias Teresa deixava na cozinha da residência ovos, arroz cozido,
legumes e, quando podia, um pedaço de carne. Tinham-lhe aparecido à frente, um fim de tarde de Agosto, quando andava a apanhar rãs num charco. Viu-os estendidos
na erva e assustou-se. Era um casal com três filhos pequenos. Eles ainda se assustaram mais do que ela. Depois contaram-lhe que andavam a fugir. Duas noites atrás,
em Milão, tinham ido ao cinema. Quando regressaram viram as SS em frente ao prédio onde viviam. Andavam à procura deles. Fugiram e chegaram a Cernusco. Teresa conduziu-os
à residência do padre e entregou-os a don Cláudio. Na mesma ocasião descobriu também que o professor Valli era um informador da resistência e que transmitia mensagens
ao sacristão, empoleirado no cimo do campanário, sobre os movimentos dos alemães e dos repubblichini na zona. O professor Valli ia até ao portão da villa Valeschi,
que o sacristão observava com um binóculo, e levava um ramo de rosas brancas, se não houvesse movimentação do inimigo; vermelhas, se andassem por ali os alemães:
brancas e vermelhas, se houvesse fascistas. Depois o sacristão informava os companheiros.
Então o padre recordou-lhe: - Foste tu que os trouxeste para cá, os dali debaixo.
- E o senhor acolheu-os. Assim como já ajudou muitos outros desgraçados. Agora só quero saber se vai abandonar o professor - disse.
- Sabes tão bem como eu que não posso fazer nada - replicou o velho, desconsolado.
- Então, reze - disse, à laia de despedida.
483
Naquela noite, Teresa não dormiu. O marido, deitado ao lado dela, sussurrou: - Conforma-te.
- Isso nunca. Nunca me conformei.
- A que horas vais?
- Assim que houver luz. Como é que sabes?
- Deixaste o menino fora.
- Na villa está seguro. Eu não demoro. Toma conta da tua mãe - recomendou.
A bicicleta que tinha fora um presente de Thea. O marido ensinou-a a equilibrar-se no selim e agora andava ligeira.
Ainda não tinha nascido o sol quando pendurou no guiador um cesto cheio de hortaliça fresca e um grande ramo de dálias. Saiu da aldeia em direcção a Milão. Chegou
à entrada da cidade.
- O que levas aí? - perguntou-lhe o homem que controlava a entrada.
- Podes ver. Flores, alfaces, legumes. E hoje não levas nada -declarou, olhando-o com um ar agressivo.
Já se conheciam e Teresa, de vez em quando, dava-lhe ovos ou uma abóbora. O homem vivia em Pioltello, tinha seis filhos e a comida nunca chegava. Achava que Teresa
devia ser uma pessoa com posses.
- Está bem. Desta vez não te vi passar - disse ele.
Teresa percorreu avenidas, ruas e praças quase desertas e meio destruídas. Havia poucos eléctricos, os automóveis eram raros e havia muitas bicicletas e gente a
pé que caminhava apressadamente. Iam para o emprego. Algumas mulheres faziam compras nas poucas lojas abertas. Havia muitos alemães. Chegou à Via Vivaio e travou
frente a um edifício austero. Desceu da bicicleta e entrou na portaria, que se abria para um pátio. Havia dois automóveis estacionados. Um era o Fiat do genro. O
porteiro estava a lavá-lo com o jacto de água de uma mangueira. Teresa encostou a bicicleta ao muro e parou, ofegante. O homem reconheceu-a.
- É muito madrugadora. Os senhores ainda estão a dormir -disse ele.
Ela retirou o cesto do guiador.
- Ainda bem. Assim faço-lhes uma boa surpresa - replicou. Entrou por uma porta de vidro e subiu as escadas até ao primeiro
andar. Tocou à campainha da porta de serviço. Foi Ersilia, a empregada, quem veio abrir.
- Arranja-me um café - pediu Teresa, pousando o cesto na mesa da cozinha. Depois deixou-se cair, extenuada, numa cadeira.
- Que lindas dálias - comentou Ersilia, enquanto punha a máquina de café no fogão eléctrico. E continuou: - Chegou muito cedo. A senhora deu ordens para ser acordada
às dez.
- Agora vamos tratar do café, enquanto eu recupero o fôlego. Depois vais acordá-la - decidiu Teresa.
- Se ficar zangada, a culpa é sua.
- E de quem é que havia de ser?
- O senhor engenheiro está a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar. Quer cumprimentá-lo?
- É melhor não. Não sei o que hei-de dizer-lhe.
Logo a seguir, enquanto na cozinha se espalhava o aroma do café, Alvise Brusato abriu a porta e viu Teresa. Olhou-a, surpreendido.
- Bom-dia, minha senhora. Aconteceu alguma coisa?
- Nos tempos que correm acontece sempre alguma coisa. E nenhuma é agradável - respondeu a sogra.
O homem concordou. Era pequeno e calvo. No rosto redondo e pálido sobressaía um bigode negro e farto. Cheirava a água de colónia de boa marca. Vestia um fato escuro
com colete. Teresa olhou-lhe para as mãos. Ersilia tinha-lhe dito que, no barbeiro, também arranjava as unhas. Trazia no dedo mindinho um anel de ouro com um brasão
gravado.
- Se precisar de alguma coisa, já sabe onde me encontra - disse. Depois virou-se para a empregada: - Avisa a senhora de que a espero para almoçar no Savini. - Por
fim, inclinou-se na direcção de Teresa e beijou a mão que ela lhe estendia.
Dava-lhe vontade de rir sempre que o genro se exibia naquele cumprimento. E de todas as vezes pensava que a filha acabaria depressa por se cansar de um marido tão
velho.
Assim que ficaram sós, Ersilia contou-lhe: - Agora a senhora chama-me com uma campainha eléctrica. Mandou instalar um botão por baixo da beira da mesa. Carrega e
aqui acende-se uma luzinha vermelha - explicou, indicando uma engenhoca pendurada na parede.
484 - 485
Teresa não fez comentários. Tomou o café, depois levantou-se e saiu da cozinha. Entrou no corredor que conduzia aos quartos de dormir e abriu uma porta. Foi acometida
por um odor intenso de pó-de-arroz. Abriu a porta envidraçada que dava para uma varanda e levantou a persiana. Espalhou-se pelo quarto a luz ténue da manhã. Rosa
dormia profundamente, envolvida em lençóis de seda. Teresa, levada por um hábito antigo, começou a arrumar a roupa abandonada aos pés da cama.
- Rosa, acorda. Preciso de falar contigo. É uma coisa urgente e tenho pressa de regressar a casa.
A resposta foi um gemido de desapontamento. A mulher não perdeu o ânimo.
- Ouviste? - perguntou, levantando a voz.
- Mas que horas são? - resmungou a rapariga. E protestou: - O que foi que eu fiz de mal para ser acordada a esta hora?
- Tu é que sabes. Ouve-me - disse, sentando-se na cama.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Rosa, completamente acordada.
- Levaram um rapaz em Cernusco. É o professor do Matteo e dos filhos da signora Battellieri. Tu tens de o mandar libertar.
- Eu? O que é que eu tenho a ver com isso?
- O teu marido trabalha com os alemães, que estão feitos com os repubblichini. Tu convidas essa gente horrível para tua casa noite sim, noite não. Em troca dos meus
legumes frescos com que os alimentas, pede a esses delinquentes para libertarem o Paolo Valli. É assim que ele se chama. Lembras-te do nome, ou é melhor eu escrever?
- Eu lembro-me. É só isso?
