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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ABSALOM, ABSALOM / William Faulkner
ABSALOM, ABSALOM / William Faulkner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Das duas horas soadas até quase ao pôr do sol daquela tarde quieta, longa tarde, quente e morta, penosa tarde em Setembro, ficaram eles sentados no que Nfiss Coldfield ainda chamava o escritório porque seu pai usara chamar-lhe assim - uma saleta abafada, quente e escura, onde há quarenta e três verões se corriam e cerravam as tabuinhas porque, sendo ela menina, dissera alguém que a luz e a viração do ar trazem a calma de fora e a frescura sempre está onde houver obscuridade, a mesma (entretanto ardia o sol mais e mais sobre essa parte da casa) que se adufava já de louras feridas com as muitas partículas de pó que o próprio Quentin julgou serem escamas da tinta revelha e seca, lascada, trazidas ali por improvável vento das tabuinhas de fora. Uma glicínia floria pela segunda vez nesse Verão, posta à janela nas ripas de uma latada, que os pardais visitavam em revoadas de acaso, e num bulício vigoroso e seco depois abandonavam: e, frente a Quentin, Miss Coldfield, de eterno luto como há quarenta e três anos o pusera, se por irmã ou pai ou marido que o não foi ninguém o sabe, sentava-se muito aprumada na simples cadeira de recto espaldar, cadeira tão alta que as suas pernas pendiam verticais e rígidas, como se fossem de ferro canelas e tornozelos, sem tocar o chão, nessa raiva impotente e estática dos pezinhos das crianças, e falava, numa voz soturna, alucinada, até que desesperava o esforço de escutá-la, o ouvido confuso mal percebendo as palavras, e o objecto da sua frustração impotente, sim, mas indomável, esse que há tanto tempo morrera, então ressurgia, como se pela ultrajada insistência dela fosse conjurado, sereno e manso, impassível, da poeira povoada, vitoriosa, eterna.

 


 


A voz não se calava, apenas se perdia. Tudo era a indecisa treva, aquele cheiro a mortos e à doce e redolente glicínia, por duas vezes florida contra a parede exterior da casa, que o sol de Setembro, calmoso e violento, batia e ressumava e sobre-ressumava, e que os pardais visitavam num sonoro e informe esvoaçar como se fora o estalo dalgum pauzinho verguio que ocioso rapazito castigasse, e o odor râncido a carne fêmea, velha, por longo tempo encastelada na sua virgindade, enquanto o rosto lívido e encovado o vigiava por sobre o descolorido triângulo das rendas nos pulsos e no colo, de sobre a cadeira tão alta onde ela, sentada, parecia uma criança crucificada; e a voz, que sem calar-se apenas se perdia por longas pausas para delas refluir como vem o escasso arroio percorrendo os areinhos secos, e o fantasma, absorto em espectral docilidade, como se fora a voz que ele assombrasse por não ter, como outros mais felizes, casa que assombrar. Do murmurado fragor ele irrompia (cavalo-cavaleiro-demónio) pela cena tranquila e decorosa de uma aguarela pueril, um vago fedor a enxofre ainda nas barbas, no fato, no cabelo, com a cafraria em bando atrás de si, brutos que tivessem aprendido tão-somente o andar erecto de homens, selvagens e na postura plácidos, e forçado na leva com eles o arquitecto francês, soturno e descarnado e maltrapilho. Imóvel e barbado, a palma da mão erguida, estava o cavaleiro; atrás dele a cafraria mais o cativo arquitecto, sem rumor, apinhados, carregavam por incruento paradoxo as picaretas e as pás e os pacíficos machados da conquista. Então, no longo desassombramento das coisas assombrosas, pareceu a Quentin que os via, invadindo num rompante as cem milhas quadradas de unia terra calma e surpresa, e do silencioso Nada arrancando violentos a casa e os jardins formais para assentá-los de chofre como quem bate a cartada, criando Sutpen's Hundred à ordem pontifical, imóvel, em palma erguida, nesse Faça-se Sutpen's Hundred como o primordial Faça-se Luz. Então o ouvido concorde perceberia dois Quentins separados - o Quentin Compson que no Sul se preparava para Harvard, no coração do Sul morto e acabado em 1865* e que só fantasmas aturdidos, ultrajados, gárrulos agora povoavam, ele escutando ali, por força escutando, o fantasma que se recusara enfim à requíetude que outros, e por mais tempo, guardaram, e lhe contava como os idos foram daquele tempo fantasma também; e o Quentin Compson que não tinha pela pouca idade merecimento para ser um fantasma e contudo e apesar de tudo por força o era já, que no coração do Sul nascera e se criara, como ela - os dois Quentins separados e um com o outro falando no silêncio dos ausentes que não carece linguagem, assim: Parece que o tal demónio - chamava-se ele Sutpen (coronel Suipen) - coronel Sutpen. Que um dia veio não se sabe donde e apareceu aqui mais uma catrefa de negros* que nunca ninguém tinha visto e desbravou a terra e fez uma plantação - (Rasgou a terra brutalmente, diz Miss Rosa Coldfield) - ou a rasgou brutalmente. E casou com Ellen, a outra irmã Coldfield, e nela gerou um filho e uma filha que - (Em violência os gerou, diz Miss Rosa Coldfield) - em violência. Que deveriam ter sido as jóias do seu orgulho e o amparo e consolo da sua velhice mas - (Mas os filhos deram cabo da vida dele, parece, ou foi ele quem deu cabo da vida aos filhos, parece. E morreu) - e morreu. E ninguém lhe chora a morte, diz Miss Rosa Coldfield - (A não ser ela) Sim, a não ser ela. (E Quentin Compson) Sim. E Quentin Compson.
"Porque tu vais-te embora, entras na universidade, Harvard pelo que sei", disse ela. "E não hás-de querer voltar e ter a vida, aqui, de um advogado em cidadezinha de província como é Jefférson, que os do Norte já se encarregaram de cá não deixar muito com que prender um rapaz. Talvez se dê que abraces a profissão das letras, que é o que têm feito muitos homens do Sul, bem-nascidos, e muitas senhoras também, e talvez um dia te lembres disto e o escrevas. Estarás casado com certeza e pode bem ser que a tua mulher queira uni vestido novo ou uma cadeira nova para a casa e tu então escrevas isto e o mandes a um magazine. Pode até ser que te lembres com saudades da velha que te obrigou a ficar uma tarde inteira metido em casa a ouvi-la falar de pessoas e casos a que tu afortunadamente escapaste, quando o que tu querias era andar por fora com os teus amigos, rapazes da tua idade."
"Sissenhora", respondeu Quentin. Mas ela diz isto só por dizer pensou ele. É só porque ela quer que um dia se conheça a história. Ainda era cedo. Ele trazia no bolso ainda o bilhete que recebera dum garoto negro pouco antes do meio-dia, pedindo-lhe que a visitasse - pedido cerimonioso, esdrúxulo, mais se diria ordem que pedido, ou chamamento, que vinha dum outro mundo quase - a bizarra folha arcaica de antigo e bom papel de carta e a caligrafia clara, pálida, apertada, onde, no espanto que lhe enviasse tal convite mulher com o triplo da sua idade e que toda a vida conhecera sem ter com ela trocado mais dum cento de palavras, ou talvez porque só tivesse ele vinte anos, Quentin não soube ler os sinais de um temperamento frio, implacável, impiedoso até. Obedeceu ao convite mal terminou a refeição do meio-dia, percorreu a meia milha que os separava pela calma poeirenta desses dias primeiros de Setembro e depois entrou na casa (também ela parecia agora mais pequena - tinha dois pisos - e quase decrépita, a precisar de pintura, mas envolvida num quê, numa aura, de soturna resistência como se mulher e casa fossem criadas para caber num mundo, completar um mundo, em tudo mais pequeno do que este em que se achavam) onde na escurecida clausura do vestíbulo mais quente que a calmosa rua, como se ali estivesse aprisionado em túmulo todo o vivo respirar de um tem@o vagaroso e padecente de calor, ido e tomado quarenta e três vezes nesses anos, um vulto pequeno de vestido preto que nem sequer bulia, e o lívido triângulo das rendas nos pulsos e no colo, e o indistinto rosto de olhar indagador e sério, o esperavam e convidavam a entrar.
É só porque ela quer que se conheça a história pensou e a leiam pessoas que ela jamais há-de ver com nomes que ela jamais há-de ouvir e que jamais ouviram pronunciar o seu nome ou de vista a conheceram, e saibam enfim por que Deus quis que perdêssemos a Guerra: que só com o sangue dos nossos homens e as lágrimas das nossas mulheres Ele podia vergar esse demónio e apagar o seu nome e a sua geração da face da terra. Ao pensá-lo porém entendeu que não seria essa a razão de ter ela mandado um tal bilhete, e logo a ele, porquê a ele, pois se quisesse apenas que a história ficasse contada, escrita, impressa, não precisava de chamar um estranho quem no tempo de seu pai (do pai de Quentin) provara ser a poetisa oficial da vila e da comarca (mesmo se os louros desse nome não tivera) quando ofereceu ao escasso número de austeros assinantes do jornal desta comarca os seus poemas, ode panegírico epitáfio, nascidos da implacável amargura de quem vencida embora continua invicta; e os poemas eram da mulher que

apenas teve por marcial parentela, bem o sabiam a vila e a comarca, um pai que, sendo objector de consciência por imposição de fé, se deixou morrer à fome no sótão da sua casa, escondido (emparedado, outros diriam) ali da polícia militar confederada e que a filha secretamente à noite alimentava, ela que ao tempo ia acumulando o seu primeiro fólio onde os vencidos da causa perdida, homens de antes quebrar que torcer, eram, nome a nome, por suas mãos embalsamados; e um sobrinho que se bateu durante quatro anos na mesma companhia com o noivo da irmã e depois o matou a tiros diante dos portões da mesma casa onde ela esperava no seu vestido de noiva em vésperas de casamento, e depois fugiu, sumiu-se, para onde não o sabia ninguém.
Três horas haviam de passar antes que fosse revelada a razão daquele convite, pois esta parte, esta primeira parte, Quentin já conhecia. Era parte da sua herança, que há vinte anos respirava o mesmo ar ouvindo o pai que falava desse homem; e também parte de uma herança de oitenta anos da vila
- de Jefferson - o mesmo ar que esse homem respirou entre esta tarde em Setembro de 1909 e aquela manhã de Domingo em Julho de 1833 quando ele entrou na vila montado no seu cavalo sem a sombra discernível de um passado e comprou terras, como as terá comprado ninguém o soube, e nelas criou porventura do nada a sua casa, a mansão, e casou com Ellen Coldfield e nela gerou dois filhos - aquela filha que antes mesmo de ser esposa foi viúva às mãos daquele filho - assim cumprindo o seu destino até ao dia de violência (de justiça, outros diriam, diria Miss Coldfield) em que morreu. Quentin sempre ouvira contar a mesma história; só os nomes eram permutáveis e o seu número quase infinito. De muitos nomes se fizera a sua infância; e o seu corpo era a câmara vazia onde ecoavam os nomes sonoros dos vencidos; ele não era um ser, uma entidade, era toda unia nação. Era a caserna habitada por fantasmas de olhos teimosamente postos no passado que, volvidos quarenta e três anos, ainda saravam a febre que fora a cura da moléstia, depois da febre acordavam sem saber ainda que fora a mesma febre que não a moléstia o inimigo tão combatido, olhavam na teimosia inconformada a moléstia além da febre, olhavam com saudade verdadeira, fracos da febre mas libertos da moléstia, sem consciência sequer de que essa libertação era o privilégio de uma impotência. ("Mas contar-me isto a mim porquê?" perguntou ele ao pai quando, ao cair da noite, por fim se libertou com a promessa de voltar por ela na charrete e pôde regressar a casa; "contar-me isto a mim porquê? Que tenho eu com isso, que esta terra ou a terra inteira ou lá o que foi um dia se fartasse daquele homem e desse cabo dele? E se deu cabo ao mesmo tempo da família dela, que tenho eu com isso? É o que nos espera a todos nós qualquer dia, seja o nosso nome Sutpen ou Coldfield ou não."
"Ah", disse Mr Compson. "Houve tempo em que nós aqui no Sul fizemos das mulheres, senhoras. Depois veio a Guerra e fez delas fantasmas. E o que mais resta a um homem, quando é homem de bem, senão escutar estes fantasmas?" Depois disse: "Queres saber a verdadeira razão por que ela te escolheu?" Estavam sentados na varanda, finda a ceia, aguardando a
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hora que Miss Coldfield. determinara para que fosse Quentin buscá-la. "É que ela precisa de quem a acompanhe - um homem, e mais, que seja um homem de bem, mas novo ainda para que faça o que ela quer, do modo como ela quer que seja feito. E escolheu-te porque o teu avô foi o único talvez a quem Sutpen quase podia chamar seu amigo na comarca, e ela crê provavelmente que Sutpen lhe terá contado o que entre ele e ela se passou, esse compromisso que não o foi, a promessa de casamento que não se cumpriu. Que terá mesmo contado ao teu avô a razão por que ela não quis afinal casar com ele. E que o teu avô me terá contado a mim e eu depois te contei. E assim, de certa maneira, tudo o que por lã aconteça esta noite, seja o que for, fica em família; o segredo (se um segredo houver) ficará guardado. Porventura j ulgará que, não fosse amigo dele o teu avô, Sutpen nunca teria granjeado uma certa posição aqui, e sem essa posição não se teria casado com Ellen. De forma que ela pensa talvez que tu serás em parte responsável, sendo neto de quem és, pelo que às mãos dele sucedeu a ela e à família dela.")
Fosse qual fosse a razão da escolha, aquela ou outra, muito, pensava Quentin, demorava ela em chegar ao ponto. Entretanto, como na proporção inversa da voz que se perdia, o invocado fantasma desse homem que ela jamais perdoou e de quem jamais alcançaria vingança, quase ganhava solidez e permanência. Circum-ambiente mas preso nos eflúvios infernais, na aura dum homem de antes quebrar que torcer, ele meditava (meditava, pensava, parecia possuir cinco sentidos como se, desapossado embora da paz
- quem já fora insensível à fadiga - que ela recusava dar-lhe, irregressível estivesse ainda, e intocado pelo poder que ela teria de lhe causar ou dano ou dor) plácido e agora manso e nem sequer muito atento - a figura do ogre que, prosseguindo a voz de Miss Coldfield, se desdobrava aos olhos de Quentin nos dois filhos meios-ogres, formando os três o fundo espectral de onde surgia a quarta sombra. Era a mãe, Ellen, a irmã morta: esta Mobe sem lágrimas que do demónio concebera como em pesadelo, que mesmo com vida e respirando não vivera e sofrendo não chorara, e tinha agora uma expressão de dor tranquila e extrema, inconsciente de si, não como se houvesse aos outros sobrevivido ou antes deles morrido, mas como se nunca tivera chegado a viver. Pareceu a Quentin que os via, os quatro, ocupando os seus lugares no retrato de família convencional da época, dignos e formais e frios, e agora os via como retrato antigo, esmaecendo, que alcançasse toda a parede atrás da voz e de cuja presença não sabia a possuidora da voz, como se ela (Miss Coldfield) nunca tivera visto a sua sala - fotografia, e grupo, até para Quentin se envolvendo em aura estranha, contraditória e bizarra; quase incompreensível, quase (até para os seus vinte anos) distorcida - um grupo cujo último elemento morrera há vinte e cinco anos e o primeiro há cinquenta, conjurado agora, na abafada treva de uma casa morta, pela soturna e implacável inclemência duma velha e o passivo enervamento de um rapaz de vinte anos que se dizia mesmo no som daquela voz Porventura é preciso conhecer muito bem uma pessoa para se conseguir amá-la mas quando se passa quarenta e três anos a odiar alguém é fatal que se conhece muito bem essa pessoa e se calhar é melhor assim se calhar é assim mesmo que ao fim de
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quarenta e três anos essa pessoa já não nos pode surpreender nem nos traz grande alegria nem grande raiva. E talvez tudo (a voz, as palavras, o incrédulo e insuportável assombro) tivesse um dia sido um grande grito, pensou Quentin, há muitos anos, quando ela era nova - um indomável grito juvenil de impenitência, de incriminação também à cegueira das circunstâncias, à selvajaria dos factos; mas já era agora: agora só existia a carne fêmea, velha, solitária e defraudada, por quarenta e três anos se encastelando no antigo insulto, na antiga impenitência traída e ultrajada pela derradeira e extrema afronta que foi a morte de Sutpen.
"Ele não era bem-nascido. Não era sequer bem-nascido. Chegou aqui com um cavalo e duas pistolas e um nome que nunca ninguém tinha ouvido nem sabia ao certo se era o seu, como não sabia se era seu o cavalo ou eram suas as pistolas, à procura de lugar para se esconder, e a comarca de Yoknapatawpha foi esse lugar*. À procura do aval de homens de bem para assim se barricar dos estranhos, os outros como ele e os que pudessem vir ainda procurá-lo, e Jefferson deu-lhe esse aval- Depois quis ser respeitado, precisou de escudar-se com mulher virtuosa, para que a sua posição na vila fosse inexpugnável mesmo para os homens que o tinham protegido, quando viesse aquele dia inevitável, a hora de se erguerem todos contra ele em desprezo e em horror, ultrajados; e foi o nosso pai, meu e de Ellen, quem lho deu. Ah, eu não estou a defender Ellen: uma pateta, romântica e cega, que só a juventude e a inexperiência poderiam desculpar, se a desculpam; uma pateta, romântica e cega e depois mulher e mãe mais cega ainda e mais pateta quando já não tinha a juventude ou a inexperiência que a pudessem desculpar, quando morria naquela casa por que vendera o seu orgulho e a sua paz sem ter ninguém, só aquela filha que era quase uma viúva sem nunca ter sido esposa e que havia de ficar viúva, sim, três anos passados sem ter sido coisa alguma, e só o filho que enjeitara o tecto que o viu nascer e onde havia de voltar apenas mais uma vez antes de sumir-se para sempre, feito um assassino, quase um fratricida; e ele, o miserável, o infame, o demónio, a combater na Virgínia, e onde melhor que na Vírgínia podia então a terra ver-se livre dele, mas Ellen bem sabia, como eu sabia também, que ele havia de voltar, que era preciso que morressem primeiro os homens todos do nosso exército antes que uma bala de trabuco ou de canhão o encontrasse; e eu, que era ainda uma criança, porque eu era uma criança, quatro anos mais nova que a sobrinha que ela me pediu para salvar, só eu a quem ela dissesse 'Protege-a. Protege ao menos a Judith'. Sim, uma pateta, romântica e cega, que não tinha sequer as cem milhas de plantação que parece terem convencido o nosso pai, nem sequer a casa grande ou a ideia que teria os escravos dia e noite a seus pés, que foi a razão por que a tia dela se deu enfim por vencida, mesmo se não convencida. Nada: só tinha o rosto dum homem que todo ele era soberba até montado a cavalo - um homem que a saber-se (incluindo o pai que lhe deu a filha em casamento) não tinha uni passado ou não se atrevia a revelar qual fora - um homem que chegou aqui, vindo sabe-se lá donde, com um cavalo e duas pistolas, e uma cáfila de brutos que ele tinha caçado por suas mãos porque ele inspirava mais terror que os próprios brutos lá na
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barbaria donde ele fugiu, e aquele arquitecto francês que antes parecia ter sido caçado e apanhado pelos negros - um homem que fugiu para cá e se escondeu, se encobriu com a respeitabilidade, com as cem milhas de terra que tomou duma tribo de índios ignorantes sabe-se lá como, e aquela casa do tamanho dum tribunal onde ele viveu três anos sem lhe pôr uma janela ou porta ou uma cama e ainda assim lhe chamou Sutpen's Hundred como se ela fora a mercê dum Rei ou a herança legítima dum senhor seu avô - uma casa, posição: uma esposa e filhos, que por serem necessários ao disfarce ele aceitou com o mais que lhe daria trato de respeito, como aceitaria o desconforto necessário e até os espinhos do mato e das roseiras bravas se ali pudesse ter achado a protecção que buscava.
"Não: não era sequer bem-nascido. E nem mesmo casado com Ellen, e nem que fosse casado com dez mil Ellens, podia ganhar o que o berço não lhe deu. Não era nem o queria ser, nem a que o tomassem por tal. Não. Para quê, se lhe bastava o nome de Ellen e do nosso pai na certidão do casamento (ou noutra carta patente que o tomasse respeitável) que todos vissem e lessem, como lhe havia de bastar a assinatura do nosso pai (ou doutro homem de bem) numa qualquer promissória, porque o nosso pai sabia quem tinha sido o seu pai no Tenessi e quem tinha sido o seu avô na Virgínia, e vizinhos nossos e todos aqui sabiam que nós sabíamos, e nós sabíamos que eles sabiam que nós sabíamos, e sabíamos também que eles teriam acreditado em nós mesmo que lhes tivéssemos mentido sobre a família ou o lugar donde viéramos, tal como lhes bastava que olhassem uma vez para ele que percebiam que ele havia de mentir sobre a família e o lugar donde viera e porquê, e pela simples razão de que ele pelos vistos era obrigado a calar-se. E o simples facto de ele se ter visto obrigado a escolher as aparências da respeitabilidade que o encobrissem já seria prova suficiente (se mais alguma prova ainda fosse necessária) de que o lugar donde ele fugira só podia ser o oposto da respeitabilidade e tão sinistro que nem ousava nomeá-lo. Porque ele era muito novo. Só tinha vinte e cinco anos e um homem de vinte e cinco anos não se conforma por sua livre vontade com as privações e fadigas de arrotear terra virgem e fazer um plantação em lugar desconhecido só por mira no dinheiro; não se conformava um rapaz novo, com um passado que não lhe interessasse revelar, no Mississipi de 1833, com um rio cheio de vapores carregados de ingénuos a cair de bêbados, cobertos de diamantes, e dispostos a jogar e a perder o algodão e os escravos antes que o vapor tocasse Nova Orleães; - não aqui, a uma distância que uma noite de galope não vencesse e tendo por única barreira ou por único embargo apenas outros miseráveis como ele ou o risco de ser posto em terra nalgum banco de areia e, quanto muito, o baraço da forca. E ele não era um filho segundo nascido em
lugar antigo e pacífico, a Virgínia por exemplo, ou a Carolina, que viesse mandado com os negros sobrantes a ocupar novas terras, porque toda a gente via que esses negros que ele tinha podiam vir (provavelmente vieram) dum lugar muito mais antigo que a Virgínia ou a Carolina, mas que não era pacífico. E a toda a gente bastava tê-lo visto uma vez para entender que, se ele pudesse escolher, teria preferido o Rio e mesmo a certeza da forca em vez
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de lançar mão ao que fez, ainda que lhe dissessem que havia um tesouro enterrado à sua espera naquelas terras que ele comprou.
"Não. Eu não estou a defender Ellen nem me quero justificar a mim. A mim então muito menos, que eu tive tempo, vinte anos, para o conhecer e a Ellen só teve cinco. E nem esses cinco ela teve porque não o conheceu, não o viu, só sabia dele e do que ele fazia por ouvir dizer, e nem sequer a metade ela sabia, porque daquilo que ele realmente fez durante esses cinco anos parece que nem a metade se sabia e o resto, homem que ao certo o soubesse não iria contá-lo à esposa quanto mais a uma menina solteira; ele chegou aqui e estendeu o tapete de saltimbanco e Jefferson pagou-lhe pelo entretenimento durante cinco anos, mais que não fosse por tê-lo protegido ao ponto de calar o que sabia na presença de senhoras. Mas eu tinha tido a vida inteira para o conhecer, porque afinal e por razões que só sabe a Divina Providência quis o destino que a minha vida acabasse numa tarde em Abril vai para quarenta e três anos, porque se alguém teve da vida nem que seja aquele pouco de antes que eu tinha, não poderá chamar vida a isto que eu tenho desde esse dia. Eu fui testemunha do que sucedeu a Ellen, à minha irmã. Ali quase em clausura, vendo aqueles filhos crescer malfadados e sem os poder salvar. Vi o preço que ela pagou por essa casa e esse orgulho; vi as promissórias do orgulho e da felicidade e da paz, e tudo o que ela tinha firmado com o seu nome quando entrou naquela noite na igreja, vencerem-se uma após outra. Vi o casamento da Judith proibido sem uma razão ou sequer a sombra dum pretexto; vi Ellen morrer sem que tivesse alguém, só eu, uma criança, a quem pedir que lhe protegesse a filha que restava; vi Henry enjeitar a sua casa e tudo o que seria seu por direito e depois vi-o aparecer para manchar o vestido de noiva da irmã com o sangue do homem que ela amava; e vi-o regressar a ele - a fonte e origem do mal que sobrevivera a todas as suas vítimas - ele, que tinha gerado esses dois filhos não só para que se destruíssem um ao outro e à sua geração mas para destruírem a minha também, e eu mesmo assim aceitei casar-me com ele.
"Não. Eu não quero justificar-me. Não me desculpo com a minha juventude, pois qual foi a criatura que, vivendo no Sul depois de 1861, homem ou mulher ou nigro ou mula, teve ocasião ou tempo sequer para ser jovem, ou pelo menos saber o que isso é pela boca dos que puderam sê-lo. Não me desculpo com a proximidade: o facto de eu, mulher e jovem e em tempo de casar, e numa altura em que os rapazes que de ordinário havia de conhecer estavam mortos quase todos nalgum campo de batalha algures, eu ter vivido por dois anos debaixo do seu tecto. Não me desculpo com a necessidade material: o facto de eu, órfã e mulher e na miséria, me ter voltado naturalmente, não a pedir o amparo mas o pão da fome, para os meus únicos parentes: a família da minha irmã que morrera: mas ninguém me pode censurar, ninguém, por eu, órfã de vinte anos e mulher e sem recursos, a quem se impunha que justificasse a sua posição naquela casa e defendesse a honra também de uma família de cujas mulheres nunca uma suspeita sequer ofendeu o bom nome, eu ter consentido na proposta de casamento, que não me desonrava, de um homem de quem eu era obrigada a aceitar que me sustentasse. E mais
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do que tudo não me desculpo comigo mesma: uma jovem a quem esse holocausto havia roubado os pais e a segurança e tudo, que tinha visto aquilo que para ela era a vida ruir aos pés dalgumas figuras com aparência de homens e nome e estatura de heróis: - uma jovem, que eu era uma jovem, atirada para o convívio diário e constante com um desses homens que, apesar do que ele em tempos fora talvez e do muito que dele se dissera, ou do que ela própria soubesse, defendera com honra durante quatro anos o chão e as tradições da terra que a viu nascer (e o homem que assim fez, fosse ele capaz das vilanias mais abjectas, teria possuído aos seus olhos, ainda que por mera associação com eles, a estatura também e a aparência dum herói) e agora regressava do mesmo holocausto que ela sofrera, sem mais nada com que pudesse enfrentar o que o futuro reservava para o Sul do que as mãos vazias e a espada que ao menos para ele nunca foi penhor de rendição, e a menção por valor militar do punho do seu Comandante-em-Chefe derrotado. Que ele era valente. Isso eu nunca neguei. Mas ver a nossa causa, até as nossas vidas, e as esperanças de futuro, e o orgulho do passado, serem assim postos em risco sem outro esteio que o de homens como ele - homens valentes e fortes mas sem piedade nem honra. Será para admirar então que Deus tenha consentido na nossa derrota?"
"Nossenhora", disse Quentin. "Mas ter sido o nosso pai, meu pai e de Ellen, de todos os homens que ele conhecia, de todos aqueles que usavam lá ir beber e jogar e vê-lo combater com aqueles cafres*, homens com filhas que ele bem podia ter ganho às cartas. Mas ter sido o nosso pai. Como pôde ele ter-se abeirado do papá, com que pretexto; o que poderia ter havido entre eles, para além da usual cortesia de dois homens que se encontrassem na rua, entre um homem que veio sabe-se lá donde ou de onde não ousava ele revelar, e o papá - mordomo da congregação Metodista, um comerciante que não era rico e nada poderia ter feito, nada, para ajudar na situação ou nos desejos de fortuna desse homem e que não possuía, e não é preciso ter muita imaginação para o perceber, alguma coisa que ele tivesse ambicionado ou fosse mais preciosa do que o pó do seu caminho - um homem que não tinha terras nem escravos à excepção das duas criadas de dentro a quem ele deu alforria
tomou ao serviço, ou que as comprou, e não bebia nem jogava; - o que podia ter havido entre um homem que eu sei de certeza que não pôs os pés numa igreja de Jefferson mais que três vezes na vida - uma quando viu Ellen, uma quando ensaiaram o casamento, uma quando o celebraram; - esse homem que bastava olhar-se para ele para entender que mesmo aparentando nada possuir de seu agora fora habituado a ter dinheiro e fazia tenções de voltar a tê-lo, e não sentiria escrúpulos da forma de o ganhar - e ser esse homem a descobrir Ellen numa igreja. Porque foi na igreja; como se houvesse uma fatalidade e uma qualquer maldição ameaçando a nossa família e até Deus quisesse vê-las cumpridas e o cálice bebido até às fezes. Sim, fatalidade e maldição, sobre o Sul e sobre a nossa família, como se fosse castigo por algum antepassado nosso resolver que a sua descendência havia de se gerar numa terra escolhida pela fatalidade e já amaldiçoada, mesmo que tivera
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sido outra família que não a nossa, os antepassados do nosso pai, a chamar sobre si a maldição há muitos e muitos anos e a ser forçada por Deus a ganhar raízes numa terra e num tempo já malditos. E até eu, criança pequena que não sabia de nada, embora Ellen fosse minha irmã e Henry e Judith meus sobrinhos, eu não podia lá ir salvo se o papá ou a tia me levava nem tinha ordem de brincar com Henry e Judith a não ser dentro de casa (e isto não era porque eu tivesse menos quatro anos que Judith e menos seis que Henry: pois não foi a mim que Ellen disse ao morrer: 'Protege-os'?) - até eu estranhava e dizia para comigo, que pecado fora o do nosso pai, ou do pai do nosso pai, antes de ele casar com a nossa mãe para que Ellen e eu tivéssemos de o expiar assim e o sacrifício de uma não bastasse; qual fora o crime que obrigara a nossa família amaldiçoada a ser o instrumento não só da destruição desse homem como da nossa também."
"Sissenhora", disse Quentin. "Sim", disse a voz serena e soturna para além do imóvel triângulo das indistintas rendas; e agora, entre os espectros absortos e dignos, parecia a Quentin que via um vulto surgindo, menina de saia gravezinha e calças de folhos e tranças, gravezinhas e dignas, do tempo morto. Ela parecia olhar, espreitar, atrás da cuidada cerca, na austeridade mediana dum acanhado pátio ou jardim, o mundo que via assustador e era a pacata rua de aldeia, com essa expressão comum às crianças que nascem muitos anos depois de se casarem os pais e estão condenadas a julgar todo o comportamento humano pelas inúteis e complexas loucuras dos adultos - uma expressão de Cassandra, sem um sorriso, e profundamente, severamente profética, desproporcional à idade verdadeira de uma criança mesmo a dessa criança que nunca o foi. "Porque eu já vim tarde a este mundo. Nasci com vinte e dois anos de atraso - uma criança para quem, por escutar escondida as conversas dos adultos, o rosto da própria irmã e os rostos dos filhos dela se haviam tornado iguais aos dos ogres duma história contada entre a ceia e a hora do sono, isto muito antes de eu ter idade ou tamanho ou licença para brincar com eles, mas essa mesma criança para quem se havia de voltar enfim aquela irmã já no seu leito de morte, com o filho sumido e a filha condenada a ser viúva antes mesmo de ser esposa, e dizer: 'Protege-a a ela ao menos. Ao menos salva Judith'. Uma criança, e no entanto que instinto natural ou concedida graça poderia ter ditado essa resposta que a experimentada sabedoria dos seus maiores pelos vistos não soube dar: 'Protegê-la? De quê, de quem? Ele já lhes deu a vida: não precisa de lhes fazer maior mal. É de si mesmos que eles precisam protecção'."
Devia estar a tarde adiantada; devia ser tarde já, e no entanto as louras feridas palpitantes de poeira não se adufavam mais altas no impalpável muro de treva que um do outro os separava; o sol parecia não se ter movido quase. Tudo (as palavras, a narrativa) lhe estava (a Quentin) parecendo comungar dessa condição que da lógica e da razão escarnece num sonho que o sonhador sabe ter por força acontecido, nado-morto e completo, num só segundo, embora essa mesma condição, que ao sonho basta para levar o sonhador (verosimilhança) à credulidade - horror ou prazer ou assombro - esteja
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dependente por inteiro de um formal reconhecimento e duma aceitação de ter decorrido o tempo e decorrer no sonho como na música ou num conto que se lê. "Sim. Eu já vim tarde a este mundo. Fui uma criança que iria lembrar-se daqueles três rostos (e do dele também) tal como os viu pela primeira vez na carruagem, nessa manhã de domingo, o dia em que esta vila por fim compreendeu que ele tinha transformado o caminho de Sutpein's Hundred à igreja numa pista de cavalos. Eu estava então com três anos, e sem dúvida já os teria visto; devo ter visto. Mas não me lembro. Nem me lembro sequer de ter visto Ellen antes desse domingo. Era como se a irmã que eu nunca vira, que antes de eu nascer se perdera no castelo dum ogre ou génio-mau, voltasse agora, pela concessão dum dia apenas, ao mundo que deixara, e eu uma criança de três anos, cedo acordada porque era dia grande, vestida e encanudada como se fosse Natal, porque esse era um dia mais solene até que o dia de Natal, porque nesse dia enfim o ogre ou génio-mau condescendia, por atenção à mulher e aos filhos, em vir à igreja, permitindo assim que eles se aproximassem ao menos das raias da salvação, e que Ellen tivesse ao menos o ensejo de lutar contra ele pelas almas daqueles filhos num lugar onde ela teria o amparo não só do Céu como da família e das pessoas do seu meio; sim, que nesse domingo ele sujeitava-se até à redenção ou na falta disso curvava-se de momento à galhardia, embora continuasse irregenerado. Era isto o que eu esperava. Era isto o que eu já via, aguardando na porta da igreja, entre o papá e a nossa tia, que chegasse a carruagem daquelas doze milhas de jornada. E embora eu já tivesse com certeza visto Ellen e os filhos, esta é a visão desse momento em que primeiro os vi e que hei-de levar comigo paira a cova: um vislumbre, como as nuvens anunciando o tornado, da carruagem e do altivo rosto branco de Ellen, que seguia dentro, e as duas réplicas do rosto dele em miniatura que a ladeavam, e na boleia o rosto do cafre que vinha a guiar, e ele, o rosto dele que era tal e qual o do negro salvo nos dentes (isto com certeza porque ele usava barbas) - tudo numa fúria e num trovão de cavalos desenfreados e de poeira e de galope.
"Ah, quantos não havia que o acirravam, seus cúmplices todos, a fazer daquilo uma carreira; eram dez horas da manhã de domingo, a carruagem corna sobre duas rodas até alcançar a porta da igreja, com aquele cafre em
vestiduras cristãs tal e qual um tigre de circo vestido com guarda-pó de linho e chapéu alto, e Ellen sem pinta de sangue na cara, abraçando aqueles filhos que não choravam nem lhe pediam abraços, que a ladeavam, perfeitamente imóveis, mostrando nos rostos a infantil maldade que naquele dia nós não compreendemos. Ali, quantos não havia que o acirravam sim, seus cúmplices; nem mesmo ele seria capaz de fazer corridas de cavalos se não tivesse contra quem correr, Porque não foi a opinião pública, não, quem o deteve, nem sequer os homens que talvez tivessem mulheres e filhos nessas mesmas carruagens que se podiam virar na carreira e cair pelos barrancos: foi o ministro de Deus que o deteve, falando em nome das mulheres e das crianças de Jefferson e da comarca de Yoknapatawpha. Por isso ele deixou de ir à igreja; agora só vinha Ellen com os filhos ao domingo na carruagem, e por isso nós agora pelo menos descansávamos, que apostas não as haveria, pois
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ninguém poderia afirmar que isto fosse ou não fosse realmente uma corrida, porque, ausente o rosto dele, vinha só o rosto perfeitamente inescrutável do cafre com os dentes a reluzir, e ninguém sabia ao certo se isto era uma corrida ou vinham os cavalos desembestados, e se triunfo existia era nesse rosto que ficara longe, a doze milhas, em Sutpen's Hundred, e para triunfar não carecia de ver ou estar presente. Era o negro quem, no acto de ultrapassar alguma carruagem, falava agora com a outra parelha e com a sua - um falar sem palavras, que dispensava talvez as palavras, nessa língua que era a lama do chão nos pântanos em que eles dormiam e foi trazida para cá dalgum pântano sinistro onde ele os encontrou e de onde os trouxe para cá: - a poeira, o trovão, a carruagem precipitando-se até à porta da igreja, enquanto mulheres e crianças gritando se espalhavam à frente dos cavalos e os homens agarravam as bridas da outra parelha. E o negro abria a porta para que saíssem Ellen e os filhos e levava a carruagem de volta à devesa, desatrelava a parelha e batia nos cavalos por terem tomado o freio nos dentes; houve até uma vez em que um coitado quis meter-se de permeio e o negro voltou-se para ele de vara alçada e num arreganho disse Taterão mandá; eu bedecê. Sô vai tendê-se com Paterão'*.
"Sim. De si mesmos; deles mesmos. E desta vez não foi sequer o ministro. Foi Ellen. A nossa tia e o papá conversavam e eu entrei e a tia disse 'Vai lá para fora brincar', e mesmo não conseguindo ouvir nada atrás da porta eu seria capaz de repetir palavra por palavra o que disseram: 'A tua filha, a tua própria filha', disse a nossa tia; e o papá, 'Sim. É minha filha. Quando ela quiser que eu interfira, ela própria mo dirá'. Porque naquele domingo, quando Ellen e os filhos saíram a porta da frente, não era a carruagem que os esperava mas o faetonte de Ellen com a velha égua mansa que ela própria guiava, e em lugar do cafre estava o cavalariço que ele tinha comprado. E Judith viu o faetonte e percebeu tudo e começou a gritar, e a gritar e esperneando a levaram para dentro e a meteram na cairia. Não, ele não estava presente. Nem digo que estivesse da janela a gozar o seu triunfo, espreitando atrás da cortina. Se estivesse provavelmente ficaria tão espantado quanto nós, porque nós todos agora percebíamos que era preciso arrostar com algo mais do que as birras ou até os nervos duma criança: que o rosto dele estivera sempre na carruagem; que fora Judidi, uma menina de seis anos, quem instigara e autorizara aquele negro a levar desenfreada a parelha. Não Henry, porque o Henry não foi; não foi o rapaz, o que já seria atrevimento bastante; mas Judith, a menina. Assim que o papá e eu passámos o portão naquela tarde e começámos a subir a alameda em direcção à casa, eu senti. Era como se algures no sossego e na paz desse domingo à tarde ainda existissem os gritos dessa criança, ainda persistissem, já não o som mas alguma coisa que só a pele pode ouvir, só o arrepio conhece. Mas eu não perguntei logo. Eu só teria uns quatro anos; deixei-me ficar na charrete com o papá, como ficara à porta da igreja entre ele e a nossa tia nesse primeiro domingo em que me vestiram para eu ir ver a núnha irmã e os meus sobrinhos pela primeira vez, a olhar para a casa (também já lá tinha estado com certeza, mas quando a vi, nessa primeira vez de que me lembro, pareceu-me que já sabia como seria aquela
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casa, como nesse outro domingo me parecera já saber como seriam Ellen e Judith e Henry antes mesmo que os visse na vez que sempre lembrarei como a primeira). Não, eu não perguntava nada ainda, só olhava aquela casa enorme e sossegada, e dizia 'Papá, qual é o quarto onde a Judith está doente?' com essa aptidão serena das crianças para aceitarem o inexplicável, embora eu
hoje saiba que mesmo nessa tarde eu já me perguntava o que teria visto Judith quando saiu a porta e encontrou o faetonte em vez da carruagem, o cavalariço caparoeiro em vez do bruto; o que teria ela visto nesse faetonte que a todos nós pareceu tão inocente - ou pior, o que não vira ela quando viu o
faetonte e começou a gritar. Sim, era uma tarde serena de domingo, quieta e quente como a de hoje; ainda me lembro da quietação absoluta dessa casa
quando entrámos e pela qual eu percebi que ele estava ausente, sem saber que a essa hora estava ele no parreiral de scuppernongs* a beber com Wash Jones. Eu só sabia, assim que o papá passou a porta comigo, que ele não estava em casa: como se por alguma convicção de quase omnisciência (o mesmo conhecimento instintivo das coisas que me permitiu dizer a Ellen que não era dele que Judith carecia de ser protegida) eu soubesse que ele não tinha de ficar em casa para dali gozar o seu triunfo - e isto, em comparação com o que havia de vir, tão comezinho era que nem o nosso reparo merecia. Sim, o silencioso quarto escuro, de tabuinhas fechadas, a negra sentada junto à cairia com um leque, e o rosto branco de Judith na almofada com um parche de cânfora, dormindo, supunha eu: possivelmente dormia, ou chama-se dormir a isto: e o rosto de Ellen, branco, sereno, e o papá a dizer 'Rosa, vai à procura do Henry e pergunta-lhe se ele não quer brincar contigo' e eu saí, mas fiquei junto à porta silenciosa no silêncio do corredor do primeiro andar, porque temia afastar-me da porta, porque ouvia o silêncio, e o silêncio daquela casa em dia santo era mais sonoro que o trovão, mais sonoro até do que um riso de triunfo.
"'Pensa nos teus filhos', disse o papá. "'Pensar nos meus filhos?', disse Ellen. 'Que outra coisa faço eu senão pensar? Que outra coisa faço eu nas noites que passo em claro senão pensar nos meus filhos?' Nem o papá disse, Vem lá para casa, nem disse a Ellen, Volto para casa. Isto passou-se antes de ser moda reparar os nossos erros voltando as costas e fugindo. Eram só as duas vozes murmuradas além da porta cega, que pelo tom bem poderiam estar comentando a página dum magazine; e eu, uma criança, colada àquela porta e muito quieta como se quisesse confundir-me com a madeira escura e assim me tomar invisível, feita camaleão, ouvindo a alma, a presença viva dessa casa, pois alguma coisa passara da vida de Ellen e do seu respirar, e do dele também, para a casa que respirava num som neutro e longo de vitória e desespero, de triunfo e de terror.
"'Tu gostas desse - ', disse o papá. "Tapá', disse Ellen. Não disse mais nada. Mas eu via o seu rosto, e tão nitidamente como o papá o veria, e nele essa mesma expressão que tivera na carruagem nesse primeiro domingo, e nos outros. Depois uma criada veio dizer que a charrete estava à espera.
"Sim, de si mesmos. Não dele, não de outrem, que salvá-los ninguém
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poderia, nem ele. Porque ele agora mostrava por que não lhe merecera um reparo aquele triunfo. Mostrava a Ellen, está visto: não a mim. Eu não estava lá; tinham-se passado seis anos e eu mal o vira entretanto. A nossa tia fora-se e era eu quem governava agora a casa. Uma vez ao ano se tanto ia o papá comigo lá jantar, e quatro vezes ao ano se tanto vinham Ellen e os filhos passar o dia connosco. Ele não; que eu saiba, nunca mais ele voltou a pôr aqui os pés depois de casado com Ellen. Eu era muito novinha nesse tempo: e tanto, que ainda julgava que ele teria alguma coisa teimosa a roê-lo, que até ele podia ter remorsos. Mas hoje eu sei que não tinha. Hoje eu sei que era simplesmente porque desde a noite em que o papá fez dele um homem respeitável dando-lhe a filha em casamento nada mais havia nesta casa que ele cobiçasse, e por isso nem sequer a simples gratidão, quanto mais as aparências, o levariam a renunciar aos seus prazeres a ponto de vir sentar-se à mesa da família da mulher. E eu poucas vezes o vi. Não tinha agora tempo de brincar, mesmo que nisso alguma vez fizesse gosto. Nunca tinha aprendido a brincar e agora não via razão para aprender ainda que tivesse tempo.
"Tinham-se passado então seis anos, embora isto não fosse em realidade segredo para Ellen porque já durava ao que parece desde o dia em que ele cravou o derradeiro prego na casa, a única diferença entre os tempos de agora e os seus tempos de solteiro seria que hoje atrelavam-se as parelhas e selavam-se os cavalos e mulas no arvoredo além da cavalariça, atravessando então os homens o pasto sem que da casa os vissem. Porque vinham muitos ainda; era como se Deus, ou o diabo, se aproveitasse dos vícios daquele homem para dar as testemunhas de que a nossa maldição era cumprida, testemunhas não só entre os homens de bem, pessoas do nosso meio, como entre a escumalha mais baixa e a ralé, que não podiam noutras quaisquer circunstâncias aproximar-se da casa nem pela porta das traseiras. Sim, Ellen e os dois filhos sozinhos naquela casa a doze milhas da povoação, e na cavalariça um quadrado feito de rostos à luz da lanterna, os rostos brancos formando três lados, os pretos o outro, e no meio os dois cafres combatendo, nus, combatendo não como se batem homens brancos, com armas e regras, mas como os negros se batem para fazer mal, que é depressa e a doer. Ellen sabia, ou julgava que sabia; mas não sabia afinal. Aceitava - não por se conformar mas aceitava - como se fosse possível dar tréguas ao ultraje e aceitar quase com gratidão e dizer, Graças a Deus que não é pior do que isto; ao menos agora sei tudo - e pensando assim, agarrando-se àquela ideia correu à cavalariça nessa noite, e os homens que tinham entrado furtivamente pelas traseiras recuavam à sua frente, movidos por algum resto de decência ao menos, e Ellen viu não os dois brutos que esperava ali ver mas um homem branco e um preto, nus ambos até à cintura, os dedos de um fincados nas órbitas do outro, como se um e outro fossem da mesma cor e até pêlos de fera os cobrissem por igual. Sim. Parece que em certas ocasiões, talvez no fim da sessão, do espectáculo, como apoteose ou talvez por mera e fatal premeditação de conservar o seu domínio, a supremacia, ele entrava no ringue em luta com um dos negros. Sim. Foi isto o que Ellen viu: o marido e pai dos seus filhos ofegante e nu e ensanguentado até à cintura e o negro, que
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nesse preciso momento caíra, jazendo a seus pés e escorrendo sangue também, só que no negro parecia apenas suor, ou sebo - Ellen a sair de casa a correr, de cabeça descoberta, a descer a ladeira correndo, a tempo de ouvir o som, a gritaria, a ouvi-la enquanto corria ainda na treva e antes que os espectadores compreendessem que ela se encontrava ali, ouvindo já, antes que lembrasse um deles dizer um cavalo, depois 'É uma mulher', depois 'Santo Deus, é uma criança' - irrompendo ali, e os espectadores recuando à sua frente, deixando-a ver Henry que se livrara dos negros que o prendiam e gritava, em arrancos de vómitos - correndo sem parar, sem olhar sequer os homens que se encolhiam agora à sua passagem e depois se afastaram quando ela ajoelhou no esterco da cavalariça para levantar Henry, e sem olhar Henry sequer, mas de olhos fitos nele, que arreganhava agora os dentes por baixo da barba enquanto um outro negro limpava o sangue do seu
corpo com uma saca de estopa. 'Hão-de nos dar licença, meus senhores', disse Ellen. Mas eles já debandavam, nigros e brancos, escapulindo-se tão de furto como haviam chegado, e Ellen sem os ver tão-pouco, ajoelhando-se no chão com Henry nos braços dela chorando, e ele na mesma, e um terceiro nigro a estender-lhe a medo o casaco ou a camisa como se o casaco fosse um pau e ele uma serpente enjaulada. 'Thomas, onde está a Judith?', disse Ellen.
"'A Judith?' tomou ele. Não, ele não estava a mentir; o seu triunfo tinha-o já superado; edificara no mal ainda melhor do que esperava. 'A Judith? Não está na camaT
",Thomas, não mintas', disse Ellen. 'Ainda posso admitir que tenhas trazido Henry aqui para ver isto, e quisesses que ele visse; hei-de fazer por compreender; sim, hei-de fazer a diligência de compreender. Mas Judith não, Thomas. A minha pequenina, Thomas, não.'
"'Não sei se me irás compreender', disse ele. 'Porque és mulher. Mas eu não trouxe a Judith para aqui. Nunca eu faria uma coisa dessas. Não conto muito que me acredites. Mas eu juro que não trouxe.'
"'Quem me dera poder acreditar em W, disse Ellen. 'Eu quero acreditar em ti.' Depois começou a chamar. 'Judith!' chamava ela numa voz doce e calma e cheia de desespero. 'Judith, minha flor! Vamos para a caminha que são horas.'
"Mas eu não estava lá. Eu não estava lá para ver os dois rostos de Sutpen desta vez - um que era o de Judith, e o outro que era o da rapariga negra a
seu lado - olhando cá para baixo pela abertura quadrada do palheiro."
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Era um Verão de glicínias. No aroma delas se fazia noite como no cheiro do charuto de seu pai, sentados que estavam ambos na varanda fronteira da casa, finda a ceia, aguardando a hora de pôr-se Quentin a caminho, enquanto em baixo, nas brenhas altas do jardim, os vaga-lumes vagavam no sopro do ar em suave acaso - o aroma, a fragrância, que cinco meses passados a carta de Mr Compson havia de levar do Mississipi, galgando as neves cerradas, longas, da Nova Inglaterra à saleta de Quentin em Harvard. Era também esse um dia de escutar - perceber, escutar ainda em 1909 quase os mesmos sons ouvidos e conhecidos desde que nascera e respirara, como respirando estava, o mesmo ar que havia trazido aquele tanger dos sinos por essa manhã de domingo em 1833 (e, aos domingos, ouvir ainda, escutar, um dos três primitivos sinos do mesmo campanário onde se entufavam e arrulhavam descendentes dos mesmos pombos, ou em curtos voos volteavam como delicadas, fluidas, manchas de tinta no delicado céu de Verão);
- essa manhã de domingo em Junho com os sinos a tocar pacíficos e peremptórios e levemente cacófonos - as congregações dos homens postas em acordo se não em harmonia - com senhoras e crianças, e a criadagem negra levando sombrinhas e enxota-moscas, e alguns homens até (as senhoras rodando nas saias de balão, por entre as casimiras miniaturais dos rapazinhos e as calças de folhos das meninas, as saias de um tempo em que a mulher não pisava, flutuava) quando os outros homens na varanda da Holston House, pés assentes no varão, erguendo os olhos viram o forasteiro. Já ele vinha a meio da praça quando o viram, montado no grande cavalo ruano, exausto da jornada, animal e homem surgindo ali como por encantamento e postos no grande sol de um domingo de Verão em meio dum trote descompassado e lasso - rosto e cavalo que antes nenhum dos homens tinha visto, nome que nenhum tinha ouvido, origens e intenções que poucos haviam de conhecer. Por isso nas quatro semanas que se seguiram Gefferson era nesse tempo uma aldeia: a Holston House, o tribunal da comarca, seis lojas, um ferreiro e a alquilaria, uma taberna frequentada por boieiros e vendedores ambulantes, mais três igrejas e umas trinta casas) o nome do foras- 24

teiro andou de boca em boca pelos lugares de trabalho como de ócio e pelas casas, em estrofe e antístrofe continuamente repetido: Sutpen. Siapen. Sutpen. Sutpen.
Além desse pouco a vila mais não soube durante quase um mês. Dizia-se que ele viera do Sul - um homem dos seus vinte e cinco anos, como viria a saber-se depois, que nessa altura a sua idade ninguém podia adivinhá-la, que nessa altura ele tinha o aspecto de quem estivera doente. Não de quem estivera serenamente enfermo em sua cama e recuperasse o andar tímido e hesitante de pasmo no mundo que se vira prestes a deixar, mas de quem tivesse experimentado um solitário e doloroso transe que fosse mais que a mera febre, como o explorador, digamos, que para além de enfrentar os esperados sacrifícios da empresa escolhida foi também surpreendido por imprevisto apuro, a febre, e com a febre e na febre lutou em grande padecimento não do corpo mas da alma, sem ajuda nem socorro, e não por vontade cega e instintiva de resistir e sobreviver mas para ganhar o gozo e a posse do galardão material por que tinha aceitado o repto. Um homem de grande estatura mas agora emagrecido, quase emaciado, com
uma barba curta e arruivada, quase um embuço, e acima dela uns olhos mortiços que eram a um tempo visionários e despertos, cruéis e plácidos, num rosto cuja carnação tinha a cor do barro, a cor talvez da tamanha febre, fosse da alma ou do lugar, em tons mais fortes do que poderia dar-lhe o sol, sob uma face impenetrável e inerte como a do barro vidrado. Foi isto o que eles viram, conquanto vários anos se passassem antes de saber a vila que isto era tudo quanto ele possuía nesse tempo - o cavalo poderoso e exausto, e o fato do corpo, e um pequeno alforge onde mal caberia a muda de roupa branca e as navalhas de barba, e as duas pistolas que Miss Coldfield mencionou a Quentin, de coronhas polidas como
cabos de picareta, que ele manejava com a precisão de agulhas de meia; o avô de Quentin viu-o mais tarde rodear a meio galope um madeiro novo e à distância de vinte pés cravar duas balas na carta de jogar presa ao
tronco. Tinha ele tomado um quarto na HoIston House, mas trazia sempre consigo a chave, e todas as manhãs tratava do ruano e o selava e antes de romper o sol partia, mas para onde não o sabia ninguém talvez porque ele dera aquela exibição de tiro ao alvo logo ao terceiro dia de estar na vila. Assim, tiveram os homens de lançar mão dum interrogatório em
forma que pudesse alguma coisa descobrir e que forçosamente havia de ser feito à noite, à mesa da HoIston House ou no salão por onde ele teria de passar antes de trancar-se novamente no quarto, como era costume seu, mal terminava a ceia. Comunicava o bar também com o salão, e seria esse ou deveria ter sido o lugar da conversa, do interrogatório, isto se ele frequentasse o bar. Mas ele não bebia nada, assim o dissera por resposta. Não disse que tivera o hábito e o deixara, ou que jamais provara gota de qualquer espécie. Respondera apenas que não bebia nada; só anos passados o
avô de Quentin (também ele era novo nesse tempo; só anos passados seria o general Compson) veio a saber que Sutpen não bebia unicamente porque não tinha dinheiro com que pagar a sua parte ou retribuir o ofereci- 25

mento: foi o general Compson quem primeiro compreendeu que nesta altura faltava a Sutpen não só o dinheiro para gastar em rodadas e cavaco, mas o tempo e a disposição também: que nesta altura ele era em tudo o escravo de uma secreta e furiosa impaciência, de uma convicção nascida naquele transe recente, fosse ele qual fosse - a febre, mental ou física de que era forçoso apressar-se, de que o tempo lhe fugia, uma força que havia de arrastá-lo nos cinco anos seguintes - pelas contas do general Compson, até aproximadamente nove meses antes de nascer o filho.
E eles então apanhavam, encurralavam, Sutpen no salão, entre a mesa da ceia e a porta do seu quarto, para assim lhe dar ensejo de contar quem era e de onde vinha e o que pretendia dali, ao que ele, passo a passo, com firmeza, recuava até nas costas sentir alguma coisa - um pilar, uma parede e então se deixava estar, dizendo, afável e cortês como empregado de hotel, as palavras que absolutamente nada revelavam. Foi pelo agente para os índios Chickasaws *, corri quem ou através de quem ele tratava, e por conseguinte só quando o homem veio acordar a Conservatória da comarca nessa noite de sábado com a escritura, o título de posse das terras, e a moeda espanhola de ouro, que a vila soube quem era o proprietário das cem milhas quadradas da melhor terra virgem de aluvião das redondezas, conquanto mesmo essa notícia tarde chegasse pois Sutperi tinha partido, e para onde partira mais uma vez não o sabia ninguém. Mas ele era agora proprietário de terras na comarca e alguns homens entraram em supor o mesmo que o general Compson porventura já sabia: que a moeda espanhola com que pagara o registo era a última, de ouro ou outro metal, que ele possuía. Assim tinham eles a certeza agora de que, se ele partira, mais moedas ele buscava; entraram alguns até em conjecturar (e dizer em voz alta, pois ele estava ausente) o mesmo que disse a Quentin, quase oitenta anos depois, a futura cunhada de Sutpen, nesse tempo ainda por nascer: que ele teria descoberto um modo original e prático de esconder o que pilhasse e voltava agora à cafua para atestar a bolsa, ou voltaria com as pistolas ao Rio e aos vapores onde se apinhavam jogadores profissionais e negociantes de algodão ou de escravos para ter com que atestar a cafua. Pelo menos era isto o que diziam alguns à boca pequena quando ele voltou, passados dois meses, inesperadamente como era seu costume, e desta vez acompanhado pela carroça coberta que um negro guiava e onde vinha, com o negro no banco, uni homem pequeno, olhos vivos de resignação, rosto soturno e atormentado e latino, de sobrecasaca e colete de ramagens e um chapéu que não fariam furor nos bulevares de Paris e ele havia de trazer constantemente por esses dois anos - o trajar melancólico, teatral, e o rictus da face, decidido, entre fatalista e assombrado - enquanto o seu cliente branco e a companha dos negros que ele viera aconselhar, mas não dirigir, andavam nus e cobertos apenas de lama seca. Era o arquitecto francês, Passados anos a vila soube que ele viera das lonjuras da Martinica só confiado na palavra de Sutpen, e por dois anos comera apenas carne de veado cozinhada na fogueira do acampamento, e dormira no chão, em tenda feita com a cobertura da carroça, antes de ver nem que fosse a cor e a matéria do seu ganho. E que até passar de novo na vila a caminho de Nova Orleães, dois
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anos depois, nem sequer à vila voltara; ele não vinha, ou Sutpen não o trazia nas raras vezes que em Jefferson era visto, e nesse primeiro dia não tivera o francês grande vagar para conhecer a povoação porque a carroça não parou. Terá sido talvez um mero acaso geográfico haver Sutpen atravessado a vila, interrompendo a jornada apenas o tempo suficiente para que alguém (que não o general Compson) fosse espreitar o que escondia a cobertura da carroça e visse um negro túnel cheio de olhos quietos, que tresandava a covil de lobos.
Mas a lenda dos cafres de Sutpen não havia de nascer então, pois a carroça continuou caminho como se a própria madeira, o próprio ferro de que era feita, e as mulas que a puxavam, se tivessem imbuído, por simples associação com ele, dessa mesma força descarnada e infatigável, dessa convicção de ser pouco o tempo e muita a pressa; mais tarde Sutpen diria ao avô de Quentin que nessa tarde em que atravessaram Jefferson vinham todos com fome de véspera e ele queria chegar a Sutpen's Hundred e à chá do rio a tempo de matar algum veado antes que escurecesse para que ele e o arquitecto e os negros não tivessem de passar outra noite sem comer. Assim a lenda dos cafres veio de lá aos poucos alcançando a vila, trazida por homens que saíam a cavalo a ver o que por lá se passaria e começaram a contar que Sutpen, se postava com as pistolas junto ao trilho da caça e mandava os negros baterem o pântano como se fossem matilha de cães; e contaram ainda que no primeiro Verão e no primeiro Outono ali passados, os negros nem sequer tinham (ou não usavam) mantas em que dormissem, antes mesmo de Akers, o caçador de guaxinins, proclamar que tinha espantado um deles, como jacaré adormecido na imensa lama, gritando porém a tempo. Não falavam ainda inglês os negros e outros havia com certeza além de Akers que não reconheciam na linguagem em que eles e Sutpen comunicavam uma espécie do francês e a supunham língua sinistra e fatal, Muitos outros havia além de Akers, embora estes fossem respeitáveis cidadãos e proprietários de terras e portanto não precisassem de rondar o acampamento à noite. Com efeito, e tanto contara Miss Coldfield a Quentin, estes formavam grupos que se reuniam na HoIston House e partiam a cavalo, muitas vezes levando famel. Sutpen tinha construído um forno de cozer tijolo e instalado a serra e a plaina que trouxera na carroça - um cabrestante com um longo balanceiro que era o tronco dum madeiro novo, a que a parelha da carroça e os negros à vez, e até ele quando era preciso, quando afrouxava o maquinismo, se atrelavam - como se os negros fossem na verdade brutos; o coronel Compson contou ao filho, o pai de Quentin, que Sutpen, enquanto os negros trabalhavam, não levantava nunca a voz, antes os dirigia, os impressionava no exacto momento psicológico, pelo exemplo, por um ascendente de brandura que não de terror. Sem desmontar (habitualmente Sutpen não os cumprimentava sequer com um aceno de cabeça, aparentando ter por eles tanta indiferença como por meras sombras) eles permaneciam num grupo cerrado, curioso e quieto, como se mutuamente quisessem proteger-se, e vigiavam a mansão que se erguia, trazida tábua por tábua e tijolo por tijolo do pântano onde o barro e os madeiros esperavam
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- o branco barbado e os vinte pretos, e todos igualmente, completamente, nus e apenas cobertos dessa lama que de tudo se apossando era omnipresente. Por serem homens não reparavam tais espectadores que a vestimenta usada por Sutpen quando chegou à vila era o único fato que lhe conheciam, e poucas eram as mulheres da comarca a tê-lo visto alguma vez. Se assim não fora, qualquer delas teria então adivinhado, como depois Miss Coldfield, que ele procurava poupar o fato pois a decência, se não mesmo a elegância do traje, seria a única arma (ou melhor, a escada) com que havia de enfim tomar de assalto aquilo que para Miss Coldfield e talvez também para outros era a respeitabilidade - essa que, na opinião do general Compson, se compunha no secreto íntimo de Sutpen de muito mais do que a mera aquisição de uma dama para o seu palácio. Assim trabalhavam, ele e os vinte negros, lado a lado, cobrindo-se da lama que os protegia dos mosquitos e apenas, como contara a Quentin Miss Coldfield, se distinguindo ele dos negros pelas barbas e pelos olhos, e de todos o arquitecto francês pela sua aparência de criatura humana que lhe davam as roupas francesas constantemente usadas com uni quê de fatalidade invencível até ao dia em
que, tendo ficado na véspera a casa pronta à excepção das vidraças e das ferragens que eles não podiam fazer por suas mãos, o arquitecto partiu trabalhavam no sol e na calma do Verão, como na lama e no gelo do Inverno, com uma fúria inquebrantável e serena.
Tanto lhe custou dois anos, a ele e à companha dos escravos importados que os habitantes da terra de adopção tinham ainda por muito mais perigosos do que uma besta-fera que ele pudesse caçar e abater naquelas redondezas. Trabalhavam de sol a sol, enquanto o grupo de cavaleiros ali vinha e
ficava quietamente vigiando, e o arquitecto, casaca de cerimónia e chapéu de Paris e expressão de soturno e amargurado assombro, rondava as cercanias da cena, vulto em que se confundiam espectador casual em amargo desinteresse e fantasma consciencioso e condenado - em assombro, dissera o general Compson, não tanto pelos outros e pelo que eles faziam como por ele mesmo, em assombro pelo facto inexplicável e incrível da sua presença ali. Um bom arquitecto era ele, porém; Quentin conhecia a casa, erguendo-se, a doze milhas de Jefferson, na sua mata de cedros e carvalhos, setenta e cinco anos depois de ter sido terminada. E não apenas arquitecto, dissera o general Compson, mas um artista deveras, que só um artista poderia ter suportado esses dois anos para levar a termo a construção de uma casa que ele próprio sem dúvida esperava, ou assentara, terminante, nunca mais voltar a ver. Suportado, o general Compson o dissera, não o sofrimento imposto à inteligência e o ultraje à sensibilidade desses dois anos, mas Sutpen ele mesmo: que só um artista poderia ter suportado a desumanidade e a pressa de Sutpen e ainda assim domar o sonho de soturna e apalaçada pompa que era a ambição óbvia de Sutpen, pois a casa, tal como a imaginara Sutpen, teria sido tão vasta quanto a Jefferson desse tempo; que o estrangeiro miúdo, soturno, atormentado, sozinho dera batalha e sozinho vencera a vaidade sobranceira e feroz de Sutpen ou o seu desejo de pompa, ou de vingança, ou do que fosse (nem o general Compson o sabia então) e assim criara com a
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derrota de Sutpen a vitória que, triunfando, o próprio Sutpen nunca teria alcançado.
Estava então pronta a casa, até à última tábua e ao último tijolo e à última cavilha que por suas mãos eles pudessem fazer. Sem pintura, sem mobília, sem vidros ou maçaneta ou dobradiça, a doze milhas de Jefferson e quase à mesma distância do vizinho mais chegado, a casa ali se ergueu por mais três anos, cercada por jardins formais e alamedas, senzala, cavalariça, casas do fumeiro; perus bravos passavam a uma milha da casa, veados vinham, em leveza e cor de fumo, deixar marcas delicadas nos canteiros geométricos onde flores só as haveria passados uns quatro anos. Agora começava uma fase, um período, em que a vila e a comarca o vigiavam com maior perplexidade ainda. Talvez porque o seu próximo passo no caminho da secreta ambição, essa que o general Compson afirmava ter conhecido mas a vila e a comarca só confusamente percebiam, se a percebê-la chegavam, requeria paciência ou então horas passivas em lugar daquela fúria que o arrastava e a que ele os habituara; desta vez foram as mulheres quem primeiro suspeitou do que ele queria, de qual seria o próximo passo. Dos homens nenhum, e por certo nenhum daqueles que tão bem o conheciam a ponto <de o tratar pelo nome, suspeitava que ele queria casar. Alguns, casados como solteiros, sem dúvida ter-se-iam recusado a considerar sequer tal ideia ou haveriam mesmo de insurgir-se contra ela, porque nos três anos seguintes Sutpen levou a vida que para eles seria o modelo de uma existência perfeita. Viveu ali, a oito milhas do vizinho mais chegado, em varonil solidão, no que podia chamar-se uma sala de armas com meio acre de senhorial esplendor. Viveu entre as quatro espartanas paredes do maior dos edifícios da comarca, sem excepção do tribunal, e cuja soleira mulher alguma tinha sequer vislumbrado ainda, sem amenidades feminis ou vidraça ou porta ou colchão; onde não havia mulher que objectasse, querendo ele partilhar a sua enxerga com os cães, se ele precisara de cães para abater a caça que deixava um rasto visível da cozinha e não caçasse, em vez deles, com seres humanos que lhe pertenciam de corpo e alma e de quem se acreditava (ou dizia) que eram capazes de trepar sem ruído à cama dum bode macho e lhe cortar as goelas antes que o animal os pressentisse.
Foi por esta altura que ele começou a convidar os grupos de homens, de que Miss Coldfield falara a Quentin, a que viessem a Sutpen's Hundred, acampassem em mantas nas salas nuas daquela promessa de opulência formal; caçavam, e à noite jogavam cartas e bebiam, e de vez em quando certamente lançava ele os seus negros uns contra os outros em rinha, e porventura já participava ele próprio nos combates uma vez por outra - nesse espectáculo que, no dizer de Miss Coldfield, o filho não suportara enquanto a ele assistira a filha impávida. Sutpen já bebia agora, se bem que porventura outros, além do avô de Quentin, notassem que ele o fazia com muita parcimónia, salvo quando ele próprio comparticipava nos bebestíveis. Traziam whiskey os convivas, mas deste ele bebia com um cálculo parcimonioso, quase como se mentalmente fizesse, dizia o general Compson, um balancete da solvên- 29

cia alcoólica entre a porção de whiskey que aceitava e a porção de caça viva que oferecia aos atiradores.
Viveu assim por três anos. Era dono agora de uma plantação; em dois anos tinha arrancado casa e jardins do pântano virgem, tinha lavrado as suas terras e nelas tinha plantado a semente de algodão que o general Compson lhe emprestara. Depois a todos pareceu que desistia. Que se contentava com simplesmente gozar o que tinha quase terminado, e isto por três anos, durante os quais não dava mostras de ambicionar ou querer mais do que isso. Natural seria que os homens da comarca julgassem que a vida que então levava era aquela que sempre desejara; só o general Compson, que parece tê-lo conhecido bem, a tal ponto que se ofereceu para emprestar-lhe a semente de algodão que foi o seu princípio de vida, sabia a verdade, pois foi a ele que Sutpen contou alguma coisa do seu passado. Foi o general Compson quem primeiro soube que a moeda espanhola era a última, tal como foi Compson (assim o veio a saber depois a vila) quem se ofereceu para emprestar a Sutpen o dinheiro com que terminasse e mobilasse a casa, o que ele recusou. Por isso foi sem dúvida o general Compson o primeiro homem da comarca a dizer com os seus botões que Sutpen não precisava de pedir de empréstimo o dinheiro com que terminasse a casa, provesse ao que ainda lhe faltava, porque era sua intenção casar com um dote. Não foi a primeira pessoa: foi o primeiro homem, pois, e assim o contou a Quentin Miss Coldfield setenta e cinco anos passados, as mulheres da comarca já diziam à boca pequena entre elas, e aos maridos também, que Sutpen não tencionava ficar-se por ali, que não se dera a tanta canseira, que não suportara tantas provações e tantos sacrifícios para agora se aquietar e viver exactamente como vivera antes, enquanto a casa se construía, apenas com um tecto verdadeiro agora por abrigo em vez da cobertura da carroça em chão de terra batida. Provavelmente as mulheres já teriam esquadrinhado as famílias dos homens que podiam chamar-se amigos seus, procurando a noiva em perspectiva cujo dote viria completar a forma e a essência dessa respeitabilidade que Miss Coldfield, pelo menos, julgava ser o seu fito. E assim quando, ao expirar esta segunda fase, três anos depois de a casa estar de pé e de o arquitecto partir, e outra vez em manhã de domingo e inesperadamente, a vila o viu atravessar a praça, agora apeado mas envergando as mesmas vestimentas com que chegara cinco anos atrás e ninguém mais vira desde então (ele ou um dos negros com tijolos quentes tinha alisado a sobrecasaca, disse o general Compson ao pai de Quentin) e entrar na igreja Metodista, só alguns homens reagiram com surpresa. As mulheres comentaram tão-somente que ele, goradas as perspectivas matrimoniais nas famílias desses homens com quem tinha caçado e jogado, viera à vila procurar mulher exactamente como quem vai à feira de Mênfis comprar gado ou escravos. Mas quando alcançaram quem era a mulher que ele viera afinal investir com a sua escolha na igreja da vila, a segurança feminina fez coro com a surpresa dos homens, e depois com algo mais que surpresa: assombro.
Porque a vilajulgava agora conhecê-lo. Durante dois anos vigiara aquela soturna e inquebrantável fúria com que ele erguera as paredes da casa, mar- 30

cara as terras, depois por três anos o vira completamente estático, como se
antes fosse percorrido por electricidade e alguém viesse agora retirar e desmontar instalação ou dínamo, enquanto as mulheres da comarca pouco a
pouco a todos convenciam de que ele estava simplesmente à espera de encontrar noiva com um dote que lhe permitisse acabar a obra. Por isso, quando ele entrou na igreja Metodista nessa manhã de domingo, de sobrecasaca alisada a tijolo, homens houve, e mulheres também, que julgaram ser bastante um mero olhar pelos fiéis em roda para se prever a direcção que os seus passos tomariam, até perceberem que ele distinguira afinal o pai de Miss Coldfield com a mesma resolução fria e desumana que provavelmente presidira à escolha do arquitecto francês. Viram-no, chocados, em assombro, montar um deliberado cerco ao único homem que na vila menos se lhe comparava, e menos que tudo em riqueza - um homem que obviamente nada poderia fazer por ele neste mundo afora dar-lhe crédito numa lojeca de entre caminhos ou
então votar por ele se acaso pretendesse tomar ordens de ministro Metodista um mordomo da congregação Metodista, um comerciante não só modesto de posição e haveres mas além disso casado e com família constituída, para já não falar da mãe e da irmã, a sustentar com os proventos dum comércio que trouxera para Jefferson, dez anos antes, inteiro numa só carroça - um homem com fama de ser autoritário e rígido e até mesmo puritano de tão íntegro numa terra sem lei e num tempo de ocasiões apetecidas, que não bebia nem jogava nem caçava ao menos. Na sua surpresa esqueciam eles que Mr Coldfield tinha filha casadoira. Não lhes ocorreu a filha. Não acudiam à lembrança amores quando se tratava de Sutpen. Pensavam em desumanidade que não em justiça, em medo que não em respeito, e não em piedade ou amor: isto para além de os absorver tanto o assombro, magicando eles em como tencionava Sutpen, ou conseguiria, servir-se de Mr Coldfield para ajudar a quais secretas ambições que alimentasse ainda. Nunca o haviam de saber: não o soube sequer Miss Rosa Coldfield. Porque desse dia em
diante não mais se caçou em Sutpen's Hundred, e se o viam agora seria na
vila. Mas não vadiando, ocioso. Os homens que dormiram e abancaram com ele sob o seu tecto (alguns tinham até começado a tratar Sutpen sem o formal "Mister") vigiavam-no agora quando passava pela rua, diante da HoIston House, sem mais que um gesto convencional da mão tocando o chapéu e
seguia, entrava na loja de Mr Coldfield, e ponto final.
"Então um dia ele saiu de Jefferson pela segunda vez", contou NIr Compson a Quentin. "A vila já não tinha por que estranhar. Não obstante, a posição de Sutpen sofrera uma subtil mudança, como verás pela reacção da vila ao seu segundo regresso. Porque desta vez, ao regressar, ele já era de certa maneira um inimigo público. A razão da mudança podia estar no que ele trazia consigo desta vez: nos materiais que trazia desta vez, comparados com o simples carregamento de cafres que tinha trazido antes. Mas penso que não. Ou seja, penso que esteve um pouco mais além do mero valor de lustres e mognos e tapetes. Penso que a afronta nasceu de a vila ter compreendido que ele a comprometia; que fosse qual fosse o delito a pôr nas suas
mãos os mognos e os cristais, Sutpen queria forçar a vila a ser pactuante
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nele. Até então, até àquele domingo em que veio à igreja, se de alguém tinha abusado, se alguém prejudicara, fora apenas o velho lkkemotubbe que lhe entregou as terras - e isso era lá com ele e com a sua consciência e o Tio Sam e Deus. Mas agora a sua posição mudara, pois quando, uns três meses depois de ele ter partido, quatro carroças saíram de Jefferson para o Rio ao seu encontro, soube-se que fora Nir Coldfield quem as alugara e despachara. Eram carros grandes, puxados por bois, e ao regressarem eles, e ao vê-los, a vila percebeu que, trouxessem o que trouxessem, Nir Coldfield não tinha posses que mesmo hipotecadas pagassem o que ali vinha; é certo que desta vez mais homens até do que mulheres o tinham representado, na sua ausência, com um lenço a embuçar-lhe a cara e dois canos de pistola reluzindo sob os lustres do salão dalgum vapor, se é que ficaram mesmo por aí: se é que o não representaram de faca em punho, emboscado na treva dum cais lamacento, e atacando alguém pelas costas. Viram-no passar, no seu cavalo ruano, escoltando as quatro carroças; segundo consta, nem os que tinham comido no seu prato e atirado à sua caça, e o tratavam mesmo por 'Sutpen' sem o 'Mister', se abeiraram dele agora. Deram tempo ao tempo, que à vila foram chegando os boatos, ou a notícia, de que ele e os negros, um tanto menos cafreai s agora, instalavam portas e janelas, e espetos e tachos na cozinha, e lustres de cristal nas salas, e a mobília e as cortinas e os tapetes; foi aquele Akers, o mesmo que tropeçara no negro aninhado em lama há cinco anos atrás, que veio, de olhos esbugalhados e de boca aberta, ao bar da Holston House uma noite e disse, 'Rapazes, desta é que foi, o homem roubou o raio do vapor inteiro!'
"E finalmente a virtude cívica entrou em ebulição. Um dia, e acompanhados pelo xerife da comarca, um grupo de oito ou dez homens tomou a estrada que levava a Sutpen's Hundred. Não chegaram a ir lá, que a meio caminho encontraram Sutpen. Montava o seu cavalo ruano, pusera a sobrecasaca e a cartola de castor que já lhe conheciam, e nas pernas uma lona; trazia a mala de couro no cepilho da sela, e uma alcofa no braço. Refreou o cavalo (era em Abril e a estrada estava toda um atoleiro) e parou, de lona salpicada cobrindo as pernas, olhando os homens um por um; o teu avô disse que os seus olhos pareciam cacos de louça e a sua barba era tão rija que nem a almofaça dos cavalos. Foi assim mesmo que ele disse: rija que nem a almofaça dos cavalos. 'Bom dia, meus senhores', disse ele. 'Andavam à minha procura?
"Alguma coisa mais transpirou além disto, sem dúvida, embora, que eu
saiba, não fosse pela boca dos cívicos. O que ouvi dizer foi que a vila, os homens na varanda da HoIston House, viu Sutpen, e os cívicos também, galopando até à praça, Sutpen afastado na dianteira e os outros em grupo atrás dele - Sutpen de pernas e pés bem tapados com a lona e os ombros enchumaçados na sobrecasaca de casimira puída, e a cartola de castor puída mas escovada e posta ligeiramente à banda, falando com eles por cima do ombro, e aqueles olhos mortiços, duros, atrevidos e provavelmente zombeteiros e talvez já nesse dia desdenhosos. Chegado à porta ele parou e o moço da hospedaria, um negro, saiu curvando-se e veio pegar na cabeça do ruano
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e Sutpen desmontou com mala e alcofa e subiu os degraus, e ouvi dizer que se voltou, encarando os cavaleiros em grupo cerrado, que não achavam ao certo o que fazer. E ainda bem que ele tinha barbas, que assim os outros não puderam ver-lhe a boca. Depois ele voltou-se e olhou para os homens, sentados com os pés no varão, a vigiá-lo também, homens que habitualmente o visitavam, no seu chão dormiam, com ele caçavam, e saudou-os com esse gesto floreado e insolente, levando a mão ao chapéu (sim, ele era um mal-ensinado. Mostrava sempre a sua falta de berço em todo o trato que devia ser de cortesia. Era um John L. Sullivan* que tivesse aprendido sozinho e com esforço e com afinco a dançar a escocesa, que tivesse vezes e vezes sem conta ensaiado os passos em segredo e depois resolvesse que já não era preciso, digamos, contar os tempos da música. Talvez pensasse que o teu avô ou o juiz Benbow saberiam fazer o gesto com um pouco mais de naturalidade, mas não admitiria que alguém se lhe comparava, quer no modo quer na escolha do momento de o fazer. E além disso, estava-lhe na cara: era aí que residia o seu poder, disse-me o teu avô: a qualquer um bastava que o olhasse que dizia, Havendo ocasião, e tendo necessidade, este homem é capaz de tudo) e entrou na hospedaria e tomou um quarto.
"Os cívicos, portanto, continuaram à espera dele, montados. Tenho para mim que eles sabiam que ele havia de sair mais cedo ou mais tarde: e deviam lembrar-se das tais duas pistolas. Porque, repara, não havia ainda qualquer mandato de captura contra ele: não era mais que a opinião pública em aguda crise de indigestão; e depois outros cavaleiros vieram à praça e viram o que se passava, de modo que se tinha juntado já um destacamento razoável à sua espera quando ele saiu para a varanda. Pusera uma cartola nova e unia nova sobrecasaca de casimira, e foi assim que eles souberam o que estava dentro da mala. Agora sabiam até o que estava na alcofa, porque ele também já não a trazia consigo, se bem que sabê-lo foi nessa altura, não tenho dúvidas, ainda mais intrigante. Porque, repara, eles tinham andado tão entretidos a magicar de que maneira pensaria ele servir-se de Mr Coldfield e, depois do seu regresso, tão ofendidos se sentiram por julgar que viam os resultados mesmo se os meios ainda fossem um enigina, que nem lhes acudiu à lembrança Miss Ellen.
"Ele, sem dúvida, voltou então a parar, encarando um por um todos os rostos, sem pressa, para fixar sem dúvida os recém-chegados, as barbas ainda ocultando o que a boca poderia ter mostrado. Mas consta que ele não disse nada, nem uma palavra, desta vez. Limitou-se a descer os degraus e a atravessar a praça, com os cívicos (o teu avô dizia que já eram quase uns cinquenta homens) a segui-lo. Consta que ele nem para trás olhou. Foi andando, muito direito, cartola posta à banda, e levava agora na mão aquilo que para estes homens foi o maior desconchavo, ou pior, foi um insulto escusado, os cívicos a cavalo percorrendo a rua com ele, mas não a seu lado, e outros, que por acaso não tivessem ali os cavalos, emparceirando e seguindo os cívicos pela rua, e senhoras e crianças e escravas aparecendo às portas e às janelas das casas para ver, conforme ia o cortejo passando, aquele soturno quddro e Sutpen, que não olhara ainda para trás uma só vez, entrou o portão de
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Mr Coldfield e pisou a passos largos o passeio de tijoleira que levava à porta, segurando na mão a cormicópia de jornal que embrulhava as flores.
"Mais uma vez ficaram à espera. A multidão crescia agora a olhos vistos - outros homens, uns quantos rapazes, e até alguns negros das casas vizinhas, vieram apinhar-se atrás dos oito cívicos, os primeiros, que continuaram montados de atalaia à porta de Mr Coldfield até que ele saiu. Demorara-se bastante, já não trazia as flores, e ao passar o portão estava noivo. Mas eles não souberam a novidade porque, chegado ele ao portão, prenderam-no. Trouxeram-no de volta à vila, com as senhoras e as crianças e a criadagem nigra vigiando atrás dos cortinados e dos arbustos nos pátios e às esquinas das casas, e nas cozinhas, onde sem dúvida a comida já começaria a queimar, trouxeram-no de volta à praça onde os restantes homens válidos abandonavam escritórios e lojas para os seguir, de tal modo que chegando ao tribunal já Sutpen levava um séquito maior do que se fora realmente um escravo fugido. Na presença do juiz de paz fizeram a denúncia, mas já então chegavam o teu avô e Mr Coldfield. Assinaram ambos o termo da fiança e nessa
tarde ele pôde regressar a casa de Mi- Coldfield, os dois caminhando por essa mesma rua que ele tinha percorrido pela manhã e onde, sem dúvida, os mesmos rostos vigiavam por trás das mesmas cortinas, para a ceia do pedido, sem vinho à mesa nem whiskey antes ou depois. Ouvi dizer que em nenhuma das três passagens nesse dia por aquela rua se alterou o seu porte - o mesmo passo largo e sem pressa, que fazia balouçar a sobrecasaca nova, a mesma inclinação da cartola posta à banda sobre os olhos e a barba. O teu avô dizia que essa cor de porcelana que tivera a carne do seu rosto quando ele chegou à vila, cinco anos atrás, havia desaparecido e o seu rosto exibia agora uma honesta cor, tostada pelas soalheiras. E não era porque estivesse mais basto de carnes; o teu avô dizia que não era disso: mas a carne que lhe cobria os ossos tinha serenado, ficara passiva como depois de enfrentar-se um vento verdadeiro em corrida, por isso o fato já não lhe dançava no esqueleto, mas revelava ainda essa qual soberba que não era fanfarronada ou beligerância, embora na opinião do teu avô beligerância nunca tivesse existido, só uma prevenção. E agora até isto desaparecia, como se passados esses três anos ele só na vigilância dos olhos confiasse, dispensando a carne que lhe cobria os ossos de já montar sentinela. Dois meses depois casava com Miss Ellen.
"Foi em Junho de 1838, ao dia quase em que se cumpriam cinco anos sobre a manhã de domingo em que ele chegou à vila com o seu cavalo ruano. Foi (o casamento) na mesma igreja Metodista onde ele vira Ellen pela primeira vez, assim o diz Miss Rosa. A tia dela tanto forçara e atazanara Mi- Coldfield que (não o adulara, que não surtiria efeito) dele conseguira permissão para Ellen usar pó-de-arroz naquele dia. O pó era para esconder os vestígios das lágrimas. Mas antes de findar o casamento já estava o pó de novo sulcado, em pasta e fendido. Foi como se Ellen entrasse na igreja nessa noite caminhando por entre lágrimas como debaixo de chuva, e acabada a cerimónia saísse da igreja de novo para o pranto, de novo para as lágrimas, as mesmas lágrimas até, a mesma chuva. Ela entrou na carruagem e partiu na chuva dessas lágrimas para Sutpen's Hundred.
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Foi o casamento que a fez chorar: não Sutpen. As lágrimas que ela chorou por sua causa, se lágrimas houve, chegariam mais tarde. Não era para ser um casamento de grande aparato. Ou melhor, parece que Mr Coldfield não queria que fosse. Dos dois homens (não falo de Ellen, claro está: com efeito, hás-de reparar, a maioria dos divórcios acontece às mulheres que foram casadas por um juiz de paz mascando tabaco em tribunal de província, ou por algum ministro acordado a meio da noite, sem colarinho e de suspensórios à mostra por baixo da labita, e a mulher ou a irmã solteira de papelotes a servir de testemunha. Custará assim tanto perceber que essas mulheres chegam a ansiar pelo divórcio por se sentirem, não direi incompletas, mas verdadeiramente frustradas e traídas? que indiferentes à evidência viva dos filhos, e a tudo, elas tenham nos olhos ainda a sua imagem passando, banhada em música e por entre os rostos que se voltam para a ver, em todo o aparato e brilho simbólico da cerimonial entrega daquilo que elas já não possuem? e por que não, se a real e verdadeira entrega só pode ser para elas (só foi) a cerimónia como a de trocar uma qualquer nota de banco para pagar uma passagem de comboio) - dos dois homens era Sutpen quem desejava (ou ambicionava: sei isto por uma coisa que o teu avô deixou escapar um dia, e que por certo ele ouviu da boca do próprio Sutperi e da mesma fortuita maneira, pois Sutpen jamais o disse a Ellen sequer, e isso - o facto de à última hora ele se ter recusado a apoiar o seu desejo e a sua insistência - explica em parte as lágrimas) o casamento de aparato, a igreja repleta de gente, o ritual cumprido. Mr Coldfield, ao que parece, tencionava apenas servir-se da igreja, fazer uso dela, para além do seu significado espiritual, da mesma exacta maneira que poderia utilizar, ou teria utilizado, outro qualquer objecto, concreto ou abstracto, ao qual tivesse concedido parte do seu tempo. Ao que parece, tencionava servir-se daquela igreja, em que tinha investido sem dúvida algum sacrifício e alguma abnegação e por certo algum trabalho útil e dinheiro como quem, digamos, faz um balancete da sua solvência apostólica, da mesma exacta maneira que utilizaria uma descaroçadeira de algodão, para a qual tivesse contribuído em despesas ou em responsabilidade, para descaroçar o algodão que ele ou qualquer parente seu, pelo sangue ou por aliança, tivesse plantado - isto e mais nada. Talvez tudo viesse da economia apertada e firme que lhe permitiu sustentar mãe e irmã e casar e constituir família com os proventos dessa loja que dez anos antes coubera numa só carroça: ou talvez fosse por algum sentido inato do escrúpulo e da justeza das coisas (que a irmã e a filha pareciam não possuir, de resto) no que tocava o futuro genro a quem havia dois meses tinha ajudado a salvar da cadeia. Mas não foi por falta de coragem perante a posição ainda anómala do genro na vila. Mesmo esquecendo o que tinham sido as suas relações antes desse dia e o que elas poderiam ser depois, se NIr Coldfield acreditasse que Sutpen era culpado então de algum crime não teria mexido uma palha para o livrar. Talvez não se virasse do avesso para o meter na cadeia, mas o melhor incensamento moral que Sutpen podia ter recebido nessa altura, aos olhos dos conterrâneos, foi sem dúvida o facto de Mr Coldfield ter assinado o termo da fiança
- coisa que ele não teria feito nem para salvar o seu bom nome, ainda que
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terem-no prendido fosse a consequência directa do que houvera entre ele e Sutpen - esse trato que, chegado a um ponto em que a sua consciência recusou sancioná-lo, ele abandonara, deixando a Sutpen todos os lucros, não permitindo sequer que Sutpen o reembolsasse pelas perdas que sofreu, embora permitisse à filha que se casasse com este homem cujos actos ele em consciência reprovava. Foi a segunda vez que ele procedeu assim.
"Quando eles se casaram havia dez pessoas ao todo na igreja, incluindo os noivos e familiares, das cem que tinham sido convidadas; embora quando saíssem a porta da igreja (era de noite: Sutpen tinha trazido meia dúzia de cafres que esperavam à porta com archotes de pinheiro) o número se completasse com gaiatos e rapazes e os homens da taberna dos boieiros nos confins da vila - negociantes de gado e moços da hospedaria e gente da mesma igualha que não tinha sido convidada. E isso explica também por sua parte as lágrimas de Ellen. Foi a tia que, persuadindo ou adulando, conseguira manobrar Mr Coldfield a consentir no aparato. Sutpen não dera opinião. Mas também o queria. E digo-te, mal sabe Miss Rosa como tem razão em supor que ele queria, realmente, não uma esposa anónima e filhos anónimos, mas os dois nomes, o da esposa imaculada e o do sogro irrepreensível, na certidão do casamento, a carta patente. Sim, carta patente, e com selo de ouro e fitas vermelhas se tanto fosse praticável. Mas não por sua causa. Ela (Miss Rosa) chamaria às fitas e ao selo de ouro vaidade. Mas afinal foi a vaidade que imaginou aquela casa e ele, em terra estranha e com pouco mais que as mãos vazias, e ainda com essa outra desvantagem que era a possibilidade, se não mesmo a certeza, de contra si ter os ditos e mexericos com que toda a sociedade humana censura as situações que não entende, ele construiu-a. E orgulho: ela confessou-te que ele era valente; há-de conceder talvez que ele tinha orgulho também: o mesmo orgulho que ambicionou uma tal casa, que não se contentava com menos, e o levou a construí-la a todo o custo e a viver nela depois, sozinho, por três anos, com uma enxerga posta no chão, até poder enriquecê-la como ela merecia - e riqueza menor já não seria a certidão do casamento. Ela está coberta de razão. Ele não queria apenas um tecto, a esposa anónima, filhos anónimos, como não queria um qualquer casamento. Mas ele nunca o disse a Ellen, nem a ninguém; mesmo quando sobreveio a crise feminina, quando Ellen e a tia procuraram atraí-lo à sua causa para melhor persuadirem Mr Coldfield a fazer um casamento de aparato, ele recusou-se a tomar o partido das mulheres. Sem dúvida se lembrava, e mais vivamente que Mr Coldfield, de ter estado preso havia dois meses; de que a opinião pública, embora o tivesse engolido num dado momento desses cinco anos passados, mas sem que lhe assentasse bem no estômago a peça, por uma destas reviravoltas naturais e violentas e inexplicáveis da humanidade o regurgitara. E não o abonava em nada que pelo menos dois dos cidadãos que deveriam ter sido outros tantos dentes da queixada ofendida servissem então de espeques para mantê-la aberta e impotente enquanto ele se escapava incólume.
"Ellen e a tia também se lembrariam disto. A tia lembrava-se. Porque era mulher, pertencia sem dúvida a essa liga das mulheres de Jefferson que
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no dia seguinte a tê-lo enxergado a vila, cinco anos atrás, decidira nunca mais lhe perdoar a inexistência de um passado, e se mantivera firme na sua decisão. Sendo o casamento agora caso arrumado, ela provavelmente considerava esta oportunidade como a única hipótese de o fazer passar de novo pelas goelas da opinião pública, essa que por fim ameaçava recusá-lo, não apenas para assegurar o futuro da sobrinha enquanto sua mulher, mas para justificar a atitude do irmão que o livrara da cadeia, e a sua própria, ao sancionar e permitir agora um casamento que afinal não poderia barrar - isto, como te contou Miss Rosa, em atenção à casa grande e à posição e ao fausto que ele, e as mulheres compreenderam-no muito antes dos homens, ele não só ambicionava como iria ter. Ou talvez as mulheres sejam ainda menos complicadas e para elas um casamento, qualquer casamento, seja melhor do que nada e um casamento de grande aparato com um infame seja preferível a um casamento muito simples com um santo.
"Por isso a tia serviu-se até das lágrimas de Ellen; e serviu-se de Sutpen, que provavelmente previa o que depois aconteceu, pois se tomava a cada hora mais grave ao aproximar-se a data do casamento. Preocupado não direi: mas de prevenção, como deveria estar desde o dia em que voltou costas a
tudo quanto conhecia - gente e costumes - e (só tinha catorze anos, disse ele ao teu avô. Exactamente a mesma idade que tinha Henry na noite da cavalariça que Miss Rosa te contou, essa noite que Henry não foi capaz de aguentar) partiu para um mundo que, mesmo em teoria, pela ciência geográfica média de um rapaz normal de catorze anos, ele desconhecia em absoluto, e com um objectivo claro em mente, que a grande parte dos homens só fixa depois que o sangue se acalma aos trinta anos ou mais e, mesmo então, apenas porque a imagem representa a paz e a indolência ou pelo menos a glória da vaidade, não a vingança de uma antiga afronta pela interposta pessoa dum filho cuja semente não tinha sido sequer, nem seria por alguns anos ainda, plantada. A mesma cautela que houve de conservar dia e noite, sem descanso ou desalento, como a roupa que, sem dúvida, e por algum tempo ao menos, ele usou quer dormindo quer velando, e numa terra e no meio de uma gente cuja língua ele teve de aprender e onde, por isso mesmo, ele iria cometer o erro que, a conformar-se com ele, nem erro teria sido, só engano, mas que por não querer aceitá-lo, nem aceitar que ele o desviasse do caminho, foi a sua perdição; - a mesma cautela constante por saber que podia permitir-se apenas um só engano; essa cautela que o levava a medir e a pesar os factos contra as possibilidades, as circunstâncias contra a natureza humana, o seu juízo falível e a sua mortal condição contra as forças humanas e as da natureza também, escolhendo e rejeitando, sujeitando sonho e ambições como se faz ao cavalo que se leva pelos campos, galgando os troncos no chão, e se controla só com a nossa habilidade em impedir que o animal se aperceba de que na realidade não o podemos controlar, e na realidade é ele dos dois o mais forte.
"Era singular a sua posição agora. Era ele o solitário, Ellen, não. Ellen tinha por si não só a tia mas o facto de as mulheres nunca pretextarem ou invocarem a solidão até que as circunstâncias obscuras e insuperáveis as for- 37

çam a abandonar toda a esperança de obter aquela particular bagatela que almejam nesse particular momento. Nem Mr Coldfield. Esse tinha por si a opinião pública, mas apoiava-se na sua própria aversão ao casamento de aparato, sem incongruência ou paradoxo, como Ellen tinha por si a tia e o seu desejo de aparato, sem incongruência também ou paradoxo. Apesar de Sutpen ambicionar o aparato ainda mais do que Ellen, ou por razões mais fortes, o seu discernimento porém dizia-lhe que havia de reagir a vila até pior que Mr Coldfield. Por isso, enquanto Ellen usara as lágrimas não só para assim coagir o pai mas também para levar Sutpen a pender para o seu lado o fiel da balança, ele só tivera um inimigo - Mr Coldfield. Mas quando recusou o que ela pediu, quando se manteve neutral, ganhou três, contando com a tia. Depois (venceram as lágrimas: Ellen e a tia escreveram cem convites - Sutpen trouxe um dos cafres que os foi entregar em mão, de porta em porta - e mandaram mais uma dúzia, esses a pessoas de maior intimidade, para o ensaio na igreja) quando chegaram à igreja para o ensaio da cerimónia, na véspera do casamento, e acharam a igreja deserta, à excepção de um punhado de homens dos arrabaldes (incluindo dois índios Chickasaws do velho lkkemotubbe) postados nas sombras da porta, as lágrimas voltaram a cair. Ellen suportou o ensaio, mas no fim a tia levou-a para casa em ameaços de um ataque de nervos, que no dia seguinte se transformou de novo em pranto silencioso e descontínuo. Correu até a voz que iria ser adiado o casamento. Não sei de quem partiu, talvez de Sutpen. Mas sei quem se lhe opôs. Era como se a tia estivesse agora disposta a fazer com que a vila engolisse não apenas Sutpen mas o próprio casamento. O dia seguinte passou-o ela a ir de porta em porta, a lista dos convidados na mão, de vestido caseiro e de xaile, e com uma das negras da casa (eram duas as criadas) atrás, a protegê-la talvez, talvez como folhas arrastadas na viração pela fúria severa de virago que é a fúria de toda a mulher ofendida; sim, ela veio a nossa casa, embora o teu avô não fizesse outras tenções que não fossem as de assistir ao casamento: a tia com certeza não tinha quaisquer dúvidas a respeito do meu Pai, pois o Pai tinha ajudado Sutpen a livrar-se da cadeia, mas provavelmente nessa altura ela já estaria incapaz de raciocinar; e também veio à nossa casa. O Pai e a tua avó tinham casado havia pouco tempo e a Mãe não era de Jefferson e eu não sei o que ela terá pensado, só sei que ela nunca falava do que nesse dia aconteceu: da mulher desvairada que ela nem conhecia e lhe entrou pela casa dentro, não a convidá-la para as bodas mas a desafiá-la a que se atrevesse a não ir, e que depois saiu no mesmo rompante. A Mãe a princípio nem percebeu qual seria o casamento, e quando o Pai chegou a casa foi encontrá-la com um ataque de nervos também, e mesmo vinte anos passados a Mãe não sabia dizer o que tinha realmente acontecido. Para ela a situação nada tinha de cómico.
O Pai gostava de a fazer arreliar com isso, mas mesmo vinte anos passados, quando ele a arreliava, eu via a Mãe esboçar o gesto de erguer a mão (com o dedal no dedo talvez) como a proteger-se ainda, e via no seu rosto a mesma expressão que devia ter tido quando a tia de Ellen saiu.
"Nessa manhã ela percorreu a vila toda. Não demorou muito e deu-lhe a volta completa; ao cair da noite os pormenores da situação tinham-se espa- 38

lhado pela vila, para além dela e abaixo dela, penetrando a alquilaria e a
taberna dos boieiros que iriam contribuir com aqueles convidados que compareceram, dando notícia das bodas e a tudo cobrindo com um manto de ameaça e desafio. Ellen, claro está, ignorava isto, como o ignorava a tia, longe de supor ou de prever o que depois aconteceu, mesmo que fosse clarividente, mesmo que na verdade visse esboçarem-se os factos ainda antes de o tempo os riscar. Não que a tia se considerasse intangível pelo insulto, mas é que não teria acreditado que as suas intenções e os seus actos dessa manhã pudessem ter outras consequências para além daquelas por que sacrificara nesse dia não só a dignidade de uma Coldfield mas todo o recato feminino. Suponho que Sutpen a podia ter acautelado, mas esse percebeu sem dúvida que ela não iria acreditar no que ele dissesse. Provavelmente nem fez essa diligência: fez apenas o que podia ser feito, que era mandar vir de Sutpen's Hundred mais seis ou sete negros, homens em quem pudesse confiar, os únicos em quem podia confiar, e armá-los com os archotes de pinheiro que eles empunhavam à porta da igreja, quando chegou a carruagem, e os noivos e familiares desceram. E foi então que as lágrimas secaram, pois a rua em frente da igreja estava toda ela bordada de carruagens e charretes, embora apenas Sutpen, e talvez Mr Coldfield também, notassem que, em vez de estarem vazias e paradas à porta da igreja, elas se demoravam, ocupadas, do outro lado da rua, e que o passadiço da igreja era como arena iluminada pelos archotes fumacentos que os negros seguravam bem alto, uma luz que vacilava, reverberando sobre as duas alas de rostos que noivos e familiares teriam de romper a caminho da igreja. Não havia apupos ainda, nem assuadas; evidentemente nem Ellen nem a tia suspeitavam do que então se preparava.
"Porque nesse momento Ellen até esquecia o pranto, as lágrimas, e entrava na igreja. Estava deserta ainda a igreja, à excepção dos teus avós e de meia dúzia de pessoas que vieram, talvez por lealdade aos Coldfields ou talvez porque, estando ali, não perderiam migalha daquilo que toda a Jefferson, representada pelas carruagens expectantes, parecia adivinhar, como Sutpen já adivinhara. Continuou deserta a igreja mesmo depois de se ter iniciado a cerimónia. Porque Ellen tinha também o seu orgulho, ou pelo menos a vaidade que pode fazer as vezes de orgulho ou fortaleza de ânimo; e aliás, nada havia acontecido ainda. A populaça estava lá fora, ainda silenciosa, talvez por respeito ao lugar, por essa apetência de todo o anglo-saxão em aceitar completa e místicamente as pedras e os madeiros do sacrifício. Consta que ela saiu da igreja e se viu rodeada pela populaça. Talvez a movesse ainda o mesmo orgulho que não lhe consentira mostrar o seu pranto aos que tinham entrado na igreja. Saiu e viu-se rodeada pela populaça, correu talvez para o retiro da carruagem onde podia chorar à vontade; talvez o primeiro sinal do que depois aconteceu tenha sido a voz gritando 'Cuidado! Não acertem nela!' e em seguida o projéctil - esterco, terra ou o que fosse - passando por ela, ou talvez a mudança de luz quando ao voltar-se viu um dos negros, de archote erguido e querendo saltar sobre a multidão, os rostos, quando Sutperi falou ao negro nesse linguajar que mesmo então boa parte da comarca desconhe- 39

cia tratar-se de língua civilizada. Terá sido isto o que ela viu, e o que viram aqueles que tinham permanecido nas carruagens - a noiva acolhendo-se ao abrigo do seu braço quando ele a fez passar para trás de si e ele imóvel, imóvel até quando um segundo projéctil (não atiravam nada que o pudesse ferir: só mancheias de terra e sobras de hortaliça) veio arrancar-lhe o chapéu da cabeça e um terceiro lhe acertou em pleno peito - e ele imóvel, com esse meio sorriso que lhe mostrava os dentes e repuxava a barba, sustentando os cafres com essa única palavra (havia sem dúvida pistolas na multidão; e com certeza facas: o negro não viveria mais dez segundos se tivesse então saltado) enquanto à volta dos noivos e familiares o círculo de rostos, as bocas abertas, olhos que reflectiam as luzes dos archotes, parecia avançar, tremeluzindo, e mover-se, e desaparecer no fumacento clarão dos archotes de pinheiro. Ele recuou para a carruagem, protegendo as duas mulheres com o seu corpo, ordenando aos negros com outra palavra que o seguissem. Mas ninguém atirou mais nada. Pelos vistos aquele fora um primeiro e espontâneo desabafo, embora a populaça tivesse vindo armada e preparada com aquilo que atirou. Realmente parece que mais nada arquitectaram quando o seguiram com os cívicos ao portão de Mr Coldfield, nesse dia de há dois meses. Porque os homens dessa multidão sumiram-se, negociantes e boieiros e carreteiros, por esses lugares donde haviam, como as ratazanas, saído naquela noite; dispersaram, partiram por esse mundo - rostos que nem Ellen iria recordar, apenas entrevistos, pousando ou comendo e bebendo, em alguma taberna a vinte e a cinquenta e a cem milhas de distância, por caminhos sem nome, e que depois dali desapareciam também; e os outros, que tinham vindo em carruagens e charretes para assistir ao enxovalho público, e mais tarde haviam de seguir até Sutpen's Hundred em visita e (os homens) para abater a sua caça, comer no seu prato, e de vez em quando reunir-se à noite na cavalariça, quando ele um contra o outro lançava em rinha dois cafres como galos de combate, ou ele mesmo entrava no ringue talvez. Tudo se foi, salvo a memória. Sutpen não esqueceu aquela noite, mesmo se Ellen, como eu suponho, a esqueceu, pois a lavou da lembrança com lágrimas. Sim, ela chorava de novo; a chuva caiu, na verdade, sobre aquele casamento."
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Se ele a desprezou, a mim parece-me que ela não há-de querer falar do caso a ninguém disse Quentin.
Ah voltou a dizer Mr Compson Depois da morte de Mr Coldfield, em
64, Miss Rosa foi viver para Sutpen's Hundred na companhia de Judith. Tinha nesse tempo vinte anos, menos quatro que a sobrinha a quem, obedecendo às últimas vontades da irmã, ela trabalhava agora por salvar dessa desgraça que era a de toda a família e Sutpen parecia apostado em cumprir, e o meio de salvá-la seria então casar-se Miss Rosa com ele. Nasceu (Miss Rosa) em 1845, levava já a irmã sete anos de casada e sendo mãe de dois filhos, e estavam os pais de Miss Rosa na meia-idade (a mãe devia ter pelo menos quarenta anos, e morreu por dar à luz esta filha que não perdoou nunca ao pai aquela morte) e numa altura em que - se deveras Miss Rosa unicamente espelhava a atitude paterna com relação ao genro
- só desejava a família paz e sossego e não contava, nem porventura queria, ter outro filho. Mas ela nasceu, custando à mãe a vida e a ela mesma o não poder esquecê-lo, e foi criada por essa tia solteira que, antes, quisera que a vila avessa engolisse não já o noivo apenas, como até o casamento da irmã mais velha, e cresceu nessa fechada maçonaria das mulheres, vendo na própria existência não apenas a justificação única para o sacrifício da mãe, não apenas a censura viva e constante ao pai, mas uma denúncia viva, e ubíqua, e mesmo extensível a todo o princípio masculino (esse que deixara a tia virgem aos trinta e cinco anos) existente à face da terra. Assim, e até aos dezasseis, ela viveu naquela casinha soturna e estreita com um pai que ela odiava sem saber - esse homem bizarro, taciturno, que por amiga e confidente apenas teve a sua consciência, e mais não estimava na vida que a gozada fama de homem probo - esse homem que depois havia de encerrar-se no sótão e deixar-se morrer à fome para não ver a agonia da terra natal repelindo o exército invasor - e a tia, que mesmo dez anos passados ainda queria vingar-se pelo fiasco do casamento de Ellen, ferir a vila, o género humano, ferindo todas as criaturas - irmão, sobrinhas, sobrinho por aliança, e ela mesma, e todos - na fúria cega e irracional duma
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serpente quando muda a pele; que ensinara Miss Rosa a ver na irmã a mulher que abandonara a família, a sua casa, e até a própria vida, para se perder no castelo dum barba-azul, transfigurando- se ali em máscara de olhos inexoravelmente postos no passado e num mundo irregressível, com
um sofrimento passivo e sem remédio, e que ali era mantida, não em cativeiro, mas num quê de escarnínha suspensão da vida por um homem (cujo rosto inalterado Mr Coldfield conhecia e conhecera desde a hora em que, sendo o futuro genro seu ostensivo comparsa mas verdadeiro acicate, a consciência de Mr Coldfield meteu freios e, abrindo mão até da sua quota-parte na carga, ele e o genro dissolveram a sociedade) que entrara na sua vida e na da sua família antes de ela ter nascido, e com a rudeza dum tornado, causara incalculáveis e irreparáveis danos, e seguira adiante - um
mausoléu soturno, onde se respirava a rectidão puritana e a ultrajada vindicta feminina, onde a infância de Miss Rosa (a antiga e velha e intemporal ausência de juventude que para ela foram anos de escutar às portas fechadas qual Cassandra, espiar a indecisa treva dos corredores, habitados por um presbiteriano eflúvio de vingativo e lúgubre antegosto, enquanto esperava que infância e meninice, com que a natureza a tinha logrado e
traído, surgissem daquela precocidade em convictamente condenar toda e qualquer coisa que penetrasse os muros daquela casa, trazida por qualquer homem, e sobretudo o pai, em que a tia parece tê-la agasalhado com as faixas ao nascer) se passou.
Talvez ela visse na morte do pai, na resultante necessidade sua, não apenas por ser órfã como ainda por ser pobre, de se voltar para os parentes mais chegados, a pedir o sustento e um abrigo e protecção - e por parentes só tinha a sobrinha que lhe haviam pedido que salvasse - ; talvez ela visse aqui a mão do próprio destino, que assim lhe permitia cumprir as últimas vontades da irmã. Talvez ela se visse até como o instrumento do castigo: se não por ela mesma o instrumento activo e forte o bastante para enfrentar aquele homem, ao menos, de certa maneira, o símbolo passivo da memória inescapável, a erguer-se incruento e incorpóreo da ara do sacrifício, o leito conubial. Porque até ele voltar da Virgínia, em 66. e achá-la vivendo ali com Judith e Clytie - (Sim, Clytie era também filha dele: Clytemnestra. Foi ele quem lhe pôs o nome. A todos ele pôs o nome: a toda a sua geração e à geração dos seus cafres que foram sendo assimilados por esta terra. Miss Rosa não te contou que lá na carroça da nigrada vieram duas mulheres?
Não, senhor respondeu Quentin. Vieram. Duas. E não foi por acaso nem por equívoco. Trouxe-as ele, que sem dúvida mais longe lobrigava que os dois anos precisos para construir-se a casa e mostrar ele a sua boa-fé aos vizinhos, que só então permitiram o cruzamento da escravaria bárbara com a deles, caparoeira, pois a diferença do linguajar entre as duas raças de nigros só seria um empecilho por umas semanas, ou mesmo dias. Ele trouxe as duas mulheres de propósito; escolheu-as porventura com o mesmo cuidado e a mesma argúcia com que escolheu os outros brutos - cavalos, mulas e rezes - que depois comprou. E viveu ali
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durante cinco anos quase, antes de chegar à fala com mulher branca da comarca, tal como não tinha um móvel na casa e pela mesma razão: não possuir ele nesse tempo nada que oferecer pudesse em troca de móvel, gado ou mulher. Sim. Ele a todos pôs o nome, ao primeiro que veio antes de Clytie, a Henry e até a Judith, com a mesma temeridade, sarcástica e robusta, pela sua voz pôs o nome àquela fecundidade irónica, os dentes de dragão* que, salvo dois, foram fêmeas. Por mim, agradou-me sempre esta ideia: que ele pretendia dar-lhe o nome de Cassandra, que uma verdadeira economia dramática o levava não só a gerar como também a designar o áugure que havia de presidir à sua própria ruína, e que apenas confundiu os nomes por engano, coisa natural num homem que teve por certo de aprender tudo sozinho) Quando ele voltou da guerra, isto em 66, ela não o tinha visto um cento sequer de vezes na vida. E o que viu então foi o ogre da sua infância, o rosto visto uma vez e que depois reaparecia de quando em quando, e por ocasiões que ela não podia contar nem recordava, tal a máscara na tragédia grega, que passa não só de cena para cena como de actor para actor, e atrás da qual os dias e os factos sucediam sem cronologia ou sequência, ficando ela incapaz de verdadeiramente dizer quantas vezes o tinha visto ao certo porque, dormindo ou velando, a tia lhe ensinara a não ver mais coisa alguma. Nessas lúgubres ocasiões, e circunspectas, e mesmo cerimoniosas, quando iam passar as duas o dia a Sutpen's Hundred e a tia mandava que ela fosse brincar com os sobrinhos exactamente como poderia ter mandado que tocasse ao piano alguma coisa para fazer sala, não o via ela sequer à mesa do jantar, porque a tia sempre se arranjava para que a visita coincidisse com uma ausência dele; e provavelmente Miss Rosa fugiria de encontrá-lo ainda que ele estivesse em casa. E nas quatro ou cinco vezes no ano em que Ellen trazia os filhos a casa do avô, a tia (essa mulher vingativa e forte e firme que parece ter tido mais fibra de homem que Mr Coldfield, e em boa verdade foi não só a mãe como um pai para Miss Rosa) ensombrava essas visitas com a mesma atmosfera de tão soturna como encastelada conspiração e aliança contra os dois adversários, um dos quais - Mr Coldfield - pudesse ele ter mantido as suas posições ou não, tinha há muito retirado as atalaias, desmontado a artilharia, e recolhido à cidadela inexpugnável da sua rectidão passiva: e o outro - Sutpen - que provavelmente as poderia ter defrontado e até vencido mas nem sequer se apercebia de que era um inimigo posto em ordem de batalha. Porque ele nem vinha àquela casa para a refeição do meio-dia. Fora talvez por algum escrúpulo do sogro, a quem o ligavam laços cujas causas verdadeiras, e origem, nem a tia nem Ellen ou Miss Rosa conheceram e Sutpen havia de revelar a uni só homem - e assim mesmo sob o juramento de sigilo enquanto Mr Coldfield vivesse - por respeito à fama de imaculada conduta moral que Mr Coldfield ciosamente sempre alimentara - e que, dizia o teu avô, o próprio Mr Coldfield, e pela mesma razão, havia jamais de revelar. Ou a razão talvez fosse a que Míss Rosa te deu e a tia lhe deu a ela: que, se ele já tomara do sogro tudo aquilo que Mr Coldfield possuía e Sutpen podia ambicionar ou querer, não tinha (Sutpen) a coragem de encarar o sogro nem a delicadeza ou a decência de
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completar o cerimonial grupo de família ao menos em quatro dias no ano. Ou talvez a razão fosse aquela que o próprio Sutpen. invocava e por isso mesmo a tia nunca aceitou: não vir ele todos os dias à vila e, quando vinha, preferir (frequentava já o bar) a convivência dos homens que ao meio-dia se juntavam na HoIston House.
Era esse o rosto que, nas raras ocasiões de o ver, lhe ficava defronte à mesa de Sutpen's Hundred - o rosto do inimigo que não sabe sequer da batalha em que o puseram. Ela tinha dez anos nessa altura, e depois do abandono da tia (Miss Rosa governava então a casa do pai como a tia fizera dantes e até à noite em que galgou a j anela e desapareceu) j à não tinha quem a fizesse brincar com os sobrinhos nesses dias funéreos e formais, e nem ela era obrigada sequer a lá ir, a respirar o mesmo ar que esse homem respirava, e onde, ausente embora, dele permanecia, dele rondava, o que ela chamou um triunfo sarcástico e vigilante. Ela apenas ia agora a Sutpen's Hundred uma vez no ano quando, nos seus fatos doinárigueiros, jornadeava com o pai as doze milhas na maltratada e possante charrete, seguindo a parelha possante e mesquinha, para lá passar o dia. Era Mi- Coldfield quem já teimava que fossem, ele que nunca, no tempo da tia, as acompanhou, por um sentido talvez do dever, que era a razão que ele invocava, e neste caso até a tia aceitasse talvez por não ser a verdadeira, que nem Míss Rosa teria decerto acreditado na verdadeira razão: esta: que era a Mr Coldfield necessário ver os netos, e se sentia ele sempre mais apreensivo ao pensar na hora em que o pai contaria ao filho, pelo menos ao filho, qual fora aquele antigo trato do pai e do avô, sem saber ao certo se a revelação já fora feita. Embora longe, a tia legava e invocava, a cada expedição como esta, ressaibos duma soturna investida contra, agora mais do que nunca, um inimigo que sem o saber estava posto em ordem de batalha. Porque estando longe a tia, Ellen arrenegara desse triunvirato que Miss Rosa quis, sem dar-se conta, continuar a duas. Nesse tempo ela estava completamente sozinha, e sozinha ela enfrentava à mesa de Sutpen's Hundred, e sem socorro, nem mesmo de Ellen (Ellen cumpria agora uma total metamorfose, emergindo para o lustro que então iniciava como em definitivo e consumado e verdadeiro renascimento); - posta à mesa de Sutpen's Hundred diante desse inimigo que nem consciência tinha sequer de que ali não estava no lugar de anfitrião e cunhado mas de segundo signatário do armistício. Ele provavelmente nem se dignava notá-la, comparada ela, confrontada, com a família dele e os filhos - a criança miúda, franzina, cujos pés, mesmo quando crescesse, nunca assentariam no chão ainda que sentada em cadeira de sua casa, uma que houvesse de herdar, quanto mais em outras
- meros objectos - que entesourasse por complemento e expressão de um
carácter individual, assim todos fazem, comparada até com Ellen que, embora fosse também de ossatura pequena, era o que se chama roliça (e teria sido, se a vida nela não declinasse num tempo em que até os homens pouco achavam que lhes matasse a fome, e o fim dos seus dias não conhecesse o infortúnio, deveras rotunda. Gorda, não direi: mas redonda e completa, de cabelo branco, os olhos ainda jovens, até uma certa frescura ainda no que já seriam papadas em vez de faces, mãos gordinhas, sem uma gelha, com anéis e entre- 44

laçadas, em tranquilo antegosto da mesa, sobre o damasco diante de um Haviland* e sob os lustres que ele há muitos e muitos anos trouxera nas carroças para espanto e afronta e ultraje da vila) comparada com Judith, já mais alta do que Ellen, e com Henry, que embora não fosse tão alto para os seus dezasseis anos quanto era Judith para os seus catorze prometia já porém alcançar um dia o pai; - esta criatura, este rosto, que mal pronunciava uma palavra em toda a refeição, de olhos (como tu disseste) que eram dois carvões cravados em fofa massa de pão, e cabelos gravezinhos dessa estranha cor de rato onde raro brilha o sol, comparada com o rosto de Judith e o de Henry, corados ambos do ar: Judith com o cabelo da mãe e os olhos do pai, e Henry com o cabelo entre o ruivo do pai e o negro de Ellen e olhos cor de avelã, vivos e escuros; - este seu corpo miúdo com um quê de singular, paradoxal, desarmonia como um fato às pressas e num aperto alugado para algum baile de máscaras onde ela não queria estar: essa aura de criatura, por sua escolha proposital, enclausurada, ainda nas convulsões duma aprendizagem forçada, que não voluntária nem submissa, do acto de respirar - esta escrava e serva da carne da sua carne, que ainda agora esperava que lhe dessem alforria os poemas pueris sobre os seus irmãos na morte - o rosto, o mais pequeno do grupo, a vigiá-lo, que lhe ficava defronte à mesa de Sutpen's Hundred, com singular e quieta e profunda gravidade, como se deveras tivesse o dom da revelação ganho por essa aliança com o fluido berço da realidade (o tempo) que aprendera ou cultivara escutando, atrás das portas, não o que ouvia por elas mas, ao tomar-se dormente e receptiva, incapaz de opinião, discernimento ou incredulidade, o prenúncio da ruína, que faz os verdadeiros profetas e verdadeiras às vezes as suas profecias, da futura catástrofe, em que o rosto do ogre da sua infância havia de afinal desvanecer-se, e tão completamente, que ela aceitaria casar-se com aquele que antes assim lhe aparecera.
Poderá ter sido essa a última vez que ela o viu. Porque eles deixaram de lá ir. Nir Coldfield deixou de lá ir. Nunca se combinou um dia certo para a visita. De manhã ele aparecia ao almoço com a sobrecasaca preta* do casamento, decente e pesada, que usou cinquenta e duas vezes no ano até Ellen se casar, e depois cinquenta e três desde que a tia os deixara e até àquela hora em que a vestiu para não mais a despir e subiu ao sótão e nele se fechou, pregando a porta por dentro e lançando fora o martelo, e fechado ali morreu. Miss Rosa então recolhia-se e voltava no formidável fato de seda castanha ou preta que a tia escolhera para ela há anos, e que apesar de puído ela continuou a usar aos domingos e em certas ocasiões até à hora em que o pai, tendo resolvido que a tia não regressava, permitiu a Miss Rosa que usasse a roupa abandonada por ela na noite em que se amorou. Subiam então para a charrete e partiam, não sem que Nir Coldfield primeiro descontasse às duas negras a refeição do meio-dia que elas não tinham de preparar, e (assim se disse na vila) debitasse a tosca janta de sobras que as duas haviam de comer. Chegou por fim um ano em que não foram. Decerto Mr Coldfield não vestiu para o almoço a sobrecasaca preta, e mais dias passaram e ele não a vestia, e ponto final, Ele acharia agora talvez, criados os netos, que a letra sobre a
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sua consciência fora liquidada, estando Henry lá longe, na Universidade do Mississipi em Oxford, e Judith mais afastada - naquela fase de transição entre menina e mulher, e mais inacessível por isso mesmo ao avô que ela raramente via ou tinha visto ou lhe seria porventura indiferente ver ou não - essa fase em que, visíveis embora, as jovens aparecem como veladas por um vidro e onde não as pode alcançar nem a voz: a fase em que elas vivem (vivia essa estabanada, capaz - à evidência - de correr mais depressa que o irmão, trepar mais alto, cavalgar e lutar com o irmão e a seu lado) numa luminescência de pérola, sem sombras, e da qual são elas parte; em
nebulosa suspensão mantidas, estranhas e imprevisíveis, até nas formas do corpo delicadas e fluidas, insubstanciais; não por si mesmas flutuando avante mas aguardando apenas, parasitárias, poderosas, plácidas, atraindo a si sem esforço o pós-génito no qual e do qual brotam e em torno de si se formam; o seio, a coxa, o quadril.
Começava agora o período que veio a terminar nessa catástrofe que, operando em Miss Rosa a tão completa mudança, lhe permitiu aceitar o casamento com um homem no qual aprendera a ver o ogre. Não foi uma contravolta de carácter: esse permaneceu inalterado. Nem mesmo se alterou de forma alguma o seu habitual proceder. E mesmo que não tivesse então morrido Charles Bon ela muito provavelmente, mais cedo ou mais tarde, iria viver para Sutpen's Hundred depois da morte do pai, e uma vez em Sutpen's Hundred teria provavelmente ali ficado até ao fim dos seus dias, e decerto ela esperava que assim acontecesse quando para lá se mudou. Mas se Bon estivesse vivo, e mais, casado com Judith, e Henry estivesse neste mundo que ela conhecia, ela mudava-se para lá (se porventura se mudasse) apenas quando o quisesse, vivendo (se porventura vivesse) com a família da irmã que morreu na qualidade apenas de tia, que o era realmente. Não foi o carácter: mau grado os seis anos talvez que se passaram sem que ela voltasse a vê-lo, e os quatro anos contados em que viveu alimentando à noite o pai secretamente, que se escondia no sótão da polícia militar Confederada, e escrevendo ao mesmo tempo heróicos poemas sobre aqueles homens de quem o pai se escondia e que o teriam baleado ou enforcado sem julgamento sequer se o tivessem descoberto - esses, convém lembrar, ao lado de quem se batera o ogre da sua infância e (ele trouxe consigo a mençao por valor militar do punho do próprio Lee) se batera bem - o rosto que ela para Sutpen's Hundred levava, para ali ficar até ao fim dos seus dias, era o mesmo que o vigiara à sua mesa e que por seu lado ele tão-pouco saberia dizer quantas vezes tinha visto ou onde ou quando, não porque fosse incapaz de o esquecer mas porque não conseguiria retê-lo na memória o bastante para dar dele uni retrato dez minutos depois que afastasse dele os olhos, e atrás do qual rosto a mulher que fora essa criança o vigiava agora, com a mesma soturna e fria gravidade.
Conquanto se passassem alguns anos até voltar a ver Sutpen, ela viu por esse tempo a irmã e a sobrinha mais amiúde que antes. Ellen estava nesse tempo no pleno auge da sua arrenegação, para usar uma palavra da tia. Dava mostras não só de aquiescer, e conformar-se com a vida e o casamento que
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tinha, mas de realmente orgulhar-se tanto duma como doutro. Havia desabrochado, como se o Destino comprimisse o Verão tardio, que de norma se vai gradualmente iluminando até fanar-se graciosamente por seis ou oito anos, em três anos ou quatro, a compensá-la do futuro ou a saldar as contas, a pagar o débito que a Natureza, sua esposa, com o nome dele firmara. Ela estaria com trinta e muitos, era roliça, de rosto ainda puro. Como se as marcas, fossem quais fossem, que por existir no mundo se traçaram até à hora em que a tia desapareceu, se tivessem apagado, erradicado ao menos, de entre o osso e a pele, de entre a soma de experiência e o invólucro aonde ela reside, pelos anos que entretanto passaram, anos de carne robustecida e quieta.
O seu ar, o seu porte, era quase régio agora - ela e Judith vinham com frequência agora à vila, visitando as mesmas senhoras, algumas delas avós, que a tia quisera forçar a assistir ao casamento de há vinte anos atrás, e, dentro da escassez que oferecia a vila, faziam as suas compras - como se ela por fim lograsse refúgio não só da herança puritana mas da própria realidade; imolasse o marido ultrajante e os filhos incompreensíveis até fazer deles sombras, fugisse por fim para um mundo apenas de ilusão onde, a esguardo de qualquer mal, se movia, vivia, entre uma atitude e outra no cenário de si mesma, da maior grandeza a dama, do mais rico a esposa, dos mais afortunados mãe. Quando vinha às compras (havia agora em Jeiferson vinte lojas) toda ela se abandonava e, mesmo sem descer da carruagem, donairosa, convicta, volúvel, ia dizendo as maiores tolices, debitando as suas falas brilhantes e estudadas, sem sentido e a carácter do papel que para si escrevera, o da duquesa peripatética e esmoler de sopas e mezinhas de adereço que dispensava aos camponeses sem gleba nem vassalagem - essa mulher que, se tivera fortaleza de ânimo para suportar a dor e o infortúnio, podia ter ascendido a um verdadeiro estrelato no papel da matriarca no conchego da lareira como as velhas muito velhas, decidindo do orgulho e do destino da família, em vez de se voltar na hora extrema para o mais jovem membro dela pedindo-lhe que protegesse os outros.
Amiúde vinham, duas e três vezes por semana, à vila como à casa - a mulher pateta, volúvel, irreal, bem conservada, por seis anos ausente já do mundo - a mulher que deixara a sua casa e os parentes num dilúvio de choro, e numa região espectral e miasmática, semelhante quase aos pungentes confins do Estige, tinha gerado os dois filhos e depois se ergueu, qual borboleta do pântano, liberta do carrego do corpo e dos pesados órgãos do sofrimento e da experiência, para o vácuo luminoso e eterno dum sol parado - e a jovem, sonhando que não vivendo, num completo desapego da realidade, intocada pela realidade, que era quase como a surdez física. Para as duas, Miss Rosa não devia ser nada nesse tempo: não era a criança que antes fora objecto e vítima das atenções e cuidados inquebrantáveis e vingativos da tia desaparecida, e não era a mulher que o seu encargo de governar uma casa indicana, e a tia verdadeira não seria com certeza. E não te sei dizer qual das duas, irmã ou sobrinha, era por sua vez a mais irreal para Miss Rosa - a mulher adulta que escapara à realidade fugindo para uma região cariciosa povoada por bonecos, ou a rapariga que dormia acordada num quê de suspensão da
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vida, tão completamente física a ponto de assemelhar-se ao estado que precede o nascimento, e da outra fronteira da realidade tão afastada quanto Ellen já da sua, jornadeando até à casa duas e três vezes por semana, e uma vez, no Verão dos dezassete anos de Judith, ali se demorando antes de seguirem a estrada de Mênfis onde comprariam roupas para Judith; sim: o enxoval. Isto foi no Verão que se seguiu ao primeiro ano que Henry passou na universidade, foi depois de ele ter trazido a casa Charles Bon, pelo Natal, e outra vez para passar uma semana ou pouco mais nas férias de Verão antes de Bon tomar o caminho do Rio e o vapor que o levaria de volta a Nova Orleães; o Verão em que o próprio Sutpen partiu em viagem, a negócios, disse Ellen, ou espalhou, sem dúvida por não se aperceber, de tal maneira ela vivia nesse tempo, de que ignorava para onde fora o marido e que nem consciência tinha da sua falta de curiosidade, e ninguém, tirando o teu avô e talvez Clytie, jamais soube que Sutpen tinha também ido até Nova Orleães. Elas entravam naquela casinha soturna, escura, atravancada, onde mesmo nesse tempo, tinham-se passado quatro anos, a tia como que estava ainda atrás da porta, a mão pousada já na maçaneta, e que Ellen enchia com dez ou quinze minutos de estridente clamor e depois deixava, levando consigo a filha sonhadora e sem vontade própria e que não pronunciara uma só palavra; e Miss Rosa, que em realidade era a tia da rapariga e pelo conto dos anos devia ter sido sua irmã, e que por experiência real e reais esperanças e oportunidades devia ser a sobrinha, ignorando a mãe para seguir a inacessível filha que se afastava, com uma ternura míope e muda e sem migalha de inveja, projectando em Judith as quimeras e ilusões abortadas da sua juventude, essa perdida e frustrada juventude, oferecendo a Judith a única dádiva (por necessidade oferecida aos aprestos de uma noiva que não à própria noiva; foi Ellen que o contou, entre gritinhos de chiste, mais que uma vez) ao seu alcance; ofereceu-se para ensinar Judith a governar uma casa e a destinar as refeições e a fazer o rol da roupa, recebendo em paga do oferecimento um olhar insondável e vazio, um desatento "O quê? Que disseste?" enquanto Ellenjá nesse momento estridulava com surpreendido apreço. Depois desapareceram - a carruagem, os embrulhos, o sécio riso de Ellen, o devaneio impenetrável da sobrinha. Quando tornaram à vila, e a carruagem parou ao portão de Mr Coldfield, uma das pretas saiu a dizer que Miss Rosa não estava.
Nesse Verão também voltou a ver Henry. Não o via desde o outro Verão, conquanto ele tivesse passado o Natal em casa com o amigo da universidade, e ela tivesse ouvido falar dos bailes e das festas natalícias em Sutpen's Hundred mas ela e o pai não saíram. E quando Henry, acompanhado por Bon, parou no caminho de regresso à universidade, já depois do Ano Novo, para falar à tia, ela não estava de facto em casa. Por isso apenas o viu no Verão seguinte, passado um ano inteiro. Estava ela às compras na vila; estava na rua a conversar com a tua avó quando ele passou. Ele não a viu; passou montado na égua nova que o pai lhe dera, com a sobrecasaca e o chapéu de um homem feito; a tua avó dizia que ele já estava da altura do pai e montava a égua com a soberba paterna, embora fosse de ossatura mais leve que Sutpen, como se o esqueleto pudesse carregar a soberba mas fosse ainda leve
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e ágil e não aguentasse por isso a pomposidade. Porque Sutpen representava também o seu papel. Havia corrompido Ellen de variadas maneiras. Era já o maior proprietário e plantador de algodão da comarca, fausto que tinha alcançado com as mesmas tácticas usadas antes para construir a casa - o
mesmo esforço inquebrantável que um outro fito não se consente, e o desprezo mais completo pelo que a vila opinasse dos seus actos ou conjecturasse, por algum indício, daqueles outros que não testemunhava. Ou seja, houve na vila quem nesse tempo ainda representasse o alma-negra em negociata escusa, quem julgasse, uns, ser a plantação apenas uma fachada encobrindo o seu verdadeiro e sinistro ofício, quem julgasse, outros, haver ele achado forma de trampolinar o mercado algodoeiro e receber por cada fardo mais que o recebido por qualquer homem honesto, e quem parecesse acreditar que os cafres, que ele trouxera para ali, tinham artes de engendrar por cada acre de terra mais algodão do que um nigro caparoeiro poderia lá colher. Não era um homem estimado, ele, (e é evidente que estima era coisa que não ambicionava de resto) mas temido, o que parecia diverti-lo se é que não lhe agradava deveras, Mas era aceite; ele tinha, já se vê, tanto dinheiro que ninguém o podia rejeitar agora ou molestar seriamente. Conseguira isto - uma
plantação próspera (tinha já um feitor; era o filho daquele mesmo xerife que o prendera ao portão da noiva no dia do seu noivado) em escassos dez anos após o casamento, e agora também ele desempenhava o seu papel - o papel do homem arrogando abastância e ócio que, por lhe terem o ócio e a abastança fomido as carnes, se tornava quase pomposo. Sim, ele tinha corrompido Ellen a ser mais que arrenegada, embora, tal como ela, não se desse conta de que este seu desabrochar também era forçado e enquanto representava esta cena perante o seu público, por trás o destino, os fados, o castigo divino, a ironia - o contra-regra, chama-lhe como quiseres - já desmontava o cenário e vinha custosamente arrastando as espúrias e factícias formas e sombras da cena seguinte. - "Ali vai o - " disse a tua avó. Mas Miss Rosa já o tinha visto de onde estava, ao lado da tua avó, a cabeça mal chegando ao ombro da tua avó, o corpo magro num dos vestidos abandonados pela tia, que encurtara para servir à sua pequena estatura quem nunca aprendera a coser, como assumira o governo da casa e se oferecia para ensinar Judith a fazer o mesmo quem nunca aprendera a cozinhar ou a fazer outra coisa além de pôr-se à escuta atrás das portas fechadas, e ali de onde estava, com um xaile pela cabeça como se tivera em vez de quinze anos cinquenta, olhando o sobrinho que se afastava, ela disse, "Mas... ele rapou as barbas."
Depois deixou até de ver Ellen. Ou seja, Ellen também deixou de vir à casa, deixou de interromper a semanal praxe da carruagem que seguia de loja em loja e donde, sem descer, Ellen mandava comerciantes e caixeiros buscar os tecidos e as escassas fancarias e bugigangas que eles vinham trazer, sabendo bem, sabendo até melhor do que ela, que ela nada compraria e
apenas tudo apalpava desdobrando e remexendo para afinal rejeitar, e isto sempre num jorro de loquacidade alegre e impertinente. Desdenhosa ela não era, nem mesmo arrogante a bem dizer, mas abusava cariciosamente, num jeito quase infantil, da paciência ou da boa educação ou da prestativa obri- 49

gação desses homens, os comerciantes e caixeiros; e depois rumava à casa para a encher também de um fútil clamor de vaidade, conselhos impossíveis e fátuos sobre Miss Rosa e o pai e a casa, sobre as fatiotas de Miss Rosa e a disposição dos móveis e as refeições e como eram preparadas e até as horas a que deviam ser servidas. Porque se aproximava agora o tempo (estava-se então em 1860, e até Mi- Coldfield porventura admitiria que era inevitável uma guerra) em que o destino da família Sutpen, que por vinte anos tinha sido um lago enchendo num sereno vale de serenas fontes e espraiando, subindo quase imperceptivelmente, e no qual os quatro membros da família flutuavam em soalheira suspensão, sentiu o primeiro movimento subterrâneo em direcção à ribeirada, à ravina, que seria também a catástrofe da pátria, e os quatro, que plácidos flutuavam, se voltaram uns para os outros, não em sobressalto ainda, nem apreensivos, mas apenas em alerta, sentindo a sinistra cena, e nenhum deles chegado ainda a esse ponto em que um homem deita os olhos em redor aos companheiros de infortúnio e pensa Quando é que eu me deixo de querer salvar os outros e me salvo é a mim? não se apercebendo sequer de que esse momento se aproximava. Por isso não viu Miss Rosa nenhum deles, quem nunca vira (nem veria já com vida) Charles Bon; Charles Bon de Nova Orleães, o amigo de Henry, que não era apenas alguns anos mais velho do que Henry mas a bem dizer passara já a idade em que se frequenta um colégio e por certo estava um tanto deslocado naquele que frequentava - um pequeno colégio universitário, recentemente fundado no interior, ou direi nos ermos, do Mississípi, a trezentas milhas dessa mundana cidade, quase estrangeira, que era a sua - um jovem com uma distinção e uma segurança mundanas e alheias à sua pouca idade, belo rapaz, aparentemente rico, e tendo por família apenas a vaga figura dum tutor em vez de pais - uma personalidade que no remoto Mississipi desse tempo deve ter ganho parecenças com a fénix, que adulto surgiu sem ter tido infância, intocado pelo tempo, que não nasceu de ventre de mulher e, desaparecido, não deixou ossada ou cinzas - um homem com um à-vontade e um ar de soberba galhardia em comparação com as quais a arrogância pomposa de Sutpen era uma fanfarronada pífia, e o próprio Henry afinal um rapazola imberbe e tosco. Miss Rosa nunca o viu; esta era uma figura, uma imagem. Não foi isto o que Ellen contou à irmã: Ellen que vivia a plena alciónica bonança do seu Verão de borboleta e agora com mais esse encanto que lhe dava a grácil e donairosa e voluntária rendição da juventude à herdeira do seu sangue, atitude e proceder coincidentes com a duração do noivado que é, para as mães que o desejam, a maneira de fazer de si as noivas no casamento das filhas. Quem os não conhecesse, e ouvisse Ellen, quase poderia crer que o casamento, e o que depois se passou indicaria não ter sido o casamento mencionado sequer pelos dois jovens aos pais, tinha até já sido celebrado. Ellen nem uma só vez mencionou que houvesse amor entre Judith e Bon. Nem insinuou que houvesse. O amor, entre esses dois, era assunto inteiramente morto e encerrado, como a questão da virgindade o seria quando nascesse o primeiro neto. Ela falava de Bon como se ele fosse três objectos inanimados num só, ou talvez um objecto inanimado para o qual tanto ela como a famí- 50

lia haviam de achar três usos concorrentes: um traje que Judith envergasse como usaria a amazona ou o vestido de baile, um móvel que viesse completar e rematar a riqueza da sua casa e da sua posição, e um mentor e exemplo que a Henry corrigisse os modos e as vestimentas e as falas de provinciano. Ela parecia ter iludido o tempo. Dava uma outra verdade àqueles anos passados sem que neles sucedesse lua-de-mel ou outra qualquer mudança, e dos quais assomavam os (agora) cinco rostos num quê de frescura eterna e fria, como retratos pintados, expostos no vazio, figurado cada um na prometida flor da idade, com as frontes desenrugadas de pensamento ou experiência, tendo os originais deles vivido e morrido há tanto tempo que alegrias e pesares se tinham por força perdido até da memória dessas tábuas que orgulhosos pisaram, em atitude pisaram, e os tinham visto rir e chorar. Assim era, e Miss Rosa entretanto sem atender, que formara a imagem logo a primeira palavra, talvez à menção do nome, Charles Bon; a solteira condenada aos dezasseis anos a sê-lo por toda a vida, sentada à luz dum esplendor de ilusões como se este fosse o colorido raio de lâmpada num cabaré, e ela pela primeira vez na vida ali, e o raio estivesse percorrido por um esplendor irreal de poeiras cintilantes dardejando sobre ela, suspendendo por segundos e seguindo. Ela não tinha inveja de Judith. Nem pena de si tão-pouco, ali sentada como estava, com um vestido caseiro e mal-ajeitado (os vestidos, já usados por vezes mas na sua maioria novos, que Ellen de quando em quando lhe dava, eram sempre de seda, claro está) que a tia abandonara ao fugir com o negociante de cavalos e mulas talvez na esperança ou até na firme intenção de nunca mais o vestir, continuamente piscando os olhos e fitando a irmã que falava. Seria provavelmente um desespero plácido, um alívio apenas, por consumar assim completa a renúncia no dia em que Judith fosse imolar a recompensa vicária da sua frustração vivendo um conto de fadas. Parecia um conto de fadas quando Ellen mais tarde o contou à tua avó, mas seria um conto de fadas escrito e representado por uni clube de senhoras elegantes. Para Miss Rosa porém devia ter sido autêntico, e não só plausível como justificado: daí o seu comentário, que provocou em Ellen de novo (ela também contou isto, pela graça infantil que lhe achava) guinchos de impaciente e divertida surpresa. "Bem o merecemos", disse Miss Rosa. "Merecer-nos? Quem, ele?" retorquiu Ellen, provavelmente já num gritinho. "É claro que sim, menina - se queres pôr as coisas nesses termos. E eu espero bem que nunca te esqueças de que a família Coldfield tem como retribuir qualquer honra particularmente subida que o casamento lhe possa conferir."
Naturalmente para isto não há resposta possível. Miss Rosa pelo menos, que Ellen o contasse, não achou resposta que desse. Ficou a ver Ellen afastar-se e depois tratou de preparar a dádiva segunda e última que podia fazer a Judith. Ela dois talentos tinha agora, este legado também pela tia, que a ensinara a governar uma casa e a ajustar ao corpo um vestido galgando pela janela uma noite, embora este segundo talento se tenha revelado já tarde (ou, digamos, se tenha repercutido já tarde) pois quando a tia partiu Miss Rosa não alcançava ainda tamanho para vestir as roupas abandonadas ainda que lhes subisse a bainha. Tratou ela de fazer em segredo roupas para o enxoval
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de Judith. Arranjou o tecido na loja do pai. Nem poderia tê-lo arranjado noutro sítio. Disse-me a tua avó que nesse tempo Miss Rosa não sabia contar dinheiro, trocados, que ela, conhecendo embora na teoria a sequência das moedas, ao que parece nunca teve ao seu alcance dinheiro que pudesse ver, tocar, com que pudesse praticar e comprovar; que em dias certos da semana ela saía com um cesto a fazer compras na vila, em certas lojas que Mr Coldfield previamente indicara, sem que moeda mudasse de mãos ou sequer soma fosse perguntada ou respondida, e que ao entardecer Mr Coldfield traçava o seu percurso pelos débitos rabiscados em papel, em parede ou em balcão, e os pagava. Por isso ela teve de arranjar o tecido na loja do pai. E como ele trouxe para Jefferson todo o seu comércio numa só carroça, e isto numa altura em que tinha mãe e irmã e mulher e filhos a sustentar, enquanto agora só tinha esta filha a seu cargo, e temos ainda a considerar aquele seu desinteresse profundo pela acumulação de bens materiais, que permitira à sua consciência impor a renúncia desse antigo trato em que o genro o envolvera não só à custa do lucro devido mas ainda com o sacrifício do capital que investira, as mercadorias da loja, que a princípio foram um sortimento dos indispensáveis mais rudimentares, e que à primeira vista nem sequer dariam para o sustento dele e da filha com o que houvesse nas prateleiras, não tinham sido aumentadas em número, quanto mais em variedade. Contudo era ali que ela teria de procurar o tecido com que fizesse as roupas íntimas e feminis que seriam as do seu próprio e vicário enxoval - e podes imaginar que ideia fazia Miss Rosa do que são tais roupas, e ainda mais os resultados dessa ideia quando ela terminasse a obra sem conselhos de ninguém. Como ela terá conseguido arranjar o necessário na loja do pai, ninguém o sabe. Ele não foi que lho deu. Teria considerado seu dever acudir com roupas à neta se ela estivesse indecentemente arroupada, ou coberta de farrapos, ou com frio, mas nunca para um enxoval. É por isso que eu digo que ela o roubou da loja. Deve ter roubado. Deve tê-lo tirado mesmo nas barbas do pai (a loja era pequena e ele não tinha caixeiros e de onde quer que estivesse veria qualquer recanto) com essa intrepidez amoral, essa feminina atracção pela rapinice, mas mais provavelmente, ou pelo menos eu prefiro pensar assim, por meio dalgum subterfúgio de tão manifesta e desesperada clareza como só a inocência o pode arquitectar, e foi a sua simplicidade mesma que logrou o pai.
Nem Ellen já via sequer. Tinha Ellen porventura cumprido o seu destino, completado o brilhante e inútil meio-dia, e a tarde inútil e brilhante do seu Verão de borboleta, e desaparecera, talvez não de Jefferson mas pelo menos da vida da irmã, que só a veria uma vez mais, à hora da morte, na cama dum quarto obscuro, na casa que um fatídico revés tinha já tocado a ponto de fragmentar os sinistros alicerces em que se erguera e de arredar os dois esteios varões, marido e filho - um para os riscos e perigos da batalha, o outro ao que parecia para o esquecimento. Henry sumira-se. Soube-o ela também quando passava os dias (e as noites; por certo ela teria de esperar que o pai adormecesse) cosendo laboriosamente e sem arte as roupas que fazia para o enxoval da sobrinha, e que ela tinha de esconder não só do pai como também das duas negras, que poderiam contar tudo a Mr Coldfield 52

franzindo rendas com fios e linhas dum emaranhado que era o seu tesouro, e pregando-as à roupa, enquanto chegavam notícias da eleição de Lincolti e da tomada de Sumpter *, e ela mal ouvia, vagamente escutava o dobre anunciando a morte e a ruína do seu país natal entre dois laboriosos, canhestros pontos numa roupa que ela não havia nunca de vestir ou despir para um homem que ela nem sequer pôde conhecer com vida. Henry sumira-se: ela apenas sabia o que sabia a vila - que, no Natal, Henry trouxera Bon a passar em sua casa as festas, o amigo de Nova Orleães, bonito e rico, de cujo noivado com a filha enchera a mãe os ouvidos à vila durante aqueles seis meses. Voltaram os dois e já a vila esperava que se anunciasse a data do casamento. Foi então que alguma coisa aconteceu. Ninguém soube o quê: se alguma coisa entre Henry e Bon de uma parte e Judith da outra, se entre os três jovens de uma parte e os pais da outra. Mas o certo é que, chegado o dia de Natal, Henry e Bon partiram. E Ellen ninguém a viu (parece que se recolheu ao quarto obscuro que não mais iria deixar até à hora da morte, passados dois anos) e ninguém podia adivinhá-lo pelos rostos ou actos ou proceder quer de Sutpen quer de Judith, e assim foi que a história chegou através dos negros: que na noite de Natal tinha havido uma desinteligência, não entre Bon e Henry ou Bon e Sutpen, mas entre o filho e o pai, e Henry tinha abjurado formalmente o pai e renunciado ao que seria seu por direito e à casa onde nascera e que tinha partido a cavalo com Bon, de noite, e a mãe estava prostrada - embora, assim se disse na vila, não tanto pelo transtorno do casamento como pelo choque de ter a realidade surgido na sua vida: esse golpe de misericórdia como o do machado antes de cortar as goelas da rês. Embora Ellen, claro está, não o soubesse.
Foi isto o que Miss Rosa ouviu. Ninguém sabe o que terá pensado. A vila supunha que o acto de Henry fora fruto duma inflamada natureza juvenil, e ele que para mais era um Sutpen, e que o tempo tudo cura. Não tenho dúvidas que o proceder de Sutpen e de Judith um com o outro, e de ambos com a vila, de certa maneira contribuiu para esta suposição. Eram vistos juntos na carruagem, na vila, uma vez por outra, como se nada tivesse acontecido, pelo menos entre eles, o que por certo não seria o caso se a desinteligência fosse entre Bon e o pai, e provavelmente não o seria também se a desavença fosse entre Henry e o pai, porque a vila conhecia a união que ligara Judith e Henry, união mais íntima que a tradicional lealdade entre o irmão e a irmã: uma singular união: quase uma rivalidade feroz e impessoal, como entre dois cadetes de um regimento de elite que do mesmo prato comem e na mesma manta dormem e os mesmos perigos enfrentam e são capazes de dar a vida um pelo outro, não por amor do outro mas por amor à inteireza do regimento. Miss Rosa não soube mais nada. Mais nada podia saber do que sabia a vila, pois aqueles que sabiam (Sutpen ou Judith: Ellen não, que, primeiro, a ela ninguém diria nada, e se o dissessem ela esqueceria, incapaz de assimilar o que ouvisse - Ellen a borboleta que já nem o ar afogado em sol sustentava, inesperadamente abandonada, agora de cama, entrelaçando as mãos gordinhas sobre a colcha no quarto obscuro, e com os olhos porventura nem sofrendo mas na grande perplexidade apenas de quem não compreende) não
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lhe contariam nada a ela como não contariam a ninguém de Jefferson ou qualquer outro lugar. Provavelmente ela foi lá, provavelmente uma só vez para nunca mais, e decerto nada perguntou, nem sequer a Judith, por saber talvez que a ela ninguém contaria nada ou talvez porque esperava. E ela deve ter dito a Mr Coldfield que não se tinha passado coisa de importância, e evidentemente ela própria acreditava no que dizia, pois continuou costurando as roupas destinadas ao casamento de Judith. Ainda costurava quando o Mississipi abandonou a União e quando os primeiros uniformes Confederados apareceram em Jefferson, onde o coronel Sartoris e Sutpen organizavam o regimento que partiu em 61 com Sutpen, o segundo comandante, cavalgando à mão esquerda do coronel Sartoris, no garanhão negro a que dera o nome de Scott *, sob o estandarte do regimento que ele e Sartoris tinham desenhado e as senhora da família Sartoris tinham feito com a seda dos próprios vestidos. Ele estava agora mais cheio de corpo, diferente não só do homem que fora nesse domingo de 33, quando entrou em Jefferson a cavalo, mas também do homem que fora quando se casou com Ellen. Imponente não seria ainda, conquanto já rondasse os cinquenta e cinco anos. A obesidade, o bojo, veio depois. Veio de súbito, logo duma vez, um ano depois do que terá desfeito o seu noivado com Miss Rosa e de ela ter abandonado o seu tecto para voltar à vila e à casa do pai e nunca mais lhe dirigir a palavra, salvo nessa única vez quando soube que ele estava morto. Encorpou de súbito, como se a perfeita estampa de homem, assim diziam os negros e Wash Jones também, tivesse alcançado o auge e no auge continuasse depois que os alicerces cederam e alguma coisa, entre a forma do corpo que os outros conheciam e o esqueleto insubmisso do que ele era em realidade, se tornasse fluida e, cativa da terra, fosse retesada e sofreada, como balão instável e sem vida, pelo invólucro dele que tinha atraiçoado.
Ela não viu o regimento partir porque o pai lhe proibiu que saísse de casa até o último homem ter passado, recusando permissão para que ela tomasse parte ou estivesse presente com as outras raparigas e mulheres na cerimónia da partida, não porque o genro fosse nele porém. Nunca foi Mr Coldfield úm homem irascível, e antes de ser declarada a guerra e de o Mississipi se confederar, os seus actos e palavras de protesto haviam sido não só calmos como até lógicos e muito razoáveis. Mas, lançada a sorte, ele deu mostras de ter-se transformado dum dia para o outro, tal como a filha Ellen transformara a sua natureza alguns anos antes. Assim que as tropas começaram a aparecer em Jefferson ele fechou a loja, e fechada a manteve enquanto os recrutas eram mobilizados e recebiam instrução, e fechada continuou mesmo depois, já saído o regimento, sempre que as tropas de passagem ali bivacavam por uma noite, recusando-se ele a vender géneros de qualquer espécie por qualquer preço não só aos militares mas, era o que se dizia, às famílias não só dos soldados como dos homens e mulheres que tivessem apoiado a secessão e a guerra apenas por palavras, opiniões. Não só ele proibiu que a irmã voltasse a viver em sua casa enquanto o marido, o negociante de cavalos, estava no exército, como nem sequer permitia que Miss Rosa chegasse à janela para ver as tropas. Fechara a loja definitivamente, e os seus dias,
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agora, passava-os em casa. Ele habitava com Miss Rosa as traseiras, trancada a porta da frente e fechadas e cerradas as adufas da frontaria, onde ele, isto dizia a vizinhança, todo o dia espiava por detrás das tabuinhas entreabertas como atalaia em seu posto, armado não de trabuco mas com a grande bíblia da família, onde o seu nascimento e o da irmã e o seu casamento e o nascimento de Ellen e os nascimentos dos dois netos e de Miss Rosa, e a morte da mulher (mas não o casamento da tia; foi Miss Rosa quem escreveu essa data, juntamente com a da morte de Ellen, no dia em que assentou a morte de Mr Coldfield e de Charles Bon e até de Sutpen) foram em seu tempo lançados na clara caligrafia de escriturário, até que um destacamento passava: ele então abria a bíblia e declamava numa voz áspera e forte, a sobrepor-se ao tropel dos passos, trechos do antigo e violento e vingativo misticismo que ele havia marcado previamente como um verdadeiro piquete disporia em fila os cartuchos pelo parapeito da janela. Então, certa manhã, ele soube que a loja tinha sido arrombada e saqueada, decerto por alguma companhia de fora, bivacando nos confins da vila, que os próprios conterrâneos seus, decerto, ao menos por palavras, a tal acirraram. Nessa noite ele subiu ao sótão com o martelo e a mancheia de pregos e lá se fechou, pregou a porta por dentro e atirou o martelo fora, pela janela. Cobarde não era. Era um homem de intransigente fortaleza moral, que veio para novas terras com pouco sortimento de mercadorias e com ele sustentou cinco pessoas em desafogo, ou sem sobressalto pelo menos. Conseguiu-o porque negociava a estreito, já se vê: não o teria conseguido se não fosse desta forma, ou então com desonestidade: e, como dizia o teu avô, um homem que, num território como era nesse tempo o Mississipi, limitasse a desonestidade à venda de chapéus de palha e cordões para as ferragens das coalheiras e carne salgada, sena de pronto asilado pela família por cleptomania. Mas cobarde ele não era, mesmo que por imposição de fé ele objectasse, dizia o teu avô, não tanto à ideia de se derramar o sangue humano e se perderem vidas, mas à ideia do esbanjamento: de se esgotar e esfiapar e destruir à toa material por uma causa, fosse qual fosse.
Agora Miss Rosa vivia para garantir a própria sobrevivência e a do pai. Até à noite em que saquearam a loja, da loja tinham vivido. Depois do escurecer costumava ela pegar num cesto e ir à loja, trazendo os mantimentos que chegassem para um dia ou dois. Assim as provisões, que já não eram renovadas havia algum tempo, estavam consideravelmente reduzidas mesmo antes do saque; e em breve ela, que nunca aprendera nada que tivesse utilidade porque a tia a educara na crença de que a sua pessoa era não só delicada como deveras preciosa, estava cozinhando por suas mãos aqueles mantimentos que eram cada vez mais difíceis de obter e cada vez de pior qualidade, e içando-os até ao pai, à noite, por meio de uma corda e uma polé do poço presa à janela do sótão. E foi assim por três anos, a alimentar à noite e em segredo, e do que mal chegaria para ela, o homem que ela odiava. Talvez dantes ela não soubesse que o odiava, e talvez nem então ela o soubesse, mas a primeira das odes aos soldados sulistas naquele seu porta-fólio, que continha, quando o teu avô o viu em 1885, mil folhas ou mais, estava datada
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do primeiro ano do encarceramento voluntário do pai e das duas horas da madrugada.
E depois ele morreu. Um dia a mão dele não veio pela manhã içar o cesto. Os pregos velhos ainda estavam cravados na porta que os vizinhos ajudaram a rebentar à machadada, indo encontrá-lo a ele, que vira o seu único sustento saqueado pelos defensores da sua causa, apesar de ele ter repudiado uns e outra por igual, com a comida de três dias, em que não tocara, posta à beira da enxerga, como se tivesse passado aqueles três dias fazendo mentalmente o balanço das suas contas terrenas, e achasse o resultado e lhe fizesse a prova, e depois votasse à cena contemporânea de loucura e de ultraje e de injustiça a impassibilidade inerte e firme de uma desaprovação fria e inflexível. Agora Miss Rosa não estava apenas órfã, estava também na miséria. Restavam da loja as quatro paredes, abandonadas até pelos ratos, desertas, vazias de tudo, até da freguesia que tiveram, pois ele perdera a estima da vizinhança, e da vila, e da pátria sitiada, todas três, com a sua atitude. Até as duas pretas que ele tinha alforriado assim que delas tomou posse (por uma dívida, manda a verdade que se diga, não por comprá-las), passando as cartas de alforria que elas não aprenderam a ler e pondo-as ao serviço por um salário semanal que retinha por inteiro, em liquidação do seu valor corrente no mercado ao tempo em que as assumira em dívida - e que em paga foram
com os primeiros negros que desertaram seguindo as tropas lanques -, já essas tinham partido. Por isso quando morreu ele nada possuía, de contado ou outros bens. Decerto o único prazer que na vida inteira ele teve não foi o escasso e espartano pecúlio que tinha acumulado antes de se cruzar o seu caminho com o do futuro genro; - não foi o dinheiro, mas o representar ele um saldo lá na contadoria espiritual que, na sua crença, havia de lhe pagar à vista as letras daquela abnegação e daquela fortaleza de ânimo. E decerto o que mais o magoava naquele trato com Sutpen não era o dinheiro perdido mas o sacrifício do seu pecúlio, o símbolo da fortaleza de ânimo e da abnegação, a que renunciou para manter intacta a solvência espiritual que a seu ver tinha já ele provado e garantido. Era como se tivesse de pagar duas vezes a mesma promissória por um banal descuido na data ou na assinatura.
Miss Rosa era portanto ao mesmo tempo órfã e pobre, sem mais parentes à face da terra que Judith e essa tia que ninguém voltara a ver desde que havia dois anos tentara passar as linhas Ianques e alcançar Ilinóis e a prisão de Rock Island onde o marido, que oferecera os préstimos de fornecedor de cavalos e mulas ao corpo de requisição da cavalaria Confederada e fora apa- nhado em flagrante, agora estava. Ellen morrera havia dois anos - a borboleta, a falena, surpreendida pelo vendaval e atirada contra um muro e ao muro presa, de asas batendo fracamente, sem grande teimosia em se agarrar à vida, sem grande sofrimento, pois de tão leve não teria batido com muita força, e sem grande memória já do brilhante vazio anterior ao vendaval, mas apenas num aturdido assombro de quem não compreende - o vulto brilhante e trivial que pouco se alterara, a despeito desse ano de escassez, pois todos os negros de Sutpen desertaram para seguir as tropas lanques; o sangue cafreal que ele trouxera para aqui e tentara misturar, cruzar, com o caparo- 56

eiro que já aqui existia, no mesmo empenho e para os mesmos fins com que cruzava o do garanhão e o seu próprio. E com o mesmo êxito: como se a sua mera presença obrigasse aquela casa a aceitar e guardar a vida humana; como se as casas de verdade possuíssem os cinco sentidos nossos, uma personalidade e um carácter adquiridos não das pessoas que nelas vivem ou viveram, mas já inerentes à madeira e ao tijolo, ou no tijolo e na madeira gerado- pelo homem ou homens que as conceberam e as construíram - nesta uma incontroversa manifestação de vazio, de abandono; uma resistência invencível a ser por alguém habitada, salvo com o assentimento, dos fortes e dos cruéis. Ellen tinha desencorpado algum tanto, claro está, mas era como se a borboleta, para finar-se, em realidade fosse definhando: a área do corpo e asa reduzindo-se algum tanto, o desenho das manchas apertando-se algum tanto, mas
sem ruga que se visse - o mesmo rosto liso, quase menineiro, sobre a almofada (embora Miss Rosa tenha descoberto nesse dia que Ellen vinha à evidência pintando o cabelo há anos), as mesmas 'mãos quase gordinhas e mimosas (agora sem anéis) sobre a colcha, e apenas a perplexidade nos olhos negros, que nada compreendiam, a revelar alguma presença de vida, e com
ela a aproximação da morte, quando pediu à irmã de dezassete anos (Henry até esse dia estava sumido apenas, repudiando voluntariamente o que seria seu por direito; não tinha ainda voltado para representar a sua cena final na perdição da família - e a isto, dizia o teu avô, também Ellen fora poupada, não que tivesse este sido o golpe que a aniquilasse, coroando tudo, mas teria sido malbaratado nela, pois a falena que se agarrava ao muro, mesmo que vivesse então, seria incapaz de sentir quer o vento quer a violência) que protegesse a filha. Por isso, natural seria que ela fosse viver em companhia de Judith, natural seria para ela ou para qualquer outra mulher, outra senhora, do Sul. Não seria preciso convidá-la; ninguém lhe exigiria que aguardasse um convite. Porque uma senhora do Sul é assim. Não seria pelo facto de, estando na miséria e sem esperança de algum dia sair dela, e sabendo ela que todos os que a conhecem isto mesmo sabem, e ela porém se mudar com a sombrinha e o bispote e mais três malões para casa do parente e se instalar no quarto onde a esposa costuma usar o linho bordado à mão, e onde ela não só dispõe dos criados que, eles também, sabem que jamais lhe será dada uma gratificação, porque sabem, tal como os brancos, que ela jamais terá de seu alguma coisa que lhes dar, mas entra na cozinha e desmanda a cozinheira e tempera a comida que se há-de servir ao gosto do seu paladar; - não seria por isto, não é disto que ela depende para a sua sustância: é como se ela se alimentasse de sangue, tal um vampiro, do sangue mesmo, não por ser insaciável, e não decerto voraz, mas por existir nela esse esplendor vão e sereno
das flores reclamando para si, porque o mesmo sangue lhe corre também nas veias, alimento do antigo sangue que os mares desconhecidos cruzou, e os continentes, e lutou contra as fadigas e a terra bravia, e as ocultas circunstâncias e a má sorte, com tranquilo desapego dos onerosos tormentos, que necessários são à salvaguarda mesmo do conforto e até da paz, que assim por um e outra são impostos ao que podemos chamar a fonte manancial, con- 57

temporânea e transmutável, essa que mantém os crassos corpúsculos portadores de alimento saudáveis e em basto número na corrente.
Era isso o que podia esperar-se dela. Mas ela não o fez. Embora Judith fosse uma órfã também, tinha contudo Judith ainda aquelas terras de cultivo, largas e abandonadas, e mais a Clytie para a ajudar, e lhe fazer companhia, e Wash Jones para lhe prover ao sustento, como já tinha provido a Ellen enquanto Ellen foi viva. Mas Miss Rosa não se mudou logo para lá. Talvez nunca se tivesse mudado. Embora lhe tivesse Ellen pedido que protegesse Judith, provavelmente ela achou que Judith não carecia de protecção ainda, pois se o amor, mesmo adiado, soube dar-lhe a ela a vontade de viver, de resistir até então, seria aquele amor, mesmo que fosse adiado, que havia de proteger Bon, que havia por força de protegê-lo, até que a loucura dos homens paralisasse por absoluto cansaço e ele voltasse, lá donde estava, e trouxesse Henry com ele - Henry, vítima também da mesma loucura e do mesmo revés da sorte. Ela deve ter visto Judith de vez em quando, e Judith provavelmente insistiu para que ela fosse viver em Sutpen's Hundred, mas eu creio que esta é a razão por que ela não foi, mesmo não sabendo ela onde estavam Bon e Henry, que Judith pelos vistos nunca se lembrou de lho dizer. Porque ela, Judith, sabia. Talvez o soubesse há algum tempo; mesmo Ellen o saberia talvez, mas provavelmente para Ellen, nessa altura, a ausência não seria um estado qualitativo, sendo a ausência por ignomínia ou por esquecimento idênticas, e por isso talvez não lhe ocorresse também dizê-lo sequer a irma, nem que para outrem a incerteza da batalha e a certeza do esquecimento podem ser coisas distintas. Ou talvez Judith nunca o tenha contado sequer à mãe. Talvez Ellen não soubesse à hora da morte que Henry e Bon eram agora praças na companhia que os camaradas da Universidade organizaram. Miss Rosa é que não sabia de nada. O primeiro sinal que teve em quatro anos de que o sobrinho era vivo foi a tarde em que Wash Jones, montando a mula que restava na cavalariça de Sutpen, parou em frente da casa e começou a gritar o seu nome. Ela já o teria visto mas não o reconheceu - um homem encovado, magro, - picado pela malária, de olhos mortiços e um rosto que podia ter qualquer idade entre os vinte e cinco anos e os sessenta, montando a mula em pêlo, postado na rua frente ao portão e gritando "ó da casa. ó da casa. " de quando em vez, até que ela veio à porta; e, vendo-a, baixou ele um tanto a voz mas não muito. "Você é que é a Rosie Coldfield?" perguntou.
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IV
Não era tão escura ainda a noite que pudesse pôr-se Quentin a caminho, ou não era ainda escura a gosto de Miss Coldfield, mesmo descontando as doze milhas de jornada para lá ir e as doze para voltar. Isto mesmo sabia Quentin. Era como se a visse, esperando numa saleta abafada e obscura, na solidão inexpugnável dessa casinha soturna. A luz não a teria acesa porque logo sairia, e porventura algum descendente ou colaço em espírito de quem, mulher ou homem, dissera uma vez que a luz e a viração do ar trazem a calma de fora, veio dizer-lhe depois que o custo da electricidade não está no tempo em que uma luz fica acesa mas resulta do vencer-se retroactivamente; a influência primitiva ao estalido seco do interruptor: aí está o que faz correr o contador. Ela já teria posto o chapelinho preto com vidrilhos de azeviche; ele o sabia: e um xaile, sentada ali na noite crescente e funerária que baixava; teria na mão ou no colo já a bolsa de rede com as chaves todas, da porta, dos armários, dos louceiros, que a casa possuía, a qual abandonava por umas poucas horas, talvez seis; e uma sombrinha, o guarda-chuva também, pensou ele, pensando que ela seria insensível ao tempo ou à estação que fizesse, pois não tendo ambos trocado mais dum cento de palavras antes dessa mesma tarde, ele tinha como certo que, antes desta mesma noite, nunca ela deixara
a casa depois do sol-pôr, salvo aos domingos e às quartas para a reza, em todos aqueles quarenta e três anos provavelmente. Sim, ela havia de trazer o guarda-chuva. Assim havia de surgir quando ele a fosse buscar, e havia de o trazer, invencível, quando saísse para o bafo extenuado que anoitecia sem a míngua do orvalho, que anoitecia sem que da treva existisse outro sinal afora o suave e mais denso vaguear dos vaga-lumes - um vaguear mais denso e fundo nesse anoitecer que vinha depois de sessenta dias sem chuva, quarenta e dois sem orvalho - para lá daquela varanda onde se levantava ele agora da cadeira quando Mi- Compson, trazendo a carta, surgiu, estalando o
interruptor da porta ao passar. "Será melhor ires lá para dentro se a queres ler", disse Mr Compson.
"Talvez a possa ler bem aqui", disse Quentin. "Es capaz de ter razão", disse Mr Compson. "Talvez até mesmo a luz
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do dia, quanto mais esta" - ele indicou o globo único, manchado e emporcado pela bicharia do longo Verão, e que mesmo estando limpo só dava uma pouca luz - "que o homem teve de inventar por necessidade sua pois que, liberto do ónus de comer o pão com o suor do rosto, parece regredir agora (é a evolução da espécie) ao estado de animal nocturno, seria luz demasiada para isto, para eles. Sim, para eles: os dessa hora e desse tempo, o tempo morto; seres humanos como nós, que foram como nós somos vítimas também, mas vítimas de circunstâncias diferentes, mais simples e portanto, partícula a partícula, mais amplas, mais heróicas, eles figuras portanto mais heróicas também, não apoucadas e confundidas mas distintas, incomplexas, a quem foi dado que uma vez amassem ou morressem, em lugar de existirem como difusas e dispersas criaturas, cegamente sorteadas membro a membro dalgum saco do loto e assim formadas, autores e vítimas também de mil homicídios e mil coitos e divórcios. És capaz de ter razão. Talvez uma luz maior do que esta pouca luz seja de mais." Mas ele não deu logo a carta a Quentin. Sentou-se de novo, como também Quentin agora se sentava, e pegou no charuto que pousara na trave da varanda, o morrão de novo um brilho, o fumo cor de glicínias vagando sem
sopro de vento, passando o rosto de Quentin quando Nir Compson levantou de novo os pés à balaustrada, a carta na mão e a mão quase tão escura como a dum negro cortando o linho da calça. "Porque Henry amava Bon. Repudiou por ele família e segurança material e tudo o que seria seu de direito, por este homem que era ao menos um bígamo nas intenções ainda que não fosse um completo miserável, e em cujo corpo frio, volvidos quatro anos, Judith havia de encontrar a fotografia da outra mulher e da criança. E tanto assim que ele (Henry) foi homem para dar roda ao pai de mentiroso por dizer o pai aquilo, e ele percebeu com certeza, que o pai não poderia ter afirmado nem afirmaria se fundamentos não tivesse, e provas. Todavia foi ele, o próprio Henry, quem por suas mãos deu o golpe, mesmo sabendo que tudo o que o pai contara da mulher e da criança era verdade. Ele deve ter dito para consigo, deve ter dito quando saiu, fechando a porta da biblioteca pela derradeira vez, nessa noite de Natal, e deve ter repetido isto mesmo enquanto cavalgavam, ele e Bon, lado a lado, pela treva cerrada nessa manhã de Natal, para longe da casa onde nascera e que apenas voltaria a ver mais uma vez, e dessa vez com as mãos tintas do sangue daquele homem que ia cavalgando agora a seu lado: Eu quero acreditar; eu quero. Quero. Mesmo que seja assim, mesmo que seja verdade o que me disse o pai e no que ele disse eu, mesmo a contragosto, não posso deixar de ver a verdade, ainda assim eu hei-de acreditar. Pois em Nova Orleães que outra coisa esperava ele encontrar senão a verdade, senão o que lhe contara o pai, o que ele tinha negado, recusando-se a aceitá-la, mesmo se a contragosto já tivesse acreditado? Mas quem sabe por que razão o homem, sofrendo embora, mais se apega, sobre todos os membros sãos, àquele, braço ou perna, que lhe será amputado? Porque ele amava Bon. Imagino-os na biblioteca, ele e Sutpen, nessa noite de Natal, o pai e o irmão, percussão e repercussão como o ribombo e o eco, e tal como eles tão próxi- 60

mos; a afirmação e o desmentido, a instantânea e irrevogável escolha entre o pai e o amigo, entre (assim deve ter julgado Henry) além onde estaria a honra e o amor e aqui onde corria o mesmo sangue e o proveito, ainda que no instante em que desmentiu o pai ele soubesse que essa era a verdade. Foi esta a razão dos quatro anos, da liberdade vigiada. Ele decerto soube que seria inútil, mesmo nessa hora, nessa noite de Natal, calar o que sabia, o que vira com os próprios olhos em Nova Orleães. Talvez já tanto conhecesse Bon naquele tempo que, se não mudara Bon até então, com toda a probabilidade não mudaria nunca; e ele (Henry) que não podia dizer ao amigo, Fiz isto por amor de ti; faz isto por amor de mim. Não o podia dizer, repara - este homem, este rapaz que mal contara vinte anos, voltava costas a tudo para comungar da sorte do seu único amigo, que mesmo ao
cavalgarem juntos naquela noite, ele sem dúvida já saberia, como reconhecia a verdade no que lhe dissera o pai, que era seu destino e sua perdição matar. Decerto o soube, como sabia que era vã a esperança, e que esperança e de quê não saberia dizê-lo; que esperança e que sonho, do qual um
dia, acordando, visse que fora sonho, como no delírio do ferido o membro, perna ou braço, bem-amado que sofre é rijo e forte e só os membros sadios são doentes.
"Era a liberdade vigiada, que Henry a ditava; que Henry mantinha os
três num cativeiro a que a própria Judith aquiesceu até um certo ponto. Ela ignorava o que se tinha passado na noite da biblioteca. Não creio que ela chegasse alguma vez a saber, ou suspeitar, antes daquela tarde, quatro anos passados, em que os voltou a ver, a tarde em que trouxeram para dentro o
corpo de Bon e ela encontrou no casaco a fotografia que não mostrava o seu
rosto, que não mostrava o seu filho; na manhã seguinte, ao acordar, já os
dois tinham partido e só a carta, só o bilhete, ficara, o bilhete decerto escrito por Henry, pois Henry não iria consentir que fosse Bon a escrevê-lo - este anúncio do armistício, da liberdade vigiada, e Judith aquiescia neste ponto, ela que tão prontamente se negaria a obedecer a uma imposição do pai quanto Henry prontamente se rebelou contra ele, e todavia obedeceu Judith a Henry desta vez - não por ser ela a irmã e ele o varão, mas por força desse laço que os unia - a personalidade única e repartida por dois corpos, que ambos tinham sido seduzidos quase simultaneamente por um homem que, ao tempo, Judith não conhecia sequer - sabendo ambos que ela havia de submeter-se à decisão e dar-lhe (a Henry) o benefício desta pausa apenas até ao ponto mutuamente aceite, mas nunca declarado ou definido, e decerto ambos sabendo que uma vez alcançado aquele ponto ela havia, e com a mesma calma, a mesma recusa em aceitar ou dar se fosse por razões de feminina e tradicional fraqueza, havia de anular o armistício e de ver no irmão o inimigo, sem desejo ou vontade que Bon estivesse presente para apoiá-la, decerto recusando até a Bon permissão para intervir, se acaso ele estivesse presente, e
lutar com Henry como o faria um homem, até ao fim, antes de consentir em ser de novo a mulher, a bem-amada, a noiva. E Bon: Henry não contaria a
Bon o que lhe dissera o pai, tal como não voltaria a casa do pai para dizer-lhe que Bon havia negado, pois a fazer-se uma coisa teria de ser feita a outra, e
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ele sabia que a negativa de Bon faltaria à verdade, e ainda que ele próprio pudesse aturar aquela mentira de Bon, não havia de aturar que Judith ou o pai a ouvissem. Além do mais, não precisava Henry de contar a Bon o que se tinha passado. Bon deve ter tido notícia da visita de Sutpen a Nova Orleães assim que (ele, Bon) chegou a casa nesse primeiro Verão. Ele deve ter percebido que Sutpen conhecia o seu segredo - isto se Bon, até ver a reacção de Sutpen, encontrasse alguma vez motivo para o calar, ou visse nele sequer uma objecção válida ao casamento com mulher branca - uma situação na qual porventura todos os contemporâneos que podiam dar-se ao luxo igualmente se encontravam, e que não lhe ocorreria mencionar à noiva ou à esposa ou à família dela como não lhe ocorreria contar os segredos da confraria a que pertencesse desde os tempos de solteiro. Direi mesmo que o modo como a família da pretendida reagiu à descoberta foi sem dúvida a primeira e única vez em que a família Sutpen. o surpreendeu. Ele para mim é a figura curiosa. Entrou nessa casa de província, puritana e isolada, quase da mesma maneira como Sutpen entrou em Jefferson: na aparência completo, sem origem ou passado ou infância - um homem um tanto mais velho que o real conto dos anos, e encerrado numa aura que tinha um quê de cintilação funesta, que parece ter seduzido os irmãos provincianos sem qualquer esforço ou particular desejo da sua parte, que muito alvoroço e muito rebuliço causou, e todavia, ao dar-se conta que Sutpen era homem de impedir o casamento se pudesse, recolheu-se (Bon) ao papel de um mero espectador, passivo, um tanto sarcástico, e absolutamente enigmático. Ele parecia pairar, espectral, quase incorpóreo, um pouco além e um pouco acima dos ultimatos e das afirmações e dos desafios e reptos e repúdios francos e lógicos mesmo se (para ele) incompreensíveis, com o sarcástico e indolente desapego de um jovem cônsul romano que faz o périplo das maravilhas do seu tempo em terras de hordas bárbaras que o avô conquistara, mergulhando como em treva no castelo de areia que era a casa turbulenta e infantil e absolutamente fatal, na floresta miasmática e povoada de espíritos. Era como se ele achasse tudo aquilo, não direi inexplicável claro está, mas escusado; que ele soube de imediato que Sutpen lhe descobrira a amante e o filho e ele agora descobria na acção e na reacção de Henry uma supersticiosa asnada moral que não merecia o nome de raciocínio, a qual contemplava ele com a atenção e o desapego de um cientista que observa os músculos da rã anestesiada; - observando-os, contemplando-os, por detrás dessa barreira de primores, comparados com os quais Henry e Sutpen eram trogloditas. Não apenas a presença, o modo como andava e falava e se vestia e conduzia Ellen à sala de jantar ou à carruagem e (talvez, provavelmente) lhe beijava a mão, as maneiras que Ellen cobiçava para Henry, mas o próprio homem - a impassibilidade fatalista e impenetrável com que ele os observava, aguardando qual gesto fosse que eles iriam fazer, como se desde sempre soubesse que chegaria o momento em que tinha de esperar e mais não lhe cabia do que esperar; que ele tinha seduzido Henry e Judith ambos tão completamente que não temia ver embargado o casamento com Judith quando quisesse casar. Não essa estúpida argúcia, metade instinto e metade fé na sorte, e
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metade o hábito muscular dos sentidos e nervos, do jogador profissional à espera de apossar-se até onde puder do que vê, mas um certo pessimismo, discreto, inflexível, despojado há muitas gerações desse palavrório bombástico próprio de quem (sim, de Sutpen e de Henry e até dos ColdfieIds) ainda não saiu plenamente da barbárie, que daqui a dois mil anos há-de estar ainda a libertar-se, triunfante, do jugo da cultura e da inteligência latinas, mal de que a dizer-se a verdade nunca eles estiveram em grande risco permanente de sofrer.
"Porque ele amava Judith. E sem dúvida ele acrescentaria que a amava 'de certa maneira' pois, como depressa descobriu o pai da pretendida, não era esta a primeira vez que ele desempenhava esse papel, e prometia o que a Judith prometera, e menos ainda a primeira vez em que ele se sujeitava a uma cerimónia que celebrasse a promessa, isto se alguma distinção (ele era Católico, mais ou menos) ele fazia entre esta, com mulher branca, e essa outra. Porque vais ver pela carta, não a primeira que lhe escreveu Bon, mas ao menos a primeira, a única, mostrada por ela a alguém, tanto quanto soube a tua avó: e, segundo cremos, e ela já morreu, a única guardada por ela, a menos que porventura Miss Rosa tenha destruído, ou Clytie, as outras depois da sua morte: e conservada esta não porque Judith a tenha guardado para si, mas porque ela a trouxe por sua mão e a deu à tua avó depois que Bon morreu, possivelmente no mesmo dia em que ela destruiu as outras que dele tinha recebido (se acaso, claro está, foi ela mesma quem as destruiu) e ainda existiam talvez quando ela foi descobrir, no casaco de Bon, o retrato da amante oitoruna * e do menino. Porque ele foi o seu primeiro e único amor. Eu diria que ela deve tê-lo visto exactamente com os mesmos olhos com que Henry o via. E não te sei dizer a qual dos dois ele aparecia mais esplêndido - se àquela que tinha a esperança, mesmo se inconsciente, de fazer sua a imagem pela posse; ou àquele que sabia, mesmo de forma subconsciente ao desejo, da insuperável barreira que a semelhança de sexo havia sempre de interpor; - este homem que Henry viu pela primeira vez quem sabe cavalgando pelos arvoredos da Universidade numa das duas montadas que ali tinha, ou quem sabe atravessando a pé o campus de capa e chapéu levemente afrancesados que ele usava, ou quem sabe (agrada-me esta ideia) quando alguém o apresentou formalmente àquele homem que se recostava de roupão florido, quase efeminado, à janela soalheira do seu quarto - este homem elegante e belo, e mesmo felino, e que já passara a idade própria de estar onde estava, não pelo conto dos anos mas pela experiência, com um certo eflúvio, tangível, de conhecimento, de excesso: de actos praticados e saciedades extremas e prazeres esgotados e até esquecidos. Por isso ele deve ter sido, não só para Henry como para todo o corpo académico desse colégio novo, pequeno e provinciano, um alvo não da inveja, porque só se inveja quem julgamos não ser em nada, salvo por acaso, superior a nós: ou aquilo que julgamos poder, com um pouco mais de sorte do que a habitual, um dia possuir; - não da inveja mas do desespero: o desespero juvenil, atroz, chocante e doloroso e infinito, que por vezes toma a forma de insulto e de agressão física ao objecto
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humano dele ou, em casos extremos como o de Henry, insulto e agressão a todo e qualquer detractor desse objecto, como o provam o repúdio violento do pai, e do que por direito seria seu, quando Sutpen proibiu o casamento. Sim, ele amava Bon, que o seduziu, tão certo como seduziu Judith
- o rapaz nado e criado no campo que, mais os cinco ou seis outros desse pequeno corpo académico, filhos de plantadores como ele, a quem Bon concedia que se tomassem seus íntimos, lhe arremedava os fatos e as maneiras e (tanto quanto seria possível) a própria maneira de ser, e via nele o herói das Mil e Uma Noites adolescentes que tropeçara em talismã, pedra-de-fogo, (ou melhor, que por um ou por outra foi trespassado) e assim fora investido não de sabedoria ou de riqueza ou poder, mas de oportunidade e
talento para passar da cena de uma delícia quase inimaginável para outra, sem interferência ou pausa ou saciedade; e o próprio facto de, preguiçando à vista deles nas exóticas roupagens, quase femininas, daquela intimidade sibarítica, professar a saciedade, aumentava não apenas o assombro mas a amargura do infinito ultraje; - Henry, o provinciano, quase um labrego, dado ao instinto e à violência mais que à reflexão, ao raciocínio, que tinha talvez consciência de que o seu orgulho provinciano e feroz na virgindade da irmã seria uma quantidade falsa que teria de incorporar em si uma incapacidade para conservar-se a fim de ser preciosa e de existir, e só na sua própria perda, só na ausência de si mesma, teria existido afinal- Direi mesmo que será este o perfeito e puro incesto: o irmão compreendendo que a virgindade da irmã terá de ser destruída para provar que existiu, possuindo aquela virgindade na pessoa do cunhado, o homem que ele seria se pudesse transformar-se, metamorfosear-se, em amante, em marido; por quem ele seria desflorado, quem escolheria para desflorá-lo, se pudesse transformar-se, metamorfosear-se, na irmã, a amante, a esposa. Era talvez isto o que se passava, não na cabeça de Henry mas na sua alma. Porque ele não reflectia. Era meu dito meu feito. Conhecia a lealdade e era leal, conhecia o orgulho e o ciúme; amava e sofria e matava, sofrendo ainda e, segundo creio, amando ainda Bon, o homem a quem ele concedeu o tempo da liberdade vigiada, os quatro anos em que renunciasse ao outro casamento, o dissolvesse, sabendo embora que os quatro anos de espera e de esperança haviam de ser inúteis.
"Sim: Henry: não Bon, como o prova todo o curso da corte, singularmente plácida, que Bon fez a Judith - um noivado, se noivado chegou a ser, prolongando-se por um ano inteiro mas apenas compreendendo as duas visitas de férias a convite do irmão, e os quais períodos Bon parece ter gasto, quer em passeios a cavalo ou em caçadas com Henry quer desempenhando o papel da elegante e esotérica flor de estufa, possuindo apenas o nome duma cidade como origem e passado e história, de que Ellen se ufanava, assim alvoroçada consumindo o seu tardio e inconsciente Verão de borboleta; Bon, o homem ele-mesmo, foi usurpado, repara. Não houve tempo, não houve uma hora, um instante nesses dias tão assoberbados, em que ele pudesse fazer a corte a Judith. Nem somos capazes de imaginá-los, ele e Judith, a sós. Quer-se imaginar e o mais que se consegue é entrever uma projecção
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deles, enquanto as duas pessoas reais estariam decerto separadas e noutro lugar - duas sombras medindo a passos o jardim de Verão, serenas e intocadas pela carne - os mesmos dois fantasmas serenos que parecem vigiar, pairar, imparciais, atentos, mudos, acima e além da nuvem cerrada e inexplicável de proibições e desafios e repúdios e na qual o empedernido Sutperi e o volátil e violento Henry flamejavam e relampejavam em repentes;
- Henry que até então nunca fora sequer a Mênfis, que nunca estivera fora de sua casa antes daquele mês de Setembro em que partiu rumo à Universidade com as suas vestimentas rústicas e o cavalo de sela e o cavalariço negro; os
seis ou sete que eram, iguais na origem e na idade, só na questão superficial da mesa e da roupagem e das ocupações diárias diferentes dos escravos negros que lhes ganhavam o pão - o mesmo suor, sendo a única diferença que, de uma parte, ele escorria pelas canseiras do trabalho nos campos, e da outra como preço dos espartanos e escassos prazeres ao seu alcance porque não tinham de suar nos campos: as caçadas e as cavalgadas, vigorosas e violentas; os mesmos prazeres: aqui jogando facas velhas e quinquilharias e
tabaco de rolo e roupa e botões, por serem o que estava com mais facilidade e rapidez à mão; além jogando a dinheiro, e jogando os cavalos e as armas e os relógios e por igual motivo; as mesmas festas: a idêntica música de instrumentos idênticos, rabecas e violas toscas, ora na casa grande com velas e sedas e champanhe, ora nas cabanas de chão de terra batida à luz de archotes fumacentos de pinheiro, com chitas e água adoçada a melaço; - foi Henry, porque nesse tempo Bon não tinha sequer visto Judith. Não tinha provavelmente dado uma tal atenção ao desconexo relato, que Henry fez da breve e
convencional história do seu passado, que se lembrasse que Henry tinha uma irmã - este homem, indolente, que por ser o mais velho não achava sequer companhia nesses rapazes, meras crianças; este homem deslocado no tempo, e que o sabia, que o aceitava por óbvia força da razão que o mantinha ali, a qual pelos vistos seria tão séria, ou pelo menos tão íntima, que não podia confessá-la aos que travaram conhecimento com ele: - o homem que depois havia de mostrar a mesma indolência, quase um desinteresse, e o mesmo desapego quando se levantou o rebuliço à volta desse noivado que, tanto quanto o sabia Jetferson. nunca existiu formalmente, e o próprio Bon nunca negara ou confirmara, e ele à distância, passivo, imparcial, não como se nada lhe dissesse respeito ou ele estivesse agindo em nome de um amigo ausente, mas como se a parte envolvida e interdita fosse pessoa de quem ele nunca tivesse ouvido falar, e que nem lhe interessasse. Até consta que nem mesmo lhe fez a corte. Pelos vistos fez a Judith a triste fineza de não tentar sequer desgraçá-la, quanto mais insistir no casamento, quer antes quer depois de Sutpen o proibir - isto, repara, num homem cujas proezas com as damas deram brado na Universidade, muito antes de Sutpen descobrir as provas reais. Nem um noivado, nem uma corte sequer: viram-se, ele e Judith, três vezes no espaço de dois anos por um período total de doze dias, contando o tempo que Ellen então lhes tomou; e separaram-se depois sem um adeus sequer. Todavia, passados quatro anos, Henry teve de matar Bon paia ,s impedir de casarem. Por isso deve ter sido Henry quem seduziu Judith, não
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Bon: e a seduziu ao mesmo tempo que era ele próprio seduzido, à distância que era a de Oxford a Sutpen's Hundred e dela mesma ao homem que nunca vira sequer, como se usasse aquela telepatia com que ambos na infância por vezes pareciam adivinhar os actos um do outro, como dois pássaros que deixam no mesmo instante o ramo; essa afinidade que é diversa da ilusão convencional de afinidade entre dois gémeos, mas é possível entre duas pessoas que, fossem quais fossem as diferenças de sexo ou idade ou herança ou raça ou língua, tivessem naufragado à nascença, abandonadas em ilha deserta: a ilha, neste caso, Sutpen's Hundred; a solidão, a sombra daquele pai com o qual não só a vila como a família da mãe tinham apenas assumido um armistício em vez de o aceitarem e o assimilarem.
"Percebes? aqui estão eles: esta rapariga, esta rapariguinha nada e criada na província, que vê um homem à média de uma hora por dia nos doze dias em que o viu na vida, e isto ao longo de ano e meio, mas tão resolvida a casar com ele que forçou o irmão à medida extrema do homicídio, se não do assassínio premeditado, para evitar o casamento, e isto ao fim de um período de quatro anos durante os quais nem sempre ela terá tido a certeza de que ele era vivo; este pai, que havia de ver aquele homem uma só vez mas teve razões para fazer uma viagem de seiscentas milhas a fim de investigá-lo e descobrir o que ele próprio, e aparentemente por clarividência, já suspeitava, ou pelo menos alguma coisa que de igual maneira forneceu razões à proibição do casamento; este irmão, a cujos olhos a felicidade e a honra daquela irmã, daquela filha, dada a curiosa e invulgar união que existia entre eles, deviam ser de maior ciúme e preço até que para o pai, mas que teve de ser o paladino do casamento a ponto de repudiar o pai e a família e a casa e seguir o pretendente rejeitado, ser seu vassalo por quatro anos, antes de o matar, e ao que parece pela mesma idêntica razão da qual fora o paladino e por que deixara a sua casa há quatro anos atrás; e este noivo, que sem dar mostras de ter vontade própria ou desejo, se envolvera num noivado que pelos vistos não quis nem evitou, que aceitou ser rejeitado com a mesma veia sarcástica e passiva, mas quatro anos depois estava pelos vistos de tal modo apostado em realizar aquele mesmo casamento, o qual até essa data lhe fora completamente indiferente, que forçou o irmão, o paladino, a matá-lo para o evitar. Sim, admitindo que, mesmo para o inexperiente Henry, para já não falar do mais viajado pai, a existência da amante com um oitavo de sangue negro e do filho com um dezasseis avos desse mesmo sangue, admitindo até que a cerimonia morganática - uma situação que fazia parte dos aprestos sociais e elegantes de um jovem rico de Nova Orleães tal e qual como os sapatos de baile - fosse um motivo suficiente, o que é um certo exagero em pontos de honra mesmo para os espectrais modelos de excelências que foram os nossos antepassados aqui no Sul e se tomaram homens e mulheres adultos por volta de mil oitocentos e sessenta, ou sessenta e um. É inacreditável. Não é razão que explique. Ou talvez seja por isso mesmo: eles não explicam e nós não temos ordem de saber. Conhecemos algumas velhas histórias que passaram de boca em boca; exumámos cartas de velhos baús, de velhas caixas e gavetas, sem cumprimentos nem assinatura, nas quais homens e mulhe-