- A mim parece-me muito. Despacha-te para ires ao Comando alemão, porque depois o teu marido está à tua espera no Savini.
- Mas por que é que não te metes na tua vida? - protestou Rosa.
- Porque os fascistas sempre se meteram na vida dos outros. O fim do teu pai e do teu irmão servem para te lembrar isso. Despacha-te, antes que aquele pobre rapaz
seja morto ou mandado para a Alemanha.
- Pedir certos favores é um risco.
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- Também receber em casa certas pessoas. Ainda não percebeste que o fascismo acabou, que a guerra se perdeu sem honra, e que os alemães, todos eles, são uns criminosos
e vão ter em breve o castigo que merecem?
- Fala baixo, por favor. Aquilo que eu sei é que o Alvise é obrigado a trabalhar com eles. Também eu espero que não seja por muito tempo. Entretanto, não temos escolha.
- Levanta-te e corre - ordenou a Rosa. - Eu volto para o campo. Quero aquele rapaz na aldeia hoje, são e salvo. E fazias bem em deixar esta casa e vir para o campo
também. Fiz-me entender? - disse Teresa, preparando-se para sair do quarto.
Rosa foi ter com ela e abraçou-a.
- Sempre foste uma mulher extraordinária, mãe. Lembro-me de quando me pregaste um par de estalos por causa daquele infame, filho da tua madrasta. Renato di Giacomo,
era como ele se chamava. Mataram-no. Sabias?
A mulher abanou a cabeça.
- Tinha feito uns jogos demasiado sujos. Foram mesmo os homens dele que o liquidaram. Esfaquearam-no. Já foi há mais de um ano.
- Como soubeste?
- Por acaso. Li no Il Mattino.
- Às vezes, a justiça de Deus manifesta-se - sussurrou Teresa. Paolo Valli regressou a Cernusco naquela noite. Tinha sido
maltratado. Foi Rosa quem o levou, no carro do marido. Thea foi ter com ele e levou-lhe as rosas que, na noite anterior, tinham caído ao chão. Estavam a desfolhar-se.
O rapaz recolheu as pétalas que lhe caíram nos joelhos.
"... enquanto as estrelas avançam e se dissipam os ventos, a rosa sobre um fio de trevas pouco a pouco se desfolha" murmurou.
Thea sorriu. - É a rosa mutável, cantada por Garcia Lorca - disse.
- É um poeta proibido. Sabia?
- Fizeram-lhe muito mal?
- Carícias, em comparação com aquilo que teria acontecido se a filha da Teresa não tivesse intervido.
- Nunca mais me leva rosas, pois não? - pediu Thea, passando uma mão suave por entre aqueles cabelos loiros.
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Ele fez uma careta. Tinham-lhe enfiado umas agulhas eléctricas por baixo da cútis, para o obrigarem a falar.
- Não eram apenas uma mensagem em código - sussurrou ele.
- Eu tinha percebido - respondeu ela, e abanou a cabeça.
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MILÃO - PRAÇA SANTANGELO ABRIL DE 1945
A retórica do regime fascista, a insolência e a crueldade, a corrupção e a velhacaria tinham por fim produzido o desastre total. Todas as famílias choravam os seus
mortos, abatidos entre as fileiras do exército ou debaixo dos bombardeamentos. Era impossível contar o número de pessoas que tinham ficado sem casa, sem dinheiro
e sem comida. A economia estava de rastos. O povo olhava atónito aquele mundo triste, cinzento, devastado. Os soldados que desciam dos comboios, aclamados pela multidão
que os esperava, traziam os olhos desanimados de quem assistiu a uma catástrofe hedionda. A morte tinha-os poupado e, amontoados em comboios-hospital ou em camionetas
de gado, em camiões ou em carroças, a pé ou em meios de transporte de acaso, mal nutridos, feridos e sujos, regressavam a casa.
Thea, como muitas outras mulheres, namoradas, mães ou irmãs, procurava uma abertura no meio da multidão, ao longo das plataformas da Estação Central, e passava em
revista, um a um, os militares que vinham da Rússia. Era um ritual desesperado que se repetia todos os dias.
Trazia com ela uma fotografia de Guido com a farda de capitão. Olhava com inveja as pessoas que conseguiam finalmente abraçar um parente. Quando os comboios ficavam
vazios, seguia os militares que se afastavam.
- Estou à procura do meu marido. Conheceu-o? É este. Capitão Battellieri. Estava com a Armir, a combater na Rússia.
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Naquele dia, depois de ter visto desfilar centenas de soldados vestidos de farrapos, aproximou-se de um sobrevivente que se tinha acocorado no chão porque não tinha
forças para sair da estação com os outros. Trazia vestidas umas calças de pijama e uma camisa sem mangas, e estava descalço e esquelético. Inclinou-se sobre ele
e ofereceu-lhe vinho. A cabeça calva, sustida por um pescoço muito débil, quase a quebrar-se, oscilou da direita para a esquerda.
- Quero a minha mãe - murmurou, respirando com dificuldade. Não tinha dentes. Aproximou-se dele uma mulher e meteu-lhe um torrão de açúcar na boca. Depois acariciou-lhe
a face encovada.
- A tua irmã foi procurar uma ambulância - disse. - O Dr. Gasperi está em casa à tua espera. Lembras-te do Dr. Gasperi?
O homem assentiu com um sinal imperceptível de cabeça.
Thea pensou: "Admitindo que consigas chegar a casa". Depois, porém, mostrou-lhe a fotografia do marido e perguntou: - É o capitão Battellieri. Nunca o encontrou
na Rússia?
- Deixe-o em paz - disse a mãe. - Não vê o estado em que ele está? - E continuou: - Ele vem de Mauthausen. Tatuaram-lhe o número no braço. Tinha vinte anos em 1942.
Agora tem vinte e três. Alguém diria?
Chegou uma padiola e o homem foi erguido e instalado naquela pequena cama. Thea escondeu o rosto entre as mãos e começou a soluçar. Estava profundamente envergonhada
por ter sido uma de tantos que acreditaram no fascismo. Sentia-se cúmplice daquela catástrofe.
Quando ia a sair da estação, misturada com a multidão, mantendo bem à vista, no peito, a fotografia de Guido, ouviu sussurrar uma notícia: Mussolini, Claretta Petacci
e mais alguns fidelíssimos tinham sido capturados no lago de Como e assassinados.
- É bom de mais para ser verdadeiro - comentou uma mulher.
- Deviam tê-lo morto há vinte anos - murmurou um homem. Uma mão veio pousar sobre o seu ombro. Thea reconheceu o
perfume da mãe. Não a via há dois anos e não esperava encontrá-la à entrada da estação. Josepha tinha um aspecto frágil e o rosto muito pálido, marcado pelas angústias
e pelo sofrimento. Já não
havia sinais da mulher enérgica e determinada que ela conhecera. Chorou nos seus braços.
- Julgava que estavas em Roma - disse, por fim.
- Estamos em viagem há três dias. Eu e o teu pai precisávamos de estar contigo. Anda, vamos para casa. - Empurrou-a para dentro de um táxi.
Foram directas ao apartamento da praça Sant'Angelo, agora completamente vazio. Os repubblichini, que o tinham ocupado abusivamente seis meses antes, tinham surripiado
objectos e móveis. Para se aquecerem, durante o Inverno, tinham instalado um grande fogão de barro que alimentaram queimando livros, mesas, cadeiras e cabeceiras
de camas. Duas semanas antes, quando Thea chegou de Cernusco, onde deixara os filhos, fez algum esforço para reconhecer o apartamento que ela e o marido tinham decorado
com tanto cuidado. Não desanimou. - Vamos arregaçar as mangas e começar a fazer limpeza - disse à empregada.
Trabalharam febrilmente e conseguiram restituir às várias divisões uma aparência de habitabilidade. Depois começou a chegada dos comboios que traziam de volta à
pátria os sobreviventes da guerra, com as longas, desesperadas esperas na estação.
Agora, ao sair do táxi em frente ao prédio onde morava, sorriu para a mãe. O tempo da incompreensão e das rebeliões com Josepha tinha passado há um bom pedaço.
- O papá está em casa? - perguntou, enquanto subiam as escadas. O ascensor não funcionava.
- Foi à Via Chiossetto, a casa da tia Liliana. Chega à hora de jantar - respondeu.
Abriu a porta e, no vestíbulo, sentiu um cheiro forte a desinfectante. A empregada encarniçava-se diariamente a esterilizar o apartamento porque achava que não conseguia
remover as crostas da imundície deixada pelos fascistas. No vestíbulo estava uma mala. Thea reconheceu-a imediatamente.
Olhou para a mãe e sussurrou: - Guido. - Por um instante, acalentou o pensamento de que o marido tinha voltado da Rússia. Viu o olhar triste de Josepha e captou
imediatamente a verdade.
A mãe assentiu. Pegou-lhe numa mão e manteve-a apertada entre as suas.
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- Trouxeram-na hoje de manhã. Só aquilo, com a notícia do desaparecimento dele - disse-lhe, baixinho.
Thea ajoelhou-se junto à mala e acariciou-lhe a superfície áspera.
- Soubeste como morreu? - perguntou, com uma voz sumida.
- Foram os russos. Atingiram-no pelas costas. Está escrito no relatório do comandante que o encontrou - explicou, estendendo-lhe uma carta.
Thea ignorou-a. Abriu lentamente a tampa da mala e reconheceu a roupa de Guido, a máquina fotográfica, o relógio de pulso, as fotografias dela e dos filhos e um
caderno que tinha um título na capa: "Diário de guerra". Começava em Julho de 1942 e acabava em Dezembro do mesmo ano.
- Aqui estão os últimos seis meses da vida dele - murmurou. E acrescentou: - É tudo aquilo que me resta.
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A notícia da morte de Mussolini apanhou os Valeschi em Bolonha, quando viajavam para Milão.
- Porquê agora, que já não estava em condições de fazer mal? - perguntou Josepha ao marido, que a olhou, perplexo. Ela explicou aquele pensamento: - Deviam tê-lo
matado há muitos anos, quando começou a armar confusão. Há dez anos, onde estavam os dissidentes?
- Nunca vais mudar. Para ti, é tudo preto ou branco. Um dia, se tiver tempo, vou escrever a história destes últimos vinte anos.
Josepha pousou uma mão sobre o medalhão que trazia ao pescoço, por baixo da camisa. Continha a fotografia de Nino, o filho que tinha ido combater numa guerra em
que ela não acreditava.
- Por que é que queres fazer isso? - perguntou ao marido.
- Para perceber se tive alguma responsabilidade na morte do Nino, por exemplo - sussurrou ele. - De qualquer maneira, a guerra acabou, mas o ódio permanece e vai
continuar a correr sangue - prognosticou Lorenzo.
Em Milão, a empregada disse-lhes que Thea estava na estação à espera de um comboio que vinha da Rússia. Naquele momento chegou a mala de Guido, trazida por dois
oficiais do exército italiano com os quais Lorenzo se afastou.
Quando foram embora, Josepha estava a chorar. Tinha percebido tudo.
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- Agora, temos de dizer àquela pobre rapariga - balbuciou por entre as lágrimas.
- Thea, no fundo do coração, já o sabe. Como nós sabíamos
- replicou Lorenzo. E acrescentou: - Vamos à estação.
- Não. Eu vou sozinha. - Queria poupar ao marido a dor de assistir à angústia da filha. - Tens a tua família à espera na Via Chiossetto. Não os faças sofrer. Logo
à noite, a Thea e eu vamos ter convosco - decidiu.
Lorenzo levou a mulher de carro até à entrada da estação e depois dirigiu-se ao Corso Buenos Aires. A rua estava bloqueada por um grupo de homens com bandeiras vermelhas.
Viu dois camiões apinhados de jovens com lenços vermelhos ao pescoço. Agitavam metralhadoras e espingardas e cantavam: "Vamos erguer a bandeira vermelha".
Soltou um suspiro e pensou: "Os 'camaradas' desapareceram. Agora há os 'companheiros'. Serão melhores? Para ser melhor que os fascistas não é preciso muito". Estacionou
o automóvel junto do passeio. Saiu do carro e um dos manifestantes enfrentou-o, estendendo-lhe uma bandeira com a foice e o martelo. - Pega e anda connosco, companheiro
- ordenou.
- Estou cansado de bandeiras, seja qual for a cor delas - respondeu Lorenzo, decidido.
O homem levantou um braço e gritou: - Apanhámos outro.
- Deitou a bandeira ao chão, segurou Lorenzo por um braço e atirou-o em direcção aos companheiros.
Seis deles atiraram-se a ele e começaram a dar-lhe murros e pontapés. Só mais tarde Lorenzo soube que a polícia o tinha salvo do linchamento a tempo. Quando o levaram
para a esquadra, ainda estava sem sentidos. Um comissário encontrou-lhe os documentos quando lhe remexeu os bolsos.
- É o general Valeschi - disse para os outros. - Andam à procura dele em Roma por causa do processo relativo ao general Ronzoni.
- A família Valeschi é muito grande. É preciso cautela. Ele tem muitos amigos em Milão - avisou o comandante, quando foi informado. - Nem sequer devia estar na enfermaria
da prisão.
- Foi uma medida de prevenção - defendeu-se o comissário. - Ao que parece, foi um grande defensor do fascismo.
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- Ouça, eu já tenho problemas que me cheguem neste momento. Tenha cuidado com a maneira como se move - replicou o superior.
- Eu não posso ignorar um comunicado da polícia de Roma. Para além do mais, se o mandamos para lá, livramo-nos de um problema - observou o comissário.
A ordem pública, naqueles dias, estava num estado de emergência gravíssimo. Não havia homens suficientes, surgiam armas de todos os lados e estavam nas mãos de muitíssimos
civis. Chegavam ordens contraditórias, e já ninguém sabia quais eram as regras a seguir e quais a ignorar.
O comissário foi à enfermaria. Lorenzo estava num estado lastimável. O rosto tumefacto, com nódoas negras e escoriações por todo o corpo, e a respiração entrecortada
por causa das costelas partidas.
- Está em condições de se mexer? - perguntou ao médico que o assistia.
- Não me parece. Cuspiu sangue. Pode haver uma hemorragia interna. Sugiro que o transportem para o hospital - respondeu o médico.
- Telefone ao professor Olivieri. É cunhado dele. Que venha vê-lo e decida o que quer fazer. Eu vou avisar a família - concluiu, antes de ir embora.
O professor Olivieri, director de serviço no hospital de Niguarda, era o marido de Liliana Valeschi, a irmã de Lorenzo.
Naquela noite, quando Josepha entrou no pequeno quarto do hospital, Lorenzo já tinha recuperado e conseguia falar.
O cunhado tinha-o submetido a um inquérito rigoroso sobre o caso antes de lhe permitir receber visitas. Felizmente não havia lesões internas e, segundo as suas previsões,
aquele físico íntegro ia permitir-lhe uma recuperação rápida.