res que um dia estiveram vivos são agora as iniciais apenas, ou os diminutivos, dalgum afecto agora incompreensível que nos soa como o Sânscrito ou o Chocktaw *; vemos vagamente pessoas, as pessoas em cujo sangue vivo
e em cuja semente viva nós próprios estivemos em dormência aguardando, elas nessa espectral tenuidade do tempo tomando agora proporções heróicas, cumprindo os seus actos de paixão simples e de simples violência, intocadas pelo tempo e inexplicáveis - Sim, Judith, Bon, Henry, Sutpen: todos eles. Aqui estão, mas alguma coisa falta; são como a fórmula química exumada com as cartas desse baú esquecido, cuidadosamente exumada, o papel velho e esmaecido esboroando-se, as letras esmaecidas e quase indecifráveis, todavia cheias de significados, familiares na forma e no sentido, nome e presença das forças voláteis e sensíveis; juntamos tudo isso nas proporções requeridas, mas nada acontece; relemos, incansáveis e atentos, ponderamos, não vá termos esquecido alguma coisa, errado os cálculos; juntamo-los segunda, terceira vez e nada acontece ainda: só existem as palavras, os símbolos, as formas elas mesmas, espectrais, serenas, inescrutáveis, contra esse túrgido cenário de um horrível e sangrento revés no destino da espécie humana.
"Vieram eles da Universidade passar aqui esse primeiro Natal. Foi essa a primeira vez em que Judith e Ellen e Sutpen o viram - Judith, o homem que ela iria ver por um descontinuado tempo de doze dias mas iria lembrar tanto que, passados quatro anos (ele nunca lhe escreveu durante esse tempo. Henry não lho consentiria; era liberdade vigiada, repara) quando recebeu carta dele dizendo Já esperámos o bastante, ela e Clytie começaram logo a
talhar o vestido e o véu para o casamento da traparia que ainda tinham; Ellen, o objet d'art esotérico, meio barroco, meio epiceno, que ela com infantil voracidade ensaiava incluir nos aprestos e na decoração da sua casa; Sutpen, o homem que, tendo-o ele visto uma só vez, e antes que existisse algum noivado salvo na imaginação da mulher, ele tinha como potencial ameaça à (finalmente, agora) coroação triunfante dos antigos sacrifícios e da antiga ambição, ameaça que pelos vistos ele tinha como tão certa que justificou a viagem de seiscentas milhas para ter provas dela - isto em quem seria capaz de ter desafiado e matado quem não lhe agradasse, ou quem ele temesse, mas que não teria feito uma jornada sequer de dez milhas para investigar o antagonista. Vês? Quase nos convencemos de que a viagem de Sutpen a
Nova Orleães foi um mero acaso, apenas mais outra maquinação ilógica de uma fatalidade que escolheu esta família de preferência a qualquer outra da região ou do país, exactamente como um garoto escolhe um formigueiro para lá despejar água a ferver de preferência a qualquer outro sem que ele próprio saiba porquê. Ficaram eles duas semanas e voltaram ao colégio, parando para visitar Miss Rosa, mas ela não estava em casa; passaram os longos meses até às férias de Verão, conversando e cavalgando e estudando juntos (Bon estudava leis. Era assim, quase direi que teria de ser, pois só isso tornaria suportável o internato, fosse qual fosse a razão que tinha para ali estar; - ei-lo, o cenário perfeito para a sua dilatória indolência: o aturado estudo nos bafientos Blackstone e Coke *, e num lugar onde, no corpo académico ainda contado por um número de dois algarismos, o curso de Direito
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se resumia provavelmente a mais seis estudantes além de Henry - sim, ele corrompeu Henry até a estudar leis; Henry transferiu-se para as primeiras provas - e dele próprio) enquanto Henry lhe arremedava a maneira de vestir e os modos de falar, ou caricaturava talvez, e Bon, embora já tivesse então conhecido Judith, muito provavelmente continuava preguiçoso e felino e era Henry quem lhe inculcava o papel de noivo da irmã, tal como nos primeiros meses Henry e os companheiros tinham inculcado em Bon o papel dum Lotário *; e Ellen e Judith agora fazendo compras na vila duas e três vezes por semana, parando a carruagem um dia para visitar Miss Rosa na jornada para Mênfis, com uma carroça na dianteira, destinada a trazer o saque, e um nigro a mais na boleia com o cocheiro para ao fim de umas quantas milhas acender uma fogueira onde aquecesse os tijolos em que descansavam os pés de Ellen e Judith, fazendo compras, reunindo o enxoval para esse casamento cujo pedido em regra só existia na imaginação de Ellen; e Sutpen, que vira Bon uma só vez e estava em Nova Orleães a investigá-lo quando Bon entrou de novo naquela casa: quem sabe o que pensaria ele, o que aguardava, que momento, ou dia, para se pôr a caminho de Nova Orleães e descobrir o que porventura soubera desde logo que havia de descobrir? A ninguém ele podia contar, falar disto, do seu medo e da suspeita. Não confiava em ninguém, mulher ou homem, que por ninguém, mulher ou homem, era amado, pois Ellen era incapaz de amar e Judith parecia-se muito com ele, e ele deve ter visto num relance que Bon, mesmo que a filha pudesse ainda ser salva, já tinha corrompido o filho. Era tão excessivo o seu triunfo, repara; a sua solidão era a solidão do desprezo e da desconfiança que o triunfo traz àquele que o logra por ser o mais forte e não por ter sido apenas o mais afortunado.
"Chegou então o mês de Junho e com ele o fim do ano lectivo e Henry e Bon voltaram a Sutpen's Hundred, Bon para ali passar um dia ou dois antes de seguir viagem para o Rio e tomar o vapor de regresso a Nova Orleães, onde Sutpen já estivera, ainda que ninguém o soubesse, e menos que todos Ellen. Ficou Sutpen dois dias apenas por lá, todavia era esta a ocasião, se alguma existia, de Bon e Judith se falarem, talvez mesmo de Bon se apaixonar por ela. Era uma ocasião única, a última, embora claro está nem ele nem Judith imaginassem tal coisa, pois Sutpen, embora ausente por duas semanas apenas, já saberia sem dúvida da existência da amante oitoruna e da criança. Assim pela primeira e única vez tinham Bon e Judith o que se chama o campo livre - chamar-se-á, mas era Ellen quem tinha realmente o campo livre. Imagino-a a encaminhar a corte, dando a Judith e a Bon ocasião para entrevistas e juramentos, com uma ubiquidade inquebrantável e recatada que eles devem ter, em vão, procurado iludir e evitar, Judith com uma aborrecida mas ainda serena apreensão, Bon com esse fastio sarcástico e surpreso que parece ter sido a usual manifestação do seu obscuro e espectral carácter. Sim, espectral: um mito, um fantasma: algo engendrado e criado completo por eles; um eflúvio do sangue e do carácter dum Sutpen, como se ele não tivesse qualquer existência enquanto homem. Todavia ele era o corpo que Miss Rosa viu, que Judith sepultou no talhão da família, junto à mãe. E isto: o facto de até um noivado indeciso e nunca posto em palavras
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ter sobrevivido, o testemunho claro de ser certo que eles em realidade se amavam, pois durante esses dois dias um mero idílio havia de esmorecer, morrer de tanto mel e tantas facilidades. Depois Bon montou a cavalo, tomou o caminho do Rio e meteu-se no vapor. E agora isto: quem sabe, talvez se
Henry tivesse ido com ele nesse Verão, em vez de esperar pelo Verão seguinte, Bon não teria de morrer da forma por que morreu; se ao menos Henry tivesse ido nessa altura a Nova Orleães e descoberto a amante e a criança; Henry que podia, antes que fosse demasiado tarde, ter reagido à descoberta exactamente como Sutpen reagiu, como seria talvez de esperar que um irmão cioso reagisse, pois quem sabe se foi pelo facto de existir uma amante e um filho, pela bigamia possível, que Henry deu roda ao pai de mentiroso, ou por ter sido o pai a fazer a revelação, por o pai se lhe ter antecipado, o pai que é o inimigo natural do filho e do genro do qual a mãe é a aliada, tal como depois do casamento o pai se torna o aliado do homem que se tornou seu genro e que tem por inimiga mortal a mãe da mulher. Mas Henry não foi desta vez. Acompanhou Bon até ao Rio e depois retrocedeu; passado um tempo também Sutpen voltava a casa, de onde voltava e porquê ninguém o saberia antes do Natal, e esse Verão passou, o último Verão, o último Verão de paz e tranquilidade, em que Henry, decerto sem qualquer intenção deliberada, pugnou pela causa de Bon muito melhor que o próprio Bon, esse indolente fatalista, alguma vez se incomodaria a fazer, e Judith ouviu com aquela serenidade, aquela inexplicável placidez que um ano antes, ou pouco mais, tinha sido a ausência de vontade, vaga e sem sentido e sonhadora, de uma rapariga e era agora a quietação de quem se fizera mulher e amadurecera - e amadurecera apaixonando-se. Foi então que chegaram as cartas, e Henry que as leu todas, sem ciúme, nessa completa e abnegada transferência, metamorfose, no corpo daquele que se deitaria com a irmã. E Sutpen não dizia coisa alguma do que soubera em Nova Orleães e limitava-se a aguardar, e isto nem sequer Henry e Judith suspeitavam, talvez na esperança de que Bon, quando soubesse, como havia por força de saber, que Sutpen tinha descoberto o seu segredo, compreendesse (Bon) que estava perdido o jogo e nem ao colégio voltasse no ano seguinte. Mas Bon voltou. De novo
se encontraram, ele e Henry, na Universidade; as cartas - de ambos agora faziam semanalmente a viagem pela mão do cavalariço de Henry; e Sutpen ainda à espera, e o que esperava ele agora ninguém o soube dizer ao certo, será incrível que ele estivesse à espera do Natal, à espera que a crise lhe viesse bater à porta - este homem de quem se dizia que não virava a cara a desgraça nem admitia que a virassem por ele. Mas desta vez espera) crise veio bater-lhe à porta: era Natal e Henry e Bon voltaram a Suipen Hundred, e até a vila já estava convencida, obra de Ellen, de que o noivado existia; estava-se a vinte e quatro de Dezembro de 1860 e a criançada nigra, com ramos de visco e azevinho por licença, já rondava as traseiras da casa grande a pedir em gritos 'Consoadas, consoadas' aos senhores brancos, o
senhor rico da cidade que vinha fazer a corte a Judith, e Sutpen que não dizia nada, e ninguém tinha uma suspeita sequer, salvo Henry porventura, Henry, porventura, que provocou a crise nessa mesma noite, e Ellen na preia-mar
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absoluta dessa vida irreal e imponderável que ao romper da aurora havia de enrolar sob os seus pés e arrastá-la, desfeita e alheada no assombro, para o quarto com as adufas cerradas onde havia de morrer dois anos mais tarde;
- a véspera de Natal, a explosão, e nunca ninguém chegou a saber exactamente porquê ou exactamente o quê se passou entre Henry e o pai, e só as murmurações nas cabanas dos negros espalharam a notícia de que Henry e Bon tinham partido a cavalo, de noite, e Henry tinha abjurado formalmente a sua casa e tudo o que seria seu por direito.
"Foram para Nova Orleães. Cavalgaram pelo frio luminoso dessa manhã de Natal até ao Rio e tomaram o vapor, e Henry a passar para a dianteira, a conduzi-lo, como sempre aconteceu até ao derradeiro instante, quando pela primeira vez Bon tomou a dianteira e Henry o seguiu. Ele não era obrigado a ir. Tinha voluntariamente caído na indigência mas podia ter procurado o avô, pois ainda que fosse o mais bem montado cavaleiro da Universidade, sem excepção do próprio Bon, provavelmente possuía pouquíssimo dinheiro para além do que pudesse realizar às pressas vendendo o cavalo e os valores que por acaso tivesse consigo ao sair de casa com Bon. Não, ele não era obrigado a ir, mas ia, e tomava a dianteira desta vez, e Bon cavalgando a seu lado e procurando sacar dele o que se passara. Bon sabia, claro está, o que Sutpen tinha descoberto em Nova Orleães, mas faltava-lhe saber exactamente o quê, exactamente o quanto, contara Sutpen, a Henry, e Henry não lho dizia, Henry, decerto montado na égua nova e sabendo provavelmente que era preciso renunciar a ela, sacrificá-la, como já sacrificara tudo na vida, a herança, cavalgando agora rápido e rígido, voltando as costas de uma vez por todas à casa, ao lugar onde nascera, e aos lugares da sua infância e juventude que repudiava por esse amigo com quem, não obstante o sacrifício que fizera por amor e lealdade, não podia ser ainda absolutamente franco. Pois ele sabia que Sutpen não lhe mentira. Decerto o soube no mesmo instante em que deu roda ao pai de mentiroso. Por isso não se atrevia a pedir a Bon que negasse; não se atrevia, percebes. Era capaz de viver assim deserdado e pobre, mas não seria capaz de aturar essa mentira de Bon. Todavia ele foi para Nova Orleães. Foi para lá, para o lugar, o único lugar, que lhe daria as provas convincentes do que lhe dissera o pai e o que, por vir do pai, ele chamara mentira. Foi lá com essa intenção; foi lá para achar as provas. E Bon, cavalgando a seu lado, procurando sacar dele o que Sutpen tinha dito - Bon, que naquele ano e meio tinha visto Henry arremedando a sua maneira de vestir e de falar, que naquele ano e meio se vira o objecto da adoração abnegada e absoluta que só um rapaz, nunca a mulher, tem por outro rapaz ou homem; que ao longo desse ano cumprido tinha visto a irmã sucumbir ao mesmo encanto a que o irmão já sucumbira, e isto sem que houvesse uma vontade por parte do sedutor, ou dele um mínimo gesto, como se deveras fosse o irmão que enfeitiçara a irmã, a seduzira a esta sua imagem vicária que andava e respirava com o corpo de Bon. Todavia aqui está a carta, recebida ao fim de quatro anos, escrita numa folha de papel dos salvados de uma casa esventrada na Carolina, com a graxa de brunir fogões encontrada nalgum armazém que tomaram dos lanques; ao fim dos quatro anos em que ela
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não recebeu uma só palavra dele, afora os bilhetes de Henry a dizer que ele (Bon) ainda era vivo. Por isso, quer Henry soubesse já da outra mulher ou não, alguma coisa ele saberia agora. Isso Bon compreendeu. Imagino-os cavalgando, Henry ainda no rompante repercussivo e feroz da lealdade que se desafronta assim, e Bon, mais sabedor, mais arguto, mesmo que só pela sua maior experiência e alguns anos a mais na idade, sabendo por Henry, sem que Henry de tal se apercebesse, o que Sutpen tinha dito. Pois Henry saberia alguma coisa agora. E eu não creio que isto fosse apenas com o fito de conservar um aliado em Henry para a crise de um futuro aperto. Era porque Bon não só amava Judith de uma certa maneira, como também amava Henry e de um amor mais profundo que não cabe em dizer-se que o amava de certa maneira. Talvez no seu fatalismo ele dos dois amasse mais Henry, vendo talvez na irmã somente a sombra, o feminino corpo onde consumasse o amor que tinha por objecto em realidade o rapaz: - este Don Juan cerebral que, ao invés daquele, tinha aprendido a amar o que antes maltratara, talvez fosse mais que Judith ou Henry; talvez fosse a vida, a existência, que eles representavam. Pois quem sabe as imagens de paz que ele poderia ter visto nesse lugar perdido, monótono e provinciano; que refrigério e fuga para o caminheiro sedento que muito mundo correra, e tão novo ainda, nessa fonte simples de província com o granito por fado.
"Imagino até como Bon o disse a Henry, como lhe deu a saber. Imagino até Henry em Nova Orleães, ele que nem sequer ainda fora a Mênfis, cuja inteira experiência do mundo consistia em temporadas noutras casas, plantações, quase permutáveis com a sua, onde seguia a mesma rotina que era seu hábito seguir - as mesmas caçadas e as mesmas rinhas, as mesmas corridas de cavalos, amadoras, em carreiras toscas e improvisadas, com animais de bom sangue e de boa raça mas que não foram criados para correr e que talvez meia hora antes estivessem ainda aos varais duma aranha ou talvez duma carruagem; as mesmas contradanças com virgens provincianas, idênticas e também permutáveis entre si, ao som da música em tudo igual à que se ouvia em sua casa, com o mesmo champanhe, o melhor, decerto, mas toscamente servido com elegância burlesca e pantomineira por mordomos negros (igual à dos que eram servidos, e o emborcavam às goladas, como se fosse whiskey puro, em brindes feitos com bastos floreados e subtileza nenhuma) que haviam de tratar da mesma forma a limonada. Imagino-o até, com a sua herança puritana - essa herança particularmente anglo-saxónica um misticismo feroz e orgulhoso e esse talento para sentir vergonha da ignorância e da inexperiência, naquela cidade estrangeira, paradoxal, a um tempo langorosa e fatal, a um tempo feminina e férrea - este campónio soturno e sério com a sua herança granítica onde até as casas, quanto mais as roupas e as formas de proceder, são à imagem de um zeloso e sádico Jeová, posto subitamente num lugar onde os homens criaram o seu Todo-Poderoso e o coro hierárquico dos que O servem, santas belíssimas e anjos formosos, à imagem das suas casas e dos seus ornamentos pessoais e dos seus dias voluptuosos. Sim, imagino até como Bon o conduziu até aqui, até ao choque: a habilidade, o cálculo, preparando o espírito do puritano Henry como teria
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preparado um pedregal para nele semear e colher os frutos que pretendia. Era a cerimónia, fosse qual fosse, que repulsava a Henry: Bon o sabia. Não a amante nem sequer o filho, nem sequer por ser a amante negra e muito menos por ser negro o filho, que Henry e Judith cresceram com uma negra por sua irmã natural; não havia a amante de repulsar a Henry decerto que não a amante nigra a um homem com as origens de Henry, a um rapaz que viveu e cresceu num meio onde o outro sexo está apartado em três divisões bem definidas, separadas (duas delas) por um abismo que pode ser vencido uma só vez e numa só direcção - as senhoras, as mulheres, e as fêmeas - as virgens com que os homens bem-nascidos hão-de casar um dia, as cortesãs que eles procuram pelas horas sabáticas nas cidades, e as escravas moças ou adultas sobre quem assenta aquela primeira casta e a quem fica por certo a dever, em certos casos, a própria virgindade; - não era isto o que repulsava a Henry, jovem, de sangue ardente, vítima do severo celibato de cavalgadas e caçadas que inflamassem e importunassem o sangue de um rapaz novo, a que ele e os seus iguais eram sujeitos para matar o tempo, estando as meninas da sua classe interditas e inacessíveis, e as mulheres da segunda categoria inacessíveis também por questões, essas, de dinheiro e de distância, e portanto só as escravas moças, as criadas da casa, limpas e bem-postas pelas suas patroas brancas ou talvez até mesmo as raparigas de corpos suados na lavoura, e o homem monta a cavalo e vai até aos campos e acena ao feitor vigilante e diz Manda-me cá a Juno ou a Missylena ou a ChIory e depois segue para os arvoredos e desmonta e fica à espera. Não: havia de ser a cerimónia, uma cerimónia em que ele se uniu, já se vê, a uma negra, mas ainda assim uma cerimónia; foi isto o que decerto Bon pensou. Por isso o imagino até, e o modo como ele o fez: o modo como tomou nas mãos a chapa negativa e inocente que era a alma e o intelecto de um Henry provinciano e a expôs muito a pouco e pouco a este ambiente esotérico, lentamente nela se formando a imagem que ele desejava que a chapa retivesse e aceitasse. É como se estivesse a vê-lo, corrompendo Henry lentamente às primeiras elegâncias, sem preâmbulo, sem aviso, a advertência a chegar depois do facto, expondo Henry lentamente ao aspecto superficial - a arquitectura um tanto singular, um tanto feminina de floreios e por isso mesmo para Henry opulenta, sensual, pecaminosa; os sinais conjecturados nela da riqueza imensa e fácil medidos pelas cargas dos vapores em lugar do laborioso avanço dos vultos suados pelos campos de algodão; o resplendor flamejante das miríades rodas de carruagem, trazendo as mulheres, entronizadas e imóveis, que rapidamente passavam pelo seu campo de visão, e apareciam como retratos pintados com homens em linhas um pouco mais leves e diamantes um pouco mais luminosos e casimiras um pouco mais esmeradas e com chapéus um pouco mais inclinados sobre os rostos com um pouco mais de soberba, e mais sombria, tais que outros nunca ele tinha visto: e o mentor, o homem por quem ele repudiara não só os laços do sangue e parentesco mas o pão e o tecto e a roupa do corpo também, cujos modos no vestir, no andar, na fala, Henry quisera arremedar, como arremedar quisera a sua atitude para com as mulheres e os seus conceitos de honra e de orgulho também, a observá-lo com
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aquele cálculo frio e felino, insondável, a observar uma imagem que aparecia e se fixava e depois dizendo a Henry, 'Mas não é isto. Isto é só a base, o alicerce. É de todos e não é de ninguém': e Henry, 'Queres dizer que não é isto? Que é então superior a isto, mais elevado, mais principal do que isto?': e Bon, 'Sim. Isto é apenas o alicerce. E de qualquer um, não é de ninguém.': um diálogo sem palavras, sem fala, que se fixava e depois desaparecia, sem eliminar porém uma só linha da imagem, do cenário, preparado o cenário, preparada a chapa de novo inocente: dócil, com aquela puritana humildade face a tudo quanto pede mais bom-senso do que lógica, factos, o homem, e dentro dele o coração a sufocar aflito dizendo Eu quero acreditar! Eu quero! Quero! Seja verdade ou mentira, eu hei-de acreditar! à espera da imagem que se havia de seguir, aquela que o mentor, o corruptor, lhe preparava: aquela imagem seguinte, depois da qual estar fixada e aceite o mentor voltaria a dizer, talvez por palavras agora, ainda observando o rosto pensativo e sério mas ainda seguro de conhecer e confiar nessa herança puritana que tinha de fingir uma censura em vez de surpresa, ou mesmo desespero, ou até coisa nenhuma, de preferência a que a censura fosse tomada por um sinal de surpresa ou desespero: 'Mas a questão nem é sequer essa': e Henry, 'Queres dizer que ainda está para além disto, que ainda está acima disto?' Porque ele (Bon) falaria agora, indolente, quase críptico, por suas mãos levando agora à chapa aquela imagem que ele queria nela estampar; imagino até como ele o terá feito - o cálculo e a cautela e o frio desapego do cirurgião, as exposições breves, tão breves que seriam crípticas, quase em staccato, e a chapa sem consciência do que havia de mostrar a imagem quando estivesse completa, essa que mal se via e era indestrutível: a aranha, o cavalo de sela parado em frente de uni portal fechado e singularmente monástico num bairro um tanto decadente, um tanto sinistro mesmo, e Bon mencionando o nome da proprietária com indiferença - isto, a corrupção mais uma vez, subtil, fazendo com que Henry se imaginasse um homem vivido em palestra com seu igual, que Henry sabia que Bon havia de o supor capaz de saber, até por uma palavra solta, do que estava Bon falando, e Henry, o puritano, cujo dever seria nada mostrar de preferência a mostrar surpresa ou incompreensão; - uma fachada nua com as adufas cerradas e dormindo ao sol brumoso da manhã, que a voz cariciosa e criptica investia de prazeres secretos e singulares e inimagináveis. Sem saber o que os olhos viam, foi como se para Henry a barreira nua e lascada, ao desvanecer-se, não originasse e revelasse a compreensão do intelecto que pesa e rejeita, mas atingisse de golpe o nervo dalgum alicerce primário, cego, animal, o alicerce dos grandes sonhos e das grandes esperanças juvenis de um homem - a fila de rostos como um bazar de flores, a suprema apoteose da propriedade, da carne humana gerada por duas raças para essa venda - o corredor de rostos, como flores condenadas e trágicas, entalado entre a fila soturna de velhas duefias e as formas elegantes dos homens, juventude masculina esmerada, predatória e (de momento) lúbrica: isto o que Henry viu num repente, exposto num repente e logo furtado, a voz do mentor cariciosa ainda, afável, críptica, ainda postulando que ele era um homem vivido em palestra com seu igual sobre uma coisa que
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ambos compreendem, confiado ele, apostando ele ainda, no horror aldeão desse puritano, o horror de revelar surpresa ou ignorância, pois conhecia Henry muito melhor do que Henry o conhecia a ele, e Henry sem o mostrar por sua vez, refreando esse primeiro grito de sofrimento e terror, Eu quero acreditar! Eu quero! Quero! Sim, tão breve, antes que Henry tivesse tempo de saber o que vira, mas agora mais lenta: agora vinha o momento para o qual Bon trabalhara: - um muro que não podia escalar-se, um portão pesadamente fechado, o rapaz provinciano e sério e pensativo apenas aguardando, olhando, ainda sem perguntar porquê? o quê? o portão de vigas sólidas em vez do gradeamento rendilhado a ferro, e eles seguindo, Bon a bater a uma portinhola adjacente da qual um homem rompe, trigueiro, como de antiga xilogravura da Revolução Francesa, apreensivo, diria mesmo aterrado, encarando a luz diurna e depois Henry, e falando a Bon no francês que Henry não compreende, e reluzem por um instante os dentes de Bon que lhe responde em francês: 'Com ele? Um americano? É meu convidado; tinha de o
deixar escolher as armas e eu recuso-me a lutar à machadada. Não, não; não é isso. É só a chave.' Era só a chave; e agora, passando eles, os portões sólidos trancavam-se de novo, como estiveram trancados antes, sem um vestígio ou sinal, aquém dos muros altos e grossos, de que a cidade baixa existisse, e raros sons dela chegavam, o emaranhado labiríntico de aloendros e jasmins, lantanas e mimosas murando novamente a nesga de terra nua, varrida e tratada a cal de concha, gradada, imaculada, e nela apenas as marcas recentíssimas, castanhas, visíveis agora, e a voz - o mentor, o guia, afastando-se para observar o rosto grave e provinciano - afável no dizer indiferente daquela curiosidade: 'O costume é ficar-se costas com costas, a pistola na mão direita, e na mão esquerda a ponta da capa do outro. Ao sinal começa-se a andar e quando se sente o esticão da capa dá-se meia volta e
atira-se. Ainda há quem, por vezes, quando o sangue ferve em demasia ou ainda é sangue vilão, prefira facas e uma capa só. Colocam-se frente a frente, embrulhados na mesma capa, vês, cada um segurando o pulso do outro com a mão esquerda Mas eu nunca fiz assim'; - indiferente, como quem fala de banalidades, percebes, à espera da vagarosa pergunta do provinciano, que já sabia agora a resposta antes de perguntar: 'Mas tu - eles batiam-se porquê?'
"Sim, Henry saberia agora, ou julgava que sabia agora; a bem dizer, talvez tomasse aquilo por um anti-climax embora o não fosse, tudo menos isso, o último golpe, a última gota, a última palavra, o penetrante composto do cirurgião que os nervos agora em choque do paciente nem sentiriam sequer, como nem saberiam que os primeiros choques violentos hão-de ser casuais e sem rebuço. Porque havia a tal cerimónia. Bon não ignorava que era a isso que Henry iria resistir, era isso que lhe seria difícil engolir e esmoer. Ah, ele era arguto, este homem que há semanas vinha sendo para Henry um maior mistério, este estranho, imerso e agora absorto nos preparativos formais, quase rituais, da visita, com minúcias quase feminis compondo o cair do casaco novo que teria mandado fazer para Henry, e forçado Henry a aceitar para a circunstância, por meio dos quais preparativos toda a impressão que Henry havia de receber da visita se firmava, antes mesmo que saíssem de
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casa, antes mesmo que Henry visse a mulher: e Henry, o provinciano, o aturdido, e a maré subtil já se levantando sob os seus pés guiada para aquele ponto em que ele havia ou de trair-se e a tudo quanto fora e pensara, ou de renegar o amigo por quem repudiara já casa e parentes e tudo; o aturdido, o fraco (desta vez), que tanto queria acreditar e todavia não achava como pudesse acreditar, que o amigo, o mentor, levava a um dos portais inescrutáveis e singularmente silenciosos como o tal a que vira o cavalo ou a aranha, e daí ao lugar onde aos seus olhos de aldeão puritano toda a moral se inverte e a honra toda se acaba - um lugar criado pela voluptuosidade e para os voluptuosos, para os sentidos que não conhecem ou já esqueceram a culpa, e o lapuz de simples e até então imperturbado código, segundo o qual as mulheres eram senhoras ou rameiras ou escravas, olhou a apoteose das duas raças condenadas a que a própria vítima presidia - a mulher com rosto de magnólia trágica, a eterna fêmea, Aquela que eternamente sofre; a criança, o menino, dormindo em sedas e rendas já se vê, mas propriedade absoluta daquele que, por gerá-lo, era dono do seu corpo como da sua alma e que podia vendê-lo (se quisesse) como vitelo ou cachorro ou cordeiro; e o mentor de novo observando, talvez até o jogador observando agora, que pensava Perdi ou ganhei? quando saíram e quando regressavam aos aposentos de Bon, ele por enquanto incapaz de palavras, de argúcia, já não confiado no
carácter puritano que jamais deve mostrar surpresa ou desespero, tendo agora de confiar (se nalguma coisa podia confiar) na corrupção ela mesma, o amor; nem ele podia dizer, 'Então? Que me dizes?' Só podia aguardar, e o quê se não os actos absolutamente imprevisíveis de quem era dominado pelo instinto em vez do raciocínio, até que Henry falasse, 'Mas uma mulher comprada. Uma rameira': e Bon, até numa voz branda agora, 'Rameira, não. Não lhe chames isso. Aliás, nunca fales de uma delas por esse nome em Nova Orleães: ou podes ser obrigado a comprar o privilégio com o teu próprio sangue, que to vão reclamar provavelmente mil homens', e talvez ainda em voz branda, talvez agora até com uma certa piedade: essa piedade pessimista e sarcástica, cerebral, do ser inteligente por qualquer injustiça ou loucura ou sofrimento humanos: 'Rameiras, não. E não rameiras, nunca, por nós, os mil. Nós - os mil, os homens brancos - as fizemos, criámos e produzimos; fizemos até as leis que ditam que um oitavo de uma determinada espécie de sangue há-de prevalecer sobre os sete oitavos do outro. Confesso. Mas essa mesma raça branca havia de fazer delas escravas também, nas máquinas ou nas cozinhas, até nos campos, se não fossem estes mil, este punhado de homens como eu, sem princípios nem honra sequer, dirás tu talvez. Não podemos, talvez nem queiramos sequer, salvá-las todas; talvez as mil que salvamos não sejam sequer uma entre mil. Mas essa uma, nós salvamos. Olhará Deus por cada avezinha mas nós não pretendemos ser Deus *, percebes. Nem queremos ser Deus, talvez, pois homem algum há-de querer mais do que uma destas avezinhas. E talvez no dia em que Deus olhar para uma dessas casas como a que esta noite viste, Ele não escolha tão-pouco um de nós para ser Deus na Sua velhice. Que Ele deve ter sido novo algum dia, de certeza que já foi novo algum dia, e de certeza alguém que existe há tanto
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tempo como Ele, e já viu tanto pecado vil e promíscuo e sem dignidade nem freio nem decoro como Ele terá visto, há-de esperar finalmente, embora as
75**esperan quer de um para mil vezes mil, que os princípios da . ças não sejam se honra e da decência e da nobreza de carácter se apliquem àquele instinto humano e perfeitamente normal que vós, anglo-saxões, insistis em chamar lascívia, e ao serviço da qual regressais pelas horas sabáticas às cavernas primordiais, quando se perde o que vós chamais a graça em nevoeiros e neblinas de palavras com que bradais aos Céus desculpas e explicações, proclamando o retorno à graça com gritos a aplacar os Céus, gritos de flagelações e humilhações já saciadas, e em nenhuma destas coisas - clamores ou cilícios - pode o Céu achar interesse ou até, passada a primeira e a segunda e a terceira vez, desenfado. Por isso talvez Ele, agora que está velho, não se interesse pelo modo sequer como servimos o que chamais lascívia. Talvez nem Ele requeira de nós que salvemos uma só avezinha, como não requer talvez que a salvemos para obtermos Dele algum merecimento. Mas salvamos, sim, essa avezinha única, essa que sem nós seria vendida a algum bárbaro com dinheiro que a pagasse, não vendida por uma noite como a prostituta branca, mas de corpo e alma e por toda a vida àquele que pode usar dela com maior impunidade do que teria ânimo para usar duma besta, bezerra ou égua, e depois pode abandoná-la ou vendê-la ou até assassiná-la quando estiver exausta ou quando o seu sustento e o seu preço já não contrapesem. Sim: uma avezinha por quem Ele Se esqueceu de olhar. Pois embora a tenham criado os homens, os homens brancos, Deus não se opôs. Plantou Ele a semente que fez dela flor - o sangue branco a dar-lhe as formas e a coloração que para o branco são a beleza feminina, misturado àquele princípio feminino que existia, completo e régio, no calor equatorial do ventre do mundo muito antes de este, nosso e branco, descer das árvores e perder os pêlos e branquear - um princípio inteligente e dócil e pleno de estranhos e antigos e singulares prazeres da carne (que são tudo: não existe mais nada) de que as suas irmãs brancas, a presumir de fidalgas, fogem num horror moralista e ultrajado - uni princípio que, lá onde a branca há-de por força fazer disto uma questão de dinheiro, como alguém que teima em pôr um balcão, uma balança, um cofre, numa loja ou casa comercial por uma certa percentagem, reina, sábio e supino e todo-poderoso, na cama de sedas e sombras que é o seu trono real. Não: rameiras, não. Nem mesmo cortesãs:
- criaturas desde a infância escolhidas e criadas com mais cuidados até do que a menina branca, do que uma freira, do que uma égua de raça, por alguém que lhes dedica a atenção e os cuidados constantes de que mãe nenhuma é capaz. Por um preço, claro, mas um preço declarado e aceite ou recusado por meio dum sistema de mais formalidades ainda que os utilizados para vender meninas brancas, que elas são mais valiosas mercadorias que as meninas brancas, educadas e ensinadas a cumprir a única finalidade, o destino da mulher: amar, ser bela, divertir; e quase não vêem rosto de homem antes de serem levadas ao baile e oferecidas e escolhidas por um que em troca deve, porque não se trata de poder ou querer mas de obrigação, deve oferecer-lhe o ambiente próprio a que ela ame e seja bela e divirta, e que geralmente á- 76

-de arriscar a vida ou pelo menos o sangue pelo privilégio. Não, rameiras não. Às vezes penso que são elas as únicas mulheres castas, para não dizer as únicas virgens, da América, e elas são fiéis e leais a esse homem, não apenas até ele morrer ou as libertar, mas até morrerem elas. E onde poderás tu encontrar quer rameira quer senhora que faça o mesmo?' e Henry, 'Mas tu casaste com ela. Casaste com ela.' e Bon - numa voz um pouco mais rápida agora, mais desabrida, embora mansa ainda, paciente, embora um ferro ainda, o aço - o jogador que não está reduzido ainda a jogar o último trunfo: 'Ali. A cerimónia. Percebo. É isso, então. Uma fórmula, parouvela tão sem sentido como lengalenga de crianças, pronunciada por alguém que a situação criou e cuja necessidade ela serviu: murmúrios de uma velha muito velha numa fuma alumiada por umas folhas de eucalipto, alguma coisa numa voz que nem as raparigas já entendem, talvez nem a velha já entenda, alguma coisa que não tem por raiz o dinheiro, nem para ela nem para a sua possível descendência, que mesmo o facto de nos conformarmos à farsa, de a suportarmos, é para ela prova e garantia daquilo que uma cerimónia por si só não pode fazer cumprir; não conferindo a ninguém novos direitos, nem a ninguém retirando os antigos um ritual tão sem sentido como o dos garotos de colégio em quartos secretos à noite, até nos mesmos símbolos arcaicos e esquecidos? - chamas a isto um casamento, quando a noite dessas núpcias e a noite de ocasião com uma prostituta comprada são a mesma suserania sobre um quarto (provisoriamente) privado, a mesma ordem no despir das mesmas roupas, o mesmo rousso na mesma cama? Por que não chamar a isso também um casamento?' e Henry: 'Ali, eu sei. Eu já sei. Dás-me dois e dois e dizes que somam cinco e somam realmente cinco. Mas mesmo assim há o casamento. Supõe que eu assumia uma obrigação com um homem que não fala a minha língua, a obrigação é-lhe fixada na sua e eu concordo: estaria eu menos obrigado à minha palavra porque não se dá eu falar a língua em que ele a aceitou de boa fé? Não: estaria mais obrigado, muito mais.' e Bon - o trunfo agora, a voz mansa: 'Já não te lembras que essa mulher é uma nigra, e essa criança também? Tu, Henry Sutpen, de Sutpen's Hundred no Mississipi? Tu, a falares de casamento, de bodas, com uma nigra?' e Henry - o desespero agora, o último grito, a amargura do que embora vencido continua irrevogavelmente invicto: 'Sim. Eu sei. Isso, eu sei. Mas aí tens. Não está certo. Nem mesmo por seres tu a fazê-lo está mais certo. Nem mesmo por seres tu.'
"E ponto final. Devia ter sido um ponto final; aquela tarde, passados quatro anos, devia ter acontecido no dia seguinte, e os quatro anos, o intervalo, um mero anti-clímax: uma atenuação e um adiamento do desfecho então já oportuno que lhes trouxe a Guerra, a estúpida e sangrenta aberração do alto (e impossível) destino dos Estados Unidos, atraída talvez por essa fatalidade que pesava sobre a família e possuía, como possuem sempre as circunstâncias, a singular ausência de uma economia entre causa e efeito que é sempre característica do destino quando está reduzido a usar os seres humanos como seus instrumentos e materiais. O certo é que Henry esperou quatro anos, mantendo os três nesse embargo, nesse cativeiro, na espera e na esperança de que Bon renunciasse àquela mulher e dissolvesse o casamento 77

mento que ele (Henry) admitiu não ser um casamento, e a que Bon, soube-o Henry assim que viu a mulher e a criança, não renunciaria. Conforme iam passando os dias e Henry se acostumava àquela ideia, à cerimónia que não era ainda um casamento, foi porventura isto mesmo que o afligiu - não as duas cerimónias mas as duas mulheres, não o facto de que a intenção de Bon fosse cometer bigamia mas sim, e ao que parece, fazer da sua irmã irmã de Henry) uma espécie de residente subalterna daquele harém. O certo é que ele ficou à espera, e naquela esperança, durante quatro anos. Chegada a Primavera, eles voltaram ao norte, ao interior do Missíssipi. Tinha havido a batalha de Buli Run e organizava-se uma companhia na Universidade, entre os estudantes. Henry e Bon assentaram praça. Henry provavelmente mandou recado a Judith de onde estavam e do que pretendiam fazer. É que se alistaram juntos, percebes, Henry vigiando Bon e Bon consentindo que ele o vigiasse, consentindo na liberdade vigiada, no cativeiro: um que não ousava perder o outro de vista, não por medo que Bon casasse com Judith sem ele estar presente para o impedir, mas que Bon casasse com Judith e que então ele (Henry) tivesse de viver toda a vida com a satisfação de ser assim atraiçoado, com a alegria dos cobardes por capitular sem derrota; o outro por esta mesma razão, que ele não havia de querer Judith sem Henry pois decerto nunca ele duvidou que poderia casar com Judith quando o quisesse, mesmo a contragosto do irmão ou do pai ou de ambos, pois como te disse não era Judith o objecto do amor de Bon, ou das solicitudes de Henry. Ela era apenas a forma vazia, o corpo no qual um e outro, rivais, queriam guardar, não a ilusão de si nem a ilusão do outro, mas a imagem que de si tinha o outro o homem e o rapaz, o sedutor e o seduzido, que se conheceram, seduziram e foram seduzidos, vítimas sucessivas um do outro, o conquistador vencido pela sua própria força, o vencido conquistando pela sua fraqueza, antes de Judith aparecer na vida comum dos dois sequer pelo seu nome de mulher. E quem sabe? agora havia a Guerra; quem sabe se a fatalidade e as suas vítimas não pensariam, unia e outras, ou não teriam a esperança, que a Guerra viesse resolver a questão deixando livre um dos dois irreconciliáveis, pois não seria a primeira vez que a juventude viu numa catástrofe a mão da Providência que intervém com o fim único de resolver essa questão pessoal que a juventude não pode sozinha resolver.
"E Judith: como explicá-la senão assim? Com certeza Bon não a podia ter corrompido ao fatalismo em doze dias, se nem sequer atentara contra o seu pudor e muito menos lhe afrontara o pai. Não: tudo menos fatalista, que ela era uma Sutpen, e pelo cruel código dos Sutpens sempre conseguia, pela força de si mesma, o que almejasse, como dos dois era Henry o Coldfield, empecido por moralismos e regras do que estaria certo ou estaria errado; foi ela que assistiu do palheiro, enquanto Henry vomitava aos gritos, nessa noite do espectáculo de Sutpen seminu combatendo um nigro seminu, e com o mesmo interesse, a mesma atenção, a mesma frieza, com que Sutpen haveria de observar Henry lutando com um negrinho da sua idade e peso igual Porque ela desconhecia os motivos da objecção paterna ao casamento. Henry não lhos teria dito, e ela não teria perguntado ao pai. Porque, mesmo se ela
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os soubesse, não havia de lhe fazer diferença. Ela havia de agir como Sutperi agia quando alguém ousava atravessar-se no seu caminho: fosse por que meios fosse, Bon havia de ser seu. Imagino-a até capaz de matar a outra mulher, se tal extremo fora necessário. Mas nunca ela seria capaz de investigar o homem para depois se debater entre o que mais queria e o que pensava ser moralmente correcto. E todavia ela esperou. Esperou quatro anos, sem ter dele uma palavra sequer, salvo por Henry, que lhe dissesse estar ele vivo (Bon), porque Henry não havia de consentir que Bon escrevesse. Não consentia. E Bon não havia de fazer tal diligência. Era a liberdade vigiada, o cativeiro; todos três o aceitaram; não creio que tivesse havido qualquer empenho de palavra entre Henry e Bon, que um não a deu nem o outro a pediu. Mas Judith, essa, desconhecia o que se tinha passado ou porquê. - Já reparaste como tantas vezes, se queremos reconstruir as razões que levam aos actos de homens e mulheres, como nos achamos de quando em quando, e com um certo espanto, reduzidos a acreditar, e somente nisso podemos acreditar, que eles têm origem nalguma antiga virtude? O ladrão que rouba não por cobiça mas por amor, o assassino que mata não por vício mas por compaixão? Judith, oferecendo toda a sua confiança a quem já tinha dado o seu amor, oferecendo todo o seu amor a quem lhe tinha dado a vida e o orgulho: esse orgulho verdadeiro, não a espécie falsa que transforma o que de momento não compreende em escárnio e em ultraje, e assim se desafoga em melindres e lacerações, mas o orgulho verdadeiro que pode, sem se humilhar, dizer Eu amo, e não aceitarei menos do que isto; alguma coisa aconteceu entre ele e o meu pai; se meu pai teve razão, eu nunca mais o verei, se a não teve, ele há-de vir buscar-me ou há-de mandar por mim; se eu puder ser feliz, sê-lo-ei, se eu tiver de sofrer que sofra. Porque ela esperou; mais nada fez do que esperar; o seu proceder para com o pai não se alterou em nada; a vê-los juntos era como se Bon nunca tivesse existido - os mesmos dois rostos calmos e insondáveis na carruagem pela vila durante esses poucos meses, depois de Ellen ter recolhido ao leito, entre esse dia de Natal e o dia em que Sutpen partiu no regimento que era seu e de Sartoris. Não falavam, não contavam nada um ao outro, repara - Sutpen, o que soubera de Bon; Judith, que sabia onde estavam Bon e Henry. Não careciam de falar Tão iguais eles eram. Que eram como às vezes a duas pessoas acontece, que tão bem se conhecem, ou são tão parecidas, que a necessidade, os meios, de comunicar por palavras se atrofiam por falta de uso e, compreendendo sem recurso ao ouvido ou ao intelecto, já não entendem as palavras que se dizem. Ela portanto não lhe disse onde estavam Bon e Henry e ele só veio a descobrir quando a companhia académica já tinha partido, porque Bon e Henry alistaram-se e foram esconder-se, algures. É o que deve ter acontecido; eles devem ter parado em Oxford pelo tempo de se alistarem, e logo seguiram viagem, porque ninguém que os conhecesse em Oxford ou em Jefferson sabia que já nessa altura os dois eram soldados da companhia, o que teria sido quase impossível de esconder por outra forma. Porque nesse tempo chegava gente - pais e mães e irmãs e parentes e noivas desses rapazes - a Oxford, de mais longe ainda que Jefferson - famílias com mantimentos e roupa de
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cama e criados, que ali bivacavam lado a lado com as famílias, as casas, de Oxford, para assistirem todos à pantomima garbosa das marchas e contramarchas dos filhos e dos irmãos, atraídos ali todos, o rico e o pobre, o aristocrata e o maloio *, pelo que é, porventura, o mais comovente e vasto espectáculo de toda a vasta experiência humana, mais ainda que o espectáculo de outras tantas virgens indo ser sacrificadas a algum Princípio pagão, algum Príapo - o panorama dos jovens, de ossatura leve e ágil, carne e sangue iludidos, garbosos, gloriosos, e arroupados no esplendor marcial das divisas e das plumas, marchando a caminho da batalha. E à noite haveria música rabecas e ferrinhos ao fulgor das velas, ao ondear das cortinas em altas janelas pela escuridão de Abril, ao balanceio das crinolinas confundindo-se no círculo do cinzento singelo do soldado ou do ouro nos galões do oficial de um exército de cavalheiros, mesmo se a guerra cavalheiresca não foi, em que praças e coronéis se tratavam pelo nome de baptismo, não como dois lavradores à charrua parada, num campo, ou ao balcão de uma loja a abarrotar de chitas e de queijo e de sebo para as correias, mas como dois homens à beira dos ombros femininos, delicados, empoados, ao erguer dois copos de clarete de scuppernong ou de champanhe importado; - música, a última valsa, noite após noite repetida, enquanto os dias passavam e a companhia esperava ordens, o esplendor corajoso e trivial na noite, negra, não da catástrofe mas do cenário, a Primavera perfumada e eterna e última da juventude; e Judith não estava ali e Henry, o romântico, não estava ali como ali não estava Bon, o fatalista, escondidos eles algures, o que vigiava e o que era vigiado: e as alvoradas sucediam-se floridas por Abril e Maio e Junho, plenas de cornetins, rompendo por cem janelas onde cem viúvas por casar sonhavam pensativas e virginais de pensamento nenhum, contemplando os caracóis de cabelos negros ou louros, e Judith não estava ali: e cinco da companhia, com seus cavalariços e criados particulares numa carroça de forragem, vestidos no cinzento novo e sem mácula, faziam o périplo do Estado com a bandeira, o estandarte da companhia, os pedaços de seda talhados e ajustados mas não cosidos, seguiam de casa em casa até que as noivas de todos os combatentes da companhia dessem alguns pontos, e Henry e Bon tão-pouco estavam com eles, que só se juntaram à companhia depois que ela partiu, que devem ter surgido lá donde quer que estivessem rondando, e devem ter surgido sem que ninguém os visse, dos canaviais ou do mato à berma do caminho, enfileirando ao passar a companhia em marcha; - o rapaz e o homem, o rapaz desapossado já por duas vezes do que seria seu por direito, que teria o seu lugar entre as velas e as rabecas, os beijos e as lágrimas aflitas, que teria o seu lugar até na guarda ao estandarte que fez o périplo do Estado com a bandeira por coser; e o homem que não devia sequer ali estar, que já não tinha sequer idade para ali estar, tanto pelo conto dos anos como da experiência: o órfão mental e espiritual cujo fado seria existir em algum limbo, algures entre o lugar que ocupava a sua corporalidade e o lugar que o seu preparo moral e a sua inteligência almejavam - um estudante universitário, todavia pela mera acumulação dos muito e muito vividos anos forçado a ser supranumerário num curso de Direito com seis alunos; a participar na Guerra, por
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essa mesma força atirado para o isolamento de uma patente de oficial. Recebeu ele posto de tenente mesmo antes de a companhia travar o primeiro combate. Não creio que ele ambicionasse o posto; imagino-o até mesmo
procurando esquivar-se, recusá-lo. Mas foi tenente, e foi o órfão mais uma vez da mesma situação à qual e pela qual estava condenado - os dois, agora oficial e praça, mas ainda o que vigia e o que é vigiado, esperando alguma coisa mas sem saberem, nem um nem outro, o que seria, que fado, que destino, que irrevogável sentença de que Juiz ou árbitro escolhendo ou um ou outro, pois outra coisa não seria, nem meio-termo ou revogação lhes bastaria - o oficial, o tenente que tinha a pequena e autorizada vantagem de ordenar Tu aí faz aquilo, ou de pelo menos ficar às vezes na retaguarda do pelotão sob seu comando; o praça que levou às costas aquele oficial, atingido no ombro, quando o regimento recuou debaixo do fogo Ianque em Pittsburg Landing, o levou para lugar seguro talvez com o único fim de vigiá-lo por dois anos mais, escrevendo a Judith entretanto que eram vivos ambos, e ponto final.
"E Judith. Agora ela vivia sozinha. Talvez sozinha ela vivesse desde aquele dia de Natal do ano passado, e mesmo no ano antes daquele, e mesmo três e quatro anos antes, pois embora Sutpen já tivesse partido com o regimento que era seu e de Sartoris, e os negros - a raça cafreal com que ele havia criado Sutpen's Hundred - tivessem ido no encalço das primeiras tropas Ianques que passaram em Jefferson, ela não vivia em solidão, tudo menos isso, com Ellen de cama, enclausurada no quarto, exigindo as contínuas atenções dessa criança enquanto esperava em assombrada e passiva incompreensão a morte; e ela (Judith) e Clytie plantando e amanhando a horta, se assim podemos chamar, que lhes desse algum sustento; e Wash Jones, vivendo na cabana do pesqueiro que apodrecia na chá do rio e Sutpen construíra depois que a primeira mulher - Ellen - entrou na sua casa e o último caçador de veados e ursos de lá saiu; onde ele agora permitia que Wash e a filha e a neta de colo vivessem, fazendo ele os trabalhos pesados na horta e provendo a Ellen e Judith, e depois a Judith, de peixe e caça uma vez por outra,, pisando até na casa agora quem até Sutpen partir nunca se aproximara mais que do parreiral de scuppernongs nas traseiras da cozinha, onde pelas tardes de domingo ele e Sutpen bebiam do garrafão e do balde com a água da nascente que Wash ia buscar a quase uma milha de distância, Sutpen na cama de rede, abarrilada, falando* e Wash agachado contra o poste, casquinando e espirralhando gargalhadas; - não vivia em solidão e muito menos em ociosidade: o mesmo rosto insondável e sereno, um pouco mais velho agora, um pouco mais magro, que tinha aparecido na vila de carruagem com o pai a menos de uma semana depois que na vila se disse que o noivo e o irmão tinham deixado a casa de noite e levado sumiço, ninguém sabia porquê ou para onde, nem o perguntava ninguém, tal como ninguém perguntava agora quando ela descia agora à vila, com o vestido voltado que todas as mulheres do Sul agora usavam, na carruagem puxada agora pela mula, a mula de trabalho, logo depois veio com a mula e sem cocheiro que a guiasse, que lhe pusesse e tirasse os arreios, para se juntar às outras mulheres onde - havia
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nesse tempo feridos em Jefferson - no improvisado hospital onde (a virgem educada, a suprema e tradicionalmente ociosa) se limpavam e vestiam os corpos deles, emporcados de fezes, os corpos dos estranhos, dos feridos e dos mortos, e se faziam ligaduras com as cortinas e os lençóis de linho das casas onde elas tinham nascido; - ninguém que lhe perguntasse do irmão e do noivo quando entre elas se falava dos filhos e dos irmãos e dos maridos com lágrimas de dor talvez mas ao menos com certezas, que lhes sabiam do paradeiro; e ela também esperando, como Henry, como Bon, sem saber o que esperava, mas ao contrário de Henry e de Bon sem saber, ela, ao menos por que razão. Depois Ellen morreu, a borboleta de um Verão esquecido e havia dois anos já morrendo - o vulto incorpóreo, a sombra intocada por qualquer mudança ou fenecimento, pela razão mesma de não ter peso: sem corpo que enterrar: só a forma, a recordação, transladada em tarde serena, sem sinos ou catafalco, para a mata dos cedros onde havia de jazer em sobreleve paradoxo sob o peso das mil libras de mármore, a pedra tumular, que Sutpen (o coronel Sulpen agora, pois Sartoris fora deposto na eleição anual dos oficiais do regimento no ano anterior) trouxe na carroça da forragem do regimento desde Charleston, na Carolina do Sul, e ergueu sobre a pouca depressão de terra que Judith lhe disse que era a sepultura de Ellen. E depois o avo morreu, deixou-se morrer à fome, encerrado no sótão da sua casa, e Judith sem dúvida a convidar Miss Rosa a que vivesse com ela na casa de Sutpen's Hundred, convite que Miss Rosa declinou, que ela esperava talvez por esta carta, esta primeira palavra do punho de Bon em quatro anos e a qual, uma semana depois de ter enterrado o corpo dele junto à campa da mãe, ela trouxe por sua mão à vila, no cabriolé puxado pela mula que tanto ela como Clytie haviam aprendido a apanhar e a arrear, e a deu à tua avó, trouxe e deu por sua vontade à tua avó, ela que (Judith) não visitava agora ninguém, não tinha agora amigos, nem sabia ela própria mais do que sabia a tua avó das razões por que a escolhera para lhe dar a carta; magra não, descamada, o crânio duma Sutperi visível agora deveras sob a carne gasta, a carne dos ColdfleIds, o rosto que há muito havia esquecido o que era ser jovem e todavia continuava insondável e absolutamente sereno: luto não havia, nem sofrimento sequer, e a tua avó a dizer, 'A mim? Quer que seja eu a guardá-la?
"'Guarde', respondeu Judith. 'Ou rasgue. Faça o que a senhora quiser. Leia se quiser ou se quiser não leia. Porque nós somos coisa tão pouca, sabe. Nascemos e fazemos a diligência e não sabemos porquê mas fazemos sempre a diligência e nascemos ao mesmo tempo com muitas outras pessoas, todos emaranhados com elas, é como ter vontade, é como precisar, de mexer os braços e as pernas atados com cordéis só que os mesmos cordéis estão amarrados aos braços e às pernas dos outros todos e eles a fazer a diligência e eles também sem saberem porquê, salvo que os cordéis estão a atrapalhar tudo e todos, como se estivessem cinco ou seis pessoas a fazer um tapete no mesmo tear e cada uma quisesse pôr nele o seu desenho; e não terá importância nenhuma, sabemos que não tem, ou Aqueles que fizeram o tear dispunham melhor as coisas, e todavia alguma importância terá porque nós continuamos a fazer a diligência, ou temos de continuar sempre a fazer a dili- 82

gência, e depois de repente acabou-se tudo e o que resta de nós é um bloco de pedra e uns riscos nela, isto se houver quem se lembre de riscar o mármore e erguê-lo, ou quem tenha tempo, e chove na pedra e o sol brilha na pedra e pouco depois já ninguém se lembra sequer do nome e do que os riscos lá queriam dizer, e não tem importância. Por isso, talvez, se pudermos ir ter com alguém, uma pessoa estranha, e quanto mais estranha for, melhor será, e dar-lhe alguma coisa - um papel - alguma coisa, qualquer coisa, que não seja para dizer nada por si mesma e que não seja sequer para se ler ou se guardar, nem seja para que essa pessoa estranha se dê ao trabalho de guardar ou de rasgar, pelo menos já era alguma coisa, porque foi uma coisa que aconteceu, que há-de ser lembrada nem que seja por ter passado um papel desta mão para aquela, e pelo menos era um risco, alguma coisa que deixa a sua marca numa coisa que em tempos foi pela razão de que pode morrer um dia, enquanto aquele bloco de pedra não pode ser é porque nunca se poderá transformar em foi, porque nunca poderá morrer ou acabar...' e a tua avó a observá-la, o rosto insondável, o rosto calmo, o rosto muito sereno, e a exclamar:
"'Não! Não! Isso, não! Pense no que - ' e o rosto a observá-la e ela, compreendendo, ainda serena, sem amargura sequer:
"'Ah. Eu? Não, isso não. Porque tem de haver alguém que olhe pela Clytie, e pelo Pai não tarda muito, que ele há-de querer a mesa posta quando voltar para casa porque já não vai durar muito isto de eles andarem aos tiros uns aos outros. Não. Isso não. As mulheres não fazem isso por amor. Nem sequer o fazem os homens, creio eu. Pelo menos hoje não fazem. Porque hoje não há lugar para isso, não há lugar para onde eles possam ir, lá onde quer que seja, se é que esse lugar existe. Há-de estar cheio. Atravancado. Como um teatro, uma ópera, se o que se espera lá encontrar é esquecimento, diversão, distracções, como a cama já muito cheia se o que se quer é o ensejo de ficar deitada e quieta e dormir dormir dormir'" Mr Compson mexeu-se. Soerguendo-se, Quentin aceitou dele a carta, e à luz indecisa do globo emporcado pela bicharia a abriu, cuidadosamente a desdobrou, como se aquele quadrado, a dessecada folha, não fosse papel mas a cinza intacta da forma e da substância primitivas: e entretanto a voz de Mr Compson ia dizendo, e Quentin ouvindo sem escutar: "Agora vais ver por que razão eu disse que ele a amava. Porque existiram outras cartas, muitas, galantes, floreadas, indolentes, frequentes, insinceras, mandadas em mão, percorrendo essas quarenta milhas entre Oxford e Jefferson desde o primeiro Natal - o gesto ocioso e subtilmente lisonjeiro (e decerto sem significado algum para ele) do elegante citadino à donzela bucólica - e essa bucólica donzela, com essa clarividência profunda e absolutamente inexplicável e tranquila e paciente das mulheres, comparada com a qual a pose casquilha do elegante citadino era tão-só a mesurice concha de um garoto, recebendo as cartas sem as entender, sem mesmo as guardar, pese embora o arranjo galante e elegante e laboriosamente embrechado na forma e na metáfora, até que chegasse a próxima. Mas guardando esta, que deve ter-lhe chegado às mãos sem ter-te nem guar-te passados quatro anos, considerando esta merecedora de ser dada a uma estranha para que ela a guardasse ou não guardasse, até para que a lesse ou não
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lesse, conforme achasse melhor, merecedora de ser o risco e a marca imperecível feitos nesse rosto cego do olvido a que estamos todos condenados e de que ela falava"; Quentin ouvindo sem ter de o ouvir, lendo as letras esguias, esmaecidas, não como coisa no papel gravada pela mão que um dia fora viva, mas como sombras projectadas que no papel se manifestavam nesse instante em que ele volvia os olhos, e que podiam sumir-se, dissipar-se, a qualquer momento à vista dos seus olhos: a língua morta falando ao fim dos quatro anos, e depois ao fim de quase cinquenta anos mais, caprichosa, sarcástica e gentil e incuravelmente pessimista, sem data ou cumprimentos nem assinatura:
Há-de reparar que não a insulto nem me insulto com o querer que esta seja unia voz nem da derrota quanto mais da sepultura. Direi até que, se fosse um filósofo, havia de fazer por dedução e argumentos, comentário apropriado e singular aos tempos e áugures dofuturo a partir desta carta que tem agora nas suas mãos - uma folha de papel de carta que, como pode ver tem a melhor marca d'água francesa datada de há setenta anos, dos salvados (roubados, se quiser) da mansão esventrada dum aristocrata falido; e escrita com a melhor graxa de brunir fogões manufacturada nem há doze meses numa fábrica da Nova Inglaterra. Sim. Graxa. Apreendida: só por si vale uma história. Imagine um sortimento, nós, de espantalhos homogéneos, não direi esfomeados porque aos ouvidos de uma mulher seja senhora ou seja fêmea, além da Mason e Dixon neste ano da graça de 1865 * essa palavra seria mera redundância, como seria eu dizer que respirávamos. E não direi esfarrapados nem mesmo descalços, pois ambos assim estamos há tanto tempo que já nos habituámos, embora, graças a Deus (e isso traz-me de volta a fé, se não na humanidade, nos homens pelo menos) o homem não se aveze a passar sacrifícios e privações: só se aveza a cabeça, a grosseira e omnívora alma, podre da carniça; o corpo, esse, graças a Deus, nunca se conformou com perder o toque macio do sabão e da roupa lavada que outrora conheceu, e dalguma coisa que vá entre a planta do pé e o chão
e o distinga do animal. Digamos então que precisávamos apenas de munições. E imagine os espantalhos, nós, com um desses planos como só os pode engenhar o desespero dum espantalho e que não só têm, por força, de resultar como resultam de facto, pela razão de não haver alternativas nem para os homens nem para Deus, não haver lugar, esconso, na terra ou debaixo dela onde o fracasso possa ter repouso ou descanso ou sepultura e sepulcro; e nós (os espantalhos) a cumprir o plano com um imenso élan, para não dizer alarido; imagine, dizia eu, a presa, o corso, as dez carroças pejadas, indefesas, do vivandeiro, os espantalhos a descarregar em fúria caixotes e mais caixotes excelentes, estampados cada um com aquele U. e aquele S. que há quatro anos têm sido para nós o símbolo dos despojos que pertencem aos vencidos, como dos pães e dos peixes foi um dia o Rosto incandescente 1@ o resplendoroso halo da Coroa de Espinhos; e os espantalhos a escarpelar os caixotes com
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pedras e baionetas e até com as mãos nuas, e a abri-los finalmente encontrando - O quê? Graxa. Galões e galões da melhor graxa de brunir fogões, e nem um caixotinho com mais de um ano e todos por certo na pressa de alcançar o general Sherman com alguma tardia e emendada ordem de campo exigindo que o general brunisse o fogão da casa antes de lançar-lhe fogo. O que nós rimos. Sim, rimos, porque isto eu pelo menos aprendi nestes quatro anos: que é realmente preciso um estômago vazio para rir, que só quando se passa fome ou se conhece o medo se extrai do riso uma pura essência tal como só o estômago vazio extrai a
pura essência do álcool. Mas pelo menos há por aqui graxa de brunir E em barda. Em demasia, porque não preciso de muita para dizer o que tenho a dizer como vê. E a conclusão e o augúrio que tiro, embora eu não seja um filósofo, está no seguinte.
Já esperámos o bastante. Repare que também não a insulto com dizer que eu já esperei o bastante. E por conseguinte, se a não insulto com dizer que só eu esperei, não acrescento, espere por mim. Porque não sei . dizer-lhe quando voltarei. Porque uma coisa é o que FOI, e outra já não é porque morreu, morreu em 1861, e por conseguinte o que E - (Aí esta. Recomeçou o tiroteio. O que - a mencioná-lo - é uma redundância também, como o dizer que respiramos ou temos falta de munições. Porque às vezes penso que nunca chegou a parar Nunca parou, evidentemente; não é isso. É que parece que não chegou a haver outro, houve só aquela única fuzilaria de há quatro anos que uma vez se ouviu e depois ficou suspensa, hipnotizada em todas as suas bocas de fogo, na pose imóvel do seu próprio assombro de terror e nunca se repetiu e agora é apenas o eco sonoro do terror ferido pelo trabuco a tombar das mãos da sentinela exausta ou pelo corpo que extenuado cai, ressoando pelo ar que se estende sobre a terra onde essa fuzilaria se ouviu pela vez primeira, e onde continuará por força a ouvir-se porque não há outro lugar na terra que a receba. Isto quer dizer portanto que de novo rompe o dia e tenho de pôr um fim a isto. Isto, o quê? perguntará. Pôr um fim aos pensamentos, às lembranças - repare que não digo pôr um fim à esperança - ; para me tornar mais uma vez, e por um espaço que não tem fronteiras nem localização no tempo, o companheiro e o habitante irracional e insciente de um corpo que, mesmo passados quatro anos, com aquela fidelidade sombria e incorruptível que até para mim próprio é incrível e em tudo admirável, ainda está imerso num alheamento absorto, lembranças da antiga paz, da antiga tranquilidade, dos sons e odores cujos nomes até nem sei se lembra, pois ignora até a presença e a ameaça de que lhe seja decepado ou braço ou perna, por alguma promessa alcançada secretamente e alguma convicção infalível de imortalidade. - Mas acabemos.) Não sei dizer quando voltarei. Porque aquilo que É é de novo outra coisa e nesse tempo nem vivia ainda. E porque tem nesta folha de papel que está nas suas mãos o melhor do antigo Sul que morreu, e as palavras que lêforam nele escritas com o melhor (todos os caixotes 85

o diziam, não há melhor) do novo Norte que venceu e por conseguinte, quer o Norte queira ou não queira, terá de sobreviver, eu agora acredito que nós ambos estamos, coisa estranhíssima, incluídos no número daqueles que foram condenados a viver.
"E ponto final" disse Mr Compson. "Ela recebeu a carta e com Clytie fez o vestido e o véu das bodas, com os trapos - talvez trapos destinados a ser, e que deviam ter sido, ligaduras e não foram. Ela não sabia quando ele iria chegar porque nem ele próprio o sabia: e talvez ele tenha dito a Henry, tenha mostrado a Henry a carta antes de a mandar, e daí talvez não; talvez só existisse a vigilância e a espera, um dizendo a Henry Já esperei o bastante e Henry dizendo ao outro Renuncias então? Renuncias? e o outro dizendo Não renuncio. Há quatro anos que tenho dado à sorte ocasião de renunciar por mim, mas parece que fui condenado a viver, que ela e eu fomos ambos condenados a viver, - desafio e ultimato lançados junto à fogueira do bivaque, o ultimato disparado frente ao portão até ao qual os dois homens devem ter chegado com os cavalos quase a par: um dos homens calmo e firme, talvez mesmo dócil, e até ao fim um fatalista; o outro sem sombra de remorso, e numa dor e num desespero inalterados e implacáveis - " (Parecia a Quentin que os estava em realidade vendo, enfrentando-se ao portão. Além do portão o que antes fora um parque estendia-se agora em brenhas abandonadas e rudes com um quê de sonhador, de ausente e aterrado, como a face por escanhoar de um homem que acordasse então do éter, à casa imensa onde uma rapariga esperava no vestido feito para o casamento com os farrapos roubados, a casa compartilhando também esse quê de abandono revelho, sem ter sofrido a invasão mas feita um esqueleto apenas de casa, náufraga e esquecida nos confins dessa catástrofe - um esqueleto a desmoronar-se em migalhas lentas de mobílias e tapetes, linhos e pratas, para ajudar a morrer os homens decepados e agonizantes que sabiam, mesmo à hora da morte, que estes meses de sacrifício e agonia tinham sido inúteis. Enfrentaram-se eles montando os cavalos esqueléticos, dois homens, dois jovens, que ainda não estavam no mundo, que ainda não tinham recebido o respirar do mundo, pelo tempo suficiente a que fossem dois velhos mas tinham olhos de velhos, cabelos em grenhas e rostos encovados, gastos pelo tempo como se moldados em bronze por mão espartana e até avara, vestidos no cinzento puído e gasto já pela tormenta à cor das folhas mortas, um com os empanados galões de oficial, o outro de uniforme singelo, a pistola ainda pousada no arção da sela, por apontar, os dois rostos calmos, as vozes nem sequer alteradas: Não passes a sombra desta porta, deste ramo, Charles; e Eu vou passar, Henry) " - e depois Wash Jones montado na mula em pêlo, defronte ao portão de Miss Rosa, gritando o seu nome ao silêncio soalheiro e pacífico da rua, dizendo, 'Você é quié a Rosie Coldfield? Então é melhor chigar lá. O Henry pôs-se aos tiros e matou o rai do francês. Deixou-o pra lá morto comum cão.'"
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Decerto que então já te contaram que eu disse ao Jones que levasse a mula que não era dele de roda até ao celeiro e a atrelasse à charrete, a nossa, enquanto eu punha o xaile e o chapéu e fechava a casa. Nada mais era preciso que eu fizesse, pois decerto já te contaram que eu não teria precisão de malas ou de baús se a minha parca roupa, agora que os vestidos que afortunadamente eu herdara, por bondade ou pressa da minha tia, ou por seu descuido, estavam há muito no fio, era a que Ellen se lembrava uma vez por outra de me dar, e Ellen tinha morrido já ia para dois anos; que eu só tinha de fechar a casa e tomar assento na charrete e fazer a travessia destas doze milhas a qual eu nunca mais tinha jeito desde que Ellen morrera, sentada com esse rude que até Ellen morrer não teve ordem para entrar naquela casa passando a porta da frente - esse rude progenitor de rudes cuja neta iria suplantar-me, se não na casa da minha irmã pelo menos na cama da minha irmã à qual (assim te hão-de contar) eu aspirava - esse rude (rude instrumento da justiça que aos actos humanos preside e que, incipiente no indivíduo, flui mansa, menos garra que veludo: mas quando escarnecida por homens ou mulheres, rompe como o aço em fogo e calca aos pés o fraco justo e o forte pecador, o vencedor e a vítima inocente, rompe cruel e por direito
seu e pela verdade) o rude que havia de presidir não só às várias formas e aos diversos avatares de Thomas Sutpen e do seu demoníaco fado mas havia de provê-lo ao fim com a carne fêmea que seria o sepulcro do seu nome e da sua linhagem - esse rude que pelos vistos julgara servir e cumprir o que lhe foi destinado berrando notícias de sangue e pistolas na rua, defronte da minha casa, que pelos vistos julgava ser outra qualquer informação que poderia dar-me tão pouca ou tão frouxa ou tão sem cabimento que não lhe merecia o cuspir fora o tabaco de mascar, porque nas doze milhas subsequentes nem sequer ele me disse o que tinha acontecido.
E que eu fiz a travessia destas mesmas doze milhas ainda uma outra vez, passados dois anos sobre a morte de Ellen (ou foi quatro anos passados 87

sobre o sumiço de Henry ou foi dezanove passados sobre a hora em que vi a luz do dia e respirei?) sem nada saber, sem nada conseguir saber salvo isto: um tiro ao longe, um som vago, e dele vagas também a direcção e a origem, que o ouviram duas mulheres, duas jovens mulheres sozinhas numa casa que apodrecia e onde não soava passo de homem há dois anos
- um tiro, depois uma pausa de aterrada conjectura a interromper o trabalho das agulhas sobre o pano que as ocupava, depois os passos, na sala de entrada, e depois na escadaria, correndo, apressando-se, os passos dum homem: e Judith que só teve tempo de arrebatar o vestido inacabado e cobrir-se com ele quando a porta se abriu num rompante e revelou o irmão, o desvairado assassino, que ela não via há quatro anos e supunha que estivesse (se estivesse, se ainda acaso vivesse e respirasse) a mil milhas de distância: e depois eles ambos, os dois filhos malditos sobre quenifora nesse momento vibrado o primeiro golpe da herança demoníaca, um para o outro olhando sobre o vestido inacabado que a noiva erguia. Doze milhas de jornada eu fiz em direcção àquilo, tendo por companheiro um animal que foi capaz de ficar na rua, defronte da minha casa, placidamente urrando à solidão atenta e povoada que o meu sobrinho assassinara nessa hora o noivo da irmã, e todavia não se permitiu forçar a mula que avançava a passo porque 'a besta não é cá da minha pretença nem é dele e tão bem não tem comido fartura de reção dês que sacabou o cerial em Fevreiro'; que, passando finalmente aquele portão, houve de parar a mula e, apontando com o chicote e cuspindo primeiro, dizer 'Tava ali mesmo. '- 'O que é que estava ali, criatura?' exclamei, e ele: 'Aquilo'até que eu lhe tirei da mão o chicote e bati a mula.
Mas eles não podem contar-te nem sabem como eu fui subindo a alameda, como passei os canteiros da Ellen, destruidos e sufocados de ervas ruins, e cheguei à casa, ao esqueleto da casa, ao leito nupcial (pensava eu) casulo e boceta dejuventude e sofrimento, e vi que tinha chegado, não já tarde como eu supusera, mas cedo ainda. De pórtico apodrecendo e paredes escamadas, se erguia a casa, não saqueada, não invadida, sem marcas de bola ou dos tacões de ferro do soldado, mas antes como se estivesse reservada para alguma coisa mais: um abandono mais profundo que a ruína, como se permanecera de pé em férrea justaposição às chamas violentas, ao holocausto que se achou menos feroz e menos implacável, que não foi repelido mas antes recuou perante o intocado e indómito esqueleto que as chamas não ousaram, na decisiva crise dum momento, assediar; havia até um degrau, uma tábua, que de podre se soltou e cedia ao peso do pé (ou havia de ceder se eu não pisasse com ligeireza e pressa) quando subi correndo e correndo cheguei à sala de entrada, cujo tapete se fora há muito em companhia dos linhos de cama e de mesa para ligaduras, e vi um rosto de Sutpen, e até quando gritei 'Henry! Henry! Que foste fazer? O que foi, que esta criatura não sabe o que diz?' compreendi que tinha chegado, não já tarde como eu supusera, mas cedo ainda. Porque não era o rosto de Henry. Era bem um rosto de Suipen, sim, mas não era o dele; era bem um rosto de Siapen cor de café, ali na fraca luz, que me
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barrava a escadaria: e eu correndo, que vinha da tarde soalheira e entrava no silêncio atroador daquele casarão sorumbático onde a princípio nada conseguia ver: depois e pouco apouco esse rosto, um rosto de Sutpen, que não se aproximava, que não assomava da treva, mas já ali era, como um penedo, firme, e antecipando o tempo e a casa e a perdição e tudo, ali esperava (ali, sim, ele escolheu bem; melhor não podia ter escolhido quem criou à sua imagem o frio Cérbero do seu inferno privado) - o rosto sem sexo nem idade, porque nunca tinha possuído quer um quer outra: o mesmo rosto de esfinge com que ela nasceu, o mesmo que olhara cá para baixo, do palheiro, nessa noite juntamente com o de Judith, e que ela ainda hoje conserva aos setenta e quatro anos, e olhava para mim sem se alterar, sem haver nele mudança alguma, como se de antemão soubera aquele rosto o segundo exacto em que eu iria entrar ali estivesse à minha espera pelas doze milhas da minha jornada atrás da mula a passo, e me vigiasse enquanto eu me aproximava mais e mais e entrava a porta enfim, como de antemão ela soubera (sim, ou determinara talvez, pois há uma justiça cujo palatal rúmen de Moloc não distingue entre a dura cartilagem e uma carne tenra)* que seria - o rosto que me estacava a mim (não ao meu corpo: esse avançava ainda, corria: mas a mi .m, ao íntimo de mim, essa profunda existência que é nossa, perto da qual o movimento dos membros é apenas um canhestro e tardo acompanhante, como outros tantos instrumentos escusados e toscamente e sem graça acompanhando fora do compasso a melodia) no ermo da sala de entrada com a escadaria nua (sem tapete já também) alcançando o corredor indeciso do primeiro andar onde um eco falava que não era o meu, antes o eco do que poderia ter sido e já se perdera, irrevogavelmente, esse que assombra todas as casas, todos os muros interiores erguidos por mãos humanas, e não para dar abrigo, nem para dar conchego, mas para esconder da vista e dos olhares do mundo curioso os meandros obscuros que desde sempre as juvenis ilusões de orgulho e esperança e de ambição (e de amor sim, também) tomaram. Judith! disse eu. Judith!
Não houve resposta. Não esperava eu que houvesse; possivelmente nem então esperei que Judith me respondesse, tal como a criança, antes do momento pleno do terror compreendido, chama por aquele dos pais que ela na verdade sabe (isto antes de o terror destruir todo e qualquer raciocínio) que nem sequer a poderá ouvir porque não está ali. Eu gritava não por alguém, alguma coisa, mas gritava (queria gritar) para mais além de qualquer coisa, a romper aquela força, aquele furioso mas tão sólido e tão imóvel antagonismo que me tinha feito parar - aquela presença, aquele rosto familiar cor de café, aquele corpo (os pés nus, da cor do café, parados sobre o chão nu, a curva da escadaria subindo a pouca distância dela) não maior que o meu, o qual sem se mover sem qualquer alteração por deslocamento visível (ela não tinha sequer afastado os olhos, fitos em mim, porque não era para mim que olhava mas para além de mim, aparentemente absorta ainda no plácido rectângulo da porta aberta que eu tinha perturbado) parecia alongar-se e projectar para o alto - não a alma, não o espírito, antes
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um escutar numa atenção profunda e alheada, alguma coisa que soava ou iria soar e eu não podia ouvir nem devia - uma consciência pensativa, que era aceitação também, da inexplicável e invisível herança de uma raça mais antiga e mais pura do que a minha, essa que gerou e deu verdade e forma, no ar vazio que nos separava, ao que eu supunha que viera encontrar (não, ao que era forçoso que eu encontrasse, doutro modo, ainda que ali estivesse e respirasse, eu mesma seria a negação de ter um dia nascido): - esse quarto há longo tempo fechado e mofento, essa cama sem lençóis (esse leito nupcial de amor e sofrimento) com o pálido e ensanguentado cadáver no cinzento descolorido pelo tempo, e em remendos, a tingir de carmesim o colchão nu, a viúva por casar dobrada, ajoelhada - e eu (o meu corpo) sem se deter ainda (sim, era-lhe precisa a mão, o ser tocado, para deter-se); - eu, uma pateta por mim mesma hipnotizada ainda acreditando que o que tem de ser será, e há-de ser, doutro modo eu teria de negar o são juízo além do respirar, eu correndo, precipitando-me contra esse rosto inescrutável da cor do café, essa fria e implacável e insciente (não, insciente não: tudo menos isso: vontade clarividente que foi dele, temperada ao absoluto da firme e amoral maldade pelo sangue negro e concorde com que tinha cruzado o seu) réplica do seu rosto, que ele mesmo tinha gerado e determinado que presidisse à sua ausência, como quem observa um desvairado, absorto pássaro, com a noite por destino, esvoaçar e unir-se ao fatal e brônzeo candeeiro. 'Espera', disse ela. 'Não vás lá cima. 'Ainda assim não me detive; era precisa a mão; e eu correndo, correndo ainda, cumprindo esses palmos de chão, os últimos, que nos separavam e ao nosso olhar não como dois rostos se fitam mas como as duas contradições abstractas que em realidade nós éramos, nem a minha voz nem a dela se erguendo, como se falássemos uma à outra libertas de limites e restrições da fala e do ouvido. V quê? - disse eu. 'Não vais lá cima, Rosa.' Foi assim que ela o disse: assim em branda voz, serena, e outra vez foi como se não falara ela, mas a própria casa dissesse as palavras - a casa que ele tinha construído, que alguma supuração dele tinha criado à sua volta como o suor do corpo dele poderia ter criado, fabricando uma (conquanto invisível) caverna, encasulada e complementar onde Ellen teve de viver e de morrer como se fora uma estranha, e onde Henry e Judith haviam de ser vítimas e prisioneiros, ou morrer Porque não foi o nome, a palavra, o facto de ela me ter chamado Rosa. Em pequena era assim que me tratava, como a eles tratava por Henry e Judith; eu sabia que mesmo agora ela ainda tratava Judith (e Henry também, quando falava dele) pelo nome de baptismo. E ela podia ter-me chamado muito naturalmente Rosa ainda, pois para todos aqueles que me conheciam eu era ainda uma criança. Mas não foi por isso. Não foi nada disso que ela quis dizer; aliás nesse momento em que ficámos as duas face a face (o momento antes de o meu corpo, ainda avançando, passar-lhe rente e alcançar a escadaria) ela teve para comigo mais obséquio e mais respeito do que nunca ninguém teve; eu sabia que no momento em que entrei aquela porta, eu para ela, ela de entre todos aqueles que me conheciam, já não era uma criança. 'Rosa?' exclamei. 'A mim? Na minha cara? - Então ela tocou-me, e eu por fim estaquei. 90

. Possivelmente nem então o meu corpo se deteve, que me pareceu ter a consciência de que o meu corpo se atirava cegamente contra o peso tão sólido mas imponderável (ela não, a possuidora: o instrumento, ela; mantenho o que disse) dessa vontade de me barrar a escadaria; possivelmente o som da outra voz, da única palavra pronunciada no patamar de cima, já nos tivesse afastado e dividido antes que eu (o meu corpo) sequer suspendesse. Não sei. Só sei que todo o meu ser foi como cegamente abalroar-se contra alguma coisa imóvel e monstruosa, num impacto do choque tão repentino e rápido que não era só o espanto e o ultraje por essa mão preta e intimorata, que assim me detinha, tocar a minha carne de branca. Porque existe alguma coisa no tocar de uma carne em outra carne que abroga, corta fundo e a direito os intricados canais, tortuosos, de normas e conveniências, e que os inimigos como os amantes conhecem, porque uns e outros por esse tocar assim se tomam: - tocar e tocar aquilo que é a cidadela do privado e central Eu-Sou: não o espírito, a alma; o bambo e salaz intelecto é presa de qualquer um, em qualquer corredor obscuro desta morada terrena. Mas toque na carne uma outra carne e veja-se derruir toda a salagre parouvela de castas e de cor também. Sim, eu estaquei - não foi mão de mulher, de negra, mas mordida barbela do freio a dominar e guiar a vontade furiosa que não verga - eu que não lhe gritava, a ela, àquilo; falava àquilo para além da negra, da mulher só por razão do choque, esse que não era ainda ultraje porque seria em breve terror sem esperar nem receber uma resposta porque sabíamos ambas que não era a ela que eu dizia: 'Tira essas mãos de mim, sua nigra!'
Não a recebi. Ficámos ali as duas - eu sem mover-me, na postura e no acto de correr ela rígida na sua imobilidade furiosa, e as duas unidas por essa mão, por esse braço, que nos sustentava, como um feroz e rígido cordão umbilical, gémeas da treva acontecida que a tinha gerado. Em pequena, mais do que uma vez eu a tinha visto com Judith e até mesmo com Henry, enclavinhados os três nessas brutais brincadeiras com que eles (possivelmente as crianças todas; não sei) se entretinham, e (ouvi dizer) ela e Judith até dormiam juntas, no mesmo quarto, mas Judith na cama e ela numa enxerga posta à vista no chão. Mas ouvi dizer que mais do que uma vez Ellen as foi encontrar ambas na enxerga, e um dia juntas na cama. Mas eu não. Mesmo em pequena eu não brincava com os mesmos objectos com que ela e Judith brincavam, como se essa aberrante e espartana solidão a que chamo infância, que me ensinou (e pouco mais do que isso) a escutar antes que pudesse compreender e a entender antes de sequer ouvir, me tivesse também ensinado não só a ter instintivamente receio dela e do que ela era, mas a desviar-me até dos objectos em que ela havia tocado. Ficámos assim as duas. E depois subitamente não era o ultraje o que eu já esperava, o ultraje por que tinha instintivamente gritado; não era o terror.- era o acumulativo excesso do desespero. Lembro-me que, ficando nós ali unidas por essa mão sem vontade própria (sim: mão que era também a vítima sensível como eu e como ela), eu gritei - talvez eu não gritasse com a voz, não o dissesse por palavras (e não o disse a Judith, porque a Judith não diria: talvez eujá 91

soubesse, no momento em que entrei naquela casa e vi aquele rosto que era a um tempo mais e menos do que um Sutpen, talvez eu já soubesse o que não podia, não queria, não devia acreditar) - eu gritei E também tu? E também tu, irmã, irmã? Que esperava eu? eu, pateta por mim mesma hipnotizada, que tinha percorrido as doze milhas à espera - de quê? de Henry talvez, surgindo por alguma porta que o conhecia já, a sua mão na maçaneta, o peso do seu pé na soleira que bem conhecia esse peso: e encontrando ali, na sala de entrada, uma assustadiça e comezinha criatura que nunca ninguém, mulher ou homem, se demorou um dia a olhar, que ele próprio não tinha visto em quatro anos e bem raras vezes vira antes, mas que havia de reconhecer ao menos pela seda castanha e puída que em melhores dias enfeitara a mãe, e porque essa criatura estava ali gritando o seu nome de baptismo? Henry surgindo e a dizer 'Mas é a Rosa. A Tia Rosa. Acorda, tia Rosa, acorda'? - eu, a sonhadora, agarrando-me ainda ao sonho como o doente se agarra ao último, escasso, insustentável, extático instante da agonia para avivar o sabor do termo do sofrimento, acordando para a realidade, algo mais que realidade, não para o tempo velho, imudado, inalterado, mas para um tempo que foi alterado para nele caber o sonho que, ao sonhador conjuntivo, em imolação se toma e em apoteose: 'A Mãe e Judith estão no quarto de brincar com os pequenos, e o Pai e Charles foram dar um passeio pelo jardim. Acorda, Tia Rosa; acorda'? Ou não seria esperar talvez, e esperança não seria; nem sequer um sonho, que os sonhos não se repetem, e não tinha eu percorrido as doze milhas, puxada não por terrena mula mas por quimérico potro gerado por esse pesadelo? (Sim, acorda, Rosa; acorda - não do que foi, do que usava ser mas do que não foi nem poderia nunca ter sido; acorda, Rosa - não para o que devia ter sido, ou poderia, mas para o que não "pode, o que não deve, ser, acorda, Rosa, das esperanças, que tu acreditaste que há no luto uma qual polidez mesmo que a dor esteja ausente; acreditaste que seria preciso que tu salvasses, não talvez o amor, não a felicidade nem a paz, mas o que a viuvez deixou - e viste que nada havia a salvar; que esperaste salvá-la como prometeste à Ellen (não Charles Bon, não Henry: nem sequer um destes salvá-lo dele ou um do outro) e agora já era tarde, que tarde seria mesmo que ali chegasses ao sair do ventre que te gerou, ou já ali estivesses no auge pleno eforte, capaz, mortal, da hora em que ela nasceu; que assim percorreste as doze milhas e os dezanove anos para salvar o que não carecia de ser salvo, e te perdeste) Não sei, só sei que não encontrei. Apenas encontrei esse estado de sonho no qual corre a gente sem se mover fugindo ao terror em que não pode acreditar, para numa segurança em que não faz fé, sustentada assim, não pelas areias movediças e inconstantes, e traiçoeiras, do pesadelo mas pelo rosto que era o inquisidor único da sua própria alma, a mão que era o agente da sua própria crucificação, até que a voz nos apartou, quebrando o feitiço. A voz disse uma palavra: 'Clytie. ' assim, assim fria, assim branda: não Judith, mas a casa ela mesma que outra vez falava, embora com a voz de Judith. Ah, que eu bem sabia, eu que tinha acreditado na polidez de qualquer luto: eu sabia, tal como ela - Clytie - o sabia. Ela não se mexeu; foi
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só a mão, a mão que sumiu antes que eu me desse conta de que tinha sido retirada. Não sei se ela a retirou ou se por eu seguir correndo me desviei do seu toque. Mas a mão já lá não estava: e isto eles também não to podem contar: Que eu corri, voei, pela escadaria acima e não encontrei a dor da noiva que ficou viúva, mas Judith barrando a porta fechada daquele quarto, no vestido de guingão que ela usou de todas as vezes que a tinha visto desde que Ellen morrera, segurando alguma coisa na mão que pendia; e se houve dor ou angústia também ela as guardara, completa ou incompletamente não sei, junto com o vestido inacabado para as bodas. 'Que é, Rosa? - disse ela, assim, outra vez, e eu outra vez me detive em meio da corrida como se o meu corpo, carriola animal de iludido barro e iludido sopro, avançasse ainda; E vi o que ela segurava na mão lassa e negligente e que era a fotografia, o retrato na sua caixinha de metal que ela mesma lhe tinha oferecido, assim displicente e esquecida contra a ilharga como se fosse um interrompido livro de entreter.
Foi isto que eu encontrei. Talvez fosse o que eu esperava, o que eu sabia (até com dezanove anos o sabia, direi mesmo que não saberia se não tivesse dezanove, os meus dezanove anos, os meus tão singulares dezanove anos) que havia de encontrar Talvez não pudesse ter desejado sequer mais do que isso, não pudesse ter aceitado menos, quem até com dezanove anos já deveria saber que a vida é um momento constante e perpétuo em que o véu de arrás, escondendo o que há-de ser cai dócil e até contente à lâmina mais leve e nua se a tal nos atrevermos, se para tal tivermos coragem bastante (não sabedoria: aqui não é precisa a sabedoria) de o ferir e fender duma cutilada. Ou talvez não seja tão-pouco uma falta de coragem: não é a cobardia o que não quer enfrentar essa moléstia algures no alicerce primeiro deste factual desígnio de onde a alma prisioneira, ressumando miasmas, espirala sempre para o alto e para o sol, tortura as ténues veias e artérias suas prisioneiras e aprisiona por sua vez esta centelha, este sonho que no globular e completo instante da sua liberdade espelha e repete (repete? cria, reduz a uma frágil e evanescente, iridescente, esfera) todo o espaço e todo o tempo e a maciça terra, enviuva a massa miasmática e anónima e revolta, essa que ao longo dos anos regidos pelo tempo foi aprendendo não a mercê da morte mas apenas a recriar renovar; e morre, desaparece, esfuma-se: é nada mas será essa a verdadeira sabedoria capaz de compreender que existe o que poderia ter sido e que, esse, é mais verdadeiro que a verdade, do qual o sonhador acordando, não diz 'Terei apenas sonhado? - mas diz antes, incrimina até os altos céus dizendo: 'Por que acordei se acordando nunca mais posso dormir?'
Houve em tempos - Reparas como a glicínia, batida pelo sol nesta parede aqui, ressuma esta sala e a penetra (sem embaraços de luz) como se fosse, por algum secreto e atritivo movimento, de poeira em poeira entre as miríades componentes da obscuridade? Esta é a substância do recordar - sentido, vista, cheiro: os músculos com que nós vemos e ouvimos e palpamos - não a razão, o pensamento: a memória não existe: o cérebro chama a si apenas o que os músculos tenteiam: nada mais, nada menos: e a soma resultante é
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usualmente incorrecta e falsa e vale apenas o nome de sonho. - Vê a mão que dormindo se agita e solta, roçando a vela à cabeceira, e, lembrando a queimadura, bruscamente retrocede livre, enquanto o cérebro e a razão vão dormindo e só fazem deste vizinho calor um desprezível mito de fuga à realidade: ou aquela mão dormindo, em sensual matrimónio com alguma superfície dulce, que é transformada por esse mesmo cérebro e essa mesma razão, adormecidos, nos materiais do sonho que engendrados dela são aberrantes a toda a experiência. A dor sim, a dor esquece, passa; bem o sabemos nós
- mas pergunta aos canais lacrimais se podem esquecer como se chora.
- Houve em tempos (também isto eles não te podem contar) um Verão de glicínias. Tudo se impregnava de glicínias (eu tinha então catorze anos) como se todas as primaveras ainda por capitular se condensassem numa Primavera única, um Verão: a Primavera e o Verão que pertencem a cada mulher que vive à face da terra, e lhe são devidos por todas as primaveras traídas e adiadas de todo o tempo irrevogável, repercutidas, refloridas. Foi um ano como outro não houve de glicínias: como outro não houve por essa doce conjunção de raiz, de flor e de anseio, e hora, e clima; e eu (eu tinha catorze anos)
- não vou insistir na flor para quem homem nenhum se demorara ainda nem demoraria jamais - a olhar, que não era a criança mas era menos ainda que uma criança; que não era mais a criança que a mulher, mas ainda menos que uma carne fêmea. Nem o direi da folha - aberrante, amarga, pálida, franzida folha, quase implume, e temerosa mesmo dalgum direito a ser verde, esse que lhe poderia seivar tenras brincadeiras, como efémeras, de um amor entre crianças, ou a atrair para ela a hesitação das vespas e abelhas machos, predadores de mais tardias lascívias. Mas na raiz e no anseio insisto, sim, e os reclamo por direito, pois não sou eu também a herdeira de todas as Evas sem irmãs, desde a Serpente? Insisto, sim, anseio: aberrante crisálida de que cega e perfeita semente: pois quem sabe se a nodosa raiz esquecida não poderáflorir ainda com um globoso concentrado, mais globoso e concentrado e perfeito no seu ímpeto por ter sido plantada a raiz assim torcida ao deus-dará, e não estar ela morta mas apenas dormindo em esquecimento?
Foi o Verão mal-enganado, esse, o da minha estéril juventude, a que (por esse pouco tempo, essa breve e escassa Primavera do coração feminino que não volta) eu sobrevivi não como se fosse a mulher a rapariga, mas antes como se fora o homem que eu talvez devesse ter sido. Contava então catorze anos, catorze anos, se podem chamar-se anos ao tempo que vivi nesse corredor falto de passos a que dei o nome de infância, que não era a vida mas antes uma projecção do ventre sem luz; eu gestada e completa, sem que por mim passasse a idade, apenas demorada, por ausência dalguma cesariana, dalgum fórcipe do tempo selvagem, queftio me aninhasse a cabeça, e devia ter-me arrancado e libertado, eu esperando não a luz mas aquela maldição a que chamamos vitóriafeminina e que é: aguentar e aguentar mais, sem razão, pretexto dela, ou esperança duma paga - e aguentar sempre; eu, tal o peixe soterrâneo, cego, a insulada centelha, cuja origem o peixe mais não lembra, que pulsa e bate na sua crepuscular e letárgica morada, com o antigo e insone anseio que outras palavras não tem senão
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'Isto chamou-se luz, aquilo 'cheiro', aquilo 'tacto', e uma outra coisa o que não deixou de si, sequer o nome para dizer o som de abelha ou pássaro ou de aroma da flor ou luz ou sol ou amor; - sim, que não crescia sequer ou me desenvolvia, amando a luz e por ela sendo amada, mas tinha por aprestos somente aquela astúcia, aquele inverso tumor da solidão, que substitui a todos os sentidos o omnívoro e irracional ouvir: deforma que, em vez de completar os marcos processionais e compassados do tempo de uma infância normal, eu rondava desapercebida, como se, calçada eu com essa humidade e esses veludinos silêncios do ventre, o meu corpo não deslocasse o ar, nem qualquer som o traísse, desta porta fechada e proibida àquela outra, e assim fosse aprendendo tudo o que sei dessa luz e desse espaço em que os outros se moviam, respiravam, como se eu (essa criança) fora concebida pelo sol de vê-lo através dum caco de vidro fosco; - catorze, quatro anos mais nova do que Judith, quatro anos mais tardia que o momento da Judith, que só as virgens conhecem: quando toda a delicada inclinação do espírito é um único e epiceno esponsal, inviolentado, anónimo, sem êxtase - não essa viúva e repetida violação nocturna, obra dos inescapáveis e escarninhos mortos, que é o galardão dos vinte e trinta e quarenta anos, mas um mundo cheio de vivas núpcias como a luz e o ar que ela respira. Mas não foi esse um Verão do ansioso descontentamento duma virgem; não foi o Verão da cesariana ausente, que devia ter-me arrancado, carne morta ou embrião que fosse, aos vivos: que doutro modo me teria dado, pela ficção violadora da carne de lavradio macho, também as armas e as panóplias dum homem em vez de ser eu oca mulher.
94**oi esse o rao ois aque e primeiro ata em que enry o trouxe a casa, o Verão que se seguiu aos dois dias dessas férias de Junho que ele passou em Sutpen's Hundred antes de seguir a cavalo para o Rio e tomar o vapor que o levasse embora, aquele Verão depois que a minha tia partiu e o papó teve de se ausentar em negócios e eufivi mandada para casa de Ellen (possivelmente o meu pai escolheu Ellen para meu refúgio porque nessa altura Thomas Sutpen também estava ausente) que tomaria conta de mim, da que já nascera tarde, da que nascera num tempo desmembrado, singular tempo da vida do meu pai, e fora deixada nos seus braços (agora duas vezes) viúvos, eu competente já para alcançar as prateleiras da cozinha, contar as colheres e embainhar um lençol e medir o leite na canada mas sem préstimo para coisa alguma outra, mas tão valiosa ainda que não podia ser deixada sozinha. Eu nunca o tinha visto (eu nunca o vi. Eu nem sequer * vi morto. Ouvi um nome, vi uma fotografia, ajudei a cavar uma sepultura: * mais nada) embora ele tivesse estado em minha casa uma vez, nesse primeiro Dia de Ano quando Henry o trouxe por respeito de sobrinho afalar-me, no regresso à escola, e eu tinha saído. Até esse dia nem sequer eu tinha ouvido pronunciar o seu nome, não sabia que ele existisse. Mas no dia em que lá fui para lá ficar nesse Verão, foi como se aquela paragenifortuita à minha porta houvesse deixado alguma semente, alguma virulência minúscula nesta mais funda terra de mim, impaciente, não pelo amor talvez (eu não o amei; como podia amá-lo? eu nem sequer ouvi a sua voz, só tinha a 95

palavra de Ellen em como existia tal pessoa) e impaciente não por espiar que é o que sem dúvida tu lhe chamarás, que durante os seis meses passados entre o Dia de Ano e aquele mês de Junho deu matéria àquela sombra com um nome que surgia da tolice vã e gárrula de Ellem, àquela forma, sem rosto ainda sequer porque eu não tinha ainda sequer visto a fotografia, reflectidas no olhar fito e alheado e secreto de uma rapariga: porque eu, que nada aprendera do amor nem sequer do amor dos pais - essa carinhosa e querida e constante violação da intimidade, o emparvecimento do próprio eu, germinando incorrigível, que é o preço e o galardão de toda a carne mamífera, eu tomei-me não a amante, não a amada, mas mais até que amor; eu tornei-me a advogada andrógina de todo o amor polimato.
Alguma semente por força ele deixou, que foi a razão de um conto de fadas, infantil e ocioso, ganhar vida naquele jardim. Porque eu não espiava quando a seguia. Eu não espiava, embora tu possas dizer o contrário. E mesmo que eu espiasse, não era por ciúme, porque eu não o amava. (Como poderia amá-lo se nunca o tinha visto?) E mesmo se o amasse, não seria como amam as mulheres, como Judith o amou, ou como pensamos nós que ela o amou. Se era amor (e eu pergunto, Como poderia ser?) era um amor como o de mãe quando, ao castigar o filho, não é nele que bate mas, através dele, bate no garoto do vizinho que ele chicoteou ou por quem foi chicoteado; acaricia, não a criança recompensada, antes o homem ou a mulher anónimos que lhe deram o troco miúdo na palma húmida pelo suor Mas não como amam as mulheres. Porque eu nada lhe pedi, repara. E mais do que isso: nada lhe dei, e dar é o tudo no amor Pois se eu não tive sequer saudades dele, pois se eu não sei até hoje se alguma vez tive consciência de que nada tinha visto do seu rosto salvo aquela fotografia, aquela sombra, aquela imagem, no quarto de uma rapariga: retrato de ocasião e emoldurado no desarrumo dum toucador e todavia cercado, engalanado (assim pensei) com todas
as rosas cândidas e virginais e invisíveis, porque antes mesmo de ver a fotografia eu era capaz de reconhecer não, descrever, aquele rosto. Mas eu nunca o vi. Não sei sequer por certeza minha se Ellen alguma vez a viu, se Judith alguma vez o amou, se Henry o matou: por isso quem poderá desmentir-me se eu disser Por que não terei sido eu a inventá-lo, a criá-lo? - E isto eu sei:
se eu fosse Deus, faria do turbilhão revolto a que chamamos progresso alguma coisa (uma máquina talvez) que houvesse de adornar os áridos altares de espelhos de todas as meninas feias com alguma coisa assim - que é uma coisa tão pouca, pois nós queremos tão pouco - esta imagem de um
rosto. Nem seria preciso que houvesse nele um crânio; quase anónimo, precisaria apenas da vaga ilação de um corpo de carne e osso, vivo, desejado por outra, ainda que só nalgum reino espectral do faz-de-conta. - Imagem vista em segredo, escapando-me eu a furto (a minha infância isto me ensinou em vez do amor e isto me tem valido; e, verdade seja dita, se me ensinara o amor, não me teria dado o amor tanto valimento) à intimidade da saleta deserta para a ver Não para sonhar que no sonho eu habitava já, mas para reavivar ensaiar o papel tal o amador relapso mas diligente que se escapa aos bastidores no interim da cena visível para ouvir a momentânea 96