- Não estás propriamente um espanto - começou Josepha, tentando vencer a dor e sorrindo-lhe.
- Se eu te prometer que melhoro, és capaz de considerar a possibilidade de permitires que te faça a corte? - replicou ele, esforçando-se por dominar a comoção.
- Depende das garantias que me ofereceres para o futuro - respondeu ela. Encostou uma cadeira à cama e sentou-se ao pé dele.
497
Não sabia como havia de lhe dizer que em Roma o esperavam para depor no processo contra o general fascista Attilio Ronzoni. Decidiu não lhe falar nisso, pelo menos
naquela altura.
- Como sabes, o meu pai queria que eu fosse advogado. Era isso que tu também querias, há tantos anos, quando éramos novos. Posso começar agora. O que achas? - tentou
brincar.
- Amo-te tanto, Lorenzo - sussurrou Josepha, acariciando-lhe o rosto.
- Eu também - respondeu ele, e sentiu uma saudade lancinante daquela alegria de viver que os abandonara.
- Lembras-te da nossa primeira noite juntos, em Schloss Rundegg? Eu estava a chegar de África e inventei uma doença grave da minha mãe para ir ter contigo a Merano
- disse ele.
- Era noite de Natal e havia muita neve. Tu eras lindíssimo e eu amava-te. Amei-te e estimei-te toda a vida. Foste sempre um cavalheiro. Sei que continuarás a sê-lo.
- Pensava no processo em que Lorenzo devia depor e já sabia que, contra tudo e contra todos, ia defender o general fascista, mesmo que fosse a custo da própria vida.
- Como foi que a Thea reagiu? Não falo de mim. Refiro-me à morte de Guido - perguntou ele.
- Thea é jovem. É bonita. Tem três filhos que precisam de um pai. Espero que refaça a vida dela - respondeu.
Foram precisos alguns dias para que Lorenzo pudesse enfrentar a viagem para Roma. O tribunal tinha-o convocado oficialmente. Foi depor no processo contra o general
Ronzoni, precedido pela notícia do linchamento de que tinha sido vítima. A imprensa, depois de anos de sujeição ao regime, tinha-se lançado na caça aos culpados.
Entrou no tribunal submerso em assobios do público e enfrentou a animosidade dos juízes em relação a ele.
Como cavalheiro, não pronunciou acusações contra o réu, como a justiça daquele tempo gostaria. Começou o depoimento com a afirmação: "Não estou aqui para acusar
o general Ronzoni, mas sim para dizer a verdade sobre aquilo que vi e que conheço". Começou um burburinho. Foi acusado de omissão. Alguém foi remexer no seu passado
de estratega na guerra da Etiópia. Por fim, foram formuladas contra ele vinte e uma acusações. Foi encarcerado em Regina Coeli.
498
CERNUSCO SUL NAVIGLIO MAIO DE 1946
Na sala de audiências do tribunal de Roma, que devia julgar o general Valeschi por crimes de abuso de poder durante o último decénio fascista, a entrada de Thea
Battellieri Valeschi provocou o silêncio entre os presentes. Trazia um vestido de seda preto que lhe exaltava a silhueta alta e esguia. Um véu negro cobria-lhe o
rosto até ao queixo e fazia sobressair o cabelo dourado apanhado na nuca. Atravessou a sala, a todo o comprimento, avançando com um porte altivo em direcção ao banco
dos juízes.
Lorenzo Valeschi não estava presente. Durante a noite tinha sofrido um enfarte. Estava na prisão há um ano, e só nos últimos dias tinha sido autorizado a receber
a visita dos familiares. Quando Thea e a mãe puderam enfim abraçá-lo, não conseguiram reter as lágrimas. Estava irreconhecível, de tão magro e doente. Porém, ainda
teve coragem para brincar sobre o ambiente na prisão e sobre as regras higiénicas e alimentares.
- Estava mesmo a precisar de uma prisão, para me pôr a par com estes tempos. Li muitos livros bonitos que tinha perdido nestes últimos anos. Aprendi mais aqui dentro
do que em toda a minha vida.
Josepha contratou uma equipa de quatro advogados, dois de Milão e dois de Roma. Forneceu-lhes uma infinidade de documentos com vista ao desagravo do marido, tentando
desmontar, um após outro, aquela série infinita de argumentos da acusação. Mas não conseguiu encontrar uma cópia do relatório que Lorenzo realizara em Setembro de
1936
501
e que lhe tinha custado a destituição do cargo de ministro. Os adversários, pelo contrário, tinham algumas notas de Badoglio que acusavam Lorenzo de ter colaborado
com os alemães contra os interesses da nação. Era uma clamorosa mentira. O processo tinha atraído a atenção da imprensa, que o condenou ainda antes da formulação
de uma sentença. Finalmente, Thea encontrou em Cernusco, no escritório da villa Valeschi, a cópia do relatório que faltava no processo.
A partir daquele momento, a actuação da defesa ia basear-se naquele documento. Tinha de ser um golpe de teatro. Thea ofereceu-se para subir ao banco das testemunhas.
Sabia que as declarações de uma filha não tinham valor de testemunho, mas sabia também que a consciência da honestidade do pai havia de a inspirar.
Quando se sentou no banco das testemunhas, os jornalistas prepararam papel e caneta para transcrever as suas declarações. O público murmurava comentários sobre a
beleza daquele rosto, que se revelou no momento em que levantou o véu. Os juízes observaram-na com um ar de resignação. Sabiam que a sua intervenção não ia alterar
as convicções que já tinham mas, uma vez que agora a Itália era um país democrático, era necessário dar a palavra à filha de um homem que ia ser severamente condenado.
Nos primeiros bancos estavam sentados todos os familiares Valeschi e Battellieri.
Thea pronunciou com uma voz clara as declarações gerais. Depois começou:
- Se me vêem vestida de preto é porque estou de luto pelo meu marido, que morreu na Rússia, em Dezembro de 1942, a combater pela Itália. O meu marido deu-me três
filhos. O último, não o chegou a conhecer. Nasceu quando ele já estava na frente. Mas antes disso perdi o meu irmão. Também ele combateu pela pátria, nos Balcãs.
Falava para os juízes, para os advogados, para o público, e na sua mente desfilavam as imagens do marido que a abraçara pela última vez em Julho de 1942. Ela estava
no sétimo mês de gravidez. Guido sussurrou-lhe: "A pátria precisa de mim. Eu preciso de ti e dos nossos filhos. Será mesmo verdade que para viver em paz é preciso
fazer a guerra?".
502
Passou um dedo pelo lobo da orelha. Até há dois dias tivera ali os brincos de pérolas que tinham pertencido à princesa Carolina Castiglia. Vendeu-os bem, e assim
assegurou um ano de sobrevivência.
- Nasci numa família abastada. Muita gente enriqueceu com o fascismo. Nós perdemos tudo - continuou com uma voz firme. - O meu pai não queria arrastar a Itália para
uma guerra sem salvação. E teve a coragem de o escrever. O relatório do meu pai, que está agora inserido no processo, é a prova inequívoca da sua inocência. A resposta
fascista foi a de o afastar imediatamente do seu cargo. O meu pai acreditou que o fascismo era uma evolução do socialismo. Mais trinta milhões de italianos pensavam
como ele. O meu pai saiu do partido em 1936. Quantos o seguiram? As acusações que lhe foram feitas são falsas, como será demonstrado pelas provas da defesa. Está
preso há mais de um ano como um delinquente comum. Quem de entre vós tem interesse em fazer calar um cavalheiro? A nossa jovem democracia, tenho a certeza disso,
não se vai querer manchar com um crime de cunho fascista: condenar um inocente - concluiu. Tinha os olhos brilhantes de lágrimas, mas a voz não vacilara enquanto
olhava com o rosto descoberto todos aqueles que a ouviam em silêncio.