voz do ponto. E se foi ciúme, não era o ciúme do homem, o ciúme da paixão; nem sequer o do apaixonado que espia por amor, que espia para contemplar saborear tocar aquele devaneio virginal da solidão que é o primeiro adelgaçar-se desse véu a que chamamos virgindade; não para se descobrir forçar essa vergonha que é tanta pertença duma confissão de amor mas para devorar com os olhos o seio opulento, momentâneo, já rosado com
o rubor do sono, embora a vergonha ela mesma ainda não careça de acordar Não, não era isso; eu não espiava, que andava por essas alamedas no jardim, alisadas e areadas, e pensava 'Esta é a marca do seu pé salvo onde este ancinho a apagou, que, mesmo passando o ancinho, ela ainda permanece, e ao lado a marca do pé dela, nesse lento e comum ritmo quando o
coração, o intelecto, não carecem de vigiar os dóceis (sim, deliberados) pés'; pensava 'Que suspiros de almas gémeas têm os mil ouvidos murmurosos deste arbusto ou daquela trepadeira neste recolhimento escutado? que juras, que promessas, que chamas arrebatadas e eternas tem a chuva lilás desta glicínia, este pesado fenecimento das rosas, coroado?' Mas ainda melhor que tudo, muito melhor do que isto, a vida verdadeira e a própria carne sonhadora. Ah não, eu não espiava mas antes ia sonhando, refugiada e oculta pelo meu arbusto ou pela minha trepadeira, como acredito que ela sonhasse no banco arredado, o qual ainda guardava as invisíveis marcas das coxas dele, ausentes, tal como a areia, que as marcas apagou, e os milhões de nervos, como dedos, de fronda e folha, o próprio sol e as constelações lunares que o tinham visto, o ar circum-ambiente, guardavam algures ainda o seu pé, a sua forma ao passar o seu rosto, a sua voz falando, o
seu nome: Charles Bon, Carlos O Bom, Charles Marido que em breve o seria. Não, eu não espiava, nem sequer me escondia, que era tão criança ainda que não precisava de esconder-me, cuja presença não teria sido violação mesmo que ele estivesse com ela sentado, mas tão mulher de procurá-la e por direito sendo recebida (com prazer talvez, com gratidão) nessa confidência virginal que não conhece a vergonha quando raparigas falam do amor - Sim, tão criança de procurá-la e dizer 'Deixa-me dormir ao pé de ti'; e tão mulher de dizer 'Vamos ficar nesta cama as duas e tu contas-me o que é o amor', e todavia não o fiz, porque eu teria de lhe dizer 'Não me fales do amor deixa-me que seja eu a contar que já sei mais do amor do que tu hás-de saber ou precisar No regresso, o meu pai veio buscar-me e levou-me para casa e eu tomei-me de novo o ser indefinido, por tanto tempo criança e todavia por tempo tão pouco mulher, que as roupas mal-ajeitadas, que a
minha tia abandonara, vestiam, e governava uma casa mal-ajeitada, que não espiava, nem se escondia, mas esperava, atenta, não a recompensa, um agradecimento, que o não amava a ele como se costuma dizer que se ama
porque não há amor dessa qualidade sem esperança; que (se era amor)
amava com essa qualidade que os verbosos livros não alcançam: esse amor
que dá o que nunca teve - esse quase nada, a pequena moeda que é tudo o
que possui o doador mas cujo peso infinitesimal não acrescenta à substância do ser amado - mas eu dei. E não o dei a ele, mas a ela; era como; se eu dissesse, 'Toma, aceita-o também. Não podes tu amá-lo como ele deve ser
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amado, e embora ele não sinta o peso desta dádiva mais do que sentiria a sua falta, pode porém chegar o momento na vossa vida de casados em que ele há-de encontrar esta partícula de átomo como tu encontrarias um apertado e pequeno, pálido, oculto rebento no canteiro que tão bem conheces, e suspendendo então dissesses, "Donde é que isto veio?"; bastará que respondas, "Não sei. "' E eu fui para casa e lá fiquei cinco anos, ouvi o eco de um tiro, subi correndo uma escadaria que era um pesadelo e fui encontrar Uma mulher uma mulher vestida de guingão, posta calmamente diante da Porta fechada que ela não me permitiu entrar - uma mulher mais alheia a mim do que a qualquer sofrimento por menos se associar a ele - uma mulher dizendo 'Que é, Rosa?' calmamente, que assim me detinha o passo, que eu corria, e a correr começara (sei-o agora) há cinco anos atrás, desde o dia em que ele tinha estado na minha casa, também sem deixar nela mais rasto do que deixara na casa de Ellen, onde ele fora apenas uma forma, uma sombra: não de um homem, de um ser, mas dalguma esotérica peça da mobília
- vaso ou cadeira ou secretária - que Ellen quisesse, como se a sua marca (ou a ausência dela) nas paredes da casa de uma Coldfield ou de um Sutpen possuísse a portentosa profecia do que iria acontecer; - Sim, que eu corria, fugindo desse primeiro ano (esse ano antes da Guerra) esse ano em que Ellen me falou de um enxoval (e esse enxoval era o meu), de toda a sonhadora panóplia da entrega que era a minha entrega, eu que tão pouco tinha que entregasse e que me entreguei com tudo, pois aquilo que poderia ter sido é o rochedo único a que nos agarramos acima da voragem da insuportável realidade; - os quatro anos em que eu acreditei que ela esperasse como eu esperava, enquanto o mundo estável, que nos ensinaram a ver se ia sumindo em fogo e fumo até que a paz e a segurança acabaram, e o orgulho e a esperança, e nada mais havia do que os estropiados veteranos da honra, e o amor Sim, devia haver era preciso que houvesse, amor e fé: deixados à nossa guarda pelos pais, maridos, namorados, irmãos, que levaram o orgulho e a esperança da paz hasteados na dianteira da honra, como se leva um estandarte; por força devia haver senão para que lutam os homens? de que lhes serve morrer? Sim, morrer não por uma vazia questão de honra, ou de orgulho ou até de paz, mas por esse amor e essa fé que eles connosco deixavam. Porque ele ia morrer; eu sei, eu sabia, como também iam morrer o orgulho e a paz: senão como poderia provar-se a imortalidade do amor? Mas não o amor, não a fé em si mesma, em si mesmos. O amor sem esperança talvez, a fé sem muito do que se orgulhar: mas amor e fé pelo menos acima dos assassínios e da loucura, para resgatar do chão nosso, incriminado e humilhado, o que restasse ao menos do antigo e perdido encanto que arrebata o coração. - Sim, encontrei-a diante daquela porta fechada que eu não iria passar (e que ela própria não voltou a passar que eu saiba, até Jones e o outro homem terem carregado o caixão pela escadaria acima) com a fotografia pendendo à sua ilharga e o rosto absolutamente calmo, olhando para mim por um momento e erguendo a voz apenas o suficiente para ser ouvida na sala de entrada, em baixo: 'Clvtie. Miss Rosa
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vai buscar mais carolo, anda': e depois 'Vamos lá para baixo? Epreciso dizer a Mr Jones que me arranje tábuas e pregos.'
E ponto final. Ou antes, não foi ponto final, porque não há final, nada se acaba; não foi o golpe que fere mas o seu incansável e repercussivo anti-clímax, a consequência, como os escombros do que foi, e que se varrem, no perfeito limiar do desespero. Eu nunca o vi, repara. Eu nem cheguei a vê-lo morto. Ouvi um eco, mas não o tiro; vi uma porta fechada mas
não entrei: lembro-me de nessa tarde, quando saímos da casa carregando o caixão (Jones e outro branco por ele desencantado, exumado, algures, o fizeram das tábuas que tiraram à cocheira; lembro-me de ouvir enquanto comíamos ojantar que a própria Judith - sim, Judith: o mesmo rosto calmo frio e tranquilo sobre o fogão - tinha cozinhado, comíamos precisamente na sala por cima de cujo tecto ele jazia morto, ouvir os homens que martelavam e serravam no pátio dos fundos, e ver Judith sair com uma touca de guingão desbotado a condizer com o vestido, para lhes dar instruções sobre o modo de o fazer; lembro-me que por toda essa lenta e soalheira tarde eles martelaram e serraram por baixo da janela da saleta dos fundos - o lento, exasperante, rasse, rasse, rasse, da serra, as marteladas uniformes, deliberadas, que pareciam cada uma ser a última e nunca era, repetidas e recomeçadas no momento em que a entorpecida atenuação dos nervos exaustos, tensos para além do que seria possível, repousavam no silêncio, e depois tinham de gritar ainda: até que por fim saí e fui lá (e vi Judith na capoeira numa nuvem de galinhas, o avental aninhando os ovos recolhidos) e perguntei-lhes porquê? porquê ali? por que tinha de ser justamente ali? e ambos foram suspendendo o que faziam por mais do que o tempo necessário a que Jones se voltasse e de novo cuspisse e dissesse, 'Pruqu'assini não carrega a gente com o caixão tão longe': e antes mesmo de eu voltar as costas, ele
- um deles - acrescentou ainda, por algum atarantado e canhestro raciocinar da inércia, que 'Indera mais simples ir buscar o homem lá cima e pregar-lhe as tábuas em volta, mas se calhar Missus Judy não achava bem.')
- lembro-me que, ao carregá-lo nóspela escadaria e atéà carroça que esperava, eu tentei tomar todo o peso do caixão para provar a mim mesma que ele defacto estava ali dentro. E não sei dizer se estava ou não. Fui uma das pessoas que pegou às alças do seu caixão, e todavia não pude, não quis, acreditar no que eu sabia que por força tinha de ser assim. Porque eu nunca o vi. Vês? Há coisas que nos acontecem e que a inteligência e os sentidos recusam, tal como o estômago por vezes recusa o que o palato aceitou mas a digestão não pode abarcar - ocorrências que nos detêm como se uma impalpável intervenção nos estacasse, como a vidraça através da qual observamos todos os factos subsequentes acontecendo como num insonoro vácuo, sumindo-se, desvanecendo-se; e desaparecendo nos deixam imóveis, impotentes, desamparados; estáticos, até podermos nós morrer Assim estava eu. Estava ali; alguma coisa de mim caminhava em compassada cadência com os passos compassados de Jones e do companheiro, e de Teophilus McCaslin que veio a saber na vila o que se tinha acontecido, e de Clytie, ao carregarmos o caixão desairoso e pouco manejável pelo cotovelo da escadaria,
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apertado, enquanto Judith, que nos seguia, o equilibrava atrás, e assim descemos até à carroça; alguma coisa de mim ajudou a içar aquilo que eu não poderia ter içado sozinha, e todavia ainda não acreditava que existisse, para a carroça que esperava; alguma coisa de mim ficou à beira da terra férida, nas sombras melancólicas dos cedros, e ouviu o grosseiro dobre afinados dos torrões sobre a madeira e respondeu Não à Judith, que donde estava, à cabeceira da sepultura, disse, 'Ele era Católico. Alguém aqui sabe como os Católicos' e o Teophilus McCaslin, 'Ora abobra quêle fosse Católico; era um soldado. E eu sou homem de rezar por qualquer soldado Confedrado e depois gritou alto na sua voz de velho, áspera, estrídula, cacófona: 'Eeeeh lá, Forrest! Eeeeh lá, John Sartoris! Eeeeeeh lá!'E alguma coisa de mim regressou com Judith e Clytie pelo campo onde se punha o sol e respondeu, numa singular e serena suspensão, à voz serena e branda que falava em lavrar a seara e cortar a lenha para o Inverno, e na cozinha alumiada ajudou agora a preparar a refeição, e ajudou a comê-la também na mesma sala acima de cujo tecto ele não jazia, e foi para a cama (sim, aceitou a vela dessa mãofirme e intrémula pensando 'Ela nem sequer chorou'e depois num espelho melancólico de luz viu o próprio rosto e pensou 'Nem tu choraste') dentro dessa casa onde ele tinha estado mais uma hora breve (e, desta vez, derradeira) sem deixar de si quaisquer marcas, nem lágrimas sequer Sim. Um dia ele não era. Depoisfoi. Depois deixou de ser Tudo tão pouco, tão breve, tão rápido; seis horas de uma tarde num Verão que mais não durou
- tão pouco tempo que nem as marcas do seu corpo deixou num colchão, e o sangue pode vir de tanta coisa - se é que houve sangue, porque eu não cheguei a vê-lo. Tanto quanto me permitiram que soubesse, ali não existia um cadáver; nem um assassino tão-pouco (nem falámos sequer de Henry nesse dia, ninguém pronunciou o seu nome; eu não disse - a tia, a solteira
Minha boa cara ou parecia doente?' não disse uma das mil coisas triviais com que o indómito sangue da mulher ignora o mundo masculino onde o varão, parente seu pelo sangue, mostra coragem ou cobardia, loucura ou embriaguez ou medo, pelo que os seus companheiros o elogiam ou crucificam) que veio e abriu violento a porta e gritou o seu crime e desapareceu, aquele que pelo facto mesmo de estar ainda vivo era tanto mais um espectro do que essa coisa abstracta que nós tínhamos fechado num caixão - um tiro ouvido apenas pelo seu eco, e um cavalo esquelético, desconhecido, e quase bravo, de cabeçada posta e sela vazia, os alforges contendo uma pistola, uma camisa usada e limpa, um naco de pão duro como pedra, capturado por um homem dois dias mais tarde e à distância de quatro milhas quando forçava a meia-porta de uma baia. Sim, mais do que isso: ele estava ausente e existia; voltou, e não existiu mais; três mulheres depuseram alguma coisa na terra e a cobriram, e ele nunca existiu.
Agora perguntarás por que fiquei ali. Eu podia dizer-te, Não sei, poderia dar dez mil fracas razões, todas falsas, que tu acreditasses: - que ficou pela comida quem podia ter gadanhado os barrancos e os ervedos, lavrado e amanhado a horta da sua casa na vila tal o fazia como aqui, para não falar dos vizinhos, amigos de cujas mãos eu podia ter aceitado a esmola,
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que a miséria tem artes de apagar da nossa conduta alguns delicados escrúpulos da honra e do orgulho; que ficou pelo abrigo quem tinha um tecto seu, propriedade sua e só sua agora; ou que ficou pela companhia quem na sua casa podia ter tido a companhia dos vizinhos que eram pelo menos pessoas do meu meio, que me conheciam de pequena ou de antes ainda, isto uma forma de dizer que pensavam não só como eu pensava mas como tinham pensado os meus avós, enquanto aqui só tinha por companhia uma mulher a quem, sendo embora minha parenta pelo sangue, eu não compreendia e, se aquilo que observava garantias me desse de crer que era a verdade, eu não desejava compreender e uma outra que me era tão estranha a mim e a tudo aquilo que eu era, que bem poderíamos ter sido não só de raças diferentes (que o éramos), não só de sexos diferentes (que o não éramos), mas de espécies diferentes, não falando linguagem que a outra compreendesse, as palavras simplissimas com que éramos forçadas a ajustar uma à outra os nossos dias e as quais até menos pensamento ou intenção revelam do que as vozes dum animal e dum pássaro um para o outro. Mas nenhuma destas razões eu dou. Fiquei ali e esperei que Thomas Suipen voltasse a casa. Sim. Dirás tu (ou julgarás) que já nesse tempo eu esperava um dia ser sua mulher; se o contrário eu dissesse, julgarias que mentia. Mas é o contrário que digo. Esperei por ele exactamente como Judith e Clytie esperavam: porque ele era agora tudo o que nós tínhamos, tudo o que ainda nos dava uma razão para continuar a viver a comer e a dormir e a acordar e a levantar em cada dia: sabendo que ele iria precisar de nós, sabendo como sabíamos (que o conhecíamos) que ele deitaria logo mãos ao trabalho de salvar o que restava de Suipen's Hundred e reerguer a propriedade. Não que precisássemos dele, que não precisávamos. (Eu nunca nem por um instante pensei em casamento, nunca nem por um instante imaginei que ele iria olhar para mim, ver-me, pois se nunca me tinha visto. Podes acreditar em mim, porque não estarei com rodeios quando chegar a altura de te dizer quando foi que pensei nisso.) Não. Não foi sequer preciso que esse primeiro dia da vida que iríamos levar juntas nos mostrasse que não precisávamos dele, que não tínhamos precisão de qualquer homem enquanto Wash Jones vivesse, ou
continuasse ali - eu que tinha governado a casa do meu pai e tinha nele sustentado a vida por quase quatro anos, Judith que tinha feito o mesmo aqui, e Clytie que era capaz de cortar três esteres e meio de lenha ou cavar uma levada melhor (ou pelo menos mais depressa) que o próprio Jones. - E o que era triste, uma das coisas mais tristes: o tédio exausto que sentem o coração e o espírito quando já não precisam daquilo para cuja precisão ambos (o espírito e o coração) são necessários. Não. Nós não precisávamos dele, nem sequer de um modo vicário, que nem sequer nos podíamos aliar a ele e ao seu furioso desejo (esse quase louco intento que era o seu ao regressar, e parecia projectar-se, irradiar precedê-lo, antes mesmo que desmontasse) o desejo de fazer da plantação o que ela fora e por que sacrificara a piedade e a nobreza de carácter e o amor e todas as virtudes de cortesia - se alguma vez as teve para sacrificá-las, ou sentiu a sua falta, ou as desejasse nos outros. Nem sequer isso. Nem Judith nem eu queríamos isso. Talvez fosse
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porque não acreditávamos que tal se pudesse fazer mas eu penso que era mais do que isso: era que nós agora existíamos numa apatia que era quase a paz, como a paz da própria terra cega, insciente, que não anseia por caules ou botões de flor não inveja a solidão etérea e musical das folhas brotando que alimenta.
Esperámos então por ele. Levámos a vida atarefada e quieta de três freiras em convento ermo e na penúria: ficámos ali a salvo, dentro daquelas paredes, paredes impenetráveis, ainda que não importasse às paredes se
havia ou não do que se comesse. E amigavelmente, não conto duas mulheres brancas e uma preta, não como três negras ou três brancas, nem sequer três mulheres, mas apenas três criaturas que ainda careciam de alimento mas dele não retiravam prazer careciam de sono mas sem a alegria do cansaço ou da revigoração, e nas quais o sexo era uma esquecida atrofia como
as rudimentares guelras a que chamamos amígdalas, ou os polegares ainda opostos de antigos trepadores. Tratávamos da casa, da parte dela em que vi.víamos, que usávamos: arrumávamos o quarto a que Thomas Sutpen havia de regressar - não aquele donde partira, marido, mas aquele a que havia de voltar viúvo e sem filho, estéril dessa posteridade que sem dúvida havia de ter querido quem se dera ao trabalho e à despesa de gerar filhos e de os acomodar em mobílias importadas sob os lustres de cristal - assim como arrumávamos o quarto de Henry, assim como Judith e Clytie o arrumavam direi antes, como se ele não houvera subido a correr a escadaria nessa tarde de Verão e depois correndo a houvera descido; plantávamos e cuidávamos e colhíamos com as nossas mãos o nosso alimento, plantávamos e cuidávamos dessa horta assim como cozinhávamos e comíamos esse alimento que nela se criava: sem distinção entre nós três de idade ou cor mas antes aquela distinção entre quem seria capaz de acender este fogo ou mexer esta panela ou mondar este canteiro ou carregar este avental de grão ao moinho para moer com menos prejuízo do bem comum em tempo ou encargo doutros deveres. Era como se fossemos um único ser permutável e indiscriminado, que amanhava a horta, fiava o fio e tecia o pano que nos vestia, catava e achava e trazia as escassas ervas dos barrancos que garantissem e protegessem o espartano, compromisso que ousávamos ou tínhamos tempo de fazer com a doença, que atormentava e atazanava Jones para que tratasse da seara e
cortasse a lenha, que ambas seriam sustento e calor do nosso Inverno;
- nós três, três mulheres: eu, chamada pelas circunstâncias, e com tão poucos anos, ao apertado governo de uma casa como se estivera na roca de um farol, que nem sequer me ensinara a cultivar um canteiro de flores, quanto mais uma horta, que me ensinara a entender que o combustível e a carne apareciam por vontade própria num caixote ou nas prateleiras da despensa; Judith, que as circunstâncias (circunstâncias? cem anos de atentos cuidados, talvez não dispensados pelo sangue, nem sequer o sangue dos Coldflelds, mas decerto pela tradição em que a vontade implacável de Thomas Suipen tinha fossado o seu lugar) criaram para passar pelasfases mimosas, insuladas, incólumes, do casulo: menina, rainha prolífica e provida, e depois matriarca potente e mimosa do contentamento plácido e bem-vivido na
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velhice - Judith, no desfavor do que para mim seria a ignorância duns poucos anos mas que no seu caso eram dez gerações de proibições férreas, que não tinha aprendido esse primeiro princípio da penúria que é poupar cada migalha só por cada migalha poupar, ela que (tendo por cúmplice Clytie) cozinhava o dobro do que nós podíamos comer e três vezes mais do que podíamos dispensar em provisões e o dava a qualquer um, qualquer forasteiro, que já começava a terra a encher-se de soldados em tresmalho que ali paravam * e lha pediam; e (sobretudo) Clytie. Clytie, não inepta, tudo menos inepta: a perversa, a inescrutável, o paradoxo: livre, e todavia incapaz de libertar-se quem nunca se considerou uma escrava, sem guardar fidelidade a ninguém como o lobo ou o urso indolente e solitário (sim, uma cafre: metade preta gentia, metade sangue de Sutpen: e se 'gentio'pode ser sinónimo de 'cafreal', então 'Sutpen' é a maldade insone e silenciosa do látego que civiliza) cuja falsa aparência faz que sejam dóceis bestas à mão do medo, mas que dóceis não são, que a isto ser fidelidade, é fidelidade apenas ao
princípio primordial e fixo da própria selvajaria; - a Clytie, que pela própria pigmentação da carne representava aquela enxurrada que nos tinha trazido, a Judith e a mim, ao lugar onde estávamos, e que tinha feito dela (Clytie) o
que ela se recusava a ser, tal como se tinha recusado a ser aquilo de que fora propósito da enxurrada emancipá-la, como se, presidindo retirada ao
que era novo, deliberadamente continuasse a representar para nós o agouro ameaçador do que era velho.
Nós éramos três estranhas. Não sei o que pensava Clytie, a vida que levava, essa que as provisões que plantávamos e cozinhávamos em uníssono, e o pano que juntas fiávamos e tecíamos, alimentava e cobria. Mas outra coisa eu não esperava, porque nós éramos duas inimigas confessas, direi melhor leais. Mas eu nem sequer sabia o que Judith pensava ou sentia. Dormíámos no mesmo quarto, as três (isto por mais do que poupar a lenha que tínhamos de carregar sozinhas. Fazíamos assim por uma razão de segurança. Não tardaria o Inverno e já os soldados vinham regressando
- os soldados em tresmalho, nem todos vagabundos, feitores, mas homens que tudo tinham arriscado e perdido, tinham sofrido mais do que pode sofrer-se e regressavam agora a uma terra arruinada, não os mesmos homens que tinham partido marchando, mas transformados - e esta é a pior, a final degradação a que uma guerra conduz o espírito, a alma - na imagem desse homem que maltrata por muito desespero e muita piedade a mulher ou a amante querida que na sua ausência fora violada. Tínhamos medo. A eles dávamos comida; a eles dávamos o que tivéssemos e tudo o que tivéssemos e teríamos tomado sobre nós as suas feridas e sarado os seus corpos se
pudéssemos. Mas tínhamos medo.), acordávamos e cumpríamos as infindáveis e enfadonhas tarefas que a mera conservação da vida impunha; íamos sentar-nos à lareira, finda a ceia, as três nesse estado em que até os ossos e os Músculos, de tanto cansaço, não acham repouso, quando a força de alma, invencível e atenuada, emprestava ao próprio desespero a mudada forma de um alheamento fácil, como se fora um vestido gasto, e conversávamos, conversávamos de mil coisas - os exaustos e repetidos trivialismos
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do nosso dia-a-dia, de mil coisas e nenhuma. Falávamos dele, de Thomas Sutpen, do fim da Guerra (já toda a gente lhe via o fim. agora) e de quando ele regressasse, do que iria ele fazer: como daria começo à tarefa hercúlea a que já sabíamos que ele havia de obrigar-se, à qual (ali sim, também isto nós sabíamos) ele havia por certo de arrastar-nos implacável como dantes, querendo nós ou não; falávamos de Henry, com serenidade - essa normal, inútil, impotente inquietação feminina pelo varão distante - se passaria bem, se teria frio ou fome, como falávamos do pai, como se eles e nós vivêssemos ainda nesse tempo a que o tiro, os loucos passos correndo, tinham posto um fim e depois obliterado, como se aquela tarde nunca tivera existido. Mas nem uma vez mencionámos Charles Bon. Duas tardes houve, nos fins do Outono, em que Judith se ausentou, voltando para a ceia calma e serena. Nada lhe perguntei, não a segui, mas soube, e percebi que CIytie sabia também, que ela tinha ido limpar aquela sepultura das folhas mortas e do que mirrado e castanho caíra dos cedros - esse montículo sumindo-se lentamente e voltando à terra, sob o qual nós tínhamos sepultado nada. Não, não tinha havido um tiro. Esse fora o som apenas do violento e final fechar-se de uma porta separando-nos de tudo o que foi, de tudo o que poderia ter sido - um rompimento retroactivo da corrente dos acontecimentos: um instante para sempre cristalizado no imponderável tempo, consumado por três fracas mas indómitas mulheres, o qual, por ter precedido o facto consumado que nós declinámos, recusou, roubou, ao irmão apresa, arrebatou ao assassino a vítima da sua bala. Assim vivemos sete meses. E depois, numa tarde de Janeiro, Thomas Sutpen regressou; alguém ergueu os olhos donde estávamos, preparando a horta para dar o alimento de mais uni ano, e o viu chegar a cavalo pela alameda. E depois uma noite eu fiquei noiva dele.
Bastaram-me três meses. (Reparas que não digo a ele bastaram, mas a mim?) Sim, três meses me bastaram, que por vinte anos tinha visto nele (quando o via - quando tinha de o ver) um ogre, uma besta-fera, como nas histórias de assustar meninos; que tinha visto a sua descendência, gerada no corpo da minha irmã que morreu, começando já a destruir-se, e todavia por força corri para ele como um cão obedecendo ao assobio naquela primeira oportunidade, aquele meio-dia em que ele, e em vinte anos foi essa a primeira vez, ergueu a cabeça e fez uma pausa e olhou para mim. Ah, eu não me quero justificar que podia dar-te (e daria; sim, decerto já as dei) mil especiosas razões que às mulheres contentam, desde a inconsequência natural da mulher face ao desejo (ou até à esperança) de uma possível riqueza, de uma posição, ou até o medo de morrer sem ter conhecido homem que (decerto assim te hão-de contar) as solteiras sempre têm, ou a vingança. Não. Eu não me justifico. Podia ter voltado para casa e não voltei. Talvez devesse ter voltado para casa. Mas não voltei. Tal como Judith e C1-vtie, ali fiquei, diante do pórtico apodrecido, a vê-lo chegar nesse cavalo esquelético e esfalfado no qual não parecia ele montar mas donde projectar-se adiante como as miragens, na rigidez feroz e dinâmica da impaciência que o cavalo esquelético, a sela, as botas, o casaco da cor das folhas e surrado, com os galões descosidos e baços, envolvendo a carcaça inerte dum homem,
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ainda que possuindo e usando ele os cinco sentidos, não podiam acompanhar a impaciência que parecia precedê-lo quando ele desmontou e estar nas palavras que disse - então, filha' e curvando-se tocou com a barba a testa de Judith, que não se tinha mexido, nem se mexeu, que ficou ali rígida e serena e de rosto inexpressivo, e nas palavras com que trocaram quatro frases, quatro frases de simples e directas palavras por trás além ou sob as quais eu senti essa mesma união de comum sangue, a qual eu pressentira na tarde em que CIytie me afastou da escadaria: 'O Henry não - ? ' 'Não. Ele não está cá.'- 'Ali. E - ? ' 'Sim. O Henry matou-o depois rompeu em lágrimas. Sim, rompeu em lágrimas quem não tinha chorado ainda, quem tinha descido a escadaria naquela tarde com o rosto frio e calmo que desde então sempre mantivera, e diante da porta fechada me tinha detido que eu
corria; sim, rompeu em lágrimas, como se aquela inteira acumulação de sete meses brotasse impetuosa, espontânea, de cada poro, numa vazão incrível e única (ela sem se mexer, sem mexer um músculo) e depois sumisse, desaparecesse, tão instantaneamente como se a aura feroz e árida que ele tinha fechado sobre ela secasse as lágrimas mais rapidamente do que surgiam as lágrimas: e ainda ali com as mãos nos ombros dela e olhou para Clytie e disse, 'Ali, Clytie' e depois olhou para mim - o rosto igual ao que eu tinha visto na última vez, apenas um pouco mais magro, os mesmos olhos impiedosos, o cabelo já com uns fios brancos, e sem o mínimo sinal de reconhecer-me até que Judith lhe disse, 'É a Rosa. A Da Rosa. Ela agora vive cá.'
E ponto final. Ainda montado, ele subiu a alameda, e regressou às nossas vidas sem mais comoção causar para além daquelas lágrimas instantâneas e incríveis. Porque ele mesmo não estava ali, não estava na casa onde passávamos os dias, não tinha ficado ali. Estava a carcaça de um homem habitando o quarto que para ele tínhamos arrumado, e comendo os alimentos que tínhamos plantado e preparado, como se não fosse capaz de sentir a macieza da cama ou distinguir nas viandas qualidade ou sabor Sim. Ele não estava ali. Alguma coisa comia connosco; falávamos com alguma coisa que respondia às nossas perguntas; alguma coisa sentava-se connosco à noite à lareira e, erguendo-se inesperadamente de alguma desorientada, profunda, completa inércia, falava, não para nós, os seis ouvidos, os três cérebros capazes de ouvir mas para o ar a presença decadente e soturna, o espírito, da própria casa que esperava, dizendo as palavras que soavam
como a fala bombástica dum louco, dentro das quatro paredes do próprio caixão criando os seus fabulosos e incomensuráveis Camelots e Carcassones. Não por estar ausente da propriedade, o arbitrário quadrado de terra a que ele tinha chamado Suipens Hundred: isso nunca. Ele estava ausente apenas da sala, e isto porque ele tinha de estar noutra parte, algo dele circundando cada campo destruído e cada cerca derrubada e cada parede esboroando-se e cabana, casa do algodão, cavalariça; ele próprio difuso e em solução mantido por essa premência eléctrica, furiosa, imóvel, essa consciência do pouco tempo e de que era preciso dar pressa, como se tivesse nesse momento inspirado o ar e olhado em volta e compreendido que era um velho (tinha cinquenta e nove anos) e o preocupava (não que temesse:


preocupava-se) não que a velhice o pudesse deixar impotente para jazer o
que era sua intenção fazer mas que pudesse não ter tempo de o fazer antes da hora da morte. Estávamos certas ao adivinhar as suas intenções: ele não descansou enquanto não meteu mãos à obra de fazer da casa e da Plantação o que antes foram, ou tanto quanto ele pudesse. Não sabíamos como
iria proceder nem creio que ele mesmo o soubesse. Não poderia sabê-lo quem tinha regressado sem nada, quem tinha regressado ao nada, a quatro anos de menos que nada. mas isto não o deteve, não o intimidou. Sua era aquela fúria fria e atenta do jogador que sabe que poderá perder em qualquer caso, mas que perderá decerto se por um segundo a vontade constante fraquejar: e que impede sempre a incerteza de cristalizar-se toda pela mera manipulação de voz das cartas ou dos dados até os canais e as glândulas da sorte recomeçarem a fluir. Ele não descansou, não deixou que nesse dia ou no seguinte os ossos e a carne de cinquenta e nove anos recuperassem - nesse dia ou no seguinte, quando podia ter falado, não de nós e do que tínhamos feito, mas de si, dos passados quatro anos (a crer no que ele calava, nem guerra teria havido sequer, ou se a houvera seria noutro planeta sem que os seus interesses tivessem por ela sido postos em jogo ou
• sua carne e o seu sangue nela sofressem) - esse natural período em que • derrota, amarga mas invulnerada, pudesse de exausta ser coisa que à paz se assemelhasse, à quietação, na raiva de um relato incrédulo (e que permite ao homem suportar a vida) desse pequeno passo entre a vitória e o desastre que torna essa derrota insuportável, essa que, voltando-se contra ele, todavia declinou matar quem, ainda vivo, todavia não pode suportar a vida se conheceu a derrota.
Raramente o víamos. Desaparecia da alvorada ao sol-pôr ele e Jones e mais um ou dois que ele desencantara algures e a quem pagava não sei como, talvez com a mesma moeda com que pagou o arquitecto estrangeiro
adulações, promessas, ameaças, e por fim a força. Foi esse o Inverno em que todos começámos a aprender o que significa a palavra carpet-bagger* e as gentes - as mulheres - trancavam à noite as portas e as janelas e de susto começavam com histórias medonhas de rebeliões de negros. e em que esta arruinada terra, abandonada terra, maninha há quatro anos, jazia mais ociosa ainda, enquanto homens com pistolas no bolso juntavam-se todos os dias em lugares secretos pelas vilas. Ele não fez número com esses; lembro-me que uma noite chegou uma delegação deles, vieram a cavalo desde a vila pelos caminhos de lama desses primeiros dias de Março, e intimaram-no a que dissesse de uma vez ou sim ou não, se estava com eles ou contra eles, se era amigo ou inimigo: e ele recusou, declinou, ofereceu-lhes (sem alteração no rosto encovado e cruel ou no tom da voz) o desafio, se era um desafio o que procuravam, ao dizer que fizesse cada homem do Sul como estava ele fazendo, trabalhasse para reerguer as suas terras ao que tinham sido, o país e o Sul salvar-se-íam: e os foi encaminhando para fora (Ia sala e da casa e ficou naturalmente à porta, segurando ao alto o candeeiro, enquanto o porta-voz do grupo lançava o ultimato: pois se quer a guerra, Suipen e ele respondeu, Vá estou habituado à guerra. - Ah sim, eu vi, vi a fúria soli106

tória deste velho que lutava agora, não contra uma terra teimosa maspouco a pouco mais dócil como antes ofizera, mas contra o ponderável peso dos novos e mudados tempos, como se quisesse represar um rio com as mãos nuas e uma tábua: e isto pela mesma espúria ilusão de recompensa que antes o tinha abandonado (abandonado? traído: e que desta vez iria destruí-lo); eu própria entendo a analogia agora: o 'fatal e acelerado curso inflectindo o círculo do seu orgulho cruel, doi cobiça de vãs magnificências, embora eu
nesse tempo não entendesse. E como entenderia?. já tinha vinte anos, é verdade, mas era uma criança ainda, vivendo ainda nesse corredor conto um ventre, onde o mundo não chegava sequer como um eco de vida mas como sombra morta, incompreensível, onde no assombro sereno e sem receio das crianças eu observava as quiméricas bizarrias dos homens e das mulheres
- meu pai, minha irmã, Thomas Sutpen, Judith, Henry, Charles Bon - chamadas honra, princípios, casamento, amor, e luto, e morte; a criança que por observá-lo já não era uma criança mas uma desse triun virato de mães-mulheres que nós três, Judith e CI 'vtie e eu, éramos, que alimentávamos e vestíamos e aquecíamos a carcaça estática dum homem, assim dando campo e desafogo à ilusão feroz e vã, e assim dizendo, "Por fim a minha vida vale a pena, ainda que seja só por guardar e proteger a bizarra fúria de uma criança demente.'E depois uma tarde (estava eu na horta de enxada na mão, ali onde acabava o pátio da cavalariça) ergui os olhos e vi-o olhar para mim. Há vinte anos que me via, mas agora olhava para mim; ficou ali parado no pátio a olhar para mim, a meio da tarde. Foi isso: que tivesse acontecido a meio da tarde, quando ele não devia estar sequer nas cercanias da casa mas a milhas de distância e invisível algures nas suas cem
milhas quadradas que eles ainda não se tinham dado ao incómodo de lhe ti.rar talvez nem sequer num local certo ou num outro, mas difuso (não atenuado em escassez mas alargado, aumentado, circundando,'como se num
instante prolongado e inteiro de tremendo esforço abraçasse e sustivesse intactas aquelas dez milhas quadradas, enfrentando à beira dum abismo, invencível e destemido, o que havia de ser, e ele já o sabia, a derrota final), mas em vez disso parado ali no pátio olhando para mim com um quê de curioso e estranho no rosto como se a cavalariça, o pátio, no instante em que ele deu com os olhos em mim, fossem um pântano do qual tivesse ele emergido sem anúncio da luz em que iria entrar, e depois seguiu caminho - o rosto, o mesmo rosto: nãofoi amor; não digo que o fosse, nem nobreza de carácter ou piedade: apenas uma explosão súbita de luz, iluminação, daquele a quem disseram que ofilho cometera um crime e desaparecera, e que disse 'Ali. - - E então, Clytie.'Seguiu caminho até à casa. Mas não foi amor: não pretendo que o
fosse; não me quero justificar não há desculpa. Eu poderia dizer que ele precisou de mim, que me usou; para quê revoltar-me agora, por ele me usar
uma vez mais? mas eu não o disse; poderia dizer desta vez, Não sei, que diria a verdade. Porque eu não sei. Ele já ali não estava; eu nem sequer dei por isso, pois há um metabolismo do espírito, como há das entranhas, onde as acumulações guardadas há longo tempo queimam e geram e criam e dilaceram algum hímen virginal da carne devoradora; sim, no tempo de um
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segundo; - sim, perdida toda essa parouvela que irrompe do não-posso, não-quero, nunca-admitirei, na obliteração feroz dum só instante vermelho. Foi esse o meu instante, que eu podia ter fugido então e não fugi, que o achei ausente e não me lembrava quando se tinha ele afastado, que achei pronto o meu canteiro de quiabos sem me lembrar de o ter acabado, que me sentei à mesa da ceia nessa noite, com essa carcaça dum homem absorta em nuvens
a que nos tínhamos acostumado já (ele não olhou para mim à ceia; eu poderia ter dito então, A que iludidos escoadouros do sonho assim nos trai a incorrigível carne: mas não o disse) e depois à lareira no quarto de Judith nos sentámos como era costume até que ele chegou à porta e olhou para nós e disse, judith, tu e Clytie' e calou-se, entrando ainda, depois disse, 'Não, deixem. A Rosa não se há-de importar se as duas ouvirem, que o tempo é escasso e o que temos de fazer é muito' e veio e parou e pôs a mão na minha cabeça e (não sei para onde olhava ao dizer isto, salvo que pelo som
da sua voz não era para nós que olhava, nem para alguma coisa nesse quarto) e disse, 'Talvez pense que eu não fui muito bom marido para a sua irmã Ellen. É provável que assim pense. Mas mesmo se não levar em conta o facto de que já estou mais velho, creio que posso prometer-lhe que não serei pelo menos pior marido para si.
Foi esta a corte que me fez. Essa troca de olhares, esse minuto numa horta, essa mão na minha cabeça no quarto da filha; um ucasse, um decreto, uma vanglória serena e floreada como frase (sim, e proferida nessa mesma
atitude) não de se dizer e ouvir mas de se ler, gravada na macia pedra que é frontão duma esquecida e anónima efígie. Não há desculpa. Não pretendo que haja uma justificação, ou piedade, que eu não respondi 'Aceito' não porque fosse calada a pergunta, mas porque não houve lugar instante, pausa para uma resposta. Que eu podia ter dado uma resposta. Podia ter eu própria forçado esse instante, se vontade eu tivera - um instante que não seria para nele caber um brando "Sim" mas o golpe frenético de uma armajeminina, desesperada e cega, cuja ferida aberta houvesse gritado 'Não! Não!' e "Socorro!" e "Salvem-me!" Não, justificação nenhuma, nenhuma piedade, que eu nem sequer me mexi, sentada sob essa mão esquecida e áspera de um ogre da infância que eu ouvia falar agora a Judith, e eu ouvia os passos de Judith, via a mão de Judith, não Judith - essa palma onde eu lia como de uma crónica impressa a orfandade, as provações, o luto do amor; os quatro anos ásperos e estéreis calejados no tear no machado e na enxada e em todas as outras ferramentas feitas para as mãos dum homem: e sobre ela estava a aliança que ele tinha dado a Ellen na igreja há quase trinta anos. Sim, analogia e paradoxo e loucura também. Estava ali sentada e sentia sem ver que ele enfiava no meu dedo a aliança por minha vez (ele também estava sentado agora, na cadeira a que ele chamava a cadeira de CIytie, enquanto ela de pé, junto à lareira, escapava já do alcance dessa luz) e escutava aquela voz como Ellen deve ter escutado no Abril da sua alma há trinta anos: que falava não de mim nem de amor ou casamento, nem sequer dele mesmo e para que o escutassem ouvidos mortais e lúcidos, nem tão-pouco em lucidez falando, mas para que o escutassem aquelas negras forças do
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destino que ele tinha conjurado em desafio, nesse temerário sonho fanfarrão de uma intacta Suipens Hundred, que existência mais real não tinha hoje (e não mais voltaria a tê-la) do que tivera no tempo em que Ellen pela vez primeira ouviu aquele nome, conto se ao restituir essa aliança a um dedo vivo ele tivesse recuado o tempo vinte anos e o tivesse parado, paralisado. Sim. Eu fiquei ali sentada a escutar a sua voz e a dizer para comigo, 'Mas ele está louco. Há-de mandar que este casamento ainda se faça esta noite e há-de celebrar ele próprio a cerimónia, ele o noivo e o ministro dela; pronunciar a bênção temerária já com a vela de cabeceira na mão: e eu estou louca também, porque hei-de aquiescer sucumbir: ser sua cúmplice e ajúndar-me. "Não, não mejustifico, não peço piedade. Se nessa noite fuí salva (e eu fui salva; o meu sacrifício havia de chegar depois, mais frio, quando estivéssemos livres - eu estivesse livre - de qualquer pretexto da carne surpresa, importuna, traiçoeira) não foi por culpa minha, ou acto meu, mas antes porque, uma vez restituída a aliança, ele deixou de olhar para mim, salvo da maneira como pelos vinte anos anteriores a essa tarde me olhou,
como se alcançasse então as horas de lucidez como as conhecem os loucos, tal como os sãos de espírito conhecem horas de loucura para cientes ficarem da sua lucidez. Foi mais do que isso até. Agora por três meses ele vira-me todos os dias embora não olhasse para mim, que eu era apenas uma daquele triunvirato que recebia a sua gratidão agreste e silenciosa de homem pelo bem-estar espartano de que o províamos, não desse que o seu conforto carecesse talvez, mas que lhe bastasse ao menos ao sonho de loucura em que vivia. Mas nos dois meses seguintes ele nem sequer me viu. Talvez a razão fosse a óbvia: tinha ele mais quefazer; que uma vez conseguido o noivado (se era esse verdadeiramente o seu desejo) não precisava ele de me olhar Não precisava decerto: não havia sequer uma data marcada para o casamento. Era quase como se aquela tarde não existisse, nunca tivesse acontecido. Eu podia nem estar ali. Pior: eu podia terpartido, regressado a minha casa, que ele não daria pela minha falta. Eu era (o que fosse que ele queria de mim - não o meu ser a minha presença: apenas a minha existência, o que fosse que Rosa Coldfield, ou qualquerjovem mulher sem parentesco de sangue com ele, representasse para o que fosse que ele queria - porque essa honra eu lhe faço: ele nunca, nem uma vez, pensou naquilo que me pediu para fazer até ao momento em que mo pediu, porque eu sei que ele não teria esperado dois meses, nem sequer dois dias, para o pedir) - a minha presença era para ele apenas a ausência do lameiro negro e do emaranhado de trepadeiras e rastejantes para o homem que penosamente penetrasse o lameiro negro sem nada que o guiasse ou alentasse - uma esperança, uma luz: apenas o saber-se incorrigivelmente invicto mesmo quando vencido - e tropeçasse porfim, inesperadamente, em chão seco efirme, em sol e ar - se para ele pudesse ter havido um sol, se alguém ou alguma coisa pudesse ter rivalizado com o luzeiro branco da sua loucura. Sim, um louco, mas nem tanto. Porque existe no vício uma natureza prática: o ladrão, o mentiroso, até o assassino, conhecem regras mais apertadas que as da própria virtude; por que não as conhecerá também a loucura? Se ele era louco, apenas o sonho
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que assim o compelia era demente, e não os métodos que ele usava: não foi um louco esse que, adulando, ajustou a força dos braços de homens como fortes; não era um louco esse que se manteve à distância dos lençóis e dos capuzes e dos cavalos galopando pela noite com que os homens, que antes foram seus conhecidos mesmo se não seus amigos, descarregavam a supuração gangrenosa da derrota; não foram dum louco o plano ou as tácticas que lhe ganharam ao preço mais baixo a única mulher disponível para ser
sua esposa, e pelo único expediente que podia ganhar-lhe a causa; - não era um louco, não: porque decerto existe alguma coisa na loucura, mesmo a demoníaca, da qual foge Satanás, no terror das suas próprias obras, e que Deus olha com piedade - alguma centelha, a migalha que leveda e redime o corpo, esse falar e ver e ouvir e degustar e ser a que chamamos homem. Mas não importa. Contar-te-ei o que ele fez e julgarás por ti. (Ou tentarei contar-te, porque existem coisas que, para dizê-las, três palavras são demais e três mil palavras não bastam, e esta é uma delas. Pode ser contada; poderia eu usar essas tantas frases, repetir as palavras insolentes, ocas, nuas e ultrajantes da forma por que ele as disse, e legar-te apenas a mesma incredulidade ultrajada e aterrada que foi a minha, quando compreendi o que ele queria dizer; ou gastar as três mil frases e deixar-te apenas esse Porquê? Porquê? Porquê? que eu tenho repetido soa nos meus ouvidos há quase cinquenta anos.) Mas julgarás por ti e dir-me-ás se eu não tive razão.
Repara, eu era aquele sol, ou pensei que o fosse, pois acreditava, sim, que existisse a centelha, a migalha, que é divina na loucura, embora a loucura não conheça palavras para terror e piedade. Houve na minha infância um ogre que antes de eu nascer levou a minha única irmã para os confins soturnos duma terra de ogres, e gerou dois filhos, quase dois fantasmas, com quem não me levavam a conviver, e eu não o desejava, como se a minha solidão de filha tardia me ensinasse os pressentimentos desse enleado fatídico, me prevenisse do fatal e emaranhado clímax antes de eu conhecer a palavra assassínio - e eu perdoei; existiu uma forma que partiu a cavalo sob uma bandeira e (demónio ou não) corajosamente sofreu - e eu fiz mais do que apenas perdoar: matei o ogre, porque esse corpo, e sangue, e memória que o ogre tinha habitado, regressou passados cinco anos e estendeu a mão e disse '17 em cã'tal como se diz a um cão, e eu fui. Sim, o corpo, o rosto, de nome verdadeiro e verdadeira memória, até a lembrança correcta do quê e de quem (excepto eu própria: e não seria isso mais uma prova?) ele tinha deixado e para quem regressava: mas não o ogre; um homem capaz de vilanias, é verdade, mas homem falível e mortal que menos causa medo que piedade: mas não um ogre; um louco, é verdade, mas eu disse para comigo, Por que não há-de ser a loucura vítima também de si própria? ou, Porque pode não ser loucura sequer mas solitário desespero em titânica luta com a coragem solitária e já maldita e indomada e férrea: mas não um ogre, porque o ogre estava morto, sumira-se, consumira-se algures em chamas e exalações de enxofre, talvez nos penhascos ermos e escarpados das solitárias recordações da minha infância - ou dos esquecimentos; eu era aquele sol, pois acreditava que ele (depois dessa noite no quarto de Judith) não se alheava
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de mim, era apenas inconsciente e receptivo como o peregrino que, livre do pântano, pisa de novo a terra e goza de novo o sol e a luz sem consciência deles e de mais nada que não seja a ausência da treva e do tameiro - pois deveras acreditava que houvesse aquela magia entre os sangues um ao outro alheios, a que chamamos pelo pálido nome de amor, que poderia ser seria talvez, um sol para ele (embora eu a mais nova, a mais fraca) onde Judith e Clytie ambas não projectariam sombras; sim, eu a mais nova ali, e todavia poderosamente sem idade contada ou que pudesse contar-se, pois só eu de todas elas poderia dizer 'ó velho furioso e louco, não tenho em mim os materiais que sirvam ao teu sonho mas tenho para dar-te espaço e alcance etéreos para o teu delírio. E depois uma tarde - ah, era o meu destino: unia tarde e uma tarde e uma tarde: estás a ver? a morte da esperança e do amor, a morte do orgulho e dos princípios, e depois a morte de tudo salvo da incredulidade ultrajada e aterrada que durou quarenta e três anos - ele regressava a casa e chamou por mim, gritou por mim da varanda das traseiras até eu descer; ah, eu contei-te que ele não tinha pensado nisso até àquele momento, o prolongado momento que abarcava a distância da casa ao lugar, fosse qual fosse, onde ele tinha estado quando pensou naquilo: e aqui está uma outra coincidência: foi no mesmo dia em que ele soube definitivamente, e enfim com exactidão, quanto das suas cem milhas quadradas ele poderia salvar e manter e chamar suas no dia da sua morte, que, fosse o que fosse que lhe acontecesse agora, ele ao menos guardaria o esqueleto da sua Sutpens Hundred ainda que melhor nome deveria ser agora Sutpen's One
- chamou, gritou por mim, até que eu desci. Ele nem sequer se demorou a prender o cavalo; estava ali com as rédeas no braço (e não tinha a sua mão na minha cabeça agora) e disse as secas e ultrajantes palavras exactamente como se estivesse a tomar conselho de Jones ou doutro homem qualquer com respeito a uma cadela uma vaca ou uma égua.
Decerto já te contaram que eu voltei para minha casa. Ah sim, eu sei: 'Rosie Coldfteld chorou, chorou; armou um laço não no caçou; e o maridinho voou, voou' - Ah sim, eu sei (e amáveis também; decerto, foram amáveis): Rosa Coldfield, a pacóvia, a aberrante, a amarga órfã chamada Rosa Coldfield, de casamento certo enfim, que já não seria um peso para a vila, para a comarca; decerto, já te contaram: Que eu fui para lá e lá contaria ficar até ao fim dos meus dias, que vi no crime do meu sobrinho a mão de Deus que me permitia salvar as aparências de obedecer ao pedido feito à hora da morte pela minha irmã que salvasse pelo menos um dos dois filhos que ela tinha condenado por concebê-los, mas que na realidade me permitia estar naquela casa quando regressasse quem, sendo um demónio, intocado seria por bala de trabuco ou de canhão e por isso mesmo havia de regressar; e eu à espera dele, porque eu era ainda nova (que não tinha sepultado as esperanças ao som de cornetins, tapadas com uma bandeira) e tinha idade para casar nesse tempo e nessa terra em que a maioria dos homens, se eram novos morriam, e se eram vivos ou estavam já velhos ou casados ou cansados, tão cansados para amores; ele o melhor partido para mim, o único partido para mim, por isto: num meio onde, no melhor dos casos, e
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mesmo à falta duma guerra, os partidos para mim seriam em número escassíssimo, pois eu era não só uma memória do Sul rizas ainda menina cuja família e haveres, de tão modestos, haveriam por força de ser a confirmação deles mesmos, que fosse eu a filha dum rico plantador podia ter casado quase com qualquer um, mas sendo a filha apenas de um pequeno comerciante nem podia sequer permitir-me aceitar as flores de quase nenhum, e
assim estaria condenada a casar enfim com algum caixeiro-aprendiz da loja do meu pai; - Sim, decerto, já te contaram: quem era jovem e tinha sepultado as esperanças apenas durante aquela noite longa de quatro anos, quando junto à chama enclausurada e insone de uma vela embalsamou a Guerra e
a sua herança de sofrimentos e injustiças e dores no verso das páginas de um antigo livro do deve e haver embalsamou, sorveu do arque respirava o venenoso e secreto eflúvio da embriaguez e do ódio e da matança; - decerto já te contaram: a filha dum refractário que teve de se voltar para um demónio, um infame: e por consequência teve razão em odiar o pai, pois se ele não tivesse morrido naquele sótão ela não teria de ir para lá em busca de alimento e protecção e abrigo, e se ela não estivesse dependente do alimento * da roupa que a cobrisse, e que eram dele (ainda que ela tivesse ajudado * plantar um e a tecer a outra), que a mantivessem viva e quente até a simples justiça exigir que ela desse em paga o que ele quisesse dela, na proporção da honra, ela não teria ficado noiva dele, e se ela não tivesse ficado noiva dele não teria de passar noites em claro perguntando-se Porquê Porquê Porquê, como o faz há quarenta e três anos: como se ela tivesse instintivamente razão já em criança de odiar o pai e assim estes quarenta e três anos de impotente e insuportável ultraje fossem a vingança de uma natureza estéril, aprimorada, irónica, por ela ter odiado quem lhe deu a vida. - Sim, Rosa Coldfield noiva por fim que, não fora o ter-lhe a irmã legado ao menos o
que passava por ser um abrigo, os que passavam por ser seus parentes, seria um peso para a vila: e agora Rosie Coldfield chorou, chorou; armou o laço não no caçou; e o maridinho voou, voou; Rosa Coldfield que teria razão, mas a razão, ou ter razão, não basta às mulheres que antes queriam não tê-la do que ter justamente aquela, às mulheres que desejam aquele homem que não teve razão ao confessá-la. E é isso que ela não pode perdoar-lhe: não o insulto, nem sequer o tê-la trocado por outra: mas o ter morrido. Ah sim, eu sei, eu sei: Que dois meses mais tarde vieram eles a saber que ela tinha juntado os seus pertences (isto é, tinha posto o xaile e o chapéu) e regressara à vila, para viver sozinha na casa dos seus pais, sem eles, que já tinham morrido, e onde Judith de vez em quando vinha trazer-lhe algum desse alimento que havia em Suipen's Hundred e que só a miséria extrema, a rude vontade inexplicável e teimosa da carne em viver afazia (ela, Míss Coldfíeld) aceitar E era extrema deveras: porque a vila - os lavradores ao passar a criadagem negra indo trabalhar em cozinhas brancas - havia agora de vê-la, antes do nascer do sol, colhendo verduras ao longo das cercas das hortas, arrancando-as à mão por entre as cercas, pois ela não tinha uma horta sua, nem semente que nela plantasse, ferramentas com que a trabalhasse, ainda que soubesse de todo como fazê-lo quem apenas tivera as
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primeiras luzes da horticultura e sem dúvida não teria trabalhado a terra ainda que o soubesse quem nunca se deu por vencida; passando o braço pelas cercas das hortas e colhendo os legumes quem teria podido entrar na
horta e apanhá-los, que os moradores até os teriam colhido e mandado a sua casa, pois mais gente havia além do Juiz Benbow que deixava cestos de provisões, de noite, à porta de sua casa, mas não o permitiria quem sequer não usava de um pau que metesse pela cerca e com que puxasse os legumes até poder alcançá-los, o alcance do seu braço nu sendo o limite daquele roubo, que ela nunca ultrapassou, e não era porque não quisesse ser vista ti que saía antes que a vila acordasse, porque se ela tivesse um nigro havia de mandá-lo na plena luz do dia à pilhagem, onde?, pouco lhe importaria a ela, exactamente como os heróis da cavalaria sobre quem escreveu os versos mandariam os seus homens. - Sim, Rosie Coldfield chorou, chorou;
armou o laço não no caçou; e o seu galante voou, voou; (ah sim, hão-de contar-te) que armou o laço e foi insultada, que ouviu o insulto e não perdoou, não tantoporele o ter dito mas por terem pensado isso dela, de forma que ao ouvi-lo compreendeu de golpe que ele devia estar a pensar nisso há um dia, há uma semana, há um mês até, quem sabe, olhando para ela todos os dias com aquilo nopensamento, e ela sem o saber sequer Mas euperdoei-lhe. Podem dizer-te que não, mas perdoei. E por que não havia de perdoar? Eu nada tinha a perdoar; eu não o tinha perdido porque nunca o possuí: um
certo segmento de lama podre, um dia, entrou na minha vida, disse-me aquilo que eu nunca tinha ouvido e nunca mais ouviria, e depois saiu da minha vida; e pontofinal. Eu nunca o possuí; e decerto não o possuí naquele sentido imundo que a palavra tem e tu lhe darás, e pensarás talvez (mas enganas-te) que eu lhe dou. Isso não tinha importância. Esse não foi o cerne
sequer do insulto. Com isto quero dizer que ele não foi de ninguém ou de nenhuma coisa deste mundo, nunca foi, nunca havia de ser neinfoi sequer de Ellen, nem sequer da neta de Jones. Porque ele não pertencia a este mundo. Era uma sombra que passava. Era a imagem cega de luz como um
morcego, a imagem do seu tormento, lançada pela feroz e demoníaca lanterna dos subterrâneos da crosta terrestre, e portanto em sentido retrógrado, inverso; da treva abissal e caótica @ treva abissal e eterna completando a sua elipse descendente (reparas na gradação"), agarrando-se, tentando agarrar-se com inúteis mãos imateriaisàquilo que ele esperava quepudesse sustentá-lo, salvá-lo, prendê-lo - Ellen (reparas?), eu própria, depois por último essafilha sem pai dafilha única de Wash Jones que, assim ouvi dizer um dia, morreu num bordel de Mênfis -para encontrar o rompimento (mesmo se não a paz e a tranquilidade) no golpe enfim de uma foice ferrugenta. Disseram-me, informaram-me disso também, embora não fosse Jones desta vez mas outra pessoa, amável o bastante para se voltar e dizer-me que ele tinha morrido. Morreu? exclamei. morreste? Quem, tu? Mentes; não morreste; aceitar-te o céu não pode, nem o inferno ousa!'Mas Quentin não escutava porque também alguma coisa havia que ele não podia também ultrapassar - aquela porta, os passos correndo escadaria acima além dessa porta em continuação quase do som débil do tiro, as duas mulheres, a preta e a rapariga branca em
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roupa de baixo (feita de sacas de farinha, quando ainda havia farinha, das cortinas das janelas quando já, não havia) detendo-se, olhando a porta, o volume cor de nata e amarelado dos cetins e das rendas antigas, intrincado volume, posto cuidadosamente sobre a cama, e depois arrebatado velozmente pela rapariga branca, levantado adiante dela, quando a porta se abriu violenta e o irmão apareceu, sem chapéu, cabelo hirsuto cortado à baioneta, o
rosto gasto e encovado com a barba por fazer, o dólmen cinzento desbotado * remendado, a pistola pendendo ainda contra a ilharga: os dois, o irmão e * irmã, curiosamente semelhantes como se a diferença de sexos tivesse apenas avivado no sangue comum a terrível, a quase insuportável, semelhança, falando um com o outro em frases curtas, breves, em staccato, como bofetadas, como se estivessem peito com peito e à vez se agredissem, nenhum deles tentando esquivar-se aos golpes:
Agora já não podes casar com ele. Por que é que eu não posso casar com ele? Porque ele morreu. Morreu? Sim. Eu matei-o. Ele (Quentin) não podia passar além. Não a escutava sequer; perguntou, "Senhora? Que foi? Que disse?"
"Está alguém naquela casa." "Naquela casa? E Clytie. Não há-de ser ela que -"
"Não. Alguém vive lá dentro. Escondido. Está lá vai para quatro anos, vivendo escondido naquela casa."
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vi
Havia neve na manga do seu capote, havia a sua mão, a de Shreve, desenluvada e loura e quadrada, vermelha e esbraseada pelo frio, sumindo-se. Depois na mesa, diante de Quentin, repousando no compêndio aberto, à luz do candeeiro, o branco rectângulo do sobrescrito, o familiar, mecânico, manchado Jefferson 10 Jan 1910 Miss e depois, aberta, o Meu querido filho no belo cursivo de seu pai, que vinha desse morto e poeirento Verão em que ele fizera os preparatórios de Harvard para que estivesse o cursivo do pai ali em Cambridge, repousando em mesa estranha, à luz do candeeiro; esse morto anoitecer de Verão - as glicínias, o cheiro do charuto, os vaga-lumes - tenuamente subia do Mississipi à sala estranha galgando esta neve cerrada e estranha da Nova Inglaterra:
Meu querido filho Miss Rosa Coldfieldfoi ontem a sepultar Esteve em coma por quase duas semanas e há dois dias morreu sem voltar a si e sem sofrimento dizem mas por que o dizem não sei que eu sempre tive para mim que morte sem sofrimento deve ser só aquela que toma violentamente e de surpresa e por assim dizer pela retaguarda a inteligência porque se a morte é deveras algo mais além do breve e peculiar estado emocional dos enlutados ela terá de ser de igual maneira o breve estado e também peculiar do sujeito dela e se há para uma inteligência maior que a da criança ou do idiota coisa mais dolorosa do que essa lenta e gradual confrontação com aquilo que por um período longo de pavor e aturdimento se aprendeu a considerar como o irrevogável e insondável fim, não sei o que seja. E se pode haver um assomo de consolação ou um termo para a dor na derradeira fuga a um teimoso e assombrado ultraje que por quarenta e três anos foi companhia e pão e lume e tudo, não sei também.
- Trazendo o anoitecer, aquele anoitecer de Setembro (e logo seria preciso, forçoso, que ele dissesse "Não, nem tia Rosa nem prima nem tio. Miss
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Rosa. Miss Rosa Coldfield, uma velha senhora que o ultraje matou num Verão em 1866" e depois Slireve, "Dizes tu que ela não era tua parenta, não te era nada, que no Sul existiu Bayard ou Guinevere que não te era nada? então para que foi que ela morreu?" e não era a primeira vez que Slireve o dizia, ou outro em Cambridge, desde Setembro: Fala do Sul. Como é a vida por lá. O que fazem por lá. Por que vivem lá. E isso é vida)
- aquele anoitecer de Setembro quando Mr Compson enfim se calou, ele (Quentin) erguendo-se, abandonando enfim as palavras do pai porque era tempo de pôr-se a caminho, não porque tivesse ouvido já tudo, que ele nem tinha escutado, pois uma coisa havia além da qual não fora capaz de passar: aquela porta, o rosto juvenil, encovado e trágico e dramático, por si mesmo hipnotizado como actor em tragédias de colégio, um académico Hanilet que o transe do pano, descendo, acorda e ele às cegas, aos tropeços, no palco poeirento que os outros da companhia abandonaram na última cerimónia de formatura, a irmã enfrentando o seu olhar sobre o vestido para as bodas que ela não vestiria, nem havia de acabar sequer, os dois se acutilando com doze ou catorze palavras que eram na maioria as mesmas palavras, repetidas duas ou três vezes, mas feitas as contas teriam sido umas oito ou dez. E ela (Miss Coldfield) tinha posto o xaile, como já ele esperava que pusesse, e o chapelinho (que fora preto mas desbotara ao feroz e surdo verde metálico das penas velhas de pavão) e a bolsa de rede, quase do tamanho duma saca de viagem, contendo as chaves todas que possuía a casa: armário e louceiro e porta, das quais algumas nem rodavam nas fechaduras que, trancadas a todas as voltas, podia uma criança descobri-las com um gancho de cabelo ou um mastigado pedaço de goma elástica, e outras já nem serviam nas fechaduras para que foram feitas, como os velhos casais que já nada possuem de comum, que façam ou de que falem, afora o mesmo e geral peso do ar que deslocam e respiram e a terra geral e absorta que os espera e sustenta; - aquela noite, as doze milhas atrás da égua farta pela poeira dum Setembro sem luar, as árvores ao longo da estrada não se erguendo às alturas como das árvores é natural mas se agachando quais imensos galináceos, as folhas eriçando, pesadamente apartadas como as penas duma galinha arquejante, ao peso dos sessenta dias de poeira, o mato rasteiro à berma da estrada coberto com a poeira vulcanizada pelo calor e, visto assim da nuvem de poeira em que se moviam o cavalo e a charrete, apareciam quais massas delicadas e rígidas imovelmente varando no alto à perfeita perpendicular duma água antiga e morta, vulcânica, refinada ao original princípio do líquido sem oxigénio, sem desfazer-se a nuvem de poeira em que se movia a charrete porque não a levantara o vento, não a sustentava o ar, antes fora evocada ali, materializada em torno deles, instantânea e perpétua, cada pé cúbico de poeira ocupando cada pé cúbico de charrete e de cavalo, peripatética nuvem sob os horizontes, que as ramadas retalhavam, dum céu negro e liso e ferozmente, pesadamente estrelado, a nuvem de poeira seguindo avante, a todos envolvendo no que não chegava a ser uma ameaça mas seria talvez uma advertência, cariciosa, quase amistosa, como a dizer, Continuem se quiserem.
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Mas eu chego lá primeiro; acumulando-me à vossa frente chegarei primeiro, erguendo-me, suavemente escapando-me de sob cascos e rodas, de tal forma que não haveis de achar o destino, antes de súbito e mansamente já vos vereis nos planaltos e panoramas da noite inescrutável e mansa, e nada mais podereis fazer então do que voltar para trás, aceitem por isso o meu conselho, não sigais adiante, retrocedei agora, e deixai tudo como é e está; ele (Quentin) concorde com isto, sentado na charrete com ela, a implacável, a velha com estatura de boneca, agarrada à sombrinha de algodão, que cheirava a carne velha ressumada pelo calor, a cânfora ressumada pelo calor nos vincos velhos do xaile, sentindo-se ele exactamente como lâmpada eléctrica tornada em pele e sangue, pois a charrete não agitava o
ar bastante que o pudesse refrescar o movimento, não gerava dentro dele o movimento bastante que lhe suasse a pele, pensando Santo Deus, não, não quero andar à procura dele ou do que seja, nem fazer por encontrá-lo ou à casa ou ao que seja, arriscar-me a perturbá-lo ou à casa ou ao que seja: (depois de novo Shreve, "Espera. Espera. Dizes tu que a tal mulherzinha, a Tia Rosa -"
"Miss Rosa", disse Quentin. "Pronto pronto - que a tal velhota, essa Tia Rosa -"
"Miss Rosa, eu já disse." "Pronto pronto pronto. - que a velha - essa Tia R - Pronto pronto pronto. - que nunca mais lá tinha ido, que nem uma vez sequer em quarenta e três anos pôs os pés naquela casa, mas não só disse que estava alguém lá escondido como ainda achou quem acreditasse nela e fizesse as doze milhas de charrete à meia-noite para ver se ela teria razão?"
"Sim", disse Quentin. "Que essa velhota, que se criou numa casa que era um mausoléu sobrepovoado, sem nada que lhe tomasse nem ocupasse o tempo senão o ódio ao pai e à tia e ao marido da irmã, em paz e conforto e à espera do dia em
que eles comprovassem, não só a si mesmos como a toda a gente, que ela sempre estivera com a razão: e a tia certa noite bateu asas com um negociante de cavalos e assim se provou que ela estivera com a razão e assunto arrumado: e a seguir o pai trancou-se no sótão e pôs pregos na porta para não ser recrutado pelo exército Rebelde e lá se deixou morrer à fome e assunto arrumado, exceptuando a possibilidade inevitável de, sendo chegada a hora em que havia de reconhecer no seu íntimo que ela sempre estivera com a razão , não poder já falar ou não ter a quem o confessasse: e
provou-se a razão daquele ódio ao pai também, pois se ele não tivesse irritado o general Lee e Jeff Davis não teria de se fechar com pregos na porta e morrer ali, e se não tivesse morrido não ficava a órfã na miséria e naquela situação, à mercê de uma situação em que podia receber esta afronta mortal: e estava com a razão em odiar o cunhado, porque não fosse ele um
demónio os próprios filhos não haviam de precisar de quem os protegesse nem ela teria de se mudar para lá nem havia de ser traída pela carne, sempre a carne, e achar, em vez do Agamémnon viúvo para a Cassandra que ela era, um Píramo caduco e perro de par com a Tisbe ardente mas princi117

piante, o qual foi capaz de insinuar-se junto dela com redobrada peçonha nesse Abril descabido e sugerir que os dois acasalassem à experiência e
para amostra e que se fosse menino casavam; nem teria ela de voltar à vila por força da explosão inicial desse horror e desse ultraje, e comer o pão do fel e da amargura, roubado por entre as estacas das vedações à alvorada: isto portanto já não era assunto arrumado e encerrado, que ela não podia sequer falar disto por ser quem era a sucessora, não porque ele tivesse encontrado sucessora logo ao virar da esquina e mesmo num abrir e fechar de olhos, mas por ser quem era a sucessora, que fosse concebível que ela passasse alguma vez pelo dissabor de recusar, ou de se ver obrigada a recusar, toda e qualquer posição que a sucessora viesse, ainda que no juízo dum demónio, a merecer; isto não, não era assunto arrumado, que chegada a hora de ele reconhecer que não estava com a razão ela havia de passar pelo mesmo que já passara com o pai, também ele já teria morrido, que eu
não tenho dúvidas de que ela teve uma premonição da segadeira, se por outra razão não foi ao menos por ser a segadeira o ultraje final, a afronta última, como o foram martelo e pregos no caso do pai - aquela segadeira, louro simbólico do triunfo de um césar - aquela segadeira ferrugenta, que • próprio demónio tinha emprestado a Jones há mais de dois anos para que • homem segasse as ervas ruins à porta da choupana e aplanasse os caminhos do cio - a lâmina ferrugenta, engrinaldada a cada novo dia com o laço garrido ou o colar de contas baratas que o (como é que ela disse? era bandalho mas pior, não era?) iria pisar - aquela segadeira, além de cuja forma simbólica, e mesmo depois de morto, mesmo já quando a própria terra se
recusasse a sustentar o seu peso, ele a escarnecia?"
"Sim", disse Quentin. "Que esse Fausto, esse demónio, o Belzebu, fugiu a esconder-se dalgum momentâneo relampejar de cólera no ultrajado rosto do seu Credor, exasperado além do que se pode estar, fugiu a encobrir-se, a esgueirar-se acobardado na respeitabilidade como o chacal nos penedos, assim pensava ela, a princípio, até que se deu conta de que ele não se escondia, não queria encobrir-se, vivia apenas o frenesim derradeiro do mal e da maldade antes que viesse o Credor alcançá-lo e desta vez para todo o sempre;
- este Fausto que subitamente apareceu num domingo com duas pistolas e vinte outros demónios por criados e esbulhou a um pobre índio ignorante cem milhas quadradas de terra aonde construiu a maior casa que jamais se vira e se pôs a caminho com seis carroções e regressou com eles cheios de tapeçarias de ponto fino e as cadeiras Wedgwood que a mobilassem e ninguém soube se ele tinha roubado outro vapor ou se tinha só desenterrado mais uns quantos poucos das antigas pilhagens, que encobriu cornos e rabo com as vestimentas humanas e a cartola de castor, e escolheu (comprou-a, levou à certa o sogro no negócio, não foi?) esposa depois de ter andado três anos a esquadrinhar e pesar e comparar, não em palacetes ducais pelas redondezas, mas entre a baronia menor cuj os principados tinham decaído, e tanto, que ali não corria ele o risco de a esposa lhe trazer para casa delírios de grandeza antes de estar ele preparado para dar mostras dela, mas
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não tão decadente que a esposa não soubesse pelos dois o que fazer com as muitas facas e colheres e os muitos garfos que ele tinha comprado
- uma esposa que não só consolidasse o encobrimento mas que lhe pudesse e quisesse dar, como deu, os dois filhos que defendessem e escudassem quer neles quer na sua descendência a carne cansada e o esqueleto frágil de um velho contra o dia em que o Credor o viesse encurralar pela derradeira vez e ele já não pudesse fugir: e está visto a filha apaixonou-se, o
filho, o agente a prover esse baluarte vivo entre ele (o demónio) e a mão do Credor, o beleguim, até casar-se o filho e o garantir por seguro dobrado e redobrado - e depois o demónio teve de arrepiar caminho e expulsar não só o noivo de sua casa e não só o filho de sua casa, mas tanto corrompeu, seduziu, hipnotizou o filho que ele (o filho) fez as vezes de homem de mão do pai ultrajado à ameaça de luxúria, para o demónio voltar da guerra, cinco anos passados, e ver consumada e completa a situação para que tinha trabalhado: o filho para sempre ausente, fugindo ao nó corredio que o esperava se voltasse, a filha condenada a ser solteira toda a vida - e depois quase mal tirou o pé do estribo tratou (o demónio) de arranjar noiva outra vez a fim de substituir aquela descendência cujas esperanças ele mesmo tinha destruído?"
"Sim", disse Quentin. "Que ele voltou da guerra e descendência possível não a tinha, obra dos filhos, e plantação não a tinha, só campos maninhos e uma bela seara de ervas ruins, e uma seara de impostos e tributos e sanções colhida pelos marshalls dos Estados Unidos e outros da mesma igualha, e dos nigros todos não ficou nenhum, obra dos Ianques, e era de supor que ele se daria por satisfeito: mas nem mal tinha tirado o pé do estribo não só tratou de meter mãos àquela obra de fazer da plantação o que ela tinha sido, como ainda teria porventura a esperança de lograr o seu Credor com ilusões e ofuscações e com o esconder-se atrás da ilusão de que o tempo não tinha passado, nem tinham acontecido mudanças, nem ele estava já com sessenta anos quase, até que pudesse arranjar outro rancho de filhos que fossem o seu baluarte, mas escolheu para este fim a única mulher no mundo a quem não podia ter ele esperanças de levar a melhor, essa Tia R - pronto pronto pronto. - que o odiava, que sempre o tinha odiado, e escolheu-a com um quê de ultrajante bravata, como se o desespero de convencer-se de que era irresistível, ou invulnerável, fosse parte do preço que recebera pelo que terá vendido ao Credor, pois no dizer da velhota ele não tinha alma e nunca a teve; declarou-se e ela aceitou-o - e três meses depois, sem que houvesse data marcada para as bodas nem houvesse menção de casamento nem por uma vez que fosse, e no mesmo dia em que assentou terminantemente que era capaz de manter ao menos uma parte das terras e qual parte seria, falou com ela e sugeriu que os dois acasalassem como cães, inventando com manha perversa aquilo que maridos e noivos andam a querer inventar há dez milhões de anos: aquilo que, sem ele abusar dela nem lhe dar a ela motivos para recorrer às cúrias civis ou tribais, iria não só arrancar a mulherzinha sonhadora ao seu pombal como deixá-la irrevogavelmente maridada (e a ele, fosse marido ou noivo, já encor119

nado e bem encornado antes que ela desse um ai) com a carcassa abstracta do ultraje e da vingança; que ele o disse e ficou livre, agora e para todo o sempre, das ameaças e do falatório, porque tinha enfim eliminado a derradeira parenta da falecida mulher, ficou livre: o filho fugido no Texas ou na Califórnia ou quem sabe até na América do Sul, a filha condenada a ser solteira e a viver até que ele morresse, que depois já não teria importância, naquela casa que apodrecia, para tratar dele e pôr-lhe a comida na mesa, criar as galinhas e vender os ovos pelas portas em troca das roupas que nem ela nem Clytie sabiam fazer: de forma que ele já nem sequer precisava de ser um demónio, só era um velho doido e impotente que enfim compreendia que não só era vão o sonho de recuperar a sua Sutpen's Hundred mas o que dela restava não chegaria nunca para o sustentar e à família, e assim tomou a lojeca de entre-caminhos com o sortimento de relhas e cordões para as ferragens das coalheiras e chitas e querosene e colares de contas baratas e laços e uma clientela que era de nigros forros e da (como é? como se diz? a quê?
- Sim, a rabacuada branca)* e Jones por caixeiro, e talvez quem sabe com o sonho de ganhar na loja o bastante para recuperar a plantação; que ele tinha escapado já duas vezes, primeiro tinha-se metido em trabalhos e deles o livrou o Credor, que fez os filhos destruírem-se um ao outro antes que ele tivesse posteridade, e depois lá achou que talvez não estivesse muito certo que fosse livre e voltou à mesma, e depois resolveu que não estava muito certo que não fosse livre e lá se escapou outra vez - e depois arrepiou caminho e voltou a meter-se em trabalhos com os colares de contas e a chita e os rebuçados às riscas da vitrina e das prateleiras?"
"Sim", disse Quentin. Ele parece o Pai a falar pensou, relanceando os olhos (sereno o rosto, plácido, singularmente sombrio quase) por um momento a Shreve, que se debruçava para o candeeiro, o torso nu luzindo rosado e mimoso como de bebé, querubíneo, quase glabro, reluzindo as luas gémeas das lentes na cara rubicunda, cara de lua-cheia, e sentindo ele (Quentin) o cheiro do charuto e das glicínias, vendo vagar e tremeluzir os vaga-lumes naquele anoitecer de Setembro. É tal e qual o Pai se o Pai já soubesse tanto na véspera de eu lá ir como soube um dia depois de eu ter voltado pensando Velho doido e impotente que se deu conta enfim de que tem de haver limites até para os malvados poderes dum demónio, que deve ter-se visto na situação da corista, a menos fornida corista da fila, quando se dá conta que a principal melodia que afaz cabriolar não vem de trompetes e rabecas e tambores mas de relógio e calendário, que se deve ter sentido como o velho canhão exausto quando se dá conta que só pode lançar feroz, mais uma bala que logo irá desfazer-se em pó na explosão terrível e no recuo desse tiro, e que lançou os olhos em roda à cena que ainda podia abarcar e viu o filho ausente, sumido, mais insuperável agora do que se estivera morto, pois agora (se o filho ainda vivia) o seu nome seria outro e os que o chamavam por esse nome seriam estranhos e a sementeira de dragão com o sangue Suipenfosse ela qualfosse que ofilho semeasse em corpo de mulher estranha havia por consequência de continuar a tradição, lançar o mal e a maldade que eram a sua herança, sob um outro nome e sobre os estranhos no
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meio de quem vivesse e que nunca teriam conhecido o seu nome verdadeiro; afilha condenada a ser solteira, que ser solteira fóra a sua escolha já antes de haver um homem chamadoi Charles Bon, pois se a tia que viera socorrê-la na sua dor e no seu luto não achou nem dor nem luto mas um rosto calmo e absolutamente impenetrável, e em volta dele uma touca e abaixo dele um vestido,fiados ambos por ela, que viu diante da porta fechada e outra vez num remoinho, uma nuvem, de galinhas enquanto Jones fazia o caixão, e que,foi sempre o seu rosto por todo o ano que então se seguiu, enquanto lá viveu. a tia e as três mulheres teciam os vestidos e semeavam o que haviam de comer e cortavam a lenha para o fogão (afora alguma ajuda que tivessem desse fones que vivia com a neta na cabana do pesqueiro velho, de cobertura a desabar e alpendre carcomido, contra o qual a segadeiraferrugenta que Sutpen havia de emprestar-lhe, havia de lhe meter nas mãos que a levasse e que segasse as ervas ruins que lhe cresciam à porta - e que porfim o obrigou a usar mas não para segar as ervas, ou ruindade foi mas não das ervas - havia de ficar encostada por dois anos) e era ainda o seu depois que a indignação da tia a arrebatou de volta à vila para ali viver das hortaliças roubadas e dalgum cesto anónimo, deixado à noite nos degraus da sua porta, as três, as duasfilhas, a preta e a branca, e a tia, a doze milhas de distância, vigiando à distância como as duas filhas de perto vigiavam o demónio velho, o Fausto velho varicoso e em desespero lançando agora pela derradeira vez os dados com a mão do Credor já no seu ombro, tomando agora conta da lojeca de província que lhe dava a ganhar o pão e a carne, regateando constantemente uns poucos cinco ou dez cêntimos com brancos e negros, rapaces e na penúria todos, ele que em tempos fora senhor de galopar por dez milhas em qualquer direcção sem que passasse as extremas das suas terras, esgotando o escasso fornecimento de laços e colares de contas baratas e rebuçados sediços de cores violentas com que até um velho pode seduzir unia provinciana de quinze anos, para desgraçar a neta do sócio, esse tal Jones - esse branco esgalgado e picado pela malária a quem ele há catorze anos permitirá que posseasse a cabana do pesqueiro abandonado com a neta de um ano - Jones, sócio e moço de fretes e caixeiro do demónio. que à sua ordem retirava por sua mão da vitrina (e os entregaria também) os rebuçados, os laços, o @ colares, e mediu até o pano do qual Judith (que não sofrera nem pusera luto) ajudou a talhar um vestido com que a
neta passasse pelos homens ociosos. pelos olhares de soslaio e a má-língua, e adiante seguisse até que a barriga aumentando lhe ensinou o que é o embaraço - ou talvez o medo; - Jones que antes de 61 nem tinha ordem sequer de aproximar-se da casa pela porta da frente e nos quatro anos seguintes não se aproximou dela mais do que a porta da cozinha e tanto apenas quando trazia a caça e o peixe e os legumes de que a esposa e afilha dofuturo sedutor (e também CIvtie, a única negra, criada, que ficara, a mesma que lhe proibia passar da porta da cozinha com o que trouxesse) dependiam para sobreviver, mas que entrava já na casa pelas tardes (agora muito frequentes) em que o demónio de súbito corria às pragas com osfregueses da loja e fechava a porta e se retirava para as traseiras e no mesmo tom com que
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dantes ele usava tratar a ordenança ou os criados de dentro, enquanto os teve (e no mesmo tom sem dúvida com que mandava Jones que fosse buscar à vitrina os laços e os colares e os rebuçados) mandava agora a Jones que trouxesse o jarro, e os dois (e Jones até sentado agora, o Jones dos velhos tempos, das velhas tardes mortas de domingo, passadas na paz monótona à sombra do parreiral de scuppernongs no pátio dos fundos, o demónio dei .tado na rede enquanto Jones se agachava contra o poste, se levantava de quando em vez para servir o demónio, pronto o garrafão e o balde com a água que ele ia buscar à nascente a mais de uma milha de distância e vinha
e se agachava de novo, casquinando cacarejos de gargalhada e dizendo 'Tá certo, Mister Tawm'de cada vez que o demónio se calava) - os dois bebiam à vez do jarro, sem se deitar o demónio agora, nem sequer tomar assento, mas alcançando, após o terceiro ou segundo copo, aquele estado impotente e aquela fúria invicta dos velhos em que se erguia vacilante num arranco violento e gritava que lhe trouxessem o cavalo e as pistolas que ele iria sozinho a Washington matar o Lincoln (iria com atraso dum ano já, talvez) e o Sherman, e gritava, 'É matá-los! Abatê-los a tiro como cães que o são!' e Jones: 'Tá certo, Querunel; pois tá certo' e o amparava quando ele cai 1a' e requisitava a primeira carroça que passasse para o levar a casa e o carregava pelos degraus até à porta, passava com ele a porta, formal e sem pintura, encimada por bandeira importada vidro a vidro da Europa, e que Judith segurava aberta para que ele entrasse, e sem uma qualquer mudança, uma qualquer alteração, no rosto calmo e rígido que era o seu há quatro anos, e escadaria acima até ao quarto onde na cama o deitava como se fora uma cri.ança, e depois se ajeitava ele no chão junto à cama, e não dormia, que antes de romper o sol o homem havia de agitar-se na cama e gemer e Jones diria, 'Tou aqui eu, Querunel. Assossegue. Eles inda não deram cabo da gente, olha quem!'- este mesmo Jones que depois de o demónio terpartido com o regimento, quando a neta só teria uns oito anos, dizia a toda a gente que 'estava a tomar conta dos nigros e da plantação do Major ainda antes que alguém tivesse tempo de perguntar-lhe por que não estava ele com as tropas, e talvez com o passar do tempo chegou a acreditar na própria mentira, que esteve entre os primeiros que saudaram o demónio quando ele regressou, que foi esperá-lo ao portão e disse, 'Então, Querunel, eles bem que malharam mas inda não deram cabo da gente, olha quem!' que trabalhou até, mourejou, suou, às ordens do demónio, naquele primeiro tempo de fúria, quando o demónio ainda acreditava que podia recuperar por mera e indómita vontade, a Suipen's Hundred que ele recordava e que perdera, suou sem esperança de paga ou recompensa quem deve terpercebido muito antes de se aperceber o demónio (ou de o reconhecer) que era trabalho perdido
- Jones, um cego, que parecia ver ainda nessa ruína furiosa e devassa a perfeita estampa de homem que em tempos galopara no puro-sangue negro pelos seus domínios, dos quais a vista não alcançava duas extremas ao mesmo tempo donde quer que estivesse
"Sim", disse Quentin. E então chegou aquela manhã de domingo e o demónio vá de se levan122

tar e sair antes de nascer o sol, e Judith a pensar que sabia porquê, pois nessa manhã o garanhão negro, em que ele cavalgara até à Virgínia e que trouxera à rédea no regresso, teve um filho da mulher Penélope, mas não era o potro a razão de se ter levantado o demónio tão cedo epassou-se quase uma semana antes que apanhassem, encontrassem, a preta velha, a parteira que nessa madrugada se agachara ao acolchoado posto no chão enquanto Jones se sentava no alpendre onde a segadeira ferrugenta ficara há dois anos encostada, e ela contasse que tinha ouvido o cavalo e depois o demónio entrara e pusera-se junto à enxerga com a chibata na mão e baixara os olhos à mãe e à criança e dissera, 'Enfim, Milly, é pena que não sejas uma égua como a Penélope. Se fosses, dava-te uma baici decente na cavalariça' e voltando as costas foi-se embora e a preta velha, agachada ali, ouviu-os, ouviu as vozes, dele e de Jones: 'Nem mais um passo. Não me toques, Wash'
- 'Que tarrebento, QueruneV e ouviu também a chibata, mas não ouviu a segadeira, nem o assobio do ar nem o golpe, nada, que sempre a mera consumação do castigo evoca um grito, mas aquilo que evoca o silêncio derradeiro sucede em silêncio. E nessa noite finalmente o encontraram e trouxeram para casa numa carroça e o levaram para dentro, sereno e ensanguentado e vendo-se-lhe ainda os dentes nas barbas apartadas (que nem grisalhas eram, conquanto fosse agora o cabelo quase branco), à luz de lanternas e archotes de pinheiro, escadaria acima, onde sem lágrimas no seu rosto de pedra afilha estava segurando a porta aberta para que passasse quem dantes gostava de chegar à igreja de carreira, e desta vez de carreira seguiu, mas não alcançou afinal a igreja pois afilha (agora mulher de trinta anos e que parecia mais velha, não por ter envelhecido como envelhecem osfracos, seja enclausurados num estático inchaço da carne já sem vida, seja passando pela série de fases da gradual ruína, cujas partículas não aderem ao férreo, esqueleto ainda impenetrável mas aderem entre si como se tivessem vida própria, comunal e insciente e cega e semelhante a uma colónia de larvas, mas como o demónio ele-mesmo tinha envelhecido:
com um quê de condensação, uma angustiada saliência da ossificação indómita e primária que a delicada cor e a macia textura, a aura eléctrica, luminosa, da juventude, havia apenas e temporariamente suavizado mas não escondera nunca - a solteira, de vestidos informes efeitos em casa, com mãos capazes de transportar os ovos como de manter firme a relha do arado) resolveu que o levassem à igreja, a mesma igreja Metodista da vila onde ele se casara com a mãe, antes que voltasse à mata de cedros para ali ter sepultura, e pediu emprestadas as duas mulas, animais novos e meio selvagens, que puxaram a carroça: e assim foi ele de carreira a caminho da igreja sem alcançá-la, no seu caixão improvisado, de farda a preceito e sabre e guantes bordados, até que as mulas, novas, se espantaram e tombaram a carroça e o tombaram a ele, de sabre e plumas e tudo, por um barranco donde a filha o desprendeu e o trouxe para a mata dos cedros, e ela mesma leu o ofício. E sem lágrimas, nem luto sequer também desta vez, não sei se por não ter tempo agora para lutos, que era ela quem tomava conta da loja enquanto não arranjou comprador, não que a tivesse de portas abertas mas trazia as
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chaves no bolso do avental, e iam chamá-la à cozinha ou à horta e até aos campos, pois só ela e Clytie agora lavravam como podiam, que o Jones também J .a senhora, seguira o demónio com diferença de meio dia nesse mesmo
domingo (e talvez para o mesmo lugar; talvez Eles tivessem até uma parreira de scuppernongs para aqueles dois, que não os compelia agora pão nem ambições nem luxúria nem vingança, e talvez nem sequer tivessem de beber mas disso eles sentiriam de vez em quando a falta sem que soubessem o que era que lhes faltava, mas nem sempre; amáveis, plácidos, sem que os marcasse o tempo ou chuva ou sol, apenas de vez em quando alguma coisa, um vento, uma sombra, e o demónio havia de interromper o que dizia e Jones deixava de espirralhar as suas gargalhadas e olhar-se-lam, atarantados, graves, concentrados, e o demónio diria, V que era, Wash? Aconteceualguma coisa. O que foi? e Jones, olhando para o demónio, também ele atarantado, também sério, diria, 'Não sei, Querunel. Qui éra? um vigiando o outro. Então a sombra desvanecia-se, o vento morria, até que porfim diria Jones, plácido, nem mesmo triunfante: 'Eles bem que malharam mas inda não deram cabo da gente, olha quem!') - e iam chamá-la mulheres e crianças com selhas e cestas, e ela ou Gytie ia até à loja, abria a porta, servia afreguesa, fechava a loja e regressava: até que porfim vendeu a loja e gastou o dinheiro numa lápide. - ("Como é que foi?" perguntou Shreve. "Tu já me contaste; como é que foi? tu e o teu pai andavam às codornizes num dia cinzento, depois de uma noite inteira a chover, e o valado os cavalos não o puderam passar de forma que tu e o teu pai desmontaram e deram as rédeas ao - como é que ele se chamava? o nigro da mula? Luster. - Luster, que os levasse de roda" e ele e o pai passaram no momento em que a chuva começou de novo a cair, cinzenta e grossa e vagarosa, sem ruído, não se apercebendo ainda Quentin de onde estavam porque viera cavalgando com a cabeça baixa contra as bátegas miúdas, até que olhou a encosta que se erguia adiante, onde a junça amarela e molhada morria para o alto, imersa na chuva, como ouro a derreter, e viu a mata, o maciço dos cedros na cumeeira do monte esfumando-se em chuva, como se as árvores alguém as tivesse desenhado a tinta num mata-borrão molhado - os cedros para lá dos quais, para lá dos campos em ruína para lá dos quais, estaria o carvalhal e a imensa casa cinzenta apodrecendo abandonada meia milha além. Mr Compson tinha parado a olhar para Luster que seguia atrás, na mula, a saca de estopa que usara como sela agora cobrindo-lhe a cabeça, os joelhos erguidos a resguardarem-se dentro, conduzindo os cavalos pela berma do valado até encontrar sítio por onde passassem. "Vamos adiante a recolher-nos da chuva", disse Mr Compson. "Assim como assim, ele não vai chegar-se nem a cem jardas sequer daqueles cedros."
Continuaram subindo a encosta. Não vislumbravam sequer os dois cães, somente os sulcos abertos a direito no junçal por onde, invisíveis, os cães calcorreavam a encosta até que um deles alçou rápido a cabeça a olhar para trás. Mr Compson com um gesto da mão apontou as árvores, ele e Quentin seguindo. Estava escuro na mata, a luz mais escura até do que cinzenta, a chuva silenciosa, os desmaiados glóbulos perlados materializando-se nos canos
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das armas, e as cinco lápides como gotas derretidas, mas não coalhadas porém, de velas frias sobre o mármore: duas pesadas lajes, talhadas em arco, as outras três lápides inclinadas um pouco de través, com aqui e além uma letra gravada e até uma palavra completa, momentânea, e legível na fraca luz que os pingos de chuva traziam, partícula a partícula, à obscuridade e libertavam; chegavam já os cães, vagando como o fumo, o pêlo chapado com a
chuva e pendendo crespo numa indistinta e aparentemente inextricável bola que os aquecia. As duas lajes haviam fendido ao meio, de lado a lado, tão pesadas eram (e sumindo-se no buraco onde o ressalto do tijolo de um arco
tinha caído, corria um indeciso e alisado carreiro, feito por um pequeno animal - um gambá, provavelmente - por gerações de pequenos animais, pois há muito que não haveria nada que se comesse na sepultura) embora a forma das letras fosse bem legível: Ellen Coldfield Suipen. Nascida em 9 de Outubro de 1817. Falecida em 23 de Janeiro de 1863 e a outra: Thomas Surpen, Coronel, XX111 Regimento de Infantaria do Mississipi, Exército dos Estados Confederados. Falecido em 12 de Agosto de 1869: esta, a data, acrescentada, toscamente e a escopro, que ele nem depois de morto revelava onde ou
quando havia nascido. Olhou Quentin em silêncio as pedras, pensando, Não amada esposa de. Não. Ellen Coldfield Sutpen "Não fazia ideia que elas tivessem dinheiro para comprar mármore em 1869", disse.
"Quem as comprou foi ele", disse Mr Compson. "Comprou-as ambas enquanto o regimento esteve na Virgínia, depois de Judith lhe mandar notícia de que a mãe tinha morrido. Encomendou-as de Itália, da mais fina pedra, a mais bela, que se pudesse encontrar - a da mulher completa e a sua com a data em branco: e isto em campanha, e num exército que não só teve a taxa mais alta de mortalidade entre todos os exércitos passados e futuros mas que fazia tradição de eleger em cada ano um novo corpo de oficiais no regimento (e graças ao qual sistema ele tinha por essa altura o direito de chamar-se coronel, que fora votado no Verão ao posto do coronel Sartoris) por isso não era senhor de saber se, antes que fosse a encomenda satisfeita ou até mesmo recebida, já não estaria ele debaixo da terra com a sepultura marcada (se marca
tivesse) por um trabuco feito em pedaços e enterrado no chão, ou se na falta disso não seria um segundo tenente ou até soldado raso - desde que os seus
homens, claro está, tivessem a coragem de o despromover - e todavia ele não só encomendou as pedras, e conseguiu pagar por elas, mas, o que é mais estranho ainda, conseguiu fazê-las passar por uma costa marítima em bloqueio tão apertado que os navios, se aportassem, recusavam tomar outra carga além de munições - " Parecia a Quentin que os estava em realidade vendo: as tropas esfomeadas e andrajosas, descalças, as caras encovadas, enegrecidas pela pólvora, que se viravam a olhar ainda, por cima de um
ombro esfarrapado, os olhos em que ardia, relampejava, o desespero indómito de quem vencido embora continua invicto, vigiando esse obscuro e proibido mar que um solitário navio em fuga, soturno e sem luz, cruzava com as duas mil preciosas libras de espaço no porão que não eram peso de balas, nem sequer de coisa comestível, mas outro tanto de pedra gravada, bombástica e inerte, que por todo um ano havia de fazer parte do regimento,
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de acompanhá-lo à Pensilvânia e estar presente em Gettysburg, seguindo na retaguarda, numa carroça guiada por um criado particular do demónio, através de pântanos e planuras e desfiladeiros, não marchando o regimento mais depressa do que podia seguir a carroça, com os homens esfomeados e esqueléticos, e os cavalos esqueléticos e exaustos, enterrando-se até aos joelhos em lama gelada ou em neve, suando e maldizendo a carroça que levavam por pauis e por lameiros qual peça de artilharia, às duas pedras se referindo como 'o Coronel' e 'a Coronela'; depois atravessando o Cumberland Gap e descendo as montanhas do Tenessi, viajando à noite para se furtarem às patrulhas lanques, e chegando nos finais do Outono de 64 ao Mississipi, onde a filha esperava, essa cujo casamento ele tinha declarado interdito e que iria ser viúva no Verão seguinte embora na aparência não houvesse de chorar o luto, onde a mulher tinha morrido e de onde o filho por si mesmo fora excomungado e banido, e ele ergueu uma das pedras à cabeceira da sepultura da mulher e colocou a outra ao alto na entrada da casa, onde Miss Coldfield possivelmente (ou, dir-se-ia, com certeza) dia após dia a olhava como se ela fora o retrato dele, possivelmente (ou, dir-se-ia, com certeza, também neste ponto) lendo por entre a forma das letras uma esperança de donzela e uma expectativa de virgem de que não falara a Quentin, pois nunca tinha mencionado a pedra, e ele (o demónio) bebeu o café de bolotas secas e comeu o pão de enxada* que Judith e Clytie para ele tinham feito e beijou a testa de Judith e disse, Tritão, Clytie' e voltou para a guerra, tudo em vinte e quatro horas; parecia-lhe que estava em realidade vendo; como se lá tivera estado. Mas logo pensou Não. Se eu lá estivesse não podia tê-lo visto assim nitidamente
"Mas isso não explica as outras três", disse ele. "Que também devem ter custado alguma coisa."
"Quem as terá pago?" disse Mr Compson. Quentin sentia o seu olhar. "Pensa." Quentin olhou as três lápides, idênticas, com as sumidas letras, na forma idênticas, um tanto oblíquas no macio apodrecimento barroso das agulhas de cedro que se acumulavam, estas decifráveis também quando mais de perto as viu, a primeira: Charles Bon. Nascido em Nova Orleães, Luisiana. Falecido em Sutpens Hundred, Mississipi, em 3 de Maio de 1865. Com a idade de 33 anos e 5 meses. Ele sentia o olhar do pai a observá-lo.
"Foi ela", disse. "Com o dinheiro que recebeu de vender a loja." "Foi", disse Mr Compson. Quentin teve de baixar-se e varrer com a mão as agulhas de cedro para ler a lápide seguinte. Ao fazê-lo, um dos cães ergueu-se e aproximou-se dele, espetando o focinho para ver o que ele estava olhando como o faria criatura humana, como se por associação com as criaturas humanas o cão tivesse aprendido essa curiosidade que é o apanágio apenas dos homens e dos macacos.
"Sai daqui", disse ele, empurrando o animal com uma das mãos, enquanto a outra varria as agulhas de cedro, alisando as letras sumidas, as palavras gravadas, até as tomar legíveis: Charles Etienne de Saint-Valery Bon. 1859-1884 sentindo o olhar do pai que o observava, antes de erguer-se reparando que a terceira pedra tinha a mesma data, 1884. "Desta vez não foi com certeza a loja",
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estava aqui enterrado. Mas ela chegou, com o rapaz de onze anos que mais parecia ter oito. Deve ter sido coisa semelhante a uma cena de jardim pela pena desse poeta irlandês, Wilde: o fim de tarde, os cedros obscuros com o sol rasando entre eles, até a luz a preceito e as sepulturas, os três blocos de mármore (o teu avô tinha avançado a Judith o dinheiro para a terceira pedra, a descontar no preço da loja) que pareciam ter sido limpas e polidas e arranjadas por maquinistas de cena que ao cair da noite as viriam desmontar, levando-as, ocas e frágeis e sem peso, de volta ao armazém até que houvesse novamente precisão delas; o quadro-vivo, a cena, a representação entrando em palco - a mulher com rosto de magnólia um tanto mais roliça agora, a mulher de treva feita e pela treva e para a treva gerada e que se vestia como um desenho de Beardsley, num flutuante e fino traje destinado não a demonstrar luto ou viuvez mas a vestir um interlúdio de fatal e adormecida insaciedade, de apaixonada e inexorável fome da carne, caminhando resguardada pelo guarda-sol de renda e seguida por uma preta clara e gigantesca levando um coxim de seda e o rapazinho pela mão, o rapazinho que não só vestia como um desenho de Beardsley, era todo ele um desenho de Beardsley - um menino magro e delicado, com um rosto de marfim macio e assexuado, que, depois que a mãe passou à preta o guarda-sol e tomou o coxim e se ajoelhou junto à sepultura compondo as saias e chorou, não quis soltar o avental da preta e assim ficou, sossegadamente piscando os olhos, quem, tendo nascido e vivido sempre numa espécie de prisão acetinada à luz mortiça e perpétua das velas, tendo por ar que respirasse a lumínescência leitosa e absolutamente física que os dias e as horas de sua mãe exalavam, raro vira a luz do sol, quanto mais os largos horizontes, as árvores, e as ervas, e a terra; e por último a outra mulher, Judith (que, por não sofrer o luto, não carecia de carpir pensou Quentin, pensando Sim, tive de ouvir por tempo infinito), que ficou no confim da mata dos cedros, de vestido e touca de chita a condizer, desbotados e informes ambos - o rosto calmo, e as mãos, capazes de lavrar ou cortar a lenha e cozinhar ou tecer o pano, entrelaçadas e recolhidas, ali na postura de um indiferente cicerone de museu, esperando, talvez sem olhar sequer. Então a preta avançou e estendeu à oitoruna um frasquinho de cheiro em cristal e ajudou-a a erguer-se e levantou o coxim de seda e entregou à oitoruna o guarda-sol e regressaram à casa, o rapazínho ainda agarrado ao
avental da preta, a preta amparando com o braço a mulher e Judith seguindo, com esse rosto qual máscara ou qual mármore, de volta à casa, passando o
alto pórtico lascado e entrando na casa onde Clytie fritava os ovos e a broa, único alimento seu e de Judith.
"Ficou ela uma semana. Passou esses dias no quarto que era já o único da casa a ter lençóis de linho na cairia, passou os dias na cama, em négligées novos, de renda e sedas e cetins coibidos por luto às cores mais suaves da malva e do lilás - esse quarto sem ar, com as adufas cerradas, impregnando-se, aquém das tabuinhas fechadas e bambas, do aroma vago e forte da sua carne, dos seus dias, das suas horas, dos seus vestidos, da colónia derramada no
parche que lhe cobria as têmporas, do frasquinho de cristal que a preta alternava com o leque ao sentar-se junto à cama, entre as idas à porta para rece128
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ber os tabuleiros que lhe trazia Clytie ao primeiro andar - Clytie, que levava e trazia como Judith ordenava, que deve ter reparado, quer Judith lho tenha dito ou não, que era também de raça negra a mulher que ela servia, e que porém tanto servia a preta como abandonava a cozinha de tempos a tempos a procurar nas salas do rés-do-chão até encontrar o rapazinho estranho e solitário, sossegadamente sentado, numa simples cadeira de recto espaldar, na biblioteca ou na saleta obscura e sombria, com os seus quatro nomes e o seu dezasseis avos de sangue negro e a sua roupa cara e esotérica de Pequeno Lorde*, que fitava com um terror apavorado e fatalista a mulher soturna e da cor do café que vinha, descalça, até à porta e da porta o espreitava, que não lhe oferecia biscoitos mas a mais grosseira broa barrada com um melaço também grosseiro (isto subrepticíamente, não que a mãe ou a duefla objectassem, mas porque não havia em casa comida para merendas), e lho dava, lho metia à frente com selvajaria contida, e que foi achá-lo uma tarde brincando na estrada fora do portão com um negrinho mais ou menos do seu tamanho, e correu o negrinho às pragas com uma violência calma e infatigável e terrível e o mandou a ele, ao outro, voltar para casa numa voz onde a própria ausência de vitupérios ou raiva punha inflexões ainda mais frias e terríveis.
"Clytie, sim, que ficou impassível junto à carroça nesse último dia, assistindo ao cerimonial da segunda visita ao túmulo com o coxim de seda e o guarda-sol e o frasquinho de sais, quando mãe e filho e duefia partiram para Nova Orleães. E nunca veio a saber o teu avô se terá sido Clytie quem ficou de prevenção, quem foi dalguma forma sabendo notícias, à espera desse dia, desse momento futuro, dessa hora, em que o rapazinho ficaria órfão, e por isso foi buscá-lo; ou se terá sido Judith quem ficou de prevenção e à espera e mandou Clytie por ele nesse Inverno, nesse Dezembro de 187 1; - Clytie, que em toda a sua vida nunca de Sutpen's Hundred se tinha afastado mais que para Jefferson, e no entanto fez sozinha essa viagem a Nova Orleães e voltou com o menino, um rapaz agora com doze anos que parecia ter dez, num dos seus fatos à Pequeno Lorde que já lhe estava acanhado mas tendo por cima a enorme Japona de ganga, nova, que Clytie lhe tinha comprado (e o obrigara a vestir, se contra o frio, ou não, o teu avô também o ignorava) e tudo o mais que possuía atado num lenço de ramagens -- esta criança que não falava o inglês como não falava o francês a mulher que o tinha encontrado, que tanto o procurou, numa cidade francesa e o trouxe de lá, este menino com um rosto que não era velho mas também por onde não passara a idade, como se ele não tivera tido infância, não no sentido em que Miss Rosa Coldfield diz que a não teve, mas como se não tivera nascido criatura humana, antes se houvesse gerado sem intervenção de homem ou ânsia de mulher e ficasse órfão não de uma criatura humana (o teu avô dizia que ninguém teve curiosidade em saber o que fora feito da mãe, nem com tal se importaram: morrera ou fugira com algum amante ou casara: quem não iria passar de uma a outra metamorfose - desaparecimento ou adultério - carregando consigo o velho enxurro acumulado em anos vividos a que chamamos nós memória, o reconhecível Eu, mas se transformaria de uma fase a
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outra fase como a borboleta se transforma quando se esvazia o casulo, sem nada levar do que foi para o que é, sem deixar para trás uma parte de si, antes se elidindo, completa e intacta e passiva, no avatar seguinte como se elide a plena rosa ou a magnólia de um Junho luxuriante no Junho seguinte, não deixando nada, osso, matéria, o pó duma entrega, opulenta, sem alma, prístina, morta, algures à face da terra) mas surgira completo e sujeito a nenhum micróbio nesse labirinto de saciedades e perfumes em clausuras de seda como se fora um delicado e perverso espírito-símbolo, imortal pagem da antiga e imortal Lilith*, entrando no mundo real não com a idade de um segundo mas de doze anos, as finas vestes de pagem meio ocultas já sob aquela áspera ganga, informe, talhada por molde em ferro e vendida aos milhares - burlesco uniforme e insígnia do trágico burlesco dos filhos de Cam*; - um menino calado e franzino que nem sequer o inglês falava, tomado subitamente nos braços e salvo da enxurrada, fosse qual fosse, em que se desintegrara a única vida que ele conhecia, por uma criatura que ele tinha visto uma vez e aprendera a temer com pavor mas de quem não conseguia fugir, um prisioneiro desamparado e passivo do que seria algum incrível compósito de horror e confiança, pois embora não pudesse falar com ela sequer (eles fizeram, devem ter feito, uma semana de viagem no vapor, entre os fardos de algodão no convés da carga, comendo e dormindo com negros, sem que ele pudesse dizer sequer à companheira se tinha fome ou queria aliviar a natureza) e assim só lhe restava a suspeita, a conjectura, de onde o levaria ela, nada sabendo ao certo, salvo que tudo o que antes lhe fora familiar sumia-se do seu redor como fumo, e porém não opunha resistência, e voltava dócil, sossegadamente, para aquela casa em ruínas que uma vez vira, onde a mulher sorumbática e feroz que viera buscá-lo vivia com a mulher branca, a mulher calma, essa que não era feroz sequer, não era nada a não ser calma, que para ele nem sequer tinha nome ainda e era dalguma forma estreitamente aparentada com ele por ser senhora do único lugar na terra onde vira a mãe chorar; - regressou, cruzou essa porta que lhe era estranha, essa irrevogável demarcação, não que o levassem pela mão ou arrastassem, antes movido e guiado por essa presença austera e implacável, à casa lúgubre e estéril onde até as roupas de seda que lhe restavam, a fina camisa e as meias e os sapatos que ainda restavam para lembrar-lhe o que ele fora em tempos, sumiam, escapavam aos braços e ao tronco e às pernas como se fossem tecidas de quimeras ou de fumo. - Sim, dormindo na cama de encaixar ao lado da cama de Judith, ao lado da cama da mulher que o olhava e o tratava com essa brandura fria, inflexível, desapegada, que mais o tolhia do que a tutela constante e impiedosa e feroz da preta que, por humildade espúria, dorinia numa enxerga posta no chão, o menino entre elas deitado sem dormir, num hiato de passivo e infinito desespero, e conscieilte disto, da presença dessa mulher deitada na cama cujo olhar e gestos que tinha para ele, e cujo contacto das mãos capazes lhe parecia, no momento de tocarem o seu corpo, que perdiam todo o calor e se impregnavam duma implacável e fria antipatia, e da presença dessa mulher deitada na enxerga que ele aprendera já a ver como a veria um animal selvagem e delicado, sem garras nem pre130