O eco da sua voz apagou-se. Uma mulher, no meio do público, gritou: "Muito bem!", e aplaudiu. Outra imitou-a, e de repente foi um estampido de aplausos, enquanto
um juiz agitava a campainha para pedir silêncio.
Naquela mesma tarde foi emitida a sentença: "O general Lorenzo Valeschi é alheio a todas as acusações que lhe foram feitas e é absolvido porque não subsistem provas
da sua culpa".
Thea regressou a Cernusco. Precisava de estar com os filhos. Josepha tomou conta do marido.
As três crianças não tinham percebido o motivo daquelas repetidas ausências da mãe. Durante os últimos meses, Thea tinha passado muito tempo longe deles. Estava
constantemente em viagem entre Roma e Milão e eles ficavam entregues à empregada e a Teresa. De vez em quando vinha a tia Liliana. Uma vez, quando ficaram todos
doentes com sarampo, foi vê-los o Dr. Paolo Valli, aquele que durante a guerra tinha sido seu professor.
503
A empregada não tinha muita confiança naquele médico. - É um doutorzinho. Ainda está a praticar.
Mas a tia Liliana defendia: - É um bom médico. É o aluno mais promissor do meu marido.
A ama comentava: - É uma pessoa que gosta de crianças. O amor, às vezes, é mais poderoso do que muitos medicamentos.
Thea chegou um dia de manhã. Os filhos estavam na escola e a empregada tinha ido às compras. A grande villa estava mergulhada no silêncio. Subiu ao primeiro andar
e entrou no quarto das crianças. Havia brinquedos por todo o lado: o Meccano de Lorenzo, uma boneca decapitada de Verdiana, o cavalo de baloiço de Gianni. Recordou
as suas incursões natalícias à cidade, quando quase todas as lojas estavam fechadas, para desencantar um presente qualquer para levar aos filhos e assim lhes proporcionar
uma aparência de normalidade num mundo que andava à deriva. Pequenas coisas que não conseguiam cobrir a necessidade de serenidade e de equilíbrio. Durante alguns
anos, Thea conseguira sobreviver na esperança de que o marido regressasse. Desde que soubera da morte de Guido, deambulava à procura de um apoio.
Pegou na boneca de Verdiana, sentou-se num banco e tentou fixar a cabeça de celulóide no corpo da boneca. Começou a chorar. Não havia nada que corresse bem.
- Chegaste, finalmente - disse Teresa. Beijou-lhe a testa com ternura e sentou-se ao lado dela.
- Dá-me a boneca. - Com uma pancada enérgica voltou a meter a cabeça no sítio. - Já está - concluiu. Depois tirou um lenço do bolso e estendeu-lho. - O rimmel e
as lágrimas não combinam bem. Vai lavar a cara. Pareces um palhaço.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou Thea, enquanto limpava o rosto.
- Vi a porta aberta. Percebi que tinhas chegado - respondeu. E acrescentou: - Aqui na aldeia toda a gente leu os jornais e estamos muito contentes por ti, pelos
teus pais e pela tua família. Iam fazer uma grande maldade ao teu pai.
Tentava distrair Thea da melancolia e da solidão.
- Tenho trinta e um anos, ama - sussurrou ela. - Vivi pouco tempo com o meu marido. Tenho três filhos que já não têm pai.
- Conheço bem esse problema. As nossas vidas são parecidas.
- Ando por aí, olho à minha volta e em toda a parte vejo um homem e uma mulher de mãos dadas, ou de braço dado. Olham-se nos olhos e sorriem. É possível que tenham
discutido cinco minutos antes, ou que vão discutir cinco minutos depois. Mas, entretanto, são um casal. Eu estou sozinha. Então gesticulo como se me estivesse a
afogar. Chorei muito pela morte do Guido. Mas agora pergunto o que vai ser de mim e dos meus filhos. - Começou a soluçar, desesperada.
- Nascemos de uma costela de Adão - disse Teresa, abraçando-a. - É essa a nossa condenação. Sem um homem, sobretudo quando somos jovens, ficamos mesmo muito mal.
Thea parou de chorar e olhou-a com um ar interrogativo.
- O que é que me estás a dizer, ama?
- Que tens de viver. Que precisas de um companheiro.
- Isso, nunca! - protestou, indignada.
- Dá tempo ao tempo. Agora vai a correr lavar a cara, para ires buscar os teus filhos, que estão quase a sair da escola.
504 - 505
CERNUSCO SUL NAVIGLIO VERÃO DE 1947
A fábrica das bicicletas foi reconstruída e recomeçou a produzir. Os Battellieri tinham tomado a seu cargo o sustento de Thea e dos filhos. Ela tornara-se sócia
dos cunhados e trabalhava com eles. Virgínia Castiglia, dos Estados Unidos, mandou-lhe uma série de ensaios, manuais e artigos de jornais sobre publicrelations.
Thea começou a estudar. Compreendeu a importância de estabelecer relações com as sociedades desportivas, com os jornalistas e com todos aqueles que, de alguma forma,
podiam influenciar os gostos do público e orientar a escolha para as bicicletas com a marca da família. Não bastava produzir um artigo fiável. Era necessário divulgá-lo.
Thea tinha amizades influentes que se estavam a revelar fundamentais para o relançamento da empresa.
Tinha intuído que a publicidade era indispensável. Uma bicicleta vendia-se melhor se fosse fotografada ao lado de uma bonita rapariga em calções. Idealizou um calendário
de "belezas de bicicleta", apresentou-o durante algumas reuniões com os vendedores e distribuiu-o em todo o território. As bicicletas Battellieri conquistaram o
mercado.
- Eu acho - começou ela durante uma reunião da empresa, - que devíamos, mais uma vez, diversificar a produção. É preciso olhar em frente. A Itália está a recuperar
rapidamente da guerra e dentro de não muito tempo vão vender-se motos ligeiras. O sector automóvel está em crescimento. O das bicicletas vai declinar. Vamos apostar
nas motos.
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Ao fim e ao cabo, continua a tratar-se de veículos de duas rodas.
A sogra gelou aquele entusiasmo.
- Estamos endividados até ao pescoço. Para já, e por muitos anos ainda, não podemos pensar em novos investimentos - disse.
Thea nunca tivera nenhuma familiaridade com os problemas económicos. Aceitou a observação como certa. E continuou a trabalhar.
A mãe telefonou-lhe de Roma.
- Vou vender o castelo. Por que não vens a Merano comigo?
Thea sabia que Josepha nunca venderia Schloss Rundegg se a isso não fosse obrigada pela necessidade. Tinha de pagar os honorários dos advogados que tinham defendido
Lorenzo. Ela não estava particularmente ligada àquele lugar, que deixara quando era ainda uma criança.
As origens austríacas da mãe tinham-lhe muitas vezes provocado situações embaraçosas e não perdoava à gente do Tirol o terem alinhado com os alemães quando a Itália
alterou as alianças. A pátria de Josepha encarniçara-se contra os italianos com um sadismo que não tinha justificação.
Josepha não gostava que a filha recusasse uma parte das suas raízes. Desculpava-a por considerar que a vida não lhe tinha poupado sofrimentos e pensava que era justo
que Thea olhasse para o futuro.