sas, acochado na suajaula nesse desespero e nesse desânimo que seriam um símile da ferocidade (e o teu avô dizia, 'Sofrei que os pequeninos venham até Mim'*: e o que Ele queria dizer com isto? pois se Ele quis dizer que os pequeninos careciam que alguém sofresse para que eles se aproximassem Dele, que terra foi esta que Ele criou; ou se eles tinham de sofrer para aproximar-se Dele que céu é esse que Ele habita?) olhando a criatura humana que o alimenta, que o alimentava a ele, metia à sua frente a comida que ele mesmo discernia ser o bocado melhor que elas tinham, alimentos que ele compreendia que tinham sido preparados para ele com deliberado sacrifício, com essa curiosa mistura de selvajaria e piedade, ternura e ódio; que o vestia e o lavava, o metia em selhas de água a escaldar, ou então gelada, mas sem que ele arriscasse um protesto, e o esfregava com ásperos panos e sabão, esfregando às vezes com reprimida fúria, como se quisera lavar da sua pele o sedoso e leve matiz cor-de-azeitona, à semelhança de um garoto que se vê esfregando o muro muito depois de o epíteto, o insulto escrito a giz, ter sido obliterado; - ali na cama sem dormir, no escuro, entre elas, sentindo que também elas não dormiam, sentindo que elas pensavam nele, faziam planos e ocupavam a atroadora solidão do desespero dele e clamavam mais alto do que podiam as palavras: Não estás aqui em cima nesta cama comigo, onde não por culpa tua nem vontade tua devias estar, e não estás aqui no chão nesta enxerga comigo onde não por culpa tua nem vontade tua hás-de estar e estarás, não por culpa nossa ou vontade nossa, que não queremos o que não podemos, antes queremos e esperamos pelo que tem de ser.
"E nunca veio a saber também o teu avô qual das duas foi que lhe disse que ele era, tinha de ser, um negro, a ele, que não teria ouvido antes, nem reconhecia, a palavra nigro, que não tinha palavra sequer para o dizer na língua que falava quem nascera e se criara no vácuo de um alvéolo acolchoado a sedas, como suspenso dum cabo imerso a mil braças no mar, onde a pigmentação não tinha maior valor moral do que as paredes de seda e o perfume e as sombreiras rosadas nas velas, onde as abstracções que teria acaso observado - monogamia e fidelidade e nobreza e finura e afecto - estavam tão puramente enraizadas nas obrigações da carne como estão nela os processos digestivos. O teu avô não sabia se a ele foi permitido que deixasse finalmente a cama de encaixar ou se ele agiu por seu desejo e vontade; se, quando foi chegado o tempo de estar já calejado na solidão e na dor, ele se retirou do quarto de Judith ou foi mandado embora, passando a dorirúr na sala de entrada (onde Clytie tinha também posto a sua enxerga) não numa enxerga como ela mas numa cama de campanha, ainda elevada, e talvez não porque o determinasse Judith mas por humildade feroz inexorável e espúria da preta, e depois no sótão, sendo a cama de campanha transportada para lá, as poucas vestimentas (os farrapos das sedas e casimiras que o vestiam à chegada, a áspera ganga azul e os panos, que as duas mulheres compraram ou teceram para ele, e ele aceitava sem um obrigado, um comentário, aceitando o quarto nas águas-furtadas sem um obrigado, um comentário, sem pedir nem fazer, que elas soubessem, alterações no arranjo espartano desse quarto até se passarem dois anos e ele completar os catorze e uma delas,
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Clytie ou Judith, descobrir, debaixo do colchão, a estilha de um espelho quebrado: e quem sabe quantas horas de assombro e de sofrimento ele pas- sara, sem uma lágrima sequer, mirando-se, nos finos e acanhados farrapos que talvez nem recordasse ter um dia envergado, com serena e incrédula incompreensão) penduradas atrás duma cortina improvisada que era um pedaço de tapete velho pregado a tapar um canto. E Clytie a dormir em baixo na sala de entrada, barrando a escadaria para o sótão, prevenindo a sua fuga, ou a saída, inexorável como espanhola duefla de meninas, ensinando-o a rachar lenha e a tratar da horta e depois a lavrar conforme a sua força (ou antes a sua resistência, pois ele nunca deixaria de ser estreito de ossos e quase delicado) aumentava - o garoto de ossatura estreita e mãos feminis lutando com que anónimo avatar de indomável Mula, qual fosse o trágico e estéril bobo que tinha por companhia e complemento, e sujeito como ele à maldição do seu primeiro pai, a pouco e pouco tomando-lhe o jeito e os dois, unidos pelo selvagem símbolo masculino de madeira e aço, arrancando à terra feminina e complacente e fértil o milho que os alimentava, sob a vigilância de Clytie, nunca ele a perdia de vista, e das suas atenções sorumbáticas e ferozes, inquebrantáveis, ciosas, acudindo quando alguém, fosse branco ou preto, parava na estrada como à espera de que o garoto chegasse ao fim da leira e suspendesse por tempo suficiente a que lhe falassem, mandando ela seguir o garoto com uma singela e branda palavra ou até um gesto, cem vezes mais feroz do que o murmúrio calmo de vitupérios com que afastava o passante. Ele por isso (o teu avô) estava em crer que não foi nenhuma delas. Não foi Clytie, que o guardava como se ele fora uma donzela espanhola, que mesmo antes de suspeitar sequer que ele viria alguma vez a viver ali, interromperá o seu primeiro contacto com um nigro e o mandara voltar para casa; nem foi Judith, que podia em qualquer ocasião ter negado consentimento para que ele dormisse em cama de menino branco no seu quarto, que mesmo se não pudesse resignar-se a que ele dormisse no chão podia ter obrigado Clytie a levá-lo consigo para outra cama, que teria feito dele um monge, um celibatário, um euntico talvez não, porém, que podia não ter permitido que ele se fizesse passar por um estranho, mas que certamente não o teria levado a acamaradar com negros. O teu avô não sabia, ainda que soubesse mais do que a vila, a região, sabiam, e era que havia um rapazinho de fora a viver lá, que pelos vistos aparecera na casa da primeira vez com uns doze anos de idade, cuj a presença não era sequer inexplicável para a vila e para a comarca, pois todos julgavam agora ter descoberto por que Henry matara Bon e apenas se espantavam de onde e como Clytie e Judith teriam conseguido escondêlo por tanto tempo, julgando agora todos que fora uma viúva quem sepultara Bon, mesmo que não tivesse um papel a provar que o era, e só o teu avô cismava, incrédulo (e chocado), pois tendo ele embora nesse tempo os cem dólares e as ordens escritas de Judith para a quarta lápide no seu cofre não tinha associado ainda o garoto ao menino que vira dois anos antes quando a oitoruna ali viera chorar na sepultura, se o garoto não seria filho de Clytie, gerado pelo pai no ventre da própria filha - um garoto que era visto sempre junto à casa, com Clytie sempre por perto, depois um rapaz que aprendia a
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lavrar, e Clytie algures também por perto, e logo ficou bem conhecida a vigilância inquebrantável e soturna com que ela adivinhava e interrompia qualquer tentativa de chegar alguém à fala com ele, e só o teu avô associava enfim o garoto, já um rapaz, ao menino que ali estivera, uns três ou quatro anos antes, a visitar a campa; - o teu avô, a cujo escritório veio Judith uma tarde, cinco anos depois, e ele não se lembrava de quando a teria visto pela última vez em Jefferson - a mulher já de quarenta anos, com o mesmo vestido informe de chita e a mesma touca desbotada, que nem sequer acedeu a
sentar-se, que mau grado a máscara impenetrável que lhe servia de rosto, emanava uma terrível premência, insistindo que fossem andando a can-iinho do tribunal enquanto ela falasse, enquanto ela contasse, a caminho da sala repleta de gente onde estava o juiz de paz, a sala repleta de gente onde eles entraram e onde o teu avô o viu, o rapaz (que já era um homem) algemado a um oficial de polícia, o outro braço ao peito, e com a cabeça ligada, porque o tinham levado primeiro ao médico, o teu avô aos poucos ficando a saber o que se passara, ou tanto do que se passara quanto pôde saber visto que nem o Tribunal conseguira arrancar grande coisa das testemunhas, dos homens que tinham fugido e chamado o xerife, os homens (afora o que ele ferira tanto que não podia estar presente) com quem ele tinha lutado - um baile de negros numa cabana, a umas poucas milhas de Sutpen's Hundred, e ele estava lá, estava presente, e nunca veio a saber o teu avô quantas vezes ele teria já feito o mesmo, se lá fora para tomar parte na dança ou no jogo de dados que se desenrolava na cozinha, onde começara a desordem, a desordem que ele começou e não os negros, disseram as testemunhas, e sem ter ele uma razão, não havendo acusações de batota, nada; e ele sem o negar, calando-se, recusando-se a dizer a mínima palavra, sentado ali, sombrio e pálido e silencioso: e esta era nessa altura a verdade inteira, sumindo-se as provas num maciço turbulento de costas e de cabeças negras e de braços e de mãos negras empunhando toros de lenha e utensílios de cozinha e navalhas, o homem branco sendo o ponto focal da turba e exibindo uma faca, donde a desencantara não sei, desastradamente, com uma óbvia falta de jeito e de prática mas com uma seriedade mortal e uma força que a frágil compleição negava, uma força que era só vontade e desespero, intocada pelo castigo, os golpes e cutiladas que por sua vez recebia e nem aparentava sentir;
- sem motivo, sem razão; ninguém veio a saber exactamente o que tinha acontecido, que pragas e exclamações que pudessem ter indicado o que terá sido que o levou a agir assim e só o teu avô a querer pôr alguma ordem nas ideias que o atarantavam, até que percebeu a presença daquele protesto furioso, daquela incriminação às ordenações do céu, daquele desafio como luva atirada à cara do que é, num desespero indómito e furioso como poderia ser o do próprio demónio, como se ele, primeiro menino e depois rapaz, o tivera assimilado nas paredes entre as quais vivera o demónio, no ar em que esse caminhara e que respirara até ao momento em que o próprio destino que ele tinha desafiado por sua vez se virou contra ele; só o teu avô a pressentir isto, porque o juiz de paz e os outros ali presentes não o reconheceram, não reconheceram este homem franzino de ligaduras na cabeça e no braço, de rosto
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sombrio e impassível (e agora exangue) da cor da azeitona, que se recusava a responder a qualquer pergunta, a fazer qualquer declaração: e assim o juiz de paz (era Jim Hamblett) fazia já o requisitório quando entrava o teu avô, aproveitando ele o ensejo e a assembleia reunida ali para arrazoar, os olhos com esse brilho já da ausência de visão de quem gosta de se ouvir falando em público: 'Nos tempos de hoje, quando o nosso país luta por erguer-se de sob o tacão de ferro de um tirânico opressor, quando o futuro do Sul, se queremos que possam aqui viver as nossas mulheres e os nossos filhos, está dependente do trabalho que as nossas mãos realizarem, quando as ferramentas desse trabalho, as únicas ferramentas, são o orgulho e a integridade e a indulgência do homem preto e o orgulho e a integridade e a indulgência do homem branco; tu, sim, que tu, um homem branco, um homem - ' e o teu avô tentando chegar junto dele, interrompê-lo, tentando romper a multidão, dizendo, 'Jim. Jim. Jim!' e já vinha tarde, como se a própria voz de Hamblett o tivesse finalmente acordado, ou como se alguém tivesse estalado os dedos debaixo do seu nariz e o acordasse, olhando ele agora o prisioneiro mas teimando a voz em dizer ainda 'branco' mais uma vez enquanto esmorecia, como se a ordem de calar a voz tivesse feito um choque em curto-circuito, e todos naquela sala se voltaram para o prisioneiro ao grito de Hamblett, 'Quem és tu? De quefamílía, de que lugar és tu?'
"O teu avô tirou-o dali, fez arquivar o processo e pagou a multa e trouxe-o para o escritório e teve uma conversa com ele, enquanto Judith esperava na antessala. 'És o filho de Charles Bon', disse ele. 'Não sei', respondeu o outro, severo e sombrio. 'Não te lembras?' disse o teu avô. Ele não respondia. Então o teu avô disse que ele tinha de se ir embora, sun-úr, deu-lhe dinheiro para as despesas: 'Sejas tu quem fores, quando estiveres no meio de estranhos, de pessoas que não conheces, poderás ser quem tu quiseres. Eu trato aqui de tudo; vou falar com - com - Que nome lhe dás tu?' Tinha ido longe de mais o teu avô, mas agora não podia voltar atrás; ali ficou sentado a olhar o rosto sereno que não tinha mais expressão que o de Judith, nem mostrava esperança ou mágoa: sombrio e inescrutável rosto, de olhos baixados às mãos feminis e calejadas com as unhas partidas que seguravam o dinheiro, e o teu avô a pensar que ele não poderia dizer 'Miss Judith', pois esse tratamento reclamaria o sangue mais que nenhum outro. Depois pensou Eu nem sei se ele o quer esconder ou não. Por isso disse o teu avô, Miss Sutpen. 'Eu direi a Miss Sutpen, não para onde vais, claro está, porque nem eu próprio o saberei. Mas que te foste embora e que eu soube que te ias embora e que tudo há-de correr pelo melhor.'
"E ele partiu, e o teu avô montou a cavalo e foi à plantação dizer a Judith, e Clytie veio à porta e olhou-o nos olhos, com firmeza e sem dizer uma palavra, e foi chamar Judith, e o teu avô, que esperava na saleta obscurecida e amortalhada, percebeu que não seria preciso dizer coisa alguma a qualquer uma delas. E não foi. Judith veio então e ficou parada a olhar para ele e disse, 'Calculo que não me queira dizer.' -'Não se trata de querer, é que não posso', foi a resposta do teu avô. 'Mas não é que eu tenha prometido alguma coisa ao rapaz. Mas ele tem dinheiro; e tudo há-de -'e calou-se, a presença invi134

sível desse menino, desamparado, entre eles, esse que viera há oito anos com a j apona de ganga sobre o que restava das sedas e casimiras, que se fizera o garoto no uniforme - o chapéu roto e as calças de peitilho - da maldição antiga, que se fizera o rapaz com o vigor dum homem sendo contudo ainda aquele menino solitário no seu cilício de ganga azul e cameira, e o teu avô dizendo as palavras gastas e inúteis, as especiosas e ocas falácias a que nós chamamos consolo, pensando Antes ele estivesse morto, antes ele nunca tivesse nascido: e depois pensando que vã e oca recapitulação seria para ela se ele o tivesse dito, que ela sem dúvida já o dissera, já o pensara, mudando apenas o número e a pessoa. Regressou o teu avô à vila. E agora, desta vez, não o chamaram; soube-o ele como o soube a vila: pela gazeta provinciana do diz-que-disse cuja fonte são os negros, e ele, Charies Etienne Saint-Valery Bon, estava já de volta (não direi que regressava o pródigo; voltava) antes de saber o teu avô que ele tinha voltado, aparecera com mulher simiesca e preta retinta e uma certidão autêntica de casamento, que a mulher o trouxera, pois ele tinha sido maltratado e espancado corri tanta violência pouco tempo atrás que nem sequer podia suster-se na mula esparvoada e sem sela em que viajou, com a mulher caminhando ao lado para não o deixar cair; foi assim até à casa e parece que atirou a certidão de casamento à cara de Judith
com um quê desse invencível desespero com que tinha atacado os negros no jogo de dados. E ninguém veio a saber que história incrível haveria por trás daquela ausência de um ano à qual jamais ele aludiu, e a mulher, essa que, mesmo passado um ano e depois de ter nascido o filho, ainda vivia como um autómato aterrado, sem diferença do dia em que chegara, não a contou, possivelmente nem a saberia contar, mas parecia exsudá-la pouco a pouco e por um processo de terrível e incrédula excreção como o suor do medo ou da angústia: que ele a tinha encontrado, que a tinha arrancado ao seu lugarejo perdido e bidimensional (cujo nome, fosse de vila ou fosse de aldeia, ou jamais ela o soubera ou o choque do seu êxodo o expulsara para sempre da razão e da memória) donde a sua inteligência fora capaz de retirar abrigo e alimento, e ele casou com ela, pegou sem dúvida na sua mão para que ela fizesse uma laboriosa cruz no livro antes de saber ela o nome dele ou saber que ele não era um branco (e isto ninguém sabia, nem mesmo agora, se ela já o teria por certo, mesmo depois de nascer o filho em delapidada cabana de escravo que ele reconstruiu depois de arrendar de Judith a sua parcela de terra); e se seguira talvez um ano, composto por uma sucessão de períodos de completa imobilidade, qual película partida de cinema, que o homem de cor branca e seu marido passaria deitado a convalescer da última tareia que apanhasse, em quartos fedendo a bafio e a cheirum, em lugares - vilas, cidades - sem nome também para ela, interrompidos por outros períodos, intervalos, de furiosa e incompreensível jornada, e aparentemente sem motivo, de tanto caminho a fazer - uma voragem de caras e corpos através dos quais arremetia o homem, empurrado por que fúria fosse que não lhe dava descanso, arrastando-a consigo para o que fosse, ou do que fosse, que ela desconhecia, cada um a acabar, a terminar, como o anterior havia terminado, e assim a ser tudo quase um ritual - o homem aparentemente buscando as situa135

ções em que fizesse gala do corpo simiesco da companheira retinia e o atírasse à cara de todo e qualquer um que retaliasse: os estivadores e os serventes negros encontrados pelos vapores ou nas espeluncas de má nota pelas cidades, que o julgavam branco, e mais acreditavam ainda que ele o fosse quando ele o negava; os brancos que, ao dizer ele que era negro, julgavam que mentia para salvar a pele, ou pior: por mero embrutecimento da perversão ,sexual; em qualquer dos casos o resultado era o mesmo: o homem, com corpo e membros quase tão débeis e delicados como os de uma raparíga, assentando o primeiro golpe, por costume desarmado e sem olhar ao número dos que se opunham, com essa mesma fúria implacável e fisicamente insensível à dor e ao castigo, sem soltar uma praga, sem cansaço, apenas rindo.
"E então ele mostrou a certidão a Judith e levou logo a mulher, já muito pejada com esse filho, à cabana em ruínas que por sua escolha havia de consertar e ali a instalou, apontando-lhe talvez o pardieiro com um gesto apenas, e regressou à casa. E não soube ninguém o que terá havido nessa noite entre ele e Judidi, em que sala foi, nua de tapetes e mobilada com quais cadeiras que as duas não tiveram de serrar e de queimar na cozinha ou na sala ou talvez para ferver uma água de tempos a tempos numa doença - a mulher que ficara viúva antes de casar, o filho do homem que a enlutara e duma negra, concubina hereditária, e não se melindrava tanto com o seu sangue de negro quanto negava o de branco, e isto com um singular e ultrajante excesso ao qual estava inerente a sua própria irrevogabilidade, quase da maneira exacta como o teria feito o demónio. (Porque havia amor disse Nir Compson Havia aquela carta que ela trouxe e deu a guardar à tua avó Parecia-lhe (a Quentin) que a via, tão claramente como via a carta aberta sobre o compêndio aberto sobre a mesa diante de si, a carta branca, na mão do pai, na mão obscura cortando o linho da calça, naquele anoitecer de Setembro em que vagavam o cheiro do charuto, o cheiro das glicínias, os vaga-lumes, pensando Sim. Ouvi tanta coisa, contaram-me tanta coisa; tive de ouvir tanta coisa, por tempo infinito pensando Sim, é quase o Pai exactamente: aquela carta, e quem sabe as compensações morais que ela teria esperado no recesso daquela casa, daquelas quatro paredes, daquela noite, que embargos de velhas eférreas tradições, pois tinha visto quase tudo aquilo que aprendera a considerar como estável sumir-se como palhas varridas pela ventania; - ela sentada junto à luz numa cadeira de recto espaldar muito aprumada, com o mesmo vestido de chita mas agora sem a touca, teria a cabeça descoberta, o cabelo que em tempos,fora negro retinto agora conifios grisalhos e ele de pé, à suafrente. Não se teria sentado; talvez nem ela o tivesse convidado a sentar-se, e a voz calma e fria não soando mais alta que o sopro da chama do candeeiro: 'Eúganei-me. Confesso. Julguei que certas coisas ainda tivessem valorporque o tiveram dantes. Mas enganei-me. Nada importa senão o respirar o ar que se respira, saber isto e estar-se vivo. E a criança, a certidão, o papel. Que tem 9 O papel é coisa tua e dessa mulher que é irremediavelmente uma negra; é um papel, não se faz caso dele, ninguém terá a ousadia de to lembrar como a não teria de falar dou136

tra qualquer doidice dum homem nos anos estouvados dajuventude. E quanto ao que está para nascer deixa lá. O meu próprio pai não teve uma filha assim? e não passou piorpor isso. Nós atéficamos cá com a mulher e a criança, se tu quiseres; podemficar aqui e a CIytie há-de... 'observando o rapaz, fitando o seu rosto mas contudo sem um gesto, imóvel, muito aprumada, as
mãos entrelaçando-se quietas sobre o regaço, mal respirando, como se ele fosse um pássaro ou animal selvagem pronto a levantar voo à expansão e
contracção das suas narinas ou ao movimento do seu peito: 'Não. Eu. Eu hei-de. Educá-lo, tomar conta do... Não é preciso que tenha um nome; nem épreciso que o voltes a ver nem que te preocupes com ele. Pedimos ao general Compson que venda umas terras; ele há-de vender, e tu podes sair daqui. Para o Norte, para as cidades, onde nem sequer terá importância que - Mas ninguém se atreve. Ninguém se há-de atrever Eu direi que ésfilho do Henry, e quem poderá ou quem se atreverá a contradizer - ' e ele de pé, olhando para ela, ou sem olharpara ela, que ela não o saberia dizerpois ele estava cabisbaixo - o rosto magro, impassível, sereno, ela observando, sem ousar mexer-se, a voz murmurada, muito clara e cheia, porém mal o alcançando: 'Charles': e ele: 'Não, Miss Sutpen': e ela outra vez, ainda sem se mexer sem mover sequer um músculo, como se estivesse à beira de uma silva para onde aliciara o animal a entrar, o animal que ela sabia que a estaria obser- vando, embora não pudesse vê-lo, que não se encolhia propriamente, que não mostrava terror ou susto mas que era incorrigível na suafraqueza e na
sua teimosia como só o são os livres que não deixam marcas sequer na terra que, leve, os sustenta, e ela sem ousar estender a mão com a qual podia em realidade tocá-lo mas antesfalando apenas, uma voz desfalecida e meiga, toda ela a sedução, a celestial promessa, que é a armafeminina: 'Trata-me por Ta Judith, Charles') Sim, quem sabe se ele disse alguma coisa ou coisa nenhuma, quando voltou as costas, saiu, continuando ela sentada como estivera, sem se mexer, nem um gesto ela fazendo, olhando, que ainda o via, penetrando paredes e treva só para o ver caminhando pela vereda, por ervas ruins, entre as cabanas desertas e desmoronadas, em direcção àquela onde a mulher o esperava, pisando o carreiro todo coberto de espinhos e pedras em direcção a esse Getsemani que ele ordenara e criara para si, onde a si mesmo se tinha crucificado, e que abandonara por momentos a buscar a sua cruz e onde agora regressava.
"O teu avô, não. Ele só sabia o que a vila, a comarca, sabiam: que o rapazinho de fora que Clytie costumava vigiar e a quem ensinara a amanhar a terra, que estivera, já homem feito, na presença do juiz de paz naquele dia, de cabeça ligada e um braço ao peito e o outro em algemas, que sumira e depois regressara com mulher legítima que parecia animal de zoológico, tinha agora arrendado uma parte da plantação Sutpen, e saía-se bastante bem, com inalterado e solitário saber de lavrador, dentro dos limites da sua força, o corpo e os membros que ainda pareciam débeis para a empresa que tinha começado, que vivia como um eremita na cabana que reconstruíra e onde o filho tinha já nascido, que não acamaradava com brancos ou com pretos (Clytie não o vigiava agora; não via necessidade) e que não fora visto em
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Jefferson mais que três vezes nos quatro anos seguintes, e nessas três vezes parecia, contavam os negros que o temiam porventura ou temiam Clytie ou Judith, ou estar ou cego ou violentamente embriagado nas lojas do bairro negro da Rua da Estação, onde o teu avô ia buscá-lo (ou se estivesse muito bêbado, e se tomasse violento, ia a polícia municipal) ficando com ele para dar tempo à mulher, a gárgula preta, de atrelar outra vez a parelha à carroça e chegar, apática, salvo nos olhos e nas mãos, e carregá-lo para a carroça e levá-lo para casa. Por isso nem lhe deram pela falta na vila a princípio; foi o médico militar da comarca que disse ao teu avô que ele tinha a febre amarela e que Judith mandou que o instalassem na casa grande e era ela a sua enfermeira e agora Judith tinha a doença também, e o teu avô disse-lhe que participasse a Miss Coldfield e ele (o teu avô) meteu-se um dia a caminho e foi até lá. Não se apeou; ficou montado e chamou até Clytie aparecer a umajanela do primeiro andar dizendo que 'eles não precisavam dum nada'. Nessa mesma semana soube o teu avô que tivera Clytie razão, ou a tinha agora afinal, embora fosse Judith quem morreu primeiro."
"Ah", disse Quentin. - Sim pensou Tanta coisa, por tempo infinito recordando que ao olhar para a quinta sepultura tinha pensado que, fosse quem fosse que sepultara Judith, devia ter receado que os outros quatro mortos contraíssem dela a doença, pois a sepultura dela estava no lado oposto do cercado, tão distante das outras quanto o permitia a cerca, pensando O Pai desta vez não me vai dizer 'pensa' porque ele sabia quem tinha encomendado e comprado essa lápide antes de ler a inscrição dela, pensando, imaginando as cuidadosas ínstruções em letra de forma que Judith deve ter a muito custo (arrancando-se ao delírio talvez) escrito e dado a Clytie quando percebeu que ia morrer; e como Clytie deve ter vivido os doze anos seguintes criando o menino que nascera na velha cabana de escravos e poupado cada migalha para acabar de pagar essa pedra, por conta da qual tinha Judith pago ao seu avô os cem dólares há vinte e quatro anos, e para o qual pagamento, quando o avô quis recusar-se a recebê-lo, ela (Clytie) assentou a lata ferrugenta cheia de moedas de cinco e dez cêntimos e de notas roídas sobre a secretária e saiu do escritório sem dizer palavra. Ele teve de varrer as agulhas de cedro, que se agarravam também a esta lápide, para que a pudesse ler, observando estas letras que surgiam agora também de sob a sua mão, perguntando-se calado como podiam ter-se as agulhas agarrado ali, não se terem elas volvido em cinza no instante do contacto com a ameaça agreste e inclemente: Judith Coldfield Sutpen. Filha de Ellen Coldfield. Nascida em
3 de Outubro de 1841. Sofreu as Humilhações e os Trabalhos deste Mundo por 42 Anos, 4 Meses, 9 Dias e Descansou Enfim no dia 12 de Fevereiro de
1884. Detém-te, Mortal; Lembra-te que Tudo é Vaidade e Loucura e Teme pensando (Quentin) Sim. Não precisei de perguntar quem tinha inventado aquilo, quem tinha erguido aquela, pensando, Sim, ouvi tanta coisa, por tempo infinito. Não me foi preciso escutar então mas tive de ouvir e agora estou a ouvir tudo outra vez porque ele parece o Pai a falar.- Vidasformosas - têm as mulheres. A cada vez que respiram elas extraem o sustento dalgumaformosa atenuação da irrealidade na qual as sombras e asformas dos
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factos - nascimento e luto, dores e aturdimento e desespero - se movem com o insubstancial decoro das charadas enifestas primaveris, perfeitas no gesto
e sem significado nem qualquer capacidade para fazer o mal. Miss Rosa a encomendou. Exigiu a lápide ao juiz Benbow. Ele tinha sido o executor do legado de seu pai, não que fosse por qualquer testamento o escolhido, pois Mr Coldfield não deixou testamento ou legado à excepção da casa e das saqueadas paredes da loja. Ele a si mesmo se nomeou, a si mesmo se elegeu, provavelmente nalgum conciave de vizinhos e cidadãos que se juntaram para discutir assuntos que somente a ela diziam respeito e o quefazer com ela quando se deram conta que nada neste mundo, quanto menos um homem ou uma comissão de homens, conseguiria persuadi-la a voltar para casa da sobrinha e do cunhado - os mesmos cidadãos e vizinhos que deixavam cestos de comida à noite na sua porta, a louça (os pratos da comida, os guardanapos que a cobriam) que ela nunca lavava, antes devolvia suja ao cesto vazio e voltava a pôr o cesto no mesmo degrau em que o encontrara, como se quisesse levar ao extremo a ilusão de que o cesto nunca existira ou pelo menos de que ela nunca lhe tocara, nunca o esvaziara, não saíra a buscar o cesto com esse gesto que nada tinha defurtivo, nem era um desafio sequer, ela que sem dúvida tomava opaladar da comida, criticava a qualidade ou o tempero, a mastigava e engolia e a sentia digerindo, "ias ainda assim se agarrava à ilusão, à calma e incorrigível insistência de não existir aquilo que todas as incontroversas provas lhe mostram que existe, como épróprio das mulheres; - essa mesma cegueira de quem se recusou a admitir que a liquidação da loja lhe deixara alguma coisa, que alguma vez lhe fora deixada alguma coisa a não ser a miséria mais completa, que não queria aceitar o dinheiro real da venda da loja das mãos do juiz Benbow mas ia aceitando o valor do dinheiro (e o que, passados alguns anos, lhe era já superior) de variadas maneiras: servia-se dos garotos negros, se por acaso passavam na rua, fazendo-osparar e ordenando-lhes que gradassem o quintal e eles sem dúvida tão conscientes como a vila de que não haveria da sua boca menção duma paga, que nem sequer a voltariam a ver, embora soubessem que ela os vigiava da janela, por trás das cortinas, mas que o i .ui.z Benbow lhes pagaria - entrava nas lojas e ordenava que lhe passassem as coisas das prateleiras e das vitrinas exactamente como encomendara a lápide, que valia duzentos dólares, ao juiz Benbow, e saía da loja com elas quem, com a mesma aberrante astúcia que não lhe permitia lavar os pratos * os guardanapos dos cestos, se recusava a contar o quefosse da sua vida * Benbow, pois ela percebia com certeza que as somas que dele recebia já teriam há muitos anos excedido (ele, Benbow, tinha no seu escritório uma pasta, uma gorda pasta, com Legado de Goodhue Coldfield. Confidencial escrito na capa a tinta indelével. Depois da morte do juiz, o filho, Perey, abriu-a. Estava cheia de boletins das corridas e talões cancelados de apostas em cavalos cujos ossos ninguémjá saberia onde estivessem, que ganharam e perderam corridas na pista de Mêrfis há quarenta anos atrás, e um livro-mestre, uma cuidadosa catalogação, na caligrafia do juiz, cada verbete indicando a data e o nome do cavalo e a aposta e se fora perdida ou
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ganha; e um outro onde se via como ao longo de quarenta anos ele pusera cada ganho e uma quantia igual a cada perda nessa conta mítica) o valor que a loja rendera
Mas tu não escutavas, porque já sabias tudo, já conhecias, já o tinhas assimilado sem o concurso dafala por teres nascido com isto, teres convivido com isto, como é sina sempre das crianças: deforma que tudo o que o teu pai dissesse e te contasse nãofazia mais que percutir palavra porpalavra, as cordas ressonantes da memória, quejá aqui estiveras, quejá tinhas visto as sepulturas, mais de uma vez, nas expedições vadias da adolescência cujofito era mais que a mera perseguição da caça, comojá tinhas visto a casa velha também, e aprenderas a adivinhar como ela seria antes mesmo de vê-la, e cresceste o bastante para lá ir um dia com quatro ou cinco rapazes do teu tamanho e da tua idade que uns aos outros se desafiavam a evocar ofantasma, porque teria de ser mal-assombrada aquela casa, só podia ser mal-assombrada aquela casa, embora ali estivesse, mansa e deserta, há vinte e seis anos sem que alguém tivesse encontrado ou dissesse que tinha visto algumfântasma até ao dia em que unsforasteiros, viajando numa carroça desde o Arransas, quiseram ali pernoitar e qualquer coisa aconteceu antes que eles tivessem tempo de sequer descarregar a carroça, qualquer coisa que eles não contaram ou não puderem ou não quiseram contar mas que osfez voltar à carroça efez as mulas descer a alameda a galope, tudo isto em menos de dez minutos, e só pararem em Jefferson - a casa que apodrecia com o seu pórtico abaulando e as paredes lascadas, as tabuinhas bambas e as janelas cegas de adufas cerradas, posta no meio do senhorio que tinha revertido para o Estado efora comprado e vendido e recomprado e revendido uma e outra e outra vez. Não, tu não escutavas; não carecias de escutar; então os cães mexeram-se, levantaram-se; ergueste os olhos e era bem certo, exactamente como o teu pai dissera, Luster tinha parado a mula e os dois cavalos, à chuva, a umas cinquenta jardas dos cedros, ele montado e com os joelhos erguidos debaixo da saca de estopa, envolto no vapor nebuloso do bafo dos animais como se estivesse olhando para ti e
para o teu pai dalgum purgatório lúgubre onde não existe a dor 'Vem para aqui e sai da chuva, Luster', disse o teu pai. V coronel velho não tefaz mal que eu não deixo.' - 'Vem vós e vamo sembora', disse Luster 'A caça por hoje tá cabada.'- 'Ainda nos encharcamos', disse o teu pai. 'Vamosfazer assim: montamos a cavalo e vamos até à casa velha. Láficamos bem, que não chove.'Mas Luster não arredou, quieto, à chuva, e inventando razões para não se aproximar da casa - que o telhado metia água ou que todos três ficariam resfriados sem um lume ou ficariam tão encharcados antes de lá chegar que o melhor seria tomarem o caminho de casa: e o teu pai ria-se de Luster mas tu não rias tanto porque, mesmo não sendo tu um preto como era Luster não eras mais velho do que ele, e tu e Lusterjá lá tinham estado naquele dia em que os cinco, os cinco rapazes todos da mesma idade, começaram a desafiar-se a entrar na casa muito antes de lá chegarem, aproximando-se pelas traseiras, percorrendo a antiga rua da senzala - uma selva de açumagres e dióspiros e madressilvas e roseiras bravas, e um amontoado
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podre do que antes foram as paredes de toras e as chaminés de pedra e as coberturas de madeira por entre o mato rasteiro, excepto uma, aquela; tu aproximavas-te; não viste logo a velha porque estavas observando o rapaz, Jim Bond, o abrutalhado, de boca aberta, o rapaz da cor do bistre, alguns anos mais velho e bem maior do que tu, de camisa descolorida e remendada mas muito limpa, e acanhadas calças de peitilho, que trabalhava na horta junto à cabana: por isso nem sequer deste por ela até que todos vocês estremeceram em sobressalto a um tempo e voltando-se a viram que vos observava duma cadeira empinada contra a parede da cabana - a mulherzinha mirrada, pouco maior que um macaco, e que poderia ter qualquer idade, mesmo dez mil anos, de saias volumosas e descoloridas e um pano imaculado na cabeça, os pés nus e cor de café rodeando a travessa da cadeira comofazem os macacos, fumando um cachimbo de barro e observando com olhos que eram como dois botões de sapato enterrados nas miríades rugas do rosto cor de café, que apenas olhava e foi dizendo, sem tirar sequer o cachimbo da boca, e numa voz que era quase de mulher branca: 'Que queres vós daqui?' e momentos depois um de vocês dizia 'Nada' e depois todos vocês correram, sem saber qual tinha começado a correr primeiro ou porquê, pois medo não tinham, camposfora, os velhos campos maninhos, escavados pela chuva e sufocados de roseiras bravas, até chegarem à cerca velha, apodrecida cerca de ripas cruzadas, e a passarem, lançando-se todos sobre a cerca, e depois a terra, os campos, o céu e as árvores e as matas, já pareciam outros, já estava tudo em paz
"Sim", disse Quentin. "E era desse que Luster falava agora", disse Shreve. "E o teu pai a observar-te outra vez, porque tu nunca tinhas ouvido tal nome, nem sequer te ocorrera que ele tivesse nome nesse dia em que o viste na horta, e tu disseste, 'Quem? Jim quê?' e Luster disse, 'É esse. Um nígaro claro que vive cô essa velha' e o teu pai a observar-te ainda, e tu disseste, 'Diz as letras' e Luster disse, É uma palávera dos adevogado. É quilo que acontece à gente se vem a Justiça apanhar a gente. Eu só sei as lêtera das palávera de ler.' E que era ele, e tinha agora um nome, Bond*, que a ele não fazia diferença, que tinha herdado da mãe aquilo que ele era e só o que nunca poderia ter sido herdara do pai,e se o teu pai lhe tivesse perguntado se ele era o filho de Charles Bon não só o não saberia dizer, é que não lhe faria diferença: e se tu lhe tivesses dito que ele era, sim, dizê-lo perturbaria apenas um momento e depois se varreria do que tu havias (não ele) de chamar o seu espírito muito antes de provocar uma qualquer reacção, fosse de orgulho ou prazer, de cólera ou sofrimento?"
"Sim", disse Quentin. "E que ele viveu nessa cabana por trás da casa mal-assombrada vinte e seis anos, ele e a velha que devia ter mais de setenta anos já mas não tinha um fio de cabelo branco por baixo do pano, a velha cuja carne não ficara balofa, antes era como se ela tivesse envelhecido, só até um certo ponto, como envelhece toda a gente e depois já não envelhecesse mais, e em vez de se tornar cinzenta e n-timosa ela tivesse começado a iiiinguar, de tal forma
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que a pele do rosto e das mãos se fendeu em milhares de minúsculas teias de rugas e o corpo se foi tomando a cada dia que passava mais pequeno como coisa encolhida em fornalha, como os boméus fazem às cabeças capturadas
- que bem podia ter sido ela o fantasma, se um fantasma fosse preciso, se houvesse alguém com tão pouco mais que fazer que andasse a rondar a casa, que não o havia; se pudesse haver alguma coisa nessa casa que a protegesse de salteadores, que não a havia; se algum deles ainda sobrevivesse e fosse procurar nela refúgio e esconderijo, que não os havia. E no entanto essa mulherzinha, a Tia Rosa, disse-te que havia alguém escondido na casa e tu disseste que seria Clytie ou Jim Bond e ela disse Não e tu disseste que teria de ser porque o demónio tinha morrido e Judith tinha morrido e Bon tinha morrido e Henry tinha levado um tal fim que nem sepultura deixara: e ela disse Não e portanto foste lá, fizeste as doze milhas à noite na charrete e encontraste Clytie e Jim Bond e tu disseste Está a ver? e ela (a Tia Rosa) teimou que Não e tu entraste: e sempre havia?"
"Havia." "Espera aí", disse Shreve. "Pelo amor de Deus espera aí.")
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VII
Não havia já neve no seu braço, o de Sbreve, nem manga nenhuma havia no seu braço agora: somente a carnação mimosa e cupidínea do antebraço e da mão, voltando à luz do candeeiro, no retirar um cachimbo da lata do café, vazia, onde os guardava, no enchê-lo e acender. Deve estar zero então lá fora, pensou Quentin; não tarda, vai ele subir o vidro e pôr-se a fazer ginástica respiratória à janela, cerrando os punhos e de tronco nu, à abertura rósea e quente sobre a quadra gélida. Mas tal não fizera ele ainda, e já sobre o momento, e o pensá-lo, era passada uma hora e o cachimbo repousava de borco, fumado e frio, na mesa, um borrifo ligeiro de cinza ao redor, diante de Shreve, que de braços cruzados, rosados, luzindo nos pêlos claros, vigiava Quentin atrás das opacas e acesas luas dos seus óculos. "Então o que ele queria era um neto", disse. "Era o que ele queria, mais nada. Credo, que bela terra é o Sul, sim senhor. É melhor que o teatro, sim senhor. É melhor que o Ben Hur, sim senhor. Não admira que volta e meia haja quem tenha de sair de lá; sim senhor."
Quentin não respondeu. Sentava-se muito quieto, voltado para a mesa, as mãos pousadas ladeando o compêndio aberto sobre o qual repousava a carta: o rectângulo de papel dobrado ao meio e agora aberto, ou dele três quartos agora abertos, cujo volume se tinha por si mesmo soerguido à alavanca do vinco feito, num paradoxo imponderável de levitação, e posto em ângulo tal que não lhe seria possível ler, decifrar, o que ali estava escrito ainda que não houvesse mais aquela distorção. Parecia porém que era para a carta que olhava, ou tanto quanto o pudesse afirmar Shreve, que estava, assim cabisbaixo, sorumbático e sombrio quase. "Ele disse ao Avô", disse ele. "Daquela vez que o arquitecto conseguiu escapar-se, ou fez por isso, meter-se pela chá do rio para voltar a Nova Orleães ou lá onde fosse, e ele - "
("O demónio, hem?" disse Shreve. Quentin não respondeu, não se interrompeu, a voz singular, sem alterar-se, um tanto sonhadora, mas ainda com as inflexões dum alheamento sombrio, dum latente ultraje: por isso mesmo, ainda Slireve também, de óculos postos apenas e nada mais (da cintura para baixo escondia-o a mesa; quem ali entrasse julgá-lo-la completamente
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nu), qual efígie barroca de colorida massa de bolo criada por quem tivesse um vago pendor de pesadelo pelo que é perverso, o vigiava com uma curiosidade atenta e solícita.) " - mandou recado ao Avô e a mais alguns, e soltou cães e cafres e foi no encalço do arquitecto e obrigou-o a tomar refúgio numa furna à beira do rio, dois dias mais tarde. Isto passou-se no segundo Verão, quando já se tinha acabado o tijolo e estavam postos os alicerces e a maioria dos madeiros grandes estava cortada e aplainada, e
um dia o arquitecto não aguentou mais aquela vida, ou teve medo de morrer à fome, ou que aos cafres (e talvez ao coronel Sutpen também) lhes acabassem os comestíveis e o comessem a ele, ou talvez fossem as saudades da terTa, ou talvez ele tivesse mesmo de se ir embora - " ("Talvez ele tivesse mulher", disse Shreve. "Ou talvez quisesse mulher, Disseste que o demónio e os nigros só tinham duas." Também a isto Quentin não respondeu; dar-se-la talvez que o não tivesse ouvido, que falava nessa voz singular, calma, reprimida, como se falasse para a mesa que lhe estava em frente ou para o livro sobre a mesa ou para a carta sobre o livro ou para as suas mãos pousadas ladeando o livro.) " - e então foi-se embora. Como se levasse ele sumiço em plena luz do dia, e à vista de vinte e um homens. Ou talvez tivesse aproveitado quando Sutpen estava de costas, e os nigros viram que ele se ia embora e não pensaram que fosse preciso avisar; que sendo cafres nem sabiam provavelmente o que andava Sutpen a fazer, e ainda por cima nu e metido na lama como eles o dia inteiro. Eu calculo que eles até nem nunca chegaram a saber por que estava ali o arquitecto, o que devia ele fazer, ou o que já teria feito ou que ofício era o seu ou quem ele era, por isso pensaram talvez que eram ordens de Sutpen, que Sutperi lhe teria dito que se fosse deitar a afogar, que morresse para aí, ou que talvez o tivesse mandado embora sem mais. E ele foi-se embora, ala que se faz tarde, e em plena luz do dia, com o seu colete bordado e o seu laço à Pequeno Lorde e um chapéu que só um Baptista no congresso, e provavelmente levava o chapéu na mão, e correu pântano fora, e os nigros ficaram a vê-lo até que desapareceu e depois voltaram ao trabalho e Sutperi não viu nada, nem deu pela falta dele sequer, só quando se fez noite, à hora da ceia provavelmente, e os nigros lhe contaram e ele deu feriado para o dia seguinte porque ia ver se lhe emprestavam cães. Não que ele tivesse precisão de cães, que tinha os cafres para lhe seguir o rasto, mas porventura pensou que os outros, os que ele ia chamar, não estariam habituados a rastear corri nigros e contavam que houvesse cães. E o Avô (que também era novo nesse tempo) levou champanhe, e dos outros alguns levaram whiskey, e foram-se juntando lá todos, pouco depois do sol-pôr, lá na casa dele, uma casa que nem paredes tinha ainda, que ainda não era mais nada senão umas fieiras de tijolo afundadas no chão, mas não tinha importância, assim como assim eles não iam lá para se deitar, disse o Avô, e por ali ficaram, à volta da fogueira, com o champanhe e o whiskey e um quarto do último veado que ele caçara, e por volta da meia-noite chegou o homem dos cães. Depois rompeu o dia, nias os cães tiveram algum trabalho a princípio porque houve uns cafres que se puseram a correr aí coisa duma milha fora do
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rasto só por graça. Mas enfim lá deram com o rasto, os cães e os nigros na chá e a maioria dos homens a cavalo pela borda, onde o piso era melhor. Mas o Avô e o coronel Sutpen foram com os cães e os nigros, porque Sutpen tinha medo que os nigros agarrassem o arquitecto antes de ele os alcançar. Ele e o Avô ainda fizeram muito caminho a pé, mandaram um nigro levar de roda os cavalos nos sítios piores até poderem montar de novo. O Avô disse que estava bom tempo e o rasto até se via bastante bem, mas melhor fora se o arquitecto tivesse esperado por Outubro ou Novembro. E foi então que ele disse umas certas coisas ao Avô.
"O seu mal era a inocência. De repente ele percebeu, não o que ele queria fazer, mas o que tinha de fazer, o que tinha por força de fazer, querendo ou não, porque se o não fizesse nunca mais teria sossego para o resto da vida, nunca mais havia de lhe dar sossego aquilo que os hoffiens e as mulheres, que tinham morrido para lhe dar a vida a ele, deixaram dentro dele para que o transmitisse, que os mortos não dormiam a ver se ele ia fazer tudo como devia ser, dar o rumo que devia às coisas, para um dia ser capaz de olhar de frente não só os mortos de há muitos anos como também os vivos que viriam depois, quando ele já fosse do número dos mortos. E que no momento exacto em que ele descortinou o que era, descobriu que era isso o que menos estaria preparado para fazer, porque, mais do que ele ignorar que ainda havia de fazer isto, ele ignorava até que existisse o desejo, a precisão de o fazer, até estar quase com catorze anos. Porque ele tinha nascido na Vírgínia Ocidental, nas montanhas, onde - "
("Na Virgínia Ocidental não foi", disse Shreve. " - O quê?" disse Quentin. "Na Vírgínia Ocidental não foi", disse Shreve. "Porque se ele tinha vinte e cinco anos no Mississipi em 1833, nasceu em 1808. E em 1808 não havia nenhuma Virgínia Ocidental porque - " "Pronto", disse Quentin. " - a Virgínia Ocidental só foi admitida - " "Pronto pronto", disse Quentíri. " - como Estado da União em - " "Pronto pronto pronto", disse Quentin.) " - onde as poucas pessoas que ele conhecesse, habitavam as cabanas de toros enxameando crianças tal e qual a cabana onde nasceu
- homens e rapazes que ou estavam a caçar ou estendidos pelo chão ao borralho enquanto as mulheres e as raparigas mais velhas iam e vinham, passo aqui passo acolá, pelo meio deles, para chegar ao lume e cozinhar, onde os únicos homens de cor eram os índios que só mereciam olhares sobranceiros e pela mira duma carabina, onde ele nem sequer tinha ouvido falar dalgum sítio, nem sequer imaginara algum sítio, alguma terra, que estivesse claramente dividida toda ela e na posse real dos homens que nada mais faziani além de cavalgar campos fora em belos cavalos, ou sentar-se muito bem vestidos à varanda, nas casas grandes, enquanto os outros estavam a trabalhar para eles; que ele então nem sequer imaginava que houvesse tal maneira de viver, ou o desejo de viver assim, ou que houvesse tantas coisas que desejar, e havia, ou que os homens que as possuíam, mais do que arrogar-se olhares sobranceiros para os outros que não possuíam nada, eram até apoiados na sobranceria, e não só por aqueles que possuíam coisas também, mas até mesmo pelos homens que eram assim despreza145

dos e que de seu não tinham nada, nem a esperança de vir a ter algum dia alguma coisa. Porque lá onde ele vivia a terra era pertença de todos e não pertencia a ninguém, e por isso o homem que se desse ao trabalho e à canseira de levantar uma cerca em torno de um pedaço de terra e dizer 'Isto aqui é meu' era doido; e quanto às coisas, ninguém tinha mais do que o vizinho porque toda a gente possuía apenas aquilo que tivesse a força ou a energia bastante para tomar para si e fazer seu, e só um doido se daria ao trabalho de tomar para si, ou até querer, mais do que pudesse pôr no prato, ou mais do que pudesse trocar por pólvora e whiskey. Por isso ele nem sequer sabia que houvesse uma terra bem dividida, e isto de uma forma assente e clara, onde vivia um povo bem dividido, e isto de uma forma assente e clara, por motivo da cor que porventura a sua pele tivesse e do que porventura possuísse, e onde certos homens, poucos, não só tinham poder de vida e morte e venda e barganha sobre os outros, é que tinham homens feitos e verdadeiros que lhes cumprissem os intermináveis e repetitivos serviços pessoais, como eram deitar até o whiskey do jarro e pôr-lhes o copo na mão ou tirar-lhes as botas quando eles fossem para a cama, o que os homens todos sempre tiveram de fazer sozinhos desde o princípio dos tempos, e teriam de fazer até à morte, e que homem nenhum faz por gosto nem fará mas ao que homem nenhum, que ele conhecesse, alguma vez pensou em furtar-se, como não pensariaem furtar-se ao esforço de mastigar e engolir e respirar. Em pequeno, ele não ouviu as lendas vagas, incertas, dos esplendores de Tidewater, que penetravam até mesmo aquelas montanhas, porque nessa altura ele nem percebia o que as pessoas diziam, e quando se fez rapaz não as ouvia porque nada tinha à vista que fosse termo de comparação ou bitola para tais lendas, e assim desse às palavras sentido e vida, nem tinha condição de alguma vez perceber (nem ele supunha com certeza, nem pensaria, que alguma vez percebesse), e porque já lhe bastava ocupar-se das coisas que ocupam os rapazes; e quando cresceu, e a sua curiosidade exumou as lendas que ele não sabia que tinha ouvido, e ele se pôs a cogitar nelas, estava interessado em ver tais lugares e gostaria de os ver nem que fosse uma vez, mas não tinha inveja nem mágoa, que para ele, dos homens, havia uns que são desova dum lugar e outros que são doutro, uns que nasceram ricos (ou tiveram sorte, porventura ele dizia assim: ou talvez dissesse que um homem de sorte é rico) e outros que não, e (foi o que ele disse ao Avô) os homens pouco podiam nessa escolha, e na mágoa muito menos, porque (ele também disse isto ao Avô) nem sequer uma vez lhe ocorreu que alguém pudesse tomar um mero acaso como autoridade ou justificativa para olhar com sobranceria os outros, quaisquer que os outros fossem. Por isso ele nem por ouvir dizer conhecia um tal mundo até que foi lá parar.
"Foi assim mesmo. Foram todos lá parar, a família inteira, voltaram à costa de onde o primeiro Sutpen tinha vindo (quando o navio do Old Bailey chegou a Jamestown, provavelmente), foram todos por aí abaixo aos trambolhões e voltaram a Tidewater pura e simplesmente pela força da altitude, elevação, lei da gravidade, como se as poucas raízes que a família porven146

tura tivesse (ele disse por alto ao Avô que a mãe tinha morrido nessa altura
e o pai dele dizia que ela era uma grande mulher, repisadora, e que havia de lhe sentir a falta; e disse também que foi ela que o puxou, que o levou, ao pai, para essas lonjuras do Oeste) na montanha, se tivessem desgarrado e agora toda a minha gente, começando no pai e passando pelas filhas crescidas até à criancinha de colo, voltava, descia montanha abaixo a resvalar, a patinar, numa coerência acelerada e descosida, inerte, como se eles fossem uma inútil porção de maravalhas na cheia dalgum rio seguindo avante por razão desse moto próprio e perverso que às vezes move as coisas ina- nimadas, mesmo ao revés da correnteza do rio, atravessando o planalto da Virgínia e chegando às indolentes planuras na foz do Rio James. Ele não sabia por que seguiam, ou não se lembrava do motivo se alguma vez o conheceu - se era optimismo, esperança no coração do pai, ou saudades, porque ele não sabia ao certo de onde era o pai, se a terra a que voltavam seria a sua terra natal, ou sequer se o pai sabia que era e a recordava, se a queria recordar e rever; - se alguém, se algum viajante, lhe contou duma terra farta ou duma vida remansosa, dum ensejo de escapar aos sacrificos de pôr comida no prato e aquecer o corpo num trilho da montanha, ou se
alguém, que o pai talvez tivesse conhecido ou que o tivesse conhecido a ele e se lembrasse dele, por acaso viesse a pensar nele, ou se algum parente que o quisesse esquecer mas não pudesse, o mandou vir, e ele veio, não pelo serviço prometido mas pelo remanso, com fé talvez que o parentesco de sangue o livrasse do trabalho, se era questão de parentesco, ou fé na sua própria inércia e nos deuses fossem quais fossem que o tinham protegido até ali, se não era. Mas ele - " ("O demónio", disse Shreve) " - não sabia, ou não se lembrava, se alguma vez o tinha ouvido, se alguma vez lho tinham contado, se havia um motivo ou não. O mais que se lembrava era de certa manhã o pai se levantar e dizer às raparigas mais velhas que ensacassem a
comida que houvesse, e alguém embrulhou o bebé e alguém atirou água para o lume e meteram todos pés ao caminho e desceram a montanha até onde começava a estrada. Tinham agora uma carreta camba e uma junta de bois esparvoados. Ele disse ao Avô que não se lembrava ao certo de onde foi que o pai a arranjou, nem quando foi, ou como, e ele (ele tinha dez anos; os dois rapazes mais velhos tinham-se ido embora, já faziam a sua vida, e desde então nunca mais deram notícias) ia guiando os bois que, tendo arranjado a carreta, o pai desde logo, ou quase, iniciou a prática de levar a cabo essa parte da transiação que respeita ao movimento em cima da carreta, de papo para o ar, alheado, entre os colchões e as lanternas e os baldes e as trouxas de roupa e de filhos, num ressonar alcoólico. Foi o que ele disse. Não se lembrava se durou a viagem semanas ou meses ou um ano (salvo que uma das raparigas mais velhas, que saíra da cabana solteira, ainda estava solteira quando pararam enfim, embora fosse mãe antes de ficar para trás o azul da última serrania), se foi esse Inverno e depois a Primavera e depois o Verão surpreendê-los e a passar por eles na estrada, ou se foram eles que surpreenderam e passaram em sucessão lenta as estações à medida que desciam, ou se era da própria descida, e eles não progrediam paralelos ao
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tempo mas iam descendo na perpendicular, atravessando as temperaturas e os climas - um (não se pode chamar um período pois que ele se lembrasse, ou dissesse ao Avô que se lembrava, não teve um princípio definido nem um fim definido. Talvez atenuação seja melhor) - uma atenuação entre um quê de furiosa apatia, de paciente imobilidade, eles sentados na carreta pelas portas de vendas e tabernas à espera que o pai caísse num torpor bêbado, e um quê de locomoção sonhadora e sem destino depois que tiravam o pai do cabanal ou do barraco ou do celeiro ou do valado que fosse e lhe carregavam o fardo para a carreta, e durante a qual não lhe parecia a ele que avançavam sequer, mas se mantinham suspensos e era a terra que se alterava, aplanando-se e alargando-se desde a lapa montanhesa onde nasceram todos, que se erguia, que subia em seu redor como sobe a maré, a maré onde as caras que ele não conhecia, caras severas e rudes que eles viam pelas portas das vendas quando o pai lá entrava, ou quando ele saía de lá em braços ou era posto fora (e uma vez por um nigralhão enorme, o primeiro negro, o primeiro escravo, que eles viam, que saiu com o velhote ao ombro como saca de farinha e a boca - a do nigro - estrondando gargalhadas e com dentes como as pedras dum cemitério) vinham à tona e sumiam dando vez a outras; a terra, o mundo, erguendo-se em redor e passando em correnteza, como se a carTeta andasse à roda na azenha (e chegava a Primavera, e o Verão chegava, e eles sempre seguindo, rumo a um lugar que nunca tinham visto e do qual não faziam ideia de como fosse, quanto mais fazerem tenções de lá ir; e vindos de um lugar, um pequeno ponto perdido numa encosta da serra, de volta ao qual provavelmente nenhum deles - à excepção talvez do pai, que no seu habitual torpor fez uma etapa da viagem acompanhado por elefantes e cobras cor de framboesa que julgava perseguir - seria capaz de tomar caminho) trazendo e logo tirando ao espanto deles, estático, provinciano e sério, os lugares e as caras nunca vistas, as caras como os lugares - as vendas e as tabernas que já se faziam casais, os casais que já se faziam aldeias, as aldeias vilas, e a terra já se aplanava e tinha bons caminhos e campos e nigros a trabalhar nos campos com homens brancos montando belos cavalos a vigiá-los, e mais outros belos cavalos e mais homens bem vestidos, com uma expressão na cara já diferente da expressão dos montanheses pelas tabernas onde ao velho nem o deixavam sequer entrar pela porta da frente, e donde os modos montanheses o expulsavam antes que ele tivesse tempo de beber até já não ver mais nada (por isso mesmo eles já começavam a fazer médias bastante razoáveis) e onde já não havia gargalhadas e apupos quando o punham fora, mesmo se as gargalhadas e os apupos foram agrestes e sem finura.
"Foi assim que ele chegou lá. Tinha aprendido a diferença que há não só entre brancos e pretos, mas agora ele aprendia que há uma diferença entre brancos e brancos, uma diferença que não se media pela força de levantar uma bigorna ou arrancar olhos ou pelo quanto whiskey se bebe, conseguindo o sujeito levantar-se depois e sair pelo seu pé. Ou melhor, começava a discernir, mas ainda não se dava conta do que era. Ainda pensava que tudo era questão apenas do lugar de onde um sujeito é desova e de como é; se na sorte
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ou na desgraça; e que os homens que tiveram sorte seriam mais pausados e
avessos do que os infelizes a tirar mérito ou vantagem da sorte, a sentir que tivessem direito a mais alguma coisa além da sorte; que eles no mínimo haviam de mostrar uma consideração maior pelos que não tiveram sorte do que esses desgraçados têm de mostrar por eles toda a vida. Só mais tarde ele havia de abrir os olhos. Lembrava-se de quando foi, porque foi no preciso instante em que ele descobriu a inbcência. Não foi desse instante, desse momento, que ele falou com demora, mas do chegar até lá: ao momento em
que eles devem ter percebido, em que por fim se convenceram, que não iam de viagem, seguindo avante, seguindo sempre - não porque tivessem parado finalmente e encontrado um tecto, por assim dizer, porque já antes pelo caminho sucedera o mesmo; lembrava-se ele de uma vez em que a diferença gradual de conforto entre a presença e a ausência de sapatos e roupas quentes ocorreu num lugar: uma vacaria onde nasceu o filho da irmã e, como ele disse ao Avô, e que se lembrasse, ou pudesse localizar no tempo que passou, onde foi também concebido. Porque desta vez paravam enfim. Ele não sabia onde estavam. Por uns tempos, nos primeiros dias ou nas primeiras semanas ou nos primeiros meses, o instinto de montanhês que aprendera do meio onde cresceu, ou que herdara dos dois irmãos que sumiram, um dos quais uma vez rumara tão para oeste que chegou ao Rio Mississipi - como
deles herdara as roupas esfiadas de pele de gamo e outras do género que eles deixaram na cabana quando se foram embora para nunca mais voltar - e que se aguçara na prática de garoto em caça miúda e coisas do género, continuava a orientá-lo e de tal forma que ele seria capaz (dizia ele) de achar o caminho de volta à cabana da montanha, com o tempo. Mas onde isso já ia, essa hora em que pôde afirmar com exactidão onde nascera, há semanas e meses (talvez um ano, esse ano, pois foi nesta altura que ele começou a confundir-se na idade, e desde então nunca mais havia de acertar com ela, por isso ele disse ao Avô que não sabia ao certo, mais ano menos ano, a sua idade) ao tempo que a perdera. Portanto ele nem sabia de onde era, nem onde estava, nem porquê. Estava ali e pronto, rodeado pelas caras, a totalidade quase de quantas conhecia, que sempre conhecera (ainda que o seu número, mau grado os esforços da irmã solteira que logo a seguir, foi o que ele disse ao Avô, e ainda sem se casar teve outro filho, fosse diminuindo, rareando, por causa do clima, do calor, da humidade) vivendo numa cabana que era quase a réplica da outra, a montanhesa, salvo que esta não se erguia ao vento vivo
mas se agachava junto a um grande e raso rio que às vezes nem correntes mostrava e até corria para a nascente às vezes, onde os irmãos e as irmãs era como se caíssem de cama ao fim da ceia e morressem antes da refeição seguinte, onde regimentos de nigros, e de brancos a vigiá-los, plantavam e
cultivavam coisas de que ele nunca tinha ouvido falar (até o paijá fazia qualquer coisa, mais alguma coisa, para além de beber. Pelo menos deixava a
cabana almoçado e voltava sóbrio para a ceia, e algum sustento lhes dava) e o homem que era o dono de toda aquela terra e dos nigros e ao que parece dos brancos também que superintendiam o trabalho, vivia na casa maior que ele jamais tinha visto e passava tardes inteiras (ele contou que ia de rastos
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pela selva dos arbustos do jardim e ficava lá escondido, a ver o homem) deitado numa cairia de rede, abarrilada, entre duas árvores, os sapatos descalçados, mais um nigro que tinha por andaina roupas melhores do que ele ou o pai ou as irmãsjamais possuíram ou tiveram esperança de alguma vez possuir, e não fazia outra coisa que não fosse abaná-lo com o leque e trazer-lhe do que bebesse; e ele (ele estava agora com onze ou doze ou treze anos, porque foi nesta altura que ele percebeu que tinha perdido para sempre o conto aos anos que tinha) deitado ali, tardes inteiras, e ouvia as irmãs que vinham de vez em quando à porta da cabana lá longe, a duas milhas, e se esganiçavam. a chamá-lo que trouxesse a lenha ou que trouxesse a água, e ele deitado ali a espreitar o homem que mais do que ter sapatos, e no Verão, nem sequer precisava de os calçar.
"Mas ainda assim ele não invejava o homem. Cobiçava-lhe os sapatos, e provavelmente havia de gostar que o pai também tivesse um palhaço de casimiras que lhe desse na mão o jarro* e trouxesse para dentro a lenha e a água com que as irmãs lavassem e cozinhassem e mantivessem o calor da casa para não ter ele de o fazer. Talvez até percebesse, entendesse, o prazer que daria às irmãs se os vizinhos (brancos também como eles, que viviam nas outras cabanas que não estavam tão bem construídas nem tão bem estimadas e conservadas como as cabanas em que viviam os escravos nigros, mas eram ainda nimbadas pela aura resplandecente da liberdade que a senzala não tinha, ainda que ali as cabanas tivessem as coberturas inteiras e fossem brancas de cal) vissem que eles tinham quem os servisse. Porque mais do que não ter perdido a inocência ainda, ele não tinha descortinado ainda que a possuía. Não invejava o homem como não teria invejado o montanhês que fosse por acaso o dono durna bela carabina. Havia de cobiçar-lhe a carabina, mas seria o primeiro a apoiar e confirmar o orgulho desse homem, e o seu prazer na posse dela, porque lhe seria inconcebível que esse homem se aproveitasse tão grosseiramente da sorte que lhe destinara a ele, e não a outro, uma carabina que por isso dissesse aos outros homens: Porque eu sou dono desta carabina sou- vos superior em braços e em pernas e em sangue e em ossos a não ser como consequência vitoriosa duma luta com as carabinas: e como carga dágua havia um homem de lutar* contra um outro homem usando nigros em traje de cerimônia e o regalo de se deitar na rede uma tarde inteira, aliviados os pés dos sapatos? e por que carga dágua havia de lutar? Ele nem sequer sabia que era um inocente, naquele dia em que o pai o mandou à casa grande com o recado. Já não se lembrava de qual fosse (ou não disse qual era) o recado, pelos vistos, nem sabia ao certo o que fazia o pai, que trabalho seria o seu (ou talvez que trabalho fingia ter o velhote) na plantação - um rapaz, ou de treze ou de catorze anos, que ele não sabia qual das idades tinha, com as vestimentas que o intendente da plantação dera ao pai e que o pai usou até as romper, e a que uma das irmãs tinha posto uns remendos e subido a bainha, e ele sem ter mais consciência do seu preparo assim trajado, ou de que fosse possível reparar alguém nesse preparo, do que tinha da cor da sua pele, e foi seguindo a estrada e virou ao portão e subiu a alameda, passando por onde ainda mais nigros, sem outra coisa que fazer todo o dia além de
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plantar flores e aparar a relva, estavam a trabalhar, e seguiu até à casa, ao pórtico, à porta principal, pensando que ia ver enfim a casa por dentro, ver o que mais havia de possuir o homem que já tinha um nigro só para lhe dar na mão o destilado e tirar-lhe esses sapatos que ele nem sequer tinha de usar, e nem lhe passou pela cabeça que o homem não teria tanto prazer em mostrar-lhe a soma das suas coisas quanto o montanhês teria em mostrar o polvorinho de como e o molde para as balas que vinha com a carabina. Porque ele era ainda um inocente. Sabia que era um inocente sem ter consciência do que sabia; disse ele ao Avô que, antes de o nigro palhaço que veio à porta acabar de dizer o que disse, ele parecia sentir-se assim como a desvanecer-se e que dele uma parte voltava costas e corria, corria, pelos dois anos que tinham vivido ali, como é quando se passa rapidamente por uma sala e se vê as coisas todas mas do outro lado e se percebe que nunca as tínhamos visto, e ele corria, corria, por esses dois anos e via uma série de coisas que tinham acontecido e que ele nem sequer tinha visto: um certo modo frio, parado, silencioso, com que as irmãs mais velhas, e as outras mulheres brancas suas iguais, olhavam os nigros, não por medo ou susto mas num quê de antagonismo desconfiado, não que houvesse um caso conhecido ou razão para isso, mas era a herança de brancos como de negros, o pressentimento, o eflúvio dele passando entre as mulheres brancas às portas das cabanas que abaulavam e os nigros na estrada, e que não era inteiramente explicável por estarem os nigros mais bem vestidos, e a que os nigros não respondiam com um antagonismo ou qualquer forma de insulto ou desafio, mas por ficarem alheios aparentemente a ele, mais do que alheios (ele sabia que lhes podia bater, disse ele ao Avô, que eles não davam troco nem sequer resistiam. Mas não tinha vontade nenhuma de lhes bater, porque neles (nos nigros) não adiantava bater, não era neles que dava ganas de bater; que se lhes batesse era o mesmo que estar batendo num balão de brincar duma criança, um balão com
uma cara pintada, uma cara lisa e lustrosa e distendida e quase a rebentar em gargalhadas, e por isso ninguém se atrevia a bater-lhe porque então rebentava e antes deixá-lo ir e sumir-se da vista que ficar ali uma pessoa à mercê daquelas sonoras gargalhadas) - falou das conversas nos serões passados à lareira, quando eles tinham companhia, ou iam visitar depois da ceia os vizinhos doutra cabana, as vozes das mulheres, muito sérias, e mesmo calmas, porém com alguma coisa de sinistro e de sombrio e só um ou outro homem, habitualmente o pai, por estar bêbado, rompia em rudes recapitulações do seu próprio valor, do respeito que as suas proezas físicas inspiravam nos companheiros, e o rapaz de treze anos, ou catorze, ou talvez doze, sabia que os homens e as mulheres falavam da mesma coisa, embora nunca, nem uma vez, ela fosse nomeada, como é quando as pessoas falam das privações sem nunca mencionar o cerco, das doenças sem nunca nomear a epiden-iia; - de uma tarde em que ele e a irmã iam pela estrada e ele ouviu a carruagem que se aproximava e saiu da estrada, e depois deu-se conta que a irmã não ia ceder passagem, que ela continuava a andar pelo meio da estrada com um quê de implacabilidade sombria até mesmo na inclinação da cabeça, e ele gritou-lhe: e depois era tudo só cavalos empinados e pó e fivelas dos arreios
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e raios de rodas cintilando; viu duas sombrinhas dentro da carruagem e o cocheiro, um nigro de penante, a gritar: 'Eh lá, as rapariga! Andar daí das estrada!' e depois acabou-se, desaparecia tudo: a carruagem e o pó, as duas .caras abrigando-se nas duas sombrinhas e olhando com lampejos de indignação a irmã: depois atirava ele vãos torrões de terra ao pó que se afastava em carreira, e agora sabia, agora que o mordomo nigro vestido à palhaço barrava a porta com o corpo enquanto falava, que não fora ao cocheiro nigro que ele havia atirado, que fora àquele pó levantado pelas rodas, orgulhosas e delicadas rodas e vãs como o fora o seu gesto; - de uma noite, era tarde, em que o pai voltou para casa, entrou na cabana aos tropeções; ele deu pelo cheiro do whiskey mesmo entorpecido e ainda mal acordado, ouviu a mesma feroz exultação, a mesma vindicta, na voz do pai: 'Hoje é que foi malhar num dos nigros lá do Pettibone' e ele despertou àquilo, acordou, perguntou qual tinha sido ele, dos nigros do Pettibone, e o pai disse que não sabia, nunca tinha visto o nigro: e ele perguntou o que tinha feito o nigro, e o pai disse 'Rai do diabo, o maldito filho da puta do nigro lá do Pettibone.' - que ele: sem o saber então, porque não tinha descoberto ainda a inocência, deve ter significado a pergunta como o pai significou a resposta: nenhum nigro real, criatura viva, carne viva que sentisse a dor e se estorcesse e gritasse. Até parecia que os estava ele vendo: a treva do arvoredo, que os archotes perturbavam, as caras ferozes e histéricas dos brancos, a cara de balão do nigro. Talvez as mãos do nigro estivessem atadas ou presas, mas não tinha importância porque essas não eram as mãos com que a cara de balão havia de se debater e estorcer para libertar-se, não eram a cara de balão: essa pairava, suspensa, levitando no meio deles, e lustrosa, e distendida à espessura duma folha de papel. Depois alguém assentava no balão um único soco, desesperado, e em desesperança dado, e depois até lhe pareceu que os via fugindo, correndo, e tudo em seu redor fugia, corria, os alcançava, passando à sua frente para logo voltar e os engolir de novo, as ondas bramindo, as ondas de aveludado riso, sem sentido e aterrador, sonoro. E agora estava ali diante da porta branca e do nigro palhaço que a barrava e olhava para ele sobranceiro, porque ele usava gangas azuis viradas e remendadas e não tinha sapatos e, calculo eu, nem nunca teve alguma vez um pente nas mãos porque um pente era coisa que as irmãs haviam de esconder muito bem escondida - que ele nunca tinha dado atenção ao cabelo ou à roupa, nem ao cabelo e à roupa fosse de quem fosse, até ver aquele nigro palhaço, que sem fazer por isso teve a dita de se criar em casa grande, em Richmond talvez, e o mirava - "
("Ou talvez até em Charleston", murmurou Shreve.) " - da cabeça aos pés, e ele nem sequer se lembrava do que disse o nigro, como foi que o nigro disse, antes que ele mal tivesse tempo de contar ao que ia, para nunca mais aparecer àquela porta da frente e que desse a volta pelas traseiras.
"Ele nem sequer deu por se ir embora. De repente achou-se a correr, e já a uma certa distância da casa grande, mas não ia para casa. Não chorava, dis@e ele. Nem sequer tinha raiva. O que ele queria era pensar, por isso ele ia para onde pudesse pensar em sossego, um sítio que ele sabia. Entrou na mata. Disse ele que não resolveu, vou para ali: que o seu corpo, os pés, toma152

ram por ele o caminho - um sítio onde o trilho da caça entrava por um canavial e um carvalho tinha caído ao atravessado e fizera uma espécie de caverna
onde ele tinha uma chapa de ferro para assar de vez em quando alguma caça miúda. E meteu-se na caverna, disse ele, de gatas, e sentou-se, encostou-se a raízes descobertas, a pensar. Porque ele ainda não era capaz de perceber bem aquilo. Não se dava conta sequer que o seu mal, o óbice, estava na sua inocencia, porque so seria capaz de o compreender quando percebesse aquilo. Por isso ele buscava na pouca experiência que tinha, se experiência lhe podia chamar, alguma coisa com que o medisse, e não achou nada. Mandaram-no dar a volta pelas traseiras sem que ele tivesse tempo de dar o recado sequer, ele que era duma gente em casa de quem não havia portas nas traseiras, só janelas, e quem entrasse ou saísse por umajanela é porque estava ou a esconder-se ou a fugir, e ele não não tinha intenção de fazer nem uma coisa nem outra. Pelo contrário, ele tinha vindo realmente a tratar de obrigações, na boa fé de quem trata das suas obrigações, a boa fé que a seu ver qualquer homem aceitaria. Não esperava, é claro, que o convidassem a tomar assento à mesa, porque o tempo, a distância de uma panela à outra, hão carecia de medir-se em horas ou dias; nem esperava talvez que o convidassem a entrar sequer. Mas esperava, isso sim, que o ouvissem, porque tinha ali vindo, ali o tinham mandado, a tratar de obrigações que, mesmo não se lembrando ele de quaís fossem e nem talvez na altura (disse ele) tivesse compreendido quais fossem, estavam com certeza dalguma forma relacionadas com a plantação que sustentava e mantinha a casa branca e polida e a porta branca e polida e decorada a latão e até a casimira e o linho e as meias de seda que vestiam aquele nigro palhaço que o mandou dar a volta pelas traseiras sem que ele pudesse explicar sequer ao que vinha. Era como se ele tivesse chegado com um pedaço de chumbo ou até umas poucas balas moldadas para que o homem da bela carabina pudesse fazer fogo, e o homem viesse à porta e o mandasse deixar as balas em cima dalgum cepo na orla da mata, sem consentir sequer que ele se aproximasse o bastante para ver a carabina.
"Porque ele não tinha raiva. Fez questão de o dizer ao Avô. Estava só a pensar, porque tinha de fazer alguma coisa; ele alguma coisa tinha de fazer se queria ter sossego para o resto da vida, e ele não conseguia perceber o
quê, por causa da inocência que só agora descobria em si, com quem (a inocência, não o homem, a tradição) ele por força devia competir. Ele não tinha nada com que aquilo se comparasse e aferisse a não ser a analogia da carabina, e por essa bitola isto não fazia sentido. Estava com muita calma, disse ele, sentado ali, abraçado aos joelhos, no seu pequeno retiro ao pé do trilho da caça onde, mais que unia vez, se o vento batia de feição, tinha visto um veado passar à distância de dez pés, argumentando consigo mesmo, calma e serenamente, e os dois oradores entretanto a dizer que se ao menos houvesse alguém, pessoa mais velha e mais sabedora, a quem perguntar. Mas não havia, só havia ele mesmo, os dois dentro dum corpo singular que teria talvez treze, talvez catorze anos, ou talvezjá tivesse quinze, mas nunca nunca
mais ele havia de o saber ao certo, argumentando, serenos e calmos: Mas eu posso dar-lhe um tiro. (Não ao nigro palhaço. Já não era o nigro, como não
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fora um nigro o que o pai e os outros haviam chicoteado naquela noite.
O nigro era só mais uma cara de balão lustrosa e distendida, com esse riso tão aveludado e tão sonoro, tão terrível, que ele não se atrevia a rebentá-la, que olhou sobranceiro para ele, da porta entreaberta, por um instante, esse instante em que mal deu conta disso e já se tinha escapado alguma coisa de si - e ele incapaz de fechar os olhos daquilo - que olhava por dentro da cara de balão, tal como o homem que nem sequer tinha de usar os sapatos que eram seus, a quem o riso do balão barricava e protegia doutros como ele, estava a olhar donde quer que, invisível (o homem), calhasse estar nesse momento, para o rapaz fora da porta proibida nas suas vestimentas remendadas e de pés chancos e nus, e adivinhava no rapaz até o que não via, e ele a ver com os olhos do plantador, do homem rico (não do nigro), o seu próprio pai e as irmãs e os irmãos - todos gado, criaturas pesadas e sem graça, vazadas bestialmente num mundo sem esperança ou proveito para elas, que por sua vez iriam desovar com bestial e viciosa prolixidade, povoar, ao duplo e triplo e composto, e tomar espaço e encher a terra com uma raça cujo futuro seria uma sucessão de vestimentas encurtadas e remendadas e viradas, pagas em prestações exorbitantes, porque eram brancos, nos armazéns onde aos nigros eram dadas de graça, tendo por única herança aquela expressão numa cara de balão, rebentando em gargalhadas, que da porta olhara para algum antepassado esquecido e sem nome que bateu a uma porta quando era garoto e a quem um nigro mandara que desse a volta pelas traseiras.): Mas eu posso dar-lhe um tiro: e o outro: Não. Isso não adiantava nada: e o primeiro: Que havemos defazer então? e o outro: Não sei: e o primeiro: Mas eu posso dar-lhe um tiro. Podia chegar ld, ia de mansinho por os arbustos eficava lá escondido até quele aparcia pra sir deit ar na rede e eu dava-lhe um tiro: e o outro: Não. Isso não adiantava nada: e o primeiro: Então o que havemos defazer? e o outro: Não sei.
"Agora tinha fome. Fora à casa grande ainda antes do jantar e agora já não havia réstea de sol no chão onde se agachava, embora ainda conseguisse ver sol no topo das árvores em volta. Mas já o estômago lhe dizia que era tarde e que mais tarde havia de ser quando chegasse a casa. E então, disse ele, começou a pensar A casa. A minha casa e a princípio ainda julgou que o melhor seria rir-se, e ia repetindo para consigo que estava era a rir-se mesmo quando já sabia que não estava; a sua casa, quando saiu da mata e se aproximou dela, ainda a esconder-se porém, e a viu - as paredes de toros em parte já carcomidas, a cobertura a abaular onde as tábuas que faltavam não as tinham eles posto, antes colocavam panelas e baldes por baixo das fendas, o alpendrado que lhes servia de cozinha, e não estava mal, porque no bom tempo nem fazia sequer diferença que não tivesse chaminé que não se aventuravam a fazer uso dele quando chovia, e a irmã bombeando água ritmicamente para cima e para baixo sobre uma selha no pátio, de costas para ele, informe no seu vestido de chita e com um par de sapatos do pai, sem atacadores, que batiam nos tornozelos nus, e larga de rabadilha como as vacas, até aquele seu trabalho bestial, e estupidamente desproporcionado aos frutos dele: a essência primária do trabalho, da labuta, reduzida ao seu absoluto mais cru,
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que só uma besta podia aguentar e aguentava; e só agora (disse ele) e pela primeira vez o assaltava o pensamento do que diria ao pai quando o pai lhe viesse perguntar se o recado estava entregue, se havia de mentir ou não, que se mentisse era apanhado na mentira, e logo até, que o homem provavelmente já teria lá mandado um nigro a saber por que razão o que fosse que o pai tinha de fazer e não fizera, e por não fazer tinha mandado a desculpa, não tinha sido feito - se era esse o recado que levara à casa grande e (conhecendo ele o pai) provavelmente era. Mas não foi logo apanhado porque o pai ainda não estava em casa. Por isso foi só a irmã, como se ela estivesse ali à espera não da lenha mas de que ele chegasse, de que chegasse a ocasião de usar as cordas vocais, a atazaná-lo para que fosse buscar a lenha e ele sem se negar, sem repontar, que nem sequer a ouvia, nem lhe prestava atenção, porque ainda pensava. Depois o pai chegou e a irmã fez queixa dele e o pai obrigou-o a ir buscar a lenha: e nem uma palavra se disse a respeito do recado enquanto ceavam nem quando ele se foi deitar na enxerga em que dormia e onde para se deitar bastava que se estirasse nela, mas não que fosse agora dormir, só se deitou ali, com as mãos debaixo da nuca, e nem palavra se disse, e ele sem saber se havia de mentir ou não. Porque ele disse que o mais terrível daquilo tudo ainda não lhe tinha ocorrido, só estava para ali deitado, enquanto os dois debatiam dentro dele, falando ordeiramente à vez, os dois calmos, até se recostando, que era a forma de estarem calmos e razoáveis e sem rancor: Mas eu posso matá-lo. - Não. Isso não adiantava nada - Então o que havemos de fazer? - Não sei: e ele só a escutar, sem especial interesse, disse ele, ouvindo sem escutar os dois. Que o que ele pensava agora não queria ele ouvir. Existia, natural num rapaz, um garoto, e ele tão-pouco lhe dava atenção, porque isto era o que pensa um rapaz por ser rapaz, e ele sabia que, para fazer o que tinha de fazer se queria ter sossego para o resto da vida, ele tinha de pensar muito a sério e como um homem, e pensava O nigro nem me deu ocasião de lhe dizer o quiera e por isso ele (também já não era o nigro) não sabe e seja o quefor há-deficar porfazer e ele só há-de saber que está porfazer quando já não tiver remédio e então há-de receber a paga do que mandou ao nigrofazer e siera só pra dizer que a cavalariça, a casa, tinha pegadofogo, e o nigro nem sequer me deÉxou dizer ao homem, avisar e depois, disse ele, de repente já não era um pensamento, já era uma coisa a gritar, e quase tão alto que o podiam ouvir as irmãs na outra enxerga e o pai na cama com os dois mais novos, enchendo o quarto com um ressonar alcoólico: Ele nem sequer me deu ocasião de lhe dizer. Nem sequer de lhe dizer defalar: era tão rápido aquilo, e tão confuso, que nem era um pensamento, foi como se tudo lhe gritasse ao mesmo tempo, e desabasse tudo em cima dele como o gargalhar dos nigros: Ele nem me deu ocasião de lhe dizer e o mô Pai nem sequer me preguntou seu lhe disse ou não lhe disse e ele então nem sabe sequer que o mô Pai lhe mandou recado e então se ele recebeu ou não recebeu o recado que minteressa a mim, nem ao mô Pai; fui eu bater àquela porta pra afinal o nigro me dizer que nunca mais voltasse a aparcer àquela porta e eu que nem lhe estava a fazerfavor nenhum por lhe dar o recado, nem lhe fazia mal nenhum se não desse, não
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há bem nem mal neste mundo que eu lhe possa fazer. Foi assim, disse ele, uma explosão - um relâmpago de luz que sumiu sem deixar rasto, nem cinza nem nada: apenas uma planície rasa, ilimitada, e a severa fomia da sua intacta inocência erguendo-se dela como um monumento; essa inocência que o instruía, mais calma do que nunca o foram as palavras dos outros, que usava a sua própria analogia da carabina para instruí-lo, e ao dizer eles em vez de ele queria significar mais do que todos os débeis mortais à face da terra, deitados em redes por tardes inteiras, os pés aliviados dos sapatos: 'Se tu assentasses de combater com eles que têm as belas carabinas, a primeira coisa que fazias era arranjares a arma que mais se parecesse com uma bela carabina, quer a tomasses de empréstimo quer a roubasses quer a fizesses, não era?' e ele disse, Era. 'Mas isto aqui não se trata de carabinas. De maneiras que tu, pra combateres com eles, tens que ter seja o que for que eles têm e que lhes dá o direito de fazerem o que ele fez. Tinhas que arranjar terras e nigros e uma bela casa pra lhes fazeres tu frente. Não era?' e ele voltou a dizer, Era. E nessa mesma noite ele partiu. Acordou ainda não era dia e partiu pela mesma forma que se deitava: levantando-se da enxerga e saindo em bicos de pés de casa. Nunca mais ele voltou a ver a família.
"Foi para as Antilhas." Quentin não se tinha mexido, nem sequer para levantar a cabeça daquela posição de sorumbático alheamento ruminando a carta aberta que repousava em cima do compêndio aberto, as mãos pousadas na mesa à sua frente, ladeando o livro e a carta, que se erguia pela metade ao vinco transverso e sem apoio, como se o papel tivesse quase aprendido os mistérios da levitação. "Foi assim que ele disse. Ele e o Avô estavam os dois sentados agora num madeiro, porque os cães se tinham desnorteado. Ou melhor, tinham-se posto de atalaia à árvore - uma árvore donde ele (o arquitecto) não teria forma de escapar mas a que tinha subido com certeza porque lá encontraram a vara, com os suspensórios dele ainda atados a uma extremidade, que ele tinha utilizado para subir à árvore, embora a princípio não entendessem o porquê dos suspensórios e só passadas três horas é que eles perceberam que o arquitecto tinha usado a arquitectura, a física, para os iludir, e é bem certo que um homem se vale sempre daquilo em que é melhor quando se vê num apuro - o assassino do crime, o ladrão do roubo, o mentiroso da mentira. Ele (o arquitecto) conhecia os cafres, mesmo que não tivesse forma de saber que Sutpen ia arranjar cães; escolheu aquela árvore e subiu, içando a vara, e calculou tensão e distância e trajectória e venceu o espaço aberto até à arvore seguinte como nem um esquilo voador poderia vencer, e daí por diante foi seguindo de árvore em árvore ao longo de quase meia milha sem pôr o pé no chão. Só passadas três horas é que um cafre (os cães não arredavam da árvore; para eles o homem estava ali) achou o lugar onde ele tinha descido. E ele e o Avô então sentaram-se num madeiro a conversar, e um cafre voltou ao acampamento a buscar os comestíveis e o que sobrava do whiskey e eles avisaram os outros homens com os comes que viessem, e comeram, e ele disse ao Avô mais umas coisas enquanto esperavam.
"Foi para as Antilhas. Foi assim que ele disse: não disse como calhou de saber onde ficam as Antilhas, nem de onde partiam os navios para as
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Antilhas, nem como chegou onde estavam os navios e embarcou, nem se gostou do mar, nem falou dos sacrifícios da vida dum marinheiro, e ele deve ter passado muito, realmente, um rapaz de catorze ou de quinze anos que nunca tinha visto o oceano fazer-se ao mar em 1823. Ele só disse, 'E então fui para as Antilhas', ali sentado no madeiro com o Avô, os cães ainda acuando a árvore onde julgavam que o arquitecto estava, porque ele tinha de estar ali - e ele a dizer, pela mesma forma como disse depois naquele dia, trinta anos passados, ele no escritório do Avô @já com roupas finas, ainda que um tanto manchadas e puídas, que a guerra durava há três anos, e já com
dinheiro a tilintar no bolso e uma barba vigorosa também: barba e corpo e intelecto nesse vigor dos anos que todas as diferentes partes que compõem um homem alcançam, quando um homem pode afirmar Fiz tudo o que almejei fazer e podia ficar-me por aqui se quisesse, que ninguém teria de me
apontar o vício da preguiça, nem eu próprio - e é talvez este o momento que o Destino sempre escolhe para baixar o cacete, mas o vigor parece tão firme e tão estável que o começo da queda não será visível ainda por algum tempo - ele de queixo quase empinado, nessa atitude que ninguém nunca
chegou a saber de quem a tinha arremedado, ou se não a teria ele também aprendido no livro onde aprendeu sozinho as palavras, as frases bombásticas com que pedia nem que fosse, dizia o Avô, um fósforo para o charuto ou oferecia um charuto - e isto nada tinha de vaidade, nada tinha de cómico tão-pouco, disse o Avô, por causa dessa inocência que ele nunca perdeu, porque, passada aquela noite em que a inocência lhe ditou o que fazer, ele a
esqueceu, e nem sabia que ainda a tinha) e disse ao Avô - disse-lhe, repara; não deu uma desculpa, não pediu piedade; não deu uma explicação, não pediu escusas: disse, disse ao Avô que tinha largado a primeira mulher como
faziam os reis do século xi ou xii: 'Descobri que ela não era, nem podia nunca ser, embora disso não tivesse culpa, um acólito ou incremento do propósito que eu tinha em mente, por isso deixei-a amparada e larguei-a.' - a
dizer ao Avô nesse mesmo tom, sentados os dois no madeiro, à espera que os nigros voltassem com os outros homens e o whiskey: 'E então fui para as Antilhas. Eu tinha recebido alguma instrução, por uma temporada, num
Inverno, a que bastou para ficar a saber alguma coisa das Antilhas, e perceber que esse lugar seria sobremaneira propício às conveniências dos meus
requisitos.' Não se lembrava de como tinha ido parar à escola. Ou melhor, por que terá o pai decidido subitamente mandá-lo à escola, que nebulosa visão ou figura se terá desprendido então dos vapores alcoólicos e dos espancamentos de nigros e dos estratagemas para escapar-se ao trabalho a que o pai chamaria o seu intelecto - que não era a imagem duma ambição ou da glória, ou de ver o filho ser alguém na vida, provavelmente nem sequer um instante cego de revolta contra essa mesma casa cuja cobertura pingara já talvez sobre outras cem famílias como a sua, que tinham vindo para ali viver e sumiram sem deixar rasto, sem deixar nada, sequer um farrapo ou um caco
de louça, mas era provavelmente só a inveja vingativa de um ou dois homens, plantadores, com quem tivesse ele de tratar às vezes. Fosse como fosse, mandaram-no à escola por uns três meses, nesse Inverno - um adolescente, um
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rapaz de treze ou catorze anos, numa aula de crianças três ou quatro anos mais novas do que ele e três ou quatro anos mais adiantadas, e ele que era não só mais alto provavelmente que o professor (o tipo de professor de uma escola de província duma aula apenas num agregado de plantações em Tidewater) mas muito mais homem, que trazia provavelmente para a escola consigo, junto com a sua reserva montanhesa, vigilante e séria, uma grande insubordinação latente, da qual não teria mais consciência do que teve a princípio consciência de que o professor lhe tinha medo. Rebelde não seria, nem orgulhoso talvez, que não se podia dizer que fosse orgulho, era a independência que vem de se viver nas montanhas e em solidão, que os do seu sangue, pelo menos alguns (a mãe era das montanhas, uma escocesa que, foi o que ele disse ao Avô, nunca aprendeu a falar bem inglês), se tinham criado nas montanhas, mas que, fosse o que fosse, era o que o proibia de condescender em memorizar as contas maçudas e coisas assim mas que já lhe permitia escutar quando o professor lia à classe. - Mandaram-no à escola, 'onde eu', disse ele ao Avô, 'pouco aprendi, salvo que as acções, boas ou más, incorrendo no opróbrio ou no encórnio ou até na recompensa, dentro dos limites da capacidade humana, já foram praticadas na sua maioria e só podem ser aprendidas em livros. Por isso eu prestava atenção às leituras. Percebo agora que muitas vezes ele só recorria a tais leituras quando via que a escola em peso estava a ponto de se levantar e abandonar a aula. Mas, fosse pelo que fosse, lia, e eu pelo menos prestava atenção, embora não soubesse que ao escutar me preparava melhor para o que mais tarde havia de ser o meu propósito do que se tivera aprendido toda a cópia de adições e subtracções do livro. Foi assim que eu ouvi falar das Antilhas. Não aprendi onde estavam situadas, ainda que se eu soubera nesse tempo que tais conhecimentos me iriam servir no futuro, também isso eu teria aprendido. O que aprendi foi que existia um lugar chamado Antilhas para onde iam os homens pobres, em navios, e onde faziam fortuna, como a faziam não importava, conquanto o homem tivesse esperteza e coragem: destas, a segunda eu acreditava que possuía, a primeira eu acreditava que, se pudesse ela ser aprendida pela energia e pela força de vontade, na escola da diligência e da experiência, eu havia de aprendê-la. Lembro-me de uma tarde em que fiquei na escola depois da aula à espera do professor, à espreita dele (era um homem baixote, figura apagada, que parecia ter nascido e passado a vida inteira no pó dos sótãos e dos armazéns) e saí-lhe ao caminho. Lembro-me que ele recuou de susto quando me viu, e que nessa altura eu pensei que se quisesse bater-lhe não havia de se ouvir um grito em consequência mas somente o baque da pancada e o som dum sopro de poeira no ar, como quando se bate um tapete pendurado na corda. Perguntei-lhe se era verdade, se o que tinha lido sobre as fortunas que se faziam nas Antilhas era verdade. "Por que não?" respondeu ele, recuando com susto. "Não me ouviste ler no livro?" - "Como é que eu sei se o que leu estava no livro?" disse eu. Já vê como eu era singelo, rústico. Ainda não tinha aprendido a ler sequer o meu nome; embora frequentasse a escola há quase três meses, a verdade é que não sabia mais do que sabia quando entrei na aula pela primeira vez. Mas eu tinha de saber, repare.
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Talvez um homem construa o seu futuro de variadas maneiras, construa não só o corpo que há-de ser o seu amanhã ou no ano que vem, mas os seus actos e os subsequentes e irrevogáveis rumos que são consequência deles, rumos
que os seus fracos sentidos e o seu fraco intelecto não sabem pressentir mas
que, dez ou vinte ou trinta anos depois, ele irá tomar, e deve tomar, se quer sobreviver ao acto. Seria talvez esse instinto e não eu próprio quem o agarrou com firmeza pelo braço quando ele retrocedia (eu não duvidava dele realmente. Acho que, mesmo nessa altura, mesmo com a minha pouca idade, compreendi que não seria invenção dele, que lhe faltaria esse quê, tão necessário a um homem se quer ludibriar nem que seja uma criança com mentiras. Mas repare, eu precisava duma certeza, tinha de lançar mão de que meios
fossem para ter uma certeza. E nada mais havia à mão excepto ele) fitando-me indignado e já a estrebuchar, e eu segurava-o e dizia - eu estava muito calmo, muito calmo; eu queria era saber - dizia, "Um supor que eu ia para lá e descobria que não era assim?" e elejá esganiçado, a gritar "Acudam! Acudam!" e eu então soltei-o. Por isso, quando chegou o dia em que percebi que, para realizar o meu propósito havia de precisar antes de tudo e acima de todas as coisas de dinheiro em quantidades consideráveis, e no futuro mais imediato, lembrei-me das leituras e fui para as Antilhas.'
"Começaram então a chegar os outros cavaleiros, e pouco depois os
nigros voltavam com a cafeteira e uma perna de veado e o whiskey (e disse o
Avô, uma garrafa de champanhe que lá ficara esquecida) e ele não disse mais nada por um bocado. Não contou mais nada até todos terem comido e se sentarem em roda a fumar, enquanto nigros e cães (eles tiveram de levar os cães de rastos, que não largavam a árvore, mas em especial a vara onde estavam atados os suspensórios do arquitecto, como se a vara fosse não só a última coisa que o arquitecto havia tocado mas aquilo que a sua exultação tinha tocado quando viu aquele outro ensejo de os iludir, e por isso não era apenas o homem, era também a exultação o que dava no faro e desvairava os cães) batiam as redondezas, afastando-se mais e mais, até que à última luz do sol um dos nigros desatou numa gritaria e ele (ele há um bom bocado que não falava, disse o Avô, ali deitado sobre um cotovelo, com as belas botas e as únicas calças que tinha e a camisa que pôs quando saiu da lama e se
lavou ao perceber que tinha de ser ele próprio a dar caça ao arquitecto se o
queria agarrar com vida provavelmente, não falava e talvez nem sequer ouvisse a conversa dos homens, que falavam de algodão e de política, só fumava o charuto que o Avô lhe deu, com os olhos postos nas brasas da fogueira, e fazia talvez de novo essa viagem às Antilhas que tinha feito aos
catorze anos sem saber nem para onde ia nem se algum dia lá chegava, sem ter forma de saber se lhe mentiram os homens que disseram que o navio ia para lá como também não tinha forma de saber se o mestre-escola tinha dito a verdade sobre o que vinha no livro. E ele nunca chegou a contar se a viagem foi dura ou não, e o que ele deve ter passado nessa viagem. Que ele com
certeza passou muito, mas nesse tempo ele confiava que seriam bastantes a
coragem e a astúcia, e uma ele sabia que tinha, e a outra acreditava que podia aprendê-la se fosse coisa de ser ensinada, e foram provavelmente os sacri159