Thea comprou um carro para se deslocar rapidamente da casa da cidade à do campo, onde passava todos os fins-de-semana com os filhos. Cernusco era um lugar importante
para todos eles. Ali encontrava uma parte da família Valeschi, que considerava, a todos os títulos, a dela. As crianças tinham espaço para brincar ao ar livre. A
tia Liliana e o tio Stefano iam ter com ela quase todos os domingos e com eles vinham os filhos e os netos. A ama estava sempre disponível para dar uma ajuda na
cozinha e sentar à mesa hóspedes fixos e inesperados.
Enquanto andava à volta do fogão, Thea ajudava-a de boa vontade, até porque daqueles momentos nasciam as confidências entre as duas.
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Naquele período, Teresa andava preocupada com Rosa, a filha mais velha.
- Anda a enganar vergonhosamente o marido - confessou à rapariga.
- Talvez não seja feliz com o engenheiro - replicou Thea.
- Eu tinha-lhe dito que vinte anos de diferença era demasiado. Ela deixou-se ofuscar pela riqueza. Agora tem quase trinta anos, não tem filhos e aborrece-se. Por
isso arranjou um jovem actor como amante. O meu genro, que não é estúpido, sabe de tudo e faz de conta que não se passa nada. Achas que é uma maneira bonita de se
comportarem?
- Se ficas a cismar nessas coisas, não resolves nada e envenenas o teu sangue - avisou Thea.
- Uma mãe não consegue deixar de se preocupar com os filhos. Por agora os teus ainda são pequenos e tu pensas que, quando crescerem, vão fazer as escolhas deles
e acabam aí os teus problemas. Não é assim. Eu vejo muita coisa e sofro com isso. Sabes que a Rosa tem vergonha de mim? Quando quero ir vê-la tenho de avisar primeiro,
porque se tiver visitas não me recebe. Parece que ainda ontem a levava descalça para a fiação. Hoje sente-se uma princesa. Enquanto que eu, que conheci princesas
de verdade, sei que não se parece com elas nem num cabelo. Faz-me pena, percebes?
- Referes-te à minha mãe?
- Exactamente. E à princesa Castiglia. Elas foram realmente grandes senhoras. Eu acho que aquele mundo já não existe.
- Não te queixes, ama. Até te correu bem. Alguma vez pensaste que as tuas filhas se iriam poder libertar do jugo da miséria? Olha para Iosefa: é a primeira dama
de Cernusco. Achas pouco?
Iosefa Zicri tinha casado com Franco Carenghi, um jovem industrial que produzia rolamentos. Era o homem mais rico da aldeia. Teresa continuava a não estar orgulhosa
com este segundo, brilhante casamento. Sentia que, de alguma maneira, as filhas tinham traído as suas origens.
- Quando Benedetto, o meu primeiro marido, me falava de um mundo melhor, não se referia a isto - explicou. - O mundo melhor que ele tinha em mente, e que eu aprendi
a conhecer, é o da dignidade e do respeito pelo trabalho. Só espero que o meu pequenino venha a ser um bom ferreiro como o pai.
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As grandes fortunas dificilmente nascem da honestidade.
Thea sabia que a ama tinha razão.
- Com a idade estás a ficar cruel - disse Thea. - Os sonhos do teu marido e os do meu pai acabaram há muito tempo. O mundo mudou.
- Mas os patrões exploradores não. A nossa Constituição diz que a Itália é uma república baseada no trabalho. Quem a assinou, entre outros, foi Terracini, um grande
homem que nunca pertenceu ao partido dos patrões. Mas os exploradores são como a erva: arranca-la num sítio, e ela nasce, ainda mais vigorosa, no outro. E só se
preocupam com os interesses deles.
- Ama, tornaste-te comunista?
- Não duvides.
- E com o padre velho, como te arranjas?
- Ele pensa como eu, apesar de dizer que estou a ficar com uma alma danada. Olha, Thea, ser comunista não significa afastar-se da religião. Eu nunca poderia viver
sem a minha Nossa Senhora e sem os meus santos. Mas os santos e a Nossa Senhora não podiam viver num sítio onde reina a injustiça. Don Cláudio é um homem inteligente
e sabe muito bem estas coisas.
- Já percebi, ama. Por hoje basta. Os hóspedes já chegaram, o almoço está pronto. Serves tu à mesa, por favor? - perguntou, enquanto tirava o avental.
Ouviu a sineta no portão do jardim e depois um ruído de passos no saibro. Chegou à varanda e viu Paolo Valli, que se aproximava. Trazia na mão um ramo de rosas.
Thea foi ao encontro dele com um ar alegre.
- Doutor, rosas outra vez? - disse-lhe, a sorrir.
- Desta vez não são um sinal. A guerra acabou há uns tempos - respondeu ele.
- Que pena - disse ela.
- Que pena ter acabado a guerra? - perguntou ele.
- Que pena não serem um sinal - sussurrou ela.
O rapaz corou. Era muito tímido e ficou embaraçado.
- O professor Olivieri convidou-me para almoçar - explicou.
- Não sabia. Então vamos entrar. Estamos quase a ir para a mesa.
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Deu-lhe o braço com um modo mundano e sentiu-o tremer.
Os filhos, quando o viram, correram ao seu encontro. Durante o Inverno tinha-lhes tratado as amigdalites e, depois, entreteve-os com pequenos jogos. Insistiam em
tratá-lo ainda por professor, e Gianni, o mais pequeno dos filhos de Thea, tratava-o por tu.
Eram dezoito à mesa, entre adultos e crianças. Foi um almoço muito alegre. Thea, de vez em quando, sentia em cima dela o olhar do médico e retribuía-o com um sorriso.
De tarde, enquanto os mais novos jogavam voleibol e as senhoras se entretinham a conversar sob um caramanchão de glicínias, Liliana Valeschi arranjou maneira de
se afastar com a sobrinha.
- Acho que já percebeste que o Dr. Valli te está a fazer a corte - disse-lhe.
- Precisava de saber ler-lhe os pensamentos. Porque, nos factos, limita-se a sorrir e a trazer-me as rosas do jardim da mãe - esclareceu Thea.
- Tu tens um grande domínio sobre ele. Não te dás conta, mas és dura como aquela crucca da tua mãe.
- Muito obrigada, tia. Não te maces a tecer-me elogios - replicou Thea.
- Percebeste muito bem aquilo que eu quis dizer. Ele é muito tímido e tu não lhe dás coragem. Se gostas dele, devias dar-lhe a entender isso. O teu tio considera
que o Paolo é um rapaz excepcional e que tem boas possibilidades de carreira a nível hospitalar. Enfim, Thea, vê se te mexes, porque, se queres voltar a casar, aquele
é o homem certo - rematou a senhora, com a sinceridade que lhe era habitual.
Gianni veio ter com elas a chorar, com uma mão apertada contra a orelha.
- A abelha. Mordeu-me a abelha má! - gritava cheio de dores, desesperado.
Paolo estava a jogar uma partida de pingue-pongue sob o alpendre com o professor Olivieri. Abandonou a raquete e foi tratar do pequeno. Pediu a Thea que o ajudasse.
- Preciso de amoníaco, de uma pinça e de um pedaço de algodão - disse, pegando no miúdo ao colo. E continuou: - Dói muito, eu sei. Agora vamos ver o que se pode
fazer.
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- Por que foi que me picou logo a mim, aquela má? - perguntou o pequeno.
- Porque confundiu a tua orelha com uma flor. A abelha não é estúpida. Sabe reconhecer as coisas bonitas. A tua orelha é muito bonita e vai já deixar de te doer
- tranqüilizou-o, enquanto extraía o ferrão com a pinça. Com um gesto rápido, apertou o algodão embebido em amoníaco sobre a picadela. Gianni lançou um grito agudo.