fícios da viagem que o animaram a pensar que os homens que disseram que o navio ia para as Antilhas não mentiam, porque nessa altura, disse o Avô,, ele provavelmente não teria acreditado no que fosse fácil.) - ele disse, 'Cá está ele' e levantou-se e foram todos e deram com o lugar onde o arquitecto voltara a pôr os pés no chão, ganhando quase três horas de avanço. Portanto eles agora tinham de se aviar e não havia muito tempo para conversas, ou pelo menos, disse o Avô, ele pelos vistos não fazia tenções de a
reatar. Quando o sol se pôs, os outros tiveram de voltar à vila; foram todos menos o Avô, que o Avô queria ouvir mais. Por isso mandou recado para casa por um dos outros (ele também ainda não era casado) que ficava por lá, e ele e Sutpen continuaram enquanto houve luz. Dois nigros (estavam eles nessa altura a treze milhas do acampamento de Sutpen) já tinham ido buscar cobertores e comestíveis. E fez-se noite e os nigros começaram a acender archotes de pinheiro e eles continuaram por algum tempo ainda, a ganhar terreno quanto pudessem agora, que eles sabiam que o arquitecto havia de se meter na toca assim que escurecesse para não andar em círculos. Era assim que o Avô contava: ele e Sutpen levando os cavalos pela rédea (ele havia de se voltar para trás de quando em quando e ver os cavalos com os olhos a brilhar à luz dos archotes, e sacudindo a cabeça, e as sombras deslizando por espáduas e flancós) mais os cães e os nigros (ainda nus na maioria, à excepção dum par de calças aqui e além) levantando os archotes de pinheiro, fumacentos, flamejantes, e a luz vermelha caía sobre as cabeças redondas e os braços e a lama que no pântano era o que os vestia para afugentar os mosquitos, a lama seca, endurecida e brilhante, reluzindo como vidro ou porcelana e as sombras que eles projectavam, tão depressa maiores do que eles eram como logo desapareciam, e até as árvores e o mato e os canaviais, tão depressa ali estavam como logo desapareciam, embora eles soubessem que ainda ali estavam porque os sentiam ao respirar, como se, invisíveis, os canaviais e o mato e o arvoredo calcassem e condensassem o ar invisível que se respirava. E disse que Sutpen voltou a falar, a contar, mal deu por isso já ele contava mais, e disse que nessa altura pensou que havia alguma coisa no destino dum homem (ou no homem) que fazia o destino ajustar-se a ele como a roupa que se veste, tal como um casaco em sendo novo serve a mil homens e depois que um homem o usa por algum tempo não serve a mais ninguém e é identificável esteja onde estiver ainda que dele só se entreveja a manga ou a lapela: também o destino dele - " ("do demónio", disse Shreve) " - o destino tinha-se ajustado a ele, à sua inocência, à sua aptidão prístina para o teatro de palanque, e à sua simplicidade infantil e heróica, tal como o belo uniforme de casimira, que dez mil homens vestiram durante esses quatro anos, e que ele usava quando entrou no escritório naquela tarde já passados trinta anos, se ajustara à soberba de todo o seu gesto e à verbiagem forense com que afirmava calmamente, com essa inocência franca e 'de criança' como se costuma dizer, isto se a criança não fosse a criatura humana que nunca tem franqueza, nunca tem inocência, as coisas mais simples e mais ultrajantes. Ele a contar mais, já ia directo ao que ele contava mas ainda sem dizer como tinha chegado ao ponto em que estava, nem sequer como aquilo
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em que ele estava agora envolvido (obviamente já tinha pelo menos vinte anos de idade nesta, altura, ali agachado atrás duma janela, na treva, e disparando pela janela os trabucos que alguém carregava e lhe passava) viera a suceder, transportando-se, e ao Avô também, àquela sala sitiada no Haiti tão simplesmente como se colocou a si próprio nas Antilhas com dizer que tinha decidido ir para as Antilhas e foi; este episódio que não era uma deliberada continuação do outro mas que apenas lhe ocorrera ao ver a imagem dos nigros que seguiam adiante com os archotes; ele sem contar como lá chegou, o que tinha acontecido nos seis anos que passaram desde esse dia em que ele, um rapaz de catorze anos que mais línguas não sabia que o inglês, e mesmo esse, pouco, decidiu ir para as Antilhas em busca de fortuna, e esta noite em que, feitor ou capataz ou coisa assim dum francês, plantador de cana-de-açúcar, erguera barricadas na casa com a família do plantador (e esta, disse o Avô que foi a primeira menção - uma sombra, quase visível por momentos, e que depois se desvanecia, mas sem desaparecer completamente - da - " ("E uma rapariga", disse Shreve. "Não digas. Continua, continua.") " - a respeito de quem ele iria dizer ao Avô, trinta anos passados, que tinha descoberto ser inconveniente aos seus fins e portanto a largou, embora a deixasse amparada) e alguma criadagem mestiça, aflita, que volta e meia ele tinha de afastar da janela e obrigar aos pontapés e às pragas que ajudassem a rapariga a carregar os trabucos que ele e o plantador disparavam pelas janelas, e eu calculo que o Avô lá dizia um 'Espere espere pelo amor de Deus espere' como tu dizes, até que finalmente pronto ele voltou atrás e começou do princípio com alguma consideração ao menos pela causa e efeito, ainda que não tivesse consideração nenhuma pela continuidade e pela sequência lógica. Ou talvez fosse porque já estavam outra vez sentados, que tinham decidido não ir mais adiante nessa noite, e os nigros tinham feito acampamento e cozinhado a ceia e eles (ele e o Avô) beberam do whiskey e comeram e depois sentaram-se à fogueira a beber mais whiskey e ele a contar tudo outra vez e mesmo assim a história ainda não estava absolutamente clara - o como e o porquê de ele estar ali e do que ele era - porque ele não estava a falar de si próprio. Contava uma história. Não estava a gabar-se duma coisa que tivesse feito; contava apenas a história duma coisa que um homem chamado nomas Sutpen tinha experimentado, que teria sido ainda a mesma história se o homem não tivesse nome, ou se fosse um qualquer homem ou homem nenhum, contada em volta duma garrafa de whiskey à noite.
"Talvez por isso ele fosse agora mais devagar. Mas não tanto que ficasse muito clara a história. Ele não estava ainda a contar em pormenor ao Avô a carreira dum homem chamado Thornas Sutpen. O Avô disse que a única menção que ele chegou a fazer daqueles seis ou sete anos que devem ter existido algures, que devem ter ocorrido na realidade, foi quando falou do patuá que teve de aprender para dirigir a plantação, e do francês que teve de aprender, que talvez não lhe fosse preciso para ficar noivo e casar, mas que havia de ser-lhe preciso com certeza para repudiar a mulher quando já a tinha
- que ele tinha pensado, foi o que ele disse ao Avô, que seriam bastantes a coragem e a astúcia, mas viu que estava enganado, e quanto se arrependia
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agora por não ter guardado a instrução juntamente com a miragem das Antilhas, quando viu que nem toda a gente fala a mesma língua, e se deu conta que havia de precisar não só de coragem e habilidade, é que teria de aprender uma língua nova, senão esse propósito, ao qual se tinha dedicado, morreria à nascença. E ele então aprendeu francês, tal como aprendeu a ser marinheiro, calculo eu, porque o Avô perguntou-lhe por que não se juntou ele com uma rapariga com quem aprendesse o francês do modo mais natural e o Avô disse que ele estava ali sentado, com a luz da fogueira a bater-lhe na cara e na barba, e com um olhar sereno e até quase brilhante, e disse - e
o Avô disse que foi esta a única vez em que o ouviu falar fosse do que fosse com calma e simplicidade: 'Nessa tal noite (e até ao meu primeiro casarnento, posso acrescentar) eu ainda era virgem. Provavelmente não me acredita, e se eu quisesse explicar ainda acreditava menos. Portanto apenas direi que isso fazia também parte do propósito que eu tinha em mente' e o Avô disse, Tor que não havia de acreditarT e ele, fitando ainda o Avô e com essa expressão serena brilhando nos olhos, a dizer, 'Mas acredita? Por certo que não me fará a desconsideração de julgar que aos vinte anos eu não tinha ainda sofrido tentações, nem fora causa delas?' e o Avô disse, 'Tem razão. Não devia acreditar. Mas acredito.' Já vês que não eram histórias de mulheres, e de amor é que não eram com certeza: a mulher, a rapariga, só uma sombra, capaz de carregar um trabuco mas a quem não o confiariam para que fizesse fogo pela janela nessa noite (ou nas sete ou oito noites que passaram, amontoados na treva, olhando pela janela os celeiros, ou os silos ou o que fosse onde se armazenava o açúcar, e os campos também, tudo em chamas e em fumo: ele disse que vinha um cheiro, que não havia mais nenhum, só aquele cheiro, doce e forte e fétido, como se o ódio e a implacabilidade, os mil anos secretos e sinistros que tinham gerado o ódio e a implacabilidade, tivessem intensificado o cheiro do açúcar: e o Avô disse que se lembrou então que sempre vira Sutpen recusar açúcar no café e só agora ele sabia (o Avô) porquê, mas mesmo assim perguntou, para ter a certeza e Sutpen disse que era verdade; que ele nunca teve medo, só teve medo quando os campos e os celeiros já estavam todos queimados e quando até eles já tinham esquecido o cheiro do açúcar a queimar, mas que nunca mais pôde ver açúcar à frente) - a rapariga surgindo apenas por um segundo na narrativa, quase por uma só palavra, a ponto de o Avô dizer que era como se a visse também por coisa dum segundo, no clarão dum trabuco - unia cara inclinada, uma só face, o queixo, por um instante, atrás duma cortina de cabelo solto, o braço esguio e branco levantado, a mão delicada agarrando a vareta da arma, e nada mais. Sem mais pormenores disto nem informações, como também não os deu sobre o caminho que fez dos campos, de que era o feitor, até à casa sitiada, quando os nigros correram sobre ele com as facas de mato, como não os deu sobre o caminho que fez da cabana apodrecida na Virgínia até aos campos de que era o feitor: e isto, disse o Avô, era mais incrível do que a viagem da Virgínia às Antilhas, porque a viagem pressupunha, essa sim, o tempo, um espaço, cuja travessia implicava uma certa morosidade, porque o tempo é mais longo do que é qualquer distância,
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mas isto agora, a travessia dos campos até chegar à casa 'barricada, parecia ter sucedido com uma espécie de abrogação violenta, que deve ter sido quase tão breve como foi breve o tempo de a contar - deve ter sido a própria condensação do tempo que era bitola da violência do tempo, e ele a contar aquilo num agradável tom narratório e quase forense e, ao que seria de supor, tal como se lembrava, como foi impressionado por aquilo através dum interesse e duma curiosidade impessoais e desprendidos que nem o medo sequer (dessa vez em que ele mencionou o medo, por esse mesmo processo inverso de falar dum tempo em que não tivera medo, o tempo anterior a conhecer ele o medo, como ele disse) conseguira inflamar grande coisa. Porque medo ele só teve depois de estar tudo acabado, foi o que disse o Avô, porque isto para ele era assim mesmo - um espectáculo, uma coisa para ser vista, porque podia já não ter ocasião de voltar a vê-la, que a inocência ainda funcionava, e ele não só não sabia o que era o medo, que só o soube depois, é que nem percebeu que a princípio não sentiu terror; nem sequer percebeu que tinha achado esse lugar onde se pode enriquecer muito e depressa, isto se um homem fosse corajoso e astuto (ele não queria dizer astúcia, disse o Avô.
O que ele queria dizer era se tivesse falta de escrúpulos, mas ele não conhecia a palavra porque não devia estar no tal livro por onde o mestre-escola fazia as leituras. Ou talvez ele quisesse dizer isto mesmo quando falava de coragem, disse o Avô), mas onde a elevada mortalidade era concomitante ao dinheiro e o que luzia nos dólares não era o ouro mas o sangue - um ponto da terra criado porventura, e porventura abandonado até por Deus, disse o Avô, para ser um teatro de violência e injustiça e derramamento de sangue e de todos os vícios satânicos da cupidez e da crueldade humanas, da derradeira e desesperada fúria de todos os párias interditos, e todos os malfadados - uma pequena ilha, colocada num mar de sorrisos e incrivelmente anilado e por onde rondavam as fúrias, situada no ponto mediano entre o que nós chamamos a selva e o que nós chamamos a civilização, o ponto mediano entre o continente sinistro e inescrutável donde o sangue negro, e os ossos e a carne e o pensamento e as memórias e a esperança e os desejos negros, foram roubados à força, e a fria terra conhecida a que estavam condenados, a terra civilizada e o povo civilizado que tinham purgado o próprio sangue e os pensamentos e os desejos que, por se tomarem tão crassos, não podiam ser por mais tempo afrontados e suportados, e os colocou ao desabrigo e ao desespero no solitário oceano - uma pequena ilha, perdida em latitudes tais que o seu clima só o podiam suportar os dez mil anos de herança equatorial, um chão adubado com o sangue negro de duzentos anos de opressão e exploração, até que brotou dele um incrível paradoxo de pacífica folhagem e de flores carmesins e de canas-de-açúcar do tamanho dum madeiro novo e três vezes mais altas que um homem, e um tanto mais grossas, claro está, mas em valor quase libra por libra comparáveis ao minério de prata, como se a natureza fizesse as contas e as escrevesse no livro de balanço e oferecesse uma recompensa pelos membros dilacerados e os corações ultrajados, mesmo se o homem o não fizesse, a sementeira de natureza e de homens também regada não só pelo sangue derramado mas varrida pelos ventos em que os
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navios malfadados fugiram em vão, de que o último farrapo de vela tinha naufragado no mar azul, naufragado como o último grito desesperado e vão de mulher ou de criança fora levado pelo vento; - a sementeira de homens também: ossos e cérebros ainda intactos, onde o velho sangue insone, que se tinha sumido para debaixo daquela terra que eles pisavam, clamava ainda por vingança. E ele o feitor daquilo, cavalgando pacificamente por aqui e por ali enquanto ia aprendendo a língua (esse fio frágil e escasso, disse o Avô, através do qual os cantos e as arestas, pequenos e superficiais, das vidas secretas e solitárias dos homens podem às vezes por um instante ser reunidos antes de se afundarem nessa treva onde o espírito gritou pela primeira vez, e não foi ouvido, e há-de gritar pela última vez, e também não há-de ser ouvido), sem saber que era sobre um vulcão que ele cavalgava, ouvindo o que estremecia e palpitava de noite com os tambores e as toadas, e sem saber que era o coração da própria terra o que ele ouvia, ele que julgava (disse o Avô) que a terra seria gentil e generosa, e que a treva era apenas uma coisa negra que se via, ou em que não se podia ver; ele o feitor daquilo que era feitor, e sem saber que o era, fazendo as suas expedições diárias duma cidadela armada até que esse dia chegou. E nem isto ele contava tão-pouco, não contou como esse dia aconteceu, os passos que levaram até ele, porque o Avô disse que aparentemente ele nem soube, não alcançava, o que lhe estava com certeza todo o dia à frente dos olhos, porque ele era um inocente - um osso de porco com um pedaço de carne podre ainda agarrado, umas penas de galinha, um trapo sujo e com nódoas a atar umas pedrinhas, e isto encontrado assim de manhã na travesseira do velho, e ninguém sabia (e muito menos o plantador que tinha dormido nessa travesseira) como lá foi parar aquilo, porque só nessa altura é que eles souberam que nem um, de tantos criados, os mestiços, lá estava, e ele nem sabia, foi o plantador quem lhe disse que as nódoas no trapo não eram de sujidade, nem de sebo, mas de sangue, e aquilo que tomou por uma raiva gaulesa do plantador era afinal o medo, o terror, e ele só tinha curiosidade, e um grande interesse, porque para ele o plantador e a filha ainda eram (ele disse ao Avô que até essa primeira noite do cerco nem uma vez lhe ocorrera que não sabia o nome de baptismo da rapariga, quer o tivesse ouvido quer não. Ele também disse ao Avô, deixou escapar isto, enquanto contava, como quem num piparote saca o jóquer dum baralho novo de cartas e depois já não é capaz de se lembrar se tirou o jóquer ou não, que o velho se tinha casado com uma espanhola, e portanto foi o Avô e não Sutpen quem percebeu que, até essa primeira noite do ataque, ele possivelmente não tinha visto a rapariga mais de uma dúzia de vezes) dois estrangeiros; - o corpo dum mestiço encontrado por fim (ele o encontrou, procurou-o em tudo quanto era lugar durante dois dias, sem sequer saber que o que ele enfrentava era um muro cego de caras negras e reservadas, um muro, e atrás desse muro quase tudo podia estar a preparar-se e, só depois é que ele o veio a saber, quase nada se estava preparando, e no terceiro dia encontrou o corpo num sítio onde não poderia passar sem o ver logo na primeira hora do primeiro dia, se o corpo já lá estivesse) e ele sentado no madeiro, disse o Avô, a contar, a fazer os gestos de quem conta,
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quem o Avô em pessoa tinha visto bater-se nu, peito a peito, com um cafre à luz da fogueira do acampamento enquanto se construía a casa, e que se batia com eles ainda na cavalariça à luz da lanterna, depois que arranjou enfim essa mulher que seria o acólito no promover desse propósito que ele tinha em mente, e sem rábula nenhuma nos combates, sem apertos de mão nem parabéns enquanto lavava o sangue do corpo e envergava acamisa, porque no fim o nigro estaria no chão, a arfar, e outro nigro a atirar-lhe água para cima; - sentado ali, a contar ao Avô que por fim encontrou o mestiço, ou o que dele restava, e que ele (Sutpen) tinha visto o mesmo que a maioria dos homens, e tinha feito o mesmo que fazia a maioria, incluindo algumas coisas de que ele não se ia gabar: mas que viu certas coisas que um homem, que quisesse passar por civilizado, via quando tinha de ver, mas de que não falava, portanto apenas diria que por fim encontrou o mestiço e nessa altura começou a perceber que a situação podia ficar séria; depois a casa, a barricada, eles cinco - o plantador, a filha, duas criadas e ele próprio - ali fechados, e o ar cheio do fumo e do cheiro da cana a arder, e o clarão e o fumo no céu, e o ar pulsando, vibrando, com os tambores e a toada - a pequena ilha, perdida sob o côncavo duma taça de noites e dias altemando-se, como um vácuo, onde não podia chegar nenhum socorro, onde nem sequer os ventos do mundo exterior chegavam, só os alíseos, sempre os mesmos ventos exaustos que sopravam e varriam a ilha, os ventos oprimidos ainda com as vozes já exaustas das mulheres e das crianças assassinadas, sem o abrigo dum lar ou duma sepultura, por esse mar solitário que os isolava - enquanto as duas criadas e a rapariga de quem ele não sabia o nome de baptismo carregavam ainda os trabucos que ele e o pai dela disparavam, não contra um inimigo, mas contra a própria noite haitiana, os relâmpagos das armas cravando clarões fracos e débeis e vãos como lanças na treva atormentada e exausta de sangue e palpitante: e até a altura do ano, a estação entre os furacões e uma esperança de chuva: e que ao oitavo dia a água se acabou e alguma coisa tinha de se fazer, de forma que ele pousou o trabuco, saiu porta fora, e sujeitou-os. Foi assim que ele disse: ele saiu porta fora e sujeitou-os, e ao voltar ficou noivo da rapariga e o Avô de certeza a dizer 'Espere espere', a dizer 'Mas você nem sequer a conhecia; você contou-me que antes de começar o cerco nem sequer sabia o nome dela' e olhando para o Avô ele disse, 'Com efeito. Mas repare, ainda levei algum tempo a restabelecer-me.' Não como foi que os sujeitou. Ele isso também não disse, que também não tinha consequência para a história; só disse que pousou o trabuco e mandou alguém destrancar a porta e voltar a trancá-la depois que ele saísse, e meteu-se à treva e sujeitou-os, talvez por berrar mais alto, talvez por estar de pé, aguentando com mais do que eles julgavam que ossos e carne podiam ou deviam aguentar (deviam, sim: e isso é que seria terrível: haver carne capaz de suportar mais do que à carne se pode pedir que aguente; talvez no fim eles se tivessem arredado com horror, a fugir desses membros que eram brancos e tinham formas iguais às suas e donde o sangue havia de jorrar e correr como dos seus e encerravam uma coragem indómita que devia vir do mesmo fogo primário de que vinha a deles, mas que não podia vir, não podia ser (ele mos165

trou as cicatrizes ao Avô, uma das quais, disse o Avô, por pouco não o teria deixado mesmo virgem para o resto da vida, ainda para mais), e depois amanheceu, e pela primeira vez em oito dias não se ouviram os tambores, e eles saíram (provavelmente o homem e a filha) e atravessaram a terra queimada que o sol forte iluminava como se nada tivesse acontecido, caminhavam agora pelo que devia ser uma solidão incrível e desolada, uma quietude serena, e deram com ele e trouxeram-no para dentro de casa: e quando ele se restabeleceu, ficou noivo da rapariga. E mais nada."
"Pronto", disse Shreve. "Continua." "Mais nada", disse Quentin. "Já ouvi. Mais nada como? Ficou noivo da rapariga e mais nada, e ainda assim teve mulher que repudiar depois? Disseste que ele não se lembrava de como foi parar ao Haiti, disseste que ele não se lembrava de como foi parar à casa com os nigros à roda. Agora vens-me dizer que ele nem sequer se lembrava de ter casado? Que ficou noivo e depois, pronto, não fez mais nada, e um belo dia descobriu que muito pelo contrário até estava casado? E a isso então chamas tu ser virgem?"
"Mais nada porque ele não disse mais nada, não contou mais nada", disse Quentin. Não se tinha mexido, falando ao que parecia (se para alguma coisa falava) para a carta pousada em cima do livro aberto sobre a mesa entre as suas MãOS. À sua frente, Slireve tinha enchido o cachimbo e fumara-o de novo até ao fim. Repousava de novo o cachimbo de borco, um esparrame de cinzas brancas em leque saindo da chaminé, sobre a mesa, diante dos braços nus e cruzados com que parecia ao mesmo tempo sustentar-se e abraçar-se, pois embora fossem apenas onze horas a sala começava a arrefecer e estava chegando àquele ponto em que, por volta da meia-noite, haveria apenas calor suficiente nos irradiadores para não congelarem os canos, posto que (esta noite não iriajá ele executar a sua ginástica respiratória àjanela aberta) ainda não fosse chegado o momento de ele ir ao quarto e voltar, primeiro com o roupão de banho vestido, e depois de capote por cima do roupão e trazendo no braço o capote de Quentin. "Ele só disse que tinha ficado noivo e depois não disse mais nada. Mais coisa nenhuma, disse o Avô, assim de repente e ponto final, como se não houvesse mais nada que dizer, não pudesse haver mais nada, mais nada que valesse a pena contar um homem a outro enquanto à noite bebiam whiskey. Talvez não houvesse." Estava ele (Quentin) cabisbaixo. Falava ainda nesse tom singular, o tom sombrio quase, e monótono, que fizera Shreve observá-lo desde o início com uma dúvida e uma curiosidade sérias e desprendidas, observá-lo ainda por detrás dessa expressão (a de Shreve) de querubíneo e erudito assombro que os óculos intensificavarri, ou talvez na realidade criassem. "Só se levantou e, a olhar para a garrafa de whiskey, disse, 'Por hoje basta. Vamos dormir; há que levantar muito cedo amanhã. Talvez a gente o agarre antes de ele desenferrujar as pernas.'
"Mas não. Ia a tarde adiantada quando o agarraram - o arquitecto, quero eu dizer - e mesmo assim só porque ele tinha ferido a perna ao querer arquitectar-se por cima do rio. Mas desta vez tinha errado os cálculos, por isso os cães e os nigros o acuaram, e os nigros agora faziam uma infemeira (o Avô
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disse que talvez os nigros julgassem que, ao fugir, o arquitecto havia renunciado voluntariamente ao seu estatuto de carne proibida, lhes havia oferecido voluntariamente um repto ao fugir, o qual os nigros tinham aceitado ao
dar-lhe caça, e tinham ganho quando o agarraram, e agora lhes seria pern-Iitido cozinhá-lo e comê-lo, aceitando isto, tanto os vencedores como o vencido, no mesmo espírito de quem joga em conformidade com as regras, e sem animosidade ou rancor de parte a parte) quando o içaram (todos os homens que tinham iniciado a corrida no dia anterior voltaram, salvo três, e os que voltaram tinham trazido outros, portanto havia agora mais homens do que no começo da corrida, disse o Avô) - quando o içaram da furna à beira do rio onde ele estava: um homenzinho pequeno, de sobrecasaca sem uma das mangas e de colete de ramagens, todo estragado por água e lama, que ele tinha caído ao rio, e uma perna da calça rasgada até abaixo, por isso eles viram que ele tinha atado a perna com uma tira da fralda da camisa e viram o trapo ensanguentado e a perna inchada, e do chapéu nem sombra. Nunca mais o encontraram, e então o Avô deu-lhe um chapéu novo no dia em que ele se foi embora, quando a casa estava terminada. Isto passou-se no escritório do Avô, e o Avô disse que o arquitecto pegou no chapéu novo e olhou para ele e rebentou em lágrimas. - um homenzinho pequeno, de cara atormentada e desvairada, com uns picos da barba de dois dias, que saiu da ffima lutando como um gato-montês, com a perna ferida e tudo, com os cães a ladrar e os nigros aos berros e aos gritos de jovial e mortal antecipação, como se tivessem a impressão de que, visto a corrida ter durado mais do que vinte e quatro horas, as regras estariam automaticamente revogadas e eles já o podiam cozinhar logo, até que Sutpen avançou por aquele mar de gente com um pau e bateu em nigros e cães a eito, a enxotá-los, deixando ali ficar o arquitecto, de pé, que nem dava parte nenhuma de fraco, só estava um pouco ofegante e, disse o Avô, um tanto abatido, que no calor da captura os nigros tinham-lhe maltratado a perna, e lhes fazia um discurso em francês, um longo discurso e tão rápido que, disse o Avô, provavelmente nem outro francês o teria percebido na totalidade. Mas bem sonante; o Avô disse que até ele percebeu - todos eles perceberam - que o arquitecto não pedia desculpa; foi um belo discurso, disse o Avô, e disse que Sutpen se voltou para ele, mas ele (o Avô) já se aproximava do arquitecto, estendendo-lhe a garrafa de whiskey já desarrolhada. E o Avô viu aquela cara encovada, e os olhos, o olhar desesperado e desanimado, mas também indómito, invencível também, que não se dava ainda por vencido, nem de longe, disse o Avô, e aquelas cinquenta e tal horas de treva e de pântano, horas de fome e de fadiga, e ele sem poder dormir e sem ter lugar para onde ir nem esperança de lá chegar: só aquela vontade de aguentar-se e aquele presságio da derrota, mas sem se dar ainda por vencido, nem de longe: e ele pegou na garrafa com uma das mãos pequenas e sujas, mãos como as dum guaxinim, e ergueu a outra mão e até a levou, tacteante, acima da cabeça por coisa de um segundo, sem se lembrar de que já não tinha chapéu, e depois lançou a mão para cima num gesto que o Avô disse que simplesmente não podia descrever-se, que parecia tomar toda a desgraça e a derrota que a raça humana já
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sofreu e reuni-las num gesto de quem recolhe a pitada, a poeira, nos dedos e a lança para trás das costas, por cima da cabeça, e ergueu a garrafa e, primeiro, fez uma vénia ao Avô, depois aos outros todos, que estavam em círculo, montados nos cavalos, a olhar para ele, e depois bebeu não só o primeiro trago de whiskey puro da sua vida mas o trago que a ele nem lhe passaria pela cabeça que havia de beber, como não passaria pela cabeça dum brâmine que seja possível um dia chegar a comer carne de cão."
A voz de Quentin calou-se. Slireve disse imediatamente, "Pronto. Não te maces, que ele não disse mais nada já eu sei; adiante." Mas Quentin não continuou imediatamente - a voz monótona, singularmente mortiça, o rosto cabisbaixo, o corpo relaxado e sem se mover, salvo no respirar; nenhum dos dois se movia, salvo no respirar, jovens ambos, nascidos ambos no mesmo ano: um em Alberta, o outro no Mississípi; nascidos com meio continente de permeio mas unidos, ligados, de certa maneira, numa quase transubstanciação geográfica por essa Caleira Continental, esse Rio que vai correndo não só através da terra física de que é o umbilico geológico, não só vai correndo pelas vidas espirituais dos seres aquém da sua extensão, mas é o próprio Meio que ri dos graus de temperatura e latitude, ainda que destes seres alguns, como Shreve, nunca o tivessem visto - os dois que há quatro meses atrás nem de vista se conheciam e desde essa data dormiam no mesmo quarto e comiam lado a lado a mesma comida e usavam os mesmos livros onde preparavam a lição para os mesmos cursos primeiranistas, um defronte ao outro à mesa que o candeeiro iluminava e sobre a qual repousava a frágil boceta de Pandora, o papel escrito, que povoara de génios e demónios irraciocinantes e violentos este retiro aconchegado e monástico, o recesso desaquecido e pleno de sonhos do que chamamos o pensamento superior. "Não te maces niais", disse Shreve. "Segue para díante."
"Assim levava trinta anos", disse Quentin. "Só trinta anos passados é que ele voltou a falar daquilo ao Avô. Talvez tivesse mais que fazer. As horas todas de cavaqueira ociosa ocupadas em levar avante esse propósito que ele tinha em mente, e por único recreio tendo as lutas com os cafres, na cavalariça, que os homens podiam lá prender os cavalos e vir pelas traseiras sem que os vissem da casa, porque ele agorajá estava casado, a mansãojá estava acabada e ele preso por roubá-la e posto em liberdade outra vez, portanto este assunto ficou arrumado, já tinha mulher e dois filhos - não, três - a viver lá, e a terra desbravada e plantada com a semente que o Avô lhe emprestou, e ele a enriquecer cada vez mais e mais - "
"É verdade", disse Shreve; "Mr Coldfield: o que é que foi?" "Não sei", disse Quentin. "Nunca ninguém soube ao certo. Era qualquer coisa que tinha a ver com um conhecimento de embarque, ele persuadiu Mr Coldfield a usar o crédito que tinha para qualquer coisa: foi uma destas coisas que, saindo-se um homem bem, dizem que é esperto, e dando a coisa para o torto lá tem de mudar de nome e desandar para o Texas: e o Pai disse que Mr Coldfield ali sentado na sua lojeca, mais as mercadorias da carroça, que só ao fim de dez anos porventura é que duplicavam, ou davam para o
gasto ao menos, e sempre a ver com certeza ocasião de fazer isto mesmo, só
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que a sua consciência (não a coragem: que ele tinha coragem de sobra, disse o Pai) não o deixava. E Sutpen apareceu a oferecer-se para fazer aquilo, e, se a coisa corresse bem, ele e Mr Coldfield dividiam o mal-ganho, e ele (Sutpen) arcava com as culpas todas se a coisa desse para o torto. E Mr Coldfield deixou. O Pai disse que foi porque Mr Coldfield estava em crer que a coisa ia dar para o torto, que eles não se safavam, mas aquilo não lhe saía da cabeça, e só quando se metesse naquilo e a coisa desse para o torto é que ele (Mr Coldfield) podia tirar aquilo da cabeça; e quando a coisa deu para o torto, porque deu, e eles foram apanhados, Mr Coldfield teimou em assumir a sua parte nas culpas, era a penitência, a expiação por ter pecado por pensamentos anos e anos a fio. Porque Mr Coldfield nem nunca se convenceu que a coisa corresse bem, por isso, quando viu que ia correr tudo bem, que tinha corrido bem, o mínimo que ele podia fazer era recusar-se a tirar a sua parte nos lucros; e quando viu que tinha corrido bem, teve ódio foi à sua consciência, não a Sutpen; - à sua consciência e à sua terra, a sua própria terra, que tinha criado nele a consciência e depois dera ocasião de ganhar tanto dinheiro assim àquela mesma consciência que tinha criado, e que não podia pactuar com tal coisa; tanto era o ódio que tinha àquela terra que ficou até satisfeito quando a viu aproximar-se de uma guerra fatal e malfadada; que ele até seria capaz de se alistar no exército lanque, disse o Pai, só que ele não era um soldado, e sabia que na guerra ou o matavam ou havia de passar tanto que morria e assim não estaria presente quando chegasse a hora de o Sul compreender que estava então a pagar o preço por ter levantado o seu edifício económico não sobre a rocha firme dos severos preceitos da moral mas antes sobre as areias movediças do oportunismo e da ladroagem moral. E ele então escolheu o único gesto que a seu ver podia capacitar da sua desaprovação aqueles que iriam sobreviver aos combates e assim participar no remorso - "
"Sim senhor", disse Shreve. "Está tudo muito certo. Mas Sutpen. O propósito. Adiante, o resto."
"Sim", disse Quentin. "O propósito. - Ele a enriquecer cada vez mais e
mais. Devia julgar que era tudo um céu aberto e sem nuvens para ele agora: casa acabada, e ainda maior e mais branca do que a outra, a cuja porta ele foi bater naquele dia em que o nigro de fardeta palhaça o mandou dar a volta pelas traseiras, e ele até já tinha nigros de ferro seu, coisa que o homem estirado na rede, com os pés aliviados de sapatos, não tinha, para deles apartar um e ensiná-lo a ir à porta quando por sua vez acontecesse que um rapazinho descalço, e vestido com as pantalonas do pai, viesse bater-lhe à porta. Mas o Pai disse que já não era essa a questão, que ele quando veio ao escritório do Avô naquele dia, passados trinta anos, e não a querer desculpar-se, como também não se quis desculpar na chá do rio nessa noite em que deram caça ao arquitecto, mas só para explicar agora, a querer a todo o custo explicar-se agora, porque ele era um velho e bem o sabia, sabia que era contra a velhice que tinha de lutar, nem que fosse com palavras: o tempo a fugir-lhe, o tempo que podia e havia de prejudicar-lhe a ventura e o ensejo, mesmo que ele já confiasse tanto nos ossos e na carne como confiava na vontade e
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na coragem, e disse ao Avô que o rapaz-símbolo à porta não era a questão, porque o rapaz-símbolo era apenas a fantasia dessa criança cheia de assombro e desespero; que ele agora abriria as portas ao rapaz, para que nunca mais ele tivesse de ficar a bater a uma porta branca e fechada: e não para lhe dar simplesmente um abrigo, não, mas de forma a que esse rapaz, um forasteiro que fosse, mesmo não tendo um nome, pudesse fechar aquela porta para sempre atrás de si, e deixar lá fora tudo o que tinha conhecido, e olhar em frente os raios da luz ainda não manifestada onde os seus descendentes, que talvez nem sequer ouviriam alguém pronunciar o seu nome (o nome do rapaz), esperavam o dia de nascer sem precisão de saber que um dia tinham sido libertados, e para sempre, da bestialidade como os seus próprios filhos (os filhos de Sutpen) foram - "
"Agora não me digas que sou só eu que pareço o teu velhote a falar", disse Shreve. "Mas adiante. Os filhos de Sutpen. Continua."
"Sim", disse Quentin. "Os dois filhos" pensando Sim. Somos ambos o Pai talvez. Talvez nunca nada aconteça num tempo e depois se acabe. Talvez o acontecer nunca seja num tempo mas é antes como o encrespar-se talvez da água depois que a pedra se afunda, as ondulações sucedendo, alastrando, a lagoa unida por um estreito cordão umbilical de água à lagoa seguinte, onde a primeira desagua, sempre desaguou, e quefez nascer, contenha esta segunda lagoa uma temperatura diferente na água, uma diferenteforça molecular por ter visto, sentido, recordado, reflectido, num tom diferente o céu infinito e imutável, não importa: o eco dessa pedra, aquoso, cuja queda nem
sequer a lagoa viu, percorre a sua supe)flcie também ao original espaçamento das ondulações, ao antigo e indestrutivel ritmo pensando Sim, somos ambos o Pai. Ou talvez o Pai e eu sejamos ambos o Shreve, talvez sejam precisos dois, o Pai e eu, para haver um Shreve, ou o Shreve e eu para haver o Pai, ou talvez um Thomas Sutpen para haver nós todos. "Sim, os dois filhos, o filho e a filha pelo sexo e pela idade já tão concordes ao propósito que era como se ele tivesse planeado assim, por temperamento mental e físico tão concordes que era como se ele os tivesse apartado, no rebanho celestial de serafins e querubins, pela mesma forma como escolheu os vinte nigros por alborque entre o que lá devia haver quando repudiou aquela primeira mulher e aquela criança quando percebeu que eles não seriam acólitos no
promover do seu propósito. E o Avô disse que não era um caso de consciência, que Sutpen veio ao escritório naquela tarde, passados trinta anos, e
disse que chegara a ter alguns problemas de consciência a princípio, mas que tinha argumentado calma e logicamente com a sua consciência até que o assunto ficou arrumado, como deve ter argumentado com a consciência a respeito do conhecimento de embarque dele e de Mr Coldfield (só que dessa vez provavelmente não demorou tanto, que o tempo urgia com certeza) até que o assunto ficou arrumado; - que ele admitia que sob certos aspectos foi de certa maneira uma injustiça o que ele fez, mas que tinha obviado à injustiça tanto quanto estava em seu poder, porque tinha posto as cartas na mesa; porque ele podia tê-la abandonado sem mais, como quem diz, tirou o chapéu e foi-se, mas não: e que ele tinha o que o Avô havia de admitir que era
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um direito justo e válido, se não a toda a propriedade que ele salvara sozinho, como tinha salvado a vida a todos os brancos da propriedade, pelo menos àquela porção que fora especificamente descrita e transferida por escritura para a sua posse, no contrato de casamento, e a que ele se obrigara de boa fé, sem reservas quanto à sua origem modesta e aos seus modestos meios de fortuna, ao passo que tinha havido não só uma reserva mas uma verdadeira deturpação da parte deles, e foi uma deturpação duma natureza tão grosseira a ponto de não só ter invalidado e frustrado, sem que ele o soubesse, a motivação central de todo o seu propósito, como também teria sido a decepção irónica de tudo o que ele tinha sofrido e passado, e de tudo o que pudesse ainda fazer para realizar aquele seu propósito - um direito a que voluntariamente ele renunciara, ficando apenas com os vinte nigros de tudo quanto podia ter exigido, e que muitos no seu lugar haviam de reclamar e (em demanda) corroborar com a força, tanto da lei como da moral, se não mesmo das mais delicadas razões da consciência: e o Avô que já não dizia 'Espere espere' porque era outra vez aquela inocência, a inocência que julgava que os ingredientes dos preceitos da moral são como os ingredientes do bolo ou da empada, que uma vez medidos, pesados, misturados, postos no forno, está tudo feito e só pode resultar deles ou empada ou bolo. - Sim, ele sentado no escritório do Avô a querer explicar-se, com essa paciente e assombrada insistência, não ao Avô e não a si próprio, que o Avô disse que até mesmo a sua calma era o sinal de que ele próprio tinha há muito abandonado a esperança de alguma vez entender aquilo, mas a querer explicar às circunstâncias, ao próprio destino, os passos lógicos que o tinham levado a uma consequência absolutamente incrível, ainda e sempre incrível, e ele a repetir a clara e simples sinopse do seu historial (que tanto ele como agora o Avô já conheciam) como se o quisesse explicar a uma criança teimosa e rebelde: 'Repare, eu tinha em mente um propósito. Se era bom ou mau propósito, não vem ao caso; a questão é, Onde foi que eu errei, que fiz eu, ou que deixei por fazer, quem prejudiquei, ou o quê, e em tão alto grau como tudo isto parece indicar. Eu tinha um propósito. Para realizá-lo era preciso que eu tivesse dinheiro, uma casa, uma plantação, escravos, uma família - e por consequência, claro está, mulher. Tratei de os conseguir, sem recorrer aos favores de ninguém. Cheguei mesmo a arriscar a própria vida, como lhe contei, embora, como também lhe contei, não me tivesse exposto a esse risco pura e simplesmente para conseguir mulher, ainda que tenha sido essa a conse- quência. Mas isso não vem ao caso também: basta dizer que eu tive mulher, a aceitei de boa fé, sem fazer quaisquer reservas sobre mim próprio, e esperava deles igual franqueza. E exigir essa franqueza, como seria admissível num homem com a minha origem modesta (ou pelo menos seria desculpável) por ignorar as finuras no trato das pessoas bem-nascidas, essa eu não exigi. Eu nada exigi, repare; aceitei a conta em que se tinham, enquanto por meu lado insistia em dar todas as explicações de mim e dos meus: no entanto eles, deliberadamente, esconderam de mim o único facto que, e eu tenho razões para saber que eles estavam cientes disso, me faria declinar a proposta, que doutro modo eles não o teriam escondido - um facto de que eu
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só tive conhecimento depois que nasceu o meu filho. E mesmo nessa altura eu não agi precipitadamente. Podia ter-lhes apontado estes anos perdidos, estes anos que me causavam agora um atraso em relação ao meu plano, e
um atraso que era não só a soma do tempo decorrido que o número dos anos representava, mas a soma compensatória de tempo, representada pelo seu número, que me seria necessário despender agora se queria avançar mais uma vez ao ponto que havia alcançado e perdido. Mas não o fiz. Meramente expliquei de que modo este facto novo tomava impossível que esta mulher e esta criança fossem incorporadas ao meu propósito, e seguidamente, como lhe contei, não fiz qualquer diligência para conservar em meu poder não só aquilo que eu poderia considerar como tendo eu ganho com o risco da própria vida mas ainda o que me fora dado por documentos assinados, mas pelo contrário declinei todos os meus direitos e pretensões, a todos renunciei, a fim de reparar qualquer injustiça que se pudesse imputar à minha pessoa, que deixei amparados aqueles dois a quem mais tarde me poderiam talvez acusar de ter destituído nalguma coisa que eu viesse ainda a possuir: e isto foi também acordado, repare; acordado entre as duas partes. E no entanto, e passados mais de trinta anos, mais de trinta anos sobre o dia em que a minha consciência finalmente me assegurou de que, se eu tinha cometido uma injustiça, fizera o possível para a corrigir - " e o Avô já não dizia Espere, mas disse, berrou talvez: 'Consciência? Consciência? Santo Deus, homem, que outra coisa esperava? A propensão para a desgraça, o instinto da desgraça, mesmo num homem que tivesse passado esse tempo num mosteiro até, quanto mais num homem que viveu esses anos como você os viveu, nada por nada lhe ensinou? o medo e o pavor às mulheres, que deve ter bebido com o primeiro leite mamífero, nada por nada lhe ensinou? Que inocência abissal e míope era essa a que você chama, porque lhe ensinaram a chamar, virgindade? que espécie de consciência era essa, que lhe justificava a convicção de que só podia comprar a sua imunidade a essa mulher com a paga da justiça?' - "
Foi neste ponto que Shreve passou ao quarto e vestiu o roupão de banho. Ele não disse, Espera, levantou-se apenas e deixou Quentin sentado à mesa, diante do livro aberto e da carta, saiu, e voltou de roupão e sentou-se de novo e pegou no cachimbo frio, sem o encher com mais tabaco porém, nem acendê-lo como estava. "Pronto", disse ele. "No Natal desse ano Henry levou-o então lá a casa, meteu-o dentro de casa, e o demónio olhou para ele e viu a cara de quem já tinha pago e despachado, supunha ele, há vinte e oito anos. Adiante."
"Sim", disse Quentin. "O Pai disse que provavelmente foi ele mesmo quem lhe pôs o nome. Charles Bon. Carlos o Bom. Não que ele o tenha dito ao Avô, mas o Avô estava em crer que foi ele, só podia ter sido ele. Que foi também a sua maneira de pôr a vida em ordem, como teria posto em ordem o que lhe competia atirando fora as cápsulas detonadas e os cartuchos do trabuco, uma vez levantado o cerco, se não estivesse doente (ou noivo talvez); a instâncias dele talvez, era de novo a consciência, que não podia permitir que a mulher e a criança ocupassem um lugar qualquer no seu propósito,
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ainda que ele pudesse ter fechado os olhos àquilo e, se não enganasse toda a gente como o tinham enganado a ele, ao menos teria impedido qualquer um, tal era o medo que metia, de contar à boca cheia o segredo - a mesma consciência que não admitiria que o filho, porque era um rapaz, recebesse o nome dele ou do avô materno, e todavia o proibiu também de fazer o que é costume nestes casos, que é arranjar marido rápido para a mulher abandonada que desse ao filho um nome verdadeiro. Foi ele mesmo quem escolheu o nome, isto para o Avô era certo, como a todos ele deu o nome - os Carlos Bons e as Cliteirmestras e Henry e Judith e eles todos - toda aquela fecundidade, os dentes de dragão como lhes chamou o Pai. E o Pai disse - "
"O teu pai", disse Stireve. "Parece que ele tardou quarenta e cinco anos mas ao fim arrecadou unia série colossal de informações, atrasadas, num ai. Se ele já sabia tudo, que motivos tinha ele para te dizer que a desinteligencia entre Henry e Bon foi por causa da oitoruna?"
"Ele nessa altura não sabia. Houve coisas que o Avô não lhe disse, como Stuperi também houve coisas que nunca disse ao Avô."
"Então quem lhe disse?" "Fui eu." Quentin não se mexia, não ergueu os olhos enquanto Stireve o observou. "No dia a seguir a nós - a seguir à noite em que nós - "
"Ah", disse Shreve. "Em que tu e a tia velha. Percebo. Adiante. E o Pai disse - "
" - disse que ele deve ter ficado ali na varanda fronteira da casa, nessa tarde, à espera de vê-los, de ver Henry e o amigo, de quem Henry tinha falado tanto por carta nesse Outono, subirem a alameda, e que talvez depois de Henry ter escrito o nome dele na primeira carta Sutpen terá dito para consigo que isto não podia ser, que havia limites até para a ironia, além dos quais ela se toma ou um achincalho, perverso é verdade mas não fatal, ou então uma coincidência inofensiva, porque o Pai disse que até mesmo Sutpen havia de saber que ainda está para nascer o homem capaz de inventar um nome que não seja nome de ninguém, ou não tenhajá sido: e eles apareceram enfim e Henry disse, Tai, este é o Charles' e ele - " ("o demónio", disse Shreve) " - olhou para ele e percebeu que há situações em que a coincidência não é mais do que um menino correndo para o campo de futebol a tomar parte no jogo, e que os jogadores atropelam, e vão envolvendo na corrida a cabeça do menino, incólume, e seguem adiante, e chocam entre si, e na fúria da contenda pelos factos a que chamamos ganho ou perda ninguém se lembra sequer do menino, ou viu quem veio arrebatá-lo à morte; - que ele ficou ali parado à porta, como tinha imaginado, planeado, propositado, e o certo é que, passados cinquenta anos, o menino desamparado e perdido, sem nome e sem lar, veio bater àquela porta e não houve, não havia em parte alguma à face da terra, um nigro em fardeta palhaça que viesse à porta mandar o rapaz embora; e o Pai disse que mesmo então, mesmo sabendo ele que Bon e Judith nunca se tinham visto, ele deve ter sentido e ouvido o propósito - casa, posição, posteridade e tudo - ruindo como se o tivesse construído em fumo, sem um som, sem deslocar um ímpeto de ar, e que nem um escombro sequer deixava. E ele que não lhe chamava retaliação, o castigo da iniquidade dos pais
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na pessoa dos filhos; não lhe chamava sequer má sorte, mas apenas um engano: esse engano que ele não conseguia por si próprio descortinar e que foi a razão de ele vir ter com o Avô, não a desculpar-se, mas apenas a passar em revista os factos, para que um intelecto imparcial (e o Avô dizia, mais, uni intelecto versado em leis) examinasse uns e descortinasse o outro, e lho apontasse. Não era a retaliação moral, repara: era só um passado engano de facto, que um homem de coragem e de astúcia (uma das quais ele agora sabia que possuía, a outra das quais ele acreditava que já tinha aprendido, assimilado) podia combater ainda, se alcançasse descobrir que engano tinha sido. Porque ele não desistiu. Ele nunca desistiu, nunca; o Avô disse que os seus actos subsequentes (o facto de por algum tempo não ter feito nada, e por isso mesmo ter talvez contribuído para que acontecesse precisamente o que ele mais temia) não foram consequência de lhe ter fraquejado coragem ou astúcia ou crueldade, mas foram antes consequência daquela sua convicção de que tudo provinha dum engano e, até ele descortinar que engano tinha sido, não tencionava arriscar-se a cometer outro.
"E ele então convidou Bon a entrar, e pelas duas semanas de férias (só que não foi preciso tanto; o Pai disse que provavelmente Mrs Sutpen fez logo o noivado entre Judith e Bon assim que viu o nome de Bon na primeira carta de Henry) ele vigiou Bon e Henry e Judith, ou antes, vigiou Bon e Judith, porque já devia saber o que se passava entre Henry e Bon pelas cartas que Henry escreveu da escola; estudou-os por duas semanas, e não fez nada. Depois Henry e Bon voltaram para a escola, e o cavalariço nigro que levava e trazia o correio todas as semanas entre Oxford e Sutpen's Hundred passou então a trazer cartas para Judith que não eram do punho de Henry (e nem isto seria preciso, disse o Pai, porque Mrs Sutpen já percorria tanto a vila como a comarca a dar notícia desse noivado que, disse o Pai, nem sequer existia) e ainda assim ele não fez nada. Não fez coisa nenhuma até quase ao fim da Primavera, quando Henry escreveu a dizer que levava Bon a passar lá um dia ou dois antes de Bon ir para casa. Só então é que Sutpen foi a Nova Orleães. Se ele escolheu ou não essa altura para fazer a viagem porque assim apanhava Bon e a mãe juntos e chegava a um entendimento com eles e de uma vez por todas, ninguém sabe, como ninguém sabe se ele chegou a ver a mãe de Bon enquanto lá esteve, se ela o recebeu ou se não quis recebê-lo; ou se ela o recebeu e ele tentou mais uma vez chegar a uma conciliação, comprá-la, talvez agora com dinheiro, porque o Pai disse que um homem capaz de acreditar que se pode comprar, com lógica formal, a mulher escamecida e ultrajada e revoltada, também acredita que a pode aplacar com dinheiro, e ele não conseguiu nada; ou se Bon lá estava e foi ele mesmo quem recusou o oferecimento, embora nunca soubesse ninguém se Bon chegou a saber que Sutpen era seu pai, se ele queria vingar a mãe a princípio e só mais tarde se apaixonou, só mais tarde sucumbiu à torrente da retaliação e da fatalidade a que Miss Rosa disse que Sutpen tinha dado início, e a que ele tinha condenado os do seu sangue, tanto negros como brancos. Mas ele não conseguiu nada evidentemente, e chegou o Natal e Henry e Bon voltaram a Sutpen's Hundred, e Sutpen viu então que não havia remédio, que
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Judith se apaixonara por Bon e, quer Bon quisesse vingar-se quer se tivesse mesmo deixado apánhar e afundar e desgraçar também, vinha tudo a dar no mesmo. Parece então que ele mandou chamar Henry nessa noite de Natal, quase à hora da ceia (o Pai disse que, entretanto, depois daquela viagem a
Nova Orleães, ele já teria talvez aprendido o suficiente sobre as mulheres para saber que não lhe serviria de nada falar com Judith primeiro), e contou-lhe. E ele já sabia o que Henry ia dizer, e Henry disse-o, e ele aceitou que Henry lhe desse roda a ele de mentiroso, e Henry percebeu, porque o pai se deixou desmentir, que o pai lhe tinha dito a verdade; e o Pai disse que ele provavelmente (Sutpen) também já contava que Henry fizesse o que fez, e isto porque ele ainda acreditava que era tudo somente um erro táctico menor, e que ele próprio seria como um soldado em escaramuça que está em desvantagem numérica mas não pode, recuar, e tem fé que, se tiver paciência bastante e esperteza bastante e calma bastante e prontidão bastante, ainda poderá dispersar os inimigos e depois abatê-los um por um. E Henry fez o que fez. E ele provavelmente (Sutpen) também já sabia o que Henry ia fazer depois, que Henry também havia de ir a Nova Orleães para ver com os seus próprios olhos. E então chegou-se a 61 e Sutpen, já sabia o que eles dois iam fazer, não só o que Henry ia fazer mas o que ele havia de forçar Bon a fazer; talvez (por ser um demónio - ainda quejá não fosse preciso ser-se um demónio para se pressentir a guerra) ele pressentisse até que Henry e Bon iriam alistar-se na companhia acadêmica da Universidade; talvez tivesse maneira de os vigiar, de saber o dia em que os seus nomes apareciam na escala de serviço, talvez tivesse forma de saber onde a companhia estava, mesmo antes de o Avô ser coronel do regimento a que pertencia a companhia, que o foi até receber o ferimento em Pittsburg Landing (onde Bon foi ferido) e vir para casa até se habituar a não ter o braço direito, e Sutpen veio em 64, com as duas lápides, e foi falar com o Avô ao escritório nesse dia, antes de voltarem os dois para a guerra; - sempre soube onde eles estavam, Henry e Bon, que eles sempre estiveram no regimento do Avô, onde o Avô de certa maneira podia olhar por eles mesmo não sabendo o Avô que o fazia - mesmo que fosse preciso olhar por eles, porque Sutpen já devia saber também da liberdade vigiada, do que andava agora Henry a fazer: que mantinha todos três
- ele e Judith e Bon - naquela suspensão, enquanto ele se digladiava com a sua própria consciência para obrigá-la a aceitar o que ele queria, como o pai já tinha feito há mais de trinta anos, talvez ele agora até já fosse um fatalista, como Bon, e desse à guerra o ensejo de resolver o assunto matando-o a ele ou matando Bon ou os dois (mas sem ajudas, sem batota da sua parte, porque foi ele quem levou Bon às costas para a retaguarda, depois de Pittsburg Landing) ou talvez ele soubesse que o Sul havia de ser derrotado e então nada mais haveria que tivesse muita importância, nada haveria que valesse tanto calor, nada contra o que valesse a pena protestar ou por que valesse a
pena sofrer ou morrer ou até viver. Foi nesse dia que ele veio ao escritório, no seu único dia - " ("seu, do demónio", disse Shreve) " - de licença em casa, voltou da guerra com as suas lápides e Judith estava lá e eu calculo que ele tenha olhado para ela, e ela para ele, e ele disse, 'Tu sabes onde ele está'
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e Judith não lhe mentiu, e ele (ele conhecia Henry) disse, 'Mas ainda não tiveste notícias dele' e Judith também não lhe mentiu dessa vez, nem tão-pouco chorou, porque eles dois sabiam o que havia de estar na carta quando a carta chegasse, por isso ele não teve de lhe perguntar, 'Quando ele te mandar dizer que vem, tu e Clytie começam a fazer o vestido para o casamento' mesmo se Judith lhe quisesse mentir, que não quis: e ele então pôs uma das pedras na campa de Ellen e colocou a outra ao alto na sala de entrada e veio falar com o Avô, para ver se explicava aquilo, para ver se o Avô descortinava qual tinha sido esse engano que a seu ver tinha sido a causa única do seu problema, e ele sentado ali, de uniforme puído e surrado, com os seus guantes puídos e a faixa desbotada e (ele as plumas tinha, podes ter a certeza. Podia ter de abandonar o sabre, mas as plumas, nunca) as plumas descoloridas, postas no chapéu amassado, esfiapado, enxovalhado, com o cavalo de sela à sua espera, em baixo na rua, e mil milhas de caminho a fazer para se juntar ao regimento, e ele no entanto estava ali, e era a única tarde que tinha de licença, como se tivesse mil tardes, como se não houvesse pressa ou premência à face da terra, e quando partisse não tivesse de ir mais longe do que as doze milhas até Sutpen's Hundred, onde o esperavam mil dias, ou até anos talvez, de monotonia e paz abastada, e onde ele, mesmo depois de já ter morfido, permanecesse, e visse netos e bisnetos brotarem, perfeitos, até onde a vista alcança; ele ainda, embora morto e enterrado, aquela perfeita estampa de homem como Wash Jones dizia, e que ele agora já não era. Agora estava perdido num nevoeiro por se ter encastelado assim naqueles preceitos da moral: aquele seu gosto por minudêncías abstractas e de pataco, sem ver (disse o Avô) que Roma caía e Jericó desabava, aquele seu isso estaria certo se ou aquilo estaria errado mas de quando o sangue abranda e os ossos e as artérias endurecem, a que o Pai diz que recorrem na senilidade os mesmos homens que, sendo jovens e ágeis e fortes, reagiram a um simples e único Sim e a um simples e único Não, e de maneira tão pronta e completa e irreflectida como é o estalar do interruptor que acende ou apaga a luz eléctrica, e ele sentado ali a conversar e o Avô já nem sabia do que ele falava porque já nem ele, disse o Avô, já nem o próprio Sutpen sabia, porque nem nesse dia Sutpen lhe disse tudo. Eram sempre aqueles seus preceitos da moral, disse o Avô: aqueles preceitos da moral que não lhe permitiriam caluniar ou depreciar a memória da primeira mulher, ou pelo menos a memória do casamento mesmo sentindo ele que o casamento fora uma cilada, nem sequer perante um mero conhecido em cuja confidência e discrição confiava o bastante para querer justificar-se, nem sequer perante o próprio filho de um outro casamento a fim de preservar a posição que era o desejo e a conquista de toda a sua vida, salvo em último recurso. Não que ele hesitasse então, disse o Avô: mas antes, sim. A cilada em que ele caiu ele próprio a tinha armado, mas conseguiu desenredar-se dela sem pedir nem receber ajudas de ninguém; poucos há que assim tão desconsiderados façam o mesmo. - Sentado ali, moralizando sobre o facto de, pouco importava o rumo que escolhesse, a consequência seria que o propósito e o plano aos quais tinha dado cinquenta anos da sua vida era como se nunca tivessem existido afinal durante os cin176

quenta anos quase completos, e o Avô que nem sabia qual era essa escolha, qual era a segunda escolha que ele enfrentava, até ele dizer a derradeira palavra e levantar-se e pôr o chapéu e apertar a mão esquerda ao Avô e partir a cavalo; esta segunda escolha, esta necessidade de fazer uma escolha, tão obscuras para o Avô como a razão da primeira, o repúdio, tinha sido: por isso o Avô nem sequer disse 'Entre uma e outra não sei qual há-de escolher', não porque o Avô não pudesse dizer mais nada e portanto dizer isto seria menos que não dar resposta nenhuma, antes porque, dissesse o Avô o que dissesse, ainda seria menos do que não dar resposta alguma, que Sutpen não o ouvia, não esperava uma resposta, que ele não viera pedir piedade e não havia conselho que ele pudesse tomar, e justificação já ele tinha forçado a consciência a dar-lha há trinta anos. E ele ainda sabia que tinha coragem, e embora ultimamente ele já talvez pusesse em dúvida se teria de facto assimilado essa astúcia que em tempos ele acreditou que possuía, acreditava ainda que ela existia algures no mundo, e que podia ser aprendida, e se houvesse forma de aprendê-lg então ele ainda havia de aprender - e talvez até isto, disse o Avô: se pela astúcia não podia desenredar-se desta segunda vez como aconteceu da primeira, ele podia ao menos contar com a coragem, que lhe daria vontade e força para começar do princípio uma terceira vez o caminho daquele propósito, como lhe deu para começar uma segunda vez - que ele veio ao
escritório não para lhe pedir piedade, nem ajuda, porque o Avô disse que ele nunca aprendeu a pedir ajuda ou fosse o que fosse a ninguém, e portanto nem saberia o que fazer da ajuda se o Avô lha pudesse oferecer, mas veio só com esse alhearnento sereno e sério, na esperança talvez (se alguma esperança ele tinha, se alguma outra coisa ele fizesse que não fosse pensar em voz alta) que um intelecto versado em leis conseguisse distinguir e esclarecer qual fora esse primeiro engano em que ele ainda insistia, o engano que ele próprio não era capaz de encontrar: 'Vi-me na iminência de ou relevar um facto para o qual me empurraram sem eu saber como, durante o processo de construção do meu propósito, um facto que havia de ser uma absoluta e irTevogável negação desse propósito; ou de manter o plano original do meu propósito, na persecução do qual eu tinha incorrido nesta contradição. Fiz a minha escolha, e dei a reparação mais ampla que estava ao meu alcance dar por qualquer dano que eu pudesse ter causado com essa escolha, pagando até mais pelo privilégio de escolher o que escolhi do que se poderia esperar de mim, paguei até mais do que (por lei) se poderia exigir de mim que pagasse. Todavia vejo-me na iminência agora de uma segunda escolha, e o curioso nisto não é, como salientou e a princípio também me pareceu, que esta necessídade de uma nova escolha tenha surgido, mas que, seja qual for a escolha que eu fizer, seja qual for o rumo que eu escolher, a consequência será a mesma: ou destruo com as minhas próprias mãos o meu propósito, o que há-de acontecer se eu for forçado a jogar o último trunfo, ou não faço nada, deixo que as coisas tomem o rumo que eu sei que hão-de tomar, e vejo o meu propósito cumprir-se muito normalmente e naturalmente e com êxito aos olhos dos outros, porém aos meus olhos de uma forma que seria um escárnio e uma traição àquele rapazinho que se abeirou daquela porta há cin177

quenta anos e foi mandado embora, para cuja vingança todo o plano foi concebido e realizado até ao momento desta escolha, a segunda escolha, decorrendo esta daquela primeira que, por sua vez, me foi imposta como consequêncía de um ajuste, um acordo, que eu tinha celebrado em boa-fé, sem nada esconder, ao passo que a outra parte ou partes nesse acordo esconderam de mim o único factor que podia destruir inteiramente o plano e o propósito para que eu vinha trabalhando, e esconderam-no tão bem que só depois de a criança nascer eu descobri que esse factor existia' - "
"O teu velhote", disse Shreve. "Quando o teu avô lhe disse isto, ele percebeu tanto ou tão pouco do que o teu avô dizia como o teu avô percebeu daquilo que estava o demónio a falar quando lho contou a ele, não foi? E o teu velhote, quando te contou a ti, tu não tinhas maneira de perceber do que é que se estava a falar se não tivesses lá ido e encontrado Clytie. Digo bem?"
"Sim", disse Quentin. "O Avô foi o único amigo que ele teve." "Que o deinónio teve?" Quentin não respondeu, não se mexeu. Estava agora frio na saleta. O calor tinha-se quase extinguido nos irradiadores: era o sinal, a exortação fria, austera, sibilante e férrea, ao sono, essa pequena morte, essa renovação. Algum tempo se passara já, desde que batera o carrilhão as onze. "Pronto", disse Shreve. Abraçava-se ele agora dentro do roupão de banho, como antes se abraçara dentro da pele rosada e nua, quase glabra. "E ele fez a sua escolha. Escolheu ser um devasso. Eu também prefiro. Mas adiante." O seu reparo não pretendia ser irreverente, nem mesmo depreciativo. Nascera (se dalguma fonte) daquela incorrigível insensibilidade sensível dos jovens, a qual toma a forma duma leviandade severa e quantas vezes crassa - e ao qual, diga-se, Quentin não prestou sequer atenção, prosseguindo como se não tivera sido interrompido, continuando cabisbaixo, ainda aparentemente run-únando a carta aberta sobre o livro aberto entre as
suas mãos.
"Nessa noite ele partiu para a Virgínia. O Avô disse que foi à janela e o viu atravessar a praça, montado no garanhão negro e descarnado, muito aprumado na sela, de uniforme que um dia fora cinzento, e o chapéu, com as plumas partidas, posto ligeiramente à banda, mas já não tanto como a cartola de castor doutros tempos, como se (disse o Avô) mesmo com a patente e as prerrogativas marciais ele já não tivesse tanta soberba, não porque estivesse temperado pela desgraça, ou exausto, ou mesmo cansado de guerras, mas como se até montado no cavalo estivesse ainda nesse alheamento em que lutava para manter-se arredado e a salvo da voragem dos seres humanos, imprevisíveis e irracionais, a salvo não a cabeça para respirar, e nem os cinquenta anos de esforço e luta para constituir uma posteridade, salvava antes o seu código de moral e de lógica, a sua fórmula e a sua receita de factos e deduções, cuja soma e produto, comparados, declinavam, recusavam nadar ou mesmo flutuar; - víu-o chegar à HoIston House e viu o velho Mr McCaslin mais dois velhos sairem mancando e fazerem-no parar, ele montado no garanhão a falar com eles e sem levantar a voz, disse o Avô, mas forense, oratório, até mesmo na seriedade dos gestos e na postura dos ombros. E seguiu adiante. Podia ainda chegar a Sutpen's Hundred antes de cair a noite, por
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isso foi provavelmente depois da ceia que ele virou a cabeça do garanhão para o Oceano Atlântico, ele e Judith enfrentando-se de novo, por um minuto imenso talvez, ele sem precisar de lhe dizer 'Se puder, hei-de acabar com isso', ela sem precisar de lhe dizer 'Acabe então - se puder' somente um adeus, o beijo na testa, e sem lágrimas; uma palavra a Clyúe, outra a Wash: do patrão à escrava, do barão ao apaniguado: 'Então, Clytie, toma conta de Miss Judith. - Wasli, vou mandar-te um rasgão da casaca do Abe LincoIri lá de Washington' e calculo que Wash tenha respondido como quando estavam os dois no parreiral, de garrafão e balde: 'Tá certo, Querimel; é matar essa canalha toda!' E ele então comeu o pão de enxada e bebeu o café de bolotas secas e foi-se embora. E então chegou-se a 65 e o exército (o Avô também tinha voltado ao exército; já era brigadeiro, mas eu calculo que não foi só por ter perdido um braço) retirava, tinha passado a Geórgia e entrava na Carolina, e todos eles sabiam que isto já não podia durar muito maís tempo. E um dia Lee mandou reforços a Johnston de uma das suas unidades e o Avô soube que o Vigésimo Terceiro do Mississipi era um dos regimentos. E ele (o Avô) não sabia o que tinha acontecido: se Sutpen tinha dalguma forma descoberto que Henry tinha forçado enfim a sua consciência a concordar com ele, tal como o pai (de Henry) tinha feito há trinta anos, se Judith teria talvez escrito ao pai dizendo que tinha recebido enfim carta de Bon e o que ela e Bon pretendiam fazer, ou se todos quatro haviam chegado como se fossem um só àquele ponto em que alguma coisa tería de ser feita, alguma coisa teria de acontecer, ele (o Avô) não sabia. Só soube certa manhã que Sutpen montou a cavalo e foi ao quartel-general do antigo regimento do Avô e pediu autorização para falar com Henry e foi autorizado e que falou com ele de facto e depois foi-se embora antes da meia-noite."
"Então ele não teve escolha, afinal", disse Shreve. "Afinal sempre jogou o trunfo. E ele então voltou da guerra e foi encontrar - "
"Espera", disse Quentin. " - o que ele queria encontrar com certeza, ou assim como assim o que já tinha de ser e que foi - "
"Espera, já disse!" volveu Quentin, embora continuasse imóvel e nem sequer levantasse a voz - essa voz com o seu quê de tenso e permeado e reprimido: "Eu é que estou a contar" Terei eu de ouvir a mesma coisa outra vez pensou ele Vou ter de ouvir a mesma coisa outra vez cá está a mesma coisa outra vez estou a ouvir a mesma coisa outra vez é a minha sina ouvi .r sempre sempre a mesma coisa então pelos vistos não só um homem nunca sobrevive ao pai mas nem sequer os seus amigos e conhecidos lhe sobrevi .vem: - (pelo menos aquilo com respeito ao qual não devia precisar fosse de recado, fosse de aviso, mesmo se Judith lhe tivesse mandado recado, lhe tivesse mandado confirmação de que fora derrotada, ela que, disse Nir Compson, não lhe teria mandado confirmação de que ele a tinha derrotado, e mais, nem sequer de que esperava (ela, de quem Miss Coldfield disse que não sofria o luto), e foi ao seu encontro quando ele voltou, não com a fúria e o desespero talvez que ele podia esperar nela, mesmo sabendo ele tão pouco, ou tender aprendido ele tão pouco, das mulheres quanto Mr Compson
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disse, mas certamente com algo mais além da calma de gelo com a qual, disse Miss Coldfield, ela foi ao seu encontro - e de novo o beijo, passados dois anos quase, na testa; as vozes, as falas, serenas, contidas, quase impessoais: "E - ?" "Sim. O Henry matou-o" e depois as breves lágrimas que cessaram no instante em que tinham começado, como se a humidade fosse um véu, uma camada tão fina como a mortalha dum cigarro, com forma de cara humana; esse "Ah, Clytie. Ah, Rosa. - Então, Wash. Não consegui penetrar o suficiente na retaguarda das linhas Ianques para cortar um rasgão daquela casaca como te prorneti"; o espirralhar, o casquinar (de Jones) da gargalhada, * mesma estabilidade imbecil do barro feito homem que, disse Mr Compson, * capaz de sobreviver tanto às vitórias como às derrotas: "Então, Querunel, eles bem que malharam mas inda não deram cabo da gente, olha quem!": e ponto final. Tinha voltado. Estava outra vez em sua casa, e agora o seu problema seria a pressa, o passar do tempo, a precisão de estugar o passo. Não lhe davam cuidado agora, disse Mr Compson, nem a coragem nem a vontade, nem sequer a astúcia. Não lhe qualquer dava cuidado a sua capacidade em começar uma terceira vez, não. O que lhe dava cuidado era que, possivelmente, já não teria tempo de o fazer de recuperar o terreno perdido. Também não desperdiçou o pouco tempo que tinha. Vontade e astúcia também ele não desperdiçou, embora por certo não considerasse que tinha sido a vontade ou a astúcia o que lhe conseguira aquele compasso de espera para jogar a cartada, a opor7unidade, e foi provavelmente menos astúcia e mais coragem do que até vontade o que o levou aficar noivo de Miss Rosa mal tinham passado uns três meses e antes quase de ela dar por isso - Miss Rosa, a principal discipula e advogada desse culto, oflagelo dos demónios, de que ele era o principal objecto (ainda que nãofosse a vítima) noiva do homem que ainda mal se tinha acostumado a ver em casa; - sim, mais coragem até do que vontade, e
contudo uma certa astúcia também: a astúcia, assimilada em infimas e excruciantes parcelas por esses cinquenta anos, que subitamente capitulava, retroactiva, ou subitamente germinava e floria, como a sementeira maninha no vácuo ou num único torrão de terra dura. Porque ele parecia distinguir sem deter-se, naquela passagem pela casa que era unia continuação ininterrupta da longa viagem começada na Vírgínia, distinguir a pausa, não para saudar a família, mas meramente para apanhar Jortes e arrastá-lo para o meio dos campos afogados em roseiras bravas e para as cercas tombadas e tacar-lhe nas mãos o machado ou o alvião, que o único pontofraco, o único ponto vulnerável ao assalto, era a donzelia encastelada de Miss Rosa, que ele tomou de assalto e venceu sem hesitar com os restos da perícia táctica e ímpiedosa do seu antigo mestre (o Vigésimo Terceiro do Mississipi esteve sob o comando de Jack;son a dada altura). E depois a astúciafaltou-lhe outra vez. Que se perdeu, sumiu-se, nessa antiga e impotente lógica e nos preceitos da sua moral quejá antes o tinham traído: e quandofoi, em que dia, em que leirafoi que ele estacou, um pé avançando, a rabiça insciente do arado nas mãos súbitas e insci.entes, que tábua da vedação erguida no ar como se não tivera peso, pelos músculos que o não podiam sentir, quandofoi que ele se deu conta que o seu problema tinha mais o que se lhe dissesse e não era só escassez do tempo, e
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que o problema continha alguma sobre-ressumação dessa mesma escassez: que ele agorajá passara dos sessenta e possivelmente só Roderia ter mais um
filho, tinha na melhor das hipóteses apenas mais um filho dentro de si, como
saberá o velho canhão que tem apenas uma bala mais na sua corporalidade. Por isso ele sugeriu o que sugeriu, e ela fez o que ele já devia contar que ela fizesse, e provavelmente contaria, sim, se não estivesse de novo atascado nos preceitos dessa moral, inteira no seu maquinismo e recusando-se porém afimcionar, a trabalhar Daí a proposta de casamento, o ultraje e a incredulidade; a maré, a explosão de indignação e revolta em que Miss Rosa sumiu de Sutpen @ Hundred, as saias enfunando-se espalhadas sobre a cheia, e leves comopalha, o chapéu (possivelmente um chapéu de Ellen, que ela tivesse rebuscado no
sótão) bem enterrado na cabeça, rigido e precário de tanta raiva. E ele de pé, ali, com as rédeas no braço, com o que havia de assemelhar-se talvez a um sor7iso repuxando a barba e bailando nos olhos, mas que não era um sor7iso, antes a crispada concentração de um pensarfebril: - a pressa, que era necessária apressa; a premencia, mas não o medo, não o cuidado: só ofacto de ele dessa vez terfalhado, emborafélizmente dessa vez o tirofosse apenas de reconhecimento, com uma carga ligeira, sem que a velha arma, o velho cano e a carreta velha sofressempor isso; só que da próxima vezpoderiajá não haver pólvora bastantepara dois, o tiro de reconhecimanto e logo depois um tiro certeiro; - só ofio da astúcia e da coragem e da vontade a enrolar-se no mesmo fuso em que se enrolava ofio dos dias que lhe restavam, e essefuso que estava quase tão perto dele que lhe bastaria estender a mão que o tocava. Mas este não era um cuidado sério ainda, porque tudo (a lógica muito sua, os muito seus preceitos da moral, que sempre, infalivelmente, o deixavatrificar mal) cumpria já o modelo, mostravajá, e de modo convincente, que ele estivera com a razão, coisa de que ele nunca duvidara, e portanto o que tinha acontecido era apenas unia ilusão e não existia em realidade)
"Não", disse Shreve; "tu é que esperas. Deixa-me dizer um bocadinho eu agora. Agora, o Wash. Ele (o demónio) ali de pé com o seu cavalo, o cavalo de batalha, selado, o seu sabre embainhado, de uniforme cinzento vestido, enquanto não chegava a hora de ficar pacificamente guardado a
ganhar traça, e perca-se tudo menos a desonra: depois a voz do recoveiro fiel que iniciou a peça e havia de acabá-la, a voz que vinha dos bastidores como se fosse a do próprio Shakespeare: Tritão, Querunel, eles bem que malharam mas inda não deram cabo da gente, olha quem!' - " Isto não era tão-pouco irreverência. Era ainda e tão-somente a cor protectora da leviandade que mascarava a juvenil vergonha de comover-se, a mesma que permeava as palavras de Quentin, e era a razão do alheamento sombrio de Quentin, da desenvoltura (em ambos) e da forçada farsa: em ambos, quer o soubessem quer não, ali na saleta fria (muito fria agora) e dedicada a esse raciocínio superior que era afinal bastante parecido com os preceitos da moral de Sutpen e o demonismo de Miss Coldfield - esta saleta não só a isso dedicada mas para isso feita, e apropriadamente, pois teria sido ali, mais do que em qualquer outro lugar, que isso (a lógica e os preceitos da moral) poderia causar a ofensa menor -; ambos costas com costas, como se estivessem na
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disse, mas certamente com algo mais além da calma de gelo com a qual, disse Miss Coldfield, ela foi ao seu encontro - e de novo o beijo, passados dois anos quase, na testa; as vozes, as falas, serenas, contidas, quase impessoais: "E - ?" "Sim. O Henry inatou-o" e depois as breves lágrimas que cessaram no instante em que tinham começado, como se a humidade fosse um véu, uma camada tão fina como a mortalha dum cigarro, com forma de cara humana; esse "Ah, Clytíe. Ah, Rosa. - Então, Wash. Não consegui penetrar o suficiente na retaguarda das linhas lanques para cortar um rasgão daquela casaca como te prometi "; o espirralhar, o casquinar (de Jones) da gargalhada, a mesma estabilidade imbecil do barro feito homem que, disse Mr Compson, é capaz de sobreviver tanto às vitórias como às derrotas: "Então, Querunel, eles bem que malharam mas inda não deram cabo da gente, olha quem! ": e ponto final. Tinha voltado. Estava outra vez em sua casa, e agora o seu problema seria a pressa, o passar do tempo, a precisão de estugar o passo. Não lhe davam cuidado agora, disse Mi- Compson, nem a coragem nem a vontade, nem sequer a astúcia. Não lhe qualquer dava cuidado a sua capacidade em começar uma terceira vez, não. O que lhe dava cuidado era que, possivelmente, já não teria tempo de ofazer de recuperar o terreno perdido. Também não desperdiçou o pouco tempo que tinha. Vontade e astúcia também ele não desperdiçou, embora por certo não considerasse que tinha sido a vontade ou a astúcia o que lhe conseguira aquele compasso de espera para jogar a cartada, a oportunidade, e foi provavelmente menos astúcia e mais coragem do que até vontade o que o levou aficar noivo de Miss Rosa mal tinham passado uns três meses e antes quase de ela dar por isso - Miss Rosa, a principal discípula e advogada desse culto, oflagelo dos demónios, de que ele era o principal objecto (ainda que nãofosse a vítima) noiva do homem que ainda mal se
tinha acostumado a ver em casa; - sim, mais coragem até do que vontade, e contudo uma certa astúcia também: a astúcia, assimilada em ínfimas e excruciantes parcelas por esses cinquenta anos, que subitamente capitulava, retroactiva, ou subitamente germinava e floria, como a sementeira maninha no vácuo ou num único torrão de terra dura. Porque ele parecia distinguir sem deter-se, naquela passagem pela casa que era uma continuação ininterrupta da longa viagem começada na Virgínia, distinguir a pausa, não para saudar a familia, mas meramente para apanhar Jones e arrastá-lo para o meio dos campos afogados em roseiras bravas e para as cercas tombadas e tacar-lhe nas mãos o machado ou o alvião, que o único pontofraco, o único ponto vulnerável ao assalto, era a donzelia encastelada de Miss Rosa, que ele tomou de assalto e venceu sem hesitar com os restos da perícia táctica e ímpiedosa do seu antigo mestre (o Vigésimo Terceiro do Mississipi esteve sob o comando de Jackson a dada altura). E depois a astúciafaltou-lhe outra vez. Que se perdeu, sumiu-se, nessa antiga e impotente lógica e nos preceitos da sua moral quejá antes o tinham traído: e quandofoi, em que dia, em que leirafoi que ele estacou, um pé avançando, a rabiça insciente do arado nas mãos súbitas e íriscientes, que tábua da vedação erguida no ar como se não tivera peso, pelos músculos que o não podiam sentir quandofoi que ele se deu conta que o seu
problema tinha mais o que se lhe dissesse e não era só escassez do tempo, e
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que o problema continha alguma sobre-ressumação dessa mesma escassez: que ele agorajá passara dos sessenta e possivelmente só Roderia ter mais um
filho, tinha na melhor das hipóteses apenas mais um filho dentro de si, como saberá o velho canhão que tem apenas uma bala mais na sua corporalidade. Por isso ele sugeriu o que sugeriu, e ela fez o que ele já devia contar que ela fizesse, e provavelmente contaria, sim, se não estivesse de novo atascado nos preceitos dessa moral, inteira no seu maquinismo e recusando-se porém afimcionar, a trabalhar Daí a proposta de casamento, o ultraje e a incredulidade; a maré, a explosão de indignação e revolta em que Miss Rosa sumiu de Suipen @ Hundred, as saias enfunando-se espalhadas sobre a cheia, e leves comopalha, o chapéu (possivelmente um chapéu de Ellen, que ela tivesse rebuscado no sótão) bem enterrado na cabeça, rígido e precário de tanta raiva. E ele de pé, ali, com as rédeas no braço, com o que havia de assemelhar-se talvez a um
sor7iso repuxando a barba e bailando nos olhos, mas que não era um sorriso, antes a crispada concentração de um pensarfebril: - a pressa, que era necessária a pressa; a premência, mas não o medo, não o cuidado: só ofacto de ele dessa vez terfalhado, emborajelizmente dessa vez o tirofosse apenas de reconhecimento, com uma carga ligeira, sem que a velha arma, o velho cano e a carreta velha sofressempor isso; só que da próxima vezpoderiajá não haver pólvora bastantepara dois, o tiro de reconhecimanto e logo depois um tiro certeiro; - só ofio da astúcia e da coragem e da vontade a enrolar-se no mesmo fuso em que se enrolava ofio dos dias que lhe restavam, e essefuso que estava quase tão perto dele que lhe bastaria estender a mão que o tocava. Mas este não era um cuidado sério ainda, porque tudo (a lógica muito sua, os muito seus
preceitos da moral, que sempre, infalivelmente, o deàavamficar mal) cumpria já o modelo, mostravajá, e de modo convincente, que ele estivera com a razão, coisa de que ele nunca duvidara, e portanto o que tinha acontecido era apenas unia ilusão e não existia em realidade)
"Não", disse Shreve; "tu é que esperas. Deixa-me dizer um bocadinho eu agora. Agora, o Wash. Ele (o deinónio) ali de pé com o seu cavalo, o cavalo de batalha, selado, o seu sabre embainhado, de uniforme cinzento vestido, enquanto não chegava a hora de ficar pacificamente guardado a ganhar traça, e perca-se tudo menos a desonra: depois a voz do recoveiro fiel que iniciou a peça e havia de acabá-la, a voz que vinha dos bastidores como se fosse a do próprio Shakespeare: 'Então, Querunel, eles bem que malharam mas inda não deram cabo da gente, olha quem!' - " Isto não era tão-pouco irreverência. Era ainda e tão-somente a cor protectora da leviandade que mascarava a juvenil vergonha de comover-se, a mesma que permeava as palavras de Quentin, e era a razão do alheamento sombrio de Quentin, da desenvoltura (em ambos) e da forçada farsa: em ambos, quer o soubessem quer não, ali na saleta fria (muito fria agora) e dedicada a esse raciocínio superior que era afinal bastante parecido com os preceitos da moral de Sutpen e o demonismo de Miss Coldfield - esta saleta não só a isso dedicada mas para isso feita, e apropriadamente, pois teria sido ali, mais do que em qualquer outro lugar, que isso (a lógica e os preceitos da moral) poderia causar a ofensa menor -; ambos costas com costas, como se estivessem na
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última trincheira, dizendo Não à sombra do Mississipi de Quentin, que em vida agira e reagira à mais ínfima lógica e à moral mais ínfima, que ao morrer lhes escapara por completo, que, morto, continuava não só indiferente mas intocado, e de certa maneira mil vezes mais possante e mais vivo. Não tinha Slireve intenção de ofender nem Quentin se ofendeu, que nem sequer se calou. Nem sequer perdeu o fio do discurso, tomando a narrativa a Slireve sem vírgula, dois pontos ou parágrafo:
" -já sem reservas com que arriscar um tiro de reconhecimento, por isso disparou este, como quem levanta a lebre dum tufo de roseiras bravas com um pequeno torrão de lama seca atirado à mão. Talvez fosse o primeiro colar de contas da lojeca, sua e do Wash, onde ele, quando se irritava com os fregueses, os nigros e a rabacuada e a regatice, os punha porta fora e bebia até já não ver mais nada. E porventura foi o próprio Wash quem levou os colares de contas, disse o Pai, que ele estava em baixo ao portão quando ele voltou da guerra naquele dia, que ele, depois de se ter ido ele embora com o regimento, dizia a toda a gente que (ele, Wash) estava a tomar conta da propriedade e dos nigros do Querunel, e tanto disse que até já ele acreditava talvez no que dizia. A mãe do Pai disse que os nigros de Sutpen, quando souberam o que ele andava a dizer, faziam-no parar na estrada que vinha da chã, onde era a cabana do pesqueiro velho em que Sutpen os tinha deixado, à neta (que tinha uns oito anos por essa altura) e a ele, viver. E deviam ser tantos que ele não podia chicoteá-los a todos, nem levantar a mão sequer; arriscar-se a levantar a mão: e eles então perguntavam por que não estava ele na guerra e ele dizia, 'Andar daí da minha estrada, ó nigros!' e depois vinham as gargalhadas francas, perguntando-se eles uns aos outros (salvo que não era uns aos outros, era a ele): 'Por o quem se toma ele, a chamar nígaros a nós?' e ele corria para eles armado corri um pau e eles escapam de raspão, sem raiva nenhuma, só a rir. E ele ainda trazia o peixe e a caça que matava (ou roubava, talvez) e as hortaliças até à casa, quando esse era o único sustento de Mrs Sutpen e Judith (e de Clytíe também), e Clytie não o deixava entrar na cozinha sequer, com a cesta, e dizia, 'Fica por aí mesmo, branco. Fica por aí mesmo onde estás, você que nunca passou esta porta enquanto o Coronel cá estava pois não vai passar agora.' O que era verdade, mas o Pai disse que havia uma espécie de orgulho nisso: que ele nunca tivesse querido entrar na casa, mesmo acreditando ele que, se quisesse entrar, Sutpen não deixaria que elas o repulsassem: como (disse o Pai) se ele dissesse para consigo A razão por queu não passo não é queu não queira dar a um preto nigro ocasião de me dizer que eu não posso passar mas é porqueu não vou agora obrigar Mister Tom a ter que remugir cô um nigro ou a ter que ouvir a mulher a remugir cô ele por minha causa Mas lá iam os dois beber para o parreiral de scuppernongs, pelas tardes de domingo, e nos dias de semana ele via Sutpen (a perfeita estampa de homem como ele dizia) passar, montado no garanhão negro, galopando pela plantação, e o Pai disse que nesse momento o coração do Wash devia estar sereno e orgulhoso também, e que lhe havia de parecer que este mundo onde os nigros, que a Bíblia diz que foram criados e amaldiçoados por Deus a ser bestiais e vassalos de todos os homens
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de pele branca, estavam mais bem alimentados e alojados e até mais bem vestidos do que ele e a neta - que este mundo, onde ele vivia sempre no eco
trocista e escarninho do riso negro, não era mais que um sonho e uma ilusão, e que o mundo verdadeiro era aquele onde a sua solitária apoteose (disse o
Pai) galopava no puro-sangue negro, e havia de pensar talvez, disse o Pai, que a Bíblia diz que os homens foram todos criados à imagem de Deus e por isso todos são iguais aos olhos de Deus afinal, para Deus pelo menos são todos iguais, e por isso ele devia olhar para Sutpen e pensar Um homem prefeito, de ralé. Se o própio Deus viesse cá baixo e andasse a cavalo por terra natural, era assim qu'Ele queria de se ver. Porventura foi ele até quem levou à neta o primeiro colar de contas e, disse o Pai, porventura até os laços depois, um por um, pelos três anos seguintes em que a rapariga rapidamente se fazia mulher como às raparigas desse meio acontece; ou se não foi ele, havia de conhecer e reconhecer, um por um, todos os laços quando os visse postos, ainda se ela mentisse a contar onde e como os arrranjara, o que ela provavelmente não fazia, porque ela sabia com certeza que ele conhecia os laços da vitrina, de os ter visto, dia após dia, ao longo desses três anos, os conhecia tão bem como os sapatos que tinha calçados. E não só ele os conhecia, como todos os outros homens os conheciam, os fregueses e os madraços, os
brancos e os negros, que estariam sentados e acocorados pela varanda da loja a vê-la que passava, não propriamente em desafio, não propriamente encolhida de medo, e não propriamente a fazer gala dos laços e dos colares, mas quase; não era propriamente nenhuma dessas coisas, mas era um pouco de todas elas: arrogante, sombria e temerosa. Mas o Pai disse que o coração do Wash devia ainda estar provavelmente sereno, mesmo depois de ver o vestido e de falar do vestido, provavelmente só um tanto grave, a olhar a cara dela, desafiadora e reservada e assustada, quando ela disse (antes que ele o perguntasse, talvez com uma insistência despropositada, a dar logo as explicações que ninguém lhe pedira) que Miss Judith lho tinha dado, e a ajudou a fazê-lo: e o Pai disse que porventura ele compreendeu, subitamente, inesperadamente, que a ele, quando passava, os homens na varanda também o seguiam com o olhar e sabiam aquilo que só agora ele percebia que os outros provavelmente pensavam. Mas o Pai disse que o seu coração estava ainda sereno, mesmo agora, e que ele respondeu, se alguma coisa respondeu, calando protestos e negativas de uma vez por todas: 'Tá certo. Su Querunel e a Miss Judith te lo deram, o vestido, anda lá se agradecestes como deve de ser.' - Não em cuidado, disse o Pai: só pensativo, só grave; e o Pai disse que nessa tarde o Avô foi lá, que tinha de falar com Sutpen, e não havia ninguém na frente da loja e ele estava já para se ir embora e pôr-se a caminho da casa quando ouviu vozes nas traseiras, e desmontou e aproximou-se e então ouviu o que eles diziam ainda antes que pudesse desviar a atenção do que ouvia, e antes que pudesse fazer-se ouvir por eles chamando por Sutpen. O Avô não os conseguia ver, ainda nem sequer tinha chegado onde eles o pudessem ouvir, mas disse que sabia exactamente o que se passar-la: Sutpen já teria dito a Wash que fosse buscar o jarro e depois Wash falou e Sutpen começou a voltar-se, percebendo que Wash não iria buscar o jarro, antes de compre183