- Agora um bocadinho de gelo, por favor - pediu a Thea. Ao fim de poucos minutos, Gianni sorria. - Obrigado, professor. A dor já passou.
- Eu já sabia. Segura o gelo ainda mais um bocadinho.
- Porquê? - perguntou o pequeno.
- Porque te estou a pedir - replicou Paolo.
- Eu também te posso pedir uma coisa, professor?
Ele concordou.
O menino envolveu-lhe o pescoço com os braços e perguntou: - Queres ser o meu papá?
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MERANO - SCHLOSSRUNDEGG 31 DE DEZEMBRO DE 1999
Paolo Valli foi um bom marido para Thea e um bom pai para as três crianças. Com ele, Thea reencontrou a serenidade. Cultivou as suas capacidades empresariais, nas
quais se misturavam o dinamismo dos Paravicini e o sentido de disciplina dos Valeschi, e tornou-se uma corajosa directora da empresa. Enfrentando os receios dos
Battellieri, transformou a indústria das bicicletas numa indústria de motociclos. Lançou no mercado a scooter, que se tornou o símbolo dos veículos daqueles anos,
e afastou a concorrência.
O trabalho e a dedicação do marido ajudaram-na a superar os momentos mais difíceis, que não foram apenas a perda dos pais e de muitos amigos, mas também a morte
de Lorenzo, o primogénito, num acidente aéreo.
Às vezes, pensava com melancolia no pai e na mãe e lamentava o facto de não ter falado o suficiente com eles. Tinham desaparecido no momento em que se deu conta
de que tinha muitas coisas para perguntar, muitas curiosidades para aprofundar.
A ama falecera há vinte anos, deixando um grande vazio na sua vida afectiva. Restava-lhe na lembrança como uma figura luminosa que lhe deixara, sem se dar ares disso,
ensinamentos preciosos. Toda a sua vida foi uma grande lição de dignidade. Só no fim, quando estava a morrer, Thea lhe disse: - Gosto muito de ti, Teresella.
A mulher olhou-a com severidade. - Estás a ficar velha, se te pões a tratar-me pelo meu nome.
- É verdade, estou a ficar velha e sentimental - respondeu.
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- Não, estás só a fazer confusão. Tu és a signora, eu sou a ama. Cada qual deve saber ocupar o seu lugar - esclareceu, com a teimosia de sempre. Morreu com a mão
de Thea apertada na dela.
Guido, o primeiro marido, continuava na sua recordação dos anos de juventude, no tempo em que se julgava dona do mundo.
Nino, o irmão, tão dócil e às vezes tão sarcástico, inimigo da guerra e estudioso apaixonado de literatura antiga, estava sempre no seu coração.
Mas não se passava um dia em que não se lembrasse do pai. Apesar de já terem passado muitos anos, a dor daquela perda não adormecera. Sonhava muitas vezes com ele,
e obtinha algum conforto daqueles sonhos.
Paolo deixou-a só quando ela tinha já oitenta anos. Morreu no consultório, enquanto via um doente. "Enfarte fulminante", declarou o colega que foi imediatamente
chamado para o socorrer.
Thea entregou a Gianni, que era engenheiro, a orientação da empresa de que ela era ainda presidente honorária, e a Verdiana, que era médica, a direcção de uma clínica
para idosos em Cernusco.
Tinha cinco netos e nove bisnetos. Às vezes perguntava-se se existiria ainda naqueles jovens um pouco do sangue vigoroso do general Lorenzo Valeschi e da senhora
de Rundegg e Rametz. Se assim fosse, Thea não duvidava de que teriam coragem suficiente para enfrentar a vida.
Agora ia começar o novo milénio e ela tinha um projecto para realizar.
Calçou uns botins forrados de pêlo, enfiou o casaco e o chapéu e desceu até ao hall do hotel Schloss Rundegg.
As empregadas da recepção cumprimentaram-na, sorridentes. Saiu para o jardim. Estava todo branco, coberto de neve. Viu um homem em mangas de camisa a limpar a alameda
com uma pá. Fez-lhe lembrar Willy, o homem forte e misterioso que, quando ela era muito pequena, tomava conta dela e de Josepha.
- Bom-dia - cumprimentou-o.
- Bom-dia - respondeu ele. E continuou a trabalhar.
- Willy, komm!(1) - gritou alguém da porta da cozinha.
*1. "Willy, vem!", em alemão. (N. da. T.)
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O homem largou a pá e dirigiu-se ao hotel com um passo leve e o andar oscilante de que não se esquecera.
- O senhor também se chama Willy - constatou Thea, falando mais consigo própria do que com ele. Não teve resposta.
Continuou ao longo da alameda em direcção ao muro que limitava o terreno. Nas suas recordações de infância, o jardim era imenso. Pareceu-lhe muito mais pequeno.
Procurou inutilmente o estábulo e a arrecadação dos utensílios. Tinham sido demolidos.
Os pés afundaram-se na neve. Perdeu o equilíbrio. Esteve quase a cair. Assustou-se.
- Os receios mesquinhos dos velhos - murmurou para si, envergonhada.
Ergueu os olhos e observou o castelo. Era maior do que se lembrava. Tinham-lhe acrescentado uma ala posterior. O galo de ferro, no cimo da torre, estava imóvel,
com a cabeça voltada para ela, como se a observasse.
Uma empregada sacudia um edredão numa janela do primeiro andar.
- Havia uma balaustrada de madeira, em tempos - sussurrou Thea. Mais abaixo, num nicho escavado na parede, havia um Cristo de madeira. A velha Klara punha-lhe flores
aos pés. Agora a parede era branca e lisa. Gostaria que Josepha estivesse ainda ali, para ver como tinha mudado e melhorado o seu castelo.
Sabine, a empregada, foi a correr ao encontro dela.
- Frau Valeschi! Chamam-na ao telefone - anunciou.
- Eu avisei para não me passarem nenhuma chamada - protestou, seguindo-a.
- É uma chamada dos Estados Unidos - justificou-se a rapariga.
Thea entrou na cabina, ao lado do banco do porteiro. Levantou o auscultador e ouviu a voz forte e clara de Isadora Castiglia, a prima.
- Falei com os teus filhos. Disseram-me onde estavas. Queria desejar-te um bom Ano Novo - disse.
- Muito obrigada, Dodò. Como estás?
- Como uma velha sozinha. Os meus filhos e os meus netos foram esquiar para Montana. E eu fiquei entregue aos cuidados de uma mulher que me tiraniza.
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Isadora tinha tido quatro maridos. Estava divorciada de dois. Os outros dois tinham morrido. Os quatro deixaram-lhe ricas heranças. Vivia em Connecticut, numa casa
imensa, rodeada por dois hectares de parque. Thea e Isadora consideravam-se primas, apesar de o não serem. Isadora vivia no culto da mãe. Virginia Castiglia fora
uma personagem de destaque no mundo do feminismo. Os seus escritos tinham-se tornado textos de estudo e encontravam-se em muitas universidades americanas. Faleceu
numa idade tardia, rodeada por uma multidão de alunas que a adoravam.
- Não te queixes. És mais nova do que eu. Eu também estou só. Por que não apanhas um avião e vens ter comigo?
- Pode ser uma idéia. Tenho muita vontade de rever Nápoles. A minha família é desesperadamente americana. Mas eu ainda me sinto italiana. A minha mãe quis pôr um
oceano entre ela e a Itália. Mas não cortou as minhas raízes. Sabes uma coisa? Gostava de comprar o palácio Castiglia. Era uma maneira de mostrar aos meus netos
de onde vêm - disse.