ender o alcance do que Wash dizia, depois compreendeu, e ainda meio voltado, e depois subitamente como que se empinou todo, e esticou o queixo, e olhou para Wash, e Wash ali de pé, sem se encolher de medo sequer, numa atitude obstinada e serena e sem se encolher, e Sutpen disse, 'O que é que tem o vestido?' e o Avô disse que era a voz de Sutpen que era brusca e desabrida: não a de Wash; que a voz de Wash era apenas monótona e serena, abjecta não: só paciente e vagarosa: 'Eu já o conheço vai pra vinte anos. Inda
nunca me neguei a fazer seja o que fon E eu sou um homem que já passou dos sessenta. E ela é uma rapariguinha de quinze.' e Sutpen disse, 'Julgas que eu ia fazer mal à rapariga? Eu, que sou tão velho como tu?' e Wash: 'Se fosse outro, dizia quiera tão velho como eu. Mas sendo velho ou não sendo, eu não le dava ordem de aceitar o vestido nem coisa nenhuma que viesse da mão dele. Mas você é difrente.' e Sutpen: 'Diferente em quê?' e o Avô disse que o Wash não respondeu, e que ele então voltou a chamar e nenhum dos dois o ouviu; e Sutpen disse: 'Então é por isso que me tens medo?' e Wash, 'Eu não tenho medo. Que você é um valente. Não é lá por ter sido um valente num segundo ou num minuto ou numa hora da sua vida e por ter um papel a dizer que foi, do general Lee. Mas você é um valente, e tão certo comeu o estar aqui a ver. Aí é que está a difrença. Não preciso cá de papel nenhum pra saber. E eu sei que pegue seja lá no que for, seja ou um regimento de homens ou uma rapariga iguenorante ou nem que seja um cão de caça, você há-de fazer as coisas como deve de ser.' Então o Avô ouviu Sutpen mexer-se, desabrido e repentino, e o Avô disse que então calculou, pensou, que ele estaria a pensar naquilo que Wash devia estar a pensar. Mas Sutpen só disse, 'Vai buscar o jarro.' - 'Tá certo, Querunel,' disse Wash.
"E chegou esse domingo, um ano depois desse dia, e três anos depois de ele ter sugerido a Miss Rosa que fizessem primeiro a experiência e que, se fosse um rapaz e sobrevivesse, eles casavam. Ainda não amanhecera e ele estava à espera que a égua parisse do garanhão negro, e saiu de casa ainda antes de amanhecer nesse dia, e Judith pensou que ele fosse à cavalariça, que, se ela sabia do pai e da neta de Wash, e o quê, e o quanto, ninguém soube, o muito que ela não podia deixar de saber pelo que sabia Clytie (que talvez lhe tenha contado ou talvez não, se soubesse) porque toda a gente sabia, tanto os brancos como os negros da vizinhança, que sempre tinham visto a rapariga passar com os laços e os colares que todos eles reconheceram, o muito que ela deve ter-se recusado a perceber enquanto se provava e cosia esse vestido (o Pai disse que Judith chegou mesmo a coser o vestido; não era mentira o que a rapariga tinha contado a Wash: as duas sozinhas o dia inteiro, durante quase uma semana, lá em casa: e do que elas devem ter conversado, do que Judith deve ter falado enquanto a rapariga por ali estava, nas pobres roupas interiores que possuísse, de cara sombria, desafiadora, reservada, vigilante, respondendo a quê, dizendo o quê, a que Judith pode ter querido ou não fechar os olhos, ninguém sabe). Portanto foi só quando ele não apareceu à hora do jantar que ela foi, ou mandou Clytie, à cavalariça e soube que a égua tinha parido nessa noite irias que o pai não estava lá. E foi só a meio da tarde que ela achou um rapazote que por um níquel fosse
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à cabana do pesqueiro velho e perguntasse a Wash onde estava Sutpen, e o rapaz virou assobiando a esquina da cabana que apodrecia e viu logo a segadeira talvez, ou talvez o corpo caído nas ervas que Wash ainda não tinha segado, e ao gritar levantou os olhos e viu o Wash à janela, a observá-lo. Depois, cerca de uma semana mais tarde, eles apanharam a nigra, a parteira, e
ela contou que nem sabia que o Wash lá estava, nessa madrugada, quando ouviu o cavalo e depois os passos de Sutpen e ele entrou e chegou-se ao pé da enxerga, onde estava a rapariga com o bebé, e disse, 'A Penélope - ("era a égua") - pariu esta manhã. E é bonito o raio do potro. Vai ter a pinta escarrada do pai como ele era quando o levei para o Norte em 61. Lembras-teT e a nigra velha disse que tinha dito, 'Sim, Paterão' e que ele sacudiu a chibata apontando a enxerga e disse, 'Então? Raios te partam, preta: é macho ou fêmea?' e que ela disse o que era, e ele ficou ali por um minuto, sem mexer um músculo, a bater com a chibata na perna, e as adufas de luz da parede sem aberturas caindo sobre ele, sobre o cabelo branco e a barba que não tinha embranquecido ainda, e ela disse que viu os olhos dele, e depois os dentes no meio da barba, e disse que só queria era fugir mas não pôde, que não tinha força nas pernas para se levantar e correr dali para fora: e depois ele voltou a olhar a rapariga deitada na enxerga e disse, Trifim, Milly; é uma pena que não sejas também uma égua. Se fosses, dava-te uma baia decente na cavalariça' e voltou costas e foí-se embora. Só que ela não estava capaz ainda de se mexer, nem sabia sequer que Wash estava lá fora; só ouviu Sutpen que dizia, 'Nem mais um passo, Wash. Não me toques': e depois o Wash, em voz tão branda que ela donde estava mal a ouviu: 'Que tarrebento, Querunel': e Sutpen outra vez: 'Nem mais um passo, Wash!' ríspido agora, e depois ouviu a chibata na cara de Wash, mas nem sabia se tinha ouvido a segadeira, porque ela agora sentia que era já capaz de se mexer, de se levantar: e saiu a correr da cabana, a correr pelas ervas, a correr - "
"Espera", disse Shreve; "espera. Dizes tu que ele enfim tinha o filho que ele queria, e mesmo assim ele ainda - "
" - fez as três milhas de caminho, ida e volta, ainda não era meia-noite, para ir buscar a nigra velha, depois sentou-se na varanda abaulada até que o dia rompeu e a neta parou de gritar lá dentro e até chegou a ouvir o bebé, ali à espera de Sutpen. E o Pai disse que o seu coração agora estava sereno também, mesmo sabendo ele o que havia de se dizer por todas as cabanas das redondezas quando caísse a noite, como sabia o que se tinha dito nesses quatro ou cinco meses em que o estado da neta (que ele nunca tentou encobrir) já não daria lugar a enganos: O Wash Jones láfez a cama ao Suipen. Demorou vinte anos, mas agora o Sutpen não escapa, há-de ser ou vai ou racha. Foi o que o Pai disse que ele estaria a pensar enquanto esperava lá fora, na varanda, para onde a nigra velha o mandou que não o queria lá dentro, ali esperava porventura junto àquele poste onde a segadeira tinha ficado a ganhar ferrugem por dois anos, ouvindo os gritos da neta que pendularmente chegavam agora, mas o coração a ele batia-lhe sereno, sem cuidado nem susto; e o Pai disse que porventura enquanto esteve ali, procurando pôr uma ordem nas ideias que o atarantavam (os seus preceitos de moral eram muito pare185

cidos com os de Sutpen, e asseguravam-lhe que estava com a razão em face do que tinha acontecido, e também do costume da terra e tudo o mais), em que sempre se confundiu de certa forma e se misturou esse galope de cavalos, mesmo durante a paz velha que ninguém lembrava, e naqueles quatro anos de uma guerra a que ele não tinha assistido o galope fora até mais galhardo e mais orgulhoso, atroador; - o Pai disse que ele teve a resposta, quem sabe; que porventura ali é que ficou livre e manifesta, em meio de um galope contra o céu amarelo da madrugada, a perfeita e orgulhosa estampa do homem na perfeita e orgulhosa estampa do garanhão, e o seu atarantado pensamento se fez também livre e claro, não por justificar ou explicar ou achar atenuante e desculpa, disse o Pai, mas em solitária apoteose, explicável, para além de toda a baixeza humana: Ele é maior que todos aqueles Ienquis que nos mataram a nós e ao quiéra nosso, que le mataram a mulher e le fizeram da filha uma viúva e le tiraram o filho de casa, que le roubaram os nigros e le deram cabo das terras; maior que esta terra toda que ele mercia, e em paga o pôs a tomar conta duma lojeca de província pra poder ganhar o pão e a carne; maior que o desprezo e a reprova que le puseram à boca assim como se fosse o cálix da amargura da Bíblia. E como é queu podia viver ao pé dele vinte anos sem ser tocado e transformado por ele? Posso não ser tão grande como ele é, e posso não ter andado por aía galope. Mas ao menos fui arrastado com ele pra onde ele foi. E eu mais ele inda podemos andar e havemos sempre dandar, assim ele me queira dizer o que tem na ideia que eufaça; e porventura ali, segurando as rédeas do garanhão, quando Sutpen entrou na cabana, ouvia ainda o galope, via aquela imagem orgulhosa e galopante passar, fundir-se galopando com os avatares que marcam a acumulação dos anos, do tempo, no perfeito clímax onde galopava, sem cansaço nem progresso, para todo o sempre imortal, de sabre desembainhado, e as bandeiras rasgadas pelo tiroteio precipitando-se dum céu da cor da trovoada; ali ficou, ouvindo Sutpen. dentro da casa que dizia à neta a única frase que foi saudação e pergunta e despedida, e o Pai disse que por um momento Wash não deve ter sentido sequer a terra debaixo dos pés quando viu Sutpen sair de casa, de chibata na mão, e pensaria, sereno, como num sonho: Não pode ser queu ouvisse o que ouvi. Não pode ser pensaria Foi isto que o fez alçar da cama. Foi o potro. Não fui eu nem criação minha. Nem sequerfoi a criação dele que ofez alçar da cama sem sentir a terra talvez, a estabilidade, nem mesmo agora, nem ouvia porventura a própria voz, quando Sutpen o olhou na cara (a cara do homem que nesses vinte anos Sutpen, não soubera que fizesse alguma coisa salvo se a ordem sua, tal e qual o garanhão que montava) e parou: 'Você disse que sela fosse uma égua le dava uma baia decente na cavalariça', nem ouviu porventura o que dizia Sutpen, que volveu, repentino e ríspido: 'Nem mais um passo. Não me toques' mas deve ter ouvido porque respondeu: 'Que tarrebento, Querunel' e Sutpen repetiu 'Nem mais um passo, Wash' antes de a velha ouvir a chibata. Só que houve dois golpes de chibata; eles viram os dois vergões na cara do Wash nessa noite. Talvez os dois açoites o tivessem mesmo deitado ao chão; talvez fosse ao levantar-se que ele apanhou a segadeira - "
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"Espera", disse Shreve; "Pelo amor de Deus, espera lá. Dizes tu que ele - " " - ficou ali sentado o dia inteiro aojanelo, donde podia ver o caminho; provavelmente pousou a segadeira e entrou logo em casa, onde porventura a neta lá da enxerga perguntou o que tinha sido, e ele a responder, 'O quê? Qual inferneira, minha flor?' e porventura ainda a persuadiu a comer - a comer o entrecosto em salmoura que ele trouxera da loja provavelmente, no sábado à noite, ou porventura os rebuçados, porventura a ver se a tentava - dez cêntimos de uma goma gelatinosa e sediça dentro duma saca de listrado, e também ele terá comido alguma coisa, e depois sentou-se à janela donde podia ver além do corpo e da segadeira em baixo nas ervas, e vigiar o caminho. Porque ele estava ali sentado quando o rapazote virou a esquina da casa a assobiar e o viu. E o Pai disse que ele deve ter percebido então que ia ser de noite, mas já não tardaria muito; que ele deve ter ficado ali sentado, pressentindo, sentindo, que eles se juntavam com os cavalos e os cães e as armas - os curiosos e os vingativos - os iguais de Sutpen, que de costume comiam à mesa
com ele nesse tempo em que ele (Wash) ainda não se aproximava da casa
mais que o parreiral de scuppernongs - homens que tinham tomado a dianteira, mostrado aos outros, seus inferiores, como se luta em batalhas, que talvez possuíssem também papéis assinados por generais a dizer que eles foram dos primeiros e dos maiores entre os valentes - homens que também outrora tinham galopado, arrogantes e orgulhosos, em belos cavalos por essas belas plantações - símbolos também de admiração e esperança, e também instrumentos de dor e desespero; era destes que ele devia fugir, e provavelmente viu que não tinha donde fugir, e menos ainda para onde fugir; que se o fizesse, fugiria apenas de uma série de sombras malévolas e fanfarrãs para achar logo outras, que eles (os homens) eram todos duma igualha em toda a parte desse mundo que ele conhecia, e ele era um velho, tão velho que já nem correr podia, mesmo se quisesse fugir, que nunca lhes poderia fugir por muito que ele corresse e por mais longe que fosse; um homem passado já dos sessenta não pode fugir para tão longe assim, tão longe que passasse as extremas da terra em que estes homens viviam, e estabeléciam a ordem e as regras do viver: e o Pai disse que em toda a sua vida terá sido essa a primeira vez em que vislumbrou como foi possível que os Ianques ou outro exército qualquer os tivessem derrotado - os galhardos homens de orgulho e valentia; os manifestamente escolhidos como sendo os melhores entre todos para levar o estandarte da coragem e da honra e do orgulho. Já se punha o sol talvez, e
ele porventura já os sentia, aproximando-se; o Pai disse que provavelmente lhe terá parecido que os ouvia até; as vozes todas, um sussurro Amanhã e amanhã e amanhã, mais além da fúria imediata*: " o Wash Jones deu cos burrinhos nágua. Pensava que tinha apanhado o Sutpen, mas o Sutpen bem que o enganou. Pensava, é agora que o vou apanhar mas o Wash Jones é quefoi bem enganado e depois porventura até o disse em voz alta, o gritou, disse o Pai: 'Mas eu nunca fiz conta disso, Querunel! Bem sabe que não!' até que a neta porventura se mexeu e disse alguma coisa na sua voz lamuriosa e ele foi sossegá-la e depois saiu para falar à vontade consigo mesmo, mas agora com cuidado, em silêncio agora, porque Sutpen estava tão perto
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que poderia ouvi-lo, agora sem gritar: 'Bem sabe que não. Sabe queu nunca
fiz conta disso nem pedi nem quis nada de ninguém senão o queu esprei de você. E eu nunca pedi nem isso. Nem pensei que fosse perciso: só dizia cá para mim Não é perciso. Que percisão tem um tipo como o Wash Jones de esconfiar ou duvidar do homem que até o general Lee disse num papel escrito por ele que era um valente? Valente!' (e porventura outra vez em altas vozes, outra vez esquecido) 'Valente! Melhor fora que nem um só deles tivesse voltado em 65' pensando Melhorfora que os da sua igualha e da minha também nunca houveram visto a luz do dia neste mundo. Melhorfora que todos os que sobraram de nós se fossem duma vez deste mundo, antes isso que mais algum Wash Jones ter que ver a sua vida assim esfrangalhada, a escabujar que nem fólhelho seco atirado ao lume E então eles apareceram na estrada. Ele deve ter estado à escuta, à espera que eles chegassem, os cães e os cavalos, e deve ter visto as lanternas porque já estava escuro. E o major De Spain que era então o xerife desmontou e viu o corpo, embora tenha dito que não viu o Wash nem sabia que ele estava lá até que o Wash pronunciou o seu nome, serenamente, ao janelo, quase na sua cara: 'É o senhor, major?' De Spain mandou-o sair e contou que a voz de Wash estava muito serena
quando disse que ia sair, que era um instantinho; serena de mais, calma de mais; tão calma e tão serena que De Spain disse depois que não percebeu logo até que ponto era calma e serena: T um estantinho. Assim que vir como
está a minha neta.' 'Nós tomamos conta dela' disse De Spain. 'Sai cá para fora.' 'Tá certo, major', disse Wash. 'É um estantinho.'E eles ficaram à espera, em frente da casa às escuras, e no dia seguinte o Pai disse que houve cem homens que se lembravam do cutelo que ele tinha escondido, sempre bem afiado - era, no desleixo da sua vida, que se soubesse, o seu único desvelo e o seu único tesouro - mas só se lembraram de tudo isto já tarde. Portanto não sabiam o que ele ia fazer. Só o ouviram andar pela casa às escuras, depois ouviram a voz da neta, rabugenta e lamuriando: 'Quem é? Acende o candeeiro, Vô' depois a voz dele: 'Não é perciso luz, minha flor. Isto é um estantinho' depois De Spain sacou a pistola e disse, 'Wash! Cá para fora!' e Wash que não respondia, murmurando ainda para a neta: 'Onde estás tu?' e
a voz rabugenta a responder, 'Aqui. Onde é que havia de estar? O que é - '
depois De Spain disse, 'Jones!' e estava já a pisar tacteante os degraus partidos quando a neta gritou; e agora juravam todos que tinham ouvido o cutelo num pescoço e no outro, mas De Spain não disse nada. Só disse que percebeu que Wash tinha saído para a varanda e recuou dum salto, e só depois percebeu que não era para ele que Wash corria, mas para o extremo da varanda, onde caíra o corpo, mas que não pensou na segadeira: só recuou, correndo, uma distância dalguns passos, quando o viu baixar-se e levantar-se outra vez, e agora Wash corria para ele. Mas não, era para todos eles, disse De Spain, corria em direcção às lanternas e por isso eles agora viam a segadeira que ele erguia bem alto; viam-lhe a cara, e os olhos também, ele a correr com a segadeira levantada bem alto, a correr direito às lanternas e aos canos das armas, sem fazer um ruído, sem dar um grito, quando De Spain,
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a recuar à sua frente, disse, 'Jones! Pára! Pára senão atiro a matar. Jones! Jones! JONES!'"
"Espera", disse Shreve. "Dizes tu que ele teve o filho que queria, depois de tantos trabalhos, e depois deu meia volta e. - "
"Sim. Ele no escritório do Avô, naquela tarde, queixo quase empinado, a explicar ao Avô como quem explicasse porventura a Henry a aritmética da quarta classe: 'Repare, eu só queria ter um filho. Coisa que não me parece que seja, quando corro os olhos por esta contemporânea cena, pedido exorbitante a fazer às graças da natureza ou das circunstâncias - '"
"Fazes favor de esperar?" disse Shreve. " - que ele, já tendo o filho, tanto fez que se acabou ali caído no chão mesmo ao pé dele, que teve de injuriar tanto o velho que só assim ele o matava, e matou, primeiro foi ele e depois foi a criança também?"
" - O quê?" disse Quentin. "Não era um filho. Era uma menina." "Ah", disse Stireve. " - Anda lá. Maldita geleira que isto é, vamos para
a cama."
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VIII
Não haveria esta noite ginástica respiratória. Continuaria fechada a janela sobre a quadra abandonada, gélida, além da qual as outras janelas, na parede fronteira, estavam já, salvo duas ou três excepções, escuras; não tardava que batesse a meia-noite o carrilhão, em notas melodiosas, tranquilas, vagas e cristalinas, por essa noite serena (deixara de nevar) e cortante. "E então o velhote mandou o nigro chamar Henry", disse Shreve. "E Henry entrou e disse o velhote 'Eles não se podem casar porque ele é teu irmão' e disse Henry 'Mente' assim mesmo, de chofre: sem dar um espaço, um intervalo, coisa nenhuma, como é quando se prime um botão e a luz aparece. E o velhote deixou-se ficar ali sentado, nem sequer levantou a mão para ele, e por isso Henry não disse outra vez 'Mente' porque ele já sabia que era assim; apenas disse 'Não é verdade', não disse 'Não acredito' mas 'Não é verdade', porque ele já veria talvez a cara do velhote, e fosse ou não fosse ele um demónio, tinha-se estampado nela um quê de mágoa e de piedade, não por si, mas por Henry, porque Henry era tão novo, ao passo que ele (o velhote) sabia que ainda tinha a coragem e mesmo toda a astúcia também - "
Ficou Sirreve de pé junto à mesa, novamente virado para Quentin mas sem sentar-se agora. De capote abotoado ao enviés sobre o roupão de banho, parecia a figura imensa e disforme dum urso desgrenhado ao fitar Quentin (o Sulista, a quem rápido corria o sangue nesse frio, mais subtil a compensar as violentas mudanças de temperatura talvez, talvez apenas mais próximo da superfície), que estava sentado, corcovado, na cadeira, as mãos enfiadas nos bolsos como se quisera aquecer estreitando-se assim, e parecía um tanto frágil e mesmo lívido à luz do candeeiro, a incandescência rósea que já não tinha em si calor, conforto, enquanto a respiração de ambos se vaporava tenuemente na saleta fria onde não estavam agora os dois mas os quatro, os dois que respiravam e já não eram indivíduos, mas simultaneamente algo mais e algo menos do que gémeos, o coração e o sangue da juvenilidade (Shreve estava com dezanove, era alguns meses mais novo do que Quentin. Aparentava ter dezanove anos exactamente; era uma des190

sas pessoas de quem nunca se conhece a idade verdadeira porque a aparentam de forma exacta, e por isso mesmo se pensa que ele ou ela não podem ter essa idade com certeza, porque ele ou ela a aparentam de forma tão exacta que será impossível que não tirem proveito da aparência: por isso não se acredita implicitamente que ele ou ela tenham esta idade que dizem ter, ou essa que em desespero completo condizem ter, ou aqueloutra que alguém afirma que têm) fortes o bastante e concordes o bastante por dois, por dois mil, por todos. Não os dois na sala de estar de um colégio da Nova Inglaterra mas um numa biblioteca do Mississipi há sessenta anos, com visco e azevinho em jarras sobre a lareira ou entalados nos quadros da parede, assim os coroando e engrinaldando com o tempo natalício, e um raminho talvez adornando a fotografia, o grupo - a mãe e os dois filhos - sobre a secretária a que o pai estava sentado quando o filho entrou; e eles - Quentin e Slireve - pensando que, depois de falar o pai e antes que as suas palavras deixassem de ser um choque e principiassem a fazer algum sentido, o filho mais tarde lembraria que pela janela viu, além da cabeça do pai, a irmã e o pretendente medindo a passos lentos o jardim, a cabeça da irmã curvada porque ouvia, a cabeça do pretendente inclinada sobre a dela, e ambos seguindo em passos lentos nesse ritmo que não os olhos mas o coração comanda e a que marca tempo e andamento, e em passos lentos se encobriam pelos tufos e arbustos, estrelados com flores brancas - jasmins, espíreas, madressilvas, miríades talvez de rosas-Cherokee, as que não têm perfume e não se podem colher - nomes, flores, que Stireve possivelmente nunca tinha ouvido e nunca vira, embora o ar o houvesse primeiro bafejado a ele antes de temperar-se para as alimentar a elas - e neste ponto não importaria também que fosse Inverno em tal jardim, e por isso não houvesse flor ou folha, mesmo se tivera havido alguém que nele passeasse e nele fosse visto, pois, ajulgar pelo que em seguida sucedeu, seria noite no jardim também. Mas nenhuma importância tinha isto, porque tudo se passara há tanto tempo. Nenhuma importância tinha para eles (Quentin e Shreve) de resto, que podiam, sem mover-se, tão libertos agora da carne
como o pai que decretou e proibiu, o filho que negou e repudiou, o pretendente que aquiesceu, a bem-amada que não chorou o luto, e sem tediosas transições da lareira e do jardim (se deveras houve jardim) para uma sela, já tropeavam pelas rodeiras geladas nessa noite de Dezembro e nessa madrugada de Natal, esse dia da paz e da alegria, do azevinho e das boas vontades e dos troncos ardendo no lar; não os dois nesse tempo e espaço tão-pouco. mas os quatro cavalgando os dois cavalos pela treva cerrada, e nem isso teria importância tão-pouco: que rostos eram os seus, e que nomes tinham ou lhes chamavam, desde que o sangue pulsasse - o sangue, o imortal, o breve, o novo, o intransitório sangue, que punha a honra acima da indolente impenitência e o amor acima da vergonha abastada e remansosa.
"E Bon não sabia", dis,,e Shreve. "O velho não se mexeu, e desta vez
Henry não disse 'Mente'. ele disse 'Não é verdade' e disse o velhote, 'Pergunta-lhe. Pergunta ao Charles então' e então Henry percebeu que era isso o que o pai queria dizer antes de mais, e que era isso mesmo que ele
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próprio queria dizer quando chamou ao pai mentiroso, porque as palavras do velho não significavam apenas 'Ele é teu irmão' mas 'Ele sempre soube que era teu irmão e irmão da tua irmã'. Mas Bon não sabia. Ouve lá, não te lembras como foi que o teu pai disse, que também, nunca por nunca ser, ele
- o sujeito, o demónio - deu mostras de se espantar por a outra mulher dele conseguir encontrá-lo, vir atrás dele, nunca por,nunca ser, nesse tempo todo, ele deu mostras de lhe interessar saber o que seria feito dela, como ela passava, nesse tempo todo, os trinta anos, a contar do dia em que acertou as
contas com ela, e de recibo passado, julgava ele, e viu com os próprios olhos que o recibo foi Oulgava ele) destruído, rasgado e atirado ao vento; nunca por nunca ser isto lhe interessou, mas só que ela tivesse feito o que fez, veio atrás dele, que ela pudesse ou quisesse vir atrás dele? Portanto, se alguém disse a Bon, não foi ela. Ela não diria, por razão talvez de ela saber que para ele - o demónio - a ser alguém só podia ser ela. Ou porventura ela não encontrou forma de lhe dizer. Porventura ela nunca pensou que pudesse haver alguém que lhe fosse mais chegado que um filho sem pai, um filho só do seu corpo, a quem seria preciso contar o quanto ela fora escarnecida e o quanto sofrera. Ou porventura já ela o contava mesmo antes de ele ter idade para conhecer as palavras, e assim quando ele chegou à idade de entender o que lhe diziam já ela havia contado tanta coisa, tanta vez, que as palavras já não tinham sentido para ela, ou porque não era preciso que para ela tivessem um sentido, e então chegou-se ao ponto em que ela, quando supunha que estava a dizer aquilo, estava calada, e quando supunha que estava calada era só um ódio e uma fúria que não dorme nem esquece. Ou talvez fosse porque ela não queria que ele soubesse por enquanto. Ela estaria talvez a prepará-lo para essa hora e esse momento, que ela não podia prever, mas com certeza haviam de chegar um dia, porque doutro modo ela tinha de fazer o mesmo que a Tia Rosa e negar que tivesse algum dia respirado
- o momento em que ele estaria lado a lado (não cara a cara) com o pai, e o fado, ou a sorte, ou a justiça, ou como fosse que ela dizia, fizesse o resto (e fez, melhor do que se ela o tivesse inventado, como ela nem tinha esperanças que fosse, nem em sonhos imaginou que fosse, e o teu pai disse que, por ser mulher, ela provavelmente nem ficou sequer surpreendida) - a prepará-lo em pessoa, a levá-lo por sua mão, a dar-lhe o banho e a comida e a deitá-lo e a oferecer-lhe os rebuçados e os brinquedos e as distracções e as diversões e as necessidades de uma criança qualquer, com conta e medida, como os remédios, por sua própria mão: não porque ela tivesse de o fazer, que ela podia ter pago a uma dúzia ou ter comprado cem que o fizessem por ela com o dinheiro, a chelpa, a que ele (o demónio) tinha voluntariamente renunciado, que tinha repudiado, para equilibrar as contas do seu livro-mestre moral: mas tal e qual o milionário, que podia ter um cento de cavalariços e tratadores mas tem um cavalo só, uma donzela só, um momento só, uma só aliança de coração e músculo e vontade com um instante só: e ele, paciente (o milionário), de calças de peitilho, a suar no esterco da cavalariça, a levá-lo até ao momento em que ela diria 'Ele é teu pai. Desprezou-nos a ti e a mim, negou-te o seu nome. Agora vai' e depois se deixava estar
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e Deus que terminasse a obra: com pistola ou com faca ou a tratos na roda; a morte ou o sofrimento ou a agonia: Deus que desse a voz de fogo ou girasse a roda. Credo, parece que o estou a ver: um rapazinho que já se habituara a saber, a calcular, antes até de ter memória de aprender o próprio nome, ou o nome da cidade em que vivia, ou como se diz um e outro, que amiúde o viessem arrebatar às suas brincadeiras e pegar nele, apertá-lo entre duas mãos, ferozes de (o que aos olhos dele pelo menos passava por sê-lo) amor, contra dois rígidos joelhos, ferozes, a cara que ele se lembrava, desde o tempo em que ainda não tinha memória, de ver presidindo a todas as suas
alegrias animais de palato e estômago e entranhas, de calor e prazer e segurança, abatendo-se lá do alto sobre ele como numa espécie de imobilidade fulgurante: ele tomando aquela interrupção como coisa natural, como só mais outro fenómeno da existência e da natureza; a cara que era, toda ela, uma violenta e quase insuportável inclemência, quase uma febre (não a amargura, não o desespero: apenas uma vontade implacável de vingança) como só mais outra manifestação do amor mamífero - e ele sem saber por que diabo era aquilo, que seria muito pequeno para destrinçar qualquer facto relacionado nessa fúria e nesse ódio que se despenhavam assim sobre ele; sem compreender nem fazer caso: apenas curioso, criando (sem ajuda, pois quem o poderia ajudar) uma ideia muito sua desse Porto Rico, ou desse Haiti, ou lá do que fosse, donde ele percebia vagamente que tinha vindo, como a ideia que as crianças ortodoxas fazem do céu, ou da leira das couves, ou lá do que é donde vêm, salvo que a dele era diferente, porque era como quem não tivesse ordem (que as mães não fazem tenções disso, de resto) de alguma vez lá voltar (e qualquer um, quando chega à idade que ela tinha, porventura também fica horrorizado a cada vez que encontre escondida no pensamento alguma coisa que tenha nem que seja o sabor ou o cheiro de um desejo de lá voltar); não tivesse ordem de saber quando e
por quê de lá saiu, mas só que tinha escapado, que fosse qual fosse o poder, que tinha criado esse lugar para que ele o odiasse, levou-o também para longe, livrou-o desse lugar, para que o ódio fosse bem grande e por mais que vivesse em monotonia e silêncio (embora não em paz, propriamente) nunca lhe perdoasse; e devia agradecer a Deus por não se lembrar de nada, porém ao mesmo tempo não devia nunca, porventura nem se atrevia, a esquecê-lo - sem se aperceber ele porventura que aceitava como coisa natural que ninguém tivesse pai, e que ser arrebatado todos os dias ou quase a uma daquelas ocupações inofensivas, fosse qual fosse, em que estivesse entretido sem maçar ninguém e sem pensar em ninguém sequer, por uma
pessoa só porque essa pessoa era maior do que ele, mais forte, e ser posto ao colo durante um minuto ou cinco minutos debaixo do que parecia um
cano de água rebentado, tal era a fúria incompreensível e a ânsia violenta e a vindicta e a raiva ciosa, fazia parte da infância que todas as mães de meninos tinham recebido por sua vez das mães e as mães por sua vez desse Porto Rico, ou desse Haiti, ou seja lá o que for, donde todos nós viemos mas onde nenhum de nós nunca viveu: e que ele, quando crescesse, devia passar aos filhos (e ele porventura a decidir logo naquele instante que isso

dava muita canseira e muita maçada e ele não ia ter filhos, ou pelo menos esperava nunca os ter) donde: ninguém tinha pai, um Porto Rico pessoal, ou um Haiti, mas tudo eram caras de mãe, que, tendo gerado os filhos, depois se abatiam sobre eles nesses quase calculáveis momentos, lá do alto dalguma obscura e antiga afronta, ou dalgum ultraje, que o corpo real e vivo nem sequer tinha sofrido mas apenas herdara; tudo eram corpos de rapaz que viviam e respiravam e tinham como origem essa única paternidade ambígua, esquiva, obscura, e por isso mesmo estavam irmanados perene e ubiquamente à face da terra inteira - "
Fitaram-se - ou antes, procuraram os olhos um do outro - a respiração de ambos, serena, compassada, vaporando-se tenuemente, continuadamente, na sala já tumular. Havia um quê de singular no modo como se olhavam, singular e sereno e profundamente sério, em nada semelhante ao modo como dois homens se olham, mas quase como um rapaz e uma rapariguinha muito jovem se olhariam pela razão mesma da sua virgindade - um quê de procura silenciosa e nua, cada olhar oprimido com a obsessão imemorial da juventude, não com o arrastado peso do tempo, com o qual vivem os velhos, mas com a sua fluidez: o ómega cintilante de quantos perdidos momentos dos quinze e dezasseis anos. "Depois ele cresceu e deixou as saias da mãe, mesmo contra a vontade dela (e porventura a dele também; talvez de ambos) e ele nem fez caso. Descobriu que ela tramava alguma coisa e ele não só não fez caso, ele nem sequer fez questão de saber o que era; cresceu e descobriu que ela tinha estado a dar-lhe forma e têmpera, para que ele fosse o instrumento de alguma coisa em que a mão dela seria implacável, porventura chegou a acreditar (ou percebeu) que ela tivera artes de lhe impor forma e têmpera, e ele também não fez caso disso, porque provavelmente nessa altura já ele tinha aprendido que só havia três coisas e mais nada: o respirar, o prazer, a treva; e que sem dinheiro não podia existir o prazer, e sem prazer não poderia existir sequer o respirar, antes um mero e protoplásmico inalar e esvaziar de um inorganismo cego numa treva onde a luz nunca se fez. E dinheiro ele tinha, porque ele percebeu que ela sabia que só com dinheiro é que seria capaz de o arrastar, de o amansar, de o trazer ao obstáculo, quando chegasse o Dia da Grande Corrida, por isso não se atrevia a esporeá-lo por agora, e ela sabia que ele sabia isto: e portanto ele talvez tenha chegado mesmo a fazer chantagem com ela, a subomá-la assim: 'Vais-me dando a chelpa sempre que eu quiser e eu não pergunto porquê, ou para quê, agora.' Ou porventura ela estava tão absorvida em prepará-lo que nem pensavajá no dinheiro, que provavelmente nunca ela teve grande vagar de lembrar-se que o tinha, ou de contá-lo, ou de calcular quanto seria, nos intervalos do ódio e da loucura, e por isso quem lhe punha, a ele, um freio às contas devia ser o advogado e ele (Bon) provavelmente foi esta a primeira coisa que aprendeu: que podia ir ter com a mãe e entalar o advogado quando quisesse, como o cavalo milionário que basta chegar à meta um dia com um suorzinho a mais no pêlo que amanhã tem novo jóquei. Só podia ser ele, com certeza: o advogado, esse advogado a governar-se com a sua milionária louca, terra pingue, que provavelmente estava tão pouco interessada no dinheiro que nem reparava
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se nos cheques havia alguma coisa escrita quando os assinava - esse advogado que, já com a mãe de Bon a maquinar, a planejar a sua vida quando ele ainda nem era capaz de memória (e mesmo se ela não o soubesse, ou quer o soubesse quer não, ou se tivesse feito caso disso ou não) para quando chegasse o momento em que havia de ser transferida num repente para a posse dele um tanto de chão farto e podre, já tinha andado a lavrar e a semear e a colher dele e da mãe como se aquele chão estivesse já na posse dele - o advogado que teria talvez uma gaveta secreta num cofre secreto e lá dentro um papel secreto, um mapa talvez, com alfinetes de cor espetados, como os generais têm nas campanhas, e as notações todas em código: Hoje consumou
roubo de cem milhas terra virgem a índio bêbado, no val. de 25 000. Às 2h e 31m de hoje saiu do pântano com última tábua para casa. Val. em conj .. com terra 40 000. Hoje 7h 52m da tarde casou. Val. ameaça de bigamia menos zero salvo comprador imediato. Improvável. Decerto uniu-se à mulher no mesmo dia. Aprox. 1 ano e depois, talvez com a data e a hora também: Filho. Val. intrínseco possível embora não provável venda forçada casa e terras mais val. colheita menos um quarto dest.'aofilho. Val. sentimental mais 100% vezes nada mais val. colheita. Aprox. 10 anos, um ou maisfilhos. Val. intrínseco vendaforçada casa e terras com melhorias maisfundos líquidos menosparte dosfilhos. Val. sentimental 100% vezes aumento anualpara cadafilho mais val. intrínseco maisfundos líquidos mais crédito sobre explor e talvez com uma data aqui também: Filha e talvez se pudesse até ver o ponto de interrogação depois da palavra, e até as outras palavras: filha ?filha ?filha ? já incertas, não porque fosse incerto o pensamento, mas pelo contrário, o
pensamento havia parado ali, represava um pouco e alastrava, como é quando se coloca um pau ao atravessado num arroio, alastrava e subia lentamente ao redor dele onde fosse que ele podia fechar-se à chave e, em sossego, subtrair o dinheiro que Bon andava a gastar em rameiras e champanhe daquele que a mãe tinha, e calcular quanto restaria desse dinheiro amanhã e no mês seguinte e no ano seguinte, ou até Sutpen estar em ponto de rebuçado - pensando no dinheirinho sonante que Bon esbanjava em cavalos e roupas e champanhe e no jogo e com as mulheres (e muito antes de a mãe saber, já ele saberia com certeza da oituruna e do casamento morganático, mesmo se fosse aquilo um segredo; ele porventura tinha até uma espia na cama dele, como parece que tinha na cama de Sutpen; talvez até a tivesse metido lá, dissesse para consigo, como se falasse dum cão: Ele já anda por aí na gandaia. Precisa dum trambolho. Duma trela, não: só dum trambolhozito qualquer para não entrar em cercado alheio) e só ele a querer pôr-lhe um freio, o mais que se atrevia, que não era muito, porque bastava Bon ir ter com a mãe que o cavalo corredor tinha logo uma cevadeira de ouro se quisesse e, se o jóquei não se precavesse, umjóquei novo também - contando o dinheiro, calculando quanto podia arrecadar em dinheiro limpo a esta média nos anos mais próximos, comparado com o que lhe parecia que pudesse arrecadar do que sobrasse nessa altura, e entrementes,mortificado por estes dois problemas: se não devia talvez lavar as suas mãos da mescambilha ao Sutpen. e arrebanhar o que sobrava e desandar para o Texas: mas sempre que pensava em
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fazer isto havia de se lembrar do quanto dinheiro Bon já tinha gasto, e se ele ao menos tivesse ido para o Texas há dez anos ou há cinco anos ou até no ano anterior: por isso talvez, à noite, enquanto esperava que a janela começasse a empardecer, estava ele como a Tia Rosa a ter de negar que tivesse algum dia respirado (ou porventura queria antes nunca ter nascido) se não fossem aqueles duzentos por cento vezes o valor intrínseco a cada primeiro de Janeiro; - a água a represar no pau e a subir, que se alastrava ao redor dele, sempre, sempre, e serena como a luz, e ele sentado no verdadeiro clarão branco da clarividência (ou intuição, ou fé no infortúnio e na loucura dos homens, ou no que se lhe quiser chamar) em que entrevia não só o que lhe pudesse acontecer mas o que iria de facto suceder, e ele recusando-se a acreditar que ia suceder, não porque isto lhe tivesse aparecido como numa visão, mas porque na visão teria de haver lugar para o amor, a honra, a coragem e o orgulho; e a acreditar que podia suceder, não porque fosse lógico e possível, mas porque seria o que de mais desgraçado havia de suceder a todas as partes interessadas; e embora não pudesse ele aceitar de ninguém as provas dum vício ou duma virtude, ou da coragem ou da cobardia, sem que lhe mostrassem as pessoas vivas, como não teria aceitado ele de ninguém as provas de que há morte sem ver um cadáver, ele acreditava, sim, no infortúnio por causa dessa educação de eunuco, rigorosa e árdua e insossa, que o ensinara a deixar a boa sorte e as alegrias humanas entregues a Deus, que em paga abandonaria todas as misérias e desgraças e loucuras aos piolhos e às pulgas de Cokes e Littletons. E a velha Sabina - "
Fitavam-se eles - procuravam os olhos um do outro - as vozes (era Shreve quem falava, ainda que, afora as poucas diferenças que os interpostos graus de latitude haviam inculcado neles (diferenças não de tom ou timbre, mas de fraseado e uso das palavras), poderia ter sido qualquer dos dois, e de certo modo eram ambos quem falava: ambos pensavando como um só, a voz que porventura dizia o pensamento mais não sendo que o pensar tornando-se audível, oral; ambos criando juntos, com sobras e migalhos de antigas histórias e conversas, pessoas que talvez nunca tivessem existido em parte alguma, que, sombras, eram sombras não da carne e dos ossos que tinham vivido e morrido, mas sombras por sua vez do que era (para um deles pelo menos, para Shreve) uma sombra também) serenas, como o visível murinúrio das suas respirações vaporando-se. O carrilhão começava agora a bater a meia-noite, melodioso, lento, vago, além da janela fechada, vedada, pela neve. " - a velha Sabina, que nem para salvar a vida teria dito a quem quer que fosse, ou ao advogado, ou a Bon, a ninguém provavelmente, o que ela queria, o que ela esperava, ou as esperanças que tinha, porque sendo mulher não precisava de querer nada, ou ter esperança em nada, ou de esperar que acontecesse nada, mas apenas de querer e esperar e ter esperança (e para mais, o teu pai disse que basta uma pessoa ter um ódio vivo, um ódio grande, que a esperança não é precisa, que o ódio é alento de sobra); - a velha Sabina (que ainda não era uma velha, mas se teria desleixado apenas, como quem cuida de estarem limpos e oleados os motores, e de estar abastecida com o melhor carvão a carvoeira, mas já não se preocupa em arear os metais ou
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raspar o convés; desleixou-se apenas na aparência. Gorda não seria; que ela havia de consumir-se tanto que não engordava, que tudo escabujava e mirrava na goela, entre o engolir e o estômago; sem prazer na mastigação; e ter de mastigar, uma seca, mais nada, como não tinha prazer nenhum em se vestir; que usar os vestidos até os deixar no fio e ter de escolher novos, uma seca, mais nada: e sem prazer na bela figura que ele - " nenhum dos dois disse '13on' " - fazia nas belas calças que lhe moldavam a perna, e nos belos casacos que lhe moldavam os ombros, nem por ele ter mais relógios e mais botões de punho e roupa branca da mais fina e mais cavalos e mais charretes com rodas amarelas (para já não falar das mulheres) do que a maioria dos outros, mas tudo isso era uma seca, uma seca inevitável, que teria de levar sumiço, querendo ela que ele tivesse algum préstimo, como tinham levado sumiço os dentes de leite e a varicela e a ossatura de menino antes de ele ter para ela qualquer préstimo) - a velha Sabina, a receber os relatórios forjados pelo advogado como se fossem relatórios que a frente de batalha mandasse aos quartéis-generais, porventura com um nigro só para isso, à espera na antessala do advogado, que não fizesse mais do que levar e trazer os relatórios, e que tanto podia ser uma vez em dois anos como cinco vezes em dois dias, conforme ela andasse na sofreguidão de notícias e começasse a apoquentá-lo - o relatório, o comunicado, a dizer que não estainos muito longe dele, no Texas, ou no Nfissuri, ou talvez na Califórnia (a Califórnia seria bem bom, que é tão longe; conveniente, prova inerente àqueta distância, à necessidade que ela tinha de aceitar e de acreditar) e vamos al não tarda muito, e por isso não se apoquente. E ela não se apoquenta v., 11--se apoquentava mesmo nada: mandava sair a carruagem e ia ela ao advogado, estourava por ali dentro no seu vestido preto que parecia uma tira mole de chaminé, e talvez nem sequer de chapéu, só um xaile pela cabeça, de forma que só lhe faltava o esfregão e o balde - estourava por ali dentro e dizia 'Ele morreu, Eu sei que ele morreu, e como pode isso ser, como pode ele ter morrido', não no sentido que lhe dava a Tia Rosa: onde é que encontraram ou inventaram uma bala que pudesse matá-lo mas Como se pode permitir que ele morra sem ter sido obrigado a confessar o mal que fez e a sofrer por isso e a arrepender-se e assim, naquelos dois segundos, quase o alcançavam (ele - o advogado - mostrar-lhe-la a carta verdadeira, as palavras escritas no inglês que ela não sabia ler, a carta que tinha acabado de chegar, que ele estava até a mandar o nigro levá-la a casa quando ela chegou, e o advogado já prático nisto, a pôr na carta a necessária data agora, enquanto era tempo e estivesse ele de costas, só dois segundos, que era o tempo de tirar a carta do ficheiro) - alcançá-lo, chegar-lhe tão perto que se teria a prova cabal de que ele era vivo; tão perto na verdade que ele até era capaz de a levar porta fora do escritório antes que ela tivesse tempo de sentar-se, e a metia dentro da carruagem outra vez, e outra vez a caminho de casa, onde, entre os espelhos de Florença e os cortinados de Paris e os penteadores de borlas, ela não perdia esse ar de mulher que vinha esfregar o chão, no vestido preto que a cozinheira nem vê-lo queria mesmo quando foi novo, há cinco ou seis anos, segurando, apertando, a carta que ela não sabia
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ler (porventura a única palavra que nela reconhecia era a palavra 'Sutpen') numa das mãos, e apanhando uma trança corredia de cabelo cor de chumbo com a outra, e não olhava para a carta como se a estivesse a ler, isto se a pudesse ler, arremetia sobre a carta, rápida, fulgurante, como se ela soubesse que só teria um segundo para a ler, que só durante um segundo a carta estaria intacta depois de os olhos a tocarem, e logo pegaria fogo, e assim não seria a carta esmiuçada, antes havia de consumir-se, deixando-a para ali com umas cinzas em branco e todas negras e carbonizadas que se esboroavam na mão. E ele - " (Nenhum dos dois disse '13on') " - a observá-la, que já tinha idade bastante para saber que isso a que chamara infância não tinha sido infância, que os outros miúdos tinham sido gerados por pais e por mães, ao passo que ele o criaram novo no momento em que principiou a ter memória, e novo outra vez quando chegou ao ponto em que a sua carcaça deixou de ser a de um bebé e ele se fez rapaz, novo outra vez ao deixar de ser rapaz e fazer-se um homem, pelos dois juntos, a mulher que ele tinha pensado que o estava a alimentar e a dar-lhe banho e a metê-lo na cama e a prover-lhe paparicos ao palato e ao prazer por ele ser quem era, até que ele cresceu o bastante para descobrir que não era a ele de facto que ela dava o banho e os rebuçados, e as distrações também, mas a um homem que não tinha chegado ainda, que nem mesmo ela conhecia ainda, que seria uma outra coisa além do menino, quando chegasse, como a dinan-áte, que destrói a casa e a família e mesmo toda a povoação talvez, não é o pacífico papel, um vulgar papel, que porventura antes queria voar sem destino e leve ao sabor do vento ou a serradura alegre, uma serradura vulgar, ou os vulgares químicos, tranquilos, que antes queriam ficar serenos e secretos na terra tranquila como sempre estiveram antes de um sujeito intrometido e de lentes à décima potência vir desenterrá-los e esticá-los e deforiná-los e amassá-los; - era criação desta mulher e de um advogado pago (a mulher que, mesmo antes de ele ter memória, ele se dava agora conta que tinha estado a planejar a sua vida e a prepará-lo para um momento que viria e passaria, e passado esse momento, e ele isto percebia, ele havia de ser para ela pouco mais do que um tanto de chão farto e podre; do advogado, que, mesmo antes de ele ter memória, ele se dava agora conta que tinha estado a lavrar e a semear e a regar e a estrumar e a colher dele como se ele já fosse a terra pingue): - ele a observá-la, encostado à lareira talvez, vestido com roupas finas, envolto num odor a incenso e a harém a que se poderia chamar santidade fácil, a observá-la que olhava para a carta, sem sequer pensar Estou olhando a nudez de minha mãe pois se o ódio era nudez, ela o mostrava há tanto tempo que já fazia as vezes de roupa como se diz do pudor, não, como faz o pudor "E ele foi-se embora. Foi-se embora para a escola com a idade de vinte e oito anos. E não saberia, nem faria questão de saber: qual dos dois - mãe ou advogado - foi que decidiu que ele deveria ir para a escola, nem porque, porque ele já tinha percebido que a mãe tramava alguma coisa e que o advogado tramava alguma coisa, e ele não se interessava tanto por qualquer um deles que quisesse descobrir o que era, que ele percebeu que o advogado sabia que a mãe andava a tramar alguma coisa, mas que a mãe não sabia o
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que o advogado estava a tramar, e que ao advogado até interessava que a
mae conseguisse lá o que fosse que ela queria, desde que ele (o advogado) conseguisse o que queria com a antecedência dum segundo, ou ao mesmo tempo, ao menos. E ele foi-se embora, foi para a escola; disse ele 'Seja' e disse adeus à oitoruna e foi para a escola, quem nos seus vinte e oito anos jamais tinha ouvido alguém dizer-lhe 'Faça como estes fazem; tenha isto pronto às nove horas de amanhã, ou de sexta, ou de segunda'; talvez fosse até a oitoruna que eles (ou só o advogado) usavam - o trambolhozito (não a trela) que lhe tinha posto o advogado, para impedi-lo de entrar no futuro em cercado alheio. Porventura a mãe soube da oitoruna e da criança e da cerimônia, e descortinou mais do que o advogado tinha descoberto (ou suporia possível, que ele considerava Bon apenas lerdo, não um imbecil), e o mandou chamar e ele veio, e encostou-se de novo à lareira, e porventura sabia o que se passava, o que tinha acontecido, antes de ela o dizer, ali encostado com uma expressão na cara a que se poderia chamar um sorriso mas não era, era alguma coisa que não se deixa adivinhar nem desatender, e ela a observá-lo, talvez com a trança corredia de cabelo cor de chumbo outra vez caída, ejá sem se maçar a apanhá-la, porquejá não estava a ler nenhuma carta, mas tinha o fulgor dos olhos posto nele, a voz querendo arremeter fulgurante contra ele, tanta era a urgência do sobressalto e do medo, mas ela a conseguir manter a voz baixa, porque não podia falar de traição, porque ainda não lhe tinha contado nada, e agora, neste momento, ela temia correr esse risco; - ele a olhar para ela por trás do sorriso que não era um sorriso, mas apenas alguma coisa que não se devia decifrar, dizendo, confessando 'Por que não? Todos fazem o mesmo. Incluindo a cerimônia. Eu não fui com ideias de ter um filho, mas já que o tenho... Bonita criança, por sinal' e ela a observá-lo, de olhos fitos nele e sem ser capaz de dizer o que queria, porque sempre o tinha adiado e agora só dizia o que podia dizer-lhe: 'Mas tu. E diferente' e ele (ela não precisaria de o dizer. Ele havia de saber, porque ele já sabia a razão de ela o ter mandado chamar, mesmo se ele não soubesse, e nem fizesse questão de saber, o que ela andava tramando já no tempo em que ele ainda não tinha memória, já no tempo em que ele ainda não podia possuir uma mulher, fosse por amor ou não): 'Por que não? Um homem tem de casar qualquer dia, mais cedo ou mais tarde. E esta eu conheço-a, não me
dá ralações. E a maçada lá da cerimônia, já passou. E quanto ao pequeno pormenor dum salpico de sangue negro' - sem precisar de falar muito, ou
dizer muito sequer, sem precisar de lhe dizer Parece que eu vim a este mundo com tão poucos pais que tenho irmãos de sobra a quem ultrajar e envergonhar enquanto for vivo, donde: eu tenho também descendentes de sobra a quem legar a minha pequena porção de ofensa e dor depois de morto; isso não, apenas 'um salpico de sangue negro' - e depois a observar a cara dela, a desesperada urgência e o medo, e saiu, deu-lhe um beijo talvez, na mão, talvez, que repousaria na sua e havia até de tocar os seus lábios como se estivesse morta, que era tanto o desespero de agarrar-se a tudo e a nada; talvez ele tenha dito ao sair Ela vai ter com ele (o advogado); se eu esperasse mais cinco minutos ainda a via de xaile. Assim provavelmente esta noitejá pode199

rei saber - se eufizesse questão de saber. Porventura soube nessa noite, ou mesmo antes, se conseguiram encontrá-lo, mandar-lhe recado, porque ela foi ao advogado. E para o advogado isto vinha mesmo a calhar. Porventura até antes de ela começar a dizer tudo, surgiu esse clarão branco e suave como é quando a gente sobe uma torcida; talvez ele quase pudesse ver a sua própria mão retomando o que escrevera no espaço onde ofilha? filha? filha? nunca esteve completamente visível. Porque talvez tenha sido isto o que sempre incomodou e apoquentou e inquietou o advogado; que, desde o dia em que ela o tinha feito prometer que nunca havia de contar a Bon quem era o pai, ele tinha estado à espera do momento de lhe contar, sem saber ainda como lhe contaria, pois ele saberia talvez que, se contasse a Bon, Bon podia acreditar ou podia não acreditar, mas ia com certeza dizer à mãe o que o advogado lhe contara, e então ele (o advogado) estaria perdido, não por ter feito mal, que não tinha mal, pois contá-lo não ia alterar a situação, mas por ter contrariado a cliente paranóica. Talvez ali, no seu escritório, ocupado em somar e subtrair o dinheiro, e a somar o quanto eles apanhariam a Sutpen (ele nunca se preocupou com o que faria Bon se descobrisse; provavelmente já tinha há muito tempo feito a Bon a honra de pensar que, mesmo se ele fosse tão lerdo ou tão indolente a ponto de não suspeitar nem descobrir por si próprio quem era o pai, não era tão imbecil que não fosse capaz, mostrando-lhe alguém qual era o procedimento adequado, de tirar daí proveito; e se porventura lhe ocorreu que, por motivos de amor ou de honra ou doutra coisa qualquer à face da terra, e da jurisprudência também, Bon nada fizesse, ou se recusasse a fazer fosse o que fosse, ele (o advogado) teria até fornecido então a prova de que ele já não era deste mundo) - talvez fosse isto o que sempre o torturava: como levar Bon a um ponto em que, ou ele descobria por si próprio, ou alguém - o pai ou a mãe - tinha de lhe contar. Por isso talvez nem ela tinha ainda saído a porta do escritório - ou pelo menos assim que ele teve tempo de abrir o cofre e olhar para a gaveta secreta, a certificar-se de que era a Universidade do Mississipi que Henry frequentava - e já a sua mão escrevia, firme, e até no espaço onde ofilha ?filha ?filha? nunca foi visivel - e com a data aqui também: 1859. Doisfilhos. Digamos 1860, 20 anos. Aumento 200% vezes val. intrínseco ao ano maisfundos liquidos mais crédito ganho. Val. aprox. em 1860, 100 000. Pergunta.- ameaça de bigamia, Sim ou Não. Possivelmente Não. Ameaça de incesto: Credível Sim e a mão recuava antes de pôr o ponto final, riscava o Credivel, escrevia Certo, sublinhava.
"E ele também não fez caso disso; ele disse apenas, 'Seja'. Porque ele agora perceberia talvez que a mãe não sabia, e nunca havia de saber, o que queria, e por isso ele não podia vencê-la (porventura tinha aprendido com a oitoruna que, assim como assim, nunca se pode vencer as mulheres, e que um homem, se é sensato ou não quer ralações nem balbúrbia, nem se aventura a tal), e ele sabia que o advogado só queria o dinheiro; e portanto, se ele ao menos não tivesse cometido o erro de julgar que podia vencer em todas frentes, se ele ao menos se lembrasse de ficar calado e de atalaia, podia ser que vencesse em alguma coisa. - E então disse ele, 'Seja' e deixou a mãe arrumando os belos fatos e a bela roupa branca em malas e baús, e entrou
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talvez indolente no escritório do advogado e observou, por trás daquilo a
que poderia chamar-se um sorriso, o advogado a dar à unha para lhe embarcar os cavalos no vapor e talvez lhe comprar um criado particular só para a
ocasião, e a tomar providências quanto ao dinheiro e a tudo; a observar, por detrás do sorriso, o advogado a armar-se em pai severo até, e a falar de erudição, de cultura, do Latim e do Grego que iriam apetrechá-lo e esmerá-lo para a posição que ele ocuparia na vida, e que um homem decerto em qualquer parte aprendia, até mesmo na biblioteca de sua casa, isto se tivesse força de vontade; mas que havia alguma coisa, um predicado na cultura, que só a
monotonia claustral e monástica dum colégio - digamos obscuro e pequeno (embora de primeira, primeiríssima, categoria); - e ele - " (nenhum dos dois disse 'Bon'. Nunca, em vez alguma, pareceu haver qualquer confusão sobre quem Slireve designava por 'ele') <@ - escutando, cortês e sereno, por trás daquela expressão que ninguém deveria decifrar, e perguntando por fim, porventura interrompendo, cortês e afável - sem espécie de ironia, sem espécie de sarcasmo - 'Que colégio é esse que disse?': e agora dava à unha outra vez o advogado, revolvendo papéis para encontrar aquele em que lesse o
nome que já andava a memorizar desde a primeira entrevista com a mãe: 'A Universidade do Mississipi, em' - Onde é que disseste?"
"Oxford", disse Quentin. "Fica a umas quarenta milhas de - " " - 'Oxford'. E depois podiam sossegar os papéis porque ele estaria a
falar: a falar de um pequeno colégio, só com dez anos de existência, a dizer que não haveria nada que o distraísse dos seus estudos ali (onde a própria sabedoria era, de certa maneira, virgem, ou pelo menos ainda não estava muito gasta) e que ele teria oportunidade de observar uma outra secção, esta provinciana, do país em que o seu alto destino (se era certo o desfecho desta guerra que estava sem dúvida iminente, em cujo feliz sucesso todos nós depositávamos esperanças, e do qual não tínhamos dúvidas) como homem que ele seria e enquanto poder económico que ele representaria quando a mãe viesse a falecer, tinha as suas raízes; e ele a ouvir com aquele seu ar, dizendo, 'Não recomenda então a prática do Direito como profissão?' e agora, por um momento breve, o advogado calar-se-la, mas muito breve; talvez tão breve ou tão pouco perceptível que não se poderia chamar-lhe pausa: e também ele estaria a olhar para Bon agora: 'Não me tinha ocorrido que o Direito pudesse ter atractivos para si' e Bon: 'Também a prática do florete não teve atractivos para mim. Mas houve pelo menos uma ocasião na minha vida em que me dei por feliz por tê-lo aprendido' e depois o advogado, polido e serviçal: 'Mas por quem é, será então o Direito. A sua mãe há-de conc: - fazer gosto.' 'Seja', disse ele, não 'adeus'; ele não fazia questão disso; porventura nem um adeus à oitoruna, a essas lágrimas e lamentos, e porventura até ela apertada a ele, os braços cor de magnólia, macios, desesperados, prendendo
os seus joelhos, e (digamos), três pés e meio acima desses grilhões de aço mole, a expressão que não era um sorriso mas apenas alguma coisa que não se deixa adivinhar. Porque não se pode vencê-las: só se pode fugir (e graças a Deus que se pode fugir, que se pode escapar à solidariedade maciça, infecta e couraçada que recobre a terra inteira, onde os homens e as mulheres estão
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postos aos pares e enfileirados e aprumados como os paulitos; graças aos Deuses que houver por este espicho masculino, afilado e liso, que se ajusta ligeiro e híbrico àquilo que na redondeza da mulher é côncavo ao arremesso e o prende bem seguro); - não adeus: um seja: e certa noite ele subiu a prancha de embarque, iluminada a archotes, e provavelmente só com o advogado ali para acompanhá-lo, e isto não para desejar-lhe boa viagem mas para ter a certeza de que ele realmente embarcava. E o nigro novo e especial para a ocasião a abrir as malas no camarote de luxo, espalhando os belos fatos, e as senhoras já reunidas no salão para a ceia, e os homens no bar em preparativos dela, mas ele não; ele sozinho na amurada, talvez de charuto, observando a cidade que vogava e tremulava e cintilava e desaparecia rio abaixo e depois todo o movimento cessava, o navio como suspenso, imóvel e sem progresso, das estrelas pelos dois fios de fumo e fagulhas que jorravam da chaminé. E quem sabe os pensamentos, que sério pesar e rejeitar, ele que há anos sabia que a mãe tramava alguma coisa, ainda que não soubesse (provavelmente julgava que nunca saberia) o quê; e que o advogado andava atrás dalguma coisa, e embora ele soubesse que era só do dinheiro, sabia porém que dentro das suas limitações (as do advogado) masculinas e reconhecidas, ele (o advogado) podia ser quase tão perigoso como a incógnita que era a sua mãe; e agora isto - uma escola, um colégio - e ele com vinte e oito anos. E mais, que havia de ser este colégio em particular, um colégio que não era conhecido sequer de nome, que há dez anos atrás nem sequer existia; e sabendo ele também que foi o advogado quem o escolheu - que sério, concentrado, quase um franzir de sobrolho, este Porquê? Porquê? Porquê este colégio, este em particular, acima de qualquer outro? - ali talvez debruçado em solidão, entre o arquejo do fumo e dos motores, e quase tocando a resposta, ciente das partículas dela, como num puzzle de imagens, que esperavam, quase espreitavam, quase ao alcance da mão, inextricáveis, desordenadas, e irreconhecíveis, mas prestes a cumprir o desenho que iria revelar imediatamente, como um clarão de luz, o sentido de toda a sua vida, o passado - o Haiti, a infância, o advogado, a mulher que era sua mãe. E talvez até a carta ali sob os seus pés, algures na treva sob a coberta onde ele estava
- a carta dirigida não a Thomas Sutpen em Sutpen's Hundred mas a Henry Sutpen, Esquire, Residente na Universidade do Mississipi, À Cidade de Oxford, Mississipi: e um dia Henry mostrou-lha, e não houve uma suave incandescência alastrando, mas um clarão, um relâmpago (ele que não só não tinha um pai visível como ainda se achara, mesmo na infância, murado por uma cabala insone que parecia aferrada a ensinar-lhe que nunca o tinha tido, que a mãe surgira, depois de uma temporada no limbo, esse estado de abençoada amnésia em que os sentidos fracos podem tomar refúgio das sinistras e ímpias forças e poderes que a carne humana e fraca não é capaz de suportar, e acordara prenha, guinchando e gritando e esbracejando, não contra as ânsias cruéis do parto mas em protesto contra o ultraje do seu ventre inchado; que ele fora concebido nela não pelo processo natural mas como nódoa, posta e expulsa do corpo dela por esse antigo princípio masculino, imortal, infernal, de todos os terrores desenfreados e toda a treva) em que
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ele viu a cara inocente do rapaz quase dez anos mais novo do que ele, e uma parte de si dizia A minha testa e o meu crânio e o meu maxilar e as minhas mãos e a outra disse Espera. Espera. Ainda não tensforma de saber Ainda não tens forma de saber se o que vês é aquilo para que estás a olhar ou aquilo que tu queres ver Espera. Espera. - A carta que ele - " não era a Bon que se referia agora, contudo Quentin de novo parecia compreender sem
dificuldade ou esforço a quem se referia " - porventura escreveu mal terminou aquele último verbete no registo, ainda naquele filha? filha? filha? enquanto pensava Ele agora não pode saber deforma alguma, não se lhe deve dizer antes de lá chegar e de ele e essafilha - sem recordar os amores juvenis dos seus verdes anos, que nem teria acreditado neles se os lembrasse, todavia disposto a usá-los também, como teria usado a coragem e o orgulho, pensando não no sangue silenciado, arrebatado, importuno, e nas mãos ligeiras com fome de outro corpo, mas no facto de esta Oxford e esta Sutpen's Hundred estarem apenas a uma distância que se vencia numa só jornada a cavalo, e de Henry estar já instalado na Universidade, e foi esta porventura a primeira vez que o advogado chegou mesmo a acreditar em Deus: Prezado Mr Sutpen: O nome abaixo assinado ser-lhe-d desconhecido, bem assim
como a posição e as posses de quem lhe escreve, não obstante não serem os seus conferidos méritos e (espero eu) a sua valia, tão obscuros que não lhe justifiquem a esperança de vir a conhecer em pessoa V Ex. - méritos que lhe são conferidos por estar a valia ao serviço de duas pessoas de nascimento e posição, uma das quais, uma Senhora, mãe e viúva, vive retirada, como épróprio do seu estado, na cidade de onde esta carta vai enderaçada, outra das quais, umjovem cavalheiro, seufilho, serájá ao ler V Ex. desta, ou há-de ser a breve trecho, como o é V Ex., requerente perante a mesma
barra da sapiência e da instrução. É no empenho dele que escrevo. Não: não direi empenho; decerio não permitirei que a Senhora sua mãe ou ojovem cavalheiro em questão suspeitem que usei do termo, ainda que o leia quem é, assim quis o venturoso destino de V Ex., vergôntea dafamília principal dessa região. Com efeito, melhor mefora se não tivera escrito. Mas escrevo; comeceijá; tal é agora irrevogável; se V Ex. discernir algo nesta caria com ressaibos de humildade, tome-o como vindo não de tal mãe, e não decerto de talfilho, mas da pena deste, cuja humilde posição de consultorjuridico e procurador da Senhora e do jovem cavalheiro mencionados acima, cuj .a
lealdade e gratidão àquela que generosamente lhe tem provido (não o confesso; proclamo-o) o pão e a carne e o lume e o tecto por um período já longo o bastante para lhe ter ensinado a ele a gratidão e a lealdade, se as não conhecerajá, o levou a um acto cujos meios não estão à altura das suas
intenções pela razão de ser ele apenas o que é e afirma ser não o quanto deveria. Tome portanto V Ex. esta carta não como a insolência injustificável que uma correspondência extemporânea, como esta da minha pessoa para V Ex., seria, nem como um apelo a tácitas influências no empenho de um desconhecido, mas outrossim como apresentação (conquanto inábil)
a um jovem cavalheiro, cuja posição não carece de ser nomeada ou circunstanciada na cidade onde esta carta é lida, de um outro jovem cava203

lheiro, cuja posição dispensa que seja nomeada ou circunstanciada na cidade onde a mesma foi escrita. - Não um adeus; um seja, apenas, ele que tinha tido tantos pais que não tinha amor nem orgulho a receber ou infligir, nem honra nem vergonha a repartir ou a legar; para quem um sítio era o mesmo que outro, como é para um gato - a cosmopolita Nova Orleães ou o bucólico Mississipi: os seus candeeiros de Florença, herdados e transmissíveis como as tampas douradas de sanitas e os espelhos de borlas, ou um pequeno colégio de segunda ordem que nem dez anos tinha; o champanhe no boudoir da oitoruna ou o whiskey sobre a mesa nova e áspera em cela de monge e um rapaz provinciano, um bucólico herdeiro presuntivo que provavelmente não tinha nunca passado unia dúzia de noites fora do tecto paterno (salvo talvez para se deitar completamente vestido junto a uma fogueira na mata, a ouvir os cães correndo) até que veio para a escola, a quem ele via arremedar os seus fatos, o seu porte, o seu falar, e tudo, e (o rapaz) completamente inconsciente de que o fazia, ele (o rapaz) que em frente duma garrafa, certa noite, disse, exclamou, num impulso - não, num impulso não: seria atarantado, a querer achar as palavras: e ele (o cosmopolita, quase dez anos mais velho que o rapaz, preguiçando num roupão de seda como o rapaz nunca tinha visto antes e julgava que só as mulheres usavam) observando o rapaz que tinha corado, muito vermelho, mas ainda assim o encarava, sem desviar dele os olhos enquanto se atarantava, procurava, e exclamava com abrupta e completa írrelevância: 'Se eu tivesse um irmão, não havia de querer que ele fosse mais novo do que eu' e ele: 'Ali?' e o rapaz: 'Não. Havia de querer que ele fosse mais. velho' e ele: 'Não há filho de pai proprietário que queira ter um irmão mais velho' e o rapaz: 'Há. Eu queria', olhando bem nos olhos o outro, o esotérico, o sibarita, levantando-se ele (o rapaz) agora, e muito aprumado, magro (porque era novo), de faces escarlates, mas de cabeça erguida e olhar firme: Tu. E havia de querer que ele fosse exactamente como tu' e ele: 'Ah, sim? O whiskey está do teu lado. Serve-te ou passa.'
"E agora", disse Shreve, "vamos falar do amor." Mas também não era preciso que o dissesse, como não fora preciso especificar a quem se referia quando dizia ele, pois não estiveram os dois a pensar em outra coisa; tudo o que se passara antes fora o quanto havia a transpor, e ninguém ali estava que o transpusesse, além deles, que tem de haver sempre um que junte as folhas caídas antes de se acender a fogueira. Era essa a razão por que não importava a nenhum deles qual falava, pois não era só a voz que transpunha, executava e cumpria essa ponte, mas um feliz consórcio de palavras ditas p ouvidas, e nisto cada um, antes de interpelar, de exigir, perdoava e relevava*e esquecia as falhas do outro - as falhas tanto no criar desta sombra que eles discutiam (ou melhor, a que davam existência) como no escutar e no joeirar as palavras, desdenhando o falso e conservando o que parecia verdadeiro, ou se ajustava ao preconcebido - para assim chegarem ao amor, em que poderia haver paradoxo e inconsistência mas nada que fosse imperfeito ou falso.. "E agora, o amor. Ele já devia conhecê-la mesmo sem nunca a ter vísto'-.§Rbia como ela era, o que fazia na intimidade desse provinciano mundo feminino de que até os homens da família não deviam mos204

trar que sabiam grande coisa; ele deve ter ficado a saber tudo sem precisar de fazer uma única pergunta que fosse. Credo, que deve ter desabado aquilo tudo em cima dele. Deviam ter sido noites e noites, em que Henry ia aprendendo com ele a preguiçar pelo quarto de roupão e chinelos como os que as mulheres usavam, num vago mas inconfundível eflúvio de perfumes como os que as mulheres usavam, fumando um charuto quase como o poderia fumar uma mulher, mas não obstante um ar de tanta afirmação indolente e letal que só o mais temerário dos homens teria feito analogias tão gratuitas (e sem qualquer intenção da parte dele de ensinar, instruir, fazer de mentor - e daí talvez sim; talvez, quem sabe as vezes que ele olhou para a cara de Henry e pensou, não ali, se nãofora o interposto ascendente dum sangue que não temos em comum, está o meu crânio, a minha testa, órbitas, forma e ângulo do maxilar e do queixo, e algo da minha fôrma de pensar e que ele tambémpodia ver na minha cara seporventura soubesse olhar como eu sei.mas ali, um pouco mais além, um tanto obscurecido pelo sangue alheio, cuja misturafoi necessária afim de que ele existisse, está a cara do homem que nos deu Jorma a ambos dessa treva cega, incerta, a que chamamos o futuro; ali - ali - a qualquer momento, a qualquer segundo, penetrarei, por força da vontade e da veemência e da apavorada necessidade, e o despojarei desse ascendente alheio, e verei não ao rosto do meu irmão, que eu não sabia que o tinha, donde nunca lhe ter sentido afalta, mas ao rosto do meu pai, da sombra de cuja ausência a minha alma póstuma nunca se libertou;
- em que momento, pensando, estudando a impaciência que não era abjecta, a humildade que não capitulava o orgulho - o completo oferecimento da alma, de que o inconsciente arremedar das roupas e do falar e dos maneirismos era apenas a aparência - pensando o que não poderei fazer desta carne e destes ossos concordes, se eu quiser; esta carne e estes ossos e esta alma, que provêm da mesmafonte de que os meus brotaram, mas que brotaram, estes, em paz serena e em contentamento, e fluíram à luz constante se bem que monótona do sol, ao passo que estes, que meforam legados por ele, brotaram no ódio e no ultraje e na inclemência, efluíram na sombra - o que não poderia eu moldar deste barro dúctil e ávido que o próprio pai não foi capaz de moldar - para que ele ganhe que formas de qual bem que pode haver que tem de haver neste sangue, e ninguém aqui para tomar nas mãos e moldar esta porção do mesmo sangue em mim, ou só quandofor tarde de mais: ou os momentos em que ele terá dito para consigo que era um absurdo, não podia ser verdade; que tais coincidências só acontecem nos livros, pensando - a lassidão, o fatalismo, esse incorrigível solitário que ele era - Que patacão de rapaz, este galfarro. Como é que me hei-de ver livre dele: e depois a voz, a outra voz: Não digas isso: e ele: Não. Mas que é um patacão e um galfarro, isso digo) e os dias, as tardes, enquanto cavalgavam juntos (e Henry a imitá-lo até nisto, ele que era melhor cavaleiro, que não tinha talvez o que Bon chamaria estilo, mas tinha mais horas de sela, para quem um cavalo era uma coisa tão natural como o andar, ele que montaria qualquer besta em qualquer chão e à doida) enquanto elè se via com certeza a atolar-se e a afundar-se na torrente luminosa, irreal, das palavras de Henry,
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transpostos (os três: ele e Henry e a irmã que ele nunca tinha visto e talvez nem tivesse curiosidade em conhecer) para um mundo que era como um conto de fadas em que nada senão eles existia, cavalgando ao lado de Henry, escutando, sem precisar de fazer perguntas, instar de que modo fosse a que falasse este rapaz que nem sequer suspeitava que o homem a seu lado podia ser seu irmão, e de cada vez que a respiração lhe passava pelas cordas vocais estava a dizer De agora em diante a minha casa, que é também a da minha irmã, será a tua casa, e a minha vida e a da minha irmã serão a tua vida, perguntando-se ele (Bon) - ou talvez nem isto sequer - se, fossem as condições inversas e Henry fosse o forasteiro e ele (Bon) a vergôntea da família, e ainda assim soubesse o que só suspeitava agora, ele diria o mesmo; depois (Bon) a concordar enfim, a dizer, 'Seja. Irei passar o Natal a tua casa', não para ver a terceira habitante desse conto de fadas de Henry, não para ver a irmã, porque ele, nunca por nunca ser, pensara nela: apenas tinha ouvido falar dela: mas pensando Então vou vê-lo enfim, a este a quem parece que fui ensinado a nunca esperar que um dia visse, a este pai que eu aprendi a não ter, pensando talvez que entraria na casa e veria o homem que o tinha gerado e então saberia; haveria esse clarão, esse instante de reconhecimento, incontestável e mútuo, e ele teria uma certeza e de uma vez para sempre talvez pensando É só isso que eu quero. Ele nem precisa de me perfilhar; eu dar-lhe-ei a entender imediatamente que ele não precisa de ofazer que eu não estou a contar com isso, nãoficarei magoado por isso, tal como ele me dará imediatamente a entender que sou seufilho, talvez pensando, talvez de novo com essa expressão a que se pode chamar sorriso mas que não era, que era só o que nem um galfarro patacão deveria decifrar: Não posso negar que soufilho da minha mãe, pelo menos: parece que tambémjá nem eu sei o que quero. Porque ele sabia exactamente o que queria; era só o dizê-lo - esse contacto físico mesmo se em segredo, oculto - o contacto vivo com essa carne que antes de ele nascerjá era animada pelo mesmo sangue que lhe fora legado e animava a sua carne para ele por sua vez o legar e correr quente e sonoro em veias e membros quando essa primeira carne e depois também a sua já não tivessem vida. Chegou então o Natal, e ele e Henry cavalgaram as quarenta n-úlhas até Sutpen's Hundred, e Henry continuava a falar, a manter distendido e leve e iridescente, com um sopro continuado, esse balão cheio de vácuo, o conto de fadas em que os três existiam, viviam, se moviam até talvez, em atitude e sem carne - ele e o amigo e a irmã, que o amigo nunca tinha visto e em quem (embora Henry não o soubesse) não tinha pensado ainda sequer mas de quem só ouvira falar, e mesmo então absorvido em pensamentos mais urgentes, e Henry provavelmente sem reparar que, quanto mais se aproximavam de casa, menos Bon falava, menos tinha a dizer a respeito fosse do que fosse, e talvez até (e isto Henry não saberia com certeza) menos ouvia. Entraram: e se alguém olhasse para ele porventura teria notado na sua cara uma grande parecença com aquela expressão - a oferta, em humildade, mas em orgulho também, da completa capitulação - que ele se habituara a ver na cara de Henry, e ele porventura dizendo para consigo Não só eu não sei o que quero mas pelos vistos sou imensamente mais novo
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do que julgava também: e viu cara a cara o homem que podia ser seu pai, e
nada aconteceu - nem o choque, nem a quente voz do sangue a que mesmo só uma palavra teria sido lenta por demais para obstar - nada. E ele passou ali dez dias, não só o esotérico, o sibarita, a lâniána de aço em bainha de seda mosqueada, que Henry tinha começado a arremedar na Universidade, mas o objecto de arte, o espelho e modelo de estilos e primores, que foi nessa qualidade que Mrs Sutpen (foi o que disse o teu pai) o aceitou e assim teirnou (não foi o que o teu pai disse?) que ele fosse (e seria capaz de o comprar como tal, e ter pago por ele com a própria Judith, se não houvera outro licitante entre eles quatro - ou não foi o que o teu pai disse?) e foi o que ele continuou a ser para ela até que desapareceu, levando Henry consigo, e ela nunca mais tomou a vê-lo, e a guerra e as dificuldades e a desgraça e a má alimentação preencheram os seus dias a ponto de ela porventura já nem se lembrar, passado pouco tempo, que o tinha esquecido. (E a rapariga, a irmã, a virgem - credo, quem saberá o que ela viu nessa tarde, quando subiram os dois a alameda, que oração, que sonho meditativo, virginal, surgiu ali, em trajo de cavaleiro, de uma qualquer terra fabulosa, não em áspero ferro de caldeiras mas em sedas trágicas dum Lancelote com quase trinta anos, dez anos mais velho do que ela, e esgotado, saciado, de que experiências e prazeres, que assim o devem ter criado as cartas de Henry.) E chegou o dia da partida, e ainda nenhum sinal; ele e Henry partiam, e ainda nenhum sinal, nenhum à despedida como também não houve nenhum quando ele viu pela primeira vez essa cara onde ele poderia @julgava ele) ter visto com os seus próprios olhos a verdade, e assim nem teria sido preciso um sinal, se não fora a barba; nenhum sinal nos olhos que podiam ver bem a sua cara, que ele não tinha barba a escondê-la, os olhos que podiam ter visto a verdade, se a verdade estivesse ali estampada: mas nem uma centelha ele viu naqueles olhos: e foi assim que ele soube que a verdade estava estampada na sua própria cara, porque sabia que o outro a tinha visto, da mesma forma por que Henry haveria de saber depois, na biblioteca, em vésperas de Natal, q@e o pai não mentia exactamente porque o pai não disse nada, não fez nada. Porventura ele até pensou, até se perguntou, se a barba não existiria talvez por essa razão, se porventura o outro não se teria escondido atrás dessa barba a proteger-se deste mesmo dia, e se assim era, porquê? porquê? pensando Mas porquê? Porquê? pois se ele queria tão pouco, teria compreendido se o outro tivesse desejado que o sinal fosse secreto, e teria consentido logo, e contente, que fosse então secreto, ainda que não pudesse compreender porquê, pensando no meio disto Meu Deus, eu sou novo, novo, e eu nem sequer sabia; eles nem sequer mo disseram, que eu era novo sentindo o mesmo desespero e a mesma vergonha, como é quando temos de ver o fracasso do nosso pai numa prova de coragem física, pensando Eu é que devia terfracassado; era eu, eu, não ele, que provém do mesmo sangue que nos corre aos dois nas veias, mas o dele antes de se ter corrompido e maculado pelo que fosse que havia no da Mãe e lhe foi intolerável. - Espera", exclamou Shreve, embora Quentin não tivesse falado: tinha sido meramente um quê, um quase movimento da figura, ainda lassa e corcovada, que era prenúncio
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da palavra, porque Slireve disse Espera. Espera. antes que Quentin pudesse ter começado a falar. "Porque ele nem tinha olhado para ela. Ali, que ele a viu, isso viu, tinha tido oportunidades de sobra para a ver; não podia deixar ele de a ver, porque disso cuidou Mrs Sutpen - dez dias de intin-iidades planeadas e preparadas e executadas como as campanhas dos generais antigos nos compêndios, por bibliotecas e salas e passeios de charrete pela tarde planeadas todas havia três meses, quando Mrs Sutpen leu a primeira carta de Henry com o nome de Bon, até que por fim talvez até Judith também começava a sentir-se o outro de uni par de peixinhos de aquário: e até conversou com ela também, se foi conversa o que ele poderia ter achado para dizer a uma provinciana que, provavelmente, nunca tinha visto uni homem, fosse velho ou novo, que mais cedo ou mais tarde não cheirasse a estrume; conversou com ela mais ou menos como conversaria com a velhota na sala das cadeiras douradas, salvo que num caso ele teria de fazer a conversa toda e no outro nem sequer teria sido capaz de se escapar se Henry não vinha salvá-lo. E por essa altura talvez ele até já pensasse nela; talvez quando estivesse a dizer para consigo não deve ser o que eu pensava; ele não podia olhar assim para mim todos os dias sem me dar um sinal, se fosse como eu
pensava dissesse Ela até nem estava mal como quem deixou o champanhe na mesa da ceia e vai em direcção ao whiskey no aparador e casualmente passa por uma taça de sherbert de limão, ali, numa bandeja, e olha para o
sherbert e diz com os seus botões, Até não estava mal, mas que graça aquilo tinha. - Achas bem assim?"
"Mas não é amor", disse Quentin. "Por que é que não é? Porque ouve lá. O que foi que a velhota, a Tia Rosa, te disse, que há certas coisas que têm de ser assim, e que se não são passam a ser, e têm de ser por muito mais maioria de razão do que outras que só são talvez, e que,não faz diferença nenhuma se são ou deixam de ser? Com isto é o mesmo. E que ele ainda nem tinha tido tempo. Credo, ele devia ter percebido que seria assim. É como o advogado pensava, ele não era um imbecil; o mal é que ele não era o tipo de não-imbecil que o advogado supunha que ele era. Ele devia ter percebido que aquilo ia acontecer. Seria como quem passa por aquele sherbert, e a saber que até vai chegar ao aparador onde está o whiskey, mas já sabe que amanhã de manhã há-de querer o sherbert, e então chega ao whiskey e percebe que só quer é aquele sherbert, e já; talvez nem sequer fosse ao aparador, talvez até olhasse para trás, para o champanhe em cima da mesa da ceia, por entre o Haviland sujo e o damasco amarrotado, e de repente percebesse que nem o champanhe ele queria. Não que fosse uma questão de escolher, de ter de escolher entre o champanhe ou o whiskey e o sherbert, mas de repente (seria então PriInavera, e ele nunca tinha passado uma Primavera ali, e tu disseste que o Mississipi do Norte é uma região um pouco mais agreste que a Luisiana, com comisos e violetas e as primeiras flores que não têm cheiro, mas a terra e as noites são ainda uni pouco frias, e há gomos duros, tensos, espetados, como se fossem mamilos de raparigas, nos armeiros e nas árvores-de-judas e nas faias e nos sicônioros, e qualquer coisa de jovem até nos cedros, como ele nunca tinha visto) uma pessoa per208

cebe que afinal quer é o sherbert e nunca se quis outra coisa e anda há tempos com um desejo enornie daquilo mesmo - além do mais, sabe que o sherbert está ali para ele. Não para quem quer que seja lhe pegar, mas para ele só, e sabe, só de olhar para essa taça, que ela seria como a flor que, se outra mão se estendesse para ela, ficava toda cheia de espinhos, mas para a mão dele não; e ele não estava habituado a isto, porque as outras taças todas, que tinham estado prontas, à espera que lhes pegasse, e até nem estavani mal, não continham sherbert mas champanhe, ou no mínimo um vinho de cozinha. E mais. Ele sabia que as suas suspeitas podiam ser verdade, ou não sabia se eram verdade ou não. E quem poderá dizer se não seria porventura a possibilidade do incesto, pois quem (sem ter uma irmã: dos outros não sei) já se apaixonou que não descobriu a vã evanescência do encontro carnal; quem não teve de compreender que, findo o breve que é tudo, se tem de recuar tanto do amor como do prazer, reunir a traparia e a escória - os chapéus e as calças e os sapatos que todos arrastamos por este mundo - e recuar, porque os deuses relevam e praticam estes e outros coitos como sonhos incomensuráveis, que flutuam alheados acima das peias e dos tormentos do instante'esse: não-era: é: foi: que é a compensação dada apenas a elefantes e a baleias, enfunados e imponderáveis: mas talvez se houvesse também o pecado, porventura não lhe seria permitido fugir, desenlaçar-se, regressar.
- Não será assim?" A voz calou-se; podia ter sido facilmente interrompido agora. Quentin podia ter falado agora, mas Quentin não o fez. Continuou sentado como antes, as mãos nos bolsos das calças, os ombros estreitando-se para a frente e corcovados, o rosto cabisbaixo, e todo ele parecia singularmente mais pequeno do que era em realidade, por razão da sua altura real e da secura de carnes - esse quê de fragilidade na ossatura, nas articulações, que mesmo aos vinte anos tinha ainda alguma coisa em si, algum derradeiro eco em si, da adolescência - isto se comparada com a corpulência querubínea do outro que estava à sua frente e parecia mais novo, a quem a mesma superioridade em massa e volume fazia parecer mais novo, como um rapaz obeso aos doze anos, que excede o peso do outro em vinte ou trinta libras, ainda parece mais novo que o rapaz de catorze que um dia teve essa obesidade e a perdeu, a vendeu (fosse ou não com o seu consentimento) por esse estado de virgindade que não é de rapaz ou rapariga.
"Não sei", disse Quentin. "Pronto", disse Sbreve. "Talvez eu também não saiba. Mas, credo, chega sempre um dia em que uma pessoa se apaixona. Elas vencem, mas não é assim. Era como se Deus tivesse feito nascer Jesus, e visse que Ele tinha as ferramentas do carpinteiro, e depois nunca Lhe desse nada que construir com elas. Não acreditas?"
"Não sei", disse Quentín. Não se mexeu. Shreve olhou para ele. Mesmo quando não falavam as suas respirações, nesta sala tumular, se vaporavam suave, serenamente. O carrilhão já teria batido a meia-noite há algum tempo.
"Porquê, não te interessa?" Quentin não respondeu. "Fazes bem. Não respondas. Porque eu sei que mentias. - Então pronto. Ouve lá. Porque ele nunca teve de se preocupar coin o amor, que a natureza sabe o que faz.
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Talvez ele soubesse que havia um fado ou maldição a persegui-lo, como
disse a Tia Rosa que há coisas que simplesmente têm de ser assim, e se não são passam a ser, para acertar as contas, escrever Pago na folha antiga, para depois o guarda-livros, seja ele quem for, a tirar do livro-mestre e a queimar, ver-se livre dela. Talvez ele soubesse então que, fosse o que fosse que o velhote havia feito, quer o tivesse feito por bem ou por mal, não ia ser o
velhote a pagar a factura; e agora, que o velhote estava na bancarrota por incompetência da sua velhice, quem pagaria a factura a não ser os homens que eram seus filhos, a sua descendência, porque não era assim que se fazia nos tempos antigos? o velho Abraão, entrado em anos e fraco e já incapaz de fazer o mal, que tinha sido enfim apanhado, e os capitães e os cobradores dizendo, 'Velho, não te queremos a ti' e Abraão diria, 'Louvado seja o
Senhor, gerei a filhos que hoje podem suportar os encargos das minhas iniquidades e das minhas dores; sim, que talvez até me devolvam os rebanhos e as manadas que outros me roubaram: para que eu possa descansar os olhos nos meus bens e nos meus servos, e ver as suas gerações e as dos meus descendentes aumentadas cem vezes quando a minha alma se apartar de mim.' Ele sempre soube que o amor sabe o que faz. Talvez por isso não tivesse de pensar nela durante esses três meses, desde aquele Setembro até aquele Natal, enquanto Henry só falava dela, dizendo a cada vez que respirava: A vida dela e a minha só terão existência na tua vida; não precisava de perder tempo com o amor depois que ele acontecesse, e o tiro lhe saísse pela culatra, pois se ele nunca se deu ao trabalho de lhe escrever uma carta (salvo aquela última) que ela quisesse guardar, pois se ele nunca chegou a propor-lhe casamento ou a dar-lhe um anel que Mrs Sutpen pudesse mostrar a toda a gente. Porque o mesmo fado também a perseguia a ela: esse velho Abraão, que estava tão velho e tão fraco já, que ninguém o queria em pessoa para resgatar qualquer dívida; talvez ele nem sequer tivesse de esperar que fosse Natal para a ver
para saber isto; talvez isto fosse no que deram os três meses em que Henry não se cansou de falar, e que ele ouvia sem atender: Não estou a ouvirfalar duma rapariga, duma virgem; estou a ouvirfalar dum cercado de terra vi .rgem, estreita, mimosa, já lavrada e gradada, e eu basta que deixe cair nela a semente, e a afague até ela ficar de novo lisa, viu-a nesse Natal e teve a certeza, e depois esqueceu, voltou para a escola e nem sequer se lembrou que tinha esquecido, porque ele não teve tempo; porventura foi num único dia dessa Primavera que tu contaste, um dia em que ele parou e disse, muito sereno: Seja. Quero deitar-me com aquela que pode ser minha irmã. Seja e
depois esqueceu-se disso também. Porque ele não teve tempo. Ou melhor, o que não lhe faltava era tempo, porque ele tinha de esperar. Mas não por ela. Isso estava tudo arranjado. Era por outra coisa. Porventura ele pensava que viria na mala do correio, de cada vez que o nigro chegava de Sutpen's Hundred, e Henry a julgar que era pela carta dela que ele esperava, quando o que ele estava a pensar era Talvez ele escreva então. Bastava-lhe escrever. 'Sou teu pai. Queima isto'que eu obedecia. Ou àfalta disso, umafolha, um
pedaço de papel com uma só palavra 'Charles'escrita pelo seu punho, e eu
saberia o que ele quis dizer e ele nem precisava de pedir-me que o quei210

masse. Ou uma só madeixa do seu cabelo, ou uma apara da unha do seu
dedo, e eu havia de as conhecer porque hoje acredito que toda a vida soube como seriam o seu cabelo e as unhas dos seus dedos, poderia escolher essa madeixa e essa apara entre mil. E a carta não veio, e a sua carta ia ter às mãos dela de quinze em quinze dias e a dela chegava às suas mãos, e ele porventura pensava Se uma das minhas voltasse por abrir então. Istojá seria um sinal. E isto não aconteceu: e depois Henry começou a dizer que ele tinha de ir passar um dia ou dois a Sutpen's Hundred antes de seguir para casa e
ele respondeu, seja, disse Será o Henry quem vai receber a carta, a carta dizendo que não é conveniente que eu os visite nessa altura; então pelos vistos ele não tenciona reconhecer-me como seufilho, mas pelo menos tê-lo-ei forçado a admitir que o sou. E essa também não veio e a data foi marcada e participada à família, de Sutpen's Hundred e essa carta não veio também e ele pensou Será então; fui injusto com ele; talvez seja disto que ele esteve à espera e talvez o seu coração tenha então dado um salto, e ele tenha dito Sim. Sim. Renunciarei a ela; renunciarei ao amor e a tudo; é um p@eço tão pouco, tão pouco, ainda que ele me diga 'nunca mais te quero ver; aceita o
meu amor de pai em segredo, e vai-te'eufá-lo-ei; não pedirei sequer para saber da sua boca o quefoi que a minha mãefez quejustificou a sua acção para com ela e comigo. E esse dia chegou, e ele e Henry cavalgaram de novo as quarenta milhas, passaram os portões, subiram a alameda até à casa. Ele sabia o que lá encontraria - a mulher que ele tinha visto uma vez e logo adivinhara, a rapariga que ele tinha adivinhado sem ter visto uma única vez, o homem que ele tinha visto dia a dia, que ele tinha estudado com uma assustadora atenção, porque ele precisava de saber, e a quem nunca tinha penetrado; - a mãe que chamou Henry de parte, ainda não estavam eles há seis horas nessa casa, nessa visita de Natal, e o informou do noivado antes quase de o noivo ter tido tempo de associar o nome à pessoa da filha: de forma que, provavelmente, antes mesmo de eles voltarem à escola, e sem que ele desse conta de que o tinha feito, Henry já tinha contado a Bon os planos da mãe (ele que já tinha contado a Bon os seus próprios planos); de forma que talvez antes mesmo de eles iniciarem a viagem na segunda visita de Bon - (Seria Junho agora e como seria no Mississipi do Norte? como é que disseste? as magnólias em flor e os mimos e dali a mais cinquenta anos, passada a partida para a guerra e as batalhas e a derrota e o regresso, o Dia dos Combatentes, e os veteranos todos no cinzento asseado, escovado, passado a ferro, e com as espúrias medalhas de bronze que nunca, nem nesse tempo, significaram nada, e as raparigas escolhidas, de vestido branco preso na cinta com uma faixa carmesim, e a banda a tocar o Dixie*, e os velhos alquebrados, todos, desatando aos berros, eles que não se julgaria que tivessem fôlego bastante para lá chegar, para caminhar até ao centro da cidade nem sequer para tomar assento na tribuna) - seria Junho agora, com as magnólias e os mimos ao luar e as cortinas ondeando ao ar festivo de Junho e a música, rabecas e triângulos, lá dentro no meio das crinolinas espalhadas em reviravoltas e mesuras: e Henry estaria até um pouco tocado, esse que deveria estar dizendo 'Exijo saber quais são as tuas intenções a respeito da minha irmã' mas não
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o dizia, e em vez disso, e talvez corasse novamente, mesmo ao luar, mas a pé firme, e corava porque o homem que tem o orgulho bastante de ser humilde nunca é servil (se a cada vez que respirava sobre as cordas vocais dizia Nós pertencemos-te; faz de nós o que tu quiseres), dizendo 'Eu dantes pensava que havia de odiar o homem que tivesse de ver todos os dias e cujo mínimo gesto e acto e palavra me diriam, vi e toquei partes do corpo da tua irmã que tu nunca verás nem tocarás: e agora eu sei que o hei-de odiar, e é por isso que eu quero que esse homem sejas tu', sabendo que Bon perceberia o que ele queria dizer, o que ele tentava dizer, confessar, pensando, dizendo para consigo (Henry): Não é só por ele ser mais velho do que eu, e já conhecer mais do que eu hei-de algum dia conhecer e por se lembrar de mais; mas
por razão do meu livre arbítrio, e pouco importa se eu nessa altura o sabia ou não, dei-lhe a minha vida e a da Judith - "
"Continua a não ser amor", disse Quentin. "Pronto", disse Stireve. "Ouve só. - Cavalgaram as quarenta milhas e
passaram os portões e subiram até à casa. E desta vez Sutpen nem estava lá. E Ellen nem sequer sabia onde ele tinha ido, que julgava, na sua blandícia e volubilidade, que ele teria ido a Mênfis, ou talvez mesmo a Saint Louis, a negócios, e Henry e Judith não faziam sequer grande caso, e só ele, Bon, que sabia onde Sutpen tinha ido, dizendo para consigo É claro; ele não tinha a
certeza; teve de ir lá para certificar-se, falando consigo mesmo numa voz alta agora, numa voz alta e rápida, para não ouvir, para não poder ouvir, o
pensamento, esse Mas se ele suspeitava, por que não mo disse? Eu teria feito assim, primeirofalava com ele, que tenho o seu sangue depois quefoi maculado e corrompido pelo que quer que fosse que havia na Mãe; numa voz alta e rápida agora, dizendo para consigo É o que é; talvez tenha ido à frente para esperar lá por mim; não me deixou aqui um recado porque os outros não devem suspeitar de nada por enquanto e ele sabe que eu saberei imediatamente onde ele está quando vir que ele não está cá, pensando neles dois, a mulher sombria e vingativa que era sua mãe e o hornem soturno e empedernido que o viu em cada um desses dez dias sem que a sua expressão minimamente se alterasse, enfrentando-se num soturno armistício, ao fim de quase trinta anos, ali naquela sala de visitas, opulenta e barroca, naquela casa a que ele chamava a sua casa porque não haverá ninguém que não tenha a sua casa, o homem, que ele agora tinha a certeza de que era seu pai, agora sem humildade sequer (e ele, Bon, orgulhoso disso), que nem mesmo agora dizia Procedi mal mas Admito que é assim - Credo, pensa no coração dele então, durante esses dois dias, com a mulherzinha agora a cada instante a empurrar Judith para os seus braços, porque ela tinha andado a espalhar a notícia do, noivado confidencialmente por toda a comarca desde o Natal - o teu pai não disse que ela até tinha levado Judith a Mênfis na Primavera, a comprar o enxoval? - e Judith que nem tinha de aceder ao empurrão nem tinha de resistir, mas era apenas, existia apenas e respirava, como Henry, que talvez um dia nessa Primavera, ao acordar, se tenha deixado ficar muito quieto na cama, inventariando, somando os algarismos e
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fazendo o balanço e tenha dito para consigo, Seja. Estou a tentarfazer de mim o que eu penso que ele quer que eu seja; ele pode fazer de mim o que quiser; basta que ele me diga o que hei-de fazer e eu Já-lo-ei; mesmo
que ele me peça o que para mim seja uma desonra, mesmo assim havia de ofazer, só Judith, sendo mulher e por isso mais sábia, não pensaria sequer em @esonra: diria apenas, Seja. Farei o quefor que ele me pedir que eu faça, e
e por isso mesmo que ele nunca me pedirá nada que eu considere desonroso: de forma que (porventura ele até a beijou dessa vez, porventura foi a primeira vez que ela foi beijada, e ela tão inocente que nem teria timidez ou pudor, nem perceberia sequer que tinha sido um beijo de condescendência, porventura só a olhar para ele depois, com um quê de surpresa vaga e serena, por o primeiro beijo do namorado ter sido aparentemente um beijo de irmão
- contanto, claro está, que ao irmão tenha passado pela cabeça alguma vez, ou pelos actos, beijar a irmã na boca) - de forma que, passados os dois dias e passada a visita, estava Ellen aos guinchos com ela, 'O quê? Não há noivado, não há compromisso, não há um anel?' ela devia andar tão espantada que nem saberia mentir, porque seria essa a primeira vez que lhe ocorria que não tinha havido uma proposta de casamento. - Pensa no coração dele então, enquanto cavalgava até ao Rio, e depois já mesmo no vapor, e ele a andar de um lado para o outro na coberta, sentindo pelo chão da coberta os motores, dia e noite, que o levavam para mais perto, cada vez mais perto, desse momento pelo qual agora se daria conta com certeza que tinha esperado desde que teve tamanho suficiente para entender as coisas. É claro que, de quando em quando, ele teria de dizer aquele pensamento numa voz bem alta e rápida, É isto e mais nada. Ele só quer ter a certeza primeiro para abafar aquele outro Mas porquêfazer as coisas assim? Por que não me disse lá? Ele sabe que eu nunca reclamarei nenhuns direitos a qualquer parte do quanto ele agora possui, e os sacriflcios e o sofrimento e o escárnio que isso lhe custou (assim me disseram; não ele: os outros) só ele o sabe; sabe isso tão bem que tal nunca lhe teria ocorrido, e sabe que nunca me teria ocorrido a mim que esta pudesse ser a razão de quem não só é generoso mas implacável, e deve ter cedido quanto ele e a Mãe possuíam a ela e a mim como preço de a repudiar, não porque o tê-lo feito assim o magoasse, o desfeiteasse, e o mantivesse em suspenso ainda por mais tempo e escusado, porque ele pouca importância tinha; que ele assim se moesse, ou até se mortificasse, pouca importância tinha: mas não que tivesse de ser constantemente lembrado de que ele próprio não teria feito assim, tendo ele por origem o mesmo sangue depois do que foi que a mãe tinha sido ou tinha feito que o maculou e corrompeu. - Cada vez mais perto, até que a incerteza e a perplexidade e a pressa e tudo pareciam niásturar-se num único sublimado, a capitulação passiva, e por isso ele pensava apenas Seja. Seja, então. Mesmo sefor assim. Mesmo se ele o querfazer assim. Prometerei nunca mais voltar a vê-la. Nunca mais voltar a vê-lo. E então chegou ao fim da viagem. E nunca lhe disseram se Sutpen tinha lá estado ou não. Ele nunca soube. Pensava que sim, mas nunca soube - a mãe ainda a paranóica sombria, inalterada, feroz, que ele tinha deixado em Setembro, de quem não podia sacar nada por indi213

rectas e a quem não ousava perguntar abertamente - até o facto de ele adivinhar as hábeis perguntas do advogado (se ele tinha gostado da escola e das pessoas da região e se tinha porventura - ou não teria porventura? - feito por lá amizades nas principais famílias) era somente a prova para ele nessa altura que Sutpen não tinha lá estado, ou pelo menos que o advogado não estava a
par da visita, pois agora, que ele julgava ter divisado o propósito do advogado em mandá-lo antes de mais para essa escola em particular, nada ele viu em tais perguntas que indicasse que o advogado soubesse agora o que dantes não sabia. (Ou nada que ele ficasse a saber nessa entrevista com o advogado, porque seria uma entrevista breve; seria quase a mais breve de quantas houve entre eles, a mais breve de todas, com excepção da última, claro está, aquela que iria ocorrer no Verão seguinte, quando Henry estivesse com ele.) Porque o advogado não se arriscaria a perguntar-lhe abertamente, tal como ele (Bon) não se atreveu a perguntar à mãe abertamente. Porque, embora o advogado pensasse que ele era mais imbecil que lerdo ou obtuso, nem mesmo ele (o advogado), nunca por nunca ser, pensou que Bon era o tipo de imbecil que foi. Portanto ele não contou nada ao advogado e o advogado não lhe contou nada a ele, e o Verão passou, e chegou Setembro, e ainda o advogado (nem a mãe) não lhe perguntara uma só vez se ele queria voltar para a escola. De modo que teve de ser ele próprio a dizê-lo, que fazia tenções de voltar; e porventura ele sabia que tinha perdido aquela jogada, pois não viu nada na expressão do advogado para além da sua aquiescência de procurador. E ele então voltou para a escola, onde Henry esperava (ali sim; esperava) por ele sem lhe dizer sequer 'Não respondeste às minhas cartas. Nem sequer escreveste à Judith' quem já lhe tinha dito O que a minha irmã e eu temos, e somos, pertence-te mas porventura ele escreveu, sim, a Judith, escreveu agora, pelo primeiro postilhão nigro que partiu para Sutpen's Hundred, a dizer que tinha sido um Verão rotineiro e que por isso não tinha nada para dizer, porventura com um Charles Bon simples e indelével por fora no sobrescrito, e ele pensando Ele terá de ver isto. Talvez a devolva pensando Talvez se a carta vier devolvida nada me impeça então, e assim talvez eu saiba finalmente o que voufazer. Mas aquela não veio devolvida. E as outras não vieram devolvidas. E o Outono passou, e chegou o Natal, e eles cavalgaram de novo até Sutpen's Hundred, e desta vez ele também não estava lá, estava nos campos, tinha ido à vila, estava a caçar - sei lá; Sutpen não estava em casa, quando eles chegaram, e Bon sabia que já não contava que ele estivesse em casa, e diria Agora. Agora. Agora. Vai ser agora. Vai ser desta vez, e eu sou novo, novo, porque ainda não sei o que voufazer. Por isso talvez o que ele fazia nesse entardecer (porque ele sabia que Sutperi tinha voltado, já estava em casa; seria como um vento, um não sei quê, sinistro e gelado, um bafo, que ele sentia e o fazia parar, grave, sereno, alerta, pensando
O quê? O que é? E depois ele havia de saber; sentiria até o outro que entrava em ca§a, e ele deixaria a respiração sustida expandir-se natural, serena, uma exalação profunda, o coração sereno também) no jardim, enquanto caminhava com Judith e falava com ela, galante e elegante e automático (e Judith pensando nisso como pensava nesse primeiro beijo do Verão: Então é isto.
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É isto o amor, açoitada uma vez mais pelo desapontamento mas sem vergar ainda); - o que ele fazia ali, agora, era esperar talvez, dizendo para consigo Talvez ele ainda me mande chamar E mo diga a mim ao menos sabendo já que não: Ele agora está na biblioteca, mandou o nigro chamar o Henry, agora o Henry está a entrar a porta: por isso ele parou talvez e olhou para ela, com uma expressão que seria agora um sorriso, e pegou-lhe pelos cotovelos e voltou-a, natural e meigo, até ela estar virada para a casa, e disse 'Vá. Quero estar sozinho, a pensar no amor' e ela foi, da mesma forma como recebeu o beijo naquele dia, talvez com o toque da palma da mão dele, momentânea e leve, no traseiro. E ele ficou ali virado para a casa até que Henry saiu, e eles olharam um para o outro por instantes sem dizer palavra e depois voltaram-se e caminharam juntos pelo jardim, atravessaram o pátio e entraram na cavalariça, onde estaria talvez um nigro, ou talvez eles próprios terão selado os dois cavalos, e ali esperaram que um nigro da casa viesse trazer os dois alforges da sela com as suas coisas. E talvez nem então ele tenha dito, 'Mas ele não mandou um recado para mim?'"
A voz de Shreve calou-se. Ou seja, tanto quanto sabiam os dois, Shreve e Quentin, ele tinha-se calado, pois, tanto quanto sabiam os dois, ele nunca tinha começado, que não importava (e possivelmente nenhum deles tinha consciência da distinção) qual tinha dito as palavras. De tal forma que não eram já dois mas quatro os cavaleiros em dois cavalos correndo pela treva nas geladas rodeiras de Dezembro, nessa véspera de Natal: quatro e em
seguida apenas dois - Charles-Shreve e Quentin-Henry, ambos acreditando que o outro, Henry, pensava Ele (referindo-se ao pai) deu cabo de nós todos, mas nunca pensaria Ele (referindo-se a Bon) já devia saber ou pelo menós suspeitava; é por isso que ele agiu como agiu, é por isso que ele não respondeu às minhas cartas no Verão passado, nem escreveu à Judith, é por isso que ele nunca a pediu em casamento; acreditando que isto mesmo devia ter ocorrido a Henry, se não antes, nesse momento em que saiu a porta e ele e Bon se olharam por instantes sem uma palavra e depois desceram à cava- lariça e selaram os cavalos, mas que Henry o teria pensado sem dar por isso, que não acreditava ainda na verdade sabendo embora que era verdade, porque ele devia sentir agora o desespero absoluto de compreender o segredo enfim da sua atitude com relação a Bon desde aquele primeiro momento instintivo em que o viu, há um ano e três meses; sabia, porém não acreditava, ou tinha de recusar-se a acreditar. Por isso os cavaleiros eram quatro e dois os cavalos, correndo por essa noite, e logo pela geada de um dia luminoso de Natal do Mississipi do Norte, e nisto muito semelhantes a Párias, passando as casas das plantações, com ramos de azevinho enfiados nas aldravas e visco pendurado dos lustres, e poncheiras de eggnog e toddy em mesas
nas salas de entrada, e o fumo imperturbado e azul da lenha pairando sobre as chaminés estucadas da senzala, até que chegaram ao Rio e ao vapor. Seria Natal também nesse navio; o mesmo visco e o mesmo azevinho, o mesmo eggnog e o mesmo toddy; porventura, sem dúvida, uma ceia de Natal e um baile, mas não para eles: eles estariam ao frio, na treva da amurada, acima das águas negras, e ainda sem falar, pois nada havia a dizer, os dois (os qua215

tro) mantidos nessa liberdade vigiada, essa suspensão, por Henry, que sabia mas ainda não acreditava, que deliberadamente ia ver com os propnos olhos e comprovar e, isto acreditavam Slireve e Quentin, sabê-lo seria para Henry o mesmo que matá-lo. Eram por isso quatro ainda os que desembarcaram do navio em Nova Orleães, cidade que Henry nunca tinha visto (que a sua inteira experiência cosmopolita, à parte a estada na escola, consistia provavelmente em uma ou duas viagens a Mênfis com o pai, a comprar gado ou escravos) e agora não tinha tempo de ver - Henry, que sabia mas não acreditava, e Bon, a quem Mr Compson tinha chamado fatalista mas que, no pensar de Shreve e Quentin, não opôs resistência à ordenação e ao propósito de Henry porque nem sabia quais fossem as intenções de Henry, nem fazia questão de saber quais fossem, pois tinha há muito compreendido que nem ele próprio sabia o que fazer; - quatro, os que tomaram assento na sala de visitas de barroca e embolorada magnificência, que Stireve tinha inventado e que provavelmente correspondia à verdade, enquanto a filha nascida ao francês, plantador de cana-de-açúcar no Haiti, e à mulher que o primeiro sogro de Sutpen lhe tinha dito que era uma espanhola (a mulher um tanto desairosa de cabelo negro, desalinhado, com fios grisalhos e a aspereza duma cauda de cavalo, com pele cor de pergaminho e olhos negros, papudos e implacáveis, que por si não mostravam a idade porque não mostravam esquecimento, ela que Slireve e Quentin tinham da mesma forma inventado e que da mesma forma provavelmente correspondia à verdade) não lhes contou nada porque não precisava de o fazer, porque já o teria contado, que não disse, 'O meu filho está apaixonado pela sua irmã?' mas 'Com que então ela apaixonou-se por ele' e depois sentou-se a rir em gargalhadas incessantes e ásperas, a rir-se de Henry, que não podia ter-lhe mentido mesmo se o quisesse ter feito quem não teve de lhe dar resposta alguma, nem Sim nem Não. - Os quatro ali, na sala de Nova Orleães em 1860, tal como de certa maneira havia quatro aqui, na tumular saleta do Massachusetts em 1910. E Bon terá levado, provavelmente levou, Henry a visitar a amante oitoruna e a criança, como disse Mr Compson, embora nem Slireve nem Quentin acreditassem que a visita afectou Henry no sentido que Nir Compson parecia dar-lhe. Com efeito, Quentin nem sequer contou a Slireve o que o pai tinha dito a respeito da visita. Porventura Quentin nada ouvia quando Mr Compson a relatou (a recriou?) nessa noite em sua casa; porventura nesse momento, na varanda, nesse quente anoitecer de Setembro, Quentin ouviu sem dar por isso nem escutar sequer, tal como Slireve o teria feito, pois tanto ele como Shieve acreditavam - e também estariam provavelmente certos neste ponto - que a oitoruna e a criança teriam sido para Henry apenas alguma coisa mais na figura de Bon que ele devia, não invejar, mas arremedar, se tal fora possível, se houvera tempo e paz em que arremedá-lo - paz, não entre os homens da mesma raça e nação, mas paz entre duas jovens almas encasteladas e o incontroverso facto que assim as encastelava, que nem Henry e Bon, como nem Quentin e Shreve, foram os primeiros jovens a crer (ou pelo menos aparentemente a agir de acordo com essa conjectura) que as guerras são por vezes criadas com o único fim de resolver as pessoais dificuldades e descontentamentos da juventude.
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"De forma que a velhota fez a Henry aquela única pergunta e depois sentou-se ali, a rir-se dele, foi por isso que ele soube, então, que os dois souberam então. De forma que esta, agora, seria breve, esta vez com o advogado, a mais breve de todas. Porque o advogado devia ter andado a estudá-lo; porventura tinha até havido uma carta nesse Outono, enquanto o advogado esperava, e parecia que ainda não se tinha passado nada por lá (e foi talvez por causa do advogado que Bon nunca respondeu às cartas de Henry e Judith nesse Verão: por nunca as ter recebido) - uma carta; duas páginas ou talvez três de um seu humilde criado e etc., e etc., que, feitas as contas, eram dezoito palavras Que você é imbecil já eu sabia, mas não me dirá que espécie de imbecil quer ser agora? e Bon seria pelo menos um não-imbecil o bastante para ler nas entrelinhas. - Sim, a estudá-lo, não em cuidados ainda, só muito, muito aborrecido, e dando a Bon tempo mais que suficiente para vir ter com ele, dando-lhe uma semana inteira talvez (depois de ele - o advogado - ter habilmente manobrado Henry e descoberto muito do que Henry pensava, sem que Henry se apercebesse) antes de usar igual manobra com Bon também, e porventura com tamanha habilidade que nem Bon se apercebeu logo do que iria acontecer. Seria breve. Não seria segredo entre eles agora; apenas seria um não-dito: o advogado à secretária (e talvez na gaveta secreta o livro-mestre, onde ele tinha já acrescentado os juros compostos do último ano que passara sobre o intrínseco e o amor e o orgulho, a duzentos por cento)
- o advogado roído, aborrecido, mas sem qualquer espécie de cuidado, pois não só sabia que ele era um doido, mas é que ainda não acreditava seriamente que Bon fosse assim tão imbecil, embora estivesse prestes a alterar um tanto a, sua opinião sobre se não seria obtuso, ou pelo menos retardado;
- a estudá-lo e a dizer, polido e untuoso, pois agora não seria segredo, esse advogado que saberia agora que Bon já sabia tudo o que havia de saber, ou tinha precisão de saber, para dar o golpe: 'O senhor sabe que é um jovem muito afortunado? A maioria, mesmo quando tem a sorte de alcançar a vingança, tem de pagar um preço por ela, às vezes mesmo em dólares. Enquanto que o senhor está não só em posição de alcançar a sua vingança, de limpar o nome de sua mãe, mas o bálsamo, com que há-de mitigar a ofensa dela, terá um valor colateral que pode ser traduzido em algo de que um jovem precisa, que lhe é devido e que, gostemos ou não, pode ser obtido apenas em troca de moeda sonante' - e Bon não dizia Que quer dizer? nem se mexia ainda; isto é, o advogado não se daria conta de que ele começava a mexer-se, continuando (o advogado) polido e serviçal: T mais, mais do que a vingança, como lambugem da vingança, digamos assim, esse bouquê vespertino, essa flor sem perfume das pradarias, que não deixará saudades, e que a florir antes na sua lapela que na dum outro qualquer; essa - Como é que os senhores na vossa idade costumam dizer? - uma pesseguinha de'- e depois ele veria Bon, porventura os olhos, porventura ouviu-lhe só os passos. E depois, pistola (derringer, pistola de cavalaria, revolver, fosse o que fosse) e tudo e ele também, ele agachado contra a parede atrás da cadeira tombada, rosnando, 'Nem mais um passo! Alto!' depois gritando 'Acudam! Acudam! Este - !' depois só um grito, porque ele ouviria e sentiria os propnos ossos
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estalar antes de conseguir libertar os dedos da pistola, e estalar também o osso do pescoço quando Bon lhe bateu com a mão aberta numa face e depois com as costas da mão na outra; porventura até ouviu Bon dizer, 'Quiet . Silêncio. Não lhe vou fazer mal' ou porventura foi a sua faceta de advogado que lhe ordenou Silêncio e ele obedeceu, que voltou a sentar-se na cadeira já direita, meio deitado sobre a secretária; a sua faceta de advogado que o avisou que não dissesse Há-de pagar-mas mas em vez disso que ficasse ali meio deitado, entrapando a mão desengonçada no lenço, enquanto Bon, de pé, olhava sobranceiro, segurando a pistola pelo cano contra a perna, dizendo, 'Se desejar satisfações, estou às suas ordens' - e o advogado, agora encostado ao espaldar da cadeira, passando o lenço ao de leve na cara: 'Engano meu. Interpretei mal os seus sentimentos com respeito a este assunto. Peço-lhe perdão' e Bon: Tode ser. Como queira. Aceitarei um pedido de desculpas ou uma bala, como preferir' e o advogado (haveria uma leve cor vermelha ainda na sua face, mas nada mais: nada na voz ou nos olhos): 'Vejo que vai cobrar-me na íntegra o meu infeliz equívoco - ridículo até. Mesmo que eu pensasse que a razão estava do meu lado (que não penso) teria de declinar a sua oferta. Não estaria à sua altura com uma pistola' e Bon: 'Nem com um florete ou uma faca também?' e o advogado, polido e serviçal: 'Nem com um florete , nem com uma faca.' De forma que o advogado agora nem precisaria de dizer Há-de pagar-mas porque Bon estaria a dizê-lo por ele, que ficaria ali com a pistola na mão frouxa, pensando Mas só em se tratando de facas ou pistolas oufloretes. Por isso não posso vencê-lo. Podia dar-lhe um tiro. Dar-lhe-la um tiro com o mesmo escrúpulo com que atiraria a uma serpente ou a um homem que me encornasse. Mas, mesmo assim, ele vencia-me. pensando Sim. Elejá me venceu enquanto ele - ele - ("Ouve", disse, exclamou, Slireve. "Seria quando ele esteve deitado numa cairia dessa casa particular em Corinth depois de Pittsburg Landing, enquanto o ombro sarava, dois anos mais tarde, e a carta da oitoruna (talvez até aquela que trazia a fotografia dela e da criança) finalmente o alcançava, a chorar por dinheiro e a contar que o advogado tinha enfim partido para o Texas, ou para o México, ou lá para onde foi, e que ela (a oitoruna) também não conseguia encontrar a mãe dele, e por isso com certeza o advogado a tinha assassinado antes de roubar o dinheiro, que era mesmo desses dois fugirem ou deixarem-se matar e ela assim sem um amparo.") - Sim, eles agora sabiam. E credo, pensa nele, Bon, que tinha querido saber, que tinha tido a mais forte de todas as razões para querer saber, ele que, tanto quanto sabia, nunca tivera pai mas fora dalguma forma a criação dessa mulher que não o deixava brincar com as outras crianças, e desse advogado que até dizia à mulher se havia ou não de comprar uma pe carne ou um pão - duas pessoas, nenhuma das quais tivera prazer ou paixão em concebê-lo ou sofreu as dores e ânsias do parto para o dar à luz - que porventura se ela, ou ele ao menos, lhe tivessem dito a verdade, nada do que depois aconteceu teriajamais acontecido; enquanto que Henry tinha pai e segurança e tranquilidade e tudo, e a ele tinham ambos contado a verdade enquanto que a ele (Bon) ninguém disse nada. E pensa em Henry, que tinha dito primeiro que era mentira e depois, quando soube que não era mentira,
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ainda disse 'Não acredito', que tinha encontrado até nesse 'Não acredito' força bastante para repudiar casa e família, e ser o paladino da sua rebeldia, e que ao fazê-lo provou que a sua demanda era falsa e ficou, mais do que antes, interdito de voltar a casa; credo, pensa no fardo que ele teve de carregar, nascido de dois Metodistas (ou de toda uma longa e invencível raça de Metodistas) e educado no provinciano Mississipi do Norte, diante dum incesto, e havia de ser logo um incesto que lhe havia de estar reservado, contra o qual toda a sua hereditariedade e toda a sua educação tinham de rebelar-se por princípio, e numa situação em que ele sabia que nem o incesto
nem a educação o iam ajudar a resolvê-la. De forma que talvez quando eles partiram e caminharam pelas ruas nessa noite e por fim disse Bon, 'Então? E agora?' Henry tenha dito, 'Espera. Espera. Deixa-me habituar-me a isto.' E passaram-se talvez dois dias, ou três dias, e Henry disse, 'Não o farás. Não o farás.' e depois foi Bon que disse, 'Espera. Sou o teu irmão mais velhoousas dizer-me não ofarás, a mim?' E passou-se talvez uma semana, talvez Bon tenha levado Henry a ver a oitorima, e Henry olhou para ela e disse, 'Isto não te chegaT e disse Bon, 'Como queres tu que me chegueT e Henry disse, 'Espera. Espera. Tenho de ter tempo para me habituar a isto. Tens de me dar tempo.' Credo, pensa no que Henry deve ter falado nesse Inverno, e depois, nessa Primavera, com LincoIn já eleito e a convenção do Alabarna e o Sul começando a retirar-se da União, e depois houve dois presidentes nos Estados Unidos e o telégrafo trouxe notícias de Charleston e Lincolti mandou o seu exército entrar em acção e aí estava, irrevogável agora, e Henry e Bonjá decididos a ir sem se terem consultado, eles que teriam ido na mesma, ainda que nunca se tivessem conhecido, mas iriam com certeza agora, porque afinal não se pode desperdiçar uma guerra; - pensa no que eles devem ter dito, como Henry diria, 'Mas tens de casar com ela? Tens mesmo de casar?' e Bon diria, 'Ele devia ter-me dito. Ele devia ter-me dito, a mim, ele próprio. Eu fui justo e honesto com ele. Esperei. Sabes agora por que esperei. Dei-lhe todas as oportunidades de ser ele próprio a dizer-me. Mas ele não o fez. Se o tivesse feito, eu teria concordado e prometido nunca mais voltar a ver-vos, a ela ou a ti ou a ele. Mas ele não me disse nada. Ainda pensei que fosse por ele não saber. Depois soube que ele sabia, sim, e continuei à espera. Mas ele não me disse nada. Só te disse a ti, a mim mandou-me um recado, como quem manda a ordem por um criado nigro a um pedinte ou um
vadio para desandar. Não vês?' e Henry diria, 'Mas Judith. A nossa irmã. Pensa nela' e Bon: 'Seja. Penso nela. E o que tem?' porque ambos sabiam o que Judith faria quando o descobrisse, porque ambos sabiam que as mulheres mostram orgulho e honra a propósito de quase tudo, salvo do amor, e disse Henry, 'Sim. Yejo. Compreendo. Mas tens de me dar tempo para eu
me habituar a isto. Es o meu irmão mais velho; podes fazer esse pouco por mim.' Pensa neles dois: Bon, que não sabia o que ia fazer e tinha de dizer, de fingir, que sabia; e Henry, que sabia o que ia fazer e tinha de dizer que não sabia. Depois chegou de novo o Natal, depois 1861, e eles não tinham tido notícias de Judith porque Judith não tinha a certeza de onde eles estavam, porque Henry não deixaria Bon escrever-lhe ainda; depois ouviram
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falar da companhia, os University Grays, que se organizava em Oxford, e porventura estavam à espera disto mesmo. E então embarcaram no vapor para o Norte outra vez, e agora ainda mais alegria e excitação a bordo do que se fosse Natal, como sempre acontece quando uma guerra começa, antes do cenário ser uma confusão de comida estragada e soldados feridos e viúvas e órfãos, e eles também não tomavam parte agora, ficaram outra vez à amurada, sobre as águas revoltas, e assim se teriam passado uns dois ou três dias, depois Henry disse de súbito, exclamou de súbito: 'Mas os reis fizeram o mesmo! Até duques! Havia aquele duque da Lorena chamado João qualquer coisa, ele casou com a irmã. O Papa excomungou-o, mas não fez mal! Não fez mal! Não deixaram de ser marido e mulher por isso. Não morreram por isso. Não deixaram de se amar por isso!' e depois outra vez, numa voz alta, rápida: 'Mas tu tens de esperar! Tens de me dar tempo! Talvez a guerra resolva isto sem nós termos de o resolver!' E aqui o teu velhote porventura tinha razão: e eles entraram em Oxford a cavalo, sem passar por Sutpen's Hundred, e assinaram a folha da companhia, e depois esconderam-se algures, à espera, e Henry deixou Bon escrever uma carta a Judith; mandá-la-lam por mão, por um nigro que entraria furtivamente na senzala à noite e a daria à criada de Judith, e Judith mandou o retrato na caixinha de metal e eles foram adiante e esperaram que a companhia acabasse de fazer as bandeiras e de andar pelo Estado a dizer adeus às raparigas e partisse para a frente de combate.
"Credo, pensa neles. Porque Bon saberia o que Henry estava a fazer, porque ele sempre soube o que Henry pensava, desde esse primeiro dia em que se viram. Talvez ele soubesse melhor ainda o que Henry estava a fazer porque ele próprio não sabia o que fazer, que ele não saberia, até que de repente, um dia, tudo se esclarecesse numa explosão e ele então percebesse que sempre soubera o que seria, portanto ele não precisava de se preocupar consigo mesmo, e portanto tudo o que tinha a fazer era observar Henry, que tentava conciliar o que ele (Henry) sabia que ia fazer com todas as vozes da sua hereditariedade e da sua educação que diziam Não. Não. Não podes. Não deves. Não ofarás. Porventura até já estariam debaixo de fogo, com os projécteis passando por cima deles num silvo, num ribombo, e rebentando, e eles deitados ali, à espera do sinal de atacar, e Henry exclamaria outra vez, 'Mas aquele duque da Lorena fez o mesmo! Deve ter havido imensos no mundo que fizeram o mesmo e que ninguém sabe quem foram, que talvez tenham sofrido por isso e agora estão no inferno por causa disso. Mas fizeram o mesmo, e agora que importância tem; até aqueles que sabemos quem foram já são apenas nom@s e já não tem importância' e Bon observando-o, escutando-o, e pensava E porque eu próprio não sei o que vou fazer e ele percebe que eu estou indeciso sem se dar conta que o percebe. Talvez se eu lhe dissesse agora que o voufazer ele soubesse o que queria e me dissesse, Não ofarás. E aqui o teu velhote porventura tinha razão e eles até pensaram que a guerra iria resolver aquilo sem que eles tivessem de o resolver por si mesmos, ou pelo menos Henry porventura tinha essa esperança, porque o teu velhote porventura tinha razão também nisto, que Bon não fazia caso;
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porque, se as duas pessoas que podiam ter-lhe dado um pai se recusavam
ambas a fazê-lo, nada tinha agora importância para ele, nem a vingança nem o amor nem nada, que ele agora sabia que a vingança não lhe traria recompensas nem o amor alívio. Talvez não tenha sido Henry sequer quem não o
deixou escrever a Judith, mas o próprio Bon é que não lhe escreveu, porque ele não fazia caso de nada, nem sequer de não saber o que iria fazer. E esse ano passou-se, e agora Bon era oficial, e eles marchavam para Shiloli sem • saberem também, e falavam outra vez, enquanto marchavam em coluna, • oficial deixando-se ficar para trás ao lado da fila em que o soldado marchava, e Henry exclamando outra vez, mantendo num murmúrio a voz, desesperada e urgente: 'Já sabes o que vais fazer?' e Bon olharia para ele por um
momento com essa expressão que poderia ter sido um sorriso: 'Por hipótese que eu te dizia que não fazia tenções de voltar para ela?' e Henry caminharia ali a seu lado, com a sua mochila e o trabuco de oito pés de comprimento, e começaria a arquejar, arquejava, arquejava, e Bon a observá-lo: 'Eu vou à tua frente em muita coisa; na batalha, no ataque, estarei adiante à tua frente - ' e Henry arquejando, 'Cala-te! Cala-te!' e Bon observando-o com essa leve, débil, expressão na boca e nos olhos: ' - e como se havia de saber? Nem sequer tu precisavas de ter uma certeza, pois quem poderia afirmar que não foi uma bala lanque que me acertou no exacto segundo em que tu puxavas o gatilho, ou mesmo antes -' e Henry arquejando e olhando, fixando os olhos no céu, com os dentes à mostra e o suor a escorrer-lhe pela cara, e brancos os nós dos dedos na coronha do trabuco, a dizer num arquejo, "Calate! Cala-te! Cala-te! Cala-te!' Depois foi Shiloli, o segundo dia, e a batalha perdida e a brigada a retirar de Pittsburg Landing - E ouve", exclamou Shreve; "agora, espera; espera!" (fitando Quentin, procurando os olhos de Quentin, ele próprio arquejando, como se tivera de fornecer ao seu espectro não só uma deixa mas o fôlego até com que obedecesse a ela): "Porque o teu velhote aqui também estava errado! Ele disse que foi Bon que ficou ferido, mas não foi. Porque afinal quem é que lhe disse? Quem é que disse a Sutpen, ou ao teu avô sequer, qual dos dois é que foi atingido? Sutpen não sabia porque não estava lá, e o teu avô também lá não estava, porque foi lá que ele foi ferido também, foi lá que ele perdeu o braço. Então quem é que lhes disse? Henry não foi, porque o pai dele nunca o chegou a ver senão uma vez, e talvez nem tivessem tempo de falar de ferimentos, e além disso falar de ferimentos no exército Confederado em 1865 seria o mesmo que mineiros de carvão falarem de fuligem; e Bon não foi, porque Sutpen nem o chegou a ver, que ele já estava morto; - não foi Bon, foi Henry; Bon que encontrou Henry por fim e parou para o levantar e Henry não queria, debateu-se, dizendo, 'Deixa-me aqui! Deixa-me morrer! Assim não tenho de saber' e
disse Bon, 'Então sempre queres que eu volte para ela' e Henry ali a debater-se, e arquejante, com o suor a escorTer-lhe pela cara e os dentes ensanguentados e os lábios chupados, e disse Bon, 'Confessa que sempre queres que eu volte para ela. Talvez se o disseres eu não o faça. Diz' e Henry ali no
chão a debater-se, a camisa a ficar manchada outra vez de vermelho, os den
tes à mostra, o suor a escorrer-lhe pela cara, até que Bon lhe pegou pelos braços e o ergueu e o pôs às costas - "
Primeiro eram dois, em seguida quatro; agora dois de novo. A saleta estava tumular, na verdade: um quê de sediço e estático e moribundo, para além de qualquer frio meramente vívido e intenso. Todavia ali permaneceram, embora nem a dez passos ficasse a cama e o calor. Quentin nem sequer tinha vestido o capote, que jazia no chão para onde caíra do braço da cadeira onde Slireve o tinha posto. Não recuaram eles diante do frio. Ambos o suportavam, como se em deliberada e fiagelante exaltação de suplício convertida nas ansias de alma dos dois jovens por esse tempo, há cinquenta anos, ou melhor, há quarenta e oito, depois há quarenta e sete e depois há quarenta e seis,1que chegou 64 e depois 65 e as ruínas esfomeadas, esfarrapadas, do que fora um exército, havendo retirado através do Alabama e da Geórgia e entrado na Carolina, arrastados para diante não por um exército vitorioso que viesse atrás, mas antes por essa maré enchente de nomes das batalhas perdidas por cada lado - Chickarnauga e Franklin, Vicksburg e Corinth e Atlanta - batalhas perdidas não só por razão de superioridades numéricas e da falta de munições e abastecimentos, mas por causa dos generais que não deviam ter sido generais, que eram generais não por haverem recebido instrução nos métodos contemporâneos ou por terem aptidões para os aprenderem, mas pelo direito divino de dizer 'Faz isto', que lhes fora conferido por um absoluto sistema de castas; ou porque esses generais nunca viveram o bastante para aprender a travar batalhas em massa, batalhas cautelosas e acessivas, pois já eram tão obsoletos como Ricardo ou Rolando ou du Guesclin os que usavam plumas e capas forradas de escarlate aos vinte e oito e trinta e trinta e dois anos, e capturavam navios de guerra com cargas de cavalaria, mas não cereais ou carne ou balas, que derrotariam três exércitos à vez noutros tantos dias, e depois derrubavam as suas próprias defesas para cozinhar a carne roubada às suas próprias casas do fumeiro, que numa noite, e com um punhado apenas de homens, destruiriam garbosamente pelo fogo uma guarnição dum milhão de dólares com abastecimentos inimigos, para na noite seguinte serem descobertos por algum vizinho na cama com a mulher e serem mortos a tiro;
- dois, quatro, agora dois novamente, no pensar de Quentin e Shreve, os dois, os quatro, os dois, ainda falando - aquele que não sabia ainda o que iria fazer, o outro que sabia o que devia fazer mas não podia conformar-se
- Henry citando a si próprio consabidos exemplos de incesto, falando do seu Duque João da Lorena como se esperasse possivelmente evocar esse espectro condenado e excomungado para lhe dizer em pessoa que não fazia mal , como a humanidade sempre evocará, quer antes deles quer depois, Deus ou o diabo para que venham corroborar o que as suas glândulas teimam em fazer; - os dois, os quatro, os dois, encarando-se na saletajá tumular: Shreve, o canadiano, o filho dos temporais de neve e do frio, num roupão de banho e com o capote por cima, de gola levantada até às orelhas; Quentin, o Sulista, o filho melancólico e franzino da chuva e do calor húmido, em roupas leves e próprias que tinha trazido do Mississipi, o seu capote (igualmente leve e igualmente inútil) jazendo no chão donde nem sequer se incomodara a levantá-lo:
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(- o Inverno de 64 agora, batendo o exército em retirada através do Alabama, entrando na Jórgia; agora a Carolina estava mesmo à sua retaguarda e Bon, o oficial, pensando 'Ou somos apanhados e mortos ou o Velho Joe vem cá desenrascar-nos * e havemos de estabelecer contacto com Lee às portas de Richmond, e então teremos ao menos o privilégio de capitular': e depois um dia, de repente, ele pensou naquilo, lembrou-se que aquele regimento de Jefferson, de que o pai erajá coronel, estava agora sob o comando de Longstreet, e talvez desse momento em diante todo o objectivo da retirada lhe parecesse a ele que era o de trazê-lo para mais próximo do pai, para dar ao pai mais uma oportunidade. Deforma que ele deve terjulgado que sabia enfim por que antes nãofora capaz de decidir o que havia defazer Porventura pensou, pelo tempo dum segundo somente, Meu Deus, eu ainda sou novo; mesmo aofim destes quatro anos ainda sou novo 1mas pelo tempo dum segundo somente, porque talvez no mesmo instante ele terá dito, 'Seja. Sou então novo.
Mas ainda acredito, mesmo se o que eu acredito é provavelmente que na
guerra, no sofrimento, nestes quatro anos em que ele manteve os seus homens vi.vos e inteiros afim de os trocar em sangue e carne pela maior porção de terreno ao pouco preço que valerá agora, ele terá mudado (e eu sei que não se muda assim) a ponto de me dizer não: Perdoa-me: mas: És o meu filho mais velho. Protege a tua irmã; nunca mais voltes a ver nenhum de nós': Depois chegou 65, e o que restava do Exército do Oeste sem mais nada a não ser asforças para uma retirada teimosa e lenta e para aguentar o tiroteio e o fogo da artilharia; porventura nem davam já sequer pela falta de sapatos e capotes e comida, efoi por isso que ele pôde escrever sobre a graxa de brunirfogões capturada, como ofez na carta a Judith, quando soubefinalmente * que i.a,fal-er enfim, e o disse a Henry e Henry disse 'Graças a Deus. Graças * Deus', não pelo incesto, claro está, mas porque eles iam fazer enfim qualq uer coisa, enfim ele podia ser alguma coisa, ainda que istofosse o repúdio irrevogável da sua hereditariedade e da educação que teve, ao aceitar agora a condenação eterna. Talvez então ele pudesse até deixar defalar do duque loreno, porque podia dizer agora, 'Não épara o teu inferno, nem para o dele, nem para o do Papa, que nós vamos todos: é para o inferno da minha mãe e da mãe dela e do pai dela e dos pais dos seus pais, e não és tu que vais para lá, somos nós todos, nós três - não: nós quatro. Por isso ao menos estaremos todosjuntos no lugar que nos está destinado, pois mesmo que só ele para láfosse, ainda assim nós tínhamos de lá estar também, pois nós três somos apenas ilusões que ele gerou, e as nossas ilusões são uma parte de nós mesmos, tal como os ossos e a carne e a memória. E estaremos todos juntos no suplício, e por isso não precisaremos de lembrar o amor e a luxúria, e talvez no suplício não sepossa até ninguém lembrarpor que razão ali está. Ese não nos pudermos lembrar disto, não poderá ser grande o suplicio'. Depois eles estiveram na Carolina, nesse Janeiro e nesse Fevereiro de 65, e o que restava deles andava em retirada há quase um ano, e a distância entre eles e Richinond era mais pequena que a distância que eles tinham percorrido; a distância entre eles e ofim bastante mais pequena. Mas para Bon aquele não era o espaço entre eles e a derrota, mas o espaço entre ele e o outro regi223

mento, entre ele e a hora, o instante: 'Ele nem precisará de me pedir; a minha carne tocará a sua carne, e eu próprio o direi: Não se apoquente; ela nunca mais me verá'. Depois o mês de Março na Carolina, e ainda a retirada teimosa e lenta, escutando agora o que viria do Norie porque nada havia que se ouvisse em qualquer outra direcção, porque em toda apartejá tudo estava acabado, e do Norte eles só esperavam ouvir o sinal da derrota. Depois, certo dia (ele era oficial; ele devia saber, devia ter ouvido, que Lee destacara algumas tropas e lhes mandava reforços; porventura até sabia os nomes e os números dos regimentos antes de eles chegarem), ele viu Sutpen. Talvez dessa primeira vez Suipen não o tenha visto realmente, porventura nessa primeira vez ele podia dizerpara consigo, 'Foi por isso; ele não me viu, deforma que ele teve de atravessar-se no caminho de Suipen, teve de forjar ocasião e
ensejo. Então pela segunda vez ele viu a cara inexpressiva, empedernida, os olhos mortiços e penetrantes onde não havia uma centelha, nada, a cara onde ele viu as suas própriasfeições, onde viu que ele o reconhecia, e nada mais. Nada mais, não havia agora mais do que isso; porventura ele só respirou uma vez, silenciosamente, com essa expressão na sua própria cara que poderia, ao primeiro olhar ser chamada um sorriso, enquanto pensava, 'Podia forçá-lo. Podia ir ter com ele e Jorçá-lo', sabendo que o não faria porque estava tudo acabado, nada mais haveria senão isto agora e enfim. E porventura foi nessa mesma noite ou terá sido numa noite, uma semana mais tarde, em que eles tinham parado (porque até Sherman teria de parar às vezes, à noite) e acendido as fogueiras que lhes dessem algum calor pelo menos, porque pelo menos o calor é barato e não permanece uma vez consumido, que Bon disse, 'Henry'e disse Vá nãofalta muito, e depois não há-de sobrarnada; nem a nós sobrará nada quepossamosfazer nem sequer oprivilégio de retirar lentamente por uma razão, por amor à honra e ao que resta do orgulho. Nem Deus; evidentemente passámos sem Ele durante estes quatro anos, só que Ele não se lembrou de nos participar; nem sapatos, nem rou- pas, e nem mesmo a necessidade sequer de os ter nem terra, nem qualquer maneira de cultivar nela um sustento, e nem a necessidade sequer dum sustento, que também sem o sustento nós aprendemos a viver; e assim, se não temos Deus e não precisamos de comida nem de agasalho nem dum tecto, não há nada onde a honra e o orgulho se possam agarrar e amparar e flori.r E se não tivermos honra nem orgulho, então nada importa. Só que há qualquer coisa em nós que não faz questão da honra e do orgulho, e porém vive, que até marcha em retirada ao longo dum ano inteiro só para viver; que provavelmente, mesmo quando isto acabar e não nos restar fiem a derrota, ainda se recusará aficar sentada e quieta ao sol, morrendo, mas há-de meter-sepelas matas, seguindo e buscando onde por si mesmas nem a vontade nem a resistência o poderiam levar desenterrando raizes e coisas assim - este corpo animal, estúpido e sensível., sem sonhos, que não conhece a diferença sequer entre o desespero e a vitória, Henry'. E depois Henry começaria a dizer 'Graças a Deus. Graças a Deus', arquejava e dizia 'Graças a Deus', dizia, 'Não tentes explicar. Faz o que tens afazer' e Bon: 'Autorizas-me? Como seu irmão dás-me o teu consentimento?' e Henr.v: 'Irmão? Irmão?
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Tu és o mais velho: por que me pedes consentimento a mim?' e Bon: 'Não. Ele nunca me reconheceu como seu filho. Só me avisou. Tu és o irmão e o filho. Tenho o teu consentimento, Henry?'e Henry: 'Escreve. Escreve. Escreve'. Então Bon escreveu a carta, aofim de quatro anos, e Henry leu-a e enviou-a. Mas eles não deixaram então o regimento para tomar o mesmo caminho da carta. Ainda marchavam em retirada, teimosos e lentos, escutando o que viria do Norte e que seria o fim, porque é preciso ter imenso carácter para abandonar seja o quefor quando se está a perder e eles andavam a marchar em retirada lenta há um ano já, portanto o que lhes restava não era a vontade mas só asforças, o hábito arreigado, de aguentar Então, certa noite em que eles tinham parado outra vez, porque Shemwn tinha parado também, uma ordenança veio pela linha do bivaque e encontrou Henry finalmente e
disse, 'Sutpen, o coív-nel quer que vás à tenda.')
"E então tu e a velhota, a Tia Rosa, foram lá nessa noite e a nigra velha, Clytie, quis impedir-vos, impedi-la; pôs-te a mão no braço e disse, 'Não a deixe subir lá cima, paterãozinho' mas tu também não podias impedi-la, porque ela tinha a força dos quarenta e três anos de ódio como se fossem quarenta e três anos a carne crua, e Clytie só tinha quarenta e cinco ou cinquenta anos
de desespero e espera; e tu, tu nem nunca tinhas querido ir lá. E também tu não pudeste impedi-la, e depois viste que o mal de Clytie não era a revolta, nem sequer a desconfiança; era o terror, o medo. E ela não te disse isto mesmo com palavras porque ela ainda estava a guardar aquele segredo, por amor ao
homem que também tinha sido seu pai, e por amor à família que já tinha desaparecido, cujo mausoléu, outrora inviolado, e já podre, ela ainda guardava;
- não te disse agora com palavras como não te disse com palavras que ela tinha estado no quarto nesse dia em que trouxeram o corpo de Bon para dentro e
Judith tirou do seu bolso a caixinha de metal que ela mesma lhe tinha dado com o seu retrato; ela não te disse, foi o terror e o medo quem to disse, depois que ela te soltou e agarrou o braço da Tia Rosa e a Tia Rosa voltou-se e sacudiu a mão dela com um sopapo e seguiu direita à escada, e Clytie correu atrás dela outra vez, e desta vez a Tia Rosa parou no segundo degrau, voltou-se, e
deitou Clytie ao chão com o punho, como um homem, e voltou costas e continuou a subir as escadass: e Clytie ficou ali pelo chão, ela que tinha mais de oitenta anos e pouco mais de cinco pés de altura e era como se fosse uma trouxinha de trapos limpos, de forma que tu foste e pegaste no braço dela e ajudaste-a a levantar-se, e o braço dela parecia um pau, era seco e quebradiço e
leve como um pau: e ela olhou para ti e tu viste que não era raiva mas terror, e não terror de nigro, porque não era por ela mas pelo que lá estava em cima, o que ela mantinha escondido lá em cima há quase quatro anos; e ela não te disse com as palavras porque, mesmo aterrorizada, ela ainda guardava o segredo; mesmo assim ela contou-te, ou pelo menos de repente percebeste - "
A sua voz calou-se de novo. Melhor foi, porque não havia quem o ouvisse. Talvez ele tenha dado por isso. Depois, de súbito, não havia já quem falasse tão-pouco, embora possivelmente por isto ele não desse. Porque nenhum deles agora estava ali. Estavam ambos na Carolina e o tempo era quarenta e seis anos antes, e não eram sequer quatro agora, mas eram multiplicados
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por mais ainda, pois agora ambos eram Henry Sutpen e ambos eram Bon, multiplicados cada um por ambos, porém não sendo qualquer dos dois um
só, sentindo até o cheiro do fumo que tinha subido e se desvanecera há quarenta e seis anos dasfogueiras do bivaque, ardendo num pinhal, os homens descamados e esfarrapados sentando-se ou deitando-se em roda, falando não da guerra, porém todos, por estranho que pareça (ou talvez isto nada tivesse de estranho) virados para Sul onde além, na treva, estavam os piquetes - os piquetes que, em vigia ao Sul, distinguiam esse vacilante luzir das fogueiras do bivaque Federal, ténues, infinitas, circundando meio horizonte, e em número de dezfogueiras para cada uma das Confederadas, e entre uns e outros (piquetes Rebeldes e fogos Ianques) os postos avançados Ianques vigiavam a treva também, as duasfilas de piquetes tão próximas que deles cada um podia ouvir os gritos de quem vem lá dos oficiais do outro lado, que passavam de posto em posto e se perdiam na distância: e no silêncio que sefazia, a voz, invisível, cautelosa, não alta mas nítida:
- Eh, Rebelde.
- Quié.
- Pronde é que vocês vão?
- Richrnond.
- Também nós. Por que é que não esperam pra gente?
- É que estamos. Os homens à volta das fogueiras não ouviriam esta troca de palavras, embora ouvissem agora nitidamente a ordenança, passando defogueira em
fogueira, perguntando pelo Sutpen, e as respostas que o orientavam, e assim chega ele porfim àfogueira, ao tronco em brasas, com a sua monótonafala: 'Sutpen? Ando à procura do Sutpen' até que Henry, soerguendo-se, diz, 'Pronto.' Ele está descamado e esfarrapado e tem a barba porfazer, por razão dos últimos quatro anos, e porque não tinha ainda atingido a sua estatura quando os quatro anos começaram, não chega por duas polegadas à estatura que em rapaz prometia, e não chega por trinta libras de peso ao
que provavelmente será alguns anos mais tarde, depois de ter sobrevivido aos quatro anos, se deveras lhes sobreviver.
- Pronto -, diz ele. - O que é?
- O coronel está a chamar-te. A ordenança não regressa com ele. É sozinho que ele vai pela treva, cami .nhando por uma rodeira, aberta e batida, por onde os canhões tinham passado nessa tarde, e alcança porfim a tenda, uma das poucas tendas, a
parede de lona debilmente clareando na luz da vela em seu interior a silhueta duma sentinela emfrente, que pergunta quem lá vem.
- Suipen -, diz Henry. - O coronel mandou-me chamar. A sentinelajaz-lhe um sinal para que entre na tenda. Ele curva-se, passando a abertura, a lona cai atrás dele e alguém, o único ocupante da tenda, ergue-se de uma cadeira de campanha atrás da mesa onde está pousada a
vela, a sua sombra alçando-se enorme e alta pela parede de lona. Ele (Henry) aproxima-se para fazer a continência a um punho cinzento com galão de coronel, umaface barbada, um nariz saliente, uma madeixa caída, hirsuta,
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de cabelo semeado à cor do chumbo - uma cara que Henry não reconhece, não porque ele não a veja há quatro anos e não espere vê-la aqui e agora, mas antes porque não está a olhar para essa cara. Apenasfaz continência ao galão do punho e continua em sentido até que o outro diz,
- Henry. Nem mesmo agora Henry se sobressalta. Continua imóvel, continuam os dois imóveis, olhando-se. E o homem mais velho que dá o primeiro passo, embora se vão encontrar no centro da tenda, onde se abraçam e beijam antes de Henry ter consciência de que se move, de que se ia mover, de que se moveu, por um quê de sangue próximo que, no reflexo instante, se vangloria e se conforma, embora não tenha perdoado ainda (talvez nunca perdoe) quem continua de pé quando o pai agora lhe agarra a cara com ambas as mãos e o olha.
- Henry , diz Sutpen. - Meu filho. Sentam-se então, um de cada lado da mesa, nas cadeiras reservadas aos oficiais, com a mesa (um mapa aberto repousa sobre ela) e a vela entre eles.
- Foste ferido em Shiloh, disse-me o coronel Willow -, diz Sutpen.
- Fui sim, senhor -, diz Henry. Esteve quase a dizer Foi o Charles que me trouxe às costas, mas não o diz, porque já sabe o que vai seguir-se. Ele nem sequer pensa Com certeza que nãofoi a Judith que lhe escreveu a contar daquela carta, nem pensa Foi a Clytie quem conseguiu mandar-lhe dizer que o Charles tinha escrito. Em nenhuma destas coisas ele pensa. Para ele é lógico e natural que o pai de ambos saiba da decisão sua e de Bon: essa afinidade de sangue que havia de levar Bon a decidir escrever, ele próprio a concordar e o pai de ambos a sabê-lo no mesmo e idêntico instante, passado um período de quatro anos, isolado no tempo. Agora, sim, vem o que se segue, quase na forma exacta que ele tinha antecipado:
- Vi o Charles Bon, Henry. Henry não diz nada. É agora. Ele não diz nada, apenasfita o pai - ambos no cinzentojá desbotado à cor dasfolhas, uma única vela, uma tenda grosseira que é um muro a separá-los da treva, onde os piquetes alerta estão frente a frente e onde homens esgotados dorment sem abrigo, à espera que nasça mais um dia e recomece o tiroteio e a marcha exausta da retirada: porém, num segundo, a tenda, a vela, os uniformes, tudo desaparece e é a biblioteca do Natal enfeitada de azevinho em Suipen's Hundred há quatro anos, e a mesa não é a mesa de campanha, apropriada a que sobre ela se desdobrem os mapas, mas apesada mesa esculpida depau-rosa de sua casa com o retrato de grupo da mãe e da irmã e dele próprio sobre a mesa,o pai sentado, e por trás do pai ajanela que dá para ojardim, onde Judith e Bon passeavam nesse ritmo lento em que o coração vai de par com os passos e os olhos carecem apenas de olhar os do outro.
- Vais permitir que ele case com a Judith, Henry. Ainda Henry não responde. Tudojáfoi dito antes, e agora ele teve quatro anos de amarga luta, aofim dos quais, seja uma vitória ou uma derrota o que ele conquistou, pelo menos conquistou-a e está em paz agora, mesmo se a pazfor sobretudo um desespero.
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- Ele não pode casar com ela, Henry. Agora Henryfala.
- Já mo tinha dito. Eu na altura respondi-lhe. E agora, e agora já não falta muito e depois não nos há-de sobrar mais nada: nem honra, nem orgulho, nem Deus, porque Deus abandonou-nos há quatro anos, só que Ele nunca pensou que fosse necessário dizê-lo; nem sapatos, nem roupas, nem sequer a necessidade deles; nem terra que nos dê um sustento, nem sequer a necessidade dum sustento, e quando não temos nem Deus nem honra nem orgulho, nada importa, salvo que há o corpo animal e estúpido que nemfaz questão de saber sefoi derrota ou vitória, que nem sequer há-de morrer que há-de meter-se pelas matas e pelos campos, a desenterrar raizes e ervas ruins. - Sim. Decidi. Sendo irmão ou não sendo, decidi. Permitirei. Permitirei.
- Não, ele não deve casar com ela, Henry.
- Sim. Disse que sim a princípio, mas nessa altura eu ainda não estava decidido. Não lho permiti. Mas agora tive quatro anos para me decidir Permitirei. É o que vou fazer.
- Ele não deve casar com ela, Henry. O pai da mãe dele disse-me que a mãe dela era espanhola. Eu acreditei; só depois de ele nascer é que eu descobri que a mãe dele tinha sangue negro.
Nem Henry disse alguma vez que não se lembrava de ter deixado a tenda. Ele lembra-se de tudo. Ele lembra-se de que se curvou novamente pela abertura, e que passou novamente pela sentinela; lembra-se de terfeito o caminho de volta pela rodeira aberta, tropeçando pela treva nos sulcos das rodas, de cada lado dos quais as fogueiras tinham já morrido em brasas, de tal modo que ele mal podia distingir os homens dormindo no chão em roda. Já deve passar das onze e meia, pensa ele. E mais oito milhas amanhã. Se ao menos não houvesse aqueles malditos canhões. Por que é que o Velho Joe não dá os canhões ao Sherman. Assimfazíamos vinte milhas por dia. Assim podíamos ir ter com o Lee. Pelo menos o Lee pára e luta às vezes. Lembra-se. Lembra-se de que não voltou para a suafogueira mas parou agora num lugar solitário e encostou-se a um pinheiro, encostando-se naturalmente e sem rumor, a cabeça inclinada para trás, para assim olhar no alto os mesquinhos ramos desgrenhados como sefossemforjados noferro, que imóveis se estendem contra as estrelas geladas e vívidas dos primeiros dias de Primavera, pensando Oxalá ele se lembre de agradecer ao coronel Willow por nos ter deixado usar a tenda, pensando não no que iria fazer mas no que teria de fazer Porque ele sabia o que iria fazer agora só dependia do que Bonfizesse, do que ele oforçasse afazer pois ele sabia que o iriafazer Então tenho de ir ter com ele, pensou ele, pensando, Já devepassardas duas e meia, e daqui a pouco é alvorada.
Então rompia a alvorada, ou quase, e estava frio: um ar gelado penetrava as roupasfinas, puídas, remendadas, penetrava o quê de cansaço e de subalimentação: aforça passiva, não a vontade volitiva, de aguentar; havia luz algures, luz bastante para que ele distinguisse a cara adormecida de Bon de entre as outras, ali, onde ele estava deitado, embrulhado nos cobertores,
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por baixo da capa estendida; luz bastantepara que ele acordasse Bon epara que Bon distinguisse a sua cara (ou talvez o que a mão de Henry lhe transmite) porque Bon não fala, não pergunta quem é: levanta-se apenas e põe * capa pelos ombros e aproxima-se da fogueira em brasas, e está a avivar * lume em labaredas com a bota quando Henryfala:
- Espera. Bon interrompe-se e olha para Henry; agora vê-lhe a cara. Diz,
- Vais terfrio. Já estás comfrio. Não dormiste nada, pois não? Toma. Ele tira a capa dos ombros com um volteio e estende-lha.
- Não -, diz Henry.
- Sim. Toma. Eu ponho o cobertor. Bon envolve Henry na capa e vai buscar o cobertor caído e num volteio põe-no pelos ombros, e afastam-se os dois e vão sentar-se num tronco. Já é alvorada. O leste é cinzento; ficará amarelo-pálido em breve e depois vermelho do tiroteio e mais uma vez começará a exausta marcha da retirada, fugindo à morte, cedendo à derrota, embora não fosse ainda chegado esse momento exacto. Haveria um breve tempo ainda para se sentarem lado a lado os dois no tronco à luz da alvorada que rompia, um de capa, o outro de cobertor; as suas vozes não muito mais sonoras que essa alvorada silenciosa:
- Então é a mestiçagem, não o incesto, que tu não podes tolerar. Henry não responde.
- E ele não me mandou uma palavra? Ele não te pediu para me chamares? Nenhuma palavra para mim, nem uma palavra ao menos? Era só isso o que ele tinha afazer, agora, hoje; há quatro anos ou em qualquer tempo destes quatro anos. Era só isso. Não precisaria de ter pedido, exigido, isso de mim. Eu tê-lo-la oferecido. Eu teria dito,*Nunca mais voltarei a vê-la, antes mesmo que ele mo pedisse. Ele não precisava de terfeito isto, Henr34 Ele não precisava de te dizer que eu sou um nigro para me impedir Ele podia ter-me impedido sem isto, Henry.
- Não! - exclama Henry. - Não! Não! Eu permitirei - Eu vou Levanta-se dum salto; asfeições contorcem-se. Bon vê-lhe os dentes no meio da barba macia que lhe cobre asfaces encovadas, e o branco dos olhos de Henry, como se os globos se debatessem nas órbitas quanto a respiração arquejante se debatia nos pulmões - o arquejo que cessou, a respiração sustida, os olhos também voltados para ele, que continuava sentado no tronco, • vozjá não sendo muito mais sonora que uma respiração expelida:
- Disseste, podia ter-te impedido. Como assim? Agora é Bon que não responde, quefica sentado no tronco a olhar para • cara que se curva sobre ele. Henry diz, ainda nessa voz que não é mais sonora que uma respiração expelida:
- Mas agora? Queres dizer que tu - Sim. Que mais posso eu fazer agora? Eu dei-lhe a escolher Há quatro anos que nãofaço outra coisa.
- Pensa nela. Não em mim: nela.
- Tenho pensado. Há quatro anos que penso. Em ti e nela. Agora estou a pensar em mim.
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- Não , diz Henry. - Não. Não.
- Não posso?
- Não o farás.
- Quem me impedirá, Henry?
- Não -, diz Henry. - Não. Não. Não. Agora é Bon que observa Henry; vê de novo o branco dos olhos de Henry de onde está sentado, olhando para Henry com essa expressão a que pode chamar-se um sorriso. A sua mão some-se debaixo do cobertor e reaparece, empunhando a sua pistola pelo cano, a coronha estendida para Henry.
- Então que seja agora, diz ele. Henry olha a pistola; ele agora não está apenas arquejante, ele treme; quando fala, agora, a sua voz não é sequer a exalação, é a própria inalação ampla e sufocada:
- Tu és meu irmão.
- Não, não sou. Sou o nigro que vai deitar-se com a tua irmã. A menos que tu me impeças, Henry.
Subitamente Henry agarra a pistola, tira-a num arranco da mão de Bon e fica assim, de pistola em punho, arquejante sempre; Bon vê de novo o branco dos seus olhos revirados, ali sentado no tronco e observando Henry com essa leve expressão bailando nos olhos e na boca que poderia ser um sorriso.
- Que seja agora, Henry, diz ele. Henry rodopia; no mesmo movimento arremessa a pistola para longe e curva-se de novo, agarrando com firmeza Bon pelos ombros, arquejando. _ Não o farás! - diz ele. - Não ofarás! Ouviste?
Bon não mexe um músculo sob as mãos que o agarram; está sentado, imóvel, com o esgar débil dum sorriso; a sua voz é mais branda que o primeiro sopro de ar que abana levemente os ramos de pinheiro:
- Terás de me impedir Henry. "E ele nem se escapou", disse Shreve. "Podia tê-lo feito, mas nem sequer o quis fazer. Credo, talvez ele até fosse ter com Henry e dissesse, 'Vou partir, Henry' e talvez eles tenham partido juntos, cavalgando lado a lado, furtando-se às patrulhas lanques, por todo o caminho de regresso ao Mississipi e até esse portão; lado a lado, e só então é que um deles tomou a dianteira, ou um deles ficou para trás, e isto quando Henry meteu esporas e voltou o cavalo para encarar Bon e sacou da pistola; e Judith e Clytie ouviram o tiro, e talvez Wash Jones, que andava por ali algures, no pátio dos fundos, e por isso lá estava para ajudar Clytie e Judith a levá-lo para dentro de casa e a deitá-lo na cama, e Wash foi à vila dizer à Tia Rosa e a Tia Rosa vem esbaforida por aí abaixo, nessa tarde, e encontra Judith, sem uma lágrima, diante da porta fechada, segurando a caixínha de metal que lhe tinha dado a ele com o seu retrato, mas que não tinha o seu retrato agora, só o da oitoruna e do miúdo. E o teu velhote não saberia explicar também isto: por que é que o filho da puta do preto havia de ter tirado o retrato dela e posto lá o retrato da oitoruna, por isso ele inventou um motivo. Mas eu sei. E tu também sabes. Não sabes? Não sabes, hã?" Ele fixava Quentin, debruçado na mesa agora, parecendo imenso e informe como um
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urso, nas roupas com que se embrulhava. "Não sabes? Foi porque ele disse para consigo, 'Se o Henry não falava a sério, então não faz mal; posso tirá-lo e destruí-lo. Mas se ele falou a sério, então esta será a única maneira que eu terei de lhe dizer, Eu não prestava; não chore por mim.' Não é isto? Não é? Por Deus, não é?"
"É", disse Quentin. "Anda lã", disse Shreve. "Isto aqui é um frigorífico, vamos para a caina."
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IX
A princípio na cama, no escuro, era como se o frio fosse mais intenso ainda, como se tivera havido um assomo indeciso de calor na única lâmpada, antes de a ter apagado Shreve, e agora a treva gelada e impregnável se confundisse com os lençóis gelados, estendidos, glaciais, sobre a carne folgada e parcamente arroupada para dormir. A treva então pareceu respirar, refluir; a janela, que Shreve tinha aberto, fez-se visível contra a resplendência indecisa, fantasmal, da neve lá fora, enquanto, ao peso da treva, o sangue em vagas corria mais quente, mais quente. "A Universidade do Mississipi", disse a voz de Slireve na treva, à mão direita de Quentin. "Um Bayard atenuou quarenta milhas (eram quarenta milhas, não eram?); desde os ermos de honra semesterial e gloriosa regurgitando."
"Sim", disse Quentin. "Eles eram do décimo curso a graduar-se desde a fundação da universidade."
"Nem sabia que houvesse dez no Mississipi a ir para a escola ao mesmo tempo", disse Shreve. Quentin não respondeu. Deitado, vigiava o rectângulo dajanela, sentindo cálido o sangue a correr por veias, braços, pernas. E agora, conquanto estivesse quente e antes, sentado na saleta fria, apenas branda e compassadamente ele tiemera, agora começava a ser sacudido da cabeça aos pés, violentamente, incontroladamente, a ponto mesmo de ouvir a cama, a ponto mesmo de Slireve o sentir e se voltar, soerguendo-se (pelo som) num cotovelo, olhando Quentin, conquanto o próprio Quentin se sentisse perfeitamente bem. Sentia-se muito bem até, ali deitado e esperando, em plácida curiosidade, que viesse o próximo sacão, violento e súbito. "Credo, mas tens assim tanto frio?" disse Slireve. "Queies que te, ponha os capotes por cima?"
"Não", disse Quentin. "Não tenho frio. Estou bem. Muito bem niesmo." "Então para que é isso?" "Não sei. Não tenho mão em mim. Estou muito bem." "Pronto. Mas diz, se quiseres os capotes. Credo, se eu tivesse de vir passar nove meses neste clima, do Sul é que eu não queria ser. Porventura nem vinha nem era, do Sul, ainda que lá pudesse viver. Espera. Ouve. Não estou a armar-me em engraçado, eni esperto, Só quero é ver se percebo e
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não sei maneira melhor para dizer isto. Porque é uma coisa que nós, lá, não sabemos o que é. Ou se já soubemos foi tudo há que tempos e do outro lado do mar, de forma que não há uma coisa agora que se veja todos os dias e nos lembre. Não vivemos com avôs derrotados e escravos libertos (ou fui eu que percebi ao contrário e os teus é que estão libertos e os nigros é que perderam?) e balas na mesa de jantar e coisas assim, sempre a lembrar-nos de que nunca deveremos esquecer. O que é? uma coisa que se vive e se respira como o ar? uma espécie de vácuo cheio de revolta contra aquilo, cheio dum orgulho e duma glória fantasmagóricos e indomáveis naquilo, os acontecimentos que sucederam e cessaram há cinquenta anos? uma espécie de vínculo e morgadio, passados de pai para filho e para filho, que é nunca
perdoar ao general Sherman, de tal forma que para todo o sempre, e enquanto os filhos dos vossos filhos tiverem filhos, ninguém será mais nada que o
descendente de uma longa raça de coronéis mortos na carga do Pickett em Manassas?"
"Em Gettysburg"*, disse Quentin. "Tu não podes compreender. Só quem lá nasceu."
"Ai, só?" Quentin não respondia. "E tu compreendes?" "Não sei", disse Quentin. "Compreendo, claro que eu compreendo." Ouvia-se o respirar de ambos na treva. Após um momento, Quentin disse: "Não sei."
"Não. Não sabes. Nem sabes sequer da velhota, a Tia Rosa." "Miss Rosa", disse Quentin. "Pronto. Nem dela sabes sequer. Salvo que ela se recusou à última hora a ser um fantasma. Que, ao fim de cinquenta anos quase, ela não pôde conformar-se a deixar o morto em paz. Que mesmo ao fim de cinquenta anos ela não só foi capaz de ir por ali abaixo rematar o que ela achava que não estaria bem acabado, mas foi capaz de achar alguém que fosse com ela e arrombasse aquela casa aferrolhada, porque o instinto, ou alguma coisa, lhe dizia que ainda não estava acabado. Ou sabes?"
"Não", disse placidamente Quentin. Ainda sentia na boca a poeira. Mesmo agora, com o peso gelado e puro, o sopro, da neve da Nova Inglaterra na cara, ele sentia na boca e na pele a poeira dessa noite abafada (ou antes, desse bafo de fornalha) de Setembro no Mississipi. Sentia o cheiro da velha a seu lado na charrete, o mofo do xaile tresandando a cânfora e até o do arrecadado guarda-chuva de algodão preto, dentro do qual (ele só o descobriria quando alcançaram a casa) ela trazia escondidas a machadinha e a lanterna. Sentia até o cheiro do cavalo; ouvia o pranto seco das rodas ligeiras na poeira subtil e perineante, e parecia-lhe até que sentia a poeira movendo-se, ronceira e seca, pela sua carne suada, tal como lhe parecia ouvir o único e profundo suspiro de agonia do chão ressequido, erguendo-se para as estrelas imponderáveis e alheias. Falava ela agora, pela vez primeira desde que tinham deixado Jefferson, desde que subira para a charrete com uma espécie de avidez canhestra e tenteante e trémula (que ele pensou que derivava do terror, do sobressalto, até perceber que estava redondamente enganado) antes que ele pudesse ajudá-la, para sentar-se na beira
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extrema do banco, pequena, de xaile mofado, e trazendo apertando na mão o guarda-chuva, curvada para a frente, como se, por curvar-se para a frente, chegasse mais depressa, chegasse imediatamente após o cavalo e antes de ele, Quentin, chegar, antes que a presciência do desejo e da necessidade pudesse prevenir a consumação deles. "É aqui", disse ela. "Já estamos no Senhorio. Nas terras dele, dele e da Ellen e dos descendentes da Ellen. Roubaram-lhas depois, pelo que sei. Mas ainda lhe pertencem a ele, à Ellen e aos seus descendentes. " Mas disso j@ Quentin se dera conta. Antes de ela ter falado já ele dizia para consigo, 'E aqui. Aqui' e (tal como nessa tarde quente e longa, passada na casinha obscura e quente) pareceu-lhe que, parando a charrete e pondo-se à escuta, podia até ser que ouvisse o galope do cavalo; podia até ser que visse a qualquer momento o garanhão negro e o seu cavaleiro atravessando num ímpeto a estrada à sua frente e depois seguindo a galope - o cavaleiro que em tempos possuíra, de cabo a rabo, tudo quanto a vista alcançava dum dado ponto, e tudo, pau e folha e alma e rês, que ali houvessse, a lembrar-lhe (se ele alguma vez o esquecesse) que ele era a pessoa principal aos olhos de tudo aquilo, e aos seus próprios olhos também; que foi para a guerra para proteger aquilo mesmo, e perdeu a guerra, e quando regressou da guerra viu que tinha perdido mais até do que uma guerra, embora não perdesse tudo absolutamente; que disse Pelo menos deixaram-me a vida mas não tinha a vida, só a velhice e o respirar e o horror e o escárnio e a indignação e o medo: e o quanto restava desse tudo que olhasse agora para ele com respeito inalterado seria a rapariga que era uma criança da última vez que ele a viu, e costumava sem dúvida vê-lo da janela ou da porta, quando ele passava, indiferente, da mesma forma como ela provavelmente olharia para Deus, pois tudo o mais que ela enxergasse lhe pertencia também. Talvez ele até parasse na cabana a pedir água e ela pegasse no balde e andasse coisa de milha até à nascente e outra de volta para lha dar, límpida e fresca, sem lhe acudir que dissesse "O balde não tem" como não o diria a Deus; - isto o não-tudo, pois ao menos deixaram-lhe o respirar.
Agora Quentin começava de novo a respirar a custo, ele que estivera por momentos plácido na cama quente, a respirar a custo a treva capitosa e pura nascida da neve. Ela (Miss Coldfield) não o deixou passar o portão. Disse "Alto" de súbito; ele sentiu a mão dela aflorar o seu braço e pensou, 'É medo, ela está com medo'. Ouvia agora a sua respiração arquejante, a sua voz que era quase um queixume de tímida mas férrea determinação: "Não sei o que faça. Não sei o que faça." ('Eu sei', pensou ele. Wolte para a vila e cama.') Não o disse porém. Viu as duas enormes couceiras apodrecidas à luz das estrelas, entre as quais não giravam agora os portões, e, olhando, perguntava-se de qual direcção tinham Bon e Henry chegado a cavalo nesse dia, perguntava-se o que teria projectado a sombra que Bon não passaria com vida; se alguma árvore vivente e verdadeira, ainda sombrosa e folhuda, ou se árvore já morta, desaparecida, queimada no lar ou no fogão há muitos anos, ou talvez e simplesmente morta; ou se teria sido a sombra duma daquelas couceiras, pensando, desejando que Henry ali esti234

vesse agora para impedir Miss Coldfield e os mandar de volta, dizendo para consigo que, se ali estivesse Henry agora, não haveria tiro que alguém ouvisse. "Ela vai fazer tudo para me impedir", lamuriou Miss Coldfield. "Vai, que eu bem sei. Talvez a esta distância da vila, para aqui sozinhos à meia-noite, ela até permita que aquele negro - E tu que nem sequer trouxeste uma pistola. Trouxeste?"
"Nossenhora", disse Quentin. "O que é que ela tem lá escondido? O que poderá ser? E que diferença faz? Vamos embora para a vila, Miss Rosa."
Ela não deu qualquer resposta. Disse apenas, "É isso mesmo que eu quero descobrir", sentada à ponta do banco, tremendo agora, e espreitando a alameda com a sua abóbada de árvores que subia até onde estaria o esqueleto podre do que fora uma casa. "E agora vou ter de o descobrir", lamuriou ela, num quê de assombrada piedade de si mesma. De súbito mexeu-se. "Anda", sussurrou ela, começando a descer da charTete.
"Espere", disse Quentin. "Vamos no carro até à casa. É meia milha." "Não, não", sussurrou ela, em sibilação tensa e feroz e de palavras, plena dessa aterrada e singular determinação, mas implacável, como se não fora ela mesma quem tivesse de lá ir e descobrir, mas fora ela um desamparado agente apenas de alguém, alguma coisa, que tinha por força de saber. "Amarra o cavalo aqui. Despacha-te." Ela apeou-se, desceu de pés e mãos, apressada, embaraçada, antes que ele pudesse ajudá-la, sem largar o guarda-chuva. Pareceu a Quentin que ouvia ainda o seu arquejo, ou queixume, de onde ela esperava, cosida com uma das couceiras, enquanto ele guiava a égua para fora da estrada e atava unia rédea à volta dum madeiro novo, no barranco sufocado de ervas, Não a podia ele ver, tão cosida ela estava com a couceira: mas ela avançou, enfileirando a seu lado quando ele passou e dobrou o portão, respirando ela ainda naquele arquejo, naquele queixume enquanto os dois caminhavam pelas rodeiras da alameda sob a abóbada das árvores. Era densa a treva; ela tropeçou; ele lançou-lhe a mão. Ela tomou o braço dele, apertando-o, garra morta, rígida, firme, como se os seus dedos, a sua mão, fossem uma pequena amálgama de arames. "Tens de me dar o braço", sussurrou, lamuriou ela. "E tu que nem tens uma pistola sequer - Espera", disse ela. Tinha parado. Ele voltou-se; não a podia ver mas ouvia a sua respiração apressada e depois um roçagar de tecido. Depois ela estava a empurrar alguma coisa contra ele. "Olha", sussurrou ela. "Pega." Era a machadinha; não a vista mas o tacto lho disse - uma machadinha com um cabo pesado e gasto e uma lâmina pesada, cheia de bocas e embotada pela ferrugem.
"Quê?", disse ele. "Pega!" sussurrou, sibilou, ela. "Não trouxeste pistola. É alguma coisa."
"Olhe", disse ele; "espere." "Anda", sussurrou ela, "Tens de me dar o teu braço. Estou a tremer tanto." Retomaram caminho, ela agarrada ao braço dele, ele com a machadinha na outra mão. "Assim como assim, provavelmente vamos precisar disto para entrar na casa", disse ela, caminhando aos tropeços a seu lado,
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quase o arrastando. "Alguma coisa me diz que ela está a espiar-nos", larnunou ela. "Sinto. Mas se ao menos pudéssemos chegar à casa, entrar na casa
- " A alameda parecia interminável. Ele conhecia aqueles sítios. Havia caminhado entre o portão e a casa em pequeno, em rapaz, quando as distâncias parecem realmente grandes (de tal forma que, para um homem feito, a longa milha compacta da sua infância se transforma em distância menor que um
tiro de pedra) mas agora parecia-lhe que nunca mais avistaria a casa: por isso em breve ele deu por si repetindo as palavras dela 'Se ao menos pudéssemos chegar à casa, entrar na casa', dizendo para consigo, recobrando-se ao dizê-lo: 'Eu não tenho medo. Só não quero é estar aqui. Só não quero é saber o que é que ela tem escondido lá dentro.' Mas enfim chegavam. Assomava, agigantava-se ela, quadrada e enorme, de chaminés denteadas e meio tombadas, os contornos do telhado abaulandojá; por um instante, caminhando eles, apressando-se, Quentin viu distintamente através dela um farrapo de céu com três estrelas quentes, como se a casa tivera uma só dimensão, fosse pintada num pano de fundo em que houvesse uma rasgadura; quase abaixo, agora, o bafo quente, como de fornalha, em que seguiam, parecia tresandar em lenta e protelada violência ao cheiro da ruína e da podridão, como se a madeira de que era feita fosse carne. Ela trotava a seu lado agora, trémula a sua mão no braço dele mas garra porém, nessa força rígida e sem vida; sem falar, sem dizer uma palavra, todavia o seu lamento, quase um gemido, era contínuo. Aparentemente ela nada via agora, de forma que ele tinha de guiá-la para onde sabia que estavam os degraus, e depois refreá-la, sussurrando, sibilando, arremedando sem o saber a pressa dela, tensa e débil: "Espere. Por aqui. Cuidado agora. Estão podres." Ele quase a ergueu, a levantou, passando os degraus, amparando-a de trás pelos cotovelos como quem ergue uma criança; ele sentia um quê de feroz, implacável, dinâmico, percorrendo os braços magros e rígidos e descendo às palmas das suas mãos e
subindo aos seus braços; deitado na cama do Massachusetts, lembrou-se de ter pensado, ter percebido, ter dito subitamente para consigo, 'Ela não tem medo, medo nenhum. Qualquer coisa é. Mas não é medo', sentindo-a escapar-se das suas mãos, ouvindo os passos dela que atravessava a varanda, alcançando-a onde ela agora ficara, arquejando, junto à porta invisível. "E agora?", sussurrou ele.
"Arromba-a", sussurrou ela. "Há-de estar fechada à chave, pregada. Não tens a machadinha? Arromba-a."
"Mas - " começou ele dizendo. "Arromba", sibilou ela. "Pertenceu à Ellen. Eu sou a sua irmã, a sua única herdeira viva. Arromba. Despacha-te." Ele deu uns empurrões à porta. Não cedia. A seu lado, ela arquejava. "Despacha-te", disse ela. "Arromba."
"Ouça, Miss Rosa", disse ele. "Ouça." "Dá-me cá a machadínha." "Espere", disse ele. "Quer mesmo entrar?" "Eu vou entrar", lamuriou ela. "Dá-me cá a machadinha." "Espere", disse ele. Seguiu ao longo da varanda, guiando-se pela parede, em passos cautelosos, pois não sabia quais eram as pranchas do sobrado que
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estariam podres, nem mesmo onde já não as haveria, até que chegou a uma janela. As adufas estavam cerradas e pareciam trancadas, mas cederam quase imediatamente à lâmina da machadinha, não fazendo grande ruído - uma frágil e tíbia barricada, feita, ou por mãos idosas e débeis - de mulher - ou por um homem inábil; já ele tinha inserido a lâmina da machadinha por baixo do caixilho quando percebeu que não havia nele vidraça, que lhe bastava agora entrar pela moldura vazia. Ficou ali por momentos, dizendo-se para entrar, dizendo-se que não tinha medo, só não queria era saber o que haveria lá dentro. "Então?" sussurrou Miss Coldfield à porta. "Já a abriste?"
"Já", disse ele. Não foi um sussurro, conquanto não fosse muito alta a voz; a sala escura, que lhe ficava em frente, repetiu a sua voz com essa profundidade cava das salas vazias. "Espere aí fora. Vou ver se consigo abrir a porta." - Tritão agora vou ter de entrar', pensou ele, galgando o parapeito. Sabia que estava a sala vazia; o eco da sua voz lho dissera, porém deslocava-se ele agora tão lenta e cautelosamente como viera ao longo da varanda, tacteava a parede com a mão, seguia a parede, e dobrava o cotovelo da parede até que encontrou a porta, e saiu. Estaria agora na sala de entrada; quase acreditava que ouvia a respiração de Miss Coldfield, além da parede a seu lado. Estava escuro como breu; não via nada, sabia que não podia ver nada, porém notou que lhe doíam as pálpebras e os músculos do esforço e pontos vermelhos, fundindo e apartando-se, revoluteavam nas retinas e desapareciam. Seguiu adiante; sentiu finalmente a porta sob a sua mão e, agora sim, ouvia a respiração de Miss Coldfield como um queixume além da porta ao tactear, procurando a fechadura. Depois, atrás de si, o som dum riscar de fósforo foi uma explosão, um tiro de pistola; mesmo antes de surgir em seguida a luz titubeante, os seus órgãos todos se revolveram num enjoo; por instantes não pôde sequer mexer-se, ainda que uma qual sensatez silenciosamente lhe gritasse no crânio: 'Calma! Se houvesse perigo, ele não acendia um fósforo!' Depois conseguiu mexer-se, e ao voltar-se viu a criatura-minúscula, como um gnomo, de pano amarrado na cabeça e saias volumosas, o rosto gasto, da cor do café, fitando-o, o fósforo erguido na mão da cor do café, como se fosse mão de boneca, acima da cabeça. Depois já não a via a ela mas apenas o fósforo, que se estava consumindo cada vez mais próximo dos seus dedos; observou-a em silêncio que enfim se movia e acendia um segundo fósforo no primeiro, e se voltava; então ele viu o cepo quadrado da serra junto à parede, e o candeeiro pousado em cima, quando ela ergueu a chaminé e chegou o fósforo à torcida. Lembrou-se disso, ali deitado na cama do Massachusetts e respirando rapidamente agora, agora que a paz e o silêncio novamente o abandonavam. Lembrou-se de que ela não lhe disse uma palavra, nem Quem é o senhor? nem O que quer daqui? mas apenas veio com um molho de arcaicas e enormes chaves de ferro, como se ela já soubera que esta hora havia de chegar e que não poderia opor-lhe resistência, e abriu a porta, e recuou alguns passos ao entrar Miss Coldfield. E agora ela (Clytie) e Miss Coldfield não se diziam uma só palavra, como se Clytie houvesse lançado um olhar à outra mulher e soubesse que falar de nada serviria; que foi para ele, Quentin, que ela se voltou, pondo-lhe a mão no braço
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e dizendo, "Não deixe que ela vá lá cima, paterãozinho". E que, olhando ela talvez para ele, soubesse que isso também de nada serviria, porque ela voltou-se e alcançou Miss Coldfield e agarrou-a pelo braço e disse, "Não vais lá cima, Rosie" e com um sopapo Miss Coldfield sacudiu a mão dela e seguiu direita à escada (e agora ele via que ela tinha uma lanterna; lembrou-se de ter pensado, 'Devia estar também o guarda-chuva, juntamente com a machadinha') e Clytie disse, "Rosie" e correu de novo atrás da outra, ao que Miss Coldfield se voltou no degrau e deitou Clytie ao chão com um murro puxado, como teria feito um homem, e voltando costas continuou a subir a escada. Ela (Clytie) estava caída no chão nu da sala de entrada, sem pintura e vazia, feita uma trouxinha informe de panos limpos e quietos. Quando ele chegou junto dela, viu que estava perfeitamente consciente, de olhos bem abertos e calmos; postado à beira dela, pensava, 'Sim. Ela é quem conhece o terror'. Quando a ergueu foi como se apanhasse do chão uns quantos paus escondidos numa trouxa de farrapos, de tão leve que ela era. Não tinha ela forças para estar de pé; ele teve de a segurar, consciente dum fraco movimento ou da intenção dele nesses membros, até que enfim compreendeu que ela estava tentando sentar-se no primeiro degrau. Ao degrau a baixou. "Quem é o senhor?" disse ela.
"Sou o Quentin Compson", respondeu ele. "Sim. Lembro-me do seu avô. Vai lá cima e faz ela vir para baixo. Faz ela ir-se embora. Seja o que for que ele fez, eu e a Judith e ele já pagámos por isso. Vai lá cima buscá-la. Leva-a embora daqui." Então ele subiu as
escadas, o piso gasto e nu, dum lado a parede fendida e lascada, do outro a balaustrada a que faltavam alguns dos seus pilares intervalados. Lembrava-se ele de ter olhado para trás e de tê-la visto sentada ainda, como ele a tinha deixado, e que estava agora lá em baixo (e ele não o tinha ouvido entrar), na sala, um jovem, um negro claro, abrutalhado, de calças de peitilho e camisa, desbotadas ambas, os braços balançando, a boca aberta, sem uma surpresa, nada, no rosto da cor do bistre e idiota. Lembrou-se de ter pensado, 'A vergôntea, o herdeiro, o aparente (mas não o óbvio)' e de ouvir os passos de Miss Coldfield e ver a luz da lanterna aproximar-se ao longo da parede do andar de cima, e que ela veio, passou por ele, quase tropeçou e equilibrou-se, e olhou-o bem nos olhos como se nunca o tivera visto - olhos muito abertos e cegos como os olhos dum sonâmbulo, no rosto que sempre tivera a cor da cera mas possuía agora um quê de mais profundo, e quase insuportável, esvaimento
- e ele pensou, 'O que é? O que é isto agora? Não é choque. E nunca foi medo. Poderá ser triunfo?' e ela passou por ele e seguiu adiante. Ouviu Clytie dizer ao homem, "Leva-a até ao portão, à charrete" e ele ficou ali a pensar, 'Eu devia ir com ela' e depois, 'Mas agora eu também tenho de ver. Terei de ver. Talvez me arrependa amanhã, mas tenho de ver'. Por isso quando voltou a descer as escadas (e lembrava-se de ter pensado, 'Talvez a minha cara tenha uma expressão igual à dela, mas não é triunfo') só Clytie estava na sala de entrada, sentada e imóvel no primeiro degrau, sentada e imóvel na postura em que ele a tinha deixado. Nem sequer o olhou quando ele passou por ela. Nem ele chegou a alcançar Miss Coldfield e o negro. A treva era tanta que ele não podia
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caminhar depressa, embora não tardasse a ouvi-los à sua frente. Já ela não levava a lanterna acesa; lembrava-se de ter pensado, 'Com certeza que ela não terá receio agora de mostrar uma luz'. Mas não a levava acesa, e ele perguntou-se se ela iria apoiada agora ao braço do negro; perguntava-se até que ouviu a voz do negro, monótona, sem ênfase nem interesse: "O chão tá melhor aqui" e nenhuma resposta veio dela, embora estivesse ele já tão próximo que ouvia (ou supunha ouvir) a respiração dela, arquejante, como um queixume. Depois ouviu outro som e percebeu que ela tinha tropeçado e caído; quase via o negro abrutalhado, apalerinado, parando no trilho que seguia, olhando para onde viera o som da queda, à espera, sem interesse nem curiosidade, enquanto ele (Quentin) estugava o passo, acorrendo em direcção às vozes.
"Tu aí, nigro! Como te chamas?" "Nome é Jim, Bond." "Ajuda-me a levantar! Tu não és um Sutpen! Não tens de me deixar para aqui no chão! "
Quando ele parou a charrete ao portão de casa dela, desta vez não mostrou ela vontade de se apear sozinha, Deixou-se ficar sentada até que ele desceu e deu a volta à charrete; ainda ali estava sentada, apertando o guarda-chuva numa das mãos e a machadinha na outra, até que ele pronunciou o seu nome. Então ela reagiu; ele ajudou-a, levou-a em peso até ao chão; era quase tão leve como Clytie; ao dar uns passos, era como se fosse uma boneca mecânica, de forma que ele amparou-a e passou com ela o portão, e com ela subiu o breve passeio e entrou na casa de bonecas e acendeu-lhe a luz e olhou o rosto inexpressivo de sonâmbula, os olhos escuros muito abertos, ela parada ali, ainda apertando nas mãos o guarda-chuva e a machadinha, o xaile e o vestido preto ambos manchados de terra por ter caído, o chapelinho preto empurrado para a frente e de través pelo choque da queda. "Precisa de alguma coisa?" disse ele.
"Não", disse ela. "Não. Não preciso. Boa noite." -'Nem um obrigado', pensou ele: 'Só boa noite', à porta agora da casa, respirando profunda e rapidamente e voltando à charrete, percebendo que estava quase a começar a correr, pensando serenamente, 'Credo. Credo. Credo', respirando rapidamente e a custo o bafo morto de fornalha e treva, da noite, em que ferozes e alheias, suspensas, pairavam as estrelas. A sua casa estava às escuras; ainda estalava o chicote quando voltou à vereda e entrou depois no pátio da cavalariça. Apeou-se dum salto e desatrelou a égua da charrete, livrou-a dos arreios e atirou-os em desordem para a estrebaria sem os pendurar, suando, respirando rapidamente e a custo; quando enfim dobrou o caminho da casa, começou então a correr. Não tinha mão em si. Vinte anos; e não tinha medo, que o que por lá tinha visto não podia fazer-lhe mal, mas corria; já dentro da casa escura e conhecida, de sapatos na mão, ainda ele corria, subiu as escadas correndo e correndo entrou no seu quarto e começou a despir-se, rápido, suando, respirando ofegante. 'Devia tomar um banho', pensou ele: depois estava deitado em cima da cama, despido, esfregando continuamente o corpo com a camisa que despira, suando ainda, arquejante: e assim quando, os músculos dos olhos doendo e esforçados na treva e a camisa quase seca
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ainda apertada na mão, ele disse 'Adormeci' era a mesma coisa, não havia diferença: dorrnindo ou acordado ele caminhava por aquele corredor do primeiro andar, entre paredes lascadas e sob um tecto com fendas, em direcção à luz débil que se escapava da última porta, e parou ali, dizendo 'Não. Não' e depois 'Mas tem de ser. Tem de ser' e passou a porta, entrou no quarto nu que cheirava a bolor, de adufas cerradas também, que um segundo candeeiro iluminava indeciso, posto em cima de mesa tosca; dormindo ou acordado era a mesma coisa: a cama, os lençóis amarelos e a almofada, o rosto amarelo e gasto, de pálpebras cerradas, quase transparentes, na almofada, as mãos gastas e cruzadas sobre o peito como se fosse à um cadáver; dormindo ou acordado era a mesma coisa, e seria ainda e sempre a mesma coisa por mais anos que vivesse:
E o senhor é - ?
Henry Sutpen. E está aqui há - ?
Quatro anos. E voltou - ?
Para morrer Sim. Para morrer? Sim. Para morrer. E está aqui há - ?
Quatro anos. E o senhor é - ?
Henry Sutpen. Fazia muito frio já no quarto; a qualquer momento bateria o carrilhão a uma hora; havia um presságio de acúmulo, de movimento, nesse frio, como a preparar o instante inerte que precede a alvorada. "E ela esperou três meses antes de ir lá buscá-lo", disse Shreve. "Porquê?" Quentin não respondia. Estava deitado de costas, imóvel e rígido, com a noite fria da Nova lnglaterTa na cara, e o sangue a correr-lhe quente pelo corpo rígido, pelos membros rígidos, respirando a custo mas lentamente, os olhos muito abertos, fixando a janela, pensando 'Nunca mais haverá paz. Nunca mais haverá paz. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais.' "Achas que foi porque ela sabia o que ia acontecer quando ela contasse, quando ela tomasse providências, que então acabava-se, punha-se um ponto final, e que o ódio é como a bebida ou uma droga, e ela se tinha acostumado a ele há tanto tempo que não se afoitava a cortar a dose, a destruir a fonte, a raiz até e a semente da papoila?" Quentin continuava sem responder. "Mas por fim ela conformou-se até, por causa
dele, para o salvar, para o trazer para a vila, onde havia médicos e o podiam salvar, e por isso é que ela então contou, e arranjou ambulância e homens e foi até lá. E a velha Clytie porventura à espera disso mesmo, ali da janela do primeiro andar, há já três meses: e porventura o teu velhote tinha mesmo razão desta vez, e quando ela viu a ambulância entrar o portão julgou que era aquela mesma carroça preta por que esperava provavelmente há já três meses e que mandava o nigro ficar de atalaia, a ver quando ela chegasse, que vinha para levar Henry para a vila para ser enforcado pelos brancos por ter
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matado o Charles Bon a tiro. E eu acho que também foi ele que encheu esse armário do vão da escada com entulho e tudo o que fosse inflamável, já tudo preparado há que tempos como ela mandou, talvez nem o tivesse ido buscar na altura, mas continuava a enchê-lo porque ela mandava, com o querosene e tudo, há já três meses, até à hora em que ele tivesse motivos para uivar - "
Agora começava o carrilhão a bater a uma hora. A voz de Shreve calou-se, como se estivesse à espera que se calassem as badaladas ou talvez porque as ouvia. Quentin continuava também calado, como se também ele estivesse a ouvir, mas não estava: apenas ouvia as badaladas sem escutar, como ouvia Shreve sem escutar nem responder, até que findaram, e se desvaneceram na noite gélida, vagas e delicadas e musicais como cristal. E ele, Quentin, via aquilo também, embora lá não tivesse estado - a ambulância com Miss Coldfield entre o condutor e o ajudante, um xerife delegado, talvez, ela de xaile com certeza e talvez até de guarda-chuva também, embora provavelmente já sem a machadinha e a lanterna escondidas neles, entrando o portão e escolhendo caminho vagarosa, cautelosamente pelas rodeiras geladas (que de onde em onde já eram atoleiros) da alameda; e podia ter sido o uivo ou podia ter sido o xerife delegado, ou o condutor ou podia ter sido ela quem exclamou primeiro: "Está a arder!" mas ela não teria exclamado assim; ela teria dito, "Mais depressa. Mais depressa." curvada para a frente neste banco também - a mulher miúda, soturna, furiosa, implacável, pouco maior que uma criança. Mas a ambulância não podia ir mais depressa em tal piso; por certo Clytie o sabia, o calculava; passariam uns bons três minutos antes de poder a ambulância alcançar a casa, o monstruoso esqueleto seco, inflainável, podre, que vazava o fumo pelas fendas empenadas das tábuas do forro como se elas fossem uma rede em arame, e rugia, e além dele, algures, alguma coisa rondava e bramia, criatura humana, pois eram os bramidos em voz humana, mesmo se a razão deles não parecesse humana. E o delegado e o
condutor saltariam da ambulância e Miss Coldfield desceria vacilante para segui-los, correndo ela também, na varanda também, onde a criatura que bramia os seguiu, fantasmal, insubstancial, olhando para eles do fumo, ao
que o delegado até se voltou e correu atrás dele, ao que ele bateu em retirada, fugiu, embora o uivo não tivesse dimánuído nem parecesse distanciar-se muito. Correram eles pela varanda também, meteram-se pelo fumo adentro, que vazava, Miss Coldfield gritando em voz rouca, "Pelajanela! Pelajanela!" ao ajudante que ficara à porta. Mas a porta não estava trancada; rodou e abriu-se; a explosão de calor atingiu-os. Toda a escadaria estava em chamas. Ainda assim tiveram de segurá-la; Quentin via: via a criatura leve, magra, furiosa, que não fazia rumor agora, escabujando em silenciosa e amarga fúria, rasgando e arranhando e mordendo os dois homens que a seguravam, que a arrastavam escada abaixo, fugindo à corrente do ar criada pela porta aberta que parecia explodir como pólvora entre as chamas, e todo o andar térreo desaparecia. Ele, Quentin, via, via o delegado a segurá-la enquanto o condutor recuava a ambulância e a punha a salvo e depois voltava, um certo desvario nesses três rostos, pois eles deviam ter acreditado nela; - todos três fitando, com um lampejo no olhar, a casa condenada: e depois, por instan241

tes, Clytie assomou talvez à janela, a mesma janela de onde estivera porventura vigiando constantemente os portões, dia e noite, há já três meses o trágico rosto de gnomo com um pano limpo amarrado na cabeça, contra um fundo vermelho de chamas, lobrigado por instantes entre dois rolos de fumo, olhando lá do alto para eles, talvez nem mesmo agora em triunfo, e sem mais desespero do que o mesmo que sempre carregara, o rosto possivelmente sereno até, acima das tábuas que derretiam, antes de o fumo rolar de novo e o esconder - e ele, Jim. Bond, a vergôntea, o último da sua estirpe, que o viu também agora, e uivava com razão humana agora, pois agora até mesmo ele saberia por que uivava. Mas não o puderam apanhar. Ouviam-no; parecia que ele nunca se distanciava muito, mas eles não podiam aproximar-se mais, e talvez com o andar do tempo já não pudessem localizar sequer a direcção do uivo. Eles - o condutor e o delegado - seguraram Miss Coldfield, que escabujava: ele (Quentin) tudo via, ela e eles; não esteve lá mas via, ela debatendo-se e escabujando como boneca em pesadelo, sem um rumor, espumando já pela boca, o rosto, mesmo na luz do sol, ainda iluminado por um derradeiro e selvagem reflexo carmesim, enquanto a casa desabava e se desfazia rugindo, e nada mais restava que a voz do negro idiota.
"E portanto foi a Tia Rosa que voltou à vila de ambulância", disse Shreve. Quentin não respondia; nem sequer disse, Miss Rosa. Continuou de olhos fitos na janela, sem pestanejar sequer, respirando a fria, a capitosa treva, a pura resplendência da neve. "E ela foi para a cama porque tudo estava acabado agora, já não restava mais nada, não havia por lá mais nada, a não ser o rapaz idiota que rondava aquelas cinzas e aquelas quatro chaminés esventradas e uivava, até que veio alguém e o levou dali. Eles não puderam apanhá-lo, e parece que ninguém nunca foi capaz de o afastar muito dali, que ele só parava de uivar por pouco tempo. E com o andar do tempo começavam a ouvi-lo outra vez. E ela morreu." Quentin não respondia, de olhos fitos na janela; depois não saberia dizer se essa era a janela real ou o pálido rectângulo dela sobre as suas pálpebras, embora, passado um momento, começasse então a surgir. Ganhasse forma, ainda nessa mesma singular, leve, postura desafiando as leis da gravidade - a folha dobrada ao meio que viera desse Verão de glicínias no Mississipi, o cheiro do charuto, o vagar em acaso dos vaga-lumes. "O Sul", disse Shreve. "O Sul. Credo. Não admira que vocês todos sobrevivam à própria morte por anos e anos a flo." Começava a distinguir-se já; em breve poderia decifrar as palavras, em um momento; até quase agora, agora, agora.
"Sou mais velho aos vinte anos que muitos que já morreram", disse Quentin.
"Ejá morreram muitos que nunca chegaram aos vinte e um", disse Shreve. Agora ele (Quentin) podia lê-la, podia acabar de ler - o cursivo caprichoso, irónico, do Mississipi tenuamente chegado às neves cerradas:
- ou talvez haja. Decerto nãojará mal a ninguém acreditar que talvez ela se tenha libertado, não do privilégio dum ultraje e dum assombro e duma inclemência, não, maspelo contrário alcançaria por si mesma
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esse lugar ou fronteira onde os objectos do ultraje e da comiseração deixam também de serfantasmas e se tomam pessoas reais e em realidade recebem ódio e piedade. Não há mal em ter esperança - Como vês escrevi ter esperança, não pensar Seja então esperança. - que um não podefugir ao anátema que sem dúvida merece, que ao outrojá nãojaltará essa comiseração pela qual, esperemos nós (enquanto houver a
esperança) ansiavam, mais que não seja pela razão de estarem prestes a recebê-la quer queiram quer não. O dia estava lindo masfirio efoipreciso abrir a terra à picareta para cavar a sepultura, todavia num dos torrões maisfundos vi uma sanguessuga bem viva, quando o torrão veio atirado para cima, embora à tarde já estivesse novamente congelada.
"Então foram precisos o Charies Bon e a mãe para acabar com o velho Tom, e o Charles Bon e a oitoruna para acabar com a Judith, e o Charles Bon
e a Clytie para acabar com o Henry; e a mãe do Charles Bon e a avó do Charles Bon para acabar com o Charles Bon. De forma que são precisos dois nigros para acabar com um Sutpen, não é?" Quentin não respondia; evidentemente Shreve não precisava de uma resposta agora; prosseguiu sem quase fazer uma pausa: "O que está bem, está muito bem. Saldaram-se as contas, já se pode rasgar as folhas todas e queimá-las, há só um senão. E sabes tu qual é?" Talvez agora ele tivesse a esperança que haveria uma resposta, ou talvez apenas fizesse uma pausa de ênfase, pois nenhuma resposta houve: "Sobra um nigro. Sobra um nigro que também é um Sutpen. Claro que ninguém o pode agarrar e nem sempre ele se deixará ver e nunca será possível usá-lo. Mas ainda assim existe. Ainda o ouves de noite às vezes. Não é?"
"É", disse Quentin. "E então sabes o que é que eu penso9" Agora ele esperava, sim, uma
resposta, e agora houve resposta:
"Não", disse Quentin. "Queres saber o que é que eu penso?" "Não", disse Quentin. "Então eu digo-te. Eu acho que, a seu tempo, os Jim Bonds deste mundo vão conquistar o hemisfério ocidental. Claro que não será bem no nosso tempo, e claro que, à medida que se forem espalhando em direcção aos pólos, hão-de ficar sem cor outra vez, como acontece aos coelhos, e aos pássaros, @e forma que não se vai notar tanto, em contraste com a neve. Mas há-de ser a mesma um Jim Bond; de forma que daqui a uns milhares de anos, eu, que estiver a olhar para ti, hei-de ter nascido também da semente de reis africanos. Agora só quero que me digas mais uma coisa. Por que odeias o Sul?"
"Eu não odeio o Sul", disse Quentin de súbito, imediatamente, instantaneamente; "não odeio", disse ele. Eu não odeio o Sul pensou, respirando arquejante o ar frio, a cerrada treva da Nova Inglaterra: Não odeio. Não odeio! Eu não odeio o Sul! Eu não odeio o Sul!

 

 

                                                                  William Faulkner

 

 

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