Thea soltou uma gargalhada.
- Não posso acreditar! Eu estou num hotel que foi o castelo da Josepha, e estou aqui para o comprar.
- Achas que são loucuras de velhas senhoras? - perguntou Isadora.
- Talvez. Mas por que havemos nós de deixar este mundo sem realizar um sonho?
- Exactamente, porquê? De qualquer maneira, Thea, vida longa e muita saúde.
- Para ti também, querida Dodò.
Thea chamou um táxi que a levou à cidade. Ali, as ruas tinham sido desimpedidas da neve. Entrou na Via del Portici. Parou em frente à livraria de Poetzelberger.
A silhueta escura da catedral reflectia-se, com as suas agulhas, no vidro brilhante da montra. Quando era pequena, Josepha levava-a com ela, às vezes. O velho livreiro
oferecia-lhe figurinhas ou lápis de cor. Mais adiante, encontrou a drogaria onde lhe ofereciam rebuçados. Muitos dos letreiros antigos já não existiam. Mas viu lojas
novas que exibiam vestidos, sapatos, carteiras e perfumes. No entanto, a civilização do consumo não tinha conseguido apagar o carácter antigo daquela pequena cidade.
Quando chegou à Praça do Teatro, voltou para trás e subiu
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em direcção à catedral. Parou em frente à placa de mármore em memória do conde Bernhardus Paravicini, cidadão ilustre, falecido com a idade de cento e sete anos.
Thea sorriu, convencendo-se de que, se uma parte dos cromossomas daquele trisavô tivesse chegado até ela, tinha boas possibilidades de viver mais vinte anos. Depois
fez uma careta e sussurrou: - Se calhar é de mais. Mas não serei eu a definir os limites da Providência.
Regressou ao hotel. A sala de jantar estava cheia de gente. Havia hóspedes italianos e alemães. Casais de jovens apaixonados, de idosos, de pais com os filhos. Pessoas
elegantes, compostas. Falavam educadamente em voz baixa, para não incomodar. "Uma clientela discreta", pensou. A instalação sonora transmitia em surdina músicas
do folclore do Tirol.
O maítre acompanhou-a até à mesa. Em cima da toalha sobressaía um coração feito com pequenos ramos de abeto entrelaçados com prímulas amarelas e amarrados com uma
pequena fita dourada. Um bilhete dizia: BEM-VINDA À SUA CASA.
Thea dirigiu ao homem um olhar interrogativo.
- É da parte do pessoal, signora Valeschi. Soubemos que nasceu aqui - explicou o homem com um sorriso quase comovido.
Thea assentiu.
- Será que me pode mandar servir a refeição no quarto, por favor? - pediu de repente. Pegou no pequeno coração de prímulas e abeto e dirigiu-se ao ascensor.
Assim que chegou ao quarto, marcou no telefone um número que conhecia de cor. Respondeu-lhe a voz anónima de uma secretária. - Sou a signora Valeschi. Queria falar
com o advogado Stefani - disse.
Ouviu a resposta da interlocutora e depois prosseguiu: - Eu sei que é o último dia do ano e que o Sr. Doutor está de férias. Por isso localize-o imediatamente e
ligue-me a seguir. Tome nota do meu número de telefone.
Sabine entrou com o carrinho da refeição. - Quer que fique para a servir, minha senhora? - perguntou a rapariga.
- Não, obrigada - respondeu.
Sentou-se à mesa em frente a uma janela da qual podia observar o jardim e as montanhas. Lembrou-se de quando era menina e,
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numa manhã ventosa, de Novembro, a mãe lhe disse que o pai ia regressar da guerra: naquele momento, ela vira uma águia real planar majestosa sobre a crista de um
monte. Então, pronunciou, como nessa altura: "Der Adler fángt keine Miicken". A águia não apanha insectos. Quem sabe se ainda haveria águias no Tirol.
Pouco depois, deixadas as recordações de parte, saboreou a entrada e a seguir levantou a tampa da bandeja dos tagliolini. Naquele momento, tocou o telefone. Era
o advogado Stefani.
- Thea, o que é que se passa? - começou, com uma voz preocupada.
- Quero comprar um hotel - declarou ela.
- Logo hoje? Sabes que dia é? Fazes alguma idéia de onde estou?
- Sei que não perdes o contacto com o teu escritório, que, se não estou em erro, vive e prospera graças aos meus processos. Onde quer que estejas, tens certamente
à mão uma daquelas engenhocas modernas com as quais podes contactar quem quiseres e saber tudo aquilo que precisas. Portanto, abre bem os ouvidos. Estou em Merano,
o hotel chama-se Schloss Rundegg. É um castelo. Era da minha mãe. Vendeu-o, creio eu, há cinqüenta anos. Quero recuperá-lo - anunciou com o tom empresarial com o
qual dirigira durante anos a empresa dos Battellieri. - Enquanto acabo de jantar, arranja-te como puderes para me dizeres tudo sobre este hotel - concluiu.
Depois ligou a televisão e ouviu as notícias do telejornal regional.
Acabou de jantar e empurrou o carrinho para fora do quarto. Depois ligou para o serviço de bar e pediu um café.
Nunca se sentira tão bem. Sentia-se invadida por uma euforia agradável que conhecia bem. Era a mesma que sempre tinha marcado os momentos importantes da sua vida.
Tinha oitenta e quatro anos, mas a energia era a mesma de sempre. Depois vinha o abalo, já sabia. Mas, entretanto, gozava aquele momento extraordinário.
Sabine levou-lhe o café, a leiteira da nata e uma tacinha de doces.
- Chegou a orquestra - anunciou-lhe. - Vão fazer algum barulho. Espero que não a incomodem.
- O barulho do rés-do-chão não chega até aqui - replicou Thea.
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- É verdade. A senhora conhece a casa.
Thea deitou o café na chávena e espalhou-se pelo quarto o mesmo aroma que pairava na sala de visitas, quando Klara servia o café à mãe e aos convidados.
O toque do telefone quase a fez estremecer. Era o advogado Stefani.
- Como é que podes comprar um hotel que já é teu?! - espantou-se o advogado.
Thea levou alguns segundos a assimilar a informação.
- És capaz de ser mais claro? - perguntou.
- A tua mãe vendeu o castelo a uma sociedade de energia eléctrica da qual possuía um certo número de acções herdadas da avó, Dorothea von Rost. Esta sociedade, que
tem sede em Bolzano, já faz parte dos teus pacotes de acções. O hotel é teu em cinqüenta e um por cento. Os lucros da gestão não são brilhantes, mas permitiram a recuperação do castelo - explicou sucintamente o advogado.
Thea não conseguiu conter uma gargalhada.
- Então compra as acções que faltam. Quero a propriedade a cem por cento - ordenou.
- Não é um investimento brilhante - observou o interlocutor.
- Isso deixa-me decidir a mim - rematou. E acrescentou: - Obrigada, e bom ano.
Depois, satisfeita, recostou-se na poltrona e começou a saborear o café com um prazer infinito.
Tinha recomeçado a nevar. Os flocos pareciam pequenas borboletas enlouquecidas.
- Estou em casa - sussurrou. Teve a certeza de que Josepha Sidonia Paravicini von Riccabona, senhora de Rundegg e Rametz, onde quer que estivesse, lhe sorria.
Thea sussurrou: - A vida, para ser perfeita, deve ser como um círculo que se fecha no ponto em que começou.

 

 

                                                                  Sveva Casati Modignani

 

 

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